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CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l 6. A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género por: Fernanda Henriques* * A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015. por: Fernanda Henriques 0203 203 GUIÃO DE EDUCAÇÃO 0204 204 CIG Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l 6.1. Legitimar uma proposta Parece evidente que a Filosofia e as questões ligadas à discriminação sexual não têm qualquer relação, uma vez que a representação de si tradicional deste campo teórico – representação essa mais ou menos aceite pelo senso comum – a configura como um olhar recuado sobre o sentido da realidade e, por isso, incólume a particularismos de qualquer espécie. “ (Nas escolas) não se lhes diz nem uma palavra sobre os Sexos; dá-se por suposto que são bastante bem conhecidos; longe de examinar em relação com eles a sua capacidade e a sua diferença verdadeira e natural, coisa que é um dos assuntos mais curiosos e talvez também dos mais importantes da Física e da Moral, passam anos inteiros, e alguns toda a sua vida, ocupados com bagatelas (…). ” Poulain de la Barre , 1673. 1 Como se pode compreender esta afirmação de Amelia Valcácer? sociais que condicionam e sustentam quer a nossa vida pessoal quer a nossa vida coletiva. Este ponto de vista pode ser apoiado através da perspetiva Hermenêutica, nomeadamente a de Hans-Georg Gadamer, quando fala de “consciência histórica”, chamando a atenção para a eficácia do trabalho da história em nós, ou, a de Paul Ricoeur, quando põe em evidência a relação entre a história e a nossa memória coletiva. Deste modo, a Hermenêutica opõe-se, claramente, a uma visão assética e pretensamente neutral do conhecimento, realçando a importância do nosso enraizamento histórico na sua constituição e transmissão. Decididamente, consciencializando o papel que as conceções filosóficas têm na construção e reprodução das representações Na verdade, para Gadamer o tema da ‘consciência histórica’ faz dela, simultaneamente, condição de possibilidade N o entanto, talvez seja útil questionar tal óbvio e refletir-se a sério nas palavras da filósofa espanhola Amelia Valcárcel que, exatamente, aponta numa direção oposta, ao afirmar que: “Na maior parte do mundo ocidental, a filosofia, a mais alta, difícil e abstrata reflexão das humanidades, é um dos veículos concetuais da sexualização, talvez o principal.” (1997:74) 1 Poulain de la Barre, De l’egalité des deux sexes. Os textos de Poulain de la Barre podem ser consultados on line, em fac-simile, na Biblioteca Nacional de França. . A obra está em linha, disponível em http://blog.le-miklos.eu/wp-content/Poullain-EgaliteDesDeuxSexes.pdf (acedido em 13.11.2017). por: Fernanda Henriques 205 0205 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário e de constrangimento do modo como interpretamos a realidade e nos relacionamos com ela. Como se sabe, Gadamer chama preconceito ao resultado do trabalho da história sobre nós e, tal como ele apresenta o preconceito, talvez o pudéssemos designar como esquemas de significação transubjetivos, que são, afinal, princípios de leitura da realidade que, por isso, determinam o modo como, em cada momento, nos entendemos e interagimos. “ A consciência histórica não escuta de forma beatífica a voz que lhe chega do passado mas, refletindo sobre ela, recoloca-a no contexto em que ela se enraíza para avaliar a significação e o valor relativo que lhe pertence. Este comportamento reflexivo perante a tradição chama-se interpretação. ” Hans-Georg Gadamer, 1996: 24-25. De acordo com Gadamer (ver texto em caixa), pertencer a um tempo e a uma cultura significa possuir uma herança, formada por um conjunto de recursos de interpretação que se deve configurar como um comportamento reflexivo perante essa herança. Isto é, como seres históricos, estamos sujeitos à eficácia da tradição em nós, ao mesmo tempo que temos o dever de a pensar e reavaliar criticamente. Para o que aqui nos interessa, este facto realça o papel das conceções filosóficas – entre outras determinações – na dinâmica das sociedades e nas suas representações, e, por isso, dá à filosofia e ao seu ensino uma responsabilidade indeclinável na formação dos modos de pensar e de agir. Por sua vez Paul Ricoeur, na obra, La mémoire, l’histoire, l’oubli, dedicada à compreensão da natureza das nossas representações sobre o passado, chama a atenção para a importância da circularidade história-memória-história. Ou seja, para ele, 0206 206 CIG a Memória é a matriz da História, mantendo ambas uma relação de potenciação: a Memória serve a História e esta, por sua vez, consolida e perpetua uma memória determinada, ou melhor, legitima uma certa memória, escamoteando (recalcando) outras memórias possíveis, dado que o passado não é um dado morto, mas um potencial de novas explorações. Nesse quadro, é muito importante a história que se ensina, especificamente a história da filosofia que se ensina, porque, continua o autor: “[…]a memória imposta é assegurada por uma história ‘autorizada’, uma história oficial, uma história aprendida e celebrada publicamente. Uma memória exercida, com efeito, é, no plano institucional, uma memória ensinada.” (2000: 104) Sobre Memória e História, ver o sub-capítulo “Saber é Poder. História, uma ciência em (re)construção” do capítulo “Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada”, deste Guião. Assim sendo, esta perspetiva não só reforça a posição anterior como, por seu lado, nos obriga a questionar o valor absoluto dos cânones, sejam eles quais forem: textuais, autorais, concetuais, impondo a sua revisitação crítica. Se se pensar, agora, por exemplo, nas conceções antropológicas que se ensinam com recurso ao pensamento clássico e canónico, dar-nos-emos conta que elas, simultaneamente, ignoram a existência de dois sexos e discriminam o sexo feminino. Esta, aparente, contradição é possibilitada porque, por um lado, os textos que fazem a nossa memória coletiva e ensinada falam de natureza humana em geral, sem diferenciações, mas pensam-na a partir do masculino como modelo ou como pretenso CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l universal neutro; por outro, há um ruído de fundo também incorporado na memória coletiva e ensinada de que o feminino se define por derivação do masculino e em relação a ele e, portanto, antropologicamente, as mulheres são seres definidos pela falta, pela carência – seja na posição aristotélica, seja na de Freud, para referir apenas os dois exemplos mais paradigmáticos – tendo-se transformado o constructo vencedor em norma, originando, ao mesmo tempo, uma espécie de naturalização daquilo que é, apenas, uma perspetiva. Ou seja, é imperioso ensinar antropologia de outra maneira, de uma maneira que permita construir uma memória individual e coletiva simétrica para o masculino e para o feminino. Assente neste quadro teórico, esta proposta de exploração no Programa de Filosofia do Ensino Secundário (PFES), a partir do ponto de vista do género, pretende apresentar algumas sugestões de trabalho que possibilitem uma abordagem dos temas programáticos que tenha em consideração o facto de a humanidade ser constituída por Mulheres e por Homens. Para além da presente introdução, esta proposta integrará mais 2 momentos: 1) um mais geral que desenvolverá um conjunto de reflexões em torno da forma como se poderá abordar um programa de filosofia com preocupações críticas em relação à discriminação de género; 2) outro mais específico onde se proporão abordagens numa ótica feminista de alguns temas do Programa. Essa proposta será feita em duas dimensões: por um lado, propor-se-á uma forma de tratar todas as rubricas do 10º ano, segundo a perspetiva de género; por outro, apresentar-se-ão sugestões para a última rubrica do 11º ano. por: Fernanda Henriques 207 0207 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário 6.2. Algumas condições para uma operacionalização crítica do PFES M ais do que introduzir o tema do sexismo ou do feminismo num determinado momento programático ou numa circunstância específica, importa ter uma perspetiva crítica e não discriminadora sobre a abordagem global dos conteúdos programáticos, o que implica tomar sempre uma distância crítica atenta aos temas, aos materiais utilizados e à linguagem. Convém não esquecer que a linguagem é o ‘meio’ através do qual tudo acontece e, por outro lado, que os recursos de aprendizagem são o que vai permanecer na relação que alunas e alunos estabelecerão com as diferentes temáticas. Nesse sentido: ฀ Há que ter cuidado, por exemplo, em não se dizer sempre homem para designar a humanidade se se pretende desconstruir a ocultação do feminino na história e na cultura. ฀ Há que atender aos exemplos que se escolhem para ilustrar os temas e as problemáticas, prestando atenção, sobretudo, a que eles não representem estereótipos e não reforcem preconceitos e, assim, quando falam de mulheres não as apresentem só como 0208 208 CIG mães ou esposas e, pelo contrário, quando falam dos homens os procurem mostrar nesses papéis. ฀ Há, também, que tomar em linha de conta que os textos ou a documentação audiovisual a utilizar sejam diversificados quer quanto à autoria quer quanto ao modo de abordar as problemáticas. ฀ Finalmente, há que cuidar a maneira como se abordam os temas e os materiais de trabalho que deverá sempre assentar numa hermenêutica da suspeita em relação ao modo como a questão de género aí está tratada, pondo-a de manifesto. O organigrama seguinte procura dar algumas respostas a essas interrogações, sendo em torno do seu comentário que se desenrolará este momento da proposta. Tal como está concebido, o organigrama deixa-se comentar a partir de um tema cruzado que se poderá designar por: a unilateralidade da análise dos problemas pela História da Filosofia, o pretenso universal neutro e a necessidade de criar uma memória do passado mais objetiva. Na verdade, CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l FILOSOFIA e GÉNERO Porquê? Unilateralidade da análise dos problemas pela História da Filosofia Criar uma memória do passado mais objetiva A História da Filosofia ignora a produção das Mulheres O universal pretensamente neutro Para quê? A História da Filosofia transmite visões depreciativas sobre o feminino Como? Evidenciar a relação entre conceções filosóficas e representações sociais Criar novas representações sociais sobre o feminino Dar visibilidade ao tema Corrigir assimetrias na representação de si de Mulheres e Homens uma das razões que torna necessário e útil abordar o ensino da Filosofia tendo em conta as dimensões teóricas impostas pela perspetiva de género é o facto de esta obrigar a uma renovação na abordagem dos Questionar a pertinência de algumas conceções filosóficas sobre o feminino herdadas da tradição Desocultar a ideologia de género subjacente ao tratamento tradicional dos temas Explorar textos da História da Filosofia sobre o tema temas e das problemáticas e, através dessa renovação, introduzir atitudes intrinsecamente problemáticas. Porventura, o caso do universal é um exemplo paradigmático. por: Fernanda Henriques 209 0209 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário 6.2.1. A problemática do universal N a verdade, a universalidade é o horizonte de sentido do filosofar, mas, de facto, o que significa hoje falar de universal e de universalidade? São de duas dimensões as questões que se podem colocar a este nível: (1) a relação com o universal neutro e a discriminação das mulheres e (2) a relação do universal neutro com uma perspetiva eurocêntrica e branca. 