Título Original
Mais Outra
Copyright Lica Cecato, São Paulo, 2014
Reservam-se os direitos desta edição à:
GIOSTRI EDITORA LTDA.
São Paulo - SP - República Federativa do Brasil.
Impresso no Brasil
ISBN: 978-85-8108-631-6
CDD: B869-3
Editor Responsável
Editor assistente
Assistente editorial
Capa
Fechamento de Capa e Diagramação
Idealização e Produção
Revisão final de texto
Alex Giostri
Fábio Costa
Bruna Miwa
Flávio Morais
Karolyna Papoy
Amalia Tarallo
Giostri Editora Ltda.
Cacato, Lica
Mais Outra
1ª Ed. São Paulo: GIOSTRI, 2014
1 - Literatura brasileira - crônicas
1º título: Mais Outra
1ª Edição
Giostri Editora LTDA.
Giostri Editora
Dedico este livro ao Grupo Tozan, pelo apoio e carinho e para Amalia
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Vila Mariana - SP
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Tarallo, sem a qual eu nunca teria tido coragem de abrir meu baú.
Sumário
Prefácio..........................................................................9
Introdução....................................................................11
1 As pessoas antes dos capítulos..............................16
2 Capítulos depois de pessoas Capítulos que contêm
pessoas......................................................................43
KRAPP’S LAST TAPE..................................................79
Ono no Komachi
, Japão, ca. 825 ~ 900........85
Glossário......................................................................90
Agradecimentos...........................................................96
Álbum..........................................................................97
Prefácio
O tempo é o que se faz dele
Este é um livro sobre pontes e como o pensamento pode
trabalhar para construí-las com o propósito de diminuir distâncias.
Este é um livro sobre o tempo, a ausência do tempo e o segundo que separa o sonho do mundo.
Este é um livro feito de páginas duplas, de duplas imagens,
de uma só mente.
Este é um livro sobre os elementos primordiais que fazem
com que o mundo e nós mesmos pertençamos ao sumo fator
unificador: a Natureza.
Este é um livro de múltiplas vozes, onde o silêncio encontra
seu reino imperial.
Este é um livro de contradições à míngua, que se transformam na busca essencial, que leva à sede inextinguível de conhecimento.
Este é um livro de sussurros ao vento, que, como o céu, unifica e protege a todos.
Este é um livro de lições ensinadas, aprendidas e lições que
ainda virão, como uma porta aberta numa noite breu.
Este é um livro escrito por uma mulher, uma artista, uma
compositora, uma cantora, uma pintora, uma fotógrafa, uma
linguista... uma poeta.
Este livro é um tesouro para ser guardado, mas também é
um presente para se dar, como se fosse seu próprio trabalho.
Este é um livro de paz.
Paolo Maria Noseda
Introdução
Sou artista da área de música e viajo o Japão com meu violão
debaixo do braço, cantando e tocando de norte a sul do país.
Falo e escrevo a língua japonesa e tenho amigos que não só
falam e escrevem português, mas que conhecem profundamente o Brasil e um idioma em particular (a música popular brasileira, MPB), tomam caipirinha e comem moqueca.
Dito isso, adiciono que estou escrevendo do trem-bala
Shinkansen Hayabusa, que nos leva, rápido e silencioso, de Hachinohe a Tokyo, no charme do design verde-rosa. Shinkansen
vestido de escola de samba da Mangueira. A cabeça da gente é
uma mistura danada e eu adoro me misturar, viver o Japão com
paixão, de maneira sentimental.
Há três anos eu não vinha, sendo a última vez um pouco
antes da tsunami. Minha tour pelo Japão começou pelo norte e
nordeste, de onde estou voltando agora. Estive em Ibaraki-ken,
Hitachi, de onde se vê Fukushima do lado oposto, na outra margem. Depois de Ibaraki-ken, fui a Sendai e Hachinohe. O ponto
não é a geografia, mas essa foi uma das partes mais atingidas
pela tsunami e pelo estrago nuclear de Fukushima, que continua
a fazer danos nesse silêncio sem sentido que permite a Tokyo
receber os Jogos Olímpicos em 2020.
que ficou em pedaços, que foi destroçada com mais de 25 mil
mortos. Desses tantos mil, conheci de perto alguns que perderam tudo: família, casa, loja, trabalho, cidade, escola, hospital.
M a is O utr a
Existe pouca euforia sobre os Jogos nessa região do Japão,
retângulos, fatias de vida, onde, corajosos, trabalham para uma
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Hoje moram numa não terra cheia de não casas, pequenos
reconstrução do futuro, onde for, como for, com afinco e dedi-
Minha vivência com o Japão começa na infância, em São
cação. Os japoneses sabem sorrir. Vi alguns programas de TV,
Paulo, cidade feita pela maioria de imigrantes, e nós, pequenos
com camponeses ao redor da área de Fukushima, mostrando
frutos dessa mistura, nos frequentávamos, eu comendo sobá,
como tudo secou, como a terra, que antes dava frutos e gerava
tipo de macarrão feito de grão sarraceno, e meus amiguinhos ja-
trabalho, se tornou uma terra seca e árida, uma terra de onde só
poneses comendo pastasciutta, macarrão italiano! Desde pequena
se quer fugir, mesmo que não se tenha para onde ir. Nos res-
convivi com japoneses.
taurantes, evitam-se certos peixes e algas, recebo e-mails, tweets,
Meus padrinhos Corsina Corsini e Andreino Melani mora-
SMSs de amigos do sul do Japão, pedindo que eu preste atenção
vam em Mogi das Cruzes, cidade da região metropolitana de
na comida, que eu evite isso ou aquilo, mas é difícil. O ar não tem
São Paulo, onde eu passava as férias. Minha madrinha adorava
fronteiras. Tem mais: caiu na água é pra se molhar, mesmo que for
as lojas japonesas, que tinham bonequinhas, bolsinhas, guarda-
radioativa. Desculpem a ironia e o sarcasmo. Viajo sem medo.
chuvas, mas também objetos mais caros, imponentes e miste-
Sigo munida do meu broche contra a energia nuclear, de-
riosos para os olhos de uma garotinha italiana curiosa, que não
senhado por Yamaguchi, um amigo que no passado desenha-
compreendia, só olhava, pensando que fizessem parte da tradi-
va roupas para os Rolling Stones, mas que virou pacifista e há
ção oriental vivida em casa. Numa outra dimensão, nós também
muitos anos se mudou e vive em Hachinohe. Seu blog se chama
vivíamos o nosso pedacinho de terra longínqua; por exemplo,
PEACE-LAND.
aos seis anos, eu cantava em italiano para a grande família que
imigração japonesa no Brasil, além de participar um ano antes
um texto textura
de um show realizado pela proprietária da Blue Tree Hotels,
texto mater
Chieko Aoki, em São Paulo, junto à cantora Machiko Watanabe
um texto pintura
e Marina Elali, eu fui cantar no Japão. Uma viagem de ida e volta
texto pater
sem fim? O primeiro navio com imigrantes japoneses, depois
um texto padrão
de anos de tentativas de acordo entre os dois países, chegou ao
textosfera
Brasil dia 18 de junho de 1908, levou dois meses para chegar.
um texto gêmeo
Hoje levamos 24 horas. Sem palavras.
texto a 4 olhos
um texto para você
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um texto meu
Assim como mudaram as perspectivas de quem viaja, seja
M a is O utr a
Qual é o ponto?
para ir morar em outro país ou para visitar, mudaram os hábitos
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L ica Ce ca to
chorava a saudade da Itália. Em 2008, para o centenário da
trastes imensos, a começar pelo geográfico, o dos hábitos, cos-
ria. Os samurais tinham uma espécie de biógrafo, um secretário
tumes e o linguístico. Como é que isso pôde acontecer? Como
pessoal, chamado JISHI, que fazia um retrato escrito do que es-
pudemos nos misturar assim? Chanpon-bunka? Chanpon significa
cutava e via, com função similar à dos escribas no Antigo Egito.
mistura, bunka significa cultura. Cultura de mistura? Mistura de
Minhas fotos e textos aqui são uma espécie de registro, apesar
cultura? Fora a bravura do imigrante japonês e dos imigrantes
de não me considerar nem fotógrafa nem escritora. Visito o Ja-
todos que chegaram ao Brasil com sua bagagem e tiveram que
pão e estudo japonês há 32 anos. Considero um tanto bizarro
se adaptar a uma nova realidade, acho fundamental enxergar o
que mesmo o livro de viagens, em forma de diário, Oku No Ho-
charme do presente, isto é, no que essa mistura se tornou. Hou-
somichi, de 1689, do famoso mestre, considerado o maior escri-
ve sem dúvida uma integração à mentalidade, ao clima tropical,
tor de Haiku, Matsuo Bashô, tenha sido feito com poemas que
à ginga do brasileiro, tanto é que se toca cavaquinho e se canta
retratam a sua viagem junto aos seus discípulos e amigos poetas.
Villa-Lobos e Pixinguinha muito bem na Tokyo de hoje.
Minhas viagens ao Japão foram “autorretratadas” e são a leitura
Meus retratos não são para mim, quero abrir meu baú a essa
de uma alma brasileira, cigana, que olha, observa as mudanças
família-mundo e mostrar de modo espontâneo minha viagem,
sem julgar, procurando armazenar imagens, palavras, sensações.
convidando o leitor a viajar comigo. Fazemos nossa história
Hoje em dia há um certo “japonismo” em termos mundiais,
hoje, juntos. Sem ser choojin ou super-homem, superpessoa, de
é uma moda com visão muito superficial que, na maioria das
gente para gente, a relação Japão-Brasil em quadrinhos fotográ-
vezes, pode até deturpar e empobrecer o conteúdo de maneira
ficos e escritos. Termino essa introdução com um ditado popu-
geral, mas é uma tentativa de trazer o Japão para outras terras, de
lar japonês, uma kotowasa
se aproximar, e essa atração não é uma novidade. A cultura japo-
wa nasake”: viajar em companhia torna o mundo melhor, não é
nesa se difundiu muito nos últimos anos por todo o mundo, e só
necessário se preocupar, pois um tem o outro como companhei-
para citar uma curiosidade em termos arquitetônicos, em Vene-
ro, se ajudam e se tranquilizam, fazendo o caminho ficar mais
za, cidade em que moro, me encanto ao observar a arquitetura
ameno. Dividindo minha história de uma maneira MANGA,
de Carlo Scarpa (1906-1978), que viveu 15 anos no Japão e aca-
continuo viajante, mas não mais sozinha.
, tabi wa michizure yo
bou falecendo em Sendai, ou, ainda mais recente, a reforma do
assinado:
Palazzo Grassi por Tadao Ando. No caso do Brasil, pensando
ideogramas da palavra JISHI: samurai (homem templo) +
nesses mais de cem anos do início da imigração japonesa e em
como o povo japonês se adaptou ao país e vice-versa, me parece
historia
JISHINJISHI a autobiógrafa
M a is O utr a
L ica Ce ca to
e os meios com os quais a pessoa registra sua viagem na memó-
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14
incrível, pois somos o oposto da bola do mundo, temos con-
do fundador da macrobiótica no mundo, George Osawa, e o
professor Michio Kushi, que vivia nos Estados Unidos, para palestras sobre macrobiótica e sua cosmogonia. Com eles comecei a ampliar minha visão, estudar e me apaixonar pelo mundo
oriental.
1
As pessoas antes dos capítulos
EVA FURNARI
Nasceu em Roma, Itália, chegou a São Paulo com dois anos e
vive na capital paulista até hoje. Seus livros já foram publicados
Escrever para mim é um exercício que faço desde menina. As
no México, Equador, Guatemala, Bolívia e Itália, ganhou vários
palavras estão todas lá, como as notas de uma música que ainda
prêmios como desenhista, ilustradora e escritora, foi professora
não foi composta. As letras nascem como um KOOAN zen,
de artes no Museu Lasar Segall de 1974 a 1979 e é sua também
uma experiência vivida. Depois dos primeiros choques culturais,
a Bruxinha do jornal Folha de S. Paulo. Eva é antes de tudo uma
tudo vai se amainando, se aquietando, mas o meu encontro com
grande amiga, mas foi a primeira pessoa a acreditar no que eu fa-
o Japão foi tão intenso e é tão lindo, que a palavra nasce sozinha,
zia e pensava e o fez institucionalmente, pois me estimulou e me
se desencaverna, vem à luz, nasce, cresce e morre num segundo,
ajudou a arquitetar um ateliê para crianças em 1976, que mantive
com a velocidade do vento que faz as notas soarem numa flauta.
por dois anos, no Museu Lasar Segall, em São Paulo, com o qual
A palavra solta, se engatilha como um vagão de trem deslizando
ganhamos o prêmio de melhor atividade infantil do governo es-
a um destino. A palavra tem destino e direção e a minha, hoje,
tadual. Fazíamos atividades de teatro a pintura, usando liberdade
é para você que me lê. Não existe uma ordem nem cronológica
total de escolha, para trabalhar individualmente ou em grupo.
nem de preferência nas PESSOAS nem nos CAPÍTULOS.
Nossos encontros, desde que nos conhecemos até agora, são
Eva aprendi muitas técnicas, inclusive a mais difícil, que é reco-
Professor de macrobiótica, foi o responsável pela introdução
nhecer o humor dentro do desenho, e a coragem de improvisar,
da cultura japonesa na minha vida quando eu tinha 17 anos. Fui
de acreditar no que pode parecer utópico, e tentar realizar. Num
à inauguração de sua escola Musso, no interior de São Paulo,
dos livros da Eva está uma tradução minha do texto dela em
para onde ele levava professores de Aikido, músicos japoneses
japonês, que apesar de ter sido somente uma brincadeira, foi
que tocavam Kotô e Shamisen, e mesmo a senhora Osawa, esposa
publicada. Quando nos conhecemos, eu era uma adolescente
M a is O utr a
TOMIO KIKUCHI
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16
L ica Ce ca to
cheios de humor e amor, desenhávamos juntas, ríamos, e com
marginal, cheia de vontade e de ideias, e na época o marido da
comidas para mim, Oniguiri, Kimpira e muitas outras delícias.
Eva, o fotógrafo Hugo Gama, e ela, abriram as portas do que
Ela não me dava beijinhos e era severa na correção dos ideogra-
parecia fechado a sete chaves desde que nasci, e eu me sinto
mas, mas com o gesto amoroso de viajar quase duas horas por
agradecida até hoje. Quando os conheci, Eva estava grávida de
semana me trazendo comida, ela me fazia sentir mais do que
Cláudia Furnari, que acabou nascendo no mesmo dia, mês e
em casa. Hideko faleceu de câncer em 2005, um mês depois
hora que eu. O Paulinho, filho mais novo, é músico. Tutti buona
que a minha mãe verdadeira faleceu no Brasil por ictus cerebral
gente! La vita è bella!
e erro médico. Lá se foram as duas mães, uma ítalo-brasileira e
a outra japonesa. Amei igual. No dia 29 de novembro de 2004,
HIDEKO NAKAJIMA, YAMAKI NOBUE, KEIKO
Começo por Hideko, mãe de Keiko e Yoshiko Nakajima, em
dedicado a ela; isto é, declarei em voz alta que o show era para
arte, Yamaki Nobue, formada em Viena, Áustria, como con-
ela, minha amada Hideko. A acústica do local era tão boa que
certista de piano, e minha primeira amiga no Japão. Conheci a
toquei sem nenhuma amplificação. Hideko, sempre elegante,
família em 1983 em Veneza, na Itália, quando tinha começado
no fim do show aplaudiu e depois secretamente, discretamente,
a estudar a língua japonesa na Universidade Ca’ Foscari, onde
pediu em tom confidencial a Yamaki Nobue e a mim, irmãs
estudei até 1986, por quatro anos, até ir ao Japão pela primeira
de opostos do mundo em geografia e em estilo musical, que
vez e elas estavam me esperando no aeroporto. Hideko-sama foi
fizéssemos um concerto juntas. Nós, filhas obedientes, fizemos
primordial para a escrita a mão dos ideogramas e como alcançar
no ano sucessivo uma apresentação maravilhosa no teatro Kioi
o balanço e impulso corretos, legíveis e compreensíveis, mes-
Hall, em Tokyo, muito conceituado para música clássica e para
mo se escritos rapidamente. Escrevia cem vezes um ideograma
canto lírico. No repertório, Villa-Lobos e alguns outros com-
e ia mostrar a ela na esperança de um elogio, mas a resposta,
positores clássicos brasileiros, sugeridos pela minha prima-irmã
muitas vezes, era:
, ou seja, “não tem balanço”.
