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A Percepção Somatossensorial da Obra de Arte Pressupostos de um Projecto Artístico Rute Ribeiro Rosas Dissertação de Mestrado em Arte Multimédia Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto Maio 2002 Agradecimentos Começo por agradecer ao Professor Doutor Bernardo Pinto de Almeida pela sua orientação neste trabalho de dissertação. As nossas conversas ao longo destes anos serviram como referências essenciais para este trabalho e para a consolidação de uma amizade. Seguidamente, agradeço a todos aqueles que, directa ou indirectamente, me ajudaram na escrita destas palavras: chamei-vos quando fiz Vem Comigo'. Vocês são parte desta experiência que saiu de Dentro de Mim2, Particularmente à minha avó Olinda Ribeiro e ao meu padrasto Francisco Borges um eterno abraço. Infelizmente, não testemunharam esta aventura, mas são, com os meus pais, Celeste Ribeiro e José Rosas, e o meu companheiro, Miguel Duarte, os meus alicerces - o apoio e acompanhamento incondicionais e insubstituíveis. Um agradecimento muito especial às minhas amigas Rita Jácome e Suzana Vaz, pela cumplicidade, disponibilidade e atenção demonstradas ao longo de todo este processo de trabalho. Finalmente, agradeço à artista Lygia Pape e ao meu galerista José Mário Brandão, bem como aos colegas docentes e aos estudantes que me incentivam a continuar o investimento naquilo em que acredito. ' Intervenção realizada em Novembro de 2001 para o projecto da Galeria Canvas e Contos do Rosário, Parede do Artista. Dela fazia parte o pequeno texto que se apresenta: Vem comigo... se ouvires chamar por ti. Quando partir vou-te levar. No céu há uma nuvem quente. Um lugar criado por mim para nós 2 Título atribuído a este objecto/documento escrito. A Percepção Somatossensorial da Obra de Arte Pressupostos de um Projecto Artístico índice Enquadramento Introdução 9 15 1. 0 Conhecimento do Corpo e dos Sentidos, a Emoção e a Inteligência Emocional 21 1.1. Fechar os olhos... 23 1.1.1. Ver 29 1.1.2. Ouvir 35 1.1.3. Cheirar 40 1.1.4. Saborear 43 1.1.5. Tocar 46 1.2, Emoção e Inteligência Emocional 55 2. A Indústria do Corpo e a Proposta Multissensorial 73 2.1. Interactividade e Fruição 79 2.2. A Angústia do corpo - Alguns condicionamentos ao uso do corpo 87 2.3. Revisões do uso do corpo nas artes plásticas do século XX 105 3. A obra de arte como expressão artística propositora de uma experiência/vivência multissensorial 127 3.1. Louise Bourgeois: o discurso não narrativo e a autobiografia; os sentidos como linguagem simbólica do corpo-fragmento; a obra artística como sedução e como sublimação. 129 3.2. Bruce Nauman: corpo, espaço e paradoxos da percepção. 137 3.3. Dan Graham: tempo, espaço e ilusão perceptiva. 143 3.4. Rebecca Horn: a solidão e o isolamento; a dádiva e a partilha. 1 53 1 59 3.5. Dennis Oppenheim: a arte como congregação. 3.6. Joseph Beuys: por uma arte altruísta, 165 3.7. Hélio Oiticica: o sonho como revolta contra a repressão; o supra-sensorial pela incorporação corpo/obra, obra/corpo; centro enérgico e clímax corporal. 1 73 3.8. Lygia Clark: o ritual da interiorização do corpo e da mente; o diálogo e a experiência do outro; a nostalgia do corpo. 179 3.9. Lygia Pape: o corpo como registo das memórias poéticas e do nascimento. 187 4. Em tomo de um Projecto Artístico 199 Apêndices 215 Bibliografia 279 Enquadramento O tema deste trabalho de dissertação - A Percepção Somatossensorial da Obra de Arte - consiste numa referenciação e análise crítica de elementos relativos à criação e fruição da obra de arte multissensorial. O desenvolvimento desta pesquisa teórica destina-se a um aprofundamento de noções que relaciono directamente com alguns fundamentos do meu trabalho artístico, o que justifica o subtítulo deste texto de dissertação - Pressupostos de um Projecto Artístico. A palavra somatossensorial que reúne, pelo menos, dois conceitos que serão uma constante neste trabalho: cinestesia e sinestesia3, diz respeito «ao sentir do soma (que significa "corpo" em grego). É, porém, frequente que a noção que a palavra soma invoca seja mais restrita do que deveria ser. Infelizmente, aquilo que vem à ideia após escutarmos as palavras somático ou somatossensorial são as noções de tacto ou de uma sensação muscular ou articular. No entanto, o sistema somatossensorial respeita a mais do que isso e é, na verdade, mais do que um só sistema. É uma combinação de subsistemas, cada um dos quais transmite para o cérebro sinais acerca do estado de diversos aspectos do corpo4», e os conceitos referidos implicam uma relação directa entre o corpo e a mente. O enquadramento destas noções mostra-se, neste texto, dividido em quatro partes: uma primeira parte, Fechar os olhos..., de apresentação de elementos referenciadores daquilo que designo por percepção multissensorial, A Emoção e a Inteligência Emocional, de descrição e análise de possibilidades de desenlace de uma percepção somatossensorial e de motivações para a obra de arte multissensorial, matérias que ficam expostas 3 «Cinestesia - s. f. sensibilidade aos movimentos (Do gr. Kinein, "mover" +aisthesis, "sensibilidade" +-ia). (...) Sinestesia - s.f. termo que caracteriza e experiência sensorial de certos indivíduos nos quais sensações correspondentes a certo sentido são associadas às de outro sentido; sinopsia (do gr. Synaísthesis, "sentimento comum a vários" +-ia)», COSTA, J. Almeida e MELO, A. Sampaio, Dicionário de Língua Portuguesa, 8a Edição revista e actualizada, Dicionários Editora, Porto Editora, Porto, 1999. 4 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência (tit. orig.: The Feeling of What Happens, 1999, trad.: P.E.A.), col. Fórum da Ciência, Publicações Europa-América, Lisboa, 2000, p.179. 9 no capítulo 1. Emoção e Inteligência Emocional pelo processo do Conhecimento do Corpo e dos Sentidos; uma segunda parte, na qual estudo diferentes paradoxos subjacentes aos conceitos da Interactividade e da Fruição e o reconhecimento de alguns dos condicionamentos ao uso do corpo, através de um percurso histórico acerca do uso do corpo, que termina na ideia da Angústia do corpo, temas tratados no capítulo 2. A Indústria do Corpo e a Proposta Multissensorial; uma terceira parte que apresenta algumas revisões do uso do corpo nas artes plásticas do século XX, pertencentes ao capítulo 2 e que constitui uma passagem que permite a ligação à referenciação de exemplos concretos de algumas estratégias criativas promovidas por nove artistas, cujas motivações várias pressupõem a realização de experiências plásticas que abordam o tema do corpo propositor de uma experiência multissensorial nos fruidores, assunto tratado no capítulo 3. A Obra de Arte como expressão artística propositora de uma experiência/vivência multissensorial; finalmente, na quarta parte, o capítulo 4. Em torno de um Projecto Artístico, procuro sintetizar o programa de investigação estabelecido, pela identificação dos temas tratados ao longo de todo o documento, usados como os argumentos para a identificação da minha estratégia criativa e caracterização do meu projecto artístico. Se um dos maiores problemas que podem ser colocados ao Homem «é o da natureza da sua inteligência, pois que, em definitivo, ela só existe pela consciência que cada um tem de existir5», o factor de evolução tecnológica é promotor da alteração dos conceitos de tempo e de espaço, de acção e interacção, informação e formação, capaz de conciliar o aprofundamento do autoconhecimento e do relacionamento com os outros. Esta ideia comporta o conjunto das relações do nosso corpo físico com a nossa mente consciente e inconsciente, num processo interactivo que incorpora em si a sensibilidade e a acção que, na arte, são aspirações e reivindicações anunciadas pelo menos desde o início do século XX como, por exemplo, no dadaísmo, no futurismo, ou na performance, configurando uma pretensão de toda a arte do século XX e dos dias de hoje, e ponderando a 5 LEROI-GOURHAN, André, O Gesto e a Palavra - Técnica e Linguagem (tít. orig.: Le Gest et la Parole - Technique et Langage, Editions Albin Michel, 1964, trad.: Vitor Gonçalves), col. Perspectivas do Homem, n.° 16, Edições 70, Lisboa, 1985, p. 108. 10 integração de conceito e objecto - capítulo 2. A Indústria do Corpo e a Proposta Multissensorial. Considerando que a arte pode ser um veículo para a promoção de uma cultura da sensibilidade, a relação intrínseca que a arte tem com a vida implicará um conhecimento profundo de nós próprios e dos outros, impulsionando o artista à construção de obras de arte somatossensoriais, estabelecendo relações de reciprocidade entre o autor, a obra e os fruidoresparticipantes, num processo comunicante activo, de envolvimento total, motivando a presença da arte na vida e da vida na arte - capítulo 4. Em torno de um Projecto Artístico. Se, por vezes, esta ideia aparece relacionada, hoje, com o anúncio da possibilidade de abdicar da obra de arte no que respeita à sua apresentação enquanto objecto e a outros modos de representação, assunto tratado no capítulo 2. A Indústria do Corpo e a Proposta Multissensorial e no capítulo 4. Em torno de um Projecto Artístico, parece tornar-se necessário repensar a nossa condição e confrontarmo-nos com algumas das nossas mais valiosas capacidades - criação, imaginação e senso comum - partes que constituem um todo no ser humano: somos os principais responsáveis, como explicou Gregory Bateson, pela forma como conduzimos a nossa civilização e, portanto, aquilo que nós edificarmos terá como resultado aquilo que vamos ter e, consequentemente, ser6. Assim, o desafio proposto passará por «continuara sonhar sabendo que se sonha» (NIETZCSHE, 1874) através de uma maior atenção e consciência relativamente àquilo que está dentro e fora de nós, apresentado, por vezes, de forma invisível, no sistema de que todos fazemos parte. Se o senso comum individual pode considerar-se, afinal, cada vez mais como o maior recurso para a subsistência da vida inteligente no planeta, os melhores efeitos serão, provavelmente, conseguidos se formos conduzidos a ver por nós próprios aquilo que podemos fazer para marcar a diferença (BATESON, Gregory, 1979). 6 Questões colocadas pelo autor em obras como: BATESON, Gregory, Steps to an Ecology of Mind, Ballantine Books, Nova lorque, 1972, e Mind and Nature: A Necessary Unity, Ballantine Books, Nova lorque, 1979. II O aprofundamento de conhecimentos acerca das questões que se vão colocando, no decorrer do meu processo artístico, para as quais não pretendo respostas definitivas mas esclarecimentos impulsionadores de outras questões, permitir-me-ão dar continuidade à minha investigação. Mais do que um tema específico, exponho preocupações que derivam umas das outras sendo, portanto, impossível separá-las, apesar de ser possível designálas. Pretendo consolidar as minhas convicções e criações, e a maior ambição será a sua utilização por parte daqueles que, interessados nestas questões, desejem, como eu, conhecê-las - tema central do capítulo 4. Em torno de um Projecto Artístico. Na minha experiência como docente e ex-aluna desta instituição considero fundamental uma investigação contínua e a publicação de documentos que sirvam de ferramentas de estudo e divulguem ideias, percursos e pressupostos para a criação artística. A área que lecciono e, concretamente, a disciplina a que me dediquei ao longo destes três anos como assistente estagiária, Escultura II - 3o ano, inclui no seu programa a abordagem ao tema do corpo, pela autorepresentação, e ao tema do espaço, particularmente no que se relaciona com o site-specific. Nesse sentido, este trabalho de dissertação tem implicações directas na minha actividade como docente. Gostaria também de caracterizar e de justificar algumas opções formais relativas a este documento, no que diz respeito às estratégias conceptuais e metodológicas que defini para a sua concretização. Como se pode verificar pela leitura desta dissertação, optei intencionalmente por formas de linguagem poética recorrendo, por vezes, à metáfora ou a experiências pessoais. Procurei comunicar através de um modo que me permite, simultaneamente, um discurso poético e científico, acessível e rigoroso, numa tese científica realizada por uma artista e docente possuidora de uma formação artística. Optei por favorecer a descrição das obras de arte apresentadas como exemplos, em vez de utilizar reproduções fotográficas, por se tratarem de obras que implicam uma presença efectiva dos fruidores e, na tentativa de suscitar no leitor a curiosidade de, eventualmente, se confrontar com estas experiências. 12 Relativamente à quarta parte deste trabalho gostaria de referir as condicionantes que encontrei para escrever acerca daquilo que faço, daquilo que fiz, ou do que desejo fazer, tornando-se, por vezes, constrangedor, estabelecer e definir paralelos com obras de outros artistas na tentativa de ilustrar, de uma forma tanto quanto possível clara e simples, as minhas propostas. A apresentação formal desta dissertação consiste num objecto/documento escrito, intitulado Dentro de Mim, um corpo-fragmento que comporta no seu interior outro corpo-fragmento, metáforas que formam um todo intimamente ligado. Finalmente, se for considerado que exercícios como este são contributos importantes para o entendimento da produção artística contemporânea, apresentando-se sob uma forma que torna possível ao artista/docente teorizar cientificamente conteúdos de carácter artístico, então desejo que o resultado daquilo a que me propus sirva a uma saudável epidemia e ao respectivo contágio. 13 Introdução A nossa cultura é «baseada no excesso, na superprodução: a consequência é uma perda constante da acuidade da nossa experiência sensorial. Todas as condições da vida moderna - na sua plenitude material, na sua simples aglomeração - combinam-se para embotar as nossas faculdades sensoriais. (...) 0 que importa agora é recuperarmos os nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais7». Em primeiro lugar e para que se entenda o contexto destas afirmações, há que enquadrá-las no tempo. Trata-se de um documento de 1964 e, desde essa altura, houve, naturalmente, muitas transformações nos diversos departamentos do conhecimento humano. O que podemos considerar é que, mesmo hoje, este pensamento não perdeu sentido. Embora sofrendo profundas evoluções, a sociedade do início do século XXI continua, sob diversos pontos de vista, a reprimir e até, por vezes, a subjugar o uso e o aprofundamento do nosso potencial sensitivo. Quando se pretende trabalhar um tema como o apresentado, tendo a memória e as referências do passado em mente, sente-se uma profunda insatisfação e impotência. Os pressupostos levantados obrigam à difícil pesquisa da vida na actualidade, «dividida, não entre o "bom" e o "mau", o "progressivo" e o "regressivo", mas entre o que está pesadamente aí e o que pode ser "melhor", "mais justo", "mais livre". Tanto mais necessário quanto mais inexistente. Mas do inexistente de nada serve falar, é preciso agir. É só através do agir, como diz Octávio Paz, que "aparece o outro tempo, o verdadeiro, o que buscamos sem o saber: o presente, a presença"3». 7 SONTAG, Susan, Contra a Interpretação (tit. orig.: Against Interpretation, 1961 a 1966, trad.: Ana Maria Capovilla), L&PM Editores, Porto Alegre, Brasil, 1987, p. 23. 8 MIRANDA, José A. Bragança de, Traços - Ensaios de crítica da cultura, col. Passagens, dirigida pelo autor, Edições Vega, Lisboa, 1998, p, 78. Alguns pensadores do século XVIII tinham expectativas optimistas relativamente à relação da ciência com a arte por pensarem que esta promoveria uma melhor compreensão do mundo e do si, do progresso moral, da justiça institucional e da felicidade do ser humano e Octávio Paz, nos meados do século XIX, começou uma espécie de movimento a partir das ideias sensoriais lançadas por Baudelaire, tornando-se um companheiro de viagem da modernidade, mas «o século XX assassinou este optimismo", FOSTER, Hal, The Anti-Aesthetic - Essays on Postmordem Culture, Bay Press, 1983, reimpressão, Estados Unidos da América, 1995, p. 9, trad, livre. 15 Debaixo de um aparente conforto e liberdade, nunca estivemos tão vigiados e controlados. Somos constantemente observados. Cada passo que damos pode ser apossado por alguém, por câmaras que nos registam e que estão mais ou menos visíveis nos espaços que frequentamos. Já estamos habituados. Convivemos com isso como se elas não existissem. Isto parece ser o que se passa num plano consciente. Mas será que, naquele lugar que existe em nós e que desconhecemos, esse controle não altera o nosso comportamento? Podemos admitir que sim, sendo que possivelmente este será um motivo pelo qual, sem sabermos explicar porquê, nos sentimos sós, isolados. Dir-se-ia que somos livres no que respeita ao pensamento. Confortamo-nos com a ideia de que temos ainda a liberdade de pensar e sentir individualmente, mesmo quando suspeitamos que essa eventualidade não durará muito tempo9. Um dos exemplos que o sugerem, é um tipo de utilização dado à Internet: o CHAT. A Internet, a rede informática com mais de 30 anos criada pelo Pentágono10 como um instrumento de comunicação que facilitava a transferência de informação e a participação simultânea de vários indivíduos em fempo real, teve como implicação o facto das distâncias geográficas deixarem de fazer sentido, permitindo uma mobilidade completamente nova (a possibilidade de ter uma reunião em qualquer local com rede telefónica), uma nova noção de tempo e de espaço, bem como, entre outras coisas, aquilo a que se chama teletrabalho. Esta denominação, aplicada por Paul Virilio, bem como a de telepresença ou reunião à distância, são expressões de um tempo e espaço novos, dominados pelas tecnologias informáticas de teledifusão e teletransmissão, que derivam do telecomando. Este, utilizado para provocar, à distância, uma acção numa máquina é, segundo Virilio, a essência da vida de hoje. Uma imobilidade física, sedentária, a perda do corpo locomotor, uma 3 Encontra-se em estudo a possibilidade de introdução de microchips no cérebro de indivíduos considerados perigosos para a humanidade, por forma a ter-se acesso ao planeamento das suas acções. Com o efeito de sobrelotação dos estabelecimentos prisionais, a possibilidade de inserir câmaras de vídeo no sistema ocular e controlar estes seres humanos resolve a questão do espaço, numa espécie de prisão individual de aparente liberdade. Quem sabe se um dia não viveremos todos assim, sem liberdade de escolha, de vontade, de decisão. Viabilizar-se-á a perda da alma? 10 Os interesses de criação desta rede, denominada na época de Arpanet (Advanced Research Projects Agency + Net), foram militares e justificados pela situação vivida em 1969 na Guerra do Vietname. ÍÍS invalidez motora pelo sobreequipamento que tende a agravar-se devido ao elevado nível a que chegaram as tecnologias, que desenvolvem a um ritmo alucinante sistemas de prótese corporal, caminhando para a cibercultura e na direcção da lei da menor acção. Este telecomando generalizado deriva para uma televigilância permanente". Numa outra perspectiva, a Internet funciona também como um jornal ou uma revista, com a vantagem de não ter nem especialidade, nem limites de dimensão, nem uma direcção e corpo editorial a definirem o tipo de informação mais conveniente e correcta. Qualquer pessoa com acesso ao meio pode exteriorizar os seus pensamentos usando texto, imagem e som, com direito ao anonimato. Este anonimato acarreta vantagens e desvantagens facilmente identificadas nos crimes sexuais de fins trágicos cometidos por doentes disfarçados. Para além disso, constatamos, por exemplo, que há pessoas que dedicam uma grande parte do seu tempo a fazer-se passar por personagens que criam e a procurar quem dialogue com elas, lhes dê um pouco de atenção, revelando através da máscara do anonimato, frustrações e recalcamentos mas, sobretudo, apelando de uma forma mais ou menos mascarada :«Um pouco de atenção comigo, por favor! Eu estou aqui!». Se isto é perturbador, podemos também pensar que a possibilidade de anonimato permite "desabafar" sobre questões que, noutra situação, dificilmente se colocariam. Este procedimento funciona como uma confissão, com a vantagem de não se estar ligado a qualquer tipo de religião, de não se ter que sair de casa e de não se conhecer a identidade dos interlocutores. Ao mesmo tempo, o alívio conseguido, provavelmente, não passará de uma ilusão, um engano que se comprova pela constante insatisfação que se mantém, por se sentir que nada se alterou depois de noites em claro num chat, na ilusão de se estar acompanhado. Considerado um meio democrático que nos permite viver numa aldeia 2 globaP sem distâncias físicas de separação, viabiliza uma nova inteligência colectiva defendida pela perspectiva de Pierre Lévi. Meios como este são extremamente úteis e desejáveis mas podem funcionar como uma nova " VIRILIO, Paul, A Velocidade de Libertação (tit. orig.: La Vitesse de Libértation, 1995, trad, e prefácio: Edmundo Cordeiro), col. Mediações - Comunicação e Cultura, dir.: José Bragança de Miranda, Relógio D'Agua Editores, Lisboa, 2000, pp. 62/70. 12 Expressão criada por Marshall McLuhan. 17 espécie de catalisador de estados de consciência alterada, que criam, como outros, dependência, transformando aqueles que nestes se viciam numa espécie de autistas tautológicos. Esta doença, nomeada tautismo13 (SFEZ, Lucien, 1991), provoca um delírio, uma perda da necessidade e capacidade de comunicação com o outro. Os meios electrónicos tomam-se fonte de alimento, desencadeando um processo de isolamento e de incapacidade de sociabilização, uma dependência. Sem se dar conta, o consumidor dependente cria o seu melhor amigo numa máquina - a única coisa em que tende a acreditar e a dar atenção. O profundo mergulho digital™ na Realidade Virtual, da ilusão e do sonho, comparável às alucinações'5 provocadas pelo L SD, encaminha-nos para a anulação da proximidade física e emocional que «converte a sociedade num deserto cheio de genre16», ou, na definição de Jean-François Peyret: «um '3 No livro A Comunicação, L ucien Sfez define tautismo como a «contracção de dois termos, autismo e tautologia. Autismo, doença do auto fechamento em que o indivíduo não tem a necessidade de comunicar o seu pensamento a outrem nem de se conformar ao dos outros e cujos únicos interesses que possui são a satisfação orgânica e lúdica".(p. 703) Mais adiante podemos 1er, reafirmando esta ideia que «o computador torna-se "way of life". Passam-se seis horas por dia ao computador, sete dias por semana. (...) A vida é monástica: dorme-se e come-se ao pé do computador. Procura-se ai a "perfect mastery" que corresponde ao desej o de criar um mundo perfeito, diferente do dos pais. Mundo do desafio sem fronteiras onde se leva o corpo aos seus limites (■sport death, diz o hacker). O contacto com o computador é quase sensual: entra-se em telepatia com ele. A máquina torna-se simples extensão do corpo e espírito próprios. Nesse mundo perfeito está-se sozinho e em segurança, é-se diferente, mas no seu próprio território. A segurança afectiva é absoluta, não há casos sentimentais ou sexuais, talvez desej áveis, mas arriscados. Com o computador avança-se cautelosamente, a confiança é progressiva e o controlo toma-se completo».(pp. 138/139) Concluindo este raciocínio refere que «a interpretação faz parte integrante da comunicação e se, por outro lado, referimos essa interpretação à função simbólica na medida em que ela lê e liga os signos entre si pela mediação de símbolos interprétantes, devemos reconhecer que ela se opõe à confusão tautistica*, SFEZ, L ucien, A comunicação (tít. orig.: La Communication, trad.: João Paz, Presses Universitaires de France, 1991), col.: Epistemologia e Sociedade, dir.: António Oliveira Cruz, Instituto Piaget, Lisboa, p. 148. 14 GUBERN, Román, O Eros Electrónico- Viagem pelos sistemas de representação e do desejo (tít. orig.: El Eros electrónico, 2000, trad.: L uís Filipe Sarmento), col. Sinal dos Tempos, Editorial Notícias, Lisboa, 2001, p. I7I. 15 «La psicodelia hace que los ciberianos conciuyan que "tienen la capacidad de modificar la percepción de la realidad y por tanto ■ si ei observador y lo observado son uno - también la realidad". Cuando un químico créa una droga de diseno "decide como quiere que sea la realidad y en una búsqueda submolecular de la reveiación chamánica - compone un producto químico que modificará su percepción de una manera determinada... El mundo cambia porque es percibido de otra forma-, DERY, Mark, citando Rushkoff, in Velocidad de Escape - La cibercultura en el final del siglo (tít. orig.: Escape Velocity - Cyberculture at the End of the Century, New Line Productions, 1995, trad.: Ramon Montoya Vozmediano), Ediciones Siruela, Madrid, 1998, p. 50. 16 Op. cit., pp. 141/142. 18 mundo de qualidades sem homemu». «E é evidente que o novo Homo otiosus tende a substituir massivamente a comunicação sensorio-afectiva pela comunicação meramente informativa, com oito horas perante a pantalha do computador e depois mais três ou quatro horas em frente do ecrã do televisor doméstico. De tal maneira que os signos tendem a suplantar as pessoas e as coisas, como a flor de plástico a flor natural, ou os peixes estampados nas cortinas o meio aquático. O triunfo da cultura dos interfaces, mediadores que transportam até aos cidadãos representações de substituição e experiências mediadas do mundo físico, supõe uma grave mutilação sensorio-afectiva18». Esta distorção de significados, geradora de novos mitos, é denunciada em exemplos não referenciados por Peyret. À semelhança do écran de televisão ou das flores de plástico, o automóvel transformou-se numa espécie de cápsula, guarda-lamas do cérebro (FOSTER, Hal, 1983), simuladora do espaço circundante. No automóvel «passa-se, de modo evidente, de uma alquimia da velocidade a uma gula da condução. (...) Nos halls da exposição, o automóvel modelo é visitado com uma aplicação intensa, amorosa: é a grande fase táctil da descoberta, o momento em que o maravilhoso visual vai sofrer o assalto racional do tacto (porque o tacto é o mais desmistificador de todos os sentidos, ao contrário da vista, que é o mais mágico): toca-se com a mão nas chapas, nas junturas, apalpam-se os estofos e as almofadas, experimentam-se os assentos, acariciam-se as portas em face do volante, mima-se a condução com todo o corpo. O objecto é aqui totalmente prostituído, transformado em objecto de apropriação saída do céu da Metropolis, a "Déesse" é mediatizada num breve quarto de hora, realizando através deste exorcismo o próprio movimento da promoção pequenoburguesam». Não seria previsível que na Era da Comunicação, numa sociedade que se apresenta como transparente20, se chegasse a uma tal solidão, 17 PEYRET, Jean-François, Mus/7 ou les contraditions de la modernité, Critique, 339-340, 1975, pp. 846/862. 18 GUBERN, Román, O Eros Electrónico - Viagem pelos sistemas de representação e do desejo, pp. 141/142.. 19 BARTHES, Roland, Mitologias (tit. orig.: Mythologies, Éditions de Seuil, 1957, Paris, trad.: José Augusto Seabra), col. Signos, Edições 70, Lisboa, 1988, pp. 140/141. 20 Giorgio Vattimo refere que a sociedade pós-moderna, a sociedade da comunicação é uma sociedade transparente. O papel determinante desempenhado pelos media gera uma 19 desconforto e marginalização. Não estamos cada vez mais próximos, mas sim cada vez mais distantes, em culturas menos comunicantes, com desigualdades sociais cada vez maiores. Não é preciso distanciarmo-nos para outro continente. Existem aqueles que estão próximos de nós geograficamente mas que por não terem acesso aos novos meios vivem num fosso de distância nunca tão marcadamente evidente. São nomeadamente as diferenças entre os informados, os desinformados, os mal-informados, os ricos e os pobres21. Os factores económicos nunca foram tão decisivos para a diferenciação entre os homens e são eles o motor da nossa vida, hoje mais do que nunca. Mas é a nossa capacidade única de possuir consciência, criatividade, emoção e senso comum que pode alterar as previsões mais catastróficas: o fim da humanidade. Na arte e, concretamente, nas obras de artes plásticas sinto que, como no quotidiano, por vezes, embora acompanhados pelas obras, estamos sós. Será porque, como reflexo do que vivemos e como disse Samuel Beckett: «A arte tende, não para a expansão, mas para a contracção»? O texto que escrevi procura incitar à atenção, à acção e à expansão, quanto mais não seja porque somos seres humanos. sociedade, simultaneamente «ma/s consciente de si- e «mais complexa, até caótica», pelo que será ••neste relativo caos que residem as nossas esperanças de emancipação-, VATTINO, Gianni, A Sociedade Transparente (tít. orig.: La Société Transparente, Garzanti Editore, 1989, trad.: Hossein Shooja e Isabel Santos), col. Antropos, Relógio D'Agua Editores, Lisboa, 1992, p.10. 21 «£s/a dualização económica deve completar-se hoje com a correspondente dualização bipolar em termos de conhecimento e de capacidade de acesso à informação, que divide a sociedade em inforricos e em infopobres. Veja o plano de qualquer cidade ocidental e verifique-se a densidade de computadores pessoais ou de ligações à Internet em cada distrito. O mapa resultante será eloquente e permitirá comprovar que a dualização riqueza-pobreza se esconde agora com a dualização que separa os inforricos dos infopobres, que não têm a informação requerida para serem profissionalmente competentes numa sociedade pós-industrial, nem o acesso ás suas fontes, nem critérios para a procurar. (...) Em termos gerais, 44 por cento dos lares brancos têm computador contra só 29 por cento dos lares negros. Esta dualização divide o planeta e cada uma das suas nações e cidades em insiders e outsiders-, GUBERN, Román, O Eros Electrónico- Viagem pelos sistemas de representação e do desejo, p. 56. 20 1. O Conhecimento do Corpo e dos Sentidos, a Emoção e Inteligência Emocional. «Nós acreditamos saber muito bem o que é "ver", "ouvir", "sentir", porque há muito tempo a percepção nos deu objectos coloridos ou sonoros. (...) Construímos a percepção com o percepcionado. E, como o próprio percepcionado só é evidentemente acessível através da percepção, não compreendemos finalmente nem um nem outro. Estamos presos ao mundo e não chegamos a nos destacar dele para passar à consciência do mundo. Se nós o fizéssemos, veríamos que a qualidade nunca é experimentada imediatamente e que toda consciência é consciência de algo», MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção (tít. orig.: Phénoménologie de la Perception, Editions Gallimard,1945, trad.: Carlos Alberto Ribeiro de Moura), col. Tópicos, Martins Fontes Editora, São Paulo, 1994. 21 1.1. Fechar os olhos... ...Por vezes é necessário dar descanso ao mais atento e desperto dos sentidos. Por vezes é necessário, para sentir de uma outra forma, mais intensa, mais profunda, mais atenta. O poder dos olhos é tão marcante que chega a ser dominador. Quando damos um beijo, fechamos os olhos, para nos concentrarmos nos lábios, na língua, no seu profundo sabor. Um beijo intenso e apaixonado é um banquete. Uma espécie de faz de conta que te como, que te bebo, que te consumo a pele e o corpo, num crescendo de temperatura e de emoção. Na arte, «o beijo mais famoso do mundo talvez seja a escultura de Rodin com o mesmo nome, em que dois amantes, sentados sobre o afloramento de uma rocha, se beijam ternamente e com uma energia radiante, num beijo eterno. Com a mão esquerda em volta do pescoço do homem, a mulher parece desfalecer ou cantar para dentro da boca dele. Este tem a mão direita aberta sobre a coxa dela, uma coxa que conhece e venera, pronto a tocar aquela perna como se fosse um instrumento musical. Envolvidos um no outro, os corpos unidos pelas mãos no ombro, na mão, na perna, na anca e pela boca, selam o seu destino (...). Tocam-se apenas aqui e ali, mas parece tocarem todas as células do corpo um do outro22». Quando nos aproximamos desta escultura, penetramos num ambiente que nos marca e transforma. Sentimo-nos invasores de um momento de privacidade e isso perturba-nos, embora aqueles personagens, de tão envolvidos que se encontram, não sintam que os observamos e que desejamos estar como eles. Através dos nossos olhos, a actividade neural é activada, desencadeando sensações indescritíveis de desejo e desconforto. As mudanças no estado do corpo podem ser, ou não, detectadas pelo outro e, se a exteriorização existir, pode dizer-se que nos emocionamos. Quem quer compreender o sentir precisa de explorar a rede complexa dos mecanismos da percepção e da sensação, na procura de clarificar estes fenómenos, numa descoberta voltada ao eu. 22 ACKERMAN, Diane, Uma História Natural dos Sentidos (título original: A Natural History of the Senses, 1990, trad.: Sofia Gomes), Temas e Debates, Actividades Editoriais, Lisboa, 1998, p.126. 23 Apesar de sermos o produto de hábitos, adaptamo-nos às 23 circunstâncias , aos espaços, e somos mais ou menos formais conforme as situações com que nos deparamos, a não ser que estejamos alterados, artificialmente, por algum motivo. Mantemo-nos nos limites de um conjunto de regras fixadas para as atitudes corporais individuais, que são tão nossas e únicas como as nossas impressões digitais. Um sorriso, um gesticular de braços, a nossa atitude corporal são uma assinatura. As mãos são frequentemente utilizadas como dispositivos sinalizadores. Os gestos que quotidianamente fazemos são inconscientes e, na maioria das vezes, melhor detectados por aqueles que nos observam. As nossas atitudes corporais informam, comunicam, muitas vezes melhor do que através da comunicação verbal, as nossas mudanças de humor e os nossos desejos. Podem também ajudar na enfatização do discurso oral, sem com isto termos alguma vez a certeza e a total consciência de estarmos a comunicar aquilo que pretendemos com o interlocutor. Quando comunicamos há distorções de significado que nos obrigam a procurar conhecer e entender o esquema mental dos nossos receptores. Se isto se passasse de forma perfeitamente consciente, admitindo todas as dificuldades do acto, provavelmente não comunicaríamos. O corpo habita o tempo e o espaço. Não só é, ele próprio, um espaço limitado por uma fronteira permeável de pele, como pode percorrer espaços graças à sua capacidade de mobilidade, e aos olhos que, mesmo quando estamos parados, nos permitem uma viagem espacial. Neste sentido, os instantes, os momentos, o aqui e o agora, não existem. Somos o resultado de todos os passados recentes e longínquos. No presente momento, desencadeia-se um processo subjectivo e incontornável, que nos permite articular e formar uma intenção de 23 Como escreveu Ortega e Gasset: «Circunstância e decisão são os dois elementos radicais de que a vida se compõe. A circunstância - as possibilidades - é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isto constitui o que chamamos mundo. A vida não escolhe o seu mundo, pois viver é encontrar-se, à partida, num mundo determinado e impermutável: neste de agora. O nosso mundo é a dimensão de fatalidade que a nossa vida integra. (...)Em vez de nos impor uma trajectória, impõe-nos várias e, consequentemente, força-nos... a escolher. Surpreendente condição a da nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forcado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Nem um instante sequer se deixa descansar a nossa actividade de decisão.(...) as circunstâncias são o dilema sempre novo ante o qual nos temos que decidir. Mas é o nosso carácter que decide», GASSET, Ortega y, A Rebelião das Massas (tít. orig.: La Rebelión de las Massas, Herederos de José Ortega y Gasset, trad.: Artur Guerra, 1937), col. Antropos, RelógioCÁgua Editores, Lisboa, p. 66. 24 um determinado ponto de vista. O corpo vive uma espécie de «tempo histórico que se projecta do presente vivo em direcção a um passado eaum futuro2*». O mundo, a vida, existem enquanto construção de diferentes perspectivas, que derivam das diversas experiências que vamos formando e que dentro e fora de nós se vão constituindo, connosco e para além de nós, como resultado dos passados de cada um na construção de um presente futuro, num processo de encadeamento sempre inacabado e nunca absoluto. Basta uma variação nas conexões que se realizam no cérebro e no nosso organismo para que as construções que fazemos do mundo e dos ambientes que nos rodeiam sofram alterações significativas. Disto tudo depende a percepção, o raciocínio, numa parceria corpo-mente, emocional-racional. Um envolvimento directo com a memória, com o passado, com o anterior e o interior. Esta interacção dá-se pela transmissão de influências e sinais do cérebro ao corpo, químicos e neurais, de carácter quer consciente, quer inconsciente. Quando a nossa memória nos remete para procurarmos os significados de determinada coisa, com a qual voltamos a ter, agora, uma experiência sensível, isso vai provavelmente reflectir-se no momento presente: «Neste caso, portanto, o "sensível" não pode mais ser definido como o efeito imediato de um estímulo exterior25». «Enquanto habito um "mundo físico", em que "estímulos" constantes e situações típicas se reencontram - e não apenas o mundo histórico em que as situações nunca são comparáveis - a minha vida comporta ritmos que não têm a sua razão naquilo que escolhi ser, mas uma condição no meio banal que me circunda. Assim, em torno da nossa existência pessoal aparece uma margem de existência quase impessoal, que é por assim dizer evidente, e à qual eu reporto o zelo de me manter em vida, em torno do mundo humano que cada um de nós se faz, aparece um mundo em geral ao qual é preciso pertencer em primeiro lugar para poder encerrar-se no ambiente particular de um amor ou de uma ambição26». Esta rede cria, em alguns indivíduos mais atentos e predispostos, e não apenas porque nasceram assim, aquilo a que se chamam 24 25 26 MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção, p. 446. Op. cit., p. 29. Op. cit., p. 125. 25 experiências sinestésicas. Estas passam pela capacidade de associação de uns sentidos aos outros, como é, por exemplo, olhar para alguma coisa vermelha e sentir calor. Desde há pelo menos 300 anos que se estuda a sinestesia, mas sempre numa perspectiva clínica. De acordo com o neurologista Richard Cytowic, «Synestesia (Grego, syn =juntamente + aisthesis ou aisthnesthai = ter percepção ) é uma experiência física involuntária de associação modelada, pela qual a estimulação de um sentido vai estimular outro. É uma fenomenologia claramente distinta da metáfora, do tropo literário, e das acções artísticas que por vezes aplicam o termo sinestesia para descrever as suas junções multisensoriais27». Este cientista define 5 critérios para diagnosticar sinais sinestésicos: «(1) A sinestesia é involuntária; (2) as percepções sinestésicas são projectadas fora do corpo, imergindo continuamente através do espaço físico envolvente; (3) a sinestesia é genérica e resistente: a fusão específica dos sentidos mantém-se estável ao longo do tempo, e, ao contrário da metáfora poética, as qualidades das experiências sinestésicas mantêm-se não elaboradas; (4) a sinestesia é memorável: as pessoas com sinestesia disparam com frequência prodigiosas capacidades de memória, que podem estar directamente ligadas à sua capacidade sinestésica; (5) a experiência sinestésica, através de qualidades sinestésicas, é suportada por uma experiência emocional ou extática na sua inequívoca certeza, inefabilidade, de passividade e efemeridade. Utilizando este raciocínio, asseguram uma primazia radical da emoção sobre a razão, num sistema distribuído no qual a emoção é o principio organizador, e a razão um espaço infinito de trabalho da menfe28». Não acarretando qualquer significado cultural, a sinestesia, como todas as experiências sensoriais, é um processamento perceptivo e uma «pequena praga para quem não deseja tal sobrecarga sensorial,(...)» revigorando «aqueles que são inegavelmente criativos29». Baudelaire fez, na publicação Salão de 1846, uma referência crítica ao seu ensaio Cor. Cor está aliado à música: «Na cor encontramos harmonia, melodia e contraponto». Mais 27 HERTZ, Paul, Synesthetic Art— An Imaginary Number?, Leonardo, Journal of the Internacional Society for the Arts, Sciences and Techonology, vol. 32, n° 5, 1999, MIT Press, pp. 399/404, trad, livre. 28 Ibidem. 23 ACKERMAN, Diane, Uma História Natural dos Sentidos, p. 298. 26 adiante, Baudelaire imagina uma escala de analogias de ligação entre cor e sentir. «Não são apenas sonhos, ou estados de delírio que processam o adormecimento, mas também surgem acordado quando ouço música - essa percepção de uma analogia e de íntima conexão entre cores, sons, e perfumes. Parece-me que todas estas coisas foram criadas por um único e mesmo raio de luz e que a sua combinação resulta num fabuloso espectáculo de harmonia30». Todos nós sentimos, temos sensações e sentimentos, percebemos o que nos envolve por meio dos sentidos. Pressentimos, reconhecemos, apreciamos, compreendemos, deixamo-nos impressionar, temos consciência e sensibilidade, mas dir-se-ia que não fruímos plenamente as potencialidades do sentir. A verdade é que raramente somos completamente espontâneos, naturais. A sociabilização impõe um determinado tipo de comportamentos com regras bem definidas que, adequadamente assimilados e accionados, nos proporcionam uma convivência em consonância com as regras, consolidando a nossa identidade. Estas regras diferem de cultura para cultura, seja esta nacional, local, ou o conjunto de regras definidas em cada uma das nossas casas, e que regulam o nosso dia a dia. O uso dos sentidos não é apenas uma questão cultural, embora sofra representações diversas. Constatamos que diferentes povos e culturas vivem em sistemas que nos podem permitir reconhecê-los. Neste trabalho abordo apenas o indivíduo inserido no paradigma da sociedade ocidental mas, num certo sentido, a maneira como usamos os sentidos é exactamente a mesma: «O mais espantoso não é o facto de os sentidos transporem distâncias ou culturas, mas conseguirem transpor o tempo3''». «O conhecimento de nós próprios é uma oferta generosa. É de 32 graça ». Platão concluiu que não existe nada mais difícil do que o conhecimento de nós próprios e, por consequência, dos outros. Sem pretender tratar exaustivamente as condicionantes culturais que atravessam 30 Charles Baudelaire, The Salon of 1846, in The Mirror of M: Critical Studies by Baudelaire, trans. Jonathon Mayne (Garden City, NY: Doubleday, 1956), pp. 45/50, pp. 87/94. 31 ACKERMAN, Diane, Urna História Natural dos Sentidos, p. 12.. 32 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, p. 224. 27 este problema, alicia-me a promoção do seu estudo, por acreditar termos «entrado numa nova era da hipersensibilidade exacerbada por todas as nossas novas extensões sensoriais. Nós vamos solicitar para a realidade virtual que ela nos restitua o acesso aos sentidos que nos foram roubados pela leitura e, antes de tudo, o tacto, que nos aterroriza desde a Grécia antiga. Não que a realidade virtual seja uma nova forma de droga como espíritos desgostosos nos afirmam. A realidade virtual é uma metáfora tecnológica da implosão do mundo técnico sobre o corpo físico33». 33 KERCHOVE, Derrick, A realidade virtual pode mudar a vida?, in DOMINGUES, Diana (org), A Arte no Século XXI - A humanização das tecnologias, , textos de vários autores, Fundação Editora da UNESP, São Paulo, 1997, p. 50. 28 1.1.1. Ver Embora se possa olhar sem ver, é preciso olhar para ver. Fornecendo «ao sistema nervoso uma quantidade de informação muito maior do que o tacto ou o ouvido e num débito muito mais rápido34», os olhos são, na realidade, muito usados, mas só excepcionalmente temos a consciência do que vemos, porque é preciso educar a visão, aprender a ver, a descodificar os estímulos visuais recebidos e a questioná-los. Quando olhamos e vemos alguma coisa, não temos a consciência da variedade de informação que podemos extrair. Muito ainda está por descodificar, definir e perceber, e esta observação não passa de uma atitude superficial de indefinições, que nos permite apenas identificar, na aparência, a coisa em questão. Para melhorar esse conhecimento é necessária «uma infinidade de perspectivas diferentes contraídas numa coexistência rigorosa, e que seja dado como por uma só visão de mil olhares35». A viagem dos estímulos da visão até ao cérebro provoca sensações que o corpo recebe e manifesta. «Levante os olhos desta página e dirija-os para a sala e para as coisas que estão à sua frente, observe-as com atenção e regresse depois à página do livro. Quando levantou os olhos, as várias estações do seu sistema visual, desde as retinas até às diversas regiões do córtex cerebral, deixaram rapidamente de seguir estas palavras para cartografarem a sala que se encontra à sua frente. Quando regressou ao livro, todas essas regiões voltaram mais uma vez a cartografar a página. (...) Moral da história: numa sucessão rápida, precisamente as mesmas regiões do cérebro construíram mapas completamente diferentes devido às diferentes disposições motoras que o organismo assumiu e às diversas informações sensoriais colhidas pelo organismo35». Esta experiência proposta por António Damásio demonstra a velocidade dos processos comunicativos entre o olho-emissor e o cérebro-receptor na decifração de diferentes mensagens e da qual não 3 * HALL, Edward T., A Dimensão Oculta (tit. orig.: The Hidden Dimension, 1966), col. Antropos, Relógio de D'Agua, Lisboa, 1986, p. 79. 35 MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção, p. 107. 36 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, pp. 40/41. 29 temos consciência. Estamos perante a promoção de um desdobramento das personalidades37, num teste à distinção entre o real e o virtual. Sendo a maior fonte de informação que possuímos, os olhos «não se limitam a receber estímulos, emitem-nos, também, graças ao olhar.(...) Só o olhar emite o imaterial, por ser incorporai, também ele38». À visão são atribuídas as capacidades de percepção e análise da cor, do movimento, da forma e, a par da audição, é o sentido mais requisitado. Através dos olhos vivemos a aparência das coisas, a partir da imagem que delas captamos e formamos. Na ilusão de que vemos cada vez mais e melhor, há uma persistência no olhar em termos de quantidade que é inferior quanto à qualidade, pela velocidade e consequente desatenção. Uma visão mecânica de aparente especialização, automática e preguiçosa. Nem sequer somos livres na escolha do que vemos, no sentido em que, por vezes, e remetendo o leitor para o contexto televisivo, só para dar um exemplo, somos persuadidos, seduzidos, sem sermos directamente obrigados a nada porque, comodamente, deixamo-nos contagiar por um sistema que privilegia a distância e a desatenção ao que nos está mais próximo, tomando-se esta atitude uma demonstração de cumplicidade com o aparente, o que parece39. A extrema importância dada à visão, todavia desatenta, deu origem a uma certa superficialidade perceptiva na apreensão daquilo que nos rodeia, numa sujeição à ilusão e ao engano. O olhar funciona como uma bengala, um amparo que sustenta uma aprendizagem desejada e desejável que, pelas interrogações que vão surgindo, desenvolve um estilo próprio definindo um campo visual próprio, de cujos limites temos talvez pouca consciência. 3 ' Nas palavras de Paul Virilio: «Quer se queira quer não, há agora para cada um de nós um desdobramento da representação do Mundo e, por conseguinte, da sua realidade. Desdobramento entre actividade e interactividade, presença e telepresence, existência e teleexistência. Confrontados com o carácter estereoscópico de um real partilhado entre óptico e electroóptico, acústico e electro-acústico, tacto e teletactilidade, estamos prestes a abandonar os nossos hábitos de ver e de pensar, para apreender um novo tipo de "relevo" que põe mesmo em questão a utilidade prática da noção de horizonte e, por conseguinte, a "perspectiva" que até à data permitia que nos reconhecêssemos aqui e agora-, in VIRILIO, Paul, A Velocidade de libertação, 1995, pp. 71/72. 38 GIL, José, A Imagem- Nua e as Pequenas Percepções (tít. orig.: /_' Image- Nue et les Petits Perceptions- Esthétique et Metephénomélogie, trad.: Miguel Serras Pereira), col. Estética e Metafenomenologia, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1996, p. 49. 33 Referimo-nos a conceitos como realidade, real, informação, desinformação e comunicação. Estes envolvem-nos enquanto público, receptor, pelo que, estas questões, são desenvolvidas no capítulo 2.A Indústria do Corpo e a Proposta Multissensorial. 30 A cor é, por exemplo, um dos elementos recorrentes na concepção de obras de arte e, concretamente, nas experiências que realizo. O paradoxo presente na utilização da cor prende-se com o facto de ser, provavelmente, o elemento perceptivo mais estudado ao longo da história e, ao mesmo tempo, o mais abstracto e inconclusivo. A percepção da cor sofre influências culturais, sociais e políticas e, sobretudo, individuais, talvez ao ponto de se poder dizer que cada ser humano tem uma percepção particular da cor. Nas associações cor/forma/textura40 podemos encontrar algumas soluções de carácter mais geral: formas redondas, côncavas ou convexas, sugerem envolvimento, interioridade. Associando-lhes a cor vermelha, por exemplo, podemos acentuar essas características alusivas e assim proporcionar uma percepção de proximidade acrescida. Se esta superfície vermelha for aveludada, ser-lhe-á acrescentado o sentido de conforto e calor. Por este motivo é importante cuidar a superfície, a pele ou a textura porque ela é a carne das coisas (MERLEAU-PONTY, 1959)4'. Deita-te (1998), Estar (1999), ou Engano (2000), são espaços-objectos nos quais utilizei a cor como um dos elementos promotores de comunicação com os fruidores. A propósito do Deita-te, Óscar Faria escreveu, no jornal Público em Maio de 1998, no artigo de opinião acerca da exposição Universos Paralelos e outros, do grupo Fundação Radar, constituído por jovens artistas e coordenado por Bernardo Pinto de Almeida, que este trabalho proporcionava «relações inter-humanas» fugindo àquilo que referiu como «estatismo decorativo». Nesta peça, os fruidores eram convidados a deitarem-se num solo montanhoso inspirado em Marte, construído de madeira e esponja recoberta por veludo vermelho, e a verem uma espécie de álbum de fotografias de uma viagem de férias a um espaço extraterrestre da autoria de '"«conjunto de cores e superfícies habitadas por um tacto, uma visão, portanto, sensível exemplar, que capacita a quem o habita e o sente de sentir tudo o que de fora se assemelha, de sorte que, preso no tecido das coisas, o atrai inteiramente, o incorpora e, pelo mesmo movimento, comunica às coisas sobre as quais se fecha, essa identidade sem superposição, essa diferença sem contradição, essa distância do interior e do exterior, que constituem seu segredo natal. O corpo nos une directamente às coisas por sua própria ontogenèse, soldando um a outro os dois esboços de que é feito, seus dois lábios: a massa sensível que ele é e a massa do sensível de onde nasce por segregação, e à qual, como vidente, permanece aberto-, MERLEAU-PONTY, Maurice, O Visível e o Invisível (tít. orig.: Le Visible et l'Invisible, Éditions Gallimard, 1964, trad.: José Artur Gianotti e Armando Moura d'Oliveira), col. Debates, dir: J. Guinsburg, Editora Perspectiva, São Paulo, 1971, p. 132. 41 Não se trata da carne como matéria mas considerando-a o -enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente", MERLEAU-PONTY, op. cit., p.141. 31 Cláudia Amandi. Num espaço de m2, 25 o público instalava-se confortavelmente, assistindo à projecção das imagens e ouvindo músicas realizadas para o evento pelos Mute Life Department, podendo aproveitar a ocasião para conhecer outras pessoas, trocando impressões acerca das imagens projectadas, desejavelmente envolvido num ambiente acolhedor que poderá promover o esquecimento momentâneo do ritmo alucinante vivido no exterior. Estar com todo o conforto. Estar em silêncio. Estar com o que se tem, sem se dar conta. Estar com a pele do nosso corpo. Este trabalho apresentase com três elementos e duas cores predominantes: duas paredes e uma poltrona individual estofadas em veludo, para além de um filme em vídeo. Ao entrar na sala vemos, ao fundo, onde duas paredes se cruzam ortogonalmente, um espaço vermelho-sangue. Numa das paredes revestidas rasga-se um pequeno écran de televisão, tão pequeno (7 x 10 cm) que sugere continuar para além da "janela" aberta no veludo. Este passa um filme realizadp em macro, num percurso pela pele, pelos sinais, pelas diferentes pigmentações e texturas, pela proximidade com o veludo, pelas suas relações e pelos seus contrastes. Em frente do écran a poltrona, que como de uma noiva se tratasse, deixa para trás um véu formado por cintas que se iniciam nas suas costas e se prolongam. No ar, um perfume. O conforto, a vontade de estar naquele lugar. Cheirar, ver, tocar e sentir. Engano encontra-se numa pequena sala de iluminação escassa, remetendo-nos para um ambiente de jogo clandestino, com sete pequenos bancos vermelhos. Sobre cada um deles um objecto estranho, ao qual vou chamar dispositivo, de cor amarelada, ligado a um monitor, através de um tubo colocado em posição de destaque. Neste espaço de ilegalidade confortável, de sala de jogo digital, o monitor transmite o indecifrável, inexplicável e inominável que torna algumas imagens aparentemente simples, lugares de interesse e espaços de contemplação. O movimento e variações cromáticas introduzidas, que de algum modo podem denunciar o seu significado, aumentam irremediavelmente os seus sentidos. Se perguntarmos individualmente a cada fruidor o que esta experiência lhe sugere, obtemos com certeza um sem número de respostas, 32 mas a primeira questão que ele vai colocar, nem que seja em segredo é: «O que é aquilo? Que jogo é este?» Vamos dar-lhe algumas pistas. Proponho que se sentem e que coloquem nas vossas mãos o dispositivo, também ele inominável, macio, viscoso, e que por vezes ao ser tocado e amassado se assemelha ao que os vossos olhos observam perante as imagens, provocando a sensação de que podem interagir sobre o que estão a ver, funcionando como um interface de decifração do significado das imagens transmitidas. Neste simulacro proponho que sejamos cúmplices pela mentira. Os fruidores não interagem com o que estão a ver embora criem essa ilusão, que se acentua pelo facto de não estarem sozinhos. Apercebendo-se da sua impotência para comandar as imagens, é possível que cada um deles pense que se os outros suspendessem a sua acção a imagem tornar-se-ia fixa, imóvel. É o ENGANO. Um espaço mímico no qual o universo dos signos é claro. Um dispositivo, rato, um monitor, uma metáfora tecnológica, que inverte os sentidos quando estes vacilam e pedem a nossa adesão. Baralho a percepção sensorial que engana os fruidores, confundindoIhes os códigos, através da utilização da imagem e dos seus signos com a alteração do código usado socialmente. No que respeita à utilização da cor, posso referir o trabalho de Anish Kappor (Bombay, índia, 1954), que nos anos 80, começou a expor superfícies com formas rodeadas de pigmento pulverizado42 sobre o chão - 1000 Names (1980), Red in the Center (1982), Mother as a Mountain (1985) - de uma aparente simplicidade e que provocavam uma ilusão de elevação da terra para o céu. O valor simbólico associado às cores era intencional e implícito, e denunciava as suas origens culturais numa recuperação de tradições e rituais (era inclusivamente conhecido por colonizado/coionizador, denominação associada ao facto de, apesar de ter origem indiana, se ter fixado em Inglaterra). A cor utilizada como valor metafísico mantém-se em toda a sua obra mas, a partir de 1988, os seus trabalhos encerram-se, fechando-se, 42 «El color possee esa propiedad de transformar las cosas, de convertidas en orras diferentes. Tiene un valor metafórico muy vasto (...) El acto de poner pigmento sobre esos objectos elimina todas las trazas dejadas por la mano. Non nan sido hechos, unicamente estén allí», KAPPOR, Anish, entrevista Casi Escondido realizada por Marjorie Allthorpe-Guyton ao artista, in Anish Kappor, Visual Arts Department, The British Council, Thomas McEvilley e Marjorie Allthorpe-Guyton, Londres, 1990, pp. 46/47. 33 como se olhassem para o interior de si próprios e apelassem ao uterino, adquirindo o valor de lugar43 - Blood Stone (1988), Void Field (1989), The Healing of St. Thomas (1989-90), It's a Man (1989-90), Madonna (1990), Three Witches (1990), The Earth (1990), Passage (1993). A ideia de origem é, pelo valor atribuído à luminosidade/energia e escuridão, ao fora e ao dentro - Building fora Void (1992), Descent into Limbo (1992), Black Stones, Human Bones, site-specific concebido para a Igreja do Mocharro, Cerco - Bienal Internacional de Óbidos em 1993; Turning the World Upside Down (1995), Turning the World Upside Out (1995) - o princípio ordenador para o entendimento e construção da obra deste artista44. Utilizando a cor vermelha, Anish Kappor revela o corpo, o sangue ou o nascimento; o amarelo, a extroversão ou a paixão; o branco, a pureza ou a castidade; o azul, o espírito e a transcendência que, segundo o artista é tão puro quanto o branco mas mais profundo e infinito. Ao longo deste texto fomos caracterizando a visão45 que, a par da audição e do olfacto são considerados receptores à distância (HALL, Edward T., 1966). No conjunto dos sentidos, da sua utilização quotidiana, a audição e a visão são sentidos cuja preponderância tem, nos últimos anos, aumentado. Para o bem e para o mal, o audiovisual promove, como será analisado adiante, uma economia do esforço da imaginação (LEROY-GOURHAN, André, 1964). Desde a invenção do audiovisual que nos confrontamos com esta realidade irrefutável. As tecnologias digitais conquistaram um tal espaço que é impossível, hoje, distinguir neste departamento o real do virtual, o natural do construído ou trabalhado digitalmente. 43 «£síe lugar interior es un espado mente/cuerpo. Un santuário individual", KAPPOR, Anish, op. cit., p. 50. " «Capturing the force of life, as vortex, as eruption, is the essence of art, and art turn, through the principle of opposites, triggers the reading of life. This is the alchemy of creation», CELANT, Germano, Artist as Sacerdos, texto traduzido do italiano por Stephen Sartarelli, in Anish Kappor, monografia editada aquando da exposição do artista na Fundazione Prada em Milão, Thames & Hudson, Londres, 1996, p. 37. 15 Além de ser considerada um receptor à distância, há uma característica assinalável relativamente à visão e à forma como nos vemos, no sentido da nossa imagem aparente. Se nos tocamos, nos cheiramos, nos saboreamos, nos ouvimos, sem qualquer artifício, para nos vermos precisamos de um espelho e mesmo assim não temos uma realidade mas um reflexo. 34 É importante retermos esta mensagem: «mais do que protegermo-nos das imagens estamos na situação de ter de protegê-las... Eis o último capítulo da história da humanidade46». 1.1.2. Ouvir A ausência de luz anula apenas um dos nossos sentidos - a visão -, mas afecta os sentidos de orientação, equilíbrio, ou de percepção espacial. O psicólogo James Gibson demonstrou que para a percepção do espaço e nas noções de alargamento e estreitamento estão implicados pontos de referência estritamente visuais. O ouvido é, à semelhança de um radar, um dispositivo de sondagem e controlo. O som existe na medida em que se propaga pelo ar, que é imprescindível quer para a emissão quer para a recepção de som. Logo, as condições acústicas são determinantes e variam conforme os factores físicos envolventes. «Aquilo a que chamamos 'som" é na verdade uma onda que investe, encapela-se e recua, composta de moléculas de ar e provocada pelo movimento de qualquer coisa, grande ou pequena, propagada em todas as direcções. Antes de mais, é preciso que algo se mexa - um tractor, as asas de um grilo - e agite primeiro as moléculas de ar em volta, após o que as seguintes principiam, também, a estremecer, e assim por diante. Vagas de som rolam como marés até atingir os nossos ouvidos, onde fazem o tímpano vibrar; por sua vez, este põe em movimento três ossos com nomes curiosos (martelo, bigorna e estribo), os mais pequenos do nosso corpo47». O som absorvido pelo ouvido é, num processo de digestão que implica selecção, armazenado no cérebro. Também se aprende a ouvir. Há uma grande diversidade de sons 46 MIRANDA, José Bragança de, Carne, in SILVA, Paulo Cunha e, (concepção do projecto) Corpo Fast Foward, com textos de diversos autores, publicações NÚMEROMAGAZINE: fast toward, da Associação e Editora Ópio - arte e cultura, Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, Lisboa, 2001, p. 70. 47 ACKERMAN, Diane, Uma História Natural dos Sentidos, p.189. 35 que não temos a capacidade de ouvir, mas há muitos que conseguimos afastar para um plano mais distante quando queremos dar atenção a outros. Na faita de um dos sentidos, como acontece com os invisuais, existe uma tendência natural para um desenvolvimento maior de outros sentidos, numa atitude de compensação, comprovada pela invenção do Braille48. Esta adaptação compensatória leva a que, por exemplo, a audição também seja uma forma de orientação no mundo para aqueles que não vêem. O eco é interpretado pelo cérebro como factor de localização do som, de dimensionamento do espaço. O cérebro sabe compensar os atrasos sonoros e dessa fabulosa capacidade valem-se muito os invisuais com o bater das suas bengalas. Educa-se a audição, domestica-se o ouvido: «É da capacidade de nos compreendermos que nasce a faculdade de nos ouvirmos. É da capacidade de nos ouvirmos que nasce a faculdade de falar49». Só fala quem escuta, mas o controlo do fluxo verbal não depende exclusivamente do ouvir: «Quer dizer, graças a este jogo de auto-escuta, o locutor sabe o que fala, pode reconhecerse, aprecia o volume que lhe é indispensável atribuir em qualquer momento ao seu discurso; enfim, pode apreciar-lhe o valor semântico, quer dizer é capaz, graças a esta detecção contínua, de reconhecer o carácter informacional que deseja atribuir-lhem». Estabelecendo uma comparação quer em termos de velocidade, quer de qualidade de recepção, o olho tem um poder de alcance muito superior ao do ouvido51, mas isto não retira à sensação do som a capacidade de nos alterar o ritmo das pulsações cardíacas, de nos fazer rir e chorar num estímulo das memórias. Será também importante referir que somos a única espécie 48 Foi Louis Braille (1809-1852), um menino cego, que inventou este código de leitura táctil quando tinha apenas quinze anos. 49 TOMATIS, Alfred, O ouvido e a Linguagem (tít. orig.: L'Oreille et le Language, Editions du Seul, trad.: Graciette Vilela), col. Ponte, Livraria Civilização -Editora, Porto, 1977, p. 88. 50 Op. cit., p. 94. 5 ' Como refere Edward T. Hall no seu livro A Dimensão Oculta, na página 57, «O campo que o ouvido pode recobrir sem o auxílio externo, na sua actividade quotidiana, é muito limitado. O ouvido é muito eficaz num raio máximo de seis metros. A trinta metros a comunicação unilateral é ainda possível, a um ritmo sensivelmente mais lento do que a conversa normal; enquanto que, na comunicação bilateral, a conversa se acha consideravelmente perturbada». Agora é só recordarmos o alcance dos nossos olhos quando estamos numa estrada rodeada por deserto, que parece não ter fim, ou quando viajamos de avião por cima das nuvens e somos capazes de observar a terra que vai surgindo nos intervalos que as separam. 36 viva que, como manifestação de um estado emocional, chora, ultrapassando o processo fisiológico do qual resulta a produção de lágrimas, esse sim, comum a outras espécies. No extremo da exteriorização das nossas emoções, podemos chorar de alegria ou de tristeza. Pode ser um sinal emocional de desabafo, mas também de apelo à atenção, a uma carícia ou abraço. A formalização do contacto corporal deverá confortar e acalmar quem chora, num gradual evaporar das lágrimas. Armazenamos com extrema facilidade uma quantidade de diferentes sons que nos permitem reproduzir temas musicais complexos sem falharmos uma única nota. Todo o corpo participa no falar, como em todos os nossos meios de expressão. Isso faz de nós seres dinâmicos capazes de transmitir mensagens através de diferentes linguagens. «A escolha do nosso controlo, a facilidade com que seremos capazes de explorar o teclado sensorial, determinarão a nossa capacidade de informação, que provocará, por sua vez a nossa capacidade de controlo. Um processo de reacções em cadeia, todas tributárias das suas interacções comuns, consegue deste modo elaborar-se, acelerar-se e enriquecer-se52». Os meios audiovisuais podem ser utilizados, nas obras de arte, como veículo ou suporte da comunicação. Recorrendo ao movimento das imagens, Pipilotti Rist (Suiça, 1962) é um exemplo de artista que, nas suas obras fragmenta, distorce, acentua cores e ritmos ou altera velocidades e, introduzindo bandas sonoras, pela selecção e alteração de temas musicais de diversos autores, proporciona encontros com o sonho e a memória. Desta forma, chega até nós e à nossa intimidade53. Em Sip my Ocean (1996), Pipilotti ^Op.cit.p.ie?. 53 Na exposição que realizou na Fundação de Serralves em 1999, propunha uma viagem que começava na realidade crítica, mas sempre poética, denunciada num percurso pela infância e o sonho/pesadelo. A entrada habitual deste Fundação é feita por um portão que fica em frente à capela. No interior Ever is Over Ali (1997). Este video de cores intensas apresenta uma mulher que carrega uma flor que representa uma arma e que, tranquilamente passeia pela rua, partindo os vidros dos carros que se encontram estacionados. Durante a acção, que se vai repetindo continuamente, a mulher da flor assassina, que usa um esvoaçante vestido e calça um par de sapatos vermelhos, cruza-se com uma mulher-polícia que, com os seus lábios pintados de vermelho, a cumprimenta com um sorriso. Na primeira sala junto ao hall de entrada, Das Zimmer (1994) transporta-nos para a percepção espacial de uma criança (uma sala-de-estar na qual todos os objectos têm uma escala muito superior à comum, obrigando-nos a trepar sofás, para agarrar num telecomando enorme e assistir à TV Pipi. O zapping proporciona ver videoclips e instalações da artista). Depois, todo o percurso no interior da casa é um convite ao reviver de memórias e sonhos que desencadeiam as 37 Rist apresenta uma dupla projecção de um vídeo submarino sobre uma esquina de uma sala, acompanhado por uma versão musical do tema Wicked Game de Chris Isaak, intitulado I'M A Victim Of This Song (1995), gritando de forma histérica: «I'd loose someone like you». Nesta obra há uma utilização de referentes preexistentes; sejam estes formais/objectos, auditivos ou visuais, e obras como esta, podem remeter o fruidor para contextos específicos, para mensagens mais directamente relacionadas com as vivências do próprio autor, ou servir como pressupostos conceptuais como, por exemplo, o tratamento plástico do tempo e do espaço. Neste sentido, apresento outro exemplo recente: o projecto Feature Film, de Douglas Gordon, que deu origem a um livro de imagens (stills) que inclui um Cd com o tema musical composto por Bernard Herrmann para o filme Vertigo, de Alfred Hitchcock. A energia fragmentada (BARRO, David, 2000) inerente a todo o trabalho produzido por Douglas Gordon (Glasgow, 1966) e, concretamente, a manipulação do tempo, no sentido de duração, na quase imperceptível crítica ao paradoxo espacio-temporal dos dias de hoje, é sentida nas obras 24 Hours Psycho (1995), na qual o filme Psicho é projectado frame a frame durante 24 horas, possibilitando, aparentemente, a análise minuciosa de todos os pormenores, ou em Feature Film (2000), instalado na antiga Capela da Fundação de Serralves, no Porto. Os dois trabalhos partem das obras-suspense do cineasta Alfred Hitchcock. Se, no primeiro exemplo, Douglas Gordon projecta um vídeo homónimo do filme, no segundo, retira a imagem e trabalha exclusivamente com o suporte sonoro54. Profundamente dramática, a história de amor e suspense criada por Hitchcock, é, desta forma, acentuada. O domínio técnico da montagem faz com que Gordon, ao revisitar Vertigo e Hitchcock, nos visite a alma55, criando o seu próprio suspense pela mais diversificadas sensações como em Shooting Divas (1996), Emily, I'm Gonna Write Your Name High On The Silverscreen (1996) ou Sip my Ocean (1996). 5< Recordo que para termos consciência da real importância do som num filme basta que o retiremos. Aliás temos um exemplo concreto apresentado, recentemente, nas salas de cinema, no radicalismo irónico do cineasta português João César Monteiro, com o filme Branca de Neve. 55 «(...) soul haunts you, because Vertigo is the most haunting film. And that soul has a body. It is the body of an absent image, which resurfaces, an immense, remanent image. And this body becomes a body of fiction, because the extreme documentary stance which re-animates it has been able to take full inspiration from the music's implication in the sovereign fiction of which it is the resonance^, BELLOUR, Raymond, The Body Of Fiction, in Douglas Gordon, Feature Film, um livro de Douglas Gordon, co-publicação: Artangel Afterlives, Book Works and Galerie du jour - agnés b., em associação com Kolnischer Kunstverein/ Central, Krankenversicherung AG, e patrocinado pelo 38 sincronização do som com as imagens pormenorizadas de acções corporais do maestro que dirige a orquestra na interpretação da obra de Herrmann. Para quem viu Vertigo, a experiência revela-se ainda mais enriquecedora, por provocar um jogo interior duplo com a memória das imagens. Além disso, Douglas Gordon permite, a quem não assistiu ao filme, fazê-lo, transmitindo-o no piso superior da capela, da qual há um aproveitamento acústico, espacial, temporal e temático. Baseados em intensas experiências individuais de envolvimento multissensorial, estas obras surgem como exemplos que contêm a visão do outro e tornam-se viagens para um lugar que converge, algures, com o mundo em que vivemos. Em alguns dos trabalhos que realizei, recorri, por vezes, ao uso do som. Dentro (1998), por exemplo, foi descrito por Bernardo Pinto de Almeida, no catálogo da III Bienal de Arte AIP'98, com uma «misteriosa esfera» que «se suspende e nos perturba com a música que soa se a puxarmos, obrigando a que também se não exclua no óptico a nossa apreensão mas que derive para outros sentidos que nos reorganizem no nosso corpo como seres múltiplos. Visitamo-la, igualmente por dentro de um espaço, para chegarmos a ela, e eis que se suspende no seu processo uterino de revelação para nos atingir auditivamente, quer dizer, interiormente. E cuja matéria sensual, de veludo, nos remete para sensações de volúpia». O som utilizado era o registo de uma melodia que pretendi que nos transportasse para o mundo dos sonhos das crianças, frágeis, puras e ingénuas relativamente aos preconceitos e às imposições das convenções sociais. Utilizado como anúncio de alguma coisa, o pregão, mais do que mensageiro e anunciante de uma expressão verbal, impõe-se pela sua musicalidade. É, acima de tudo, uma chamada de atenção, um exaltamento, uma libertação de energia, ou uma espécie de sinal sonoro que nos permite saber onde está e o que está ali. A concepção de Pregão (2000) foi motivada pelo espaço onde se realizou a exposição Arritmia- as inibições e os prolongamentos do humano. O Mercado de Ferreira Borges, foi um espaço onde durante longos anos, antes de ser um local dedicado a eventos culturais, se trabalhava na venda de produtos alimentares e por onde, todos os dias, Centro Georges Pompidou, Galerie Yvon Lambert e a Lisson Gallery, Londres, 1999/2000, apêndice de textos, p. 4. 39 centenas de famílias garantiam o seu ganha pão e outras tantas se abasteciam, orientadas nesta aparente desorganização sonora. Tendo, no passado, funcionado como mercado abastecedor da cidade do Porto, este local acabou por ser deixado ao abandono até à sua adaptação para espaço cultural. O Pregão é composto por diversos elementos: um altifalante que apregoava para o exterior do edifício, uma frase constante («Compre a mãozinha da artista!»), com diferentes ritmos, entoações, volumes e musicalidades, recolhidas dos pregões que se escutam nos mercados actuais, e que eram interpretados por mim, procurando manter as características do pregão, como acima são referidas; uma barraca semelhante aquelas que é possível encontrar nestes locais, com a respectiva vendedora e o produto apregoado. Este produto é uma série de 500 chupa-chupas, em chocolate, com a forma de mãos, individualmente assinados e numerados no pau de madeira que, ha extremidade oposta, comporta o doce. A assinatura e numeração limitam a série e atribuem-lhe a carga autoral, uma vez que os fiz e assinei. São a minha obra que, por 500$00 podem ter, saborear, fruir, digerir, e guardar o que dela resta, a assinatura. Da verdadeira obra fica a lembrança de um momento, um som, um sabor digerido, e que passa a pertencer à nossa estrutura molecular. 