SER OU NÃO SER?
as wrongful life claims.
To be or noT To be?
as wrongful life claims.
Marisa Almeida Araujo 1
Resumo: O Código Penal Português no seu art. 142.º, n.º 1 alínea c), prevê a
justificação da violação da vida intra-uterina, abortando-se o nascituro, até às 24
semanas de gestação, quando lhe for diagnosticada doença grave ou malformação
congénita. O que está em causa é a possibilidade de, por opção da progenitora,
realizar um aborto eugénico, justificando a ordem jurídica a violação da vida,
cuja tutela se inicia in utero nos termos do art. 24.º da Constituição da República
Portuguesa. A possibilidade de diagnóstico destas malformações, com os exames
pré-natais, são cada vez mais exactas e precoces possibilitando aos progenitores
decidir se querem ou não ter um filho portador de deficiência e suportar as
consequências dessa patologia. Neste campo, difícil e inflamado face aos motivos
que lhe estão subjacentes, se debate a possibilidade de uma criança, nascida com
deficiência, ter direito a uma indemnização quando, por omissão de diagnóstico
médico, a mãe perdeu a chance de fazer cessar a gravidez. É a mesma criança que,
caso o diagnóstico tivesse sido realizado de acordo com a legis artis, teria sido
abortada em consequência da interrupção da gravidez, quem agora reclama uma
indemnização que, noutro estado de coisas, não teria nascido e porque nasceu e
nasceu deficiente, quer ser compensada. Esta é uma situação limite, tal como o é o
suicídio e a eutanásia, que nos colocam perante a concepção de vida, da dignidade
da pessoa humana, da própria concepção do Homem em que se debate, um
eventual, “direito à não existência” e a encarar a “vida como um dano”. Estas são
as chamadas wrongful life claims, cujos fundamentos e pretensão indemnizatória
nos propomos analisar.
Palavras-chave: Direito Civil; Direito Constitucional; Vida intra-uterina;
Interrupção Voluntária da Gravidez; Wrongful Life; Wrongful Birth; Contrato de
1
Doutoranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto; Docente da
Universidade Lusíada – Norte (Porto).
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Marisa Almeida Araujo
Prestação de Serviços Médicos; Legis Artis Medicinae; Responsabilidade Civil;
Obrigação de Indemnização.
Abstract: The Portuguese Penal Code in its article 142.º paragraph 1 c)
provides the justification for the violation of intrauterine life, aborting the unborn
child up until 24 weeks of gestation, when it is diagnosed with serious illness
or congenital malformation. What is at stake is the possibility, according to the
mother’s decision, to perform a eugenic abortion, justifiable by law the violation
of life, protected, in utero, according to article 24.º of the Portuguese Constitution,
which assumes the inviolability of human life. The possibility of diagnosis of
these malformations are with prenatal tests, more accurate and allowing early,
the parents, to decide whether or not to have a disabled child and bear the
consequences of his pathology. In this field, hard and inflamed in face of the
reasons behind it, is the possibility of a child, born with disabilities, to have the
right to compensation when, by omission of diagnosis the mother lost the chance
to abort him. The child, if the diagnosis had been made in accordance with the
legis artis, would be aborted by the result of the termination of pregnancy, is the
one who claims compensation for its life, and because he was born, and was born
with a congenital malformation, he wants to be compensated. This is an extreme
situation, as is suicide and euthanasia, which presents us with the conception of
life, the dignity of the human life, the very conception of Human Beings in debate,
as a “right to non-existence” and to face “life as a damage”. These are the wrongful
life claims, whose foundations and claim for damages, we propose to analyze.
Keywords: Civil Law; Constitutional Law; Intrauterine life; Abortion;
Wrongful life; Wrongful birth; medical services; Legis Artis Medicinae; Civil
Responsability; Compensation.
Sumário: 1. Introdução. 2. As wrongful birth actions. A perspectiva
constitucional. 3. O dano da vida nas wronful life claims. 4. As wrongful life
claims. Ser ou Não Ser, eis a questão? 5. Considerações finais. 6. Bibliografia.
1. Introdução.
O sucessivo avanço da ciência no âmbito dos exames de diagnóstico prénatal permite, de acordo com a legis artis medicinae vigente, determinar com
grande grau de precisão patologias que o nascituro possa padecer2 justificando2
According to article 12 of the Oviedo Convention tests, which are predictive (a) of genetic diseases and
genetic predispositions or (b) of susceptibility to a disease may be performed only for health purposes or for scientific research linked to health purposes and subject to appropriate genetic counseling. Similarly, Recommendation (90) 13 of the Committee of Ministers indicates that “prenatal genetic screening and/or prenatal genetic
diagnosis tests undertaken for the purpose of identifying a risk to the health of the unborn child should be aimed
only at detecting a serious risk to the health of the child. Sobre este assunto vide EVGENIA, S. Wrongful life
and birth. Medicine And Law, Israel: International Center for Health, Law and Medicine, 2012, vol. 31
no. 1, p. 97-118, p. 99 referindo-se à Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the
Human Being with regard to the Application of Biology and Medicine: Convention on Human Rights
and Biomedicine, Oviedo, 4.IV. 1997.
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se, em alguns casos e dependendo da patologia, a interrupção da gravidez3 4.
Por isto, o errado diagnóstico médico dos exames pré-natais, atendendo ao
seu elevado grau de exactidão para a detecção de malformações5 suscita, com
grande acuidade, a responsabilidade civil dos profissionais de saúde.
Quando erram no diagnóstico6 das malformações e, desta incorrecta
avaliação, resulta o nascimento de uma criança deficiente.
Em causa está, portanto, nestas acções um erro de diagnóstico do médico
dos exames pré-natais, ou a omissão de realização destes quando protocolados
ou exigíveis face à gravidez em concreto que, não tendo detectado malformações
congénitas no nascituro, teriam permitido, nos termos da lei, pôr termo à
gravidez.
Dá assim o médico causa ao nascimento, ao nascimento de uma criança
deficiente a quem a lei, durante a gestação, teria justificado o seu aborto.
O tema que aqui nos propomos analisar encontra-se circunscrito às
chamadas wrongful life claims7, ou seja, as acções de responsabilidade civil em que
as crianças, representadas pelos pais, que nascem portadores de deficiência, por
erro de diagnóstico no exame pré-natal ou ausência de realização destes quando
exigíveis face à legis artis, propõem contra os médicos que acompanharam
a gravidez e não detectaram a malformação permitindo, desta forma, um
nascimento de uma criança portadora de deficiência.
Nascimento que, de outra forma, teria sido evitado mediante informação
aos pais da patologia e que lhes teria dado a oportunidade de interromper a
gravidez.
Vide art. 142.º do Código Penal.
O grau de precisão dos exames de diagnóstico pré-natais é, em muitos casos, superior a 90%
na detecção de patologias congénitas o que importa a caracterização da obrigação de avaliação como
obrigação de resultado o que tem forte impacto no dever de informação aos progenitores para efeito
de consentimento esclarecido.
Não deixando de notar que, apesar dos cada vez mais sofisticados métodos e exames de diagnóstico e detecção cada vez mais precoce de malformações congénitas, a verdade é que, no que tange
à possibilidade de interrupção voluntária da gravidez o legislador, nas sucessivas revisões que faz
ao disposto no art. 142.º, n.º 1 alínea c) do Código Penal tem aumentado o tempo gestacional para a
interrupção da gravidez, como a redação do preceito se tem tornado menos exigente no sentido de
avaliação.
5
Não foram detectadas as malformações mas, face ao actual momento da ciência médica as malformações deviam tê-lo sido, estando em causa exames laboratoriais com elevado grau de precisão
e especialização, constituindo exemplo de obrigação médica de resultado aliás, processualmente a
constituindo-se como prova pericial.
6
Havendo, alias, quem considere que esta área da saúde tem sido um campo fértil para utilização, desmesurado, da responsabilidade civil, impondo, aos profissionais de saúde, comportamentos
defensivos o que será contraproducente em matéria de saúde e o escopo de actuação destes profissionais – sobre este assunto vide FRADA, Carneiro da, Direito Civil. Responsabilidade Civil. O método do
caso, 2010, Reimpressão, Almedina.
7
Sem prejuízo disso, vamos deter-nos na análise da decisão do Tribunal Constitucional a propósito das wrongful birth actions no ponto seguinte.
3
4
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Têm assim estas crianças uma pretensão indemnizatória assente num
fundamento que radica na vida que vivem, porque não foram abortadas, porque
nasceram portadores de deficiência, com todos os encargos e sofrimento que
desta vivência resulta.
Danos que agora imputam ao médico, pela perda de chance dos pais em
interromperam a gravidez, e dos quais pretendem ser ressarcidas.
A discussão em torno destas acções tem redundado na análise da vida,
enquanto vida deficiente, ser susceptível de indemnizada pelas consequências
dessa patologia, que não foi detectada por erro de diagnóstico.
O diagnóstico, enquanto obrigação (de resultado) do médico face ao contrato
de prestação de serviços celebrado com os progenitores não foi cumprido e,
dessa forma, incumpriu o médico o dever de informação aos progenitores, sobre
a patologia do nascituro e que culmina, em ultima ratio, com a impossibilidade
dos progenitores (progenitora concretamente) o abortar8.
Não tendo sido cumprido o dever de informação, aquele que podia ter
sido abortado é, agora, demandante de uma acção contra o médico que não
tendo actuado de acordo com a legis artis medicinae deu causa a que não fossem
detectadas malformações no nascituro e que, portanto, nasça, deficiente.
Nesta temática e com ela, desde logo, e com efeitos em nosso entender que
suscitam reacções negativas, está comummente a análise da pretensão de uma
indemnização pela violação de um alegado “direito a ser abortado” ou “nascer
inteiro ou não nascer” como é referido pela doutrina.
Pelos problemas dogmáticos, para além dos éticos, morais e até religiosos,
que o tema suscita, os debates em torno dele têm sido, naturalmente, inflamados,
desde logo pela formulação da pretensão que nos leva para questão que se prende
com a vida, a inviolabilidade da vida9, em qualquer fase, incluindo a intrauterina,
com concepções de vida, com a temática da eugenia, e da ténue fronteira entre a
eugenia positiva e negativa, e indemnizações eventualmente devidas a alguém que
tem uma vida, porque a vive, a vive com deficiência e, por essa mesma deficiência
e, portanto, alegadamente um vida menor, que carece de ser compensada.
O enfoque nas wrongful life claims é colocado num erro de diagnóstico mas
que teve como consequência o nascimento da criança que agora reclama uma
Art. 142.º, n.º 1 alínea c), do Código Penal, sob epígrafe, “Interrupção da gravidez não punível”,
prevê que:
1. Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de
saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando:
(...)
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou
malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de
fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
(…)
9
Art. 24.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “A vida humana”, prevê no
seu n.º 1:
“A vida humana é inviolável”
8
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indemnização pela vida deficiente mas que, caso não houvesse o incumprimento,
a criança teria sido, em tempo, abortada. Não existiria portanto.
Neste paradoxo entre a vida e a morte radica a problemática das wrongful
life claims.
Já que, caso o médico tivesse cumprido a obrigação a que estava adstrito, a
consequência seria o cumprimento do dever de informação aos progenitores e a
possibilidade legítima da mãe pôr ter à gravidez abortando quem, agora, reclama a
indemnização por “isto”, o aborto, não ter acontecido e o demandante ter nascido.
Neste campo se desenvolveu a argumentação do Arrête Perruche10 11.
A 14 de Janeiro de 1983 nasceu, em França, Nicolas Perruche. Nasceu com
severos problemas físicos e neurológicos decorrentes da exposição, in utero, ao
vírus da rubéola contraído pela mãe, designado síndrome de Gregg, e que não foi
detectado pelos profissionais médicos que a acompanharam durante a gravidez
como o actual estado da ciência médica permitiria atendendo aos meios de
diagnóstico pré-natais existentes e protocolados.
Foi proposta acção judicial contra os médicos e laboratório que realizou os
exames pelos pais de Nicolas e por aqueles em representação do filho, cumulando
pretensões indemnizatórias dos progenitores, por incumprimento das obrigações
dos profissionais de saúde que deram causa a que os pais levassem a gravidez
até termo na expectativa do nascimento de um filho saudável, e do filho pelo
sofrimento que as patologias de que padece dão causa e das despesas acrescidas
que a deficiência acarreta.
Sumariamente, os pais pela perda de chance resultante da omissão de
informação e o filho pela vida deficiente que vive e o sofrimento que esta causa.
Apesar de ter sido demonstrado o erro médico e laboratorial no diagnóstico
aos exames realizados pela mãe, que na sua pretensão viu procedente a sua
wrongful birth claim, a verdade é que foi sendo sucessivamente negada a pretensão,
de per se, Nicolas ter direito a uma indemnização.
Certo é que corria o ano de 2000 quando, a 17 de Novembro, o Supremo
Tribunal Francês acabou, ao contrário das instâncias inferiores, por conceder ao
próprio Nicolas Perruche o direito a uma indemnização pelo sofrimento de que
padece decorrente da deficiência e dos custos acrescidos que esta causa12.
A decisão tem sido objecto de diversos estudos sendo que, entre nós, exemplificativamente
NUNES VICENTE, Marta de Sousa, Algumas reflexões sobre as acções de wrongful life: a jurisprudência Perruche, in “Lex Medicinae”, Ano 6, n.º 11, (2009), pp. 117-141.
11
Existe outro exemplo que damos nota por mera referencia, a 18 de Março de 2005 o Dutch
Hoge Raad concedeu indemnização à criança numa wrongful life claims.
O processo ficou conhecido como Kelly Molinaar, o nome da criança demandante. Vide
GEVERS, Ewoud, HONDIOUS, H., HUBBEN, J.H., The Kelly Case – Compensation for Undue Damage for
Wrongful Treatment, Health Law, Human Rights And the Biomedicine Convention: Essays in Honour
of Henriette Roscam Abbing, editado por H. D. C. Roscam Abbing, Jan K. M., International Studies of
Human Rights, Martinus Nijhof Publishers, Boston, 2005, p. 105 e ss.
12
L’Arrêt Perruche a Cour de Cassation, Assemblée plénière, du 17 Novembre de 2000, 99-13.
701, Publié au bulletin, in www.legifrance.gouv.fr (consultado a 26 de maio de 2016).
10
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A decisão lançou na sociedade francesa um aceso debate em torno do tema
e que levou, inclusivamente, a alterações legais atendendo ao impacto da mesma,
dando origem à designada lei anti-perruche13 14.
Com vestes de diploma legal acabou-se com a jurisprudência Perruche,
bem como se restringiu o próprio âmbito do direito indemnizatório dos pais
nas wrongful birth claims, cingindo-os quase exclusivamente aos danos morais,
remetendo os encargos acrescidos resultantes da deficiência da criança para a
segurança social15.
Apesar da questão ter passado para o âmbito legal, ou melhor, para uma
proibição legal para a propositura destas acções, a verdade é que a jurisprudência
Perruche continua a suscitar debate na jurisprudência francesa uma vez que
ainda se discute da aplicabilidade da lei16 aos nascimentos anteriores à entrada
em vigor ou, unicamente, aos processos iniciados antes de 200217.