Suzette Ceccato, também concertista, filha do irmão mais velho
Ela foi exigente e maravilhosa. Falam da frieza dos japoneses;
do meu pai, Antonio Ceccato, que tocou na Sinfônica de São
pois, recém-chegada ao Japão, fiquei morando na casa da famí-
Paulo até velhinho. Meu avô paterno foi imigrado da Itália para
lia Nakajima por um mês, tratada como filha, depois fui morar
o Brasil nos anos 20, conheceu minha avó no navio e era maes-
sozinha numa assim chamada Mansion, que, ao contrário de uma
tro de música. Os filhos da Suzette não negam a linhagem, são
mansão, é uma kitchenette de 14 metros quadrados. A Hideko,
excelentes músicos, Sofia Ceccato, flautista e Mateus Ceccato,
todas as semanas, no sábado, preparava uma mochila cheia de
violoncelista. A vida é um círculo. Yamaki Nobue e eu oferecemos
M a is O utr a
num pequeno teatro ao lado da estação Harajuku, em Tokyo,
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L ica Ce ca to
NAKAJIMA
quatro meses antes de ela falecer, fiz um solo de violão e voz
o show à memória póstuma de Hideko Nakajima e somos muito
que posso. Adoro estar com eles e, para quem não sabe e conhe-
amigas ainda. No templo onde Hideko foi enterrada, na pedra
ce, Kamakura é a cidade do grande Buddha e onde tem início o
de sua lápide, que não se parece com as nossas porque são so-
Zen Budismo no Japão, é repleta de templos e jardins da mais
mente escritas em ideogramas em granitos ou mármores cinzas,
antiga tradição, e eu os deixo imaginar a paisagem, que não só é
estão os kanjis de suas três filhas, Yoshiko, Keiko e eu. La vita è bella.
bela entre colinas com muito verde e mar, mas é forte, sente-se
o gosto da história no ar e ainda por cima dá para ver o amado
STEFANIA BALDI SATOH, YUICHIRO SATOH
Monte Fuji. Simplesmente o máximo, a quarenta minutos do
Conheci a Stefania no primeiro dia de aula da escola de en-
centro de Tokyo. Stefania é não somente uma irmã para mim,
sino da língua japonesa Saint Joseph Friary, em 1986, no centro
mas o suporte da ponte que me liga ao Japão e ao Oriente. Eles
de Tokyo, em Roppongi. Sentamos juntas, ficamos amigas ime-
reservam para mim um quarto de tatami. Sem palavras. Através
diatamente e estudamos vários anos nessa escola até nos diplo-
dos olhos dessa pessoa estudiosa, inteligente e sensível de Siena
marmos. Acabei morando com ela e o marido em vários lugares
e de seu marido cientista, descendente de samurais, meu Japão
de Tokyo a Nagoya, Sapporo e Kamakura, seguindo a profis-
adquire um significado mais profundo.
campo de substâncias para o combate ao câncer. O fato de que
KO TANZAWA
eles me acolheram e acolhem no Japão, considerando a falta de
Através de Yuchiro Satoh, ainda nos anos 80, Stefania e eu
espaço e o preço exorbitante do metro quadrado, fez com que
conhecemos uma importante mentora da cultura japonesa, Ko
fosse possível minha estadia e, em consequência, a continuidade
Tanzawa, professora de ideogramas e do significado dos moti-
dos meus estudos. Stefania hoje é fluente em japonês falado e
vos gráficos nos kimonos,
escrito, em nível de tradução simultânea e escrita de japonês –
nas gravuras, como, por exemplo, tartaruga significa longevi-
italiano. Fora isso, também conseguiu aprender chinês. Falamos
dade, e assim por diante. Hoje a Prof. Tanzawa tem mais que
e escrevemos a língua japonesa, mas ela tem obviamente um
80 anos e ainda viajamos com ela para aprender. Uma mulher
nível superior ao meu, vivendo lá há quase trinta anos. Dividi-
feminina, diminuta, mas muito forte. Foi casada com um cien-
mos o mesmo amor e interesse pelo Japão e pela Ásia, viajamos
tista por muitos anos e tiveram filhos, mas ela nunca deixou a
juntas para Kompira, Naoshima, Kyoto, Vietnam, Malaysia, Sin-
carreira acadêmica, ensinou muitos anos na Toodai University,
gapura, Tainan, Taipei e por aí afora, visitando o que podemos
e é dona de uma curiosidade notável. Em 2012 fomos juntas a
de museus e teatros a templos e jardins. O casal hoje mora em
Taiwan estudar chinês e ela, então com 80 anos, vibrava ao che-
Kamakura, Gokurakuji, onde deixo meu violão e volto sempre
gar ao nosso curso intensivo, na universidade. Quanto temos a
M a is O utr a
MOYOO, nas sedas e cerâmicas,
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20
L ica Ce ca to
são do Yuichiro, cientista que faz pesquisa principalmente no
aprender que faz tão bem querer aprender? Quando estávamos
o impulso, como se cada carta fosse uma partitura contemporâ-
ainda no início do nosso estudo da língua e da cultura japone-
nea, uma composição musical de uma pessoa a outra, um mapa
sas, Tanzawa nos disse que se não cortássemos e costurássemos
compreensível somente entre duas pessoas. O fio da meada da-
um Yukata, espécie de kimono de verão, de algodão, nós nunca
quelas cartas, estava enrolado naqueles mapas de dois, naquelas
iríamos entender a importância da simetria e das proporções,
comunicações sem fio, onde a escritura é a legitimidade do con-
e assim, Stefania e eu, sem nenhum talento para costura, fize-
teúdo, onde quem escreve e quem lê usa os cinco sentidos para
mos a mão nosso Yukata e mais tarde compreendemos a razão.
captar um significado mais amplo do que as próprias palavras,
Tanzawa nos ajudou muito nos indicando leituras, conversando
um jeito de escrever que indica com precisão a intenção daque-
sobre tudo, viajando conosco para nos mostrar alguns desenhos
les quadros aparentemente abstratos. Não são. A escritura tem
na laca dos templos e das cerâmicas em museus, nos explicando
direção. Quando você escreve um poema ou um haicai para uma
o significado de cada motivo. Lembro-me do HANAIKADA,
pessoa, aquela pessoa sabe que é para ela. Talvez seja como os
um dos típicos motivos do templo zen Koodai-ji, da era Mo-
rolos de papel na exposição de Tokyo, mas é claro que a partir
moyama, do fim do século 16, em Higashiyama, perto de Kyoto.
do momento que eles se tornam obra, que viram públicos, que
Outra vez fomos as três a uma exposição em Tokyo, no museu
transcendem o tempo e o espaço, deixam de existir como dire-
nacional, Kokuritsu Bijutsukan, de cartas escritas a mão do tempo
cionais e se tornam universais. As pessoas que lerão o poema
dos samurais, eram rolos de cartas, metros de palavras. Sincera-
ou escutarão a composição melódica encontrarão um pedacinho
mente Stefania e eu não estávamos entendendo NADA. Meio
de si naquilo, se projetarão, talvez assim como eu, maravilhada
sem jeito, disse à Prof. Tanzawa que eu não estava entendendo
perante uma escritura que eu não entendia. Quem faz nascer
nenhum ideograma, e ela respondeu para meu espanto: “NEM
boniteza nas palavras não é o escritor, é o elo que existe entre
EU...”. Mas ela, que na época tinha 65 anos e era docente da
quem escreve e quem lê. Agora isso já está virando poesia, já
conceituada Toodai University, na minha cabeça, tinha que sa-
está virando música e nós, alquimistas safados, ficamos conten-
ber. A gente apanha para compreender as mensagens do Orien-
tes! Viva Ko Tanzawa e tudo o que nos ensinou e ensina!
TAKASHI HARA
guerreiro, de um maestro de chá à sua concubina, e diz a lenda
Em 1985, estava com minha mãe na estação Santa Lucia de
que eles se entendiam. Provavelmente tudo contava, o respiro
Veneza, Itália, e esperávamos uma amiga. Eu já estudava japo-
de quem escreve no momento de desenhar determinados ideo-
nês há três anos. Morei em Veneza por doze anos e o tempo
gramas pensando naquela determinada pessoa, contam o gesto,
continua sendo um mistério para mim, às vezes parece um ioiô,
M a is O utr a
palavras naqueles papéis eram direcionadas, de um samurai a um
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22
L ica Ce ca to
te. “Se oriente, rapaz!” – já dizia a canção do Gilberto Gil. As
às vezes um elástico, e na realidade não se entende por que ele
cidade construída na boca de um vulcão. Hasami é uma das ci-
aumenta e diminui como quer. No caso, como sinto agora, faz
dadezinhas de renome pela sua cerâmica. Foi muito interessante
muito tempo que tudo isso aconteceu. Estava tomando um
e a paisagem exótica, tipicamente oriental, do Oriente que se vê
capuccino com minha mãe e vejo esse japonês com cara de estar
retratado em quadros e fotos, com pinheiros nas colinas e fuma-
em apuros no telefone. Ofereci-me para ajudá-lo, como tantas
cinhas dos gêiseres. Quase todas as vezes que venho ao Japão
vezes isso já havia acontecido comigo, e ele aceitou.
nos vemos e tento ir tocar em Kumamoto e Fukuoka. Alguns
Hara é um sujeito particular. Estudou economia e se especia-
amigos são para sempre.
tais de loucos e velhos que já perderam a consciência. Na Itália,
YUKO SAKURADA
o que o preocupava é que ele tinha marcado um encontro com
Amiga de Stefania e de Yuichiro Satoh, teve uma galeria em
o famoso Dr. Basaglia, que acabou com os manicômios no seu
Yoyogi, Tokyo, que se chamava ARTESSE, onde me apresentei
país, e não conseguia nem entender nem se fazer entender pela
no Japão pela primeira vez em 1995. Yuko trazia arte contem-
secretária do tal célebre psiquiatra. Consegui fazer com que as
porânea italiana para o Japão e levava a japonesa para a Europa,
coisas funcionassem para ele e desde então continuamos a cul-
e ainda o faz. Toquei com o violonista Kohji Abe um repertório
tivar nossa amizade. Uma noite, quando fui acompanhá-lo ao
de chorinhos e não usamos nenhum microfone ou amplifica-
hotel, na hora de nos despedirmos no pátio, dei a mão a ele e
ção, pois a galeria tinha uma acústica ótima. Através da Yuko
TSCHUM VUSCH, num piscar de olhos o cara deu um salto
conheci Hiroyuki Nakajima, artista e shodoka, professor da arte
mortal para trás e voltou para o nosso aperto de mão. Esses
da escritura japonesa, usando pincel fudé
e tinta nanquim sumí
orientais são incríveis. No Ocidente, muitas vezes, os intelec-
. Acabei morando no ateliê dele em Chiba vários meses e nos
tuais não ligam para o seu físico e a tal máxima MENS SANO
tornamos amigos. Os dois falam perfeitamente o idioma italia-
CORPORAE SANO não funciona. O homem é feito de cabe-
no. Admiro Yuko por nunca ter abandonado sua profissão, que
ça, corpo e membros e todos mereceriam certa atenção, mas a
nem sempre é profícua, e ter continuado com determinação,
gente arranja mil maneiras de separar o que deveria ser um só.
coragem e originalidade no olhar. Artistas precisam de galeristas
e marchands como ela.
bonequinhas de Fukuoka e cartões postais de agradecimento,
fui a Fukuoka em 1995. Ele me levou a passeio em Kumamoto
CHIEKO AOKI
-ken, Asso San e lugares conhecidos pelas riquezas naturais,
Empresária das mais competentes, mulher fascinante e única,
cheios das famosas ONSEN ou SPAs naturais. Asso é uma
proprietária da rede de hotéis Blue Tree, tem sido uma referencia
M a is O utr a
Voltando ao Hara, em todos esses anos, depois de receber
25
24
L ica Ce ca to
lizou em management e planejamento arquitetônico, para hospi-
há anos para mim na cidade de São Paulo. Em 2001, a artista
em comemoração ao centenário da imigração japonesa no Bra-
Lenora de Barros e o marido, Marcos Augusto Gonçalves, jor-
sil e convidou a cantora japonesa Machiko Watanabe e Marina
nalista brilhante e bem-humorado, me convidaram para ir ao
Elali, além de mim. Festa! No ano passado, a mesma querida
show do Ryuichi Sakamoto junto a Jaques Morelenbaum, num
Chieko, em Tokyo, estava conversando com uma sua conhecida
tributo ao Tom Jobim que resultou no disco chamado CASA.
que lhe disse que tinha uma amiga que era música, brasileira e
Lenora, linda e carismática, foi circundada pelos jornalistas, e
que falava japonês. A moça que acabara de conhecer era Yuko
eu fui ao bar tomar um champanhe enquanto esperava o show.
Sakurada, que citei acima, e que estava tentando combinar uma
Notei essa senhora japonesa belíssima e começamos a conver-
performance e pintura do artista com quem trabalha, Hiroyuki
sar em japonês. Foi divertido, pois ela estava usando um tailleur
Nakajima, em São Paulo, e a brasileira a quem ela se referia era
verde Versace que reconheci. Ela ficou surpresa, mas para mim
eu. Vamos lembrar que Tokyo tem 25 milhões de habitantes?
era comum, vivendo entre Milão, Colônia e Rio, afinal, era a
Viva a Chieko Aoki! Viva a Yuko Sakurada e... Posso dizer um
tendência do momento, impossível não reconhecer e confesso
milhão de vezes? Viva a vida.
MARCO ANTONIO NAKATA
tões de visitas e a Chieko me deu o seu e me disse para ficar em
Nós nos conhecemos em Tokyo e fizemos juntos muitos
um de seus hotéis quando viesse a São Paulo, mas com a pressa
eventos culturais, shows em museus e teatros, lançamentos de
eu nem prestei muita atenção e vim a saber depois de quem se
livros e revistas, exposições, chegamos até a fazer um disco gra-
tratava. Foi bom termos nos conhecido informalmente. Quan-
vado ao vivo na Embaixada do Brasil em Tokyo. Seria uma lista
do o senhor Aoki ainda estava vivo, em cadeira de rodas, Chieko
imensa se tivesse que enumerar o que fizemos, tudo feito com
me pediu para que eu cantasse e tocasse violão para ele, na casa
esmero e com o máximo prazer.
deles. Dito e feito! Foi a única vez que encontrei o senhor Aoki.
Realizamos shows no Hara Museum Shinagawa, Teatro MIR
Quando vou a São Paulo, fico a maioria das vezes no Blue
e Caffe Emporium de Moscou, Auditorium Parco della Musica
Tree Paulista, onde sou tratada como rainha. No dia da festa
em Roma, só para citar a excelência dos eventos. Homem in-
para o senhor Aoki, me apresentaram Toru Iwasaki, pessoa afe-
teligentíssimo, sensível e charmoso, de grande cultura em arte,
tuosa e simples no trato, mas que vem de uma família de linha-
literatura, música e política, somente para citar alguns dos cam-
gem nobre, e é um grande profissional, dono da fazenda Tozan
pos de interesse, o Conselheiro Marco Antonio Nakata é for-
e produtor do Azuma Kirin, de molho de soja, shoyu, e pasta de
mado pelo Instituto Rio Branco. Atuou como diplomata nas
soja, misso, no Brasil. Em 2008 Chieko organizou um evento
representações do Brasil em Londres, Tokyo, Moscou e Roma
M a is O utr a
idêntica. No fim da conversa simpática, rápida, trocamos car-
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L ica Ce ca to
que Antonio Dias, meu marido na época, tinha um blazer de cor
e atualmente é chefe da Assessoria de Imprensa do Gabinete
à arte, algo que eu nunca teria conseguido sozinha. É com essa
do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. Temos um
maravilhosa bagagem amorosa que viajo. Herdei dessa família
príncipe na nossa diplomacia.
um passaporte com elementos fundamentais para conhecer países tão diferentes do nosso. Nos meus primeiríssimos anos de
BETTY LEIRNER
Europa, me apelidaram de Lua Branca e usei esse nome muitos
Desde a adolescência Betty se tornou minha grande amiga,
anos. Betty teve duas filhas, Lua, fotógrafa e performer e Lira,
uma irmã de corpo e alma. Saímos cedo do Brasil, quase jun-
Li Aurora, de quem sou madrinha e que é, por sua vez, artista
tas, para ficarmos até agora entre lá e cá, ela nômade-poeta, eu
multilateral e talentosa. De novo? La vita è bella!
