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3 3 VOLUME 1 | NÚMERO 14 | JANEIRO DE 2013 VIII Anuário Brasileiro de Direito Internacional Brazilian Yearbook of International Law Annuaire Brésilien de Droit International 4 Copyright © 2013 by Leonardo Nemer Caldeira Brant/CEDIN Todos os direitos reservados Centro de Direito Internacional – CEDIN EDITOR E DIRETOR DO ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL Leonardo Nemer Caldeira Brant CONSELHO CONSULTIVO E EDITORIAL DO CEDIN Ademar G. Bahadian, Alain Pellet, André de Carvalho Ramos, Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, Antônio Remiro Brotóns, Arthur José Almeida Diniz, Bruno Simma, Celso Lafer, Eduardo Grebler, Fausto Pocar, Francisco Orrego Vicuña, Francisco Rezek, Gilbert Giullaume, Ireneu Cabral Barreto, José Henrique Fischel, Laurence Boisson de Chazournes, Luigi Condorelli, Roy Lee, Vicente Marotta Rangel, Welber Barral. COORDENAÇÃO EXECUTIVA Délber Andrade Lage PRODUÇÃO EXECUTIVA Júlia Soares Amaral e Loni Melillo Cardoso COLABORADORES Bárbara Elisa de Oliveira, Bruno Fernandes de Araújo, Carla Caroline Evangelista Ferrreira do Carmo, Carolina Laboissiere Muzzi, Cristiana Kunstetter Frauche, Deborah Avelar Freitas, Délber Andrade Lage, Hélio Renato Marini Minoda, João Paulo Guerra Vieira, Juliana Valle Pereira Guerra, Larissa Tozelli Corrêa, Laura Cabral de Avelar Marques, Matheus Cid Loureiro Penido, Rafaela Oliveira Calvo, Rodrigo Rocha Feres Ragil. Submissão de Artigos para Publicação | Articles Submissions Admite-se Permuta | Exchanges are Accepted Data Limite para Entrega dos Artigos | Deadline: 04/2014 E-mail | info@cedin.com.br EDITORAÇÃO Pablo Evangelista Rodrigues APOIO Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (www.capes.gov.br) Faculdade Novos Horizontes (www.uihorizontes.br) Fundação Alexandre de Gusmão - FUNAG (www.funag.gov.br) Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG (www.fapemig.br) Ramo Brasileiro da International Law Association - ILA Brasil (www.ilabrasil.org.br) Fundação Konrad Adenauer Stiftung - FKA (www.kas.de/kolumbien/es/) Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais A636 Anuário Brasileiro de Direito Internacional = Brazilian Yearbook of International Law = Annuaire Brésilien de Droit International / Coordenador: Leonardo Nemer Caldeira Brant - v.1, n.1, 2006 - Belo Horizonte: CEDIN, 2006 Semestral 1. Direito Internacional. I. Centro de Direito Internacional. II. Brant, Leonardo Nemer Caldeira. III. Título: Brazilian Yearbook of International Law. IV. Título: Annuaire Brésilien de Droit International. CDU: 341. 5 6 7 SUMÁRIO 09 Apresentação Leonardo Nemer Caldeira Brant 13 A Proteção dos Direitos Humanos do Povo Cigano no Âmbito da União Europeia Ana Marina Castro Costa Carla Ribeiro Volpini Silva 29 O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público Catherine Maia Robert Kolb 73 O Panorama Global de Segurança e as Linhas de Defesa dos Interesses Brasileiros Celso Amorim 89 La Mise En Œuvre De La Convention Internationale Pour La Protection De Toutes Les Personnes Contre Les Disparitions Forcees Emmanuel Decaux 107 127 The Third World, History and International Law Henrique Weil Afonso José Luiz Quadros de Magalhães O Compromisso Internacional do Estado Brasileiro com a FIFA para Sediar a Copa do Mundo de 2014: Razões e Efeitos Jurídicos João Paulo Guerra Vieira CURSO GERAL 147 Reflexão: Interdisciplinaridade, o Ideal Epistemológico das Bases Incontestáveis e o Problema da Prática Friedrich Viktor Kratochwil ANEXOS 167 Pesquisa relativa à jurisprudência da Corte Internacional de Justiça no ano de 2012. Coordenação Geral: Loni Melillo Cardoso 199 Pesquisa relativa aos tratados internacionais assinados pelo Brasil no ano de 2012. Coordenação Geral: Loni Melillo Cardoso O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público Catherine Maia1 Robert Kolb2 Resumo Na medida em que assistimos, nestas últimas décadas, ao ressurgimento de movimentos independentistas por todo o mundo, revela-se particularmente pertinente analisar o estatuto do enclave de Cabinda. Em 2010, a ocorrência de um violento ataque homicida contra a equipa de futebol do Togo durante o Campeonato Africano das Nações evidenciou os argumentos do principal movimento separatista, que reivindicou a independência do território relativamente a Angola. Esses argumentos podem ser reconduzidos a três grupos: em primeiro lugar, Cabinda teria constituído no século XIX um Estado independente com o qual Portugal havia celebrado tratados de protetorado; em segundo lugar, seria nulo o Acordo de Alvor, de 1975, pelo qual Portugal aceitou a incorporação de Cabinda no território do recém-independente Angola; enfim, numa perspetiva contemporânea, cada povo teria um direito à autodeterminação. A análise destes argumentos à luz do direito internacional irá confirmar o estatuto do enclave enquanto província angolana. Abstract While we are witnessing, in recent decades, the revival of independent movements all over the world, it is interesting to analyze the status of Cabinda enclave. In 2010, a violent murderous attack against the Togolese football team during the African Cup of Nations highlighted the arguments of the main separatist movement that claimed the independence of the territory towards Angola. These arguments can be classified into three groups: first, in the nineteenth century, Cabinda would have constituted an independent state with which Portugal would have signed protectorate treaties; secondly, would be null the 1975 Alvor Agreement by which Portugal has accepted the incorporation of the territory of Cabinda into the newly independent state of Angola; and finally, in a contemporary perspective, every people would have a right to self-determination. The analysis of these arguments in the light of international law will come to confirm the status of 1 Catherine Maia é Professora na Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto (Portugal). Também leciona no Instituto de Estudos Políticos (Sciences Po), na Universidade Católica de Lille e na Escola Normal Superior Cachan (França). 2 Robert Kolb é Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Genebra (Suíça). 29 30 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL the enclave as an Angolan province. Résumé Alors que l’on assiste ces dernières décennies au réveil de mouvements indépendantistes partout dans le monde, il est intéressant de s’interroger sur le statut de l’enclave du Cabinda. En 2010, une violente attaque meurtrière contre l’équipe de football du Togo lors de la Coupe d’Afrique des Nations a mis en lumière les arguments du principal mouvement séparatiste ayant revendiqué l’indépendance de ce territoire par rapport à l’Angola. Ces arguments peuvent être classés en trois groupes : tout d’abord, le Cabinda aurait constitué au XIXe siècle un État indépendant avec lequel le Portugal aurait conclu des traités de protectorat ; ensuite, serait nul l’Accord d’Alvor, de 1975, par lequel le Portugal aurait accepté l’incorporation du Cabinda dans le territoire de l’Angola récemment indépendante ; enfin, dans une perspective contemporaine, chaque peuple a le droit à l’autodétermination. L’analyse de ces arguments à la lumière du droit international viendra conforter le statut de province angolaise de l’enclave. Sumário 1. Introdução: Factos, Contexto e Argumentos; 2. A Vertente Pacta Sunt Servanda: A Celebração dos Tratados de Chinfuma (1883), Chicambo (1884) e Simulambuco (1885); 2.1 Princípios Gerais Relativos ao Direito Aplicável; 2.2. Os Factos Relevantes: A História Colonial Relativa a Cabinda; 2.3. O Direito: A Aquisição de Títulos Sobre o Território no Direito Internacional do Século XV ao Século XIX; 2.4. O Valor Jurídico dos Tratados de Protetorado Colonial Celebrados entre Portugal e os Príncipes Indígenas Cabindas; 3. A Vertente Relativa à Nulidade: O Valor Jurídico do Acordo de Alvor de 1975 sobre a Acessão à Independência de Angola; 3.1. Aspetos Gerais; 3.2. Nulidade em Direito Internacional; 3.3. Nulidade em Direito Interno; 4. A Vertente da Autodeterminação: O Direito do “Povo Cabinda” a Dispor de Si Mesmo; 4.1. Aspetos Gerais; 4.2. O Direito à Autodeterminação dos Povos: Externa e Interna; 4.3. O Alegado “Direito à Secessão” em Caso de Perseguições; 5. Conclusões 1. Introdução: Factos, Contexto e Argumentos Em 4 de fevereiro de 2011, a FLEC (Frente para a Libertação do Enclave de Cabinda) proclamou unilateralmente a independência de Cabinda (província de Angola), no seio do Parlamento Europeu, em Bruxelas. Contudo, esta declaração não foi seguida por nenhum reconhecimento de Cabinda como Estado independente. Em 2010, a FLEC havia reivindicado a responsabilidade por ataques violentos contra a equipa do Togo durante a Copa Africana de Nações de futebol. Facto O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público este, que valeu-lhe a condenação. Assim, na 14ª Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da União Africana, em Adis Abeba (Etiópia), que decorreu entre 31 de janeiro e 2 de fevereiro de 2010, foi adotada uma resolução condenando veementemente o ataque terrorista perpetrado no mês precedente na província angolana de Cabinda3. Deste modo, ao invés do reconhecimento como um novo Estado, a FLEC/Cabinda viu-se confrontada com uma firme condenação como movimento terrorista, entre outros pela maior organização política do continente, designadamente a União Africana. O ataque referido contra a equipa do Togo desencadeou uma ação judicial. Em 29 de janeiro de 2010, o Estado togolês decidiu queixar-se em França por ato de terrorismo e assassinatos contra a FLEC bem como contra o seu representante, de nacionalidade francesa. Também Angola apresentou uma queixa em 26 de abril de 2010 e tem sido aberto um inquérito pelo Ministério Público de Paris. A FLEC move-se assim entre uma revindicação à secessão e processos judiciais por atos de terrorismo. No presente artigo, será juridicamente analisado, à luz do direito internacional público, a primeira vertente deste díptico. Nenhum comentário especial é necessário sobre a segunda vertente. O inquérito criminal está em curso e as condenações internacionais dos atos de violência terrorista no Cabinda permanecem. Três argumentos principais têm sido avançados pela FLEC para justificar a independência de Cabinda, ou seja, para fundamentar um direito de secessão com base no princípio da autodeterminação dos povos. São três os argumentos formulados em termos jurídicos. Eventuais argumentos políticos invocados no sentido de tentar justificar a independência não nos devem aqui reter, pois trata-se de analisar a situação estritamente do ponto de vista do direito. O primeiro argumento consiste em defender a ideia de que Cabinda teria sido no século XIX um Estado independente com o qual Portugal celebrou tratados. Esses tratados teriam colocado Cabinda sob um regime de protetorado, o que vedava a possibilidade de a potência protetora proceder, posterior e unilateralmente, à modificação da base territorial dos reinos protegidos em causa. Este argumento diz respeito ao cumprimento dos tratados, de acordo com o princípio pacta sunt servanda. O segundo argumento baseia-se na nulidade do Acordo de Alvor de 1975, pelo qual Portugal aceitou a incorporação de Cabinda no território do novo Estado independente angolano, por força de uma alegada violação não só dos tratados de protetorado celebrados, mas igualmente das disposições ainda em vigor da sua própria Constituição de 1933, os quais reconheciam o enclave como uma província ultramarina distinta de Angola. Este argumento respeita, portanto, à nulidade de um tratado devido a um conflito entre este (Acordo de Alvor) e os tratados anteriores e, ainda, com a Constituição de uma das partes contratantes. O terceiro argumento deriva do segundo. Em consequência da nulidade 3 Assembly/AU/Dec.273(XIV), Rev.1. 