Sendo evidente que, caso esta jurisprudência seja aplicável unicamente a
acções propostas até à entrada em vigor da lei o impacto prático da decisão é,
nesta altura, praticamente inexistente.
Mas, tal como no caso Perruche, o que aqui trazemos é a análise de eventual
responsabilidade do médico, ou outros profissionais de saúde que, por erro, não
13
Lei 2002-303, de 4 de Março de 2002 que exclui qualquer indemnização pelo dano da vida
tendo havido, na sociedade francesa, com grande expressão a favor da legislação das anti-wrongful life
actions diversas associações de pessoas portadoras de deficiência.
14
A Lei, que corresponde actualmente à L. 114-5 do Código de Acção Social e das Famílias,
entretanto aditada pela Lei 2005-102, de 11 de Fevereiro de 2005, estabelece como regra que ninguém
pode invocar um prejuízo pelo único facto de ter nascido.
Também em Inglaterra o sentido é de fazer precludir as wrongful life pela Congenital Disabilities
(Civil Liability) Act de 1976.
15
SILVA, Marta Santos, Sobre a (In)admissibilidade das Acções por “Vida Indevida” (Wrongful life
actions) na Jurisprudência e na Doutrina. O Arrêt Perruche e o caso André Martins., Direitos de Personalidade
e a sua Tutela, Volume I da Colecção “Estudos seleccionados do Instituto Jurídico Portucalense” sob a
Coordenação de Manuel da Costa Andrade, 2013, Rei dos Livros, p. 132
16
In general, the Perruche jurisprudence may continue to have legal weight if the Supreme Court of
Appeal decides to continue to apply it to all children born before 7*, 2002, regardless of date on which the proceedings started. If, the provision anti-perruche “applies to all proceedings initiated after March 1*, 2002,
the Perruche jurisprudence should quickly disappear”. MANAOUIL, C., GIGNON, M., JARDÉ, Wrongful
Birth 10 Years of Controversy, twists and turns in the Perruche Wrongful life claim: Compensation for children
born with a disability in France, Medicine and law, 2012, 31: 661-669, Probook, p. 668 e ss.
17
Não sendo este um trabalho que pretende uma análise comparativa com as diferentes referimo-nos,
concretamente ao caso Francês por ter sido, na Europa, a primeira decisão judicial, que assumiu intervenção
legal para obstar a propositura de acções. Na Alemanha, por exemplo, argumentos suscitados contra a
compensação pecuniária, suscitou aceso debate, pondo-se em causa a dignidade da pessoa humana, a
dignidade da pessoa com deficiência, “It was argued that awarding compensation would violate the human
dignity of the child in question. In reaction to the practice of the Bundesgerichtshof (German Supreme Court,
BGH), which awards compensation in wrongful birth cases, the second Senate of the Bundesverfassungsgericht
(German Constitutional Court, BVerfG), argued that treating the maintenance costs of an unplanned child as
compensable damage would violate the constitutional duty to respect every human being in his or her existence
for his or her own sake” STEININGER, B.C. Wrongful Birth and Wrongful Life: Basic Questions. Journal of
European Tort Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 125-155.p. 129.
96
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tenham avaliado correctamente exames ou outros meios de diagnóstico prénatais susceptíveis de identificar qualquer deficiência do nascituro que, a ser
detectada, como imporiam as legis artis, pudesse a mãe optar por não levar a
gravidez até termo.
A questão que aqui colocamos, e que nos propomos analisar, é a possibilidade
de ser concebível, mormente atendendo ao quadro legal e constitucional vigente,
satisfazer uma pretensão indemnizatória, a uma criança nascida com deficiência
em que, a opção, caso não houvesse erro médico, seria a sua não existência, por
exercício legítimo da mãe à interrupção da gravidez.
As wrongful life claims são acções propostas “com fundamento no facto de ter
nascido uma criança indesejada – designadamente, nascida com uma grave deficiência -,
mas a acção é interposta pela própria criança em causa, que vem pedir uma indemnização
por ter nascido”18, questionando-se se, face à lei portuguesa e quadro constitucional
vigente, ser susceptível a tutela de uma wrongful life claim19.
2. As Wrongful birth actions. A perspectiva constitucional.
Embrionariamente ligadas às wrongful life claims estão as wrongful birth
actions que, em Fevereiro de 2016, o Tribunal Constitucional20 se pronunciou pela
sua admissibilidade.
Assumidamente deixamos de fora deste trabalho outras figuras próximas
como sejam as wrongful conception actions21, ou seja, os casos em que há intervenções
médicas com o escopo de evitar uma gravidez não desejada, que acaba por
acontecer, por violação de regras no procedimento médico que a visava evitar.
Colocando-se a questão de se a concepção, o nascimento e despesas
resultantes com a criança, são danos susceptíveis de ser indemnizados.
18
MOTA PINTO, Paulo, “Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’)”, in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais. Homenagem
aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, 2007, p. 916.
19
A expressão wrongful life encontra-se, pela primeira vez, na decisão do Tribunal Americano
do Estado do Illinois, no caso Zepeda versus Zepeda. Tornou-se uma expressão corrente para este tipo
de acções em contraposição com as wrongful death claims.
20
Acórdão n.º 55/2016 publicado no Diário da República, 2.ª série – N.º 51 – 14 de março de
2016.
21
ALEXIS, M.M., CRISTIÁN, A.B. e LUIS, C.V. Panoarama comparado del wrongful life, wrongful
birth y wrongful conception: Su posible aplicación en el Derecho chileno/ Comparative outlook of wrongful life,
wrongful birth y wrongful conception: Its possible application in Chilean Law, 2015, Ius et Praxis, Talca:
Legal Publishing Chile, p. 19: En la wrongful conception, a su vez, es posible distinguir dos hipótesis. En la
primera, se ha producido la concepción y, posteriormente el nacimiento de un menor, el que es saludable tanto
física como psicológicamente, producto del fallo de un método anticonceptivo aplicado directamente por los
padres, sin intervención de galeno alguno. Pero también se incluye aquella situación en la que se ha acudido
a una esterilización practicada por un médico, a fin de impedir la concepción, y no obstante los procedimientos adoptados, ésta, de todas formas, se produce. Lo erróneo radica en el negligente resultado de una intervención
quirúrgica de esterelidad, la que no ha cumplido con el objetivo previsto.
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Para além destas, ficam ainda de fora deste trabalho as wrongful surrogacy
actions 22.
Estas acções, do qual não temos nota de alguma terem existido em Portugal,
colocam-se no âmbito das técnicas de procriação medicamente assistida em que
é implantado no útero da mulher um embrião que não é aquele que lhe estaria
destinado, mormente por não ser geneticamente seu e/ ou do progenitor escolhido23.
Colocando-se a questão de saber se é susceptível de compensação a mulher
que vai ter um filho que não é o seu. Não é o seu no sentido de não ser geneticamente
o embrião que concebeu (ou com os gâmetas do seu parceiro24) com as técnicas de
procriação medicamente assistida.
Assim, por razões de ordem e de objecto do trabalho só vamos analisar a
wrongful life claims e a sua (in)admissibilidade face à luz constitucional e legal
vigente, deixando de fora figuras que lhe podiam estar associadas.
Mas, pelos mesmos motivos não podemos deixar de analisar a recente posição
assumida pelo Tribunal Constitucional quanto às wrongful birth actions, mormente
considerando que estas têm fundamento comum com wrongful life claims, ou seja,
ambas resultam do mesmo comportamento médico.
As wrongful birth actions são aquelas que os progenitores da criança nascida
com deficiência propõem contra os profissionais que não detectaram a malformação
congénita do nascituro que, a ter sido detectada e em tempo, teria permitido, caso
tivessem tido acesso à informação, interromper a gravidez25 abortando o filho, o que
seria justificado pelo ordenamento jurídico-penal.
Tratam-se de acções propostas pelos progenitores contra o médico, pelo facto
de terem sido privados de um consentimento informado, a que tinham direito
decorrente do dever do médico prestar informação sobre a deficiência do filho,
seja porque este não efectuou exames que se impunham, por protocolo ou pelas
circunstâncias concretas da gravidez, ou porque não os interpretou de acordo com
a legis artis medicinae.
De facto, nas acções com fundamento nas wrongful birth está em causa uma
pretensão baseada no deficiente (no sentido de cumprimento defeituoso do médico
das obrigações a que se encontra adstrito resultantes do contrato para prestação de
22
Quanto a esta situação, em concreto, colocou-se nos Estados Unidos o caso Savage. VANGESSEL, M. M., Wrongful surrogacy: The Need for a Right of Action in Cases of Clear Negligence. University of Toledo Law Review, University of Toledo, College of Law. 2015, vol. 46 no. 3, p. 681-705. P. 681:
In February of 2009, Sean and Carolyn Savage received amazing news: Through in vitro fertilization, they were
pregnant with their fourth child. In a devastating turn of events, they also discovered that the child Carolyn was
carrying was not biologically theirs” vide.
23
Situação que pode ganhar ainda mais premência ao nível das soluções práticas caso entre em
vigor a designada maternidade de substituição em que o paradigma de que “quem dá luz é a mãe”
fica, irremediavelmente, posto em causa.
24
Podendo ser uma situação em que há recurso a doação de gâmetas masculino ou feminino de
terceiro que não seja um dos membros do casal.
25
Ao contrário das wrongful life claims em que as acções são propostas pelas crianças, ainda que
representadas pelos pais, sufragando direito a uma indemnização própria.
98
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serviços médicos especializados celebrados com os progenitores) acompanhamento
da gravidez, do estado de saúde do nascituro e na análise de exames de detecção de
defeitos congénitos.
Um comportamento, de acordo com a legis artis, imporia ao profissional médico
a detecção das malformações e, em consequência disso, prestasse informação
aos progenitores para que estes, mediante consentimento informado, optassem
por entre as faculdades previstas na lei, nomeadamente a interrupção, lícita, da
gravidez, evitando o nascimento do filho, deficiente26.
A inexistência desta informação importa a perda de oportunidade da mãe
pôr termo à gravidez27 que, nos termos da lei, seria justificada e evitaria não só o
nascimento de um filho deficiente que, por razões próprias e pessoais, a lei admite
para efeitos de justificar a violação do bem jurídico (vida intra-uterina) como a
própria manutenção de uma gravidez nestes termos.
O Supremo Tribunal de Justiça Português debruçou-se sobre o tema pela
primeira vez em 200128 acabando por conceder direito indemnizatório aos pais, mas
negando a indemnização ao filho.
De facto, os Tribunais Portugueses que se vêm debruçando sobre o tema
tendem a conceder procedência às acções de wrongful birth e negando as wrongful life
ainda que, quanto àquelas, em abono da verdade haja decisões em sentido diverso,
ou seja, negando as pretensões indemnizatórias dos pais.
Mas certo é que, com o acórdão de 2 de Fevereiro de 201629, a temática das
wrongful birth e procedência das acções baseadas na perda de oportunidade da
progenitora abortar um filho deficiente passou a ter assento constitucional30 sendo
que as sucessivas decisões, nas diversas instâncias, com entendimento e sentidos
opostos, que dá causa ao Acórdão ora em apreço é sintomática da dificuldade de
um sentido inequívoco da doutrina e jurisprudência sobre esta temática.
26
Não tenhamos medo das palavras, em causa no art. 142.º, n.o de uma gravidez nestes termosiolaç
que, port raz.º, n.e. previstas na lei extrava o prº 1 alínea c) do Código Penal está a expressa possibilidade de um aborto por razões de eugenia que se encontra justificado pela ordem jurídica.
27
VANGESSEL, M. M., Wrongful surrogacy: The Need for a Right of Action in Cases of Clear Negligence. University of Toledo Law Review, University of Toledo, College of Law. 2015, vol. 46 no. 3, p.
681-705., p. 682: “wrongful birth is a cause of action based on negligently performed genetic testing or monitoring of the fetus.(…) Wrongful birth asserts that a nonnegligent medical professional would have recognized
and notified the mother of possible genetic defects in the baby. By not receiving this information, the mother
loses the chance to terminate her pregnancy.
28
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 2001 in www.dgsi.pt (consultado
a 13 de Maio de 2016).
29
Acórdão n.º 55/2016 publicado no Diário da República, 2.ª série – N.º 51 – 14 de março de
2016.
30
Não deixando de tomar a devida nota à declaração de vencida da Conselheira Maria de Fátima MataMouros que, ainda que referindo-se a matéria formal chama a atenção para o facto que o “Tribunal delimitou
um objecto para pronúncia que, pela distância que o separa da fundamentação da decisão recorrida, acabou por
se reconduzir, afinal, a um mero e vão diálogo com a doutrina o qual, não produzindo qualquer efeito útil no
julgamento do caso deixa atrás de si um rasto de ambiguidade e incerteza no tratamento de situações semelhantes” – vide ponto 1, n.º ii) da declaração de voto do acórdão referido na nota anterior, p. 8962.
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É nesta análise ao acórdão que nos detemos por estar embrionariamente
relacionado com o nosso objecto de estudo e como pode ter repercussões no
mesmo, mormente atendendo à posição do Tribunal Constitucional quanto a
esta matéria, constituindo, desta forma, a ultima ratio, ainda que não descurando
posições críticas quanto à mesma31, da posição jurisprudencial sobre o tema.
O Tribunal Constitucional, cingindo-se à temática das wrongful birth actions,
conclui pela constitucionalidade dos “arts. 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil,
interpretados no sentido de abrangerem, nos termos gerais da responsabilidade contratual
– no quadro de uma acção designada por nascimento indevido (por referência ao conceito
usualmente identificado pela expressão wrongful birth) -, uma pretensão indemnizatória
dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, não atempadamente
detectada ou relatada aos mesmos em função de um erro médico, a serem ressarcidos
(os pais) pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no
quadro das respectivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava
potencialidade para determinar ou modelar essas opções”32.
Detenhamo-nos na tramitação processual e sucessivos teores argumentativos
das diversas instâncias que levaram até à decisão de mérito do Tribunal
Constitucional.
Em causa estava uma pretensão indemnizatória dos pais de uma criança
nascida com malformações33 e destes em representação do filho, Ruben, contra
os médicos e a clínica.
A primeira instância acabou por julgar a acção parcialmente procedente
e considerando que os réus incumpriram obrigações decorrentes da relação
contratual entre estes e os pais do Ruben, mormente a “obrigação atinente aos
exames ecográficos como obrigação de resultado, incumprida por negligência”34.
Acabou a primeira instância por concluir que face a esta omissão, se encontra
verificado o nexo de causalidade entre o errado diagnóstico e a consequente falta
de informação aos pais e a faculdade destes não poderem optar pela interrupção
da gravidez que teria evitado o nascimento do filho.
O Tribunal considerou, então, procedente a wrongful birth action dos pais
do Ruben mas, quanto a este a acção improcedeu, afastando as pretensões
indemnizatórias peticionadas da wrongful life claim.
De facto, a pretensão do Ruben ficou decidida em primeira instância e não
foi objecto dos recursos que se sucederam.
31
Que não descuramos mas não constitui, essa análise à doutrina crítica, objecto do nosso
estudo.
P. 8962.
Derivada de patologia designada por “síndrome das bandas amnióticas” detectáveis nos exames
ecográficos nomeadamente na “ecotomografia fetal morfológica” realizada às 21 semanas e 1 dia e, em
virtude da negligência dos réus na falta de detecção das malformações apresentadas pelo feto não
puderam os progenitores recorrer à interrupção da gravidez, o que seria lícito, acabando por nascer
uma criança com uma incapacidade de 93%.