ANTONIO DIAS
individual no MASP, “Squares of Light”, foi em 1978, quando
Poucos meses após nos conhecermos, decidimos começar a
ela era ainda menina. Em 1990 Jac, a irmã mais nova de Betty,
vida juntos na Alemanha, em Colônia, onde acabamos ficando
apresentou suas obras na Biennale di Venezia e veio junto com
23 anos. Antonio sempre respeitou meu amor pelo Japão e pela
seu namorado na época, José Resende, grande escultor de São
música, apoiou meus estudos e projetos, apresentou-me artis-
Paulo. Os pais, Fulvia e Adolpho Leirner, também vieram para a
tas e poetas incríveis como, por exemplo, Augusto de Campos
abertura. Eu estava separada do primeiro casamento e vivendo
e Haroldo de Campos, com quem pude dividir minha paixão
em Veneza há 12 anos. Eles me apresentaram Antonio Dias,
pela escritura, literatura e caligrafia japonesas. Adorava também
artista com quem acabei me casando e vivendo junto duran-
me encontrar com a Mitsuko, o Tomoshige, Electra e Geraldo
te muitos anos. Devo dizer que, Betty em primeiro lugar, mas
de Barros, Carmen Perlingeiro, Regina Silveira, Cildo Meireles,
também sua família, foi fundamental na minha formação como
Waltércio Caldas e muitos outros. Certo, também conheci Toyo-
pessoa, mas também em termos culturais e artísticos e não pos-
ta, Tomie Ohtake, Leiko Ikemura, que maravilha! Nesse elenco,
so imaginar o que seria minha vida sem eles. Eu era muito sim-
vou citar alguns músicos que Antonio me apresentou e adorei:
ples e eles num certo sentido me “adotaram”, me ajudando a
Arnaldo Antunes, Arto Lindsay, Phill Glass, Lulu Santos, Ma-
saciar a sede de saber que eu tinha. Betty me dava muitos livros
ria Bethânia, Chico César, Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto,
para ler, exigia de mim mais estudo de inglês, de francês, de ci-
Marisa Monte e os meninos da Conspiração Filmes. Muita gente
nema, me abriu horizontes para músicas que eu não conhecia,
legal, e a lista prosseguiria. Separamo-nos há alguns anos, mas o
enfim, nenhum link direto com o Japão, mas um link de leitura e
que vivemos juntos é inesquecível. No ano 2000, junto a Iole
conhecimento, em vários âmbitos, principalmente com relação
de Freitas e Vania Dantas Leite, arquitetamos Caleidocosmos,
M a is O utr a
artistas. Betty começou muito cedo e sua primeira exposição
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28
L ica Ce ca to
cigana-cibernética. A família Leirner é uma família de grandes
espetáculo de multimeios que entrelaçava diferentes campos ar-
minhas composições arranjadas por Manfred Schoof e tocadas
tísticos e apresentado no MAM-RJ. Resumindo, a escultura da
pela WDR Big Band, toquei inúmeras vezes e gravei um disco
Iole foi o instrumento usado para a composição eletroacústica
com Charlie Mariano, graças a Paul. La vita è bella.
da Vania Dantas Leite, e foram escolhidos poemas que falavam
ou de artistas ou de obras de artistas contemporâneos, dos ir-
ATSUSHI KOSUGI, “SUSHI”
mãos Augusto e Haroldo de Campos. Haroldo escreveu para
Meu primeiro disco feito no Brasil e coproduzido com Ju-
a ocasião um texto inédito sobre a obra da Iole. Gisela Maria
nior Aguiar no ano 2000, foi mixado e masterizado no SOUN-
Moreau participou dançando e coreografando, contracenando
DTRACK STUDIO de New York, e viajamos, Junior e eu, para
comigo, que cantei ou declamei os poemas, mas também usei a
estarmos presentes na conclusão do trabalho. Dentre os músi-
escultura da Iole de Freitas como instrumento de percussão. Foi
cos que gravaram CONSTELÁRIO, meu primeiro CD brasilei-
um dos mais bonitos frutos de colaboração com artistas que já
ro, estava o Romero Lubambo, que vive em NY há muitos anos.
realizei. Gracias a Antonio e gracias a la vida!
Ele me apresentou o Sushi, que mora em NY há décadas. Na
época, eu morava na Alemanha. Quando conheci o Sushi em
PAUL SHIGIHARA
NY, ele logo disse que tinha um amigo japonês, guitarrista, em
Em Colônia, o primeiro músico com quem me apresentei
Colônia. Claro, se tratava do Shigihara, e tornamo-nos amigos
em público foi Paul Shigihara. Na época, o então diretor da par-
imediatamente. Sushi produziu vários discos no Brasil, na Eu-
te de cultura da cidade de Colônia era Winfried Gellner, que me
ropa e nos EUA, com músicos brasileiros, para um selo que se
apresentou Paul Shigihara e Mahi Ismail, sudanês que era diretor
chamava AOSIS, junto a Toshiya Kamada e distribuição de JVC.
da parte de música da Deutsche Welle. Colônia foi uma experiência
Sempre nesse mesmo grupo de amigos, conheci Harada, que me
riquíssima em termos de música. Paul é nascido em Tokyo, filho de
mostrou e ainda mostra as noites de Tokyo.
NOJIRI TAKUYA
juntos, o disco PELE, em 1996, que ele arranjou, e ele é há alguns
Nasceu em 1953 e cresceu em Osaka. Foi por muitos anos
anos o primeiro guitarrista da WDR Big Band. Através de Paul Shi-
dono de um RYOKAN e RYOTEI, tipo peculiar de hospedaria e
gihara conheci vários músicos fantásticos, como também o poeta
restaurante japonês de alta classe, que se chamava YUMEYA, que
Nojiri Takuya, sobre quem escrevo mais à frente. Senti muito deixar
significa “a casa dos sonhos”, em Nara, a antiga capital do Japão.
Colônia por ele e Jennifer Kessler, sua esposa e música. Víamo-nos
Como ele mesmo dizia, muitas vezes ele escapava para outros paí-
com muita frequência. Cheguei a ter o imenso prazer de ouvir
ses, e tinha preferência por Bangkok, fumando seu cachimbo e ouvindo
M a is O utr a
mãe me ensinou a arte de escrever cartas. Fizemos vários shows
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30
L ica Ce ca to
intelectuais japoneses, seu pai era calígrafo da corte japonesa e sua
Clapton. Ele iniciou PROJECT Z, que era uma manifestação
do cineasta John Dogget-Williams, que filmou muitas das nos-
artística de entrelaço cultural que envolvia poesia, arquitetura,
sas peripécias. De minha parte, fora uma adoração por Takuya,
música, culinária, cerâmica, jardinagem, em suma, uma aventura
com quem cheguei a conhecer extraordinários poetas em Nara,
multifacetada, cultural, com participantes do Brasil, Tailândia,
além de arquitetos e jardineiros, escrevi a sequência NARA
Austrália, Japão, Índia, Itália, Camboja e Alemanha de diferen-
DREAMS (sonhos de Nara) no ultimo dia de funcionamento
tes setores artísticos. O músico japonês que vivia em Bangkok
do YUMEYA, que era um típico hotel e restaurante japonês, ou
e tinha um pequeno estúdio de gravação, Keiju Nakajima, foi o
seja, um ryokan. No meio do ambiente mais tradicional do Ja-
primeiro a gravar nosso projeto multimaluco. Takuya escreveu o
pão, numa arquitetura impecável, e com a estranha sensação de
livro de poemas HAIKU, DOORS, que foi publicado em 2002
estar dormindo dentro de uma casca de ovo vazia, sem núcleo.
pela Collective Effort Press de Melbourne, Austrália, traduzido
Dormi sozinha e foi a última noite de existência do lugar, antes
por Sandy Caldow e TTO, com introdução de Dan Takasugi.
de tudo desaparecer como se tivesse, na realidade, sido um so-
Sandy Caldow, artista e escultora de Melbourne, era a melhor e
nho. Sentimos falta de Takuya e descontinuamos o PROJECT
mais antiga amiga de Takuya. O companheiro de Sandy, TTO, é
Z, que envolvia muitos artistas, mas isto é já um outro capítulo
um poeta de origem grega, crescido em Melbourne. A tradução
que não consta deste livro.
dos dois do livro DOORS é brilhante, intuitiva, sendo que eles
não falam nem leem japonês, mas os desenhos de Takuya e as
Haiku de Nojiri Takuya
conversas que eles tiveram sobre os poemas, induziram à tradução, ou melhor, como diria o nosso saudoso Haroldo de Campos, à transcriação dos HAIKUs. Em 15 de novembro de 2010,
AO DESABROCHAR
por razões que não são claras até hoje, Takuya se suicidou no
AS PÉTALAS DE SAKURA
que ele chamava de “sua casa escondida de Bangkok”. Ele era
NÃO PLANEJAM SEU VOO
KEPEL KIMURA
sor de regras, de certa maneira, abandonou a família, o trabalho,
Conhecemo-nos em Tokyo, talvez no show do Djavan no
os vínculos, para continuar sua arte. Um dos grandes escritores
Blue Note, em 1995, mas viemos a ter mais contato depois do
de HAIKU (HAIJIN) do seu tempo, seu espírito criativo e ener-
ano 2000. Kepel teve uma loja por mais de 20 anos que im-
gético, livre, fez, faz e fará muita falta. Ele deixou a esposa Kiyoe
portava e distribuía discos, principalmente brasileiros, em nível
Nojiri e seu filho Seiten. Extraí parte do texto sobre Takuya
nacional, que se chamava La Musica Ibero-americana, que fechou
M a is O utr a
as disciplinas acima. Não teve medo de riscos, foi um transgres-
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L ica Ce ca to
um grande artista e inovador, cujo trabalho compreendia todas
em 2006, no mesmo período que muitas outras lojas em Tokyo,
são ótimos. No meio desses tantos músicos talentosos, no ano
com o início da grande crise da indústria fonográfica. Somos,
passado, o casal Hiroquinho (sax alto, contralto e clarinete) e
antes de tudo, amigos. Ao mesmo tempo me ajudou e ajuda
Masako Oda, cantora, me levaram a uma roda de choro incrível,
muito profissionalmente, me apresentou Regina del Papa e He-
numa casa típica japonesa, feita de madeira, com tatame no chão
lios Molina em Paris, e com ela, fizemos um show no clube de
em vez de carpete, Kyuyaguishitatei,
jazz New Morning naquela cidade, e fora isso me apresentou
de Yaguishita,
à distribuidora Tratore, de São Paulo, que distribui meus CDs
Meiji~Taisho, que lidava com cobre e ferro. Tem um profun-
até hoje. Kepel é um personagem muito importante na cena da
do conhecimento de choro e chorinho e não posso deixar de
música brasileira no Japão e sua divulgação. Ele toca zabumba e
citar
percussão, tem um grupo de forró que tem no repertório, den-
violino;
Iwada Nobuo, bandolim;
tre outros, Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti, João Donato
vaquinho;
Obana Takeshi, sete cordas;
e Gonzagão, enfim, faz shows e palestras sobre MPB no Japão
Makoto, pandeiro;
, e era a residência
, um comerciante rico na época
Koonosuke, bandolim;
Okoshi Eriko,
Kyadi, ca; Nishimura
Tsuda Miyoko, pandeiro.
YOSHIKO OKIYOSHI E HIROSHIMA
GAIJIN (estrangeiro) pôs o pé. Os músicos com quem já me
Desde a primeira vez que fui a Hiroshima, indicada pelo Ke-
apresentei são muitos e os mais frequentes são sem dúvida Na-
pel Kimura à Doi (Dorado), toquei no Clube Quatro e conheci
gasawa e Matsumonica, Mika Mori, Hiraoka, em Tokyo e em
Yoshiko Okiyoshi e seu marido, loucos por música e com uma
Kumamoto, Kyushu, Kayo no piano e sanfona e Kuroda na ba-
mentalidade muito aberta para culturas diferentes no mundo,
teria. Tocamos juntos várias vezes. Tenho um profundo respeito
tenho certeza de ter sido privilegiada na visita de Hiroshima. O
pelo conhecimento de MPB e música latino-americana do Ke-
museu da memória histórica dos horrores da bomba atômica
pel, e me impressiona o fato de que ele não só é fluente no idio-
me deixou pasma, triste, e parte de mim se desintegrava junto
ma português brasileiro, como entendeu o humor e ainda por
aos triciclos e tico-ticos das crianças fundidos aos capacetes dos
cima tem cara de nordestino. Viva o Kepel, que abre portas para
soldados, os copos de vidro nas prateleiras, fundidos aos peda-
nossa música, que encurta a distância entre Oriente e Ocidente
ços de paredes que sobraram, as imagens em filme das crian-
e é tão querido por todos os músicos brasileiros que tocam na
ças antes de serem trucidadas pela bomba. Esse mesmo país
sua terra. Kepel me apresentou o casal Ito, que tem um barzinho
construiu Fukushima e o dano do desastre nuclear hoje é ainda
em Tokyo que se chama Copo do Dia, e lá entrei em contato
incalculável. Mas o que me toca aqui é o lado humano. Fui ao
com muitos músicos que gostam de MPB e chorinho, samba,
museu sozinha e, se não fosse o fato de ter conhecido Yoshiko
M a is O utr a
especiais em várias cidades japonesas, inclusive onde nenhum
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L ica Ce ca to
inteiro e sou muito agradecida, pois me faz conhecer pessoas
como terra. Em vez disso, me sinto orgulhosa desses seres humanos que não só sobreviveram aos horrores, mas que levantaram as cabeças para reconstruir suas vidas e conseguiram. Claro que meu ponto de vista é sempre pessoal, de viajante, mas
conheci lugares e pessoas incríveis, fora Hiroshima, Miyajima,
Nagasaki, profissionais que não deixaram morrer suas especializações tradicionais, como no âmbito da arquitetura a produtores
de telhas, com fábrica de família, há mais de quinhentos anos, a
as apresentações. Jo Takahashi foi uma pessoa fundamental no
ANDRÉ VALLIAS
É designer gráfico, poeta e produtor de mídia interativa.
Conheci através da Betty Leirner e com ele acabei realizando três
espetáculos que consistiam em poemas, poesia visual, música
eletroacústica e eletrônica pré-gravada. Fizemos, além dos espetáculos
juntos, Erratica, Sybabelia, a versão em português dos poemas de
Ono no Komachi, que concluem este livro. Quando o poeta Haroldo
de Campos faleceu, André me chamou para participar do show em
sua homenagem, que foi feito no Teatro TUCA de São Paulo, GALÁXIAS HAROLDO. Eu apresentei um RAP nipo-português que
compus com Haroldo chamado JapanRap. Nesse dia, Alice K. me
ajudou a coreografar e a escolher o Uwagi, tipo um casaco para kimono, que não vai até os pés. Tenho alguns antigos que comprei em
antiquários. Cid Campos, filho de Augusto de Campos e Lygia, me
acompanhou na guitarra. Simetria, precisão, intenção no gesto, o palco é uma escola. Além de outras atividades, André publica online a
revista de poesia visual e música ERRATICA. André é casado com
Nelci Frangipani, que me confessa querer ir morar no Japão pelo
estímulo para que eu continuasse minhas pesquisas. A ultima
menos dois anos, diz que é seu sonho. Vamos sonhar juntas?
confeitarias de doces típicos japoneses, a música no mais alto nível.
Hoje, embora ainda me lembre daquele tico-tico derretido e daquela imagem da nuvem assassina estarrecedora, por causa da Yoshiko
Okiyoshi, me lembro de uma Hiroshima ensolarada e de pessoas
extremamente gentis. O homem destrói e constrói, é fato.
JO TAKAHASHI E RACHEL ROSALEN
Conheci Rachel Rosalen menina, muito novinha, em São
Paulo, e ela já fazia um trabalho muito lindo de máscaras. Era
amiga do Jo Takahashi, na época e por muitos anos diretor de
projetos culturais da Fundação Japão em São Paulo. Através do
Jô, me apresentei duas vezes na Fundação Japão. Uma delas era
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L ica Ce ca to
uma aula-show, programada junto a um dos professores de japonês. Usamos onomatopeias para memorizar algumas palavras
e no final construímos um RAP in loco com os alunos. Rachel
Rosalen, que tinha se tornado e ainda é uma videoartista, filmou
M a is O utr a
ideia sombria e triste como uma nuvem escura de Hiroshima
seção desse livro, ou capítulo, é sobre a poeta Ono no Komachi,
e Jo Takahashi publicou na web, no site dele, Jojoscope, assim que
leu. Realizamos juntos eventos memoráveis, como o lançamento
do Centro de Cultura Japonesa em Registro, no Paraná, com arquitetura de Lina Bo Bardi. Conversar com o Jo Takahashi é uma delícia, passava muitas vezes na Fundação Japão para irmos almoçar
ou jantar juntos, e não há limites, podemos contar piadas ou ir aos
pontos mais delicados, escondidos e difíceis de serem descobertos
na cultura japonesa e no tesouro cultural que ela representa.
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Okiyoshi, sua família, seus amigos, eu teria ficado com aquela
uma das peças tradicionais e alguns diriam fashion do Teatro Nô,
escrita por Motokiyo Zeami (1363-1443). Todas as vezes que
vejo a peça no Japão, ou que leio o texto, imagino o Haroldo
voando naquele manto de plumas brancas, se confundindo com
as nuvens. Na tradução que ele me deu, as palavras:
AUGUSTO DE CAMPOS
Assim como para a arte contemporânea o mundo não seria o mesmo sem Marcel Duchamp, para mim o mundo da poesia não existe
sem Augusto de Campos, sem a sua ampla visão sobre a poesia visual,
concreta, ou mesmo a tradução, quando é feita de um poeta para outro
poeta. Não consigo conceber minha vida sem Augusto de Campos.
Ele estava em tudo que lia e amava, desde sempre, desde as músicas
de Caetano até Caixa Preta e Julio Plaza. Fui visitar Augusto e Lygia em
São Paulo várias vezes. Muito diferente das visitas que fiz a Haroldo,
que era muito eloquente e eu tentava capturar cada palavra, mas fiquei
longe disso, o Augusto ouve, pergunta e quer saber a resposta. Quando começamos a nos frequentar, Cid Campos era ainda adolescente.