1.1.3. Cheirar O olfacto é o terceiro receptor à distância a ser tratado aqui. Definido por Diane Ackerman como o sentido mudo, o olfacto dota-nos das capacidades mais profundas de recordação. É um sentido que, como a audição, precisa de ar, da respiração, mas mais do que este e do que a visão parece ficar registado na memória para sempre. Até ao início do século XX, o banho constituía um ritual pouco frequente e o banho semanal só começou a implantar-se por volta dos anos 40 30 nas famílias mais abastadas. Com a invenção dos perfumes56 perdeu-se a identificação do outro através do cheiro natural da pele - é que a pele de cada um de nós tem, originalmente, um cheiro único e particular. «O cheiro está na base de um dos modos mais primitivos e mais fundamentais da comunicação. Os mecanismos do olfacto são de natureza essencialmente química, e é por isso que o olfacto é também conhecido por "sentido químico". Entre as suas diversas funções, permite não só diferenciar os indivíduos, mas decifrar também o seu estado afectivo57». Temos uma enorme capacidade de distinguir aromas que nos pode permitir, como aconteceu no passado, orientarmo-nos pelo cheiro. Certamente, podemos evocar na nossa memória experiências reveladoras da capacidade que o cheiro tem de penetrar no nosso corpo, de nos aguçar outros sentidos, numa manifestação sinestésica com o paladar58, envolvidos num imaginário quase indefinível por palavras. 56 'Quanto à utilização do seu aparelho olfactivo, os americanos são culturalmente subdesenvolvidos. O uso intensivo de desodorizantes, o costume de desodorizar os locais públicos, fizeram dos USA um pais olfactivamente neutro e uniforme, para o qual em vão procuraremos um equivalente noutras áreas», HALL, Edward T., A Dimensão Oculta, p. 60. 57 Ibidem. ••Nalgumas tribos espalhadas por uma série de zonas - como Bornéu, o rio Gambia na África Ocidental, Birmânia, Sibéria, índia - a palavra para 'beijo" significa também "cheiro"; um beijo é, com efeito, um cheirar prolongado do amante, parente ou amigo. Os membros de uma tribo da Nova Guiné despedem-se colocando as mãos nas axilas do amigo, depois retiram-nas e esfregam-nas nos seus próprios corpos, ficando assim cobertos do cheiro dele; outras culturas cumprimentam-se farejando-se ou esfregando os narizes uns nos outros», ACKERMAN, Diante, Uma História Natural dos Sentidos. 58 A título de exemplo, narrando uma experiência pessoal, recordo-me de uma madrugada de Inverno, em meados dos anos 90, após uma sessão contínua de cinema do Fantasporto. Dirigiame para casa com uns amigos. Por causa da temperatura agradável, os vidros do carro iam recolhidos. De repente, um cheiro intenso a bolos invadiu o nosso espaço. Com água na boca e narizes atentos resolvemos investigar a origem daquele agradável perfume. Embora a cidade estivesse adormecida, a condução do automóvel fazia-se à mesma velocidade que é costume em hora de ponta, com as cabeças do lado fora. Deslocavamo-nos silenciosamente enquanto a intensidade aromática aumentava. Depois de ter uma zona razoavelmente pequena circunscrita, descobrimos um armazém de aspecto duvidoso. Não fosse aquele delicioso aroma, o cenário seria, no mínimo, desagradável. Não tinha janelas, mas a estrutura precária quase transparente denunciava luz no seu interior. Com toda a adrenalina resolvemos bater à porta. Quando esta se abriu, uma senhora de meia idade e aspecto robusto, de lenço na cabeça e avental enfarinhado, ou melhor, açucarado, olhou para nós e, esboçando um sorriso, disse «Bom dia!». Devíamos estar com uma expressão tão gulosa que, de imediato, fomos convidados a entrar. Não queríamos acreditar no que estávamos então a ver. Depois daquela fragrância, tínhamos agora dezenas de carrinhos com dezenas de prateleiras carregados com dezenas de tabuleiros recheados com centenas de bolos de uma diversidade inimaginável. Preparava-se a distribuição às pastelarias da cidade. - <€ ainda vão sair as naías e as bolas de Berlim que estão a fritar!» - gritou a doce senhora. Ao fundo, um pasteleiro terminava a fritura, enquanto outro recheava com creme as que já estavam mornas. Um grupo de 41 Somos capazes de distinguir pelo cheiro, num contexto mais próximo, amigos e familiares, mas também etnias e lugares. Identificamos imediatamente, mesmo de olhos vendados, o cheiro do/a nosso/a amante, da nossa roupa, assim como o de uma igreja, padaria ou biblioteca. Porém, quando se trata de descrevê-los, sentimo-nos embaraçados e tentados a usar metáforas e/ou comparações que dificilmente terão resultados satisfatórios59. Os cheiros excitam, atraem, mas também repelem e são incomodativos. Fazem parte constante de nós e das coisas, dos objectos e materiais que convivem connosco. Os Romanos, por exemplo, foram especialistas na utilização de alguns aromas para o jogo da sedução. As rosas fizeram sempre parte dos banquetes e cerimónias e das recepções aos seduzidos de Cleópatra60. Precisamos não só do ar, onde se incluí o factor temperatura, para senti-los como, em determinados casos, do paladar para conhecer o cheiro de determinados rebuçados. O olfacto e o paladar mantêm uma relação tão cúmplice que quando, por exemplo, colocamos na boca um determinado alimento e julgamos ter a sensação do seu sabor, nunca desconfiamos que se pode tratar apenas de odor. Importa referir que, na realidade, somos capazes de distinguir, apenas, quatro sabores: doce, amargo, salgado e ácido. Portanto, as possibilidades de combinação destes elementos, de aparente simplicidade, enganam-nos relativamente às interpretações que podemos fazer das nossas experimentações palatoolfactivas. Mesmo sem prestar atenção, estamos sempre a cheirar, a respirar para viver. rapazes abria fornos e, ora introduzia ora retirava tabuleiros, num duro mas delicioso trabalho que nos deixava confortavelmente inactivos. 59 Um dos melhores exemplos de envolvimento do olfacto com a palavra, capaz de nos iludir entre o sonho e a realidade é o romance de Patrick Suskind, O Perfume, história de um assassino. É impressionante a forma como somos envolvidos olfactivamente na sua leitura. Embora a incapacidade de descrever o aroma de determinada coisa a alguém que nunca a experimentou torne o olfacto extremamente pessoal e subjectivo, Patrick Suskind embebe-nos e embriaga-nos num ambiente de aromas muito imaginável. 60 As -fontes do imperador jorravam água de rosas, que também ondulava nos banhos públicos; nos anfiteatros, as multidões sentavam-se debaixo de toldos embebidos em perfume de rosas; usavam-se pétalas de rosa como enchimento para travesseiros; enfeitavam-se os cabelos com grinaldas de rosas; comiam-se doces feitos de rosas; todos os remédios, poções de amor e afrodisíacos continham rosas", ibidem. 42 1.1.4. Saborear E o paladar, que é tão facilmente associado ao olfacto, e até confundido com este em algumas situações? No início deste texto referimos o beijo para nos remetermos ao fechar dos olhos. O beijo na boca, numa das portas do corpo. Da boca saem os sons, pela boca comunicamos com palavras, risos e choros, capacidades únicas no homem. Mais nenhum ser vivo é capaz de ter este tipo de reacções que derivam directamente do processo de sociabilização. Estas capacidades também funcionam como defesas relativamente aos outros e a nós próprios. Os sabores que conhecemos e imaginamos derivam das composições possíveis entre o pequeno conjunto de quatro elementos que, com a junção da saliva e da nossa sensibilidade gustativa, constrói um vasto leque de sabores, sejam eles mais concretos ou produtos de alguma da nossa imaginação e ilusão. Também no paladar existe uma necessidade humana de conjugá-lo com os outros sentidos. Comemos com os olhos, atraídos pela cor, textura visual e apresentação dos alimentos; com o nariz, pelo cheiro que os alimentos libertam em cru ou confeccionados com as melhores especiarias; com os ouvidos, quando mordemos uma cenoura ou trincamos uma maçã e emitimos sons que podem despertar nos outros o desejo de terem a mesma experiência. Quando se frita batatas somos atraídos pelo forte aplauso de uma plateia deliciada com o espectáculo a que assistiu; e, através do tacto, pelo facto de possuirmos inúmeros sensores tácteis nos lábios e na língua, e porque a temperatura e a textura nos provocam desejo ou repulsa por determinados alimentos. «Os "engenheiros alimentares", magos da subtil persuasão, criam produtos que agradem ao maior número de sentidos possível». Comer com as mãos é característico de algumas culturas, como, por exemplo, a muçulmana. O primeiro contacto com os alimentos é feito com a ponta dos dedos, permitindo perceber a densidade, temperatura e textura, Op. cit., p.154. 43 como se se tratasse de uma pré-assimilação, uma preparação para o acto. Sentados em circulo rodeando um único prato, estabelecem uma espécie de fronteira virtual que divide a área destinada a cada um num ritual de convívio e partilha. Comer passa não só por uma necessidade vital de alimento, como por um ritual definidor e capaz de distinguir culturas e religiões. É frequente ouvirmos dizer que certos povos, por exemplo, os portugueses, fazem tudo à mesa. Sentados à mesa fecham negócios, seduzem o outro, constróem e terminam amizades, encontram-se com a família. A vertente social do paladar está associada aos banquetes62 que produzimos nos mais diferentes contextos idealizando, para cada um deles, um ambiente distinto. Parece bizarro imaginar-se qualquer festa, seja de aniversário ou de carácter religioso, sem que o acto de ingestão esteja incluído. Do simples piquenique ao lanchinho lá em casa, passando pelo café de encontro ou despedida, a um almoço ou jantar românticos, até ao Natal, Páscoa e todas as evocações a Santos. Mais ou menos requintado, mais ou menos recheado, mais ou menos formal, participa no dia-a-dia de todos nós. Quando alguém chega a nossa casa perguntamos: «Queres beber ou comer alguma coisa?». Confortar o estômago parece fazer parte do conforto generalizado do corpo e da mente. Podendo parecer estranho, quando estamos tristes ou 62 Esta palavra remete-nos de imediato e novamente para a cultura Romana. A luxúria e a volúpia caracterizavam as festas e recepções dos mais ricos, servidos por escravos esfomeados. Com rituais que vão do mais sedutor ao mais repelente e condenável, imaginamos facilmente espaços cobertos de flores, piscinas onde são servidas frutas, almofadas em seda macia de cores vivas onde, confortavelmente deitados, os mais poderosos recebiam massagens de bonitas mulheres, eram refrescados pelos leques que os escravos abanavam incansavelmente, de copo, em ouro puro, com vinho na mão e recebendo soberbos alimentos na boca. Geralmente estes banquetes culminavam em orgias sexuais ou de violência atroz dependente da temática proposta. «Os Romanos eram devotos daquilo a que os Alemães chamam Schadenfreude, sentir um prazer requintado com o sofrimento dos outros. Adoravam rodear-se de anões, deficientes, pessoas com deformidades, que obrigavam a desempenhar o acto sexual ou números de cabaret durante as festas. Calígula costumava ter gladiadores a lutar mesmo em cima da mesa do banquete, salpicando sangue e coágulos para cima dos convidados. Nem todos os romanos eram sádicos, mas na classe abastada e entre os imperadores existiam muitos e possuíam, torturavam, maltratavam ou matavam os escravos como bem entendiam. Conta-se que um romano da alta sociedade engordava as suas enguias com carne de escravo. Não admira que o cristianismo tenha surgido como um movimento de escravos, proclamando a abnegação, a moderação, o direito dos pobres à terra, uma vida de abundância e liberdade, depois da morte, e o castigo máximo das eternas torturas do inferno para osricos,amantes do luxo», op. cit., pp. 156/157. ansiosos desejamos determinados alimentos63. O chocolate, que na sua composição inclui o magnésio, um antidepressivo, funciona muitas vezes como compensador emocional. E, seja ilusão psicológica ou realidade química, faz-nos sentir melhor, razão pela qual tem sido frequente a sua utilização no meu trabalho artístico. Se, em Pregão, utilizei o chocolate enquanto matéria plástica, que respondia aos conceitos intrínsecos no trabalho, em Na Minha Boca (1999) só era perceptível o seu aroma embora, como refere João Sousa Cardoso no texto de apresentação da exposição Paglia Obscena, realizada em Maio de 2000, no espaço UMDIAPOSITIVOPRAVOCÊ, o trabalho lhe pareça «um estimulante exercício de vídeo que abstractiza referências que nos chegam da iconografia pomo e nos convida a tactear as pequenas formas suspensas que se sobrepõem à imagem projectada, (...) transformando-se num banquete sensitivo: a uma imagem ocupada inteiramente por uma boca que mastiga uma bola branca de látex (ouvindo-se o som interior e ininterrupto do salivar, que a determinada altura rebenta, com o estrondo de uma explosão), aliam-se os pequenos corpos alienígenas que (...), com diferentes densidades, podem ser apertados pelo espectador e um intenso aroma a chocolate, produto recorrente no imaginário da indústria erótica«. Para além do chocolate poder servir ao reconforto do corpo, neste trabalho procurei também consciencializar o fruidor sobre a importância do odor como denunciador de presenças que é, no chocolate, imediatamente comunicada através do seu aroma, atingindo-nos em primeiro lugar pelo olfacto. Na Minha Boca promove um espaço que envolve o fruidor e através do qual este pode deslocar-se e desenvolver-se, afectando, desejavelmente com intensidade complexa, a sua actividade sensorial, por estar envolvido num movimento de participação e solicitado para um comportamento exploratório 63 Uma curiosidade é o facto de no passado reservar-se «à mulher, "eterna criança", o mel e as doçuras, ao passo que a virilidade do homem implicava a absorção de carne vermelha e de bebidas fortemente alcoolizadas. Hoje, as imagens tradicionais da virilidade e da feminilidade estão fortemente obliteradas. Provavelmente, o sexo forte não é aquele que a cultura proclama como tal: as mulheres fumam, bebem e rejeitam as doçarias que fazem engordar» , ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges, História da Vida Privada (trad, e revisão: Armando Luís de Carvalho Homem), dir.: Antoine Prost e Gérard Vincent , vol. 5, Edições Afrontamento, Lisboa, 1991, p. 316. Por contraditório que possa parecer nunca fomos seduzidos tão fortemente como hoje, para o consumo dirigido ao estômago, ao mesmo tempo que nos é exigido ser magro. 45 no espaço que o rodeia e àquilo que neste se encontra. Em oposição a este trabalho podemos referir Eat-me: gula ou luxúria?, que Lygia Pape fez em 1975. A artista apresenta um vídeo de uma boca invertida que consome, mastiga, devora. Os alimentos não são saboreados, não há ritual nem prazer. É o consumo socialmente implantado. A consciencialização de um contágio sensorial é-nos transmitida pelo desconforto que nos invade, a agonia que nos provoca o pensamento de comer/consumir alguma coisa naquele momento. 1.1.5. Tocar A necessidade de proximidade é característica do paladar, do olfacto e do tacto, faculdades sensitivas que a vida moderna parece ofuscar. Tendencialmente caminhamos para o contacto à distância. Tornou-se mais atractivo e importante o trajecto no espaço, pelo meio mais rápido e eficaz para chegar até ao destino. Se o automóvel, o avião e todos os interfaces motores cumprem, até à data, esta função, o incansável desejo de conquista e a ambição humana avançou, igualmente, para a deslocação sem ter que sair do lugar. Através de duplas peles que vestimos, como é o caso dos DATA SUIT ou VPL (capacetes de realidade virtual), promovem-se sensações cada vez mais próximas das reais, no sentido da vivência experimental do espaço e do tempo. O que importa é a «CHEGADA GERAL que explica hoje a inovação inaudita do veículo estático, não apenas audiovisual, mas também táctil e interactivo (rádio-activo, óptico-activo, interactivo...)**». A pele não deixou ainda de ser o principal interface do tacto e a comunicadora da temperatura. Como condutor de calor, o tacto é simultaneamente «um receptor à distância e um receptor imediato65». Na experiência táctil existe um conhecimento que se diferencia dos outros sentidos: o conhecimento de ambas as partes, a que toca e a que é tocada, a m 65 46 VIRILIO, Paul, A Velocidade de Libertação, p. 38. HALL, Edward T., A Dimensão Oculta, p. 56. particularidade de «poder tocar-me tocando66». No tocar existe «uma espécie de reflexão do tocar sobre si próprio, uma vez que o próprio órgão da sensação se pode tornar objecto de uma outra sensação da mesma ordem. Este facto é próprio do tocar já que, sem o artifício do espelho, não vemos os nossos olhos, já que não ouvimos a nossa orelha, não cheiramos o órgão do olfacto, etc.67». Podemos facilmente pensar em situações do nosso quotidiano que correspondem a características e possibilidades exclusivas do ser humano, que compreendem envolvimento táctil e que se revelam muito mais do que simples gestos culturais e de sociabilidade. O aperto de mão, por exemplo, é muito mais que um cumprimento. É uma defesa que utilizamos e uma manifestação de amistosidade. Ao mesmo tempo que marcamos uma distância reduzimo-la, na medida em que damos a nossa mão provocando, no receptor, uma diminuição de agressividade ou tensão eventuais. Uma cerimónia, um gesto de cordialidade, de acordo. Dou-te a minha mão indefesa inibindo o teu possível ataque. Estender a mão ao outro é um acto de partilha desarmado. Um aperto de mão, que hoje não passa de uma saudação, teve num passado recente a função de selar contratos, funcionando como palavra de honra. Também os abraços, as pancadinhas nas costas e os apertos nas bochechas, são extravasamentos de comunicação táctil que alguns utilizam como manifestações de afecto. Richard Long, por exemplo, referencia o tacto e sublinha o papel do sentido de tocar como factores primordiais num «envolvimento físico com o mundom», por se tratar não apenas das mãos, do andar e percorrer, mas também dos olhos, dos ouvidos e da cabeça. O tacto comunica com todos os outros sentidos e, através dele e do corpo revestido de pele, que o alberga, agimos, materializando o que o cérebro constrói, num processo de exteriorização dos pensamentos, das emoções e dos sentimentos. 66 MERLEAU-PONTy, Maurice, O Visível e o Invisível, p. 20. ' BRUN, Jean, A Mão e o Espírito, Col. Biblioteca de Filosofia Contemporânea, Edições 70, Lisboa, 1991, p.129. 68 Richard Long na entrevista Uma conversa com Richard Long com Miguel von Hafe Peréz, in Richard Long em Braga, catálogo da exposição, Galeria Mário Sequeira, Braga, 1999. A sua obra «é o lugar de cruzamento- das suas «ideias e da realidade física do mundo», ibidem. Alguns dos seus desenhos são registos realizados directamente com as mãos, mergulhadas em lama, por exemplo, de que são exemplos Cercles de Kilkenny (1985) ou Braga Mud Arc (1999), este último realizado directamente numa parede da Galeria Mário Sequeira em 1999. 6 47 Ao tacto associamos directamente a textura que «corresponde ao aspecto das coisas, a qualidade mais tangível dos objectos, mais imediata do que a cor ou a forma. A qualidade visual permite identificar um material: metal, tecido, madeira, couro, pele, cabelo, papel, plástico, vidro, líquido, escama, gelatina, espuma, cinza, etc. As características da textura, tais como a aparência polida ou urdida, rugosa, nervurada, folheada, inchada, são muitas vezes palpáveis, perceptíveis pelo tacto ou pelo lamber. No domínio da acústica, o análogo à textura seria o timbre: a qualidade do som que, através da diversidade das melodias, permite reconhecer o instrumento, piano, harmónica, clarim. O vocabulário relativo às qualidades da textura (áspero, granuloso, enrameado, nacarado, frisado...) mostra-se heterogéneo e mal organizado, ao contrário do que acontece com a classificação das cores69». Não é só na cápsula exterior que nos cobre o corpo que possuímos sensores tácteis. A língua70 é um deles, e permite captar não só a temperatura como identificar texturas, auxiliando o paladar. Mesmo nessa cápsula temos zonas de maior e menor concentração de sensores e que nos são revelados pela espessura e textura da pele. Facilmente fazemos associações de mudança da textura da pele como os momentos de intimidade. Nos actos amorosos, por exemplo, a nossa pele sofre diversas alterações de temperatura e de textura que podem atravessar um vasto universo de aspectos físicos - fria, arrepiada, áspera, quente, rosada, ou aveludada. 69 NINIO, Jacques, A impregnação dos sentidos (tít. orig.: Lémpreinte des sens, Editions Odile Jacob, 1991), col. Epigénese e Desenvolvimento n°4, Instituto Piaget, s/d, p. 59. 70 No suplemento Xis do jornal Público de 13 de Outubro de 2001, na página 39, lê-se o seguinte: -Cega desde nascença, Marie-Laure Martin sempre pensou que a luz de uma vela era uma grande bola de fogo, da qual sentia o calor. No ano passado, pela primeira vez, ela viu a chama e ficou surpresa com o seu tamanho pequeno - viu a chama através da língua. Aparentemente um improvável substituto dos olhos, a língua pode muito bem ser, afinal, o segundo melhor órgão para recolher e enviar ao cérebro informação visual. Na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, um grupo de investigadores está a desenvolver um sistema de estimulação da lingua, que traduz imagens detectadas por uma câmara num padrão de impulsos eléctricos que despoletam receptores do toque localizados na língua. (...) O sucesso das experiências levou Paul Bach-y-Rita, um dos inventores do aparelho, a experimentar com a língua. Na prática, 'não se vê com os olhos, mas com o cérebro', afirmou. A transmissão de imagens através dos olhos não passa, afinal, de impulsos nervosos semelhantes aos enviados por qualquer outra parte do corpo. A diferença é que o cérebro interpreta estes impulsos como imagens. (...) Outra equipa de investigadores está a tentar implantar microchips nos olhos ou no cérebro. Ainda outra hipótese poderá ser a conversão de imagens em "paisagens de som", canalizadas para os ouvidos da pessoa cega»., in Diário Económico (08.09.2001). Este artigo denominado Revelações - Ver pela língua é, no mínimo, curioso e revelador do ilimitado número de capacidades humanas que continuam por descobrir. 48 O nosso cérebro possui vastas áreas tácteis, sensoriais e motoras, para além de que a pele é o maior órgão do nosso corpo, através do qual percepcionamos, por exemplo, todo o meio ambiente71. Ao que tudo indica, a experiência táctil é a primeira, a mais elementar e provavelmente a menos conhecida do ser humano. As primeiras sensações que um embrião tem são tácteis. O calor e a pressão do líquido amniótico, bem como o choque epidérmico do nascimento, são, segundo os especialistas, as primeiras e mais marcantes sensações que temos. A especificação das capacidades perceptivas do recém-nascido faz com que se percam capacidades de resposta face a qualquer coisa que se ofereça à cognição. Quando uma criança nasce está apta, por exemplo, para todas as línguas, mas rapidamente o seu leque fica limitado aos sons e vocalizações da comunidade em que vive. O seu sistema perceptivo vai-se personalizando e especificando ao longo da vida. Construímos imagens perceptivas, no sentido sensorial e não estritamente visual do termo imagem. A qualidade técnica das imagens visuais construídas pela visão é muito maior, mas é menor a sua qualidade sensível, no sentido em que «a pele pode ser ímpar na combinação das dimensões espácio-temporais da audição e da visão; o ouvido é melhor na dimensão temporal, enquanto que o olho é superior na espacial72». São o invisível visível, que não vemos mas sentimos, porque ver é tocar à distância enquanto tocar é a confirmação, a verificação. Como diz o antigo ditado popular: «Ver é crer, mas sentir é a verdade». A capacidade de sentir que estamos a ver alguma coisa exterior a nós é proporcionada pelos olhos, receptores de informação, e, simultaneamente, o meio através do qual essa informação de carácter estritamente visual é transportada ao cérebro. «Por conseguinte, os sinais do exterior são duplos. Algo que se vê ou ouve excita o sentido da vista ou do 71 Curiosidade: «A área abrangida pela superfície da pele tem um número enorme de receptores sensoriais captando estímulos de calor, frio, toque, pressão e dor. Um pedaço de pele com aproximadamente 3 cm de diâmetro contém mais de 3 milhões de células, entre 100 e 340 glândulas sudoríparas, 50 terminações nervosas e 90 cm de vasos sanguíneos. Estima-se que existam em torno de 50 receptores por 100 milímetros quadrados, num total de 640.000 receptores sensoriais. Pontos tácteis variam de 7 a 135 por centímetro quadrado. O número de fibras sensoriais oriundas da pele que entram na medula espinhal por via de raízes posteriores é muito superior a meio milhão», MONTAGO, Ashley, Tocar - O Significado Humano da Pele (tit. orig.: Touching: The Human Significance of the Skin, Copyright 1971, 1978, 1986, trad.: Maria Silvia Mourão Netto), col. Novas Buscas em Psicoterapia, vol. 34, Summus Editorial., S. Paulo, 1988, pp. 24/25. 72 MONTAGO, Ashley, Tocar - O Significado Humano da Pele, p.186. 49 ouvido como um sinal "não corporal", mas excita também um sinal "corporal" que provém da zona da "pele" onde o sinal específico entrou73». Entre nós, o toque, o contacto físico, vai diminuindo ao longo do crescimento, e é na puberdade que este volta, com o contacto entre elementos do mesmo sexo ou do sexo oposto. Quando é descoberta a relação sexual, então, redescobrimos aquilo a que podemos chamar comunicação táctil. A partir de então, o tacto fica quase exclusivamente associado à ideia de sexo, sendo cada vez menor o contacto físico com os outros e mesmo com as coisas, tornando-se o caso contrário uma questão de posição social, por exemplo, aos médicos é permitido tocar nos pacientes e estes apenas se limitam a ser tocados. Aparentemente, o sexo parece representar mais um alívio de tensões e de stress do que um acto profundamente humano de comunicação e relacionamento íntimo com o outro, quando talvez devêssemos pensá-lo, cada vez mais, como a experiência táctil da afeição e do amor. Este preconceito perceptivo não se trata apenas de uma questão educacional. Hoje, o conhecimento do nosso corpo e do outro «perdeu densidade e profundidade, tornou-se etéreo e superficial: ao transportarmos a profundidade para a superfície, na tentativa de visualizarmos o interior, a espessura do corpo passou a ser a da película que suporta a sua imagem. (...) A perda da profundidade, todavia, ao traduzir-se na aquisição de várias superfícies, permite uma recuperação de volume que fornece ao corpo uma espécie de profundidade estratigráfica, uma profundidade que resulta da acumulação de várias superfícies, várias imagens. É esta nova profundidade superficial (ou, usando a expressão de Andy Warhol, "skin deep", "pele profunda" ou, por especularidade, profundidade epidérmica) que importa dissecar7"». A pele é também o único interface que podemos definir como plástico. Deformavél e articulável, molda-se ao que toca, num acto consciente pelo qual se vai de encontro ao outro e regressa a si mesma. Mensageiras de emoções, as mãos são perversamente construtoras e destruidoras, podendo funcionar 73 DAMÁSIO, António, O Erro de Descartes - emoção, razão e cérebro humano (tít. orig.: Descartes' Error - Emotion, Reason and the Human Brain, 1994, trad.: Dora Vicente e Georgina Segurado), col. Fórum da Ciência, Publicações Europa-América, 1995, p. 239. 74 SILVA, Paulo Cunha e, O Lugar do Corpo- Elementos para uma cartografia fractal, col.: Epistemologia e Sociedade, dir.: António Oliveira Cruz, Instituto Piaget, 1999, pp. 21/22. 50 como um estímulo positivo ou negativo. Quantas vezes, quando estamos nervosos, esfregamos as mãos uma na outra, ou acalmamos alguém com um toque, uma carícia, num processo comunicativo que não só conforta como parece actuar na pressão arterial. Jean Brun, no seu livro A Mão e o Espírito, refere-se assim à relação entre a mão e o tocar: «Reduzida a ser apenas o órgão de preensão, a mão pode definir-se como o órgão do ter, pois é ela que preside às operações através das quais o homem alcança, oferece, recebe ou troca. (...) Só a mão pode ser tida pelo verdadeiro órgão do tocar, pois só ela explora e apalpa e confere, assim, ao tocar a actividade que lhe dá a sua verdadeira vocação75». Com algum cuidado, é fundamental fazer-se distinção entre «o facto e o tocar e não reduzir este àquele. (...) O animal possui muitas percepções tácteis, mas ignora o tocar; o corpo do animal (...) é uma massa que se move, que, por consequência, evita os obstáculos, reduz-se a uma aríete, a um maxilar, a uma garra no momento do combate, ou a um sexo no momento do acasalamento (...). Em contrapartida, a mão que toca não embate, pelo menos em essência. O tocar implica, com efeito, a vontade e o desejo de seguir uma superfície e de desposar uma forma; longe de ser a exteriorização de um antagonismo, o tocar ausculta, por assim dizer, o corpo estranho. É por isso que a mão é uma mão que explora um contorno, tacteia uma consistência, roça uma superfície, enlaça um volume, sopesa uma massa, irradia ou aprecia um calor. Graças a ela, o organismo de que é a mensageira tenta ir além de si mesmo e incorporar o que lá está, ou incorporar-se no que está fora dele76». Os desenhos que se formam nas extremidades dos nossos dedos são únicos e identificam-nos, sendo também um pequeno universo que agrega uma notável sensibilidade manifestada, por exemplo, «na utilização do braille, que hoje surge em toda a parte, dos botões dos elevadores às moedas italianas. O braille lê-se muito rapidamente, por isso se procuram formas de tirar melhor partido dele. Um estudo recente, referido em Education of the Visually Handicapped, sugere que o braille pode ser lido com maior precisão e eficácia se as pessoas passarem os dedos pelos pontos na vertical e não na horizontal, 75 76 BRUN, Jean, A Mão e o Espírito, p.132. Op. cit., pp. 126/127. 51 porque os receptores tácteis existentes nas pontas dos dedos são mais sensíveis quando usados desse modo77». A associação directa que fazemos do táctil às mãos pode ser analisada sob dois pontos de vista: primeiro, as mãos são, por excelência, impulsionadores de acção; segundo, são a parte do corpo que geralmente está mais a descoberto. Todo o resto do corpo veste-se de roupas que, excluindo os momentos da intimidade, interrompem grande parte das sensações que podem ser vividas pela pele e no contacto directo dos corpos. «Por muitas razões, é difícil fazer investigação sobre o tacto. Para os outros sentidos há um órgão-chave que se pode estudar; no que diz respeito ao tacto, esse órgão é a pele que se estende por todo o corpo. Todos os sentidos têm pelo menos um centro básico de investigações, excepto o tacto. O tacto é um sistema sensorial, cuja influência é difícil de isolar ou eliminar. Os cientistas podem estudar pessoas cegas para saberem mais sobre a visão, surdos ou anosmáticos para aprenderem mais sobre a audição ou o olfacto, mas é virtualmente impossível fazer o mesmo em relação ao tacto. Também não podem fazer experiências com pessoas que nasceram sem esse sentido, como fazem muitas vezes com os surdos ou cegos. O tacto é um sentido com funções e qualidades únicas, mas também aparece frequentemente associado a outros sentidos. O tacto afecta todo o organismo, bem como a sua cultura e os indivíduos com quem entra em contacto78». Se, por exemplo, nas primeiras experiências do escultor Ernesto Neto (Rio de Janeiro, 1964), o olfacto, como expressão do ver, prevalecia através do uso de especiarias, como o caril ou a canela, aproveitando quer os seus aspectos cromáticos quer os seus aromas, a superfície táctil como membrana epidérmica (tecidos elásticos translúcidos) tornou-se essencial a partir de meados da década de 90. Metaforicamente, a construção dos corpos e das orgânicas paisagens corporais (RUBIRA, Sergio, 2000), como meio de realização dos sonhos compostos pelas sensações de entrar e de sair do corpo do artista, encontram-se intensamente perceptíveis naqueles trabalhos que apelam à visão distante e à proximidade pelo toque como pensamentos 77 78 52 ACKERMAN, Diane, Uma História Natural dos Sentidos, p. 131. ACKERMAN, op. cit., p. 91. emocionais79. Algo existe entre nós dois e Se o meu corpo não estivesse tão longe talvez não estivesse tão perto são dois exemplos de trabalhos que realizou em 2000. «Pensamentos que já não podem ser racionais, pensamentos resultantes do binómio mente-corpo que foram, no passado, considerados opostos. Pensamento e sentimento, razão e sensibilidade estão unidos porque é graças à circulação através da pele, película sensual, que o mundo interno da mente se conecta com o universo externo do sentido. A pele, a obra, como um modo de viver, como forma de reconhecer que só existimos e que estamos*0». Em 1999, realizei Interior, num espaço onde propus guardar o nãovisível, num silêncio partilhável. Embora marcante pela sua presença vermelho-intensa, este ambiente só é partilhado na totalidade por aqueles que se desinibam e que por momentos se esqueçam da expressão que em diversas ocasiões escutaram quando eram crianças : «Não mexe, vê-se com os olhos!». Meia esfera de veludo flutua no espaço construído, e nela desenham-se pequenos umbigos que convidam, os mais curiosos, a penetrarem no seu interior. Em cada um deles uma sensação diferente: o quente e o frio, o macio e o áspero, o húmido e o seco,... Ver, tocar e sentir. A importância da fronteira da pele que nos coloca, em simultâneo, em contacto com o exterior e com o nosso interior num processo de interacção permanente, é exemplificada por António Damásio em O Erro de Descartes, quando este explica a razão pela qual as pessoas morrem de queimaduras profundas. Esta morte «não tem a ver com a perda de uma parte da sensação do tacto. Morrem porque a pele é uma víscera indispensável». Sem ela perdemos as nossas defesas, ficamos desprotegidos. Tocar o outro acalma e reduz o medo e a insegurança. O toque é transmissor de energia. O que sabemos hoje é que temos emoções que são projectadas na mente gerando sentimentos (no plano do inconsciente) e que através da memória (que serve de exemplo a um dos estímulos emocionais 79 Pensamentos Emocionais foi o título da exposição realizada em 2000 por Ernesto Neto na Galeria Elba Benítez, em Madrid. 80 RUBIRA, Sergio, texto escrito a propósito da exposição Pensamentos emocionais, in Lapiz, Revista Internacional de Arte, n.° 168, Dezembro, Edita - Publicaciones de Estética y Pensamiento, S. L, Vegap, Madrid, 2000, p. 81, trad, livre. 81 DAMÁSIO, António, O Erro de Descartes, p. 238. 53 competentes, designação de António Damásio), de processos neurais e químicos, construímos a consciência, o sentimento do saber. Para que este longo percurso se complete é preciso o corpo que acolhe e permite ser quem somos, seres humanos, energia e não entidades abstractas, cápsulas, receptáculos ou qualquer outra metáfora com esse sentido. 54 1.2. A Emoção e a Inteligência Emocional A abordagem anteriormente proposta para o estudo dos sentidos, entende-os como mediadores ou meios de uma comunicação não-verbal, que se estende das atitudes corporais às emoções, num painel que nos permite tratar de questões e analisar situações que se prendem com o universo do inconsciente82 ou, mais concretamente, da subjectividade. A manifestação do inconsciente, da subjectividade, é tão variável e surpreendente que nos coloca numa dúvida em permanente especulação. «O inconsciente, no sentido restrito em que a palavra está hoje gravada na nossa cultura, é apenas uma parte da enorme quantidade de processos e conteúdos que permanecem não conscientes, não conhecidos por nós na consciência nuclear ou alargada. A lista dos "não conhecidos" é verdadeiramente espantosa. Pense o leitor, por um momento, no que ela inclui: 1. Todas as imagens completamente formadas a que não prestamos atenção; 2. Todos os padrões neurais que nunca se transformam em imagens; 3. Todas as disposições que foram adquiridas através da experiência, se mantêm adormecidas e podem nunca vir a transformar-se num padrão neural explícito; 4. Toda a silenciosa remodelação dessas disposições e toda a sua silenciosa restruturação da rede dos seus contactos que podem nunca se tornar explicitamente conhecidas; 5. Toda a oculta sabedoria e as ocultas aptidões (no inglês, Know how) que a natureza colocou nas disposições homeostáticas inatas. Uma ignorância de estarrecer. O pouco que jamais vimos a saber é surpreendente83». A análise que António Damásio propõe não se prende directamente com personalidades individuais, mas aquilo que existe em todos e que se reflecte nas entidades individuais: o inconsciente como plano da intuição e da 83 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, p. 263. 55 percepção capaz de alimentar quer o processamento do consciente racional como do consciente emocional e sensível, possibilitando a construção e a integração das imagens perceptivas. A proposta de Damásio para a solução do enigma da mente consciente requer a sua divisão em duas partes: a primeira diz respeito à forma como nós geramos aquilo a que ele chama movie in the brain, como metáfora para definir a composição integrada e unificada das diversas imagens sensoriais, visuais, auditivas, tácteis, olfativas, e outras que constituem o show multimédia (DAMÁSIO, António, 2000) a que chamamos mente. O segundo ponto prende-se com o si (self) e com a forma como nós geramos, automaticamente, o sentido de posse do movie in the brain, visto como o interpretador dos sentidos. Com a metáfora do movie in the brain, António Damásio promove a solução para o problema mente/consciente por considerar que o sentido do si emerge deste filme. Sendo assim, as duas partes do problema estão, segundo este autor, relacionadas com o que nos vai sendo encaixado durante o nosso processo de amadurecimento no decurso das nossas vidas e, separá-las é uma estratégia útil na qual cada um requer e ensaia a sua própria solução. Com esta perspectiva do problema mente/consciente, baseada no processo da memória, emergente no sentido do si, o fundamental será o mapeamento sensorial pertencente aos estados do corpo, dos sentimentos e das sensações, e daquilo que acontece no organismo apreendido no acto da interacção com o circundante84. Neste sentido, a Inteligência será abordada aqui do ponto de vista intra e interpessoal. Nas sociedades de informação, globalizadas, existem as chamadas máquinas inteligentes criadas por homens, geridas por circuitos integrados. O raciocínio, o intelecto, mensurável com testes de Ql (coeficiente de inteligência), define um conceito de inteligência humana. Contudo existem outras inteligências, primordiais à aquisição de autoconsciência. Impossível de medir cientificamente, a Inteligência Emocional (IE) é um conceito que surge " Os estudos e os pensamentos de Damásio colocam-no numa perspectiva diferenciada com o pensamento filosófico e fenomenológico. Partindo de pressupostos que podem ser considerados comuns e, em alguns casos, convergentes, Damásio refere que quando alguns filósofos usam o termo intencionalidade, para definir a qualidade representacional da mente como correspondência aos estados de interacções internas com objectos externos, estão a utilizar uma terminologia ambígua, imprecisa e, dir-se-ia mesmo, falsa. 56 como uma emancipação da psicologia cognitiva, sendo a principal responsável pela resolução dos problemas do coração65. No raciocínio é tão importante e está tão presente o emocional como o racional. É como se possuíssemos dois tipos de inteligência e, consequentemente, dois tipos de cérebro, que se completam e complementam. «Na medida em que toda a gente possui simultaneamente inteligência cognitiva e inteligência emocional, estes dois retratos fundem-se. No entanto, das duas, a inteligência emocional é aquela que mais contribui para as qualidades que nos tornam plenamente humanosm». Segundo Howard Gardner, psicólogo dedicado ao estudo da inteligência cognitiva, possuímos várias inteligências87 sendo uma delas a inteligência interpessoal, que Daniel Golemam denominou de Inteligência Emocional e que, segundo ele, abrange as inteligências inter e intrapessoais. É aqui que têm lugar o poder da emoção, dos sentimentos e o conhecimento e uso dos sentidos, bem como da sua interacção. «A/os finais do século XIX, Charles Darwin, William James e Sigmund Freud escreveram profusamente sobre vários aspectos da emoção, e deram-lhe um lugar privilegiado no discurso científico. Porém, ao longo do século XX e até muito recentemente, tanto a neurociência como as ciências cognitivas comportaram-se de forma pouco amigável com a emoção. (...) Era demasiado subjectiva, dizia-se. Era demasiado fugidia e vaga. Estava no polo oposto da razão, indubitavelmente a mais excelente capacidade humana, e a razão era encarada como totalmente independente da emoção. (...) Os românticos colocavam a emoção no corpo e 85 Isabelle Filliozat refere-se à inteligência emocional como: A Inteligência do cotação que é, aliás o título do livro que escreveu em 1997 para abordar os rudimentos da gramática emocional. 88 GOLEMAN, Daniel, Inteligência Emocional (tit. orig : Emotional Intelligence, 1995, trad.: Mário Dias Correia), Temas e Debates - Actividades Editoriais, Lisboa, 2000, p. 65. 87 Howard Gardner destaca em diversas declarações que realizou, pelo menos, sete tipos de inteligência: "inteligências verbal e lógico-matemática já reconhecidas pelo Q.I., mas que ele separa e sobretudo coloca em igualdade com as outras, acrescenta as inteligências espacial, musical, cinestésica, interpessoal e intrapesscal. A inteligência do espaço, a faculdade de se representar em três dimensões, de se orientar, é útil aos marinheiros, engenheiros, cirurgiões, escultores, pintores, arquitectos... A inteligência musical baseia-se no exercício do ouvido e do ritmo. A inteligência cinestésica é a inteligência do corpo, aquela que os bailarinos têm de dominar, assim como os atletas, os cirurgiões e os artesãos. Define inteligência interpessoal como a capacidade de compreender os outros e de trabalhar com eles. A inteligência intrapessoal corresponde à 'faculdade de se formar de si próprio uma representação precisa e fiel e de utilizá-la eficazmente na vida"", FILLIOZAT, Isabelle, A Inteligência do Coração - Rudimentos de Gramática Emocional (tít. orig.: L'Intelligence du Coeur - Rudiments de grammaire émotionnelle, Jean-Claude Lattes Editions, Paris, 1997), série: Inteligência Emocional, dir.: Moura, Editora Pergaminho, Lisboa, 1997, pp. 11/12. 57 a razão no cérebro. A ciência do século XX deixou o corpo de fora, deslocou a emoção de novo para o cérebro, mas relegou-a para as camadas neurais mais baixas, aquelas que habitualmente se associam com os antepassados que ninguém venera. A emoção não era racional, e estudá-la também não era88». Desde há alguns anos que a emoção deixou de ser um tabu para se tornar num aliciante objecto de estudo nas mais diversas áreas do conhecimento, tendo-se tornado, inclusivamente, um auxílio ao que já havia sido demonstrado relativamente à razão. Isto porque razão e emoção existem em conjunto e ajudam-se mutuamente89. Aparentemente, a actividade entre estes dois sectores aumenta a nossa inteligência num sentido global. Quanto mais activarmos a nossa IE, mais desenvolveremos o nosso Ql, o puramente racional, e vice-versa. As pessoas que possuem «um Ql elevado podem revelar-se péssimos pilotos das suas vidas particulares90» embora seja o principal factor avaliado nas sociedades de cultura global, de expansão tecnológica e comunicacional à escala planetária. As nossas capacidades enquanto produtores de serviços especializados e a nossa eficiência racional são prioritariamente qualificadas. O problema reside no facto de se isolar e considerar a inteligência racional como único factor de avaliação, desprezando um conjunto de características de elevada importância na condução da vida de qualquer ser humano, designadamente, os de natureza emocional. Para vivermos melhor precisamos de comunicar e saber gerir os nossos afectos91. A gramática da linguagem das emoções permite-nos comunicar melhor e, portanto, viver melhor. 68 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, p. 58/59. 89 «A emoção bem dirigida parece ser o sistema de apoio sem o qual o edifício da razão não pode funcionar eficazmente. (...) Estes resultados tornaram possível encararmos as emoções como a corporização da lógica da sobrevivência. (...) Emoções e sentimentos de emoções constituem, respectivamente, o começo e o fim de uma progressão, mas o carácter relativamente público das emoções e a privacidade completa dos sentimentos indicam que os seus mecanismos ao longo deste contínuo são diferentes. (...) o leitor não pode observar um sentimento noutra pessoa, embora possa observar um sentimento em si próprio quando, enquanto ser consciente, tem a percepção dos seus estados emocionais. Do mesmo modo, leitor, ninguém pode observar os sentimentos que são os seus, mas alguns aspectos das emoções que estão na base desses sentimentos são manifestamente observáveis pelos outros-, op. cit., pp. 62/63. 90 GOLEMAN, Daniel, Inteligência Emocional, pp. 53/54. 91 A infância é profundamente marcante e o tempo primordial para o afecto, afectando toda a vida adulta. É o princípio da vida. 0 sistema perceptivo de um bebé é geral, abstracto e imediato, especificando-se com o seu desenvolvimento. A sociedade e cultura em que nascemos, bem como 58 São provavelmente poucos aqueles que não se escondem, que não se velam, que se entregam aos outros e a si próprios. Assim sendo, vamos construindo uma imagem distorcida do que realmente somos, que nos impede «de apreciar directamente a possível origem e natureza daquilo a que chamo si. Quando levantamos o véu, e à escala de compreensão que a mente humana permite, creio que conseguimos sentir a origem do si na representação da vida92». A autoconsciência e o autoconhecimento são fundamentais para nos controlarmos, nos relacionarmos e conhecermos o outro. Sem a exploração do autoconhecimento e das aptidões emocionais, teremos, certamente, maior dificuldade em lidar com o outro. Isto não só enriquece a nossa vida mais íntima e privada como a nossa produtividade, numa espécie de clareza e bem estar geral consciente com a vida. Howard Gardner chama a esta capacidade de compreender os outros, Inteligência Interpessoal. «Os vendedores, políticos, professores, clínicos e líderes religiosos bem sucedidos terão tendência para ser pessoas possuidoras de um elevado nível de inteligência interpessoal. A inteligência intrapessoal (...) é uma capacidade correlativa, voltada para dentro. É a capacidade de criarmos um modelo correcto e verídico de nós mesmos e de usar esse modelo para funcionar eficazmente na vida». É «a capacidade de discernir e responder adequadamente aos estados de espírito, temperamento, motivações e desejos das outras pessoas93». Se Gardner apresenta alguns exemplos válidos de actividades nas quais é indispensável uma inteligência interpessoal, propomos que na vida sejamos um pouco de cada uma dessas actividades. Ser mãe/pai, amiga/o, é ser educador/professor, é saber gerir uma relação, é ter que ser, por vezes, frio/clínico, saber distanciar, promover e acreditar, ser doce, ser meigo, ser fiel o ambiente que nos envolve, justifica a especialização e a formação daquilo a que chamamos a personalidade geral identificadora. O acesso facilitado à informação, permite que os pais tenham presente os princípios básicos de integração na fase inicial da vida do ser que geraram. Estudos científicos têm comprovado que, por exemplo, as carícias físicas, o contacto corporal entre pais e filhos resulta em crianças mais receptivas, mais activas, mais tolerantes, mais dóceis, mais atentas ao espaço que as rodeia e ao controle das suas emoções, para além dos benefícios fisicamente detectados. São mais equilibradas e saudáveis. Sendo a carícia uma cerimónia valiosa é cada vez mais presente e divulgada a sua necessidade. 92 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, p. 49. 93 GOLEMAN, Daniel, Inteligência Emocional, pp. 59/60. 59 a princípios. Portanto, a inteligência intrapessoal como uma necessidade de relacionamento com o outro é comum a todos nós e deverá ser alimentada desde a infância. Quando nos emocionamos somos levados a agir e para agir precisamos do corpo que efectua a acção depois de receber impulsos do cérebro: «/\ própria raiz da palavra emoção é motere, o verbo latino 'mover", mais o prefixo "e-" para dar "mover para", sugerindo que a tendência para agir está implícita em todas as emoções. O facto de que as emoções conduzem à acção torna-se perfeitamente óbvio quando observamos animais ou crianças: é só entre os adultos "civilizados" que tantas vezes encontramos essa grande anomalia no reino animal: emoções - impulsos básicos para agir - divorciadas da óbvia reacção94». A linguagem das emoções é comum a todos e pretender anulá-la pode prejudicar fortemente todo o processo de raciocínio. Por implicarem acção, num movimento de dentro para fora, as emoções comunicam directamente com o corpo e atravessam o sensorial95. Exteriorizamos as emoções com o corpo e é através dele que tomamos, muitas vezes, consciência das nossas emoções, por nos tornarmos espectadores do corpo que se torna palco96. «O papel das emoções é o de assimilar os acontecimentos que são significativos para o indivíduo e motivar os comportamentos que permitem geri-los97». Por muito difícil que seja atribuir palavras e significados a algumas das emoções, podemos tentar distribuí-las por grupos ou famílias98. Por M Op. cit., p. 28/29. "Conseguimos detectar emoções de fundo através de pormenores subtis relacionados com a postura corporal, com a velocidade e contorno dos movimentos, com modificações minimas na quantidade e velocidade dos movimentos oculares e no grau de contracção dos músculos faciais-, DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, p. 73. 96 Expressão utilizada por António Damásio, remetendo o corpo para o palco das emoções, na página 328 em O Sentimento de Si. 97 FILLIOZAT, Isabelle, A Inteligência do Coração - Rudimentos de Gramática Emocional, p. 29. 98 Em Inteligência Emocional, Daniel Goleman, procurou definir um esquema de agrupamento de famílias de emoções mas fazendo ressalvas, nomeadamente no que respeita às combinações de emoções que, segundo ele continuam a promover «o debate científico sobre como classificaras emoções». «- Ira: fúria, ultraje, ressentimento, cólera, exasperação, indignação, vexação, acrimónia, animosidade, aborrecimento, irritabilidade, hostilidade e, talvez no extremo, ódio e violência patológicos. - Tristeza: dor, pena, desânimo, desalento, melancolia, autocomiseração, solidão, abatimento, desespero, e, quando patológica, depressão profunda. - Medo: ansiedade, apreensão, 95 60 implicarem acção podem ser consideradas, quando não as dominamos nem controlamos, como públicas, ao contrário dos sentimentos, que são privados. Aprendemos a gerir as emoções escondendo-as por detrás de um véu de controlo: «Se assim não fosse, saberíamos facilmente que as emoções e os sentimentos são tangivelmente acerca do corpo. Por vezes, usamos a mente para esconder uma parte do nosso ser de outra parte desse mesmo ser99». Esta necessidade de esconder tem inúmeras justificações e motivações. São os factores sociais, políticos, de relacionamento e respeito pelo outro, de liberdade, de confiança, mas também de necessidade de evitar o que nos desagrada e dar ênfase a tudo que existe de mais positivo. A dor é associada ao castigo e a comportamentos de recuo e imobilização e, por outro lado, o prazer está associado a recompensa, a comportamentos de curiosidade, procura e aproximação. A gestão das emoções dá-se pela procura de uma separação entre o bom e o mau, o agradável e o desagradável100. nervosismo, preocupação, consternação, receio, precaução, aflição, desconfiança, pavor, horror, terror; como psicopatologias, fobia e pânico. - Prazer: felicidade, alegria, alívio, contentamento, satisfação, delícia, divertimento, orgulho, prazer sensual, excitação, êxtase, agrado, euforia, gratificação, bom-humor, arrebatamento, entusiasmo e, no extremo, mania. - Amor: aceitação, amizade, confiança, bondade, afinidade, devoção, adoração, fascinação, ágape. - Surpresa: choque, espanto, assombro, admiração. - Aversão: desprezo, desdém, troça, repugnância, nojo, desagrado, repulsa. - Vergonha: culpa, embaraço, desgosto, remorso, humilhação, arrependimento, mortificação e contrição-, GOLEMAN, Daniel, Inteligência Emocional, pp. 310/311. 99 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, pp. 55/56. 100 Como referimos anteriormente, o princípio da vida é o tempo mais valioso na educação e na formação do sistema de gestão das emoções. Ainda na fase intra-uterina o feto já tem capacidades de interacção. Existe uma comunicação, via mãe, que o vai colocando em contacto com o exterior e ele revela-o, responde, age. Tudo o que acontece durante este período e em conjunto com os primeiros tempos de vida caracterizados pela percepção e não pela sensação, vão de forma crescente e progressiva proporcionar as diferentes manifestações sinérgicas. Assim, os pais têm um papel primordial na construção da inteligência da criança, funcionando como um espelho onde a criança se reflecte. Aquilo que lhe for fornecido nos primeiros quatro anos de vida vai ser utilizado no seu convívio e integração social. É nesta altura que se define, na sua essência, a inteligência emocional. Nas palavras de J. Dias Cordeiro durante o colóquio O corpo na era digital, «O corpo sensível é o mais precoce e o mais importante organizador de toda a vida, somática e psíquica". E, remetendo-nos para Daniel Stern acrescenta: "Ao nascera criança contém já em si todo o programa a desenvolver sob a forma da pré-estruturas. Estas necessitam de um estímulo específico: da palavra na aquisição da linguagem (se não falarmos com uma criança ela nunca adquirirá a linguagem falada): se não houver movimento e exercício motor não haverá desenvolvimento psicomotor; se não houver trocas afectivas precoces que permitam o desenvolvimento da auto-estima, a criança arrisca-se a transportar em si para todo-o-sempre a decepção de ser mal-amada e a revolta contra as pessoas e, eventualmente, a zanga contra a vida», CORDEIRO, J. Dias, in ALVES, Manuel Valente e BARBOSA, António (dir), O Corpo na Era Digital, compilação de textos de vários autores, org.: Departamento de Educação Médica da Faculdade de Medicina de Lisboa, Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa, 2000.p. 179/181. 61 É também através das emoções que accionamos, organizamos e reconstruímos a memória, que é disposicional e, portanto, não-consciente, a partir de um processo de interpretação de imagens retidas. Quando recordamos experiências vividas e sentimos frio, calor, cheiro, som, ou sabor, somos invadidos por estas imagens, que não são visuais mas sensoriais, e das quais dificilmente conseguimos fazer uma exposição verbal. «Temos, em geral, pouco controlo directo sobre a "robustez" das memórias ou sobre a facilidade com que estas serão ou não recuperadas no recordar. Claro que temos toda a espécie de intuições interessantes acerca do valor emocional, durabilidade e profundidade das memórias, mas não temos um conhecimento directo dos mecanismos da memória™». Há que distinguir as emoções dos sentimentos. De uma forma simples podemos dizer que os sentimentos passam por um processo de racionalização podendo ser consequência de emoções. As emoções são como pulsões: primárias, primeiras e muitas vezes, inconscientes. Alegria, tristeza, medo, cólera, surpresa ou aversão, vergonha, ciúme, culpa, orgulho, bem-estar, mal-estar, calma, tensão, são emoções e sensações. «É o prazer uma emoção? (...) preferiria dizer que não, embora, tal como a dor, o prazer esteja intimamente relacionado com a emoção. Tal como a dor, o prazer é uma qualidade constitutiva de certas emoções, assim como um desencadeador de determinadas emoções. Enquanto a dor está associada a emoções negativas, tais como angústia, medo e tristeza, cuja combinação constitui aquilo que vulgarmente denominamos sofrimento, o prazer está associado a diversas tonalidades da felicidade, orgulho e emoções de fundo positivas™2». Quando estamos com medo, todos os nossos sentidos se apuram. Ouvimos melhor, vemos melhor, estamos mais atentos e alertados por forma a podermos proteger-nos. A ira pode funcionar como defesa, como reacção a algo que consideramos errado, desagradável ou insuportável. A alegria A gestão das emoções e dos afectos nas crianças são um tema cada vez mais preocupante. Na revista X/s, suplemento do jornal Público, de 10 de Novembro de 2001, um artigo acerca deste assunto assinado por Maria José Costa Felix, remete-nos para o último livro de Pedro Strecht, onde podemos ler que não só o primeiro ano de vida é determinante para a definição dos padrões emocionais e afectivos do ser humano, como a importância que os pais têm no processo dessa mesma construção. 101 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, p. 261. 102 Op. cit., p. 99. 62 invade-nos o corpo, altera-nos. Alegres, sentimo-nos capazes de abraçar o mundo. Por via de uma sociabilização firmada por códigos e regras, por convenções, vivemos numa constante repressão das emoções. Dificilmente somos realmente verdadeiros por nos sentirmos observados pelos outros. Quantas vezes é que o soltar de uma gargalhada, num contexto público, provocou a rotação de todos os corpos em direcção a nós e um silêncio verdadeiramente condenatório? Parece que as explosões de alegria incomodam e não são desejáveis. A espontaneidade só é tolerada por vezes, ou nas crianças103. Oprimimos a exteriorização das nossas emoções. Consideramos, vulgarmente, que alguém que as exteriorize está a representar ou a querer dar nas vistas. As demonstrações de tristeza, dor, e de todas as outras emoções, estão sujeitas a ser dominadas, porque as fiscalizamos, condenamos e somos condenados. «As emoções amedrontam porque nos 103 Mais curiosas, mais atentas, mais perspicazes, e com acesso facilitado a tudo o que as envolve, hoje, as crianças apercebem-se mais cedo de tudo. Quando dizemos que se apercebem mais cedo de tudo, não queremos afirmar que existe entendimento, até porque facilmente se prova o contrário. Quando uma criança vê um sinal vermelho num semáforo apercebe-se dele como um adulto, mas isso não quer dizer que compreenda o seu significado. O acesso facilitado à totalidade do meio pode provocar sofrimentos e feridas pela falta de capacidade de compreensão da realidade que lhes é apresentada. Karl Popper, o teórico vienense que se dedicou à filosofia, à psicologia e à educação, defensor de uma Sociedade Aberta e do pensamento liberal, faz referência aos malefícios provocados nas crianças pela televisão no livro, Televisão: Um Perigo para a Democracia, escrito em co-autoria com Jonh Condry, escrevendo que «a televisão é incapaz de ensinar às crianças o que é necessário à sua educação. (...) A violência, o sexo, o sensacionalismo, são os meios a que os produtores de televisão recorrem mais facilmente: é uma receita segura, sempre apta a seduzir o público. (...) Todas as pessoas que viessem a fazer televisão deveriam, volens nolens, tomar consciência de que têm um papel de educadores pelo simples facto de a televisão ser vista por crianças e adolescentes», POPPER, Karl, CONDRY, Jonh, Televisão: Um Perigo para a Democracia (tít. orig.: La Télévision: un danger pour la démocratie, Anatolia Éditions, 1994, trad.: Maria Carvalho), col. Trajectos, Gradiva, Publicações, Lisboa, 1995, pp. 16/26. A partir dos textos de Karl Popper concluímos que a imunidade ao sofrimento e, pior do que isso, encarar a violência com alguma indiferença, são dois dos aspectos negativos desta maior abertura, que pode provocar uma série de disfunções comportamentais e até biológicas que interferirão nas fases posteriores à infância. Estes incidentes podem implicar graves problemas de interiorização do Eu, de adaptação e inserção social. Relativamente às disfunções biológicas e a título de exemplo, remeto-vos para uma notícia apresentada no canal GNT há cerca de um ano relatando o facto de existirem casos de crianças com 5 e 6 anos que atingem precocemente a puberdade (fase da vida geralmente associada a idades compreendidas entre os 10 e os 14 anos). Sendo a puberdade uma questão biológica que recebe interferências do exterior, cria-se uma disfunção entre a capacidade biológica e psicológica da criança, incapaz de receber o novo corpo numa idade tão tenra. A sociedade simultaneamente erótica e assexuada que temos são dois dos factores que o justificam. 63 confrontam com uma realidade que se prefere não ver, elas obrígam-nos a enfrentara verdade10*». A ausência de afecto generaliza-se por este ser demasiadamente controlado, gerido por convenções. Reprimir ou mascarar as emoções e os afectos provoca mal estar, angústia e, muitas vezes, depressão compensada com o uso de químicos: antidepressivos, ansiolíticos, álcool, ou outras drogas. "Quando somos levados a duvidar das nossas próprias sensações, como é que podemos construir alguma confiança nos nossos próprios julgamentos? Ou nos nossos sentimentos? E na nossa capacidade de reflexão?105». Tendemos a julgar tudo aquilo que nos é apresentado de novo, seja positiva ou negativamente, como forma de protecção dos nossos sentimentos e para que estes nunca sejam postos em causa. Porém, as emoções são estruturadoras da nossa personalidade e identidade. Nunca estão desligadas do neocortex, que funciona como antecipador: imaginar, sonhar, analisar, associar, ponderar, reflectir, deduzir, esperar, projectar, e não pode ser dissociado de nenhuma das nossas capacidades motoras e de percepção, porque é ele que dirige os nossa capacidade de projectar no futuro, de existir também a partir de projectos. Se formos demasiado emocionais ou racionais sofreremos bastante com isso e podemos tornar-nos perigosos. O desejável é o equilibro entre os diversos parâmetros cerebrais que funcionam num sistema circular e de reciprocidade. Podemos sofrer de perturbações que decorrem da ausência de determinadas emoções, como por exemplo, o medo. Sermos incapazes de perceber o perigo, de sentir e detectar o medo em nós próprios e/ou no outro, como acontece nos casos de uma perturbação bilateral da amígdala, provoca uma distorção relativamente à afectividade e pode, em casos extremos, originar a incapacidade de iniciativa própria106. A amígdala, ou melhor as 104 FILLIOZAT, Isabelle, A Inteligência do Coração - Rudimentos de Gramática Emocional, pp. 36/37. 105 Op. cit., p. 46. Podemos referir o exemplo estudado das crianças lobo. Estas crianças cresceram num meio selvagem, sem contacto com humanos, por vezes integradas em famílias de animais selvagens que as adoptaram e as receberam, integrando-as e educando-as de acordo com os seus padrões de sobrevivência. Não falam, emitem sons num vocabulário que desconhecemos, tornando-se uma espécie de animais irracionais de aparência semelhante à nossa, tal como os primatas, mas com a diferença de serem únicas em qualquer contexto e de terem crescido na tentativa de se igualarem ao seu semelhante. Numa linguagem pouco formal e especializada, pode dizer-se que alguns dos 106 64 amígdalas, já que possuímos uma em cada hemisfério do cérebro, encontram-se na região superior do tronco cerebral e funcionam como estruturas interligadas. Pelo formato adquiriram este nome que, em grego, significa amêndoa. «Sem a amígdala, parecia ter perdido a capacidade de reconhecer sensações, bem como a capacidade de experienciar sentimentos.(...) Numa das mais importantes descobertas a respeito das emoções feitas durante a última década, o trabalho de LeDoux revelou como a arquitectura do cérebro atribui a amígdala uma posição privilegiada como uma espécie de sentinela emocional, capaz de assenhorear-se do controlo do cérebro.(...) As nossas emoções têm uma mente muito sua, capaz de formular "pontos de vista" independentemente da nossa mente racional. Estas opiniões inconsistentes são memórias emocionais; o seu armazém é a amígdala.(...) Quando a amígdala é seccionada do resto do cérebro, o resultado é uma impressionante incapacidade de avaliar o significado emocional dos acontecimentos; esta condição é por vezes chamada "cegueira afectiva"™7». O facto de contrariarmos constantemente as nossas emoções e de as controlarmos, pode acarretar consequências nefastas. A acumulação das emoções pode provocar um sofrimento silencioso e potenciar explosões, aparentemente descabidas e descontextualizadas, que levam ao excesso. Quem controla demasiado as emoções pode sentir-se oprimido e tenderá a sofrer com isso. Não é possível controlar interiormente uma emoção. Um som, um cheiro, um toque, uma imagem, um texto108 podem desencadear emoções sem que possamos fazer nada contra isso. Podemos, contudo, controlar a reacção às emoções, digeri-las e até mesmo transformá-las em sentimentos. Nas palavras de António Damásio, «travar a expressão de uma emoção é tão difícil como evitar um espirro. Podemos conseguir evitar a expressão de uma emoção em parte, mas não totalmente. Aquilo que realmente conseguimos é a capacidade de disfarçar algumas das manifestações externas da emoção, sem motivos apontados para estas situações são o desenvolvimento de uma espécie de autismo provocado pela falta de amor e de sociabilização. Colocadas numa fase avançada da idade (a partir dos 4 anos) em contacto com um ambiente considerado normal, estas crianças entram num processo muito rápido de rejeição e regressão, acabando por morrer. 107 GOLEMAN, Daniel, Inteligência Emocional, 1995, pp. 36/41. 108 Sugere-se a leitura do texto que escrevi para o catálogo da minha exposição: Mamã deixa-me andar de escultura!?, na Galeria Serpente, Porto, no ano de 2000, em Apêndice 1. 65 que sejamos capazes de bloquear as manifestações automáticas que ocorrem no milieu interno e nas vísceras. (...) Podemos educar as nossas emoções, mas não suprimi-las completamente, e os sentimentos interiores que vamos tendo são as melhores testemunhas do nosso insucesso™». Não existem motivos para pensarmos que todos os sentimentos são conscientes, até porque não corresponde à verdade. O radar emocional ultrapassa em rapidez o racional e funciona tão rapidamente que o "intervalo entre aquilo que dispara uma emoção e a sua reacção pode ser praticamente inexistente,(...)» e «o mecanismo que avalia as percepções tem de ser capaz de uma grande velocidade, mesmo em tempo de cérebro, que se conta em milésimos de segundo. Esta avaliação da necessidade de agir tem de ser automática, tão rápida que nunca chega a entrar no consciente. O tipo de resposta rápida-e-suja da mente emocional domina-nos praticamente antes que tenhamos tempo, de perceber o que se está a passai10». A paixão acerca da qual se pode reflectir e que pode tornar-se amor são sentimentos que denunciam a nossa incapacidade de controle. A sua intensidade não depende de uma vontade accionada por nós. Quando damos conta já fomos invadidos por estes. E por isso dizemos que fomos dominados pela emoção, quando, apesar de não querermos que alguém suspeite do que sentimos, exteriorizamos. Por vezes não temos consciência dos nossos sentimentos, condição também verificável no que diz respeito aos sentimentos dos outros. É possível apercebermo-nos deles e, mais facilmente, das emoções, através de estados corporais que as manifestem: "Como olhar alguém nos olhos, como seduzi-lo, se não estivermos certos de que esse alguém ainda está /á?111». A questão levantada por Jean Baudrillard remetenos para o pensamento socrático conhece-te a ti mesmo e terás aí a possibilidade de conhecer melhor o outro. A repressão das emoções não permite a circulação dos afectos e dos sentimentos, e partilhá-los, na medida em que são a verdadeira urgência das nossas vidas, gera proximidade. A ausência de afecto afasta-nos. 109 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, pp. 71/73. 1,0 GOLEMAN, Daniel, Inteligência Emocional, pp. 312/313. ' " BAUDRILLARD, Jean, As Estratégias Fatais (tít. orig.: Les Stratégies Fatales, Éditions Grasset & Fasquelle, 1983, trad.: Manuela Pereira), col. Margens, Editorial Estampa, Lisboa, 1991, p.19. 66 Sentirmo-nos angustiados e ansiosos relativamente às incertezas e inseguranças da vida, do futuro, parecem ser estados normais e humanos, que podem ser assumidos e atenuados se sentirmos segurança interior, autoconfiança e se formos capazes de controlar os nossos medos"2. Mas há quem viva permanentemente num estado de ansiedade, o que pode gerar fobias, tiques, e há também quem nem sequer tenha consciência desse estado, evidenciando-o com determinados comportamentos, como por exemplo, roer as unhas. A angústia caracteriza-se, fundamentalmente, por ser uma concentração de muitas emoções, geralmente, de origem oposta e, até, contraditória. Combater a angústia não é tarefa fácil, mas pode ser atenuada dependendo da sua origem, intensidade, e da consciencialização que se tem sobre a mesma. «Não só a angústia existencial não deve ser combatida, como deve ser aceite, olhada de frente para sermos verdadeiramente humanos. O acesso à consciência coloca-nos no universo num lugar muito insignificante, embora privilegiado. A consciência da nossa finitude, da presença da morte nos nossos actos do dia a dia pode dar-lhes uma dimensão mais vasta. A angústia existencial convida-nos a procurar sentido. Abre-nos para a espiritualidade. Convida-nos a não esquecer de basear a nossa vida em valores"3», e a abraçar os sentimentos que geram intimidade como é, exemplarmente, o amor. Entre o neocortex e a amígdala existe uma ligação equivalente à que estabelecemos entre o racional e o irracional. Com todas as forças lutamos contra determinados estados de espírito, como por exemplo, a tristeza e a 1,2 "1. Reconheça o seu medo, aceite-o. 2. Fale nele, partilhe-o. 3. Descodifique: de que sentimentos é composto este medo? 4. Procure toda a informação de que possa necessitar. 5. Tranquilize-se, recorde os seus sucessos, faça a lista das suas qualidades, ame-se. Fale a si próprio com respeito e ternura. Procure a criança que tem em si, cure-a. 6.Peça contacto físico a alguém. Se o outro se apoiar nas suas costas e colocar as mãos nos seus ombros, você sente o calor do peito e do ventre dele nas suas costas. Ele está atrás de si, você pode enfrentar porque ele o apoia. Memorize a sensação para a levar consigo no momento da sua "provação". 7. Dê a s; mesmo espaço para antecipar positivamente. Veja a cena, contemple-se a agir, a comportar-se e a ser como deseja. 8. Aja mantendo a consciência do seu ideal, da sua antecipação positiva e do apoio da pessoa que escolheu. 9. Uma vez atravessada esta etapa, o sucesso obtido e o medo dissipado, lembre-se de como era antes. Veja-se antes do salto ou do exame, no momento em que tinha medo. E, na pele que tem hoje, partilhe os seus sentimentos de orgulho com aquele que você era ontem. Esta nona etapa é fundamental para ter cada vez menos medos na vida, para conseguir recursos positivos e ganhar confiança em si", FILLIOZAT, Isabelle, A Inteligência do Coração - Rudimentos de Gramática Emocional, pp. 118/119. 113 Op. cit., p. 144. 67 solidão114. Quando isto não acontece alguma coisa de errado se passa dentro de nós. Esta luta com nós próprios pode reflectir-se em diversos comportamentos. Chorar ou rir pode tornar-se um alívio. Fazer obras em casa, tratar do corpo115, ir jantar fora, vestir uma roupa elegante, podem ser usados como animadores da auto-imagem. Aquilo que vulgarmente definimos como ter pensamento positivo, ou poder psicológico para ultrapassar os problemas, trata-se de uma 6 reconfiguração cognitiva" - olhar em volta e perceber que afinal não estamos tão mal e que existem sofrimentos muito mais dolorosos que o nosso chega a funcionar como antídoto contra a doença, quando esta é o potenciador da depressão. 1,4 Na Introdução abordou-se o problema da solidão no que se refere à Internet e ao tautismo. Este sentimento não é dos dias de hoje, sempre existiu. As manifestações e resultados dessa solidão é que são diferentes e remetem-nos para graves problemas de comunicação, por muito estranho que possa parecer. Trata-se de uma solidão massificada. «Não nos tranquilizemos depressa de mais, o mal-estar da comunicação nas nossas sociedades não é menos real, a solidão tornou-se um fenómeno de massa. Sinais não faltam: entre 1962 e 1982, o número de pessoas que viviam sós aumentou em França em 69%; hoje, são perto de cinco milhões; num em cada quatro casos, o lar só conta com uma pessoa; em Paris, metade dos lares são "solitários". As pessoas idosas encontram-se num estado de isolamento cada vez mais nítido;(...) O número de suicídios e de tentativas de suicídio é alarmante: em 1985, a mortalidade por suicídio em França ultrapassou, pela primeira vez, a mortalidade provocada por acidentes rodoviários; ao passo que perto de 12000 pessoas por ano põem voluntariamente termo à vida, os suicídios "falhados" são, em 30 a 40% dos casos, seguidos de rápida reincidência. A idade da moda total é inseparável da fractura cada vez maior da comunidade e do défice da comunicação intersubjectiva: um pouco por toda a parte, as pessoas lamentam-se de não ser compreendidas ou ouvidas, de não poder exprimir-se. A acreditar num inquérito americano, a falta de diálogo estaria em segundo lugar entre os motivos de recriminação das mulheres contra os maridos: os pares casados dedicariam menos de meia hora por semana a "comunicar"'; LIPOVETSKY, Gilles, 0 Império de Efémero - A moda e o seu destino nas sociedades modernas (tít. orig.: L'impire de l'éphémère, 1987, Editions Gallimard, trad.: Regina Louro), col. Biblioteca Dom Quixote, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1989, pp. 380/381. 