34
Ac. Tribunal Constitucional supra referido, p. 8944.
32
33
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Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
Quanto a esta o Tribunal de Barcelos suscitando o primeiro caso da
jurisprudência sobre o assunto, o Acórdão do STJ de 19/06/200135, acabou por
sufragar o mesmo entendimento jurisprudencial que, aliás, tem vindo a ser
seguido pela jurisprudência portuguesa.
Não nos vamos deter na argumentação expendida para a improcedência
da pretensão indemnizatória nas wrongful life actions que, atendendo ao objecto
do presente trabalho terão tratamento autónomo36 mas, sumariamente a linha
argumentativa prende-se com a concepção de que estas acções pretenderiam, o
que será inconcebível, ressarcir o Ruben pelo “dano de ter nascido”.
Neste argumento, como refere Carneiro da Frada, “O dano vida”37 encontra
a pedra de toque das acções da chamada vida indevida, a vida encarada como
um dano susceptível de ser compensado pela violação do direito a não nascer.
Acabando, assim, por sufragar a tese em que nega qualquer indemnização
à criança38.
Desta decisão recorrem os Réus para o Tribunal da Relação que, após
vicissitudes processuais39 acaba por40 decidir em sentido contrário à primeira
instância absolvendo os Réus do pedido na wrongful birth action.
Sumariamente, o Tribunal da Relação fundamenta a sua posição na
consideração de que em causa não está um dano juridicamente tutelável
atendendo à inexistência de um nexo causal entre o comportamento do
médico e a deficiência já que “o dano decorrente do desconhecimento atempado das
deformidades do filho não foi causado pela falta de informação precoce sobre a existência
destas, mas pela existência, em si mesmas das deformidades”41.
O Tribunal da Relação coloca, assim, a tónica no nexo de causalidade,
fazendo um exercício de raciocínio causal entre os danos dos pais, e a conduta
médica, ainda que negligente encarando que tal pretensão imporia encarar a
própria vida como um dano.
Vide nota 8.
Vide infra ponto 3.
37
FRADA, Manuel Carneiro da, “A própria vida como um dano? Dimensões civis e constitucionais
de uma questão-limite”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2008, Ano 68, Vol. I.
38
Exemplificativamente o argumento é usado por diversos autores, nesta esteira EVGENIA, S.
que, no seu trabalho, suscitando a vida e a pessoa de Stephen Hawkings conclui que: “Rather, the focus
must be placed on public policy and the measures taken to encourage the socialprotection and inclusion of people
with disabilities. People with health problems have the right to exist and can offer much to the community. A
characteristic example is that of Stephen Hawking. Wouldn’t such wrongful life and birth arguments prevent
people like him from being born, EVGENIA, S. Wrongful life and birth. Medicine And Law, Israel: International Center for Health, Law and Medicine, 2012, vol. 31 no. 1, p. 97-118.p. 114.
39
No primeiro recurso o processo regressa à primeira instância atendendo à ampliação da
matéria de facto, com vista a novo julgamento que culminou com nova decisão desta instância em
sentido idêntico à anteriormente proferida.
40
No Acórdão de 03/07/2014 in www.dgsi.pt (consultado a 16 de Maio de 2016).
41
Ac. sup. cit. do TC, p. 8946.
35
36
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Acrescenta ainda que não existe qualquer direito à indemnização pela perda
de oportunidade da mãe poder interromper a gravidez pelo que, por tudo isto,
acaba por absolver os Réus, aqui Recorrentes, do pedido objecto do recurso.
Desta decisão recorrem os Autores, pais do Ruben, para o Supremo Tribunal
de Justiça que concedeu a revista42, revogando o acórdão do Tribunal da Relação
e repristinou os efeitos à sentença de primeira instância.
Concluindo que, ao contrário do que do que faz o Tribunal da Relação,
“incumprindo os réus deveres de informação, em desrespeito pelas legis artis medicinae,
acabando por causar um dano aos autores, uma vez que a sua adesão a prosseguimento
da gravidez não foi consequente a um consentimento esclarecido, dotado de todas as
informações relevantes”43.
O nexo de causalidade não está entre quem, ou o quê, dá origem à
malformação e os danos que desta resultam mas sim, um nexo de causalidade,
proporcionado pelo papel activo e necessário do médico, atendendo a que é o
único dos outorgantes que domina ou pode dominar a informação – existindo
uma assimetria de informação no contrato em causa – entre a vida nascida com
deficiência e a omissão de informação, sendo “o dano a vida com deficiência e a
ausência de possibilidade de escolha pela interrupção voluntária da gravidez, em virtude
da violação do direito à informação, e não à criança, em si mesma, que dela padece,
admitindo-se o aborto, em caso de deficiência grave do feto, como decorre do preceituado
no art. 142.º, n.º1 alínea c), do Código Penal”44.
Com este panorama processual, e entre decisões contraditórias quanto
à mesma temática, chegou o processo ao Tribunal Constitucional que, como
referido supra, acabou por considerar face ao quadro constitucional vigente
a interpretação dos preceitos legais que concedem indemnização aos pais no
âmbito das wrongful birth actions45.
O Tribunal Constitucional concluiu que uma construção assente no sentido
que a inviolabilidade do direito à vida46 seria colocada em causa, não é mais
do que um paradoxo comparativo entre a existência e a não existência com um
carácter puramente virtual, sendo uma mera “construção intelectual sem qualquer
repercussão efectiva na existência de alguém” sendo que, o que está em causa
nas wrongful birth é o “ressarcimento dos pais pelo dano resultante da privação do
conhecimento de um elemento importante no quadro das respectivas opções reprodutivas,
Acórdão de 13/02/2015 in www.dgsi.pt (consultado a 16 de Maio de 2016).
Ac. sup. cit. do TC, p. 8949.
44
Idem, p. 8950.
45
Os Recorrentes alegavam, sumariamente, que o direito à vida, como previsto no art. 24.º da
Constituição da Reprara a satisfaçser humano ºesdo de desenvolvimento do mesmo, incluindo vida intra-uterinaovendo a informaçnal a interpretaç\ública Portuguesa é inviolável independentemente do estado
de desenvolvimento do mesmo, incluindo vida intrauterina, sendo que, o ser humano é um fim em si mesmo e
não um instrumento para a satisfação dos desejos dos seus progenitores, bem como uma violação do
art. 67.º, n.º 2 alínea d) da Lei Fundamental sufragando, os Recorrentes, a interpretação que a indemnização por violação do direito à autodeterminação como instrumento de planeamento familiar.
46
Art. 24.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece que “A vida humana é inviolável”.
42
43
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quando o conhecimento dessa circunstância ainda apresentava a potencialidade para
determinar ou modelar essas mesmas opções”.
Não se conseguindo justificar, se assim não fosse, como ficariam por
tutelar incumprimentos contratuais, culposos, de uma obrigação que tem sido
caracterizada de resultado e que decorre de má-prática médica, assumidamente
violadora das legis artis, e os sujeitos activos desta relação se vissem privados de
compensação indemnizatória em que, evidentemente, se afasta qualquer forma
de reconstituição natural e, portanto, qualquer argumentação sobre violação do
direito à vida não é mais do que puramente artificial.
Sendo, portanto, a alegação da violação direito à vida uma concepção
puramente artificial já que, evidentemente, em momento algum se propugna a
“não vida”.
Como tem sido, e acrescentamos nós, defendido tudo isto é independente
dos pais viram a aceitar a criança nascida e desta viver, o que é um facto em
relação ao qual não se suscita, nesta altura qualquer dívida ou se põe em causa
pela atribuição de uma indemnização.
De facto, resulta pouco evidente o que é que aceitar ou não a criança
significa para efeitos de pretensão indemnizatória resultante de incumprimento
contratual.
Como refere B. Steininger não significa denegrir a criança atribuir uma
compensação, nem é a criança ou a sua existência que é compensada, mas sim os
custos que importam a deficiência da criança. Se esta é amada pelos pais depois
de ter nascido e por este aceite constitui um elemento imaterial estranho à acção47.
Aliás no também posto em crise art. 67.º da Constituição da República
Portuguesa,48 o Tribunal acaba por concluir que “o exercício de uma maternidade
e paternidade conscientes acarreta consequências (positivas) (...). Todavia esta asserção
nada tem a ver com o fenómeno da interrupção da gravidez em caso de malformações
evidenciadas pelo nascituro49.
Mas vai ainda o Tribunal Constitucional mais longe referindo-se à missão
do Estado de direito democrático50 em que “não poderá o legislador ordinário
47
STEININGER, B.C. Wrongful Birth and Wrongful Life: Basic Questions. Journal of European Tort
Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 125-155.P. 133: “quite apart from the fact that it remains unclear what
‘accepting the child’ means, this argument, which is quite clearly related to the idea that compensation claims are
linked to a denigration of the child, is mistaken. As those views which award compensation for maintenance costs
start from the assumption that it is not the child but only the imposition of a duty to pay maintenance that can be
qualified as harm, it is only decisive whether the child was planned or not, that is to say whether it would have been
born without the negligence on the part of the healthcare provider. Consequently, the question whether or not the
parents love their child once it is born is immaterial to the foundation of the claim”.
48
2 – Incumbe, designadamente, ao Estado para protecção da família: d) Garantir, no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento familiar, promovendo a informação e o acesso a métodos e a meios
que o asseguram, e a organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício da maternidade e
paternidade conscientes;
49
Ac. sup. cit. do TC, pp. 8959 e ss.
50
Referindo-se ao art. 2.º da Constituição da República Portuguesa e citando Acórdão n.º 444/2008.
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deixar de assegurar o direito à reparação dos danos injustificados que alguém sofra em
consequência da conduta de outrem”.
Sendo que, neste caso, existe um errado diagnóstico de um exame pré-natal
e que é causa da omissão do dever jurídico de informar os pais das malformações
de que o filho padece, “conduzindo a um nascimento retrospectivamente qualificado de
indesejado: um nascimento que os pais perspectivam como tal no momento da afirmação
da correspondente tutela indemnizatória, por privação da respectiva liberdade de realizar,
autónoma e informadamente, as suas escolhas reprodutivas”51.
Por tudo isto, o Tribunal afirma não existir qualquer forma de, com a
procedência de uma acção de wrongful birth, estar em causa o direito à vida,
conforme art. 24.º da Constituição da República Portuguesa e a formação
esclarecida e informada da vontade de pôr termo a uma gravidez, desejada,
por motivos de malformações do feto, em nada se relaciona com a vontade de
procriar ou ao objectivo programático do art. 67.º, nomeadamente o n.º 2 alínea
d) da Lei Fundamental.
Concluindo que, “num caso ou noutro, a indemnização nunca revela enquanto
tal, mas como expressão de tutela conferida ou retirada a um direito protegido pela lei
fundamental. Só podemos (concluem os Conselheiros) afirmar que a atribuição do
direito a uma indemnização tem implicações na substância de um direito acolhido quando
a atribuição ou não atribuição dessa indemnização tiver como efeito a afirmação ou a
compressão ou a eliminação desse direito”52.
A wrongful birth claim e a sua procedência constituí a tutela de direitos
violados por incumprimento contratual, nomeadamente, o direito à informação,
independentemente de considerações, a jusante, sobre qual teria sido o conteúdo
que, nessa altura, os pais dariam às faculdades legais.
O nascimento não era desejado mas aconteceu, nada se colocando ou pondo
em causa em relação à vida da criança, à sua existência ou qualquer menosprezo
por esta vida, mas sim a falta de cumprimento, ilícito, do dever de informação
que é fundamento do direito de indemnização dos progenitores.
As faculdades que tinham já não têm, não se pretende repeti-las mas sim
compensá-los por essa impossibilidade, causada culposamente por má-prática
médica.
É, nesta altura, irrelevante exercícios de raciocínio sobre o que é que
os progenitores teriam ou não feito, e com que consequências, com o acesso
à informação, nomeadamente a possibilidade, lícita, de abortar o filho, cuja
possibilidade se perdeu, que não se repristina, nem é isso que, evidentemente,
se sufraga.
Ainda que tenha que se reconhecer que as escolhas reprodutivas e as opções
legais para pôr termo a uma gravidez, numa clara situação de aborto eugénico,
sejam alegadas para compensar os pais pelo nascimento de uma criança que,
51
52
104
Ac. sup. cit. do TC, pp. 8961.
Idem, p. 8962.
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retrospectivamente, não desejavam e teriam abortado, não é uma forma de
menosprezo da vida, nem desconsideração pela criança e pela sua deficiência
mas sim, e tão só, censurar a má-prática médica53.
3. O Dano da Vida nas Wronful life claims.
A demanda nas wrongful life (bem como nas wrongful birth) partem de um
denominador comum, o contrato de prestação de serviços entre o médico e os
pais do nascituro.
Em causa está um contrato, assente numa relação jurídica complexa que,
dependendo da especialidade assume diversos feixes obrigacionais sendo que
em obstetrícia estão em causa cuidados de saúde da mãe e do nascituro.
Os médicos estão, em qualquer caso, atendendo ao juramento de
Hipócrates54, vinculados a prestar os seus serviços de forma o mais humanizada
possível, evitando quaisquer sofrimentos desnecessários, nos termos e de acordo
com as legis artis, cabendo-lhes dar cumprimento a um dever de informação, de
que dispõem e têm obrigação de aceder e transmitir de forma clara e completa55,
para efeito de consentimento esclarecido dos pacientes por forma a ser exercido,
por estes, o direito à livre determinação sobre a sua saúde56, independentemente
da patologia e das possíveis intervenções técnicas57.
53
PIORO, M., MYKITIUK, R. e NISKER, J. Wrongful birth litigation and prenatal screening. CMAJ:
Canadian Medical Association Journal = Journal De L’association Medicale Canadienne, Canada:
Canadian Medical Association. 2008, vol. 179 no. 10, p. 1027-1030. P. 1029: Although the increase in
reproductive decisions women will face following the increase in screening will be justified as an exercise of
reproductive choice, such increases may also result in more women viewing their pregnancies as, the existence
of wrongful birth claims reinforces the view that the birth of a child with a disability is a harm for which one
may be compensated.
54
Sendo que, com a L 90/97, o Ministério Público emanou a Portaria 189/98, de 21 de Março
que determina no seu art. 5.º que “os estabelecimentos em que a existência de objectores de consciência impossibilite a realização da interrupção da gravidez nos termos e prazos legais devem desde já providenciar pela
garantia da sua realização, adoptando as adequadas formas de cooperação com outros profissionais de saúde ou
com profissionais legalmente habilitados”.
55
Não vamos desenvolver a temática do consentimento esclarecido mas não podemos deixar
de chamar a atenção para o facto de, no caso concreto, estarmos perante uma relação contratual
em que um dos outorgantes, o médico, dispõe de formação e informação técnica, pouco acessível
ao homem médio, o que provoca uma evidente assimetria de informação e de acesso ao conteúdo
da própria informação. A situação ganha ainda mais acuidade quando estamos perante médicos
especialistas, como é o caso da obstetrícia, em que os especiais deveres de cuidado e informação
ganham novo relevo atendendo à especialização.