1. O UNIVERSAL NEUTRO E A DISCRIMINAÇÃO DAS MULHERES Entremos no tema, através das palavras de Celia Amorós na Introdução a uma obra sobre a concetualização do feminino na filosofia antiga (ver texto em caixa). Sendo uma obra sobre a origem da filosofia na Grécia, a autora quer chamar a atenção para o facto de que, à partida, quando os instrumentos conceptuais da filosofia se afinavam, o modo como foi instituído o universal implicou uma dupla exclusão do feminino: da visibilidade e da pensabilidade. Realmente, o facto de se ter escamoteado que o que era tomado como universal representava apenas a generalização do masculino, ignorou a existência do feminino na conceção do humano. Por outro lado, esse mesmo processo exclui o feminino dos quadros do pensado e do pensável. Se nos ativermos à importância que esta situação pode ter nas representações sociais sobre as mulheres, pode-se, certamente, dizer que o universal, como genérico humano, representa uma discriminação fundadora, algo como um estereótipo arquetípico, “ […] aquilo que é pensado como o genérico humano apresenta-se num plano de abstração que neutraliza os opostos sexuais […]. Contudo, não de tal maneira que aquilo que é proposto ao nível da abstração do neutro possa ser comunicável no masculino ou no feminino: constituir-se-á como o masculino, que assumirá, deste modo, o neutro, e assim não se porá a si mesmo como o masculino, e sim como o próprio genérico humano. ” “ Ao ficar do lado do diferente, do outro-diferente-do-neutro, e sendo o neutro o pensado enquanto neutro – e vice-versa, na medida em que se tornara neutro enquanto pensado –, o feminino tornar-se-á não-pensado. ” Celia Amorós in Eulalia Perez Sedeño, 1994:vii. 0210 210 CIG CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l responsável pela permanência em toda a tradição ocidental da ideia de que o feminino é derivado (marcado) e, portanto, as mulheres são um ‘segundo sexo’. Se se quiser pensar em termos de eficácia histórica, teremos aqui um bom exemplo dela, bastando-nos, para isso, convocar os constructos psicanalíticos: Freud, que se contrapôs a quase todos os modos de pensar instituídos, em relação ao feminino e às mulheres limitou-se a reiterar aquilo que Aristóteles tinha definido, porque o complexo de castração e a inveja do pénis mais não são do que a reiteração da perspetiva aristotélica, elevada a saber cientifico; por seu lado, Lacan, quando postula que apenas o falo tem capacidade de evocar campos simbólicos, no fundo, faz ressonância daquilo que foi instituído na Grécia como universal genérico, mas que, efetivamente, tinha sido assimilado ao masculino. Numa obra sobre a Política de Aristóteles, uma outra filósofa espanhola, Amparo Moreno, separa ‘sexismo’ de ‘androcentrismo’ para evidenciar que a conceção que herdámos de Aristóteles sobre o suposto universal ‘homem’ não só exclui todas as mulheres, mas também exclui muitos homens. A autora afirma que a concetualização de homem no livro I da Política se referia ao “homem feito, ao que assumiu os valores próprios da virilidade, crendo-se, por isso, com direito a impor-se sobre outras e outros”(1988:18) e não a todos os homens. A análise de Amparo Moreno vai centrar-se no modo como o pensamento político de Aristóteles tem sido transmitido pela Academia, mostrando que, no geral, essa transmissão se faz ignorando ou minimizando as referências de Aristóteles às mulheres, aos escravos e aos estrangeiros ou, então, assinalando apenas a posição de Aristóteles em relação à escravatura. Ou seja, está-se a assumir que homem representa um genérico neutro, nesta transmissão, mas, ao fazê-lo, ignora-se o ponto de vista discriminador segundo a qual o conceito tinha sido forjado, relegando para o plano do impensado as suas condições de constituição e, deste modo, naturalizamo-lo, tirando-lhe a sua condição de construído. Nesse quadro, Amparo Moreno chama a atenção para o facto de que não explicitar as condições de construção do conceito em causa determina o que ela designa por opacidade androcêntrica no discurso quer académico, quer público. 2. O UNIVERSAL NEUTRO E O DOMÍNIO DA PERSPETIVA EUROCÊNTRICA E BRANCA A questão do universal neutro como expressão da perspetiva eurocêntrica e branca tem de ser pensada no quadro epistemológico da Modernidade, onde está associada a um conceito de racionalidade imperialista e excludente ligada ao domínio do mundo por parte de um sujeito todo-poderoso que mede, calcula e explora, configurando um paradigma de progresso de uma parte da humanidade à custa da desvalorização de outra parte, sob a designação de subdesenvolvimento. Boaventura de Sousa Santos designa o Pensamento Moderno Ocidental, como Pensamento abissal, para chamar a atenção para o seu caráter radicalmente dicotómico e excludente, fazendo uma crítica devastadora da perspetiva epistemológica básica do Pensamento Moderno. Na sua leitura, este modo de pensar carateriza-se pelas distinções e pelas divisões, umas visíveis e outras invisíveis, mas que são fundamento das primeiras e marcam dois universos discursivos irredutíveis, incomensuráveis por: Fernanda Henriques 211 0211 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário “ A divisão é tal que «o outro lado da linha» desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialéctica. ” Boaventura Sousa Santos, 2007: 3-4. e repelindo-se mutuamente: deste lado da linha e do outro lado da linha (ver caixa). Para o autor, portanto, o que está em causa neste paradigma de análise é afirmação de um universal que quer ser abrangente, mas não passa de um pseudouniversal, uma vez que é definido no âmbito de um ‘nós’ que exclui os ‘outros’, considerando-os inferiores e irrelevantes. de uma parte da humanidade que o define e o proclama como tal, embora ele não represente mais do que a perspetiva de quem o enuncia (2006). Sobre o pensamento androcêntrico (presente ao longo deste Guião), veja-se em especial os capítulos “Género e Currículo” e “Género e Conhecimento”. Sugere-se também a consulta dos capítulos “Cânone Literário e a Igualdade entre Numa outra perspetiva, Seyla Benhabib designa este universal da Modernidade como um universal substituívista porque, diz ela, se limita a chamar universal ao ponto de vista Homens e Mulheres”, ”Género e Biologia: outros olhares” e “Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes”. Na linha de Habermas, Seyla Benhabib retoma a ideia de que a modernidade é um projeto inacabado, mas, ao contrário daquele autor, considera que o levar a cabo o projeto da modernidade obriga a ser capaz de integrar as críticas que as várias fontes da pós-modernidade lhe fizeram, nomeadamente, assumir como legítima a crítica ao caráter de falso neutro do universal abstrato. Nesse sentido, Seyla Benhabib propõe a ideia de um universalismo interativo em lugar do ideal legalista e substituivista do universalismo da Aufklärung. 0212 212 CIG CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l 6.2.2. A necessidade de resgatar outras memórias filosóficas T . ornando-se como boas as considerações acima desenvolvidas, urge perguntar qual o viés que o ponto de vista do universal tomado como neutro introduziu na leitura da tradição filosófica e dos seus temas centrais e procurar revertê-lo. Na sua obra Parcours de la reconnaissance, Paul Ricoeur considera que os movimentos feministas contribuíram para popularizar o tema do reconhecimento, acrescentando que eles fizeram uma reivindicação sobre uma identidade específica que queria ser reconhecida como coletiva para poder permitir que os seus membros individuais atingissem a estima de si mesmos necessária ao assumir da dignidade e da possibilidade de uma equilibrada construção da identidade pessoal. Nesse quadro, o autor sublinha a importância do reconhecimento para a formação da identidade, dizendo duas coisas essenciais para o que aqui é o caso: ฀ que a identidade dos grupos historicamente discriminados integra uma dimensão temporal «que engloba as discriminações exercidas contra esses grupos num passado que pode ser secular» (2004: 311); ฀ que é necessário fazer uma discriminação inversa em relação a esses grupos. Fazendo a aplicação desta perspetiva ao caso da discriminação das mulheres para a qual as conceções filosóficas deram um contributo essencial, como já se explicitou, importa, então, resgatar outras memórias – no assunto vertente, outros textos e outras interpretações. Este resgate pode ser feito em duas direções: ฀ Por um lado, explicitando o papel da filosofia nas representações do feminino herdadas da tradição, procurando, nos textos analisados, o subtexto de género, ou seja, nunca deixando de questionar num texto que fale, por exemplo, de natureza humana ou de desenvolvimento moral, qual é o lugar que tal texto reserva às mulheres, mesmo quando não se refere explicitamente a elas ou, sobretudo, quando não se refere explicitamente a elas. ฀ Por outro, interrogando alguns adquiridos que há séculos são tomados como a única interpretação possível de um estado de coisas. Pode ser importante recordar a este respeito o que foi dito antes sobre a consciência histórica, sobretudo, as palavras de Gadamer chamando a atenção de que perante a tradição devemos ter um comportamento reflexivo ou interpretativo e não uma aceitação passiva e acrítica. por: Fernanda Henriques 213 0213 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário Sob uma alusão aparentemente simples, poderemos ajudar Sirva como exemplo um texto canónico: a desconstruir alguns dos A República, de Platão. Não é possível, num adquiridos mais arraigados curso de filosofia não se fazer referência a esta no nosso espírito: na Grécia, obra platónica, pelo menos, a propósito da as mulheres estavam total e Alegoria da Caverna. Como a abordagem de universalmente excluídas e essa qualquer texto exige a sua contextualização situação era completamente mínima, poder-se-á dizer que, nesta obra, pacífica. Por exemplo, para Platão propõe a configuração de uma cidade Jose Solana Dueso (1994), as coisas não são assim justa e propõe, também como possível, que, tão lineares, pondo mesmo nessa cidade, mulheres e homens pudessem aquele autor a hipótese de ter uma educação igual e, por isso, as mulheres que, em redor de Péricles também pudessem atingir o máximo da e do seu círculo, se tenha sabedoria e ser governantes da cidade. desenvolvido um movimento de emancipação feminina que, segundo a sua leitura, ajudaria a explicar não só o processo levantado nem tão-pouco esquecer que ele a Aspásia, mas também comédias como considerou as mulheres como “almas Lisístrata e Assembleia de mulheres. Por outro lado, com esse gesto estaríamos a credibilizar a proposta platónica neste particular e, desse modo, ir ao invés de uma larga tradição de receção de Platão que ou ignorou ou ridicularizou a proposta platónica em relação a este tema. Natalie Bluestone (1987) faz a análise da receção académica desta questão, a partir de 1870, encontrando, entre 1870 e 1970, sete tipos de hostilidade em relação à proposta platónica, de que destaco quatro: ฀ A igualdade não é uma temática: desvalorizando a proposta; ฀ As mulheres são diferentes: mostrando a proposta como não natural; ฀ As mulheres têm coisas melhores para fazer: salientando o caráter não desejável da proposta; ฀ Platão não quis realmente dizer aquilo: querendo mostrar que a proposta platónica não foi intencional. (1987: 21-73) Evidentemente que o que aqui se propõe não é fazer de Platão um feminista avant la lettre, 0214 214 CIG caídas”. O que aqui está em causa é questionar o significado possível de Platão ter concetualizado o feminino sem o tomar como um coletivo e, assim, conceber como inteligível que pelo menos algumas mulheres poderiam ascender ao governo da cidade, tomando consciência de que a proposta platónica assenta numa argumentação que, mesmo em termos de utopia, evidencia que a ideia de que algumas mulheres poderiam ascender ao ponto mais alto do saber e do poder surgiu também na Grécia, tendo sido motivo de discussão numa das obras mais conhecidas da literatura filosófica ocidental. Que importância pode ter tudo isto? Exatamente, dar respaldo histórico ao tema da igualdade humana e mostrar como a discriminação das mulheres não foi sempre pacificamente aceite. CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l 6.3. PROPOSTAS DE ABORDAGEM CURRICULAR Um percurso não discriminador dos conteúdos programáticos para o 10ºano T . al como vem a ser dito desde o início do presente capítulo, considera-se mais importante que haja um olhar transversal a todos os conteúdos, com intencionalidade não discriminadora, do que se analise um ou outro tema segundo uma perspetiva de género. Assim, propor-se-á a seguir um percurso possível para os conteúdos programáticos do 10º ano que decorram de um olhar não discriminador em relação ao sistema sexo-género e, ao mesmo tempo, não obriguem o corpo docente a romper com os seus hábitos e com os seus recursos habituais de trabalho. A opção por se fazer uma proposta global de abordagem não discriminadora para o 10º ano deve-se, essencialmente, ao facto de ele representar a ‘entrada’ na Filosofia e, por isso, poder ser determinante de uma relação futura com ela. Os conteúdos programáticos do Programa de 10º ano estão organizados em duas partes: uma iniciação à atividade filosófica e o desenvolvimento da articulação entre a ação humana e os valores. Esta segunda parte compreende quatro tópicos: 1) análise e compreensão do agir; 2) a problemática dos valores e da valoração; 3) as diferentes dimensões da ação humana e a sua articulação valorativa; 4) o desenvolvimento de uma temática que, simultaneamente, permita concretizar e dar corpo às diferentes problemáticas analisadas e possibilitar que alunas e alunos façam um pequeno percurso de pesquisa pessoal. Sendo este o conteúdo programático para o 10º ano, poder-se-ia dizer que todo ele, sem qualquer acréscimo de conteúdos ou esforço adicional, pode ser abordado segundo uma perspetiva de género. É, pois, no sentido de propostas de trabalho possível que devem ser lidas as sugestões inseridas ao longo do texto. Elas representam, apenas, caminhos não discriminadores de análise entre muitos outros possíveis. As propostas aqui apresentadas cruzam-se com as de outros capítulos deste Guião, nomeadamente, os relativos a “Cânone Literário e Igualdade entre Homens e Mulheres”, “Ensino do Inglês, Género e Cidadania”, “Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada” e “Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes”. por: Fernanda Henriques 215 0215 GUIÃO DE EDUCAÇÃO 6.3.1. Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS Abordagem introdutória à Filosofia e ao filosofar PROGRAMA DE FILOSOFIA S eja qual for o hábito e o gosto da e do docente na abordagem inicial da Filosofia, pode ‘acrescentar-lhe’ o olhar de género se, entre outras coisas: ฀ Escolher textos de filósofas. ฀ Organizar um debate para discutir, com argumentos, por exemplo, se a diferença dos sexos tem ou não alguma influência no modo de pensar, de agir ou de escrever. ฀ Apresentar uma galeria de mulheres que filosofaram, ao longo do tempo, para desfazer a ideia de que não há mulheres filósofas. Estas hipóteses que parecem uma brincadeira insignificante podem representar uma porta de entrada para a relação temática entre as mulheres e a Filosofia que poderá acompanhar todo o ano letivo e, por exemplo, ser uma determinante fundamental na abordagem do tema do Programa a tratar no ponto 4. E não quer dizer que se escolha necessariamente um tema diretamente ligado às problemáticas de género, mas, antes, que se transversalize esta dimensão seja qual for o tema escolhido. O ponto de partida documental para esta abordagem poderá ser a exploração do conteúdo e do significado do projeto de Judy Chicago, The Dinner Party: (Ver os Recursos A) deste capítulo). 