115 Tratar do corpo pode remeter-nos para atitudes meramente esporádicas, como ir ao cabeleireiro, fazer uma sessão de solário ou arranjar as unhas, como para comportamentos de alteração do ritmo diário e nos quais se englobam, por exemplo, o exercício físico. Como conclusão dos seus estudos, Tice refere-se à ginástica aeróbica como «uma das tácticas mais eficazes para vencer uma depressão ligeira, bem como alguns outros estados de espírito negativos (...) Na realidade, para os praticantes habituais do exercício físico, verifica-se um efeito inverso no estado de espírito: começam a sentir-se mal nos dias em que, por qualquer motivo, falham a sua sessão. O exercício parece resultar bem porque altera o estado fisiológico que o estado de espírito provoca: a depressão é um estado de baixa excitação, e a ginástica aeróbica leva o corpo a um estado de alta excitação. Por isso, as técnicas de relaxação, que colocam o corpo num estado de baixa excitação, resultam bem nos casos de ansiedade, que é um estado de alta excitação, mas não tão bem nos casos de depressão. Qualquer destas abordagens parece conseguir quebrar o ciclo de depressão ou de ansiedade porque leva o cérebro a um nível de actividade incompatível com o estado emocional que o dominava^, GOLEMAN, Daniel, Inteligência Emocional, pp. 94/95. O que geralmente os habituais frequentadores de ginásios fazem para não permitir que os estados de depressão voltem é alterarem a performance de exercícios com alguma frequência. 116 BAUDRILLARD, Jean, As Estratégias Fatais, p. 94. 68 Profundamente animador e revelador de resultados é ajudar os outros. Enquanto ajudamos não só nos sentimos úteis na sociedade como estamos demasiado ocupados para nos entregarmos à nossa depressão. A religião, a crença, o transcendente, também podem resultar como alívios destes estados negativos. O crente usa as suas crenças também para as situações positivas, por acreditar que tudo está pré-definido, por tudo o que existe ter uma razão para acontecer. Atribuímos significados diversos e damos ênfase aos gestos, às expressões faciais que executamos. Despertamos interesse ou repelimos os outros através de manifestações, expressões de estados corporais, estabelecendo diálogos de comunicação não-verbal. A empatia só se revela se o processo de autoconsciência existir. Não sabemos explicar porque é que sentimos empatia positiva117 por alguém que praticamente não conhecemos. O seu tom de voz, a expressão das suas emoções através de gestos particulares, a maneira como se dirige e comunica, como se apresenta, fazem-nos sentir bem na sua presença. Como capacidade de percepção daquilo que o outro sente, a empatia implica partilha, cumplicidade e sincronia com o outro e «pede-nos que saibamos sair do nosso egocentrismo para nos concentrarmos na vivência dos outros. Mostrar-se empático é sentir sem julgarua». Nesta gestão de relacionamentos precisamos de estar bem connosco para entendermos os outros num amadurecimento das nossas aptidões pessoais e num ajustamento de comportamentos. Este fenómeno enquadra-se naquilo a que Daniel Goleman designa por artes sociais, nas quais os actores são peritos profissionais: «£, sem dúvida, alguns de nós agimos na vida como actores naturais. Mas em parte porque as lições que aprendemos a respeito das regras de exibição variam de acordo com os modelos que tivemos"9». Existem gestos universalmente descodificáveis (o indicador que passa pela garganta a indicar morte), gestos que denunciam crenças religiosas, convicções políticas, orientação sexual, grupos estudantis, e outros que são 117 Geralmente utilizamos o termo empatia como positivo. Originária do grego pathos que significa estado de alma, a empatia é a capacidade de identificação com o eu do outro que, também, pode ser também desagradável. " a FILUOZAT, Isabelle, A Inteligência do Coração - Rudimentos de Gramática Emocional, p. 258. 1,9 BAUDRILLARD, Jean, As Estratégias Fatais, pp. 134/135. 69 particulares e íntimos. A postura física também é denunciadora de personalidades, mas pode funcionar como disfarce. Há muitas pessoas que, por detrás de uma aparente segurança e extroversão, escondem a timidez. Olhar nos olhos dos outros enquanto falamos revela atenção e capacidade de confronto de ideias, mas também desarma o outro e retira-lhe poder. O corpo pode revelar o nosso carácter que, em conjunto com todas as nossas manifestações verbais, comportamentais, e com um maior contacto e mais íntimo mostram quem somos: «A comunicação humana é tão incrivelmente complexa que não há regras fixas e rígidas e na ausência delas, eu sei, como qualquer outra pessoa, que tenho a tendência de ver só o que eu quero e de prestar atenção só naquilo que me convém. Por outro lado, hoje em dia, quando sinto um ataque repentino de intuição, um sentimento realmente forte que me diz quando uma pessoa está reagindo ou quais são seus objectivos deixo-me levar por ela, sobretudo quando consigo perceber alguns sinais corporais em que ela se baseia™». A energia que caracteriza o corpo, instrumento do gesto e do movimento, carrega a responsabilidade da linguagem corporal e, por consequência, das Artes do Corpo. A dança, a performance, o teatro mímico, são alguns exemplos de expressões artísticas nas quais a presença da palavra pode reduzir-se a um extra ou complemento. «Se a dança é gesto, é, pelo contrário, porque ela consiste inteiramente em suportar e exibir o carácter medial dos movimentos corporais. O gesto consiste em exibir uma medialidade, em tornar visível um meio como talm» Um corpo parado não existe porque ele é o resultado do seu desempenho. A acção no meio é aquilo que o potencia. Giorgio Agamben explora a diferença entre a acção e o gesto. Por ser mais moral e mais ético do que a verdadeira acção, o gesto pode não ser a concretização de uma acção premeditada. «O gesfo é, neste sentido, comunicação de uma comunicabilidade^22», sai do corpo, transbordando-o livremente, prolongando-se no espaço, sem limites nem obstáculos, na realização de um trajecto. É uma projecção comunicacional, não-verbal, do interior para o exterior, uma linguagem silenciosa. O movimento do corpo, 120 DAVIS, Flora, A comunicação Não-Verbal, col. Novas Buscas em Educação, Summus Editorial, São Paulo, 1979, p. 188. 121 AGAMBEN, Giorgio, D de la Danse, Reveu d'Esthétique, Paris, 1992, p. 9. 122 Ibidem. 70 definido pela linguagem do gesto, permite uma consciência do próprio corpo. Numa fusão do corpo com a mente, este corpo/gesto faz, fenomenologicamente, sentido: liberta os afectos, provoca a sensação de um corpo sem dimensão, sem espessura, sem interior, de pele, elástico, matéria plástica que se liberta cinestesicamente com diferentes intensidades. 71 2. A Indústria do Corpo e a Proposta Multissensorial. O capítulo anterior foi dedicado à análise dos sentidos, numa perspectiva somatossensorial de envolvimento da educação e inteligência humanas para o uso que deles fazemos, ou poderemos fazer. A evolução tecnológica como meio de activação e desenvolvimento das nossas capacidades é não só desejável, como pode proporcionar um melhor e mais profundo conhecimento do nosso potencial emocional e criativo: «ver mais não é apenas ver mais longe, para além dos limites das nossas paredes e horizontes presentes. É desenvolver uma nova precisão e flexibilidade do nosso olhar; é ver por trás das nossas costas, como vemos à frente dos olhos; é apreender o mundo não apenas numa relação frontal, mas num ambiente circundante total; é multiplicar as facetas dos nossos olhos e os objectos do nosso olhar simultâneo como se todas as câmaras do mundo fossem a realização de um novo Argus. Ouvir mais é saber como encontrar o som por trás do som, para lá do frenesim da cidade e para lá da cacofonia dos media. (...) John Cage disse que o silêncio é a soma de todos estes sons do meio ambiente ao mesmo tempo. Poderia também ter dito que o silêncio está vivo. Sentir mais é o mais importante. (...) Aprendemos a usar a pele como um dispositivo de exclusão. Ganhámos terror ao toque, ao contacto corporal, aos corpos das outras pessoas e ao nosso, mais do que a qualquer um. Desse modo a pele só pode doer. (...) O toque das outras pessoas só pode magoar. A nossa privacidade exige a protecção da culpa.(...) A violência de uns poucos é resultado da insensibilidade de muitos. Sentir mais é começar a estar preparado para uma melhor compreensão do mundo em que estamos a entrar. (...) o papel da arte é fundamental. A solução real está em mudar as nossas percepções e não só as nossas teorias. A arte da telecomunicação ajuda-nos a perceber que nos estamos a tornar povos maiores, à medida que olhamos o nosso planeta do espaço e descobrimos que o real tamanho do nosso corpo colectivo é o do Planeta. As artes interactivas e a proliferação de interfaces sensoriais podem fazer-nos perceber que usamos as nossas mentes e corpos prolongados como mecanismos de 73 afinação para ir verificando o estado de saúde da Terra. Somos convidados a refinar a nossa autopercepção para estender o nosso ponto de ser (mais que o nosso ponto de vista) de onde ou para onde quer que os nossos sentidos tecnologicamente prolongados nos fevem'23». Tudo isto implica uma necessidade urgente de «rever e alargar a nossa concepção da condição humana, de dar provas de mais abertura e maior realismo na nossa visão dos outros e na nossa visão de nós própriosm». Porque é que estamos com tanta pressa? Não temos tempo, ou utilizamos mal o tempo de que dispomos? Por vezes, quando temos algum tempo para parar, temos consciência de que não estamos bem, de que não vivemos bem. Com cepticismo e desconfiança vamos aceitando, sem estranhamente dar crédito, aquilo que nos é apresentado como real. Estamos confusos porque tudo nos parece contraditório. Temos a sensação que, por estarmos informados acerca do mundo, somos livres. Será que, por algum momento, questionamos a veracidade dos conteúdos? Na conquista ou reconquista de um espaço de audiência, como acontece com a imprensa escrita, os diferentes canais de televisão e os outros difusores de informação, decaiu a qualidade e a noção de verdade. A qualquer preço procuram atingir com a maior rapidez e eficácia os nossos corações, os nossos sentimentos, despertar a nossa atenção, nem que para isso sejam forçados à desinformação. Não parece haver qualquer cuidado com os malefícios que se pode provocar no receptor que, desde logo, fica num estado de incerteza e ansiedade, pela deturpação do conteúdo das mensagens. A informação atingiu o valor de pura mercadoria. «Artifícios, falsidades, silêncios tomaram-se norma, como foi possível constatar por ocasião da guerra das Malvinas em 1982, da invasão de Granada em 1983 ou do Panamá em 1989, da guerra do Golfo em 1991, e finalmente da guerra na 123 , KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura - Uma Investigação Sobre a Nova Realidade Electrónica (tit. orig.: The Skin of Culture - Investigation the New Electronic Reality, Somer House Books, Toronto, Ontário, Canadá, 1995, trad.: Luís Soares e Catarina Carvalho), col. Mediações, dir.: José Bragança de Miranda, Relógio D'Agua Editores, Lisboa, 1997, pp. 127/129. Nesta perspectiva pode justificar-se o pensamento visionário de António Damásio. Segundo este neurobiólogo, num futuro relativamente próximo, cerca de 2050, "haverá um conhecimento suficiente do fenómeno biológico que nos afastará das tradicionais separações dualistas de corpo/cérebro, corpo/mente e cérebro/mente», DAMÁSIO, António, How the Brain creates the Mind, in Os Outros em Eu, p. 123. 124 HALL, Edward T., A Dimensão Oculta, p. 17. 74 Bósnia de 1993 a 7996125». Mais presente nas nossas memórias está o atentado de 11 de Setembro de 2001 ao World Trade Center. Poucos minutos depois da tragédia, vários canais de televisão apresentavam imagens de cidadãos palestinianos a comemorarem o sucedido cantando e dançando, criando uma revolta mundial de incentivo à vingança. Pois bem, dias depois era feito o desmentido. Aquelas imagens não correspondiam à mesma realidade temporal. Não se tinham passado naquele dia. Eram arquivos usados para captar audiências, fornecendo uma interpretação manipuladora. O problema é que erros destes não têm volta. Ninguém apaga da memória, com facilidade, ter visto de um lado do mundo a morte e o desespero e do outro a alegria sádica da vingança. Não se ouviu dizer, não se leu, viu-se, como se se tratasse de um directo, e o poder da imagem supera quase tudo. A sensação de que é verdade porque é tecnológico126 é sempre aceite a não ser que haja um desmentido. Quando não há material para notícias, as cadeias de televisão não se inibem em fabricá-lo e, então, confunde-se informação com entretenimento, realidade com fantasia, assuntos sérios com ócio, informação com comunicação. A tese de Marshall McLuhan, na qual defende que a mensagem está dependente do meio que a transmite, carece, agora, de um reajustamento: «o contexto, e não apenas o meio, é a mensagem™7». Podemos, a título de exemplo, considerar motivador, para a substituição dos hippies dos anos 60 pelos yuppies dos anos 90, o facto de «todas as vezes que a ênfase dada a um determinado meio muda, toda a 125 RAMONET, Ignacio, A Tirania da Comunicação (tít. orig.: La Tyrannie de la Communication, Editions Galilée, 1999, trad.: Jorge Sarabando), col. Campo dos Media - 5, Campo das Letras - Editores, Porto, 1999, pp. 28/29. 126 "Uma aparelhagem de estimulação electrónica é mostrada, é exibida, funciona, "comunica", parece dizer-nos: "O que eu vos mostro é verdadeiro, porque é tecnológico." E nós acreditamos porque caímos no logro, porque nos intimida, nos impressiona, nos entra pelos olhos dentro e convence-nos de que um sistema capaz de tais proezas tecnológicas não pode mentir. Mas para já os telespectadores ainda não têm pontos de referência para estabelecer, com esta máquina, a relação de confiança indispensável à credibilidade de discurso. O que é certo, é que nada se parece com a voz abstracta da informação, nem com a presença sorridente de um apresentador. Para o cidadão, aquilo faz ligação, aquilo estabelece contacto, aquilo transmite em rede, em suma, aquilo "comunica", mas o cidadão sente confusamente que aquilo o exclui», op. cit., pp. 36/37. 127 KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura - Uma Investigação Sobre a Nova Realidade Electrónica, p.172, e título do texto 1 da Primeira Parte do livro MCLUHAN, Marshall Os Meios de Comunicação como extensões do Homem (Understanding Media) (tit. orig.: Understanding Media: The Extensions of Man, McGraw-Hill Book Company , Estados Unidos da América, 1964, trad.: Décio Pignatari), Editora Cultrix, São Paulo, s/d, pp. 21/37. 75 cultura se mova,2a». As consequências ficam à vista quando, por exemplo, no quotidiano, passamos períodos do dia à frente da televisão. Seduzidos pela sucessão de imagens e sons transmitidos por este meio e na expectativa de sermos informados comodamente e sem esforço, somos conduzidos, por vezes, a uma ilusão. Paradoxalmente, os programas informativos apresentam, por diversas vezes, conteúdos pobres, superficiais, ou fragmentados e apresentados rapidamente que os afastam da sua função principal e os aproximam da ficção e do entretenimento. Além disso, «informar-se cansa, e é à custa disso que os cidadãos adquirem o direito de participar de uma forma inteligente na vida democrática^». Nesta indefinível distinção entre ausência ou ampliação de espaço e tempo, da aparente liberdade e de "vale-tudo", convivemos com écrans que apresentam os seus discursos e que com um pequeno gesto podem ser por nós interrompidos130. Sofremos, simultaneamente, da falta e do excesso de tempo e espaço. "Por isso há que afirmar uma vez mais, no limiar do que se anuncia como o século da realidade virtual (RV), que o destino principal do ser humano éode interactuar emocionalmente com o mundo vivente que o rodeia e não com os fantasmas que habitam dentro da sua cabeça™». Desvalorizando os discursos institucionais dos diferentes poderes, no império desta cultura da velocidade, a Internet é, como referimos na introdução deste trabalho, o exemplo quase perfeito da metáfora da autoestrada da informação, termo que nos é tão familiar. Com espaço e tempo 12a Op. cit., p.176. Op. cit., p.137. «Os media electrónicos oferecem um novo aspecto ao ambiente dentro do qual o moderno e o global aparecem, frequentemente, como duas faces da mesma moeda. Sempre transportando o sentido de distância entre o espectador e o acontecimento, estes meios arrastam, no entanto, a transformação do discurso diário. Ao mesmo tempo, estes meios são fontes de experimentação individual, aplicáveis a todos os tipos de sociedades e a todo o tipo de pessoas. Estes permitem que guiões de vidas possíveis sejam associados ao encanto das estrelas de cinema e a excelentes argumentos cinematográficos, que sejam associados à plausibilidade dos programas noticiosos, documentários e outras formas de telemediação a preto e branco e texto escrito. Devido às constantes alterações das formas em que aparecem (cinema, televisão, computadores e telefones) e devido à forma rápida em que se atravessam a rotina do dia-a-dia, os media electrónicos proporcionam recursos paia que cada um se conceba como um projecto social quotidiano», APPADURAI, Arjun, Aqui e Agora - Dimensões culturais da globalização, University of Chicago, EUA, in Revista de Comunicação e Linguagens - Tendências da cultura contemporânea, org.: José Augusto Bragança de Miranda e Eduardo Prado Coelho, n°28, Relógio D'Agua Editores, Lisboa, Outubro de 2000. 131 GUBERN, Román, O Eros Electrónico- Viagem pelos sistemas de representação e do desejo, p. 188. 129 130 76 para todos, individualmente ou em grupo, aceitando todas as opiniões, sem excepção, esta rede coloca todo o controlo nas nossas mãos, aguardando passivamente a nossa acção. Neste cérebro colectivo no qual tudo pode ser notícia rapidamente - assim como aparece, pode simples e instantaneamente desaparecer, impõe-se a comunicação do êxtase132, no sentido de enlevo superficial. Nesta amnésia histórica (FOSTER, Hal, 1983) caminhamos em direcção a um futuro instantâneo no qual não parece ser possível relatar os acontecimentos do presente. 132 «We live in the ecstasy of communication. And this ecstasy is obscene. The obscene is what does away with every mirror, every look, every image. (...) It is no longer then the traditional obscenity of what is hidden, repressed, forbidden or obscure; on the contrary, it is the obscenity of the visible, of the all-too-visible, of the more-visible-than-the-visible. It is the obscenity of what no longer has any secret, of what dissolves completely in information and communication", FOSTER, Hal, The AntiAesthetic - Essays on Postmordern Culture, pp.130/131. Esta expressão de Hal Foster - ecstasy of communication - que sugere um maravilhoso prazer, remete-me para a ideia de alienação e poder provocada pela droga química do corpo actual: o ecstasy. Num mergulho sem obstáculos, esta droga parece promover uma vertigem que sugere um cenário perversamente excitante. 77 2.1. Interactividade e Fruição. Por vezes, aplicamos o termo interactividade de forma arbitrária, definindo, por exemplo, toda a arte digital como interactiva, nomeadamente quando nos referimos à Internet, a jogos de computador, a CD-rom's, ou a D.V.D's. Caracterizando-se pela sua não-linearidade, pertencem a um grupo que denomino de interactividade selectiva, possibilitando ao utilizador uma selecção, uma escolha, a partir de um esquema pré-definido, do caminho que deseja percorrer, comparável à eleição de um prato na ementa de um restaurante. Uma liberdade condicionada, limitada e controlada. O termo interactividade está na moda. Parece que tudo é interactivo ou é produzido com esse fim. Ao vulgarizar um termo perdemos a noção do seu real significado. A interactividade implica uma troca a partir de uma acção. Uma acção de reciprocidade entre dois ou mais corpos. O elemento composicional de palavras de origem latina, inter, quer dizer entre, dentro de, no meio de133, pelo que são as próprias coisas interactivas que agem, desencadeando acção a partir de uma outra acção, a nossa, que as provoque. Depois começa o jogo de troca, de dar e receber. Quando referi que, no presente, tudo parece ser interactivo, quero dizer que, provavelmente terá sido sempre assim. Fomos sempre interactivos e criámos coisas que interagissem connosco e nós com elas, numa acção de reciprocidade e intercâmbio comunicacional num dado sistema de signos. Porém, hoje, o termo é enfatizado por ter sido, primeiramente, adoptado pela linguagem informática para definir a relação Homem/Máquina, associado às tecnologias digitais, com os novos meios que, podem ser, única e simplesmente, evoluções tecnológicas daquilo que já existia, a partir de realidades ou conceitos que já conhecíamos. A relação Homem/Máquina e a relação Máquina/Homem são sustentadas por interfaces, dispositivos de controle e dispositivos de informação. Isto quer dizer que, se os dispositivos de controle promovem o nosso controle sobre a máquina, por permitirem ao Homem-emissor entrar em 133 COSTA, J. Almeida e MELO, A. Sampaio, Dicionário de Língua Portuguesa, 1999. 79 comunicação com a Máquina-receptor, aos dispositivos de informação cabe a tarefa de revelarem, ao Homem, os estados da máquina e, assim, a Máquina é, neste caso, o emissor e o Homem, o receptor. Portanto, a interactividade de qualquer interface é sempre pré-definida e, quase sempre, são fornecidos auxiliares para a sua descodificação pelo que, o Homem, como entidade programadora das máquinas, oferece padrões que poderão inicialmente parecer aleatórios mas que acabam por se tornar em estímulos. Quando o Homem, como entidade receptora dos auxiliares programados, descodifica e descobre os padrões pré-definidos, facto que acontece mais ou menos demoradamente, é conduzido ao seu abandono por deixarem de ser estimulantes, promovendo, simultaneamente e sem se dar conta, o avanço para novas programações, novos interfaces e novas possibilidades mais evoluídas. Tendo como exemplo concreto o automóvel ou os jogos, este assunto fica claro. As cartas, o dominó, o xadrez, as corridas de automóveis, existem há longos anos e não é por se apresentarem em novos ou diferentes suportes que se tornam mais interactivos. Estaremos enganados? Em que é que uma carta escrita e enviada a alguém é mais interactiva que um fax, um e-mail? A vulgarização do termo e a sua inclusão na linguagem quotidiana parecem ocultar que as modificações se inscrevem nas noções de tempo e de espaço: tudo é mais rápido. No e-mail o suporte deixa de ser o papel e o instrumento de escrita anula a nossa caligrafia substituindo-a por caracteres tipográficos, um teclado numa escrita a duas mãos, pela facilidade de numa questão de segundos, ou, na pior das hipóteses em minutos, fazer uma mensagem atravessar o mundo. Poupamos espaço em casa para o armazenamento de pastas com cartas e faxes que se organizam no desktop do computador, a secretária que armazena tudo, e pequenas caixas de zip's e CD's que garantem que a fraca, ou outra epidemia de origem numérica, não vai atacar a nossa mesa de trabalho e destruir os nossos documentos e recordações. Mas nada disto quer dizer: mais interactivo134. 134 «A estética da aparência cede seu lugar à estética da aparição. A arte deste século encontrou uma grande porção de valor metafórico na física teórica, particularmente na física quântica. Isso ocorre especialmente no caso da arte que envolve mídias interactivas, nas quais o espectador interage com uma situação criada pelo artista pode ser representando um papel num CD-ROM, caminhando pela realidade virtual, entrando na Internet, visitando um Website, lutando em um jogo de 80 No que diz respeito à arte, «as tecnologias mudam somente as condições de criação artística, do trabalho da "imaginação criadora", para retomar a expressão de Baudelaire^35» e, então, não se compreende porque é que só agora são designadas de interactivas. O problema com que os artistas se deparam desde há alguns anos a esta parte relativamente às tecnologias, aos meios e aos materiais, não será diferente do vivido pelos artistas do passado. Num processo experimental, na relação artista/tecnologia, acontece frequentemente que os primeiros resultados, as primeiras obras, são determinadas pela técnica: pela sedução e, por vezes, incipiência, inerentes ao uso de um novo meio, a ideia ou pressuposto são remetidos para um plano secundário. Quando o artista passa a dominar a tecnologia, consegue sobrepor-se à técnica, e poderá concretizar com maior propriedade aquilo a que se propôs. Durante séculos considerouse que a escultura só poderia ser resolvida em pedras, madeiras e metais. Muitos escultores demonstraram, através das suas obras, que isto não passava de um preconceito instalado. Depois da total abertura e da indefinição de limites de designação, a abordar ao longo deste trabalho, conceptuais, formais e tecnológicos, será que a técnica é o princípio fundamentador e regulador da arte que hoje se produz?136 Supondo que não, entendo que a grande motivação para a utilização das novas tecnologias decorre da sedução provocada, nestes indivíduos, pelo novo, pela novidade. computador, navegando em um hipertexto, ou brincando na biodiversidade de uma reserva biológica de formas de vida artificiais, mas qualquer que seja o caso, o espectador exerce um efeito sobre aquilo que é wsto. Pode ser um mundo fechado com poucas opções, ou com camadas suficientes de possibilidades para fazer parecer que as escolhas são intermináveis. Ou pode ser como na Net, de pessoa para pessoa, uma situação genuinamente sem fim. Mas nem todos os casos, sem interacção nada de novo acontece. Sem interacção nenhum significado ê gerado. Sem interacção nenhuma experiência é criada. E a física quântica, na primeira parte do século XX, nos deu este modele-, ASCOTT, Roy, Cultivando o Hipercórtex, in DOMINGUES, Diana (org.), A Me no Século XXI - A humanização das tecnologias, p. 338. 135 CAPUCCI, Pier Luigi, op. cit., p. 141. 136 Um bom exemplo disso foram as edições CYBER 98 e 99 no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Estas exposições apresentavam obras de diversos artistas de todo o mundo e pode-se dizer que não passavam, na grande maioria, de ensaios tecnológicos ridículos, onde imperava o show-off, de custos exorbitantes, em nome das tecnologias digitais. Na maior parte dos casos não se entendia qual era a ideia do artista e noutros facilmente se concluía que com meios muito mais acessíveis e analógicos os resultados seriam bastante mais satisfatórios. 81 Se a arte pode ser considerada, pelos artistas, na sua essência, uma definição da vida porque «íraía acerca da v/da137», a arte tecnológica assume, de igual modo, por ser arte e não por ser tecnológica, um relacionamento directo com a vida e gera situações que levam o Homem a reflectir sobre a sua condição (ARENDT, Hannah, 1958), na medida em que o conduzem à problematização da passagem de uma cultura material para uma cultura imaterial na qual os novos dispositivos tecnológicos intervêm na comunicação e nas mais diversas formas de produção humana. Nas diferentes manifestações artísticas, «o princípio da interacção, ou dos interfaces, que participa da constituição da obra, não é o mesmo que o consagrado princípio da surface ou superfície que, opondo-se à noção de profundidade, consagrou algumas das mais interessantes produções modernas, bastando lembrar a frase de Valéry "o mais profundo é a pele", citada por Deleuze no seu esforço de combater o pensamento tradicional. Aqui os contactos dão-se entre superfícies distintas (não permitindo a formação dos plateaux) que levam corpos diferentes a participarem da mesma decisão: conexões do corpo biológico humano e do corpo sintético da máquina, da mente humana e a mente do silício dos computadores, do sistema nervoso humano com as redes nervosas da máquina. É assim que a arte tecnológica projecta corpo e mente, reorganizando a outro nível a nossa percepção e sensibilidade^38». Alguns dos teóricos que escreveram acerca da cibercultura, e até mesmo com uma visão positiva relativamente a esta, como Marshall McLuhan139, Pierre Levy, Philippe Quéau, Derrick de Kerckove, defenderam que cabe ao artista e à arte enfrentar a tecnologia. Isto porque o artista é um ,3? BERNADAC, Marie-Laure e OBRIST, Hans-Ulrich, Louise Bourgeois - Destruction of the father - Reconstruction of the father, Writings and Interviews 1923-1997, Violette Editions, GrãBretanha, Londres, 1998, p. 160, trad, livre. 138 TUCHERMAN, Leda, Breve história do corpo e dos seus monstros, col. Passagens, dir.: José A. Bragança de Miranda, Vega, Lisboa, 1999, pp. 179/180. 139 "Poucas expressões tiveram tanta fortuna popular desde o final da Segunda Guerra Mundial como a famosa aldeia global, que McLuhan inventou nos optimistas anos 60. Mas esta fórmula brilhante estava baseada numa falácia(...)». «E hoje é ainda mais monodireccional do que há dez anos, pelo desaparecimento do bloco soviético e das suas áreas de influência. Esta dependência, que começa nas agências de noticias, tem muitas consequências, para além das económicas e das linguísticas (o hegemonismo do inglês) e vão desde a construção de um imaginário planetário comum (que inclui desde a homogeneização do vestuário, do fast food ou da música popular) até ao famoso pensamento único, que converte as leis do mercado em legitimadoras políticas e sociais supremas, universais e inapeláveis-, GUBERN, Román, O Eros Electrónico - Viagem pelos sistemas de representação e do desejo, p. 54. 8? agente na denúncia das trocas de percepção sensorial utilizando meios para fazer chegar mensagens. McLuhan escreveu, a propósito do cubismo que, para criar, na bidimensionalidade, a sensação e a informação da tridimensionalidade, usando efeitos com diversos planos, perspectivas, iluminações, cores, texturas, este momento artístico «desfaz a ilusão da perspectiva em favor da apreensão sensória instantânea do todo», e que isto «anunciou que o meio é a mensagem™0». Hoje, na arte mudou, mais uma vez, o contexto. <^\ tecnologia fornece individualmente a cada pessoa o poder de progredir no seu desenvolvimento e talvez possa, por isto mesmo, gerar processos de singularízação, condições de produção de si, mais ricas e imediatas do que os novos projectos genéricos que a ela são atrelados™». Mas esta progressão requer uma maior atenção, informação, formação e predisposição. E a angústia, da qual falamos a propósito da repressão das emoções, não será também o resultado de uma falta de predisposição e de uma certa preguiça na fruição? Se não é necessário grande esforço para conseguir as respostas às perguntas que se vão colocando, pelo facilitado acesso proporcionado pelos novos meios, então deixa-se para amanhã o que se pode fazer hoje (no passado esta expressão era precedida da palavra não). Provavelmente as dúvidas e a ignorância manter-se-ão por tempo indeterminado, na medida em que deixa de fazer-se perguntas. Trata-se de um resultado da anunciada amnésia histórica, num império da efemeridade e do instantâneo superficial, pela perda da capacidade de julgar que, como a intuição, é uma conjugação do sentimento com a ideia. Mais do que nunca, temos que apreender muito bem o significado da palavra seleccionar. Os media contagiam a nossa vida incentivando-nos ao consumo desenfreado de uma forma nebulosa e encenada. Nesta sedução reflectida quer em bens materiais como morais, somos induzidos à aquisição de casa, carro, barco, que nos podem levar a um estado de vida hipotecada, bem como refeições, vestuário, ou look, expressões corporais e o vocabulário do pivot que apresenta determinado programa. As telenovelas influenciam de tal forma algumas famílias de todo o mundo que estas não só transportam os "° MCLUHAN, Marshall, Os meios de comunicação como Extensões do Homem, p. 27. "" TUCHERMAN, Leda, Breve história do corpo e dos seus monstros, pp. 188/189. 83 cenários televisivos para os seus próprios ambientes como colocam aos filhos os nomes dos personagens que mais admiram. Há alguns anos atrás, quando a concorrência de canais e o número de telenovelas era inferior, o nome e a idade de alguém possibilitavam, por vezes, identificar a telenovela transmitida na altura do seu nascimento. O aumento quer do número de media electrónicos, quer de canais de televisão, bem como a facilidade de acesso a todos eles, tornou a oferta tão heterogénea que o contágio provoca as mais diversificadas acções. Ligadas à violência, quando a imitação de heróis televisivos ou cinematográficos gera terrorismos e gangs, ou ao melhor dos prazeres, através da sugestão dos destinos de férias e momentos de ócio. Estas acções criam uma sensação de liberdade e de imaginação que muitas vezes é enganosa: «As T-shirts, os outdoors e os graffiti, assim como a música rap, as danças na rua e os bairros de lata mostram que as imagens dos media rapidamente se tornam em repertórios locais de ironia, cólera, humor, fantasia e resistência™2». Os monstros proliferam, como refere Leda Tucherman, e tornam-se banais. Surgem de todo o lado e somos atraídos por eles - desde o cinema, à banda desenhada, aos jogos e brinquedos, até às artes plásticas143: «Correndo um certo risco, podemos considerar que se os monstros nos aterrorizam menos, é porque não temos hoje uma configuração tão fechada para o mesmo, na qual estabeleceríamos a nossa imagem, do nosso próprio corpo, e que os fixaria na absoluta e apavorante diferença (...). Por outro lado, se por eles nos interessamos, é porque eles nos colocam questões extremamente contemporâneas, talvez porque precisemos das suas figuras para recolocar a pergunta sobre a humanidade do homemUA», e que passam pela capacidade de distinção entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso. «Assim, tanto a comunicação como o social funcionam em circuito fechado, 142 APPADURAI, Arjun, Aqui e Agora, Dimensões culturais da globalização, p.201. Não há espaço para os inúmeros exemplos de artistas e obras de arte que hoje nos remetem para o monstro. Só para ilustrar, sem pretensões ao desenvolvimento dos pressupostos, basta lembrar as próteses monstruosas simuladas nas fotografias de Cindy Sherman, as operações plásticas, também elas próteses mas reais no corpo de Orlan, ou Michael Rees e Stelarc, o primeiro com as suas esculturas extensivas do corpo que reúnem órgãos internos do ser humano sendo modeladas a partir de software 3D, resultando numa espécie de humanóides, e o segundo com as suas ciberestratégias que passam por trocar, por exemplo, a pele do nosso corpo por esta ser um interface completamente inadequado. 144 TUCHERMAN, Leda, Breve história do corpo e dos seus monstros, p. 98. 143 84 como um logro - ao qual se liga a força de um mito. A crença, a fé na informação agarra-se a esta prova tautológica que o sistema dá de si próprio ao redobrar nos signos uma realidade impossível de encontrar. Mas pode pensarse que esta crença é tão ambígua como a que se ligava aos mitos nas sociedades arcaicas. Crê-se mas não crêus». 145 BAUDRILLARD, Jean, Simulacros e simulação (tít. orig.: Simulacres eí simulation, Éditions Galilée, 1981, trad.: Maria João da Costa Pereira), col. Antropos, Relógio D'Agua Editores, Lisboa, 1991, p. 105. 85 2.2. A Angústia do corpo - Alguns condicionamentos ao uso do corpo «O Teu Corpo é um Campo de Batalha» Barbara Kruger116 Numa fuga à sensação de letargia desta teia complexa de manipulações deliberadas, imprevistas ou aleatórias na qual vivemos, temos que ser cada vez mais perspicazes na esperança de não sermos tão facilmente enganados, com a consciência de que não existe «uma realidade absoluta mas apenas concepções da realidade subjectivas e muitas vezes contraditórias™7». Não poderemos inocentemente simplificar a realidade, remetendo-a para a forma como vemos as coisas até porque na sociedade do hiper-real, dos hipermercados, no sentido baudrillardiano do termo, não há referentes mas simulações. Paradoxalmente, a contingência de assistir a rupturas no real parece corresponder a um desejo de produzir simulações baseadas «na informação, no modelo, no jogo cibernético - operacionalidade total, hiper-realidade, objectivo de controle roía/'48». Dominar e ter o controle absoluto podem provocar sensações de desejo e ansiedade, das quais o corpo é o suporte de registo. Se este desejo necessita de uma análise demorada do inconsciente para distinguir e tornar conscientes diferentes pólos, a minúcia dessa análise é desfavorecida pela velocidade a que as vivências se processam, gerando-se um paradoxo de desejo angustiante entre dois pólos distintos: o das máquinas desejantes e das máquinas sociais técnicas, por um lado, e o do corpo sem órgãos, por outro149. lae Frase inscrita numa das instalações da artista plástica Barbara Kruger que usa a palavra escrita e a fotografia como veículo de denúncias sociais e críticas políticas relacionadas com a violência e a discriminação sociais, incorporando a imagem gráfica dos slogans e cartazes à semelhança das campanhas publicitárias. "" WATZLAWICK, Paul, A Realidade é Real? (tit. orig.: How Real is Real?, trad.: Maria Vasconcelos Moreira), col. Antropos, relógio D'Agua Editores, Lisboa, p. 127. ,4S BAUDRILLARD, Jean, Simulacros e simulação, p. 152. " 9 Como referem Gilles Deleuze e Félix Guattari em O Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia, as ideias de corpo sem órgãos e de angústia foram enunciadas, no início do século XX, por Antonin Artaud. Em obras como A Me e a Morte, Artaud escreve: -Estavas morto e agora dás contigo outra vez vivo -, MAS ACONTECE, DESTA VEZ, QUE SÓ. (...) uma sensação de angústia e 87 Reportando-nos a Narciso que, vendo-se reflectido na água, morreu idolatrando a sua imagem, o seu corpo, Freud disse: «O sujeito começa por se tomar a si mesmo, ao seu próprio corpo, como objecto de amorm». O corpo denuncia-nos ao mesmo tempo que nos esconde, separa-nos do outro e do mundo, e liga-nos a estes através da delicada fronteira da pele. A trajectória do paradigma do corpo sofreu violentas alterações durante a história da humanidade. É importante relembrar que o cristianismo defende, e isso marcou a humanidade durante séculos, a indistinção entre os homens, pressupondo que a imagem do corpo não acarreta qualquer importância individual, e, assim, dir-se-ia, estética. A relação estabelecida com Deus é tão próxima e directa que este enviou um humano, seu filho Jesus Cristo, para proporcionar o diálogo entre a terra e o céu. Jesus Cristo, humilde e semelhante ao comum dos mortais, sacrificado, partilha com todos o seu corpo, o pão, a hóstia, e o seu sangue, o vinho. Entra no nosso corpo para fazer parte de nós. Ao longo da história, a vivência do corpo afirmou-se, por exemplo, na beleza grega da nudez coberta por um véu, passou pelo surgimento do espelho no século XVI, que começa por ser um luxo das classes privilegiadas, pelos artifícios barrocos que mascaram o corpo de armações, espartilhos151, sonho, angústia a deslizar no sonho, quase como imagino que a agonia deve deslizar e consumar-se enfim na morte. (...JFique a' saber-se, porém, que ao fundo da morte ou do sonho volta a existir angústia, (...) que a morte surge como o rasgar de uma membrana, como o levantar de um véu que é o mundo ainda informe e pouco seguro de si", ARTAUD, Antonin, A Arte e a Morte (tít. orig.: L'Art et la Mort, trad.: Aníbal Fernandes), Hiena Editora, Lisboa, 1985, pp.10/11. A partir do estudo dos seus escritos e de tantos outros, Deleuze e Guattari escreveram: «O capital é, de facto, o corpo sem órgãos do capitalista, ou antes, do supercapitalista. (...) As máquinas-órgãos agarram-se a ele como um colete de esgrima (...) e o corpo sem-órgãos, o improdutivo, o inconsumível, serve de superficie para o registo de qualquer processo de produção do desejo-, DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, O Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia (trad.: Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho), col. Peninsulares / especial / 41, Assírio & Alvim, Lisboa, 1996, pp. 15/16. 150 Retirado do 5 o volume da História da Vida Privada - Da Primeira Guerra Mundial aos nossos dias, capítulo O corpo e o enigma sexual, p. 307. 151 O espartilho não se circunscreve ao barroco. Continuou a fazer parte do ideal de corpo feminino e permanece até aos dias de hoje. Se no princípio do século vinte, o espartilho foi reformulado, passando a ser construído na indústria têxtil em fibras elásticas, que diminuem o sofrimento físico provocado pelas antigas armações metálicas, tendo, inclusivamente, adquirido a denominação de cinta, no final dos anos 80 a indústria da moda lançou os wonderbra e wonderass, economicamente mais acessíveis do que as operações cirúrgicas e que simulam o aumento e firmeza dos seios e das nádegas. Desde à alguns anos, surgiu o novo e trágico fenómeno, de forma relativamente generalizada: a anorexia e a bolimia. O espartilho deixou de ser um objecto exterior ao corpo (desenvolvendo este tema chegaríamos às cintas aplicáveis nas paredes do estômago que diminuem a vontade de comer), que se aplica como uma prótese, para ser incorporado na mente e 88 perucas e jóias, para chegar ao ecléctico século XX, marcado pela indústria de um consumo massificado e pela efemeridade, na qual a apresentação do corpo sofre alterações cíclicas que vão desde o reviver grego ao barroco, à fusão de referências de outras culturas, como a oriental ou a africana. A apresentação do corpo vai-se metamorfoseando. Os gregos faziam o culto da imagem do corpo devolvendo um corpo-espectáculo-artístico artificialmente criado para ser exposto como objecto admirável. Toda a arte que produziram, na escultura, com exemplos em Discóbulo, Poseidon e Nióbida Moribunda, apresentam esse corpo idealizado. Dionísio e Três Deusas, foram peças criadas para o frontão oriental do Parthenon, revelador, na arquitectura, do pensamento do espaço grego, projectado para ser fruído, visivelmente representado nos desenhos de projecto, onde são registadas as problemáticas da escala e da percepção espacial. Da escultura Helenista, salientam-se Fauno Barberini, Grupo de Laocoonte e a escultura - imagemmarco desta cultura - Vitória de Samotrácia. O ideal grego decai, contestado e rejeitado nos séculos XVIII e XIX, com o desejo do anonimato, do privado, da protecção. Nesta altura intensifica-se a separação entre a família, o trabalho e o entretenimento, em espaços mentais e físicos diferentes152. Antecipando a massificação de hoje, o pré-industrial iluminista tratava racionalmente o corpo numa fundamentação que parece, agora, profundamente insatisfatória e limitativa. se tornar numa das doenças mais temidas, principalmente, na adolescência, por chegar, no limite, a provocar a morte. 152 Se atrás abordou-se o banquete grego, no qual se diluía o sentido de prazer, negócio, política, note-se que «os primeiros cafés surgiram a partir dos ingleses no século XVIII e configuravam um lugar onde "o preço de uma xícara de infusão dava direito a participar das conversações que tinham lugar no salão". (...) Embora as diferenças sociais fossem visíveis, a troca de informações era o mais importante, o que demandava um debate livre. Os jornais, afixados nas paredes, forneciam assunto para discussão, quando a fala era mais confiável que a escrita.(...) No princípio do século X/X, fera início uma transformação, no que já se transformara num hábito social e que se constituiu simplesmente na colocação das mesinhas do lado de fora, a céu aberto, incentivando o cliente à contemplação mais do que à conversa. No final do século X/X, o café já deixara de ser território político. (...) Agora as imagens compunham enredos particulares para os devaneios de cada freguês. O café, polido e urbano, será o lugar conveniente a esta nova interioridade solitária entre a multidão», TUCHERMAN, Leda, Breve história do corpo e dos seus monstros, pp. 88/89. Hoje, podemos dizer que praticamente não existe o café, como até há bem pouco tempo o vivíamos. Restam alguns sobreviventes que ganharam um papel elitista e turístico. O café do convívio foi substituído pelos balcões em aço e as luzes que repelem qualquer permanência de tons verde ou azul, sem mesas, para entrar rapidamente, consumir a toda a velocidade e sair. São o que se pode chamar de espaços psicadélicos mortos. 89 No século XX, pela absorção das diferentes culturas e referências do passado, pode dizer-se que a noção de corpo sofre uma domesticação do exótico com origem no comprometimento do pensamento moderno. Tendo como referência a 1 a Guerra Mundial, afirma-se e constata-se o corposacrifício, sacrificado e fragilizado153 até aos seus limites. O corpo é, desde então, «a nossa angústia posta a nu154», com a qual convivemos e que nos faz sentir estranhos a nós próprios e com os outros. A necessidade de, ao mesmo tempo, esconder e denunciar o corpo chega-nos dessa angústia e estranheza. Numa perspectiva geral, a capacidade de nos questionarmos, de nos confrontarmos com a gestão de diferentes alternativas, a necessidade de fazer opções, provoca-nos estados de conflito interior. Como já referi, conter as emoções na tentativa de «dissimular os sinais que revelam aquilo que sentimos^55», quando, por exemplo, controlamos uma forte vontade de chorar e apresentamos um sorriso, guardando no interior uma implosão de ira, provoca, inevitavelmente, ansiedade, também ela um estado angustiante. O desejo de não falhar, de não perder, da incerteza relativamente ao futuro, provoca um sem número de emoções que definem a agonia e a angústia desenvolvidas «quando há oposição entre duas partes de nós, uma que tenta conformar-se para ser amada e a outra que procura a autonomia. O conflito instala-se face à impossibilidade de satisfazer simultaneamente as necessidades de segurança e de liberdade, de protecção e de criação. Noutros termos, a angústia é o reflexo de uma ambivalência que não se consegue gerir: um medo e um desejo; um medo e uma raiva, ou ainda entre dois desejos contraditórios...Só se deixa envolver neste género de conflito quem não conseguiu construir um sentimento sólido de segurança interior. A angústia tem, evidentemente, intensidades muito variáveis. É diferente na sua vivência - angústia de humilhação, de parcelamento, de devoração, de destruição, de castração, de inferioridade - em função da idade em que as 153 "Historicamente, a crise da experiência moderna terá atingido um momento de irreversibilidade a partir da 1a Guerra Mundial, onde ao fragor das máquinas de guerra apenas respondia a mudez dos homens, atonitamente encerrado no seu "bem pequeno corpo frágil"», MIRANDA, José A. Bragança de, Traços - Ensaios de crítica da cultura, p. 96, citando Walter Benjamim em L'Homme, le Langage, la Culture, p. 58, Paris, 1971. 154 NANCY, Jean-Luc, Corpus (tit. orig.: Corpus, trad.: Tomás Maia), col. Passagens dir.: José A. Bragança de Miranda, Vega, Lisboa, 2000, p. 8. 155 FILLIOZAT, Isabelle, A Inteligência do Coração - Rudimentos de Gramática Emocional, p. 49. 90 emoções foram bloqueadas e da natureza do trauma. E isto porque sendo ela desencadeada por acontecimentos actuais, tem as suas raízes na infância^56». Durante o século XX o corpo ora se inibiu, submeteu ao anonimato, à sociedade dominada pelo machismo, ora se revoltou, como aconteceu depois da 2 a Guerra Mundial, em diversas manifestações de liberdade total como o Sex, Drugs and Rock and Roll, na década de 60. O final do século passado ficou marcado pelo que nos é mostrado nas imagens. Numa sociedade mediática, do espectáculo (DEBORD, Guy, 1967)157 só as imagens valem enquanto realidade. Sem imagens não acreditamos: ver para crer. «Os nossos milhões de imagens mostram-nos milhões de corpos - como jamais eles foram mostrados. Multidões, acumulações, tumultos, montões, filas, ajuntamentos, pululamentos, exércitos, bandas, debandadas, fugas, bancadas, procissões, colisões, massacres, carnificinas, comunhões, dispersões, um excesso, um transbordar de corpos sempre em massas compactas e ao mesmo tempo em divagações pulverulentas, sempre reunidos (nas ruas, em conjuntos, megalopolis, periferias, lugares de trânsito, de vigilância, de comércio, de tratamento, de esquecimento) e sempre abandonados a uma confusão estocástica dos mesmos lugares, à agitação, que os estrutura, de uma incessante partida generalizada. Eis o mundo da partida mundial: o espaçamento do partes extra partes, sem que algo o sobrevoe ou o sustente, sem Sujeito do seu destino, tendo apenas lugar como uma prodigiosa pressão dos corposm». A par do seu poder, que se tornou fundamento de tudo, as imagens podem ser manipuladas até se tornarem "reais". Elas são, associadas ao mínimo esforço psicológico, intelectual e físico, comida rápida {fast food) para o espírito. O simulacro impõe-se e nele pergunta-se: que corpo temos ou desejamos ter? 156 Op. cit., p. 130. Este parágrafo remeto-nos para o texto 1.2. do primeiro capítulo, onde são desenvolvidos os conceitos de emoção, inteligência emocional e, no qual referi, em notas de rodapé, exemplos concretos relativamente à infância. 167 O ambíguo e muito criticado Guy Debord utiliza, no seu discurso de demonstração da -falsificação da vida social», -monopólio da aparência», -onde o mundo real se converte em simples Imagens», onde -o permitido opõe-se absolutamente ao possível». No mundo que descreve como «da mercadoria total» e do -consumo do conjunto», de vivência -globalmente aparente», favorecendo a -banalização», o autor procura demonstrar a crise actual. DEBORD, Guy, A Sociedade do Espectáculo (tít. orig.: La Société du Spectacle, trad.: Francisco Alves e Afonso Monteiro, Edições Mobilis in Mobile, Lisboa, 1991. 158 NANCY, Jean-Luc, Corpus, pp. 39/40. 91 Em primeiro lugar devemos ter em consideração diferentes abordagens ao tema do corpo: o corpo como vivência privada e quotidiana e o corpo enquanto representação de um paradigma cultural159. Utilizarei exemplos na tentativa de fazer, por um lado, distinções e, por outro, criar relações entre as diferentes abordagens ao tema do corpo. O poder que a imagem tem de denunciar corpos de perspectivas nunca antes percepcionadas, como refere Jean-Luc Nancy, cria uma espécie de banalização do corpo, que me conduziu ao título atribuído a este capítulo. Os corpos são descartáveis, sugerindo a expressão: produção em série, na ambição de se tornarem cada vez mais perfeitos. O corpo industrial ajusta-se à metáfora da pastilha elástica: quando perde o sabor vai para o lixo e trocase por outro. Ao longo deste texto procurarei comprovar esta afirmação. Podemos considerar que, embora o advento da Era Digital nos faça recuar até à década de 40, o corpo que levanta as questões presentes surge a partir dos anos 70. A partir desta década o corpo entra no seu estado actual: o corpo carente em estado de histeria e ansiedade. Não se podem dissociar as questões que envolvem a evolução tecnológica e a indústria, das que envolvem e questionam o corpo. «Seremos nós capazes, por exemplo e para começar, de compreender que esta perda do corpo-do-sentido - a qual constitui, em rigor, o nosso tempo, dando-lhe o seu espaço -, ainda que ela nos faça doer, não nos faz porém mergulhar na angústia? (...) A angústia dá-se como sentido e, no fundo, ela própria é ainda uma forma de extrema concentração, esta forma-limite em que é preciso imaginar o Espírito Santo angustiado (a sua santidade perdida?). Mas a dor não se dá como sentido. Existimos na dor porque somos organizados para o sentido, e a sua perda ferenos, entalha-se em nós. Mas assim como a dor não dá sentido ao sentido 159 Esta distinção é importante porque «as novas tecnologias da comunicação e do ócio, que primam o seu uso privado e doméstico, tendem a primar a segunda tendência em detrimento da primeira (...) que implica além disso um afastamento do mundo exterior e um divórcio radical da natureza. Um divórcio do útero da espécie que não é facilmente reparável, uma vez que o ar fresco e o sol estimulam a circulação sanguínea e activam os sistemas homeostáticos de regulação térmica, de uma maneira que os sistemas artificiais não podem conseguir, como as lâmpadas de raios ultravioletas», GUBERN, Román, 0 Eros Electrónico- Viagem pelos sistemas de representação e do desejo, pp. 139/140. 92 perdido, também não o dá à perda. Dessa perda, a dor é somente o gume, a queimadura, a pena™». Angustiados com o nosso corpo, com a superfície que nos permite o contacto, com a imagem que transmitimos e com as imagens de que somos alvo, consumimos dietas e ginásticas das mais diversas origens, acrescentamos elementos exteriores como tatuagens e piercings, procuramos melhorar a aparência e reparar o que pensamos serem falhas com operações cirúrgicas e próteses que estão na moda para mostrar e simular que estamos bem. A moda encontra-se profundamente enraizada nas nossas vidas. Parece que atingiu um grau de poder tal que se transformou num fenómeno que diz respeito a tudo o que nos rodeia e a nós próprios. Absorvemos desmesuradamente as novidades e, sequiosos, soltamos fluxos de predisposição para a novidade, em estados de urgência permanente. Numa espécie de atitude contraditória somos, na procura desesperada pela diferença, cada vez mais iguais e de gostos mais homogéneos, mas também mais fragmentados. A questão do individualismo contemporâneo é aparentemente estranha. Se por um lado somos mais narcisicos, por outro estamos mais solidários, abertos à mobilidade colectiva, às lutas sociais. Não será isto o egoísmo levado ao extremo? Será que ao ajudarmos os outros e aos estarmos com eles, não procuramos, cada vez mais, uma paz individual?161 Entregamos o nosso corpo162 à técnica por este ter sido transformado, igualmente, numa imagem163. «O novo surto do "corpo" revelou rapidamente 160 NANCY, Jean-Luc, Corpus, p. 80. Gilles Lipovetsky no livro O Império de Efémero - A moda e o seu destino nas sociedades modernas, refere, na p. 376, que «quanto mais os indivíduos estão socializados para a autonomia privada, mais se impõe o imperativo dos direitos do homem; quanto mais a sociedade caminha para o individualismo hedonista, mais a individualidade humana surge como valor último; quanto mais os mega-discursos históricos se desmoronam, mais a vida e o respeito da pessoa se erigem em absoluto; quanto mais a violência regride nos costumes, mais o Indivíduo é sacralizado. As pessoas já não se mobilizam por sistemas, comovem-se perante a ignomínia do racismo, perante o inferno dos seres condenados à fome e à miséria física. Há que sublinhar o paradoxo: a 'nova" caridade é transportada pelas águas eufóricas e individualistas da Moda. O individualismo contemporâneo é inconcebível fora dos referentes democráticos, só é pensável no âmbito de uma sociedade onde são investidos em profundidade os valores de liberdade e de igualdade, onde o valor primordial é precisamente o Indivíduo». 162 A entrega é feita de diferentes formas e em diversas situações. Nas artes plásticas podemos dar exemplos da entrega à técnica com Orlan e Stelarc. Se Orlan, na pretensão de atingir a 161 93 ser tão disfórico (...) Na verdade, nem euforia nem disforia, mas sim uma espécie de histeria (se a histeria é essa estranha condição que necessariamente e desvairadamente se espectaculariza no corpo) pois, também aqui, uma multiplicidade de sintomas de ordem bem diversa escolhe uma manifestação ruidosa e espectacular. Sintomas que terão a ver com lesões da carne, mas também da alma, com investidas do bios, mas também da técnica, com uma condição não se sabe bem se "natural", se "artificial"m». É possível considerar que quando Marshall McLuhan abordou as extensões do corpo ao longo da evolução tecnológica, contemplava a ideia de próteses, transmutações e contaminações e a sua influência determinante no funcionamento do nosso corpo, nos nossos comportamentos físicos, fisiológicos e psicológicos, colocando, por vezes, a hipótese de uma total transformação da espécie humana. Nas perspectivas de Martin Heidegger, Paul Virilio, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze e Félix Guattari, entre muitos outros, esta transformação implica uma catástrofe. A destruição do humano em favor do pós-biológico é sustentada nas projecções destes autores com discursos distintos mas com afinidades no que se refere às conclusões que deles se pode retirar. O capitalismo esquizofrénico do corpo sem órgãos, de Deleuze e Guattari, o simulacro versus realidade de Baudrillard, a condenação à inércia de Virilio resumem-se na pergunta colocada por Heidegger165: «A/a obra-prima absoluta, na tentativa de criar a Santa Orlan, usa a medicina, a cirurgia plástica, e se entrega a esta, em sucessivas operações cirúrgicas com anestesia local (que documenta em vídeo fazendo o relato directo das intervenções), modificando o seu próprio corpo de forma a questionar os cânones de beleza feminina impostos pela sociedade; Stelarc (artista da body art cibernética, de origem australiana e cujo nome verdadeiro é Stelios Arcadiou) prolonga-o com extensões: A terceira mão, 1976-1981; Structure/Substance, 1990, são alguns exemplos das extensões protésicas que, com o auxílio da ciência, biotecnologia, robótica,..., este autor desenvolve e apresenta em concertos/performances. 163 'This change from human scale to a system of nuclear matrices is visible everywhere: this body, our body, often appears simply superfluous, basically useless in its extension, in the multiplicity and complexity of its organs, its tissues and functions, since today everything is concentrated in the brain and in genetic codes, which alone sum up the operational definition of being», FOSTER, Hal, The Anti-Aesthetic - Essays on Postmodern, p.129. 164 CRUZ, Teresa, A Histeria do Corpo, in Revista de Comunicação e Linguagens, Real vs. Virtual, org.: José Bragança de Miranda, 25-26, Edições Cosmos, Lisboa, 1998, p. 363. 165 Pode dizer-se que Heidegger é, de alguma forma, um continuador do pensamento niilista de Nietzsche. 94 idade da cibernética e das suas múltiplas possibilidades de informação, não só comunicadas mas inscritas nas máquinas, que restará dos homens?^56». Provavelmente, o que está a acontecer é uma mutação do Homem e não a destruição da espécie humana. O que parece modificar-se é a sua condição enquanto individualidade. Podemos pensar que a aventura científica da criação de máquinas que pensam é uma das motivações para a perda da tal singularidade que nos caracteriza, por meio de uma ciência de todas as ciências a que se chama Inteligência Artificial (IA)167. Ramón López de Mántaras, director-adjunto do Instituto de IA do C.S.I.C, em Barcelona, Push Singh, criador do sistema OpenMind, do M.I.Tm, ou Chris McKinstry têm procurado aumentar as capacidades da sua criação G.A.C. (General Artificial Consciousness)'69, pela participação de todos os que desejarem, através da Internet, trabalhando para o avanço desta ciência na busca de uma produção artificial comparável à complexidade do cérebro humano. Todavia, um dos maiores problemas colocados pela IA é ético. Sabemos que o mais difícil é que uma máquina atinja a capacidade de possuir senso comum e criatividade, distinguir diferentes estados emocionais (como sabemos existem diferentes estados de alegria e de tristeza, diferentes causas e diferentes esquemas de revelação dos mesmos), ou mesmo estados fisiológicos que fazem com que a nossa reacção a um som, um aroma, uma imagem, um toque, dependa do nosso estado interior e da forma como estes nos são apresentados170. Estas são características do humano e não podem 166 HEIDEGGER, Martin, Língua de Tradição e Língua Técnica (tít. orig.: Langue de Tradition et Langue Techenique, trad, e posfácio: Mário Botas), Edições Vega, col. Passagens, dir.: José A. Bragança de Miranda, Lisboa, 1999, p. 51. K ' «O verdadeiro pai da Inteligência Artificial foi Marvin Minsky, do Massachusetts Institute of Technology, que entendeu que um computador podia comportar-se de modo inteligente graças à sua capacidade para manipular símbolos discretos, como o faz a mente humana. Em 1961 Minsky elaborou um elenco das funções que deveria cumprir uma máquina sapiens, tais como o reconhecimento de padrões, o planeamento, a capacidade para a indução e para a indiferença, etc. E era-lhe muito claro que a Inteligência Artificial dependia tanto da engenharia como da psicologia, das neurociências e da linguística. Na realidade, hierarquizou as diferentes funções da máquina inteligente, na qual se podem distinguir os processos cognitivos superiores (como a aquisição do saber) dos processos cognitivos inferiores (como as percepções e os processos motores). Ficaram arrumados, obviamente, os processos emocionais e os desejos que tanta importância têm na tomada de decisões humanas, mas que então se consideravam terra ignota a efeitos maquinais'; GUBERN, Román, O Eros Electrónico - Viagem pelos sistemas de representação e do desejo, p. 71. 168 Sugere-se a consulta do site: http://www.openmind.org. 169 Sugere-se a consulta do site: http://www.mindpixel.com. 170 Na perspectiva de dar alguns exemplos, a forma como eu recebo um tema musical, que geralmente, me provoca bem-estar, não implica nem que este tema comunique da mesma forma 95 ser reduzidas a esquemas de zeros e uns como são tratadas as redes de neurónios em linguagem digital. «O cérebro humano - ao que Douwe Draaisma chamou pertinentemente "a jóia da coroa da evolução" - não teve um programador externo, como o têm as máquinas, mas foi "programado", se se admitir a metáfora, pela prolongada evolução da espécie ao longo de milhões de anos, ao que se tem de acrescentar depois as experiências singulares e a aprendizagem de cada indivíduo. De maneira que o cérebro humano, ao nascer, não é uma tábua rasa, mas dispõe de uma herança genética e de algumas competências, entre as quais sobressai a sua competência linguística inata, estudada por Chomsky. A sua inteligência e as suas capacidades psíquicas forjaram-se ao longo de milhões de anos, num sistema progressivo de aprendizagem baseado na prova e no erro, de carácter adaptativo, para assegurar a sobrevivência e a funcionalidade. Neste processo adquiriu as suas capacidades mentais, como as de generalização, as de associação e de inferência e as de previsão racional, necessárias para sobreviver. De maneira que no cérebro humano, e ao contrário da máquina, o "conjunto de fios" é o produto final de mil milhões de anos de adaptações evolutivas perante os reptos de ambientes cambiantes e foi transmitido geneticamente de geração em geração. Por isso, cada inteligência humana é o fruto de uma herança genética e de uma biografia individualizada e pessoal que se lhe sobrepõe. E, sobretudo, um fruto biológico em cujo processo adaptativo a moral aparece ausenfe171». Contrariamente às máquinas de memórias introduzidas exteriormente, implantadas por nós e sem liberdade, limitadas e sem emoção, indiferentes, sem expressão, sem linguagem não-verbal, sem autoconsciência, temos uma memória interna, interior, que é, podemos dizer, a essência da nossa consciência auto-reflexiva enquanto indivíduos, bem como uma consciência da nossa história. Se colocarmos a questão da substituição do homem por com uma outra pessoa, nem que eu o receba, sempre, de igual modo. Há ocasiões em que esse tema me pode irritar, angustiar, provocando um enorme mal-estar. Tudo depende do momento, do meu estado interior e da minha predisposição. O mesmo acontece com um cheiro que pode atrair um dia e repelir no dia seguinte, um paladar que se gosta e que, mais tarde, se vem a revelar insuportável. Haverá sempre uma razão para que isto aconteça, mas, o mais difícil, por vezes, é decifrar, encontrar o motivo, porque este pode não ter atingido o estado de consciência. ' " GUBERN, Román, O Eros Electrónico- Viagem pelos sistemas de representação e do desejo, pp. 74/75. 96 máquinas, pondo em causa a espécie humana, a resposta será um não sem mas. Em outras áreas a mesma questão de fundo foi colocada e a realidade contrariou a resposta. Temos presente o exemplo da indústria de armamento que atingiu níveis de perversidade política e económica que ultrapassam largamente o pressuposto da defesa da condição ou dos direitos humanos e que estão fora do controle do cidadão comum por ser dominada por uma elite impenetrável: todos os exemplos de guerras mais ou menos recentes e presentes são esclarecedoras desta perspectiva analítica. Em sociedades movidas pela economia, nas quais o mercado financeiro impõe as regras, desenvolve-se a «economia do corpo» que poderá derivar «para a emergência da "loja do corpo" e do "supermercado genético" (um conceito já desenvolvido pelo filósofo-político Robert Nozick no seu tratado "Anarchy, Law and the State")m». É desejável que o desenvolvimento da IA não siga um caminho semelhante e que possa servir o homem na análise das consequências dos seus actos, sem o tornar escravo de si próprio. O avanço da IA é demostrado em casos concretos de reconhecimento de padrões; a classificação de rostos é útil em caso de desaparecimento ou crime; o desenvolvimento de robots humanóides por parte das multinacionais Sony e Honda, para serem comercializados durante a próxima década é, segundo alguns especialistas, útil para idosos que necessitam de quem cuide deles a tempo inteiro; a NASA prepara-se para colocar em acção o Robonaut produzido com o objectivo de substituição dos astronautas nas mais difíceis e perigosas tarefas no Espaço. A progressão de estudos nesta área vai, certamente, produzir efeitos de substituição de algumas das nossas capacidades e cumprimento artificial de tarefas que hoje realizamos e com uma desejada superioridade em termos de eficácia. E o que é que pode ser entendido por tarefa? Não será uma tarefa muito mais do que o cumprimento mecânico de alguma coisa? Não envolverá o relacionamento entre os homens? Não envolverá sentimentos? Na tentativa de encontrar uma possível resposta, apresenta-se um exemplo concreto no esquema das relações humanas. A procura de prazer sexual na prostituição não pode reduzír-se apenas à concretização de 172 MARTINS, Hermínio, Adeus Corpo! - Importância da descorporação na tecnociência actual, in Corpo Fast Foward, p. 40. 97 fantasias e jogos, mas é um dos factores que alimenta este tipo de actividade: a venda do corpo como objecto de desejo. Como referi na primeira parte deste trabalho, o afastamento do contacto corporal criou uma visão distorcida de associação da proximidade física ao sexo que pode provocar, em alguns indivíduos, confusão entre fazer amor, fruir da intimidade dos momentos e dos corpos, e ter relações sexuais, praticar o sexo como alívio de tensões, como tarefa, demonstração de algo, ou simples cumprimento de uma obrigação173. Em relações matrimoniais acontece, por vezes, o recurso à prostituição. Independentemente das razões particulares que levam a este comportamento, a necessidade de procura de outro, pode, hoje, passar também pelo cibersexo, o sexo virtual, que exclui o próprio contacto. «Analisemos um pouco aquilo que se perde, ou que pelo menos corre o risco de ser completamente esquecido nos processos da sexualidade cibernética, ameaçando mesmo atingir, com o desejo de procriação já largamente amputado pelo nosso modo de vida, a própria reprodução sexual. Se a proximidade imediata define ainda hoje muito claramente o estar aqui presente, amanhã, esta situação corre o risco de se esbater perigosamente, ou mesmo de desaparecer, e com ela a velha máxima socializadora: Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és174». Se, por um lado, o cibersexo pode solucionar problemas como a transmissão da SIDA e de outras doenças sexualmente transmissíveis, pela ausência do contacto corporal, cria outros de dimensão incalculável pela ausência desse mesmo contacto que nos define, enquanto seres sensíveis, afectuosos e permeáveis. Em obras de ficção, este tema é recorrentemente tratado. James G. Ballard175 escreveu Crash e o filme com o mesmo título revela uma arrepiante ira Facilmente se identificam histórias de profundo desrespeito pelo prazer sexual, pelo relacionamento íntimo e amoroso. Os motivos são diversos. O caso concreto de em algumas comunidades africanas, por exemplo, nas quais é retirado o clitóris às mulheres para que não sintam prazer, ou realizada a circuncisão aos homens para que este aumente, é denunciante de algumas mutilações provocadas por motivos de carácter religioso ou de tradição. Tão próximo de nós temos a ultrapassada imagem das famílias numerosas, da mulher que casava para dar à luz e ser mãe, donade-casa a tempo inteiro, tratar do marido, recebê-lo quando este voltava da guerra e como se dizia: "Lhe fazia mais um filho". Relações de encontro para a procriação que associo aos encontros entre as outras espécies de seres vivos que não os humanos. 174 VIRILIO, Paul, A Velocidade de Libertação, pp. 143/144. 1,5 Nos anos 60 e 70, J. G. Ballard escreveu inúmeros livros que fazem referência à crise e supremacia do espectáculo derivada de um desprendimento do desejo, apresentando, como exemplo, o sexo, com factor caracterizador das sociedades, a desterritorialização, o colapso da paisagem e a hiperrealidade. 98 forma de vida e de abordagem do corpo. A vida das personagens narradas por Ballard denuncia o fim do afecto, da emoção e do sentimento, num jogo perverso com o limite: o sexo parece estar em todos os lados, excepto na sexualidade (BAUDRILLARD, Jean, 2000). O prazer pela dor, pelo sofrimento e mutilação, revelam-se na procura de prazer sexual através de acidentes de viação, nos quais a máquina/automóvel e a estrada se apresentam como os meios proporcionadores de um orgasmo, que apelido de sado-masoquista, resultado da experiência do choque. «No Crash tudo é fatalidade, porque o acidente puro já não é imagem, mas o "real" na sua inquietante e terrífica presença. Viver dissonantemente é a lição de Crash™». Em Strange Days, de Katherine Bigalow, assistimos, também, a uma história estranha mas, neste caso, de troca de experiências pessoais proporcionadas pela presença de pequenos sensores que, colocados na cabeça, permitem gravar momentos não só visuais, auxiliares da memória visual, como todo o envolvimento sensorial processado. A finalidade desses sensores é podermos reviver momentos sempre que o desejarmos e de colocá-los à disposição de qualquer outra pessoa, para que esta os viva como nós e os sinta como nós os sentimos. Se, por um lado, esta tecnologia atrai o desejo de a experimentar imaginando a possibilidade de partilhar por completo vivências com os mais próximos, por outro, a promiscuidade e os perigos são provavelmente muito superiores quantitativa e qualitativamente, resultando num contrabando de experiências para prazeres que atingem e ultrapassam o sexual. Podemos contar ainda com a presença da Realidade Virtual (RV), dos cyberpunks como substitutos dos yuppies, com a Cibercultura177. A 1,6 MIRANDA, José A. Bragança de, Traços - Ensaios de crítica da cultura, pp. 144/145. Nas palavras de Derrick de Kerchove, -cibercultura é o resultado da multiplicação da massa pela velocidade. Enquanto a televisão e a rádio nos trazem notícias e informação em massa de todo o mundo, as tecnologias sondadoras, como o telefone ou as redes de computadores, permitemnos ir instantaneamente a qualquer ponto e interagir com esse ponto. Esta é a qualidade da 'profundidade", a possibilidade de "tocar" aquele ponto e ter um efeito demonstrável sobre ele através das nossas extensões electrónicas. Podemos hoje fazer isto em qualquer contexto do mundo e mesmo mais além, visto termos enviado numerosas sondas ,para o espaço.