Hoje faz um lindo trabalho de música, e tive a chance de participar de
alguns eventos com ele, adoro o que ele faz com o Augusto e mesmo
com a Adriana Calcanhotto. Tive a chance de ver os três, Adriana, Cid
e Augusto, no show intitulado POEMUSICA, no Instituto Moreira
Salles, no Rio de Janeiro, em 2010. Dono de uma elegância nobre, de
M a is O utr a
No oceano do céu
Ondas de nuvens se elevam
O barco da lua
Num bosque de estrelas
Vogando se esconde
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L ica Ce ca to
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HAROLDO DE CAMPOS
Conheci os irmãos Campos e Décio Pignatari em Milão,
em 1991, junto de suas esposas. Eles todos tinham ido a Milão,
onde eu morava com o Antonio (Dias) para a exposição organizada pela Lenora de Barros e a Paula Mattoli, Poesia concreta in
Brasile, na inauguração dos Arquivos da Nova Escritura. Estávamos todos conversando na sala, quando de repente Haroldo e
eu começamos a viajar, literalmente, no mundo dos ideogramas,
e estávamos tão absorvidos na escritura que acabamos entrando
no ateliê do Antonio, deixamos a sala, e ficamos desenhando
grandes ideogramas, sentados no chão. Não é saudosismo, é
saudade. Haroldo faz falta. No mesmo ano, em outubro, Antonio expunha na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, e sabia que
iríamos nos encontrar de novo, todos, na abertura. Na época,
fiz um livro-objeto, somente 30 cópias assinadas, de haicais com
desenhos, e de capa cabeluda, chamei de SONGBOOK e dediquei ao Haroldo. Sem saber que eu levara o presente comigo na
Strina, quando Haroldo chegou, me deu uma folha de papel assinada, dedicada a mim, e era uma transcriação de um dos poemas
de Manyoshu, primeira coleção de poemas escritos do Japão, da
era de Nara. Foi com esse poema-tanka e sua tradução que adicionei uma parte minha de onomatopeias e compus o JapanRap,
que entrou no meu primeiro disco na Alemanha, PELE, em
1996, e para a comemoração dos 50 anos das Nações Unidas,
representando o Japão (peço desculpas até hoje) em forma de
CD, com a escolha de vários artistas internacionais, produzido
pela Deutsche Welle e pelo Ministério das Relações Exteriores
da Alemanha. Haroldo de Campos escreveu vários livros sobre
o Japão, dentre eles Ideogramas e Hagoromo,
, O Manto de Plumas,
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PAOLO MARIA NOSEDA
Fiquei fascinada por Paolo assim que o conheci, em Milão,
no atelier artístico e loja de Monica Castiglioni, filha de Achille Castiglioni, família de grandes artistas do design italiano. As
joias esculturais de Monica são sublimes. Nosso amor à primeira vista resultou, além de uma grande amizade, em trabalho, e
encenamos juntos o espetáculo multimídia inVENTO, poemas,
vídeos e música que se relacionavam ao vento, para o festival
de literatura e música COLLISIONI 2012, em Barolo, na Itália. Neste ano apresentavam-se Bob Dylan e Patty Smith, Don
DeLillo, só para citar alguns, e os Marqueses de Barolo nos convidaram todos os dias para nos deliciarmos com a comida e o
vinho, de produção própria, como conclusão dos nossos dias
de trabalho. Nosso show foi arquitetado com dezessete artistas
convidados, que nos enviaram vídeos, fotos e música do mundo inteiro, desde 101 Mobile Black History Museum de Detroit
a Roberto Cecato, John Dogget-Williams, AyakoTakaishi, Arnaldo Antunes, a própria Monica Castiglioni, e muitos outros. Tem
uma sinopse na internet, para os curiosos, e um resumo no glossário.
AMALIA TARALLO
Nos conhecemos em Roma, na Città Parco della Musica, em
setembro de 2013, quando abri o show do Zeca Baleiro, junto ao
violonista italiano Stefano Scutari. Eu havia sido convidada pela
Embaixada do Brasil em Roma. Já no ensaio houve uma troca
de boas energias e quando finalmente nos encontramos nos bastidores, sendo que ela acompanhava o show do Zeca Baleiro, fi-
M a is O utr a
L ica Ce ca to
O mosquito entrou na
Fissura da pele
Como semente
Na fissura da terra
Ou como sonho
Na fissura da mente
Em relação à língua japonesa, com Paolo, fizemos versões italianas
para Nojiri Takuya e Ono no Komachi, assim como Paolo traduziu meu texto sobre Bob Wilson e publicamos a versão italiana na
revista web MicMag. Somente para contar um pouco da genialidade desse adorável nômade cibernético, Paolo Maria Noseda, por
mais de trinta anos é intérprete oficial, de e para italiano, francês,
inglês, alemão e espanhol, sendo que em português, chegou a interpretar Caetano Veloso e Sebastião Salgado, fora o próprio Mia
Couto, com seu português de Moçambique. Na televisão RAI ou em
festivais e conferências de literatura, já foi intérprete inúmeros de escritores – Cameron, Pennac, Yehoshua, mas também celebridades como
Madonna, Michael Cimino, Naomi Campbell, a rainha da Inglaterra e
por aí afora. Lançou um livro no ano passado que se chama La voce degli
altri, Memorie di un interprete, em português “A voz dos outros, Memórias
de um intérprete”, pela editora Sperling & Kupfer, no qual narra uma
série de histórias dos bastidores, anedotas, choques de culturas com
celebridades, e o título se refere obviamente à sua voz que em geral
é emprestada a outros autores, atores, filósofos, palhaços, políticos.
Paolo subiu ao palco comigo, no festival Collisioni, com sua própria
voz, intérprete de si mesmo.
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um humor inteligente e sutil, admiro sua capacidade de não se adaptar
à mudança dos tempos, mas a preceder. Para ele, fiz o poema-canção:
quei feliz ao saber que ela tinha gostado do meu trabalho. Neste
dia Amalia me apresentou um dos ícones da canção italiana, ótima
compositora e cantora, autora de “Per Amore”, Mariella Nava, que
Amalia estava trazendo para o Brasil, onde no mês de abril de 2014
ela idealizou e produziu o show no Auditório Ibirapuera. Foi pelas
mãos da Amalia e por sua eficiência outra composição de Mariella
Nava, “Ci sono pensieri”, entrou em novela da TV Globo, Amor
à Vida. Nossa amizade cresceu rapidamente e também a vontade
de trabalharmos juntas. Por coincidência ou por destino, Amalia
foi indicada para uma série de eventos do projeto Italia na Copa,
idealizado pela Embaixada da Itália no Brasil e, aceitando, sugeriu a
mim junto à outros artistas. Realizamos um show cheio de charme,
OMAGGIO, em italiano e português, na casa de espetáculos Tom
Jazz em São Paulo em maio de 2014. Eu, que até o ano passado,
nunca tive um manager na minha carreira, estou adorando o fato
de trabalhar junto a ela e, diga-se de passagem, este livro também é
uma prova concreta do nosso trabalho juntas. Ela conhecia o Alex
Giostri, dono da Giostri Editora, que está lançando este livro. Eu, que
nunca teria ousado em pensar de realizar esse sonho por agora, me
encontro com a estrelinha lá do céu, que brilha sobre nossa estrada e
por mérito de trabalho e profissionalismo junto ao Alex, fará com que
o livro saia em tempo record. La vita è bella!
2
Capítulos depois de pessoas
Capítulos que contêm pessoas
NARA DREAMS
PRIMEIRO SONHO
sua mão esboça caligramas
na minha memória
eu me esqueço temporariamente
da onde venho
pra onde vou
eu me transformo naquele caligrama
que você desenha
diretamente pra minha memória
manha, e minha galerista e amiga no Rio de Janeiro, MARTHA PAGY.
o carro, o rumor da rua, o canto de um pássaro
sua mão se deita na mesa
imóvel
enquanto uma abelha tenta entrar na sala
ela, a abelha
M a is O utr a
Outros artistas, galeristas e músicos com os quais dividi momentos
intensos e criativos, que não citei acima e com quem trabalharia de novo
com grande prazer são Florent Jodelet, Armando Menicacci, Grima
Grimaldi, Michael Heupel, Paulo Calasans, Dodô, Valtinho Anastácio,
Idang Rasjidi, a família dos galeristas KOPPELMAN, de Colônia, Ale-
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42
L ica Ce ca to
e passa através do meu olho
nada disso transforma e altera
cobertas pelo pano do seu YUKATA
o caligrama interno que você desenha
e por um momento eu fico desejando ser o seu YUKATA
com a sua mão
cobrir a sua pele de um azul profundo
solta, livre
e brincar de fio em fio
com cada ranhura da sua pele
sua mão desenha um caligrama dentro do meu cérebro
e enquanto eu penso tudo isso
e a tinta,
a gente toma SAKE, dá risada
negra-sumí,
o chá já esfriou e eu vou pegar mais um chazinho pra gente
some
e quando eu chego na sala
e corre na minha veia
você tinha desenhado a minha figura
como se tudo fosse extremamente natural
vestindo o YUKATA
que você vestia
SEGUNDO SONHO
você está com YUKATA
NARA, 23 de junho de 2006
e eu também
fim de tarde, um pouco fresco,
YUMEYA
à noite
a casa do sonho
eu decido fazer um chá pra nós
onde tudo começa
trago o chá
na casa do sonho
e observo a linha do YUKATA azul-escuro
onde tudo termina
no seu pescoço
na casa do sonho
tocando a sua pele
das linhas de algodão do seu YUKATA
recomeço hoje depois de quarenta dias de Japão, imbuída de
tocando sua pele
imagens, sensações, presenças, ausências. Quarto de tatame
você, distraído, sorri
com shooji aberto, olhando a natureza, um pé de momiji ao vento. A
bebe SAKE
fotografia falada é uma fotografia muito difícil de se tornar visível.
eu imagino as suas costas
Aqui nesse ambiente todas as madeiras se encaixam perfeitamente
M a is O utr a
Finalizar esse livro pela metade, esse talking book, não é fácil, e
45
44
L ica Ce ca to
e imagino o trançado
e foram pensadas para serem assim. Tudo é extremamente cal-
NARA DREAMS PALAVRAS ÚLCERAS
culado, pensado, mas não é desumano, frio, muito pelo contrá-
As palavras querem sair de mim como o sangue de uma úlcera
rio. O cálculo não significa falta de comodidade ou calor, como
Tem que ser expelido pela boca
em algumas escolhas para a decoração interna da casa, ultra-
Como as larvas de um vulcão tem que sair, como algo que
minimalistas, mas angulosas demais, que te fazem sentir num
não aguenta mais ficar dentro
hospital, mais do que numa casa. Aliás, o adjetivo “calculista”,
Eu não sei dessa vez O QUE são as palavras
que pressupõe a frieza de uma pessoa que só procura o proveito
Eu sei que as palavras querem sair e se tornar conhecidas
próprio, não casa em nada com a ideia arquitetônica japonesa
Querem sair porque tem que ser faladas, porque não aguen-
tradicional, em particular a desse RYOTEI, pelo contrário, esse
tam mais ser caladas
tipo de construção é generoso com o ser humano, mesmo sen-
Mas quais são as palavras, eu não sei
do detalhista ao ponto de não precisar usar nem um prego, tal
Viajo pelo tempo, viajo pelos dias, viajo pelas ruas
a perfeição do encaixe, e o resultado final não é um ambiente
E olhando pra dentro eu só vejo que tem um monte de pa-
hostil. Não se trata de uma caixa de concreto gelada. O homem
é colocado em contato direto com a natureza, dos pés à cabeça,
no interior e no exterior das casas. Tem tudo para que o ser humano ganhe um acalanto, um lugar que o acolhe, que lhe dá paz,
desde o perfume da madeira à cor, ao detalhe da janela translú-
lavra querendo sair
E essas palavras são a repetição de alguma coisa que eu desconheço
E o desconhecido não tem palavra, o desconhecido é desconhecido
cida que sugere uma visão impressionista do formato das folhas
O desconhecido não consegue se definir
e árvores tamisadas pelo sol.
Com palavras
NARA DREAMS E A BELEZA
retrato falado. Então eu começo desse ponto, do ponto do meu
Por mais que uma coisa seja bela, como, por exemplo, essa
sonho, e continuo pelo ponto que é a questão de querer trans-
casa onde estou, se ela não estiver ativa, viva, vivida, a beleza
formar sentimentos e imagens em palavras, talvez num haicai
dela não continua a existir. Os objetos vão quebrando, inevi-
fosse mais fácil, ou mais difícil para uma pessoa que não é um
tavelmente, mas a vida é dinâmica, e a beleza se acentua com a
HAIJIN. Mesmo que o poema japonês seja muito conciso, de
vida, do contrário, a estática e o abandono causam uma sensa-
5-7-5 sílabas, estou completamente vazia agora, incapacitada de
ção de morte. Objeto não é gente, casa não é gente, mas parece
criar versos.
que a casa às vezes é o espelho de como está uma pessoa, isto
M a is O utr a
tratado de arquitetura, só observo, sinto e tento transmitir meu
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46
L ica Ce ca to
Mas não tenho intenção e nem pretensão de escrever um
é, a vida afetiva começa a se quebrar, as coisas ao redor também
estou saindo de Nara, cidade bela e tradicional, antiga, com
quebram, tudo toma um aspecto de abandono, como um
destino a Tokyo, cidade metropolitana fantástica. Tudo para
laguinho lindo, mas sem água, um poço artesiano vazio, um pe-
mim é um grande prazer, mesmo esses extremos em termos
daço de parede quebrada, que nem é tão caro de consertar, mas
de cidade e cultura.
que fica ali, quebrada, um bocado de folhas secas acumuladas
num canto do quintal, enfim, sintomas de que a coisa começa a
Eu sinto que este tempo na Terra foi feito para mim, minha
deixar de existir. O espaço tem que ser ocupado amorosamente
vida é para mim e eu vivo com prazer o que me é permitido. A
para alimentar a formosura da vida, as coisas por si mesmas vão
vida passa num minuto, e neste minuto eu quero estar comple-
vivendo, mas não vivem bem, são somente coisas. Quando a
tamente dentro dela. Gostaria de passar os minutos dentro dos
relação entre duas pessoas começa a ruir, tem-se a mesma sen-
minutos, as horas dentro das horas, os dias nos dias, as noites
sação que essa casa, que está para acabar. O fim existe.
nas noites, gostaria de passar o tempo dentro do tempo e o espaço dentro do espaço, e eu, dentro de mim. Tudo isso é para
NARA DREAMS LINGAM
descobrir quem é a outra pessoa, o outro mundo, a outra cidade,
Como se aquele momento de prazer pudesse entrar dentro
o outro país. Se não se entende quem se é e onde se está, me
da comida, como se depois a gente pudesse comer a comida
parece um pouco inútil compreender todo o resto. Eu continuo
com o prazer de dentro, tudo isso numa antropofagia que só
a escrever este livro, que começou há dois anos, com o coração
mesmo o amor é capaz de produzir. Você come o seu amor, daí
repleto de alegria, sabendo que depois de tudo o que eu já passei
você é comido por ele, daí você cozinha e o que você cozinhou
e fui capaz de superar, nada mais pode me machucar a não ser a
está cheio daquele amor, aí você, ipsis litteris, come o amor e aí o
morte. Como disse um poeta ancião, verdadeiro HAIJIN, gran-
amor se transforma no que for. Tudo enroscado.
de mestre de HAIKU em Nara, “se é para morrer, se morre, não
ro viver, não tenho tempo a perder. O Japão é uma história, para
Deve ser o meu espírito cigano ou eu me perdi, não sei
mim, inexplicável, dizem que eu talvez já tenha sido japonesa
em que capítulo me encontro, no entanto, estou no trem e a
em outra vida e eu aceito, dado o prazer que tenho de estar aqui.
viagem é o prazer infinito de estar sempre com o pé na estra-
Este capítulo é um trem de coisas que entram por uma porta e
da. Me dá uma estranha sensação de alegria e liberdade saber
saem por outra. Os costumes e hábitos não são a parte que mais
que eu não pertenço a lugar nenhum, que estou bem com
me atrai nessa terra. O viajante se adapta e aprende a linguagem
todo mundo, mas que também estou bem sozinha. Agora
e os gestos, mas a cultura abre-se num leque muito mais amplo.
M a is O utr a
NARA ESPÍRITO CIGANO
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48
L ica Ce ca to
há nada a fazer”, no entanto, se é para viver, eu estou aqui e que-
Sou apenas uma cigana, viajando de canto em canto, cantando.
estudar japonês praticamente grátis. Estudei de 1982 a 1986 com
Certo que mesmo quando se fala, se lê e escreve em japonês,
a prof. Ueda, de Kyushu, na Universidade Ca’ Foscari de Vene-
é como estar em outro planeta, Saturno, Marte, ou o próprio
za, na Itália. Eu nasci e cresci no Brasil e somos um país híbrido.
Japão. Compreender e ser compreendido é maravilhoso, já fa-
Estudei também no Instituto Cultural do Japão em Colônia, na
zer parte ou se sentir parte desta sociedade é uma tarefa quase
Alemanha. Não foi fácil, mas foi divertido aprender essa língua
impossível e não é meu objetivo. Este é um capítulo escrito no
em todos esses países, usando os métodos mais impensáveis.
trem, com a cabeça vazia e as palavras que voam com a mesma
velocidade do trem-bala.
No silêncio da noite fico imaginando você, um olho na lua,
o outro na melodia.
AKEMASHITE, OMEDETOO GOZAIMASU!
A diferença sobre usos e costumes se acentua quando, como
estrangeiro, se vive no Japão. Eu que já era grande, virei gigante. Nas casas tradicionais japonesas, quando se entra, se tira o
sapato, e existe sempre um chinelinho diferente para corredor,
verdade a cultura ocidental e a oriental são completamente diferentes em muitos aspectos, e ainda há muito o que falar sobre
como percebemos essas diferenças. Aprender a língua japonesa
é tarefa árdua e meus estudos até um diploma de proficiency duraram pelo menos quinze anos, sendo que no início os livros eram
muito pesados e minha bagagem, para viajar, era cheia deles. No
entanto, o problema do peso inicial se desfaz quando considero que agora posso dialogar com qualquer pessoa nessa terra
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L ica Ce ca to
encantadora. A língua japonesa pode ser usada em lugares que
não se imagina, por exemplo, tinha uma massagista na Coreia,
que não falava inglês, mas nos entendíamos em japonês. Em
sala e banheiro. Cheguei em dezembro e logo era Natal. O primeiro erro cometi dentro do banheiro, que tinha tantos botões
de descarga escritos em ideogramas que eu ainda não lia, que
a água veio toda na minha cara e alaguei o chão. Limpei tudo
direitinho antes de sair do banheiro, era a noite da ceia de Natal.