0216 216 CIG 10º ano 1. Abordagem introdutória à Filosofia e ao filosofar 1.1. O que é a Filosofia? – uma resposta inicial 1.2. Quais são as questões da Filosofia? – alguns exemplos 1.3. A dimensão discursiva do trabalho filosófico O interesse da utilização deste documento radica em vários aspetos: ฀Inscrever-se no âmbito da arte e, nesse sentido, abrir um caminho possível para uma exploração posterior no quadro dos valores estéticos; ฀Situar-se na década de 70 e, por isso, possibilitar uma informação cultural geral, útil para a compreensão de muitas problemáticas contemporâneas; ฀Poder evocar uma série de símbolos clássicos da nossa cultura; ฀Ser desenvolvido no quadro do slogan ‘a nossa herança é o nosso poder’, perspetiva que faz ressaltar a importância de se encontrarem modelos de mulheres e de feminino ao longo da nossa tradição para que haja uma conceção mais simétrica da humanidade. Por outro lado, ele possibilita uma série de reflexões importantes no seio da nossa cultura. CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS Referem-se 3, como exemplo. UM TRIÂNGULO UMA MESA TRIANGULAR Exploração das múltiplas simbologias ligadas à figura do triângulo Evocação de outra mesa no âmbito da igualdade: a mesa redonda do Rei Artur e dos seus companheiros de armas. Paralelismos e contrastes 13 LUGARES DE CADA LADO DO TRIÂNGULO EQUILÁTERO A questão do número 13 e da mesa da última Ceia. Paralelismos e contrastes Para além da exploração simbólica em termos de paralelismo e de contraste com outras simbologias da nossa cultura e também da contemplação da obra como projeto estético, The Dinner Party pode ainda ser explorado, enquanto conteúdo, como uma fonte de informação sobre mulheres – reais ou míticas e desde a pré-história até ao século vinte – que tiveram um papel importante na dinâmica cultural. Na verdade, quer os 39 nomes de mulheres correspondendo aos 39 lugares à mesa, quer o espaço interior do triângulo que contém 999 outros nomes de mulheres oferecem uma imensa lista de mulheres ligadas às mais diferentes esferas de atividade que consubstanciam um acervo informativo relevante e que pode ser fonte de explorações diversas. 2 Figura 1. The Dinner Party, de July Chicago, 1974-1979 Fonte: http://www.contramare.net/site/pt/art-history-archive/ 2 Acedido a 03/10/2015. por: Fernanda Henriques 217 0217 GUIÃO DE EDUCAÇÃO 6.3.2. Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS A ação humana e os valores PROGRAMA DE FILOSOFIA 10º ano N a caraterização do agir, qualquer que seja a perspetiva adotada, é muito importante continuar a questionar em que medida o sexo é uma variável influente. 1. A Ação Humana – Análise e compreensão do agir 1.1. A rede conceptual da ação 1.2. Determinismo e liberdade na ação humana Tal questionamento levará, certamente, a duas linhas de problematização: ฀ A diferença e a articulação entre sexo e género ฀ A ligação entre o agir e os seus contextos culturais e psicológicos Em ambos os casos ficará claro que o agir: (1) diz respeito aos indivíduos específicos, com uma história e uma situação cultural própria, e não a seres ideais que são apenas puras abstrações racionais; (2) implica sempre um ‘padecer’, dado que a ação humana se inscreve “ num quadro relacional. Estas duas notas teóricas serão importantes, por exemplo, para tratar do tema “Determinismo e liberdade na ação humana”. A consolidação do que está em jogo neste tema pode ser feita através de um texto de Simone de Beauvoir, da sua obra, Para uma Moral da ambiguidade, porque ela permitirá não só uma abordagem clássica da questão Determinismo/ Liberdade – a visão existencialista – mas também analisar a posição própria de Beauvoir que é diferente da de Sartre. Se se chegar a demonstrar que um dos dois parceiros formulou uma ideia antes do outro, isto significa, certamente, que um dos dois teve razão mais cedo, mas isso não prova que o primeiro tenha influenciado o segundo; este pode ter de depor as armas perante uma terceira pessoa ou perante uma influência comum. Dizer que um formulou uma ideia antes de encontrar o outro também não quer dizer forçosamente que o outro não a tenha descoberto por si, porque estava ‘dans l’air du temps’ ou porque ambos se assemelhavam antes de se encontrarem. ” Éliane Lecarme-Tabone, 2002: 33. 0218 218 CIG É hoje claro no campo especializado que Beauvoir tem uma posição diferente da de Sartre em alguns temas, nomeadamente, no da Liberdade, embora, porventura, o ponto de vista mais sensato seja o de Éliane Lecarme-Tabone quando releva a dificuldade em discernir o campo próprio de uma e de outro, dado o tipo de relação e de debate que desenvolviam e que ambos confessam. A sua reflexão faz todo o sentido (ver texto em caixa). CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS Comentadoras e comentadores da obra de Simone de Beauvoir salientam a clara demarcação que ela faz em relação à conceção sartreana de liberdade. Na verdade, é a conceção de um eu absoluto que leva Sartre a ver a liberdade também de uma perspetiva absoluta – nada, nenhum constrangimento material pode macular a inteireza da liberdade: cada sujeito pode dar à sua situação o sentido que quiser. A posição de Simone de Beauvoir é completamente outra. Preocupada em compreender a secular discriminação das mulheres, Beauvoir vai falar de sujeitos situados, incarnados, intersubjetivos e, portanto, também, interdependentes: a existência humana é uma síntese de liberdade e de constrangimento, de subjetividade e de corporeidade. Ou seja, a sua análise da situação das mulheres como “sujeitos em situação” levou-a a compreender a autonomia do eu de outra perspetiva, não o considerando uma ilha totalmente autónoma, correspondendo a um sujeito transcendental, absolutamente constituinte do sentido do ser e do seu próprio sentido, como Sartre o faz. Sonia Kruks (1989;1993), comentadora de Beauvoir, chama a atenção para que a divergência de pontos de vista entre Sartre e Beauvoir sobre a relação da situação e da liberdade é muito anterior a 1949 – data de publicação de O Segundo Sexo – citando a própria, em La Force de l’âge, quando refere as suas discussões com Sartre sobre o assunto, confrontando-o com a pergunta sobre que liberdade podem ter as mulheres num harém. Esta mesma autora põe, também, em evidência que, antes de O Segundo Sexo, Beauvoir tinha escrito os ensaios, Pyrrhus et Cinéas (1944) e Pour une morale de l’ambiguité (1947), onde vai marcando a sua posição sobre a temática. Em Pour une morale de l’ambiguité, Beauvoir explicita mesmo a ideia que a opressão pode ser de tal modo que a consciência se torna, apenas, um produto dessa opressão. Dentro do quadro daquilo que está em jogo nesta análise e compreensão do agir, é pertinente referir as três aceções sobre a posição de sujeito que Michèle Le Doeuff (1989) se propõe extrair de O Segundo Sexo, mas que podem servir de modelo para uma abordagem mais geral do problema das determinações do agir e da liberdade: ฀O sujeito que constitui o outro de uma perspetiva excludente do nós, portanto, como um outro inessencial, como um objeto, como é o caso, da “soberania masculina”. ฀O sujeito das minorias oprimidas, por exemplo, os negros, olhados como outro pelos brancos, mas que têm, contudo, um nós que é a sua comunidade de pertença. ฀O sujeito extenuado, as mulheres, dispersas, reificadas pelo olhar que as coisificou. Mesmo sem ser tomada ao pé da letra, esta especificação feita por Michèle Le Doeuff pode ajudar a compreender muitas das situações contemporâneas em que a ação humana ocorre, porque ela chama a atenção para o facto de que a “escolha” que se faz numa determinada situação de desigualdade e, muitas vezes, de opressão não é uma escolha de má-fé, como Sartre pretendia e, sobretudo, está longe de ser uma escolha efetiva. por: Fernanda Henriques 219 0219 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS PROGRAMA DE FILOSOFIA 10º ano 2. Os valores – Análise e compreensão da experiência valorativa 2.1. Valores e valoração – a questão dos critérios valorativos 2.2. Valores e cultura – a diversidade e o diálogo de culturas A presente rubrica programática propõe duas vias de abordagem da questão dos valores: (1) os critérios de valoração e (2) as diferenças culturais. Ambas as vias se cruzam e se iluminam mutuamente, sendo a perspetiva das culturas e das suas diferenças aquela que pode ser mais eficaz na abordagem do tema, na medida em que permite tratar, simultaneamente, a dos critérios de valoração. Herta Muller, num livro magnífico (2011), dá a um dos capítulos o seguinte título: Cada língua tem olhos diferentes. Esta metáfora do olhar, que a autora reportava às línguas, é uma mediação interessante para tratar a problemática das culturas e das suas diferenças, tanto mais que uma cultura se traduz também numa língua própria e cada língua tem, de facto, olhos diferentes para ver, representar e simbolizar a realidade. Esta posição não tem como suposto nem como corolário o relativismo cultural, por uma razão filosófica e por uma razão feminista. A razão filosófica tem a ver com a intencionalidade universalizante da Filosofia, ainda que no quadro 3 das reflexões já feitas anteriormente. A razão feminista refere-se ao facto de que é necessário que no diálogo cultural que o mundo globalizado impõe e no consequente respeito igual que as culturas merecem, não esteja bloqueada a porta para a denúncia da discriminação das mulheres – ou de outras discriminações. Como fazer então? As respostas fáceis a esta interrogação são duas: a do julgamento condenatório e excludente que propõe a supremacia de umas culturas sobre outras, e a da aceitação do relativismo cultural. Ambas as perspetivas devem ser analisadas dentro desta temática, com todo o rigor e pondo em evidência as suas caraterísticas positivas e negativas. A resposta difícil – que aqui se propõe como mais filosófica e mais humana – é a de defender um diálogo intercultural em termos de ‘tradução’ de valores. O exercício de ‘tradução’ do ‘olhar’ de uma cultura para o de outra tem a vantagem de originar a interação entre as culturas e os seus respetivos sistemas de valores e de se atingir ‘um terceiro termo’, um novo valor, que é o resultado do processo de tradução 3. A reflexão de Paul Ricoeur sobre a tradução pode ajudar a pensar esta problemática da tradução entre culturas, ao introduzir três aspetos ligados à tarefa da tradução: (1) a Num texto muito interessante e, ao mesmo tempo, muito acessível sobre este assunto: (Ana Isabel Borges, e Marildo José Nercolini, A (im) possibilidade da tradução cultural. In Proceedings of the 2. Congresso Brasileiro de Hispanistas, 2002, São Paulo (SP). Em linha, disponível em http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000012002 000300006&lng=en&nrm=iso, acedido a 04.04.2015) diz-se a determinada altura: A tarefa do tradutor cultural ao tentar fazer com que uma cultura não somente seja aceita, mas entendida por outra, acaba por criar um terceiro espaço, ou melhor, ocupar um espaço entre as duas culturas em questão, um entrelugar possibilitador do diálogo entre elas. 0220 220 CIG CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS caraterização da tradução como ‘uma equivalência sem identidade’ e, nesse sentido, um processo sempre inacabado; (2) a dimensão ética da tradução, ou seja, uma espécie de dever a que a humanidade está obrigada, porque, por um lado, cada povo pertence a um lugar específico geográfica e culturalmente e, por outro, faz parte da mesma humanidade; (3) a pertença da tradução ao paradigma fundamental da racionalidade humana, ao dar conta da sua irremediável e constitutiva finitude. Esta perspetiva ricoeuriana é um excelente ingrediente para legitimar teoricamente e orientar, ao nível da praxis, o diálogo entre culturas, tornando as pessoas intervenientes nesse diálogo conscientes de que a sua cultura representa apenas ‘um modo de olhar’, que há outros ‘modos de olhar’ e que, do cruzamento desses ‘olhares diferentes’ resultará ‘um novo olhar’ mais enriquecido e aberto. Este ponto de vista sobre a tradução entre culturas supõe dois requisitos essenciais: ฀A ideia de que as culturas não são caixas fechadas, mas identidades sempre em construção e transformação. ฀A diferença entre multiculturalidade e multiculturalismo. Este vê a relação entre culturas como justaposições; aquela apela para uma relação de interação transformadora. É legítimo considerar que a problemática dos valores, na sua relação com os critérios de valoração e com as culturas, representa um caso paradigmático em que o recurso às questões de género se mostra particularmente fecundo. Nesse sentido, embora tenha de ser feita ‘com pinças’, a abordagem deste tema a partir da situação das mulheres nas diferentes culturas consubstancia uma via privilegiada de abordar este ponto programático, por uma série muito grande de razões de que se podem destacar as seguintes: ฀Pôr em evidência os diferentes valores de cada cultura, em si mesmos considerados e no âmbito da sua relação, numa tábua de valores. ฀Permitir ‘ver’ o