(...) Uma expressão literal da cibercultura é a florescente indústria de máquinas de realidade virtual que nos permitem entrar no mundo do ecrã de vídeo e de computador e sondar a interminável profundidade da criatividade humana na ciência, na arte e na tecnologia. Outra expressão da profundidade da cibercultura é a penetração, por microscópios assistidos electronicamente e dispositivos de ressonância magnética nuclear, nos remos infinitamente pequenos das estruturas moleculares, genéticas e atómicas. Muitas são as tecnologias a convidar177 99 cibercultura é o lugar da esteticidade anestesiada de um novo corpo histérico (CRUZ, Teresa, 2000) onde não há lugar para o afecto, a sensibilidade, os sentimentos e os sentidos, na perspectiva em que estavam integrados até então. Resta saber qual o sentido novo que se vem implantando. A simulação total de uma realidade residual (BAUDRILLARD, Jean, 1981) do culto e promoção do resto, vai-nos levando, com a nossa permissão, ao encontro com a metamorfose homem-máquina/histeria-indústria: o póshumano. Quando deparamos com o conceito metamorfose, a nossa memória, que pode, mais cedo do que se imagina, ser substituída por um chip de enorme capacidade (como se algum dia tivéssemos esgotado esta capacidade), centra-se em Franz Kafka e na sua obra com o mesmo nome, que maquiavelicamente nos transporta para o isolamento e solidão humana. Provavelmente, o pós-humano não utilizará as máquinas. Elas deixam de existir porque são incorporadas, passam a ser parte dele, são digeridas, mudando significativamente a ideia que delas construímos. Objectos exteriores, utensílios externos, que comandamos e usamos para nos auxiliarem no cumprimento de tarefas. Parece complicado mas é muito simples. As máquinas deixam de estar à nossa volta e fundem-se connosco, como na poesia do amor, um só, numa frágil distinção ou indistinção entre o natural e o artificial178. Há diversas reacções a esta nova realidade que se aproxima, que vão desde o choque, à aceitação entusiasta, ou à repulsa imediata. Não há dúvida que nos últimos anos temos caminhado na direcção da imediaticidade sem nos a sondar para além da superfície do visível, ou do que é tornado visível por simulação ou aumento. Estes mundos nunca tinham sido acessíveis antes. Estes remos, para os quais estamos já a construir micrc-estruturas e motores atómicos, estão a tornar-se mercados insaciáveis para a indústria. A cibercultura implica "ver através'. Vemos através da matéria, do espaço e do tempo com as nossas técnicas de recolha de informação», KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura, pp. 192/193. 178 «Por mim, suspeito que é na luta contra o controlo que tudo se joga. Hoje está em causa não apenas o controlo dos homens, mas o controlo do controlo, que alimenta a ilusão de dominar a tecnologia, apenas a potenciando. O novo espaço cibernético tende a inscrever na sua estrutura virtual o espaço da vida, todos os locais, como o espaço da visão e das paixões. A tendência à fusão das máquinas com as paixões, a todos amarrando pela imagem, mostra que a resposta passa pela divisão, pela desagregação, pelos pequenos vincos que possamos fazer nessa superfície extensa e ligada que é a da mediação. A categoria de espectáculo pressupunha ainda uma distância, uma separação, entre o que era espectáculo e o que não o era. A sua aplicação é mínima, pouco se podendo esperar dela», MIRANDA, José A. Bragança de, Traços - Ensaios de crítica da cultura, p. 130. 100 pausas179, cuja essência se baseia na ideia de partilha e numa consciência de grupo na qual a imaginação se tornou um facto social colectivo (Appadurai, Arjun, 1998). Esta aceleração global «tem dois efeitos principais: um é o alcance e o feedback instantâneos, o outro é a eliminação dos períodos de adaptação. O primeiro efeito torna-nos nómadas electrónicos: coloca-nos em contacto com qualquer ponto do globo e recolhe informação de qualquer ponto do globo instantaneamente. A nossa ubiquidade electrónica acabará por ser necessária e positiva, mas neste momento está a causar um perigoso efeito secundário; antes de termos tempo de reorganizar a vida, de encontrar uma resposta institucional, as consequências sociais, políticas e culturais já estão em cima de nós^m». É claro que, no presente momento, tudo isto ainda é muito incipiente no que diz respeito à disponibilidade e facilidade de acesso no mercado. Até que se massifique o contacto com estas tecnologias aguardaremos alguns anos, mas devemos estar habilitados para o novo desafio e para as suas consequências. Estar consciente e ter conhecimento das linguagens é um princípio básico da inteligência humana e uma preparação para a aceitação do futuro. Na construção de um ser interactivo que é simultaneamente emissor e receptor, na preparação de «pílulas inteligentes para o organismo do homem, ,7S Digamos que se trata de uma pausa física, ou melhor, aquilo a que o radicalismo de Virilio apelida de inércia domiciliária. O que se passa é que tudo funciona a alta velocidade à nossa volta sem que se produza qualquer espécie de movimentos físicos significativos. «O paradoxo é este. O nosso hardware - a realidade material da terra - está a contrair-se e a implodir sobre si mesma, porque as nossas tecnologias reduzem constantemente os intervalos espácio-temporais entre operações. Entretanto, o nosso software, a nossa realidade psicológica e tecnológica, está continuamente a expandir-se. O acesso aos remos do infinito estruturas de informação atómicas e subatómicas, planetárias e galácticas - está também a expandir o alcance da nossa 'cultura em profundidade" que não cessa de aumentar». (KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura, 1995, p. 192) A pausa no sentido sem sentido do impasse, da inércia e do niilismo. «Implosão do sentido nos media. Implosão do social na massa. Crescimento infinito da massa em função da aceleração do sistema. Impasse energético. Ponto de inércia. Destino de inércia de um mundo saturado. Os fenómenos de inércia aceleram-se (se assim nos podemos exprimir). As formas paradas proliferam, e o crescimento imobiliza-se na excrescência. Esse é também o segredo da hipertelia, do que vai mais longe que o seu próprio fim. Seria o nosso modo próprio de destruição das finalidades: ir mais longe, demasiado longe no mesmo sentido - destruição do sentido por simulação, hipersimulação, hipertelia. Negar o seu próprio fim por hiperfinalidade (o crustáceo, as estátuas da ilha da Páscoa) - não será também o segredo obsceno do cancro? Vingança da excrescência sobre o crescimento, vingança da velocidade na inércia.Ç..) É este ponto de inércia que é hoje em dia fascinante, apaixonante, e o que se passa nos arredores deste ponto de inércia (acabou, pois, o discreto encanto da dialéctica). Se ser niilista é privilegiar este ponto de inércia e a análise desta irreversibilidade dos sistemas até um ponto de não retorno, então eu sou niilista», BAUDRILLARD, Jean, Simulacros e s/mu/ação,1981, p. 198. 180 KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura, pp. 244/245. 101 capazes de transmitir à distância informações sobre as funções nervosas, o fluxo sanguíneo, enquanto se aguarda a próxima chegada de micro-robots susceptíveis de circular nas nossas artérias, a fim de tratar os tecidos Doenfes'81», está cada vez mais próxima a realidade, que pensávamos irreal, do filme Artificial Inteligence (A.I.), de Steven Spilberg. O efeito das novas tecnologias do planeta global e cibernético afectam e invadem muito mais do que as nossas bolsas. Afectam-nos psicologicamente, porque são extensões de nós próprios, manipulando o tempo, o espaço: a natureza. A velocidade controla a cultura, que se sobrepõe à natureza. A história de A.l. começa por remeter-nos para uma realidade próxima de nós, dos nossos corações. O desespero de uma mãe que corre o risco de perder o seu filho doente. A tecnologia apresenta-lhe a solução com um sofisticado substituto (à semelhança dos brinquedos vivos produzidos para as crianças, alternativos aos animais de estimação com inúmeras vantagens para os pais: os Tamagochis). Um modelo tecnológico aparentemente humano. O seu corpo é igual ao nosso, mas em vez do sangue, veias, órgãos e cérebro humanos, é um computador sofisticado, programado para ser filho. O enredo desta produção cinematográfica esgota aqui o seu espaço, uma vez que aquilo que interessa expor é o desfecho. Com o regresso do filho doente a casa, o brinquedo deixa de fazer sentido, por já não ocupar lugar nos corações daqueles pais. O abandono cria naquela criança-máquina, o cyborg™2, a consciência da saudade, da falta e do amor. O público que assiste ao filme é levado a sentir pena de uma máquina, a querer protegê-la e, quem sabe, adoptá-la. Este novo menino tem sentimentos e, por ser imortal, "" VIRILIO, Paul, A Velocidade de Ubertaçáo, pp. 77/78. ,82 O termo cyborg foi inventado pelo cientista Manfred Clynes, em 1960, para definir a combinação entre cibernético e organismo. Através da Internet podemos ter acesso ao manifesto desenvolvido por Donna Haraway, Um manifesto para os cyborgs - ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80, donde retirei alguns excertos (trad, livre). «A formação da totalidade, a partir de fragmentos, inclusive aqueles da polaridade ou da dominação hierárquica, é questionada no mundo do cyborg.j...) As nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós apavorantemente inertes. (...) A minha opinião baseia-se no facto de as feministas (e outros) necessitarem de reinvenção cultural constante, da critica pòs-modernista e do materialismo histórico; apenas um cyborg teria esta oportunidade. As velhas dominações do patriarcado branco e capitalista parecem nostalgicamente inocentes hoje: elas normalizaram a heterogeneidade, por exemplo, entre homem e mulher preto e branco. O capitalismo avançado e a pós-modernidade libertam a heterogeneidade sem uma norma e encontramo-nos achatados, sem subjectividade, (...)Os métodos da clínica exigiam corpos e esforços e nos temos disponíveis textos e superfícies. (...) A normalização abre caminho para a automação e a redundância totah. 102 por ser uma máquina, com o decorrer da história, toma-se no sobrevivente mais próximo do Homem, que deixa de existir, num mundo habitado por Andróides geliformes, se é permitida a denominação. Será que a resposta para as perguntas: Quem somos e para onde nos dirigimos, é esta? Se pensávamos que a «melhor vingança contra as psicotecnologias que nos transformariam em extensões delas próprias (...)» seria «(...) incluí-las dentro da nossa psicologia pessoalm», com este filme temos a sensação de que o nascimento de um novo ser humano pode ser o próprio desaparecimento do humano. «Se a ausência dos Deuses foi de algum modo escolha nossa, poderemos quanto muito supor que a presença dos cyborgs também o poderá ser. E, embora a liberdade não se confunda com o poder escolher (pois também se pode escolher ser escravo), a possibilidade de escolhermos, por ora, ser homem, mulher, animal ou máquina, é ainda um sinal de liberdade, ou de que amamos a incerteza do que somos,!u». Ultrapassando o debate acerca da clonagem, esse sentido de corpo industrial de reprodutibilidade técnica e consequente perda da aura, enunciada por Walter Benjamim, referindo-se à obra de arte, mas aplicável ao humano, é objectivado pelo desenvolvimento do «processamento em tempo real com UHSI e ULSI ("ultra-high speed" e "ultra-large-scale integration"); computadores de quinta geração: memórias de um único chip com capacidade para design assistido por computador, processamento paralelo, software mais poderoso, sistemas de visão e reconhecimento de voz; miniaturização e integração de aparelhos de transmissão para a cabeça e dispositivos que reconhecem o movimento; ecrãs de televisão de alta definição e tecnologia de pixels melhorada; redes neurais e processamento paralelo; robots de última geração; simulação de voo; micro-sensores tácteis integrados em fatos virtuais; interfaces 3D; tecnologias de fibra óptica e comutadores ópticos; encriptação de som 3D™5». A perda de fronteiras psicológicas entre o eu e o meio ambiente e a consequente dúvida entre o ponto de vista e o ponto de existência, o que está dentro e o que está fora de nós, transfere-nos para uma nova sensibilidade. 183 KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura, p. 284. CRUZ, Teresa, O Corpo Cyborg, in O Corpo na Era Digital, pp. 142/143. 185 KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura, p. 74. ,M 103 «Agora que a comunicação está a tomar a dianteira, queremos mais contacto connosco. Ao dirigir-se directamente ao sistema nervoso, a tecnologia eléctrica está a emular os sentidos. Nos anos 60, a televisão injectou quantidades maciças de experiências sensoriais e provocou a redescoberta de uma orgia de sentidos. Com o advento da informática isso transformou-se num sentimento essencial para a integridade orgânica. Ainda não somos completamente ecológicos, mas estamos a tornar-nos cada vez mais exigentes perante a gestão do meio ambiente. O ambiente deixou de ser um receptáculo neutral das nossas actividades. É também ele constituído por informação, está a tornar-se inteligente, e, através dos media, visívelm». Ainda não temos absoluta consciência dos resultados do desenvolvimento mas, há alguns anos atrás, não se considerava a hipótese de ver concretizadas situações que hoje são tão comuns e fazem parte do nosso quotidiano. «Se é verdade que a separação entre "corpo" e "carne" tem constituído um ponto fundamental na recente literatura teórica sobre o corpo, libertando o corpo das suas supostas determinações biológicas para uma realidade essencialmente experimental e plástica, não é menos verdade que a tecnologia actual parece particularmente interessada e vocacionada para se ocupar das nossas almas ou, em todo o caso, do incorporai, ao visar dimensões da vida humana como a da consciência ou a dos afectos™7». Estamos tão longe de nos conhecermos com a profundidade desejada e existem tantas perguntas acerca de nós que ainda não têm resposta que, vermos tão claramente o desfecho, só pode resultar numa reflexão séria acerca do que está projectado para o futuro. «Hoje podemos fazer tudo o que quisermos, por isso primeiro temos de saber o que é que queremos^28». KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cu/fura, pp. 239/240. CRUZ, Teresa, A Histeria do Corpo, p. 365/366. KERCHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura, p. 236. 104 2.3. Revisões do uso do corpo nas artes plásticas do século XX Se podemos fazer tudo o que quisermos, bastando, para isso, sabermos o que queremos, ideia defendida por Derrick de Kerchove, com a qual terminamos o tema anterior, o problema reside, exactamente, nas escolhas para o que desejamos, e essa é a difícil tarefa das nossas vidas. Depois de uma análise do corpo que temos, que desejamos, ou poderemos vir a ter, chega a altura de trabalhar o espaço e o tempo, nunca divorciados do corpo, porque «ser corpo, nós o vimos, é estar atado a um certo mundo, e o nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaçom». Agindo através de todos os motores que permitem a nossa existência e evolução, a Arte e, mais concretamente, as Artes Plásticas, são a razão desta investigação, por uma relação, um diálogo, entre o criador/produtor de obras de arte com quem as recebe, pressupondo uma união, uma comunicação, um entendimento e uma troca. As minhas convicções prendemse, em primeiro lugar, com essa ideia de implicação e troca, uma acção interactiva do receptor com as obras de arte. Esta interactividade pressupõe o corpo e os seus conceitos sob duas perspectivas: o corpo como suporte e o corpo como propositor de uma experiência multissensorial. Na primeira, o artista utiliza o seu corpo, apresentando-o, usando-o explicitamente no confronto com o público, como estratégia criativa e que nos remete para os movimentos Happening, Performance e Body art - salvo algumas excepções, o público é confrontado com a efemeridade de um momento, assistindo, passivamente, a uma acção, na qual é, por vezes, requisitado a intervir. A segunda perspectiva mencionada, remete-nos para aquelas obras que só fazem sentido quando há uma experiência física e mental do fruidor, activo, que as incorpora, Instalação/Ambiente e das e quais Site-specific, são exemplos as independentemente resultantes das da acções performativas, de arte pública e/ou de carácter privado, que possam simultaneamente decorrer. O corpo do artista pode ser o suporte utilizado 189 MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção, p. 205. 105 como demonstração de uma acção a ser vivenciada pelo próprio espectador e, neste caso, o artista serve-se do seu corpo como propositor de uma experiência. O artista pondera a hipótese de que o fruidor faça uso do deu próprio corpo, independentemente da presença do corpo físico do artista, propondo uma experiência multissensorial. Estas abordagens ao tema do corpo implicam directamente, noções como espaço/escala, o tempo, e os meios, indispensáveis à materialização das ideias. Por outro lado, parece indispensável traçar um esquema que esclareça acerca daqueles que na sua estratégia criativa anunciaram novos paradigmas para a arte e para os seus fruidores, através de um novo enquadramento de intervenção prática em noções como a percepção da escala, do tempo, ou dos meios. Estes autores constituem a selecção possível, restrita, e a sua escolha foi feita com base num exercício de memória apoiado em experiências pessoais enquanto fruidora de obras de arte e assente numa visão histórica e crítica baseada em documentos e testemunhos dos mesmos, por forma a contextualizar o leitor na perspectiva vivencial das obras de arte com exemplos concretos ilustrativos dessa estratégia criativa. Proponho, assim, uma viagem pela arte do século XX até aos anos 70, numa perspectiva que pode ser considerada histórica, para um enquadramento e para uma melhor percepção, num sentido global, das transformações e rupturas que permitiram e provocaram aquilo a que chamamos de actualidade. Mais tarde, nesta revisão do uso do corpo nas artes plásticas, apresento de uma forma mais aprofundada alguns artistas e obras, referências que relaciono com os pressupostos para a minha estratégia e processo criativos. Para todos os exemplos de artistas e trabalhos artísticos, parti do princípio de que, na sua obra, se verifica uma implicação entre o propositor/artista e o receptor/fruidor da obra envolvido corporalmente com ela, em experiências multidisciplinares do sensível, cinestésicas e, portanto, activas. A distinção entre arte moderna, de alguma forma associada ao que se chamou de modernismo, e arte contemporânea, pode exprimir-se de variadas formas e comportar diversas posições. A obra de arte contemporânea 106 pressupõe muito mais uma relação com as problemáticas do presente, a actualidade, a experiência vivida, pela perda do referente histórico, da ligação com o que foi realizado anteriormente, como reacção ou aprofundamento às ideias e obras dos movimentos que marcaram a primeira metade do século XX, e, também, pela sua concepção multidisciplinar e interdisciplinar190 sem possibilidade de atribuição de conceitos exclusivos e determinantes, como até aí eram a pintura, a escultura, a música ou o desenho. Estas designações não deixaram de existir ou de fazer sentido, e talvez não tenham perdido aplicabilidade. Desde há algumas décadas, as obras de artes plásticas reúnem-se com outras diferentes disciplinas do seu meio e com outras exteriores a este, como a ciência, a filosofia, a antropologia, a sociologia. «O "sublime tecnológico", nova forma pós-moderna do sublime, assinala, em suma, o declínio das categorias de base da estética tradicional: a personalidade artística, a obra, a expressão, o estilo, o sentimento, a inspiração, a fruição...tornam-se noções insustentáveis e privadas de sentidom». Surge uma nova linha de designações, na qual se situa o termo ambiente. Esta designação é, nas artes plásticas, explorada até aos seus limites durante o século XX. Utilizado como mera referência à inclusão e apropriação criativa das dimensões físicas reais do espaço circundante, adquirindo uma carga, um clima psicológico, ou limitando-se a um sentido arquitectónico estrito, ou a uma extensão para o exterior, implica sempre um espaço que envolve o homem e através do qual este pode mover-se e desenvolver-se. Estes espaços, ambientes, afectam com intensidade complexa a actividade sensorial do espectador, que ver-se-á envolvido num 190 Não se apresentando, actualmente, como um valor importante na investigação começou, «efectivamente (y no solo como mera expresión de un buen propósito) cuando entra en crisis la solidaridad de las antiguas disciplinas - quizá incluso de forma violenta, por el impacto de la moda - en beneficio de un nuevo objeto y un nuevo lenguaje, ninguno de los cuales pertenece ai campo de las ciências que pretendian convivir pacificamente: es precisamente este malestar de la clasificación el que permite diagnosticar una cierta mutación», BARTHES, Roland, Del la Obra ai Texto, in WALLIS, Brian (ed.), Arte Después de La Modernidade - Nuevos planteamientos en torno a la representación (tít. orig.: Art After Modernism: Rethinking Representation, The New Museum of Contemporary Art, Nova lorque, 1984, 1996, publicado com o acordo com David R. Godine, Publisher, Boston, trad.: Carolina del Olmo e César Rendueles), Akal - Arte Contemporâneo 7, dir.: Anna Maria Guasch, Ediciones Akal, Madrid, 2001, p.169. ' 9 ' COSTA, Mario, Corpos e redes, in A Arte no Século XXI - A humanização das tecnologias, pp. 304/314. 107 movimento de participação e requisitado para um comportamento exploratório respeitante ao espaço que o rodeia e àquilo que nele se encontra. São vários os exemplos que podemos dar do passado quando falamos em alteração da relação estática e passiva do espectador ou das concepções tradicionais de obra de arte. Nos primeiros anos do século passado, os readymade de Marcel Duchamp declaram como obra de arte um objecto produzido industrialmente e pertencente ao nosso quotidiano. A escultura deixa de se perder no seu carácter fechado, agarrada ao pedestal, à escala, aos materiais nomeados como nobres, para converter-se numa parte da sua situação ambiental, do contexto circundante. Perante obras abertas, nas quais se impõe o significante (como apresentação ou representação de um conceito), esvaindo-se o significado (como conceito abstracto), permeável ao julgamento crítico, conceptualiza-se o que mais tarde serviria a Umberto Eco no aprofundamento das suas investigações teóricas. «Assim, a arte contemporânea tenta encontrar - antecipando-se às ciências e às estruturas sociais - uma solução para a nossa crise, e encontra-a pelo único modo que lhe é possível, sob a espécie imaginativa, oferecendo-nos imagens do mundo que valham como metáforas epistemológicas: e constituem um novo modo de ver, de sentir, de compreender e aceitar um universo em que as relações tradicionais se estilhaçaram e no qual se estão esforçadamente a delinear novas possibilidades de re/ação192». Estas obras podem definir-se como abertas, como representação de um modelo hipotético sem significado axiológico^33. Pouco tempo antes dos primeiros readymade, o futurismo tinha lançado a ideia de introduzir o espectador no próprio quadro. Naturalmente que, numa prática tradicional da pintura, isto seria impossível, mas Umberto Boccioni'94 (com uma curta carreira devido à sua morte aos 34 anos) procede com o pensamento de que a plástica, no melhor da escultura futurista, tinha que ser arquitectónica, apontando para uma configuração do espaço e dos 192 ECO, Humberto, Obra Aberta (tít. orig.: Opera Aperta, Gruppo Editoriale Fabbri, Bompiani, Sonzogono, Etas, S.p.A., 1962, trad.: João Rodrigo Narciso Furtado), Ditei, Difusão Editorial, Lisboa, 1989, pp. 33/34. 193 Op. cit., p. 51. ,M Remeto o leitor para o Apêndice 2 e a leitura do Manifesto técnico da escultura futurista escrito por Umberto Boccioni em 1912. 108 objectos nele situados, incluindo o próprio espectador, e assim substitui o velho conceito de divisão por um sentido de continuidade. Como já referi a propósito de uma visão do corpo industrial, o que os séc. XVIII e XIX prepararam para a modernidade foi socialmente determinante. Com os primeiros museus e com os primeiros tratados de estética (a perspectiva do espectador passa a ser estética), vemos a origem da crítica da arte, não como interpretação abstracta, mas como articulação concreta procurando definir normas de classificação e sistemas de apreciação. O aparecimento do museu permite uma aproximação do público com as colecções. Com a modernidade, o espectador é integrado no processo geral da legitimação da obra de arte, numa consciência de que a arte se justifica no interior de si própria, como base de compreensão do fenómeno artístico. Quando Duchamp, em 1917, realiza Fountain, o famoso mictório invertido assinado por R. Mutt, para ser apresentado no Salão da Society of Independents, esperaria, provavelmente, que este fosse recusado. O observador passava a estar colocado perante uma nova realidade de contexto estético. Nunca estes objectos tinham sido analisados com tanta atenção e predisposição e, na prática, só tinha acontecido o facto de terem sido nomeados para um novo contexto. Todas as especulações mais ou menos credíveis realizadas em torno dos readymade, são, em última análise, uma violação às intenções estratégicas de Duchamp. A sua análise externa atenta, a leitura de sentimentos, negam o desejo da não-representação, da indiferença visual, da não definição de gostos, procurando em vão a anulação da referência objectual. O carácter conceptual dos pressupostos levantados, pelo afastamento dos epifenómenos serve, segundo a definição de Husserl, para nos distrair, isolando-nos do que é realmente fenomenal e importante. Não têm menos valor do que o fenómeno, apenas dependem da intencionalidade depositada. Uma questão de prioridade, que nos permite analisar um mesmo assunto de diferentes perspectivas. Daí que a assimilação do fenómeno readymade tenha sido tão demorada, discutida e consequente para o contexto da produção artística do século XX195. 195 O que, sinteticamente, Duchamp desejava era -apontará grande reconciliação, preparar o caminho para o todo, energicamente, através de uma arte necessária», pelo -renunciar a toda a acumulação artística supérflua dos últimos séculos (indiferença estética) e afirmar uma nova valência 109 Na obra Fresh Widow, 1920, e Porte, 11, Rue Larrey,(Paris), 1927, na qual Marcel Duchamp faz, ironicamente, um jogo com as palavras French e Window suprimindo a letra n, somos confrontados com novas concepções de espaço que nos confundem pelo título atribuído. Um espaço de desilusão do desejo, que nos convida e nos remete para uma saída, uma passagem, uma outra dimensão. Psicologicamente, o lado de lá, a outra sala, o outro espaço, não existe, não se alcança. É preciso ver mais além do que o olhar nos permite. Quando numa janela de armação em madeira, as vidraças são em couro negro polido diariamente, segundo as recomendações do autor, para que se tornasse tão cristalino como o vidro, provocando a sensação de profundidade de um espaço que na realidade não existe e que não passa de um assemblage, atinge-se o auge da redundância. Os últimos trabalhos desenvolvidos, essencialmente, entre 1946 dedicados e 1966 por à construção Marcel Duchamp de ambientes foram, que embora discretamente mediatizados podem ser visitados na colecção do Museu de Arte de Filadélfia, possuidor de um vasto número de exemplares da obra deste autor, e ali depositados pelo seu coleccionador, o amigo de Duchamp, Arensberg. Também o inglês Henry Moore (1898-1986) e o americano Alexander Calder (1898-1977), marcam de forma extraordinária os conceitos de uma nova escultura, quer através de uma abertura no conceito vigente, quer nas alterações propostas para a sua fruição, fazendo com que a escultura não ocupe simplesmente um espaço mas que seja o próprio espaço, que até então era do domínio exclusivo da arquitectura. Sofrendo influências de autores como Hans Arp, cujas primeiras obras são consequência das experiências expressionista e dadaísta, o que serviu a estes artistas foi a contribuição de Arp para a abertura de uma matriz orgânica no caminho abstraccionista atingida nos seus relevos pintados. Henry Moore criou corpos com uma dimensão espacial extraordinária que, pela sua escala, para além de constituírem espaços formais explícitos, concretos, presentes, delimitados, apelam à noção de vazio espacial. Calder, a partir da construção das suas marionetas, de que é referência The Circus, estética, uma arte necessária», SOUSA, Ernesto de, Ser Moderno...em Portugal, org. e apresentação: Isabel Alves e José Miranda Justo, col. Arte e Produção, Assírio & Alvim, Lisboa, 1998, p. 30. 110 de 1927, começa um processo de investigação construindo os móbiles, denominação atribuída por Marcel Duchamp, e que se caracterizam por serem composições tridimensionais instáveis suspensas, compostas por elementos abstractos que vibram ou oscilam com um pequeno toque. A sensação de transparência e de volume virtual provocada pelos móbiles de Calder «conduz, partindo das geometrias abstractas de Gabo,» de que são exemplo as construções cinéticas realizadas nos anos 20, «ao conteúdo antropomórfico da acção intermitente do corpo'96». Por outro lado, estas experiências oníricas e de um imaginário fantástico, colocam o fruidor num processo interactivo de acção/reacção processada pelo movimento do espaço, proporcionando-lhe uma sensação de actor. Toda a escultura cinética fica, assim, ligada ao teatral, não no sentido performativo nem pela construção de ambientes, mas no sentido da escultura enquanto objecto197. De uma formalização reduzida ao essencial, ao mínimo, estas experiências viriam a ser ferramentas para a Minimal art dos anos 70. A ideia de uma correspondência de simultaneidade sensorial pode fazer-nos recuar, na arte ocidental, até ao Cubismo e Futurismo e às experiências de John Cage e Mercê Cunningham. Nos anos 20, D. H. Lawrence escreve ensaios e romances criticando o excesso a que tinha chegado a consciência intelectual, consciência esta descrita por D. H. Lawrence como «a parte nauseante do homem, não o corpo. A mente, o eu-ciente-de-si... O pior inimigo que o homem tenha tido ou possa ter... é o seu eu-ciente-de-si, deste intelectualismo brota toda uma patologia do ser no mundo (o individualismo, a competição, o amor pelo dinheiro, o isolamento recíproco do homem e da mulher...) e o esgotamento das paixões, que se fazem impessoais e estereotipadasm» e que na arte europeia se m KRAUSS, Rosalind E., Caminhos da escultura moderna (tit. orig.: Passages in modem sculpture, Mit Press, Massachusetts, 1977, trad.: Julio Fischer), Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 262. 197 Há que, nesta altura, fazer a distinção entre dois tipos de relação do artista com o teatral: o artista que trabalha interdisciplinarmente com o teatro, numa cumplicidade e participação para uma acção a decorrer no palco, de que são exemplos os diversos cenários criados, desde sempre, por artistas plásticos, e a construção de esculturas que incorporam em si a acção dialogando com o teatral, mas mantendo a sua autonomia em termos de linguagem, e de relação com o tempo. 19a COSTA, Mário, Corpos e redes, in A arte do Século XXI- A humanização das tecnologias, 1997, p. 305. 111 reflecte em movimentos como o Futurismo e o Dadaísmo, marcadamente associado a Marcel Duchamp que, introduzindo o readymade, alterou o conceito de obra de arte como até então era entendido. Mais do que uma reacção ao cubismo, ao futurismo e ao abstraccionismo, o Dada é resultado da Primeira Grande Guerra Mundial. O Dada foi o primeiro movimento verdadeiramente internacional, de rápida expansão, prefigurando o que viria a ser o início da 2 a metade do século XX, que emergiu de dois conceitos fundamentais: um corte deliberado com o racional e um compromisso com acções políticas e sociais. A sua vertente política foi particularmente forte na Alemanha do final da 1 a década com Richard Huesenbeck, ficando o seu lado "irracional" associado à revista parisiense Littératture. O bar com espectáculos de variedades organizados por Hugo Ball e Emmy Hennings, Cabaret Voltaire, seria o seu coração. Todos os que lá se encontravam tinham deixado os seus países por causa da guerra. No resultado da Primeira Guerra Mundial o sentimento de morte da nação, a crítica à política aos valores presentes, o ódio aos burgueses e o amor aos artistas, fizeram do Dada a determinação de uma atitude diferente perante a realidade. A anulação do valor estético plástico, manifesto precursor do Happening, da Body art como o novo expressionismo, e da arte conceptual, que é de longe a sua maior herdeira, podem ser ilustrados, a título de exemplo, com o readymade Cadeau (1921), de Man Ray, que atinge num jogo Na arte brasileira, a segunda década do século passado ficou marcada pela linguagem modernista de raiz nacionalista implantada, por exemplo, através do marcante evento Semana de Arte Moderna de 1922. As raízes nacionalistas brasileiras ficaram culturalmente ligadas ao conceito de antropofagia e ao Manifesto Antropofágico assinado por Oswald de Andrade - em Apêndice 3. O Concretismo e o Grupo Frente, originário do Rio de Janeiro protagoniza-se, nesta altura, na presença de Ivan Serpa. Segundo Lygia Pape, numa conversa tida na residência de José Mário Brandão, a 17 de Julho de 2001, «ninguém queria mais pintar paisagem, conforme o séc. XIX. Então voltou-se a um projecto construtivo, construtivista. Voltar às origens. (...) O circulo, o triângulo e o quadrado e as cores primeiras, primárias. O amarelo, o azul e o vermelho. Também se devia evitar o toque da mão para não conter nenhuma subjectividade. A obra devia ser um produto mental. A matemática organizava o espaço do quadro». O construtivismo parecia responder à procura de uma modernização do Brasil, bem como de outros países da América Latina, e da sua abertura à contemporaneidade. Havia um sentimento colectivo que implicava aquilo a que se pode chamar de purificação, através de um corte radical com o que até então se fazia nas artes plásticas. O Grupo Concreto foi-se formando lentamente, comportando artistas brasileiros de vários pontos do país. Passados alguns anos dos primeiros ensaios críticos de Lawrence, permanece um sentimento excessivamente intelectualizado por parte de artistas e pensadores que nos remetem para Nietzsche que, de Schopenhauer extrai a exaltação o corpo como lugar do Si infinitamente mais amplo do que o Eu racional. Lygia Pape, na mesma conversa que tivemos diz, a propósito do fim do Grupo Concreto: «Tudo era baseado em matemática eprogressões matemáticas (...) e uma parte do grupo não queria mais aquilo». 11? de trágica ironia (um ferro de engomar cuja base tem soldados pregos afiados), pelo expoente máximo da contradição funcional. Os anos 20 e o construtivismo russo anunciam o readymade como o responsável simbólico pela morte da arte e, assim, da anti-arte. A escultura entendida por Gabo, Lissitzky, Max Bill, entre outros, como a produção de um modelo formal e concreto de pensamentos abstractos, baseada na simetria, num espectador estático perante a obra, que numa percepção única captava o todo, eram dados demasiadamente vinculativos e castradores para um autor como Duchamp e todos os que partilhavam com ele a abertura de possibilidades de trabalho e de leitura pela dilatação das opções. Depois da introdução do corpo performativo na arte, no final da década de 30, de John Cage e Mercê Cunningham, o corpo multidisciplinar do pós-modernismo associa o conjunto das artes plásticas. A dança, o teatro e a música num intercâmbio entre artistas europeus e americanos. A propósito da teatralidade e da relação entre o teatro e a escultura, Michael Fried, na sua visão formalista, debateu o conceito de tempo. Para ele, haveria que fazer a distinção entre o tempo do teatro e o tempo da escultura, porque é «a temporalidade estendida, uma fusão da experiência temporal da escultura com o tempo real, que impele as artes plásticas em direcção à modalidade teatraP99». Nos anos 60, esta ideia de uma correspondência de simultaneidade sensorial, referida anteriormente, atravessa a Arte Psicadélica200 chegando às teorias composicionais da multimedia electrónica201, ou à Nova Objectividade brasileira, que é ilustrada pelas experiências desenvolvidas a partir de meados dessa década, pela necessidade de «não apenas martelar contra a arte do 199 KRAUSS, Rosalind E., Caminhos da escultura moderna, p. 244. As obras de arte analisadas no próximo texto, são alguns dos exemplos que viriam a provar que o teatro pode, ontologicamente, funcionar como uma ferramenta de investigação e expansão. 200 Os ambientes psicadélicos têm, ainda hoje, presença em diversas propostas artísticas e caracterizam-se, fundamentalmente, por usarem diversos meios (projecção de imagens e vídeos, música, ruídos abstractos e concretos, como, risos ou gritos, efeitos luminosos, etc.) que podem provocar no público estados psicadélicos ou afectar extractos psicossomáticos em intensas experiências sensoriais. Por isso, não é de estranhar que muitos artistas psicadélicos tenham sido convidados a realizar projectos de discotecas. J. Cassen, R. Stern, E. Reiback, E. Randell ou R. Aldcrofts, são alguns dos artistas que na década de 60 realizaram este tipo de ambientes. 2 °' Dick Higgins, contemporâneo de Cage, criou o termo Intermedia para descrever as composições multisensoriais onde o processo composicional atravessa as barreiras entre o media ou fuses media, criando uma partilha estrutural. 113 passado ou contra os conceitos antigos (...) mas criar novas condições experimentais, em que o artista assume o papel de "proposicionista" ou "empresário" ou mesmo "educador". O problema antigo de "fazer uma nova arte" ou de derrubar culturas já não se formula assim - a formulação certa seria a de se perguntar: quais as proposições, promoções e medidas a que se deve recorrer para criar uma condição ampla de participação popular nessas proposições abertas, no âmbito criadora que se elegeram esses artistas202». Não se trata de realismo ou novo realismo, mas de um mundo experimental, aberto às acções e comportamentos, na construção de um imaginário colectivo. A finalidade é a comunicação com os outros. Não se tratando de apresentar de forma realista o exterior, a Nova Objectividade trata o realismo que vem de dentro, digerido, e disponível para novas experiências203. Nos anos 50, o corpo é trabalhado implicitamente através do gestualismo, que nos remete para as obras de Jackson Pollock, de Willen De Kooning ou Rauschenberg onde se salienta a impressão dos gestos, da massa e matéria sobre o suporte que regista todo o trabalho físico que lhe foi sendo depositado. Sobressalta-se a Arte Bruta proclamada por Jean Dubuffet e o movimento Cobra fundado pelo escritor belga Christian Dotremont e um grupo de artistas alemães em Amsterdão de que é exemplo Karel Appel. 202 Aspiro ao Grande Labirinto, selecção de textos (1954-1969), org.: Luciano Figueiredo, Lygia Papee Waly Salomão, Rio de Janeiro, Rocco, 1986, pp. 97/98. 203 As novas experiências desenvolvidas pelos artistas brasileiros têm a sua origem luta contra a política militar e ditatorial instituída. Se por um lado a década de 50 tinha sido uma década de grandes acontecimentos políticos, económicos e culturais com a construção de Brasília, que inaugura em 1960, a construção do Aterro do Flamengo, o grande parque do Rio de Janeiro que liga o centro da cidade ao mar, a Bossanova de Gilberto Gil e Tom Jobim, o Cinema Novo (cinema experimental no qual os realizadores, como Glauber, carregam a ideia na cabeça e a câmara na mão), que se aproxima das experiências italianas e francesas, a criação de projectos artísticos urbanos que avança numa proximidade da arte com o povo, a cidade, o espaço e a escala, vão reflectir-se, na arte, numa procura de expansão do corpo e de contacto de este com o meio, defendida no manifesto Teoria do Não-Objecto, escrito em 1960 por Ferreira Gullar, por outro lado, as ligações aos países comunistas, iniciadas pelo Presidente Guiar a partir de 1961, fazem com que uma fracção da sociedade incomodada com tais ligações aproveite a ausência do presidente numa visita ao Uruguai, em 1964, para impedi-lo de regressar ao pais. Com o governo militar no poder e a implantação do 5o Acto Institucional (AI-5) na governação militar do Presidente General Costa e Silva, assinado em Dezembro de 1968, o país inicia um processo de opressão que resulta em movimentações revolucionárias e de contracultura, tornando-se no período mais negro da história militar do Brasil. Só em 1979, com a subida ao poder do General Figueiredo e os valores de abertura celebrados pela sua famosa expressão: «Se não abrir, eu prendo, bato e arrebento*.», é que se volta a implantar a paz, a liberdade e a democracia. 114 Se é possível estabelecer paralelismos entre as obras de Pollock e Rauschenberg, por exemplo, no que respeita ao gesto considerado como o princípio ordenador dos resultados plásticos, pela acção directa realizada sobre a tela sem estratégias pré-definidas, não o é, da mesma forma, se analisarmos sucintamente as diversas experiências de Rauschenberg. Pollock manteve, sempre, a sua relação com a pintura enquanto objecto, ao passo que Rauschenberg, interessado na investigação performativa, realizou, individualmente ou com outros artistas - como por exemplo, Niki de Saint Phalle, Tinguelly, Frank Stella ou Jasper Johns - manifestações performativas ao longo de toda a década de 60. Sem nunca abandonar a pintura sobre tela mas promovendo um confronto entre si e o público, por meio das Time Paintings204, colaborou, também, em produções coreográficas com Mercê Cunningham. Na Inglaterra do princípio dos anos 50 nasce, por parte de uma nova geração de artistas independentes com as mais diversas formações, como Eduardo Paollozi, Alison e Peter Smithson, Nigel Henderson, Richard Hamilton, e mais tarde, após 1955, Richard Smith, Robyn Denny e William Green, o movimento artístico Pop art. Este nasce como expressão de um fascínio pelo glamour e estilo de vida americanos que tanto impressionava a Europa. No final da década de 50 a Pop art invade a América obtendo sucesso no seio de um grupo de galerias de Nova Iorque, que nesta altura apresentavam obras de arte assemblage. A simulação ambiental do espaço trazida pelo assemblage desde o princípio do século XX é transferida, se assim se pode dizer, para a instalação real nos espaços concretos, fazendo com que a Instalação e o Happening205 ganhem expressão. George Segal 204 First Time Painting é o título de uma série de experiências de pintura, acções cronometradas por um relógio, nas quais este artista se apresentava de frente para a audiência tapado pela tela, impossibilitando-a, desta forma, de visualizar os resultados do trabalho, pintando até ao soar do toque do cronometro. No final de cada uma das acções Rauschenberg fixava o objecto definidor do tempo de execução da obra à própria tela. Numa segunda fase, no final da década de 60, as Second Time Paintings, incorporavam outros elementos para além do cronometro, tais como, som ou luz. 205 Do Manifesto sobre o Happening (1966), assinado por cerca de 50 artistas plásticos e poetas que produziram happenings, na Europa, desde 1959, entre os quais, pode ler-se: «iodas as pessoas presentes num happening participam nele. É o fim da noção de actores e público, de exibicionistas e observadores, de actividade e passividade. Num happening, pode-se trocar de "estado" e de vontade. (...) O happening cria uma relação de intensidade com o mundo que nos rodeia porque se trata de fazer prevalecer, em plena realidade, o direito do Homem à vida psíquica-, 115 começa a criar, de forma cada vez mais acentuada, ambientes reais, destacando o contraste plástico entre o existente recolhido e organizado pelo autor e as figuras que realiza manualmente, em gesso branco; Tom Wesselmann constrói os Great American Nudes, uma série de ambientes penetráveis que confundem o espectador por serem compostos por ilusões do tipo trompe'oeil; Andy Warhol e Claes Oldenburg, com o enorme número de exemplos possíveis de serem apresentados são, talvez, os grandes responsáveis pelo desenvolvimento do termo ambiente na Pop art, e que vão desde as Brillo Boxes, de 1964 ou as Clouds, de 1966, de Andy Warhol, até The Home e The Store, uma verdadeira loja de objectos realizados por Claes Oldenburg e que abriu as suas portas em Dezembro de 1961. «O e/o entre o trabalho de Oldenburg e as noções de um "teatro da crueldade" foi forjado no final dos anos 50 e início dos 60, mediante a participação do escultor nas manifestações teatrais conhecidas como happenings. Os happenings eram acontecimentos dramáticos encenados», que segundo Susan Sontag, são definidos por três pressupostos fundamentais que os vinculam «à concepção artaudiana do teatro: "em primeiro lugar, o seu tratamento suprapessoal ou impessoal das pessoas; em segundo, a sua ênfase no espectáculo e no som, com um desdém pela palavra; e, em terceiro, o seu professado objectivo de tomar a plateia de assalto"206». Estas acções caracterizadas pela vivência daquele momento único e em directo, provocam um constante efeito de surpresa, quer para o público, quer para o artista. O grupo europeu Fluxus - termo introduzido por George Maciunas em 1961 para denominar o movimento - desenvolve a performance, desde o final dos anos 50 com Yves Klein {Leap into the Void207, 1960; Anthropometries of the Bleu Period, 1960; Immaterial Pictural Sensitivity Zone 5, 26 de Janeiro de 1962), Piero Manzoni {The Artist's Breath, 1961, Living Sculpture, 1961), Joseph FIZ, Simón Marchán, Del Arte Objectual al Arte de Concepto, col. Arte y Estética, Ediciones Akal, Madrid, 1994, pp. 391/392, trad, livre. 206 KRAUSS, Rosalind E., Caminhos da escultura moderna, pp. 276/277. zo? O salto de Yves Klein remete-nos para a frase: «Aquele que não procura provar "o gosto do salto" fica confinado a um território insípido, porque o sal e as especiarias que se utilizam para temperar o conhecimento habitam outros lugares-', SILVA, Paulo Cunha e, O Lugar do CorpoBementos para uma cartografia fractal, p. 39. 116 Beuys208 {Twenty-four Hours, 1965; Eurasia, 1966; Coyote,! 974) e Wolf Vostell (TV dé-coll/age for Millions, 1958; Nein-9-dé-coll/agen, 1963; TV Hospital Beds/From "You", 1964) com pressupostos de carácter mais social que estético, procurando contrariar as rotinas burguesas na arte e na vida. A crítica social e do poder, em termos gerais, são a base dos projectos artísticos destes artistas. Wolf Vostell transformou as suas acções nas mais complexas e perturbadoras provocações negativistas, tendo-se tornado uma espécie de mestre, a par de Beuys, do movimento Fluxus. Concentrado, como de resto todos os artistas do movimento Fluxus, na relação da arte com a vida, Vostell destaca-se por ser aquele que faz a conjugação mais agressiva da violência e da sexualidade com a destruição. Aliás, como se pode verificar nos títulos de obras apresentadas, criou e aplicou, frequentemente, o termo dé-coll/age conjugação de coll, colagem, e dé, destruição, referenciador do seu jogo entre a construção e a desconstrução. Os artistas Fluxus usam o corpo e a sua energia como meio na produção das suas obras. No grupo Fluxus, que não vive só da performance, do Happening e das acções, a arte postal e a rubber-stamp são desenvolvidas e usadas de forma aparentemente ecléctica mas, conceptualmente, 208 De inegável importância para as artes plásticas do século XX, equiparável à de Marcel Duchamp, Joseph Beuys é um dos artistas que mais dificilmente se relaciona com um movimento ou corrente concretos, a par de Yves Klein. As suas investigações teóricas e experimentações práticas inovadoras, tornaram-nos marcas das décadas de 60 e 70. A propósito de J. Beuys e fazendo alguns paralelos com Y. Klein, Adrian Henri escreveu: «Since Wilhelm Worringer published Form in Gothic, German artists have been increasingly aware of a sense of rediscovery of their true heritage, of a renewal of an older, pre-Renaissance tradition, Northern rather than Southern: what Herbert Read called 'the spirit of great forests'. Through all Beuys's work there runs a strain of what he and his interpreters are forced to call the 'transcendental'. This is what distinguishes him from superficially similar artists working today: his work is not a demonstration of the nature of materials or processes but their use to express certain fundamental philosophical premises (...) He owes something to the development of cybernetics, the study of natural and artificial systems (i.e. events in sequence): his objects and actions are 'models' for certain physical principles. Cybernetics, however, is limited to the physical: Beuys's pieces involve metaphysical entities, too. (...) Despite the permanent damage from these injuries, he persists (rather like Klein) in involving him self in extreme acts of physical endurance. (...) As with Klein, it seems necessary to Beuys to push him self to extreme physical limits, to test his own endurance. Beuys's life and work (indivisible, like those of Klein) involve end - less apparent contradictions. (...) Beuys has constantly asserted that the power of the artist is to create truth, not simply reveal it as the priest or scientist does. His work may be summed up in the title he gave one of his rare exhibitions: 'Creator of Truth Man'. Klein and Beuys may well prove to be the two most influential European artists of the post-war period. Both have sought transcendental aims: both been influenced by certain religious practices. Both have used their whole life - style as a complete work of art: both have tested their devotion to this principle through a series of alarming physical ordeals. Both embody extreme aspects of their respective national characters: both have the sort of charismatic quality that creates a school' of other art/sis», HENRY, Adrian, Environments and Happenings, Thames and Hudson, Londres, 1974, pp. 147/154. 117 fundamentais. «Digamos desde já que Fluxus, apesar daquela vacuidade organizativa, é um movimento bem preciso historicamente, e cujo sentido mais geral também não deixa lugar a dúvidas: aproximar a arte e a vida: a actividade estética e as outras acções conscientes ou inconscientes do homem. Esteticizar a vida corrente, e fazer com que as artes-da-acção (performing arts) estejam na base de todo o treino e aprendizagem209». Partindo de ideia de Fluxus apresentada por Ernesto de Sousa, cabe agora referir, sucintamente, o contexto português. A ditadura de Salazar impediu, como é típico destes regimes políticos, uma expansão das artes, reprimindo, inibindo e camuflando a produção artística: consequências nefastas da censura. Os artistas encontravam-se isolados e exilados. Estas duas palavras não são apenas metáforas de sentimentos, mas correspondem à realidade concreta. Muitos criadores viram-se obrigados a abandonar o país e os que cá ficaram encontravam-se em prisão domiciliária. Mesmo a Revolução dos Cravos, no 25 de Abril de 1974, que gritou pela liberdade e pôs fim à ditadura, teve poucas repercussões no contexto artístico. Ernesto de Sousa surge como o grande impulsionador e revolucionário, empenhado em acabar com o isolamento das falsas aparências democráticas. Num relacionamento directo com as práticas dos movimentos Happening e Fluxus e com todas as formas «de anti-arte e contracultura se encontram com rigorosas experiências pós-conceptuais», bem como as «novas investigações estéticas sobre o tempo e o espaço (o espaço do corpo próprio, por exemplo na body art, o espaço do mundo, na land art)zm», 209 SOUSA, Ernesto de, Ser Moderno...em Portugal, p. 250. Deste grupo multidisciplinar que, desenvolveu, até 1980, diversas actividades artísticas, encontros, acções, debates, etc., fizeram parte artistas como Alberto Carneiro, Albuquerque Mendes, Álvaro Lapa, Ana Hartherly, António Areal, Angelo de Sousa, Ana Vieira, Clara Menéres, Fernando Calhau, José Rodrigues, João Vieira, Julião Sarmento, Helena Almeida, Mello e Castro, entre outros, e da Equipa AZ, Ana Rosa Gusmão, Carlos Gentil, Fernando Matos, Jorge Peixinho, João Melo, e o próprio Ernesto de Sousa, que articulava as suas funções de fundador, comissário, teórico e crítico, com as de elemento criativo e criador de obras e de promotor da união dos grupos. Justificando a existência de um espírito Fluxus português, Ernesto de Sousa escreveu: "Claro que em Portugal houve e há um espírito Fluxus, mesmo com os nomes mais díspares, abjeccionismo, surrealismo, experimentalismo, e até dadaísmo, e sem-nome o que ainda é mais interessante. Isso provou-se, por exemplo, com Alternativa Zero. Mas - garanto-lhes - há muito que fazer até chegarmos à despesa inútil: não cruzemos os braços», op. cit., p. 251. Em 1997, realizou-se, na Fundação de Serralves, Porto, a exposição Perspectiva: Alternativa Zero, programada por Vicente Todoli e comissariada por João Fernandes na qual era possível reviver todo o espírito da arte na época pela fruição das obras de arte dos artistas que a marcaram. 2,0 118 Op. cit., p. 76. nasceu um grupo de artistas que teve, como consequência, a exposiçãomanifesto Alternativa Zero, em 1977, na Galeria Nacional de Arte Moderna de Lisboa (o signo zero era denúncia de um estado, o princípio, da estaca zero, partir do inexistente. Aliás, Joseph Beuys, que era uma referência para Ernesto de Sousa, e que, estava ligado a este acontecimento, escreveu, em 1972, um artigo intitulado Estado Zero). A par das outras artes, a dança, expressão do corpo-movimento, do corpo como um todo, do corpo-acção, na qual o espírito e o corpo são um só (CUNNINGHAM, Mercê, 1952), encontra nos anos 60, o tempo de libertação e rompimento institucional, numa relação arte-vida, corpo-vida, dança-vida. Mercê Cunningham já não satisfazia a nova geração. Embora tenha sido uma referência incontornável na dança até ao princípio de década de 60, pela sua concepção fenomenológica do corpo, libertando a dança e transformando-a num espectáculo multidisciplinar, não definiu nem desenvolveu algumas questões que se prendiam com a relação disciplinar estabelecida com os bailarinos e o distanciamento mantido com o espectador. Os jovens coreógrafos recusavam o seu modo de disciplinar o corpo, queriam «corpos reais, despojados de todos os artifícios (técnicas, guarda-roupas, cenários, luzes, etc.) que os tornavam corpos idealizados. Yvonne Rainer foi sem dúvida quem mais radicalmente pensou (e realizou talvez) os princípios da nova dança pós-moderna (e "pós-modernista")2u». Neste processo de despojamento e de procura da realidade de um corpo posto a nu, a dança quer o corpo-concreto, aberto ao espaço e ao tempo, dilatando-o e demonstrando ter assimilado as investigações de carácter dadaísta, de introdução dos movimentos quotidianos e da acção do público, na década de 50, pela bailarina Anna Halprin. «É nestes anos que os artistas se concentram sobre o corpo, o seu e o do público, e o tomam como objecto privilegiado de trabalho e de reflexão: o corpo expressa o corpo"2», e a dança é mais um reflexo disso mesmo, por não fazer sentido sem o corpo213. 211 GIL, José, Movimento Total - O Corpo e a Dança (trad.: Miguel Serras Pereira), col. Antropos, Relógio D' Água Editores, 2001, p. 188. 212 RIBEIRO, António Pinto, Por exemplo a cadeira- ensaio sobre as artes do corpo, col. Três Ideias, Edições Cotovia, Lisboa, 1997, pp. 19/20. 2,3 Seja esta presença do corpo explícita, como geralmente o é, ou implícita como, por exemplo, nos bailados neo-concretos de Lygia Pape. De qualquer forma há sempre um corpo, nem que este seja apenas o motor do movimento. 119 A dança, como linguagem do gesto e do movimento, pode ser usada como um meio comunicacional não-verbal das emoções e dos afectos. Pina Baush é um exemplo de bailarina e coreógrafa que explora o corpo como expressão emocional. Usando movimentos abstractos consegue provocar no espectador que assiste aos seus bailados, reacções emocionais, dialogando com os sentimentos e as sensações. O seu processo de trabalho passa por um confronto experimental, nos ensaios, com os bailarinos. Mais do que um guião há um levantar de questões à imaginação e à criatividade. Procurem traduzir corporalmente a experiência de serem picados por uma abelha, de inspirarem o cheiro da terra molhada depois de uma manhã de chuva primaveril. Definam doce, amargo, ácido ou salgado. E ternura. O trabalho de Pina Baush passa pelo confronto com este tipo de questões, e são os resultados expressos pelos movimentos que vão materializando o seu programa, previamente estruturado. Para ela, as emoções são gestos, e estes não se encontram exclusivamente na dança, fazem parte do quotidiano. Há que identificá-los, descobri-los, trabalhá-los e saber usá-los na dança. Criar toda a atmosfera na qual a melodia funciona como um complemento de acentuação do gesto/emoção (experimentem retirar a banda sonora a um filme e perceberão a real importância deste ingrediente). Se os anos 60 são «os anos da conceptualização das Artes do Corpo, da dissolução das fronteiras que ainda existem entre os géneros dança, teatro, performance e música vocal2™», a obra de Laurie Anderson é um exemplo paradigmático disso mesmo. «Arte e ilusão, ilusão e arte. Estás realmente aqui ou é apenas arte? Estou realmente aqui ou é apenas arte?2^5». As perguntas sem resposta e a crítica à sociedade americana são uma constante nas suas realizações plásticas multidisciplinares. Reunindo a produção musical e plástica, numa simultaneidade conceptual e formal com a Fluxus e a Pop art, Laurie Anderson usa diferentes media que unem vozes e música electrónica, objectos do quotidiano, imagens vídeo, animações e performance, presentes em ambientes que nos implicam. Se, em muitas das instalações sonoras de 2,4 RIBEIRO, António Pinto, Por exemplo a cadeira- ensaio sobre as artes do corpo, pp. 19/20. 215 ANDERSON, Laurie, palavras retiradas do texto Imageries, de Douglas Crimp, publicado pela primeira vez em 1979, in WALLIS, Brian (ed.), Arte Después de La Modernidade - Nuevos planteamientos en torno a la representación, p. 175, trad, livre. 120 Laurie Anderson, o público é indispensável para as activar, através de sistemas de sensores, é fundamental termos presente que todo o seu trabalho nos remete para o circo, numa perspectiva teatral, e centra-se no registo da presença como forma de estabelecimento de sentido. Thomas Hess disse que os seus teatros precisam do público para ficarem completos216. Meredith Monk trabalha num processo em quase tudo semelhante ao da dança ou dos ambientes de Laurie Anderson, mas expressando-se por meio da voz. Toda a sua obra nos remete para ambientes que provocam emoções que nos transportam para viagens em diferentes atmosferas - os pássaros e a natureza, as memórias dos afectos, o segredar ao ouvido. A produção das óperas apela, de imediato, à ideia de espectáculo total, de Wagner217. «Por vezes, penso que uma das belezas da performance está no facto de incendiar o espaço e o tempo e logo, depois, desaparecer2™». Esta efemeridade dos momentos criados pelas acções intensifica-se no trabalho de Meredith Monk por ter sido, nos anos 60, uma pioneira do site-specific. A escolha criteriosa dos espaços e o abandono da ideia de palco e plateia e de uma visão frontal da acção, levam-na a organizar workshops, a partir de 1966, quando foi viver para Nova Iorque, e a utilizar fábricas abandonadas, estações de metro, o Battery Park ou a Staten Island Ferry, numa espécie de expedição urbana. Nas suas intervenções, alterando e ajustando as performances aos espaços, procurava incorporar a memória como parte integrante das experiências. Blueprint, 1967, Grupo 212, Woodstock, Nova Iorque; Juice: a theatre cantata in three installments, 1969, no Guggenheim Museum, Minor Lathan Playhouse e The House Loft, em Nova Iorque; Needlebrain Lloyd and The Sistems Kid: a live Movie, com 150 performers, 1970, em diversos espaços de Londres; Vassel: an opera epic, com 75 performers, 1971, no sótão de 216 -that such theatrical art requires an audience to complete it-, RUSH, Michael, New Media in Late 20th-century Art, Thames & Hudson, Londres, 1999, p. 137. 217 "El concepto obra de arte total, utilizado por primera vez por Richard Wagner para reflejar su voluntad de arte y su vision de la union de cada arte en la obra de arte del futuro en sus escritos de Zurich (1850/51), nunca se ha definido teoricamente y asi no solo en la literatura especializada sobre arte se ha venido a convertir en un concepto vacio utilizabie a cualquier efecto. Un mítico concepto omnipresente en las típicas consejas ai amor de la lumbre, un invitado bien recibido y acogido ante la actual "perdida de centro"", SZEMANN, Harald, Tendência a la obra de arte total, in GUASCH, Anna Maria (éd.), Los Manifestas del Arte Posmoderno - textos de exposiciones, 1980-1995 (trad.: César Palma), col. Akal-Arte Contemporâneo, n. °26, Ediciones Akal, Madrid, 2000, p. 186. 218 MONK, Meredith, in KAYE, Nick, Site-Specific Art - performance, place and documentation, Routledge, Taylor & Francis Group, Londres e Nova Iorque, 2000, p. 203, trad, livre. 121 Meredith Monk, numa garagem e na Wooster Street de Nova Iorque; American Archeology #1: Roosevelt Island, 1994, Lighthouse Park, Renwick Ruin e Roosevelt Island, em Nova lorque, são uma selecção de trabalhos realizados por Meredith Monk na sua colaboração com Nick Kaye para a elaboração do livro: Site-specific Art - performance, place and documentation. Depois da apresentação de Juice: a theatre cantata in three installments, Meredith Monk pensou repor a peça com uma reformulação. Tinha conhecido Bruce Nauman e Richard Serra no Festival de Arte de Santa Barbara, em San Francisco, em 1970, e como sabia que ambos se interessavam pelo corpo como elemento escultural e por este tipo de intervenções, pensou convidar os dois artistas a colaborarem consigo. Pediu a Bruce Nauman e a Richard Serra que interviessem fisicamente, de forma intercalada, numa tentativa de suspender a continuidade das acções. Este trabalho em conjunto resultou numa acção que combinava peças vocais breves à capela, com movimentos, frases gestuais e um solo de berimbau, dando ao conjunto uma expressão de continuidade. A sensação de vácuo, de estruturação compositiva do espaço ordenado, repetitivo, progressivo, provocada pelas obras de Arte Minimal, remete-nos para um confronto deste movimento com os seus antecedentes. A utilização de determinados meios e materiais como resposta aos seus pressupostos ideológicos permitem uma identificação de relações com a Pop art. Existe, na Minimal, por exemplo, um interesse pelo readymade duchampiano, mas, contudo, há que distinguir a atitude dos artistas minimalistas e pop perante o readymade. Os artistas pop trabalhavam com imagens imediatas e mediatizadas (fotografias de artistas de cinema ou imagens de banda desenhada, marcas de produtos comercializados,...) e os minimalistas com os conteúdos num tratamento do readymade como uma unidade abstracta, pelas suas implicações estruturais. A ideia de ausência de significado das obras minimalistas, que se opõe a toda a formulação escultórica do início do século XX, quebrando com o conceito de interioridade do conteúdo, fez com que o Minimalismo fosse, diversas vezes, apelidado de neodadaísta e niilista. Esta conjectura ficou relacionada com Frank Stella, Jasper Johns, Robert Morris, Dan Flavin, Richard Serra, Sol LeWitt, Carl Andre, 122 Denis Oppenheim, Robert Smithson, Michael Heizer, Walter De Maria, Eva Hesse entre todos aqueles que são integrados nesse movimento. Flag (1954-55), Painted, Alvo com quatro rostos (1955), Sem Título (Latas de cerveja Ale) (1960) ou Bronze (Savarin Can) (1960), de Jasper Johns e Three Rulers (1963), de Robert Morris, são obras que associamos ao objecto readymade anunciado por Marcel Duchamp. Por outro lado, na abordagem ao readymade como unidade abstracta, a utilização de materiais produzidos industrialmente - mais precisamente os usados em construção civil permitiram o desenvolvimento de trabalhos que denunciam a exploração de conceitos como peso - Sem Título (Vigas em L) (1965), de Robert Morris, Equivalem VIII (1966) e 8 Cuts (1967), de Carl Andre, Adereço de 1 tonelada (Castelo de cartas) e Placas de aço empilhadas (1969), de Richard Serra - e espaço ontológico de estruturas axiomáticas (Foster, Hal, 1983) - nos trabalhos de Dan Flavin e Bruce Nauman, nas intervenções na natureza de Christo, Robert Smithon, Michael Heizer e Walter De Maria ou nas obras públicas de Richard Serra. É também nesta altura que os termos landscape e not-landscape são explorados, remetendo-nos para os nâo-lugares {marked sites) de Smithson, de que é exemplo Spiral Jetty, 1970. Eva Hesse é, provavelmente, a única artista feminina que integra este movimento. Mas as suas construções, embora toquem em muitos pontos os pressupostos minimalistas, são geralmente orgânicas e viscerais, impregnadas de uma manualidade arcaica que nos sugerem mais uma arte processual219. O trabalho desta autora, no que se relaciona com o processual e o feito à mão (numa relação directa do corpo com as matérias), com os percursos propostos por Richard Serra, Robert Morris e Bruce Nauman, bem como com as intervenções na natureza - que surgem como não-lugares, por parecerem, geralmente, parte da própria natureza sem a intervenção humana, mas que são construções megalómanas, quer em termos de dimensão como através dos meios técnicos que implicam - foram, de certa forma, responsáveis pelos conceitos que a Land art (europeia) e a Earth art (americana) viriam a explorar: a passagem e o percurso. Uma passagem 2,9 São exemplos desta simbiose entre o minimal e o processual, as séries Accession e Repetition Nineteen, desenvolvidas nos anos de 1967 e 1968, bem como todas as suas obras Sem Título, da mesma época. Aliás, a ausência de título (Sem Título) é bastante frequente nas obras deste movimento. 123 enquanto percurso no tempo e no espaço experimentada pelo corpo. «A land art explora a "pele do mundo" (RIBON, 1990), e descobre-lhe outras identidades, revela o que a carne do mundo [ou a "carne do visível" (1962) de Merleau-Ponty] esconde220». Quando Christo envolve edifícios e paisagens, não quer escondê-los, mas sim propor uma nova abordagem, uma reconfiguração. As experiências vividas por Richard Long e as obras que daí resultam, atribuem ao "lugar o estatuto de corpo, enquanto a body art dava ao corpo o estatuto de lugar. Estas polaridades cruzadas entre corpo e lugar reforçam a sua natureza ilusória. O corpo é um lugar na medida em que o lugar é um corpo2"». Ao corpo denunciado implicitamente, segue-se o corpo da Body art, «um corpo agora demasiado explícito222». Embora utilizando diferentes estratégias de integração do corpo, atravessando os limites da violência e perversão, a Body art, que supõe uma reacção contra o Minimalismo e a sua redução à neutralidade absoluta, deixa como testemunhos obras de artistas de todo o mundo que atravessam a década de 70 e chegam aos nossos dias: Robert Morris, Bruce Nauman, Dennis Oppenheim, Vito Acconci, Gilbert and George, Arnulf Rainer^ Hermann Nitsch, Wolf Vostell, Marina Abramovic, Gina Pane223 ou ainda Chris Burden224. Sendo a atitude performativa e o uso do corpo como meio elementos determinantes das experiências artísticas desenvolvidas nas décadas de 60 e 70, pode considerar-se que o que nos chega como informação acerca desta época não nos pode satisfazer completamente. A relação ambiental e de envolvência somatossensorial com a maioria das obras implicava, por ser fundamental, a nossa presença real naqueles momentos. Tínhamos que ter estado lá. Como escreveu Germano Celant no texto 1968: em direcção a uma 220 SILVA, Paulo Cunha e, O Lugar do Corpo- Elementos para uma cartografia fractal, p. 32. Ibidem. 222 COSTA, Mario, Corpos e redes, p. 305. 223 Para Gina Pane é preciso assumir a morte para a poder superar e as acções que realizou são, disso mesmo, reveladoras pelas mutilações, feridas que realizava no seu corpo. A dor e sofrimento estão presentes em trabalhos como Acção Sentimental, de 1973 ou O Corpo Presente, de 1975. 221 Este artista levou tão longe os limites de resistência do seu corpo que, em 1971, no happening Srioof, na F Space Gallery, Santa Ana, pediu a um amigo que, com uma pistola, disparasse sobre o seu braço. 221 124 diversidade global, para o catálogo da exposição inaugural, CIRCA 1968225, em Junho de 1999, do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto: «a arte que nasce em 68 é, decididamente, inclassificável porque evolui em relação directa com o presente, libertando o circulo de um sistema comunicativo existente e abrindo-se a uma multiplicidade de intervenções e de teorias, de acções e de matérias, para se oferecer como um procedimento sem limites e sem normas». Os seus artistas «(...)decidiram arriscar e entrar num palco múltiplo correndo o risco de caírem no vazio da aparência e do efémero. Mais do que demonstrar, tiveram a intenção de mostrar com a finalidade não de criarem leitores da arte, mas cúmplices capazes de entrarem no seu environment, nos seus tableaux vivants, ou nas suas landscapes, não como observadores distanciados, mas sim como participantes, prontos a darem alma e corpo ao acontecimento ou à coisa, à acção ou à construção226». A presença efectiva, o espectador-cúmplice e o impacto na percepção, por uma relação directa com as obras de arte, são uma constante nesta investigação e serão temas desenvolvidos nos próximos textos. 225 Parece-me importante fazer referência a alguns acontecimentos que ocorreram neste ano. Mareei Duchamp morre; A URSS invade a Checoslováquia; Martin Luther Jr. é assassinado; deu-se o massacre de My Lai, bem como, o Maio de 68, em França, uma revolução social que implicou greves, agitações estudantis, confrontos violentos, dissolução da assembleia da república francesa, pelo presidente De Gaulle e, consequente, remodelação governamental. 226 CELANT, Germano, 7968: em direcção a urna diversidade global, 1999, pp. 183/191, in Circa 1968, programada por Vicente Todoli, comissariado: Vicente Todoli e João Fernandes, Fundação de Serralves, Porto, 1999, p. 187. 125 3. A Obra de Arte como expressão artística promotora de uma experiência/vivência multissensorial Como foi referido neste texto de dissertação227, Walter Benjamim anunciou, nos anos 30 do século passado, a perda de aura na obra de arte, resultado de uma sociedade industrializada e, consequentemente, massificada, que anula a diferença e a capacidade do perceber diferenciado. Tratada como pura mercadoria, a obra de arte perde, igualmente, o seu valor simbólico transformando-se naquilo a que Walter Benjamim chamou de alegoria que, segundo ele, é um fenómeno que se pode atribuir directamente ao uso de tecnologias reprodutivas. Walter Benjamim defendia a obra de arte enquanto Gehalt, sem tradução directa para o português, que pode ser definida como uma fusão, sem diferenciações de predominância, entre conteúdo (Inhalt) e forma (Gesfa/f)228. A Gesía/t «é um sistema diacrítico, opositivo, relativo cujo pivô é o Etwas, a coisa, o mundo, e não a ideia» (MERLEAU-PONTY, 1959) que implica a relação de um corpo perceptivo com um mundo sensível. Partindo, por um lado, da ideia benjaminiana de Gehalt e, por outro lado, do entendimento da obra de arte como uma forma de comunicação multidireccional - na qual o artista utiliza o vasto dicionário da linguagem plástica229 para registar as suas mensagens, propondo alguma coisa que vai modificar quem as recebe, na medida em que o receptor se pode ver, rever, reconhecer, numa experiência com a obra e consigo, habitando-a, modificando-a e modificando-se, actuando, agindo sobre a obra, e permitindo que esta aja sobre si - tratarei de dar continuidade ao tema do capítulo 2. A 227 Remeto o leitor para o texto 2.2. A Angústia do corpo - Alguns condicionamentos do uso ao uso do corpo, p. 103. 228 Estas problemáticas encontram-se expressas numa compilação de diversas obras escritas nas décadas de 20 e 30 por Walter Benjamim, numa publicação editada pela Suhrkamp Verlag em 1980. Na trad, portuguesa, BENJAMIM, Walter, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política (trad.: Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto), col. Antropos, Relógio D'Agua Editores, Lisboa, 1992. 229 Nas palavras de Walter Benjamim, «para o reconhecimento das formas de arte, é válida a tentativa de as considerar todas como linguagens e procurar a sua conexão com as linguagens da natureza, (...) A linguagem de um ser é o medium em que se comunica a sua essência espiritual», op. cit., pp. 195/196. 127 Indústria do Corpo e a Proposta Multissensorial, pela apresentação e análise de propostas artísticas que poderão ser consideradas multisensoriais. Com efeito, nestas obras, o espectador é expectador, expectante, na provável e desejável expectativa de um acontecimento ou experiência em que poderá desfrutar, atento e predisposto, o que o artista lhe propõe. Por outro lado, pode passar-se o mesmo com o artista: este cria expectativas acerca do resultado da sua obra e, quando a apresenta, aguarda a sua fruição, por ter promovido uma obra que é, ao mesmo tempo, uma concretização, um acontecimento e uma acção. Numa fusão multidisciplinar das diversas áreas do pensamento psicanalítico, fenomenológico, sociológico, psicológico e estético -, e das práticas artísticas - música, cinema, arquitectura -, encontra-se no fruidor o elemento imprescindível da acção que através dos sentidos participa activamente nos esquemas criados. As obras e os percursos dos artistas que seguidamente apresento não prescindem do receptor, e é possível dizer que precisam deste para existirem. São interactivas e multisensoriais na medida em que existe uma interacção entre os estados físico e mental (POPPER, Karl, 1996), bem como um apelo à acção e ao uso dos sentidos. Por outro lado, as obras que analiso constituem abordagens diversas no que diz respeito a noções como ambiente, escala, especificidade espacial (lugar, local), noções resolvidas de modo diferente conforme o esquema conceptual do autor. Porém, todos os autores exploram o tema do corpo: o seu corpo, o corpo do outro, ou ambos. 