Ainda atrapalhada com o que tinha acabado de acontecer, entrei
na sala de jantar com os chinelos do banheiro. Todo mundo riu
muito! Que família carinhosa! Todas as noites, durante um mês
e secretamente, a mãe da Yoshiko, vendo o meu tamanho, colocava
uma almofada adicional ao futon, (tipo de colchão que se usa para
dormir no chão de tatami) porque meus pés ficavam para fora.
O Natal se vai, o Ano Novo se aproxima, todo mundo se
Boston, nos Estados Unidos, fiz uma troca do ensino de inglês
prepara. Para ter a chance de vestir um kimono no Ano Novo, eu
a japoneses que não compreendiam o inglês da Berklee College
tinha que agir rápido, de modo a comprar a tempo as sandálias
of Music, onde estudávamos, e assim, na base da troca, consegui
Zoori do meu tamanho em Asakusa. Para os estrangeiros é uma
M a is O utr a
O tema do Japão visto por estrangeiros é comum, mas na
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HAJIMEMASHITE
inesquecível. No dia 3 de janeiro, fora os templos de Kamakura
Eu era a primeira estrangeira a visitar Kenmori. Deve ter sido
que já havíamos visitado nos dias 1 e 2, fomos, com a família
muito engraçado para o povo local quando eu, do alto dos meus
Nakajima, em direção a Nagoya, onde o pai trabalhava, conhe-
1,85m (com salto), participei dos jogos todos que eles fizeram.
cer um dos mais famosos santuários do Japão, Ise Jingu. O ôni-
Sinto muito voltar para o problema de tamanho, mas não tem
bus e o trem estavam lotados, abarrotados, viajamos horas sem
jeito. Até o Jô Soares, quando participei do programa dele em
fim. Foi o primeiro soco na cara que tomei ao entender que eu
2001, me entrevistando a respeito do Japão, fez piada do meu
não sabia nada da cultura oriental e que a minha cultura oci-
tamanho em relação aos japoneses.
dental era extremamente barroca em relação à deles. As igrejas
Voltando à festa, várias coisas não se encontram na cidade
do Ocidente são decoradas, têm esculturas, mosaicos, pinturas.
grande. Por exemplo, como fazer bolinho de arroz ou o MOCHI,
Quando cheguei ao Santuário de Ise, fiquei procurando algu-
que é batido numa espécie de pilão, com ritmo repetitivo e preciso,
ma coisa, depois da longa viagem, que justificasse a nossa ida.
por mais de uma pessoa, apresentação de uma dança típica e fol-
A resposta era simples: não havia nada do que eu procurava.
clórica, comes e bebes. A festa estava animada quando, de repente,
A razão da existência de Ise Jingu é espiritual. Conseguíamos
o moderador me chamou ao palco. Assim que eu disse Feliz Ano
ver somente o topo dos tetos e na nossa frente um muro de
Novo em japonês, ou melhor, AKEMASHITE, OMEDETOO
arbustos e um grande pano branco de algodão estirado como
GOZAIMASU, no microfone, todos me aplaudiram com vonta-
se fossem portas, mas a passagem não é permitida, portas que
de. Convidaram-me para um jogo interessante chamado Fukuwarai
não abrem, portas brancas como uma ausência de portas, um
(Risada da Sorte”, ou seja, tem um grande rosto branco vazio pre-
buraco branco na cena, que é respeitado como um papel no qual
gado na parede, e o jogo consiste em fixar as partes que faltam no
a história se escreve com tinta transparente, uma não porta num
rosto, olhos, sobrancelhas, nariz e boca, de olhos vendados. Claro
lugar não lugar. Tudo era sacro e eu fiquei estonteada de tanto
que eles me chamaram para que eu vencesse e ganhei uma garrafa
nada. Lições impagáveis.
enorme de saquê. No jornal da cidade, no dia seguinte, via-se só
Fomos convidados depois para a festa numa cidadezinha do
uma cabeça que saía do tamanho geral das pessoas, como uma gi-
campo, bem perto de Ise. Por se tratar de uma ocasião especial,
rafa num zoológico: eu. Quando depois do Ano Novo me mudei
eu, sem a menor noção do que era Japão e vindo da Itália, pensei
para o microapartamento, tive que me adaptar e mesmo sem me
em usar um vestido de lã elegante, rosa choque, e sapato de sal-
casar com um japonês e sem conseguir encurtar meu tamanho, gos-
to. Lembro ao leitor que se trata de 1986, que tenho 1,79m e que
to do Japão e, mesmo batendo a cabeça nas portas o tempo todo,
M a is O utr a
com salto sou uma Godzilla, ainda mais num pequeno vilarejo.
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L ica Ce ca to
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experiência rara, eu me senti uma gueixa e foi bem divertido,
eu os respeito e me sinto respeitada, e o Japão se tornou para mim
pelo visual é a mesma, a paisagem é a mesma, Tokyo só cresceu,
mais do que um estudo de língua, se tornou o estudo da vida.
mas não mudou radicalmente.
Entre le rêve et le monde Il n’y a qu’une seconde Il n’y a
qu’une seconde
INÍCIO DE NOVEMBRO, SEM METRÔNOMO
Se uma nota musical é tão importante como um desenho do
Entre o Sonho e o Mundo Só tem um Segundo Só tem um
Segundo
Between a Dream and the World There’s only a Second
Only a Second
som, e se o trabalho grupal é baseado na percepção do instante,
na relação imediata de quem toca e de quem ouve, de quem atua
e do público, para mim, que estudei música com notação ocidental, que tive a chance de estudar algumas partituras contemporâneas, mas sempre ocidentais, a descoberta da contemporaneidade da notação musical japonesa, desde o século 8, foi uma
Yume to Sekai no aida ni Ippun shika nai Ippun shika nai
revolução. Fui convidada pela Yamaki Nobue a ir ao Palácio Real
sa, com forte influência chinesa, tocada há mais de um milênio
Votos de felicidade no mar de pessoas no meio do país ob-
na corte imperial. Um amigo de Yamaki toca SHO, um tipo de
cecado por imagens. No metrô de Tokyo, o rapaz que tem um
flauta de bambu, na orquestra, que se apresenta numa espécie
ar inteligente lê MANGÁ, para a desilusão de quem já havia
de tablado, um ringue, como um palco alto, central e quadrado,
decidido que ele parecia um filósofo. Não existe uma cultura
com o público sentado ao redor. Inicialmente, fiquei pasma ao
pop japonesa sem mangá e videogames. Cada um de dentro do
constatar que não havia um maestro, ninguém regia a orques-
vagão e provavelmente de todos os vagões, que são muitos, olha
tra de vinte elementos, a concentração era enorme, o grupo era
para dentro de si mesmo e dorme ou olha para o que suas pu-
líder do grupo, todos juntos e sincronizados, no início, meio e
pilas elegeram para serem completamente capturadas, para que
fim de cada peça musical. Quando acabou o concerto, fomos ao
todos sejam absolvidos e libertados da realidade cinza dos dias
backstage, encontrar seu amigo musicista, e quando pedi para ver
que se sucedem aparentemente iguais, com todo mundo com-
a partitura daquela noite, para meu espanto, em vez de uma pau-
portado, suportando o empurrão da multidão que procura um
sa precisa, que se conta, estava o ideograma AIDA , isto é, o
lugar qualquer, onde possa ficar na bola, uma-pessoa-como-to-
momento entre um evento e outro, sendo na música, uma pausa
das e entrar no ciclo social pré-determinado. Hoje os MANGÁS
indefinida, que não se conta, entre uma nota e outra. Piorou
foram substituídos pelos smart-phones ou i-Pads, mas a atração
muito o meu estado de perplexidade, quando perguntei como
M a is O utr a
MANGÁ E VÍDEO GAMES
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54
L ica Ce ca to
de Tokyo, para um concerto de Gagaku, música clássica japone-
faziam para saber quando começar e em que ritmo, e ele respon-
e imagino que a repetição de peças tradicionais faz com que o
deu que depende do que acontece no momento, da reação do
hábito ajude na decisão da duração do intervalo de tempo e de
público e dos músicos, entre si, sendo que a precisão do tempo
espaço indicado no ideograma AIDA , mas a abstração neces-
encarada dessa maneira exige muito mais absorção e percepção
sária para isso demonstra um aguçar dos sentidos e que a histó-
do indivíduo em relação ao grupo, e vice-versa, do que a divisão
ria, mesmo se repetindo milhões de vezes, a cada apresentação
tradicional ocidental, que é padronizada. Não é possível com-
vai ter um tempo e espaço diferentes, como um respiro, onde a
parar. Foi uma grande lição saber que existem outros métodos
quantidade de ar que entra ou sai depende das circunstâncias e
diametralmente opostos ao nosso. Para quem não é músico, não
da emotividade do momento.
é familiar ao nosso sistema de escritura, basta pensar, por exemplo,
numa valsa, mesmo para dançar, conta-se 1, 2, 3, e todo mundo en-
56
HAKATA
um ocidental, cria-se o hábito de saber-se mais ou menos qual é o
Neste momento me encontro no trem, indo de Fukuoka a
andamento de uma valsa 3/4, quantas batidas por segundo no me-
Tokyo. Acabo de voltar de uma experiência fantástica, vivida
trônomo, dependendo da tonalidade, os acidentes nas claves, quan-
desta vez também com o apoio deste gentleman samurai, que é
tas barras, um movimento que se intensifica num certo momento e
mestre de Aikido e consultor de quatro hospitais em Hakata, o
vai morrendo no final, com indicações em italiano ao longo da par-
Takashi Hara. Para conseguir transmitir esta experiência, tenho
titura e mesmo sinais que músicos profissionais do mundo inteiro
que usar uma linguagem solta, sem me amarrar na narrativa, e lá
reconhecem. Na música contemporânea, claramente existem ou-
vai: enquanto o cara de trás do meu banco de gurinsha, primeira
tros tipos de partituras, mesmo que a interpretação seja mais livre, e
classe, come peixe seco e chupa os dentes. Hara pediu que eu
não me considero apta e nem tenho a intenção de fazer um tratado
tocasse para os loucos e os seus médicos, umas setenta pessoas,
de música, mas arrisco um tratado amoroso por convivência, em
num manicômio de Hakata, Fukuoka, que é muito distante de
relação à música e à performance musical e, pessoalmente, nunca
Tokyo, mesmo com o trem-bala. Cheguei ao hotel, tinha pouco
tinha visto um sistema tão ousado contemporâneo. O que me faz
tempo para me preparar e ir tocar, sem microfone nem ampli-
pensar em quantos sistemas devem existir com os quais não temos
ficação, e admito que a escolha da roupa foi radical. Peguei a
nenhum contato nem noção.
blusa mais extravagante que tinha, de Issey Miyake, um jeans
Soube mais tarde que se usa o mesmo princípio e a mesma
meio dourado, coloquei um óculos escuros de Thierry Mugler
notação musical de Gagaku, nos teatros Nô, Bunraku, Kabuki,
e decidi fazer um repertório de standards, somente músicas
M a is O utr a
L ica Ce ca to
ção, claro, mas a execução ocorre de maneira muito diferente. Para
22/11/04 – SEISHINBYOOIN – MANICÔMIO DE
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tende. Ambos os métodos de leitura envolvem grande concentra-
muito conhecidas, mas sem letra, com a esperança que no fun-
VERSO E REVERSO
do de cada mente, perdida em si mesma, ainda existisse um
Japonismo. As palmas unidas, olhos unidos, sons unidos,
fio de memória, de união, que os pudesse embalar com a can-
mundos distantes, curiosa geometria, nossos pontos cruzando.
ção, para que houvesse um diálogo musical entre nós, afinal,
Em qual arquitetura bizarra cabe o nosso encontro? A estrada
o cantor pede ouvidos. Era uma missão quase impossível,
longínqua entre os “mins” da gente se encurtou. O amor através
mas eu não acredito em impossibilidades. Fui buscando ca-
da música derrubou fronteiras, criou novos aromas, abriu um
minhos através do amor e o amor cura tudo, ilumina todas
túnel no céu. O tempo foi segmentado em segundos, as várias
as situações. As emoções são enormes e eu não tenho tempo
camadas de ontem, hoje e amanhã transformaram o que é UM
de escrever enquanto me preparo. Cantar neste manicômio,
em UM. Neste átimo, o divórcio entre o homem e o homem se
onde o olho das pessoas não mora mais dentro delas, onde
acabou. Na areia, cada grão brilha e se apaga sozinho, mas tudo
mesmo o pra-fora-do-mundo mora pra-dentro, como se o
é areia, tudo é mar. A gente virou grão que vive junto, a gente
olho estivesse embrulhado dentro do corpo, e o corpo guar-
foi nadar no mesmo mar, e deixou que a marola nos levasse e
dasse em si memórias, universos, que não fazem mais parte
trouxesse num embalo natural.
dessa atmosfera, do que a gente está vivendo aqui, seja o que
L ica Ce ca to
pessoas no hospital e um pequeno sorriso no canto da boca
HACHINOHE, SAULE BRANCHE CAFFE E A
TSUNAMI
de alguns, uma mãozinha que acompanha a música batendo
Em 2004, quando cheguei à estação de trem-bala de Hachi-
com a mão no joelho, nossa comunicação possível somente
nohe, nordeste do Japão, enviada especial de Kepel Kimura, vi
através da música, me deram uma alegria inexplicável.
uma turma com bandeirinhas brasileiras, todos com uma ca-
De volta ao hotel, quieta, sozinha e sem público, senti que
miseta igual, e quando desci do trem olhei pra trás para ver se
essa felicidade é só minha, de ver os olhos deles, chamados lou-
tinha algum jogador de futebol brasileiro acenando, pois essa
cos, sonhando com os meus. A canção conseguiu atravessar to-
turma estava dando tchauzinho, e eu nunca pensei que fosse
das as paredes da impossibilidade e gentilmente tocou o coração
para mim, mas era... Era o pessoal do Saule Branche Caffe, com
de cada um, trazendo-me de volta uma tal quantidade de amor
quem fiz muita música, muita comida, muitas viagens e progra-
verdadeiro que fiquei atrapalhada. Segura, coração. Foi muito in-
mas de rádio, além dos shows, que fui com a intenção de tocar
tenso. Os olhos infelizes e distantes sorriram um pouco e aquele
sozinha e acabei tocando com Takushi Yoshikawa e YAM, na
pouco foi o sol inteiro para mim, com todos os seus raios.
maior alegria. Fica difícil imaginar que numa cidade de interior,
M a is O utr a
seja. Aqueles olhos distantes e o presente, os olhos tristes das
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pequena como Hachinohe, existam pessoas tão livres, artistas tão
rativa, OMitsusan é a chef de cozinha e a esposa de Taku-chan.
mos, dentre outras, duas versões para o japonês de uma música
No primeiro andar, fechado para o público, eles têm um estúdio
de Caetano Veloso, “De manhã”, e “Meditação” de Gilberto
de som e fazem um programa de rádio semanal, há dez anos,
Gil. Charlie foi para mim muito mais que somente um grande
com música ao vivo. Os shows são abarrotados de gente que
músico, foi um grande amigo, esse ítalo-americano visionário,
participa, canta junto, bebe junto, come junto, tudo muito junto.
que muito antes do conceito de world music nascer já enca-
Quando houve a tsunami em 2011 e vi no telejornal os barcos
rava a sua realidade musical como um mundo sem fronteiras,
sobre as casas em Hachinohe, além de outras localidades onde
onde a vivência musical em palco e em discos é perfeitamente
eu havia tocado como Sendai, nos informando que cidades in-
possível e a riqueza que essa mistura traz está registrada no que
teiras haviam sido destruídas, muitos mortos e desaparecidos,
se faz como música; quer dizer, ele não precisou teorizar, mas
não deixando nenhum vestígio de que ali um dia houvera uma
viveu isso, foi precursor. Era o melhor amigo de Paul Shigihara.
cidade, tive muito medo pelos meus amigos, mas dias depois
Digo isso porque Charlie faleceu em junho de 2009 e entrei em
consegui saber que eles estavam vivos e muito bem, como ainda
contato com todas as suas filhas, e com Monday Michiru; tro-
estão. Se o meu susto foi grande, imagina os sustos que eles le-
camos discos e e-mails, pois ela era a única filha que se tornou
varam. Observo a força que une essas pessoas na reconstrução
música profissional. Quando fui tocar em Aomori, sabia que
do que perderam e tomo como lição. Em novembro de 2013,
ela também estava no programa. Como ela vive em New York
quando fui a Hachinohe e outras áreas do norte e nordeste para
nunca tínhamos nos encontrado. Seu show estava programado
tocar, depois de três anos de ausência, aconteceu mais um en-
para muitas horas depois do nosso e as viagens são longas entre
contro mágico que me provou que o mundo está unido por elos
Aomori e Hachinohe, estávamos numa turma bem grande, não
e que formamos uma grande corrente, pelo menos dentro da
teríamos podido esperar. Quando estávamos nos despedindo,
música e da arte. A Zodiac Nova Pop Machine and Contem-
depois de nossa apresentação, já na saída, chegou Monday Mi-
porary System de Hachinohe me convidou para tocar em Hiro-
chiru e com grande emoção nos abraçamos longamente. Hoje,
saki, Aomori, num festival de música, e fui como guest. Volto a
em outubro de 2014, estou finalizando o texto deste livro num
Colônia e a Paul Shigihara, com quem fiz meu primeiro CD na
hotel em Hachinohe e fizemos um evento chamado Viva Bossa!