56
Na prestação de serviços médicos em obstetrícia a saúde a considerar é a da mãe e do nascituro.
57
O art. 26.º do Código Deontológico dos Médicos prevê que “o médico que aceite o encargo ou
tenha o dever de atender um doente obriga-se, por esse facto, à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance,
agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade humana”.
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Como é evidente os outorgantes deste contrato são o médico, e/ ou o
serviço de saúde para o qual este labore, sendo o caso, e os pais, concretamente
a mãe para o acompanhamento da gravidez, incluindo a realização de todos os
meios de diagnóstico e de exames que avaliam, para além da saúde da mãe, o
estado de saúde e desenvolvimento do nascituro com o escopo do nascimento
de uma criança saudável.
Não é indiferente nesta matéria o avanço científico em meios de diagnóstico
pré-natais, sendo cada vez mais precoces as possibilidades de detecção de
doenças congénitas do feto, ou outras que se desenvolvam in utero, com cada
vez mais os recursos.
Para além disso, muitos destes exames, face aos avanços científicos, vão
assumindo uma margem de erro cada vez menor, o que tem implicações no
que tange à classificação e avaliação dos mesmos pelos profissionais de saúde
uma vez que, atendendo à cada vez menor margem de erro, as obrigações que
assumem no diagnóstico das patologias estarão mais próximas da configuração
de uma obrigação de resultado, i.e., obrigação de diagnosticar com precisão
os resultados dos exames e, portanto, o nascimento de uma criança saudável
ou, não o sendo, com a possibilidade dos progenitores optarem ou não pelo
nascimento de um filho deficiente.
Independentemente da classificação da obrigação, como sendo de
resultado ou de meios – que tem evidentemente implicações no que tange à
culpa e ao ónus da prova da mesma – admitimos, para efeitos do presente
trabalho que o médico, in casu, actua violando a legis artis medicinae, incorrendo
numa má-prática médica.
O pressuposto que damos por adquirido é a demonstração, seja provada se
classificarmos a obrigação como de meios, seja porque a mesma é de resultado
e não foi cumprida, que o médico actuou violando a legis artis na avaliação e
diagnóstico de um exame que teria permitido concluir que o nascituro padecia
de uma anomalia.
A detecção das malformações e o cumprimento do dever de informação
a que o médico está adstrito importaria que a mãe pudesse, licitamente, optar
por interromper a gravidez, abortando o filho e evitando o nascimento de uma
criança deficiente58.
Ora, atendendo a que em causa está um contrato de prestação de serviços
médicos, em quadro de especialização obstétrica, em que a saúde do nascituro
faz parte do âmbito das obrigações do médico, coloca-se desde logo a questão
de saber se esta situação, ou seja, a situação em que o médico não detecta a
anomalia é susceptível de se incluir no âmbito dos direitos violados na relação
contratual, a pretensão indemnizatória da criança nas wrongful life claims.
58
Com a Lei 90/97, de 30 de Julho foi alargado o âmbito no aborto eugénico, não sendo de
desconsiderar o facto deste ter passado das 16 para as 24 semanas, e deste foram autonomizados os
casos de fetos inviáveis.
106
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Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
Mas, se isso é assim, também não é menos verdade que dificilmente
conseguimos percepcionar aqui qualquer forma de contrato a favor de terceiro
ou outra que importe o reconhecimento de um direito ao nascituro, que derive
da falta de informação aos pais, ainda que só o adquira com o nascimento
completo e com vida59.
Em nosso entender isto é assim, entendendo o contrato a favor de terceiro
como aquele em que um dos contraentes atribui a outrem, uma vantagem a um
terceiro, estranho à relação contratual.
Se é assim é, também essencial a este contrato “é que os contraentes
procedam com a intenção de atribuir, através dele, um direito (de crédito ou
real) a terceiros ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial
imediata para o beneficiário”60. Ora atendendo a que neste tipo contratual é
necessário que o beneficiário seja titular do direito a ela ou beneficiário directo
o que, como referido não nos parece concebível, aí sim admitido um direito
de informação com consequências que importariam a cessação da vida, ser
aplicável ao caso concreto, nomeadamente porque, neste tipo contratual o
promissário tem direito a exigir do promitente o cumprimento da promessa
(no âmbito da relação de valuta), um direito a exigir o cumprimento.
Também, ainda que usássemos a figura do contrato com efeitos reflexos
sobre terceiros, em que terceiros são “reflexamente beneficiados como titulares, não
de qualquer direito referente às prestações principais ou secundárias emergentes do
contrato, mas dos direitos correspondentes a alguns deveres acessórios de conduta que
integram a respectiva relação contratual”61, o que nesta situação parece inconcebível
atendendo ao fim último a que este dever do médico – que dificilmente seria
um dever acessório – teria sempre, como reduto último, sufragar um direito à
não existência.
Da mesma forma, ainda que em causa fizéssemos decorrer a chamada
terceira via da responsabilidade civil, aqui com os pressupostos do cumprimento
defeituoso, acabaríamos sempre, em nosso entender, no incumprimento do
dever de informação aos progenitores por parte do médico que, dê-se as voltas
que se der, importa que este direito tenha como conteúdo a faculdade de fazer
cessar a vida.
Temos dificuldade em encarar a existência de um terceiro, para além
de estarmos a tratar de um nascituro cuja personalidade só se adquire com o
nascimento completo e com vida nos termos do art. 66.º do Código Civil, a esta
relação contratual cujos efeitos efectivos do cumprimento será fazer cessar a
vida deste mesmo nascituro.
59
Art. 66.º do Código Civil, sob a epigrafe “Começo da personalidade”:
1. A personalidade adquire-se com o nascimento completo e com vida.
2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.
60
VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 1.ª Edição, 2000, Almedina, p. 410.
61
VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 1.ª Edição, 2000, Almedina, pp. 412 e ss.
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Ora, parece-nos evidente que partir deste pressuposto para construir
posição sobre uma demanda da wrongful life estará irremediavelmente votada
ao insucesso.
Sufragamos, na esteira do que o faz o Supremo Tribunal de Justiça, quanto a
esta questão, “a nossa grande dificuldade, nesta possível construção jurídica, consiste na
impossibilidade de se considerar como «terceiro» o feto, pois não se pode aceitar, de todo
em todo que a criança, inexistente enquanto ser humano – em gestação apenas – face ao
preceituado no normativo inserto no artigo 66.º, n.º1 do Código Civil, que prescreve que
a personalidade se adquire «(...) no momento do nascimento completo e com vida.», possa
ser tida como parte interessada num contrato havido entre aqueles que a conceberam
e outrem, sendo a mesma na altura um nascituro e por isso carecida de personalidade
jurídica, sem prejuízo da Lei lhe atribuir alguns direitos” 62.
Pouco se compreenderia se assim não fosse atendendo a que os meios de
diagnóstico protocolados e outros, que existem no campo da obstetrícia, são para
diagnosticar o estado de desenvolvimento do nascituro e eventuais patologias
congénitas ou outras a desenvolver por patologia de meio uterino que, dando
conteúdo ao dever de informação, quando cumprido, a grávida possa fazer cessar
a gestação, ou seja, abortar o filho evitando o seu nascimento com deficiências.
No nosso entender este direito à informação é um direito dos progenitores
exclusivamente e com uma finalidade última, a mãe decidir se quer ou não
interromper a gravidez63, excluindo, portanto, deste feixe o nascituro ou qualquer
direito deste.
Não havendo informação, foi incumprida uma obrigação contratual tendo,
por isso, os pais direito a ser compensados por tal no campo das acções de
wrongful birth, pela perda de oportunidade de abortar um filho portador de uma
deficiência, suportando o desgosto de ver nascer alguém nestas circunstâncias e
de suportar despesas acrescidas pela vida com deficiência, todos danos tuteláveis
pelo comportamento ilícito do médico que incorreu em má-prática médica.
Fazer derivar qualquer pretensão indemnizatória deste direito, é colocar a
criança na posição de sufragar um direito à sua não existência, um direito a ser
abortado, o que é inadmissível.
Não conseguimos conceber que, qua tale, este direito à informação tenha
outro titular que não seja a exclusivamente os pais, concretamente a mãe e que,
as possibilidades que a esta se colocam, mormente para efeitos de interrupção da
gravidez.
De outra forma, incluindo neste direito qualquer posição activa do nascituro
imporia duas consequências.
Ac. do STJ de 17.01.2013 in www.dgsi.pt (consultado a 16 de Maio de 2016).
Não sendo esta interrupção um poder-dever, não constituindo esta possibilidade legal de
licitamente abortar um feto com malformações – que apesar dos avanços científicos no maior espectro
e antecipação das mesmas a lei penal ter aumentado o hiato temporal para a interrupção da gravidez
– qualquer forma em que se consiga, neste direito à informação que se possa incluir o nascituro sob
pena de, efectivamente, termos efectivamente a construção de um direito à não vida.
62
63
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Por um lado, a possibilidade de interromper ou não a gravidez teria outros
titulares para além da mãe64, tendo esta não a faculdade de abortar o filho nos
termos do art. 142.º, n.º 1 alínea c) do Código Penal, mas um verdadeiro poderdever.
In extremis, poderíamos colocar mãe e filho em situação de conflito de
interesses, resultante da mesma faculdade e, caso a mãe decidisse não interromper
a gravidez teríamos que admitir que, mais tarde, o próprio filho poderia propor
uma ação contra a mãe por ter decidido não interromper a gravidez.
Esta sempre poderia defender-se por consentimento presumido o que, face
ao direito em causa, seria inconcebível.
Por outro lado, caso a criança, representada pelos pais, ou a própria,
sufragasse qualquer posição que assentasse na possibilidade de ser abortada
seria assumir um “direito a não nascer”.
Desta forma não conseguimos, a nosso ver, ultrapassar o pressuposto de
que o conteúdo do dever de informação e a sua violação radicam na decisão da
mãe poder ou não interromper a gravidez.
Neste âmbito, neste enfoque, nesta possibilidade, tem que estar arredado
qualquer concepção em que se incluísse um eventual direito do filho já que, se
assim não fosse teríamos que da mesma extrair as consequências, i.e., a criança
como titular de qualquer direito que daquele incumprimento, de per se, pudesse
resultar, sufragar a sua própria não existência comparando com a sua actual
existência, deficiente e em sofrimento.
Sendo da mesma forma inconcebível que, ao nível da utilização dos meios
que os pais, a mãe concretamente, têm ao seu dispor resultantes da informação,
se pudesse perspectivar uma forma de tutela de interesses do nascituro no que
tange à possibilidade de interrupção da gravidez já que, como conclui o Supremo
Tribunal de Justiça, “os poderes deveres que constituem o poder paternal, bem como
a representação legal dos pais para suprir a incapacidade de exercício dos filhos, a
incapacidade judiciária ou, até onde for possível, a própria incapacidade de gozo, não
são bastantes para os pais, em nome do filho, decidirem sobre o direito que este possa,
eventualmente, ter à não existência.65
Para além disso ainda, suscitando a ponderação e aplicação das regras do
instituto da responsabilidade civil, a questão em análise levanta sérios problemas
de difícil solução, não só ao nível do apuramento do nexo de causalidade mas
também da identificação e determinação do dano sofrido e da definição do
conteúdo das legis artis, à luz dos progressos e limitações da ciência médica.
64
“Wrongful life claims are raised by the disabled children against the people, especially doctors, for
being born. Courts around the world are reluctant to acknowledge such claims due to the ethical and legal
implications they have”, EVGENIA, S. Wrongful life and birth. Medicine And Law, Israel: International
Center for Health, Law and Medicine, 2012, vol. 31 no. 1, p. 97-118., p. 107.
65
Ac. sup. cit. De 2001 referindo-a a Prof. Guilherme de Oliveira - “Temas de Direito de Medicina” - 1, pág. 175.
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
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Marisa Almeida Araujo
O que é, pelo menos no actual paradigma constitucional, insusceptível
de qualquer defesa, sendo que, neste contexto também o BGB Alemão se
pronunciou e assumiu que a vida, ainda que com severas deficiências, não
pode ser classificada como um dano quando comparada com a alternativa da
não-existência66.
O problema em presença passa por saber se o Direito tutela um (eventual)
interesse na morte sendo a responsabilidade civil, frequentemente, utilizada
como forma de protecção da vida e da sua qualidade contra lesões físicas.
O “dano da vida” é distinto do problema das lesões que podem atingir a
criança na fase pré-natal e das suas consequências.
Neste último caso coloca-se o problema de saber se uma deficiência
resultante dessa lesão pode constituir um dano indemnizável.
No caso de que nos ocupamos, diversamente, é a própria vida que é tida
como dano.
A pergunta que se coloca é a seguinte: será admissível a existência de “um
direito à não existência” e de uma indemnização pela sua violação?67.
O Supremo Tribunal de Justiça68 começou por dizer que os deveres do
médico não visam assegurar um direito do filho a ser “abortado”, caso se
detectasse uma deficiência.
Considerou que o problema perante ele posto se concentra na questão de
saber se a criança tem um direito a não existir.
Observou a este propósito o Tribunal que o direito à vida exige que o
próprio titular o respeite e dado o carácter supremo que a ordem jurídica atribui
não pode reconhecer que o titular sufrague direito à eliminação da própria vida.
Pinto Monteiro sublinhou e desenvolveu alguns argumentos presentes
na sentença, como a insusceptibilidade de representação pelos pais em acções
deste tipo, o perigo de uma inundação dos tribunais por pretensões dos filhos
contra os pais com fundamento em “wrongful life”, a colisão entre interesses dos
pais e interesses dos filhos, a questão da susceptibilidade da vida constituir um
dano, a indeterminabilidade do valor da vida e a ultrapassagem do âmbito e
limites próprios do direito da reparação dos danos69.
No entender de Pinto Monteiro, no comentário ao acórdão do STJ de 200170,
STEININGER, B.C. Wrongful Birth and Wrongful Life: Basic Questions. Journal of European Tort
Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 125-155.P. 152: “German BGH held that it cannot be evaluated in
a generally applicable manner, whether life with a severe disability can be legally classified as damage at all as
compared to the alternative of non-life”
67
SIMÕES, Fernando Dias, Vida indevida? As acções por wrongful life e a dignidade da vida humana.
Tékhne - Revista de Estudos Politécnicos, Barcelos: Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, 2010,
n.º 13, p. 191-192
68
Ac. Sup. cit. STJ de 2001.
69
PINTO MONTEIRO, António, Direito a não nascer? Anotação ao Ac. STJ de 19/06/2001, in
“Revista de Legislação e Jurisprudência”, 2002, ano 134, n.º 3933, pp. 377 ss.
70
PINTO MONTEIRO, António, Direito à não existência, direito a não nascer, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977. Vol. II. A parte geral do código
66
110
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Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
“o nosso ordenamento jurídico reconhece e tutela o direito à vida, bem como outros direitos
de personalidade, mas não tutela o direito à não existência. Mesmo que, por imposição
legislativa, se admita o direito à não vida, como será o caso do suicídio ou da eutanásia,
ainda assim, sempre o caso em análise ultrapassaria esses limites”.
