CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.
A Filosofia no Secundário
lida numa Ótica de Género
por: Fernanda Henriques*
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
por: Fernanda Henriques
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO
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CIG
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.1.
Legitimar uma proposta
Parece evidente que a Filosofia e as
questões ligadas à discriminação
sexual não têm qualquer relação,
uma vez que a representação
de si tradicional deste campo
teórico – representação essa
mais ou menos aceite pelo senso
comum – a configura como um
olhar recuado sobre o sentido da
realidade e, por isso, incólume a
particularismos de qualquer espécie.
“
(Nas escolas) não se lhes diz nem uma palavra sobre os
Sexos; dá-se por suposto que são bastante bem conhecidos; longe de examinar em relação com eles a sua capacidade e a sua diferença verdadeira e natural, coisa que é
um dos assuntos mais curiosos e talvez também dos mais
importantes da Física e da Moral, passam anos inteiros, e
alguns toda a sua vida, ocupados com bagatelas (…).
”
Poulain de la Barre , 1673. 1
Como se pode compreender esta afirmação de
Amelia Valcácer?
sociais que condicionam e sustentam quer a
nossa vida pessoal quer a nossa vida coletiva.
Este ponto de vista pode ser apoiado através
da perspetiva Hermenêutica, nomeadamente
a de Hans-Georg Gadamer, quando fala de
“consciência histórica”, chamando a atenção
para a eficácia do trabalho da história em
nós, ou, a de Paul Ricoeur, quando põe
em evidência a relação entre a história e
a nossa memória coletiva. Deste modo, a
Hermenêutica opõe-se, claramente, a uma
visão assética e pretensamente neutral do
conhecimento, realçando a importância
do nosso enraizamento histórico na sua
constituição e transmissão.
Decididamente, consciencializando o
papel que as conceções filosóficas têm na
construção e reprodução das representações
Na verdade, para Gadamer o tema
da ‘consciência histórica’ faz dela,
simultaneamente, condição de possibilidade
N
o entanto, talvez seja útil
questionar tal óbvio e refletir-se
a sério nas palavras da filósofa
espanhola Amelia Valcárcel que,
exatamente, aponta numa direção oposta,
ao afirmar que: “Na maior parte do mundo
ocidental, a filosofia, a mais alta, difícil e
abstrata reflexão das humanidades, é um dos
veículos concetuais da sexualização, talvez o
principal.” (1997:74)
1
Poulain de la Barre, De l’egalité des deux sexes. Os textos de Poulain de la Barre podem ser consultados on line, em fac-simile,
na Biblioteca Nacional de França. . A obra está em linha, disponível em http://blog.le-miklos.eu/wp-content/Poullain-EgaliteDesDeuxSexes.pdf (acedido em 13.11.2017).
por: Fernanda Henriques
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
e de constrangimento do modo como
interpretamos a realidade e nos relacionamos
com ela. Como se sabe, Gadamer chama
preconceito ao resultado do trabalho da
história sobre nós e, tal como ele apresenta
o preconceito, talvez o pudéssemos
designar como esquemas de significação
transubjetivos, que são, afinal, princípios de
leitura da realidade que, por isso, determinam
o modo como, em cada momento, nos
entendemos e interagimos.
“
A consciência histórica não escuta de forma beatífica a voz que lhe chega do passado mas, refletindo
sobre ela, recoloca-a no contexto em que ela se enraíza para avaliar a significação e o valor relativo que
lhe pertence. Este comportamento reflexivo perante
a tradição chama-se interpretação.
”
Hans-Georg Gadamer, 1996: 24-25.
De acordo com Gadamer (ver texto em
caixa), pertencer a um tempo e a uma cultura
significa possuir uma herança, formada por
um conjunto de recursos de interpretação que
se deve configurar como um comportamento
reflexivo perante essa herança. Isto é, como
seres históricos, estamos sujeitos à eficácia da
tradição em nós, ao mesmo tempo que temos
o dever de a pensar e reavaliar criticamente.
Para o que aqui nos interessa, este facto
realça o papel das conceções filosóficas
– entre outras determinações – na dinâmica
das sociedades e nas suas representações,
e, por isso, dá à filosofia e ao seu ensino uma
responsabilidade indeclinável na formação dos
modos de pensar e de agir.
Por sua vez Paul Ricoeur, na obra, La
mémoire, l’histoire, l’oubli, dedicada à
compreensão da natureza das nossas
representações sobre o passado, chama a
atenção para a importância da circularidade
história-memória-história. Ou seja, para ele,
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CIG
a Memória é a matriz da História, mantendo
ambas uma relação de potenciação: a Memória
serve a História e esta, por sua vez, consolida e
perpetua uma memória determinada, ou melhor,
legitima uma certa memória, escamoteando
(recalcando) outras memórias possíveis, dado
que o passado não é um dado morto, mas um
potencial de novas explorações.
Nesse quadro, é muito importante a história que
se ensina, especificamente a história da filosofia
que se ensina, porque, continua o autor:
“[…]a memória imposta é assegurada
por uma história ‘autorizada’, uma
história oficial, uma história aprendida
e celebrada publicamente. Uma
memória exercida, com efeito, é, no
plano institucional, uma memória
ensinada.” (2000: 104)
Sobre Memória e História, ver o
sub-capítulo “Saber é Poder. História, uma
ciência em (re)construção” do capítulo
“Reposicionando Mulheres e Homens na
História Ensinada”, deste Guião.
Assim sendo, esta perspetiva não só reforça a
posição anterior como, por seu lado, nos obriga
a questionar o valor absoluto dos cânones,
sejam eles quais forem: textuais, autorais,
concetuais, impondo a sua revisitação crítica.
Se se pensar, agora, por exemplo, nas
conceções antropológicas que se ensinam com
recurso ao pensamento clássico e canónico,
dar-nos-emos conta que elas, simultaneamente,
ignoram a existência de dois sexos e
discriminam o sexo feminino. Esta, aparente,
contradição é possibilitada porque, por um lado,
os textos que fazem a nossa memória coletiva
e ensinada falam de natureza humana em geral,
sem diferenciações, mas pensam-na a partir
do masculino como modelo ou como pretenso
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
universal neutro; por outro, há um ruído de
fundo também incorporado na memória
coletiva e ensinada de que o feminino se define
por derivação do masculino e em relação a ele
e, portanto, antropologicamente, as mulheres
são seres definidos pela falta, pela carência –
seja na posição aristotélica, seja na de Freud,
para referir apenas os dois exemplos mais
paradigmáticos – tendo-se transformado o
constructo vencedor em norma, originando, ao
mesmo tempo, uma espécie de naturalização
daquilo que é, apenas, uma perspetiva. Ou
seja, é imperioso ensinar antropologia de outra
maneira, de uma maneira que permita construir
uma memória individual e coletiva simétrica
para o masculino e para o feminino.
Assente neste quadro teórico, esta proposta
de exploração no Programa de Filosofia do
Ensino Secundário (PFES), a partir do ponto de
vista do género, pretende apresentar algumas
sugestões de trabalho que possibilitem uma
abordagem dos temas programáticos que tenha
em consideração o facto de a humanidade ser
constituída por Mulheres e por Homens.
Para além da presente introdução, esta
proposta integrará mais 2 momentos:
1) um mais geral que desenvolverá um conjunto
de reflexões em torno da forma como se
poderá abordar um programa de filosofia
com preocupações críticas em relação à
discriminação de género;
2) outro mais específico onde se proporão
abordagens numa ótica feminista de alguns
temas do Programa. Essa proposta será feita
em duas dimensões: por um lado, propor-se-á
uma forma de tratar todas as rubricas do
10º ano, segundo a perspetiva de género;
por outro, apresentar-se-ão sugestões para a
última rubrica do 11º ano.
por: Fernanda Henriques
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
6.2.
Algumas condições para
uma operacionalização
crítica do PFES
M
ais do que introduzir o
tema do sexismo ou do
feminismo num determinado
momento programático ou
numa circunstância específica, importa ter
uma perspetiva crítica e não discriminadora
sobre a abordagem global dos conteúdos
programáticos, o que implica tomar sempre
uma distância crítica atenta aos temas, aos
materiais utilizados e à linguagem. Convém não
esquecer que a linguagem é o ‘meio’ através
do qual tudo acontece e, por outro lado, que
os recursos de aprendizagem são o que vai
permanecer na relação que alunas e alunos
estabelecerão com as diferentes temáticas.
Nesse sentido:
Há que ter cuidado, por exemplo,
em não se dizer sempre homem
para designar a humanidade se se
pretende desconstruir a ocultação
do feminino na história e na
cultura.
Há que atender aos exemplos que
se escolhem para ilustrar os temas
e as problemáticas, prestando
atenção, sobretudo, a que eles
não representem estereótipos
e não reforcem preconceitos e,
assim, quando falam de mulheres
não as apresentem só como
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CIG
mães ou esposas e, pelo contrário,
quando falam dos homens os
procurem mostrar nesses papéis.
Há, também, que tomar em linha
de conta que os textos ou a
documentação audiovisual a utilizar
sejam diversificados quer quanto
à autoria quer quanto ao modo de
abordar as problemáticas.
Finalmente, há que cuidar a
maneira como se abordam os
temas e os materiais de trabalho
que deverá sempre assentar numa
hermenêutica da suspeita em
relação ao modo como a questão
de género aí está tratada, pondo-a
de manifesto.
O organigrama seguinte procura dar algumas
respostas a essas interrogações, sendo em
torno do seu comentário que se desenrolará
este momento da proposta.
Tal como está concebido, o organigrama
deixa-se comentar a partir de um tema
cruzado que se poderá designar por: a
unilateralidade da análise dos problemas pela
História da Filosofia, o pretenso universal
neutro e a necessidade de criar uma memória
do passado mais objetiva. Na verdade,
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
FILOSOFIA
e GÉNERO
Porquê?
Unilateralidade
da análise dos
problemas pela
História da
Filosofia
Criar uma
memória do
passado mais
objetiva
A História
da Filosofia
ignora a
produção
das
Mulheres
O universal
pretensamente
neutro
Para quê?
A História
da Filosofia
transmite
visões
depreciativas
sobre o
feminino
Como?
Evidenciar a
relação entre
conceções
filosóficas e
representações
sociais
Criar novas
representações
sociais sobre o
feminino
Dar
visibilidade
ao tema
Corrigir assimetrias na
representação de si de
Mulheres e Homens
uma das razões que torna necessário e
útil abordar o ensino da Filosofia tendo
em conta as dimensões teóricas impostas
pela perspetiva de género é o facto de esta
obrigar a uma renovação na abordagem dos
Questionar a
pertinência
de algumas
conceções
filosóficas
sobre o
feminino
herdadas da
tradição
Desocultar a
ideologia
de género
subjacente
ao tratamento
tradicional dos
temas
Explorar textos da História da
Filosofia sobre o tema
temas e das problemáticas e, através dessa
renovação, introduzir atitudes intrinsecamente
problemáticas. Porventura, o caso do universal
é um exemplo paradigmático.
por: Fernanda Henriques
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
6.2.1.
A problemática
do universal
N
a verdade, a universalidade é o
horizonte de sentido do filosofar,
mas, de facto, o que significa
hoje falar de universal e de
universalidade?
São de duas dimensões as questões que
se podem colocar a este nível: (1) a relação
com o universal neutro e a discriminação das
mulheres e (2) a relação do universal neutro
com uma perspetiva eurocêntrica e branca.
1. O UNIVERSAL NEUTRO E A
DISCRIMINAÇÃO DAS MULHERES
Entremos no tema, através das palavras de
Celia Amorós na Introdução a uma obra sobre
a concetualização do feminino na filosofia
antiga (ver texto em caixa).
Sendo uma obra sobre a origem da filosofia
na Grécia, a autora quer chamar a atenção
para o facto de que, à partida, quando os
instrumentos conceptuais da filosofia se
afinavam, o modo como foi instituído o
universal implicou uma dupla exclusão do
feminino: da visibilidade e da pensabilidade.
Realmente, o facto de se ter escamoteado
que o que era tomado como universal
representava apenas a generalização do
masculino, ignorou a existência do feminino
na conceção do humano. Por outro lado,
esse mesmo processo exclui o feminino dos
quadros do pensado e do pensável.
Se nos ativermos à importância
que esta situação pode ter nas
representações sociais sobre as
mulheres, pode-se, certamente,
dizer que o universal, como
genérico humano, representa uma
discriminação fundadora, algo
como um estereótipo arquetípico,
“
[…] aquilo que é pensado como o genérico humano apresenta-se num plano de abstração
que neutraliza os opostos sexuais […]. Contudo, não de tal maneira que aquilo que é proposto
ao nível da abstração do neutro possa ser comunicável no masculino ou no feminino: constituir-se-á como o masculino, que assumirá, deste modo, o neutro, e assim não se porá a si mesmo
como o masculino, e sim como o próprio genérico humano.
”
“
Ao ficar do lado do diferente, do outro-diferente-do-neutro, e sendo o neutro o pensado
enquanto neutro – e vice-versa, na medida em que se tornara neutro enquanto pensado –, o
feminino tornar-se-á não-pensado.
”
Celia Amorós in Eulalia Perez Sedeño, 1994:vii.
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CIG
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
responsável pela
permanência em toda
a tradição ocidental da
ideia de que o feminino
é derivado (marcado) e,
portanto, as mulheres
são um ‘segundo sexo’.
Se se quiser pensar em termos
de eficácia histórica, teremos
aqui um bom exemplo dela,
bastando-nos, para isso,
convocar os constructos
psicanalíticos: Freud, que se
contrapôs a quase todos os
modos de pensar instituídos,
em relação ao feminino e às
mulheres limitou-se a reiterar
aquilo que Aristóteles tinha
definido, porque o complexo
de castração e a inveja do
pénis mais não são do que
a reiteração da perspetiva
aristotélica, elevada a saber
cientifico; por seu lado, Lacan,
quando postula que apenas
o falo tem capacidade de
evocar campos simbólicos, no
fundo, faz ressonância daquilo
que foi instituído na Grécia
como universal genérico, mas
que, efetivamente, tinha sido
assimilado ao masculino.