1?8 3.1. Louise Bourgeois: o discurso náo narrativo e a autobiografia; os sentidos como linguagem simbólica do corpo-fragmento; a obra artística como sedução e como sublimação. «O meu nome é Louise Josephine Bourgeois. Nasci a 24 de Dezembro de 1911, em Paris. Todo o meu trabalho dos últimos cinquenta anos, todos os meus temas, encontraram a sua inspiração na minha infância. A minha infância nunca perdeu a sua magia, nunca perdeu o seu mistério, e nunca perdeu o seu drama«, BOURGEOIS, Louise, in Louise Bourgeois - Destruction of the father Reconstruction of the father, na abertura do livro, trad, livre. 129 «Para mim, a escultura é o corpo. O meu corpo é a minha escultura230». A linguagem escultórica e a sua função espiritual serve Louise Bourgeois no desenvolvimento do tema do sonho em forma de pesadelo. É difícil ser um artista e dosear a abertura da porta dos sonhos. O exílio ou a alienação transformam-se em condição necessária, mas não suficiente, para o trabalho231. A utilização de um vocabulário para comunicar que apresenta signos e símbolos directamente ligados aos cinco sentidos232, serve à concretização de formas que, provavelmente, serão entendidas apenas por alguns. Nesse sentido, os seus trabalhos são simbólicos e devem ser entendidos como tal. «Para o espectador entender a linguagem usada pelo artista tem que ter uma atitude atenta e receptiva, empenhamento, resistência e paciência, e se mesmo assim não sou entendida, não me importo - há coisas que um artista não coloca no trabalho - as sucessivas analogias ou associações desde os objectivos aos símbolos vão ser lidas e interpretadas leite que transborda (mãe) água (primavera na terra da mãe)- baba de caracol lava de vulcão - criam uma ambivalência de sensações que vão do prazer ao medo233». O que o espectador pensa interessa-lhe, mas ela não faz coisas para os outros, faz para si própria e daí nunca ter-se interessado pelo rumo da sua carreira artística, restando aos críticos e historiadores a possibilidade de estabelecer qualquer tipo de associação directa a movimentos ou correntes. «O trabalho deve suportar-se a si próprio - sem explicações, com vida própria, para o bem e para o mal - a intenção de quem o realiza já não interessa - a mensagem não deverá ser compreendida ou esquecida. O artista morre e o trabalho continua o seu caminho. (...) O conteúdo é um interesse do corpo humano, o seu aspecto, as suas mudanças, transformações, o que precisa, o que sente - as suas funções. O que protege, o que sente - o seu habitat. 230 BOURGEOIS, Louise, Self-expression is Sacred and Fatal, 1992, in Louise Bourgeois Recent Works, em representação do Pavilhão dos Estados Unidos, 45a edição da Bienal de Veneza, 1993, org.: The Brooklyn Museum, comissariado americano: Charlotta Kotik, ed.: Elaine Koss, The Brooklyn Museum, 1993, nota introdutória, trad, livre. 231 «ft is difficult to be an artist and close the door to dreams-, (7 Setembro 1950): «£x//e or alienation is a necessary (tho' not sufficient) condition of work", (14 Setembro 1950), BOURGEOIS, Louise, Selecção de notas de um diário, 1949-1954, in Louise Bourgeois - Destruction of the father Reconstruction of the father, p. 57. 232 "Vocabulary is how we communicate, find ways to stimulate through signs and symbols, directed at our five senses», BOURGEOIS, Louise, Form, late 1960s, op. cit., p. 75/76. 233 Ibidem, trad, livre. 130 Todos estes estados de ser, perceber, e fazer são expressados pelo processamento do que nos é familiar e têm a haver com o tratamento que damos aos materiais234». Louise Bourgeois teve e tem um percurso solitário que só foi apresentado e realmente descoberto a partir dos anos 80235. Foi enquadrada em diferentes movimentos como o expressionismo abstracto ou o surrealismo, sendo, por vezes, conotada com a arte feminista236. A sua reacção a estas associações ficou expressa em 1993, quando afirmou, numa entrevista, não ser surrealista, mas, existencialista237. O seu trabalho é o resultado da sua experiência de vida enquanto mulher, filha, esposa e mãe, o que não faz dela uma artista feminista, mas, talvez, uma autora feminina. O uso da tapeçaria, por exemplo, será um elemento revelador desse universo feminino, uma técnica, segundo Louise Bourgeois, um instrumento plasticamente flexível, tendencialmente escultural e tridimensional. A sua relação com este meio, técnica e materiais é muito pessoal. O facto dos seus pais terem sido restauradores de tapeçaria, bem como a sua estadia em África, introduzem a ideia de tenda no seu vocabulário plástico238. Os espaços, as tendas, as celas, tornam-se lugares de partilha e «o espaço do espectador torna-se no espaço 23,1 Ibidem, trad, livre. "Do you think there is something particular about how art was looked at in the 1980s that made it possible to see your work afresh? Yes, it is a younger generation who did that. It is not my colleagues, people of my age, or older, it is the younger people who adopted me - and I adopted them. I am also grateful for the fact that my former work, which was anti-establishment, appeared very suddenly and new when it was actually twenty-five years old. So I was not a discovery I was a rediscovery. (...) Does being the exception to the rule give you pleasure? Yes, yes, I am quite the gambler-, op. cit., pp. 196/197. 236 Num texto preparado, em 1985, para uma conferência no Massachussets Institute of Technology, Cambridge, Louise Bourgeois escreveu: «There is no feminist aesthetic. Absolutely not! There is a psychological content. But it is not because I am a woman that I work the way I do. It is because of the experiences I have gone through. The women got together not because they had things in common but because they lacked things - they were treated the same way. I think this is the story of all minorities. Because when you get in the group there was so much rivalry. Space does not exist, it is just a metaphor for the structure of our existence. A spiral is completely predictable. A knot is unpredictable. When you are angry you become not sinful but ugly - take out a mirror-, op. cit., p. 220. 237 «People misunderstand my work. I am not a surrealist; I am an existentialist-, BOURGEOIS, Louise, in Louise Bourgeois: The Locus of Memory, works 1982 - 1993, catálogo da exposição, comissariado: Charlotta Kotik, Terrie Sultan e Christian Leigh, The Brooklyn Museum, Harry N. Abrams, Incorporated, Nova Iorque, 1994, p. 28. 238 «In Africa, I remember the caravan blacks who wear clothes like tents and fold them around themselves, even sleep under them-, BOURGEOIS, Louise, in Louise Bourgeois - Destruction of the father - Reconstruction of the father, p. 89. 235 131 do autor. Entra no espaço e manipula os objectos que lá se encontram o que se torna num privilégio para o autor239». Lair e Cell são dois termos que emprega para denominar os ambientes que constrói. Existem diversas variações plásticas destas duas séries que passam pela utilização de diferentes materiais e tecnologias e diferentes escalas. Em 1962, por exemplo, realiza uma pequena escultura em bronze em forma de pirâmide, de textura orgânica e visceral com uma pequena abertura que sugere o interior. A pequena escala deste Lair transforma-o num objecto portátil, mas por outro lado, Articulated Lair (1986) é uma construção de um conjunto de 47 objectos em borracha preta distribuídos numa sala, sem forma fixa. «£ completamente flexível, (...) cada um deles com 3 dobradiças. (...) É para pessoas sem estratégia. (...) Não merece o título de estratégia, de certeza. Para mim, estratégia é sempre um movimento, não através do si, mas através do outro. (...) É um belo lugar. (...) Se esfe for destruído, eu faço oufro240». A principal diferença entre os Lairs e as Cells é que, nestas últimas, Louise Bourgeois constrói espaços realmente arquitectónicos. Esculturas penetráveis com paredes exteriores, janelas, porta de acesso ao interior que permitem a nossa entrada e se caracterizam pela perturbadora sugestão de dor, definidora de toda a obra de Louise Bourgeois. Frustração e sofrimento tornados visíveis nas suas formas e nos seus espaços. Trabalhar o corpo humano será, de certa forma, trabalhar no âmbito do erotismo: não sendo isso o que lhe importa é, porém, por si encarado como uma consequência natural que deriva do uso do corpo. Interessam-lhe os mecanismos do corpo e dos movimentos do corpo, dos acontecimentos, dos impulsos, dos sentimentos, dos estados emocionais, o si que revela o que está dentro do corpo: o erotismo é também conhecimento, havendo algo de erótico na aquisição desse conhecimento e que pode ser revelado pelos estados emocionais. Embora a sua obra seja, notoriamente, autobiográfica, revelada pelo seu discurso e pelos objectos e ambientes que constrói, nunca o aborda explicitamente, narrativamente. Os seus desenhos, ilustram as suas vivências 239 240 132 Op. cit, p. 104, trad, livre. Op. cit., pp. 152/153, trad, livre. de forma exemplar, funcionando como diários visuais, comportamentos gráficos que considera mais verdadeiros do que as palavras. Na obra de Louise Bourgeois, os personagens não têm rostos nem nomes, são, simplesmente, símbolos com sexo feminino ou masculino. Numa linguagem simbólica, trata de relações e de afectos, como em She-Fox (1985), obra na qual uma criatura assassina maltrata uma figura feminina, que metaforicamente é a sua mãe, criatura que não parece ter outro motivo que não seja o desejo de ser amada. Os seus trabalhos transmitem e suscitam, pelo seu lado visceral, protésico, soturno e misterioso, uma violência parada e um medo contido e angustiado. A forma humana aparece sempre incompleta. O corpo-fragmento sugerindo a amputação, a prótese, a parte, e de que são testemunhos Nature Study's, Leggs, ou Mamelles, realizados na década de 8024'. Acerca do seu processo criativo considera que «primeiro, tem que se conceptualizar o que se quer fazer; tem que se ter a ideia. (...) O meu problema é que è absolutamente impossível para mim, pô-los juntos numa sequência, organizar o meu material, ficando com uma certeza... Eu não estou a tentar convencer ninguém de nada - não posso. Tudo o que posso fazer é ter estes flashes de intensa experiência que se representam por isto, por isto e por isto. Isto é uma das bases da repetição no meu trabalho - ter que fazer uma desintegração de todas estas partes é, para mim, impossível porque tomo sempre uma posição, que mexe tanto comigo, que o processamento do pensamento não tem espaço. É pensando a propósito daquilo que eu perdi, pedacinho por pedacinho, à noite ou em viagem, (...) que eu encontro uma forma de reparar a dificuldade, fazendo uma peça. A um determinado nível, isto é concepção - a arte é acerca da vida. (...) Não é dedutivo, é intuitivo - tens que 1er Pascal!242» «A arte vem da vida. Vem do problema de seduzir pássaros, homens, aranhas - tudo o que quiseres. É como a tragédia de Corneille, onde z " «/ have many fears, but under certain circumstances, I find great release in aggressiveness. I do not feel guilty at all - until the next morning. So I am violent, and I have fantastic pleasure in breaking everything around. I freak out the next day, because it was so bad to do that, it's true. But while it goes on, I enjoy it. I do. I'm not afraid of violence. That is self expression. That is all I want. So, I get it. And then later on, I try to make myself, make my self be forgiven, but, (at] the next provocation (it] starts again. (...) It's really a world of people who are very unhappy because they are unable to be reasonable. And artists are even worse because artists are greedy on top of that. They want recognition, they want publicity, they want all kinds of ridiculous things>', op. cit., p.195. 2K Op. Cit., pp. 158/160, trad, livre. 133 todos perseguem alguém. Tu gostas de A, e A gosta de D, e D gosta de... Tendo sido uma filha de Voltaire e uma educação no racional século XVIII, acredito que se trabalhares muito, o mundo pode ser melhor. (...) É o que me faz continuar. A resolução nunca aparece; é como uma miragem. Não atinjo a satisfação - se conseguisse parava e era feliz. Eu trabalho duramente e nunca, nunca, levo as pessoas a compreender o que significa. Eu quero que elas compreendam a tenacidade como uma virtude, como um fim em si mesmas. Mais do que isso, elas têm que compreender que eu tive que equacionar o sexo e o assassínio, o sexo e a morte. Elas podem nunca compreender o problema desta equação. Eu tenho que ser flexível comigo mesma, não posso persuadir como um mistério, mas mantém-se o mistério, e a persuasão... o medo da morte destrói o sentido de limite do sexo. É mesmo movimento, quando a morte e o sexo são um, que eu quero conseguir no meu trabalho. Eu não peço que o meu trabalho seja comunicação, porque também funciona como um jogo. Eu não jogo o jogo da comunicação, porque haverá sempre um traído na comunicação como no amor2"3». A dor é totalmente explorada: dor emocional, dor física, dor mental, dor intelectual. 0 medo gera a dor, que atrai e repele, que integra e desintegra. Como metáforas da dor e do medo, as Snakes - aranhas fêmeas que têm uma má reputação ligada à violência e à morte - são recursos para a sua própria reabilitação, ao sentir-se, por vezes, duramente criticada. Ampliouas de tal forma que, embora solitárias, atingem uma força dominadora que nos engole. Uma metáfora de si mesma, dos seus medos, numa reacção através da força demolidora. Nas Cells, Glass Spheres and Hands (1990/93), Cell II (1991) ou You Better Grow Up (1993), contamos com a presença de mãos realizadas em mármore, que dir-se-ia, como a dor, são indestrutíveis244. A mármore pela sua 243 Op. cit., pp. 161/162, trad, livre. «the hands, tightly clenched in pain, are made of stone. Pain, like stone, is indestructible. It comes from the rage of not knowing how to understand, of not knowing how to learn. There is this inner resistance that keeps me from learning, that keeps me from understanding. The resistance itself is unconscious and my inability to progress puts me in a state of rage. You confuse the world of emotions, which has a personal logic, with the world of the intellect, which has a universal logic. It is the infusion that drives you to rage. It's crystal clear. I think the rage to understand comes from the fact that you do not ask the right question. You will never find the right answer if you do not ask the proper question. It's like trying to open a door with the wrong key. Here is nothing wrong with the key, and there is nothing wrong with the door", texto publicado em 1991, Carnegie Museum of Art, Pittsburgh, 244 134 brancura e pureza, não deixando de ser fria, pode tomar-se sedutora, como, por exemplo, o Beijo de Rodin, referido na abertura do capítulo 1- Emoção e Inteligência Emocional pelo processo do Conhecimento do Corpo e dos Sentidos, deste trabalho. Mas, Louise Bourgeois, apelando ao uso dos sentidos, deixa a sedução para o cheiro. Na Cell II, por exemplo, usa frascos de perfume, junto às frias e duras, mas perfeitas, mãos de mármore. Esta oposição é propositada. «É a evanescência do prazer, o efémero prazer do sentido do cheiro. Não o podes agarrar; é tão subtil que não o podes tocar. Não o podes ouvir, ver ou provar. Os cinco sentidos apresentam cinco mundos totalmente diferentes. Um não pode substituir o outro245». Esta frase de Louise Bourgeois pode resumir as motivações para toda a investigação que é apresentada neste trabalho e justificaria, por si só, a realização do primeiro capítulo deste texto de dissertação. Nos seus trabalhos, o prazer e a dor tocam-se e estão, ao mesmo tempo, separados por uma barreira muito ténue, como na dualidade amor e ódio. As tensões criadas podem criar estados de euforia e de aparente felicidade. As camas com corpos, ou partes de corpos sobre elas, denunciam a dor física, a doença, o sofrimento. Quem visita estes espaços, que insinuam a existência de alguma coisa no seu interior conseguida com a presença de janelas246, toma-se um voyeur, penetra na privacidade e intimidade, mas tornase também uma companhia. Os corpos-doentes precisam de compaixão e afecto247. Twosome (1991 ) pode ser interpretado como uma escala de relações entre a família e a casa. É um mundo fechado que medita sobre estas no catálogo da exposição no Carnegie International, comissariado: Lynne Cooke and Mark Francis, p. 60, op. cit., pp. 205/208. 245 Op. cit., p. 207, trad, livre. 246 O espaço-casa, quarto, intimidade, denuncia vida. Recordo-me de uma frase de Gaston Bachelard, in BACHELARD, Gaston, A Poética do Espaço (tit. orig.: La Poétique de l'Espace, Presses Universitaires de France, 1957, trad.: Antonio de Pádua Danesi), col. Tópicos, Livraria Martins Fontes Editora, São Paulo, 1989, p. 51. «A lâmpada à janela é o olho da casa", escrita a partir da análise das Obras Completas de Rimbaud e da sua afirmação: «Nácar vê». A frase citada, de Bachelard, foi o título de um trabalho e de uma exposição que realizei em 1997. 247 «Sick people die of the need of companionship, a stroking hand, a hungering for compassion. He runs away from people, and people run away from him out of fear of contagion. So he is isolated by his own fear and by that of others. The transparent glass represents a sickness. When you're sick, people don't like you; you're not desirable. My mother was ill and used to cough up blood; I helped her to hide her illness from my father-, BOURGEOIS, Louise, in Louise Bourgeois Destruction of the father - Reconstruction of the father, p. 208. 135 palavras. Uma pessoa sozinha é um objecto, não cria relações com nada. Duas pessoas constituem um ambiente e fazem parte dele. «Nós nascemos sós e morremos sós. O valor do espaço está entre aféeo amor. Isto justifica que geometricamente falando, o circulo é um. Tudo vem do outro. Tu tens que estar disponível para alcançar o outro. Senão estás só... O abandono é o trauma da solidão. Eu vou acertar-te tão duramente que tu nunca vais perceber o que te aconteceu (a um estudante)2**». Como privilégio, benção, libertação249, a arte de Louise Bourgeois anuncia-se, simultaneamente, sedutora e promotora de sensações de volúpia, perturbante e irónica. É, psicologicamente, altruísta e espiritual, algo que se revela numa necessidade de expressão que, atravessando a punição e a mutilação, ou relacionando, eroticamente, prazer, sexo e morte, procura tomar-se curativa. Através das memórias e com um medo que parece suplantá-la, pune-se e mutila-se defensivamente, para alcançar o amor. Esta defesa do eu surge como uma sublimação, representada simbolicamente, nas suas obras, em chamamentos, dádivas e partilhas, de amor: «Fazer com que as pessoas te amem a partir da tua arte250». 2,8 Op. cit., pp. 130/132, trad, livre. "Privilege means that you are a favorite, that what you do is not completely to your credit, not completely doe to you, but is a favor conferred upon you. Privilege entitles you when you deserve nothing. Privilege is something you have and others don't. Art was a privilege given to me, and I had to pursue it, even more than the privilege of having children. The whole art mechanism is the result of many privileges, and it was a privilege to be part of it... The privilege was the access to the unconscious. It is a fantastic privilege to have access to the unconscious. I had to be worthy of this privilege, and to exercise it. It was a privilege also to be able to sublimate. A lot of people cannot sublimate. They have no access to their unconscious. There is something very special in being able to sublimate your unconscious, and something very painful in the access to it. But there is no escape from it, and no escape from access once it is given to you, once you are favored with it, whether you want it or not... To escape you have to have a place to go. You have to have the courage to face risk. You have to have independence. All these things are gifts. They are blessings... Sublimation is a gift; lots of people cannot sublimate. The life of the artist is basically a denial of sex. I really think my power of sublimation, my power of total recall, is due to the education my parents gave me the discipline and also the notion of what you can expect», op. cit., p. 164. 250 BOURGEOIS, Louise, 20 de Agosto de 1993, op. cit., p. 367, trad, livre. 249 136 3.2. Bruce Nauman: corpo, espaço e paradoxos da percepção. «A/a minha obra trabalho a cólera que a condição humana provoca em mim», NAUMAN, Bruce, in Bruce Nauman, exposição itinerante, org.: Walker Art Center, Minneapolis, Minnesota, colaboração: Hirshhorn Museum e Sculpture Garden, Washington DC, comissariado: Kathy Halbreich e Neal Benezra, ed. do catálogo: Joan Simon, Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid, 1994, p. 27, trad, livre. 137 Bruce Nauman (Califórnia, 1941) trabalha o tema do corpo, o seu corpo, numa experiência do si {self), na difícil mas estimulante tarefa de um encontro consigo próprio, implicadora de um profundo autoconhecimento e promotora de um melhor conhecimento dos outros, apresentando-a em concreto, usando o seu corpo enquanto suporte de uma experiência, ou propondo ao fruidor da obra uma experiência do corpo do próprio fruidor. A obra de Bruce Nauman desenvolve-se pressupondo que a base da autoconsciência humana é a percepção, susceptível de distorções cognitivas e enganos de precisão e sentido, em que se reconhece uma identificação com a ideia de fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. Sendo um bom exemplo do uso do vídeo como expressão artística, conotá-lo com este meio é profundamente redutor. Defende a importância do uso dos materiais e dos meios na medida em que viabilizam a ideia. Ficar preso a eles toma-se, inclusive, limitador. O vídeo é apenas mais um meio de processamento artístico251. Podemos organizar a obra deste autor estabelecendo diferentes tipos de abordagem do corpo. Em Neon Templates of the Left Hand of My Body Taken Ten Inch Intervals, 1966 e From Hand to Mouth, 1967, Nauman remetenos para o corpo-fragmento. Na obra From Hand to Mouth, um relevo em cera que apresenta o molde de um fragmento contínuo do corpo de Nauman, desde a boca, cuja inclinação do rosto e do pescoço sugere a orientação do olhar sobre a sua mão direita, até à extremidade desta. A comunicação entre a mão e a boca parece ser o que se retira de uma primeira análise, mas o título remete-nos para a direcção oposta, na medida em que é da mão que sai o alimento para o corpo. A mão e a boca são utilizados recorrentemente na obra deste artista, evidenciando, em diferentes meios de expressão, o seu papel de comunicadoras e mensageiras. Em Eating My Words, trabalha as palavras tridimensionalmente, e trata-as, metaforicamente, como objectos, numa acção em vídeo de experiência do corpo. Nauman, sentado à frente de uma mesa de 251 «For Nauman and for others of his generation, new modes of expression were constantly and ruthlessly pursued in order 'to figure out how to proceed, ' as he says. Uninterested in simply rehashing traditional problems with painting (he admired the way De Kooning explored in paintings his own reactions to Picasso), Nauman was 'interested in what art can be, not just what painting can be. The materials, therefore, were at once unimportant and all important and all important in that there were no limitations on what could be used to make art-, RUSH, Michael, New Media in Late 20th-century Art, p. 102. 138 cozinha, come palavras feitas em pão, depois de barrá-las com compota. A materialização das palavras, a transformação de palavras em formas, é visível, também, em Waxing Hot, pela criação de um jogo psicológico entre matéria, sentido e forma252. Revolving Upside Down, 1968, Slow Angle Walk (Beckett walk), 1968, são trabalhos em vídeo nos quais Nauman apresenta experiências do seu corpo em diferentes espaços, num jogo de manipulação do tempo, do espaço e dos sentidos. American Violence, 1981-82; Having Fun/Good Life, Symptoms, 1985, são néons com palavras, que mostram uma vertente de denúncia e crítica social e política. Numa contraposição com Fountain de Marcel Duchamp, Bruce Nauman apresenta Self-Portrait as a Fountain (1966-70). Uma imagem da parte superior do seu corpo, em suporte fotográfico, esguichando água pela boca. Window or Wall Sign (1967), é um trabalho em néon, igualmente irónico, atribuindo à oferta artística o papel de satisfação estética, onde se pode ler: «O verdadeiro artista ajuda o mundo revelando as verdades místicas» («The true artist helps the world by revealing mystic truths»). Uma das suas obras mais pertubadoras, no sentido da crítica social e dos costumes, é Clown Torture, de 1987. Ao entrarmos numa sala fechada deparamo-nos com vídeo projecções de grande dimensão nas paredes laterais bem como dois pares de monitores empilhados e colocados frontalmente. Pela quantidade de projecções simultâneas, pelas diversas velocidades de projecção dos vídeos, pela inversão de duas das cinco acções distintas - Clown Taking a Shit - Pete and Repeat; No, no, no, no; Clown with Goldfish Bowl; Clown with Water Bucket and Confetti - é criada uma cacofonia de imagem e som que sai de três pontos diferentes da sala. Os temas sâo os recorrentes da obra deste artista: vigilância, situações fisicamente insustentáveis (por exemplo, perdas de equilíbrio em passeios cobertos de gelo), interrogatórios, torturas e jogos absurdos com palavras. Em World Peace - Projected (1996), Nauman utiliza cinco projecções de vídeo de grande formato, nas quais vemos rostos de actores que comunicam entre si e com os espectadores (alguns são surdos-mudos). 252 "Waxing Hot, one sees the artist's hands in the process of applying wax. to individual, standing wooden letters that spell 'hot'. (...) With expressions providing imagery, words take shape», PAPADAKIS, Andreas, FARROW, Clare e HODGES, Nicola, New M - An International Survey, Academy Editions, Grã-Bretanha, Londres, 1991, p. 34. 139 Frases simples, remetendo para Beckett, são trocadas entre eles, numa montagem acelerada que difunde a imagem visível de um écran para outro. O espectador é convidado a circular pelo espaço. World Peace - Received, do mesmo ano, é a obra-gémea da anterior com cinco monitores de televisão, dispostos em circulo que convidam o espectador a sentar-se no banco que se encontra ao centro, fornecendo-lhe um ambiente de alguma intimidade, numa relação televisão/telespectador com os actores que aparecem nos monitores. As mesmas frases e gestos são emitidas com a montagem diferente: é submetida a um ritmo tão rápido que não permite a assimilação dos conteúdos. Numa segunda parte da sua obra, Bruce Nauman, trata especificamente o espaço, trabalhando aspectos da percepção visual, espacial, e do corpo do fruidor. Quando entramos na sala onde se encontra Green Light Corridor (1970-71), penetramos num espaço de luz verde do qual se destaca uma parede recortada donde surge um clarão. Ao aproximar-nos apercebemo-nos, embora ofuscados pela intensidade da luz, de um corredor muito estreito que nos provoca um jogo de escalas e de ausência de dimensão espacial. Penetrá-lo suspende-nos a respiração, por não ser possível divisar, adivinhar visualmente, o seu fim ou limites. Na realidade é muito mais curto do que imaginávamos. Na sequência deste tratamento do espaço-ilusão e do mesmo ano, a instalação na Wilder Gallery, também actua numa «pressão sobre a ideia que o observador tem de si mesmo como "axiomaticamente coordenado" - como estável e imutável em e para si mesmo. A instalação consiste em dois corredores longos e estreitos através dos quais o observador se desloca. Instalada a grande altura na parede, numa das extremidades do corredor há uma câmara de vídeo, enquanto no outro extremo, colocado no chão, há um monitor que transmite a imagem imediata captada pela câmara. Esta, obviamente, é a imagem do observador no seu trajecto pelo corredor em direcção à tela do monitor. Mas a imagem de si mesmo em direcção à qual o observador caminha é uma imagem de costas; e à medida que ele se aproxima de seu próprio reflexo, a imagem de "si mesmo" vai recuando. Quanto mais ele se aproxima, menor vai ficando a imagem, uma vez que se está afastando da 140 câmara, a fonte da imagem. Esse sentido de um centro em movimento localizado no corpo do próprio observador é outra investida contra as convenções da escultura253» preconizada por Nauman. Nos exemplos descritos, Bruce Nauman, para além das críticas sociais e políticas, denuncia que a manipulação dos meios audiovisuais é também uma manipulação das capacidades de percepção, contrapondo participações diferentes, uma activa e outra passiva. A utilização, em sua defesa, dos meios que motivam as críticas, acentuam estes paradoxos da percepção. Numa procura para chegar à auto-consciência pela auto-percepção, relação do sujeito consigo mesmo, como se segredasse consigo próprio, Nauman procura criar tensões para manter o espectador, não pela manipulação mas pela chamada de atenção. O que lhe interessa são as tensões e a maneira como nos confrontamos com as situações. Acredita que as peças funcionam por criarem tensões que alteram o estado do espectador e, quando isso não acontece, o trabalho não possui uma estrutura conceptual sólida ou bem resolvida. «Não nos devemos contentar apenas com a realização mas também com a apresentação. Penso que a arte começa com a faculdade de comunicar, não uma soma de informações, mas uma experiência que evolua de forma genérica». Bruce Nauman serve-se do seu corpo como objecto. Atravessa a auto-representação, no sentido em que partindo de si, do específico, faz uma abordagem denunciadora da frustração e da cólera que algumas incoerências sociais lhe suscitam, propondo nas suas obras, diferentes situações na tentativa de promover, nos fruidores254, uma energia reactiva. Atribuir qualidades de ilusão perceptiva a um espaço físico concreto é não só uma das características da Instalação, como um pretexto para relacionar as obras de Bruce Nauman com as de Gary Hill255(Califómia, 1950) 253 KRAUSS, Rosalind E., Caminhos da escultura moderna, pp. 288/289. Remeto o leitor para o Apêndice 4, composto por um excerto da entrevista realizada a Bruce Nauman por Michèle De Angelus, entre 27 e 30 de Maio de 1980, na qual é abordada a perspectiva de Nauman relativamente à relação do espectador/fruidor com as suas obras. 255 Suspensão é o conceito que encontro para definir a sensação que os trabalhos de Gary Hill promovem. No contacto que estabeleci com algumas das suas obras, o tempo e o espaço ficam suspensos e deixam-nos suspensos. Com a utilização quase exclusiva do vídeo como suporte físico das suas realizações artísticas, Gary Hill propõe que, através do corpo-objecto e do corpo-sujeito, 25< 141 e de Dan Graham (Urbana, llliuois, 1942), que colocam o fruidor, simultaneamente, em dois espaços, envolvendo-se com o espaço e sentidose envolvido pelo espaço. A actividade sensorial desencadeada pela percepção visual e espacial, como forma de comunicação entre o corpo físico e mental, é marcante no trabalho Tall Ships (1992), de Gary Hill. Este trabalho, sem componente sonora, cria um lugar de interacção espacial entre a obra e o espectador, através do uso de tecnologia video-digital. A confusão provocada no sistema perceptivo do fruidor é tal que quase não distinguimos o real do ilusório. Os personagens que compõem o vídeo podem ser, também eles, reais ou não256. Num corredor com projecções-vídeo nas paredes que o formam, pessoas, de diferentes idades, sexos e etnias, atravessam-no em diferentes direcções, aproximando-se e afastando-se no seu caminhar, dirigindo-se, como nós, não se sabe bem para onde, cruzando-se connosco. haja uma visão física, corpórea da imagem, para que consigamos imaginar «o cérebro mais perto do que os olhos», palavras do artista, in Gary Hill, comissariado: Chris Bruce, textos: Chris Bruce, Lynne Cooke, Bruce W. Ferguson, John G. Hanhardt e Robert Mittenthal, Henry Art Gallery, University of Washington, Seattle, 1994, p. 93. 256 Quando, em 1995, em Nova Iorque contactei com esta obra, numa exposição de Gary Hill no Guggenheim Museum do Soho, pedi desculpa a um dos indivíduos com o qual ia embatendo, pensando que se tratava, como eu, de um fruidor da obra. 142 3.3. Dan Graham: tempo, espaço e ilusão perceptiva. «Vejo o meu trabalho como dois caminhos de espelho que reflectem e atravessam a paisagem do século XX», GRAHAM, Dan, Manga Dan Graham Story - Chapter II - Homes for America, por Fumihiro Nonoruma, ilustrações: Ken Tanimoto, in Dan Graham Works 7965 - 2000, catálogo da exposição itinerante, comissariado: Marie Brouwer e Corinne Diserens, org. e coord.: Museu de Arte Contemporânea de Serralves, co-prod.: Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto; Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris, Paris; Kroller-Muller Museum, Otterlo; Kiasma Museum of Contemporary Art, Helsinkia, 2001, p. 398, trad, livre. 143 Para o pensamento freudiano, o indivíduo projecta-se a si mesmo nas projecções que faz dos outros; este pensamento adivinha-se, na obra de Dan Graham, quer pelo uso de espelhos, reflexos, quer das câmaras em temposimediatos e espaços diferentes. Podemos, como curiosidade, fazer a projecção deste pensamento para o retrato artístico académico e de encomenda. Quantos exemplos e histórias existem de artistas que responderam a encomendas de retratos e cujo resultado final denuncia a imagem do próprio autor? Provavelmente será mais difícil dar exemplo daquelas em que isso não aconteceu. Os espelhos são muito frequentes nas experiências de Dan Graham, eles «reflectem instantaneamente o tempo sem duração...e divorciam, totalmente, o nosso ambiente exterior do nosso consciente interior - o que, opostamente, acontece com o vídeo que relata os dois numa espécie de fluxo temporaF1». Numa abordagem acerca do espaço, é importante reflectir acerca da ideia do interior do espaço. Frequentemente, os jogos propostos por Dan Graham, não precisam de um espaço específico (assunto que será abordado adiante). As peças/espaços/instalações que constrói, salas dentro de outras salas, objectos dentro de objectos, são passíveis de adaptação a diferentes espaços, que requisitam, ao fruidor, somente frequência e atenção. Em Interior Design for Space Showing Videos, de 1968. Gef Ouf of My Mind, Get out of This Room (1968), Bruce Nauman, apresenta uma pequena sala branca, um pequeno quarto de exterior irrelevante que nos remete para o seu interior - um espaço branco e vazio onde se ouve Bruce Nauman a dizer, continuamente, uma frase, o título da obra com o som alterado contínua e discretamente, em volume, velocidade ou tonalidade, que perturba o fruidor cada vez com mais e maior intensidade, tornando-se uma súplica. Na obra de Louise Bourgeois passa-se algo idêntico com as Ce//s, nas quais, todavia, se sente o impacto desde o exterior - circulamos usufruindo da sua materialidade densa, para, depois, entrarmos em universos de intimidade que associam a ideia de quarto à ideia de jaula ou prisão -, remetendo-nos para ambientes dramáticos distintos dos que Dan Graham concebe. 257 PETRY, Michael; OXLEY, Nicola e OLIVEIRA, Nicolas de, com textos de Michael Archer, Instalation Art, Thames and Hudson, Londres, 1994, p. 157, trad, livre. 144 Os interesses de Dan Graham são promovidos pelas relações que estabelece com o espaço arquitectónico. Até ao início da década de 70 o seu trabalho ficou marcado por textos, fotografias (Homes for America, 1966 ou Sunset to Sunrise, 1969), filmes (Sunset to Sunrise, 1969, Binocular Zoom, 1969-70, Roll, 1970 ou Rock My Religion258, 1984), instalações/performances, nas quais o performer domina a acção pelo movimento do seu corpo em movimentos registados por câmaras de vídeo, pelo que o espectador tem acesso aos registos vendo através dos olhos deste. A partir daí, a sua obra é marcada pela participação conjunta de performer e público. Em alguns trabalhos de Dan Graham, há uma grande proximidade estética com os desenvolvidos por Bruce Nauman, nomeadamente, nos vídeos entre Roll (1970), e Slow Angle Walk - Beckett walk (1968), mas há, também, uma diferença fundamental: Dan Graham usa um performer para a acção procurando «mostrar que, gostemos ou não, os nossos corpos estão no limite do mundo259», enquanto Bruce Nauman é, ele próprio, o actor da experiência. Como acima referi, um dos meios de expressão artística que Dan Graham privilegia é a escrita. Alguns dos seus textos são, eles próprios, as obras, como Sheme, Shema, Detumescense, Foams, Extended, ou Income (Outflow) Piece, da década de 60, publicadas em revistas e jornais, numa atitude, muitas vezes crítica e irónica relativamente à sociedade e, mais concretamente, ao meio artístico; outros são descrições e reflexões acerca dos seus trabalhos. Estes textos permitem ao autor uma teorização que deriva em ensaios acerca dos seus pressupostos e estratégia criativa, questionandose e antecipando novos projectos. Relaciona as revistas com a música pop, e 258 Dan Graham interessa-se por um diversificado leque de géneros musicais, como acontece em outras vertentes artísticas, conjugando o que é considerado popular com o erudito. Concretamente na música, interessou-se e trabalhou com os Sonic Youth, Sex Pistols, Clash, Velvet Underground, Jim Morisson, Patti Smith; por exemplo, no vídeo Rock My Religion, que realizou entre 1982 e 1984 e do qual faz o seguinte comentário: «Patti Smith and the Velvet Underground (initially managed by Warhol) reversed the positions of art and rock, seeing rock as able to emerge as an art form which would encompass poetry, sculpture and painting - the old avant-garde - as well as its own form of revolutionary politics. If art was 'only business', then rock should express that transcendental, 'religious' yearning for communal, anti-Establishment art which official art now denied. In the 70s, rock culture became in New York anyway the 'religion' of the avant-garde art world», GRAHAM, Dan, in Dan Graham, comissariado: Christine van Assche e Gloria Moure, Centro Galego de Arte Contemporânea, Xunta de Galicia, Santiago de Compostela, 1997, p. 20. 259 GRAHAM, Dan, Manga Dan Graham Story - Chapter II - Homes for America, p. 389, trad, livre. Remeto o leitor para o Apêndice 5 no qual Dan Graham fala de Bruce Nauman numa entrevista. 145 gostava de ambas por serem simples, directas e carregadas de clichés frívolos e banais mas, de alguma forma, inteligentes. Para além da sua actividade como docente, Dan Graham foi galerista, e nessa actividade aprendeu que «se não se reproduzir fotograficamente ou se não se escreve sobre a obra de arte numa revista, será muito difícil que alcance o estatuto de arte. Parecia que para atingir o valor de obra, e então, o valor de arte, bastava expô-la na galeria e, depois escrever sobre ela e reproduzi-la fotograficamente numa revista. Este testemunho converteu-se na base da sua fama, e, em grande parte, na base do seu valor económico...As revistas de arte, dependem, no fundo, para o seu próprio suporte económico, das galerias de arte, assim como, o valor das obras depende dos meios de difusão. As revistas determinam um espaço e são um marco de referência interno e externo. Especializam-se num campo, à semelhança de outras vertentes sociais e económicas, definindo o mundo da arte e os artistas que o compõem. Cada revista, abastece um certo mercado, público e campo...Todas as revistas de arte abastecem pessoas que profissional ou institucionalmente estão envolvidas no mundo da arte, sejam artistas, comerciantes, coleccionadores, experts, teóricos, todos têm um interesse profissional. E o verdadeiro suporte económico da revista de arte é, ele próprio, a publicidade260». Nas experiências que geralmente se associam directamente ao percurso deste autor e que se tornaram mais representativas da sua obra, público e performer estão, por vezes, separados por jogos de câmaras, vidros e espelhos261, como em Two Correlated Rotations (1969), Two Consciusness Projection(s) (1972), Present Contínuos Past(s) (1974), Time Delay Room (série de 5 instalações desenvolvidas em 1974), Two Viewing Rooms (1975), Yesterday/Today (1975), Video Piece for Two Glass Office Buildings (1976), 260 GRAHAM, Dan, My Works for Magazine Pages: A History of Conceptual Art, in Dan Graham, catálogo da exposição na Art Gallery of Western Australia, Perth, 1985, textos: G. Dufour, J. Wall e D. Graham, p. 10, trad, livre. 261 «Graham pretendia combinar o papel do performer activo e do espectador passivo numa só pessoa. Assim introduziu espelhos e equipamento video que permitiam aos performers serem espectadores das suas próprias acções. Este auto-exame minucioso era entendido como preparação para um elevado grau de consciência de cada gesto», GRAHAM, Dan, in Dan Graham Retrospectiva, Museu de Arte Contemporânea de Serralves, comissariado: Corinne Diserens e Marianne Brouwer, Porto, 2001. 146 Public Space/Two Audiences252 (1976) e Performer/Audience/Mirror (1977), peças de instalações a partir das quais Dan Graham começa a desenvolver os pavilhões e os modelos arquitectónicos263. É interessante analisar os títulos das obras enumeradas e verificar os conceitos que as unem, pois estes permitem o acesso às principais questões colocadas na obra deste artista: o número dois, o espaço e o tempo. Se quisermos, numa segunda análise, toda a obra de Dan Graham considera o jogo que, para existir, necessita de um jogador e, assim, pelo menos, de dois elementos: o jogo e o jogador. Os jogos de exploração e alteração da percepção de Dan Graham ocorrem sempre em dois espaços ao mesmo tempo ou num espaço com dois tempos diferentes ou, finalmente, em dois espaços e tempos diferentes264. Seja qual for a opção tomada, o resultado é sempre um jogo que ele propõe e que o jogador experimenta. Novamente, dois elementos fundamentais: o artista, representado pela obra, e o público. 262 Lembro-me particularmente deste trabalho que, tendo sido criado para a Bienal de Veneza de 1976, para a exposição Ambiente, foi apresentado na sua exposição no Museu de Serralves, em 2001. A imagem geral da visita a esta exposição, retida na minha memória, é a de, por um lado, uma viagem através de um labirinto do fantástico entre o realidade e a ilusão espacíotemporal e, por outro, o ambiente descontraído e animado que os visitantes anunciavam pelas suas atitudes corporais e expressões faciais. Lembro-me de ver as mesmas pessoas várias vezes, não só porque penetravam nos espaços mais do que uma vez, mas também pelos jogos temporais criados por Dan Graham (Public Space/Two Audiences é um exemplo). Existe uma sala dividida por um vidro que, imediatamente, cria dois espaços distintos, com duas entradas distintas. Não podermos estar simultaneamente nos dois espaços e que vamos ver, através do vidro, quem está do outro lado, são pensamentos lógicos, mas o que se passa contraria a lógica, sem deixar de o ser: a parede do fundo de um dos espaços é forrada com um espelho que permite, quando estamos no outro espaço, vermo-nos através do vidro e reflectidos nesse espelho e, logo, estarmos, em simultâneo nos dois espaços, reflectidos duas vezes, uma mais próxima, maior e menos nítida no vidro, e uma mais distante, mais pequena, mas mais nítida, no espelho (para quem está no espaço que não tem espelho). Do outro lado, que tem espelho, existe uma situação, que se pode considerar estranhamente inversa. A parede do fundo é branca, os reflexos existem só no vidro, mas pelo jogo de reflexão do espelho, agora nas nossas costas, com o vidro, e pela iluminação difusa e proveniente do tecto - uma espécie de caixa de luz uniforme - vemos reflectida uma projecção das duas salas. Não só deparamos com esta ambiguidade de percepção visual como, estando o vidro preparado para isolar o som, experimentamos uma sensação de solidão acompanhada. 263 Os modelos arquitectónicos que cria a partir do final dos anos 70 são maquetas pormenorizadas e coloridas de soluções espaciais das quais são exemplos: Alteration to a Suburban House e Clinic for a Suburban Site, de 1978, Dan Graham and Marie-Paule Macdonald Project for Matta-Clark Museum, de 1983, Cinema-Theater, de 1986 ou Dan Graham and Jeff Wall Children's Pavilion, de 1991. 264 'Sempre me interessou a ideia de tempo recém-passado e os seus efeitos de feedback. Interessava-me o que as pessoas acabavam de fazer e como isso influenciaria o que fizessem no futuro. O que fiz foi um feedback imediato», retirado de uma entrevista de Apolonija Sustersic a Dan Graham: Uma manhã falando com Dan Graham, publicada no catálogo Dan Graham, Galego de Arte Contemporânea, Santiago de Compostela, 1997, p. 34, trad, livre. 147 A temática desenvolvida por Dan Graham implica o indivíduo e a percepção que tem de si próprio, colocando-o, em simultâneo, como emissor e receptor, activo e passivo, sujeito e objecto. «Nos pavilhões, o vocabulário arquitectónico em si refere-se a um modo arquitectónico impossível e a uma linguagem em explosão: da cabana de Lauguíer ao modernismo de Mies e Kahn, do óculo do Panteão, da esfera de Boullée, aos edifícios de escritórios de vidro espelhado, dos fragmentos da paisagem clássica, barroca, e romântica à paisagem cinematográfica da moderna Metropolis. (...) O pavilhão está dependente do seu contexto - um parque rural: uma cidade - e de uma concentração desse contexto; um momento entre a memória e a utopia. Não está dentro nem fora mas marca uma intersecção imaginária entre os dois. Um pavilhão vazio é uma concha, um mero objecto, mas quando usado é transformado numa plataforma onde imagem e linguagem se encontram e fundem numa alegoria cultural. Dan Graham, numa visão múltipla, aproxima-se da perspectiva romântica, da parede de espelhos barroca265, da casa de diversão de espelhos, das paisagens da Arcádia, da high e low culture, do presente e passado, e combina-as como citações nos seus pavilhões. A arquitectura de espelhos dos pavilhões cria estruturas que confrontam as pessoas com uma imagem de si próprias juntamente com outras e com a envolvente. As pessoas movem-se através dos pavilhões como actores em espaços cinematográficos. Tudo neste espaço - arquitectura, paisagem, indivíduo - é um termo no processo narrativo de reflexão ilimitada que explora as noções de cultura, individualidade e identidade266». Estas formas escultóricas e, simultaneamente, pavilhões arquitectónicos, são híbridos, que segundo Dan Graham, relacionam exterior e interior, criam ambiguidade perceptiva, jogam com a transparência e o reflexo, prolongam e limitam o espaço, funcionando como modelos psico-filosóficos que adquirem sentido a partir do momento em que são habitados. São exemplos: Pavillion/Sculpture for Argone (1978-81), Two Adjacent Pavilions (1978-82), Children's Pavillion (Chambres d'Ami) (1986), Octagon for Munster (1987), Two-Way Mirror Hedge 265 0 que interessava a Dan Graham, no Barroco, era o seu movimento enérgico em oposição ao ponto de vista único renascentista, como referiu em entrevista a Apolonija Sustersic, op. cit., p. 36. 266 Folheto de apresentação da exposição, Dan Graham - Works 7965 - 2000. 148 Labyrinth (1989), Fun House Munster (1997), ou os diversos pavilhões triangulares, cilíndricos e elípticos realizados nas décadas de 80 e 90. Existem diversas concepções do Site-specific (remeto o leitor para o texto 2.3. Revisões do uso do corpo nas artes plásticas do século XX), mas, ainda assim, pode tentar-se desenvolver uma definição. Embora diversos trabalhos realizados durante o século XX sejam site-specific, este termo ficou conotado com alguns trabalhos artísticos desenvolvidos a partir da década de 80. O Site-specific implica o uso de um espaço específico e especial, próprio. O trabalho é pensado e construído tendo em consideração um espaço concreto: pelas suas características físicas (dimensões, materiais de construção, localização), conceptuais (históricas, políticas, sociais), ou pela relação entre as duas. Transladar um site-specific pode resultar noutro trabalho ou mesmo provocar uma perda de todo o sentido. Acerca disto, Richard Serra (San Francisco, 1939) afirmou que mudar o trabalho de local é equivalente a destruí-lo267. Estas obras, não sendo pinturas ou esculturas têm, geralmente, um carácter multidisciplinar. Pertencem originariamente aos espaços para os quais foram projectadas, e estes podem ser galerias, museus, espaços interiores ou exteriores, públicos ou privados. O site-specific Germânia criado por Hans Haacke268 (Colónia, 1936) para a Bienal de Veneza de 1993 revela até que ponto um espaço e a sua história podem ser motes para a realização de uma obra de arte. O edifício 267 'Transladar la obra es destruiria", palavras de Richard Serra retiradas do texto La redefinición de la especificidad espacial {Redefining Site Specifity, 1992), CRIMP, Douglas, in Modos de hacer - Me crítico, esfera pública y acción directa, ed.: BLANCO, Paloma; CARRILO, Jesus; CLARAMENTE, Jordi e EXPÓSITO, Marcelo, textos de diversos autores, Ediciones Universidad de Salamanca, Salamanca, 2001, p.145. Esta afirmação de Richard Serra ajuda, de certa torma, a entender todo o deu projecto artístico, mas foi resultado de um episódio concreto: a obra Tilted Ac concebida em 1981 para a praça do edifício federal Jacob K. Javits em Manhattan, Nova Iorque. Em 1985 foi proposta a sua reimplantação noutro espaço, que gerou polémica e conflitos entre poder político e artistas. Neste contexto, parece-me importante referir a visão de Richard Serra relativamente à obra no espaço público. Se por um lado refere que a obra altera o lugar e passa a pertencer a este, fundese com ele, por outro «una vez que las obras son instaladas en un espado público, pasan a ser responsabilidad de la gente-, op. cit., p. 156. 268 As ligações deste artista à Earth art, a partir dos meados dos anos 60, quando vai para Nova Iorque, são demonstradas pelos trabalhos que realizou e que revelam um interesse pelas reacções dos sistemas biológicos ou tecnológicos, utilizando a paisagem como suporte passivo da acção artística e a natureza como factor activo da criação artística. A partir da década de 70, passou a fazer a aplicação desses conceitos nos fenómenos sociais e, em particular, nas relações da arte com o mundo dos negócios e dos mecanismos de poder, visível no exemplo do site-specific que se apresenta. I49 onde se encontrava este site-specific foi construído nos anos 30, para ser o pavilhão alemão das bienais de arte de Veneza. Numa adaptação do estilo Neo-Clássico, com uma entrada imperial, no centro do edifício lê-se, em primeiro plano, a inscrição Germânia. Lateralmente, num plano mais distanciado, as inscrições em alemão e italiano: Bundesrepublik Deutschland e Republica Fédérale di Germânia. Em 1938, Adolf Hitler visitou a Bienal e, servindo-se de uma imagem fotográfica de registo da visita do ditador a este pavilhão, e do drama mundial com origem na Alemanha provocado por essa ditadura, Hans Haacke fez, na sua instalação, uma dura crítica social e política. Na entrada, pendurada numa enorme parede pintada de vermelhosangue, a ampliação a preto e branco da fotografia, na qual Hitler é o personagem do primeiro plano. Passando para o interior do espaço confrontamo-nos com o pavimento de mármore completamente destruído num vasto espaço branco e vazio, iluminado friamente com luzes fluorescentes que fazem sobressair a palavra GERMÂNIA. O tipo de letra utilizado foi o mesmo que se encontra na inscrição da fachada. O piso era o original e foi mesmo destruído. Tudo o resto encontrava-se intacto. Frequentar este espaço, causa-nos, primeiro, um arrepio de frio, que se prolonga nas sensações de desconforto e solidão. Quando o percorremos, pisamos o chão ajudando a que se parta em fragmentos cada vez mais pequenos e o som dos nossos passos nessa acção invade todo o espaço e prolonga-se no tempo, pelas qualidades acústicas do espaço. Memórias da opressão da guerra e da liberdade conquistada com a queda do muro de Berlim. Outro exemplo que pode ser referenciador do jogo de percepção conseguido em obras de site-specific, é a piscina de óleo queimado de Richard Wilson, realizada em 1987. A entrada da sala é, directamente, o acesso a um corredor em chapa de ferro oxidada que, ao longo do seu percurso, se vai tornando cada vez mais estreito, e cujo declive vai aumentando até nos sentirmos submersos - como quando percorremos uma piscina na qual a água começa por nos chegar aos joelhos e que, dez passos mais adiante nos cobre a cabeça. O corredor protege-nos do contacto físico com o óleo mas, como à entrada nos apercebemos de que, à nossa volta, todo o espaço é uma piscina de óleo, a sensação é o receio de um banho acidental e forçado, que parece poder acontecer a qualquer momento, se a 150 vedação em chapa não aguentar a pressão exercida pelo líquido; podemos ser engolidos, como num pântano. 20/50 (título da obra) cria, também, uma ilusão visual pelo efeito de reflexão do espaço no espelho de óleo. Este efeito aumenta de tal forma as dimensões, que acentua todas estas sensações, quando começamos por nos ver, a nós próprios, reflectidos. 151 3.4. Rebecca Horn: a solidão e o isolamento do corpo; a dádiva e a partilha. «Tu vens de dentro do útero da tua mãe, nasces, és uma pequena e tímida pessoa que vai crescendo lentamente. Desde o momento em que nasces, a realidade acerca da tua morte já existe. A constante curiosidade faz-te continuar até atingires o ponto final...Lentamente aprendes a proteger-te, encontrando a tua linguagem pessoal para te relacionares com o mundo», HORN, Rebecca, entrevista com Demosthenes Dawetas, in Galeries Magazine, no. 43 (June/July 1991), p. 94, in Rebecca Horn, comissariado: Germano Celant e Nancy Spector, The Solomon R. Guggheim Foundation, Nova lorque, 1 a publicação, 1993, 2 a edição, 1994, p. 64, trad, livre. 153 A solidão do artista pode dar origem a trabalhos que solicitam a participação do espectador, numa espécie de encontro com o conforto da companhia através daquilo que o primeiro produz. Esta afirmação resume um dos aspectos que apreendo das obras de Rebecca Horn. Concert in Reverse foi o site-specific que realizou, em 1987, para o Skulptur-Projekte in Munster269. A partir deste ano e desta experiência começa a trabalhar os espaçosambiente, sendo este apenas um dos muitos exemplos de instalações e sitespecific de Rebecca Horn. Toda a obra desta artista trata o corpo e esta circunstância tem origem na sua dolorosa passagem, que durou quase um ano, por hospitais e sanatórios, devido a uma grave intoxicação, enquanto estudante de arte, provocada pelo uso de resinas de poliéster e fibra de vidro, no final dos anos 60. Não voltando a usar estes materiais, Rebecca Horn, no isolamento e solidão da experiência hospitalar, começa a trabalhar o sentir o corpo, como isolamento e distância forçada do objecto de desejo, mas agora através de vídeos e filmes270, performances271 e objectos. Estes objectos-esculturas, que realiza nos anos 60 e 70, são prolongamentos do corpo, extensões accionadas pela máquina que é, nestes casos, o corpo. Só mais tarde é que 269 «In Munster there was this strange round tower in a park, but making inquiries about it, I was told not to touch it.. Its windows and doors were bricked up; its past was sealed inside. Nobody wanted to talk about what had happened in this building before 1945. The City had a big problem it didn't want to discuss. But I insisted on using the site for an installation, if for nothing else to satisfy my curiosity about their secrecy. Eventually, I discovered that, during World War II, people were brought to the tower to be tortured by the Gestapo. (...) When we finally did the project, only people from Holland would work with me. Nobody from Munster would even go inside. At the end of the war, the English bombed the building, and the Germans consequently bricked it up, so it remained sealed yet roofless for fifty ye were incredible plants, flowers, and trees. It was like a jungle, a garden paradise with new energy. (...) Out of this violent, negative energy was born new pure life energy of the undisturbed trees. So I developed Concert in Reverse, where I had forty silver hammers banging on the walls of the prison cells like a communication from the past. And, here and there, were small candlelights of white energy for the souls. Above, from the highest trees, I hung a large glass funnel, from which water dripped, like a metronome or a kind of Far Eastern water torture, nine meters down into a black pond. Then to bring more life energy into the building, I added two pythons, which I think were in love with each other. Their diet of mouse twice a week so upset the organizers and the people of Munster that the show became a political scandal. Perhaps the symbolism of the snake upset their solidly Catholic spirit. But the hysteria over the death of a couple of nice was ironic, il not lamentable, after the silence about what had happened there fifty years ago-, op. cit., p. 20. 270 Rebecca Horn não só documentou as suas performances em vídeo, como realizou filmes e teve participações como actriz. 2,1 Alguns dos exemplos de performances registadas em video são: Unicom (1970), Head Extension (1972), White Body Fan (1972), Finger Gloves (1972), Cockfeathermask (1973), ou Berlin Exercises: Dreaming Underwater (1974-75), que combinam uma série de diferentes performances. 154 se tomam máquinas independentes, com motor próprio, acção própria, regulando o seu movimento autonomamente, de que são exemplos Mechanical Peacock Fan (1979-80), Peacocock Machine (1982), Ballet of the Woodpeckers (1986-87), promotores de um jogo de ilusão visual com espelhos que, a par de River of the Moon: Room of Mutual Destruction (1992), nos sugerem ambiguidade espacial, semelhante à provocada pelas obras de Dan Graham. Aqui, todavia, existe um sentido de drama, expressamente declarado no último exemplo, pertencente à série River of the Moon, peças nas quais todos os espaços são quartos de hotel (do Hotel Peninsular, em Barcelona), que mostram experiências que nos remetem para pesadelos de diferentes hóspedes. O título de uma destas obras - River of the Moon: Room of Mutual Destruction- é revelador desse possível pesadelo. Sugerindo ter sido o local de encontro de dois amantes, outro tema tratado nas obras de Rebecca Horn, revelado em trabalhos como High Moon - a instalação na qual dois depósitos de tinta vermelha ligados a duas espingardas, colocadas frente a frente, disparam um líquido que pode parecer sangue, ou Les Amants (1991), em que apresenta uma cama de casal com lençóis brancos usados, com dois espelhos juntos na parede em frente à porta (que é também a cabeceira), reflectindo-a, para além de uma pistola que se encontra suspensa e apontada a quem entra e que se vê também reflectido. A invasão de um lugar íntimo e privado que pode sugerir o desfecho de um crime. Uma dramática metáfora do Don't Disturb que nos lembra o esquema do espaço privado proposto no trabalho, já analisado anteriormente de Louise Bourgeois. Os primeiros trabalhos de Rebecca Horn podem ser directamente relacionados com as experiências do corpo exploradas na obra artística dos brasileiros Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica - artistas cujo percurso será, adiante, analisado. Arm Extensions (1968); Unicom (1970-72); Shoulder Extensions (1970); Finger Gloves (1972); Head Balance (1972); White Body Fan (1972); Mechanical Body Fan (1973-74); Pencil Mask (1972); Hair Mask (1971); Paradise Widow (1975); Scratching Both Walls at Once (1974-75) (que nos lembra, formalmente, A Case for an AngeF2, de Antony Gormley); Keeping 272 A case for an Angel (1990), de Antony Gormley, onde um corpo humano que, pelo tratamento da superfície a sugerir uma realização em chumbo (embora se trate de fibra de vidro, plástico.etc.) de escala natural, suporta na sua posição vertical os braços abertos transformados em 155 Those Legs from Touching Each Other (1974-75); Body Arp (1978), The Feathered Prison Fan (1978). Paradise Widow é uma fusão entre o prazer de estar só e o prazer de estar acompanhada. «É uma mulher, isolada na sua própria prisão de penas, na sua segunda pele. Quando fiz este trabalho estava em Berlim mas ansiava estar com alguém em Nova Iorque. É um trabalho sobre o estar separado, não de uma forma desagradável, do teu objecto de desejo. (...) a própria escultura é o objecto de isolamento. Não é o objecto da comunicação273». Nesta obra, como em muitas outras da autora, o público toma-se o performer dos seus trabalhos, um actor «melancólico representando em solidão27*» e experimentando as sensações que ela propõe e que são fruto das suas experiências de vida. Rebecca Horn partilha connosco a sua experiência autobiográfica, a sua solidão e o seu isolamento, depositando os seus sentimentos em formas escultóricas. As suas máquinas com alma têm, segundo a artista, vida própria e são, tal como os seres humanos, imperfeitas. Elas são o resultado de vivências, que, se por um lado, a fizeram sofrer, por outro lado, parecem ter sido dádivas que lhe permitiram uma reflexão acerca de si própria e dos outros e, por conseguinte, importantes e enriquecedoras o suficiente para que Rebecca Horn as devolva com a alma que nelas deposita. asas de avião. Visitei este trabalho na exposição de Antony Gormley, na Galeria Pedro Oliveira, no Porto e tive a estranha sensação de ausência da ar e de espaço, numa sala ampla e branca. As asas quase tocam as paredes da sala onde se encontra esta escultura com quase 9 metros de largura e é o isolamento da peça e a relação de escalas entre esta e o espaço que nos podem submeter a esses estados. A propósito deste trabalho, Antony Gormley, disse: «A Case for an Angel is a declaration of inspiration and imagination. It is an image of a being that might be more at home in the air, brought down to the earth. On the other hand it is also an image of somebody who is fatally handicapped, who cannot pass through any door and is desperately burdened. When installed it is a barrier across the space, blocking out the light and blocking the passage of the viewer. The top of the wings are actually at eye level and describe a kind of horizon beyond which you can't see very much, and so you feel trapped and there is a sense of an invitation to assert yourself in the space against it. It is an attempt to re-invent an idea of the object against which you can pit yourself, as in a Serra or a Judd, but differently', GORMLEY, Antony, in Antony Gormley, Malmo Konsthall, Tate Gallery Liverpool, Irish Museum of Modern Art e na Tate Gallery Publications, Millbank, Londres, 1994, p. 46. 273 HORN, Rebecca, in entrevista por Germano Celant, 1993, in Rebecca Horn, comissariado: Germano Celant e Nancy Spector, The Solomon R. Guggheim Foundation, Nova Iorque, 1994, p.17, trad, livre. 2 " Ibidem. 156 Assim, quando confrontado com as suas obras, o fruidor, pode tornarse confidente, ao receber as suas dádivas autobiográficas: mensagens plasticamente oferecidas. 157 3.5. Dennis Oppenheim: a arte como congregação. «A questão está em não deixar que a ignorância se torne a desculpa para a pretensa descoberta, mas, ao mesmo tempo, não ficar escravizado por linhagens do passado, inibidoras da possibilidade de se respirar o ar fresco, o oxigénio vital da génese», OPPENHEIM, Dennis, Em conversa com Dennis Oppenheim, por Bernardo Pinto de Almeida, in Dennis Oppenheim, comissariado: Bernardo Pinto de Almeida, Fundação de Serralves, prog.: Fernando Pernes, Porto, 1996, p. 33. 159 «As obras de arte e os artistas vêm-nos avisando desde há longo tempo para a necessidade de estarmos atentos ao ritmo de constantes mutações, à aceleração das transformações, à espessura da realidade e à emergência do seu excesso no processo do acontecimento. A obra de Dennis Oppenheim (1938) tem, neste contexto, valor de autêntico manifesto275», conjugando, numa contingência poética, (DENSON, G. Roger, 1996) o trágico com o cómico, também recorrente na obra de Bruce Nauman. Para Dennis Oppenheim há, na pós-modernidade, uma perda de autocrontole. A sensação de angústia (tema tratado neste trabalho no texto 2.2. A Angústia do Corpo - Alguns condicionamentos ao uso do corpo) perante tais ausências ou tais excessos, revelados por «um mundo fracturado, uma condição humana desmembrada, perdida, perturbada ou, mais uma vez fracturada276», é manifestada pela consciência de «uma necessidade urgente de leveza e de quietude,, razão pela qual uma obra como Slow Clap for Satie pode ser interpretada como um marco importante na sua obra, representando um regresso ao princípio aristotélico de que a função catártica da arte é uma das suas funções mais importantes. O aplauso lento, o movimento lento, o olhar lento, a leitura lenta, o ritmo lento.(...) Em lugar de nos lamentarmos, somos instados a abrandar, a olhar, a ouvir, a apreciar, a respirar a um ritmo adequado a seres humanos em contemplativo repouso (...) porque nos tornamos indiferentes ao choque do moderno e do cientifico e precisamos do tratamento curativo da poesia e do alívio cómico para apaziguar o mal-estar provocado pela desmedida exuberância cultural do modernismo e o seu igualmente trágico enfraquecimento em anos mais recentes277». As obras que realizou, particularmente a partir da década de 80, pretendem retratar as desordens pessoais do indivíduo e o descontentamento social do conjunto da comunidade. Atravessando temas como o consumismo, a genética, o ambiente, a loucura ou os problemas culturais, «confronta padrões "morais" de decência colocando a questão: existirá alguma coisa mais obscena do que a injustiça social?278». Estes aspectos promovem relações 275 ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Graças à luz eléctrica..., op. cit., p. 14. Op. cit., p. 32. 277 DENSON, Roger G., Uma Poesia do Diagnóstico ou a Neurologia Objectual de Dennis Oppenheim, texto cedido pela revista Parket, op. cit., p. 26. 278 Op. cit., p. 25. 276 160 entre algumas obras de Dennis Oppenheim e de Joseph Beuys. O sentimento de perda e a angústia, que resultam das sociedades mais capitalistas, são visíveis nas diversas Factory's de Oppenheim. Nelas produzem-se coelhos (Rabbitt Factory, 1996), bonecos de neve {Snowman Factory, 1996), ou Virus (1989); esta última é uma escultura que apresenta uma estrutura de ferro com diversas ramificações que sustentam em cada uma das suas extremidades pequenos ratos Mickey, numa clara ironia perante o fenómeno da massificação dos heróis produzidos e consumidos em série. Outro exemplo dessa preocupação com o funcionamento da sociedade é Digestion, Gypsum Gypsies (1989), peça constituída por uma série de veados de cabeças negras e corpos ensanguentados ligados por tubos a garrafas de gás que alimentam as extremidades dos seus chifres. Os chifres são como candelabros, velas acesas que iluminam o espaço onde os animais se encontram. Há diversos exemplos de trabalhos deste autor que apresentam elementos aparentemente naturais alimentados pela corrente eléctrica, uma metáfora do artifício mascarado de natural e transformado em máquina. Quando Joseph Beuys, sentado numa cadeira da Galerie Schmela, com a sua cabeça pintada de dourado, como se esta fosse iluminada por um poder extra-humano, segredou palavras a uma lebre morta que segura no seu colo, na performance How to Explain Pictures to a Dead Hare (1965), fez também uma denúncia e uma crítica à inversão de valores sociais e humanos, com afinidades óbvias a exemplos de trabalhos de Oppenheim. A partir de 1973, Dennis Oppenheim inicia, com Wishing Well, uma fase «maquínica ou fabril, que doravante o vai interessar cada vez mais, (...) obras como Recall, de 1974, evocam já, antecipando-o, o que viria a ser o núcleo essencial do trabalho de artistas mais recentes como BUI Viola ou Gary Hill2™». Na Earth Art dos anos 60, este artista exorcizou os espaços tradicionais da apresentação da obra de arte e «as ideologias românticas de heroicismo do artista que estavam associadas a estes dispositivos. Gallery Transplants, série de obras datadas de 1968-69, tornarão ainda mais explícita esta intenção ao projectar no exterior os espaços da galeria, ou ao serem realizadas através de trocas materiais com o espaço da galeria. Exemplo: o artista deixava um pedaço de uma unha na galeria e carregava sob a pele uma 279 ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Graças à luz eléctrica..., op. cit., p. 13. 161 farpa de madeira do chão da galeria, nisso consistindo a própria obra. A prática da Body Art, de que foi um dos pioneiros e principais impulsionadores, levaram depois Oppenheim para uma experimentação do próprio corpo como suporte, num registo que ecoava as experiências Fluxus da performance, nomeadamente através de obras como Material Interchange (1970), ou Two Stage Transfer Drawings - Dennis to Erik Oppenheim and Erik to Dennis Oppenheim280». Para termos acesso a esta experiência, Dennis Oppenheim realizou um vídeo de 44'50", Tape Four, que mostra uma série de actuações, nas quais a abordagem ao corpo é feita a partir de uma transferência comunicacional que utiliza as sensações tácteis e o desenho como meios. Neste vídeo de arte corporal281, vemos Oppenheim a desenhar nas costas do filho Erik e, por sua vez, este procura copiar o desenho na parede através das sensações tácteis. A situação inverte-se e, após a experiência, Oppenheim escreve: «Estou a desenhar através dele282». «Tratava-se agora de explorar o tema do decentering-self ou do extended-self, isto é, da vontade de fazer da obra uma experienciação da expansão do sujeito a partir das suas sensações283». Esta experiência incita quem a observa a experimentá-la também. Funciona como um contágio, e é, neste caso, através desse dispositivo que existe uma relação directa com o espectador, e «que será sempre o traço de união último que justifica a existência da própria obra de arte284». 280 Ibidem. M corporel é o título de uma exposição e, também, a expressão utilizada em francês para definir a Body art, promotora do uso do corpo enquanto suporte experimental e à qual fiz referência no texto 2.2.desta dissertação. Organizada por François Pluchart, na Galerie Stadler, Paris, em 1975, nesta exposição participaram, para além de Dennis Oppenheim, com o trabalho Two Stage Transfer Drawings, Vito Acconci, Chris Burden, Marcel Duchamp, Gilbert & George, Michel Journiac, Bruce Naumam, Herman Nitsch e Gina Pane. A exposição ficou marcada pela publicação do Manifeste de I'M Corporel no qual se pode ler: «fî cuerpo es el dato fundamental. El placer, el sufrimiento, la muerte, la enfermedad, se inscriben en él, dibujando un individuo socializado, es deck, capaz de satisfacer todas las exigências y apremios dei poder en cada momento. Después de cuestionar decisivamente la pintura y renunciar a la estética, (...) después de la provocación intelectual que supusieron las acciones de M. Duchamp (...) ya no resta sino - afirmaba F. Pluchart - abrir la via para el happennig y el arte de comportamiento», in GUASCH, Anna Maria, El arte dei siglo XX en sus exposiciones. 1945-1995, col. Cultura Artística, dir.: Joan Sureda i Pons, n.° 11, Ediciones dei Serbal, Barcelona, 1997, p. 198. 281 282 283 Orca 7968, p. 591. ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Graças à luz eléctrica..., in Dennis Oppenheim, Fundação de Serralves, p. 13. 28í Op. cit., p. 11. 162 Neste sentido, é possível dizer-se que as obras de arte produzidas por Dennis Oppenheim têm uma intenção e um efeito congregadores. Não recorrendo ao ritual ou ao convite directo à participação por parte dos fruidores, quando Oppenheim partilha os seus pensamentos e as suas experiências, reúne-nos consigo nos objectos e ambientes escultóricos que constrói para a apresentação que faz das suas obras e convida-nos, implicitamente, a comungar com ele. 163 3.6. Joseph Beuys: por uma arte altruísta. «Todo o conhecimento humano provém da arte. Todas as capacidades têm proveniência na capacidade artística do ser humano, do ser activo criativamente. O conceito de ciência é apenas uma ramificação do criativo num sentido geral. Por essa razão há que fomentar uma educação artística para o ser humano, não? Sabemos isso por instinto», BEUYS, Joseph, in BODENMANN-RITTER, Clara, in Joseph Beuys Cada Hombre, un artista- conversaciones en Documenta 5 - 1972 (tit. orig.: Joseph Beuys - Jeder Mensch ein Kunstler, Verlag Ullstein GmbH, Frankfurt/Berlim, 1975/1991, trad.: José Luis Arántegui), col. La balsa de la Medusa, 72, dir.: Valeriano Bozal, Visor Distribuiciones, Madrid, 1998, p. 71, trad, livre. 165 Um dos maiores educadores para o uso dos sentidos e um dos artistas mais influentes da década de 70 - colocando em prática as ideias filosóficas e educacionais de Rudolf Steiner, da arte do pós-guerra - foi Joseph Beuys (Krefeld, 1921, Dusseldorf, 1986). Sinteticamente, para Steiner, a arquitectura tinha que ser escultórica, porque a escultura, segundo este, é a linguagem plástica mais completa. Desenvolvendo o conceito de Eurhythmies: qualquer um que se mova ou se expresse tem que fazê-lo harmoniosamente {eurhythmically), como uma escultura móvel. O sentido de mobilidade desenvolvido por Joseph Beuys foi aquele ao qual chamou de Escultura Social285. A inércia generalizada (VIRILIO, Paul, 1995) do povo é resultado de, na perspectiva que Beuys defende, falhas de formação e educação que tem origem na infância. Isto implica um problema educacional de base e de formação e informação, no qual os artistas podem tentar influir com as suas acções286- uma difícil tarefa da arte que pode resultar num aliciante estímulo287. 