De facto, como bem enquadra o Supremo Tribunal “o nosso ordenamento
jurídico reconhece e tutela o direito à vida, bem como outros direitos de personalidade
(artigo 24° da Constituição da República, artigo 70° e segs. do C. Civil). O direito à
vida, integrado no direito geral de personalidade, exige que o próprio titular de direito
o respeite e dado o carácter supremo que a nossa ordem jurídica atribui ao bem da vida
humana, não reconhece ao próprio titular qualquer direito dirigido à eliminação da sua
vida, embora admita em certos termos a possibilidade de a pôr em risco. Daí que seja
inválido o consentimento autorizante ou tolerante e mesmo o pedido instante da vítima
para outrem lhe causar a morte, bem como qualquer renúncia à própria vida e que não
seja lícito o suicídio” - Prof. Capelo de Sousa - “O Direito Geral de Personalidade”,
pág. 205/206; Prof. Leite de Campos -”Lições de Direito de Personalidade”, pág. 59. Mas
mesmo que se admita o direito à não vida, como será o caso do suicídio ou da eutanásia,
ainda assim sempre o caso concreto ultrapassará esses limites. O que se questiona, repetese, é o direito à não existência, no que respeita ao autor”71.
De facto, por um lado está a possibilidade dos pais alegarem que foi
incumprida uma obrigação que teria evitado danos, outra é a criança assumir a
sua vida como um dano e ser, por isso, indemnizada.
Por um lado, está o direito dos pais a uma indemnização pelo nascimento
de uma criança em relação à qual teriam a faculdade de fazer cessar a gravidez e
evitar o nascimento.
Oportunidade que perderam por incumprimento contratual.
Outra situação, distinta, é a pretensão do filho ser indemnizado por viver
uma vida eivada de patologias que vive por não ter sido abortado.
Isto é a comparação da vida e da não existência72 e é inadmissível.
O que nos levaria, necessariamente, a um enquadramento legal de um
“direito à não vida”, bem como de situações como a eutanásia e o suicídio, “o que
poria em causa princípios constitucionais estruturantes plasmados nos artigos 1.º, 24.º
e 25.º da Constituição da República Portuguesa, no que tange à protecção da dignidade,
inviolabilidade e integridade da vida humana, quer na vertente do «ser», quer na vertente
do «não ser»”73.
Paradoxalmente estaríamos a fazer considerações sobre a vida e concepções
de vida que merece ou não ser vivida ou até de eventual perda de oportunidade
do próprio nascituro de cessar a sua vida de sofrimento.
e a teoria geral do Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 137.
71
Ac. sup. cit. de 2001.
72
D., Heyd, Genethics: Moral Issues in the Creation of People (Berkeley 1992), 37:“the comparison between life and non-existence is blocked by two considerations: the valuelessness of non-existence as such
and the unattributability of its alleged value to individual subjects”
73
Ac. Do STJ de 17/01/2013 in www.dgsi.pt. (consultado a 16 de Maio de 2016).
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Marisa Almeida Araujo
Reconhecer as wrongful life poderia colocar-nos na hipótese de fazermos
concepções sobre a vida, o fardo da vida, a vida que merece ou não ser vivida
e, por existir, tem que ser compensada, por ser uma vida menor.
O médico tem o dever, na fase pré-natal, de aconselhar os pais, cabendo
à mãe a decisão, quando devidamente informada, de terminar ou não a
gravidez.
Mas, o direito começa nos progenitores e aí termina, bem como termina a
oportunidade e a perda de chance em fazer cessar a gravidez, com as devidas
consequências entre os outorgantes do negócio.
Depois de finda a gravidez nenhuma criança pode sufragar um direito
à não-existência tendo agora a oportunidade de viver e nada nem ninguém,
nem a própria, pode fazer considerações sobre a sua vida, ou qualificá-la
como menos merecedora e, por isso, compensável74.
Decidir uma wrongful life claim coloca problemas relacionados com o
aborto e as concepções de vida75, bem como com a eutanásia e suicídio que
ferem, no actual quadro constitucional, irremediavelmente a Lei Fundamental,
nomeadamente nos seus arts. 1.º, 24.º e 25.º.
Havendo que ponderar se a solução não estará na concepção da
deficiência, e se, tal como em França, se não se deve colocar o enfoque na
reconstrução de instituições sociais de apoio à deficiência, e a mudança de
atitude relativamente a pessoas portadores de deficiência 76.
Como tem sido entendido pelo Tribunal Superior, “O direito à vida,
integrado no direito geral de personalidade, exige que o próprio titular do direito o
respeite, não lhe reconhecendo a ordem jurídica qualquer direito dirigido à eliminação
da sua vida. O direito à não existência não encontra consagração na nossa lei e,
mesmo que tal direito existisse, não poderia ser exercido pelos pais em nome do filho
menor” 77.
74
SCOTT, Rosamund, Reconsidering “Wrongful Life” in England after thirty years: legislative mistakes and unjustifiable anomalies, The Cambridge Law Journal, 72(1), March 2013, The Cambridge Law
Journal, pp. 115–154, p. 137: “serious risk that the burdens of life in a given state will be so severe, outweighing any possible goods, that the relevant health professional owes a duty to the child, at the prenatal stage, to
advise the pregnant woman of these risks, so that she can decide whether to end her pregnancy. Indeed, unless
the legality of the withdrawal of treatment becomes an issue post-birth for any given child, termination at the
fetal stage represents that child’s only chance of avoiding a life that (from her or his assumed point of view) s/he
would think is not worth living, given the current state of the law”
75
RUDA, A. ‘I Didn’t Ask to be Born’: Wrongful Life from a Comparative Perspective. Journal of
European Tort Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 204-241. P. 240: “from a technical or theoretical
point of view, argumentation in favour of one or the other solution is extremely complex and it seems that every
argument leads necessarily to a counter-argument”.
76
BOTTIS, M.C., Wrongful Birth and Wrongful Life Actions. European Journal of Health Law,
Martinus Nijhoff, 2004, vol. 11 no. 1. P. 58: “reconstructing the institutions, which would help change the
views and attitudes of citizens about disability. Because cases of wrongful birth are essentially cases about disability”.
77
A responsabilidade civil por acto médico na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo
Tribunal de Justiça, P.7.
112
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Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
Pelo que a responsabilidade civil deve ser invocada como forma de protecção
da vida e da sua qualidade e não como forma de conceber compensações pela
violação de um “direito à não existência”.
Se a responsabilidade civil é chamada a intervir para tutelar um (suposto)
interesse na morte é colocar-nos perante uma questão-limite, que convoca
derradeiramente o sentido do Direito.
Não nos esqueçamos que paradoxalmente a jurisprudência Perruche foi
criticada severamente por aqueles que a decisão visaria proteger, as pessoas com
deficiência, os seus pais e associações78.
Como questiona Carneiro da Frada79, colocando o enfoque no direito à não
existência, as wrongful life claims constituem formas de compensar uma criança
por ter nascido, o que poria em causa a santidade e o valor da vida80.
4. As Wrongful life claims. Ser ou Não Ser, eis a questão?
É indiscutível que esta temática nos coloca grandes interrogações e,
sobretudo, nos deixam em estado de desconforto quanto à questão factual.
Partimos de um pressuposto. É evidente para nós que todas as vidas
merecem e devem ser protegidas.
Sendo a vida humana um valor fundamental isto é o pressuposto da nossa
análise.
Mas o que aqui se trata é de uma questão diferente que, ainda que nos
coloque a vida humana sobre a mesa de debate, a verdade é que não devemos
deixar que esta nos turve o raciocínio e nos leve a situações paradoxais de “vida”
e “não vida”, ou um “direito à não vida” já que, em nosso entender não é disso
que se trata.
O que temos nas wrongful life claims é uma criança, com uma vida que,
nesta altura ninguém vai por em causa, que merece ser vivida, da forma mais
confortável possível porque eivada de patologias, sem cura.
Situação esta que independentemente do que dá origem a esta patologia,
tem um pressuposto, a má-prática médica e isso não se pode desconsiderar.
Foi a conduta de um médico, que actuou em violação das legis artis,
incumpriu ilicitamente um contrato, em que a saúde do nascituro é um, se não, o
principal fim deste negócio.
78
MORRIS, A. e SAINTIER, S., To be or not to be: is that the question? Wrongful life and misconceptions. Medical Law Review, England: Oxford University Press., 2003, vol. 11 no. 2 P. 188.
79
FRADA, Manuel Carneiro da, “A própria vida como um dano? Dimensões civis e constitucionais
de uma questão-limite”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2008, Ano 68, Vol. I.
80
MORRIS, A. e SAINTIER, S., To be or not to be: is that the question? Wrongful life and misconceptions. Medical Law Review, England: Oxford University Press., 2003, vol. 11 no. 2, P. 191: “are contentious because they are seen as compensating the child for being born, which—it is argued denies the sanctity
and the value of life”.
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
113
Marisa Almeida Araujo
O bem jurídico protegido no crime de aborto81 é a vida humana intrauterina, sendo bem jurídico autónomo e eminentemente pessoal sendo que há
razões de política-criminal que “convergem para a afirmação da autonomia deste bem
jurídico face à vida humana. Por um lado, esta autonomia afirma-se também perante
a mulher grávida. Ou seja, mesmo aceitando a ideia da “duplicidade na unidade” na
pessoa da mulher grávida, o bem jurídico da vida intra-uterina é perante ela autónomo
e, portanto, ela será a responsável pela sua concreta tutela”82.
O art. 142.º com a versão de 1995 passou a ter uma epígrafe “interrupção da
gravidez não punível” sendo que a versão do Código Penal de 1982 conduzia,
observados os pressupostos, à exclusão da ilicitude que, agora, parece que, pelo
menos formalmente, o legislador teria aberto à discussão sobre se em causa
estavam causas de justificação da ilicitude, exclusão da culpa ou ainda uma
renúncia do direito penal a intervir83.
Suscitando-se que o comportamento em causa apenas encontraria assento
ao nível da culpa ou punibilidade já que, se assim não fosse “estar-se-ia a conferir
aos agentes (à grávida e ao médico) um direito que atentaria directamente contra
a tutela jurídico-constitucional da vida, e nomeadamente contra o direito à vida do
nascituro, o que seria, se assim pode dizer-se, “directamente” inconstitucional”.
Ora, não colhe este argumento, desde logo “só o conseguiria se fosse exacto
ser o valor constitucional da vida humana “absoluto” e não permitir limitações e mesmo
negações”.84
Assim, estando “afastada a pretensa inconstitucionalidade, deve dizer-se que, de
um ponto de vista dogmático-penal e político-criminal, só a tese que vê nas indicações
verdadeiras causas de justificação” conforma a interrupção da gravidez85.
Sendo que a “Constituição afirma que “a vida humana é inviolável” sem
fazer menção do estádio de desenvolvimento em que essa mesma vida se encontra e,
naturalmente, sem exigir personalidade jurídica dos respectivos sujeitos activos. (...)
não podendo “o estatuto do embrião (...) ser desligado do debate travado sobre o aborto
(...)”86.
Aliás, a situação do aborto selectivo, a utilização da pílula do dia seguinte,
admitindo a “jurisprudência constitucional (...) um sistema gradualista da vida
81
Inserido no Título I da parte especial do Código Penal, Dos crimes contra as pessoas, o crime
de aborto, insere-se no capítulo II, Dos crimes contra a vida intra-uterina.
82
DIAS, Jorge de Figueiredo, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, comentário ao art. 142.º p. 149.
83
De facto cremos que a questão continua a manter-se ao nível de uma causa de justificação da
ilicitude do facto sendo que a L 90/97 se refere, para a alteração dos prazos, de “exclusão da ilicitude”
da interrupção voluntária da gravidez.
84
DIAS, Jorge de Figueiredo, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, comentário ao art. 142.º, p. 177 e ss. referindo-se aos votos de vencidos de Cardoso da Costa
e de Marques lançados no Ac. do TC 25/84.
85
Ibid. 179.
86
MIRANDA, Jorge E MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo
I, 2005, Coimbra Editora, p. 233.
114
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Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
humana, atendendo às suas diferentes fases de desenvolvimento”87. “Por outro lado,
este estatuto não pode também deixar de ser analisado no contexto de procriação
medicamente assistida, uma vez que certas técnicas e práticas adoptadas nesse domínio
comportam elevados riscos para a vida do embrião humano, quando não importam
mesmo a sua morte inevitável”88.
Daqui, como fizemos no ponto anterior e em relação ao qual estamos
inteiramente de acordo, resulta o caminho sem saída de admitir um direito à
não existência, o que é inadmissível.
A criança está viva e, por isso, não há compensação que lhe deva ser
atribuída, tem a vida, que merece ser vivida, independentemente das patologias
de que padece.
Mas é assim? A patologia e os encargos, bem como o sofrimento de que
desta decorre, não devem ser compensados?
Não devemos colocar a questão como tem sido colocada no ponto
precedente que acaba, como já tivemos ensejo de referir, na formulação de um
direito à não existência, o que é inadmissível.
Mas, com todo o respeito, não sejamos cínicos, mesmo os mais acérrimos
defensores da vida e da vida independentemente da deficiência não podem
negar que esta acarreta danos que devem ser compensados quando a criança
nasce num quadro como o colocamos nas wrongful life.
Isto tanto assim é que os custos da deficiência da criança que nasceu em
decorrência de erro de diagnóstico são compensáveis.
Em França, que se colocou na acérrima posição de proibir, legalmente, as
wrongful life claims, não tem qualquer pejo em assumir que a vida deficiente
tem custos que devem ser suportados, porque são um encargo acrescido que
merece ser compensado.
Colocou-se foi, em França, o pagamento da compensação, no sistema de
segurança social89 e não no médico que incorreu em má-prática.
Dê-se-lhe o nome que se entender, sufrague-se o que se entender a verdade
é que, não podemos deixar de verificar que, com este sistema de proibição legal,
mais se não fez do que deixar de debater o fundamento da compensação dada
à criança pelos custos acrescidos da sua deficiência.
Assumem-se danos, custos, encargos da vida deficiente que, excluídos da
responsabilidade civil médica se excluíram, portanto, do debate do fundamento
que dá causa a essa compensação.
Ibid.
Ibid. P. 234, destacando a subsequente utilização de embriões excedentários que das técnicas
de PMA podem resultar e a sua eventual utilização na pesquisa científica.
89
MORRIS, A. e SAINTIER, S. To be or not to be: is that the question? Wrongful life and misconceptions. Medical Law Review, England: Oxford University Press., 2003, vol. 11 no. 2, P.191: the ‘special’
costs of disability are recoverable. Moreover, judges in Britain and France have no difficulty in categorizing a
child’s disability as a burden for the parents.
87
88
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
115
Marisa Almeida Araujo
Não significa que se afastem as dúvidas e, muito menos, que deixe de haver
fundamento da compensação. O que se afasta é a discussão, a causa e significa, tão
só que, com esta opção, legal, se retirou do debate a razão pela qual a criança vai ter
direito a ser compensada pelos custos da vida deficiente de que padece.
Ora, são estes danos, exactamente esses danos patrimoniais que estão em
discussão na wrongful birth90 mormente ao nível da responsabilidade contratual e
é exactamente o fundamento destes danos serem ressarcidos e está em discussão.
Certo é que, do incumprimento contratual do dever de informação do médico,
preterido por erro na avaliação dos exames pré-natais, do mesmo resultam danos
para os pais, sobretudo para a mãe que tem direito à informação, mormente para
decidir da interrupção da gravidez, perdeu a oportunidade de o fazer.