Numa obra sobre a Política
de Aristóteles, uma outra
filósofa espanhola, Amparo
Moreno, separa ‘sexismo’
de ‘androcentrismo’ para
evidenciar que a conceção que
herdámos de Aristóteles sobre
o suposto universal ‘homem’
não só exclui todas as
mulheres, mas também exclui
muitos homens. A autora
afirma que a concetualização
de homem no livro I da
Política se referia ao “homem
feito, ao que assumiu os
valores próprios da virilidade,
crendo-se, por isso, com
direito a impor-se sobre
outras e outros”(1988:18) e
não a todos os homens. A
análise de Amparo Moreno
vai centrar-se no modo
como o pensamento político
de Aristóteles tem sido
transmitido pela Academia,
mostrando que, no geral,
essa transmissão se faz
ignorando ou minimizando
as referências de Aristóteles
às mulheres, aos escravos
e aos estrangeiros ou,
então, assinalando apenas
a posição de Aristóteles
em relação à escravatura.
Ou seja, está-se a assumir
que homem representa
um genérico neutro, nesta
transmissão, mas, ao fazê-lo,
ignora-se o ponto de vista
discriminador segundo a
qual o conceito tinha sido
forjado, relegando para o
plano do impensado as suas
condições de constituição e,
deste modo, naturalizamo-lo,
tirando-lhe a sua condição
de construído. Nesse quadro,
Amparo Moreno chama a
atenção para o facto de que
não explicitar as condições
de construção do conceito
em causa determina o que
ela designa por opacidade
androcêntrica no discurso
quer académico, quer
público.
2. O UNIVERSAL
NEUTRO E O
DOMÍNIO DA
PERSPETIVA
EUROCÊNTRICA
E BRANCA
A questão do universal
neutro como expressão da
perspetiva eurocêntrica e
branca tem de ser pensada
no quadro epistemológico
da Modernidade, onde está
associada a um conceito de
racionalidade imperialista e
excludente ligada ao domínio
do mundo por parte de um
sujeito todo-poderoso que
mede, calcula e explora,
configurando um paradigma
de progresso de uma parte
da humanidade à custa da
desvalorização de outra
parte, sob a designação de
subdesenvolvimento.
Boaventura de Sousa Santos
designa o Pensamento
Moderno Ocidental, como
Pensamento abissal, para
chamar a atenção para o
seu caráter radicalmente
dicotómico e excludente,
fazendo uma crítica
devastadora da perspetiva
epistemológica básica do
Pensamento Moderno.
Na sua leitura, este modo
de pensar carateriza-se
pelas distinções e pelas
divisões, umas visíveis
e outras invisíveis, mas
que são fundamento das
primeiras e marcam dois
universos discursivos
irredutíveis, incomensuráveis
por: Fernanda Henriques
211
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
“
A divisão é tal que «o outro lado da linha» desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente,
e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de
ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de
forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão
considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em
que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade
e ausência não-dialéctica.
”
Boaventura Sousa Santos, 2007: 3-4.
e repelindo-se mutuamente: deste lado da
linha e do outro lado da linha (ver caixa).
Para o autor, portanto, o que está em
causa neste paradigma de análise é
afirmação de um universal que quer
ser abrangente, mas não passa de um
pseudouniversal, uma vez que é definido no
âmbito de um ‘nós’ que exclui os ‘outros’,
considerando-os inferiores e irrelevantes.
de uma parte da humanidade que o define e o
proclama como tal, embora ele não represente
mais do que a perspetiva de quem o enuncia
(2006).
Sobre o pensamento androcêntrico
(presente ao longo deste Guião), veja-se
em especial os capítulos “Género e
Currículo” e “Género e Conhecimento”.
Sugere-se também a consulta dos capítulos
“Cânone Literário e a Igualdade entre
Numa outra perspetiva, Seyla Benhabib
designa este universal da Modernidade como
um universal substituívista porque, diz ela, se
limita a chamar universal ao ponto de vista
Homens e Mulheres”, ”Género e Biologia:
outros olhares” e “Género e Mulheres
na História da Cultura e das Artes”.
Na linha de Habermas, Seyla Benhabib retoma a ideia de que a modernidade é
um projeto inacabado, mas, ao contrário daquele autor, considera que o levar
a cabo o projeto da modernidade obriga a ser capaz de integrar as críticas que
as várias fontes da pós-modernidade lhe fizeram, nomeadamente, assumir
como legítima a crítica ao caráter de falso neutro do universal abstrato. Nesse
sentido, Seyla Benhabib propõe a ideia de um universalismo interativo em
lugar do ideal legalista e substituivista do universalismo da Aufklärung.
0212
212
CIG
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.2.2.
A necessidade de resgatar
outras memórias filosóficas
T
.
ornando-se como boas as
considerações acima desenvolvidas,
urge perguntar qual o viés que o ponto
de vista do universal tomado como
neutro introduziu na leitura da tradição filosófica e
dos seus temas centrais e procurar revertê-lo.
Na sua obra Parcours de la reconnaissance,
Paul Ricoeur considera que os movimentos
feministas contribuíram para popularizar o
tema do reconhecimento, acrescentando que
eles fizeram uma reivindicação sobre uma
identidade específica que queria ser reconhecida
como coletiva para poder permitir que os seus
membros individuais atingissem a estima de si
mesmos necessária ao assumir da dignidade e
da possibilidade de uma equilibrada construção
da identidade pessoal. Nesse quadro, o autor
sublinha a importância do reconhecimento
para a formação da identidade, dizendo duas
coisas essenciais para o que aqui é o caso:
que a identidade dos grupos historicamente
discriminados integra uma dimensão temporal
«que engloba as discriminações exercidas
contra esses grupos num passado que pode
ser secular» (2004: 311);
que é necessário fazer uma discriminação
inversa em relação a esses grupos.
Fazendo a aplicação desta perspetiva ao caso
da discriminação das mulheres para a qual as
conceções filosóficas deram um contributo
essencial, como já se explicitou, importa, então,
resgatar outras memórias – no assunto vertente,
outros textos e outras interpretações. Este
resgate pode ser feito em duas direções:
Por um lado, explicitando o papel
da filosofia nas representações
do feminino herdadas da tradição,
procurando, nos textos analisados,
o subtexto de género, ou seja,
nunca deixando de questionar
num texto que fale, por exemplo,
de natureza humana ou de
desenvolvimento moral, qual é
o lugar que tal texto reserva às
mulheres, mesmo quando não se
refere explicitamente a elas ou,
sobretudo, quando não se refere
explicitamente a elas.
Por outro, interrogando alguns
adquiridos que há séculos
são tomados como a única
interpretação possível de um
estado de coisas. Pode ser
importante recordar a este respeito
o que foi dito antes sobre a
consciência histórica, sobretudo, as
palavras de Gadamer chamando a
atenção de que perante a tradição
devemos ter um comportamento
reflexivo ou interpretativo e não
uma aceitação passiva e acrítica.
por: Fernanda Henriques
213
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
Sob uma alusão aparentemente
simples, poderemos ajudar
Sirva como exemplo um texto canónico:
a desconstruir alguns dos
A República, de Platão. Não é possível, num
adquiridos mais arraigados
curso de filosofia não se fazer referência a esta
no nosso espírito: na Grécia,
obra platónica, pelo menos, a propósito da
as mulheres estavam total e
Alegoria
da Caverna. Como a abordagem de
universalmente excluídas e essa
qualquer texto exige a sua contextualização
situação era completamente
mínima, poder-se-á dizer que, nesta obra,
pacífica. Por exemplo, para
Platão propõe a configuração de uma cidade
Jose Solana Dueso (1994),
as coisas não são assim
justa e propõe, também como possível, que,
tão lineares, pondo mesmo
nessa cidade, mulheres e homens pudessem
aquele autor a hipótese de
ter uma educação igual e, por isso, as mulheres
que, em redor de Péricles
também pudessem atingir o máximo da
e do seu círculo, se tenha
sabedoria e ser governantes da cidade.
desenvolvido um movimento
de emancipação feminina
que, segundo a sua leitura,
ajudaria a explicar não só o processo levantado
nem tão-pouco esquecer que ele
a Aspásia, mas também comédias como
considerou as mulheres como “almas
Lisístrata e Assembleia de mulheres.
Por outro lado, com esse gesto estaríamos a
credibilizar a proposta platónica neste particular
e, desse modo, ir ao invés de uma larga
tradição de receção de Platão que ou ignorou
ou ridicularizou a proposta platónica em relação
a este tema. Natalie Bluestone (1987) faz a
análise da receção académica desta questão,
a partir de 1870, encontrando, entre 1870 e
1970, sete tipos de hostilidade em relação à
proposta platónica, de que destaco quatro:
A igualdade não é uma temática:
desvalorizando a proposta;
As mulheres são diferentes: mostrando a
proposta como não natural;
As mulheres têm coisas melhores para
fazer: salientando o caráter não desejável da
proposta;
Platão não quis realmente dizer aquilo:
querendo mostrar que a proposta platónica
não foi intencional. (1987: 21-73)
Evidentemente que o que aqui
se propõe não é fazer de Platão
um feminista avant la lettre,
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214
CIG
caídas”. O que aqui está em causa é
questionar o significado possível de
Platão ter concetualizado o feminino
sem o tomar como um coletivo e,
assim, conceber como inteligível
que pelo menos algumas mulheres
poderiam ascender ao governo da
cidade, tomando consciência de que
a proposta platónica assenta numa
argumentação que, mesmo em termos
de utopia, evidencia que a ideia de que
algumas mulheres poderiam ascender
ao ponto mais alto do saber e do
poder surgiu também na Grécia, tendo
sido motivo de discussão numa das
obras mais conhecidas da literatura
filosófica ocidental.
Que importância pode ter tudo isto?
Exatamente, dar respaldo histórico ao
tema da igualdade humana e mostrar
como a discriminação das mulheres
não foi sempre pacificamente aceite.
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.3.
PROPOSTAS DE ABORDAGEM CURRICULAR
Um percurso não discriminador
dos conteúdos programáticos
para o 10ºano
T
.
al como vem a ser dito desde
o início do presente capítulo,
considera-se mais importante
que haja um olhar transversal a
todos os conteúdos, com intencionalidade
não discriminadora, do que se analise um
ou outro tema segundo uma perspetiva
de género. Assim, propor-se-á a seguir
um percurso possível para os conteúdos
programáticos do 10º ano que decorram de
um olhar não discriminador em relação ao
sistema sexo-género e, ao mesmo tempo,
não obriguem o corpo docente a romper
com os seus hábitos e com os seus recursos
habituais de trabalho. A opção por se fazer
uma proposta global de abordagem não
discriminadora para o 10º ano deve-se,
essencialmente, ao facto de ele representar
a ‘entrada’ na Filosofia e, por isso, poder ser
determinante de uma relação futura com ela.
Os conteúdos programáticos do Programa de
10º ano estão organizados em duas partes: uma
iniciação à atividade filosófica e o desenvolvimento
da articulação entre a ação humana e os valores.
Esta segunda parte compreende quatro tópicos:
1) análise e compreensão do agir;
2) a problemática dos valores e da valoração;
3) as diferentes dimensões da ação
humana e a sua articulação valorativa;
4) o desenvolvimento de uma temática que,
simultaneamente, permita concretizar e dar
corpo às diferentes problemáticas analisadas
e possibilitar que alunas e alunos façam um
pequeno percurso de pesquisa pessoal.
Sendo este o conteúdo programático para
o 10º ano, poder-se-ia dizer que todo ele,
sem qualquer acréscimo de conteúdos
ou esforço adicional, pode ser abordado
segundo uma perspetiva de género.
É, pois, no sentido de propostas de trabalho possível que devem ser
lidas as sugestões inseridas ao longo do texto. Elas representam,
apenas, caminhos não discriminadores de análise entre muitos outros
possíveis. As propostas aqui apresentadas cruzam-se com as de outros
capítulos deste Guião, nomeadamente, os relativos a “Cânone Literário
e Igualdade entre Homens e Mulheres”, “Ensino do Inglês, Género
e Cidadania”, “Reposicionando Mulheres e Homens na História
Ensinada” e “Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes”.
por: Fernanda Henriques
215
0215
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
6.3.1.
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
Abordagem introdutória
à Filosofia e ao filosofar
PROGRAMA DE FILOSOFIA
S
eja qual for o hábito e o gosto da e
do docente na abordagem inicial da
Filosofia, pode ‘acrescentar-lhe’ o olhar
de género se, entre outras coisas:
Escolher textos de filósofas.
Organizar um debate para discutir,
com argumentos, por exemplo,
se a diferença dos sexos tem ou
não alguma influência no modo de
pensar, de agir ou de escrever.
Apresentar uma galeria de mulheres
que filosofaram, ao longo do tempo,
para desfazer a ideia de que não há
mulheres filósofas.
Estas hipóteses que parecem uma brincadeira
insignificante podem representar uma porta
de entrada para a relação temática entre as
mulheres e a Filosofia que poderá acompanhar
todo o ano letivo e, por exemplo, ser uma
determinante fundamental na abordagem do
tema do Programa a tratar no ponto 4. E não
quer dizer que se escolha necessariamente um
tema diretamente ligado às problemáticas de
género, mas, antes, que se transversalize esta
dimensão seja qual for o tema escolhido.
O ponto de partida documental para esta
abordagem poderá ser a exploração do
conteúdo e do significado do projeto de Judy
Chicago, The Dinner Party: (Ver os Recursos A)
deste capítulo).