31 32 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL do Acordo de Alvor, recolocando as partes no status quo ante, Angola deveria ser considerada como uma potência ocupante no território de Cabinda. Ao povode Cabinda deveria ser reconhecido o seu direito à autodeterminação contra o ocupante. O presente argumento colhe as consequências jurídicas do segundo: em virtude da nulidade do tratado, Angola não é o soberano legítimo de Cabinda, mas uma potência ocupante, contra a qual existe um direito de autodeterminação através da secessão. O objetivo seguido será aqui considerar sucessivamente os três argumentos ora expostos, para compreender o sentido e o alcance do seu valor jurídico: violação de um tratado – nulidade de um tratado – ocupação ilícita. Podemos desde já assinalar o facto de que o segundo argumento não tem qualquer base em direito internacional público: não existe invalidade de um tratado por causa de uma contrariedade entre tratados sucessivos ou, pior ainda, com base no direito interno de um dos contratantes. Deste modo, o terceiro argumento, baseado na aceitação do segundo, decai, sem que seja necessário proceder a uma análise exaustiva (vamos, contudo, examiná-lo, em vista a sermos completo). No fundo, e em bom rigor, apenas subsiste o primeiro argumento, cujo principal defeito prende-se com o seu anacronismo, na medida em que ele supõe um direito moderno dos tratados entre duas entidades igualmente soberanas. Ora, esta conceção não corresponde ao direito da época dos factos, ou seja, ao período colonial. Além da refutação ora exposta dos argumentos apresentados pela FLEC, será ainda possível invocar toda uma série de elementos jurídicos que demonstram manifestamente o título de Angola sobre o território em questão. Não nos vamos privar de os evocar. 2. A Vertente Pacta Sunt Servanda: A Celebração dos Tratados de Chinfuma (1883), Chicambo (1884) e Simulambuco (1885) 2.1. Princípios Gerais Relativos ao Direito Aplicável Entre os argumentos arguidos por parte dos independentistas, vem o facto de que Cabinda teria constituído no século XIX, um protetorado da Coroa Portuguesa em virtude de um conjunto de tratados celebrados entre Portugal e as autoridades indígenas dos três reinos, os quais corresponderiam à época ao território do enclave. Estes tratados teriam fixado um direito que Portugal não podia alterar unilateralmente, em nome do princípio pacta sunt servanda. Para determinar o alcance destes atos jurídicos, deve-se aplicar o princípio geral do direito intertemporal, segundo o qual convém apreciar uma norma à luz do direito em vigor na época da sua criação. As partes podiam e deviam ter como ponto de referência dos seus atos unicamente o direito dessa época, e não um direito futuro que elas, obviamente, não poderiam nem conseguiriam antecipadamente O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público conhecer. Como bem disse o árbitro único, Max Huber, no famoso caso da Ilha de Palmas (ou Miangas) em 1928: “um ato jurídico deve ser apreciado à luz do direito da época, e não à do direito em vigor no momento onde se levanta ou deve ser resolvido um diferendo relativo a este ato”4. Há, contudo, exceções a esta regra. Mas estas são claramente inaplicáveis aqui. Assim, alguns termos devem ser interpretados de forma dinâmica para ter em conta as mudanças do direito. Nestes casos, presume-se que os autores do ato em questão consideravam que os termos evoluíssem com o direito vigente. Tal pode ser o caso de expressões como a “missão sagrada de civilização” em matéria de mandatos internacionais (artigo 22 do Pacto da SdN de 1919)5 ou do termo “comércio” incluído num acordo de 1858 que versava sobre, entre outros, a navegação num rio fronteiriço6. Num e noutro caso, devemos ter em conta eventos ulteriores à conclusão do tratado em causa: a “missão sagrada” de 1919 deve ser adaptada ao direito da descolonização e o “comércio” às mutações do negócio de troca de mercadorias ocorridas desde 1858. Neste caso, não se trata de interpretar determinados termos do tratado, mas o próprio direito aplicável ao tratado como um todo. É indiscutível que o direito do momento da celebração do tratado é decisivo a este respeito. Não existe retroatividade geral do novo direito. Tal “escalabilidade” (ou retroatividade do novo direito) apenas é admitida em certas situações e, excecionalmente, de acordo com a vontade das partes e em conformidade com a interpretação mais razoável de um determinado termo. 2.2. Os Factos Relevantes: a História Colonial Relativa a Cabinda Independentemente do direito da época, ou seja, de finais do século XIX, ao qual teremos de voltar, é necessário situar os factos em que se inscreveram os três tratados invocados, os tratados de Chinfuma (1883), Chicambo (1884) e Simulambuco (1885). A adequação do direito da época deve ocorrer com base nesses factos, que são portanto de conhecimento indispensável. Esses factos têm origem na colonização portuguesa da região. Essa colonização estende-se desde o século XV até ao século XIX. Antes da chegada dos Portugueses no século XV, o território de Cabinda era formado por um conjunto de três reinos, os de Loango, Cacongo e N’goio7. Todos os três foram mantidos numa relação de vassalagem com o Reino do Congo até ao século XVII8, período a partir do qual o poder do Rei congolês viu4 TPA, Ilha de Palmas (ou Miangas) (Estados Unidos c. Países Baixos), sentença arbitral de 04 de abril de 1928 (http://www.pca-cpa.org/upload/files/PCAIsland%20of%20Palmas%20Final%20French.pdf). 5 Caso da Namíbia, CIJ, Recueil, 1971, p. 31. 6 Caso do Diferendo relativo a direitos de navegação e direitos conexos (Costa Rica c. Nicarágua), CIJ, acórdão de 13 de julho de 2009, §§57ss. 7 Ver a este respeito Ernest Gerhard Jacob, Fundamentos da história de África, Lisboa, Aster, 1972, p. 61. 8 Ver: Costa Carneiro, « Cabinda no contexto da “corrida para África” », Ultramar, 1968, vol. 34, 33 34 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL se enfraquecido ao mesmo tempo que se reforçava a presença portuguesa em Angola. Uma vez estabelecido na região, o objetivo de Portugal era gradualmente consolidar a sua hegemonia sobre os príncipes indígenas locais, através de um sistema que combinava relações comerciais e de vassalagem. Este sistema durou até ao século XIX. Neste contexto qualificado de “feudalismo luso-africano”9, a suserania de Portugal em relação ao Congo permitia-lhe indiretamente assegurar-lhe a submissão dos diversos chefes locais indígenas, incluindo nos três reinos da região de Cabinda, eles próprios subordinados ao Rei congolês10. Enquanto disfarçava o vínculo de subordinação atrás de uma garantia formal de amizade igualitária e a promessa de uma eventual defesa militar por Portugal, esta relação de vassalagem permitia à Coroa Portuguesa, para além da primazia da descoberta e de uma posse por vezes meramente simbólica, um reforço do seu domínio territorial à luz do direito internacional da época. Ao longo do século XVI, a presença portuguesa na região manteve-se, no entanto, frágil. Para superar esta fragilidade ao nível dos recursos humanos e materiais no terreno, que não permitia a Portugal assegurar uma posse efetiva dos vastos territórios descobertos, a Coroa Portuguesa soube desenvolver outros tipos de exercício da sua soberania11. Exemplo disso foi o caso da construção de entrepostos comerciais e de pequenas fortificações. Outro exemplo foi o caso de dons para aristocratas12 e de alugueis para comerciantes, que permitiram a Portugal garantir, através de indivíduos agindo em seu nome, que os seus territórios fossem explorados. Os arrendatários e os donatários dos territórios descobertos eram assim transformados em sujeitos ativos da colonização13. pp. 45ss; Sydney R. Welsh, Portuguese and Dutch in South Africa, Cape Town, Juta, 1951, pp. 700ss. Estes autores relatam que a penetração portuguesa nos séculos XVII e XVIII foi facilitada tanto pela dispersão das tribos que habitavam no território de Cabinda como pela suserania do reino do Congo que se tornou ao longo do tempo essencialmente honorífica. 9 António da Silva Rego, O Ultramar Português no século XIX (1834-1910), Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1966, p. 247. 10 Ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos no direito internacional público: o caso do estatuto jurídico do enclave de Cabinda, Lisboa, Edições da Universidade Lusíada, 1998, p. 40. 11Ver James Duffy, Portuguese Africa, Cambridge, Harvard University Press, 1959, pp. 52-53. 12 Como recompensa por sua vassalagem, os chefes locais os mais notáveis receberam dos reis de Portugal títulos de nobreza, que foram na maioria dos casos preservados pelos sucessores. Ver Vicomte de Santarém, Démonstration des droits qu’a la Couronne de Portugal sur les territoires situés sur la côte occidentale d’Afrique entre le 5º degré et 12 minutes et le 8º de latitude méridionale et par conséquent sur les territoires de Molembo, de Cabinda et d’Ambriz, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855, p. 5. 13 Nota-se que, se as pessoas singulares ou coletivas não são sujeitos com capacidade jurídica para ocupar um território, no sentido de estabelecer um direito de propriedade que eventualmente se transformaria num direito de soberania em proveito do seu país de nacionalidade, a sua atividade foi considerada como a “prova da ocupação efetiva dos Estados da sua nacionalidade (se eles estavam agindo como os seus agentes ou sob a sua autoridade)” (Luís Ignacio Sánchez Rodríguez, « L’uti possidetis et les effectivités dans les contentieux territoriaux et frontaliers », RCADI, 1997, vol. 263, p. 247, tradução nossa). Ver, neste sentido, o caso do Estatuto Jurídico do Groenlândia Oriental (Dinamarca c. Noruega), julgado em 1933 pela CPJI (Série A/B, n°53, acórdão de 05 abril de 1933, pp. 62-63). O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público Caído nas mãos dos Holandeses desde 1640, os Portugueses reconquistaram Angola em 1648. Eles expulsam da boca do rio Congo, incluindo de Cabinda, os comerciantes estrangeiros. Em 1784, a construção de uma fortaleza em Cabinda, para demonstrar a posse efetiva de Portugal, é parada por navios de guerra franceses14. No tratado concluído em Madrid em 30 de janeiro de 1786 entre os dois Estados, embora tenha sido obrigado a renunciar a excluir os estrangeiros do lucrativo comércio dos escravos, Portugal obteve da França o reconhecimento da fronteira ao norte da colónia angolana. Esta incluía Cabinda15. Posteriormente, outros tratados de aliança e amizade assinados respetivamente em 19 de fevereiro de 1810 e 22 de janeiro de 1815 entre Portugal e a Inglaterra irão confirmar o reconhecimento da soberania portuguesa sobre esse território16. A estes tratados adicionava-se a menção específica de Cabinda como parte integrante do território de Portugal desde a primeira Carta Constitucional Portuguesa escrita de 182217. Nas Constituições Portuguesas monárquicas de 1826 e de 1838 será retomada uma lista enumerativa dos territórios portugueses já contida na mencionada Carta Constitucional18. Essa enumeração, no entanto, apenas visa uma identificação geográfica da base territorial portuguesa e não fornece informações sobre a natureza administrativa destes territórios (colónias, províncias ou governos gerais). A determinação desses aspetos é remetida para a legislação ordinária19, a qual sempre considerou Cabinda como fazendo parte integrante de Angola. Consequentemente, este território tem sido constantemente gerido administrativa e militarmente a partir de Luanda e não desde Lisboa20. 14 Ver Sydney R. Welsh, Portuguese and Dutch in South Africa, op. cit., p. 701. 15 Ibid., p. 10. 16 Marcelo Caetano, Portugal e a internacionalização dos problemas africanos. História duma batalha: da liberdade dos mares às Nações Unidas, Lisboa, Ática, 1971, pp. 65-67. 17 Para os textos das Constituições portuguesas, ver Jorge Miranda, As Constituições Portuguesas: de 1822 ao texto atual da Constituição, Lisboa, Petrony, 1997. 18 Na Carta Constitucional de 1826, Portugal é designado no artigo 2 como formando o “Reino de Portugal e dos Algarves” e constando da mesma lista de territórios do que na Constituição de 1822. Na Constituição de 1838, a lista de territórios sob soberania portuguesa evolui muito ligeiramente e inclui, de acordo com o artigo 2: “Na África Ocidental, Bissau e Cacheu, o Forte de S. João Baptista de Ajudá na Costa da Mina, Angola e Benguela, e suas dependências, Cabinda e Molembo, as Ilhas de Cabo Verde, as de S. Tomé e Príncipe, e suas dependências; Na África Oriental, Moçambique, Rios de Sena, Baía de Lourenço Marques, Sofala, Inhambane, Quelimane, e as Ilhas de Cabo Delgado”. Além disso, um parágrafo único proclama: “A Nação não renuncia a qualquer outra porção de território a que tenha direito”. A este respeito, nota-se que alguns territórios (Cacheu S. João Baptista de Ajudá, Baía de Lourenço Marques e Sofala) eram simplesmente fortalezas e não verdadeiras colónias ou províncias. 