funcionamento das diferentes tábuas de valores na sua dinâmica cultural, mostrando o seu entrosamento com as culturas. ฀Dar uma dimensão de concretude à problemática, difícil, da compreensão dos valores. ฀Proporcionar a verificação da diferença de situação das mulheres em culturas diferentes e a complexidade e ambiguidade da sua situação em cada cultura. ฀Trazer para dentro da sala de aula um tema quente do nosso tempo. Contudo, como já foi dito, esta problemática deve ser tratada ‘com pinças’ para não originar posições estereotipadas e simplistas que em nada facilitam a compreensão do problema e apenas levam à reiteração daquilo que os meios de comunicação propagam. Por exemplo, é necessário destruir duas ideias feitas e falsas: (1) na cultura ocidental as mulheres são livres e há uma igualdade plena entre mulheres e homens; (2) no mundo muçulmano as mulheres não têm qualquer liberdade e são apenas vítimas indefesas dos homens. Por outro lado, é importante dar conteúdo efetivo a algumas expressões por: Fernanda Henriques 221 0221 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS “ [Apresentei uma definição concisa de Feminismo Islâmico recolhido de escritos e do trabalho de protagonistas Muçulmanas como um discurso e uma prática que extraem a sua compreensão e o seu preceito do Corão, buscando direitos e justiça dentro do quadro de igualdade de género para mulheres e homens na totalidade das suas existências. O feminismo Islâmico explica a ideia de igualdade de género como parte e parcela da noção corânica de igualdade de todos os insanos (seres humanos) e pede a implementação da igualdade de género no estado, nas instituições civis e na vida quotidiana. Rejeita a noção de dicotomia público/privado (…) conceptualizando uma Umma holística em que os ideais corânicos sejam operativos em todos os espaços. ” Margot Badran4 (tradução livre) que se ouvem e apenas se repetem: (1) educar as mulheres é apostar num ganho cultural exponencial; (2) as mulheres são sempre os indivíduos mais pobres de entre os pobres. Nesse sentido, há que ultrapassar a visão eurocêntrica e branca do feminismo e trazer para o debate posições de dentro das culturas analisadas. No quadro da questão do Islamismo é, sobretudo, necessário ter em conta que uma perspetiva feminista forte nasce de dentro da própria religião, como analisa, por exemplo, Margot Badran (ver texto em caixa). Num texto com o título significativo de As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação?, a autora, Lila Abu-Lughod, da Universidade de Columbia, denuncia o fundo estereotipado que preside ao olhar sobre a questão das mulheres muçulmanas, ao explicar como ocorreu o convite que lhe foi feito pela autora do programa News Hour (ver texto em caixa). O texto põe claramente de manifesto que aquilo que está subjacente à nossa busca de conhecimento sobre a situação das mulheres “ A apresentadora do programa News Hour contatou-me inicialmente em outubro para ver se eu desejaria dar algum segundo plano para um segmento a respeito de mulheres e do Islão. Eu maliciosamente perguntei se ela havia feito segmentos sobre as mulheres da Guatemala, da Irlanda, da Palestina ou da Bósnia quando o programa cobria guerras nessas regiões; mas finalmente concordei em olhar as questões que ela iria submeter aos participantes da mesa-redonda. As questões eram desesperadoramente generalistas. As mulheres muçulmanas acreditam em ‘x’? As mulheres muçulmanas são ‘y’? O Islão permite ‘z’ para as mulheres? Eu perguntei: se você fosse substituir por “cristãs” ou “judias” todos os lugares onde aparece “muçulmanas”, essas questões fariam sentido? Eu não imaginei que ela me fosse ligar novamente. Mas ela ligou duas vezes, uma vez com uma ideia para um segmento sobre o significado do Ramadão e outra vez sobre mulheres muçulmanas na política. Uma foi em resposta ao bombardeio e outra aos discursos de Laura Bush e Cherie Blair, esposa do primeiro-ministro britânico ” Lila Abu-Lughod, 2012: 452-453. 4 Em linha, disponível em http://www.countercurrents.org/gen-badran100206.htm acedido em 04.04.2015. 0222 222 CIG CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS muçulmanas é a ideia que já fazemos de antemão e, no fundo, que, por um lado, consideramos que a sua situação é única e absolutamente diferente da das outras mulheres de outras religiões e culturas e, por outro, que o nosso objetivo é apenas confirmar as nossas convicções gerais sobre o assunto e não conhecer, realmente, as suas efetivas dimensões. O objetivo da autora é deslocar o problema da discriminação e da opressão dos símbolos ligados ao vestuário das mulheres e procurar, com as pessoas discriminadas, o caminho da libertação para uma vida livre e humana (ver texto em caixa). Importa, portanto, que esta ‘entrada’ no tema dos valores e dos critérios de valoração seja feita com desassombro e, sobretudo, ajude a desconstruir as leituras muitas vezes estereotipadas dos meios de comunicação. Nesse sentido, e uma vez que se trata de uma ‘entrada’ na problemática, que deverá ter um aprofundamento filosófico posterior, propõe-se que o ponto de partida sejam, exatamente, documentos originários dessas fontes. “ É profundamente problemático construir a mulher afegã como alguém que precisa de salvação. Quando se salva alguém, assume-se que a pessoa está sendo salva de alguma coisa. Você também a está salvando para alguma coisa. Que violências estão associadas a essa transformação e quais presunções estão sendo feitas sobre a superioridade daquilo para o qual você a está salvando? Projetos de salvar outras mulheres dependem de, e reforçam, um senso de superioridade por parte dos ocidentais, uma forma de arrogância que merece ser desafiada. Tudo o que se precisa fazer para vislumbrar a qualidade condescendente da retórica de salvar mulheres é imaginar utilizá-la hoje nos Estados Unidos em relação a grupos em desvantagem, como mulheres afroamericanas ou mulheres proletárias. Nós agora entendemos que elas sofrem uma violência estrutural. Tornamo-nos politizados acerca de raça e de classe social, mas não em relação à cultura. Como antropólogas, feministas ou cidadãs engajadas, deveríamos tomar cuidado ao entrar na pele das cristãs missionárias do século XIX que devotaram suas vidas a salvar suas irmãs muçulmanas. ” Lila Abu-Lughod, 2012: 465. Como exemplo possível, veja-se o artigo “São portugueses, são muçulmanos”, do jornal Público, de fevereiro de 2015, onde o tema não é apenas referente às mulheres muçulmanas, mas ao grupo de muçulmanos e muçulmanas residentes em Portugal. A vantagem fundamental do texto é centrar-se em testemunhos diversificados que representam modos de pensar muito diferentes das próprias mulheres e que, por outro lado, dão uma visão relativamente complexa das variáveis em presença na apreciação da situação. Tratando-se de um texto jornalístico e fortemente testemunhal, há possibilidade de ser feita uma abordagem apelativa das questões que se poderão tornar o horizonte exemplificativo das teorizações posteriores (Ver o Recurso D) deste capítulo). por: Fernanda Henriques 223 0223 GUIÃO DE EDUCAÇÃO 6.3.3. Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS Dimensões da ação humana e dos valores E ste ponto programático, de análise obrigatória, representa – tal como os dois seguintes –, simultaneamente, um aprofundamento e uma concretização da análise do binómio ação humana-valores, supondo, por isso, alguns adquiridos de base. Nesse sentido, e numa ideia clássica na reflexão pedagógica, sobre a importância dos organizadores de progresso no processo de aprendizagem, propõe-se que este núcleo temático seja apresentado a partir da exploração inicial da tragédia de Sófocles, Antígona, escrita por volta de 442 AC. A proposta de Ausubel prende-se com a ideia, particularmente útil em filosofia, de aprendizagens significativas, porventura as únicas a que se poderá chamar, verdadeiramente, aprendizagens. Para aquele autor, o mais importante num processo de aprendizagem é aquilo que já se sabe, pelo que, descobri-lo e desenvolvê-lo, deva ser a prioridade de qualquer processo de transmissão de saber. Ou seja, só se aprende algo novo a partir de um saber prévio porque a aprendizagem comporta uma dialética complexa entre o saber constituído, a apropriação pessoal e o processo de revitalização dessa apropriação pessoal. Para a aprendizagem da filosofia, esta perspetiva é particularmente importante, 0224 224 CIG PROGRAMA DE FILOSOFIA 10º ano 3.1. A dimensão ético-política - Análise e compreensão da experiência convivencial 3.1.1. Intenção ética e norma moral 3.1.2. A dimensão pessoal e social da ética – o si mesmo, o outro e as instituições 3.1.3. A necessidade de fundamentação da moral – análise comparativa de duas perspetivas filosóficas 3.1.4. Ética, direito e política – liberdade e justiça social; igualdade e diferenças; justiça e equidade na medida em que, por um lado, ela exige uma determinada interiorização do saber e, por outro, supõe a reflexividade que faz da aprendizagem da filosofia um processo recíproco de assimilação, de incorporação e de crítica. Nesse quadro, a utilização de um texto literário oferecendo uma estrutura narrativa capaz de ‘dar a ver’ situações e experiências que levem alunas e alunos a examinar questões-limite de maneira objetivada, sem que tenham de se sentir pessoalmente em questão e, portanto, possam tomar efetivas decisões críticas. A estrutura de uma intriga pode oferecer todos os elementos necessários para a real clarificação de uma problemática, e, nesse sentido, serem “organizadores de CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS progresso”, isto é, “conteúdos organizados”, que dão algo a pensar por cada qual. Para além da posição de Ausubel, esta proposta de abordagem assenta ainda, do ponto de vista filosófico, em dois pontos de vista concorrentes: (1) a ideia de que a metáfora – em sentido lato – da linguagem literária é um recurso essencial para a exploração conceptual da filosofia, (2) a perspetiva, entre outras, de Martha Nussbaum, de algumas obras literárias serem a melhor forma de explicitação e de apreensão da problemática ético-política. Martha Nussbaum (2010) analisa o conhecimento moral como resultado da articulação entre emoções e intelecto e dá a primazia à perceção das dimensões particulares do agir – situações e indivíduos – sobre regras abstratas. Nesse sentido, considera as emoções como elementos fundamentais dos juízos morais, salientando, de entre elas, a compaixão que permite a abertura ao outro na sua alteridade e particularidade, permitindo, assim, uma ideia de justiça que não se confine às 5 fronteiras descritas pelos nacionalismos. É no contexto deste modo de ver as questões ético-políticas que Martha Nussbaum defende a ideia de o estilo literário – nomeadamente, algumas obras – constituir uma via de acesso privilegiada para o conhecimento moral quer se trate da sua exposição, quer se trate da sua compreensão. 1. PORQUÊ UMA TRAGÉDIA? PORQUÊ ANTÍGONA? 5 Continuando na perspetiva de Nussbaum, é ela que, sendo uma prestigiada helenista, tem um olhar muito claro sobre o valor das tragédias gregas para a reflexão ética. No contexto desta perspetiva, afirma “[que] encontrava nos trágicos gregos um reconhecimento da importância ética da contingência, um sentido agudo do problema dos conflitos de deveres e uma sensibilidade à significação ética das paixões que encontrava muito mais raramente, ou mesmo não encontrava, no pensamento de filósofos reconhecidos quer antigos quer modernos.”