0216
216
CIG
10º ano
1. Abordagem introdutória
à Filosofia e ao filosofar
1.1. O que é a Filosofia?
– uma resposta inicial
1.2. Quais são as questões da
Filosofia? – alguns exemplos
1.3. A dimensão discursiva
do trabalho filosófico
O interesse da utilização deste documento
radica em vários aspetos:
Inscrever-se no âmbito da arte e, nesse
sentido, abrir um caminho possível para uma
exploração posterior no quadro dos valores
estéticos;
Situar-se na década de 70 e, por isso,
possibilitar uma informação cultural geral, útil
para a compreensão de muitas problemáticas
contemporâneas;
Poder evocar uma série de símbolos clássicos
da nossa cultura;
Ser desenvolvido no quadro do slogan ‘a nossa
herança é o nosso poder’, perspetiva que faz
ressaltar a importância de se encontrarem
modelos de mulheres e de feminino ao
longo da nossa tradição para que haja uma
conceção mais simétrica da humanidade.
Por outro lado, ele possibilita uma série de
reflexões importantes no seio da nossa cultura.
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
Referem-se 3, como exemplo.
UM TRIÂNGULO
UMA MESA
TRIANGULAR
Exploração das múltiplas simbologias ligadas à figura do triângulo
Evocação de outra mesa no âmbito da igualdade: a
mesa redonda do Rei Artur e dos seus companheiros de armas.
Paralelismos e contrastes
13 LUGARES DE
CADA LADO DO
TRIÂNGULO
EQUILÁTERO
A questão do número 13 e da mesa da última Ceia.
Paralelismos e contrastes
Para além da exploração simbólica em termos
de paralelismo e de contraste com outras
simbologias da nossa cultura e também da
contemplação da obra como projeto estético,
The Dinner Party pode ainda ser explorado,
enquanto conteúdo, como uma fonte de
informação sobre mulheres – reais ou míticas
e desde a pré-história até ao século vinte –
que tiveram um papel importante na dinâmica
cultural. Na verdade, quer os 39 nomes de
mulheres correspondendo aos 39 lugares
à mesa, quer o espaço interior do triângulo
que contém 999 outros nomes de mulheres
oferecem uma imensa lista de mulheres ligadas
às mais diferentes esferas de atividade que
consubstanciam um acervo informativo relevante
e que pode ser fonte de explorações diversas.
2
Figura 1. The Dinner Party, de July Chicago,
1974-1979
Fonte: http://www.contramare.net/site/pt/art-history-archive/ 2
Acedido a 03/10/2015.
por: Fernanda Henriques
217
0217
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
6.3.2.
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
A ação humana
e os valores
PROGRAMA DE FILOSOFIA
10º ano
N
a caraterização do agir,
qualquer que seja a perspetiva
adotada, é muito importante
continuar a questionar em que
medida o sexo é uma variável influente.
1. A Ação Humana – Análise
e compreensão do agir
1.1. A rede conceptual da ação
1.2. Determinismo e liberdade
na ação humana
Tal questionamento levará, certamente,
a duas linhas de problematização:
A diferença e a articulação
entre sexo e género
A ligação entre o agir e os seus
contextos culturais e psicológicos
Em ambos os casos ficará claro que o agir:
(1) diz respeito aos indivíduos específicos, com
uma história e uma situação cultural própria,
e não a seres ideais que são apenas puras
abstrações racionais; (2) implica sempre um
‘padecer’, dado que a ação humana se inscreve
“
num quadro relacional. Estas duas notas
teóricas serão importantes, por exemplo, para
tratar do tema “Determinismo e liberdade na
ação humana”.
A consolidação do que está em jogo neste tema
pode ser feita através de um texto de Simone
de Beauvoir, da sua obra, Para uma Moral da
ambiguidade, porque ela permitirá não só uma
abordagem clássica da questão Determinismo/
Liberdade – a visão existencialista – mas
também analisar a posição própria de Beauvoir
que é diferente da de Sartre.
Se se chegar a demonstrar que um dos dois parceiros formulou
uma ideia antes do outro, isto significa, certamente, que um dos
dois teve razão mais cedo, mas isso não prova que o primeiro tenha
influenciado o segundo; este pode ter de depor as armas perante
uma terceira pessoa ou perante uma influência comum. Dizer que
um formulou uma ideia antes de encontrar o outro também não
quer dizer forçosamente que o outro não a tenha descoberto por
si, porque estava ‘dans l’air du temps’ ou porque ambos se assemelhavam antes de se encontrarem.
”
Éliane Lecarme-Tabone, 2002: 33.
0218
218
CIG
É hoje claro no campo especializado
que Beauvoir tem uma posição
diferente da de Sartre em alguns
temas, nomeadamente, no da
Liberdade, embora, porventura, o
ponto de vista mais sensato seja o
de Éliane Lecarme-Tabone quando
releva a dificuldade em discernir o
campo próprio de uma e de outro,
dado o tipo de relação e de debate
que desenvolviam e que ambos
confessam. A sua reflexão faz todo o
sentido (ver texto em caixa).
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
Comentadoras e comentadores da obra
de Simone de Beauvoir salientam a clara
demarcação que ela faz em relação à
conceção sartreana de liberdade.
Na verdade, é a conceção de um eu absoluto
que leva Sartre a ver a liberdade também de
uma perspetiva absoluta – nada, nenhum
constrangimento material pode macular a
inteireza da liberdade: cada sujeito pode dar à
sua situação o sentido que quiser. A posição
de Simone de Beauvoir é completamente
outra. Preocupada em compreender a
secular discriminação das mulheres, Beauvoir
vai falar de sujeitos situados, incarnados,
intersubjetivos e, portanto, também,
interdependentes: a existência humana é uma
síntese de liberdade e de constrangimento,
de subjetividade e de corporeidade. Ou seja,
a sua análise da situação das mulheres como
“sujeitos em situação” levou-a a compreender
a autonomia do eu de outra perspetiva, não o
considerando uma ilha totalmente autónoma,
correspondendo a um sujeito transcendental,
absolutamente constituinte do sentido do ser e
do seu próprio sentido, como Sartre o faz.
Sonia Kruks (1989;1993), comentadora
de Beauvoir, chama a atenção para que a
divergência de pontos de vista entre Sartre
e Beauvoir sobre a relação da situação e da
liberdade é muito anterior a 1949 – data de
publicação de O Segundo Sexo – citando
a própria, em La Force de l’âge, quando
refere as suas discussões com Sartre sobre
o assunto, confrontando-o com a pergunta
sobre que liberdade podem ter as mulheres
num harém.
Esta mesma autora põe, também, em
evidência que, antes de O Segundo Sexo,
Beauvoir tinha escrito os ensaios, Pyrrhus
et Cinéas (1944) e Pour une morale de
l’ambiguité (1947), onde vai marcando a
sua posição sobre a temática. Em Pour une
morale de l’ambiguité, Beauvoir explicita
mesmo a ideia que a opressão pode ser
de tal modo que a consciência se torna,
apenas, um produto dessa opressão.
Dentro do quadro daquilo que está em
jogo nesta análise e compreensão do agir,
é pertinente referir as três aceções sobre
a posição de sujeito que Michèle Le Doeuff
(1989) se propõe extrair de O Segundo Sexo,
mas que podem servir de modelo para uma
abordagem mais geral do problema das
determinações do agir e da liberdade:
O sujeito que constitui o outro
de uma perspetiva excludente
do nós, portanto, como um outro
inessencial, como um objeto, como
é o caso, da “soberania masculina”.
O sujeito das minorias oprimidas,
por exemplo, os negros, olhados
como outro pelos brancos, mas
que têm, contudo, um nós que é
a sua comunidade de pertença.
O sujeito extenuado, as
mulheres, dispersas, reificadas
pelo olhar que as coisificou.
Mesmo sem ser tomada ao pé da letra, esta
especificação feita por Michèle Le Doeuff pode
ajudar a compreender muitas das situações
contemporâneas em que a ação humana
ocorre, porque ela chama a atenção para o
facto de que a “escolha” que se faz numa
determinada situação de desigualdade e,
muitas vezes, de opressão não é uma escolha
de má-fé, como Sartre pretendia e, sobretudo,
está longe de ser uma escolha efetiva.
por: Fernanda Henriques
219
0219
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
PROGRAMA DE FILOSOFIA
10º ano
2. Os valores – Análise
e compreensão da
experiência valorativa
2.1. Valores e valoração – a questão
dos critérios valorativos
2.2. Valores e cultura – a diversidade
e o diálogo de culturas
A presente rubrica programática propõe duas
vias de abordagem da questão dos valores:
(1) os critérios de valoração e (2) as diferenças
culturais. Ambas as vias se cruzam e se iluminam
mutuamente, sendo a perspetiva das culturas
e das suas diferenças aquela que pode ser
mais eficaz na abordagem do tema, na medida
em que permite tratar, simultaneamente, a dos
critérios de valoração.
Herta Muller, num livro magnífico (2011), dá a um
dos capítulos o seguinte título: Cada língua tem
olhos diferentes. Esta metáfora do olhar, que a
autora reportava às línguas, é uma mediação
interessante para tratar a problemática das
culturas e das suas diferenças, tanto mais que
uma cultura se traduz também numa língua
própria e cada língua tem, de facto, olhos
diferentes para ver, representar e simbolizar a
realidade.
Esta posição não tem como suposto nem como
corolário o relativismo cultural, por uma razão
filosófica e por uma razão feminista. A razão
filosófica tem a ver com a intencionalidade
universalizante da Filosofia, ainda que no quadro
3
das reflexões já feitas anteriormente. A razão
feminista refere-se ao facto de que é necessário
que no diálogo cultural que o mundo globalizado
impõe e no consequente respeito igual que as
culturas merecem, não esteja bloqueada a porta
para a denúncia da discriminação das mulheres
– ou de outras discriminações.
Como fazer então?
As respostas fáceis a esta interrogação
são duas: a do julgamento condenatório e
excludente que propõe a supremacia de umas
culturas sobre outras, e a da aceitação do
relativismo cultural. Ambas as perspetivas
devem ser analisadas dentro desta temática,
com todo o rigor e pondo em evidência as suas
caraterísticas positivas e negativas.
A resposta difícil – que aqui se
propõe como mais filosófica e mais
humana – é a de defender um diálogo
intercultural em termos de ‘tradução’
de valores. O exercício de ‘tradução’
do ‘olhar’ de uma cultura para o de
outra tem a vantagem de originar
a interação entre as culturas e os
seus respetivos sistemas de valores
e de se atingir ‘um terceiro termo’,
um novo valor, que é o resultado do
processo de tradução 3.
A reflexão de Paul Ricoeur sobre a tradução
pode ajudar a pensar esta problemática da
tradução entre culturas, ao introduzir três
aspetos ligados à tarefa da tradução: (1) a
Num texto muito interessante e, ao mesmo tempo, muito acessível sobre este assunto: (Ana Isabel Borges, e Marildo José
Nercolini, A (im) possibilidade da tradução cultural. In Proceedings of the 2. Congresso Brasileiro de Hispanistas, 2002, São
Paulo (SP). Em linha, disponível em http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000012002
000300006&lng=en&nrm=iso, acedido a 04.04.2015) diz-se a determinada altura: A tarefa do tradutor cultural ao tentar fazer
com que uma cultura não somente seja aceita, mas entendida por outra, acaba por criar um terceiro espaço, ou melhor, ocupar
um espaço entre as duas culturas em questão, um entrelugar possibilitador do diálogo entre elas.
0220
220
CIG
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
caraterização da tradução
como ‘uma equivalência
sem identidade’ e, nesse
sentido, um processo sempre
inacabado; (2) a dimensão
ética da tradução, ou seja,
uma espécie de dever a que
a humanidade está obrigada,
porque, por um lado, cada
povo pertence a um lugar
específico geográfica e
culturalmente e, por outro, faz
parte da mesma humanidade;
(3) a pertença da tradução ao
paradigma fundamental da
racionalidade humana, ao dar
conta da sua irremediável e
constitutiva finitude.
Esta perspetiva ricoeuriana
é um excelente ingrediente
para legitimar teoricamente
e orientar, ao nível da praxis,
o diálogo entre culturas,
tornando as pessoas
intervenientes nesse diálogo
conscientes de que a sua
cultura representa apenas ‘um
modo de olhar’, que há outros
‘modos de olhar’ e que, do
cruzamento desses ‘olhares
diferentes’ resultará ‘um novo
olhar’ mais enriquecido e
aberto.
Este ponto de vista
sobre a tradução entre
culturas supõe dois
requisitos essenciais:
A ideia de que as
culturas não são
caixas fechadas, mas
identidades sempre
em construção e
transformação.
A diferença entre
multiculturalidade
e multiculturalismo.
Este vê a relação entre
culturas como
justaposições; aquela
apela para uma
relação de interação
transformadora.
É legítimo considerar que a
problemática dos valores,
na sua relação com os
critérios de valoração e com
as culturas, representa um
caso paradigmático em que o
recurso às questões de género
se mostra particularmente
fecundo. Nesse sentido,
embora tenha de ser feita
‘com pinças’, a abordagem
deste tema a partir da situação
das mulheres nas diferentes
culturas consubstancia uma
via privilegiada de abordar este
ponto programático, por uma
série muito grande de razões
de que se podem destacar as
seguintes:
Pôr em evidência os
diferentes valores de cada
cultura, em si mesmos
considerados e no âmbito da
sua relação, numa tábua de
valores.
Permitir ‘ver’ o
funcionamento das diferentes
tábuas de valores na sua
dinâmica cultural, mostrando
o seu entrosamento com as
culturas.
Dar uma dimensão de
concretude à problemática,
difícil, da compreensão dos
valores.
Proporcionar a verificação
da diferença de situação
das mulheres em culturas
diferentes e a complexidade e
ambiguidade da sua situação
em cada cultura.