19 O artigo 132 da Constituição de 1826 determina nesse sentido: “A Administração das Províncias ficará existindo do mesmo modo, que atualmente até se acha, enquanto por Lei não for alterada”. Sabe-se que após a insurreição de 19 de janeiro de 1842, a Constituição de 1838 foi abandonada em favor do restabelecimento da de 1826, a qual permaneceu em vigor até ao fim da monarquia em 1910. 20 Neste sentido, é interessante notar que, de acordo com um Decreto de 07 de dezembro de 1836, o qual define os domínios ultramarinos portugueses e consagra enquanto Governos-gerais o Estado da Índia, Cabo Verde, Moçambique e Angola, era reconhecido ao Governador-geral angolano o poder de administração geral de Benguela, bem como de todos os outros territórios da África Austral 35 36 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL Considerações históricas, desprovidas de relevância jurídica, explicam que o Benguela e Cabinda sejam mencionados separadamente de Angola. O primeiro, porque era administrado desde 1779 por um Governador submetido ao Governo-geral angolano21. O segundo, para cumprir um uso então generalizado, consistindo em enumerar exaustivamente na Lei Fundamental cada parcela do território nacional, com vista a evitar qualquer contestação ulterior, numa época em que os títulos territoriais ultramarinos mantinham-se frágeis22. Na Conferência de Berlim de 1884/188523, decisiva para o direito aplicável às colónias e demais dependências, é reconhecida a divisão tripartida do vasto reino do Congo, com o Congo Francês, o Congo Belga e o Congo Português. Para permitir um acesso ao mar ao Congo Belga a partir do porto fluvial de Matadi, uma faixa de terra de 60 km ao longo do rio Congo é concedida por Portugal, que conserva Cabinda, doravante encravado. Esta concessão é formalizada num acordo com Leopoldo II, Rei dos Belgas e novo proprietário do “Estado Livre do Congo”. Na altura da Conferência de Berlim, sobressai portanto claramente o facto de Cabinda ter sido sempre um território dependente diretamente, nos planos administrativo e militar, do Governo-geral de Angola, colocado sob o domínio português24. O Estado Português tem exercido o seu domínio, em primeiro lugar, através de uma suserania indireta sobre os três reinos cabindas, incluídos no vasto reino do Congo, ele próprio numa relação de vassalagem à Coroa Portuguesa, e, depois, pelo arrendamento de terras cabindas a várias personalidades. Por sua vez, os príncipes indígenas cabindas reconheciam igualmente submetidos à Coroa Portuguesa, incluindo Cabinda. Da mesma forma, de acordo com o Decreto de 01 de dezembro de 1869, procedendo a uma nova divisão dos territórios ultramarinos, Cabinda não tinha o estatuto de província, mas permanecia sob a administração de Angola. Ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 55-56. 21 Ver ibid., p. 55, nota 64. 22 Ver ibid., pp. 62ss. De acordo com Carlos Blanco de Morais, no contexto da época, dominado por uma “corrida para a África”, o facto que áreas cobiçadas e periodicamente contestadas, tal como Cabinda, estejam sujeitas a uma menção expressa na Constituição Portuguesa explica-se facilmente pela vontade da Coroa de consolidar a sua soberania. A outra alternativa, que teria consistido em mencionar explicitamente apenas Angola, poderia ter sido interpretada como um ato implícito de desinteresse ou como a confirmação tácita de abandono por parte de Portugal dos portos e feitorias então identificados pelos seus respetivos nomes como possessões portuguesas (ibid., pp. 63-64). 23 Nota-se que a comunidade internacional das “nações civilizadas” que participaram na Conferência de Berlim de 1884-1885 era então composta por 13 Estados europeus (alguns sem nenhuma possessão em África, como os países nórdicos e a Áustria), aos quais se juntaram os Estados Unidos e o Império Otomano, para dar às normas convencionais elaboradas em matéria de ocupação territorial o alcance o mais amplo possível. 24 O Visconde de Santarém relata que o Governo angolano exerceu a sua jurisdição, mais ou menos direta, em Cabinda até a ocupação holandesa de 1641 e, em seguida, dirigiu a operação de reconquista militar deste território em 1648, após a derrota dos Holandeses em Angola. Ver Demonstração dos direitos que tem a Coroa de Portugal sobre os territórios situados na costa ocidental de África entre o 5º grau e 12 minutos e o 8º de latitude meridional e por conseguinte aos territórios de Molembo, Cabinda e Ambriz, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855, §§22-23. Ver igualmente: Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 58-59; James DUFFY, Portuguese Africa, op. cit., pp. 61ss. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público que dependiam diretamente de Angola, tal como evidenciado pelas delegações diplomáticas recebidas pelo Governador-geral angolano em Luanda, em 1853 e 1854, para jurar vassalagem à Coroa Portuguesa e procurar a sua proteção25. Esta breve resenha histórica mostrou que: (1) Cabinda constitui um domínio territorial português, tendo Portugal vindo a consolidar a sua presença colonial na região; (2) Cabinda era administrativamente gerido como uma dependência de Angola, isto é, pelo Governador em Luanda; (3) os príncipes indígenas de Cabinda reconheciam depender diretamente de Angola. 2.3. O Direito: A Aquisição de Títulos Sobre o Território no Direito Internacional do Século XV ao Século XIX A validade em direito internacional dos títulos de aquisição de novos territórios tem evoluído ao longo dos séculos. Este facto não é indiferente, tendo naturalmente consequências sobre os efeitos jurídicos dos tratados celebrados entre Portugal e os reinos cabindas do Cacongo, Loango e N’goio. A este respeito, é possível distinguir quatro grandes períodos em que variaram os títulos para a aquisição de territórios ultramarinos26. Consoante os períodos, os seguintes títulos predominaram: (1) os títulos de bulas papais; (2) as bulas papais e a descoberta, até mesmo a ocupação simbólica; (3) a efetividade da ocupação como exercício in loco de prerrogativas de soberania, com um declínio concomitante dos títulos simbólicos; (4) o exercício efetivo do poder público, agora reconhecido pelos textos como um requisito constitutivo da aquisição do território, e também os acordos com os chefes locais. Como veremos seguidamente, estes períodos não são compartimentados de modo claramente estanque. Os títulos evoluíram com o tempo, sendo que o movimento geral foi do requisito de um título formal (bula papal) para a efetividade da ocupação no terreno. Num primeiro período, antes das grandes descobertas (1300-1450), prevalece o papel central do Papa no processo de doação ex ante ou de legitimação ex post dos territórios descobertos ou ocupados pelas grandes potências europeias27. 25 Ibid., p. 51, nota 60 e p. 61. O Boletim Oficial do Governo-geral da província de Angola de 05 de março de 1853 (n°388) e de 30 de dezembro de 1854 (n°483) deixa perceber claramente o espírito de submissão a Portugal que animada tanto a primeira delegação do reino de Cacongo, como a segunda do reino de N’goio. 26 Ver: Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 65ss; Wilhelm G. Grewe, Epochen der Völkerrechtsgeschichte, Baden-Baden, Nomos, 1984 (The Epochs of International Law, Berlin/New York, De Gruyter, 2000). 27 Paul Fauchille, Traité de droit international public, tome I, Paris, Rousseau, 1922, pp. 686-687. A propósito do papel legitimador das bulas papais, ver Rui de Albuquerque, Os títulos de aquisição territorial na expansão portuguesa, Lisboa, Edição Policopiada, 1960, pp. 207ss. Nota-se que, a partir da Idade Média e durante séculos, o Papado, considerando-se senhor de todos os reinos deste mundo, tem vindo a afirmar que tinha o poder de atribuir aos Estados ambas as terras habitadas como desabitadas. Ver nomeadamente a bula papal de Bonifácio VIII, Unam Sanctam, de 18 de novembro de 1302, proclamando solenemente a supremacia da Igreja sobre os Estados. 37 38 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL Cada uma delas tenta interpretar tão extensiva e favoravelmente quanto possível as bulas papais lhe dizendo respeito. Num segundo período, correspondendo à época dos Descobrimentos (1450-1550), as bulas papais continuam a legitimar a aquisição de novos territórios já descobertos ou ainda por descobrir fora das fronteiras europeias da Respublica Christiana, e, deste modo, a consolidar o título de posse conferida pela descoberta. No entanto, a ocupação e a conquista aparecem gradualmente como um mecanismo complementar, confirmando o título conferido pela descoberta e legitimado pela bula papal28. Pode ser uma ocupação efetiva no território, ou mesmo uma ocupação simbólica, a qual poderia consistir em erigir, nos territórios descobertos, cruzes, monumentos comemorativos ou bandeiras29. Em suma, observa-se paulatinamente o início de um movimento transitando do título formal (bula papal) para a efetividade. Esta última não consiste ainda no exercício de prerrogativas públicas particularmente intensas no território. Tomadas de posse simbólicas ainda podem ser suficientes para o efeito pretendido. Isso é compreensível: grandes áreas ficam para descobrir e parece haver espaço para todos. Num terceiro período (1550-1800), o declínio da autoridade do Papa leva ao enfraquecimento dos títulos territoriais resultantes da descoberta e legitimados por bula papal, mas sem fazê-los desaparecer. Esta situação origina uma relativa insegurança jurídica nesta matéria. As relações de poder entre as potências europeias levaram à cristalização costumeira do título territorial fundado na ocupação ou na posse efetiva. Esta não pode ser apenas simbólica, mas deve ser efetiva30, traduzindo-se especialmente na edificação de fortificações e na realização de atos de soberania para garantir um mínimo de ordem pública e a liberdade comercial31. Em suma, os títulos papais desaparecem; a descoberta não seguida pelo exercício efetivo de prerrogativas públicas já não é suficiente; a ocupação efetiva do território é exigida. A descoberta cria apenas um “inchoate title”, um jus ad occupationem, ou seja, um direito preeminente para efetivamente exercer as prerrogativas públicas. Este exercício é agora a base do título ao território. Portanto, 28 Esta tendência explica que, para um autor como Friedrich von der Heydte, as descobertas não eram em si um jus in re, mas um jus ad rem ou um jus ad ocupationem (ver « Discovery symbolic annexation and virtual effectiveness in international law », American Journal of International Law, 1935, vol. 3, p. 459). 29 Ver: Paul Fauchille, Traité de droit international public, tome I, op. cit., p. 688; Friedrich von der Heydte, « Discovery symbolic annexation (…) », op. cit., p. 452 (os Estados defenderam durante muito tempo a descoberta de territórios enquanto título de soberania, por falta de recursos materiais e humanos para poder realizar uma ocupação imediata). 30 Ver Paul Fauchille, Traité de droit international public, tome I, op. cit., p. 688. Como afirma Luís Ignacio Sánchez Rodríguez, os atos de ocupação efetiva “referem-se a todas as atividades do Estado que, como tal, ‘tendo o título de soberano’, exerce todas as faculdades e prerrogativas que lhe são próprias” (« L’uti possidetis (…) », op. cit., p. 255, tradução nossa). 