Alemanha, em 1996, com Jeff Hamilton, Paulo Bellinati, John
Goldsby, Hubert Nuß e Charlie Mariano, grande saxofonista,
EMBRULHINHOS JAPONESES
que por sua vez foi casado com Toshihiko Akiyoshi, maestra de
Tudo o que eu tenho pensado a respeito dos embrulhinhos,
sua homônima orquestra de jazz. Eles tiveram uma filha que se
dos saquinhos, dos envelopes é engraçado porque aqui se inventa
M a is O utr a
chama Monday Michiru. No CD, que se intitulava PELE, grava-
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L ica Ce ca to
60
incríveis. O clube de música é pequeno, a estrutura é de coope-
que o chão fique quente para que seus pés fiquem bem dentro
Oniguiri, kimono, norimaki, chapéus e lencinhos de homens
de onde você está, na estação do ano em que está. Inventa-se a
e mulheres, e depois mais longe, num devaneio romântico, as
privada quente para que se fique bem onde se está sentado, mas
casas, os jardins e, obviamente, as escadas rolantes de Tokyo.
a questão do invólucro contém um perigo: seus olhos vão virar
Somos pequenos invólucros envolvidos pelo pacotinho-escada,
para dentro e cada vez menos vai-se precisar olhar para fora.
nos alinhamos como num filme de Chaplin, máquinas perfeitas
Dentro do SEU invólucro, se sentindo bem no SEU invólucro,
que escondem no paletó uma emoção. Dessa vez vamos pensar
não é mais necessário sair. O invólucro como casa, como um
no pacotinho-kimono. Só vesti kimono uma vez, e eram quatro
embrulho e o uso do papel de embrulho, tudo bem embalado,
camadas entre sedas e algodão, quando o normal na festa do
bem apresentável, bem dobrado em tudo o que se embrulha.
Ano Novo são seis. Cada camada tem uma cor e um significa-
Fico curiosa pelo fato disto estar relacionado com a felicidade.
do que ignoramos, seja como linguagem cênica ou mesmo seu
Às vezes o embrulho é mais importante que o conteúdo. Se a
significado intrínseco. Os ocidentais creem possuir tudo; donos
natureza do homem [ocidental] é procurar a felicidade, então
da verdade e polícia do mundo, também creem que já domi-
a natureza do homem [oriental-japonês] provavelmente, não
naram o Oriente. Essa prepotência pode impedir o estudo e a
é procurar a felicidade, partindo-se do princípio do yin-yang,
observação profundos de outras culturas, pode fazer perder os
onde todo o bem inclui todo o mal e todo o mal inclui todo o
melhores sabores e experiências em vários campos sensoriais,
bem, mas os mistérios são muitos e o embrulhinho é somente
inclusive estéticos.
um deles. Eu sinto que esses pacotinhos todos, tudo muito bem
Vou enumerar umas delícias que fazem parte do meu paco-
dobrado, os oniguiris, o chão quente, a privada quente, a roupa,
tinho de memórias. Enrolar um pedacinho de atum com um
os sushis, o kimono, os invólucros, a beleza do ikebana e dos
pedacinho de abacate e depois enrolar tudo isso numa natinha
jardins, talvez sejam parte de uma só fonte de pensamento.
de soja, colocar os embrulhinhos deliciosos em cima de uma
com um leito de gelo batido hiperlimpo, um jardim de gelo, um
8 de dezembro de 2007
leito essencial para o peixe cru. Ouvir shamisen, instrumento de
Paz. Corre-corre de manhã, mala sempre cheia, corro do jei-
cordas para quem não conhece, que vem desmontadinho, numa
to que corre Tokyo, pessoas apressadas no metrô e escadas ro-
caixa de madeira, de onde como mágica sai um instrumento in-
lantes imensas, embrulhando a gente. Andei pensando no mun-
teiro, tudo encaixa e ressoa, enquanto a performer nos desem-
do do pacotinho. Aleatoriamente, posso indicar alguns motivos
brulha histórias e lendas antigas. Ir embora, no final, é como
dessa ideia meio curiosa, que na verdade nasceu de um sonho.
chegar. O momento é aquele belo NADA e a gente tem que
M a is O utr a
TOKYO PARIS RIO
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L ica Ce ca to
micromesa construída de um fragmento de bambu, e decorada
do dedão em 1963 e no Cildo, Zero Cruzeiro, Zero Dollar e
fecham num embrulho de si mesmo, revelando traços sutis em
Zero Centavo de 1974-1978. Tenho certeza que um não sabe
uma quase indiferença, que só não cola e dá para perceber que
do outro, mas a refinada ironia do pensamento é a mesma. Com
todos estão ligados, porque todos acertam a estação em que vão
Akasegawa Genpei aprendi um pouco mais sobre o amor pelo
descer. Adoro o povo japonês. Volto à história do pacotinho
detalhe e como isso se acentua no pós-guerra, quando as condi-
e da comida. Nos dois últimos dias comi muito bem, mas um
ções de vida eram péssimas, mas ao mesmo tempo, sem relação
particular me marcou: um dos peixes caros que comi em sashimi
com a economia, sobre a tendência japonesa a mesmerizar-se
veio com uns pedacinhos da borda externa do peixe, que em
com a natureza, como a figura linguística do conceito de since-
geral está colada no osso, e a parte foi delicadamente retirada
ridade que se compara à ponta da pétala da SAKURA (flor de
e servida como um lixo nobre, belamente cortado, carne perto
cerejeira). Questões como por que no primor da sofisticação da
do osso, gostosa, pequena, mínima, pode-se dizer um resto chi-
cozinha japonesa, a Kaiseki Ryoori, se usa um prato grande e uma
que, ou mesmo a estética do tudo incluído. Um amigo meu me
quantidade de comida muito reduzida. Por que num vaso grande, a
disse que os japoneses se baseiam numa economia da pobreza
ikebana usa uma só flor, ou poucas, num arranjo minimalista cheio
para cozinhar. Mais uma contradição? Quase me confirma isso
de significados, e assim por diante. Essência e prazer. Na pintura
outro prato de peixe que comi esses dias, grelhado, que veio
japonesa, o vazio do branco do papel é tão importante quanto a
com pedacinhos finíssimos da pele (nodoguro), pois é tão caro
imagem desenhada ou pintada. Segundo suas palavras referindo-se
que aproveita-se tudo. Não adianta achar uma chave única para
à cozinha, são prezados o aspecto suave, um cheiro quase inócuo e
esta cultura, mas a minha vontade, já que tenho acesso a ela, é
o preparo baseado na essência. CozinhARTE. O dia estava enso-
transmitir o que consigo. Na busca de pontos de vista diferentes
larado e foi a primeira vez que mantive um meu centro de paixão
e interessantes sobre a cultura japonesa, me deparei com um
pela cidade sem despencar em abismos inúteis de choros de adeus.
historiador, um crítico, um artista e um curador de arte con-
Separar-me de Tokyo assim foi bem estranho, como a gente faz
temporânea, não traduzido em português; é Akasegawa Genpei,
com parentes. Ontem fui ao Museu Hara de Shinagawa e conheci o
nascido em 1937 em Yokohama, dono de uma visão simples-
Izosaki Arata e sua esposa… Continuo amanhã.
estranha coincidência, fez um trabalho de arte contemporânea
THOMASSON
que se relaciona muito com o trabalho do artista brasileiro Cildo
Durante os anos 50 e 60, Akasegawa Genpei envolveu-se
Meirelles, nascido em 1948, um trabalho com o dinheiro, no
no movimento Neo-Dada, avant-garde, junto à Ushio Shinohara,
Genpei 1000 YEN vira ZERO YEN somado a uma sua digital
Shusaku Arakawa e Masanobu Yoshimura. Ele formou o Hi-red
M a is O utr a
mente extraordinária sobre a arte japonesa. Em 1963, por uma
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L ica Ce ca to
64
gastar tempo com isso. Os olhos apenas entram no metrô, se
Center com Jiro Takamatsu e Natsuyuki Nakanishi, e fizeram
produtor musical de uma grande empresa, mas, para mim, é o
exposições marcantes em grupo e performances, no Japão. Na
amigo que me mostrou Tokyo underground. Concentramo-nos
década de 1970 ele usou a ideia de Hyper-Art (chōgeijutsu), con-
em Shinjuku, Golden-Gai, como posso descrever? Funciona
siderando um objeto de rua, comum, mas sem função específi-
a noite inteira, são pequenos bares e karaokês, mas pequenos
ca, inútil, como uma obra de arte conceitual. Ele chamou essas
de um jeito em que às vezes cabem somente cinco pessoas. O
coisas Thomassons, e a história é realmente muito engraçada.
melhor que se pode encontrar para uma curiosa como eu, que
No pós-guerra, para reconstruir o Japão e por uma questão de
procura se misturar de verdade. Com Harada, visitei inúmeros
prestígio, para estimular o esporte, o time de beisebol Yomiuri
restaurantes noturnos com sashimi, yakisobas e sushis divinos, o
Giants chamou o jogador americano Gary Thomasson, que era
melhores sakes e shochus com chawari, bebidas alcoólicas mistura-
lindo, com cara de super-homem, rosto quadrado, cheio de mús-
das com chá. Com frequência sou a única estrangeira! Curioso é
culos, mas que na realidade foi um fiasco total, pois jogava mui-
que mesmo que seja somente para um lanche, grelhado, cozido,
to mal, não acertava uma. Akasegawa batizou de Thomasson a
cru, ou uma bebidinha, a sugestão do sushiman ou barman é
série de fotografias de objetos inúteis, principalmente na arqui-
fundamental e a sensação de que ele está cortando o sashimi fres-
tetura das ruas e casas, e as fotos foram publicadas pela primeira
co para você é impagável. O menu é escrito em grandes placas
vez na revista Shashin Jidai e mais tarde em livros de arte e DVD.
de madeira verticais ou em papéis pregados na parede. A cidade
Inteligência, ousadia, humor e ironia, adoro esse personagem e
ferve de noite e o contraste entre as ruas escuras, silenciosas, e o
seus livros. Uma viagem dentro da viagem.
individualismo exacerbado da metrópole, e o barulho, a vivacidade, e a descontração desses lugares, impressiona. Tokyo pulsa
TOKYO BY NIGHT WITH HARADA
de noite com um coração frenético. Harada-san, arigatô!
HERMETO PASCHOAL E A PLATEIA CANTANDO
se transformar em sonho, embriaguez e alegria, até o extremo
BAIÃO | KOICHI MAKIGAMI & CYRO BAPTISTA |
que às vezes se nota em pessoas solitárias e bêbadas que vão
VOZ DE CORVO & ALQUIMISTA DO SOM
dormir em hotéis-cápsulas, pois não conseguem voltar para
Essa história é verdadeira, ou pelo menos é como meus
casa. Talvez seja o prazer do que é escondido, a vontade de sair
olhos veem, como meu coração sentiu. Cheguei a Tokyo no dia
das regras rígidas que a dura metrópole impõe. Tenho essa mes-
3 de novembro de 2004, vinda do Rio de Janeiro, e ensaiei três
ma sensação na Alemanha. Os dias cinzas têm que se descul-
dias sem descanso para a apresentação que desejava fazer. Fiquei
par perante a vida por serem tão cinzas. Harada trabalha como
quietinha na minha MANSION, ou “mansão” de, no total, 14
M a is O utr a
balho acinzentado do dia, quando acaba, tem que magicamente
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L ica Ce ca to
As noites de Tokyo são lindas, decadentes e intensas. O tra-
rai quando saía à rua era aparentemente muito demorado. Saía-
coisa diferente porque tinham anunciado um dueto o um duelo
se para morrer ou para viver e sempre pronto à luta. Usando
entre o Cyro e o Hermeto que não aconteceu porque o Hermeto,
um espírito parecido, me preparei para meu solo, voz e violão,
que havia ficado viúvo e conhecera Aline Morena recentemente,
com algumas músicas conhecidas e uma fluência de ritmos que
tocou pela primeira vez com sua bela nova musa, e o Cyro tocou
pulsassem de maneira gostosa durante os 40 minutos de minha
com o Koichi, com quem já havia tocado. Um show emocio-
apresentação. Sabe-se que grandes nomes da música brasileira
nado e emocionante, no qual Hermeto fez com que a plateia
são bem-vindos na terra do sol nascente. Por exemplo, Egberto
japonesa cantasse a base rítmica para que ele “cantasse” a melo-
Gismonti me disse no ano passado que nas últimas décadas vem
dia em cima, com flauta, chaleira, vidros. Só o Hermeto mesmo
se dedicando a composições de peças sinfônicas para a Filar-
para conseguir fazer um baião com base nas palmas japonesas.
mônica de Tokyo. Fenomenal!
Palmas para ele! Eles fizeram duas sessões e minha apresentação
Meu show desse dia foi programado para ser num prédio em
estava de sanduíche, no meio e intervalo entre as duas deles.
Tokyo que se chama Daikan-Yama, muito badalado. Tem dois
Nesse dia, acabei minha parte, guardei o violão e corri para ver
locais de música nele, um se chama UNIT e o outro UNICE.
o show deles, que estava supercheio, muita gente jovem, todo
Fui convidada pelo então adido cultural da Embaixada do Bra-
mundo participando e gostando. Eu estava com Jin Nakahara,
sil, Marco Antonio Nakata, e pelo editor da revista +81, Satoru
que é um jornalista, crítico de música, amante da música brasi-
Yamashita, a fazer o show de lançamento da revista, em edição
leira e grande conhecedor, ao ponto extremo de ter aprendido
especial contendo somente o Brasil, com entrevistas de Miguel
português e fazer as entrevistas na nossa língua. Pessoas incrí-
Rio Branco, Oscar Niemeyer, Fratelli Campana, Revista S/N e
veis. Também estavam perto o Seigen Ono e a Rachel Rosalen,
outros. A tradução simultânea da entrevista feita com Niemeyer,
que fez um vídeo sobre minha apresentação e é uma querida
que na época tinha 97 anos, é minha, feita no Rio de Janeiro, em
amiga e artista. No final eu fui falar com o Cyro no backstage e
Copacabana, onde ele tinha seu escritório. Na noite de 6 de no-
conheci ambos, o Cyro que só conhecia através de e-mail e do
vembro, lá fomos, eu e o violão, de roupa dourada, para a tarefa
que o Romero Lubambo conta sobre o trabalho dele, em suma,
alegre. Na mesma noite estavam tocando no UNIT Hermeto
fantástico (vide Beat the Donkey!), e esse maravilhoso cantor e
Paschoal e a Aline Morena, e o Cyro Baptista estava se apresen-
performer que é o Koichi Makigami, que tem uma voz... Não,
tando com um cantor, um performer excepcional, genial, que é
ele não tem uma voz, ele tem várias vozes, canta em over tones,
o Koichi Makigami, que, além de já ter feito tour mundial com
tem uns harmônicos incríveis na voz, faz uns sons metálicos,
Laurie Anderson, vai muito para a Mongólia estudar técnicas
enfim, uma voz excepcional, múltipla. Quando fui falar com o
M a is O utr a
de canto impressionantes. Na verdade, estava-se esperando uma
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L ica Ce ca to
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metros quadrados, ou seja, quatro tatamis. O preparo do samu-
uma pena, pois ia tocar sozinho em Kyoto no dia seguinte, já
ter um hotel para ficar, para escrever para as pessoas e poder
que Koichi não podia ir, e nessa eu me ofereci. Cyro me disse
botar pra fora um pouco de felicidade, porque não está cabendo
que esse não era meu campo e eu expliquei minha esquizofrenia
mais no meu coração! Amém! Axé! Alegria!
profissional, de um lado pop brazuca e de outro poesia e música
Voltando ao Koichi, peguei um cartão de visita dele e dei
experimental, música instantânea. Eu podia ir, tinha passagem
um meu (escrito CANTORA FAMOSA, de brincadeira, ób-
de Shinkansen (trem-bala) e a vontade, isto é, a grande vonta-
vio, que copiei do poeta grego australiano TTO) e quando
de de ir me apresentar com o maravilhoso Cyro Baptista, livre,
chequei os e-mails no dia seguinte, lá estava ele dando um
feliz, me achando capaz de [do it or die] viver ou morrer [kaku-
OI e eu então perguntei se ele não dava aulas ou workshops
gô]. O samurai sai pronto para a vida e para a morte, acho que
de canto e ele respondeu que sim, que eu poderia participar
todos sabem disso. Dessa vez no Japão vivi alguns dias nesse
no dia seguinte, e eu fui. Foi muito bonita minha experiência
estado, senti que estava apta a aceitar a vida como água. Antes
com ele.