Trazer para dentro da sala
de aula um tema quente do
nosso tempo.
Contudo, como já foi dito,
esta problemática deve
ser tratada ‘com pinças’
para não originar posições
estereotipadas e simplistas
que em nada facilitam a
compreensão do problema
e apenas levam à reiteração
daquilo que os meios de
comunicação propagam. Por
exemplo, é necessário destruir
duas ideias feitas e falsas:
(1) na cultura ocidental as
mulheres são livres e há uma
igualdade plena entre mulheres
e homens; (2) no mundo
muçulmano as mulheres não
têm qualquer liberdade e são
apenas vítimas indefesas
dos homens. Por outro lado,
é importante dar conteúdo
efetivo a algumas expressões
por: Fernanda Henriques
221
0221
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
“
[Apresentei uma definição concisa de Feminismo Islâmico recolhido de escritos e do trabalho
de protagonistas Muçulmanas como um discurso e uma prática que extraem a sua compreensão
e o seu preceito do Corão, buscando direitos e justiça dentro do quadro de igualdade de género
para mulheres e homens na totalidade das suas existências. O feminismo Islâmico explica a ideia
de igualdade de género como parte e parcela da noção corânica de igualdade de todos os insanos
(seres humanos) e pede a implementação da igualdade de género no estado, nas instituições civis
e na vida quotidiana. Rejeita a noção de dicotomia público/privado (…) conceptualizando uma
Umma holística em que os ideais corânicos sejam operativos em todos os espaços.
”
Margot Badran4 (tradução livre)
que se ouvem e apenas se repetem: (1) educar
as mulheres é apostar num ganho cultural
exponencial; (2) as mulheres são sempre os
indivíduos mais pobres de entre os pobres.
Nesse sentido, há que ultrapassar a visão
eurocêntrica e branca do feminismo e trazer
para o debate posições de dentro das culturas
analisadas. No quadro da questão do Islamismo
é, sobretudo, necessário ter em conta que
uma perspetiva feminista forte nasce de
dentro da própria religião, como analisa, por
exemplo, Margot Badran (ver texto em caixa).
Num texto com o título significativo de As
mulheres muçulmanas precisam realmente
de salvação?, a autora, Lila Abu-Lughod,
da Universidade de Columbia, denuncia
o fundo estereotipado que preside ao
olhar sobre a questão das mulheres
muçulmanas, ao explicar como ocorreu
o convite que lhe foi feito pela autora do
programa News Hour (ver texto em caixa).
O texto põe claramente de manifesto que
aquilo que está subjacente à nossa busca de
conhecimento sobre a situação das mulheres
“
A apresentadora do programa News Hour contatou-me inicialmente em outubro para ver se
eu desejaria dar algum segundo plano para um segmento a respeito de mulheres e do Islão. Eu
maliciosamente perguntei se ela havia feito segmentos sobre as mulheres da Guatemala, da Irlanda, da Palestina ou da Bósnia quando o programa cobria guerras nessas regiões; mas finalmente concordei em olhar as questões que ela iria submeter aos participantes da mesa-redonda. As
questões eram desesperadoramente generalistas. As mulheres muçulmanas acreditam em ‘x’? As
mulheres muçulmanas são ‘y’? O Islão permite ‘z’ para as mulheres? Eu perguntei: se você fosse
substituir por “cristãs” ou “judias” todos os lugares onde aparece “muçulmanas”, essas questões
fariam sentido? Eu não imaginei que ela me fosse ligar novamente. Mas ela ligou duas vezes, uma
vez com uma ideia para um segmento sobre o significado do Ramadão e outra vez sobre mulheres
muçulmanas na política. Uma foi em resposta ao bombardeio e outra aos discursos de Laura Bush
e Cherie Blair, esposa do primeiro-ministro britânico
”
Lila Abu-Lughod, 2012: 452-453.
4
Em linha, disponível em http://www.countercurrents.org/gen-badran100206.htm acedido em 04.04.2015.
0222
222
CIG
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
muçulmanas é a ideia que
já fazemos de antemão
e, no fundo, que, por um
lado, consideramos que
a sua situação é única e
absolutamente diferente da
das outras mulheres de outras
religiões e culturas e, por
outro, que o nosso objetivo é
apenas confirmar as nossas
convicções gerais sobre o
assunto e não conhecer,
realmente, as suas efetivas
dimensões. O objetivo da
autora é deslocar o problema
da discriminação e da
opressão dos símbolos ligados
ao vestuário das mulheres
e procurar, com as pessoas
discriminadas, o caminho da
libertação para uma vida livre e
humana (ver texto em caixa).
Importa, portanto, que esta
‘entrada’ no tema dos valores
e dos critérios de valoração
seja feita com desassombro e,
sobretudo, ajude a desconstruir
as leituras muitas vezes
estereotipadas dos meios de
comunicação. Nesse sentido,
e uma vez que se trata de uma
‘entrada’ na problemática, que
deverá ter um aprofundamento
filosófico posterior, propõe-se
que o ponto de partida sejam,
exatamente, documentos
originários dessas fontes.
“
É profundamente problemático construir a mulher afegã como alguém que precisa de salvação. Quando se salva alguém, assume-se que
a pessoa está sendo salva de alguma coisa. Você também a está salvando
para alguma coisa. Que violências estão associadas a essa transformação e quais presunções estão sendo feitas sobre a superioridade daquilo
para o qual você a está salvando? Projetos de salvar outras mulheres
dependem de, e reforçam, um senso de superioridade por parte dos
ocidentais, uma forma de arrogância que merece ser desafiada. Tudo
o que se precisa fazer para vislumbrar a qualidade condescendente da
retórica de salvar mulheres é imaginar utilizá-la hoje nos Estados Unidos
em relação a grupos em desvantagem, como mulheres afroamericanas
ou mulheres proletárias. Nós agora entendemos que elas sofrem uma
violência estrutural. Tornamo-nos politizados acerca de raça e de classe social, mas não em relação à cultura. Como antropólogas, feministas
ou cidadãs engajadas, deveríamos tomar cuidado ao entrar na pele das
cristãs missionárias do século XIX que devotaram suas vidas a salvar
suas irmãs muçulmanas.
”
Lila Abu-Lughod, 2012: 465.
Como exemplo possível,
veja-se o artigo “São
portugueses, são muçulmanos”,
do jornal Público, de fevereiro
de 2015, onde o tema não é
apenas referente às mulheres
muçulmanas, mas ao grupo de
muçulmanos e muçulmanas
residentes em Portugal.
A vantagem fundamental
do texto é centrar-se em
testemunhos diversificados que
representam modos de pensar
muito diferentes das próprias
mulheres e que, por outro lado,
dão uma visão relativamente
complexa das variáveis em
presença na apreciação da
situação. Tratando-se de um
texto jornalístico e fortemente
testemunhal, há possibilidade
de ser feita uma abordagem
apelativa das questões
que se poderão tornar o
horizonte exemplificativo das
teorizações posteriores (Ver o
Recurso D) deste capítulo).
por: Fernanda Henriques
223
0223
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
6.3.3.
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
Dimensões da
ação humana
e dos valores
E
ste ponto programático, de análise
obrigatória, representa – tal como os
dois seguintes –, simultaneamente,
um aprofundamento e uma
concretização da análise do binómio ação
humana-valores, supondo, por isso, alguns
adquiridos de base.
Nesse sentido, e numa ideia clássica na
reflexão pedagógica, sobre a importância dos
organizadores de progresso no processo de
aprendizagem, propõe-se que este
núcleo temático seja apresentado a partir da
exploração inicial da tragédia de Sófocles,
Antígona, escrita por volta de 442 AC.
A proposta de Ausubel prende-se com a
ideia, particularmente útil em filosofia, de
aprendizagens significativas, porventura
as únicas a que se poderá chamar,
verdadeiramente, aprendizagens. Para aquele
autor, o mais importante num processo
de aprendizagem é aquilo que já se sabe,
pelo que, descobri-lo e desenvolvê-lo,
deva ser a prioridade de qualquer processo
de transmissão de saber. Ou seja, só se
aprende algo novo a partir de um saber
prévio porque a aprendizagem comporta uma
dialética complexa entre o saber constituído,
a apropriação pessoal e o processo de
revitalização dessa apropriação pessoal.
Para a aprendizagem da filosofia, esta
perspetiva é particularmente importante,
0224
224
CIG
PROGRAMA DE FILOSOFIA
10º ano
3.1. A dimensão ético-política
- Análise e compreensão da
experiência convivencial
3.1.1. Intenção ética e norma moral
3.1.2. A dimensão pessoal e
social da ética – o si mesmo,
o outro e as instituições
3.1.3. A necessidade de
fundamentação da moral
– análise comparativa de duas
perspetivas filosóficas
3.1.4. Ética, direito e política
– liberdade e justiça social; igualdade
e diferenças; justiça e equidade
na medida em que, por um lado, ela exige
uma determinada interiorização do saber
e, por outro, supõe a reflexividade que faz
da aprendizagem da filosofia um processo
recíproco de assimilação, de incorporação
e de crítica.
Nesse quadro, a utilização de um texto literário
oferecendo uma estrutura narrativa capaz
de ‘dar a ver’ situações e experiências que
levem alunas e alunos a examinar questões-limite de maneira objetivada, sem que tenham
de se sentir pessoalmente em questão e,
portanto, possam tomar efetivas decisões
críticas. A estrutura de uma intriga pode
oferecer todos os elementos necessários
para a real clarificação de uma problemática,
e, nesse sentido, serem “organizadores de
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
progresso”, isto é, “conteúdos
organizados”, que dão algo a
pensar por cada qual.
Para além da posição de
Ausubel, esta proposta de
abordagem assenta ainda,
do ponto de vista filosófico,
em dois pontos de vista
concorrentes: (1) a ideia de
que a metáfora – em sentido
lato – da linguagem literária
é um recurso essencial para
a exploração conceptual da
filosofia, (2) a perspetiva, entre
outras, de Martha Nussbaum,
de algumas obras literárias
serem a melhor forma de
explicitação e de apreensão
da problemática ético-política.
Martha Nussbaum (2010)
analisa o conhecimento moral
como resultado da articulação
entre emoções e intelecto
e dá a primazia à perceção
das dimensões particulares
do agir – situações e
indivíduos – sobre regras
abstratas. Nesse sentido,
considera as emoções como
elementos fundamentais dos
juízos morais, salientando,
de entre elas, a compaixão
que permite a abertura ao
outro na sua alteridade e
particularidade, permitindo,
assim, uma ideia de justiça
que não se confine às
5
fronteiras descritas pelos
nacionalismos. É no contexto
deste modo de ver as
questões ético-políticas que
Martha Nussbaum defende
a ideia de o estilo literário
– nomeadamente, algumas
obras – constituir uma via de
acesso privilegiada para o
conhecimento moral quer se
trate da sua exposição, quer
se trate da sua compreensão.
1. PORQUÊ UMA
TRAGÉDIA?
PORQUÊ ANTÍGONA? 5
Continuando na perspetiva de
Nussbaum, é ela que, sendo
uma prestigiada helenista,
tem um olhar muito claro
sobre o valor das tragédias
gregas para a reflexão ética.
No contexto desta perspetiva,
afirma
“[que] encontrava
nos trágicos gregos
um reconhecimento
da importância ética
da contingência,
um sentido agudo
do problema dos
conflitos de deveres
e uma sensibilidade
à significação ética
das paixões que
encontrava muito mais
raramente, ou mesmo
não encontrava,
no pensamento de
filósofos reconhecidos
quer antigos quer
modernos.”(2010:31)
Segundo Nussbaum, para
os Gregos, os temas éticos
eram comuns a filósofos e
escritores (trágicos), porque
ambos estavam preocupados
com a questão de “como
devemos viver para sermos
humanos” e, nessa linha,
chama a atenção para a
função de orientação da vida
prática que o teatro possuía
na Grécia.
A escolha de Antígona
justifica-se por uma
série de razões
culturais e, também,
feministas.
Se tomarmos em linha de
conta a posição de George
Steiner no seu livro Antígonas
(2008), reconheceremos o
papel sistemático que o mito
de Antígona representa na
Para antecipar algumas objeções ao alheamento das jovens e dos jovens a um texto do sec. V AC, esclareça-se que há,
entre nós, experiências bem-sucedidas com este texto, aproveitando-se a oportunidade para agradecer à Doutora Maria
Adelaide Pacheco, cujo testemunho sobre este assunto foi muito importante para a decisão de recorrer a Antígona nesta
proposta.
por: Fernanda Henriques
225
0225
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
nossa cultura em geral e, ao mesmo tempo,
a importância que também tem no interior da
cultura filosófica. Ou seja, há uma permanência
no nosso mundo intelectual daquilo a que a
tragédia de Sófocles deu corpo e figura que
pode facilitar a sua apropriação como ponto de
partida para uma teorização filosófica.
Por outro lado, e seguindo ainda Steiner, a
‘intriga’ de Antígona pode representar as
questões radicais da condição humana. Steiner
mostra como o conflito entre Creonte e Antígona
pode ser analisado do ponto de vista de
múltiplos indicadores: homem/mulher, individuo/
estado, vivos/mortos, velhice/juventude,
seres humanos/deuses. Mas Antígona é
atravessada, ainda, por outros conflitos, como,
por exemplo entre as duas irmãs, Antígona
e Ismene, que representam dois modos de
pensar diferentes, ou mesmo, entre o mundo
privado da família e o da vida pública da cidade.
Tudo isto indica que a tragédia de Sófocles
pode oferecer uma imensidade de recursos
todos adaptados aos tópicos programáticos
e aos gostos específicos de cada docente.