Mas, não podemos deixar de admitir que o incumprimento da obrigação a
que o médico está adstrito produz efeitos, consequências, em relação a outrem, i.e.,
a criança.
E tanto assim é que o que se fez para afastar o debate sobre se esta compensação
seria menosprezar a vida deficiente, foi colocar a compensação num sistema de
segurança social pagando os custos da deficiência, ou seja, assumindo que a vida
deficiente nascida nestas circunstâncias concretas, com erro de diagnóstico médico,
tem danos que têm que ser compensados.
Mais não fazem do que assumir que há danos a compensar mas evitam a
discussão afastando o dever de indemnizar da esfera do médico e colocando-a na
segurança social.
Nós colocamos o enfoque noutro lado.
A criança que nasce numa situação factual das wrongful life tem que
ser compensada. Tem danos decorrentes da sua deficiência que têm que ser
compensados e nisto, mesmo os países que proibiram as acções não o podem negar,
o que fazem, é afastar do debate e da discussão o fundamento desta compensação.
A criança que é, também ela objecto de tutela da relação entre o médico e a
mãe, sendo a saúde desta objecto de tutela e, neste ponto e não obstante o acima
referido não podemos deixar de considerar que haverá interesses tuteláveis a
quem, directamente, a ordem jurídica não lhes deu resposta.
Será possível?
Será possível face à argumentação do ponto precedente haver essa resposta
ou ela ter cabimento no quadro legal e constitucional?
90
Em Fevereiro de 1999, depois do nascimento de uma criança com síndrome de Down, deu
entrada no Tribunal Italiano ação contra médico e hospital, proposta pelos pais, atendendo a que o
médico subscreveu, unicamente o triplo-teste, o que se terá revelado insuficiente para o diagnóstico
da malformação da criança. O Supremo Tribunal Italiano, no caso 16754/2012 acabou por conceder
indemnização aos pais da criança, bem como à própria e aos irmãos desta, o que coloca em debate a extensão da relação entre médico-paciente, bem como dos chamados danos indirectos – vide
ibid., PAOLA FRATI, M.G., TURILLAZZI, Emanuela, ZAAMI, Simona, and FINESCHI, Vittorio, The
physician’s breach of the duty to inform the parent of deformities and abnormalities in the foetus:
“wrongful Life” actions, a new frontier of medical responsability. The Journal Maternal-Fetal & Neonatal Medicine, 2014, vol. 27(11), no. informa healthcare, pp. 1113-1117.
116
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Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
Esta é a questão fulcral.
Desde logo aqui se suscitam problemas no que tange à configuração da
repercussão da tutela da criança, da dor e sofrimento, para além de despesas
acrescida que tenha, consequência da sua patologia.
Mas cremos que o âmago da questão não é, nem pode ser, como acontece, na
assunção de que qualquer forma de tutela dos interesses da criança se concebam
como a comparação com a não vida, caso a obrigação do médico tivesse sido
cabalmente cumprida, cremos que esta é uma fórmula que, evidentemente
inadmissível e insustentável, não deverá ser o pressuposto da eventual concepção
indemnizatória à própria criança.
O médico incumpriu as suas obrigações, incumpriu o dever de informação
cujos titulares do direito correspondente são os pais, concretamente, atendendo
às consequências que do mesmo resultam, mormente a interrupção da gravidez,
a mãe.
Cremos que nem de outro modo poderia ser, pouco se conseguiria conceber
se o bem jurídico tutelado no crime de aborto, os interesses da vida intra-uterina,
ou melhor deste nascituro em concreto, fosse um dos interesses a ponderar na
justificação pela interrupção da gravidez.
Não sufragar uma posição destas seria, por um lado inconcebível face ao
tipo de contrato em causa e o que ele visa como, se assim não fosse, colocar a mãe
numa situação de poder-dever no que tange à interrupção da gravidez o que,
como vimos, não é concebível.
A verdade é que não podemos ser indiferentes a que, neste caso, este
contrato em particular, visa a produção de um sujeito de direito, da vida intrauterina que é merecedora de tutela legal, ainda antes da existência de qualquer
pessoa jurídica sendo, portanto, a actuação sobre esta, mormente no contrato que
assegura, de entre os meios disponíveis ao actual estado da ciência, diagnóstico
de patologias e desenvolvimento do nascituro para um nascimento saudável ou
que, caso tal não se verifique, a mãe seja informada da existência de patologia e,
sendo caso disso, interrompa a gravidez, querendo.
Temos portanto um contrato que se protela no tempo, complexo, não só pelo
feixe múltiplo de obrigações e deveres a que os outorgantes estão vinculados,
como também a existência de um futuro terceiro que é objecto desse contrato, a
sua saúde e o diagnóstico desta.
É sobretudo este futuro sujeito de direito um dos, se não, o principal
interessado no exímio cumprimento das obrigações que do mesmo resultam,
incluindo o correcto diagnóstico sobre a sua saúde, à mãe, a única que se encontra
em circunstância de poder avaliar os resultados dos diagnósticos já que é esta
a titular dos direitos e interesses deste contrato, ainda que ele vise, também, a
saúde de um futuro terceiro que, para já, é uma extensão da própria mãe.
Por isto, assume-me como obrigação decorrente deste contrato, face ao seu
objecto, o dever de informação à mãe de todos os resultados dos exames que
realize, bem como da avaliação ou diagnóstico destes.
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
117
Marisa Almeida Araujo
Desta forma, o desenvolvimento ou patologias do nascituro e o seu
diagnóstico fazem, independentemente de quem ou do que os causa, parte do
âmbito do contrato e, neste âmbito, do contrato, ou seja, do preenchimento do
dever de informação se encontra, principalmente, a saúde do nascituro.
É neste momento em concreto que nos colocamos, ou seja, deste binómino
direito/ dever, em que a saúde da criança se encontra.
Sendo que, quanto à mãe, como assumimos como pressuposto, em causa
está um erro de avaliação, do médico nos resultados de exames ou diagnóstico
que, não lhe tendo permitido avaliar a patologia, não pode informar a mãe da
mesma e, nesse caso, manteve-a na expectativa – dentro dos limites de erro
admissíveis pela legis artis – de ver nascer uma criança saudável.
Mas, atendendo à relação jurídica complexa que se estabelece entre médico
e paciente neste caso, não podemos deixar de avaliar que a saúde do nascituro é
a principal fonte de actuação do médico e da sua actividade profissional, ou seja
o principal objecto da actividade médica é o nascituro e este, quanto a este não
existiria qualquer forma de tutelar ou ressarcir as consequências da omissão do
profissional de saúde.
Conforme tem sido entendimento do Supremo Tribunal, no contrato de
prestação de serviços médicos, como os do caso, está em causa “médico especialista
(v.g. um médico obstetra), sobre o qual recai um específico dever do emprego da técnica
adequada, se torna compreensível a inversão do ónus da prova, por se tratar de uma
obrigação de resultado – devendo o mesmo ser civilmente responsabilizado pela simples
constatação de que a finalidade proposta não foi alcançada (prova do incumprimento), o
que tem por base uma presunção da censurabilidade ético-jurídica da sua conduta” 91.
Ou seja, o principal objecto de cuidado do contrato não veria – e não pode
no âmbito directo da relação jurídica entre mãe e médico, como tivemos ensejo de
referir – qualquer tutela que, no âmbito da sua saúde, foi preterida.
Com tem sido posição assente no Supremo Tribunal de Justiça “No contrato
de prestação de serviços que o médico celebra (contrato médico), existe como obrigação
contratual principal por parte daquele a obrigação de tratamento, que se pode desdobrar em
diversas prestações, tais como: de observação, de diagnóstico, de terapêutica, de vigilância,
de informação; trata-se, por regra, de uma obrigação de meios, e não de resultado, devendo
o «resultado» a que se refere o art.º 1154 do Código Civil ser interpretado como cuidados
de saúde” 92.
Disto resulta que da actuação do médico há repercussões para os pais –
mormente a mãe a quem não foi dada, pela omissão, opção de interromper a
gravidez – e para a futura criança, sendo que a saúde desta faz parte do contrato,
91
A responsabilidade civil por acto médico na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo
Tribunal de Justiça, (Sumários de Acórdãos de 1996 a Março de 2015), Gabinete dos Juízes Assessores
– Assessoria Cível. P. 3.
92
A responsabilidade civil por acto médico na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo
Tribunal de Justiça, (Sumários de Acórdãos de 1996 a Março de 2015), Gabinete dos Juízes Assessores
– Assessoria Cível, p. 7.
118
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
ainda que o direito correspondente, na duração do contrato, está na esfera jurídica
da progenitora.
Colocar a questão ao nível como é colocada no ponto anterior, ou seja,
estaremos a sufragar um direito de uma criança que existe com uma vida que
não merece ser vivida mas, a verdade é que a existência daquela criança, com
aquele sofrimento que o médico deu causa por omissão de diagnóstico93 sendo
o desvalor do seu comportamento mais amplo do que para o incumprimento do
direito à informação dos pais resulta.
Nesta relação, do médico e da mãe é esta que está em condições de avaliar
os interesses de ambos desde que lhe seja concedida a oportunidade de o fazer,
com informação esclarecida94.
Já que, é inegável que os pais querem saber, prover, cuidar do nascituro
e da sua saúde que se projecta, e é inerente ao contrato, após o nascimento, e
neste fundamento radica o facto que dá causa à relação contratual e, por isso, a
saúde deste, independentemente da causa constitui objecto contratual e fonte das
obrigações do médico que se mostram de facto incumpridas.
Admitindo que os interesses daqueles são tuteláveis no âmbito da
responsabilidade civil continuam por tutelar os interesses da criança, da saúde
com que se espera que nasça.
A questão que se coloca é se estes devem ou não ser tutelados pelo
ordenamento jurídico o que, em nosso entender, face ao tipo de relação contratual,
em que a saúde do nascituro e, portanto, da futura criança faz parte do objecto do
contrato, a resposta é afirmativa.
É inegavelmente, face ao objecto deste contrato, que visa a criação de um
futuro sujeito de direito, que a actuação do médico tem repercussões na criança,
na vida desta criança e não nos referimos à vida desta comparando-a com a
não vida que não sufragamos qualquer tese destas, no actual paradigma a vida
humana é indisponível e o caminho em que cairíamos sufragando tal, ou seja,
admitindo que a criança defenderia uma opção pela não vida quando a compara
com a sua vida é inconcebível e estaríamos a abrir caminho para um concepção
de vidas que merecem ser vividas, numa selecção de vidas e de paradigmas de
vidas saudáveis.
Assim, se qualquer concepção se iniciar por este caminho está, em nosso
entender, votada ao insucesso95.
93
A. Buchanan, D. Brock, N. Daniels and D. Wikler, From Chance to Choice: Genetics and Justice
(Cambridge 2000), 236: “brought into existence with such a life …. The act of creating the person also creates
the right that it violates – the person and his or her rights come into existence together.
94
SCOTT, Rosamund, Reconsidering “Wrongful Life” in England after thirty years: legislative mistakes and unjustifiable anomalies, The Cambridge Law Journal, 72(1), March 2013, The Cambridge Law
Journal, pp. 115–154p. 149: “between the doctor, the mother and the fetus: the pregnant woman, as proxy
for the future child, is able to consider its interests (both welfare and autonomy-oriented) provided that health
professionals give her accurate advice about the fetus’s condition”.
95
O Supremo Tribunal no ac. 2001, entendeu que os pais teriam, eventualmente, o direito à
interrupção da gravidez, mas não era esse o direito que estava em discussão, uma vez que o Autor era
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
119
Marisa Almeida Araujo
Mas, também não é verdade que sufragar uma tese que admita a
possibilidade da criança ser indemnizada seja, por qualquer forma, uma
concepção que importe um menosprezo da vida desta criança em comparação
com as que nascem saudáveis96.
É unicamente a tutela das consequências, merecedoras dessa tutela, que
resultam do desvalor da acção do comportamento do médico decorrente do
incumprimento do dever de informação.
Ou seja, do dever de informação do médico manifesta-se um desvalor da
acção, para além do que resulta directamente para os pais, titulares do respectivo
direito, que importa a preterição desta obrigação resultam, independentemente
do feixe directo que resulta para o direito correspectivo, este da mãe e da sua
eventual opção de interromper a gravidez esta possibilidade esgota-se neste
relação directa.
Do comportamento do médico, face ao concreto contrato em análise,
verifica-se a violação de deveres de protecção, de conduta, cuidado que visam,
no todo, diagnosticar a saúde da criança com o objectivo que nasça saudável –
independentemente do quê ou do que dá causa a eventuais patologias – sendo
com este nascimento, nestas condições que se realiza o fim último do contrato.
Tanto assim é que a saúde da criança e eventuais patologias constituem
formas de justificação de fazer cessar a vida intra-uterina admitindo, como admite
a lei, e sejamos claros, numa verdadeira concepção de aborto eugénico previsto
no art. 142.º. n.º 1 alínea c) do Código Penal sendo que “da inviolabilidade da vida
humana, porém, não pode tirar-se argumento contra a existência de justificações do facto
ou, mais latamente, contra a consagração de cláusulas de impunibilidade de condutas que
atentem contra os bens jurídicos “vida” ou “vida intra-uterina” (…). Pelo contrário, deve
afirmar-se que o legislador ordinário democraticamente legitimado é livre para decidir, de
acordo com as concepções político-criminais que o guiem e com respeito pelos princípios
da necessidade, subsidiariedade e da adequação a tutela penal, do sentido da extensão com
que deseje consagrar cláusulas de justificação ou de impunibilidade do facto”97.
O que aqui nos referimos aqui é de outra coisa é do desvalor da acção do
comportamento do médico que tem consequências, tuteláveis pelo direito e que
merecem essa tutela, na esfera jurídica da criança, da criança nascida98.
o próprio filho. De acordo com o aresto, a questão, tal como colocada, partia do pressuposto de que
a criança afirmava não querer existir, reclamando o direito a uma indemnização por isso acontecer.
96
Como parece ter sido o argumento na Lei anti-Perruche, suscitado por associações de deficientes.
97
Referindo-se a uma “imposição (implícita) absoluta da criminalização que alguns Autores
que consideram sobre a protecção jurídico-constitucional da “vida” que resulta para o legislador ordinário, DIAS, Jorge de Figueiredo, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra
Editora, 1999, comentário ao art. 142.º, p. 171.
98
A similar approach has actually been proposed in connection with so-called ‘wrongful living’ cases – where a physician negligently ignores the patient’s preferences about life-sustaining care.
RUDA, A. ‘I Didn’t Ask to be Born’: Wrongful Life from a Comparative Perspective. Journal of European
Tort Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 204-241. P. 213.
120
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
Não está em causa denegrir a criança ou considerar a sua vida como uma
vida menor ou menos merecedora de ser vivida porque deficiente. O que está
em causa é uma relação contratual em que parte do objecto do contrato, a saúde
do nascituro, se repercute na vida da futura criança e na saúde desta, que foi
preterida pelo médico em incumprimento contratual, extravasando o desvalor
da sua acção não só à omissão do dever de informação aos pais mas também, nas
consequências que essa omissão vai ter na saúde da criança, depois de nascer99.