286 'According to this doctrine, thinking, talking, breathing, singings were ali forms of sculpture. They were all ways of moulding and shaping "the world in which we live". This moulding was a continuous evolutionary process in which everyone should participate, and in which everyone would be an artist. Beuys was a proselytising teacher-artist whose prime goal was nothing less than the social and aesthetic education of mankind. He believed that our schools "must become places of education in a new sense, education as sculptural forming"; at present the education that children get "mostly warps them"«, HALL, James, The World as Sculpture - The changing status of sculpture from the renaissance to the present day, Pimlico Edition, Londres, 2000, p. 275. 286 Numa das entrevistas, Clara Bodenmann-Ritter compara o trabalho dos artistas ao da publicidade como passível de exercer influencia sobre a população, numa aplicação de energia com fins educativos, informativos e formativos. A esta análise Beuys reage positivamente afirmando: «Es verdad. Eso es precisamente algo que quiero provocar. Pêro ustedya sabe, verdad?, que cuando uno se dirige a un grupo de artistas, o a los grupos de los trabajadores, los dos son a cual más difícil de abordar; aunque coja trabajadores, o estudiantes, actualmente todas las personas son muy dificiles de movilizar. Sigue habiendo una pequena minoria en cada grupo a la que se puede abordar de entrada. Pêro con eso tenemos que trabajar, tenemos que hacer mayor esa minoria, asi que tenemos que luchar por cada individuo. (...) los artistas no son ninguna minoria pequena, pêro los artistas que quisieran algo asi, o sea, que piensan todo esto en conjunto, esos si que son una minoria cas/ imperceptible», (pp. 55/56) e mais adiante acrescenta que se podem esperar resultados se «hacemos acciones en las calles, con un efecto plástico, o sea, no solo hacemos cosas conceptuales, sino también con efecto plástico.(...) eso quiere dec;/ que la formación tendria que orientarse por el ideal del arte. Pues propiamente solo el arte es el medio para que los hombres se desarrollen. (...) Como creatividad. En el terreno de la formación, como un proceso plástico», BODENMANN-RITTER, Clara, Joseph Beuys - Cada Hombre, un artista- conversaciones en Documenta 5 - 7972, p. 59. 287 «Cuando una cosa es difícil, no se puede abandonar el trabajo solo porque es demasiado difícil. (...) Precisamente eso es un estímulo para nosotros. Si fuera fácil, ahora me podria estar echando una siesta», op. cit., p. 114. «Group Material lue fundado como respuesta constructiva a los insatisfactorios caminos en que se había concebido, producido, distribuido y ensenado el arte en la sociedad norteamericana. 166 Pode afirmar-se que, considerando a angústia como o conceito mais adequado para o sistema em que vivemos288, Beuys privilegiava a decisão popular que, segundo ele, só funciona mediante uma autodeterminação que tem como ponto de partida a liberdade e a criatividade, uma característica humana que deve ser explorada. Partindo do pressuposto de que a criatividade é uma capacidade comum a todos, Beuys conclui que é possível cada Homem ser um artista - Jeder Mensch ein Kunstler - sendo este, aliás, o título de um livro baseado na compilação de série de entrevistas ao artista na Documenta 5, de Kassel, em 1972289. O uso de quadros negros das escolas era muito frequente nas suas acções e discussões. Nestes ia inscrevendo ideias e pensamentos que depois eram fixados com vernizes e fixadores (muitos estão hoje em Museus de todo o mundo). A primeira vez que usou um quadro negro foi em 1963 num happening (na Siberian Symphony, usou um tema do compositor Eric Satie interpretado ao piano - outro elemento bastante frequente nas suas obras), não por iniciativa própria, mas porque fazia parte de um projecto, que o incluía, desenvolvido pelo grupo Fluxus, em Dusseldorf. Encontramos muitos exemplos de trabalhos onde o quadro negro foi utilizado, tais como: Directive Forcess (of a New Society) (1974-77) e Plight (1958-85). Em Plight, encontramos não só o quadro negro, como o piano ou o feltro, este último é frequentemente usado nas instalações de Beuys, por ser aquele que melhor caracterizava, na sua opinião, determinadas sensações. Nesta instalação entramos num espaço todo forrado com rolos de feltro cinza acastanhado e encontramos no centro um piano de cauda preto, fechado, com um quadro Group Material es un proyecto creado por artistas. Queremos controlar nuestro trabajo y encauzar nuestras energias hacia lo que demandan las condiciones sociales contrapuestas ai mercado artístico», in Statment, escrito pelos artistas Doug Ashford, Julie Ault, Mundy McLaughlin e Tim Rollins, citado por David Deitcher, Talking Control: M and Activism, 1990, in GUASCH, Anna Maria (ed.), Los Manifestos del Me Posmoderno - textos de exposiciones, 1980-1995, p. 263. Das acções que realizaram destacam-se: Subculture (1983), America (1985), The Castle (1987) e Democracy (1989). «Group Material aparece como uno más de los elementos en juego de su proceso creativo, en el que es determinante la pedagogia y el cambio de roles entre artista y público o entre emisor y audiência: "nosotros - afirman los componentes dei colectiyo - somos también parte de la audiência"", declarações numa entrevista em 1988, in GUASCH, Anna Maria, El arte último dei siglo XX-Delposminimalismoalo multicultural, Alianza Editorial, Madrid, 2000/2001, pp. 492/493. 288 «Angustia es el concepto más adecuado para ai sistema. (...) seria idiota no estar angustiado. Quiero decir, de momento, la angustia se le pasaría gradas a la estupidez», BODENMANN-RITTER, Clara, in Joseph Beuys - Cada Hombre, un artista- conversaciones en Documenta 5 -1972, pp. 102/103. 289 Ibidem. 167 negro pousado sobre ele, com linhas de pauta musical gravadas, como os que nos habituamos a ter nas aulas de educação musical, ainda sem qualquer inscrição. Em cima do quadro, um termómetro. Sendo uma obra de forte carga autobiográfica, Beuys estava interessado numa arte para todos, explorando os sentidos e a comunicação entre os seres humanos, utilizando, para esse efeito, metáforas plásticas na expectativa de promover sensações e partilhar estados emocionais. A necessidade de uma criatividade consciente de todos os seres humanos, combatendo os condicionamentos sociais, faz com que este autor defenda que, numa estratégia inteligente de acumulação de poder, o artista deve enfrentar as instituições culturais ainda que numa cumplicidade com as mesmas. Uma das suas performances mais conhecidas é / Like America and America Likes Me (1974) com a duração de três dias e realizada na galeria René Block, em Nova Iorque. No espaço da galeria Joseph Beuys colocou um monte de feno, filtro, uma lanterna, um par de luvas, um triângulo musical, cinquenta exemplares da Wall Street Journal do dia da intervenção e um cajado do qual se servia para atiçar e dominar um coyote de nome Little Joe, alugado numa loja de animais de New Jersey. Beuys chegou à galeria trazido numa ambulância, directamente do avião, envolvido numa espécie de capa em feltro, material similar ao que o salvou de um acidente quando era piloto na 2 a Guerra Mundial. Durante os três dias cumpriu o mesmo ritual: tocava no triângulo que servia de sinal ao início de uma reprodução áudio que transmitia o som forte de um motor e que provocava excitação no coyote que se atirava às luvas; totalmente escondido no interior da capa, criava um diálogo espiritual com o coyote, pelos movimentos que executava com o cajado, como se se tratasse de um pastor, mas seguindo sempre os movimentos do animal, como se fosse este a dominar toda a acção, como se o coyote começasse a domesticar Beuys. Esta performance revela uma metáfora de crítica à destruição da natureza original, representada pelo coyote, cujo nome Little Joe tem origem no nome do presidente americano John F. Kennedy, e pela denúncia que, como artista europeu, faz da sociedade tecnológica e capitalista americana. Esta performance adquire um valor suplementar por ser realizada no centro geográfico do poder americano. 168 Revendo a importância de valores como a coragem e a abertura ao diálogo, em acções artísticas que manifestam uma perspectiva romântica da arte como meio para a formação e a educação do ser humano, promovendo uma reconciliação do Homem com o mundo (REIS, Paulo, 2000), ocorre-nos que o altruísmo de Beuys, pode ser apelidado também de congregador, na medida em que preconiza a dádiva e a partilha por meio de realizações plásticas. Na medida em que, segundo Beuys, pensar é esculpir (denken its plastik), esta procura da consciencialização do Homem enquanto colectivo recorrente das realizações artísticas que produziu, nas quais procurou promover a associação de novas sensações no fruidor - pela incorporação deste nos ambientes de dádiva e partilha que constrói -, fica ilustrada em exemplos como Plight: obra que nos confronta com o isolamento, sentindo protecção e solidão, simultaneamente290. A obra e o pensamento de Joseph Beuys têm sido e continuam a ser referências da produção artística actual. No final da década de 70, por exemplo, a par de outros grupos activistas, formou-se o Group Material (1979) composto, inicialmente, por 12 jovens artistas influenciados, sobretudo, pelo pensamento de Joseph Beuys, de alguns conceptualistas como Joseph 290 Parece-me fundamental remeter o leitor para as palavras de Beuys. Em 1985, e a propósito de Plight disse, em entrevista: «/ was interested to point at the necessity to determine the idea of art to us all. To the senses existing in human beings and even to develop new sense. (...) One association of my room in Plight is isolation. The other is the warmth of the material. Surely this shut off from society is an anti-communicative element; it has a negative, even hopeless feeling as in some Samuel Beckett pieces. The other quality of the felt is to protect people from bad outside influences. So it is also a positive insulator. You can make a suit or tent out of it, like the Mongol tribes. It protects them against cold, storms and the outside world because it contains a lot of warmth. It is organic. This positive side - protecting people from danger - is the other extreme meaning of the piece. So the idea of a concert hall without sound looks completely negative at first, but it is meant to stress a threshold where everything moves to a critical point. Everything beyond that is transformed, transubstantiated, and surely the general meaning of art is the complete, radical change of human beings, beginning with their knowledge of themselves. (...) Visual art touches the senses. Balance, hearing, temperature (I find temperature the most important element of sculpture). Those things are interesting because they are translatable into the human psyche. Instead of something you are con fronted with outside, all the senses combine to make the human being and the sculptural work one thing. Otherwise "understanding" means only a logical explanation, which would be better written down. If the meaning of art is that there is anything to understand immediately; there would be no reason to work with felt or bones or clay or whatever to make forms. (...) Thinking is a structured thing, with intelligence on the lowest level, and on the highest-level intuition, inspiration and imagination. So a lot of possibilities exist for the development of man's thought and thinking power», BEUYS, Joseph, de uma entrevista com William Furlong e Stuart Morgan, 1985, in PAPADAKIS, Andreas, FARROW, Clare e HODGES, Nicola, New M - An International Survey, p. 18. 169 Kosuth, Hans Haacke, Daniel Buren e Dan Graham, ou pelo discurso activista de Barbara Kruger, Sherrie Levine e Jenny Holzer. Manifestavam-se através da denúncia e reivindicação, utilizando a propaganda publicitária, os objectos quotidianos (com aproximações a Duchamp), ou imagens, na tentativa de produzir uma arte comunicativa, questionando o conceito de arte e a sua recepção. Em 1983, sob a forma de manifesto, declararam os seus princípios ordenadores: «O Group Material foi fundado como resposta construtiva aos caminhos insatisfatórios nos quais se havia concebido, produzido, distribuído e transformado a arte na sociedade norte-americana. O Group Material é um projecto criado por artistas. Queremos controlar o nosso trabalho e concentrar as nossas energias contrapondo as condições sociais às exigências do mercado artístico29^». O projecto Magiciens de la Terre, exposição realizada no Centre Georges Pompidou e na Grande Halle-La Villette em Paris, em 1989, e que contou com a presença de mais de 100 artistas de todo o mundo, entre os quais Joseph Beuys, pode definir-se como uma proposta que apresenta os aspectos contraditórios das pluralidades e superficialidades da cultura pósmoderna, sob as diversas perspectivas correspondentes aos diferentes artistas. Um projecto comissariado Jean-Hubert Martin que pretendeu colocar em confronto as dificuldades de obtenção de resultados positivos da função social do Eu colectivo, numa estimulante ilustração da ideia da globalização através da arte contemporânea. Por último, e num período mais recente, pode ser referida a exposição organizada por Stuart Morgan e Frances Morris e apresentada na Tate Gallery, em Londres, em 1995. Rites of Passage contou com a presença de artistas como Joseph Beuys, Louise Bourgeois, Morna Hatoum ou Bil Viola, entre outros, e propunha um encontro com a crise vivida pelo corpo do final do 291 Retirado do texto Statment, escrito pelos artistas Doug Ashford, Julie Ault, Mundy McLaughlin e Tim Rollins, citado por David Deitcher, Talking Control: Art and Activism, 1990, in GUASCH, Anna Maria (ed.), Los Manifestos del Me Posmodemo - textos de exposiciones, 19801995, p. 263, trad, livre. Das acções que realizaram destacam-se: Subculture (1983), America (1985), The Castle (1987) e Democracy (1989). «Group Material aparece como uno más de los elementos en juego de su proceso creativo, en el que es determinante la pedagogia y ei cambio de roles entre artista y público o entre emisor y audiência: "nosotros - afirmantoscomponentes del colectiyo - somos también parte de la audiência"», declarações numa entrevista em 1988, in GUASCH, Anna Maria, El arte último dei siglo XX- Del posminimalismo a lo multicultural, pp. 492/493. 170 milénio, um retorno à infância como perda da inocência em benefício de uma espécie de perversão, posta em cena nas apresentações artísticas destes autores, e denunciadoras do 'dramático do imprevisto e do carácter arbitrário do acidental. O imprevisto inevitável, a contingência, projectam-se sobre o espectador através de uma crua visão do corpo humano292». 292 GUASCH, Anna Maria, El arte dei siglo XX en sus exposiciones. 1945-1995, p. 393, trad, livre. 171 3.7. Hélio Oiticica: o sonho como revolta contra a repressão; o supra-sensorial pela incorporação corpo/obra, obra/corpo; centro enérgico e c//max corporal. «De tua pele brota a unidade, o gosto da terra, o calor (na capa 10). Incorporo a revolta (na capa 11). Da adversidade vivemos (na capa 12). Estou possuído (na capa 13). Estamos famintos (na capa 74J293», OITICICA, Hélio, in Hélio Oiticica, comissariado: Guy Brett, Catherine David, Chris Dercon, Luciano Figueiredo, Lygia Pape, dir.: Cesar Oiticica e Claudio Oiticica, prod.: Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris; Projecto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro; Witte de With, center for contemporary art, Rotterdam, Rio de Janeiro, Brasil, 1996, p. 299. 293 Estas frases são algumas das mensagens inscritas nos diversos Parangolés, capas esculturas para vestir, realizadas a partir de meados dos anos 60. 173 Os ambientes são «estender o sentido de "apropriação' às coisas do mundo» da experiência da vida quotidiana, acrescentando-se-lhes a necessidade de uma «in(corpo)ração» por parte do espectador, por forma a estabelecer «a incorporação do corpo na obra e da obra no corpo29*». Para chegar a esta definição, Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, 1937-1980) atravessou o Concreto com obras como os Metaesquemas (1958-59) e o Neoconcreto, com obras como os Monocromáticos, os Bilaterais, os Relevos Espaciais ou os Núcleos Espaciais (1959-60), atingindo-a, verdadeiramente, com os Bólides295, os Parangolé296 ou os Penetráveis297, iniciados na segunda metade da década de 60. Tropicália236, trabalho que marca o princípio daquilo a que chamou Nova Objectividade299, é um ambiente de incorporação tropical,«como que um fundo de chácara, e, o mais importante, havia a sensação de que se estaria de novo pisando na terra. Esta sensação, sentia eu anteriormente ao caminhar pelos morros, pela favela, e (...), lembra muito as caminhadas pelo morro300», é transformada, metaforicamente, em arte plástica, e na completa objectivação da ideia (OITICICA, Hélio, 1968) com a intenção de proporcionar a todos a partilha dessa mesma experiência. Surpreendente para o próprio autor que, quando este se tornou fruidor do seu trabalho, teve uma «sensação terrível (...) como se tivesse sendo devorado pelo próprio trabalho, como se ele fosse um grande animal. Interpretei isto como se uma transformação estivesse sendo processada no meu trabalho e pensamento™». O conceito de incorporação derivaria no Probjecto, originando diversos projectos de Manifestações Ambientais em colaboração com diversos artistas, 294 ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO, pp. 97/98. Sugere-se a leitura do texto Bólides, escrito por Hélio Oiticica em 29 de Outubro de 1963 e publicado em ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO, no Apêndice 6. 296 Sugere-se a leitura das Bases Fundamentais para uma definição do Parangolé e Anoíações sobre o Parangolé, ambos de Novembro de 1964, publicados por Hélio Oiticica para a exposição Opinião 65 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1965, no Apêndice 7. 297 Sugere-se a leitura do texto de Hélio Oiticica escrito a 3 de Junho de 1962 e publicado em ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO, Rio de Janeiro, 1986. 298 0 tema musical Tropicália de Caetano Veloso é dedicado a Hélio Oiticica e composto a partir da experiência da sua obra com o mesmo nome. Sugere-se a leitura do texto Tropicália, de Hélio Oiticica, escrito em 4 de Março de 1968 e publicado no Folha de São Paulo, Folhetim, São Paulo, 8 de Janeiro de 1984, Apêndice 8. 299 Hélio Oiticica não pretende que este termo seja definido como um movimento artístico, mas sim como um estado, um conceito definidor de uma tomada de posição do pensamento, um programa de acção. 300 ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO, p. 99. 301 Catálogo da Whitechapel Experience (fragmento de uma carta a Guy Brett). 295 174 dos quais Apocalipopótese é salientado, pelo próprio, como a mais marcante realização conseguida até à data. No Aterro do Flamengo, em frente ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em Julho de 1968 «tudo explodiu (...) John Cage estava lá, trazido por Esther Stodder - Escosteguy mostrava poemas-objetos - Samy Mattar roupas fosforescentes na luz negra - sambistas dançavam tantanteando - a intelectuália delirava - Raimundo Amado e Bartucci filmavam (...) - as pessoas participavam directamente, obliquamente, sei lá mais como - mas o importante é o sei lá mais como, o indefinido que se exprime pela inteligência clara de Lygia Pape ou pela turbulência de Antonio Manuel302, ou pela perplexo-participação das pessoas ou por Rogério Duarte dentro da manifestação, a redundância: a apresentação do apresentável: o ato dos cães, com domador e tudo: (...) - Rogério discursa - o spot de luz dos cineastas cai sobre a cena - cinema ou happening? - ambos e nenhum, porque é totalidade e não detalhe, mancha e transparência; não é o fato que quer exprimir o fato, ou a representação da "vida como ela é": é a construção da apresentação; o primeiro e último show de cães amestrados; a primeira e última fala de Rogério: o momento. Cheguei tarde com capas novas de Parangolé: não sei o que esperava: ver gente, estar ali; queimou-se muito fumo de Mangueira até lá: houve samba e trombada com o nosso carro na Candelária; hoje olho os slides e vejo pela primeira vez as capas: estão lindas: estão aqui, nas foto-momentos, na gente e no símbolo; gosto, adoro a faixa "feita no corpo" que um nordestino veste: é a capa "Gileasa" que fiz dedicada a Gilberto Gil; cada vez que a tento vestir, até hoje, parece a primeira vez: o corpo e a faixa, que se enrosca e se transforma no ato de descobrir o corpo, do jogo de descobrir como pode ser vestida: (...) Rosa Corrêa veste Seja Marginal Seja Herói - Halalaika, Caetetesveldria - a barba de Macalé espreita algo Frederico, Guevarcália - Nininha da Mangueira, Xoxoba - Torquato, a "Capa 1 " Bidu, Bulau, Santa Tereza, Mirim, Manga e Mosquito são escalas emotivas onde estou, que sons e actos e pensamentos nos rodeia - é a prática ou o 302 O jovem irreverente, revoltado contra o poder em geral, critica duramente o sistema com as obras que realiza. Dois exemplos marcantes são: Corpovera (António Manuel sobe os corredores do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e entra no salão principal, completamente nu e gritando continuamente: «UBERDADE É A PALAVRA!») ou Bobe Arte (António Manuel apresenta para selecção de uma exposição um bode ensanguentado, pintado de vermelho com a palavra LIBERDADE inscrita no lombo. 0 trabalho foi seleccionado e o artista, discordando do resultado, processou o júri da exposição). 175 acto? - é o pensamento ou o lacto? o filme é outra coisa, que o slide, que a visão-sentir de cada um lá, naquelas horas - seria já a creprática? - uma coisa é certa: é a primeira prática que se repetirá até ser a prática constante da liberdade-lazer303». O sentimento de abertura e êxtase desencadeados por este evento, confirmam e aclaram as ideias de procura do lazer, do prazer, numa simbiose da experiência artística com a vida. Os Bólides, Ninhos e Penetráveis fundidos num único ambiente, o Éden (1969), exposição na Whitechapel Gallery em Londres, manifestou-se num extenso laboratório de experimentação, de espaços abertos e cósmicos, para o participador, proporcionando-lhe a criação das «suas próprias sensações a partir deles, sem condicioná-lo a uma ou outra sensação (...) É claro que criação artística (e quero dizer "criação" em todas as suas manifestações) de um certo sentido engloba tudo isto, mas eu quero os sentidos especiais que tomam lugar agora no meu trabalho e em muitas modernas manifestações de participação individual na "obra de arte" participação num sentido total, não apenas "manipulação" que apele para os sentidos em isolamento304». A partir de então as suas criações participativas inscrevem-se nos conceitos Crelazer e Supra-Sensorial, que se opõem à inércia da sociedade de consumo, na sua frieza prática, numa reivindicação similar à proclamada por Paul Virilio. Acreditar no lazer como um estado comportamental de requisição e identificação é uma condição para o desenvolvimento da criatividade baseada na diversão, prazer, humor e conhecimento fenomenológico aliada à promoção da expansão individual da consciência, da capacidade sensorial do indivíduo, promotora da descoberta do seu centro criativo, no ritmo, no corpo, nos sentidos, e com a possibilidade de ser representado pelos estados alucinogéneos, induzidos pelo uso, ou não, de drogas305, transe religioso, ou 303 ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO, pp.129/130. OITICICA, Hélio, in Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Brasil, 1996, pp.12/13. A propósito das drogas e da sociedade de consumo, uma vez mais numa perspectiva crítica, Hélio Oiticica realizou as séries Quasi Cinema, Block-Experiments em Cosmococca durante a década de 70. Estes desenhos/objectos portáteis apresentavam, na sua maioria, imagens fotográficas de ícones da cultura pop americana (Marlin Monroe, Jimi Hendrix, Coca-Cola, etc.) sobre os quais desenhava com linhas em cocaína acrescentando-lhes, por vezes, objectos relacionados com o ritual de consumo desta droga. As séries foram apresentadas recentemente no Wexner 304 305 176 por alternados estados de êxtase e delírio consciente provocados, por exemplo, em Parangolé. Para Hélio Oiticica, o Supra-Sensorial cria a completa destruição da esteticização da arte, sublinhando um processo transformativo, potenciador de um sentido total do ambiente que leva o participador a uma acção intensa e livre, tomando-o, pelo contexto social e político brasileiros, na ma/s revolucionária estratégia anti-colonialista (BRETT, Guy). Com estes conceitos Hélio Oiticica ultrapassa a incorporação para atingir, numa expressão sua, o clímax corporal. Com Whitechapel Experience (1969), novamente na Whitechapel Gallery, comissariada por Guy Brett, Hélio Oiticica faz uma síntese da sua obra contra os preconceitos, abrigada306 no espaço da galeria. As suas experiências somatossensoriais da poesia do instante partem dos fenómenos da marginalidade, do anarquismo e da gestualidade, e chegam a tocar o impraticável. A crítica relativamente ao poder que dominava na sociedade brasileira da época, levou-o a escrever um livro, em 1970, intitulado Brasil Diarreia307. As suas experiências e as de todos os artistas que reagiam ao sistema, eram boicotadas, sujeitas à censura, e assim, na maioria dos casos, o Brasil assistiu, de longe, à concretização de diversos projectos artísticos, viabilizados pela sociedade norte-americana e inglesa. Os apelos de entrega total ao outro, projectados no Barracão, implicavam uma penetração de todos na sua vida íntima e pessoal, autorizando a fruição da sua casa, manifestação do desejo de construir o modelo do lazer, num projecto total e comunitário, «por isso eu comecei a transformar o lugar que eu moro, o ideal era esse, morar na própria obra306». «Subterrânia seria o tipo de pesquisa baseada no lado experimental da criação. Algo baseado totalmente numa actividade experimental e que, por si Center, Columbus, em Ohio, em conjunto com outros trabalhos da qual foi publicado o artigo QuasiCinemas com autoria da crítica de arte Margaret Sundell, na revista ARTFORUM - International, XL n° 6, Fevereiro de 2002, p. 127. 306 Este abrigo promove o regresso «à natureza, ao calor infantil de se deixar absorver: autoabsorção, no útero do espaço aberto construído-, ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO, p.130. 307 Sugere-se a leitura do texto Brasil Diarreia, publicado em Arte Brasileira Hoje, Rio de Janeiro, 1973, no Apêndice 9. 308 FAVARETTO, Celso, A Invenção de Hélio Oiticica, Editora da Universidade de S. Paulo, col.: Texto e Arte, vol. 6, São Paulo, 1992, entrevista a Ivan Cardoso, p. 194. Este projecto foi iniciado em 1968, antes da sua partida para Nova Iorque. 177 mesma, já se marginaliza e é subterrânea ("underground") com um sentido único de se comunicar no mundo inteiro em todos os graus (críticos e culturais).(...) As coisas feitas no Brasil já têm um carácter a priori "underground", no sentido em que o "underground" americano quer contraporse à cultura profissionalizada: foi uma coisa que nasceu para demolir o que Hollywood era: profissionalismo condicionado ao gosto do consumo; de repente, foi preciso aparecer o "underground", para outra vez as pessoas fazerem as coisas mais livres; por isso não tem sentido dizer "underground" brasileiro309». Em 1978 regressa definitivamente ao Brasil, depois de uma longa estadia em Londres e Nova Iorque, onde escreveu muitos textos e desenvolveu os Penetráveis, maquetas e ficheiros de projectos. Dois meses antes da sua morte, em Março de 1980, concretiza o projecto Esquenta pro Carnaval, no morro da Mangueira, que vinha no seguimento dos Parangolés Colectivos e do Apocalipopótese, pela apropriação do lugar, pela descoberta da sensualidade, numa semelhança visual com os Bólides. Hélio Oiticica sonhou com a possibilidade de devolver ao corpo o sentir do movimento, em metáforas de comunicação de sentimentos vivos, promovida pela sensação de voar - à semelhança de Vladimir Tatlin, na década de 30 -, reflectida nos seus projectos de crítica ao contexto politicosocial destinados a espaços públicos, bem como no entusiasmo com o contacto afectivo com os ambientes anti-opressão. Estes ambientes, centros enérgicos e abrigos, seriam essencialmente destinados ao Brasil, O desejo de serem apresentados no seu país de origem realizou-se, mas a insatisfação manteve-se. Para ele, ainda estava tudo no princípio. 309 FAVARETTO, Celso, A Invenção de Hélio Oiticica, entrevista a L A. Pires e de Heliotapes, 2, Flor do Mal n°4, p. 200. 178 3.8. Lygia Clark: o ritual da interiorização do corpo e da mente o diálogo e a experiência do outro; a nostalgia do corpo. «Eu sou o antes e o depois, sou o futuro no presente. Sou o dentro e o fora, o direito e o avesso. O que me toca na escultura. O dentro é o fora é que ela transforma a percepção que tenho de mim mesma, de meu corpo. Ela me modifica, estou sem forma, elástica, sem fisionomia definida. Seus pulmões são os meus. É a introjeção do cosmos. E ao mesmo tempo é meu próprio eu cristalizado em um objecto no espaço. O dentro é o fora: um ser vivo aberto a todas as transformações. Seu espaço interior é um espaço afectivo. Em seu diálogo com minha obra. 0 dentro é o fora, o sujeito actuante reencontra sua própria precariedade. (...) O ato de se fazer é tempo. Eu me pergunto se o absoluto não é a soma de todos os actos. (...) Nós somos uma totalidade espaço-temporal. (...) Se o tempo vive no momento do ato, o que provém do ato é incorporado na percepção do tempo absoluto. Não existe distância entre o passado e o presente. Quando olhamos para trás, o passado anterior e o passado recente se fundem. Talvez isso não seja claro. Mas a evidência da percepção que tive é a única coisa que me importa», CLARK, Lygia, Do Acto, Livro-obra., Rio de Janeiro, 1983, in Lygia Clark, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, Barcelona, itinerância: MAC, Galeries Contemporains des Musées de Marseille, Fundação de Serralves e Société des Expositions du Palais des Beaux-Arts, entre 1997 e 1998. 179 Hélio Oiticica e Lygia Clark (Belo Horizonte, 1920, Copacabana, 1988) exploraram o limite das experiências da participação. Numa das muitas cartas que Hélio Oiticica escreveu a Lygia Clark, pode ler-se: «Esse negócio de participação realmente é terrível, pois é o próprio imponderável que se revela em cada pessoa, a cada momento, como uma posse: também senti, como você, várias vezes essa necessidade de matar o espectador ou participador, o que é bom, pois dinamiza interiormente a relação, a participação, e mostra que não há, como vem acontecendo muito por aí, uma estetização da participação: a maioria criou um academicismo dessa relação ou da ideia de participação do espectador, a ponto de me deixar em dúvida sobre a própria ideia. [...] Creio que a grande inovação nossa é exactamente na forma de participação, ou melhor, no sentido dela, no que diferimos do que se propõe na Europa super civilizada ou nos EUA: há uma "barra mais pesada" aqui, talvez porque os problemas tenham sido checados de modo mais violento3™». A esta carta Lygia Clark responde: «£ exactamente essa "relação nela mesma" como você diz que a faz viva e importante. (...) Mas não é a participação pela participação e não é dizer como o grupo do Le Parc que arte é um problema da burguesia. Seria simples demais e linear. Nada profundo tem essa simplicidade e nada de verdadeiro é linear. O que eles negam é o importante: é o pensamento. Acho que agora somos os propositores e, através da proposição, deve existir um pensamento, e quando o espectador expressa essa proposição ele, na realidade, está juntando a característica de uma obra de arte de todos os tempos: pensamento e expressão. E para mim tudo está ligado. (...) A verdadeira participação é aberta e nunca poderemos saber o que damos ao espectador-autor. É exactamente por isso que falo num poço onde um som seria tirado de dentro, não por você-poço, mas pelo outro, na medida em que ele atira sua própria pedra...(...) E quanto mais diversas forem as vivências, mais aberta é a proposição e então é mais importante. Aliás, penso que agora estou propondo o mesmo tipo de problema que antes ainda era 3,0 p. 174. 180 OITICICA, Hélio, Novembro de 68, in FAVARETTO, Celso, A Invenção de Hélio Oiticica, através do objecto: o vazio pleno, a forma e o seu próprio espaço, a organicidade..3"». O percurso de Lygia Clark tem, numa fase inicial, muito de comum com o de Hélio Oiticica mas existe uma diferença que os distancia. Lygia Clark não viveu nos morros do Rio de Janeiro e, portanto, mesmo sentindo na pele os 15 anos de ditadura militar, teve um sentido de revolta diferente, que se revela no seu percurso e nas suas experiências. Assim como Hélio Oiticica, escrever era uma das facetas a que se dedicava. Durante toda a vida escreveu inúmeros textos e cartas. Nos seus escritos, que viriam a ser compilados e publicados mais do que uma vez, reflectiu sobre a sua obra, as suas intenções e vivências, criando uma escrita cada vez mais pessoal e íntima, ao ponto, por exemplo, de descrever os seus sonhos. Sonhava com a entrega da obra ao outro, com a promoção, nos outros, de novas experiências, que fizessem crescer a energia sensorial existente em cada um e que está escondida e é reprimida pela sociedade312. Para Lygia Clark, o artista é um propositor que faz sugestões ao espectador/fruidor, considerado como paciente. Ao pisar esta linha que coloca a questão do artista/médico, espectador/paciente, Lygia Clark inicia um processo, que se torna, por vezes, tão revolucionário e audacioso como, diria perigoso. Nas suas últimas obras, os Objectos relacionais - quem visitou a sua exposição na Fundação de Serralves, em 1998, teve a oportunidade de contactar com os sacos de plástico ou de pano, cheios de ar, água, areia ou os tubos de borracha, panos, meias, conchas, mel, e outros objectos poéticos, simples e inesperados - criados na sua casa apelidada, por si, de consultório, foram usados nos rituais que desenvolvia com aqueles que recebia313. Os Objectos relacionais têm «o poder de nos fazer diferir de nós mesmos» e actuam numa indefinição entre arte e psicanálise encarada pela 3 " CLARK, Lygia, in Lygia Clark, catálogo da exposição, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, Barcelona, 1997 e 1998, p. 236. 3,2 Remeto o leitor para o texto Breviário Sobre o Corpo em Apêndice 10. 313 Lygia Clark afirmava que a verdadeira casa é o corpo. Ao transformar a sua casa no consultório de recepção dos seus pacientes, convida-os, metaforicamente, a entrarem no seu próprio corpo. 181 artista como «um trabalho fronteira: (....) não é psicanálise, não é arte. Então eu fico na fronteira, completamente sozinha3H». O intercâmbio de experiências de conhecimento do outro e de autoconhecimento, que começa por ser realizado em espaços museológicos, passa, nos anos 70, a cingir-se quase exclusivamente ao seu grupo de estudantes de Sorbone (Paris), com o qual trabalhou exaustivamente, inventando, correndo riscos, que provocavam as mais diversas sensações de prazer perturbador. Esta decisão de restringir a um grupo muito limitado de pessoas a fruição dos seus trabalhos pode, numa primeira análise, sugerir alguma contradição com os pressupostos que esta artista apresenta, mas tratava-se da única saída encontrada por Lygia Clark para, afinal, não se trair. Numa carta que escreveu a Guy Brett pode ler-se: «Idealmente as minhas obras deviam ser lançadas em grande número ao homem da rua, uma coisa impossível para mim aqui no Brasil315» Nesta impossibilidade, com a experiência do museu a revelar-se insatisfatória pelo contacto impessoal, distante, frio, e, principalmente, elitista e burguês, restavam poucas opções para Lygia Clark concretizar as suas ideias. Depois de morte do plano (título de um texto escrito por Lygia Clark no final dos anos 50) e da criação de dezenas de Bichos (pequenas esculturas articuladas, ligadas por dobradiças, construídas a partir de formas geométricas simples que mudavam de aparência, metaforizando-se, reagindo aos estímulos do espectador que as podia alterar, modificando a forma do objecto que lhe era apresentado - a ideia da escultura sem pedestal e sem forma única), concebe em 1963, Caminhando. Convidando-nos a integrar o ritual, escreveu: «Faça você mesmo um Caminhando316». Neste trabalho, Lygia Clark «propõe ao outro construir sua fita de Moebius e depois percorrê-la longitudinalmente, cortando-o com uma tesoura. A fita de Moebius é aquilo que "ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo"317» numa valorização dos gestos mais simples do quotidiano. Através destes gestos desejava que atingíssemos uma consciência poética. 3,4 CLARK, Lygia, do texto de Suely Rolnik, O híbrido de Lygia Clark , in Lygia Clark, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, 1997-98. 3,6 BRETT, Guy, Lygia Clark: Seis Células, in op. oit, p. 19. 3,6 CLARK, Lygia, Caminhando, Livro-obra, Rio de Janeiro, 1983, in op. cit., p. 151 317 CLARK, Lygia, Do Ritual, 1960, in ibidem. 182 «Na primeira vez que cortei o Caminhando, vivi um ritual muito significativo em si mesmo. E desejei que essa mesma acção fosse vivida pelos futuros participantes3™». Ao descrever a sua experiência pessoal do ritual, Lygia Clark fornece-nos elementos que definem o seu esquema processual criativo. Dirse-ia que este processo implica, em primeiro lugar, uma atenção da artista para com os seus gestos e atitudes corporais, os detalhes, os pequenos pormenores das suas vivências, para depois os eleger e encontrar as formas de expressão que lhe permitirão realizar plasticamente, num outro contexto, referências a essas experiências, testadas previamente por si e, finalmente, colocá-las em confronto connosco. Na sequência do Caminhando e da amizade com Hélio Oiticica, realizam juntos o Diálogo, fita de Moebious (1966). Esta relação pessoal foi motivo para as mais diversas comparações entre a obra de ambos, motivando Lygia Clark para uma explicação: «Hélio e eu somos como uma luva. Ele é o lado de fora da luva, muito ligado ao mundo exterior, eu sou o lado de dentro. E nós dois existimos do momento em que há uma mão para vestira /uva319». Esta frase, para além de denotar uma profunda cumplicidade entre ambos e, ao mesmo tempo, revelar o pensamento poético de Lygia Clark, revela, também, a ideia de que a fruição das obras de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, com as diferenças que os distinguem, baseia-se num processo ritualizante de dádiva e partilha, mostrado sobretudo na obra de Lygia Clark, contrariamente aos casos de autores como Bruce Nauman, Dan Graham ou Dennis Oppenheim, tratados neste trabalho. Os seus trabalhos de absorção corporal na experiência do outro anunciam-se, por exemplo, em Diálogo Roupa-corpo-roupa (1967). Lygia Clark convida um homem e uma mulher a vestirem as roupas ligadas por um umbigo de borracha, um cordão umbilical, e a fazerem uma exploração táctil num encontro sensual e excitante promovido pelas sugestões metafóricas do seu próprio sexo nos bolsos e fechos da roupa do outro. Do mesmo ano, Respire comigo é uma das suas experiências mais simples mas, ao mesmo 318 CLARK, Lygia, A propósito da maga do objecto,, Livro-obra, Rio de Janeiro, 1983, pp.153/154. 319 CLARK, Lygia, citado na revista Veja, Rio de Janeiro, Dezembro, 1986, retirado do texto de Guy Brett, O exercício experimental de liberdade, in Hélio Oiticica, Projecto Hélio Oiticica, 1996, p. 227. 183 tempo, uma das mais complexas no que respeita à profundidade comunicacional do fruidor consigo próprio. A partir de um tubo de borracha, como os usados pelos mergulhadores, deparamo-nos com a realização do simples gesto de juntar as duas pontas, «pormos um dedo sobre a junção e expandirmos o tubo de maneira que produza o som de respiração ao nosso ouvido. É como se puséssemos os nossos próprios pulmões fora de nós - ou como se invocássemos outra pessoa intimamente perto. (...) Organicidade, o vácuo absoluto, todos os conceitos que propus antes no objecto são agora introvertidos no interior da pessoa320». Há um grupo de obras de Lygia Clark, dos últimos anos da década de 60, que pode ser considerado como o centro e o pivô das suas descobertas. Refiro-me às Máscaras sensoriais (1967), e a uma série de obras consequentes: as Máscaras abismo (1968). Estas obras permitem-nos rever a posição a que Lygia Clark chega, nesta altura, em relação aos seus contemporâneos, e a avançar para as descobertas que faria na área que, de uma maneira geral, ela própria designava por Nostalgia do corpo terminologia na qual encontramos afinidades com as propostas artísticas de Louise Bourgeois - e que permite, entendendo a obra como sublimação, um relacionamento das obras e do pensamento das duas artistas. As Máscaras sensoriais são máscaras largas feitas de tecido colorido, às quais a artista coseu objectos ou materiais que tapam os olhos e as orelhas: uma parte que se alonga até ao nariz contendo uma substância para ser cheirada - a combinação de sensações produzidas por meios simples. O som, por exemplo, de uma bola sólida rebolando numa pequena taça de poliestireno contra os ouvidos, estreitas frestas sobre os olhos e um odor de ervas no nariz, ou um fino tule sobre os olhos, berlindes a chocalhar em sacos por cima das orelhas e outro odor no nariz. Embora para o participador a experiência seja interior, as máscaras têm também um aspecto exterior para os assistentes: são cabeças de estranhos seres ou os capuchos usados pelos penitentes num ritual religioso medieval. Com as Máscaras abismo, não há realmente nenhum aspecto exterior além de uma vaga monstruosidade. Como o seu nome sugere, são radicalmente interiores. Uma venda tapa os olhos. 320 CLARK, Lygia., Do Ritual, 1960, in Lygia Clark, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, 1997-98. 184 Pendendo da cabeceira há grandes sacos de plástico cheios, rodeados por redes e com o peso de pedras que se encontram nas redes ou suspensas de elásticos. Os participantes acariciam ou apertam os braços à volta dos leves mas pesados balões, sós ou em grupos. Lygia Clark usou metáforas baseadas no vestuário e na arquitectura, fundido-as no seu suporte: o corpo. A estrutura labiríntica A casa é o corpo, construída para o Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza em 1968, promove uma viagem através de um túnel constituído por salas escuras com balões que se atravessam até se encontrar a saída numa tenda cheia de luz. O caminhar para a libertação e em direcção à luz, sentindo profundamente o corpo na sua totalidade e plenitude, conferem às obras de Lygia Clark, não só o carácter de rituais como a convertem numa das principais impulsionadoras da consciencialização do papel da arte e do artista, das obras de arte e do público: a dissolução do artista no mundo (CLARK, Lygia, 1983). Estudar a obra de Lygia Clark remete-nos constantemente para o diálogo que ela estabelece consigo própria e com o outro, ao qual proporciona um encontro consigo próprio para atingir o estado singular de uma arte sem arte (CLARK, Lygia, 1983), promovendo a construção de uma experiência de espaço e tempo comuns na qual o «meu pensamento e o seu formam um só tecido, os meus ditos e aqueles do interlocutor são reclamados pelo estado da discussão, incerindo-se numa operação comum da qual nenhum de nós é o criador32''». Por outro lado, remete-nos para o discurso fenomenológico desenvolvido pelo pensamento de Maurice Merleau-Ponty. Justifica-se, deste modo, que Lygia Clark tenha declarado ser tão profundamente egocêntrica e que isso a levou a «dar tudo ao outro, até a autoria da obra322». 321 MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção, pp. 474/475. BRETT, Guy, Lygia Clark: Seis Células, in Lygia Clark, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, Barcelona, 1997-98, p. 18. 322 185 3.9. Lygia Pape: o corpo como registo das memórias poéticas e do nascimento. «A obra não precisa de ser uma coisa perene. Ela é eterna em seu conceito», PAPE, Lygia, introdução do dossier acerca da sua obra, ao qual tive acesso através do director da galeria Canvas, José Mário Brandão. 187 Considerando, na arte brasileira, a existência de um corpo nuclear referenciador das décadas de 50 a 70, este será composto por três artistas: Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape323. A ruptura com as regras instituídas motivou diversos artistas que viviam a ditadura no Brasil e é também sentida na obra de Lygia Pape, a partir da trilogia iniciada no final dos anos 50: Livro da Criação; Livro da Arquitectura e Livro do Tempo. Estes livros são uma visão da autora acerca da criação do homem, dos espaços que usou para desenvolver o conceito de habitação, e um diário de 365 peças, que pode ser manipulado pelo espectador. Mais do que livros de pequeno formato nos quais impera a ausência total da palavra, são poesias plásticas, entre a pintura e a escultura, composições de luz e cor, organizações espaciais realizadas em materiais diversos (papeis, cartões ou madeiras, com colagens e pinturas a guache) que, ao serem manuseados, se vão degradando, necessitando, por isso, de serem refeitos. O cansaço provocado pela constante reconstrução destes trabalhos ao longo de anos fez com que Lygia Pape decidisse acabar com a sua manipulação e passasse a apresentá-los fixos em paredes ou dentro de caixas transparentes, tornandoos objectos museológicos - tivemos oportunidade de os ver na sua exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, em 2000. «Eu já fiz 50 cópias do livro porque as pessoas mexem, e como aquilo é de cartão, aos poucos vai desmanchando. Agora eu faço, às vezes, uma réplica e, em geral, não gosto que mexam, porque já estou cansada. Ele agora é quase um documento 323 Este núcleo participou, em conjunto, em diversos eventos, dos quais são exemplos: / Exposição Neoconcreta, MAM, Rio de Janeiro (1959); // Exposição Neoconcreta, Ministério da Educação do Rio de Janeiro (1960); Nova Objectividade Brasileira, MAM do Rio de Janeiro (1967); Apocalipopòtese, Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro; Projecto construtivo brasileiro na arte 7950-62, organizado por Lygia Pape, Pinacoteca do Estado de S. Paulo e no MAM do Rio de Janeiro (1977); Brasil: Segni D'arte, Veneza, Milão, Florença, Roma (1993); Ultramodern- the art of contemporary Brazil, Washington (1993); Bienal Brasil Século XX, S. Paulo (1994); Ouf of Actions- between performance and the object, 1949/1979, Los Angeles, Viena, Barcelona, Tóquio (1998/99); CIRCA/ 1968, Museu de Serralves, Porto (1999); LHL - Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Brasília (1999). Dos três, hoje, só é possível manter contacto e acompanhar a produção de Lygia Pape. Foi à cerca de quatro anos que tive um contacto mais aprofundado com a sua obra, através da Galeria Canvas. Um dia entrei na galeria e, no acervo, era apresentado um vídeo que documentava algumas das suas experiências. Conhecia o seu trabalho das reproduções de catálogos e das referências em livros. Pedi que me fornecessem toda a documentação acerca da sua obra e fui informada que Lygia Pape vinha realizar, em Junho de 1999, a sua primeira exposição individual na galeria. 188 histórico. Você até o pode ver montado e imaginar como é que ele seria. Mas eu prefiro que não foquem324». Os trabalhos que Lygia Pape realizou a partir desta altura, são «uma semente permanente e aberta», como referiu Hélio Oiticica, em 1969, que «se aquecem nas improvisações do acaso e da poesia», como os descreveu Mário Pedrosa - expressões referentes para o sentido lúdico promovido pelo diálogo entre a obra e o fruidor, e que apela à sua predisposição para despender o tempo necessário à apreensão das mensagens patentes nas obras325. Lygia Pape foi, no Brasil, uma das pioneiras da «quebra do suporte e do uso de questões corporais no trabalho326». O Bale Neoconcreto I, de 1958, é revelador da fusão de diferentes áreas de intervenção artística, onde se mistura dança, escultura, pintura, ou teatro, e no qual, como nos que lhe seguirão, o corpo é o promotor da acção de forma não visível, perceptível apenas pelo movimento que executa no interior dos objectos, sólidos geométricos, construídos em aglomerado de madeira e pintados com diferentes cores planas, que o escondem. Inspirado num poema de Reynaldo Jardim e com música de Gabriel Artosi (nome de código de Reynaldo Jardim), este ballet usa apenas duas palavras: alvo e olho, e duas notas musicais de percussão. Embora o termo minimalista ainda não existisse no vocabulário específico das artes, o movimento de sólidos geométricos que alteravam a sua cor através de efeitos lumínicos, levantava inúmeros conceitos pouco explorados até então. Os ballets são as primeiras experiências do corpo realizadas por Lygia Pape e Reynaldo Jardim, que também pertencia ao Grupo Neoconcreto. «Só tinha o movimento das formas no palco, que era o motor do corpo. Não tinha aquela presença expressionista do corpo, mas tinha o essencial. A essência do movimento, do deslocamento dos corpos no espaço327», onde não existe fundo finito, nem linha do horizonte (particularmente no segundo ballet), como pinturas em movimento e três 324 Conversa com Lygia Pape. Nas conversas que tive, com esta artista, acerca da arte e do seu trabalho, estiveram sempre presentes as temáticas: espectador e multissensorialidade nas obras de arte. 326 Jornal O Estado de S. Paulo, 2° Caderno, Personalidade, Mista é pioneira na utilização da questão corporal, 22 de Abril de 1995, Brasil. 327 Conversa com Lygia Pape. Este assunto reporta-nos para o capítulo 2. A Indústria do Corpo e a Proposta Multissensorial, nas abordagens à dança e ao corpo-movimento. 325 189 dimensões, de fundo infinitamente negro, sem leitura narrativa: a «pura abstracção32*». Nessa mesma época, Lygia Pape trabalhou em programação visual e cinema, ao qual se mantém ligada até hoje. O seu interesse pela luz, cor e movimento, levam-na a realizar pequenas experiências cinematográficas que apresentava aos seus amigos e colegas do grupo do Cinema Novo. Fez dezenas de filmes e programação visual de tantos outros, apresentados primeiramente em sessões que realizava em sua casa329. Se, em Caixa das Baratas (1967), Caixa das Formigas (1967), Caixa do Brasil (1968), Objectos Sedução de Eat Me: gula ou Luxúria? (1976), entre outros, é revelado o lado mais critico à sociedade, às instituições ou ao papel da mulher como objecto de manipulação, nas palavras de Lygia Pape, o discurso do seu trabalho nunca é «para ser um discurso político, nem social», embora «essas coisas possam até ser filtradas se você estiver motivado para isso. O que eu estou procurando ali é um estado poético. Estou procurando alguma coisa poética que possa ser gerada por aquilo330». É exactamente nessa poesia e nesse sentido de construção de uma arte poética participada por todos que se centram O Ovo, o Divisor ou a Roda dos Prazeres, todos trabalhos datados de 1968. «Nesses se você, realmente, não mergulhar no trabalho, o trabalho vai ficar ali como uma escultura™», como se o processo não fosse terminado se o público não as interpelasse e não participasse nestas experiências. Embora concebido em 1967, o Ovo332 só foi apresentado pela primeira vez, em 1968, no Apocalipopótese, ou Arte no Aterro, em conjunto com obras de outros artistas, onde Hélio Oiticica, relembro, apresentou o Parangolé. O Ovo convida a uma performance, metáfora do nascimento, provocando a sensação de voltar a nascer - o momento mais importante da nossa vida, pelo 328 Conversa com Lygia Pape. La Nouvelle Création (1967), premiado em França, O Guarda-chuva vermelho (1971 ),documentário sobre Oswaldo Goeldi, Carnival in Rio (1974), Arenas Calientes (1974), A Mão do Povo (1975), Eat Me (1975), Catiti Catiti (1978), celebração da antropofagia, e, mais recentemente, Maiakovski e Sedução III (1999), são apenas alguns exemplos. 330 Conversa com Lygia Pape. 331 Ibidem. 332 Em 1973, Hélio Oiticica escreveu acerca de Lygia Pape um texto em formato de prosa poética, motivado pela experiência do Ovo. Deste retirei alguns excertos que se apresentam no Apêndice 11. 329 190 qual todos nós passamos sem ter qualquer lembrança da sensação vivida. Com o Ovo podemos ter novamente essa experiência e retê-la na nossa memória para sempre. As três estruturas cúbicas de 80cm de lado, revestidas por uma película plástica, cada uma com a sua cor (azul, vermelha e branca), permitem que cada um de nós possa penetrá-la (são abertas por baixo) e, rompendo-a, provocar o nosso nascimento, atravessando aquela pele fina e elástica. «Uma vez também eu participei de uma filmagem e foi a primeira vez que eu "nasci". É uma sensação muito estranha, porque você fica trancada ali dentro, envolto por uma espécie de pele, (...) a membrana começa a ceder e de repente ela se rasga e você nasce, bota a cabeça pelo buraco e rola para fora. Quando fui fotografar o trabalho, os três sambistas eram o Hélio Oiticica, o Nildo da Mangueira e o Santa Teresa, e o Hélio baptizou a transação de Trio do Embalo Maluco333». A antropofagia proclamada por Oswald de Andrade no infcio do século passado, faz ironicamente alusão a um episódio da história do Brasil: o naufrágio do navio em que viajava um bispo português, seguido da morte do mesmo bispo, devorado por índios antropófagos, os índios Tupinambá334. Estes índios comiam a carne não só para se alimentarem como também para receberem as forças espirituais do prisioneiro. «Depois de Oswald de Andrade, um grande artista, bem experimental, ter incorporado essa ideia dos índios Tupinambá, de você devorar tudo aquilo que vinha de fora do Brasil, culturalmente falando, e transformar numa nova força espiritual, se fala muito numa força antropofágica. autêntica...sua 335 (...) Devorar e transformar numa coisa ». Este processo antropofágico foi aplicado em obras de Lygia Pape, como: Eat Me - A Gula ou a Luxúria? (1975), Manto de Tupinambá e Memória Tupinambá (1996/99), nos quais o confronto com a antropofagia é ironicamente submetido ao desejo e prazer canibais; e de Lygia Clark, de que são exemplos: Canibalismo (1973) e Baba Antropofágica (1973), experiências realizadas com os seus estudantes de Paris, nas quais um dos membros do grupo fica deitado no chão, de olhos vendados, rodeado pelos seus parceiros, sentados ou ajoelhados, que vão, em Canibalismo, abrir o fecho do fato que 333 PAPE Lygia, Lygia Pape, Arte Brasileira Contemporânea, Funarte, 1983. Oswald de Andrade assinou o Manifesto Antropofágico do qual pode ser lido um resumo no Apêndice 3. 335 Conversa com Lygia Pape. 334 191 este usa e que na zona abdómen tem guardada fruta, que estes retiram e devoram, também eles de olhos vendados; ou em Baba Antropofàgica, tirando das suas bocas um fio contínuo molhado de saliva que deixam cair sobre o rosto e corpo horizontal, até atingirem a cara e esta ficar toda coberta. A propósito destas experiências Lygia Clark escreveu: «(...) chegamos ao que eu denomino de Corpo Colectivo, que em última análise é a troca de conteúdos psíquicos entre as pessoas a partir da vivência em grupo de proposições comuns. Esta troca não é uma coisa agradável: a ideia é um componente do grupo vomitar sua vivência ao participar de uma proposição, vómito esse que será engolido por outros, que imediatamente vomitarão também seus conteúdos internos. É assim uma troca de qualidades psíquicas, baba, e a palavra comunicação é fraca para exprimir o que acontece no grupo». Acerca de Canibalismo, Lygia Clark escreveu: «(E) como entrar nos corpos uns dos outros. Aqui não há espectador. É uma ideia monstruosa transformada numa alegria íntima336». No decorrer das suas manifestações, chegou mesmo a dizer que achava que se estava a tornar um antropófaga: «Tenho vontade de comer todo mundo que amo e que se ache aí». Em 1967, no antológico texto Esquema Geral - a Nova Objectividade, Hélio Oiticica redefine antropofagia para a sociedade brasileira sob o regime militar, escrevendo: «a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, e a principal arma criativa, essa vontade construtiva, o que impediu totalmente uma espécie de colonialismo cultural, que de modo objectivo queremos hoje abolir, absorvendo-o definitivamente numa superantropofagia». Oiticica alinha-se com Oswald de Andrade «contra todos os importadores de consciência enlatada337». O Divisor de Lygia Pape foi projectado inicialmente para ser apresentado numa galeria. «Eu ia aproveitar a sala branca para colocar o enorme toldo de plástico cheio de fendas que descia do tecto e baixava em direcção à entrada. Você era então obrigado a se baixar ao entrar, e depois passava a procurar uma altura razoável onde fosse possível enfiar a cabeça dentro de uma das fendas sem ficar muito incomodado. Dos dois lados haveria 336 BRETT, Guy, Lygia Clark: Seis Células, in Lygia Clark, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, Barcelona, 1997-98, p. 28. 337 HERKENHOFF, Paulo, in Lygia Clark, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, Barcelona, 1997-98, p. 48. 192 espelhos; sopraria um vento gelado na parte de cima e um quente na parte de baixo. Você se sentiria, assim, dividido térmica e fisicamente. Nos espelhos se viria um imenso pano cheio de cabeças. Já imaginou todas aquelas cabeças sem corpo conversando umas com as outras naquele pano branco? Como não consegui realizar o trabalho na galeria, por falta de dinheiro, resolvi fazer um pano de 30 x 30 metros, ou seja, de 900 m2, abri nele fendas e.. ,338» «A primeira vez que eu o apresentei, coloquei-o no morro perto de umas crianças porque tive a intuição de deitar o pano no chão e ver o que é que acontecia. Como era um lugar que tinha umas manchas e umas sombras provocadas pelo sol, ficou tudo manchado e era uma coisa, visualmente, muito bonita.(...) Aí, vieram uma porção de criancinhas e pularam pelo pano todo, naquela inclinação. E pularam, pularam! De repente houve um que descobriu e enfiou a mão por baixo e viu que aquilo era leve, que podia levantar e que tinha uns buracos. Aí, todos correram e enfiaram as cabecinhas. E, de repente, havia um enorme bicho branco cheio de cabecinhas descendo o morro.(...) Foi uma obra do acaso, mas em que a estrutura do trabalho induzia a esse comportamento. Foi uma coisa muito interessante.(...) O Divisor tem um sentido de obra aberta. Primeiro ele tem uma leitura fácil que a própria estrutura indica. Não tem que se fazer nenhum discurso para as pessoas usarem tecido, daquela maneira. Ao mesmo tempo, ele tem sentido de obra aberta porque cada um pode pensar o trabalho da maneira que quiser. Exactamente como no livro da criação. Para mim, ele é a criação do mundo, mas para você ele pode ser outra coisa. Através das suas vivências, ele pode ser outra coisa. Essa estrutura aberta permite que você tenha enumeras leituras do trabalho. Claro que certas pessoas, que têm uma carga maior de sensibilidade, da experiência da percepção, ..., vão olhar de uma maneira, e outros de outra. Mas a experiência é gratuita. Eu não estou cobrando nada. Eu dou uma experiência que o corpo participa de uma forma gratuita. Aquela experiência é diferente porque é nova. Quem enfia a cabeça ali não sabe para quê, mas tem o prazer de fazer isso339». São experiências como estas que nos vão marcando e alterando porque cada vez que temos uma experiência sensível do corpo, esta fica registada, transformando-nos naquilo que vamos sendo dia após dia. Uma das 338 339 PAPE, Lygia, Lygia Pape, Arte Brasileira Contemporânea, Funarte, 1983. Conversa com Lygia Pape. 193 expressões que Lygia Pape utiliza frequentemente, no seu discurso, é bebera obra. Este sentido de digerir, de assimilar, de viver interiormente o trabalho é uma constante em toda a sua carreira e, particularmente, evocado em Roda dos Prazeres. Aqui, somos mesmo convidados a provar a obra para que esta denuncie o seu propósito. «Ao desenvolver a ideia de arte pública, acho que cheguei ao limite da obra não comercial, uma obra que qualquer pessoa poderia repetir em casa. Queria chegar ao máximo da doação ao espectador. Já não estava mais preocupada com o facto da participação, mas com a possibilidade de a pessoa poder usar aquilo até para si mesma. Esse era o caso da Roda dos Prazeres, uma obra que poderia ser refeita em casa. Tratavase de um circulo onde coloquei, aleatoriamente, sabores diversos relacionados a cores diferentes. Pus pimenta, sal, vinagre, uns sabores agradáveis e outros desagradáveis, difíceis de identificar. Tem uma erva muito curiosa no Pará, o jambu, uma folhinha verde que, após o contacto com a língua, faz a boca tremer, e a pessoa acha que está envenenada. O pato no tucupi e o tacaca levam essa erva em receitas. Ela propicia uma experiência fantástica, uma delícia, e que ninguém conhece. Claro que a experiência mais radical na Rosa dos Prazeres seria o uso de veneno como um dos sabores3*0». O que torna curioso este trabalho é o jogo sinestésico que Lygia Pape faz entre a visão e o paladar. «O que o olho escolhe ali, pode ser a cor, que pode ser muito prazerosa para ele, e que o paladar pode recusar. Então, quando você percebe esse jogo de um sentido com o outro, você está tendo uma experiência própria, sua (...). A experiência, em si, já permite uma percepção do mundo especial, diferente3^». Os conceitos entrar e sair ganham um significado particularmente importante, nesta altura. Se nos trabalhos anteriormente descritos, estes conceitos estão marcadamente presentes, O Homem e a Sua Bainha e Espaços Imantados, mostram, também, uma carga erotizante do dentro e do fora, do entrar e do sair. «A partir de minhas andanças de carro pela cidade (...) fui percebendo um tipo novo de relação com o espaço urbano, assim como se 3« PAPJT^ Lygia, Lygia Pape - entrevista a Lúcia C. Arneiro e Ueana Pradilla, Centro de Arte Hélio Oiticica, 1998. 341 Conversa com Lygia Pape. 194 eu fosse uma espécie de aranha tecendo o espaço, pois é um tal de vai daqui, cruza ali, dobra adiante, sobe e desce em viadutos, entra e sai de túneis, eu e todas as pessoas da cidade, que é como se passássemos a ter uma visão aérea da cidade e ela fosse uma imensa teia, um enorme emaranhado. E eu chamei de espaços imantados porque aquilo tudo era uma coisa viva, como se eu fosse caminhando ali dentro a puxar um fio que se trançasse e se enovelasse ao infinito3*2». «O camelo urbano era um destes exemplos da criação de espaços imantados: "Ele chega na sua esquina e abre sua pequena maleta e começa a sua conversa mole de vendedor, criando subitamente um tipo de imantação. As pessoas juntam-se ao redor dele, identificando-se com aquele padrão de fala irregular, às vezes breve, às vezes de grande fôlego. E então, de repente, ele cala a boca, fecha a maleta e o espaço vai-se minguando até chegar a nada343». Das experiências mais recentes que Lygia Pape realizou, destaco: Lugar do Sertão (1995), Narizes e Línguas (1996), Is Your Life Sweet? (1996) ou Eu Como Eu e Coelho (1999), trabalhos que fazem a alusão aos abismos e contrastes sociais da sociedade actual numa «dicotomia dolorosa entre o que o olho vê ou o nariz cheira, e o que a barriga sente. (...) A grande cascata mistura a substância de comida com o seu perfume ilusório de abundância paradoxal3™». Em meados de 2001, Lygia Pape encontrava-se a preparar Seu Particular, trabalho que considera oposto ao Divisor, por ser uma performance de carácter individual e revelador de um encontro solitário com nós próprios. «São tendas brancas com uma borda preta e que só têm lugar para uma pessoa. São individuais, mas também é a pessoa que tem que abrir e entrar. É uma tenda pendurada que tem lá dentro, numa, "para meditar", noutra, "para pensar",...Eu sugiro um espaço individual, particular, porque é só para ele, para ele fazer alguma coisa lá dentro. Então tem várias propostas. Acabei de fazer agora e é o oposto do outro, embora também exija participação.(...) É você com você mesmo. Até porque há pessoas que não suportam ficar sozinhas. 3.2 PAPE, Lygia, Lygia Pape, Arte Brasileira Contemporânea, Funarte, 1983. BRETT, Guy, in Lygia Pape - Gávea de Tocaia, Fundação de Serralves, Cosac & Naify Edições, 2000. 3 " Ibidem. 3.3 195 Sendo um espaço reduzido (80 x 80cm), uma cabana, uma tenda, você entra e pode fazer o que quiser,... está isolado, ninguém te vê. (...) Há! E este trabalho é mostrado numa galeria de arte onde supostamente é para as pessoas irem lá olhar as obras. Mas esse é ao contrário. Você entra na obra e fica oculto lá dentro e ninguém sabe o que é que se está passando lá. Eu acho isso divertido porque estou invertendo todos os signos, os sentidos da obra345». No trabalho de Lygia Pape a ideia de teia parece estar subjacente a todo o processo criativo. Se por um lado, a terminologia teia pode ser encarada como uma metáfora do sistema social e político que a artista ironicamente critica, por outro lado, o ritual do nascimento anunciado pelo Ovo, o corpo-colectivo da experiência do Divisor, ou as construções sedutoras e transparentes desenvolvidas a partir de meados da década de 70 com as diversas Tteias, revelam um sentido poético de dádiva e partilha baseado na ideia de que a experiência sensorial desenvolve o conhecimento e a consciência. Este sentido poético é encontrado, por esta artista, em jogos ritualizados baseados nas experiências da infância que apelam à descoberta e curiosidade. Se as referências constantes às memórias do universo da infância permitem um relacionamento da obra de Lygia Pape com a de Louise Bourgeois é, todavia, neste mesmo tema que, paradoxalmente, as distingo, confrontando-me com as metáforas da teia, de Lygia Pape, e da aranha, da Louise Bourgeois. Esta comparação aproxima as duas artistas relativamente aos já referidos movimentos de dádiva e partilha com o fruidor mas afasta-as, simultaneamente, no que respeita, por exemplo, ao discurso autobiográfico. Todas as crianças temem as aranhas, a escuridão e o silêncio e Louise Bourgeois incorpora esse medo, transformando-se numa gigantesca aranha negra, isolada e, misteriosamente silenciosa. As teias que as aranhas constróem como habitat são, igualmente, a armadilha para as presas e Lygia Pape apresenta-as douradas, transparentes, cintilantes e flexíveis, como se tratassem de armadilhas uterinas. Assim, penso que a grande distinção de conteúdos entre as duas autoras que escolhi para iniciar e terminar este capítulo, escolha essa que teve em consideração o facto de serem duas artistas que continuam hoje a 3,5 196 Conversa com Lygia Pape. conduzir um percurso que atravessou grande parte do século XX, se prende, essencialmente, na diferenciação a fazer no que respeita às referências do universo pessoal e autobiográfico346. 346 Remeto o leitor para o Apêndice 12 que apresenta parte do texto Louise's Home, escrito por Marie Darrieussecq. Este texto de 1998, em formato de história, promove uma viagem à obra de Louise Bourgeois. 197 4. Em torno de um Projecto Artístico «Pouco me surpreende, me altera o ritmo cardíaco, me emociona, me fica na memória. (...) parece-me fundamental que estejamos dependentes de apenas um automatismo, respirar, e que mesmo no respirar (...) estejamos sujeitos às variações de controle provocadas pelas mais diversas situações, como um privilégio que acaba por ser um dos prazeres maiores da vida. Regista-se a inércia, a concentração na aparência, a falta de vivência dos eventos, dos acontecimentos, ou das relações. No caso concreto da arte, o tema constante, há uma emergência de obras abertas à troca de experiências por um descongelamento da obra fixa no seu lugar, enfatizando o sentido de troca e comunicação, de fluxos, de circulação e de corrente eléctrica que, para o bem ou para o mal nos provoquem curto-circuitos. (...) As memórias dos ambientes, dos toques, dos contactos, dos aromas, dos paladares, das situações, das emoções, das relações, essas, não são passíveis de serem guardadas por uma máquina, embora cada vez seja mais incerta a distinção entre homem e máquina e, suspeito que, pela evolução tecnológica, numa situação limite, não Mara muito tempo para a real simbiose», ROSAS, Rute, in Arritmia - As inibições e os prolongamentos do humano, 2000, pp. 149/151. 199 Com este fragmento do ensaio em forma de carta, no qual me refiro à necessidade de uma arte promotora de cortes na respiração, arritmias, alterações, ou dos afectos, considero a arte como uma extensão da vida, um instrumento estruturador da consciência e modificador da sensibilidade. Nesta relação umbilical arte-vida347, parto do princípio de que a arte é inerente à sociedade, não sendo, portanto, razoável que esta se divorcie da ciência ou da tecnologia, cisão que conduziria a arte a um estado de exclusão. A arte parece ser um inesgotável jogo que está na «origem de todos os hábitos», e que, como o jogo, «entra na nossa vida e as suas formas mais rígidas conservam um restinho de jogo até ao fim. Os hábitos são formas irreconhecivelmente petrificadas da nossa primeira felicidade, do nosso primeiro desgosto3**». O artista e a obra constroem-se, organizam-se e comunicam - os assuntos do artista são as emoções e as ideias349, juntos num compromisso através do qual a obra oferece ao artista sugestões que podem sobrelevar o seu projecto inicial enquanto criador. Da obra de arte, o artista recebe ensinamentos constantes, «ao criar (...) imagina todas as sensações sentidas ou que ele supõe serão sentidas por aquilo que ele tenta organizar e harmonizar num equivalente ao que ele sente ser intrinsecamente e, ao mesmo tempo, ao que ele sente que aquilo diz ou significa para nós350». Se for considerado que a arte usa como medium a obra de arte através de uma linguagem comunicadora da sua essência espiritual (BENJAMIM, Walter, 1939) e que o papel do artista é a meta-criação (MOLES, Abraham A., 1958), na medida em que propõe novas situações apreendidas pelos canais complementares da sensibilidade e dos sentidos, então, pode dizer-se que, no fruidor, é promovida uma estimulação para a descodificação das linguagens utilizadas pelo artista na construção das obras de arte. 347 Afirmação recorrente do pensamento de Richard Wagner, in WAGNER, Richard, A Arte e a Revolução, tradução: José M. Justo, Edições Antígona, Lisboa, 1990. 348 BENJAMIM, Walter, O brinquedo e o jogo, in Sobre Me, Técnica; Linguagem e Política, p. 176. 349 «The subject of the artist is: Emotions ... and ideas. Both; BOURGEOIS, Louise, Sanity Statements from a film-in-progress by Marion Cajori and Amei Wallach, 1998-9, in Louise Bourgeois Destruction of the father - Reconstruction of the father, Writings and Interviews 1923-1997, p. 367. Destruction of the Father é, também, o título de um trabalho de Louise Bourgeois realizado em 1974. 350 MONTAGO, Ashley, Tocar- O Significado Humano da Pele, p.294. 200 Independentemente dos meios enquanto matérias, suportes e/ou tecnologias utilizadas, nas obras de arte activas, em oposição às passivas (MOLES, Abraham A., 1958), o sujeito que as recebe subtrai e acrescenta alguma coisa àquilo que foi construído e organizado pelo artista, tornando o movimento num dos principais factores de apropriação do espaço (como procurei exemplificar ao longo do percurso histórico que fiz pela arte recente desenvolvido no texto 2.3. Revisões do uso do corpo nas artes plásticas do século XX). Se adicionarmos ao movimento (que pode estar presente em obras passivas, pela, por exemplo, aproximação ou afastamento de uma pintura), um envolvimento sensorial, cinestésico e até mesmo sinestésico, o receptor da obra ver-se-á totalmente envolvido, e assim será possível falar-se de obras de arte propositoras de experiências/vivências multisensoriais (assunto desenvolvido no capítulo 3. A obra de arte como expressão artística propositora de uma experiência/vivência multissensorial). Na definição de Lygia Pape, a arte remete-nos para um «estar verdadeiro de função poética351», influência da poesia sinestésica baudeleriana que faz sugestões de pontos de partida para uma poética da composição multissensorial. Na verdade, não existe uma arte sinestésica, porque a sinestesia, sendo uma capacidade humana ou de alguns seres humanos, pode ser promovida pela obra de arte, talvez até por excelência, não sendo, contudo, propriedade das obras. Assim, a ideia de arte que pretendi organizar ao longo desta investigação é a de uma arte somatossensorial, comportando e desenvolvendo o conceito do supra-sensoríal, que retirei da terminologia criada por Hélio Oiticica352. No decurso deste trabalho fiz referência ao Romantismo e a Richard Wagner, como um possível precursor no interesse pela arte multissensorial. Concebido como a fundação de uma arte do futuro, a ópera Gesamtkunstwerk seria o momento artístico composto para a diversidade dos sentidos. A correspondência entre odores, cores ou sons, evocada por Charles Baudelaire, em 1855, no poema Correspondances353, tomou-se fulcral não só 351 Em conversa com Lygia Pape. Remeto o leitor para o Apêndice 13 correspondente ao texto APARECIMENTO DO SUPRASENSORIAL, escrito por HÉLIO OITICICA em 1967. 353 BAUDELAIRE, Charles, As Flores do Mal, trad., prefácio, cronologia e notas: Fernando Pinto do Amaral, col. Documenta Poética, Assírio & Alvim, edição bilingue, Lisboa, 1992, pp. 56/60. 