Antígona tem ainda uma outra vantagem que é
a de poder servir também como recurso para
os pontos programáticos: “3.2. A dimensão
estética – Análise e compreensão da experiência
estética” e “3.3. A dimensão religiosa – Análise
e compreensão da experiência religiosa”,
possibilitando uma exploração em continuidade.
No caso da dimensão religiosa da ação, a
exploração da peça poderá ser feita pelo
próprio núcleo temático. No que diz respeito
à experiência estética, para além de uma
exploração direta da tragédia como género
literário, poder-se-á recorrer, por exemplo,
às imensas manifestações pictóricas a que
Antígona deu origem na nossa cultura.
Especificamente do ponto de vista feminista,
0226
226
CIG
são, igualmente, muito variadas as razões que
legitimam esta proposta.
Antígona representa um mundo de homens
e de mulheres que têm relações familiares –
irmão, irmã, marido, filho – que interagem com
autonomia e valor próprio, que têm pontos de
vista diferentes sobre as coisas e as situações,
que mantêm ligações afetivas fortes e cuja
ação tem consequências no espaço público.
Ou seja, está em questão uma humanidade no
masculino e no feminino, seres humanos que
têm relações familiares importantes nas suas
vidas pessoais, quer sejam homens quer sejam
mulheres, e, portanto, ao contrário daquilo
que é habitual, mostrar, não só que as ações
significativas são praticadas por mulheres e
por homens, como também que os afetos
influenciam a vida dos homens e das mulheres.
Por outro lado, a despeito da interpretação de
Hegel que quer manter as mulheres ligadas à
natureza, enquanto os homens teriam dado o
salto para a civilização, há que reconhecer que
o conflito central de Antígona opõe entre si um
homem e uma mulher e, se se pode falar em
ganhos e perdas, certamente que é a mulher
quem ganha, evidenciando uma força e uma
coragem que desmentem qualquer conceção de
feminino ligado a fragilidade e medo. Para além
disso, há uma consistência em Antígona que
Creonte não revela, na medida em que, quando
perde o dogmatismo e a prepotência, ligados ao
poder de ser chefe, o seu carácter se desmorona.
Finalmente, Antígona pode ser veículo para
interrogar uma vez mais a ideia liminar que a
subordinação das mulheres foi sempre universal
e pacificamente aceite e, pelo menos, levantar
algumas questões em relação à nossa herança
grega. Por exemplo, que significado pode ter o
facto de que uma grande parte das tragédias que
chegaram até nós ter nomes de mulheres e, além
disso, um imenso protagonismo feminino? Ou,
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
que pode fazer pensar que Eurípedes tenha
escrito uma tragédia chamada Melanipa,
a filósofa, e que Aristóteles se tenha
referido a ela na sua Poética? E também
não significará nada haver duas comédias
de Aristófanes, Lísistrata e Assembleia de
mulheres, que colocam as mulheres no
espaço público a orientar a vida da cidade?
Evidentemente que há interpretações
opostas sobre isto – como, deve dizer-se,
sobre quase tudo o que herdámos do
passado e se refere à situação das mulheres
– mas não deixa de causar perplexidade
que uma sociedade totalmente pacífica
quanto à não importância das mulheres
se ocupasse a dar-lhe tamanho relevo no
quadro do seu imaginário cultural. Talvez
seja Jose Solana Dueso, o autor já citado
antes, quem tem razão quando propõe a
leitura de que as comédias de Aristófanes
estivessem a fazer ressonância de uma
contestação de mulheres, no âmbito do
círculo de Péricles. Em qualquer caso,
parece claro que o teatro grego necessita
de uma operação reflexiva que torne visível
que há uma evidente contradição entre o
nosso saber adquirido sobre a condição
das mulheres gregas e o seu papel nos
testemunhos textuais que chegaram até nós
e do qual Antígona é um exemplo relevante.
2. ALGUMAS INDICAÇÕES
PRÁTICAS DE APOIO
Evidentemente que a prévia leitura da tragédia
de Sófocles é a condição basilar de todo o
trabalho. Contudo, ela poderá ser preparada
com recurso a algumas estratégias 6.
Por outro lado, pode-se – e talvez se deva
– selecionar textos-chave de compreensão
do conflito da tragédia e do seu desenlace
e fazer leitura expressiva dentro da aula.
Finalmente, haverá que fazer um guião de
leitura em função dos aspetos que cada
docente quiser explorar posteriormente.
(Ver os Recursos B) para este capítulo)
O terceiro ponto programático termina
com a análise optativa entre os valores
estéticos e os valores religiosos.
Qualquer que seja a escolha feita, poderá
sempre fazer-se uma recuperação de
documentos e temas anteriores.
Sobre a relação entre as mulheres e
poder, ver o capítulo “Reposicionando
Mulheres e Homens na História
Ensinada”, deste Guião.
6
Sirva como exemplo, o visionamento de uma montagem feita por jovens do Brasil e que pode ajudar a despertar a curiosidade
e contextualizar com alguma informação útil: https://www.youtube.com/watch?v=nf3ovl_e1fg: Antígona.
por: Fernanda Henriques
227
0227
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
A dimensão estética
– Análise e compreensão
da experiência estética
P
or exemplo, se a escolha recair
sobre os valores estéticos pode
recuperar-se The Dinner Party,
de Judy Chicago e explorar as
três sub-rubricas apontadas no Programa,
na medida em que a construção da obra, a
sua receção, a sua manutenção e exposição
oferecem elementos suficientes para
uma análise muito interessante e para o
aprofundamento daquilo que está em causa
nessas sub-rubricas.
Refira-se, como possibilidades, algumas
interrogações desencadeadoras de um
trabalho teórico posterior:
1. Que sentido pode fazer uma obra de
arte coletiva? Em que direção aponta
em termos do tema ‘criação artística’?
O que significa, afinal, criar?
2. Haverá alguma articulação possível
entre a obra de Judy Chicago e
a de Joana Vasconcelos?
3. Haverá alguma especificidade
na arte feita por mulheres?
4. De que falamos quando falamos de
arte? A arte deve ter/tem, ou não, uma
orientação denunciadora? Que relação
entre obra de arte e tempo histórico?
0228
228
CIG
PROGRAMA DE FILOSOFIA
10º ano
3.2. A dimensão estética
– Análise e compreensão
da experiência estética
3.2.1. A experiência e o juízo estéticos
3.2.2. A criação artística e a obra de arte
3.2.3. A Arte – produção e consumo,
comunicação e conhecimento
5. Como se pode comparar o destino sofrido
por The Dinner Party e a obra de Joana
Vasconcelos, do ponto de vista de ‘produção
e consumo, comunicação e conhecimento’?
6. Que tipo de articulação, no âmbito de
‘consumo, comunicação e conhecimento’,
se pode pensar em termos de mercado,
publicidade e obra de arte?
Ver, a este propósito, o capítulo
“Género e Mulheres na História da
Cultura e das Artes”, deste Guião
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
A dimensão religiosa – Análise
e compreensão da experiência
religiosa
S
e se escolher a dimensão religiosa
do agir, também o percurso
anterior oferece dois recursos
fundamentais: (1) a exploração
da situação das mulheres no que se refere
à relação cultura-religião, (2) a Antígona, de
Sófocles, recursos que, aliás, poderão ser
analisados em termos de complementaridade.
Refira-se, como possibilidades, algumas
interrogações desencadeadoras de
um trabalho teórico posterior:
1. De que maneira a Antígona ajuda a pensar
o tema programático “A Religião e o
sentido da existência”? De que maneira
a escolha feita por Antígona, na tragédia
de Sófocles, é exemplar do papel da
experiência religiosa na vida humana?
2. Será possível estabelecer alguma
comparação entre a escolha feita por
Antígona, na tragédia de Sófocles, e
a escolha feita por jovens e mulheres
muçulmanas no uso do véu, no mundo
ocidental?
PROGRAMA DE FILOSOFIA
10º ano
3.3. A dimensão religiosa
– Análise e compreensão
da experiência religiosa
3.3.1. A Religião e o sentido da
existência - a experiência da finitude
e a abertura à transcendência
3.3.2. As dimensões pessoal
e social das religiões
3.3.3. Religião, razão e fé - tarefas
e desafios da tolerância
Ver, a este propósito, o subcapítulo
“A religião tem futuro para as mulheres?”
do capítulo “Temas e Problemas do Mundo
Atual: quotidianos e problemáticas de
mulheres e de homens”, deste Guião.
3. De que modo as escolhas referidas no
ponto anterior ajudam a pensar o tema
programático, “As dimensões pessoal e
social das religiões”?
4. Como é que a tragédia de Sófocles pode
ser analisada em função da triangulação
“Religião, razão e fé – tarefas e desafios da
tolerância”?
por: Fernanda Henriques
229
0229
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
6.3.4.
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
Temas/Problemas do
mundo contemporâneo
A
última rubrica programática, como
já se disse, permite, por um lado,
concretizar as problemáticas
analisadas ao longo das aulas e,
por outro, possibilita um maior envolvimento
pessoal de alunas e alunos. Como se
sabe, o Programa aqui é absolutamente
aberto, embora faça algumas sugestões,
nomeadamente, proponha um tema
diretamente ligado às questões de género:
“Os direitos das mulheres como direitos
humanos”. De um certo ponto de vista, a
escolha e análise desse tema seria facilitador
de um certo acabamento do percurso
proposto até aqui. No entanto, embora
pareça menos evidente e, porventura, menos
imediato, seria preferível escolher qualquer
outro tema e desenvolvê-lo tendo em conta
a perspetiva de género, na medida em que o
esforço de introduzir tal perspetiva na análise
de qualquer problemática será, certamente, a
forma mais profunda de consolidar adquiridos
e avaliar aprendizagens efetivas.
Repetir-se-á aqui alguns dos cuidados que
foram referidos anteriormente como sendo
condições basilares para uma qualquer
abordagem temática, de maneira a que ela não
seja enviesada do ponto de vista do sistema
sexo/género, aproveitando, ao mesmo tempo,
para se fazer algumas referências teóricas
ou históricas que poderão ser utilizadas em
outros contextos, servindo como recurso e
fundamento.
0230
230
CIG
PROGRAMA DE FILOSOFIA
10º ano
4. Temas/Problemas do
mundo contemporâneo
1. A QUESTÃO DA LINGUAGEM
Antes de tudo é necessário ter cuidado com
a linguagem utilizada em todas as situações,
seja com o uso sistemático de homem como
humanidade, por exemplo, ou seja com a utilização
de uma construção textual em que o feminino
está sempre escondido. Esta é, certamente, uma
das tarefas mais difíceis de realizar – para além de
outras coisas porque a gramática está construída
de maneira a tomar o feminino como derivado –,
mas é, ao mesmo tempo, uma das mais fecundas.
Dar-se-ão, em seguida, apenas dois exemplos
que destroem a ideia feita de que ‘evidentemente
que as mulheres estão incluídas!’. São eles, o
lema da Revolução Francesa e a sua expressão
em Os Direitos do Homem e do Cidadão e o caso
histórico português da primeira mulher que votou,
Carolina Beatriz Ângelo, por causa de uma questão
de linguagem.
a) Os direitos do Homem e do Cidadão
Elisabeth Sledziewski considera a Revolução
Francesa “como uma mutação decisiva na
história das mulheres” (1994) porque valoriza o
facto – decisivo – do debate sobre a natureza dos
sexos ter adquirido aí uma dimensão pública. Na
verdade, que o tema da igualdade e da diferença
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
entre os sexos tenha adquirido
contornos públicos e tenha
vindo à ribalta da discussão
representa um ponto sem
retorno na representação
do feminino e do estatuto
das mulheres na dinâmica
societal da nossa cultura. Se
bem que as mulheres tenham
acabado por ser remetidas
para o espaço privado do lar
e da família, e não tenham
conseguido ganhar a batalha
de uma educação digna,
foi, contudo, necessário
construir uma teoria que
legitimasse esse estado de
coisas, não deixando, essa
linha teórica vencedora,
de ter de se debater com
posições antagónicas.
Ganhou Rousseau contra
outras vozes, mas elas
existiram e mostraram que
pelo menos havia argumentos
tão válidos para sustentar a
igualdade entre os sexos como
para sustentar a sua diferença.
Do ponto de vista das ideias,
a mudança foi, realmente,
qualitativa. Particularmente,
nos anos entre 1789 e
1793 – anos da morte de
Olympe de Gouges e da
perseguição a Condorcet,
que morreria no ano seguinte
– a batalha foi renhida, tendo
as mulheres participado na
rua, enquanto povo, e no
debate, enquanto mulheres,
na configuração de um modo
novo de viver em comum 7.
Ou seja, a Declaração dos Direitos da Mulher e da
Cidadã é uma espécie de espelho da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, não lhe
acrescentando nada de substantivo, a não ser, a
especificação de ‘homem e mulher’ e, portanto,
ao ser liminarmente rejeitada, deixa claro que,
efetivamente, as mulheres não estavam incluídas
na designação ‘homem’ nem na de ‘cidadão’.
Estava-se, afinal, ao nível de uma perspetiva
abstrata de universalidade, concebida no horizonte
aristotélico do homem proprietário, aquilo que
Seyla Benhabib designa como um universal
substituivista, como se disse anteriormente.8
7
8
Um dos momentos mais
ilustrativos, simultaneamente,
da força das mulheres da
Revolução e das armadilhas
da linguagem e do suposto
universal neutro é a atividade
de Olympe de Gouges, nascida
Marie Gouze e tornando-se
Marie Aubry depois de casada.
Olympe de Gouges, partindo
do princípio de que Os Direitos
do Homem e do Cidadão
(ou desconfiando disso)
diziam respeito à humanidade,
propôs, em 1791, A Declaração
dos Direitos da Mulher e da
Cidadã que representa um
momento experimental ou
a prova de fogo de que a
Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão não era
efetivamente universal porque
excluía alguns homens e todas
as mulheres. O que tem de
significativo a Declaração
dos Direitos da Mulher e
da Cidadã é o facto de ela
demonstrar o reducionismo
do documento-bandeira da
Revolução, porque, os seus XVII
artigos acompanham a redação
do texto de 27 de Agosto de
1789, explicitando sempre
homem e mulher na redação de
cada artigo ou fazendo alguma
clarificação que lhe pareceu
necessária para defender a
igualdade entre os sexos.