Sendo que, da sua conduta, o desvalor da sua acção extravasa a mera relação
contratual com os pais, repercutindo-se na saúde de outrem, depois de nascer.
Nada se opondo a que este terceiro estranho à relação contratual, mas a sua
saúde fazendo parte do contrato, se vê repercutir, aquando do seu nascimento,
violando direito absolutos decorrentes da omissão a que o médico, por contrato,
estava adstrito.
Nada, em nosso entender, e como sustenta o Supremo Tribunal, fica
obstaculizado em recorrer à responsabilidade delitual, já que “a responsabilidade
civil médica admite a responsabilidade contratual, ou seja, a que deriva de uma obrigação
em sentido técnico e a extracontratual ou aquiliana que resulta da violação de um dever
geral de abstenção contraposto a um direito absoluto (no caso direito de personalidade). II
- Na actuação do médico, o não cumprimento pelo mesmo dos deveres de cuidado e
protecção a que está obrigado, podem ser causa de responsabilidade contratual, na medida
em que viola deveres laterais a que contratualmente está obrigado, mas também causa de
responsabilidade delitual, na medida em que a referida violação represente igualmente um
facto ilícito extracontratual.100
Tudo isto independentemente das consequências que trouxe a omissão aos
pais, mormente – e esgota-se aqui – da mãe não ter podido optar pela interrupção
da gravidez.
O principal objecto de cuidado do médico, os exames ao seu estado de
saúde foram a causa de incumprimento pelo que, pouco se entenderia, que este
objecto (aquando da gravidez) não pudesse ver tutelados os interesses que com
o incumprimento viu preteridos.
O dever de informação do médico tem o correspectivo direito, na esfera
jurídica dos pais e, quanto à possibilidade de interromper a gravidez que decorre
daquele, da mãe.
Dever de informação este que resulta da avaliação, do diagnóstico do estado
de saúde do nascituro, sendo este o enfoque do dever, a saúde do nascituro e que,
99
STEININGER, B.C. Wrongful Birth and Wrongful Life: Basic Questions. Journal of European Tort
Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 125-155.P. 131: A group of arguments which is generally related to
the idea of maintenance compensation awards entailing a denigration of the child is that it would lead to psychological harm for the child if it were to discover later on in life that it had been unplanned and that his or her
parents had claimed compensation for maintenance costs.
100
A responsabilidade civil por acto médico na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo
Tribunal de Justiça, p. 3, (Sumários de Acórdãos de 1996 a Março de 2015), Gabinete dos Juízes Assessores - Assessoria Cível. P. 9.
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121
Marisa Almeida Araujo
pela avaliação deste estado permite à mãe, o direito à informação, mormente
para efeitos de interromper a gravidez.
Tem a mãe o direito a interromper a gravidez, de quem é este direito?
Entendemos que o direito é exclusivamente da mãe, sendo a gravidez uma
extensão da integridade física e da sua saúde, sendo o nascituro, pela relação
parasitária, ainda a própria mãe, são um nesta concepção.
Que, nesta altura não tem autonomia, porque resulta exclusivamente do
direito da mãe, no feixe relacional com o dever de informação do médico.
Esta assunção importa o reconhecimento de uma coisa que é a
insusceptibilidade de, em caso de incumprimento, tutelar todos os interesses que
se visam com o direito à informação, em que o sofrimento da criança se inclui.
Na verdade, do que se trata neste tipo de acções não é da vida como valor
ou desvalor, mas antes, realmente, do sofrimento e das necessidades causadas
pela deficiência.
A indemnização não deve compensar o dano de ter nascido mas sim a
dor e o sofrimento que a criança experienciou após o nascimento (burden of his
existence)101.
Desta forma, ficaria por tutelar isso mesmo, o sofrimento da criança, agora
ganhando autonomia para, não numa concepção de vida ou não vida, mas sim
de integridade física decorrente do sofrimento de que padece desde que nasce.
Assim sendo, como tem sido defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça,
“Em matéria de responsabilidade civil por actos médicos tem-se entendido que a
actuação do médico, e o não cumprimento pelo mesmo dos deveres de cuidado e protecção a
que está obrigado pode ser causa de responsabilidade, tanto contratual (na medida em que
viola deveres laterais a que está contratualmente obrigado), como delitual (na medida em
que a referida violação representa igualmente um facto ilícito extracontratual), podendo
inclusive ser causa simultânea das duas apontadas modalidades de responsabilidade
civil102.
Sendo que a saúde da criança é necessariamente um elemento fulcral
bem como o é a identificação das patologias, sob pena de total hipocrisia face,
mormente aos exames de diagnostico pré-natal cada vez mais e mais sofisticados,
como o sentido inverso da lei penal em aumentar as semanas para a interrupção
da gravidez em casos de malformações, sendo evidente que os exames de
diagnóstico pré-natal importam a pré-concepção de julgar a vida deficiente e os
efeitos prospectivos dessa deficiência na vida, fazendo juízos de valoração sobre
a mesma, numa evidente situação de eugenia103.
FERNANDO DIAS, S., Vida indevida? As acções por wrongful life e a dignidade da vida humana.
Tékhne - Revista de Estudos Politécnicos, Barcelos: Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, 2010,
n.º 13, p. 187.
102
A responsabilidade civil por acto médico na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo
Tribunal de Justiça, p. 3, (Sumários de Acórdãos de 1996 a Março de 2015), Gabinete dos Juízes Assessores – Assessoria Cível, p. 3.
103
KIM, H. The uncomfortable truth about wrongful life cases, Philosophical Studies, July 2013,
101
122
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
Sendo que, discutir situações de não vida ou direitos à não vida, ou a
menosprezo da vida não é mais do que exercício de causa virtual não admissível,
para afastar responsabilidade ou, pelo menos, a possibilidade de os ponderar sem
conjecturas sobre situações que não existem, não se defendem nem a atribuição
de uma indemnização dá causa.
A criança está viva e tudo o mais são hipóteses que não se colocam104.
A possibilidade da mãe abortar ou não a criança dá-se em momento e em
feixe relacional distinto do que aqui está em causa e confundi-lo não é mais
do que lançar mão de situações hipotéticas, virtuais que nada têm a ver com o
dano a considerar, a saúde da criança, que o médico, em fase pré-natal, devia ter
avaliado e não o fez, com repercussões no futuro sujeito de direito que o contrato
visa105.
Sendo que o que está em causa, no efeito danoso a compensar, na criança,
suja saúde não foi avaliada, é fazer com, que a criança tenha uma vida mais
confortável, compensando-se todos os custos que daí resultam106 e não as
concepções sobre pretensões indemnizatórias sobre uma vida menor ou menos
merecedora.
Como refere Mota Pinto, “a indisponibilidade da vida humana não é posta em
causa pelo simples facto de se atribuir uma indemnização à criança. Só estaríamos a pôr
em causa o valor da vida se a atribuição da indemnização levasse implícito um “juízo sobre
esse valor, sobre o valor da existência humana comparada com a “não existência”, o que
afectaria a dignidade humana sendo contrário a qualquer sistema jurídico civilizado”107.
Assim, pelo incumprimento do seu dever e pelo desvalor da sua acção, ao
nível contratual, o médico deu casa a “omissão como pura atitude negativa, não pode
gerar física ou materialmente o dano sofrido pelo lesado; mas entende-se que a omissão
é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que,
seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano”108.
Springer, Volume 164, Issue 3 vol. – 164, n.º 3, P. 635: “hus, it comes as no surprise that we approve of the
preconception or prenatal screening for such a severe congenital disease on the basis of the judgment that it
would be bad for the prospective child to be born and live a severely disabled life.”
104
TROKE, B. Wrongful existence claims: the ‘McFarlane Approach’, trends in policy and ethics, and
the future. Clinical Risk, Sage Publications, Ltd., 2007, vol. 13 no. 5, p. 187-190 184p. P. 187: To allow or
refuse recovery of damages according to a test of what is ‘fair, just and reasonable’, or the view of the hypothetical commuter, simply allows the judiciary to express subjective opinions based on their own values.
105
STEININGER, B.C. Wrongful Birth and Wrongful Life: Basic Questions. Journal of European
Tort Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 125-155.P. 154: One could of course imagine that a mother
decides to opt for a termination of her pregnancy not only in her own interest but also in the interest of the child,
in order to spare the child a severely disabled life.
106
MORRIS, A. e SAINTIER, S. To be or not to be: is that the question? Wrongful life and misconceptions. Medical Law Review, England: Oxford University Press., 2003, vol. 11 no. 2, P.186
107
MOTA PINTO, Paulo, Indemnização em caso de nascimento indevido e de vida
indevida”(wrongful birth e wrongful life), in Lex Medicinae, ano 4, n.º 7, 2007, pp. 5-25
108
VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 1.ª Edição, 2000, Almedina, p. 528.
Não desconsideramos o facto de, no caso, podermos estar numa situação de natureza causal no
plano puramente naturalístico sendo que se verificam dificuldades especiais na omissão no tocante
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
123
Marisa Almeida Araujo
Ora, nesta concepção, o que defendemos é que da omissão do médico – cujo
dever jurídico de actual está subjacente ao contrato celebrado entre a mãe e este –
resulta a violação da integridade física da criança, nascida e a partir do momento
em que nasce, face ao sofrimento de que padece, cuja fonte é a impossibilidade de
ponderação dos interesses do filho, pela mãe, decorrentes do direito à informação
que, ganharia, aqui – isto e só isto – relevância jurídica autónoma.
Assim, nos termos do art. 486.º do CC as omissões dão lugar a obrigação de
reparar os danos quando a obrigação de agir decorra directamente da lei ou de
uma fonte negocial109.
Ora, no contrato em causa encontramos a preterição de um acto médico,
devido, que consiste na avaliação diagnóstico, prognóstica ou de prescrição e
execução de medidas terapêuticas adequadas relativas à saúde da pessoa, grupos
ou comunidades.
Desta omissão resulta o incumprimento do dever de informação que caberia
ao médico prestar e cujas consequências se encontram esgotados na tutela das
wrongful birth.
Para além disso, resulta daquela omissão a violação de deveres de protecção
e conduta, face ao principal objecto do contrato, violando a saúde da futura
criança a nascer, cujo direito se configura na sua esfera jurídica, porque nasce e
tem uma vida com sofrimento que, a seu tempo, não pode ser ponderado, sendo,
por isso, este sofrimento, de per se, a causa da responsabilidade do médico perante
a própria criança.
Desta forma, se afastaria da questão em apreço qualquer forma de incluir
o direito à não vida na fonte, assim autonomizada, de responsabilidade civil
extracontratual perante a criança.
As omissões são fontes de ilicitude, quando há dever de actual, por lei ou
contrato e este pudesse normalmente ter evitado a verificação do dano, ou seja, a
falta de saúde da criança por omissão de diagnóstico.
O que dá causa às patologias ou a impossibilidade de as tratar mais não
daria, nesta concepção, do que lançar mão da causa virtual que, de qualquer
forma, “não destrói a relação (adequada) entre a causa entre a causa real e o
dano”110.
Sendo esta omissão ilícita pela violação de direitos absolutos, a saúde
da criança, culposa (a título negligente como referimos) e que causa danos,
mormente o sofrimento de que padece e custos de vida acrescidos.
Dando-se, assim atenção, não à vida da criança ou qualquer paradoxo com
a não vida mas sim ao sofrimento da criança causado por erro de diagnóstico,
numa evidente má-prática médica111.
ao nexo de causalidade. Ibid. Nota (1).
109
LIMA, Pires de E VARELA, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. I, 2009, Coimbra Editora,
4.ª edição revista e actualizada.
110
VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 1.ª Edição, 2000, Almedina, , p. 927.
111
RUDA, A. ‘I Didn’t Ask to be Born’: Wrongful Life from a Comparative Perspective. Journal of
124
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De outra forma ainda acabaríamos a agradecer ao médico por ter dado
a oportunidade, derivado da sua má-prática médica e incumprimento de
elementares legis artis, por a criança ter oportunidade de viver112.
Quanto ao nexo de causalidade entre o facto (omissão) e o dano, no âmbito
da teoria da causalidade adequada, usamos um juízo de previsibilidade e, com
recurso ao homem médio, avaliamos a previsibilidade de ligação jurídica entre a
omissão, neste caso a omissão é como a interpretamos supra, ou seja, a omissão
do médico que implica a impossibilidade de ponderar os interesses da criança,
nascituro no momento do incumprimento, e o sofrimento (que faz parte daquele
âmbito de interesses) e o efectivo sofrimento de que padece.
Passando para a indemnização, neste caso, a comparação está exclusivamente
entre a existência com ou sem sofrimento e não entre a existência e a não existência.
Para a mãe o dano consiste na perda de oportunidade de abortar resultante
do incumprimento do dever de informação. Para a criança, da mesma conduta
médica, resulta a falta de saúde por incumprimento de deveres de protecção
e conduta que radicam num nascimento sem saúde, sendo que o desvalor do
médico se projecta em pessoas distintas, em momentos distintos e, face ao tipo
contratual, os seus efeitos, objecto e fim, importam desvalor da acção que abarca
ambas as situações113.
O que se pretende é que a conduta ilícita do médico, que importa violação de
deveres, para além do dever de informação aos pais, e que causa um nascimento
sem saúde, como é o fim último do contrato, em clara má-prática médica, à
revelia de qualquer comportamento padrão exigível a um médico, mormente
especialista .
A vida da criança, deficiente, é merecedora de ser vivida e não é menosprezada
se o comportamento ilícito do médico que não diagnosticou os seus problemas
de saúde seja censurado e, com isso, se lhe atribuir uma indemnização com o
escopo de minorar o sofrimento que as patologias lhe trazem114.
European Tort Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 204-241. P. 241: Very little attention is paid to the
suffering of the child and to the fact that the physician was at fault at a time when the child depended on the
mother altogether.
112
JECKER, N.S. The Right Not to Be Born: Reinterpreting the Nonidentity Problem. American Journal of Bioethics, Oxfordshire, Routledge, 2012, vol. 12 no. 8., p. 35.
113
RUDA, A. ‘I Didn’t Ask to be Born’: Wrongful Life from a Comparative Perspective. Journal of European Tort Law, De Gruyter. 2010, vol. 1 no. 2, p. 204-241. P. 216 e ss: In response, it could be argued that
it is not wrong to cause persons to exist with a right that cannot be fulfilled if, after such persons are caused to
exist, they are glad they do exist. This is because in such instances we can reasonably expect that future persons
will later waive whatever rights are not fulfilled.
Damage in these situations thus consists in the infringement of the mother’s interest in having the
chance to abort. Both harms to the mother and to the child are inseparable from one another for the very reason
that when the defendant’s negligence occurred, mother and child shared their legal interests.
114
KIM, H. The uncomfortable truth about wrongful life cases, Philosophical Studies, July 2013,
Springer, Volume 164, Issue 3 vol. – 164, n.º 3, P. 636: When a child is born with a severely disabling condition, the normative situation gets complicated. Obviously, the child herself has a prudential reason to want and
try to make the best of her life. To the extent that believing that her own life is worth living helps the child to live
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
125
Marisa Almeida Araujo
‘To be or not to be’ is not the question, and the courts need not concern themselves
with an evaluation of non-existence, ‘the undiscovered country from whose bourn no
traveller but rather the costs and suffering involved in the very real existence of the
disabled child. This recognition of the obligation owed to the child and to the family is
‘devoutly to be wished’115.