da minha vinda, eu tinha um objetivo e seguia uma reta, agora
O workshop era de duas horas. Na primeira meia hora ele
eu deixo que os lados me atraiam e distraiam; não esqueço o ob-
deu uma espécie de ginástica para relaxar os ombros, as per-
jetivo, mas me deixo levar flexível, às vezes o percurso supera o
nas, os ligamentos todos e foi excelente; depois começamos a
alvo, às vezes esqueço o alvo, às vezes estou dentro do alvo e às
trabalhar em grupo, trabalhar as vogais ó, é ó, cara de corvo, vr
vezes continuo desviando sem nunca chegar. Hoje sou mais fe-
br zzzzz, vários sons, vogais rapidamente. Ele tem uma luz no
liz. Neste desvio, acabei fazendo florescer esse encontro que foi
olhar incrível e para explicar para as pessoas como ele canta,
mesmo muito impactante. Fui a Kyoto para me apresentar com
ele fala: “Eu canto como um corvo”. Essa máscara de pássaro
o Cyro no clube NOWN. Meia hora antes do show, sentamos
na própria cara ou a vida do pássaro dentro do próprio cantor
no hotel para decidir o que tocar juntos, sem ensaio, e ele esco-
é muito engraçada, porque os pássaros são potentes. O que a
lheu começar com um solo, depois me chamar, e quis que eu
gente consegue provavelmente fazer com a voz, a gente pode
entrasse com o violão, começando com uma cançãozinha tipo
aprender com eles. Hoje tem um concerto dele e eu vou, depois
bossa nova pra depois quebrar tudo. E assim foi, todo mundo
eu continuo essa história, apesar de que eu quero dizer mais é da
suingando! Tinha muita gente, o Cyro é muito bem-humorado,
alegria dos olhos dele. Nesse grupo de vinte pessoas, tinha um
performer bárbaro, criativo ao extremo da palavra mesmo, tive-
menino débil mental, que conseguia cantar muito bem e eu me
mos momentos muito bons e a gente não se conhecia, acabamos
lembrei muito de Kenzaburo Oe, que ganhou um Prêmio Nobel
nos conhecendo no palco. Foi muito bacana e estou tão feliz hoje
de literatura, escrevendo sobre seu filho autista que virou composi-
M a is O utr a
que me sentei nesse pequeno internet-café em Kyoto, ainda sem
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L ica Ce ca to
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Cyro no backstage, depois do show deles, Cyro me disse que era
tor de música clássica ocidental. Viva quem enxerga outras vias
TOKYO WALKING BOOK
possíveis de comunicação, fora as tradicionais. Teve uma hora
18 de novembro de 2004
que ele nos sugeriu exercícios de improvisações em duo, e eu
Uma e meia, noite. Nós estávamos no metrô, todos ensaca-
chamei esse menino para cantar comigo, mas ele ficou com
dos, com aquela chuva horrível de fim de maio, e aqui em Tokyo
vergonha e eu emiti as cinco vozes… Brincadeira que faço
quando a gente entra num supermercado, numa loja, eles dão
desde criança. Ele então topou, e fez peripécias com a voz.
um saquinho para guardar o guarda-chuva molhado, então siste-
Nesse grupo de pessoas tem uma cantora/contadora de his-
maticamente os nossos guarda-chuvas estavam todos dentro de
tórias, que se acompanha no shamisen, Koharu, e o restante
seu saquinho, molhados e apertados, nós também molhados e
é um grupo de cantores que desenvolvem esse tipo de pes-
apertados dentro do trem. Tinha também esse homem, um se-
quisa vocal, Hikashu, superinteressante, inusitado. Tudo me
nhor muito cinza. Ele não estava triste, mas não tinha nenhuma
toca, mas a felicidade do Koichi transborda dos olhos dele.
alegria, nenhuma tristeza. Tinha, sim, um saco, e dentro do saco
Cantar provavelmente é felicidade pra esse moço que passou
tinha vários bilhetes usados de trem, provavelmente bilhetes que
a fronteira entre esse mundo careta, em que nos obrigaram
ele mesmo já tinha usado ou que ele achou em algum lugar, ou
a viver, o mundo dos homens assim chamados “normais”,
talvez seja o tesouro que ele quer deixar depois da morte para
desinteressante, e ficou perto da natureza. Ele é um pedaço
alguém. Esses bilhetes curiosos eram tratados por ele com a
de madeira, ele é o vento nas folhas, ele é chuva, ele é o som
minúcia dos segundos, que se transformam em minutos, que são
de uma vara de bambu, ele é o Koichi e eu fiquei muito feliz
as horas, os anos e que são aquele trem e nós mesmos, dentro
de conhecê-lo. Eu fico querendo chamá-lo de Koe Ichi, que
dele. Ele estava pondo cada um dentro de um saquinho indi-
significam KOE voz e ICHI um. Uma voz, um coração.
vidual, e no meio dessa trágica tarefa chata e de barulhinho de
TOKYO 2004 WALKING BOOK
saquinhos, cheio de bilhetes velhos, com uma cara de desinte-
Voltando para casa num trecho a pé, no coração de Tokyo,
resse total. Ao lado dele dois brotinhos japoneses, ela muito mo-
em Roppongi, me deparo com um bicho morto num aquário.
rena de lâmpada e ele com cara de ídolo, de cabelo comprido e
Um arrepio. Esse lugar deserto, ilhas e mais ilhas, lugar vas-
topete, ela estava fazendo um SMS no telefone celular e dormiu
to, prédio imenso, lugar desolado, o lugar-espaço mais caro do
no meio da mensagem, enquanto ele, o ídolo, já estava dormin-
mundo, e nós humanos também assim, peixes mortos no meio
do o tempo inteiro. Aí a gente fica assim como os saquinhos do
desta ilha, ninguém fala com ninguém.
cara, todos querendo dormir, nós saquinhos dentro daquele saco
M a is O utr a
L ica Ce ca to
papel chato, ele dormiu com uma mão dentro do saco, cheio de
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72
imenso do trem e acho que na nossa memória provavelmente não
sobra nada daquele momento, mas deve ter alguém para quem
uma janela incógnita nos víamos, nos reuníamos para dividir o
aquele momento presente é importante. Aqueles bilhetes usa-
cinza do tempo, o olhar envenenado que diz tudo sem nem mes-
dos para o homem cinza, que talvez fossem tão secretos, que ele
mo existir, numa cidade como esta, cruel, áspera e bela. Prosti-
tivesse que colocar num lugar muito especial, para ninguém ver,
tutas de Tokyo, cidade cadela, que não deixa rastros de amor ou
para que ninguém note, ou se notar, para que ninguém mexa.
ódio, não importa. Vazios todos, Tokyo e eu, junto a um monte
Provavelmente, só ele sabia da razão daquela catalogação em
de gente em todos os lugares, nós, vazios e infames como um
celofane e da importância que têm alguns bilhetes gastos de me-
dicionário sem palavras. O que sinto de voltar para o Ocidente
trô. Boa noite, Tokyo.
daqui a pouco? Bom e mau, tudo junto. Um pertence a outro e
vai me custar uma vida inteira para aprender a não existir. Estou
TREM
bem. Todo mundo lê algo no trem, quem sabe por que, talvez tirar
Nesse trem todos são japoneses, e eu continuo a escrever
o acinzentado da vida. O espelho falante diz que você é a mais bo-
o meu livro on the streets e estou indo para o campo, para o sul
nita do mundo, que você é interessante e que não é uma pessoa co-
do Japão. As cidades por onde estou passando são bonitas, casas
mum, um qualquer, um como somos todos nós, eu incluída. Aqui
pequenas, casinhas, plantações de chá, de arroz, peixe secando em
você pode virar nada e ser nada, se faz parte do sistema. Se não faz,
esteiras ao sol. Sinto-me bem entre as pessoas do campo, ninguém
nem nada se pode ser. Quanto mais alto o envolvimento com o
me estranha, sou uma espécie de gigante loira que passeia entre
sistema, mais livre te permitem ser. Contradições.
análise, nem eu quero analisar mais nada. Estou indo para o campo,
Homem, terra que quer água pra brotar.
só que aqui nesse trem existe uma diferença enorme com os trens
Tudo apagado menos a memória e a melhor memória é a
de Tokyo, onde as pessoas já estão bastante atípicas, infectadas de
música, nossa musa, que paira no ar por um instante e sempre,
metrópole. De Kyoto pra baixo existem ainda japoneses de cabelo
e a pele, que em silêncio traça as linhas do nosso destino, cruza,
preto, liso e daquele jeito de Japão que a gente conhece e que se não
descruza, brinca... O verdadeiro amor se esquece de que é amor!
conhece imagina, aquele arquétipo que era comum há vinte anos.
Dia desses, há de ser, de a gente se cruzar de novo, mas
jeito da gente conceber, vale o perfume.
EXPOSIÇÃO DO TOYOTA EM TOKYO, 1995
A exposição foi ótima, adorei rever os amigos e o trabalho
do Toyota. Voltando pra casa no metrô noturno. Através de
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como tudo já foi pra trás e vai pra frente, neste para sempre sem
Vou sair cedo pra tentar recuperar alguma coisa, talvez um
M a is O utr a
Então lá vou eu pra Hakata, hoje é dia 21 de novembro de 2004.
tico de sanidade!
75
L ica Ce ca to
eles tranquilamente, sem nenhuma distância. Sem distância não há
o corpo pede
Escritos com um giz dentro de um balão
o sonho sonha
No cimento do chão
mas
Tablados e tablados
sentir falta
Nossos jogos na mesa
é
Não sinto vontade de jogar
estar no oco
Deixo que a vida me leve
Escorregando na água como folhas
NASCI EM SÃO PAULO
Que caem num rio
SONHO COM HAVANA
Nos dias de vento do outono
VIVI EM TOKYO
E é verão
TENHO PASSAPORTE ITALIANO
NASCI EM TOKYO
É DO AVESSO DE MIM
TENHO PASSAPORTE CUBANO
SONHO COM RIO DE JANEIRO
QUE TE FALO
DO VAZIO DE MIM
VIVO NA ITÁLIA
NASCI EM RUANDA
QUE TE BUSCO
DO SILÊNCIO DE MIM
TENHO PASSAPORTE JAPONÊS
SONHO COM HAVANA
QUE TE OUÇO
DA TRISTEZA DE MIM
VIVO EM SÃO PAULO
QUE TE PRECISO
QUEM VAI NEGAR?
VERSO
VERSO
De ter vindo até aqui
E RE
Pulando quadrados
VERSO
Saltando um
Me desequilibrando na trama
No silêncio da noite o barulho da lâmpada, a certeza que
M a is O utr a
Me acho privilegiada
Somente para chegar ao céu ou inferno
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ERRE
corrói os seres sós e insones, que de sós, silentes e suados, surtam.
77
L ica Ce ca to
Jogo de amarelinha
Sussurra a rã e a menina ingênua de Lewis Carroll, enquanto
alguns sonhos sem esperança morrem nos céus. A lua inteira
de sua pessoa ilumina na moita. Certo, tão sozinho o ser, olhos
aquém, vibram os cílios. Seus quadris estreitos, à espreita do
vento morno e descuidado que o dia se esqueceu de controlar.
Japão está nos meus olhos de cabeça para baixo, verde, rosa,
claro, o escuro dos cabelos de seda negra. Alguns vêm, alguns
vão passar, alguns, muitos, num piscar de olhos, de alguma forma. Um beijo ótico, você veio, você foi, você voou e eu me senti
soberba, forte, cheia de bênçãos. Você pode não entender como
voar faz tão feliz quem só fica escrevendo sobre as folhas que
começam a cair no outono. Na verdade, pode-se acrescentar ao
pé da página: sua para sempre, e terminar o que é simplesmente
um caminho sem fim, sorrindo singela para alguém solto no ar.
KRAPP’S LAST TAPE
de SAMUEL BECKETT
encenado e representado por ROBERT WILSON
Athénée Théâtre Louis-Jouvet, Paris, dezembro de 2011
Na cena o desenho de um IDEOGRAMA: MA
um espetáculo sem pausas, sem entre-actes, feito e composto
de pausas e entre-actes
M a is O utr a
o personagem que observa, e vice-versa
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78
L ica Ce ca to
definição de pausa, de momento-entre, o objeto observado,
80
gritinho histérico num momento clue). Eu sou tu.
homem só, desenhado em texto por Samuel Beckett, desenha-
Bob Wilson é arquiteto de formação. Eu viajo nas várias ar-
do em cena e personificado por Bob Wilson. Um Bob Wilson
quiteturas, como, por exemplo, a do texto, onde Beckett é in-
refinado, um lorde da loucura, gestos medidos e pornografia
trigante e hipermoderno e a arquitetura do personagem criado
num traço de Shun-Ga (ilustrações eróticas japonesas). Gestos
por Bob Wilson, permeado das arquiteturas de suporte como as
“Kabukianos” para descrever sentimentos atuais, congelados
luzes, o som e o cenário. Não posso deixar de citar o teatro de
em frações de segundo, possibilitando ao olho do público ter o
gosto barroco, quase uma caixinha de joias, que foi escolhido para a
tempo de incorporar o desenho no ar. Se a principal característica
encenação dessa peça em Paris, o Athenée Theatre Louis-Jouvet. Que
cênica do teatro japonês Kabuki é exageração e a solidão que
enorme contraste das poltronas setecentistas e do cenário árido,
existe no texto de Beckett para esta peça é tão radical, a escolha
seco, da secura e rigor que só poucos artistas plásticos como Hi-
“japonista” da interpretação de Bob Wilson casa perfeitamente
roshi Sugimoto ou Aurelie Nemours podem compreender, que
com o texto. Transparecem tanto no autor quanto no ator um
só a obsessão de Yayoi Kusama pode suportar. Eu sou tu. Bob
forte sense of humour, usado com parcimônia, em pequenas do-
Wilson e Buster Keaton se confundem, me vêm à mente conti-
ses, muito eficazes. O espetáculo propõe uma viagem no tempo
nuamente cenas do filme experimental mudo de 1965, realizado
-espaço e até aí, nada de novo... MAS existe algo de desconcer-
por Alan Schneider, escrito por Beckett, no qual Keaton atua
tante, nada à toa, picante, como pode ter sido o momento em
esplendidamente. Nas duas situações, na peça La dernière bande
que Lucio Fontana decidiu cortar a primeira tela, o momento
– last tape e no filme, as cenas de um homem só, isolado, que da
belo e trágico do corte da tela, a mudança da história por causa
sociedade só tem lembranças banais. Um homem só, com suas
do corte da tela. No caso deste espetáculo, os contrastes chegam
recordações que, apesar de banais são só suas, indivisíveis com o
a doer. Dentro do seu rigor em branco e preto, as poucas cores
outro. O único OUTRO que pode observar a obsessão solitária
conseguem se sobressair de maneira marcante, cortam a cena a
de ambos os personagens é o público. Mais um contraste? Bob
boca aberta vermelha que solta gritinhos, ou as meias soquetes
Keaton ou Buster Wilson, e o dono do tabuleiro de xadrez é
vermelho vivo, como moldura exótica de uma roupa qualquer,
Samuel Beckett. Um parêntese: meu pai sempre dizia que se a
de um ser cinza, quase um ser qualquer, não fossem essas pe-
gente, ao interpretar uma canção, coloca ênfase em toda a exten-
quenas exagerações que escapam da jaula como pássaros livres,
são da canção, a gente não vai conseguir obter efeito nenhum,
rebeldes, única chance de respiro face à pressão social, que nos
ênfase nenhuma em nenhum lugar. Bob Wilson é rei do chia-
coloca todos em gaiolas. O corpo do ator é um objeto cênico
roscuro, do fortíssimo-pianíssimo e é rei do tempo e espaço que
M a is O utr a
L ica Ce ca to
branco e preto. Obsessiva simetria “engaiolante” e dentro dela o
e vale frisar que NADA é feito sem ser proposital (incluindo o
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A mise-en-scène perfeita, sóbria gaiola contemporânea em
ele trabalha na elasticidade do tempo usando a luz e o som que
crivaninha. Sabendo que o título da peça é A última fita de Krapp,
começa do nada e volta ao nada no fim do espetáculo, abrindo
pensa-se nas fitas, no gravador e puff! Ficamos desconcertados
e fechando um ciclo que a gente é induzido a acreditar que du-
quando o tabefe na cara chega ao ver que em vez da fita que ele
rará para sempre. O homem só, que quando se encontra só, fica
manuseia com pavor, o HOMEM pega uma banana, volta a sair
aflito de ver sua solidão cíclica, mas que cai nela, é deglutido por
de perto do gaveteiro, e representa, aqui sim completamente,
ela e desaparece no aglomerado de homens sós, que sós no seus
uma cena absurda do prazer da sacanagem, de teatro Kabuki
cantos, se pensam únicos. Pausas definidas, congelamento de ação,
com cabaré de travestis. Descasca a banana com graça, joga fora
do objeto cênico HOMEM são intermediadas de luz/sombra do
a casca-que-virou-flor, num sinal de transgressão, enfia a banana
ambiente, jogo esse que chega a ser maldoso de tão perfeito.
na boca e num gesto fálico e eficaz, em termos cênicos, deixa a
Chove, tempestade, relâmpagos. Um homem imóvel senta-
banana pendurada na boca, STOP, para, deixa que todos “engu-
do em sua escrivaninha. A cena inteira é desenhada por riscos
lam” a cena para depois começar a comer a banana com apetite
de luz na cena Black&White, como pinceladas de luz na grande
e ritmos normais. No meio da comédia, a tragédia implícita da
sombra que cai sobre este homem. Uma chuva de verão, SAMI-
solidão exacerbada e do medo de ouvir o que está gravado na
DARE (em japonês), muito usada nas gravuras de Hiroshige.
fita, aquela tatuagem do tempo. O ritual da banana se repete.