31 Friedrich von der Heydte salienta, com justa razão, o facto de que mesmo as potências colonizadoras as mais fortes, como a Inglaterra, que insistiam na cristalização da nova norma consuetudinária da aquisição territorial pela ocupação efetiva, também recorreram à descoberta ou à ocupação simbólica quando estes títulos eram à sua vantagem (« Discovery symbolic annexation (…) », op. cit., p. 461). O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público durante este período, os direitos de Portugal em Angola assentam essencialmente na combinação da prioridade da descoberta, do fixar uma bandeira, uma cruz ou uma coluna com as armas da Coroa Portuguesa (padrão), e igualmente nas bulas pontificais. Num quarto período (1800-1919), a ocupação efetiva é consagrada pelo direito internacional, tanto consuetudinário como convencional32. A exigência de um exercício contínuo e pacífico das funções estaduais como elemento constitutivo da soberania territorial aparece explicitamente no Ato de Berlim de 1885. O capítulo VI deste Ato, intitulado “Declaração relativas às condições essenciais a serem preenchidas para que novas ocupações nas costas do continente africano sejam consideradas como efetivas” é composto por dois artigos. O artigo 34 declara: “A potência que, doravante, tome posse de um território localizado na costa do continente africano, e que este não faça parte de suas possessões atuais, ou que, não tenha sido até então posse sua, e venha a adquiri-la, bem como a potência que assuma um protetorado, acompanhará o respetivo ato de uma notificação dirigida às outras potências signatárias do presente Ato, para torná-las capazes de fazer valer as suas reclamações, se for o caso”33. Por outro lado, nos termos do artigo 35: “As potências signatárias do presente Ato reconhecem a obrigação de assegurar, nos territórios ocupados por elas, na costa do continente africano, a existência de uma autoridade suficiente para fazer valer os direitos adquiridos e, dado o caso, a liberdade de comércio e de trânsito conforme condições a serem estipuladas”34. A exigência de uma ocupação efetiva para reivindicar um título de soberania territorial também se encontra no plano doutrinal no Projeto de declaração internacional relativo às ocupações de territórios de 1888 do Instituto Internacional 32 Ver: Charles Rousseau, Droit international public, tome II, Paris, Sirey, 1974, pp. 164ss; James Leslie Brierly, The Law of Nations, New York, Oxford University Press, 1963, p. 167; Marcelo Caetano, Portugal e a internacionalização dos problemas africanos. História duma batalha: da liberdade dos mares às Nações Unidas, Lisboa, Ática, 1971, pp. 70-77 e 111-113. 33O Projeto de declaração internacional sobre as ocupações de territórios de 1888 do Instituto Internacional de Direito Internacional, afirma no artigo 1: “A notificação da tomada de posse faz-se, quer através da publicação na forma que em cada Estado se usa para a notificação dos atos oficiais, quer através dos canais diplomáticos. Esta deve constar da determinação aproximada dos limites do território ocupado”. Nota-se que a notificação mostrou-se rapidamente insuficiente, por si só, para impedir as ambições de potências rivais, de modo que a segurança jurídica ordenava de concluir tratados para uma delimitação clara das fronteiras e a distribuição das zonas de influência, designadamente dos territórios reservados para eventuais futuras ocupações por potências que já ocupavam de forma efetiva um território contíguo. Ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 80-81. 34 Implicitamente, este artigo abria o caminho para eventuais contestações contra os Estados cuja soberania territorial não seria atestada por uma ocupação realmente efetiva. No entanto, tal exigência foi problemática para muitos deles, não só porque a ocupação não era exercida diretamente pelos poderes públicos, mas por particulares e empresas comerciais, mas ainda porque a presença das autoridades públicas limitava-se por vezes apenas aos enclaves costeiros. 39 40 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL do Direito Internacional, que proclama no seu artigo 1: “A tomada de posse é realizada através do estabelecimento de um poder local responsável provido de meios suficientes para manter a ordem e para assegurar o exercício regular da sua autoridade nos limites do território ocupado. Esses meios podem ser emprestados a instituições existentes no país ocupado”35. Além disso, acordos com chefes locais, proporcionando um título consensual, podem até um certo ponto superar as fragilidades na ocupação efetiva. Ao dispensar o protetorado celebrado com os chefes indígenas da necessidade relativa à uma instalação real e permanente da potência colonial e ao exigir-se apenas a sua notificação, este instrumento era reconhecido como equivalente a uma ocupação efetiva. Esta perspetiva será explicitamente reconhecida pelo Instituto Internacional do Direito Internacional no seu Projeto de declaração internacional relativa às ocupações de territórios de 7 de setembro de 188836. Como indica Paul Fauchille, ao comentar os resultados da Conferência de Berlim sobre este ponto, este processo, que é “suficien[te] para salvaguardar e preservar os direitos do Estado protetor” através do envio de um agente ou de um cônsul, possui a grande vantagem de ser muito económico, porquanto dispensa a potência colonial de ter que arcar com os custos e despesas relacionados com uma verdadeira administração do território em causa37. O colapso dos impérios centrais após a Primeira Guerra Mundial, a criação da Sociedade das Nações e a ocupação das colónias africanas da Alemanha pelas potências aliadas não trazem nada de fundamentalmente novo sobre esta matéria. A regra da efetividade é confirmada. Partindo do postulado de que toda a costa de África já estava ocupada e que não havia mais territórios para descobrir, a Convenção de Saint-Germain-en-Laye, de 10 de setembro de 1919, no seu artigo 13, revoga o Ato de Berlim de 26 de fevereiro de 1885, bem como o Ato Geral e a Declaração de Bruxelas de 2 de julho de 189038. As potências signatárias (Bélgica, 35 O texto do projeto está disponível no site do Instituto: http://www.idi-iil.org/idiF/resolutionsF/1888_ lau_02_fr.pdf. 36 Nos termos do artigo 1 desse Projeto: “A ocupação de um território a título de soberania só pode ser reconhecida como efetiva se satisfizer as seguintes condições: 1. A tomada de posse de um território confinada dentro de certos limites, feita em nome do Governo; 2. A notificação oficial da tomada de posse. (...)”. O artigo 2 precisa: “As regras enunciadas no artigo anterior são aplicáveis no caso onde uma potência, sem assumir a inteira soberania de um território e mantendo, com ou sem restrições, a autonomia administrativa indígena, colocaria o território sob o seu protetorado”. 37 Paul Fauchille, Traité de droit international public, tome I, op. cit., p. 777. Ver igualmente no mesmo sentido: Frantz Despagnet, Essai sur les protectorats. Étude de droit international, Paris, Librairie de la Société du recueil général des lois et des arrêts, 1896, pp. 219ss; William E. HALL, A Treatise on the Foreign Powers and Jurisdiction of the British Crown, Oxford, Clarendon Press, 1894, p. 214; John WESTLAKE, Études sur les principes de droit international, Paris, Thorin & fils, 1895, p. 194. 38 O Ato de Berlim, inicialmente previsto para 20 anos, foi revisto apenas cinco anos após a sua adoção pelo Ato e a Declaração de Bruxelas de 1890. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público Estados-Unidos da América, França, Itália, Japão, Reino Unido, Portugal) “reconhecem a obrigação de manter nas regiões sob a sua autoridade, a existência de um poder e de meios policiais suficientes para proteger as pessoas e os bens e, dado o caso, a liberdade de comércio e de trânsito” (artigo 10). Elas “continuarão a assegurar a conservação das populações indígenas e a melhoria das suas condições morais e materiais; elas se esforçarão, em particular, para assegurar a supressão completa da escravatura em todas as suas formas e o tráfico dos negros, na terra e no mar” (artigo 11)39. Através destas disposições, a ocupação efetiva estabeleceu-se definitivamente como o título de aquisição territorial pertinente em direito, inclusive em relação a territórios pouco acessíveis onde a instalação iria encontrar grandes dificuldades, como será confirmado no plano jurisprudencial no caso da Ilha Clipperton, em 1931,40 e no caso do Estatuto jurídico do Groenlândia Oriental, em 193341. 2.4. O Valor Jurídico dos Tratados de Protetorado Colonial Celebrados entre Portugal e os Príncipes Indígenas Cabindas Por causa dos incidentes que nunca deixaram de marcar a corrida para a África, especialmente com Inglaterra, Portugal tem constantemente procurado reforçar a sua soberania territorial sobre as suas diversas possessões, quer pela sua inscrição na Constituição, pelo reforço da sua presença militar no terreno ou ainda pela celebração de tratados de protetorado, como foi o caso dos acordos com os 39 Texto da Convenção disponível em: http://www.archive.org/stream/conventionrevisi00greaiala/ conventionrevisi00greaiala_djvu.txt. 40 TPA, Îlha de Clipperton (México c. França), sentença arbitral de 28 de janeiro de 1931, Recueil des sentences arbitrales, vol. II, pp. 1105-1111 (http://untreaty.un.org/cod/riaa/cases/vol_II/1105-1111.pdf). Nesta sentença, pronunciada pelo Rei Victor-Emmanuel III da Itália, afirma-se: “(...) em virtude de um uso imemorial com força de lei, além do animus occupandi, a tomada de posse material e não-fictícia é uma condição necessária da ocupação. Esta tomada de posse existe com o ato ou a série de atos pelos quais o Estado ocupante reduz à sua disposição o território em questão e fica em posição de fazer valer a sua autoridade exclusiva” (p. 1110). No caso desta ilha desabitada e de difícil abordagem, o árbitro contentou-se de uma “proclamação” feita em nome da França, acompanhada por um desembarque, bem como por registos geográficos seguidos de inspeções, afirmando que “se um território, pelo facto que estava totalmente desabitado, é desde o primeiro momento que o Estado ocupante fez lá a sua aparição, à disposição absoluta e incontestada desse Estado, a tomada de posse deve ser considerada a partir desse momento como realizada e a ocupação como acabada por isso mesmo” (idem). 41 TPJI, Estatuto Jurídico da Groenlândia Oriental (Dinamarca. Noruega), acórdão de 05 de abril de 1933. Neste caso, o Tribunal declarou: “Uma reivindicação de soberania fundada (...) apenas no exercício continuado da autoridade implica dois elementos cuja existência, para cada um, deve ser provada: a intenção e a vontade de agir em qualidade de soberano e algumas manifestações ou exercícios efetivos desta autoridade. Esta manifestação deve ser suficiente, dadas as circunstâncias factuais, nomeadamente geográficas; elas devem ser superiores a qualquer outra manifestação emanando de outro Estado” (pp. 45-46). Neste caso, onde estava em causa um habitat limitado e disperso, o Tribunal aceitou a pretensão dinamarquesa fundada em alguns factos de ocupação sumários e episódicos. 41 42 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL príncipes cabindas de Cacongo, Loango e N’goio entre 1883 e 1885. O objetivo era consolidar os antigos títulos resultantes da descoberta e da posse imemorial através de novos títulos que comprovavam, para além de qualquer dúvida, uma ocupação efetiva, não só da costa, mas também do interior das terras42. Ora, são precisamente esses títulos que serão considerados durante a negociação e a conclusão de tratados bilaterais por Portugal para a demarcação das fronteiras de Angola, um com o novo Estado independente do Congo em 14 de fevereiro de 1885, outro com a França em 12 maio de 1886, e outro ainda com a Alemanha em 30 de dezembro de 1886. Qual era a natureza dos protetorados “consentidos” por Portugal em Cabinda com os tratados de Chinfuma de 29 de setembro de 1883, de Chicambo de 26 de dezembro de 1884 e de Simulambuco de 01 de fevereiro de 188543? Três protetorados foram estabelecidos com príncipes distintos sobre os três reinos vizinhos respetivamente de Cacongo, Loango e N’goio. Estes últimos correspondiam às extensões territoriais das feitorias que, desde 1822, estavam incluídas nas Constituições Portuguesas como fazendo parte do território nacional. Desde o século XVI, eram administrativamente qualificados pelo Conselho Ultramarino Português como “posse e conquista do reino de Angola”44. Apesar da sua denominação, estes “tratados” não equivaliam a tratados, nas devidas condições entre sujeitos de direito, destinados a produzir efeitos jurídicos regidos pelo direito internacional. Numa comunidade internacional então composta por “nações civilizadas” soberanas e iguais, o protetorado colonial era considerado como um simples acordo entre um Estado e uma entidade desprovida de personalidade jurídico-internacional, ou seja, não reconhecida como um sujeito de direito internacional45. Para além da sua relevância jurídica indireta em direito internacional, enquanto título territorial, este tipo de protetorado possuía relevância apenas no sistema jurídico interno da potência colonial administrando o território indígena em causa46. Trata-se aqui de um ponto capital: estes acordos não 42 Ver Marcelo Caetano, Portugal e a internacionalização (…), op. cit., p. 119. 