(2010:31) Segundo Nussbaum, para os Gregos, os temas éticos eram comuns a filósofos e escritores (trágicos), porque ambos estavam preocupados com a questão de “como devemos viver para sermos humanos” e, nessa linha, chama a atenção para a função de orientação da vida prática que o teatro possuía na Grécia. A escolha de Antígona justifica-se por uma série de razões culturais e, também, feministas. Se tomarmos em linha de conta a posição de George Steiner no seu livro Antígonas (2008), reconheceremos o papel sistemático que o mito de Antígona representa na Para antecipar algumas objeções ao alheamento das jovens e dos jovens a um texto do sec. V AC, esclareça-se que há, entre nós, experiências bem-sucedidas com este texto, aproveitando-se a oportunidade para agradecer à Doutora Maria Adelaide Pacheco, cujo testemunho sobre este assunto foi muito importante para a decisão de recorrer a Antígona nesta proposta. por: Fernanda Henriques 225 0225 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS nossa cultura em geral e, ao mesmo tempo, a importância que também tem no interior da cultura filosófica. Ou seja, há uma permanência no nosso mundo intelectual daquilo a que a tragédia de Sófocles deu corpo e figura que pode facilitar a sua apropriação como ponto de partida para uma teorização filosófica. Por outro lado, e seguindo ainda Steiner, a ‘intriga’ de Antígona pode representar as questões radicais da condição humana. Steiner mostra como o conflito entre Creonte e Antígona pode ser analisado do ponto de vista de múltiplos indicadores: homem/mulher, individuo/ estado, vivos/mortos, velhice/juventude, seres humanos/deuses. Mas Antígona é atravessada, ainda, por outros conflitos, como, por exemplo entre as duas irmãs, Antígona e Ismene, que representam dois modos de pensar diferentes, ou mesmo, entre o mundo privado da família e o da vida pública da cidade. Tudo isto indica que a tragédia de Sófocles pode oferecer uma imensidade de recursos todos adaptados aos tópicos programáticos e aos gostos específicos de cada docente. Antígona tem ainda uma outra vantagem que é a de poder servir também como recurso para os pontos programáticos: “3.2. A dimensão estética – Análise e compreensão da experiência estética” e “3.3. A dimensão religiosa – Análise e compreensão da experiência religiosa”, possibilitando uma exploração em continuidade. No caso da dimensão religiosa da ação, a exploração da peça poderá ser feita pelo próprio núcleo temático. No que diz respeito à experiência estética, para além de uma exploração direta da tragédia como género literário, poder-se-á recorrer, por exemplo, às imensas manifestações pictóricas a que Antígona deu origem na nossa cultura. Especificamente do ponto de vista feminista, 0226 226 CIG são, igualmente, muito variadas as razões que legitimam esta proposta. ฀Antígona representa um mundo de homens e de mulheres que têm relações familiares – irmão, irmã, marido, filho – que interagem com autonomia e valor próprio, que têm pontos de vista diferentes sobre as coisas e as situações, que mantêm ligações afetivas fortes e cuja ação tem consequências no espaço público. Ou seja, está em questão uma humanidade no masculino e no feminino, seres humanos que têm relações familiares importantes nas suas vidas pessoais, quer sejam homens quer sejam mulheres, e, portanto, ao contrário daquilo que é habitual, mostrar, não só que as ações significativas são praticadas por mulheres e por homens, como também que os afetos influenciam a vida dos homens e das mulheres. ฀Por outro lado, a despeito da interpretação de Hegel que quer manter as mulheres ligadas à natureza, enquanto os homens teriam dado o salto para a civilização, há que reconhecer que o conflito central de Antígona opõe entre si um homem e uma mulher e, se se pode falar em ganhos e perdas, certamente que é a mulher quem ganha, evidenciando uma força e uma coragem que desmentem qualquer conceção de feminino ligado a fragilidade e medo. Para além disso, há uma consistência em Antígona que Creonte não revela, na medida em que, quando perde o dogmatismo e a prepotência, ligados ao poder de ser chefe, o seu carácter se desmorona. ฀Finalmente, Antígona pode ser veículo para interrogar uma vez mais a ideia liminar que a subordinação das mulheres foi sempre universal e pacificamente aceite e, pelo menos, levantar algumas questões em relação à nossa herança grega. Por exemplo, que significado pode ter o facto de que uma grande parte das tragédias que chegaram até nós ter nomes de mulheres e, além disso, um imenso protagonismo feminino? Ou, CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS que pode fazer pensar que Eurípedes tenha escrito uma tragédia chamada Melanipa, a filósofa, e que Aristóteles se tenha referido a ela na sua Poética? E também não significará nada haver duas comédias de Aristófanes, Lísistrata e Assembleia de mulheres, que colocam as mulheres no espaço público a orientar a vida da cidade? Evidentemente que há interpretações opostas sobre isto – como, deve dizer-se, sobre quase tudo o que herdámos do passado e se refere à situação das mulheres – mas não deixa de causar perplexidade que uma sociedade totalmente pacífica quanto à não importância das mulheres se ocupasse a dar-lhe tamanho relevo no quadro do seu imaginário cultural. Talvez seja Jose Solana Dueso, o autor já citado antes, quem tem razão quando propõe a leitura de que as comédias de Aristófanes estivessem a fazer ressonância de uma contestação de mulheres, no âmbito do círculo de Péricles. Em qualquer caso, parece claro que o teatro grego necessita de uma operação reflexiva que torne visível que há uma evidente contradição entre o nosso saber adquirido sobre a condição das mulheres gregas e o seu papel nos testemunhos textuais que chegaram até nós e do qual Antígona é um exemplo relevante. 2. ALGUMAS INDICAÇÕES PRÁTICAS DE APOIO Evidentemente que a prévia leitura da tragédia de Sófocles é a condição basilar de todo o trabalho. Contudo, ela poderá ser preparada com recurso a algumas estratégias 6. Por outro lado, pode-se – e talvez se deva – selecionar textos-chave de compreensão do conflito da tragédia e do seu desenlace e fazer leitura expressiva dentro da aula. Finalmente, haverá que fazer um guião de leitura em função dos aspetos que cada docente quiser explorar posteriormente. (Ver os Recursos B) para este capítulo) O terceiro ponto programático termina com a análise optativa entre os valores estéticos e os valores religiosos. Qualquer que seja a escolha feita, poderá sempre fazer-se uma recuperação de documentos e temas anteriores. Sobre a relação entre as mulheres e poder, ver o capítulo “Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada”, deste Guião. 6 Sirva como exemplo, o visionamento de uma montagem feita por jovens do Brasil e que pode ajudar a despertar a curiosidade e contextualizar com alguma informação útil: https://www.youtube.com/watch?v=nf3ovl_e1fg: Antígona. por: Fernanda Henriques 227 0227 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS A dimensão estética – Análise e compreensão da experiência estética P or exemplo, se a escolha recair sobre os valores estéticos pode recuperar-se The Dinner Party, de Judy Chicago e explorar as três sub-rubricas apontadas no Programa, na medida em que a construção da obra, a sua receção, a sua manutenção e exposição oferecem elementos suficientes para uma análise muito interessante e para o aprofundamento daquilo que está em causa nessas sub-rubricas. Refira-se, como possibilidades, algumas interrogações desencadeadoras de um trabalho teórico posterior: 1. Que sentido pode fazer uma obra de arte coletiva? Em que direção aponta em termos do tema ‘criação artística’? O que significa, afinal, criar? 2. Haverá alguma articulação possível entre a obra de Judy Chicago e a de Joana Vasconcelos? 3. Haverá alguma especificidade na arte feita por mulheres? 4. De que falamos quando falamos de arte? A arte deve ter/tem, ou não, uma orientação denunciadora? Que relação entre obra de arte e tempo histórico? 0228 228 CIG PROGRAMA DE FILOSOFIA 10º ano 3.2. A dimensão estética – Análise e compreensão da experiência estética 3.2.1. A experiência e o juízo estéticos 3.2.2. A criação artística e a obra de arte 3.2.3. A Arte – produção e consumo, comunicação e conhecimento 5. Como se pode comparar o destino sofrido por The Dinner Party e a obra de Joana Vasconcelos, do ponto de vista de ‘produção e consumo, comunicação e conhecimento’? 6. Que tipo de articulação, no âmbito de ‘consumo, comunicação e conhecimento’, se pode pensar em termos de mercado, publicidade e obra de arte? Ver, a este propósito, o capítulo “Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes”, deste Guião CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS A dimensão religiosa – Análise e compreensão da experiência religiosa S e se escolher a dimensão religiosa do agir, também o percurso anterior oferece dois recursos fundamentais: (1) a exploração da situação das mulheres no que se refere à relação cultura-religião, (2) a Antígona, de Sófocles, recursos que, aliás, poderão ser analisados em termos de complementaridade. Refira-se, como possibilidades, algumas interrogações desencadeadoras de um trabalho teórico posterior: 1. De que maneira a Antígona ajuda a pensar o tema programático “A Religião e o sentido da existência”? De que maneira a escolha feita por Antígona, na tragédia de Sófocles, é exemplar do papel da experiência religiosa na vida humana? 2. Será possível estabelecer alguma comparação entre a escolha feita por Antígona, na tragédia de Sófocles, e a escolha feita por jovens e mulheres muçulmanas no uso do véu, no mundo ocidental? PROGRAMA DE FILOSOFIA 10º ano 3.3. A dimensão religiosa – Análise e compreensão da experiência religiosa 3.3.1. A Religião e o sentido da existência - a experiência da finitude e a abertura à transcendência 3.3.2. As dimensões pessoal e social das religiões 3.3.3. Religião, razão e fé - tarefas e desafios da tolerância Ver, a este propósito, o subcapítulo “A religião tem futuro para as mulheres?” do capítulo “Temas e Problemas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens”, deste Guião. 3. De que modo as escolhas referidas no ponto anterior ajudam a pensar o tema programático, “As dimensões pessoal e social das religiões”? 4. Como é que a tragédia de Sófocles pode ser analisada em função da triangulação “Religião, razão e fé – tarefas e desafios da tolerância”? por: Fernanda Henriques 229 0229 GUIÃO DE EDUCAÇÃO 6.3.4. Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS Temas/Problemas do mundo contemporâneo A última rubrica programática, como já se disse, permite, por um lado, concretizar as problemáticas analisadas ao longo das aulas e, por outro, possibilita um maior envolvimento pessoal de alunas e alunos. Como se sabe, o Programa aqui é absolutamente aberto, embora faça algumas sugestões, nomeadamente, proponha um tema diretamente ligado às questões de género: “Os direitos das mulheres como direitos humanos”. De um certo ponto de vista, a escolha e análise desse tema seria facilitador de um certo acabamento do percurso proposto até aqui. No entanto, embora pareça menos evidente e, porventura, menos imediato, seria preferível escolher qualquer outro tema e desenvolvê-lo tendo em conta a perspetiva de género, na medida em que o esforço de introduzir tal perspetiva na análise de qualquer problemática será, certamente, a forma mais profunda de consolidar adquiridos e avaliar aprendizagens efetivas. Repetir-se-á aqui alguns dos cuidados que foram referidos anteriormente como sendo condições basilares para uma qualquer abordagem temática, de maneira a que ela não seja enviesada do ponto de vista do sistema sexo/género, aproveitando, ao mesmo tempo, para se fazer algumas referências teóricas ou históricas que poderão ser utilizadas em outros contextos, servindo como recurso e fundamento. 0230 230 CIG PROGRAMA DE FILOSOFIA 10º ano 4. Temas/Problemas do mundo contemporâneo 1. A QUESTÃO DA LINGUAGEM Antes de tudo é necessário ter cuidado com a linguagem utilizada em todas as situações, seja com o uso sistemático de homem como humanidade, por exemplo, ou seja com a utilização de uma construção textual em que o feminino está sempre escondido. Esta é, certamente, uma das tarefas mais difíceis de realizar – para além de outras coisas porque a gramática está construída de maneira a tomar o feminino como derivado –, mas é, ao mesmo tempo, uma das mais fecundas. Dar-se-ão, em seguida, apenas dois exemplos que destroem a ideia feita de que ‘evidentemente que as mulheres estão incluídas!’. São eles, o lema da Revolução Francesa e a sua expressão em Os Direitos do Homem e do Cidadão e o caso histórico português da primeira mulher que votou, Carolina Beatriz Ângelo, por causa de uma questão de linguagem. a) Os direitos do Homem e do Cidadão Elisabeth Sledziewski considera a Revolução Francesa “como uma mutação decisiva na história das mulheres” (1994) porque valoriza o facto – decisivo – do debate sobre a natureza dos sexos ter adquirido aí uma dimensão pública. Na verdade, que o tema da igualdade e da diferença CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS entre os sexos tenha adquirido contornos públicos e tenha vindo à ribalta da discussão representa um ponto sem retorno na representação do feminino e do estatuto das mulheres na dinâmica societal da nossa cultura. Se bem que as mulheres tenham acabado por ser remetidas para o espaço privado do lar e da família, e não tenham conseguido ganhar a batalha de uma educação digna, foi, contudo, necessário construir uma teoria que legitimasse esse estado de coisas, não deixando, essa linha teórica vencedora, de ter de se debater com posições antagónicas. Ganhou Rousseau contra outras vozes, mas elas existiram e mostraram que pelo menos havia argumentos tão válidos para sustentar a igualdade entre os sexos como para sustentar a sua diferença. Do ponto de vista das ideias, a mudança foi, realmente, qualitativa. Particularmente, nos anos entre 1789 e 1793 – anos da morte de Olympe de Gouges e da perseguição a Condorcet, que morreria no ano seguinte – a batalha foi renhida, tendo as mulheres participado na rua, enquanto povo, e no debate, enquanto mulheres, na configuração de um modo novo de viver em comum 7. Ou seja, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã é uma espécie de espelho da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, não lhe acrescentando nada de substantivo, a não ser, a especificação de ‘homem e mulher’ e, portanto, ao ser liminarmente rejeitada, deixa claro que, efetivamente, as mulheres não estavam incluídas na designação ‘homem’ nem na de ‘cidadão’. Estava-se, afinal, ao nível de uma perspetiva abstrata de universalidade, concebida no horizonte aristotélico do homem proprietário, aquilo que Seyla Benhabib designa como um universal substituivista, como se disse anteriormente.8 7 8 Um dos momentos mais ilustrativos, simultaneamente, da força das mulheres da Revolução e das armadilhas da linguagem e do suposto universal neutro é a atividade de Olympe de Gouges, nascida Marie Gouze e tornando-se Marie Aubry depois de casada. Olympe de Gouges, partindo do princípio de que Os Direitos do Homem e do Cidadão (ou desconfiando disso) diziam respeito à humanidade, propôs, em 1791, A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã que representa um momento experimental ou a prova de fogo de que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não