352 201 na poesia como nas outras artes. Tanto Arthur Rimbaud como Stéphane Mallarmé, criando associações de cor e som, reinventaram uma linguagem através do abafamento do sentido quotidiano das palavras, compondo-as de diferentes formas, com uma imagem transcendental frequentada pela sua própria imaterialidade. A poesia e o romance de Guimarães Rosa colocaram o leitor perante o paradigma da aptidão criativa no sentido poético e de orientação do espírito. Guimarães Rosa, falecido no final da década de 60, chegou mesmo a duvidar se a sua vida não teria sido um conto contado por ele próprio, um produto da sua imaginação (ROSA, Guimarães, 1964). "Toda essa experiência em que desemboca a arte, o próprio problema da liberdade, do dilatamento da consciência do indivíduo, da volta ao mito, redescobrindo o ritmo, a dança, o corpo, os sentidos, o que resta, enfim, a nós como arma de conhecimento directo, perceptivo, participante, levanta de imediato a reacção dos conformistas de toda espécie, já que é ela (a experiência) a libertação dos prejuízos do condicionamento social a que está submetido o indivíduo. A posição é, pois, revolucionária no sentido total do comportamento354». A convicção nos efeitos da experiência somatossensorial é a de que estas experiências nos alteram e marcam, tendo em conta que, a partir da experiência sensível do corpo estamos a compreendermo-nos. Estas experiências ficam registadas, sendo transformadoras e preservadoras da nossa individualidade. Portanto, para que isto aconteça teremos que nos predispor, caso contrário permanecemos periféricos. Se, por definição, somos transformadores, corpos de acção355, somos também, «potencialmente, um corpo disponível para o Outro356», e, nesse sentido, podemos relacionar o supra-sensorial com o somatossensorial e defender o conceito de interactividade (desenvolvido no texto 2.1. Interactividade e Fruição), afirmando que, no limite, a interactividade «esíá no centro do universo cultural e tudo 354 OITICICA, Hélio, in ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO, pp.103/105. Um corpo parado não existe porque ele é o resultado do seu desempenho. A acção no meio, o entre, é aquilo que o potencia. Giorgio Agemben explora a ideia de diferença entre a acção e o gesto. O gesto pode não ser fazer, agir. É mais moral e mais ético que a verdadeira acção ou a verdadeira política. O sentido a atribuir é o sentido de Artaud que dizia que um poema devia ser lido uma vez e depois destruído para que não se tornasse viciado, perdendo unicidade. A esfera do político é a esfera do agir. A acção implica o político. 356 SILVA, Paulo Cunha e, O Lugar do Corpo- Elementos para uma cartografia fractal, p. 28. 355 202 decorre dela357». Pode então concluir-se que, estando a interactividade implícita em qualquer acção desenvolvida pelo corpo, o problema reside, por um lado, na qualidade da fruição e na predisposição para esta e, por outro, está, provavelmente, em todos nós que, enquanto indivíduos, integrados num sistema social, paradoxalmente, "pedimos" reacção sem agir, interacção sem interagir. As obras de arte somatossensoriais implicam uma relação de troca com o outro, um diálogo, uma construção que deve motivar aquele que as recebe e as altera, a uma acção para a transformação. Portanto, parece inadequado chamarmos espectador a quem experiência estas obras - o fruidor-participante não se limita a recebê-las, antes as integra. Estas obras de arte só se expressam, na sua totalidade, quando alguém as toca e se entrega, bebendo-as (PAPE, Lygia, 2001), assimilando-as para, após a digestão, esperar que a memória se encarregue de fazer chegar «aqueles momentos que interessaram e marcaram358». Isto quer dizer que, quando recordamos alguma coisa, «quando permitimos que as disposições explicitem a sua informação implícita, não recuperamos apenas dados sensoriais, mas também dados motores e emocionais que os acompanham» nas «reacções que o organismo já teve359» a essa mesma coisa. Por vezes, parece que, repentinamente e sem sabermos explicar porquê, acontece alguma coisa dentro de nós que desencadeia, na memória, referências a uma experiência do passado que nos parecia esquecida. Não se tratará de esquecimento, mas talvez de adormecimento. O capítulo 3. A obra de arte como expressão artística propositora de uma experiência/vivência multissensorial procurou colocar o leitor em confronto com alguns princípios que julgo serem fundamentais para a abordagem à obra de arte que interessa aqui estudar. No sentido de atribuir um corpo a esta análise considerei alguns exemplos concretos de artistas e da sua obra que, pela necessidade de aprofundar os meus conhecimentos me levaram a constatar, durante a investigação, diversas coincidências conceptuais entre aquilo que estes artistas escreveram ou deixaram nas suas obras, e que serviram de 357 HALL, Edward T., A Linguagem Silenciosa, p. 72. Conversa com Lygia Pape. 359 DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, pp. 191/192. 358 203 ilustrações de alguns dos meus próprios pressupostos artísticos. Os títulos atribuídos aos diferentes textos constituintes desse capítulo, parecem sugerir uma viagem ou um itinerário com essa intenção. Neste sentido, e reportando o leitor para os esquemas conceptuais e não tanto para as formas representacionais ou para os suportes e meios utilizados como materializações das ideias de cada autor, proponho a análise desses títulos, agregadores de conceitos comuns e, igualmente, permeáveis à organização de diversas ligações ou agrupamentos. No título utilizado para a apresentação da abordagem realizada à obra de Louise Bourgeois, refiro-me a um discurso não narrativo e à autobiografia presentes na sua obra, mas pode considerar-se que estes são elementos comuns a todos os autores estudados no capítulo 3. De modo diferente, a utilização dos sentidos como linguagem simbólica do corpo-fragmento parece não ser definidora da obra de todos. Dan Graham, por exemplo, centra-se, predominantemente, no tempo, no espaço e na ilusão perceptiva para a realização das suas obras e, apesar de não ser possível apresentar este motivo como definidor para tal distinção, há que considerar, por exemplo, as diversidades entre Dan Graham e Bruce Nauman. Em Bruce Nauman, a obra artística delata também o tempo, o espaço e os paradoxos da percepção, mas o corpo do autor assume um papel suficientemente marcante para que este se torne referenciador do seu trabalho e um factor de distinção entre o seu percurso e o de Dan Graham. Outro aspecto consequente daquilo que a obra de Louise Bourgeois parece promover é o anúncio de uma sedução e sublimação, perceptível de modo idêntico na nostalgia do corpo em Lygia Clark, na solidão e isolamentos em Rebecca Horn, ou nas memórias poéticas do corpo em Lygia Pape. Se por um lado, Louise Bourgeois, Bruce Nauman, Rebecca Horn, Lygia Clark, Lygia Pape ou Dennis Oppenheim promovem uma arte como congregação, fomentando a dádiva e a partilha com os outros numa perspectiva, dir-se-ia privada e individual, expressa intensamente nas propostas de Lygia Clark com os seus entre-objectos (BENSE, Max, 1960) ou nas propostas de diálogo com o paciente, por outro lado, as acções de Dan Graham, Joseph Beuys ou Hélio Oiticica, procuram essa congregação numa perspectiva mais social, mais política, por uma arte com características que tocam o altruísmo ou 204 o sonho como revolta contra a repressão social dos indivíduos, fundamentalmente em Beuys e Oiticica. Podemos constatar em todas as propostas, um apelo à incorporação corpo/obra, obra/corpo, à interiorização do corpo e da mente; o diálogo e a experiência do outro, considerando o tema do corpo como o centro enérgico. Estes são alguns exemplos das ligações possíveis entre os diferentes autores, que não só justificam a minha escolha, como julgo servirem de apoio ao leitor para o entendimento de alguns pressupostos do meu projecto artístico. Encontrando afinidades com algumas propostas defendidas por Lygia Clark, questiono: será possível transferir para o objecto a comunicação integral das mensagens, como se este possuísse, em si mesmo, um poder extraordinário e elitista que lhe permite, inclusivamente, prescindir do fruidor360? Considero que não, e assim pondero, no meu processo artístico, a relevância do objecto enquanto matéria física e enquanto dispositivo promotor da actividade comunicacional. A consequência de vivermos quotidianamente rodeados de objectos e de mantermos, por vezes, um fascínio pelo consumo dos mais diversos objectos, que parecem conter em si o poder de nos compensar, encontramonos, hoje, perante um paradoxo que, se por um lado, activa esse consumo, por outro lado, apela ao desprendimento do material (assunto tratado no texto 2.2. A Angústia do corpo - Alguns condicionamentos ao uso do corpo, no capítulo 2). Todavia, aquilo que, sobretudo Joseph Beuys e outros artistas, como Lygia Clark, reclamam prende-se com problemas que têm origem dentro do seio das artes, o chamado aparelho artístico, o establishment, ou do conjunto das instituições artísticas estabelecidas. A posição generalizada tomada pelos artistas, críticos, historiadores, comissários,..., durante grande parte da história da arte fomentou e, dir-se-ia, continua a fomentar o pressuposto de as obras de arte serem dirigidas a uma elite intelectual e de que a obra de arte será entendida apenas por esta elite. Desta situação derivou uma espécie de crise que teve diferentes consequências e que promoveu a recusa e a negação da própria obra com resultados visíveis em alguns exemplos da arte Conceptual e 360 Remeto o leitor para o Apêndice 14 que contém o manifesto Wós Recusamos, escrito por Lygia Clark em 1983. 205 que contrariaram a própria ideologia defendida, por os artistas não deixarem de produzir obras de arte na tentativa de as extinguir. Assim, parece ser um motivo de análise, neste trabalho de dissertação, a assimilação destas duas situações e a proposta de uma terceira que equaciona a hipótese de um desprendimento dos objectos encerrados em si mesmos, nos quais a forma não é o elemento prestigiante do conhecimento, sem ter que, necessariamente prescindir dos primeiros, reflectindo-se em obras de arte abertas à participação do público: o fruidorparticipante361. Se os objectos e ambientes que crio me transformam, motiva-me pensar que podem transformar os fruidores-participadores, deixando-lhes um registo na memória de momentos e experiências vividas no passado, noutro contexto e de uma outra forma, ou que activem memórias escondidas, que sempre estiveram próximas sem terem sido exaltadas, enaltecidas ou descobertas. Num entrelaçamento do tempo com o espaço, entre o tangível e o visível, entrando e saindo, simultaneamente, de mim, prossigo na descoberta de outros tempos e espaços, onde cada um encontra o seu e o elege. Considerando, no meu trabalho artístico, a tendência para esperar alguma coisa, e pressupondo que o conhecimento disposicional para recordar é imprescindível, começo, em primeiro lugar, por me confrontar comigo própria, com aquilo que sou, através do autoconhecimento que me permitirá entender a relação que estabeleço com a sociedade em que estou inserida. No que faço, tudo parte de mim, o corpo, a voz, o cheiro... Uso o meu corpo, os meus momentos, por me estarem inalienavelmente próximos, por serem o que melhor conheço e domino, procurando fazer, em segundo lugar, «o que de mim dependa para que o mundo vivido por mim seja acessível a outros, já que apenas me distingo como um nada que não lhe tira nada, ponho no jogo do mundo meu corpo, minhas representações, meus próprios pensamentos 361 «A arte já não é mais instrumento de domínio intelectual, já não poderá mais ser usada como algo 'supremo', inatingível, prazer do burguês tomador de uísque ou do intelectual especulativo: só restará da arte passada o que puder ser apreendido como emoção directa, o que conseguir mover o indivíduo do seu condicionamento opressivo, dando-lhe uma nova dimensão que encontre uma resposta no seu comportamento», OITICICA, Hélio, in ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO, p 105. 206 enquanto meus e tudo o que se chama eu só é, em princípio, oferecido ao olhar estrangeiro, se este quiser aparecer362». Numa comunhão do meu pensamento com o de Merleau-Ponty: «souo apenas à distância, ali, nesse corpo, nesse personagem, nesses pensamentos que empurro diante de mim e que são apenas os meus longes menos afastados; e, inversamente, este mundo que não sou eu, e ao qual me apego tão intensamente como a mim mesmo, não passa, em certo sentido, do prolongamento de meu corpo e tenho razões para dizer que eu sou o mundo363». A perspectiva ontológica do si realizada no exame da percepção aproximada que eu tenho de mim e do mundo, emerge do meu corpo e é por ele recebida num confronto com aquilo que eu vejo, enquanto me vejo a mim e aos outros, com aquilo que os outros vêem de mim, deles próprios e do mundo. Esse exame que proponho a mim própria ficou expresso em alguns dos trabalhos que realizei. Devo ser eu... (2000) e Porque sou eu que estou aqui (2000) são duas versões, duas visões aparentemente opostas que procuram fornecer dados acerca daquilo que, em mim, analiso e daquilo que suspeito que os outros vêem de mim e em mim. Os títulos que lhes atribuí acentuam a ideia de que se trata de dois trabalhos distintos, que funcionam individualmente, mas que são complementares. Quando os apresentei pela primeira vez, numa exposição colectiva na Galeria Canvas, considerei, igualmente, os espaços de apresentação. Devo ser eu... estava escondido num vão de escadas situado num armazém da galeria e que nunca tinha servido de espaço expositivo, dificultando, assim, a sua descoberta por parte do público364. Opostamente, Porque sou eu que estou aqui, que ocupava o mesmo volume, era 362 MERLEAU-PONTY, Maurice, O Visível e o Invisível, p. 65. Op. cit., p. 63. Devo ser eu... é uma espécie de interior de uma nuvem branca e macia na qual nos podemos deitar de barriga para baixo e sobrevoar um céu carregado de nuvens - quando viajamos de avião sobre as nuvens e olhamos através da janela, por vezes, vemos, entre elas, pedaços de terra e de mar. Neste trabalho utilizei esse tipo de imagens mas retirei a terra e o céu colocando, em seu lugar, um percurso sobre a minha epiderme, o meu corpo epidérmico, projectadas no interior do espaço. Não existe, neste vídeo, um discurso narrativo, trata-se de um loop contínuo, acentuado pela possibilidade que o fruidor tem de colocar uns auscultadores que encontra no espaço e ouvir consecutivamente registos de sons aquáticos de diferentes origens e com diferentes ritmos. 363 364 207 imediatamente perceptível e parecia ser muito maior por ser visível desde a altura em que se entrava na galeria e por se desenvolver em altura365. As mensagens que inscrevo nas minhas experiências plásticas podem ter, por exemplo, uma direcção personalizada, serem dirigidas especificamente a alguém ou a um momento, mas encontram-se escondidas por um véu de códigos que poucos, ou apenas uma pessoa, conseguem decifrar366. Trata-se de uma selecção material de imagens parciais de um vasto repertório (BENSE, Max, 1968), que promove uma leitura por camadas367, cada vez mais opacas e densas, numa crescente dificuldade de penetração implicadora de aprendizagem. É nas primeiras camadas e retratando as vivências, supostamente comuns a todos, que uma percepção imediata, selvagem (MERLEAU-PONTY, Maurice, 1959) pode detectar fenómenos gerais experimentados ou conhecidos por todos os seres humanos. Mudam os personagens, os espaços e os tempos, mas amor é amor, raiva é raiva, dor é dor, ciúme é ciúme, e não existe ninguém que não tenha vivido qualquer um destes sentimentos. Na impossibilidade de precisar ou organizar linearmente o modo como todo o processo decorre, dou por mim, mais ou menos intuitivamente, a criar imagens-ambientes, cenas-cenários a partir de visões, sonhos ou memórias. Estou certa de que as quero partilhar e que me resta materializá-las e colocá-las à disposição dos outros. Crio e construo ambientes em espaços ou procuro aqueles com que sonhei. Se os encontro, vivo-os e torno-os meus para convertê-los em ambientes para os outros. Quando exploro espaços que me são sugeridos por alguém - galerias, espaços arquitectónicos públicos368, 365 Porque sou eu que estou aqui é um lugar totalmente estofado com veludo verde relva, cujas flores são 28 botões de rosa cravados nas paredes das quais se sobressalta um volume, incorporado em si mesmo, um depósito que contém maçãs vermelhas marcadas com uma etiqueta em forma de sol, o meu sol (símbolo que trago tatuado no meu ombro esquerdo), e com o título do trabalho inscrito. Cada fruidor pode permanecer sentado nesse espaço enquanto come a sua maçã. 366 Refiro-me, por exemplo, ao trabalho Vem comigo... (2001) referido na abertura desta dissertação destinada aos Agradecimentos. 367 «Wão prejulgamos relações que possam existir entre essas diferentes camadas, nem ainda que sejam camadas, e uma parte de nossa tarefa é estabelecê-las segundo o que a interrogação de nossa experiência bruta ou selvagem nos tiver ensinado. A percepção como encontro das coisas naturais está no primeiro plano de nossa pesquisa, não como função sensorial simples que explicaria as outras, mas como arquétipo do encontro originário, imitado e renovado no encontro do passado, do imaginário, da ideia", MERLEAU-PONTY, Maurice, O Visível e o Invisível, p. 155. 368 Dos trabalhos realizados em espaços públicos, apresentam-se em apêndice três exemplos recentes: Aluga-se (Anikibóbó, Porto, 1998), Confessa (Mosteiro de S. Francisco, Coimbra, 208 aqueles cuja frequência é, só por si, definidora - procuro torná-los meus, analiso-os, estudo-os e absorvo-os, no sentido antropofágico do termo368. Como ilustração da ideia de exploração das possibilidades de uma arte no espaço público, remeto o leitor para a exposição The Invisible Touch, comissariada por Maia Damianovic370, no Kunstraum Innsbruck, na Áustria. Nesta exposição dedicada a uma arte multissensorial, enfatizou-se a utilização dos sentidos pela produção de formas de comunicação directa baseadas em experiências entre o público e as obras de arte. O conceito proposto aos artistas participantes envolvia a experimentação directa da arte por forma alterar os costumes do seu consumo, transbordando o cuòo branco da instituição e saindo para a cidade. Este tipo de projectos decorre de uma espécie de tradição da arte e das obras de arte que se tem vindo a consolidar desde há pelo menos seis décadas, e de que fui dando alguns exemplos ao longo deste trabalho. Um dos melhores exemplos deste tipo de eventos é o Skulptur-Projekt que se realiza, de dez em dez anos, na cidade alemã de Munster. A última edição, em 1997, dirigida por Klaus Bubmann e comissariada por Kasper Matzner, envolveu mais de 70 artistas de diversas proveniências, alguns deles jovens e outros que já tinham participado nas edições anteriores, como é o caso de Michael Asher (California, 1943). Este último apresentou o trabalho Installation Munster (Caravan), uma reconstrução do projecto iniciado na primeira edição, em 1977. Como é referido no texto introdutório do catálogo deste evento, Munster é uma cidade histórica, urbanizada e pequena, não sendo permitido comparações com as Documentas de Kassel ou as Bienais de Veneza371. O conceito primordial do Skulptur-Projekt é o envolvimento com 2000) e Já que tens que esperar... (Aeroporto Francisco de Sá Carneiro, 2001). Remeto o leitor para o Apêndice 15. 369 Referido por diversas vezes no capítulo 3. A obra de arte como expressão artística propositora de uma experiência/vivência multissensorial, designadamente, no que se refere aos artistas brasileiros analisados. 370 A crítica e comissária independente escreveu, a propósito da exposição The Invisible Touch, um texto publicado na Trans»Arts.Culture.Media. Trans»Arts.Culture.Media Passim, impressa na Snoeck-Ducajo & Zoon, Bélgica, número 9/10 (número de dupla edição), 2001, pp. 72/81. 3 " "Munster isn't Kassel, with its established tradition of documenta, and it certainly isn't Venice, where the ambience of the City makes up for even the worst Biennale. Munster has to live up to its self-imposed task, though admittedly under ideal conditions: an urbanized, central European smallbig city with a historical infrastructure, great willingness to Cooperate on the part of all involved (city, state, university, regional association, private persons), and a sufficient financial base, which for 1997 could even be doubled through substantial sponsorships from business, banking, finance, industry, 209 a região, independentemente das diferentes linguagens artísticas dos projectos individuais apresentados, através de uma experiência de carácter urbano, histórico, arquitectónico ou social. Este ano participei num projecto artístico conceptualmente similar ao Skulptur-Projekt. Marco-te com a tua marca {Ti Marchio con il tuo Marchio) partiu do convite que a comissária italiana Letizia Regaglia me dirigiu para participar no projecto multidisciplinar Quattro Venti372, no qual se reuniram 13 artistas europeus, convidados a produzir um trabalho a partir da exploração do território, da história e pessoas da província de Grosseto. Sinteticamente, concebi um símbolo para os habitantes de Manciano, uma das cidades da província, a partir de diferentes elementos importantes e definidores deste local. Fundi ao meu sol, a mão direita, aberta e de palma visível (símbolo de Manciano registrado em edifícios históricos) - um sol em terra de girassóis que trás no seu interior a mão, símbolo da liberdade e hospitalidade. O projecto Marco-te com a tua marca desenvolveu-se em diferentes tempos, espaços e registos, mas no final apresentou-se sinteticamente em dois tempos e dois espaços. Dias antes da inauguração do evento fiz uma distribuição pela cidade, como se fosse uma entrega de correio (com farda e and trade. (...) Of course the concentration on the central area had practical reasons as well: though a city of only moderate size, the urban area of Munster extends over a diameter of more than 20 km, threatening to turn the exhibition into a kind of Easter-egg hunt for out-of-town visitors if works were distributed over the entire area. A more important reason, however, was the desire to call attention to the central area's qualities as an urban center and place of historical identification. Already in 1987, the critical dialog between the artists and the experience of historical traces was one of the most exciting discoveries of the potentialities latent in so-called 'artistic interventions". (...) Since 1977, the specific character of the Munster experiment had consisted not only in the "site specific", the work in situ with qualities developing out of the interplay of place and artistic intervention, but even more so (...) in the reference to a specific local historical situation. Without this background, which, moreover, presupposes a detailed familiarity not always, available to the newcomer the works lose an essential layer of their meaning-, BUBMAN, Klaus; KONIG, Kasper e MATZNER, Florian, Contemporary Sculpture - Projects in Munster 1997, dit.: Klaus Bubmann, comissariado: Kasper Matzner, edit.: Klaus Bubman, Kasper Konig e Florian Matzner, Verlag Gerd Hatje, Stuttgart, editores e autores, Alemanha, 1997, pp. 3/5. 372 -II punto chiave attorno al quale ruota I'intero progetto artístico di Manciano è I'interazione ira arte e território, owero I'attenzione per un'arte che non sia calata dall'alto come un corpo estraneo, ma che si concretizzi in diversi linguaggi espressivi che dialoghino con il contesto e soprattutto con chi lo frequenta. (...) Gli artisti partecipanti sono esponenti per lo piú giovani delia scena artística contemporânea europea, che nelle foro ultime realizzazioni hanno dimostrato di creare deile opere di un certo spessore, capaci stimolare nel pubblico una reazione riflessiva su quello che lo circonda e che differisca dalle quotidiane reazioni (o non-reazioni) a cui siamo abituati. La scelta ê stata anche condizionata dall'adeguatezza delle opere a misurarsi con un contesto diverso da quello museale e, non per ultimo, dalla disponibilité degli artisti ad affrontare questo genere di esperienza», REGAGLIA, Letizia, Quattro Venti, projecto idealizado e coordenado por Maurizio Cont, comissarido por Letizia Regaglia, Comune di Manciano, Província di Grosseto, Artlink, Itália, 2002, pp. 4/5. 210 todos os adereços necessários), ao volante de uma vespa Piaggio, registando em vídeo a acção, com uma câmara colocada ao nível dos meus olhos, de envelopes contendo dois autocolantes com a marca impressa. No dia da abertura, como o envelope referia, os habitantes da cidade eram convidados a colocar o seu autocolante no veículo que usam como transporte. Numa das entradas para o centro de Manciano, existe, no cimo de uma rampa inclinada, um parque de estacionamento e um edifício de forma cúbica, o antigo balneário público, hoje desactivado. Transformei-o no espaço físico de recordações de Manciano utilizando diversos elementos como o som - construído a partir da minha estadia, transformado em ritmos abstractos que anunciavam ambiente de festa, de dança e de trabalho -, vídeo - uma televisão apresenta o que se passou na minha experiência como carteira da cidade - e, finalmente, um objecto-nuvem - que convida a ficar e vivenciar, relaxadamente deitado numa nuvem, as memórias das minhas experiências naquele lugar e com aquelas pessoas. Esta experiência surpreendeu-me pela adesão da população, e por me ter apercebido quer da participação como das cumplicidades que tornaram este projecto tão meu como dos habitantes da cidade. Assim, tomou-se mais claro que, como escreveu Pipilotti Rist (Suiça, 1962), ■■as mensagens veiculadas emocional e sensualmente podem quebrar mais preconceitos e hábitos do que dezenas de panfletos e tratados intelectuais373». Como processo comunicante que necessita do envolvimento de quem os frui, próximo da metáfora do possível mergulho profundo em direcção ao centro, na tentativa de descobrir o que neles se encontra, procuro que se veja, atenta e curiosamente, aquilo que o olhar pode perceber, propondo a libertação da cápsula camufladora que, por vezes, carregamos para nos defendermos do mundo que nos rodeia. Esta cápsula, também conhecida por máscara374, pode proteger a nossa intimidade e integridade mas pode também inibir-nos, por colocar-nos perante dicotomias do tipo palco/plateia, actor/espectador, dificultando o acesso ao que se passa e daquilo que se 3?3 RIST, Pipilotti, in RIEMSCHNEIDER, Burkhard e GROSENICK, Uta (editores), Mat the turn of Millennium - Me na viragem do Milénio, trad.: Francisco Paira Bóleo, Tachen GMBH, Koln, 2001, p. 426. 374 Prefiro a expressão cápsula por aglutinar o corpo todo dentro dela. A máscara pode sugerir esconder, apenas, a face. 211 encontra nos bastidores, ou mesmo fundir-se com aquilo que são os nossos alicerces e a estrutura da nossa personalidade, que pode dificultar a nossa própria distinção entre aquilo que somos e aquilo que demonstramos ser (assuntos analisados no texto 1.2. Emoção e Inteligência Emocional e nos textos 2.1. Interactividade e Fruição e 2.2. A Angústia do corpo - Alguns condicionamentos ao uso do corpo). Supondo que permanecer em si é indissociável de sair de si em direcção ao outro, procuro um cruzamento do visível com o sensível, entre o ver e o tocar, na medida em que estas partes definem o corpo que «sente o mundo ao senr/r-se375», tema subjacente ao desenvolvimento dos temas do capítulo 1. O Conhecimento do Corpo e dos Sentidos, a Emoção e a Inteligência Emocional. Genericamente, coloco duas questões inesgotáveis ao mundo: «Onde estou? e Que horas são?376». Cruzo o tempo e o espaço como expressão daquilo que me entristece ou me faz feliz, me revolta ou me envolve, procurando uma exploração poética do melhor ou do pior da experiência que tenho, daquilo que conheço - tocar a violência na sua fragilidade, tocar o ódio com amor, fundir a energia com a criatividade, libertando-as transversalmente. Foi desta procura que resultou, por exemplo, a minha primeira exposição individual Mamã, deixa-me andar de escultura !? (2000), que me conduziu a um retorno à minha infância, através de uma viagem realizada em fase adulta, recheada de cruzamentos e atropelos com o presente. Desta experiência retirei que a ideia que construímos do passado mais longínquo parece apresentar-se como um filme repleto de significados, de memórias, de cheiros, paladares, sons e temperaturas que, no meu caso, foram emocionalmente surpreendentes pela riqueza de descobertas que fiz de memórias minhas, mais profundas e adormecidas377. A forma é um mal da matéria foi o texto escrito pelo João Sousa Cardoso que tendo acompanhado todo o processo, resume, o projecto da exposição e descreve, no essencial, os trabalhos apresentados378. 375 Merleau-Ponty, Maurice, O Visível e o Invisível, p. 116. Op. cit., p.119. 377 Remeto o leitor para o Apêndice 1. 378 Remeto o leitor para o Apêndice 16, composto pelo texto A forma é o mal da Matéria de João Sousa Cardoso. 3,8 212 Como anunciei no Enquadramento deste trabalho de dissertação, estou consciente de que estou no princípio de um discurso e de um projecto artístico, e que ao confrontar-me com a tentativa de referenciar o meu trabalho artístico me deparo com a impossibilidade de me distanciar daquilo que posso chamar de impulso artístico ou impulso da imaginação criadora. Por esse impulso não me permitir atingir uma distância suficiente para analisar verdadeiramente as razões dos seus resultados, encontro-me receptiva às críticas que as questões que coloco podem levantar. As propostas que vou realizando são o resultado da análise que faço ao sistema em que me encontro integrada, entendendo-o de uma forma abrangente e, portanto, aglutinador das minhas prestações enquanto indivíduo, artista e docente que, intimamente, não distingo, por serem partes indissociáveis de uma personalidade e de um conjunto de valores. Neste trabalho procurei analisar núcleos essenciais na minha produção artística estabelecendo paralelos entre as minhas experiências e as experiências e obras de outros artistas, numa referenciação fundamentada e organizadora - um possível método científico em textos de dissertação de artistas plásticos. Porém, este trabalho de dissertação deve-se, sobretudo, a uma necessidade de me situar no mundo e de referenciar o meu trabalho artístico na contemporaneidade. Aquilo que procuro nos tempos/espaços de implicação recíproca que vou construindo é que o corpo total que os vive, que os sente e que pode transformar-se através destas experiências de partilha simples e desejavelmente acessíveis, se reflicta em pequenas entregas que apelam à circulação dos afectos379. Como digo em Confessa (2000): «Fica aqui comigo! É só por um bocadinho!» pois pode acontecer que nunca mais te esqueças e que até desejes voltar outra vez. 379 Devo salientar que me refiro à ideia de partilha e não à de domínio ou de controle sobre o fruidor. «7o want control is the pathology! Not that the person can get control, because of course you never do... Man Is only a part of larger systems, and the part can never control the whole-, BATESON, Gregory, in www.oikos.org/baten.htm. 213 Apêndices 215 Apêndice 1 ROSAS, Rute, texto publicado no catálogo da minha exposição Mamã, deixa-me andar de escultura?!, Galeria Serpente, Porto, 2000. Era uma vez uma menina muito pequenina que brincava no barracão que a avó tinha atrás de sua casa. Passava grande parte do seu tempo, depois das aulas durante a manhã, a inventar histórias, personagens, ambientes, com a ajuda das bonecas e de outros brinquedos, bem como dos bichinhos que viviam entre os jarros, roseiras e brincos de princesa, no pequeno jardim que separava os dois espaços. A avó Linda, como todos na família lhe chamavam, era uma mulher forte, resistente ao sofrimento e dedicada à sua primeira neta. Uma dona-decasa perfeita. Lembro-me que à 2 a e 6 a feiras de todas as semanas se passava o dia na limpeza, depois do esquema ser meticulosamente definido. Quando eu chegava da escola, que era mesmo ali ao lado, a Tucha esperavame à porta que já estava aberta, pois pelo seu miar a avó Linda sabia que eu estava muito perto. O almoço sempre pronto e o lugar na mesa da cozinha aguardavam a minha chegada, assim como aquele beijo. Durante a refeição o meu avô lamentava-se dos negócios aos ouvidos atentos da avó Linda, sempre dedicada e interveniente procurando amenizar a situação. Depois ele saía apressado, enquanto a avó lhe escovava o casaco no percurso até à porta. E ficávamos nós as duas com a Tucha. Era a minha vez de contar o que se tinha passado na escola, da avó relatar a sua manhã, com o fundo sonoro dos Parodiantes de Lisboa, que, por vezes, nos faziam soltar gargalhadas. Então eu fazia, rapidamente, os trabalhos de casa para poder brincar até à hora do lanche. Hum! Os sabores das melhores guloseimas eram preparados dependendo da época do ano e do meu pedido, O leite creme, a aletria, a torta de laranja com geleia, o doce de abóbora, que comíamos com bolachinhas, a manteiga que fazíamos com a nata do leite e saboreávamos com pão torrado... 217 As roupinhas das bonecas também eram, inicialmente, feitas por ti, com o tecido que sobrava dos meus vestidos. Na velhinha máquina de costura preta e dourada, sentada ao teu colo, ajudavas-me naquele ritmo de vaivém da pedaleira, que me parecia na época inatingível. Quando a noite se aproximava e chegava a hora de voltar para casa, era um drama. Queria ficar contigo, mas também queria os meus pais, que muitas vezes acabavam por me deixar ficar, particularmente à 6 a feira, pois o avô chegava sempre muito tarde, e não havia escola no dia seguinte. Nas noites de Inverno, davas-me banho e perguntavas-me se no dia em que eu fosse grande e tu pequenina eu te daria banho e trataria de ti. Eu respondia que sim, mas confesso que a ideia me fazia bastante confusão. Meu Deus, nunca pensei que algum dia isso viesse a acontecer. Fazíamos tricote e víamos televisão, depois íamos para a minha cama onde partilhávamos a botija eléctrica, coberta com um número infinito de tubos de lã para não queimarem os lençóis nem a nossa pele. Fazíamos cadeirinha e eu adormecia dentro de ti enquanto contavas histórias do tempo em que as plantas e os animais falavam. Foi uma vida dura mas tu tinhas o cuidado de a adoçar com o tom de voz que utilizavas. Todos os meses, mais ou menos na mesma altura, íamos à Praça da Liberdade pagar o aluguer da tua casa e passávamos por aquela escola e eu dizia que quando fosse grande queria ir para lá. Eu sei que a ideia não te agradava muito, mas mais tarde entendeste que era aquilo mesmo que eu queria. Sempre que saíamos seguravas-me a mão com tanta força, que se fechar os olhos ainda consigo sentir a pressão e o calor. Não era por medo de uma fuga, o que não deixava de ser uma possibilidade («leva-me, que eu quero ser livre!» era a expressão que eu usava sempre que ao ver o cão na rua, saltava para o seu lombo), mas porque te sentias responsável pelo teu tesouro e tinhas medo de o perder. Foi muito difícil quando eu fui para o jardim-escola, ficamos doentes, embora fosse importante para mim estar com outros meninos. Passámos muitas férias juntas. Gostava de estar contigo. Eras a avó mais linda, que me ouvia e ajudava nos trabalhos de casa, nas brincadeira, que me dava beijinhos doces e palmadinhas quando eu me portava mal. Que 218 me ajudava a preparar os "espectáculos" que eu fazia para os meus pais quando chegavam de trabalhar, e nos quais eu cantava, dançava e contava histórias, até ficar com sono. Davam imenso trabalho. Desde as constantes mudanças de cenários, figurinos e maquilhagem, até à sincronização musical. Durante longos anos, levavas-me ao ballet, no 6, e esperavas por mim sentada na sala invadida de um aroma a resina de pinheiro. No fim da aula vestias-me e voltávamos para casa, no 6, com os cheiros nauseabundos, os apertos e encontrões, e, na melhor das hipóteses quando havia um lugar livre eu sentava-me no teu colo e seguíamos viagem de mão dada. Tenho orgulho de te ter tido como avó, até porque foste mais do que isso sem nunca teres substituído ninguém, tinhas e tens, no meu coração, o teu espaço. As histórias têm sempre um fim, mesmo aquelas que pensamos que nunca vão acabar. Tenho saudades tuas! 219 Apêndice 2 BOCCIONI, Umberto, Manifesto técnico da escultura futurista, 1912, in CHIPP, Herschel B., Teorias da Me Moderna (tit. orig.: Theories ol Modem Art, 1968, University of California, diversos trad.), col. A, Martins Fontes, São Paulo, 1988, pp.302/308. Boccioni reproduziu o manifesto e o prefácio ao catálogo de sua exposição de escultura em Paris (Galerie La Boetie, 20 de Junho a 16 de Julho de 1913) em seu Pittura Scultura Futuriste (Milão, Poesia, 1914), (trad.: António de Padua Danesi, a partir do texto italiano La Scultura Futurista, em / Manifest! del Futurismo), pp. 391/411, 413/421. A escultura dos monumentos e exposições de todas as cidades da Europa oferece um espectáculo tão lastimável de barbárie, de inépcia e de monótona imitação que o meu olho futurista se afasta delas com profundo desgosto! Na escultura de cada país domina a imitação cega e parva das fórmulas herdadas do passado, imitação que é encorajada pela dupla covardia da tradição e da facilidade. Nos países latinos temos o peso opressivo da Grécia e de Miguel Angelo, que é suportado com alguma seriedade de engenho na França e na Bélgica, com grotesca imbecilidade na Itália. Nos países germânicos temos um insosso goticismo grecizante, industrializado em Berlim e debilitado com cuidados efeminados pela pedantaria alemã de Munique. Nos países eslavos, por outro lado, um choque confuso entre o grego arcaico e monstruosidades nórdicas e orientais. Massa informe de influências que vão do excesso de detalhes abstrusos da Ásia à infantil e grotesca engenhosidade dos lapões dos esquimós. (...) Os escultores precisam convencer-se desta verdade absoluta: continuar querer criar com os elementos egípcios, gregos ou míchelangiolescos é como querer tirar água de uma cisterna seca com um balde sem fundo. (...) Uma arte, que precisa despir inteiramente um homem ou uma mulher para começara sua função emotiva é uma arte morta! (...) Devemos partir do núcleo central do objecto que sequer criar, para descobrir as novas leis, seja, as novas formas que o ligam invisível, mas matematicamente, ao INFINITO PLÁSTICO APARENTE e ao INFINITO PLÁSTICO INTERIOR. A nova plástica será, pois a tradução no gesso, no bronze, no vidro, na madeira e em qualquer outra matéria dos planos atmosféricos que ligam e interseccionam as coisas. Essa 220 visão a que chamei TRANSCENDENTALISMO FÍSICO (Conferência sobre a Pintura Futurista no Círculo Artístico de Roma, Maio de 1911), poderá tornar, plásticas as simpatias e afinidades misteriosas que criam reciprocas influências formais dos planos dos objectos. (...) Na escultura como na pintura, não se pode renovar senão buscando o ESTILO DO MOVIMENTO, isto é, tornando sistemático e definitivo como síntese aquilo que o impressionismo deu como fragmentário, acidental e, portanto, analítico. E essa sistematização das vibrações das luzes e das compenetrações dos planos produzirá a escultura futurista, cujo fundamento será arquitectónico, não apenas como construção de massas mas de modo que o bloco escultórico tenha em si os elementos arquitectónicos do AMBIENTE ESCULTÓRICO em que vive o motivo. Naturalmente, daremos uma escultura DE AMBIENTE. Uma composição escultórica futurista terá em si os maravilhosos elementos matemáticos e geométricos que compõem os objectos do nosso tempo. (...) Tradicionalmente, a estátua se recorta e se delineia sobre o fundo atmosférico do ambiente no qual se encontra exposta. A pintura futurista superou essa concepção da continuidade rítmica das linhas numa figura e do isolamento dela do fundo e do ESPAÇO CIRCUNDANTE INVISÍVEL. Por que a escultura haveria de ficar atrás, amarrada a leis que ninguém tem o direito de impor-lhe? Por isso viramos tudo pelo avesso e proclamamos a ABSOLUTA E COMPLETA ABOLIÇÃO DA LINHA FINITA E DA ESTÁTUA FECHADA. ESCANCARAMOS A FIGURA E FECHAMOS NELA O AMBIENTE. Proclamamos que o ambiente deve fazer parte do bloco plástico corno um mundo em si e com leis próprias; (...) Conclusões: 1. Proclamar que a escultura se baseia na reconstrução abstracta dos planos dos volumes que determinam as formas, e não o seu valor figurativo. 2. ABOLIR NA ESCULTURA, como em qualquer outra arte, A SUBLIMIDADE TRADICIONAL DOS MOTIVOS. 3. Negar à escultura qualquer escopo de construção episódica verista, mas afirmar a necessidade absoluta de servir-se de todas as realidades para voltar aos elementos essenciais da sensibilidade plástica. (...) 221 4. Destruir a nobreza totalmente literária e tradicional do mármore e do bronze. Negar a exclusividade de uma matéria para a inteira construção de um conjunto escultórico. Afirmar que mesmo vinte materiais diferentes podem concorrer numa só obra para o escopo da emoção plástica. Enumeremos algumas delas: vidro, madeira, cartão, ferro, cimento, crinas, couro, pano, espelhos luz eléctrica, etc. 5. Proclamar que na intersecção dos planos de um livro com os ângulos de uma mesa, nas linhas de um fósforo, na moldura de uma janela exige mais verdade que em todas as curvas de músculos, em todos os seios, em todas as nádegas de heróis ou de Vénus que inspiram a moderna idiotia em escultura 6. Que só a mais moderna escolha de motivos poderá levar à descoberta de novas IDEIAS PLÁSTICAS. 7. Que a linha recta é o único meio capaz de conduzir à virgindade primitiva uma nova construção arquitetónica das massas ou zonas escultóricas. 8. Que não pode haver renovação a não ser através da ESCULTURA DE AMBIENTE, porque com ela a plástica se desenvolverá e, prolongando-se, poderá MODELAR A ATMOSFERA que circunda as coisas. 9. A coisa que se cria nada mais é que a ponte entre o INFINITO PLÁSTICO EXTERIOR e o INFINITO PLÁSTICO INTERIOR; portanto os objectos nunca terminam e se impõem com infinitas combinações de simpatia e choques de aversão. 222 Apêndice 3 ANDRADE, OSWALD DE, Manifesto Antropofágico, primeira publicação Piratininga. Revista de Antropofagia, n.° 1, 1928, in http://www.itaucultural.org.br. Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. (...) Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. (...) Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraiba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos... Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia. O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de 223 meridiano. E as inquisições exteriores. Só podemos atender ao mundo orecular. Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. (...) Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. (...) A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais. Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia. Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?(...) A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue. Contra as sublimações antagónicas. Trazidas nas caravelas.(...) Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti. Se Deus é a consciênda do Universo Inchado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais. Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário. As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo. De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia. O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa. É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci. O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés 224 divaga. Que temos nós com isso? Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. António de Mariz. A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI. A alegria é a prova dos nove. A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura - ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos. Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, - o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: - Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama. 225 Apêndice 4 Extracto de uma entrevista realizada a Bruce Nauman em Pecos, Novo México, de 27 a 30 de Maio de 1980, por Michèle De Angelus, (Archives of American Art, Smithsoniam Institution, D. C , 1980, trad, do inglês: JeanCharles Massera), in Bruce Nauman - Image/Texte 1966-1996, concepção e comissariado: Christine van Assche, Centre National D'Art et de Culture George Pompidou, Editions du Centre Pompidou, Paris, 1997, pp. 126/127. M.D.A.: Parlons un peu du spectateur. Quel était e comportement que vous attendiez de lui? B.N.: Disons que je ne voulais pas d'une situation ennuyeuse. Je voulais qu'il y ait toujours un début et une fin. Mais il me semblait que si une situation durait assez longtemps, si quelqu'un pouvait entrer dans la pièce et la regarder, on pouvait lui offrir une heure, une demi-heure ou même deus heures, mais il fallait toujours faire en sorte que la structure comporte des tensions suffisantes - soit des tensions produites par des erreurs dues au hasard, soit par une certame lassitude ou par certames maladresses, peu importe... L'important était qu'une certame structure soit programmée. Ces tensions m'intéressaient beaucoup. En revanche celle qui consiste à rester assis pendant une heure sans que rien ne change ne m'intéressait pas. Et je crois que les pièces qui fonctionnaient, fonctionnaient pour cette raison et celles qui ne fonctionnaient pas échouaient parce que leur structure n'était pas assez solide. M.D.A.: Cette manière de faire de l'art à partir d'activités quotidiennes très simples que partage également votre spectateur - boire du café, arpenter une pièce - se démarque très nettement des activités, disons plus artistiques, comme peindre par exemple... B.N.: Andy Warhol dans ses premiers films et Merce Cunningham dans ses chorégraphies - du moina dans celles que j'ai vues et que je connaissais ont avancé des idées qui me paraissent essentielles. La danse de Cunningham est fondée sur des activités ordinaires. Mais à encore, tout se joue dans la façon dont on structure lexpérience afin de la communiquer. Je pense que cet aspect est três important. On ne peut pas se contenter de réaliser une documentation puis de la présenter. Les gens e font tout e temps. 226 Ça peut être très ennuyeux comme ça peut être très intéressant. Mais je pense que l'art commence avec la faculté de communiquer, non pas une somme d'informations, mais une expérience qui vaut de manière plus générale. M D A : Des néons aux patrona, de nombreux travaux sont liés à votre présence physique et à votre taille. Quels types de rapports les spectateurs peuvent-ils entretenir avec ces travaux ? Est-ce quils impliquent un processus imaginatif qui renvoie à l'artiste et à sa présence ? BN.: Non, ces ouvres étaient assez impersonnelles. Je me suis servi de ma personne comme je me serais servi d'un objet. Peut-être que "impersonnelles" n'est pas e mot qui convient... Je crois que lenjeu consiste à aller du spécifique au général. Il y a à quelque chose de comparable à l'autoportrait, au sena où Rembrandt faisait un autoportrait. Vous peignez, mais vous réalisez également une étude de vous-même, dont vous déduisez des généralisations qui excédent votre propre personne. MDA: C'était important pour vous davoir des gens qui comprenaient votre démarche, des gens avec qui vous pouviez exposer? BN.: Oui. Je crois que ce sont des choses qui vous encouragent pius que n'importe quelle autre. Walter De Maria se trouvait sur la côte Ouest bien avant qu'il naille à New York. Il est venu me rendre visite... On a fait pas mal de choses ensemble. La reconnaissance de ses pairs est plus importante que toute autre reconnaissance. En tout cas ça l'était à l'époque et je crois que ça lest encore. MDA: Je suis curieuse de la façon dont votre travail manipule e spectateur. Comment assumez-vous cette manipulation qui semble être l'enjeu de nombreuses pièces? BN.: On peut probablement parler de manipulation si Ion prend e travail au premier degré, mais quand je faia une proposition qui me semble intéressante dans l'expérience que Ion peut en faire, je suppose que si elle est pertinente certaines personnes y trouveront également un intérêt. Dans ce sens, je ne pense pas que l'on puisse parler de manipulation. Tout cela est bien sur très compliqué parce que je suis engagé dans tout e processus de recherche et d'élaboration d'une ouvre, mais seule la partie réalisée reste. Et d'une certame manière, une fois que j'ai réalisé ce que j'ai entrepris, une fois 227 que la pièce est terminée, il est rare que je continue à my intéresser. Le travail a débouché sur quelque chose, il a permis de révéler ce qui était contenu dans e processus. Ensuite, Il ne me reste plus qu'à espérer que mes attentes soient suivies d'effets, que la situation que jai créée soit assez ouverte pour que dautres personnes puissent entrer dans e travail. Et je sais qu'en général les spectateurs sont très exigeants - ce qui n'est pas plus mal. Récemment, je parlais avec Peter Schjeldahl - qui est poète et critique - de ce qui motive une démarche. Pour lui comme pour moi, e travail semble trouver ses origines dans la frustration et la colère que la situation sociale génère. Je ne parle pas là d'incidents personnels particuliers, mais de question plus générales, d'insatisfactions ou encore de certames incohérences. Même si ces aspects n'apparaissent pas directement dans e travail, d'une certame manière, ils en sont à origine et ils en produisent l'énergie. Apêndice 5 Dan Graham fala acerca de Bruce Nauman na entrevista Four Conversations: December 1999 - May 2000, realizada por Benjamin Buchloh, in Dan Graham - Works 7965 - 2000, catálogo da exposição itinerante, org. e coord.: Museu de Arte Contemporânea de Serralves, co-produção: Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto; Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris, Paris; Kroller-Muller Museum, Otterlo; Kiasma - Museum of Contemporary Art, Helsinki, comissariado: Marie Brouwer e Corinne Diserens, 2001, pp. 75/77. On Bruce Nauman and the Critique of Minimalism DG: I was the first person to criticize Minimalism in my essay Subject Matter that was given to Artforum and they rejected it. Then I published it myself along with other rejected articles in a volume called End Moments in I969. Subject Matter was against formalism, in favour of content, and about the subject in relation to the in-forming of matter as a process in time. It was also about optics. At that moment I was totally floored by discovering Bruce Nauman, but I was also influenced by Steve Reich and by conversations with Richard Serra. So the entire article is a critique of the objectivity of Minimal art. I was more interested in subjective, time based perceptual processes. At first, Bruce worked a tot from Dan Flavin. BB: But when Bruce Nauman did the performance with the fluorescent light tube, I always thought that was a rather explicit critique of Flavin. DG: Given Bruce's interest in humour, it was a parody. And it was an extension to the body. In other words, everything is part of the body of the performer, and also the body of the spectator. BB: But to what degree does Nauman's conception of the body change when you introduce the body into your own work, and to what degree does that conception change when Acconci introduces the body into his? That's a very important historical development. Your deployment of the body is very different from Nauman's, and Acconci's conception of the body is even more different. DG: Well, I think I was more interested in audience participation than Bruce, especially when I conceived of spectators as a large group of people, 229 because I was interested in rock concerts. So it was the body in relationship to a large audience, their bodies, their perceptual processes. In terms of Vito Acconci, he read my article Subject Matter before it was published, and many of his ideas come from my description of Nauman and Serra. Acconci is very good at theatre. BB: Nauman is deeply engaged in a phenomenological conception of a transhistorical body. Whereas in your work the phenomenology of the body is already redefined at least in terms of a sociological dimension of bodily interaction, if not even in the conception of the body as socially gendered. DG: I think that's too theoretical. I was interested in clichés. First I was a male feminist, second I loved the clichés of psychological models. Whereas I think Nauman was more serious. He was interested in working with sculpture, but subverting it. He had been very much involved with Anne Halprin's dance workshop in San Francisco, along with Simone Forti who would become the greatest influence on everybody. Steve Reich was in it as well. It had a lot to do with drugs, but it also had to do with the idea of process, with Terry Riley's and Steve Reich's use of just past time. We were interested in an extended present time, and process, which Nauman, Eva Hesse and other artists were developing in contradiction to Minimal art. Steve learned a lot from Terry Riley who was using time delay, and I think Nauman learned from Terry Riley and Steve Reich how to put time delay into video. We 'minimal artist people' wanted to have the instant and then throw it away, because it was about subverting the idea of things that are collectible, that were heavy, and could be converted into precious objects. Nauman did this great piece at the Whitney Museum with Meredith Monk and his wife that I wrote about in Subject Matter. It was also about architecture in a way that other people weren't. The architecture of the museum. As you walked through it, the museum became a sounding board. BB: I would argue that the transition from Minimalism to PostMinimalism, which is integral to your artistic project, has also generated a very problematic situation: sculpture that was once extremely radical and critical in many ways and that had been conceived for the discursive and institutional space of the gallery and the museum) became, as a result of its public attention and success, once again monumental sculpture rather than 230 remaining a critical phenomenologicai project. And of course that transition has generated a lot of the questions that your work addresses. Your work now seems to be situated between Richard Serra and Bruce Nauman on the one hand and Conceptual Art and institutional Critique on the other. Except that you have addressed all the problems of public urban space and public social space in your models and have systematically incorporated those issues into the work. But when it comes to the production of the pavilions, you seem to be more of a traditional sculptor once again, probably because that's the only way that public sculpture can be made, and you extract the work from urban space and transfer it to the pastoral context of the landscape garden. You said in a recent interview that you have moved away from your educational and pedagogical interests with your work and that you find it more important that your pavilions now create something like fascinating spectacle. Is that an indication of the gradual shift of aesthetics from the 70s to the 90s? DG: No, I didn't say that. My work is still educational and it's also spectacle at the same time. Children's Day Care, CD-ROM, Cartoon and Computer Screen Library Project, 1998-2000, and the Girl's Make-up Room, 1998-2000, in other words, they're fitting into the museum area that gets the most money and is usually the most banal, the education area. BB: Now we are getting to an issue that I wanted to bring up anyway: the question remains, what type of a spectator does the phenomenologicai address of your work really presume? Doesn't it still presume that neutral transhistorical spectator who is neither determined by class, by gender, by advanced conditions of reification? Isn't there a certain ideal Utopian modernist dimension in the pavilion work that really still operates from the assumption that every spectator is equal, that every spectator has the constitution to define herself or himself within the act of perceptual embodiment? DG: First of all, they are not for one person. They are always for people looking at other people looking at other people inside and outside. Second, what you are talking about seems to be a critique of what we cherish most in America, democracy, that every individual is equal and unique at the same time. In other words, my work is American populist and democratic. 231 BB: Well, things have become a little more complicated in the last ten years or so - with regard to theories of subjectivity, haven't they? It has become evident that certain presumptions about the equality and neutrality that phenomenology (and ideologies of democratic egalitarianism) inscribe into the public urban perception are rather dubious. As it has turned out, much more specific criteria are necessary to identify and critique the placement of the subject and the constitution of the subject and I think that is an issue that would be brought out in your model work much more explicitly than is being brought out in the pavilion work. 232 Apêndice 6 OITICICA, Hélio, BOLIDES, 1963, in Hélio Oiticica, comissariado: Guy Brett, Catherine David, Chris Dercon, Luciano Figueiredo, Lygia Pape, dir.: Cesar Oiticica e Claudio Oiticica, prod.: Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris; Projecto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro; Witte de With - center for contemporary art, Rotterdam, Rio de Janeiro, Brasil, 1996, pp. 66/67. Poderia chamar as minhas últimas obras, os Bólides, de "transobjetos". Na verdade, a necessidade de dar à cor uma nova estrutura, de dar-lhe "corpo", levou-me às mais inesperadas consequências, assim como o desenvolvimento dos Bólides opacos aos transparentes, onde a cor não só se apresenta nas técnicas a óleo e a cola, mas no seu estado pigmentar, contida na própria estrutura Bólide. Aí, a cuba de vidro que contém a cor poderia ser chamada de objeto pré-moldado, visto já estar pronto de antemão. O que faço ao transformá-lo numa obra não é a simples "lirificação" do objeto, ou situá-lo fora do cotidiano, mas incorporá-lo a uma ideia estética, fazê-lo parte da génese da obra, tomando ele assim um caráter transcendental, visto participar de uma ideia universal sem perder a sua estrutura anterior. Daí a designação de "transobjeto" adequada à experiência. Vale aqui uma comparação às experiências de artistas como Rauschenberg e Jasper Johns, criadores do combine-painting, isto é, obras em que são combinadas diversas técnicas e materiais expressivos (entendido aqui que são usados como expressão), alguns dos quais tais como são conhecidos objetivamente, p.ex. pneumáticos, xícaras, aves empalhadas etc. Nessas experiências a chegada à objetivação, ao objeto tal como ele é no contexto de uma obra de arte, transportado do «mundo das coisas» para o plano das "formas simbólicas", dá-se de maneira direta e metafórica. Não se trata de incorporar a própria estrutura, identificá-la na estrutura do objeto, mas de transportá-lo fechado e enigmático da sua condição de "coisa" para a de "elemento da obra". A obra é virtualizada pela presença desses elementos, e não encontrada antes a virtualidade da obra na estrutura do objeto. A obra que mais se aproxima de uma identificação com a estrutura do objeto que dela participa é o trabalho em que Rauschenberg liga uma cadeira que está no chão à parte inferior de um plano que representaria o "quadro", onde se 233 desenvolvem manchas de cor, que ao chegarem à cadeira continuam pela mesma, extravasando do limite do quadro e incorporando-se à estrutura da cadeira. Mesmo aqui, porém, há a incorporação a posteriori, se bem que a "escolha" da cadeira já seja uma pseudo-identificação com a sua estrutura; a dos objetos das outras obras já o é também, mas prevalece lá a identificação da estrutura do objeto como signo dentro da obra, ao passo que na obra da cadeira a que me referi, tende esta a ser espinha dorsal na estrutura da obra e não apenas signo que se desprende dela. O que acontece, em absoluto, é a incorporação a posteriori e permanece, mesmo depois, a contradição dos dois termos "estrutura da obra" e "estrutura do objeto" enquanto tal, se bem que incorporadas uma à outra. Nos Bólides que designo como "transobjetos", se bem que o objeto que uso já exista enquanto tal de antemão, p.ex., uma cuba de vidro, não há na obra terminada uma "justaposição virtual" dos elementos, mas que ao procurar a cuba e sua estrutura implícita, já se havia dado a identificação da estrutura da mesma com a da obra, não se sabendo depois onde começa uma e onde termina a outra. Nada mais infeliz poderia ser dito do que a palavra "acaso", como se houvesse eu "achado ao acaso" um objeto, a cuba, e daí criado uma obra; não! A obstinada procura "daquele" objeto já indicava a identificação a priori de uma ideia com a forma objetiva que foi "achada" depois, não ao "acaso" ou na "multiplicidade das coisas" onde foi escolhido, mas "visada" sem indecisão no mundo dos objetos, não como "um deles que me fala à vontade criativa" mas como o "único possível à realização da ideia criativa intuída a priori" e que ao realizar-se no espaço e no tempo identifica a sua vontade estrutural apriorística com a estrutura "aberta" do objeto já existente, aberta porque já predisposta a que o espírito a capte. Essa experiência, na sua dialética profunda, já funda, no que faço, na minha obra, uma posição importante do problema sujeito-objeto. Antes, e ainda numa corrente de realizações, toda a estrutura objetiva já e criada por mim, e logo a identificação já existe no momento em que as estruturas vão nascendo, dando-se o diálogo sujeito-objeto numa fusão mais serena. Nos "transobjetos" o diálogo se dá pela acentuação da oposição sujeito-objeto. Creio que posto desse modo o problema, nas estruturas totalmente "feitas" por mim, mudará de visão, de dialética, mas sua fenomenologia. Nas estruturas totalmente feitas por mim há uma vontade de objetivar uma 234 concepção estrutural, que só se realiza ao se concretizar pela "feitura da obra", já nos "transobjetos" há a súbita identificação dessa concepção subjetiva com o objeto já existente como necessário à estrutura da obra, que na sua condição de objeto, oposto ao sujeito, já o deixa de ser no momento da identificação, porque na verdade já existia implícito na ideia. 235 Apêndice 7 OITICICA, Hélio, BASES FUNDAMENTAIS PARA UMA DEFINIÇÃO DO PARANGOLÉ380,1964, in Hélio Oiticica, comissariado: Guy Brett, Catherine David, Chris Dercon, Luciano Figueiredo, Lygia Pape, dir.: Cesar Oiticica e Claudio Oiticica, prod.: Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris; Projecto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro; Witte de With - center for contemporary art, Rotterdam, Rio de Janeiro, Brasil, 1996, pp. 85/88. A descoberta do que chamo Parangolé marca o ponto crucial e define uma posição específica no desenvolvimento teórico de toda a minha experiência da estrutura-cor no espaço, principalmente no que se refere a uma nova definição do que seja, a obra. Não se trata, como poderia fazer supor o nome Parangolé derivado da gíria folclórica, de uma implicação da fusão do folclore à minha experiência, ou de identificações desse teor, transpostas ou não, de todo superficiais e inúteis (ver em outra parte o teórico do nome e como o descobri). A palavra aqui assume o mesmo caráter que para Schwitters, p.ex., assumiu a de Merz e seus derivados (Merz-bau, etc.), que para ele eram a definição de uma posição experimental específica, fundamental à compreensão teorética e vivencial de toda a sua obra. Aqui a especificidade é também bem marcante, nascida da criação do que chamo Penetráveis, Núcleos e Bólides, e que aqui assume dentro da arte contemporânea uma posição definida em correlação com as experiências desse teor. Não quero aqui a apreensão objetiva transporta dos materiais de que se constitui a obra, p.ex., plásticos, panos, esteiras, telas, cordas etc., nem essa mesma relação a objetos aos quais se relacionam as obras: p.ex., tendas, estandartes, etc. Essa relação das "aparências" com coisas já existentes existe mas não é primordial na génese da ideia, ou talvez o fosse de outro ponto de vista do "porquê" dessa relação verificada no decorrer da realização da obra, da sua plasmação. O que interessa aqui no momento é a intenção "como" dessa plasmação da obra, da "intenção" primeira específica 380 Parangolé: expressão idiomática, oriunda da gíria no Rio de Janeiro que possui diferentes significados: agitação súbita, animação, alegria e situações inesperadas entre pessoas. ?36 da mesma. Se bem que faça eu uso de objetos pré-fabricados nas obras (p.ex., cubas de vidro), não procura a poética transposta desses objetos como fins para essa mesma transposição, mas os uso como elementos que só interessam como um todo, que é a obra total. Seria o que chamo a "fundação do objeto", que se dá aqui na sua pura plasmação espacial, no seu tempo, no seu significado específico de obra. A cuba de vidro contém a cor em pó, p.ex., mas para a percepção da obra o que interessa é o fenómeno total que, em primeiro lugar, se dá diretamente e não em "partes". Não é o "objeto" cuba e o "objeto" pigmento-cor, mas a "obra" que já não é o objeto no que possuía de conhecido, mas uma relação que torna o que era conhecido num novo conhecimento e o que resta a ser apreendido, um lado poder-se-ia dizer desconhecido, que é o resto que permanece aberto à imaginação que sobre essa obra se recria. Aliás o objeto teorético "cuba de vidro" ou "pigmento-cor" já possuía também antes esse lado desconhecido, tanto assim que, na "fundação objetiva da obra", surgiu a possibilidade de ser revelado esse lado até então desconhecido desses objetos, aqui na especificidade da obra, O que surgirá no contínuo contato espectador-obra estará portanto condicionado ao caráter da obra, em si incondicionada. Há portanto uma relação condicionada incondicionada na contínua apreensão da obra. Essa relação poder-se-ia constituir numa "transobjetividade" e a obra num "transobjeto" ideal. Não é aqui o lugar para desenvolver em detalhe essa teoria, mas procurar apenas situar uma definição generalizada desse ponto de vista. Seria pois o Parangolé um buscar, antes de mais nada estrutural básico na constituição do mundo dos objetos, a procura das raízes da génese objetiva da obra, a plasmação direta perceptiva da mesma. Esse interesse, pois, pela primitividade construtiva popular que só acontece nas paisagens urbanas, suburbanas, rurais, etc., obras que revelam um núcleo construtivo primário mas de um sentido espacial definido, uma totalidade. Há aqui uma diferença fundamental entre isso e o lato cubista, p.ex., da descoberta da arte negra como fonte riquíssima formal-expressiva etc. Era a descoberta de uma totalidade cultural, de um sentido espacial definido. Era a tentativa primeira e decisiva do desmonte da figura na arte ocidental, da dinamização expressiva da figura, da procura da dinamização estrutural do quadro tradicional da 237 escultura etc. O Parangolé, porém, situa-se como que no lado oposto do Cubismo: não toma o objeto inteiro, acabado, total, mas procura a estrutura do objeto, os princípios constitutivos dessa estrutura, tenta a fundação objetiva e não a dinamização ou o desmonte do objeto. Não desenvolverei também aqui esse argumento em detalhe: quero apenas apontá-lo: cabe também à crítica de arte a tomada do assunto sob seu ponto de vista. Nessa procura de uma fundação objetiva, de um novo espaço e um novo tempo na obra no espaço ambiental, almeja esse sentido construtivo do Parangolé a uma «arte ambiental» por excelência, que poderia ou não chegar a uma arquitetura característica. Há como uma hierarquia de ordens na plasmação experimental de Núcleos, Penetráveis e Bólides, todas elas, porém, dirigidas para essa criação de um mundo ambiental onde essa estrutura da obra se desenvolva e teça a sua trama original. A participação do espectador é também aqui característica em relação ao que hoje existe na arte em geral: é uma "participação ambiental" por excelência. Trata-se da procura de "totalidades ambientais" que seriam criadas e exploradas em todas as suas ordens, desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano etc. Essas ordens não estão estabelecidas a priori mas se criam segundo a necessidade criativa nascente. O uso, pois, de elementos prefabricados ou não que constituem essas obras importa somente como detalhe de totalidades significativas, e a escolha desses elementos responde à necessidade imediata de cada obra. A relação dessas obras com objetos ou conceitos já existentes é porém de outra ordem, p.ex.: estandartes, tendas, capas etc. Há como que uma convergência da obra com esses objetos, ou melhor, uma semelhança aparente terminada a obra, ou já toma ela, desde o começo, essa aparência. Essa convergência dá-se, é claro, a priori: o estandarte é por excelência um elemento ou objeto ultra-espacial; há nele, implícito na sua estrutura objetiva, elementos que seriam os mesmos exigidos, p.ex., para exprimir uma determinada ordem espacial da estrutura-cor dada pelo objeto em si e pelo ato de o espectador carregá-lo. A obra tendo tomado, pois, a forma de um estandarte, não quis figurá-lo ou transpor o que já existe para uma outra visão, para um outro plano, mas se apropria dos seus elementos objetivos-constitutivos ao tomar o corpo ao plasmar-se na sua realização. Também a "tenda" é erigida pela relação ambiental que exige aqui 238 um "percurso do espectador", um desvendamento da sua estrutura pela ação corporal direta do espectador. Essa relação é pois contingente, inevitável e perfeitamente coerente dentro da dialética do Parangolé. O "achar" na paisagem do mundo urbano, rural etc., elementos Parangolé está também aí incluído como o "estabelecer relações perceptivoestruturais" do que cresce na trama estrutural do Parangolé (que representa aqui o caráter geral da estrutura-cor no espaço ambiental) e o que é "achado" no mundo espacial ambiental. Na arquitetura da "favela", p.ex., está implícito um caráter do Parangolé, tal a organicidade estrutural entre os elementos que o constituem e a circulação interna e o desmembramento externo dessas construções, não há passagens bruscas do "quarto" para a "sala" ou "cozinha", mas o essencial que define cada parte que se liga à outra continuidade. Em "tabiques" de obras em construção, p.ex., se dão mesmo, em outro plano. E assim em todos esses recantos e construções populares, geralmente improvisados, que vemos todos os dias. Também feiras, casas de mendigos, decoração popular de festas juninas, religiosas, carnaval etc. Todas essas relações poder-se-iam chamar "imaginativo-estruturais", ultraelásticas nas suas possibilidades e na relação pluridimensional que delas decorre entre "percepção" e "imaginação" produtiva (Kant), ambas inseparáveis, alimentando-se mutuamente. Todos esses pontos restam para uma teorização crítica e ainda outro que surge, qual seja, o da verificação de uma verdadeira retomada, através do conceito de Parangolé, desse estrutura mítica primordial da arte, que sempre existiu, é claro, mas com maior ou menor definição. Da arte renascentista em diante houve como que um obscurecimento desse fator que tendeu, com o aparecimento da arte do nosso século, a emergir cada vez mais. Resta verificar no Parangolé, p.ex., a aproximação com elementos da dança, mítica por excelência, ou a criação de lugares privilegiados etc. Há como que uma "vontade de um novo mito", proporcionado aqui por esses elementos da arte; há uma interferência deles no comportamento do espectador: uma interferência contínua e de longo alcance, que se poderia alçar nos campos da psicologia, da antropologia, da sociologia e da história. Este é outro dos pontos a ser desenvolvido criticamente em detalhes num estudo implícito 239 nessas definições; resta talvez uma procura da definição de uma "ontologia da obra", uma análise profunda da génese da obra enquanto tal. OITICICA; Hélio, ANOTAÇÕES SOBRE O PARANGOLÉ, 1965, publicado no catálogo da exposição Opinião 65, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, MOMA, in Hélio Oiticica, comissariado: Guy Brett, Catherine David, Chris Dercon, Luciano Figueiredo, Lygia Pape, Projecto Hélio Oiticica, dir.: Cesar Oiticica e Claudio Oiticica, prod.: Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris; Projecto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro; Witte de With - center for contemporary art, Rotterdam, Rio de Janeiro, Brasil, 1996, pp. 93/96. Desde o primeiro "estandarte", que funciona com o ato de carregar (pelo espectador) ou dançar, já aparece visível a relação da dança com o desenvolvimento estrutural dessas obras da "manifestação da côr no espaço ambiental". Toda a unidade estrutural dessas obras está baseada na "estrutura-ação" que é aqui fundamental; o "ato" do espectador ao carregar a obra, ou ao dançar ou correr, revela a totalidade expressiva da mesma na sua estrutura: a estrutura atinge aí o máximo de ação própria no sentido do "ato expressivo". A ação é a pura manifestação expressiva da obra. A ideia da "capa", posterior à do estandarte, já consolida mais esse ponto de vista: o espectador "veste" a capa, que se constitui de camadas de pano de cor que se revelam à medida em que este se movimenta correndo ou dançando. A obra requer aí a participação corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, que dance em última análise. O próprio "ato de vestir" a obra já implica numa transmutação expressivo - corporal do espectador, característica primordial da dança, sua primeira condição. A criação da "capa" (já realizada a 1 e 2) veio trazer não só a questão de considerar um "ciclo de participação" na obra, isto é, um "assistir" e "vestir" a obra para a sua completa visão por parte do espectador, mas também a de abordar o problema da obra no espaço e no tempo - não mais como se fosse ela "situada" em relação a esses elementos, mas como uma "vivência mágica" dos mesmos. Não há aí a partida da valorização obra-espaço e obra-tempo, ou melhor obra-espaço-tempo, para a consideração da sua transcendentalidade 240 como obra-objeto no mundo ambiental. Toda a minha evolução que chega aqui à formulação do Parangolé, visa a essa incorporação mágica dos elementos da obra como tal, numa vivência total do espectador, que chamo agora "participador". Há como que a "instituição" e um "reconhecimento" de um espaço inter-corporal criado pela obra ao ser desdobrado. A obra é feita para esse espaço, e nenhum sentido de totalidade pode-se dela exigir como apenas uma obra situada num espaço-tempo ideal exigindo ou não a participação do espectador. O "vestir", sentido maior e total da mesma, contrapõe-se ao "assistir", sentido secundário, fechando assim o ciclo "vestirassistir". O vestir já em si se constitui numa totalidade vivencial da obra, pois ao desdobrá-la tendo como núcleo central o seu próprio corpo, o espectador como que já vivência a transmutação espacial que aí se dá: percebe ele na sua condição de núcleo estrutural da obra, o desdobramento vivencial desse espaço inter-corporal. Há como que uma violação do seu estar como "indivíduo" no mundo, diferenciado e ao mesmo tempo "coletivo", para o de "participador" como centro motor, núcleo, mas não só "motor" como principalmente "simbólico", dentro da estrutura-obra. É esta a verdadeira metamorfose que aí se verifica na inter-relação espectador-obra (ou participador-obra). O assistir já conduz o participador para o plano espaciotemporal objetivo da obra, enquanto que no outro esse plano é dominado pelo subjetivovivencial; há aí a completação da vivência inicial do vestir. Como fase intermediária poder-se-ia designar a do vestir-assistir, isto é, ao vestir uma obra vê o participador o que se desenrola em "outro", que veste outra obra, é claro. Aqui o espaço-tempo ambiental transforma-se numa totalidade "obraambiente"; há a vivência de uma "participação coletiva" Parangolé, na qual a tenda, isto é, o Penetrável Parangolé assume uma função importante: é ele o "abrigo" do participador, convidando-o a também nele participar, acionando os elementos nele contidos (sempre manualmente ou com todo o corpo, nunca mecanicamente, como seja: acionar botões que põem em movimento elementos etc. Quando pára a ação corporal do espectador, pára o movimento; aliás é importante notar os elementos "ação total": é aí a obra muito mais "obra-ação" do que a antiga action-painting, puramente plasmação visual da ação e não a ação mesma transformada em elemento da obra como aqui). O Parangolé revela então o seu caráter fundamental de 241 "estrutura ambiental", possuindo um núcleo principal: o participador-obra, que se desmembra em "participador", quando assiste e "obra" quando assistida de fora nesse espaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-obra ao se relacionarem num ambiente determinado (numa exposição, p.ex.) criam um "sistema ambiental" Parangolé, que por sua vez poderia ser "assistido" por outros participadores de fora. Daí para o estabelecimento perceptivo de relações entre a estrutura Parangolé, vivencíada pelo participador, e outras estruturas características do mundo ambiental, surge o que chamo de "vivência-total Parangolé", que é sempre acionada pela participação do sujeito nas obras e lançada no mundo ambiental como que querendo decifrar a sua verdadeira constituição universal transformando-o em "percepção criativa". Importa aqui, agora, procurar determinar a influência de tal ação no comportamento geral do participador; seria isto uma iniciação às estruturas perceptivo-criativas do mundo ambiental? Toda obra de arte, no fundo, o é; resta saber aqui qual a especificidade característica nessa concepção do que seja o Parangolé. 