5. Considerações finais.
Nas wrongful life claims está em causa a pretensão indemnizatória da
criança que nasceu com deficiência.
Esta pretensão é deduzida, pela criança portadora da deficiência,
representada pelos pais, contra o médico que tendo acompanhado a gravidez
não detectou, violando a legis artis medicinae, a patologia de que o nascituro era
portador.
Com esta má-prática o médico incumpriu o contrato celebrado com os
progenitores, omitindo o dever de informação a que estava adstrito.
Perdendo, desta forma, os progenitores a oportunidade de fazer cessar,
legitimamente a gravidez, nos termos em que a lei penal o admite de acordo
com o preceituado no art. 142.º, n.º 1 alínea c) do Código Penal, concretamente
a possibilidade da progenitora abortar o filho.
Filho este que tendo nascido, portador de deficiência pretende, agora, ser
ressarcido, pelos danos que essa patologia dá causa, sejam os custos acrescido,
seja o próprio sofrimento que a doença dá causa.
A perda de chance da progenitora, ou seja, a impossibilidade de decidir
abortar o filho portador de deficiência, constitui incumprimento contratual por
parte do médico que é susceptível de ser tutelado ao nível as wrongful birth
claims.
Quanto a esta a recente decisão do Tribunal Constitucional acabou por
considerar conforme à Lei Fundamental a pretensão indemnizatória dos
progenitores atendendo ao incumprimento contratual imputável ao médico por
evidente má-prática médica não havendo, segundo os Conselheiros, qualquer
violação do direito à vida previsto no art. 24.º da Constituição da República
Portuguesa.
Mas, a verdade é que, por esse incumprimento há mais consequências.
Nasceu uma criança, portadora de deficiência.
Nas wrongful life claims a pretensão indemnizatória da criança tem acabado
por redundar em argumentações sobre a compensação pelo dano da vida, da
vida deficiente que a criança padece.
a better life through healthy self-love, the child has a state-given reason to believe that her life is worth living.
115
MORRIS, A. e SAINTIER, S., To be or not to be: is that the question? Wrongful life and
misconceptions. Medical Law Review, England: Oxford University Press., 2003, vol. 11 no. 2P. 193.
126
Lusíada. Direito • 16 (2016/2)
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Esta argumentação e o pressuposto por que parte, importa a avaliação de
considerações sobre concepções de vida, de uma vida menor, porque deficiente,
o que, face ao quadro constitucional vigente fica votada ao insucesso por,
de qualquer forma, acabar por se sufragar um “direito à não existência” e a
comparar, para efeitos de causalidade, a existência deficiente da criança com a
sua não existência.
Isto é assim uma vez que se parte de teses sobre a existência, ou eventual
existência, de um direito da criança a ser compensada resulta do incumprimento
do dever de informação aos progenitores sobre a existência da malformação
congénita.
Ora, é evidente que o conteúdo último deste direito, dos progenitores,
e cuja correspectiva obrigação, de resultado, foi incumprida por violação das
legis artis, tem como consequência fazer cessar a gravidez.
Estará assumido, portanto, que qualquer concepção que faça assentar as
pretensões da criança neste direito de informação acabará por se lhe extrair um
silogismo lógico, que a criança estaria a sufragar um “direito a ser abortado” que,
por ter sido preterido, terá que ser indemnizada.
Desta forma, não nos parece, uma vez mais concebível que, qualquer
pretensão da criança possa derivar do direito dos progenitores à informação,
porque este importa, e deste resulta, a justificação para o aborto do filho.
Mas, a verdade é que nos parece que a linha de argumentação, apesar de
correcta e em relação à qual nada temos a apontar, não podemos deixar de
pensar que existe uma criança, portadora de severos problemas de saúde.
Sendo a saúde do nascituro, ou seja, o nascimento de uma criança saudável,
o fim do contrato, ou seja, é esta a saúde (para além da saúde da mãe) que
se visa avaliar, diagnosticar e, sendo possível face às terapêuticas existentes,
tratar.
O que nos parece é que, ainda que a omissão do médico tenha como
consequência o nascimento da criança cuja vida merece ser vivida e tutelada,
a verdade é que há uma conduta ilícita, resultante da má-prática médica em
que a saúde desta criança era o objecto de actuação por parte do médico, que
incumpriu, violando o dever de diagnóstico, protecção.
Incumprindo, assim o médico, para além dos deveres a que estava adstrito
com os outorgantes, pais da criança, o fim último do contrato, o nascimento
saudável da criança, sem problemas congénitos.
É que, a não ser assim e mantermo-nos numa teia paradoxal sobre
“existência” e “não existência”, que nesta altura nem sequer se concebe jamais
se colocando qualquer espécie de reconstituição natural, ainda vamos acabar
por colocar a criança a fazer um louvor ao médico uma vez que só está viva por
causa deste.
É que, sendo certo que a criança está viva, sendo a sua vida merecedora de
ser vivida e protegida como qualquer outra, não é isso que está efectivamente
em causa.
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O que está em causa, isso sim, é que o médico incumpriu o fim último do
contrato, um nascimento saudável sem patologias congénitas, incumprindo, por
violação da legis artis, a realização positiva e o fim último deste contrato.
E tudo isto, independentemente das obrigações, em concreto, que incumpriu
perante os outorgantes. Este é um dos afloramentos do desvalor da sua conduta
mas não é o único.
Se por um lado, por causa deste incumprimento, os progenitores se viram
privados da possibilidade de abortar o filho deficiente, por outro, nasce uma
criança que não é saudável e, independentemente do que causa ou o que causa
a deficiência, isto acontece porque o médico incumpriu as suas obrigações de
diagnóstico e protecção à saúde do nascituro que, assumidamente, se projecta
com o nascimento, o nascimento de uma criança saudável.
Conforme verificamos não conseguimos conceber que, para a criança,
o fundamento da indemnização derive, por qualquer forma, do direito
de informação dos progenitores que, quanto a estes, o efeito prático está,
evidentemente, a possibilidade de fazer cessar a gravidez abortando o filho.
Aliás, esta situação, imporia a concepção de classificação da justificação da
interrupção voluntária da gravidez num poder-dever o que, não só é inconcebível
sendo que os interesses da mãe são os tuteláveis pelo Direito Penal, como a
colocaria numa eventual situação de conflito de interesses com o filho.
Para além da avaliação da situação ao nível do consentimento presumido
da vontade do filho o que punha em causa a vida como direito absoluto.
E, nesta situação, efectivamente acabaremos necessariamente por redundar
numa situação em que a criança, na sua pretensão, na wrongful life claim, se
reconduzir a um direito à não existência em que o que estava em causa era a
compensação pelo dano vida.
Esta situação é dogmaticamente insustentável face ao quadro constitucional
vigente.
Afastamo-nos desta análise que, em nosso entender, vai acabar,
independentemente de convicções sobre a temática em argumentação que não
tem suporte válido.
Mas, a verdade é que não podemos deixar de encarar a situação, ou seja,
o comportamento ilícito do médico e as consequências na vida da criança como
uma situação que parece merecer tutela jurídica.
Já que, o contrato em causa tem como objecto a saúde do nascituro, um
futuro sujeito de direito, e que se protela com o nascimento, o que agora se
discute e está em causa, e isto é sempre assim independentemente de quem ou o
que causa a eventual falta de saúde.
De facto, as obrigações a que o médico se vincula, inclui um feixe complexo,
face ao objecto e fim do contrato, e que se protela no tempo, após o nascimento
do nascitura, cuja saúde é fundamento do negócio.
De entre as obrigações do médico encontra-se a obrigação de diagnóstico
das patologias, que foi incumprida no caso concreto.
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Assim, este contrato celebrado entre o médico e os progenitores, na sua
realização positiva e de fim último a cumprir está o cabal diagnóstico da saúde
do nascituro, iniciando-se a tutela in utero mas projetando-se, os efeitos deste
contrato, com o nascimento saudável do futuro sujeito de direito.
E é exactamente com este nascimento, não saudável, e portanto incumprido
o contrato por parte do médico que não diagnosticou as malformações que
radica o desvalor da acção, e portanto uma actuação ilícita por parte do médico,
que ultrapassa o incumprimento do dever de informação aos pais.
O desvalor do comportamento do médico é apriorístico à obrigação que
incumpre com os pais, decorrentes do incumprimento do dever de informação.
A ilicitude do comportamento do médico é mais ampla do que a que
resulta da subsequente obrigação de informação aos pais e tem subjacente o
próprio incumprimento do contrato e dos efeitos que este tem em relação a
terceiros, ou seja, a criança, que nasceu eivada de problemas de saúde, cujo
diagnóstico não se verificou, omitindo-se dever de protecção e cuidado, em
violação da legis artis.
Desta forma, o que está em causa, é um contrato com obrigação de
diagnóstico de patologias, em que a saúde do nascituro e, subsequentemente da
criança depois de nascida é o fundamento e o fim último do próprio contrato.
Significa que, com isto, o desvalor do comportamento do médico e o seu
dever de actuação se encontra adstrito ao dever jurídico de actuar susceptível,
nos termos do art. 486.º do Código Civil, a uma omissão relevante para efeitos
de responsabilidade delitual em que o lesado é a criança, depois de nascida,
com problemas de saúde, ou com falta dela.
A ilicitude não está exclusivamente centrada no resultado danoso –
ilicitude do resultado – mas sim na dependência de um comportamento ilícito,
no desvalor da acção que, neste caso, em relação ao médico, extravasa o mero
incumprimento do dever de informação.
Ora, da conduta do médico resultado um comportamento ilícito que, não
é indiferente à produção de um dano, in casu, a falta de saúde da criança que,
durante a gravidez da mãe, não diagnosticou, produzindo efeitos após o termo
do contrato mas, assumidamente, decorrente dos efeitos prospectivos deste
contrato que os outorgantes, médico nomeadamente, assumiram como efeito
contratual.
O acompanhamento da gravidez tem como escopo a saúde do nascituro a
projectar-se com o seu nascimento, na produção de um futuro sujeito de direito
cuja actuação médica, durante a gravidez, tem como escopo um nascimento
saudável (dentro da vontade dos progenitores evidentemente quando a
patologia é diagnosticada e estes entendem não interromper a gravidez).
Em geral a aptidão do comportamento para originar o dano, neste caso a
falta de saúde da criança, foi condição directa e imediata dele.
Estando verificada a ilicitude por violação do dever de diligência
exigível na assistência à mãe, durante a gravidez que, por contrato importa
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a violação de obrigações perante os progenitores sendo que, para além disso,
esta comportamento defeituoso, com desvalor de acção que extravasa a pura
relação contratual entre os outorgantes, atendendo ao objecto do contrato.
A violação de regras médicas e do dever geral de cuidado a que está o médico
adstrito, especialmente adstrito dizemos nós atendendo a que estamos perante uma
contrato de prestação de serviços médicos especializados, como dimensão de um
comportamento ilícito, violador de obrigações contratuais e com desvalor de acção
que se projecta relativamente a terceiros, a criança que nasce com problemas de
saúde e, em relação à qual o médico tinha o dever de actuação, uma vez que a saúde
desta, projectada depois do nascimento, faz parte do âmbito do dever de actuação
a que está adstrito e, por isso, fonte de responsabilidade civil extracontratual.
Neste termos, parece-nos verificado o requisito da omissão, ilícita, em que o
lesado é a criança, nascida com falta de saúde decorrente da violação do médico
do dever de diagnóstico, protecção e diligência a que se encontra adstrito por
negócio jurídico, que violou, não diagnosticando os problemas de saúde que a
futura criança irá padecer.
E porque ela nasce, e quando nasce, não saudável, se dá a conditio em que
o desvalor do comportamento do médico encontra o respectivo desvalor do
resultado, a falta de saúde da criança.
Sendo que, em nosso entender, neste caso, o âmago da discussão subsequente
já não se coloca ao nível da existência e da não existência.
Esta questão ficou no âmbito da relação contratual entre os progenitores e o
médico, mas sim entre uma existência com saúde e uma existência com falta dela.
Sendo que a falta de saúde da criança, aquela que o contrato visava, decorre
da omissão do médico de diagnosticar patologias congénitas, o que não aconteceu
por má-prática médica.
As eventuais consequências que do dever de informação aos progenitores,
preterido, teriam nesta situação em concreto, ou seja, na responsabilidade civil
delitual tal qual a configuramos a não ter qualquer impacto já que, o pressuposto
da mesma não é a falta de informação ou o contrato qua tale, mas os efeitos
contratuais do fim, incumprido, que este negocio visa, i.e., o nascimento de uma
criança saudável.
Assim, o que é que os progenitores fariam ou não se cumprido o dever de
informação é algo que se encontra circunscrito à relação contratual e ao feixe
plúrimo de diretos e deveres que deste negócio resultam e, neste caso, não passa
de eventual relevância negativa da causa virtual.
O que, não sendo admissível nos termos legais, não desresponsabiliza o
lesante.
Desta forma, e em nosso entender, se consegue dar resposta a uma situação
que causada por clamorosa violação da legis artis medicinae, nos encontrávamos
dogmaticamente, a acabar por usar o paradoxo da existência e não existência não
dando, por isso, resposta a uma conduta ilícita cujos efeitos e consequências são
merecedores de tutela.
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Ser ou não ser? As wrongful life claims, p. 91-133
A análise do concreto tipo contratual e dos seus efeitos, objecto e fim que
haverá de resultar, como nos parece que resulta, um desvalor de comportamento
que extravasa o próprio âmbito da relação jurídica, a violação da legis artis
importa o incumprimento do dever de informação aos pais mas também, o
incumprimento do dever de diagnóstico, de diligência e protecção, como deveres
autónomos do médico e muito mais amplos, mormente para efeito de desvalor
da acção, ao dever de informação.
São deveres autónomos, face ao tipo contratual em causa, que viola o
dever de informação, coma as inerentes consequências perante os outorgantes
titulares do correspectivo direito em relação às quais se formularão pretensões
nas wrongful birth claims.
Os demais deveres existentes, com o fim último de diagnosticar o estado
de saúde do nascituro com o escopo do nascimento de uma criança saudável,
constitui autonomamente um acrescido desvalor da acção do comportamento
médico.
Esta omissão, tendo o médico o dever jurídico de actuar, com diligência
diagnosticando patologias do nascituro para um nascimento saudável, resultante
de contrato, é relevante para efeitos de responsabilidade delitual em que a criança,
nascida com problemas de saúde é lesada, por isto, ou seja, pela falta de saúde.
Sendo que, assim sendo, o desvalor desta conduta médica ultrapassa o
binómio da relação contratual e, portanto, fonte de responsabilidade civil extracontratual em que a criança é lesada, pela falta de saúde, não diagnosticada, como
era exigível.
Neste pressuposto, em nosso entender, radica o fundamento das wrongful life
claims cuja pretensão indemnizatória deve, portanto, ser tutelada, assegurando o
direito à reparação dos danos injustificados que alguém sofra em consequência da
conduta de outrem.
Não está em causa a questão do ser ou não ser mas sim numa conduta ilícita
que ficaria por censurar, porque presa em meandros argumentativos que, em
nosso entender, devem e podem ser arredados da temática.
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