era efetivamente universal porque excluía alguns homens e todas as mulheres. O que tem de significativo a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã é o facto de ela demonstrar o reducionismo do documento-bandeira da Revolução, porque, os seus XVII artigos acompanham a redação do texto de 27 de Agosto de 1789, explicitando sempre homem e mulher na redação de cada artigo ou fazendo alguma clarificação que lhe pareceu necessária para defender a igualdade entre os sexos. Em 2003 é posta em linha uma perspetiva sobre a relação entre as mulheres e a república francesa que, embora em termos de divulgação, oferece uma visão muito pormenorizada dos avanços e recuos da posição das mulheres na sociedade francesa desde a Revolução, valendo a pena ser consultada: http://www.thucydide.com/realisations/comprendre/femmes/intro.htm Olympe de Gouges foi condenada à morte, tendo sido a segunda mulher a ser decapitada, sendo a primeira a Rainha Maria Antonieta. Não se conhecem ecos da receção feita à Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã; contudo, a razão política da sua condenação ao cadafalso terá sido a sua defesa do federalismo e a sua oposição a Robespierre. por: Fernanda Henriques 231 0231 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS b) Carolina Beatriz Ângelo e as armadilhas da linguagem Figura 2. Carolina Beatriz Ângela (1877-1911)” Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Carolina_Beatriz_%C3%82ngelo Carolina Beatriz Ângelo terá sido a primeira mulher a votar em Portugal. Regina Tavares da Silva, no seu texto sobre Beatriz Ângelo (2005), chama-lhe ‘sufragista prática’, recuperando a designação que Afonso Costa lhe deu, por esse motivo e também para contextualizar o seu gesto no quadro de um ambiente nacional polémico, em que muitas mulheres ativistas eram defensoras de um voto restrito para as mulheres. Em março de 1911, a jovem República Portuguesa publicava a nova lei eleitoral que designava como cidadãos eleitores, “os cidadãos maiores 0232 232 CIG de 21 anos, sabendo ler e escrever e sendo chefes de família”. No contexto da publicação desta Lei, Carolina Beatriz Ângelo requereu a sua inclusão nos cadernos eleitorais, uma vez que, sendo viúva, era chefe de família. A pretensão de Carolina Beatriz Ângelo foi recusada e ela recorreu ao tribunal da Boa Hora, tendo obtido parecer favorável. Assim, votou para a Constituinte, em 28 de maio de 1911, tendo o seu ato tido um grande impacto na imprensa, quer saudando-o quer questionando-o. Como nos mostra Regina T. Silva, A Capital, de 30 de maio, transcreve as palavras do presidente da secção de voto, onde Carolina Beatriz Ângelo exerceu o seu direito de votante, que manifesta o seu contentamento com tal ato, embora acrescente: “Mas que perigos não adviriam se esse direito se generalizasse com uma larga latitude! Se há tantos homens que o não compreendem, que o não sabem exercer”. (2005: 36). A 13 de julho de 1913, é aprovada a nova lei eleitoral que cuida de especificar a sua verdadeira perspetiva, dizendo que são cidadão eleitores os portugueses do “sexo masculino”, maiores de 21 anos, sabendo ler e escrever... Que consequências teve o voto de Beatriz Ângelo em 1911? Em termos do sufrágio das mulheres, foi apenas um gesto simbólico e isolado. Será necessário esperar pela Revolução de Abril para que todas as mulheres portuguesas tenham acesso ao voto. Em termos de denunciar as armadilhas da linguagem, ele é absolutamente paradigmático, porque demonstra como o universal masculino não contém, realmente, as mulheres necessariamente. Na verdade, este acontecimento mostra que os republicanos, ao usarem a expressão “chefe de família”, estavam a pensar num uso limitativo da linguagem e não que as mulheres estivessem incluídas na designação “chefe de família”, como demonstram não só que tenham recusado o requerimento de Beatriz Ângelo para ser incluída nas listas eleitorais, obrigando-a a um recurso aos tribunais, como também a posterior clarificação da lei que restringe o voto apenas ao sexo masculino. CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS 2. A QUESTÃO DOS ESTEREÓTIPOS É muito importante ter-se em conta, no tratamento de qualquer tema, os exemplos ilustrativos que se escolhem, prestando atenção, sobretudo, a que eles não reforcem os estereótipos e os preconceitos. Importa mostrar sempre uma realidade complexa, diversificada, que cubra, o mais possível, a grande diversidade de situações que determinam o quotidiano de homens e de mulheres, de pessoas jovens e de pessoas menos jovens, de famílias tradicionais ou de outros tipos de famílias… Esta preocupação deve igualmente manifestar-se na escolha dos textos e dos seus temas. Por exemplo, importa escolher textos de autoria masculina que falem de questões de família ou de educação; e textos de autoria feminina que tratem de problemas de economia e de política. Sobretudo é importante que haja textos escritos por homens e por mulheres em referência a todos os temas. É óbvio que fazer uma pesquisa textual não canónica acarreta uma quantidade grande de trabalho. Mas, hoje, uma investigação criteriosa pela internet possibilita um acervo de dados que, ao menos ao nível da ilustração e da sensibilização a algumas situações, pode fornecer informação considerável e interessante. Apresentam-se, a seguir, algumas ilustrações motivadoras para uma pesquisa mais sistemática e adequada aos temas escolhidos para análise, dentro do quadro da rutura com os estereótipos. Nota: Nesta escolha pretendeu-se indicar nomes de mulheres cientistas em domínios variados e com impacto internacional Mariana Mazzucato Economista italiana Fonte: https://en.wikipedia. org/wiki/Mariana_ Mazzucato Maria José Pereira Cientista portuguesa Fonte: http://visao.sapo.pt/ actualidade/socied ade/maria-pereiraanossa-estrela-datime= f832285 Mária Telkes Biofísica húngara Fonte: https://pt.wikipedi a.org/wiki/M%C3 %A1ria_Telkes Barbara McClintock Prémio Nobel Fisiologia/Medicina (1983) Fonte: https://www.nobelprize. org/nobel_prizes/medic ine/laureates/1983/mcc lintock-facts.html Rachel Carson Ecologista americana Fonte: https://pt.wikipedia. org/wiki/Rachel_Carson por: Fernanda Henriques 233 0233 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS PROPOSTAS Ada Lovelace Britânica (sec XIX) Pioneira em programação informática Fonte: https://www.biogra phy.com/people/ad a-lovelace-20825323 Hipátia de Alexandria Matemática Antiguidade Fonte: https://pt.wikipedi a.org/wiki/Hip%C3%A1tia Sobre as Mulheres na Ciência e a sua relação com o Conhecimento, ver o capítulo “Biologia e Género: outros olhares”, deste Guião. 3. A QUESTÃO DA SITUAÇÃO DAS MULHERES a) Conhecimento das situações sociais reais Procurar situar a posição das mulheres na temática tratada é um requisito fundamental. Isto significa a recusa de um tratamento indiferenciado dos temas, como se a humanidade não fosse constituída por mulheres e homens ou como se isso fosse irrelevante. Por exemplo, se se disser que há 175 milhões de adolescentes no mundo que não conseguem ler uma única frase damos conta de uma situação terrífica, mas indiferenciada. Se a isso se acrescentar que esse número é constituído, na sua maioria, por raparigas e mulheres jovens, a informação fica mais rica e pode originar outro tipo de interrogações. 0234 234 CIG O relatório sobre Género e Desenvolvimento, de 2012, do Banco Mundial, mostra muito bem como uma análise desagregada de dados permite ter uma visão mais abrangente das situações e compreender melhor o cruzamento entre as mulheres e o desenvolvimento. Sirvam como exemplo os seguintes: ฀Indústrias que confiam mais no trabalho das mulheres expandem-se mais nos países onde as mulheres têm direitos iguais. ฀Países tais como Bangladesh, Brasil, Costa do Marfim, México, África do Sul e Reino Unido mostram que aumentar a parcela da renda familiar controlada por mulheres, seja por meio de seus próprios ganhos ou por transferências de renda, muda os gastos de uma forma que beneficia as crianças. ฀Na China, o aumento da renda de mulheres adultas de 10% da renda média familiar elevou a fração de sobrevida de meninas em até 1% e elevou o número de anos de escolarização tanto de meninos como de meninas. Na Índia, uma renda mais elevada para a mulher representa o aumento de anos de escolarização de seus filhos e filhas. ฀No Paquistão, crianças cujas mães têm até um único ano de educação estudam diariamente em casa uma hora extra e recebem notas de testes mais altas. ฀O direito de voto para as mulheres nos Estados Unidos levou quem formula as políticas a voltar a sua atenção para a saúde infantil e materna e ajudou a reduzir a mortalidade infantil de 8 a 15%. ฀Em muitos países ricos, a maior participação das mulheres em atividades econômicas tem sido associada ao aumento da sua representação na tomada de decisão política para reformular as perspetivas sociais sobre o equilíbrio entre o trabalho e a vida em família, de modo geral, e aprovar uma legislação de trabalho mais favorável à família. CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS PROPOSTAS No fundo, é também no mesmo contexto [mulheres e desenvolvimento] que na Declaração do Milénio, assinada em 2000 por 189 Estados Membros das Nações Unidas, se assumiu que, para alcançar os objetivos de desenvolvimento e de erradicação da pobreza, era necessário reconhecer os direitos humanos de todas as pessoas, especialmente reconhecer a necessidade de promover o direito das mulheres à igualdade. A mesma Declaração compromete-se a “combater todas as formas de discriminação contra a mulher”, com referência ao documento, de 1979: Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres. Estes e muitos outros exemplos fundamentam a definição de economia inteligente, como sendo aquela que aposta na igualdade de género porque ela não só aumenta a produtividade e melhora os resultados do desenvolvimento, como tem efeitos nas gerações seguintes e na qualidade das políticas públicas. b) Prática de uma hermenêutica da suspeita na leitura dos textos Num âmbito de trabalho totalmente diferente, “a interpretação dos textos”, convém procurar, igualmente, onde se encontram as mulheres e que tipo de conceção sobre elas subentende qualquer texto. Essa atitude desconstrói a leitura corrente e dá a ver que as mulheres estão sempre supostas e essa suposição assenta numa determinada representação do feminino. Nesse sentido, velhos textos podem ter novas leituras e motivar novas questões. É nesse âmbito que se enquadra a coleção dirigida por Nancy Tuana, Re-reading the Canon, cujo objetivo é uma releitura do cânone filosófico à procura de um subtexto de género que tal cânone, afinal, sempre incorporou, muitas vezes sem o explicitar. Esse trabalho de releitura dos textos clássicos da Filosofia não só mostra a profunda responsabilidade da Filosofia nas representações sociais do feminino e das mulheres, como também põe em evidência que as posições filosóficas não são neutras e que o seu pretenso universal não teve em linha de conta, pelo menos, metade da humanidade. Sobre a análise crítica do Cânone, ver o capítulo “Cânone Literário e Igualdade entre Homens e Mulheres”, deste Guião. por: Fernanda Henriques 235 0235 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTASPROPOSTAS 6.4. Um percurso não discriminador dos conteúdos programáticos para a unidade final do 11º ano Q uando se chega a este ponto do Programa já se fez muito caminho na relação das turmas com a Filosofia. Já se ganharam e já se perderam muitas pessoas. Para algumas e alguns jovens, as aulas de Filosofia serão uma referência básica das suas vidas e para outro grupo, uma matéria de que nunca mais quererão ouvir falar. Em qualquer caso, o modo como se terminam os conteúdos programáticos pode aprofundar a boa relação havida com a Filosofia ou, quem sabe, resgatar algumas pessoas que até aqui não conseguiram ser motivadas. Neste quadro, provavelmente, não são indiferentes nem a maneira como se começa a lecionar a Filosofia, nem aquela com se encerra as aulas da disciplina. Daí que se tenha optado por intervir com uma proposta de abordagem neste último tema. Qualquer das 3 sub-rubricas do último ponto do Programa poderá originar uma abordagem fácil e interessante, do ponto de vista do género. De facto, todos os tópicos enunciados se prendem com questões prementes dentro dos Estudos de Género, desde a “Necessidade contemporânea de uma racionalidade prática pluridisciplinar”, até ao “Espaço público e espaço privado” ou “Convicção, tolerância e diálogo – a construção da cidadania”, passando pela “tarefa de se ser no mundo” e pela 0236 236 CIG PROGRAMA DE FILOSOFIA 11º ano V – Unidade final – Desafios e Horizontes da Filosofia 1. A FILOSOFIA E OS OUTROS SABERES 1.1. Realidade e verdade - a plurivocidade da verdade 1.2. Necessidade contemporânea de uma racionalidade prática pluridisciplinar 2. A FILOSOFIA NA CIDADE 2.1. Espaço público e espaço privado 2.2. Convicção, tolerância e diálogo – a construção da cidadania 3. A FILOSOFIA E O SENTIDO 3.1. Finitude e temporalidade – a tarefa de se ser no mundo 3.2. Pensamento e memória – responsabilidade pelo futuro “responsabilidade pelo futuro”. Em função desta convergência de interesses entre os conteúdos programáticos e os Estudos de Género, propor-se-á a seguir um conjunto de reflexões temáticas que as docentes e os docentes poderão utilizar de acordo com a escolha da sub-rubrica que fizerem. CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l 6.4.1. PROPOSTAS A importante questão de se construir uma memória crítica. Seguindo as sugestões de Paul Ricoeur N . o início da terceira parte da sua obra La mémoire, l’histoire, l’oubli, dedicada, exatamente, à questão da Condição Histórica, Paul Ricoeur faz a seguinte interrogação: “O que é compreender sob o modo histórico?” (2002: 373). Trata-se de uma interrogação essencial, porque ela remete para o facto de que, fora da possibilidade de realizar uma reflexão total, o ser humano se vê condenado a um modo de conhecimento de si e do mundo, no quadro da sua “condição histórica”, ou seja, “uma situação na qual cada um está já implicado” (2002:374). É esta perspetiva que nos conduz diretamente ao papel incontornável jogado pela memória porque, diz o mesmo autor: “[…] a memória coletiva […] constitui o solo de enraizamento da historiografia”(2002:83). No quadro das teses defendidas por Paul Ricoeur nesta obra, importa ressaltar três temas: (1) Memória coletiva e esquecimento, (2) Memória, história e identidade e (3) A complexa relação entre presente passado e futuro. 