43 Parece resultar dos signatários do Tratado de Simulambuco que o trono do reino de N’goio (ou de Cabinda em sentido estrito), então vago, estava governado por uma regência compartilhada entre três pessoas. Sobre este tratado, ver Costa Carneiro, « Cabinda no contexto da “Corrida para a África” », Ultramar, 1968, vol. 34, p. 47. De acordo com Domingues José Franque, oficial honorário do exército português, foi Manuel António da Silva, um comerciante português beneficiando da confiança dos Cabindas e agindo em seu nome, que teria realizado as diligências preparatórias para a redação deste tratado junto do Governador-geral de Angola. Ainda segundo este autor, a ocupação portuguesa para o interior, na sequência da assinatura do tratado, foi particularmente bem acolhida pela população autóctone, porque vinha acabar com rivalidades intestinas devidas à ausência de rei (Nós os Cabindas, Lisboa, Editora Argo, 1940, pp. 67-70). 44 Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 89-90. 45 Ver nomeadamente Charles Rousseau, Droit international public, tome II, Paris, Sirey, 1974, p. 20. À luz do direito da época, antes da assinatura dos três tratados de protetorado, Cabinda não podia, portanto, ser considerado como um Estado independente. 46 A doutrina é unânime em reconhecer que este tipo de acordos incorporava-se no direito interno das potências que os concediam. De facto, à luz do direito internacional da época, uma vez esses tratados notificados aos outros participantes da Conferência de Berlim, o Estado signatário exercia a sua soberania O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público eram considerados como tratados incorporados no direito internacional. Este era o apanágio apenas das “nações civilizadas”, admitidas para os “benefícios do direito público” da Europa mediante um reconhecimento como Estados. Tal não era nitidamente o caso dos príncipes locais africanos, pertencentes, na terminologia da época, à humanidade “selvagem”. Os acordos em causa, não dizendo respeito ao direito internacional público, faziam assim parte do direito interno português. Não há nenhum modo mais claro para enfatizar a desigualdade essencial das partes contratantes que o de conceber o acordo celebrado como um ato de direito interno de um dos contratantes. Não se trata aqui de legitimar este facto, mas simplesmente de tomar conhecimento do mesmo, como sendo parte integrante do direito vigente aplicável naquela época. Essas características refletem-se claramente, tanto nas petições que levaram à conclusão dos Tratados de Chinfuma, Chicambo e Simulambuco, como na própria letra dos Tratados47. Assim, ao lado da assinatura dos plenipotenciários de Portugal48, aparecem as assinaturas dos príncipes e governadores, considerados como os chefes indígenas de domínios aceitando livremente a autoridade da Coroa Portuguesa49. Portugal é o único a ser qualificado como “nação” soberana, enquanto os chefes indígenas governam “territórios” ou “países”, na aceção de comunidades sobre o território em causa, com a obrigação de dotá-lo de uma autoridade e com o direito de anexá-lo. Ver: Isaac Paenson, Manual of the Terminology of Public International Law (peace) and International Organizations, Bruxelas, Bruylant, 1983, pp. 65ss; Jan Hendrik Willem Verzijl, International Law in Historical Perspective, tome I, Leiden, Sijthoff, 1968, p. 414; James Leslie Brierly, The Law of Nations, op. cit., p. 171 (a distinção entre um protetorado colonial imediatamente destinado à anexação e uma colónia é tão difícil de fazer em direito internacional que ela cabe mais ao direito constitucional). Assim, embora se tenha procurado estabelecer uma distinção entre a colónia e o protetorado colonial, a primeira como território anexado a uma potência e o segundo como posse virtual com um direito à ocupação (Frantz Despagnet, Essai sur les protectorats, Paris, Larose & Furlel, 1896, p. 42), a maioria dos juristas reconhece que os protetorados nada mais são do que colónias disfarçadas (Alexandre Merignhac, Traité de droit international public, Paris, Pichon, 1907, p. 183), cuja maior parte conduz a uma anexação (James Leslie Brierly, The Law of Nations, op. cit., p. 62; Charles Henry Alexandrowicz, The European-African Confrontation, Leiden, Sijthoff, 1973, pp. 100-111). 47 Neste sentido, ver: A independência de Cabinda, op. cit., pp. 38-39; André Gonçalves Pereira, Fausto de Quadros, Direito internacional público, Coimbra, Almedina, 1995, pp. 350-351 (o Tratado de Simulambuco deve ser classificado na categoria dos protetorados coloniais); Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 121-124 (os tratados de Chinfuma, de Chicambo e de Simulambuco utilizaram fórmulas padrões em uso no século XIX em matéria de convenções que estabeleciam protetorados coloniais). 48 Os plenipotenciários da Coroa Portuguesa na concessão dos três tratados foram, respetivamente, o tenente capitão do exército Guilherme Augusto de Brito Capello, comandante da corveta “Rainha de Portugal”, para os Tratados de Chinfuma e Simulambuco, e o segundo tenente José Emílio Silva dos Santos, chefe da estação civilizadora em Cacongo e Massambe, para o Tratado de Chicambo. O preâmbulo dos tratados também afirma que os contratantes portugueses atuam como delegados do Governo Português. 49 Os signatários indígenas, cujo nome aparece ao lado de sua assinatura em cruz, são regentes, príncipes e governadores. Todavia, nenhum é designado enquanto rei de Cacongo, Loango ou N’goio, o que confirma a ideia de que os reinos estavam então a atravessar uma fase crítica na ausência de monarca. 43 44 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL de populações, às quais não é reconhecida a qualidade de Estados soberanos50. Além disso, o objeto dos tratados é claramente o de estabelecer um “protetorado” de tipo colonial, uma vez que os chefes indígenas proclamam voluntariamente o reconhecimento da soberania de Portugal sobre os seus territórios51, inclusive solicitando tornarem-se oficialmente sujeitos dele, como já o eram por costume e amizade52. Em rigor, estes tratados não vieram, portanto, constituir um novo estatuto para Cabinda, mas declarar solenemente uma situação já existente com os acordos de vassalagem múltiplos, desta vez sob a denominação explícita de “protetorado”53. O que constitui somente uma renovação dos laços de dependência explicase facilmente à luz do contexto político da época. De facto, desde a segunda metade do século XIX, a ocupação efetiva como princípio de aquisição e de manutenção da titularidade territorial já estava bem estabelecida em direito internacional geral. No entanto, os constantes conflitos entre Portugal e a Grã-Bretanha na região da foz do Congo, especialmente o fracasso em 1884 da celebração de um tratado de tréguas entre os dois Estados, obrigaram a Coroa Portuguesa a passar de uma posse simbólica, exercida principalmente através de feitorias na costa, a uma posse efetiva. Esta última, em conformidade com os usos em vigor, concretizou-se através da celebração com os chefes indígenas cabindas de tratados de protetorados. Estes acordos permitiam-lhe provar o seu animus possidendi nos territórios em causa terum título incontestado de soberania sobre a costa e no interior da região54, 50 Neste sentido, é interessante realçar o facto de que o artigo 6 dos três tratados qualifica as autoridades signatárias representando os reinos de Cabinda de “príncipes e outros chefes indígenas”, expressão que, de acordo com o direito consuetudinário e a doutrina do século XIX, designava os povos classificados como “não civilizados” e, como tal, desprovidos de poder soberano. Ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., p. 114. 51 Artigos 1 e 3 dos três tratados. 52 Petição de tratado do Tratado Simulambuco de 1885. 53 Sem excluir o facto de que os tratados permitissem reduzir a autonomia interna dos territórios sob protetorado em vista da sua ocupação efetiva, no momento da sua conclusão o seu objeto consistia principalmente em reconhecer a autoridade interna dos chefes indígenas, concretizada por um poder de auto-administração mínima (ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., p. 116). Quanto aos outros compromissos, são particularmente reveladores do exercício da soberania portuguesa sobre os territórios colocados sob a sua proteção: a obrigação do Governo Português de proteger os comerciantes de todas as nações que se estabeleciam nos territórios de Cabinda, sem prejuízo de proceder como considerar necessário no caso de se tentar destruir o domínio de Portugal nestas áreas (artigo 5 dos Tratados); o compromisso das autoridades portuguesas em proteger as relações comerciais e as missões religiosas e científicas, e em não permitir o tráfico de escravos (artigo 7); e a obrigação dos chefes indígenas de não ceder terrenos a representantes de nações estrangeiras (artigo 6). A proibição do comércio de escravos, a proteção do comércio lícito e o exercício dos direitos de soberania constituíam, aliás, os objetos usuais dos tratados de protetorado colonial naquela época (ver Marcelo Caetano, Portugal e a internacionalização dos problemas africanos, Lisboa, Ática, 1971, p. 71). 54 Na perspetiva da abertura iminente da Conferência de Berlim, o objetivo para Portugal, com esses tratados de protetorado, era obter rapidamente títulos incontestáveis de posse efetiva que poderia invocar na posterior determinação, por tratados bilaterais com as outras potências europeias, das zonas de influência e das fronteiras dos territórios sob a sua soberania. Assim, na sequência da aprovação do O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público mesmo antes da abertura da Conferência de Berlim55. Vimos que os “tratados” aqui em causa faziam parte do direito interno português. Mas qual era o valor jurídico exato desses “tratados” de protetorado para Portugal? Será que esses tratados obrigavam o Estado protetor, no sentido de o vincular em virtude do seu direito interno? Algum valor jurídico era reconhecido aos tratados de protetorado colonial, sem que haja, contudo, unanimidade quanto ao âmbito exato desse valor. Ele variou de um simples alcance como facto jurídico, enquanto atos facultativos para uma apreensão efetiva, para ir até um verdadeiro alcance jurídico como contratos de direito interno formalizando a aceitação de um laço de dependência por uma parte, cujo consentimento devia ser livre e esclarecido56. No entanto, na ausência de um expressa receção de tais “tratados” pelas Constituições das potências colonizadoras (o que nunca aconteceu), ou ao nível legislativo por leis ordinárias retomando o conteúdo das respetivas obrigações no direito nacional, nenhuma sanção era possível em caso de incumprimento57. Em relação aos Tratados de Chinfuma, Chicambo e Simulambuco celebrados com os chefes indígenas cabindas, estes nunca foram objeto de uma qualquer transposição legislativa para o direito nacional português. Portanto, eles não tiveram qualquer caráter juridicamente vinculativo para Portugal. Enquanto atos internos visando comprovar a soberania territorial da Coroa Portuguesa, a sua validade destinava-se a acabar com a realização do seu propósito, ou seja, a anexação58. No plano do direito constitucional, em primeiro lugar, esses acordos não Ato Geral da Conferência de Berlim, e enquanto os seus signatários tinham reconhecido o novo Estado independente do Congo, cuja criação ameaçava a soberania portuguesa sobre uma parte do reino de N’Goio perto do rio Congo, a Coroa Portuguesa celebrou com o Estado do Congo (em 14 de fevereiro de 1885 e em 25 de maio de 1891) e com a França (em 12 de maio de 1886) tratados fixando a fronteira de Angola na região de Cabinda (ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 123-125). Para evitar a celebração de tratados viciados por erro, dolo ou coação, é interessante salientar a presença de testemunhas de outros Estados, como foi o caso de oficiais do exército britânico, identificados no preâmbulo do Tratado de Chinfuma em conformidade com uma prática nomeadamente seguida pelos Franceses desde o século XVII, bem como a indicação de que os tratados foram explicados às autoridades indígenas por intérpretes e, portanto, livremente consentidos (petições dos Tratados de Chinfuma e Chicambo e disposições finais do Tratado de Simulambuco, após as assinaturas). 