242 Apêndice 8 OITICICA, Hélio, TROPICAUA, 1968, publicado no Folha de São Paulo, Folhetim, São Paulo, 8 de Janeiro de 1984, in Hélio Oiticica, comissariado: Guy Brett, Catherine David, Chris Dercon, Luciano Figueiredo, Lygia Pape, dir.: Cesar Oiticica e Claudio Oiticica, prod.: Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris; Projecto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro; Witte de With - center for contemporary art, Rotterdam, Rio de Janeiro, Brasil, 1996, pp. 124/126. Da ideia e conceituação de "Nova Objetividade" criada por mim em 1966, nasceu a Tropicália, que foi concluída em princípios de 67 e exposta (projeto ambiental) em Abril de 67. Com a teoria da Nova Objetividade queria eu instituir e caracterizar um estado da arte brasileira de vanguarda confrontando-o com os grandes movimentos da arte mundial (Op e Pop) e objetivando um estado brasileiro da arte ou das manifestações a ela relacionadas (ver catálogo das exposições Nova Objetividade Brasileira no MAM-abril 1967). A conceituação da Tropicália, apresentada por mim na mesma exposição, veio diretamente desta necessidade fundamental de caracterizar um estado brasileiro. Aliás, no início do texto sobre Nova Objetividade invoco Oswaldo de Andrade e o sentido da Antropofagia (antes de virar moda, o que aconteceu após a apresentação do (Rei da Vela381) como um elemento importante nesta tentativa de caracterização nacional. Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente "brasileira" ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formação do Parangolé em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e consequentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anónimas, nos grandes centros urbanos - a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios etc. 381 O Rei da Vela, peça de teatro de Oswald de Andrade montada pelo Teatro Oficina, São Paulo,1967, durante o movimento tropicalista, adaptada também para o cinema em 1982 por J. O Martinez Corrêa e N. Nunes. 243 Parangolé foi o início, a semente, se bem que ainda num plano de ideias universalista (volta ao mito, incorporação sensorial etc.), da conceituação da Nova Objetividade e da Tropicália. Na verdade, para chegarse a entender o que quero com Nova Objetividade e Tropicália posteriormente, é imprescindível conhecer e entender o significado de Parangolé (coisa que aliás muito mais depressa entendeu o crítico londrino Guy Brett quando escreveu no The Times de Londres ser o Parangolé "algo nunca visto'" que poderá "influenciar fortemente" as artes europeia e americana etc.). Com a Tropicália, porém, é que a meu ver se dá a completa objetivação da ideia. O Penetrável principal que compõe o projeto ambiental foi a minha máxima experiência com as imagens, uma espécie de campo experimental com as imagens. Para isto criei como que um cenário tropical com plantas, araras, areia, pedrinhas (numa entrevista com Mário Barata no Jornal do Comércio a 21 de maio de 67, descrevo uma vivência que considero importante: parecia-me ao caminhar pelo recinto, pelo cenário da Tropicália, estar dobrando pelas "quebradas" do morro, orgânicas tal como a arquitetura fantástica das favelas; outra vivência: a de "estar pisando a terra" outra vez). Ao entrar no Penetrável principal, após passar por diversas experiências táctilsensoriais, abertas ao participador, que cria aí o seu sentido imagético através delas, chega-se ao final do labirinto, escuro, onde um receptor de TV está em permanente funcionamento: é a imagem que devora então o participador, pois é ela mais ativa que o seu criar sensorial. Aliás, este Penetrável deu-me permanente sensação de estar sendo devorado (descrevi isto numa carta pessoal a Guy Brett, em julho de 1967); é a meu ver a obra mais antropofágica da arte brasileira. O problema da imagem é posto aqui objetivamente - mas sendo ele universal, proponho também esse problema num contexto típico nacional, tropical brasileiro. Propositadamente quis eu, desde a designação criada por mim de Tropicália (devo informar que a designação foi criada por mim, muito antes de outras que sobrevieram, até se tornar a moda atual) até os seus mínimos elementos, acentuar essa nova linguagem com elementos brasileiros, numa tentativa ambiciosissima de criar uma linguagem nossa, característica, que fizesse frente à imagética Pop e Op, internacionais, na qual mergulhava boa parte de nossos artistas. Mesmo na exposição Nova Objetividade podia- 244 se notar isto. Perguntava-me então: por que usar "stars and stripes", elementos da arte Pop, ou retículas e imagens de Lichtenstein e Warhol (repetição de figuras etc.) - ou, como os paulistas ortodoxos, o ilusionismo Op (que aliás poderia ter raízes aqui, muito mais que a arte Pop, cuja imagética écompletamente inadmissível para nós)? Na verdade, porém, a exposição Nova Objetividade era quase que por completo mergulhada nessa linguagem Pop híbrida para nós, apesar do talento e força dos artistas nela comprometidos. Por isso creio que a Tropicália, que encerra toda essa série de proposições, veio contribuir fortemente para essa objetivação de uma imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo inadmissível aqui: na verdade, quis eu com a Tropicália criar o mito da miscigenação - somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo - nossa cultura nada tem a ver com a europeia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disto que caia fora. Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio. E agora o que se vê? Burgueses, subintelectuais, cretinos de toda espécie, a pregar tropicalismo, tropicália (virou moda!) - enfim, a transformar em consumo algo que não sabem direito o que é. Ao menos uma coisa é certa: os que faziam stars and stripes já estão fazendo suas araras, suas bananeiras etc., ou estão interessados em favelas, escolas de samba, marginais anti-heróis (Cara de Cavalo virou moda) etc. Muito bom, mas não se esqueçam que há elementos aí que não poderão ser consumidos por esta voracidade burguesa: o elemento vivencial direto, que vai além do problema da imagem, pois quem fala em tropicalismo apanha diretamente a imagem para o consumo, ultrasuperficial, mas a vivência existencial escapa, pois não a possuem - sua cultura ainda é universalista, desesperadamente à procura de um folclore, ou a maioria das vezes nem a isso. 245 Cheguei então à ideia, que seria a meu ver a vivência principal e fundamental da consequência das formulações anteriores - Parangolé, Nova Objetividade e Tropicália: é o Supra-sensorial, que apresentei no Simpósio de Brasília em dezembro de 1967, promovido por Frederico Morais, num artigo intitulado "Aparecimento do Supra-sensorial". Esta formulação objetiva certos elementos de dificílima absorção, quase impossível consumo, o que, espero eu, consiga colocar os pontos nos ii: é a definitiva derrubada da cultura universalista entre nós, da intelectualidade que predomina sobre a criatividade - é a proposição da liberdade máxima individual como meio único capaz de vencer essa estrutura de domínio e consumo cultural alienado. Em um artigo longo que estou preparando, "A Busca do Suprasensorial", todos esses problemas são postos e propostos: o velho da "volta ao mito'" o da cultura nacional, a supressão definitiva da "obra de arte" (transformada em consumo na estrutura capitalista), o da criatividade no plano coletivo em oposição ao condicionamento vigente, o do uso das drogas alucinógenas no plano coletivo (inclusive mostrando a grande diferença desta proposição aqui para a de Timothy Leary e adeptos nos EUA), a incomparável diferença da expressividade do negro em relação ao branco intelectualmente, criação do mito brasileiro da miscigenação. Como se vê, o mito da tropicalidade é muito mais do que araras e bananeiras: é a consciência de um não-condicionamento às estruturas estabelecidas, portanto altamente revolucionário na sua totalidade. Qualquer conformismo, seja intelectual, social, existencial, escapa à sua ideia principal. 246 Apêndice 9 OITICICA, Hélio, BRASIL DIARREIA, primeira publicação em 1973, Arte Brasileira Hoje, Rio de Janeiro, in Hélio Oiticica, comissariado: Guy Brett, Catherine David, Chris Dercon, Luciano Figueiredo, Lygia Pape, dir.: Cesar Oiticica e Claudio Oiticica, prod.: Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris; Projecto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro; Witte de With - center for contemporary art, Rotterdam, Rio de Janeiro, Brasil, 1996, pp. 17/20. O QUE IMPORTA: a criação de uma linguagem: o destino de Modernidade do Brasil, pede a criação desta linguagem, as relações, deglutições, toda a fenomenologia desse processo (com inclusive, as outras linguagens internacionais), pede e exige (sob pena de se consumir num academismo conservador, não o laça) essa linguagem: o conceituai deveria submeter-se ao fenómeno vivo: o deboche ao "sério": quem ousará enfrentar o surrealismo brasileiro? Quem sou eu pra determinar qual ou como será essa linguagem? ou será um nada (conservação-diluição)? Sei lá. A diluição está aí - a conviconivência (doença típica brasileira) parece consumir a maior parte das ideias - ideias? frágeis e perecíveis, aspirações ou ideias? Assumir uma posição crítica: a aspirina ou a cura? Ou a curra: ao paternalismo, à inibição, à culpa. Estado de coisas atualmente: porque se precisa e se procura algo que "guarde e guie" a cultura brasileira? e não vêem que essa "cultura" é já um conceito morto. Hoje cultiva-se o policiamento instituição-cultural, no Brasil. Cultivamse as tradições e os hábitos (fala-se em perigos + perigos, mas a maioria corre o perigo maior: o da estagnação desse processo que parece retrocessos ou borrações no seu crescimento - estamos na fase máxima das borrações: o empastelamento retro-formal - por exemplo: pintura, desenho, gravura, escultura: que importa que se as façam ou não: com isso ou com o anúncio de que "não morreram ou a pergunta «morreu ou não?", etc., procurase desviar o problema, que é o de uma posição altamente crítica, para um lado absoluto que não procede neste caso; tudo é feito propositadamente como defesa das instituições que se abrigam no conceito de "artes plásticas" 247 e de suas promoções paternalistas: salões, bienais: principalmente a de São Paulo). Sou contra qualquer insinuação de um "processo linear"; a meu ver, os processos são globais - uma coisa é certa: há um "abaixamento" no nível crítico, que indica essa indeciso-estagnação - as potencialidades criativas são enormes, mas os esforços parecem mingalar, justamente quando são propostas posições radicais, posições radicais não significam posições estéticas, mas posições globais vida-mundo - linguagem - comportamento. Dizer-se que algo chegou "ao fim", assim como a pintura, p.ex. (ou como o próprio processo linear que determina essa ideia) é importante, o que não quer dizer que não haja quem não o faça; dizer que ela acabou é assumir uma posição crítica diante de um fato, é propor uma mudança; propor uma mudança é mudar mesmo, e não conviver com o banho de piscina paternoburguês ou com o mingau da "crítica d'arte" brasileira. A pressa em criar (dar uma posição) num contexto universal a esta linguagem-Brasil, é a vontade de situar um problema que se alienaria, fosse ele "local" (problemas locais não significam nada se se fragmentam quando expostos a uma problemática universal; são irrelevantes se situados somente em relação a interesses locais, o que não quer dizer que os exclua, pelo contrário) - a urgência dessa "colocação de valores" num contexto universal, é o que deve preocupar realmente àqueles que procuram uma "saída" para o problema brasileiro. Ë um modo de formular e reformular os próprios problemas locais, desaliená-los e levá-los a consequências eficazes. Por acaso fugir ao consumo é ter uma posição objetiva? Claro que não. É alienarse, ou melhor, procurar uma solução ideal, extra - mais certo é sem dúvida, consumir o consumo como parte dessa linguagem. Derrubar as defesas que nos impedem de ver "como é o Brasil no mundo, ou como ele é realmente" dizem: "estamos sendo "invadidos" por uma "cultura estrangeira" (cultura, ou por "hábitos estranhos, música estranha, etc.")" como se isso fosse um pecado ou uma culpa - o fenómeno é borrado por um julgamento ridículo, moralista-culposo: "não devemos abrir as pernas à cópula mundial - somos puros" - esse pensamento, de todo inócuo, é o mais paternalista e reacionário atualmente aqui. Uma desculpa para parar, para defender-se - olha-se demais 248 prá trás - tem-se "saudosismos" às pampas - todos agem um pouco como viúvas portuguesas: sempre de luto, carpindo. CHEGA DE LUTO, NO BRASIL O Brasil e a "cultura brasileira" parecem aspirar a uma forma imperialista "patemo-cultural ". Quando o que realmente conduziria a uma ascendência universal deveria ser (o que não significa que o será) algo baseado numa experiência comum nos países novos, o que implicaria ainda mais em posições definidas globais. Mas parece que essas posições se desvaneceram quase que por completo (salvo, é claro, em alguns indivíduos, minoria absoluta, que persistem num nível experimental criador): a falta total de caráter floresce hoje no Brasil - não me refiro somente à "cultura" e "contexto cultural"; o conceito limita e amesquinha tudo; quero me referir a uma coisa global que envolve um contexto maior de ação (incluindo os lados ético-político-social), de onde nascem as necessidades criativas; mais particularmente os "hábitos" inerentes à sociedade brasileira: cinismo, hipocrisia, ignorância, concentramse nisso a que chamo de convi-conivência: todos "se punem", aspiram a uma "pureza abstraía" - estão culpados e esperam o castigo - desejam-no. Que se danem. É preciso entender que uma posição crítica implica em inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente; - envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos; paternalismos; etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão. E a questão brasileira é ter caráter, isto é, entender e assumir todo esse fenómeno, que nada deva excluir dessa "posta em questão": a multivalência dos elementos "culturais" imediatos, desde os mais superficiais 249 aos mais profundos (ambos essenciais); reconhecer que para se superar uma condição provinciana estagnatória, esses termos devem ser colocados universalmente, isto é, devem propor questões essenciais ao fenómeno construtivo do Brasil como um todo, no mundo, em tudo o que isso possa significar e envolver. Nossos movimentos positivos parecem definir-se como, para que se construam, uma cultura de exportação: anular a condição colonialista é assumir e deglutir os valores positivos dados por essa condição, e não evitá-los como se fossem uma miragem (o que aumentaria a condição provinciana para sua permanência); assumir e deglutir a superficialidade e a mobilidade dessa "cultura", é dar um passo bem grande - construir; ao contrário de uma posição conformista, que se baseie sempre em valores gerais absolutos, essa posição construtiva surge de uma ambivalência crítica. Maior inimigo: o moralismo quatrocentão (de origem branca, cristãportuguesa) - brasil paternal - o cultivo dos "bons hábitos" - a super autoconsciência - a prisão de ventre "nacional". A formação brasileira, reconheça-se, é de uma falta de caráter incrível: diarreia; quem quiser construir (ninguém mais do que eu, "ama o Brasil"!) tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia - mergulhar na merda. Experiência pessoal: a minha formação, o fim de tudo o que tentei e tento, levou-me a uma direção: a condição brasileira, mais do que simplesmente marginal dentro do mundo, é subterrânea, isto é, tende e deve erguer-se como algo específico ainda em formação; a cultura (detesto o termo) realmente efetiva, revolucionária, construtiva, seria essa que se ergueria como uma SUBTERRÂNEA (escrevi um texto com esse nome, em setembro 69, em Londres): assume toda a condição subdesenvolvimento (sub-sub), mas não como uma "conversação desse subdesenvolvimento", e sim como uma... "consciência para vencer a super paranóia, repressão, impotência..."brasileiras"; o que mais dilui hoje no contexto brasileiro é justamente essa falta de coerência crítica que gera a tal convi-conivência; a reação cultural, que tende a estagnar a se tomar "oficial" (mais do que burocrática, essa coisa oficial existe como reação efetiva), é a que predomina nesse estado atual: p.ex., a crítica que as ideias de Tropicdlia geraram ao culto do "bom gosto" (isto é, a descoberta de elementos criativos nas coisas consideradas cafonas, e que a ideia de "bom gosto" seria conservadora) foi 250 transformada em algo reacionário pelos diluidores da mesma: instituiu-se a "cafonice" estagnatória, já que instituir a ideia de cafona conduz à glorificação permanente de coisas passadas (olha-se pra trás): hoje há uma febre reacionária de "saudosismos" e "redescoberta de valores", velha guardismo; a crítica da "tropicália" ao "bom gosto" da bossa nova, era e é ambivalente e especifica - a generalização diluidora dela, é reacionarfssima. Isso é um pequeno exemplo. Que dizer das coisas maiores, mais gerais? A ideia de vanguarda, viva e efetiva em alguns, toma-se mera "compilação" na maioria da chamada crítica de arte. Por isso digo: a omissão consciente, ou melhor, pular fora, pode ser mais importante para a "cultura brasileira" revolucionária, do que participar no contexto imediato "policiado" - exemplo máximo: os mais importantes músicos populares do Brasil, Gil e Caetano, para sobreviverem e levarem avante as transformações começadas, tiveram que pular fora - o que criam, em inglês e em Londres, queiram ou não, é a continuação dessa revolução na música brasileira: o caso deles é extremo e é nele mesmo a denúncia desse policiamento moralista-patemal-reacionário vigente hoje no Brasil (há uma espécie de mentalidade geral a la Flávio Cavalcanti382, a mais nociva) - não se trata de um "acidente" nesse contexto: é um estado geral de coisas e vem ao encontro da mentalidade diarréica do país. Mas algo importante e efetivo nasce disso: essa "cultura defensiva" que não quer "pecar" copulando com o mundo, é obrigada a engolir o fenómeno da universalização de seus grandes criadores (seus na medida em que pertençam a um mesmo contexto) - quem poderá ignorar esse fenómeno gigantesco da bossa nova nos Estados Unidos: Tom Jobim virou Musak mais do que "sucesso no exterior", o fenómeno é reversível e age efetiva e diretamente nesse contexto: urge aos que criam construir algo que se erga como uma face-Brasil no mundo; um criador como Jorge Ben, que estava esquecido, vê-se hoje que era precursor e é continuador dessa revolução, e que contribui na criação dessa face-Brasil: com a Tropicália foi retomado e sua importância reconhecida - recentemente estourou na promoção internacional da MIDEM: sua poesia-música roça a ideia de "experimental" - é portanto, um fator construtivo e revolucionário na diluição geral. Não ocorrera 382 Apresentador de televisão brasileira em programas exageradamente sensacionalistas, figura popular no fina) dos anos sessenta e início dos setenta. 251 a Tropicália, pergunto eu, teria isso acontecido? Mais do que acidente, esse caráter experimental ergue-se como algo positivo e caracteristicamente revolucionário nesse contexto (outros exemplos, muitos poderiam ser aqui invocados). Não existe "arte experimental", mas o experimental, que não só assume a ideia de modernidade e vanguarda, mas também a transformação radical no campo dos conceitos-valores vigentes: é algo que propõe transformações no comportamento-contexto, que deglute e dissolve a conviconivência. No Brasil, portanto, uma posição crítica universal permanente e o experimental são elementos construtivos. Tudo o mais é diluição na diarreia. 252 Apêndice 10 CLARK, Lygia, BREVIÁRIO SOBRE O CORPO, in Lygia Clark, catálogo da exposição, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, Barcelona e que fez itinerância pelo MAC, Galeries Contemporains des Musées de Marseille, Fundação de Serralves e Société des Expositions du Palais des Beaux-Arts, 1997-1998, pp. 190/203. Não tenho memória, minhas lembranças são sempre relacionadas com percepções passadas, apreendidas pelo sensorial. Num lapso de segundo eu me sinto tomada pela quentura da mamadeira na palma da mão, acompanhada pelo gosto do leite morno que desce devagar, deixando uni rastro de bolhas atrás de si. Experiência esta, talvez a mais remota dentro da minha vivência, inscrita no meu passado, que se faz presente ainda hoje. (...) As mãos que possuem a magia do arrumar, do dar, do carinho, do tirar, do bater, do se limpar e se sujar, da oração, do gesto maquinal, do tactear do cego, do conhecimento da criação. Se você não tiver uma face, as mãos dirão por ela quem você é. Se você não tiver coração, as mãos falarão por você. Se você não tiver cabeça, elas farão uma por si, mas se você não as tiver, pode esconder atrás da sua face, do seu coração, do seu raciocínio, você é como uma ave sem asas e o seu andar tornar-se-á pesado e inexpressivo, pois elas estarão invisíveis, junto aos teus pés; pás de remos do gesto, ancinho que apaziguou a terra, terra que será aberta uni dia por outras mãos, para que sejas embrulhado como uni presente dentro de uma caixa forrada de cetim e assim possas aspirar com sossego o húmido calor do seu ventre, vulcão que se abre num hausto e se fecha como mandíbula de baleia, pronta para lhe engolir e para lhe incorporar. As minhas mãos têm milhões de anos. (...) Não. Bichos são elas na sua forma, na sua pujança, no seu nervosismo, na sua prematura velhice, na sua sabedoria no ato de criar, acariciar, sentir o mundo pela forma, pelo tacto, conhecimento que vai muito além dos olhos. Marcada no antes do depois, já traziam nas palmas todos os distúrbios nervosos que se deram no seu tempo, cruzes, redemoinhos, pontos, constelação de astros, espaços múltiplos, tempo dos actos, certa, forma não-forma. (...) Boca que é fornalha, boca do forno onde o combustível varia desde o ar até o aprendizado da palavra, verbo, início da expressão da comunicação. 253 Boca onde brota o grito, som que foi modulado, cultivado até à formulação do alfabeto, som que ao sair dela, penetra o ouvido e impulsiona a resposta, o impropério, ou o suspiro do fim, válvula que vacila no seu ritmo, num desvario de pêndulo desregulado fora do seu compasso, até o aquietar do ante-ser que foi expelido na última parcela do ar que o habitava, encerrando o ciclo do começo ao fim. Cratera, buraco onde entra a bola de golfe que aí se aquieta, onde dorme a larva, toca do bicho que espreita, vagina proprietária do pénis, cárie que acoita a dor, ouvido-túnel condutor do som, umbigo-cicratiz marca registrada do passado uterino da dependência da guerra do ato do separarse, fossas nasais que tomaram para si a rédea da cavalgada do ar que agora penetra no compasso do ritmo vital. Boca, antro da língua, peça sobressalente que impulsiona desde o ar até à palavra comprimida, cobra no ato do amor, que procura o avesso no parceiro, perdigueiro do faro preso por forte corrente de tendões que não a deixam submergir no outro. A boca que devora para o estômago, para o cérebro, para o amor. A boca que vomita o alimento, a palavra no impropério, o escarro no arroto, o canto que é som e toda escala musical derivada da descoberta. Boca, fronteira onde se esconde a palavra, o desejo, a fome, que se fecha nesta defesa, arapuca onde o pássaro é capturado, rede onde o peixe é cercado, curral emparedado pela cerca, roda de gente que completa um círculo, anel de compromisso que cerca o dedo. (...) A sensação do solo abrasado pelo sol, da humidade do lodo, da frescura do verde clorofila da erva, da argila, do estrume, do triturar da areia que cede sob eles na medida do passo, do líquido que os afoga no macio e no veludo. O caminhar no fim da tarde, os olhos perdidos na distância, são o encontro do "vazio pleno" na sua existência, parada no tempo, distância comida pelos pés, asas do corpo, trem que é submergido pelo túnel, asas de avião que cortam a distância como unia faca, rodas de coche vagarosas, de carro de boi tangentes. (...) Palavra, verbo, âncora que segura, cabo que afasta, gesto que aproxima e também afasta no "o querer" e no banimento da solidão. O gesto que deglute o ato na imanência do seu significado. O ato que se supera sem explicações, mãos que se entrelaçam ávidas à procura de um sentido a dois, travessão que liga duas ou mais palavras, corrente que prende a tensão por 254 forte faro, olfacto que complementa e perfuma o instante do ato, fruta madura, sem razão aparente no seu existir, que não se pergunta, que se exprime só no seu existir. O aproximar-se sem o compromisso do tempo, sem data, sem o conceito do futuro, onde prevalece a sabedoria do estar-sendo. O precário que dignifica o presente, que rompe cosi o conceito da continuidade. (...) O ouvido que se abre para a palavra que não se formula mas que é invadido pela língua que o modela no seu interior, a sonoridade da concha onde todos os sons irreconhecíveis tomam corpo e se materializam através dos nervos, numa vibração magnética que sobe à flor da pele como trepadeira, procurando no "o outro" o suporte do seu existir. A boca que tenta se exprimir e não consegue, que se transforma em linguagem nela mesma, fazendo com a língua o vocabulário do entendimento, desde a carícia do tacto à mordida da raiva, da frustração ou da provocação.(...) Mãos que sobem e descem pelos relevos da arquitectura do corpo, que encontram nos cheios e vazios a complementação perfeita do par. Mãos que produzem e transmitem o formigamento dos nervos, começando na superfície até atingir a cratera no seu fundo-forma ainda amorfa no começar da cristalização da porra. Mãos que traduzem no gesto toda a formulação do momento integral, que afasta para a aproximação, que foge para aprisionar, que busca através do balanço da rede um ritmo total onde ali se expressa toda a cosmogonia desde Mozart até à bola impulsionada pelo chute no diálogo do corpo com o espaço. Mãos que dialogam com outras mãos à procura dos dedos que se entrelaçam, engrenagem da máquina primeira, oração que ultrapassa o entendimento, magia do ritual do corpo, mãos que fazem amor primeiro e que neste gesto propõem a opção na imanência do ato do amor. ;>55 Apêndice 11 OITICICA, Hélio, PAPE OVO, 1973, in Lygia Pape- Gávea de Tocaia, Cosac & Naify Edições, São Paulo, colaboração: Fundação de Serralves, Porto, 2000, pp. 300/302. por que? porque desde que Lygia Pape propôs o experimento OVO penso e volto penso e sei digo: sei que é limite: ser limite porque não se reduz à manipulação do ritual: propor FAZER, dar por feito é acíclico aberto não só aos significados que se experimentam-surgem não porque dependa da proposição exequível nem da história das situações experimentadas OVO=SHELTER o jogo dentro-fora, que liberta: objeto-espaço uso manipulatório, situação-experimento OVO=SHELTER não porque conotações psíquico-ação tragam significados ao que usa o que foi proposto: saber o porquê da proposição numa visão a longo prazo em situações imagináveis, presumíveis, presumir o não presumível, OVO PERFORMANCE: (...) é o que YOKO ONO diz da tarefa do artista: que é de mudar o valor das coisas porque não é "criação de algo novo" não é metáfora da "dissolução do objeto-arte em estruturas transformáveis pela participação".(...) o OVO como objeto é um cubo suficientemente espaçado para que dentro caiba um corpo entra-se ou melhor passa-se do espaço-ambiente de fora para o de dentro colocando-se o cubo 256 encubando o espaço onde se está. levanta-se e se cabe dentro do cubo cujo único lado aberto é o do chão: passa-se de dentro para fora furando um ou mais lados e por um deles saindo: sem duração predeterminada de tempo de execução: tanto de imediato quanto ficando o que se quer o espaço dentro é o espaço cúbico construído que mais próximo se abarca com o imediato espaço que perifera o corpo: todos os lados estão ao alcance do corpo mas a estrutura não se molda ao corpo: apenas o contém no seu limite corpoambiente. (...) a gratuidade aqui libera o jogo que por sua vez não é regrado nem pretende consequência alguma: como um brinquedo japonês que é depois abandonado mesmo o dentro e fora que são o mesmo e que só se situam como tal pelo deslocamento CORPO: AMBIENTE: SITUAÇÃO aqui não se apresenta vestido de estrutura complexa ou de exigências a serem exploradas: aparece sutilmente e tão direto no seu imediatismo que quando se dá por conta já se abandonou a experiência. (...) OVO não tem lugar como algo estático no espaço e no tempo: é processo: vital e inconclusivo: limite entre o feito e o não-feito: filtro que revela o que é de natureza diversa da aparência: um resvalo em que corpo-objeto-ambiente tangenciam assintoticamente. 257 Apêndice 12 DARRIEUSSECQ, Marie, Louise's Home (trad.: Clara de Gubernatis), Musée d'art contemporain de Bordeuax, Serpentine Gallery e Centro Cultural de Belém, texto publicado pela primeira vez por ocasião da exposição de Louise Bourgeois, Musée d'art contemporain de Bordeuax, 1998. (...)Vivi neste corpo. Conheço-o. Tem vários andares. Julgo saber que o acesso se faz por uma larga boca ventral, um pouco como no centro de um polvo: um bico desce em escada e pega-nos suavemente. O risco não é propriamente o de ser comida. Podemos ser provadas, embaladas, beijadas, amadas, desventradas; e também retalhadas, enfaixadas, enfraldadas, fixadas em tela, cosidas, bordadas, descosidas. Podemos ir em todas as direcções, subir ou descer as escadas, trepar aos andaimes, fazer trapézio no tecto, pendurarmo-nos pelos pés, balouçar, brincar aos equilibristas ao longo de uma trave, dormir aconchegadas debaixo dos lençóis; podemos fazer tudo aquilo que quisermos desde que fiquemos no corpo. O corpo é muito grande. Os lençóis são de linho tecido, parecem rachados em dois pelo meio e depois cosidos de novo como numa operação: como se o cirurgião tivesse cuidadosamente tornado a fechar a ferida, depois de ter extraído um corpo tão hirto e tão tenso que toda aquela abertura teria sido necessária para o tirar; mas apercebemo-nos, quando vemos melhor, que os lençóis foram tecidos assim, muito simplesmente em dois panos regulares da largura do tear, e depois cosidos juntos como dois rectângulos siameses que esperassem ser ligados para poderem aconchegar-nos com jeitinho, para nos enfaixar, nos envolver, nos embalar e ver-nos a descansar, com as pálpebras fechadas e a face pálida. (...) Curiosamente, nesta casa que conheço, são lençóis daqueles que encontramos nas janelas servem de cortinados, flutuam, ou melhor, pendem, dir-se-ia que estão ensopados e ainda mais pesados do que é costume. Há numerosas janelas, em fila, em cada andar, mas distingue-se mal o exterior. Há muito tempo que, não saio de casa. Por vezes procuro a porta, mas tenho medo de cair. Visitei uma a uma todas as divisões da casa, é por isso que a conheço tão bem. E quando me esqueço delas, torno a visitá-las. São muito numerosas. Parece-me que se deslocam ao 'longo dos corredores, mas na 258 maior parte das vezes torno a encontrá-las. Uma, das divisões cheira bem, mas é demasiado forte, um odor espesso de baunilha. Noutra ouço vozes que falam comigo, não compreendo bem, é um rumor de voz humana, conheço aquelas vozes, gostaria de lhes responder, mas que palavras hei-de pronunciar? Será que revelo o meu esconderijo, se é que isto é um esconderijo? Ou serei ridícula, desajeitada, incapaz de dizer o que seria necessário dizer, e nesse caso, será que as vozes que me recebessem não me rejeitariam? Quando a hesitação se torna demasiado grande e me provoca demasiado medo, mudo de divisão, retomo a minha visita. (...) Acho que não sonhei: por trás daquela porta vi três grandes bolas brancas. Viram-nas como eu as vi? Mais precisamente: duas bolas brancas, se bem me lembro, e uma bola mais pequena entre as duas: três bolas bem redondas, prontas a resvalar, e, no entanto, postas ali, imóveis. (...) Entrei no quarto que escolhi para mim. Escolhido não é propriamente o termo: não é que eu lá esteja particularmente à vontade, que me sinta nele confortável, nem em casa; eu diria antes que as suas cores me atraem ao ponto de lá ficar colada como um pássaro. A profusão de objectos, mesmo aqueles que me atrapalham para poder estender-me na cama e dormir, fazme sentir uma vontade estranha de lá ficar, a tocar, a rir, a ter medo a fingir. Não há cama, mas não me incomoda dormir no chão até porque as outras escassas camas da casa estão ocupadas ou são muito duras. (...) Tenho medo que os meus dedos derrapem sobre alguma coisa viscosa, tenho medo de sentir o arco das minhas falanges preso em algo peludo ou colado sobre uma coisa húmida, e de ficar com a parte de baixo das minhas unhas colada a algo de mole, numa carne que não se sabe de onde vem. Preciso de me agitar. Preciso de andar. Preciso de inventar novos percursos para chegar aos quartos. Por vezes tenho a impressão de ter de escolher: ou a casa ou eu. Estou sozinha na casa. Percorri todas as divisões, saltei por cima das paredes, mergulhei a pique nas escadas, mas nunca encontrei ninguém. Encontrei ribeiros e árvores; também encontrei armários cheios de roupas, fraldas, compressas, produtos de farmácia. Há, portanto, vestígios de presenças; mas se existem nesta casa outros ocupantes, ou se há visitas, tudo se passa como se nos cruzássemos sem nunca nos encontrarmos. Será que eles me procuram? Um dia, saindo do meu quarto, reparei que uma porta 259 se abria simetricamente à minha, em frente, do outro lado do corredor; decidi entrar. Mas desde então, nunca mais voltei a encontrá-lo, e aliás não tenho muita vontade de lá voltar. Eu tinha-me sentado na cama. Havia duas grandes almofadas, e um recado entre as duas, «je t'aime» [amo-te], que me encheu de pavor. Para quem seria aquele recado? Teria sido detectada a minha presença? E se o recado se tivesse perdido, não seria ainda pior imaginar que o destinatário continuava à sua procura? Quem iria 1er aquele recado? Seria concebível que ele ali ficasse sem atingir o seu objectivo? Tive medo de um horrível mal-entendido. Corri para me refugiar no meu quarto e esperei durante bastante tempo, com esperança, escondida atrás da porta, que alguém entrasse no quarto ao lado e encontrasse o recado e o lesse, talvez em voz alta, com uma voz doce. Em vez disso, apenas ouvi respirações, como uni grande bicho com várias cabeças, várias gargantas e vários fôlegos, que, tivesse comido todo o interior do quarto sufocando com a pressa. Não me atrevi a ir ver. Mais tarde, nada tinha, mudado. (...) Por isso não tenho vontade de voltar àquele quarto, ainda que o encontre em pleno corredor, com as suas expansões de órgão oco. Aquela música era detestável, horrível e nojenta. Prefiro ficar no meu quartinho, sentada sobre a maleta, a desenrolar e enrolar fios. Alguns dos outros quartos estão, por assim dizer, ocupados. (...) Evito cuidadosamente entrar naqueles quartos, teria medo de apanhar a doença que lá mantém presos os seus ocupantes, e de ser contaminada pelos gritos que não soltam. Ninguém os ouviria, se gritassem, parecem tão sós, isolados de tudo; é preciso dizer .que a companhia deles não é muito agradável, sem membros, sem cabeça, sem rosto, parados como soluços bloqueados em gargantas, como dores suspensas e sempre presentes. Ao mesmo tempo, não posso deixar de continuar a lá voltar, olhar pela porta entreaberta, e então não sei se me sinto ainda mais só que habitualmente ou se, pelo contrário, de tanto os ver, algo de familiar me invade e acaba por me fazer companhia como uma velha recordação; e precisaria de um cadeirão confortável, ou mesmo uma simples cadeira de jardim, para me sentar só pôr um instante, e segurar nos joelhos com as mãos, e pousar a minha cabeça sobre as minhas coxas, e esconder o meu nariz, e balouçar-me suavemente enquanto procuro 260 recordar-me daquela coisa perdida que julgo rever. Seria preciso entrar num estado particular da recordação, deixar-me ir lentamente; mas não sei se posso, se devo, se é uma boa coisa. (...) Se eu descobrisse um sítio para descansar, uma cama para dormir, um cadeirão para descontrair, um jardim para passear e estender-me por baixo dos cedros, então talvez pudesse encontrar aquela recordação de recordação, interpretar esta sensação de déjà vu. Mas para quê rever o passado? Julgo ter visitado paisagens, explorado jardins, atravessado ribeiros, apanhado barcos e atravessado oceanos, mas só me interessa o que está diante de mim. Então continuo a visitar a casa, todos os dias, sem me fartar, e mesmo que por vezes sinta medo, mesmo que isso me faça sofrer. E reconheço certos sítios. (...) Então sinto que existo. Do lado de dentro, compreendo as leis que regem o crescimento das escadas, a sua subida em direcção a nada de nada, mas o impulso que as empurra; compreendo como se distribuem as prateleiras, os aparadores, os móveis e os cabides; compreendo como germinam os montículos redondos, como se interpenetram as tetas, como se enrolam as espirais, como fervilham as pregas e as protuberâncias excêntricas. E participo na física da sua geometria. A dona da casa, sou eu. Também há certas divisões que estão ocupadas por aranhas. (...) Mas quanto às teias de aranha, quem é que trata de as tirar? Vi, muitas vezes, aranhas muito grandes que se encaixavam empoleiradas nas patas sobre as portas abertas; as suas teias deviam ser gigantescas, visíveis ao nível do tecto, e eu devia ter-me emaranhado nelas nos cantos obscuros dos corredores, e ficar ali a secar, à espera que a enorme tecedeira viesse enfaixar-me nos seus fios e esmagar-me com os seus dentes e os seus sucos! Mas nunca encontrei uma teia de aranha. Deve haver uma excelente dona de casa que passa um pano, que disparate, um tecido imenso para apanhar a teia toda, ou talvez um ancinho, e que anda a jardinar pela casa, apanhando os delicados hexágonos como quem empilha folhas secas, ou então que os dobra para os arrumar nos armários como se faz aos lençóis muito limpos e engomados. É certo que o facto de eu não ouvir um único passo, nenhum indício de actividade, nenhum barulho nos tectos, nada mostra, no funcionamento 261 desta casa, que possa fornecer-me uma prova da existência ou não de uma dona de casa. (...) Espreito. A aranha vai regressar. A porta vai abrir-se, e uma sombra com oito patas vai cobrir-me. Mas eu não teria medo. Observaria o que ela fizesse. Ela extrairia o fio, molhá-lo-ia com a sua boca gigantesca, enfiá-lo-ia num enorme fundo de agulha, e começaria a coser, para mim e para sempre, uma imensa teia que me envolveria. Ela fecharia todas as aberturas, encerraria todas as portas, remendaria os tecidos rasgados, amorteceria com redes fofas as possíveis quedas pelas escadas, colmataria os vazios dos cantos, e ainda teceria para mim colchões, panos, roupas, uma nova pele. Ficaria ali, para sempre, ao meu lado, a bordar, vasta e curvada sob o peso dos seus braços sempre prontos a abrirem-se. Se eu pudesse, se eu me atrevesse, se fosse preciso, eu iria ter com ela, aceitaria cair nos seus gigantescos braços. As aranhas surpreendem-me sempre nos momentos em que menos as espero. Abro uma porta e lá está uma, atrás de dois grandes batentes que parecem os de uma prisão; mas a minha casa não é propriamente uma cela. A aranha parece estar à minha espera. Está perfeitamente imóvel, e eu não distingo os seus olhos, mas sei que ela me vê. Ela poderia, sem dúvida, como todas as aranhas desatar a correr de um lado para o outro da divisão, procurar também ela uma saída, e arpoar-me ao passar com uma das suas longas e finas patas de aço. Mas sei que não fará nada disso e que, também ela, não procura sair. Tenho, diante da aranha, a sensação de um reflexo, a certeza de ver o meu rosto muito mais claramente que diante dos numerosos espelhos dos quartos. O seu ventre é um grande balde, ignoro se está cheio ou vazio, se a aranha é pesada ou leve; está em bicos de patas, como uma bailarina-estrela que estivesse eternamente proibida de retomar a marcha dos humanos; está hirta como uma cãimbra em arco sobre o soalho, o corpo suspenso no balouço esticado das suas oito agulhas; talvez o simples contacto com o solo a faça sofrer, ou talvez, por delicadeza, queira evitar ao máximo a gravidade vulgar que a prende ao soalho. Olho para ela e ela olha para mim. Embora conserve aquela imobilidade do corpo, parece modificar-se pouco a pouco, as suas articulações de aço soldado estão menos acentuadas, agora mais leves, a ponta das suas patas continua a ser tão aguda, mas dir-se-ia que é menos 262 dolorosa. O balde que formava o seu ventre virou-se sobre a sua cabeça, porque agora ela tem uma cabeça, bem marcada, como um capelo de polvo, daqueles que se viram por cima do pescoço para matar o animal, para lhe arrancar do ventre o molusco que palpita lá dentro. Mas a aranha permanece terrestre, embora pareça que não é nada com ela e se estique em direcção ao tecto. (...) Se a aranha mexesse, se corresse na diagonal através da divisão, o líquido azul elevar-se-ia em ondulação, em vagas e nuvens, e bateria contra as paredes, e eu ouviria pulsar o coração do grande insecto. Nunca vi o mar nem o céu, como se explica que me recorde deles? Lembro-me de tal modo que sinto as suas linhas elevarem-se na minha cabeça, o horizonte do céu fixar um sinal no vazio, a curva da ondulação arredondar o espaço. Parece que há um exterior da casa. Seria bom conseguir abrir uma janela. Por vezes estou tão tensa que não me atrevo a dar um passo na casa, nem recortar uma porta num corredor. Aconteceu-me deparar com estranhos enforcados, pendurados pelos pés, pela cintura, lisos e acolchoados como bonecas sem rosto; mas as suas sombras na parede, no chão, faziam deles brinquedos demasiado inquietantes: aquele tipo de brinquedos que me paralisam, aninhada no meu quarto durante longos dias, até que um barulho (uma torneira a pingar, um passo nas escadas) me leve a sair outra vez, e outra, e outra; e percorro os corredores oblíquos, abro quartos onde só encontro uma orelha sem rosto, um braço sem tronco, uma mesa sem cadeira, e por vezes roupas vazias de corpo e de pensamento mas que, no entanto, parecem ainda cheias de uma presença, como se tivessem acabado de ser abandonadas ali; então, consternada, penso em carapaças de animais, em conchas desertadas. Sei, contudo, o que é uma camisa de homem; sei distingui-la de um colar de mulher; já vi algures um colar de pérolas, e também uma gravata, sapatos, sacos rotos com fios como chagas só levemente cosidas, e órgãos saídos das carnes: um sexo de homem, um sexo de mulher rebentando sobre um sexo de homem, Um sexo de homem engrossando sob a pressão de um sexo de mulher, um ventre de mulher inchado e rachado como um sorriso sob dois seios com aspecto de borracha. Mas, aqui, apenas vejo a ausência de carne, o vazio da concha sem o seu molusco, da aranha sem a sua teia, da garganta sem a sua voz, da floresta sem as suas árvores. 263 Esta noite sonhei que me tornava tão grande, tão grande, que a casa explodia à minha volta em farrapos sangrentos, e que eu dava por mim andando numa grande floresta; e também as plantas pareciam roupas vazias, e as árvores à minha volta deslocavam-se como uma multidão de gente muito alta que não me falava, que me assustava e que me atraía. Teria eu medo de encontrar por baixo das folhas farrapos da casa rebentada? Teria eu medo, ao apanhar um feto, de descobrir na minha mão algo que palpitasse e que, em sobressaltos escorregadios, me escapasse para chegar ao solo e tornar a plantar-se com vida? No dia seguinte, no mesmo sonho, aquele mesmo local pareceu-me inofensivo e desprovido de mistério. Podia deslocar-me como queria. As árvores permaneciam imóveis, planas e coloridas, e a sombra das plantas no solo decerto só estava povoada por ouriços, vermes e bexigas-delobo: eu podia andar por cima deles completamente indiferente, encantada por poder dirigir-me, por poder escolher os meus passos, a minha cadência e o traçado do meu passeio, porque a minha errância se tinha tornado numa exploração. Às vezes volto àquela floresta. É a minha maneira de sair da casa. Basta fechar os olhos e ver. Poderia, certamente, pegar em tesouras e recortar uma parede da casa e sair muito tranquilamente; mas é á tranquilidade que me faz falta. Teria medo que uma coisa horrível, à qual sou incapaz de dar um nome, aparecesse e, por sua vez, me levasse para me devorar ou para me esquartejar. Por isso prefiro fechar os olhos, e abri-los, muito grandes, à minha maneira. As árvores crescem, e as plantas desenham formas densas e folhosas nas quais se distinguem estamenhas, pistilos, pelos, dentes, linhas de nível, rostos e outras florestas, e mais outras casas. Então o meu medo desaparece num silêncio completo. 264 Apêndice 13 OITICICA, HÉLIO, APARECIMENTO DO SUPRASENSORIAL, 1967, primeira publicação em 0 aparecimento do Suprasensorial na arte brasileira, Simpósio de Brasília, promovido por Frederico Morais, 1967, in Hélio Oiticica, comissariado: Guy Brett, Catherine David, Chris Dercon, Luciano Figueiredo, Lygia Pape, dir.: Cesar Oiticica e Claudio Oiticica, prod.: Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris; Projecto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro; Witte de With center for contemporary art, Rotterdam, Rio de Janeiro, Brasil, 1996, pp. 127/130. Tal como aconteceu com a pintura, a escultura transformou-se, saiu do velho condicionamento a que estava submetida, quebrando a base, saindo para a mobilidade, e transformou-se num produto híbrido, o objeto, no qual desembocou também a pintura. Tudo o mais derivado de escultura e pintura conduz ao objeto, que é portanto um caminho, uma passagem para esta nova síntese. A palavra, o poema (tal como se verificou na experiência Neoconcreta brasileira), em uma das suas possibilidades, depurou-se aparecendo aí o poema-objeto. O que seria então o objeto? Uma nova categoria ou uma nova maneira de ser da proposição estética? A meu ver, apesar de também possuir estes dois sentidos, a proposição mais importante do objeto, dos fazedores de objeto, seria a de um novo comportamento perceptivo, criado na participação cada vez maior do espectador, chegando-se a uma superação do objeto como fim da expressão estética. Para mim, na minha evolução, o objeto foi uma passagem para experiências cada vez mais comprometidas com o comportamento individual de cada participador: faço questão de afirmar que não há a procura aqui, de um "novo condicionamento" para o participador, mas sim a derrubada de todo condicionamento para procura da liberdade individual, através de proposições cada vez mais abertas, visando fazer com que cada um encontre em si mesmo, pela disponibilidade, pelo improviso, sua liberdade interior, a pista para o estado criador - seria o que Mário Pedrosa definiu profeticamente como «exercício experimental da liberdade». É inútil querer procurar um novo esteticismo pelo objeto, ou limitar-se a "achados" e novidades pseudoavançadas através de obras e proposições. Quando criei e defini a ideia de "nova objetividade", foi para definir um estado característico dessa evolução 265 verificada nas vanguardas brasileiras, não para estratificar conceitos e criar novas categorias: objeto e arte ambiental. A obra de Lygia Clark, primeiro na transformação do quadro anunciando o fim do mesmo, e depois com a magnífica descoberta do Bicho transformando e liquidando a escultura, daí criando as mais ousadas proposições criativas, é decisiva para a compreensão desse fenómeno entre nós, o mais importante e significativo da arte brasileira. As proposições que surgem, ora lançam mão do objeto (palavra, caixa, etc., indo a todas as modalidades, até a "coisa" e à "apropriação"), ora do ambiente, absorvendo, catalizando seus elementos, mas visando à proposição em sua essência. Aliás, diga-se de passagem que quando tomei conhecimento do "ambiente" (de 1960 para cá), sempre considerei o objeto como um de suas ordens (dai os Núcleos, Penetráveis, Bólides, Parangolés e as Manifestações ambientais ordens para um todo, já procurando a proposição vivencial de hoje). Não se quer aqui criar uma estética do objeto ou do ambiente; este seria um lado menor do problema, que pode tomar certa importância, mas limitada ao espaço e ao tempo nesta evolução. O que importa ainda é a estrutura interna das proposições, sua objetividade. O conceito de "nova" objetividade não visa, como pensam muitos, diluir as estruturas, mas dar-lhes um sentido total, superar o estruturalismo criado pelas proposições da arte abstrata, fazendo-o crescer por todos os lados, como uma planta, até abarcar uma ideia concentrada na liberdade do indivíduo, proporcionando-lhe proposições abertas ao seu exercício imaginativo, interior - esta seria uma das maneiras, proporcionada neste caso pelo artista, de desalienar o indivíduo, de torná-lo objetivo no seu comportamento ético-social. O próprio fazer da obra seria violado, assim como a "elaboração" interior, já que o verdadeiro "fazer" seria a vivência no indivíduo. Cheguei então ao conceito que formulei como suprasensorial. Nesta nota seria difícil defini-lo e explicá-lo em todo seu vigor - pretendo em breve publicar um texto sobre o assunto: «À busca do suprasensorial». É a tentativa de criar, por proposições cada vez mais abertas, exercícios criativos, prescindindo mesmo do objeto tal como ficou sendo categorizado - não e são fusão de pintura-escultura-poema, obras palpáveis, se bem que possam possuir este lado, são dirigidas aos sentidos, para 266 através deles, da "percepção total", levar o indivíduo a uma "suprasensação", ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais, para a descoberta do seu centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano. Isto implica numa série de argumentos impossíveis de serem aqui discutidos: de ordem social, ética, política, etc. A primeira experiência efetiva neste sentido, em grupo, está sendo organizada em conjunto: além de mim, Lygia Pape com a proposição da "semente" onde descobre a improvisação e a expressividade corporal como introdução do corpo-expressão - o poeta Raimundo Amado, numa experiência com palavra e som e a ação daí decorrente - Lygia Clark com seus Capacetes Sensoriais buscando o que chama de "vivência infra-sensorial". Nas minhas proposições procuro "abrir" o participador para ele mesmo - há um processo de dilatamento interior, um mergulhar em si mesmo necessário à tal descoberta do processo criador - a ação seria a complementação do mesmo. Tudo é válido segundo cada caso nessas proposições, principalmente o apelo aos sentidos: o tato, o olfato, a audição, etc., mas não para "constatar" pelo processo estímulo-reação, puramente limitado ao sensorial como no caso da arte Op - ao propor e apontar um dilatamento interior no participador visa já o suprasensorial. A estabilidade suprasensorial seria a dos estados alucinógenos (por uso de drogas alucinógenas ou não, já que as vivências suprasensoriais, de várias ordens, conduzem também a um estado semelhante; a droga seria o estado clássico exemplificado do suprasensorial) e, completando a polaridade, o estado complementar, ou seja nãoalucinógeno. Isto é algo a ser discutido longamente em outra parte, suscetível que é de despertar paixões pró e contra. Toda essa experiência em que desemboca a arte, o próprio problema da liberdade, do dilatamento da consciência do indivíduo, da volta ao mito, redescobrindo o ritmo, a dança, o corpo, os sentidos, o que resta enfim a nós como arma de conhecimento direto, perceptivo, participante, levanta de imediato a reação dos conformistas de toda espécie, já que é ela (a experiência) a libertação dos prejuízos do condicionamento social a que está submetido o indivíduo. A posição, é pois, revolucionária no sentido total do comportamento - não se iludam, pois seremos taxados de loucos a todo instante: isto faz parte do esquema da reação. A arte já não é mais 267 instrumento de domínio intelectual, já não poderá mais ser usada como algo «supremo", inatingível, prazer do burguês tomador de whisky ou de intelectual especulativo: só restará da arte passada o que puder ser apreendido como emoção direta, o que conseguir mover o indivíduo do seu condicionamento opressivo, dando-lhe uma nova dimensão que encontre uma resposta no seu comportamento. O resto cairá, pois era instrumento de domínio. Uma coisa é definitiva e certa: a busca do suprasensorial, das vivências do homem, é a descoberta da vontade pelo "exercício experimental da liberdade» (Pedrosa), pelo indivíduo a que ela se abre. Aqui, só as verdades contam, nelas mesmas, sem transposição metafórica. 268 Apêndice 14 CLARK, Lygia, NÓS RECUSAMOS..., Livro-obra. Rio de Janeiro, 1983, in Lygia Clark, catálogo da exposição, org. e prod.: Fundação Antoni Tàpies, Barcelona, fez itinerância pelo MAC, Galeries Contemporains des Musées de Marseille, Fundação de Serralves, Porto e Société des Expositions du Palais des Beaux-Arts, Bruxelles, 1997-1998, p. 211. 0 que se passa ao meu redor? Todo um grupo de homens vê claramente que a arte moderna não comunica e se torna cada vez mais um problema de uma elite. Então eles se voltam para a arte popular - esperando assim preencher o fosso que os separa da maioria. Consequência: eles rompem os laços que os ligavam ao desenvolvimento da arte universal e se rebaixam a uma expressão de caráter local. Vejo um outro grupo que sente lucidamente a grande crise da expressão moderna. Os que fazem parte dele procuram negar a arte - mas nada encontram para expressar essa negação, além das obras de arte. Pertenço a um terceiro grupo, que tenta provocar a participação do público. Essa participação transforma totalmente o sentido da arte como o entendíamos até então. Isso porque: recusamos o espaço representativo e a obra como comunicação passiva; recusamos todo mito exterior ao homem; recusamos a obra de arte como tal e damos mais ênfase ao ato de realizar a proposição; recusamos a duração como meio de expressão. Propomos o tempo mesmo do ato como campo de experiência. Num mundo em que o homem se tornou estranho ao seu trabalho, nós o incitamos, pela experiência, a tomar consciência da alienação em que vive; recusamos toda a transferência no objeto - mesmo num objeto que pretendesse apenas salientar o absurdo de toda expressão; recusamos o artista que pretenda transmitir através de seu objeto uma comunicação integral de sua mensagem, sem a participação do espectador; recusamos a ideia freudiana do homem condicionado por seu passado inconsciente e enfatizamos a noção de liberdade. 269 Propomos o precário como novo conceito de existência contra toda cristalização estática na duração. 270 Apêndice 15 Aluga-se (Anikibóbó, Porto, 1998), Confessa (Mosteiro de S. Francisco, Coimbra, 2000), Já que tens que esperar... (Aeroporto Francisco de Sá Carneiro, Maia, 2001). Para o projecto 12 Espaços-1 Pátio, concebido por Joana Pimentel, para o bar Aniki-bóbó, era proposto aos artistas convidados que trabalhassem o pátio interior existente no espaço. Este pátio funciona como uma montra de vidro da qual se vê um muro de pedra pintada de branco que, com as intempéries, se transformou numa coloração indefinida e mesclada. É um espaço exterior sem qualquer função para além da sua marcante presença. Não me era permitido, pelo regulamento do projecto, perturbar o funcionamento normal do bar, acabando por anular a minha primeira ideia, que consistia em retirar um dos vidros e colocar uma rampa de acesso ao pequeno pátio conhecido por muito poucas pessoas. Foi então que decidi colocá-lo à disposição de quem estivesse interessado em realizar qualquer coisa ali. Visualmente, a minha intervenção limitou-se a 3 autocolantes de vinil com a inscrição ALUGA-SE, o meu nome e o meu número de telefone. A partir daí, e até ao limite das consequências, realizei panfletos e coloquei-os nos automóveis estacionados nas ruas do Porto, publiquei anúncios em jornais no espaço reservado aos classificados, etc. Restou-me esperar que o telefone tocasse, sendo desta vez o meio que o espectador tinha de contactar com o meu trabalho, embora o desconhecesse. Foram vários os contactos, de tal forma que me vi obrigada a fazer um regulamento de selecção dos candidatos. Durante um mês, o meu espaço esteve sempre ocupado, publicitando empresas de puxadores para portas, gabinetes de estética, ou apresentando instalações de estudantes de arte. Toda a documentação era permanentemente exposta na entrada do bar e no final do tempo que me estava destinado enviei um esclarecimento para os jornais, referindo que tudo o que tinha acontecido durante aquele período não passava de um projecto artístico e do processo para o seu desenvolvimento. Este trabalho foi muito gratificante e revelou-me que o público está mais atento do que se possa 271 imaginar. Basta que sinta que lhe é dado em troca algo que o enriqueça, que o distraia, que o surpreenda. Em Confessa: «Estou aqui contigo. Estamos só nós, juntos.(...) Deita-te e relaxa, relaxa! Estamos tão perto, mas tão longe.(...) Olá! Podes deitar-te e ficar aqui comigo. Podemos conversar, podes contar-me tudo o que quiseres que eu estou aqui a ouvir-te. Fica tudo entre nós, só nós dois. Vá, relaxa, relaxai Descansa, relaxa, descansa, relaxa...(...) Então, como te sentes? Estás na mesma? Estás na mesma! Como é que és capaz de dizer isso. Não deverias estar na mesma. Deverias estar mais calmo mais relaxado isolado do lado de fora, da correria.... Vá fica! Vá dorme! Já disse». É apenas uma fatia do texto que aquela enorme boca (uma vídeoprojecção com cerca de 600x800 cm) declama, alterando o tom, o ritmo, os estados, ora de tranquilidade ora de raiva, ora de paixão ora de desilusão... da voz sem rosto, de uma deusa que está longe e ao mesmo tempo perto, reclamando uma confissão. Quando alguém se confessa é porque tem necessidade e não porque isso lhe é exigido, imposto. Quando alguém se confessa procura descanso espiritual e não relaxamento físico. Aqui esta carga é sentida, sendo que o jogo real é a sua antítese. No refeitório (que serve ao conforto físico, mais do que ao da alma) do Convento de S. Francisco, em Coimbra, encontrava-se uma volumosa e confortável nuvem branca com a mega-boca projectada, no que mais parecia um altar, que falava alto deixando o rasto de um eco, sem perder a limpidez, a expressividade e o brilho. O espaço arquitectónico sugeria isso mesmo. Longo como uma igreja, de tecto abobadado, forrado a azulejo, húmido e frio, despido, obscuro, abandonado e solitário. Este espaço era um sonho que consegui tornar realidade. Já que tens que esperar... porque é que não ficas aqui. Quem sabe te apetece um doce, ou fumar um cigarro, ou ouvir o teu programa de rádio, ou 1er um poema,..., ou apenas relaxar um pouco. Na sua maioria, os espaços públicos como estações dos caminhos de ferro, aeroportos, estações de metro, etc., estão relacionados com dois conceitos: Passagem e Espera. Se, no primeiro, velocidade e desatenção me parecem os estados mais presentes, no segundo, o tempo tem um papel 272 determinantemente diferente. Embora, geralmente, a pressa, a velocidade sejam determinantes na sociedade actual, a realidade é que nos vemos confrontados com tempos indeterminados de espera. Estamos sempre à espera de alguma coisa, que alguma coisa aconteça, se resolva, para que a vida prossiga neste ritmo binário de corre, pára, corre, pára, sem espaço para suspirar. Reveladora de alguma estranheza de nós com nós próprios e na relação que estabelecemos com os outros e com o que nos rodeia, a situação parece tender a agravar-se. Esta montanha/nuvem liga o céu à terra, liga-nos aos extremos. «Felizmente, dado que também temos a capacidade de reflectir e planear, temos um meio de controlar a influente tirania da emoção...» (DAMÁSIO, António, 1999). Sem ter qualquer certeza acerca dos comportamentos que serão provocados, dos estímulos e sentimentos, convido-vos, neste espaço que vos pertence, que está tão próximo do vosso corpo e que não faz sentido sem ele, a partilhar uma viagem pelo tempo, na qual o envolvimento atravessa o palco das emoções. 273 Apêndice 16 CARDOSO, João Sousa, A forma é o mal da matéria, 2000, texto realizado para a apresentação da exposição Mamã, deixa-me andar de escultura!? de Rute Rosas, Galeria Serpente, Porto, 2000. Se em Comum, o colectivo Três Tristes Tigres nos alerta para os perigos da forma - "a forma é um mal da matéria" -, é para logo a seguir nos explicar que assim é porque "a forma é fome". E esta ideia surpreende-nos, sem dúvida, na sua inquietante actualidade. Estamos, cada vez, mais rodeados de objectos - grande parte dos quais sem lhes conhecermos uma concreta utilidade -, escravizados pelas suas formas. O sentido da visão tutela e instiga essa dependência, que relega para plano afastado todas as outras capacidades que não interajam de modo directo e imediato com um mundo saturado de informação audiovisual. A procura de ultrapassagem da forma como meio privilegiado de conhecimento e relação com a matéria poderá ser entendida, antes de qualquer outra consideração, como o grande motor do trabalho de Rute Rosas. Mamã, deixa-me andar de Escultura?! prova tratar-se de uma pesquisa aturada, em que a existência da matéria se liberta gradualmente da forma, no incitar do espectador a desvelar todas as outras dimensões que cada corpo ou situação propostos encerram. O apelo sensitivo nasce do rasgar um território amplo de comunicação entre as condições criadas por Rute Rosas e um espectador disposto a experimentar, a tocar, a cheirar, a saborear, no dilatar da convicção freudiana/lacaniana de que "l'homme n'est pas tout à fait dans l'homme". A existência tem, pois, tanto mais consciência de si e da validade que a assiste, quanto mais se aventurar na profunda descoberta do mundo e na descoberta desinteressada do Outro. Será este, afinal, o grande desafio lançado pela artista. Mamã, deixa-me andar de Escultura?! apresenta-se como uma operação estética que tem início no exterior da Galeria Serpente - Rute Rosas desenvencilha-se, inclusive, da própria forma da galeria - com três acções específicas dispersas pela Rua Miguel Bombarda: distribuição de algodão doce na loja Matéria Prima, no Edifício Artes em Partes, apresentação de um 274 trabalho inédito, Portfolio, no Guernica Café e uma sessão DJ por Pedro Tudela na loja de decoração Tramite. Em Algodão Doce, a confecção e oferta de algodão doce, repetida na entrada da galeria, convida o transeunte, adulto ou criança, a tomar parte na festa. O avental do "doceiro" apresenta estampada a imagem que dá título à acção geral {Mamã, deixa-me andar de Escultura?!), identifica a equipa que a leva a cabo e cobre a vitrina da galeria como que indicando o núcleo da operação. No balcão do Guernica Café encontrar-se uma espécie de máquina de brindes, Portfolio, que em troca de uma moeda oferece bolas de plástico com imagens autocolantes de trabalhos anteriores da autora e pequenos objectos/matérias (um balão, um pedaço de tecido,... ) com eles relacionados. Portfolio revela, acima de tudo, uma vontade de democratização da fruição estética e do objecto artístico, num movimento que converge com algumas das mais recentes e estimulantes experiências estéticas no nosso país. Pedro Tudela, por sua vez, convidado a remisturar, ao vivo, músicas que marcaram a infância de Rute Rosas, cria em Lembranças um ambiente rétro, numa loja de decoração com exposição de objectos e revestimento de cor exclusivamente branca como se a memória da infância fosse um território de festa virginal, intocado pela dor da vida. A omnipresença de uma sexualidade subterrânea, em que parece assentar muito do que diz respeito à vivência e memória do universo infantil, domina todo o projecto. Os três trabalhos apresentados no interior da galeria sublinham esse raciocínio de modo particularmente esclarecedor. No centro da sala, forrada com pasta branca, que lhe imprime a qualidade de conforto e sensação de acolhimento, encontramos Leva-me, adaptação livre de um brinquedo de crianças muito popular entre os anos 70 e 80, geralmente colocado à porta de cafés. A construção de Rute Rosas obedece ao normal funcionamento desse tipo de brinquedos, mas onde se deveria reconhecer uma forma familiar que nos convidasse a sentar nela, existe um desmesurado corpo irreconhecível de pêlo branco. Além disso, a máquina não emite qualquer música enquanto desliza, à excepção do próprio som do seu funcionamento. É uma máquina fantasiosa que chama a atenção para os pedais vermelhos, pormenor que uma criança não entenderá mas que 275 nos remetem, de imediato, para formas claramente fálicas. A libido anuncia a sua entrada em cena... Uma saliência da parede convida-nos, em É Assim, a reclinar e colocar os glasstron em que se projectam, alternadamente, imagens vídeo de grandes ampliações de movimentos epidérmicos e páginas do livro "Como nascem os bebés", datado de 1972. As primeiras imagens (a que corresponde o som da leitura, pela artista, do texto do livro referido) sugerem a microscopia do contacto íntimo entre corpos, enquanto que as ilustrações infantis - oferecidas à artista pela mãe, aquando das primeiras dúvidas relacionadas com a origem da vida -, são sonorizadas pela respiração alterada de dois corpos durante o acto sexual. A dessincronia entre imagem e som traduz e vinca a ponte muitas vezes imperceptível - entre as heranças da infância e as determinações que esta impõe à complexidade de uma vida sexualmente activa. Por último, Vai Mas Volta, constituído por dois monitores colocados frontalmente que, por meio de imagens da artista a brincar com um jogo de praia, o "vai-e-vem", recriam um dos últimos e mais conhecidos jogos, antes da era da electrónica. No lugar de uma forma oval simples, apresenta-se, agora, suspenso pelos fios, um corpo novamente de pêlo branco de onde saem várias pequenas mãos e pés. Vai Mas Volta passa a referir-se, por esta adulteração aparentemente ingénua, a um universo que já tem muito pouco de infantil. Uma dúzia de mãos estica-se no desejo de nos tocar e o título revestese de uma inusitada perversidade. De marcado sentido autobiográfico, pela recolha de elementos pessoais e geracionais, Rute Rosas parte de um plano lúdico que visa recriar um mundo infantil, enfatizando os aspectos positivos da vida. O leite, sumos naturais, gomas e biscoitos distribuídos na inauguração reforçam essa disponibilidade para a alegria, em que o convívio passa a desempenhar um papel importante na mediação entre arte e vida, tornando difusas as fronteiras entre o raciocínio premeditado e a acção espontânea. A dimensão subversiva da exposição faz-se sentir, a um segundo olhar, quando nos apercebemos de uma crítica feroz a um mundo crescentemente dessensualizado (e dessensibilizado), onde o poder da economia tem vindo a ditar uma estética clínica absolutamente inócua. Mamã, deixa-me andar de Escultura?! é um momento de exclusão a esta ordem de 276 existência, questionando insistentemente os limites da ingenuidade infantil (Lolita de Nabokov mantém-se uma obra actual, na sua capacidade demolidora de tabus fundadores da sociedade ocidental), a pulsação sexual inata no humano e o firmar dos sentidos como cartografia por explorar, manifestamente inibidos, na ameaça pelos muitos tipos de assepsia. Se em É Assim, somos autorizados a visionar imagens e ouvir sons numa perspectiva isolada, individual, exclusiva, em Vai Mas Volta a acção depende de dois interlocutores, é forçoso o estabelecimento de um diálogo. Leva-me rompe, definitivamente, a fruição isolada ou restrita do objecto artístico e o observador é já parte integrante daquela situação de um modo evidente, partilhado por todos. A relação descomplexada entre o corpo e o espaço (ou a matéria) é, no fundo, a grande metáfora na fundação de um Mundo Novo, capaz de devolver a inocência ao humano, restituir-lhe a esperança, depois de um século traumático, no rescaldo de todas as feridas e no tendencial totalitarismo de uma sociedade do espectáculo baseada numa rede impessoal e em diferido. Rute Rosas valorizada, nesta celebração, a relação interpessoal, o momento presente, o AQUI e AGORA de um contacto físico, sensual e sensitivo com a matéria. Muito para além da forma. A forma é fome. 277 Bibliografia1 ACKERMAN, Diane, Uma História Natural dos Sentidos (tít. orig.: A Natural History of the Senses, 1990, trad.: Sofia Gomes), Temas e Debates, Actividades Editoriais, Lisboa, 1998. ADORNO, Theodor W., Teoria Estética (tít. orig.: Asthetische Théorie, Suhrkamp- Verlag Frankfurt am Main, 1970, trad.: Artur Morão), Edições 70, Lisboa, 1988. 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