1. MEMÓRIA COLETIVA E ESQUECIMENTO 9 Paul Ricoeur parte da análise da memória individual e, por uma série de mediações em que dialoga com autores e obras de referência, utiliza o mesmo tipo de análise para a memória coletiva. Do seu percurso, é importante destacar a relação que faz entre o que chama memória exercida e o esquecimento, falando de abuso de memória e abuso do esquecimento, como dois extremos indesejáveis, para realçar a dimensão ético-política do dever de uma justa memória. Nesse sentido, Ricoeur dirá que tanto o trop como trop peu de memória revelam e relevam de um deficit de crítica 10. Paul Ricoeur explora a posição freudiana sobre o recalcamento de recordações traumáticas que são substituídas por comportamentos de repetição. Este comportamento concretiza-se na recusa de olhar para a ferida e para 9 É importante ter em linha de conta que, sendo o fio do livro La mémoire, l’histoire, l’oubli a natureza da nossa representação do passado, o quoi da memória, a sua dimensão objetal, ligada à intencionalidade da consciência, é absolutamente fulcral. 10 É a Freud – nomeadamente as suas obras de 1914 e 1915, respetivamente, Rememoração, Repetição, Perlaboração e Luto e Melancolia – que Paul Ricoeur vai pedir de empréstimo os conceitos-chave para a abordagem prática da memória, isto é, da memória exercida. por: Fernanda Henriques 237 0237 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS o trauma, implicando a passagem à ação repetitiva para que não se recorde aquilo que aconteceu e nos fere. No mesmo contexto, apropria-se, igualmente, da ideia freudiana da impossibilidade de se esquecer um objeto perdido, situação que determina uma fixação que impede que cada sujeito se liberte do objeto que perdeu e faça o seu luto - ou seja, separe o seu eu do objeto perdido -, para poder partir para novos investimentos afetivos. Em ambos os casos, estamos perante uma estrutura de comportamento rígido, não criativo, nem realizador. lembrança e a narrativa das histórias do passado do ponto de vista do outro também implicado. Esta ligação ao perdão, prende-se com a posição global de Ricoeur sobre a temática. Assim, perdoar não é esquecer. Perdoar é, antes, destruir uma divida que bloqueia e impede um desenvolvimento criativo, porque “[…] o perdão dirige-se não aos acontecimentos cujas marcas devem ser protegidas, mas à dívida cuja carga paralisa a memória e, por extensão, a capacidade de se projetar de forma criadora no porvir” (2005: 39). Com base na posição de Freud, Paul Ricoeur vai analisar certos fenómenos sociais – nomeadamente, celebrações e comemorações, que exaltam uns acontecimentos esquecendo outros – para, por analogia, falar de memória recalcada ou memória manipulada. Em qualquer dos casos, fica por sarar uma ferida social ou fica por saldar uma dívida de memória. 2. MEMÓRIA, HISTÓRIA E IDENTIDADE Será a partir do tema do perdão que Paul Ricoeur procurará acercar-se de um uso crítico da memória que representa, simultaneamente, a superação da falta de memória ou esquecimento excessivo e do excesso de memória, permitindo o trabalho da 0238 238 CIG Tendo em conta o que acabou de ser referido, importa agora ver como Paul Ricoeur articula Memória e História e, no quadro desta relação, como pensa a identidade. Como já se disse, para ele, a Memória é a matriz da História, mantendo ambas uma relação de potenciação: a Memória serve a História e esta, por sua vez, consolida e perpetua uma memória determinada, ou melhor, legitima uma certa memória, escamoteando (recalcando) outras memórias possíveis, dado que o passado não é um dado morto, mas um potencial de novas explorações. Recorde-se, a este propósito, a citação feita na introdução desta proposta, onde Ricoeur afirmava que “[…] a memória imposta é assegurada por uma história autorizada, uma história oficial, uma história que é apreendida e celebrada publicamente. Com efeito, uma memória exercida é uma memória ensinada no plano institucional.” É aqui que reside a questão fundamental para se compreender a necessidade de se construir uma memória crítica que não cometa a injustiça de ‘apagar’ coisas e ideias importantes do passado, nem perpetue um ponto de vista único sobre ele e, assim, acabe por destituir a possibilidade de outras perspetivas (memórias), tornando o passado encerrado, fazendo do passado uma tradição morta. Sobre Memória e História Ensinada, ver o capítulo “Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada”, deste Guião. CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS Contudo, há uma outra consequência não menos Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é negativa que a precedente que responder à questão : quem fez tal ou tal ação ? quem é o seu agente se relaciona com este trop de ou o seu autor ? […] memória de um tipo e trop peu A resposta só pode ser narrativa. Responder à questão ‘quem’?, […], é contar a história de uma vida. de memória de outro: trata-se da problemática da identidade Paul Ricoeur, 1985: 355. que, como se sabe, em Paul Ricoeur está indelevelmente ligada ao tempo, por ser concetualizada como identidade de se construir uma memória é de determinação, mas sim narrativa. crítica ou uma justa memória. de relação possibilitante e de condicionamento mútuo. Não há A ligação da identidade ao O grande inspirador de Paul uma simetria direta entre passado tempo está nela incrustada Ricoeur na análise deste tema e futuro. Isto supõe, dirá Paul desde o seu aparecimento é Reinhart Koselleck, através Ricoeur, que é necessário superar no pensamento ricoeuriano, das suas categorias de espaço a ideia de que o passado é algo tendo surgido – na sua dupla de experiência e horizonte de fixo, imutável, completamente dimensão de identidade pessoal expectativa, para referenciar dado. Pelo contrário, diz: e de identidade coletiva – nas a relação humana com o “é preciso reabrir o passado, conclusões de Temps et récit tempo histórico. É através fazer viver nele potencialidades (ver texto em caixa). destas meta-categorias que não realizadas, bloqueadas, isto Ricoeur interpretará a condição é, massacradas” (1984: 313). Abordar a questão da histórica da humanidade identidade através da porque são elas que exprimem Por outras palavras, articulação entre narrativa e o modo como ele tematiza a somos seres afetados pelo temporalidade corresponde relação entre passado e futuro à explicitação da dimensão na constituição do nosso ser passado e essa afeção de fragilidade constitutiva do e do fazer da História. Há uma marcará o nosso futuro. tema da identidade. Em La articulação entre o futuro e o Todavia, tal afeção não é mémoire, l’histoire, l’oubli, passado, ou seja, cada futuro uma marca indelével ou retoma-se este ponto de vista tem um passado próprio. da fragilidade da identidade, um destino. É necessário Contudo essa articulação não agora no quadro da memória e da história, como o autor o reitera (Ver texto em caixa). É preciso dizer que a primeira causa da fragilidade da identidade é a “ ” “ 3. A COMPLEXA RELAÇÃO ENTRE PRESENTE, PASSADO E FUTURO Neste ponto da análise, urge perguntar pela possibilidade sua difícil relação com o tempo. Trata-se de uma dificuldade primária que justifica precisamente o recurso à memória enquanto componente temporal da identidade em conjunção com a avaliação do presente e a projeção do futuro. [Por isso] o centro do problema é a mobilização da memória ao serviço da busca, do pedido e da reivindicação da identidade. ” Paul Ricoeur, 2000: 98. por: Fernanda Henriques 239 0239 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS trabalhar o passado como espaço de experiência de maneira a transformá-lo numa tradição viva exercendo o presente como iniciativa, reabrindo-o e desocultando nele outras possibilidades e direções. Neste quadro, o futuro é um horizonte de expetativa, um pas encore, mas há um trânsito entre futuro e passado. Nessa medida, os horizontes de expectativa não devem ser puramente utópicos sem qualquer enraizamento ou ressonância no passado. Assim, compete ao presente como iniciativa abrir a capacidade de investigarmos o passado no sentido de libertarmos as suas potencialidades não realizadas e mesmo bloqueadas e, a partir delas, configurarmos novos horizontes de expectativa. a) A memória critica e a possibilidade de uma abordagem filosófica não discriminadora Para além de servir claramente para a abordagem do ponto “Pensamento e memória – responsabilidade pelo futuro”, esta perspetiva ricoeuriana pode ajudar também a fazer uma abordagem deste e de outros temas programáticos que não seja enviesada do ponto de vista do sistema sexo-género. Dois exemplos: ฀A questão do excesso de memória ou do esquecimento que apaga muitas possibilidades do passado, permite acentuar como a ‘memória ensinada’ em filosofia tem sido penalizadora das mulheres porque silencia ou minimiza o contributo das mulheres para o desenvolvimento da cultura e da história e desfaz a própria possibilidade de algumas interrogações que interessam 0240 240 CIG vivamente aos Estudos de Género poderem constituir-se como temas pertinentes e relevantes. Como já foi referido na introdução deste capítulo, tal é o caso, por exemplo, das questões antropológicas que, simultaneamente, ignoram a existência de dois sexos e discriminam o sexo feminino. Esta situação, transformada em memória ensinada, é uma dimensão fundamental do olhar assimétrico que todas as sociedades têm sobre as mulheres e sobre tudo o que está tradicionalmente ligado ao feminino, Nesse sentido, a questão antropológica é um dos temas filosóficos que mais necessita de ser desconstruído, pondo fim a um único ponto de vista sobre o assunto que, assim, aparece como natural. Aqui é um dever de justiça criar uma memória crítica, desocultando novas memórias possíveis. ฀E o que dizer da ‘tarefa de se ser no mundo’ das mulheres neste contexto? Poderão as narrativas da história da filosofia e as da cultura em geral ajudar as mulheres a ter a possibilidade de se construírem como identidade – tanto individual, como coletivamente – em termos de equilíbrio humano e de positividade ou, pelo contrário, essas narrativas apenas lhes permitem conceber-se como o segundo sexo, para usar o termo cunhado por Simone Beauvoir? Não parece possível responder afirmativamente a esta interrogação, na medida em que parece pacífico aceitar que o olhar transmitido sobre o feminino, desde a de macho incompleto, de Aristóteles, até à de inveja do pénis, de Freud, não só não considera haver uma simetria entre o masculino e o feminino, tomando sempre este como derivado daquele, como conjuga o feminino em termos de natureza, de sensibilidade e de emoção, apontando estas dimensões como secundárias em relação às de cultura, de intelectual e de racional que aparecem sempre ligadas ao foro do masculino. CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l 6.4.2. Racionalidade e verdade O s temas programáticos da “plurivocidade da verdade” e da “Necessidade contemporânea de uma racionalidade prática pluridisciplinar” podem ter múltiplas leituras. Uma delas pode advir do debate hermenêutico sobre a questão da verdade e outra do debate contemporâneo acerca da fragmentação da razão. Ambas poderão proporcionar aberturas para as questões de género. 