Em 2003 é posta em linha uma perspetiva sobre a relação entre as mulheres e a república francesa que, embora em termos
de divulgação, oferece uma visão muito pormenorizada dos avanços e recuos da posição das mulheres na sociedade francesa
desde a Revolução, valendo a pena ser consultada: http://www.thucydide.com/realisations/comprendre/femmes/intro.htm
Olympe de Gouges foi condenada à morte, tendo sido a segunda mulher a ser decapitada, sendo a primeira a Rainha Maria
Antonieta. Não se conhecem ecos da receção feita à Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã; contudo, a razão política
da sua condenação ao cadafalso terá sido a sua defesa do federalismo e a sua oposição a Robespierre.
por: Fernanda Henriques
231
0231
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
b) Carolina Beatriz
Ângelo e as armadilhas
da linguagem
Figura 2.
Carolina Beatriz Ângela
(1877-1911)”
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/
Carolina_Beatriz_%C3%82ngelo
Carolina Beatriz Ângelo terá
sido a primeira mulher a
votar em Portugal. Regina
Tavares da Silva, no seu texto
sobre Beatriz Ângelo (2005),
chama-lhe ‘sufragista prática’,
recuperando a designação
que Afonso Costa lhe deu, por
esse motivo e também para
contextualizar o seu gesto
no quadro de um ambiente
nacional polémico, em que
muitas mulheres ativistas eram
defensoras de um voto restrito
para as mulheres.
Em março de 1911, a jovem
República Portuguesa
publicava a nova lei eleitoral
que designava como cidadãos
eleitores, “os cidadãos maiores
0232
232
CIG
de 21 anos, sabendo ler e
escrever e sendo chefes
de família”. No contexto da
publicação desta Lei, Carolina
Beatriz Ângelo requereu a
sua inclusão nos cadernos
eleitorais, uma vez que, sendo
viúva, era chefe de família. A
pretensão de Carolina Beatriz
Ângelo foi recusada e ela
recorreu ao tribunal da Boa
Hora, tendo obtido parecer
favorável. Assim, votou para a
Constituinte, em 28 de maio
de 1911, tendo o seu ato
tido um grande impacto na
imprensa, quer saudando-o
quer questionando-o. Como
nos mostra Regina T. Silva,
A Capital, de 30 de maio,
transcreve as palavras do
presidente da secção de voto,
onde Carolina Beatriz Ângelo
exerceu o seu direito de
votante, que manifesta o seu
contentamento com tal ato,
embora acrescente:
“Mas que perigos não
adviriam se esse direito se
generalizasse com uma larga
latitude! Se há tantos homens
que o não compreendem, que
o não sabem exercer”.
(2005: 36).
A 13 de julho de 1913, é
aprovada a nova lei eleitoral
que cuida de especificar a sua
verdadeira perspetiva, dizendo
que são cidadão eleitores
os portugueses do “sexo
masculino”, maiores de 21
anos, sabendo ler e escrever...
Que consequências teve o voto
de Beatriz Ângelo em 1911?
Em termos do sufrágio das
mulheres, foi apenas um
gesto simbólico e isolado.
Será necessário esperar
pela Revolução de Abril
para que todas as mulheres
portuguesas tenham
acesso ao voto.
Em termos
de denunciar as
armadilhas da linguagem,
ele é absolutamente
paradigmático,
porque demonstra
como o universal
masculino não contém,
realmente, as mulheres
necessariamente.
Na verdade, este
acontecimento mostra que
os republicanos, ao usarem a
expressão “chefe de família”,
estavam a pensar num uso
limitativo da linguagem e não
que as mulheres estivessem
incluídas na designação “chefe
de família”, como demonstram
não só que tenham recusado
o requerimento de Beatriz
Ângelo para ser incluída nas
listas eleitorais, obrigando-a
a um recurso aos tribunais,
como também a posterior
clarificação da lei que
restringe o voto apenas
ao sexo masculino.
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
2. A QUESTÃO DOS ESTEREÓTIPOS
É muito importante ter-se em conta, no
tratamento de qualquer tema, os exemplos
ilustrativos que se escolhem, prestando
atenção, sobretudo, a que eles não reforcem
os estereótipos e os preconceitos.
Importa mostrar sempre uma
realidade complexa, diversificada,
que cubra, o mais possível, a
grande diversidade de situações
que determinam o quotidiano de
homens e de mulheres, de pessoas
jovens e de pessoas menos
jovens, de famílias tradicionais ou
de outros tipos de famílias…
Esta preocupação deve igualmente
manifestar-se na escolha dos textos e dos seus
temas. Por exemplo, importa escolher textos
de autoria masculina que falem de questões
de família ou de educação; e textos de autoria
feminina que tratem de problemas de economia
e de política. Sobretudo é importante que haja
textos escritos por homens e por mulheres em
referência a todos os temas.
É óbvio que fazer uma pesquisa textual não
canónica acarreta uma quantidade grande
de trabalho. Mas, hoje, uma investigação
criteriosa pela internet possibilita um acervo de
dados que, ao menos ao nível da ilustração e
da sensibilização a algumas situações, pode
fornecer informação considerável e interessante.
Apresentam-se, a seguir, algumas ilustrações
motivadoras para uma pesquisa mais
sistemática e adequada aos temas escolhidos
para análise, dentro do quadro da rutura com os
estereótipos.
Nota: Nesta escolha pretendeu-se indicar nomes
de mulheres cientistas em domínios variados e
com impacto internacional
Mariana Mazzucato
Economista
italiana
Fonte:
https://en.wikipedia.
org/wiki/Mariana_
Mazzucato
Maria José Pereira
Cientista
portuguesa
Fonte: http://visao.sapo.pt/
actualidade/socied
ade/maria-pereiraanossa-estrela-datime=
f832285
Mária Telkes
Biofísica húngara
Fonte:
https://pt.wikipedi
a.org/wiki/M%C3
%A1ria_Telkes
Barbara McClintock
Prémio Nobel
Fisiologia/Medicina
(1983)
Fonte:
https://www.nobelprize.
org/nobel_prizes/medic
ine/laureates/1983/mcc
lintock-facts.html
Rachel Carson
Ecologista
americana
Fonte:
https://pt.wikipedia.
org/wiki/Rachel_Carson
por: Fernanda Henriques
233
0233
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
PROPOSTAS
Ada Lovelace
Britânica (sec XIX)
Pioneira em
programação
informática
Fonte: https://www.biogra
phy.com/people/ad
a-lovelace-20825323
Hipátia de
Alexandria
Matemática
Antiguidade
Fonte: https://pt.wikipedi
a.org/wiki/Hip%C3%A1tia
Sobre as Mulheres na Ciência e a
sua relação com o Conhecimento,
ver o capítulo “Biologia e Género:
outros olhares”, deste Guião.
3. A QUESTÃO DA SITUAÇÃO
DAS MULHERES
a) Conhecimento das
situações sociais reais
Procurar situar a posição das mulheres na
temática tratada é um requisito fundamental.
Isto significa a recusa de um tratamento
indiferenciado dos temas, como se a
humanidade não fosse constituída por
mulheres e homens ou como se isso fosse
irrelevante. Por exemplo, se se disser
que há 175 milhões de adolescentes
no mundo que não conseguem ler uma
única frase damos conta de uma situação
terrífica, mas indiferenciada. Se a isso se
acrescentar que esse número é constituído,
na sua maioria, por raparigas e mulheres
jovens, a informação fica mais rica e pode
originar outro tipo de interrogações.
0234
234
CIG
O relatório sobre Género e Desenvolvimento,
de 2012, do Banco Mundial, mostra muito
bem como uma análise desagregada de dados
permite ter uma visão mais abrangente das
situações e compreender melhor o cruzamento
entre as mulheres e o desenvolvimento.
Sirvam como exemplo os seguintes:
Indústrias que confiam mais no trabalho das
mulheres expandem-se mais nos países
onde as mulheres têm direitos iguais.
Países tais como Bangladesh, Brasil, Costa
do Marfim, México, África do Sul e Reino
Unido mostram que aumentar a parcela da
renda familiar controlada por mulheres, seja
por meio de seus próprios ganhos ou por
transferências de renda, muda os gastos
de uma forma que beneficia as crianças.
Na China, o aumento da renda de mulheres
adultas de 10% da renda média familiar
elevou a fração de sobrevida de meninas
em até 1% e elevou o número de anos de
escolarização tanto de meninos como de
meninas. Na Índia, uma renda mais elevada
para a mulher representa o aumento de anos
de escolarização de seus filhos e filhas.
No Paquistão, crianças cujas mães têm
até um único ano de educação estudam
diariamente em casa uma hora extra e
recebem notas de testes mais altas.
O direito de voto para as mulheres nos Estados
Unidos levou quem formula as políticas a voltar
a sua atenção para a saúde infantil e materna e
ajudou a reduzir a mortalidade infantil de 8 a 15%.
Em muitos países ricos, a maior participação
das mulheres em atividades econômicas
tem sido associada ao aumento da sua
representação na tomada de decisão política
para reformular as perspetivas sociais sobre o
equilíbrio entre o trabalho e a vida em família,
de modo geral, e aprovar uma legislação
de trabalho mais favorável à família.
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS PROPOSTAS
No fundo, é também no mesmo contexto [mulheres e desenvolvimento]
que na Declaração do Milénio, assinada em 2000 por 189 Estados
Membros das Nações Unidas, se assumiu que, para alcançar os objetivos
de desenvolvimento e de erradicação da pobreza, era necessário reconhecer
os direitos humanos de todas as pessoas, especialmente reconhecer a
necessidade de promover o direito das mulheres à igualdade. A mesma
Declaração compromete-se a “combater todas as formas de discriminação
contra a mulher”, com referência ao documento, de 1979: Convenção para
a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres.
Estes e muitos outros exemplos
fundamentam a definição de economia
inteligente, como sendo aquela que aposta
na igualdade de género porque ela não
só aumenta a produtividade e melhora
os resultados do desenvolvimento, como
tem efeitos nas gerações seguintes e
na qualidade das políticas públicas.
b) Prática de uma hermenêutica da
suspeita na leitura dos textos
Num âmbito de trabalho totalmente diferente,
“a interpretação dos textos”, convém
procurar, igualmente, onde se encontram
as mulheres e que tipo de conceção sobre
elas subentende qualquer texto. Essa atitude
desconstrói a leitura corrente e dá a ver
que as mulheres estão sempre supostas e
essa suposição assenta numa determinada
representação do feminino. Nesse sentido,
velhos textos podem ter novas leituras e
motivar novas questões. É nesse âmbito que
se enquadra a coleção dirigida por Nancy
Tuana, Re-reading the Canon, cujo objetivo é
uma releitura do cânone filosófico à procura
de um subtexto de género que tal cânone,
afinal, sempre incorporou, muitas vezes sem
o explicitar. Esse trabalho de releitura dos
textos clássicos da Filosofia não só mostra
a profunda responsabilidade da Filosofia nas
representações sociais do feminino e das
mulheres, como também põe em evidência que
as posições filosóficas não são neutras e que
o seu pretenso universal não teve em linha de
conta, pelo menos, metade da humanidade.
Sobre a análise crítica do Cânone, ver o
capítulo “Cânone Literário e Igualdade
entre Homens e Mulheres”, deste Guião.
por: Fernanda Henriques
235
0235
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTASPROPOSTAS
6.4.
Um percurso não discriminador
dos conteúdos programáticos
para a unidade final do 11º ano
Q
uando se chega a este ponto do
Programa já se fez muito caminho
na relação das turmas com a
Filosofia. Já se ganharam e já
se perderam muitas pessoas. Para algumas
e alguns jovens, as aulas de Filosofia serão
uma referência básica das suas vidas e para
outro grupo, uma matéria de que nunca mais
quererão ouvir falar.
Em qualquer caso, o modo como se
terminam os conteúdos programáticos pode
aprofundar a boa relação havida com a
Filosofia ou, quem sabe, resgatar algumas
pessoas que até aqui não conseguiram ser
motivadas. Neste quadro, provavelmente,
não são indiferentes nem a maneira como
se começa a lecionar a Filosofia, nem aquela
com se encerra as aulas da disciplina. Daí
que se tenha optado por intervir com uma
proposta de abordagem neste último tema.
Qualquer das 3 sub-rubricas do último ponto
do Programa poderá originar uma abordagem
fácil e interessante, do ponto de vista do
género. De facto, todos os tópicos enunciados
se prendem com questões prementes dentro
dos Estudos de Género, desde a “Necessidade
contemporânea de uma racionalidade prática
pluridisciplinar”, até ao “Espaço público e
espaço privado” ou “Convicção, tolerância e
diálogo – a construção da cidadania”, passando
pela “tarefa de se ser no mundo” e pela
0236
236
CIG
PROGRAMA DE FILOSOFIA
11º ano
V – Unidade final – Desafios e
Horizontes da Filosofia
1. A FILOSOFIA E OS
OUTROS SABERES
1.1. Realidade e verdade - a
plurivocidade da verdade
1.2. Necessidade contemporânea
de uma racionalidade prática
pluridisciplinar
2. A FILOSOFIA NA CIDADE
2.1. Espaço público e espaço privado
2.2. Convicção, tolerância e diálogo
– a construção da cidadania
3. A FILOSOFIA E O SENTIDO
3.1. Finitude e temporalidade
– a tarefa de se ser no mundo
3.2. Pensamento e memória
– responsabilidade pelo futuro
“responsabilidade pelo futuro”. Em função desta
convergência de interesses entre os conteúdos
programáticos e os Estudos de Género,
propor-se-á a seguir um conjunto de reflexões
temáticas que as docentes e os docentes
poderão utilizar de acordo com a escolha da
sub-rubrica que fizerem.