55 A importância do contexto histórico ressalta muito claramente da petição que levou à conclusão do Tratado de Simulambuco, em 1885, a qual começa com estas palavras: “Nós abaixo assinados, Príncipes e Governadores de Cabinda, sabendo que na Europa se trata de resolver, em conferência de embaixadores de diferentes potências, questões que diretamente dizem respeito aos territórios da Costa Ocidental de África, e por conseguinte, aos destinos dos seus povos (…)”. 56 A importância dada ao facto de que o consentimento dos chefes indígenas não seja fictício encontrase na sentença arbitral proferida pelo Barão de Lambermont no caso da Ilha de Lamu, (Revue de droit international et de législation comparée, 1890, vol. 2, pp. 22 e 354ss). Ver igualmente: Paul Fauchille, Traité de droit international public, tome I, op. cit., pp. 700ss; Alexandre Merignhac, Traité de droit international public, op. cit., pp. 436ss; Henri Bonfils, Manuel de droit international public, Paris, Rousseau, 1912, pp. 230ss. 57 Ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., p. 110. 58 Ver ibid., p. 125. 45 46 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL implicam qualquer alteração no estatuto jurídico dos territórios em causa. Mesmo antes da aprovação da primeira Constituição escrita portuguesa de 1822, estes territórios eram considerados como “domínios”, “conquistas” ou “propriedades”, que faziam parte das divisões territoriais designadas como “capitanias”, “governos militares” “colónias” ou “províncias ultramarinas”59. Esta situação continuou até à Revolução dos Cravos de 1974. Ademais, em direito interno português, Cabinda tem sido constantemente mencionado no contexto do domínio de Angola, tal como na Lei de 18 de julho de 188560; em 1932, o enclave de Cabinda recebe o estatuto de intendência, mantendo-se diretamente subordinado ao Governadorgeral de Angola; o artigo 1 da Constituição de 1933 o menciona no “domínio colonial português” em conexão com Angola; Cabinda mantém lá o seu estatuto de intendência submetida à administração angolana, antes de voltar a ter o de distrito angolano em 193461; conforme o Decreto nº40.225 de 05 de julho de 1955, que aprova o estatuto da província ultramarina de Angola, o distrito de Cabinda, com sua capital localizada na cidade epónima, é um dos treze distritos de Angola; de acordo com a última regulamentação estabelecida pelo Decreto nº544/72 de 22 de dezembro de 1972, Angola foi honorificamente elevada ao estatuto de Estado, novamente sem alteração da situação administrativa de Cabinda62. Mesmo admitindo a validade internacional dos “tratados” de protetorado colonial, é apenas este estatuto jurídico do território cabinda em virtude do direito colonial português que viria s ser decisivo. Assim, em nenhum momento da sua história, Cabinda teve o estatuto de Estado independente. Mesmo imaginando o caso hipotético de uma restauração do status quo ante do enclave, tal como existia no momento da conclusão dos tratados de protetorado há mais de 130 anos, não haveria um protetorado, mas sim três protetorados, correspondendo aos antigos reinos de Cacongo, Loango e N’goio, ou seja, três territórios hoje parcialmente amputados de parcelas tendo integrado a RDC e a República do Congo-Brazzaville. Além das dificuldades inextricáveis que surgiriam com esses Estados vizinhos63, tais “tratados” seriam hoje muito 59 José Gonçalo Santa Rita, « As parcelas do Portugal ultramarino na nomenclatura constitucional », Estudos coloniais, 1948-1949, vol. 1, pp. 10ss. 60 A lei de 18 de julho de 1885 (Boletim Oficial do Governo-geral de Angola, nº40) punha assim em causa a integridade territorial dos três protetorados, não só através da fusão dos três reinos entre eles, mas também através da sua ligação a outros territórios angolanos ao sul do rio Congo. Sem que se possa falar de anexação, na medida em que estes três reinos desde muito tempo estavam submetidos à soberania de Portugal, esta lei iniciava um processo de assimilação administrativa do enclave de Cabinda. Esta assimilação ocorria, aliás, gradualmente, desde que Portugal foi progressivamente integrando as autoridades indígenas na administração e no exército. Ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 130ss. 61 Decreto-Lei n°571 de 24 de fevereiro de 1934. 62 Enquanto alguns setores políticos têm tentado introduzir, quer na legislação orgânica do ultramar, quer no estatuto de Angola, um regime especial permitindo que Cabinda goze de uma maior autonomia administrativa, a oposição constante do Governador-geral de Angola tem impedido qualquer iniciativa nessa direção. Ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., p. 135. 63 A este respeito, a FLEC fica silenciosa sobre o ponto de saber se viria a reclamar a esses Estados a O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público provavelmente considerados como nulos em razão da sua violação face à norma imperativa posterior (jus cogens superveniens) que consagra o direito dos povos a dispor de si mesmos, em virtude de uma aplicação por analogia do artigo 64 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT) de 1969. Apesar das numerosas vicissitudes que atingiram Cabinda, sucessivamente incorporado no distrito do Congo, intendência dependente do Governador-geral de Angola, e depois distrito de pleno direito, deve concluir-se que, desde os Tratados luso-cabindas dos anos 1880, os territórios incluídos no enclave de Cabinda fizeram constantemente parte da colónia, província e depois Estado de Angola64. Ora, tendo constantemente feito parte da colónia portuguesa de Angola, Cabinda só pode compartilhar o seu destino no momento da independência do povo angolano, respeitando o princípio do uti possidetis juris65, que exige o respeito pelas antigas fronteiras coloniais para o estabelecimento das fronteiras externas do novo Estado soberano. 3. A Vertente Relativa à Nulidade: O Valor Jurídico do Acordo de Alvor de 1975 sobre a Acessão à Independência de Angola 3.1. Aspetos Gerais Com a Revolução dos Cravos do 25 de abril de 1974, a queda do regime de Salazar, que dominou Portugal desde 1933, permite a organização de uma conferência em Alvor (Portugal) em janeiro de 197566, com a participação dos devolução das parcelas em causa. No seu documento de 1992, Trâmites para a libertação do Estado de Cabinda (reproduzido na obra de Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 375-382), as contradições são flagrantes, pois ela reclama ao mesmo tempo o direito de negociar diretamente com Angola a sua independência, na sua alegada qualidade de ex-protetorado português independente (o que nunca foi) (ponto 6), mas também requer que seja Portugal, e não Angola, que reconheça a sua independência (ponto 1). 64 Como indica Carlos Blanco de Morais, os movimentos cíclicos, alternadamente de fusão e de autonomização, cujo enclave de Cabinda tem sido objeto desde 1885 em relação ao distrito do Congo, foram motivados por simples comodidades de administração local (A autodeterminação dos povos (…), op. cit., p. 136). 65 O significado deste princípio é o seguinte: “Regra de direito internacional nascida em América Latina e ligada ao fenómeno da acessão à independência das colónias, em virtude [da qual] os Estados nascidos da descolonização sucedem nos limites que eram os deles quando eles estavam sob a administração do Estado colonial (sejam esses limites fronteiras então estabelecidas internacionalmente por tratados ou meros limites administrativos decididos unilateralmente pela metrópole)” (Jean salMon (éd.), Dictionnaire de droit international public, Bruxelas, Bruylant, 2001, p. 1123, tradução nossa). 66 A comunicação do Governo da República Portuguesa entregue por ocasião do caso de Timor-Leste apresenta passagens esclarecedoras sobre este período conturbado na história do país: “1.10 A Revolução Democrática de 25 de abril de 1974, conhecida como a ‘Revolução dos Cravos’, fruto da luta e de uma esperança para a restauração da democracia desde há décadas, teve por causa imediata a guerra colonial. A Revolução foi desencadeada por jovens oficiais (capitães e majores) que, percebendo a falta de sentido desta guerra sem fim e à qual já não acreditavam, 47 48 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL principais dirigentes angolanos, com exceção de qualquer formação política cabinda. Com o Acordo de Alvor, o Estado Português aceita a transferência da soberania à Angola67, fixando ao 11 de novembro de 1975 – a pedido dos movimentos de libertação nacional angolanos – a sua acessão à independência68. O Acordo de Alvor organizam-se no Movimento das Forças Armadas (MFA). É a razão para a qual, além do retorno à democracia, nomeadamente através da eleição de uma Assembleia Constituinte, o principal objetivo definido pelo Programa do MFA era justamente buscar uma solução política, e não militar, ao problema colonial. A descolonização alimentava a alma da Revolução. Nota-se aqui duas consequências principais da Revolução: a) por um lado, depois de uma hesitação inicial muito curta, a Revolução conduziu a um compromisso incondicional de Portugal no sentido de reconhecer o direito dos povos coloniais de dispor de si mesmos e da promoção do seu exercício; e b), por outro lado, explodindo depois de quase meio século (1926-1974) de ditadura e de regime autoritário, ela produziu, durante mais de um ano e meio (até ao fim de novembro de 1975), uma situação interna de profunda instabilidade. 1.11 A Revolução trazia nela, desde o início, um conflito potencial. Como dissemos, foi desencadeada por jovens oficiais que tinham criado o Movimento das Forças Armadas, sob a liderança política de uma ‘Comissão coordenadora’. Durante meses, de junho a novembro, (...) Portugal esteve à beira de uma guerra civil. 1.13 Depois do 25 novembro de 1975, a disciplina nas forças armadas pôde ser gradualmente restaurada. O Governo pôde doravante exercer progressivamente as suas funções sem impedimento e a Assembleia Constituinte concluir os seus trabalhos. Em 02 de abril de 1976, a Constituição foi aprovada. Entrou em vigor em 25 de abril, no mesmo momento em que ocorreu a eleição da Assembleia da República. Seguiram a eleição do Presidente da República (o Presidente Eanes) e a nomeação do primeiro Governo Constitucional, sob a presidência do Sr. Mário Soares. 1.14 (…) Se a instabilidade revolucionária nunca pôs em causa a definição da política de descolonização de Portugal, processo irreversível desde julho de 1974 levantou, no entanto, dificuldades na sua implementação, especialmente nos casos de Angola e Timor. (…) 1.16 Uma vez resolvido o problema no plano interno, o Governo Português, através do Ministro dos Negócios Estrangeiros, enviou ao Secretário-geral das Nações Unidas um memorando, datado de 03 de agosto de 1974, pelo qual o Governo Português, ‘reafirmando as suas obrigações em relação ao capítulo XI da Carta das Nações Unidas e em conformidade com a Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral..., compromete-se em cooperar plenamente com a Organização das Nações Unidas para a aplicação das disposições da Carta, da Declaração e das Resoluções pertinentes no que respeita aos territórios sob administração portuguesa’. (…) 1.17 Ficava a questão de saber como promover o exercício, pelos povos coloniais sob administração portuguesa, do seu direito de dispor de si mesmos. Uma regra foi colocada: a de agir por meio de acordo. (…) 1.19 Em Angola, o terreno estava ocupado por três movimentos de libertação (o MPLA, a UNITA e a FNLA). Portugal conseguiu assinar um acordo global com eles (Acordo de Alvor do 15 de janeiro de 1975), pelo qual se previa a criação de um Governo de Transição (que entrou efetivamente em funções) e a eleição, anteriormente à independência, de uma Assembleia Constituinte. A rutura entre os movimentos fez obstáculo à plena execução do Acordo”. CIJ, Timor oriental (Portugal c. Austrália), comunicação do Governo da República Portuguesa, 18 de novembro de 1991, vol. I, p. 11 (disponível em: http://www.icj-cij.org/docket/files/84/6834.pdf). 