1. A QUESTÃO DA VERDADE NA PERSPETIVA HERMENÊUTICA As diferentes perspetivas hermenêuticas deslocam a questão da verdade da sua clássica definição de ‘adequação’ para novos quadros de compreensão, abrindo para a perspetiva da plurivocidade e da historicidade. A verdade é uma aventura humana, talvez a aventura humana, tomando-se o conceito de aventura na aceção múltipla de trabalho e risco, porque supõe a implicação de cada sujeito e porque se abre sempre a um fundo de não saber (ver texto em caixa). Se nos centrarmos num Hermeneuta, Paul Ricoeur, ele recorrerá a uma dupla metáfora para caracterizar a sua conceção de verdade: a de “elemento” (milieu) e a da “luz”. A metáfora da “luz” coloca clara e decididamente a questão da verdade no interior do jogo racional luz-sombra ou transparência-opacidade, ficando claro que a questão da verdade se dá num jogo entre saber e não-saber. A metáfora do “elemento” possibilita que se relacione a verdade quer com o espaço, quer com o tempo. O processo argumentativo de Ricoeur, a este nível, vai fazer-se pela exploração da expressão, “espero estar dentro da (dans) verdade” (1955: 58), sendo o dans que dá figura à metáfora da verdade como elemento. Assim pensada, a verdade não é uma realidade a conquistar, quer essa realidade assuma a forma da dádiva, quer a de um horizonte em relação ao qual se caminhe, porque, em qualquer das situações, ela figuraria sempre como exterior ao processo de ser incorporada racionalmente, e “ A verdade hermenêutica toma sempre a forma de uma resposta, resposta à questão que trabalha o intérprete e que o conduz a interpretar um texto. (...) Há um investimento constitutivo do intérprete no que quer ser compreendido. Não existe verdade em si se se tomar por isso uma verdade independente das questões e das expectativas do ser humano. A luz transportada pela verdade desenha-se, necessariamente, sobre um fundo de obscuridade, a da finitude à procura de orientação. ” Jean Grondin, 1993: 200. por: Fernanda Henriques 241 0241 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS isso, essa exterioridade da verdade, é uma das determinações que Paul Ricoeur quer afastar totalmente, na medida em que, pela mediação dessa recusa, ele pode eliminar, ao mesmo tempo, a conceção de verdade como unidade realizada. Por outro lado, para Paul Ricoeur, a questão da verdade, como aventura humana, oscilará entre o pessoal e o universal (ver texto em caixa). “A pesquisa da verdade (...) é ela própria desenvolvida entre dois pólos: por um lado, uma situação pessoal, por outro, uma intencionalidade sobre o ser. Por um lado, eu tenho algo muito próprio a descobrir, algo que mais ninguém a não ser eu tem a tarefa de descobrir; eu tenho uma posição no ser que representa um convite a pôr uma questão que ninguém pode colocar em meu lugar; (...). E, contudo, por outro lado, procurar a verdade quer dizer que aspiro a dizer uma palavra válida para todos, que se destaca do fundo da minha situação, como um universal; (...). ” Paul Ricoeur, 1985: 54-55. Nesse quadro, a verdade equipara-se a uma resposta também encontrada pessoalmente e, por isso, de imediato, coincidiria com a absoluta diversidade e pluralidade. Mas não pode ser assim, porque a organicidade racional o não permite. A verdade, como a razão (ou como razão), é desejo de unidade e daí a definição de um campo semântico de ambiguidade recolhido na metáfora do elemento. “Espero estar na ou dentro da verdade”, isto é, espero que a implicação do meu ser, no sistema pergunta-resposta que constitui o processo de pesquisa da verdade, tenha como correspondência a participação na dinâmica da própria realidade e, portanto, a resposta pessoal encontrada possa entrar na comunicação intersubjetiva. 0242 242 CIG A pesquisa da verdade é, então, como já se disse, trabalho e risco ou, dito de outra forma, uma tarefa comprometida com a humanidade e com a realidade. E, além disso, a pesquisa da verdade fica vinculada ao sistema dinâmico teoria-prática que, por um lado, coloca o conceito de verdade na encruzilhada de duas direções – o campo da objetividade do saber e o campo ético da ação – e, por outro, o condena à figura processual de ‘tensão’ entre a unidade e a multiplicidade. Esta posição corresponde à preocupação de subtrair os campos do saber e do agir à influência das esferas do poder e da violência que, contudo, as ameaçam de dentro. Por isso, Paul Ricoeur defenderá a ideia de círculos de verdade que, em momento nenhum, poderão ser tomados numa estrutura hierárquica. A afirmação de uma verdade como unidade realizada só pode emanar de uma instância de poder e nunca da instância de saber e da reflexão. Neste plano, apenas tem sentido a comunicação intersubjetiva ao nível dos processos argumentativos. A única força consentânea com a dignidade da verdade é a força das razões que, na figura dos argumentos, se exibem como momentos de uma pesquisa autêntica. 2. A LIMITAÇÃO DO PODER DA RACIONALIDADE ILUMINISTA E O VALOR DAS DIFERENÇAS O século XX, sobretudo na sua segunda metade, viu surgir várias críticas à racionalidade iluminista pelo seu caráter totalitário, pondo-a em questão como potência fundadora do saber e do agir. Mal ou bem, com mais ou menos controvérsia, assume-se que o conjunto dessas críticas pode ser coberto com o CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS A perspetiva sobre a verdade como ‘tensão’ significa dizer que o ‘conflito’ é constitutivo da interpretação e que qualquer atividade humana tem como correlato uma certa dimensão de opacidade em si mesma insuperável. Daí que a metáfora do elemento, que a expressão “espero estar na ou dentro da verdade” explicita, corresponda à inscrição da verdade na finitude humana, levando-a a extrair o seu valor da experiência que cada um faz de participar nela. chapéu designado como pós-modernidade e tem, certamente, como um clássico de referência Jean-François Lyotard (1979). Para a perspetiva pós-moderna, a racionalidade perdeu o poder de crítica e de emancipação que as Luzes lhe haviam reconhecido, questionando, no mesmo gesto, os conceitos clássicos de verdade e de transformação ou progresso da humanidade, cuja compreensão fica condenada a mover-se numa errância contínua em que cada suposto novo é, no fundo, apenas a repetição da mesmidade do sistema. A que fica, então, reduzido o pensar neste quadro? Se nos ativermos ao ‘pós’ de pós-modernidade, ficaremos perante uma designação cujo locus é referência a um outro de si, uma vez que se classifica a si próprio de pós. É, portanto, um lugar outro relativamente a uma determinação específica e tomada como referencial de sentido seguro que é a modernidade, assumindo-se, por isso, de certa forma, como um não-lugar ou uma utopia. A pós-modernidade é, assim, um lugar-tempo descentrado, deslocado de um outro – a modernidade – cujo tonus denuncia e que não quer ocupar nem ser. Tal é, também, o sentido tradicional na nossa cultura das obras-utopia, que foram emergindo nos seus diferentes momentos históricos. Cada uma à sua maneira, todas essas obras assumiram a dupla característica de denúncia e de recusa de uma situação cultural específica e de busca de um outro modo de ser. Eram, por esse motivo, alimentadas por uma racionalidade prospetiva, aberta à possibilidade da reconstrução e da transformação da realidade. Uma racionalidade que, para além de tudo, se determinava como promessa, na medida em que as utopias eram esses mundos possíveis de vir a ser, mas sempre num topos outro, diferente, diferido. Promessa, contudo, ou seja, horizonte possível de se tornar existente e que, por essa razão, podia configurar dinâmicas de transformação. A este nível, a pós-modernidade, como símbolo da deslocação e da não-centralidade, pode funcionar fecundamente, dando visibilidade a todos os lugares do espaço e pela força da descentração, retirar ao poder, sob todas as formas, o lugar central de discurso dominante e verdadeiro. O estilhaçar do centro, transportado pelo pós da pós-modernidade, pode ser o anúncio da possibilidade do diálogo entre as diferenças de todos os tipos. por: Fernanda Henriques 243 0243 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário PROPOSTAS 3. APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS A ABORDAGENS NÃO DISCRIMINADORAS As considerações teóricas feitas no ponto anterior poderão ser utilizadas numa perspetiva em que se tenha em consideração a variável sexo/género. Exemplos possíveis: ฀Articulação das ideias de ‘memória crítica e dimensão ética da verdade’ para convocar a necessidade apresentar interpretações diferentes sobre os temas, mesmo que essas interpretações não sejam as canónicas. Nomeadamente, fazer aparecer aqui perspetivas teóricas sobre as mulheres e o feminino que desconstruam ideias estereotipadas. Mas, sobretudo, criar a consciência de que tem de se ler e trabalhar textos novos, textos com perspetivas diferenciadas e textos de áreas teóricas diferentes sobre as temáticas, no sentido de evidenciar que uma racionalidade só poderá ser suporte da nossa vida social se for pluridisciplinar e se for integradora das muitas diferenças que constituem o tecido social, desde os valores culturais às diferenças de religião. A ideia da verdade como ‘tensão’ entre saber e não saber e como ‘projeto humano’ pode ser explorada no mesmo sentido anterior, obrigando ao reconhecimento da ideia de ‘tolerância’ não como um mal que temos de aceitar, para sermos caridosos, mas sim como algo próprio da nossa finitude e do fundo de ignorância em que sempre nos movemos. Há que ter em atenção que se, afinal, falo o meu dialeto num mundo de dialetos, estarei também consciente de que ele não é a única língua, mas antes um dialeto entre muitos outros. Se professo o meu sistema de valores – religiosos, estéticos, políticos, étnicos – neste mundo de culturas plurais, terei também uma consciência aguda da historicidade, contingência, limitação de todos estes sistemas, começando pelo meu, como sublinhou Gianni Vattimo (1994). Na verdade, o estilhaçar do centro tem como correlato uma dupla situação positiva: por um lado, faz tomar consciência de que cada um de nós ocupa apenas uma posição entre muitas outras, e, por outro, dá legitimidade às vozes plurais, locais, em suma, à diversidade como valor. Por essa via, ele pode constituir-se como o anúncio da necessidade do diálogo entre as diferenças e originar, como consequência, rearrumações dos olhares teóricos que tornem visíveis os velhos e discriminadores paradigmas do pensar. Esta convicção, de que a valorização das diferenças enquanto tais, ao significar a derrota da arrogância da razão totalitária e imperialista, pode potenciar a configuração de uma racionalidade mais aberta e integradora. 0244 244 CIG CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l PROPOSTAS Se se criar a ideia de que a abertura ao diferente, à alteridade, é dimensão de cidadania, poderá ter-se como referência, por exemplo, a questão das mulheres migrantes e dos conflitos sofridos por elas na necessidade de se incorporarem numa cultura diferente e que, à partida, mantém um olhar de superioridade em relação à sua. Será importante erradicar a ideia da separação entre a busca da verdade como um processo meramente teórico e perceber a exigência que o pensar tem de se entretecer com a ação para poder sustentar e legitimar a transformação como possível. Transformação, também, ao nível do próprio pensar denunciando as suas raízes muitas vezes discriminadoras, como, por exemplo, quando toma o neutro, o objetivo e o universal abstrato como normas do saber e do ser e exclui, como marcado ou particular, todo o contextual e toda a diferenciação, alimentando a formação de campos ou perspetivas teóricas marginais. por: Fernanda Henriques 245 0245 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário 6.5. Notas Finais O s diferentes percursos teóricos e pedagógicos que foram sendo apontados ao longo do presente texto são sugestões de trabalho possíveis e, sobretudo, abertas, para que cada docente se possa sentir capaz de as protagonizar a partir da sua formação específica e dos seus hábitos de trabalho. 0246 246 CIG Por outro lado, tais percursos resultam de uma já longa experiência de docência da filosofia, não sendo, portanto, meros esquemas teóricos pensados de uma forma desligada da sua viabilidade de uma prática letiva. CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l RECURSOS Recursos para operacionalização das propostas A) ABORDAGEM INTRODUTÓRIA À FILOSOFIA E AO FILOSOFAR CHICAGO, Judy (1974-1979), The Dinner Party disponível em https://www.brooklynmuseum. org/exhibitions/dinner_party (consultado em 7de dezembro de 2015) FERNANDES, Sara (2000), “Da Ética à Religião: Paul Ricoeur e a Antígona de Sófocles, Philosophica 16, Lisboa, pp. 103-115. C) A AÇÃO HUMANA - ANÁLISE E COMPREENSÃO DO AGIR BEAUVOIR, Simone (1947), Pour une morale de l’ambigüité, Paris, Gallimard, 1947. Para uma moral da Antiguidade, local, Editora. REFERÊNCIAS PARA VER A OBRA DE DIFERENTES PERSPETIVAS: Judy Chicago’s Dinner Party opens at the Brooklyn Museum, [em linha] disponível em http://www. youtube.com/watch?v=3X6ZsumBiuA (consultado em 7de dezembro de 2015) Judy Chicago’s Dinner Party, imagens da instalação permanente, [em linha] disponível em http://www. youtube.com/watch?v=N0REjUIBgDg (consultado em 7de dezembro de 2015) Judy Chicago, página web sobre autora [em linha] disponível em http://www.judychicago.com/ (consultado em 7de dezembro de 2015) B) APOIO À ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DA TRAGÉDIA E POSSÍVEL DE ARTICULAÇÃO COM OS TEMAS PROGRAMÁTICOS SANTOS, José Trindade (1995), “Antígona. A mulher e o homem”, HVMANITAS, Vol. XLVII, pp. 115-138. RICOEUR, Paul (1990), Soi-même comme un autre, Paris, Seul. D) OS VALORES - ANÁLISE E COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA VALORATIVA HENRIQUES, Joana Gordão e ROCHA, Daniel (2015), ‘São portuguese, são muçulmanos’, Público, 8 de fevereiro [em linha] disponível em http://www. publico.pt/sociedade/noticia/sao-portuguesessao-muculmanos-1685260 (consultado em7de dezembro de 2015) E) DIMENSÕES DA AÇÃO HUMANA E DOS VALORES SÓFOCLES, Antígona - Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1984. por: Fernanda Henriques 247 0247 GUIÃO DE EDUCAÇÃO Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABU-LUGHOD, Lila (2012), As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação?, Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2), pp. 451-470; 452-453. BADRAN, Margot (2006), Islamic Feminism Revisited, [em linha ], disponível em http://www. countercurrents.org/gen-badran100206.htm [acedido a 4 de abril de 2015]. 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