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.4.1.
PROPOSTAS
A importante questão de se construir
uma memória crítica. Seguindo
as sugestões de Paul Ricoeur
N
. o início da terceira parte da
sua obra La mémoire, l’histoire,
l’oubli, dedicada, exatamente, à
questão da Condição Histórica,
Paul Ricoeur faz a seguinte interrogação:
“O que é compreender sob o modo
histórico?” (2002: 373). Trata-se de uma
interrogação essencial, porque ela remete
para o facto de que, fora da possibilidade
de realizar uma reflexão total, o ser
humano se vê condenado a um modo de
conhecimento de si e do mundo, no quadro
da sua “condição histórica”, ou seja, “uma
situação na qual cada um está já implicado”
(2002:374). É esta perspetiva que nos conduz
diretamente ao papel incontornável jogado
pela memória porque, diz o mesmo autor:
“[…] a memória coletiva […]
constitui o solo de enraizamento
da historiografia”(2002:83).
No quadro das teses defendidas por
Paul Ricoeur nesta obra, importa
ressaltar três temas: (1) Memória
coletiva e esquecimento, (2) Memória,
história e identidade e (3) A complexa
relação entre presente passado e futuro.
1. MEMÓRIA COLETIVA
E ESQUECIMENTO 9
Paul Ricoeur parte da análise da memória
individual e, por uma série de mediações
em que dialoga com autores e obras
de referência, utiliza o mesmo tipo de
análise para a memória coletiva.
Do seu percurso, é importante
destacar a relação que faz entre o
que chama memória exercida e o
esquecimento, falando de abuso de
memória e abuso do esquecimento,
como dois extremos indesejáveis,
para realçar a dimensão ético-política do dever de uma justa
memória. Nesse sentido, Ricoeur
dirá que tanto o trop como trop
peu de memória revelam e relevam
de um deficit de crítica 10.
Paul Ricoeur explora a posição freudiana sobre
o recalcamento de recordações traumáticas
que são substituídas por comportamentos de
repetição. Este comportamento concretiza-se na recusa de olhar para a ferida e para
9 É importante ter em linha de conta que, sendo o fio do livro La mémoire, l’histoire, l’oubli a natureza da nossa representação do
passado, o quoi da memória, a sua dimensão objetal, ligada à intencionalidade da consciência, é absolutamente fulcral.
10 É a Freud – nomeadamente as suas obras de 1914 e 1915, respetivamente, Rememoração, Repetição, Perlaboração e Luto e
Melancolia – que Paul Ricoeur vai pedir de empréstimo os conceitos-chave para a abordagem prática da memória, isto é, da
memória exercida.
por: Fernanda Henriques
237
0237
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
o trauma, implicando a
passagem à ação repetitiva
para que não se recorde aquilo
que aconteceu e nos fere. No
mesmo contexto, apropria-se,
igualmente, da ideia freudiana
da impossibilidade de se
esquecer um objeto perdido,
situação que determina uma
fixação que impede que cada
sujeito se liberte do objeto
que perdeu e faça o seu luto
- ou seja, separe o seu eu do
objeto perdido -, para poder
partir para novos investimentos
afetivos. Em ambos os casos,
estamos perante uma estrutura
de comportamento rígido,
não criativo, nem realizador.
lembrança e a narrativa das
histórias do passado do ponto
de vista do outro também
implicado. Esta ligação ao
perdão, prende-se com a
posição global de Ricoeur
sobre a temática. Assim,
perdoar não é esquecer.
Perdoar é, antes, destruir uma
divida que bloqueia e impede
um desenvolvimento criativo,
porque “[…] o perdão dirige-se não aos acontecimentos
cujas marcas devem ser
protegidas, mas à dívida cuja
carga paralisa a memória e,
por extensão, a capacidade
de se projetar de forma
criadora no porvir” (2005: 39).
Com base na posição de
Freud, Paul Ricoeur vai analisar
certos fenómenos sociais –
nomeadamente, celebrações
e comemorações, que
exaltam uns acontecimentos
esquecendo outros – para,
por analogia, falar de memória
recalcada ou memória
manipulada. Em qualquer
dos casos, fica por sarar uma
ferida social ou fica por saldar
uma dívida de memória.
2. MEMÓRIA,
HISTÓRIA E
IDENTIDADE
Será a partir do tema do
perdão que Paul Ricoeur
procurará acercar-se de um
uso crítico da memória que
representa, simultaneamente, a
superação da falta de memória
ou esquecimento excessivo
e do excesso de memória,
permitindo o trabalho da
0238
238
CIG
Tendo em conta o que
acabou de ser referido,
importa agora ver como Paul
Ricoeur articula Memória e
História e, no quadro desta
relação, como pensa a
identidade.
Como já se disse, para ele,
a Memória é a matriz da
História, mantendo ambas
uma relação de potenciação:
a Memória serve a História e
esta, por sua vez, consolida
e perpetua uma memória
determinada, ou melhor,
legitima uma certa memória,
escamoteando (recalcando)
outras memórias possíveis,
dado que o passado não é um
dado morto, mas um potencial
de novas explorações.
Recorde-se, a este
propósito, a citação
feita na introdução
desta proposta, onde
Ricoeur afirmava que
“[…] a memória imposta
é assegurada por uma
história autorizada,
uma história oficial,
uma história que é
apreendida e celebrada
publicamente. Com efeito,
uma memória exercida é
uma memória ensinada
no plano institucional.”
É aqui que reside a questão
fundamental para se
compreender a necessidade
de se construir uma memória
crítica que não cometa a
injustiça de ‘apagar’ coisas
e ideias importantes do
passado, nem perpetue um
ponto de vista único sobre ele
e, assim, acabe por destituir
a possibilidade de outras
perspetivas (memórias), tornando
o passado encerrado, fazendo
do passado uma tradição morta.
Sobre Memória e História
Ensinada, ver o capítulo
“Reposicionando Mulheres
e Homens na História
Ensinada”, deste Guião.
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
Contudo, há uma outra
consequência não menos
Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é
negativa que a precedente que
responder à questão : quem fez tal ou tal ação ? quem é o seu agente
se relaciona com este trop de
ou o seu autor ? […]
memória de um tipo e trop peu
A resposta só pode ser narrativa. Responder à questão ‘quem’?, […], é
contar a história de uma vida.
de memória de outro: trata-se
da problemática da identidade
Paul Ricoeur, 1985: 355.
que, como se sabe, em Paul
Ricoeur está indelevelmente
ligada ao tempo, por ser
concetualizada como identidade de se construir uma memória
é de determinação, mas sim
narrativa.
crítica ou uma justa memória.
de relação possibilitante e de
condicionamento mútuo. Não há
A ligação da identidade ao
O grande inspirador de Paul
uma simetria direta entre passado
tempo está nela incrustada
Ricoeur na análise deste tema
e futuro. Isto supõe, dirá Paul
desde o seu aparecimento
é Reinhart Koselleck, através
Ricoeur, que é necessário superar
no pensamento ricoeuriano,
das suas categorias de espaço a ideia de que o passado é algo
tendo surgido – na sua dupla
de experiência e horizonte de
fixo, imutável, completamente
dimensão de identidade pessoal expectativa, para referenciar
dado. Pelo contrário, diz:
e de identidade coletiva – nas
a relação humana com o
“é preciso reabrir o passado,
conclusões de Temps et récit
tempo histórico. É através
fazer viver nele potencialidades
(ver texto em caixa).
destas meta-categorias que
não realizadas, bloqueadas, isto
Ricoeur interpretará a condição é, massacradas” (1984: 313).
Abordar a questão da
histórica da humanidade
identidade através da
porque são elas que exprimem
Por outras palavras,
articulação entre narrativa e
o modo como ele tematiza a
somos seres afetados pelo
temporalidade corresponde
relação entre passado e futuro
à explicitação da dimensão
na constituição do nosso ser
passado e essa afeção
de fragilidade constitutiva do
e do fazer da História. Há uma
marcará o nosso futuro.
tema da identidade. Em La
articulação entre o futuro e o
Todavia, tal afeção não é
mémoire, l’histoire, l’oubli,
passado, ou seja, cada futuro
uma marca indelével ou
retoma-se este ponto de vista
tem um passado próprio.
da fragilidade da identidade,
um destino. É necessário
Contudo essa articulação não
agora no quadro da memória
e da história, como o autor o
reitera (Ver texto em caixa).
É preciso dizer que a primeira causa da fragilidade da identidade é a
“
”
“
3. A COMPLEXA
RELAÇÃO ENTRE
PRESENTE, PASSADO
E FUTURO
Neste ponto da análise, urge
perguntar pela possibilidade
sua difícil relação com o tempo. Trata-se de uma dificuldade primária
que justifica precisamente o recurso à memória enquanto componente
temporal da identidade em conjunção com a avaliação do presente e
a projeção do futuro. [Por isso] o centro do problema é a mobilização
da memória ao serviço da busca, do pedido e da reivindicação da
identidade.
”
Paul Ricoeur, 2000: 98.
por: Fernanda Henriques
239
0239
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
trabalhar o passado como espaço de
experiência de maneira a transformá-lo numa tradição viva exercendo o
presente como iniciativa, reabrindo-o
e desocultando nele outras
possibilidades e direções. Neste
quadro, o futuro é um horizonte de
expetativa, um pas encore, mas há
um trânsito entre futuro e passado.
Nessa medida, os horizontes de expectativa
não devem ser puramente utópicos sem
qualquer enraizamento ou ressonância no
passado. Assim, compete ao presente como
iniciativa abrir a capacidade de investigarmos
o passado no sentido de libertarmos as suas
potencialidades não realizadas e mesmo
bloqueadas e, a partir delas, configurarmos
novos horizontes de expectativa.
a) A memória critica e a possibilidade
de uma abordagem filosófica não
discriminadora
Para além de servir claramente para a
abordagem do ponto “Pensamento e memória
– responsabilidade pelo futuro”, esta perspetiva
ricoeuriana pode ajudar também a fazer
uma abordagem deste e de outros temas
programáticos que não seja enviesada do ponto
de vista do sistema sexo-género.
Dois exemplos:
A questão do excesso de memória ou
do esquecimento que apaga muitas
possibilidades do passado, permite acentuar
como a ‘memória ensinada’ em filosofia
tem sido penalizadora das mulheres porque
silencia ou minimiza o contributo das mulheres
para o desenvolvimento da cultura e da
história e desfaz a própria possibilidade
de algumas interrogações que interessam
0240
240
CIG
vivamente aos Estudos de Género poderem
constituir-se como temas pertinentes e
relevantes. Como já foi referido na introdução
deste capítulo, tal é o caso, por exemplo, das
questões antropológicas que, simultaneamente,
ignoram a existência de dois sexos e
discriminam o sexo feminino. Esta situação,
transformada em memória ensinada, é uma
dimensão fundamental do olhar assimétrico que
todas as sociedades têm sobre as mulheres
e sobre tudo o que está tradicionalmente
ligado ao feminino, Nesse sentido, a questão
antropológica é um dos temas filosóficos que
mais necessita de ser desconstruído, pondo
fim a um único ponto de vista sobre o assunto
que, assim, aparece como natural. Aqui é um
dever de justiça criar uma memória crítica,
desocultando novas memórias possíveis.
E o que dizer da ‘tarefa de se ser no mundo’
das mulheres neste contexto? Poderão
as narrativas da história da filosofia e as
da cultura em geral ajudar as mulheres
a ter a possibilidade de se construírem
como identidade – tanto individual, como
coletivamente – em termos de equilíbrio
humano e de positividade ou, pelo contrário,
essas narrativas apenas lhes permitem
conceber-se como o segundo sexo, para usar
o termo cunhado por Simone Beauvoir? Não
parece possível responder afirmativamente a
esta interrogação, na medida em que parece
pacífico aceitar que o olhar transmitido sobre
o feminino, desde a de macho incompleto, de
Aristóteles, até à de inveja do pénis, de Freud,
não só não considera haver uma simetria
entre o masculino e o feminino, tomando
sempre este como derivado daquele, como
conjuga o feminino em termos de natureza, de
sensibilidade e de emoção, apontando estas
dimensões como secundárias em relação às
de cultura, de intelectual e de racional que
aparecem sempre ligadas ao foro do masculino.
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.4.2.
Racionalidade e verdade
O
s temas programáticos da
“plurivocidade da verdade” e da
“Necessidade contemporânea
de uma racionalidade prática
pluridisciplinar” podem ter múltiplas leituras.
Uma delas pode advir do debate hermenêutico
sobre a questão da verdade e outra do debate
contemporâneo acerca da fragmentação da
razão. Ambas poderão proporcionar aberturas
para as questões de género.
1. A QUESTÃO DA VERDADE NA
PERSPETIVA HERMENÊUTICA
As diferentes perspetivas hermenêuticas deslocam
a questão da verdade da sua clássica definição de
‘adequação’ para novos quadros de compreensão,
abrindo para a perspetiva da plurivocidade e
da historicidade. A verdade é uma aventura
humana, talvez a aventura humana, tomando-se o conceito de aventura na aceção múltipla
de trabalho e risco, porque supõe a implicação
de cada sujeito e porque se abre sempre a
um fundo de não saber (ver texto em caixa).
Se nos centrarmos num Hermeneuta, Paul
Ricoeur, ele recorrerá a uma dupla metáfora para
caracterizar a sua conceção de verdade: a de
“elemento” (milieu) e a da “luz”.
A metáfora da “luz” coloca clara e decididamente
a questão da verdade no interior do jogo racional
luz-sombra ou transparência-opacidade, ficando
claro que a questão da verdade se dá num jogo
entre saber e não-saber.