67 Artigo 2: “O Estado Português reafirma solenemente o reconhecimento do direito do povo angolano à independência”. 68 De acordo com o artigo 4: “A independência e a plena soberania de Angola serão solenemente proclamadas em 11 de novembro de 1975, em Angola, pelo Presidente da República Portuguesa ou por seu representante expressamente designado”. O artigo 5 acrescenta: “O poder será exercido, até à proclamação da independência, pelo Alto-Comissário e por um Governo de transição, que tomará posse em trinta e um de janeiro de 1975”. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público é um tratado internacional. Os “movimentos de libertação nacional” reconhecidos são dotados de uma personalidade jurídica internacional limitada, sendo essa ao mesmo tempo funcional, visando apenas o acesso à autonomia ou à independência, e temporária, mantendo-se o tempo necessário para a transformação do território não-autónomo em Estado. Assim, a sua capacidade jurídica para celebrar acordos é estritamente limitada ao objetivo de fazer aceder o povo dependente à plena soberania, com a exclusão da busca por outras finalidades69. No caso do Acordo de Alvor, o objetivo expressamente proclamado no preâmbulo é a negociação do processo e do calendário para a acessão de Angola à independência. Da mesma forma, um acordo para organizar a independência de um território não-autónomo só produz efeitos jurídicos até essa independência, data em que uma das partes contratantes – ou seja, o movimento de libertação nacional – deixa de existir para dar lugar a um Estado, enquanto o direito à autodeterminação do povo colonizado que representava é considerado como realizado. Concretamente, a conclusão de um acordo para a independência representa para o movimento de libertação nacional a última manifestação da sua existência como sujeito de direito internacional transitório, sendo o povo em cujo nome atuava posteriormente representado pelo novo Estado. Por conseguinte, o Acordo de Alvor concluído em 15 de janeiro de 1975, independentemente da questão de saber se foi devidamente implementado, deixou de vigorar em 11 de novembro de 1975, dia da proclamação oficial da independência de Angola. A existência do novo Estado soberano angolano, cujo território abrange o enclave de Cabinda, será mais tarde confirmada nas suas fronteiras atuais através dos reconhecimentos (declarativos no caso de um Estado), do qual ele será rapidamente objeto, antes de ingressar a ONU como Estado Membro em 01 de dezembro de 1976. Tanto o documento Trâmites para a libertação do Estado de Cabinda enviado pela FLEC em 1992 às autoridades portuguesas, como os vários blogs favoráveis à independência de Cabinda, sustentam, no entanto, a nulidade do Acordo de Alvor. 3.2. Nulidade em Direito Internacional Antes de mais, o Acordo de Alvor seria nulo no plano internacional por causa da sua violação dos Tratados de protetorado luso-cabindas precedentes. De facto, de acordo com o artigo 3 comum aos Tratados de Chinfuma (1883), Chicambo (1884) e Simulambuco (1885), Portugal empenhou-se em manter a integridade dos territórios sob o seu protetorado, que incluem o enclave de Cabinda. Ora, seria em violação direta dessa cláusula de integridade territorial que o artigo 3 do Acordo de Alvor dispõe: 69 Ver nomeadamente Christian Nwachukwu Okeke, Controversial Subjects of Contemporary International Law: an Examination of the New Entities of International Law and their Treaty-Making Capacity, Rotterdam, Rotterdam University Press, 1974, pp. 109ss. 49 50 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL “Angola constitui uma entidade, una e indivisível, nos seus limites geográficos e políticos atuais e, neste contexto, Cabinda é parte integrante e inalienável do território angolano”. Além disso, a precisão conforme a qual as fronteiras territoriais angolanas abrangem Cabinda, precisão essa que não foi considerada útil para as 17 outras províncias do novo Estado independente, mostraria, em si, que são dois territórios distintos70. Por último, este acordo foi celebrado sem a presença de representantes do povo Cabinda e na ausência de qualquer referendo, enquanto o Governo Português não podia ignorar a existência de um movimento de expressão política de Cabinda, materializado desde 1963 pela fundação da FLEC, que possuía uma ala militar agindo no interior do enclave71. Em realidade, nenhum destes argumentos é decisivo. O argumento da nulidade à luz do direito internacional, em particular, é improcedente. Em primeiro lugar, convém notar que a opção de considerar nulo um tratado porque contradiz outro tratado não foi aceite pela Comissão de Direito Internacional, quando codificou o direito dos tratados. Ela também não reflete a prática internacional. Mesmo em caso de conflito entre eles, os tratados em concorrência permanecem válidos. O Estado vinculado por obrigações contraditórias poderá escolher qual tratado aplicará e qual tratado violará. Incorrerá em responsabilidade internacional por violação do tratado “sacrificado”. Isto é o que se chama o sistema de sanção subjetiva (responsabilidade internacional), em vez do sistema de sanção objetiva (nulidade)72. A prática internacional está absolutamente assente nestes termos. Em segundo lugar, já foi demostrado no ponto 2 que os “Tratados” lusocabindas do século XIX não eram tratados na aceção do direito internacional. Portanto, qualquer ideia de conflito entre dois atos jurídicos colocados no mesmo plano desaparece. O Acordo de Alvor não está em concorrência, no plano do direito internacional, com um ato jurídico anterior em virtude da mesma ordem jurídica. Nenhuma nulidade poderia resultar a este respeito. Além disso, é unanimemente aceite que o direito interno (cujos acordos de protetorado faziam parte) não pode ser invocado para fundamentar a nulidade de um tratado internacional. Voltaremos a esta questão mais longe no ponto 3.3. Em terceiro lugar, não podemos criticar o Acordo por não ter incluído a FLEC entre as partes contratantes. Além do facto de que tal ausência não seria suscetível de conduzir à nulidade do Acordo, mas apenas à uma não-oponibilidade contra os terceiros, é ainda importante sublinhar o seguinte. As partes contratantes 70 Neste sentido, ver a Pétition à la haute attention de Monsieur le Président de la 55e session de la Commission des droits de l’Homme de l’ONU à Genève, faite à Cabinda, le 5 avril 1999, par Nzita Henriques Tiago, M.D.R., Président du Front de Libération de l’État de Cabinda FLEC-FAC, disponível no site : http://www.cabinda.net/Cabinda03.html. 71 Idem. 72 Ver, por exemplo, Mark E. Villiger, Commentary on the Vienna Convention on the Law of Treaties, Leiden, Nijhoff, 2009, pp. 399ss. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público estão listadas no artigo 1 do Acordo. Estas incluem, por um lado, um Estado soberano, Portugal, e, por outro, três movimentos de libertação nacional, a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a UNITA, (União Nacional para a Independência Total de Angola) excluindo particularmente a FLEC. No momento da conclusão do Acordo, os dois primeiros movimentos já eram reconhecidos pela ONU73 e pela OUA, enquanto o terceiro irá receber este reconhecimento pela ONU em 197574. No entanto, a FLEC não era e ainda não é reconhecida por nenhuma organização internacional. Com o Acordo de Alvor, Portugal reconheceu explicitamente à FNLA, ao MPLA e à UNITA não apenas o estatuto de movimentos de libertação nacional, mas também o de únicos representantes legítimos do povo angolano (artigo 1)75. O facto de ter convidado exclusivamente os movimentos reconhecidos na cena internacional correspondia à prática corrente e justificava-se perfeitamente do ponto de vista jurídico, este reconhecimento como “Movimento de Libertação Nacional” (MLN) sendo constitutivo – isto é, constituindo o MLN como um sujeito de direito internacional – no contexto da autodeterminação-descolonização. Além disso, o facto de não se ter procedido a um voto no território em causa não era contrário ao direito internacional então em vigor no processo de descolonização, o qual não estabelecia nenhuma obrigação de convocar um referendo ou eleições livres76. A CIJ, enquanto principal órgão judicial da ONU, admitiu este ponto no seu parecer consultivo de 1975 sobre o Sahara Ocidental77. Em quarto lugar, o objetivo do Acordo não é censurável, não sendo contrário a uma norma de jus cogens (nos termos do artigo 53 da CVDT de 1969), já aplicável no momento da celebração deste Acordo. A questão apenas poderia incidir sobre o seguinte ponto: será que era conforme ao direito internacional da época tornar Cabinda uma “parte integrante e inalienável” do novo Estado independente angolano através da descolonização conjunta dos dois territórios? Ora, o princípio do uti possidetis juris, consagrado por uma Resolução da OUA em 1964 como um dos seus princípios cardinais para preservar a estabilidade do continente negro78 e reconhecido pela jurisprudência internacional79, impõe a obrigação de respeitar a integridade territorial dos povos que acedem à independência, conservando as fronteiras coloniais. A este respeito, como vimos no ponto 2, antes e depois da conclusão dos três Tratados de protetorado (1883-1885), Cabinda sempre foi considerado como uma parcela do território ultramarino de Angola. Era também 73 Ver, nomeadamente, a Resolução da Assembleia Geral 3294 (XXIX) de 13 de dezembro de 1974, “Questão dos territórios sob o domínio Português” (§6). 74 Ver Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., p. 188 75 Idem. 76 Ibid., p. 189. O autor corretamente aponta para o facto de que, nas décadas de 1960 e 1970, a maioria dos Estados que compunham a ONU não eram democráticas. 77 Caso do Saara Ocidental, CIJ, Recueil, 1975, §59. 78 Ver Boutros Boutros-Ghali, L’Organisation de l’Unité Africaine, Paris, Colin, 1968, pp. 47-48. 79 Ver, por exemplo, o caso do Diferendo fronteiriça (Burkina Faso c. Mali), CIJ, Recueil, 1986, pp. 564ss. Trata-se de uma jurisprudência constante. 