Uma sala retangular PB, com mesas cinzas laterais e três lumi-
Quando já estamos desistindo que o HOMEM vai ter coragem
nárias de almoxarifado em cima de cada prateleira, iluminando
de ouvir a fita, ele nos surpreende de novo, pega a fita e começa
as pilhas ordenadas de papéis e as caixinhas. Um painel traseiro
a ouvir. A primeira parte do espetáculo, que ao todo tem 70 mi-
sugere uma livraria que me lembra o mapa das casas de Dogville
nutos sem pausa, é MUDA. Algumas poucas expressões de sus-
(Lars von Trier), traços de luz branca desenhados à perfeição so-
to ou de gozo são expressas na voz com sons ou onomatopeias.
bre o painel negro. Pelo menos dez minutos sem nenhuma ação,
O rumor forte da tempestade só cessa quando o HOMEM de-
a não ser a da luz e a sonoridade do grande temporal atemporal.
cide e aceita de ouvir a fita que está na caixa três, fita número
Nenhuma ação a não ser um pedaço de olho, o canto da boca,
cinco, e a partir desse momento começa o processo de fusão e
as mãos, quase que acidentais, permeados pela luz dos raios da
de consequente CON-fusão entre o HOMEM que está na cena
tempestade. Quando a luz se acende, ou melhor, quando a som-
e o HOMEM que está na fita gravada, que é o mesmo, mas é
bra sai de cima do HOMEM, vê-se um gravador de rolo tipo
outro. De novo a matéria cênica se entrelaçando entre o COR-
Revox, e do outro lado uma pilha de papel e um livro. O homem
PO como objeto cênico e a VOZ DA FITA como coadjuvante,
tem medo do seu passado. Toma coragem. Levanta-se, segue
ou o contrário. Eu sou tu. A voz gravada na fita provoca reações
M a is O utr a
lentamente, arrastando os pés no chão, até o gaveteiro de sua es-
83
L ica Ce ca to
82
rege com cautela, dedicação e atenção. Extremamente musical,
entre reconhecimento, recusa, embriaguez e ódio. O diálogo
com o passado. Atrás do painel traseiro, o som de uma garrafa
da qual ele supostamente tira a rolha e bebe vinho, brandy, uísque? O bêbado critica o bêbado, o bêbado ama e odeia o bêbado. Eles se casam e se divorciam inúmeras vezes. A VOZ DA
FITA, ora como objeto-em-si ora como parte daquele corpo
Ono no Komachi
, Japão, ca. 825
~ 900
que a observa e escuta. Nesses todos, HOMENS multiplicados,
estamos nós, está o reconhecimento de nossas solidões, os nossos
espelhos escondidos, os olhos do outro que não queremos que
Transcriação* de 7 poemas por André Vallias e Lica Cecato
veja a nossa solidão, se depositam assustadoramente em frente a
* transcriação é um neologismo inventado pelo poeta Haroldo de Cam-
nós mesmos, como na última cena do filme com Buster Keaton.
pos, que ajuda e estimula uma tradução intuitiva e sensitiva do poema
Incomoda saber que todos nós temos um “last tape” escondido nas
nossas gavetas. Infinitamente pessoal, sinto que nessa chave mora
1.
113
a dualidade mor dessa peça, o publico faz parte da cena, a cena faz
parte do público e naquele momento ninguém usa celular. Fusão,
confusão e ORDEM-TRANSGRESSÃO. No Kabuki a gente torce pelo personagem preferido, gritando seu nome. No teatro de
Bob Wilson, todos gritavam “Bob, bravo!!”. E eu concordo.
Texto Samuel Beckett
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L ica Ce ca to
Cenografia Yashi Tabassomi
Iluminação A.J.Weissbard
Som Peter Cerone
Colaboração com a mise-en-scène Sue Jane Stoker
Assistente Charles Chemin, assistant lumières Xavier Baron
Fotografias de Lucie Jansch
A flor perdendo a cor.
Efêmera, eu mesma
Esmaeço,
Olhando a chuva
Que rasura sem fim.
M a is O utr a
Interpretação e direção Bob Wilson
HANA NO IRO WA
UTSU NI KERI NA
ITAZURA NI
WAGAMI YO NI FURU
NAGAME SESHIMANI
85
Teathre Athenée Louis-Jouvet
IRO MIE DE
2.
UTSUROHU MONO WA
YO NO NAKA NO
HITO NO KOKORO NO
HANA NIZO ARIKERU
OMOI TSUTSU
Vendo a cor descorar.
NUREBA YA
Dentro do mundo,
HITO NO MIETSURAMU
Coração-flor dos homens
YUME TO SHIRISEBA
Descora em coro.
SAMEZARAMASHI WO
4.
Perdida em pensamentos
Adormeço.
Vejo quem não vejo.
Dissesse que era sonho,
Jamais teria acordado
HITO NI AWAMU
TSUKI NO NAKI NI WA
3. (
797)
OMOHI OKITE
MUNE HASHIRI HI NI
KOKORO YAKE WO RI
O desejo me desperta.
Coração, batendo
Em chamas.
M a is O utr a
Numa noite sem lua.
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L ica Ce ca to
Ele que não encontro
5. (
1360)
YORU NO KOROMO WO
KAHESHITE ZO KIRU
Saudade imensa.
No breu da noite,
Visto meu kimono
Pelo avesso.
HANA SAKITE
MINARANU MONO WA
7.
WATATSU UMI NO
KAZASHI NI SASERU
OKITSU SHIRANAMI
As flores se abrindo.
Entretanto, as ondas,
YUMEJI NI WA
Guirlanda dos deuses,
ASHI MO YASUMEZU
Não irão disseminar.
KAYOEDOMO
UTSUTSU NI HITOME
6.
MISHI GOTO WA ARAZU
No caminho do sonho,
Os meus pés não descansam:
Nele, nem os olhos ponho
ITO SEMETE
KOISHIKI TOKI WA
NUBATAMANO
M a is O utr a
Para vê-lo; acordada,
89
88
L ica Ce ca to
Vou onde quer que seja
Gêiser — nascente termal que entra em erupção periodicamente, lançando uma coluna de água quente e vapor para o ar.
Godzilla — monstro do Oceano Pacífico criado para o filme homônimo de 1954, dirigido por Ishirô Honda
Gurinsha — primeira classe dos trens-bala no Japão
Hai-jin — poeta especializado em haicais ou haikus
Glossário
Haikai
, ou Haiku — poema conciso japonês com métri-
ca de 5-7-5 sílabas, usando metáforas com referência à natureza
Aikido — luta marcial japonesa
AKEMASHITE, OMEDETOO GOZAIMASU — Feliz
Ano Novo
HANAIKADA — um desenho em laca ou tecido, típico da
era Momoyama, que indica uma espécie de jangada, ou troncos
Tokyo. É famoso pelo Senso-ji, um templo budista dedicado ao
unidos por uma corda, que era a maneira de transporte fluvial
bodhisattva Kannon e o maior local de entretenimento da cidade
usado na época. HANA, que é flor, neste caso, indica a jangada
Ikebana — arte de arranjo de flores com base a regras e
Bunka — cultura
simbolismos estabelecidos. A palavra é formada por dois ideo-
Caligrama — texto, em geral poético, cuja disposição tipo-
gramas, VIDA e FLOR.
gráfica evoca ou figura um tema
inVENTO: — Espetáculo multimídia idealizado por Paolo
Chanpon — tipo de macarrão produzido em Nagasaki, fei-
Maria Noseda e Lica Cecato em 2012, com edição de vídeos por
to com legumes e carne ou peixe. Diz-se também da mistura de
Nicolò Piacentino. Músicas: Paulo Calasans, Arnaldo Antunes,
culturas: Chanpon + Bunka (cultura)
Paulo Tatit, Sandra Perez, Junior Aguiar, Lica Cecato, Mikhail
Choojin — super-homem
Malt, E. Gragnaniello, Michael Heupel, Gilvan Chavez, Fernan-
Città dela Musica, Auditorium Parco dela Musica —
do Luiz, Alcir Pires Vermelho, Villa-Lobos, Simon Diaz, Mo-
complexo de teatros em Roma construído por Renzo Piano
nobloco Live. Piano: Teodoro Curcio. Textos: John Cage, Lica
Fudé — pincel oriental usado para escritura, desenho e pintura
Cecato, Jaques Darras, Luis Guimarães Filho, Ferreira Gullar,
Futon — tipo de colchão feito de algodão em camadas
Hanna Moore, Paolo Maria Noseda, Nojiri Takuya, Jean de la
Gaijin — estrangeiro
Ville Mirmont. Traduções: Paolo Maria Noseda, Lica Cecato,
M a is O utr a
tante na prática do haicai ou haikai
permeada de flores, indicando a primavera
91
Bashô, Matsuo — 1644 a 1694, foi o mestre mais impor-
L ica Ce ca to
Hakata — distrito de Fukuoka
— é um bairro do município de Taito, em
Asakusa
90
e palavras que indicam as estações
partir de caracteres chineses, da época da Dinastia Han, que se
tano Dias, Roberto Cecato, John-Doggett Williams e Nicolò
utilizam para escrever japonês junto com os caracteres silabários
Piacentino. Artista e mestre calígrafo: Hiroyuki Nakajima. Com-
japoneses katakana e hiragana.
posições inéditas: Paulo Calasans e Lica Cecato. Figurino: Yossi
Kimono — vestimenta tradicional japonesa utilizada por
Cohen. Joias: Monica Castiglioni. Fotografia: Khalid el_Hakim,
mulheres, homens e crianças. A palavra kimono, no seu sentido
Marcello Donatelli, Ayako Takaishi, Roberto Cecato. Ilustra-
literal, significa “coisa para usar” (ki = “usar” e mono = “coisa”)
rios xintoístas japoneses, dedicado à deusa do sol, Amaterasu, e
está situado na cidade de Ise, na província de Mie.
Jishi
— o biógrafo ou secretário, que escrevia a história
do samurai
Kaiseki Ryoori — cozinha sofisticada e rica, servida em pequenas porções e em cerâmicas especiais, geralmente em sala
com chão de tatami, decorada com kakemono, que é uma pintura
Kimpira — comida feita com cenoura e bardana, cortada
bem fininha e cozida com óleo de gergelim
Koan Zen — histórias ou provérbios Zen utilizados para
concentrar a consciência
Kompira — o nome indica o deus dos navegantes comerciantes, mas também se diz de lugar, na Montanha Kotohira,
província de Kagawa.
Koto — instrumento japonês do tipo cítara, de forma retangular, e feito de ma- deira
ou caligrafia japonesa geralmente sobre seda, pendurada na sala
Kotowasa — provérbio, dito popular
de jantar dentro de uma alcova especialmente concebida para a
Kumamoto-ken — província do Japão localizada na ilha
visualização de objetos preciosos, que se chama tokonoma
Kakugô — resolução
de Kyushu
Kyoto — cidade no centro sul do país, fundada no século 1, foi
Kamakura — cidade localizada na província de Kanagawa,
a capital do Japão Imperial, sendo substituída por Tokyo em 1868.
a 50 km a sudoeste de Tokyo, conhecida pelo Grande Buda, estátua
Mangá — histórias em quadrinhos feitas no estilo japonês
monumental de bronze do Buda Amitaba, localizada no pátio do
MENS SANA IN CORPORE SANO — ditado em latim
Templo Kotoku-in. De acordo com os registros do Templo, sua
construção data de 1252, durante o período Kamakura, o primeiro
dos três grandes períodos do xogunato japonês.
Kamakura, Gokurakuji — cidade fundada em 1259 por
Ninshô, de mar e colina, de onde também se vê o Monte Fuji
— mente sã num corpo são
Mochi ou moti — é um bolinho feito de arroz glutinoso,
moído em pasta e depois moldado. Embora seja consumido durante o ano todo, é comido tradicionalmente no Shogatsu (Ano Novo)
M a is O utr a
Ise Jingu — Grande Santuário de Ise, principal dos santuá-
L ica Ce ca to
— são caracteres da língua japonesa adquiridos a
Vallias, Lica Cecato, Marcella Vanzo, Monica Castiglioni, Cae-
ções: Flavio Morais
92
Kanji
e em ocasiões especiais como nos nascimentos e casamentos
93
Florent Jodelet, TTO and Sandy Caldow. Vídeo/Clipes: André
yukata. As diárias incluem o desjejum e o jantar típicos da região,
Naoshima — esta ilha faz parte da Prefeitura de Kagawa,
servidos no quarto.
museus de arte contemporânea. Por exemplo, o Museu de Arte
Ryotei — são restaurantes tradicionais japoneses, enquanto
casas de chá são o-chaya
Chichu abriga uma série de instalações site-specific por James Tur-
Saquê ou Sake
rell, Walter De Maria, Hiroshi Sugimoto e pinturas de Claude
fermentação do arroz
— é uma bebida tradicional, fabricada pela
Monet, dentre outros. Desenhado por Tadao Ando, ele está lo-
Sashimi — peixe cru em fatias fininhas
calizado em um dos pontos mais altos da ilha. Outro museu
Shamisen
— literalmente, três cordas de sabor, é um
contemporâneo e hotel de luxo é o Benesse House, também de
instrumento musical de três cordas, geralmente fabricado com
Ando, inaugurado em 1992. O Museu de Arte de Naoshima, Fuku-
couro de cobra, gato ou cachorro, e madeira
take, tem um jardim de esculturas ao ar livre, fora inúmeras obras,
Shinagawa e Shinjuku — bairros de Tokyo
galerias e pequenos museus ao redor da ilha inteira. Uma maravilha.
Shinkansen — trem-bala
Nara — capital do Japão de 710 a 784, anterior a Kyoto. A
corte difundiu o budismo e a cultura chinesa e de consequência
a fundação de vários templos budistas.
Nodoguro — nome de um tipo de peixe
Norimaki (ou maki sushi) — É o mais conhecido dos
sushis e se trata uma porção de arroz avinagrado com algum
recheio, enrolado numa folha de alga chamada nori, daí o nome.
On the streets — na rua
Oniguiri
L ica Ce ca to
tes dormem em quartos em um futon, no tatami, vestidos com o
Momoyama — a era Azuchi-Momoyama vai de 1573 até 1603
localizada no mar interno de Seto. Conhecida por seus muitos
subi
— também conhecido como niguiri ou omu-
, é um bolinho de arroz japonês geralmente em forma
de triângulo, ou de forma ovalada, envolto por uma folha de alga
seca do tipo nori
Onsen — é o termo japonês para águas termais
Pastasciutta — macarrão, em italiano
94
— é uma hospedaria típica japonesa. Os visitan-
Shodo
— “Caminho da escritura” é a caligrafia japonesa
Shodo-ka — mestre em caligrafia japonesa, calígrafo
Shôji — porta de correr feita de madeira e papel de arroz
Sobá — macarrão japonês de trigo sarraceno, tipo espaguete
Sumi — tinta tipo nanquim japonesa, usada na escritura e
na pintura
Talking book — “livro falado”, em inglês
Tatami — tipo de esteira rígida usada no pavimento de casas tradicionais japonesas, feitos de palha de arroz
Yumeya — era um Ryokan que existia em Nara e o nome
significa Casa dos Sonhos.
Todai-ji — literalmente, Grande Templo Oriental, é um
complexo budista na cidade de Nara
Yukata — é uma vestimenta japonesa de verão.
Zoori — tipo de chinelo japonês
M a is O utr a
que fica com folhas vermelhas no outono
Ryokan
95
Momiji (Acer palmatum), ou Bordo japonês — é uma árvore
Agradecimentos
Kepel Kimura, Stefania Baldi, Yuichiro Satoh, Yamaki Nobue, Keiko e os pais Kenzaburo e Hideko Nakajima, Ko Tanzawa, Kimiko e Yukio Miyakawa, Mayumi Hisatune, Yuko Sakurada, Toru Iwasaki, Chieko Aoki, por me abrir muitas portas no
Japão em termos de música, de cultura e de amizade.
Grata às minhas amigas, Donatella Castellani e família, Stefano Scutari, Lorella Agosto e família que me acolheram na Itália,
cuidando de mim e da minha casa nas minhas longas ausências,
ÁLBUM
e que outras vezes ainda aceitaram morarmos juntos e trocar
casas. Betty Leirner e Marcia Penteado Candido Gomes, pela nossa
amizade e amor profundo desde a adolescência. Miyoko Ohtani,
Florence Sekito, Beth Dantas, Miriam Felzen e Patricia Faur, por
cuidarem da minha saúde. Meus irmãos Roberto, Alexandre, Carla e Daniele. Antonio Dias, Nina Dias e Rara Dias, Luis Marcelo
Mendes e Bento pela força. À família Leirner, pelo amor e suporte.
Agradecimento especial ao Alex Giostri pela velocidade na
eficácia e por ter cuidado com carinho desse sonho.
Na verdade, deveria fazer um livro que contivesse somente agradecimentos, mas a lista faz com que eu precise de mais
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L ica Ce ca to
decisão de realização e à toda equipe da Giostri Editora, pela
MUITO OBRIGADA a todos.
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de mil páginas, então vai um ARIGATÔ GOZAIMASU e um
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