A metáfora do “elemento” possibilita que se
relacione a verdade quer com o espaço, quer
com o tempo. O processo argumentativo de
Ricoeur, a este nível, vai fazer-se pela exploração
da expressão, “espero estar dentro da (dans)
verdade” (1955: 58), sendo o dans que dá figura
à metáfora da verdade como elemento. Assim
pensada, a verdade não é uma realidade a
conquistar, quer essa realidade assuma a forma
da dádiva, quer a de um horizonte em relação
ao qual se caminhe, porque, em qualquer das
situações, ela figuraria sempre como exterior ao
processo de ser incorporada racionalmente, e
“
A verdade hermenêutica toma sempre a forma de uma resposta, resposta à questão que trabalha o
intérprete e que o conduz a interpretar um texto. (...) Há um investimento constitutivo do intérprete
no que quer ser compreendido. Não existe verdade em si se se tomar por isso uma verdade independente das questões e das expectativas do ser humano. A luz transportada pela verdade desenha-se,
necessariamente, sobre um fundo de obscuridade, a da finitude à procura de orientação.
”
Jean Grondin, 1993: 200.
por: Fernanda Henriques
241
0241
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
isso, essa exterioridade da verdade, é uma das
determinações que Paul Ricoeur quer afastar
totalmente, na medida em que, pela mediação
dessa recusa, ele pode eliminar, ao mesmo
tempo, a conceção de verdade como unidade
realizada.
Por outro lado, para Paul Ricoeur, a questão da
verdade, como aventura humana, oscilará entre o
pessoal e o universal (ver texto em caixa).
“A pesquisa da verdade (...) é ela própria desenvolvida entre dois pólos: por um lado, uma situação pessoal, por outro, uma intencionalidade sobre
o ser. Por um lado, eu tenho algo muito próprio a
descobrir, algo que mais ninguém a não ser eu tem
a tarefa de descobrir; eu tenho uma posição no ser
que representa um convite a pôr uma questão que
ninguém pode colocar em meu lugar; (...). E, contudo, por outro lado, procurar a verdade quer dizer
que aspiro a dizer uma palavra válida para todos,
que se destaca do fundo da minha situação, como
um universal; (...).
”
Paul Ricoeur, 1985: 54-55.
Nesse quadro, a verdade equipara-se a uma
resposta também encontrada pessoalmente e,
por isso, de imediato, coincidiria com a absoluta
diversidade e pluralidade. Mas não pode ser
assim, porque a organicidade racional o não
permite. A verdade, como a razão (ou como
razão), é desejo de unidade e daí a definição de
um campo semântico de ambiguidade recolhido
na metáfora do elemento. “Espero estar na
ou dentro da verdade”, isto é, espero que a
implicação do meu ser, no sistema pergunta-resposta que constitui o processo de pesquisa
da verdade, tenha como correspondência a
participação na dinâmica da própria realidade e,
portanto, a resposta pessoal encontrada possa
entrar na comunicação intersubjetiva.
0242
242
CIG
A pesquisa da verdade é, então, como já se
disse, trabalho e risco ou, dito de outra forma,
uma tarefa comprometida com a humanidade
e com a realidade. E, além disso, a pesquisa
da verdade fica vinculada ao sistema dinâmico
teoria-prática que, por um lado, coloca o
conceito de verdade na encruzilhada de duas
direções – o campo da objetividade do saber
e o campo ético da ação – e, por outro, o
condena à figura processual de ‘tensão’ entre a
unidade e a multiplicidade.
Esta posição corresponde à preocupação
de subtrair os campos do saber e do agir à
influência das esferas do poder e da violência
que, contudo, as ameaçam de dentro. Por isso,
Paul Ricoeur defenderá a ideia de círculos de
verdade que, em momento nenhum, poderão
ser tomados numa estrutura hierárquica.
A afirmação de uma verdade como unidade
realizada só pode emanar de uma instância
de poder e nunca da instância de saber e da
reflexão. Neste plano, apenas tem sentido
a comunicação intersubjetiva ao nível dos
processos argumentativos. A única força
consentânea com a dignidade da verdade é a
força das razões que, na figura dos argumentos,
se exibem como momentos de uma pesquisa
autêntica.
2. A LIMITAÇÃO DO PODER DA
RACIONALIDADE ILUMINISTA
E O VALOR DAS DIFERENÇAS
O século XX, sobretudo na sua segunda
metade, viu surgir várias críticas à racionalidade
iluminista pelo seu caráter totalitário, pondo-a
em questão como potência fundadora do
saber e do agir. Mal ou bem, com mais ou
menos controvérsia, assume-se que o conjunto
dessas críticas pode ser coberto com o
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
A perspetiva sobre a verdade como ‘tensão’ significa
dizer que o ‘conflito’ é constitutivo da interpretação e que
qualquer atividade humana tem como correlato uma certa
dimensão de opacidade em si mesma insuperável. Daí que
a metáfora do elemento, que a expressão “espero estar na
ou dentro da verdade” explicita, corresponda à inscrição
da verdade na finitude humana, levando-a a extrair o seu
valor da experiência que cada um faz de participar nela.
chapéu designado como
pós-modernidade e tem,
certamente, como um clássico
de referência Jean-François
Lyotard (1979). Para a
perspetiva pós-moderna, a
racionalidade perdeu o poder
de crítica e de emancipação
que as Luzes lhe haviam
reconhecido, questionando,
no mesmo gesto, os conceitos
clássicos de verdade e de
transformação ou progresso
da humanidade, cuja
compreensão fica condenada
a mover-se numa errância
contínua em que cada suposto
novo é, no fundo, apenas a
repetição da mesmidade do
sistema.
A que fica, então, reduzido o
pensar neste quadro?
Se nos ativermos ao ‘pós’ de
pós-modernidade, ficaremos
perante uma designação cujo
locus é referência a um outro
de si, uma vez que se classifica
a si próprio de pós. É, portanto,
um lugar outro relativamente a
uma determinação específica
e tomada como referencial
de sentido seguro que é a
modernidade, assumindo-se,
por isso, de certa forma, como
um não-lugar ou uma utopia.
A pós-modernidade é, assim,
um lugar-tempo descentrado,
deslocado de um outro – a
modernidade – cujo tonus
denuncia e que não quer
ocupar nem ser.
Tal é, também, o sentido
tradicional na nossa cultura
das obras-utopia, que foram
emergindo nos seus diferentes
momentos históricos. Cada
uma à sua maneira, todas
essas obras assumiram a dupla
característica de denúncia e de
recusa de uma situação cultural
específica e de busca de um
outro modo de ser. Eram, por
esse motivo, alimentadas por
uma racionalidade prospetiva,
aberta à possibilidade
da reconstrução e da
transformação da realidade.
Uma racionalidade que, para
além de tudo, se determinava
como promessa, na medida
em que as utopias eram esses
mundos possíveis de vir a ser,
mas sempre num topos outro,
diferente, diferido. Promessa,
contudo, ou seja, horizonte
possível de se tornar existente
e que, por essa razão, podia
configurar dinâmicas de
transformação.
A este nível, a pós-modernidade, como símbolo
da deslocação e da
não-centralidade, pode
funcionar fecundamente,
dando visibilidade a todos
os lugares do espaço e
pela força da descentração,
retirar ao poder, sob todas
as formas, o lugar central
de discurso dominante e
verdadeiro. O estilhaçar do
centro, transportado pelo pós
da pós-modernidade, pode
ser o anúncio da possibilidade
do diálogo entre as diferenças
de todos os tipos.
por: Fernanda Henriques
243
0243
GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
PROPOSTAS
3. APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS
A ABORDAGENS NÃO
DISCRIMINADORAS
As considerações teóricas feitas no ponto
anterior poderão ser utilizadas numa
perspetiva em que se tenha em consideração
a variável sexo/género.
Exemplos possíveis:
Articulação das ideias de ‘memória crítica e
dimensão ética da verdade’ para convocar
a necessidade apresentar interpretações
diferentes sobre os temas, mesmo
que essas interpretações não sejam as
canónicas. Nomeadamente, fazer aparecer
aqui perspetivas teóricas sobre as mulheres
e o feminino que desconstruam ideias
estereotipadas. Mas, sobretudo, criar a
consciência de que tem de se ler e trabalhar
textos novos, textos com perspetivas
diferenciadas e textos de áreas teóricas
diferentes sobre as temáticas, no sentido
de evidenciar que uma racionalidade só
poderá ser suporte da nossa vida social
se for pluridisciplinar e se for integradora
das muitas diferenças que constituem o
tecido social, desde os valores culturais às
diferenças de religião. A ideia da verdade
como ‘tensão’ entre saber e não saber e
como ‘projeto humano’ pode ser explorada
no mesmo sentido anterior, obrigando ao
reconhecimento da ideia de ‘tolerância’
não como um mal que temos de aceitar,
para sermos caridosos, mas sim como algo
próprio da nossa finitude e do fundo de
ignorância em que sempre nos movemos.
Há que ter em atenção que se, afinal, falo
o meu dialeto num mundo de dialetos,
estarei também consciente de que ele não
é a única língua, mas antes um dialeto entre
muitos outros. Se professo o meu sistema
de valores – religiosos, estéticos, políticos,
étnicos – neste mundo de culturas plurais,
terei também uma consciência aguda da
historicidade, contingência, limitação de
todos estes sistemas, começando pelo
meu, como sublinhou Gianni Vattimo (1994).
Na verdade, o estilhaçar do centro tem como correlato uma
dupla situação positiva: por um lado, faz tomar consciência
de que cada um de nós ocupa apenas uma posição entre
muitas outras, e, por outro, dá legitimidade às vozes
plurais, locais, em suma, à diversidade como valor.
Por essa via, ele pode constituir-se como o anúncio da
necessidade do diálogo entre as diferenças e originar,
como consequência, rearrumações dos olhares teóricos que
tornem visíveis os velhos e discriminadores paradigmas do
pensar. Esta convicção, de que a valorização das diferenças
enquanto tais, ao significar a derrota da arrogância da razão
totalitária e imperialista, pode potenciar a configuração
de uma racionalidade mais aberta e integradora.
0244
244
CIG
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
PROPOSTAS
Se se criar a ideia de que a abertura ao
diferente, à alteridade, é dimensão de
cidadania, poderá ter-se como referência,
por exemplo, a questão das mulheres
migrantes e dos conflitos sofridos por elas
na necessidade de se incorporarem numa
cultura diferente e que, à partida, mantém
um olhar de superioridade em relação à
sua. Será importante erradicar a ideia da
separação entre a busca da verdade como
um processo meramente teórico e perceber
a exigência que o pensar tem de se
entretecer com a ação para poder sustentar
e legitimar a transformação como possível.
Transformação, também, ao nível do próprio
pensar denunciando as suas raízes muitas
vezes discriminadoras, como, por exemplo,
quando toma o neutro, o objetivo e o universal
abstrato como normas do saber e do ser e
exclui, como marcado ou particular, todo o
contextual e toda a diferenciação, alimentando
a formação de campos ou perspetivas
teóricas marginais.
por: Fernanda Henriques
245
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
6.5.
Notas Finais
O
s diferentes percursos teóricos
e pedagógicos que foram
sendo apontados ao longo do
presente texto são sugestões
de trabalho possíveis e, sobretudo, abertas,
para que cada docente se possa sentir capaz
de as protagonizar a partir da sua formação
específica e dos seus hábitos de trabalho.
0246
246
CIG
Por outro lado, tais percursos resultam
de uma já longa experiência de docência
da filosofia, não sendo, portanto, meros
esquemas teóricos pensados de uma
forma desligada da sua viabilidade de
uma prática letiva.
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRÁTICAS l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
RECURSOS
Recursos para operacionalização
das propostas
A) ABORDAGEM INTRODUTÓRIA À
FILOSOFIA E AO FILOSOFAR
CHICAGO, Judy (1974-1979), The Dinner Party
disponível em https://www.brooklynmuseum.
org/exhibitions/dinner_party (consultado em 7de
dezembro de 2015)
FERNANDES, Sara (2000), “Da Ética à Religião: Paul
Ricoeur e a Antígona de Sófocles, Philosophica 16,
Lisboa, pp. 103-115.
C) A AÇÃO HUMANA - ANÁLISE E
COMPREENSÃO DO AGIR
BEAUVOIR, Simone (1947), Pour une morale de
l’ambigüité, Paris, Gallimard, 1947. Para uma
moral da Antiguidade, local, Editora.
REFERÊNCIAS PARA VER A OBRA DE
DIFERENTES PERSPETIVAS:
Judy Chicago’s Dinner Party opens at the Brooklyn
Museum, [em linha] disponível em http://www.
youtube.com/watch?v=3X6ZsumBiuA (consultado
em 7de dezembro de 2015)
Judy Chicago’s Dinner Party, imagens da instalação
permanente, [em linha] disponível em http://www.
youtube.com/watch?v=N0REjUIBgDg (consultado
em 7de dezembro de 2015)
Judy Chicago, página web sobre autora [em linha]
disponível em http://www.judychicago.com/
(consultado em 7de dezembro de 2015)
B) APOIO À ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DA
TRAGÉDIA E POSSÍVEL DE ARTICULAÇÃO
COM OS TEMAS PROGRAMÁTICOS
SANTOS, José Trindade (1995), “Antígona. A mulher e
o homem”, HVMANITAS, Vol. XLVII, pp. 115-138.
RICOEUR, Paul (1990), Soi-même comme un autre,
Paris, Seul.
D) OS VALORES - ANÁLISE E
COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA
VALORATIVA
HENRIQUES, Joana Gordão e ROCHA, Daniel (2015),
‘São portuguese, são muçulmanos’, Público, 8
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por: Fernanda Henriques
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO
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