51 52 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL o caso no momento da assinatura do Acordo de Alvor, em 1975, tendo a menção expressa de Cabinda por objetivo enfatizar este facto. O princípio do uti possidetis juris teria proibido que Portugal procedesse a uma descolonização de Cabinda separadamente de Angola, mesmo num gesto de deferência aos Tratados de protetorados coloniais anteriormente celebrados80. De facto, como indicado pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 1514 (XV): “Qualquer tentativa visando a destruir parcial ou totalmente a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com os objetivos e os princípios da Carta das Nações Unidas” (§6). No contexto específico dos territórios sob domínio português, este princípio geral será recordado pela Assembleia na sua Resolução 3294 (XXIX) de 13 de dezembro de 1974, onde ela proclama que “a unidade nacional e a integridade desses territórios devem ser salvaguardadas” (§5). Pode-se também recordar que a Comissão de Arbitragem para a ex-Jugoslávia decidiu que, em caso de conflito, o princípio do uti possidetis juris prevalece sobre a autodeterminação dos povos, dado que o princípio foi aplicado na África para estabilizar fronteiras que não respeitavam o princípio da autodeterminação81. À luz do princípio do uti possidetis e da postura da Assembleia Geral que, tal como Portugal, tem constantemente considerado Angola e Cabinda 80 Carlos Blanco de Morais menciona duas resoluções onde a Assembleia Geral condena a França por sua violação do princípio do uti possidetis juris (A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 195196, nota 319). Na sua Resolução 38/13 de 21 de novembro de 1983, a Assembleia contesta a atitude da França que, depois de ter organizado um referendo em 1974 e novamente em 1976, separou da República recémindependente das Comores a Ilha de Mayotte, a qual tinha mostrado por duas vezes o seu desejo de permanecer francesa. Considerando que, “em conformidade com os acordos, assinados em 15 de junho de 1973, entre as Comores e a França sobre a acessão das Comores à independência, os resultados do referendo de 22 de dezembro de 1974 deviam ser considerados numa base global e não ilha por ilha” (preâmbulo), a Assembleia Geral “reafirma a soberania da República Federal Islâmica das Comores sobre a Ilha de Mayotte” (§1), “convida o Governo Francês a cumprir os compromissos assumidos na véspera do referendo de autodeterminação do arquipélago das Comores de 22 de dezembro de 1974 para o respeito pela unidade e integridade territorial das Comores” (§2), e “para abrir negociações com o Governo das Comores a fim de tornar rapidamente efetivo o regresso da Ilha de Mayotte no conjunto comoriano” (§4). Mayotte é hoje um departamento francês que continua a ser revindicado pelas Comores. Na sua Resolução 34/91, de 12 dezembro de 1983, a Assembleia contesta a recusa da França de integrar no território recém-independente da República de Madagáscar as Ilhas Gloriosas, Juan de Nova, Europa e Bassas da Índia, embora juridicamente consideradas como suas dependências. Nesta ocasião, “reafirma a necessidade de respeitar escrupulosamente a unidade nacional e a integridade territorial de um território colonial no momento da sua acessão à independência” (§1), e “convida o Governo Francês a iniciar, sem mais tardar, negociações com o Governo Malgaxe para a reintegração das referidas ilhas, que foram arbitrariamente separadas de Madagáscar” (§3). Estas pequenas ilhas, que formam um conjunto chamado Ilhas Dispersas, foram incorporadas desde a Lei ordinária de 21 de fevereiro de 2007 às Terras Austrais e Antártica Francesas, embora continuando a ser reivindicadas por Madagáscar. Se estas duas experiências francesas são diferentes da situação de Cabinda, pois tratava-se de manter antigos territórios colonizados no território nacional da potência colonial, elas demonstram, no entanto, o apego da comunidade internacional ao princípio do uti possidetis juris. 81 Aviso n°II, em: International Law Reports, vol. 167-169. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público como formando uma única unidade territorial, e tem, desse modo, reconhecido a qualidade de movimentos de libertação nacional somente à FNLA, ao MPLA e à UNITA excluindo a FLEC, podemos concluir que o enclave de Cabinda era dependente de Angola. Por conseguinte, esses dois territórios compartilhavam necessariamente um destino comum no momento de sua descolonização. Como já mencionado, a questão da validade internacional do Acordo no que diz respeito à violação dos procedimentos de direito interno no contexto de sua conclusão será considerada no próximo item 3.3. Veremos que não existe fundamento de nulidade a esse respeito. A conclusão do que precede é que inexiste qualquer causa de invalidade internacional do Acordo de 1975. Aliás, o direito internacional é geralmente desfavorável à invalidação dos tratados devidamente concluídos. A presunção é a favor da validade de um tratado, a menos que se possa basear num fundamento de invalidade reconhecido e restritivamente interpretado (artigos 42 e 46ss da CVDT de 1969, refletindo o direito internacional consuetudinário). Aqui, tal motivo é totalmente inexistente. 3.3. Nulidade em Direito Interno Tem sido argumentado que o Acordo de Alvor seria nulo em Direito Interno Português. Deve-se notar todavia que, para a questão do estatuto do território angolano durante a descolonização, só é decisivo o valor internacional do Acordo. Portanto, os argumentos aqui apresentados não são estritamente necessários em direito. São unicamente avançados para fins de completude ou ex abundante cautela. Se tratará de apertar mais estreitamente duas questões distintas: (1) será que a violação do direito interno afeta a validade internacional do tratado?; (2) qual foi o efeito da violação do direito interno no próprio plano interno? É em violação da Constituição de 1933 e da Lei Constitucional 3/74, que a Lei Constitucional 6/74 de 24 de julho de 1974 estabelecendo um regime transitório de Governo para Angola e Moçambique, bem como a Lei Constitucional 7/74 de 27 de julho de 1974 autorizando a celebração de qualquer acordo para implementar o direito à autodeterminação, consideraram que os territórios ultramarinos, incluindo o enclave de Cabinda, já não faziam parte do território nacional português e lançaram as bases para a posterior assinatura do Acordo de Alvor. Estas duas Leis 6/74 e 7/74 deveriam ser consideradas como nulas e sem efeito por causa da sua inconstitucionalidade82. Podemos imediatamente afastar este motivo que se refere à validade internacional do Acordo. Uma invalidação 82 A inconstitucionalidade destas duas leis constitucionais também é avançada na base da sua violação do Decreto-Lei nº203/74, que vem complementar a Lei Constitucional 3/74, a qual reconhece que “as populações do ultramar deverão decidir do seu futuro, em conformidade com o princípio da autodeterminação” (§7 b). Este princípio deve ser aplicado em Cabinda, que seria uma província ultramarina portuguesa distinta de Angola. Nesse sentido, ver nomeadamente: « L’indépendance du Cabinda », http://www.cabinda.net/Cabinda06.html. 53 54 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL do Acordo só é possível existindo violação do direito interno no processo de celebração do tratado internacional. Não é o caso aqui. O facto de um tratado contradizer materialmente este ou aquele aspeto do direito interno de um Estado nunca é um fundamento de nulidade do tratado (artigo 46 da CVDT de 1969). Cabe apenas ao Estado em causa pôr o seu direito interno em conformidade com o tratado. Uma contradição normativa ressalta também da comparação entre a Lei 3/74 de 14 de maio e a Lei 7/74 de 27 de Julho. De facto, aparece claramente das disposições internas relevantes que a política ultramarina não devia ser definida pelas autoridades provisórias revolucionárias, mas pela nação portuguesa – diretamente por referendo ou indiretamente por meio de representantes eleitos no seio da futura Assembleia Constituinte – e isso, ao termo de um debate democrático. Ora, a Lei Constitucional ulterior 7/74, aprovada dois meses depois, entra frontalmente em contradição com tais disposições. A consequência seria que faltaria o poder do Chefe de Estado a consentir em ficar vinculado pelo Acordo sem ter previamente cumprido essas obrigações de participação democrática. Neste caso, a questão coloca-se efetivamente no contexto da conclusão do Acordo. Consequentemente, o artigo 46 da CVDT, como reflexo do direito internacional consuetudinário83, é potencialmente relevante. A eventual falta de validade jurídica interna deste Acordo não implica nenhuma consequência automática no plano do direito internacional: um acordo internacional celebrado em desprezo pelas formas constitucionais é, em princípio, internacionalmente válido, salvo exceção estritamente definida no artigo 46 da CVDT. De acordo com a regra costumeira codificada no artigo 46 dessa Convenção: “A circunstância de o consentimento de um Estado em ficar vinculado por um tratado ter sido manifestado com violação de uma disposição do seu direito interno relativa à competência para concluir tratados não pode ser invocada por esse Estado como tendo viciado o seu consentimento, salvo se essa violação tiver sido manifesta e disser respeito a uma norma de importância fundamental do seu direito interno” (§1). Neste caso, se a violação afeta efetivamente uma regra fundamental, devido ao período de crise constitucional em que foi assinado o Acordo de Alvor, é impossível descrevê-la como “manifesta” no sentido de ser “objetivamente evidente para qualquer Estado [aqui os movimentos de libertação nacional] que proceda, nesse domínio, de acordo com a prática habitual e de boa-fé” (artigo 46, §2). Também é a conclusão do Tribunal arbitral no caso de 1986 relativo à 83 A CVDT, de facto, não é como tal aplicável a um Acordo de 1975, enquanto ela ainda não estava em vigor: artigo 4 da CVDT. A CVDT só entrou em vigor em 27 de janeiro de 1980, para os 35 primeiros Estados que então a ratificaram. Além disso, a CVDT só se aplica a acordos entre Estados, e não a acordos entre Estados e MLN. O artigo 46, no entanto, pode ser aplicado por analogia neste caso, o direito consuetudinário admitindo que se trata aqui da regulamentação aplicável materialmente a todos os tratados internacionais. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público Delimitação da fronteira marítima entre a Guiné-Bissau e o Senegal84. Este caso envolve precisamente a prática de Portugal sob o regime de Salazar à luz do artigo 46 da CVDT. O Tribunal afirma, primeiro, que o artigo 46 da CVDT era, desde 1960, o regime jurídico de direito internacional consuetudinário nesta matéria. Em seguida, ele estima que o Acordo de 1960, em causa no presente caso, devia certamente ter sido objeto de aprovação parlamentar, pois ele disponha do território nacional português. Esta aprovação parlamentar não tendo ocorrido, contribuiu para a violação do direito constitucional, ainda que num plano meramente formal. Esta violação tocava indubitavelmente disposições de direito interno de importância fundamental. Ora, o Tribunal afirma igualmente que a prática constitucional efetiva de Portugal diferia dessas regras formais: o Chefe de Estado aprovava os tratados e o papel do Parlamento tinha sido severamente restringido. Segundo o Tribunal, a França, a outra parte contratante neste caso, podia confiar de boa-fé na prática efetivamente seguida. A violação do direito interno português, portanto, não era “manifesta” para ela, pois as autoridades portuguesas celebravam acordos internacionais desta forma e consideravam-os válidos. Por conseguinte, o Acordo é internacionalmente válido e a violação do direito interno não pode mais ser invocada. Talvez valha a pena realçar o facto de que a jurisprudência internacional, solicitada repetidamente a propósito deste artigo 46, nunca admitiu desde 1969 que as suas condições de aplicação tivessem sido cumpridas. Este facto reflete o caráter muito restritivo desta disposição. Esta só admite muito raramente a invalidade de um tratado por violações do direito interno durante o processo para a sua conclusão. É também de notar que a violação do direito interno, mesmo supondo-a relevante nos termos do artigo 46 da CVDT – o que não é aqui o caso – só implica a faculdade de invalidar o tratado com base num pedido para esse efeito apresentado pelo Estado em causa. De facto, tal como indicado pelo artigo 46 §1 supracitado da CVDT, o Estado “pode invocar”. A nulidade do tratado, portanto, não é automática, como o seria, por exemplo, em caso de coerção ou de contrariedade ao jus cogens (artigos 51-53 da CVDT). Ora, Portugal nunca invocou tal razão para a invalidade. Dessa forma, ele confirmou definitivamente a validade do tratado (artigo 45 da CVDT, enquanto direito internacional consuetudinário) e, portanto, perdeu o seu direito de invocar a violação de uma disposição do seu direito nacional. Através dos seus comportamentos durante este período (e até além), ele aceitou este tratadoe nunca o pôs em causa85. Isto é um motivo suplementar para a validade do mesmo. 84 RSA, vol. XX, pp. 121ss, as passagens sobre a questão que nos interessa aqui encontram-se nas pp. 139ss. 85 Artigo 45 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969: “Um Estado não pode invocar uma causa de nulidade de um tratado, de cessação da sua vigência, de retirada ou de suspensão da sua aplicação, nos termos dos artigos 46 a 50 ou dos artigos 60 e 62, quando, após haver tomado conhecimento dos factos, esse Estado: a) Aceitou expressamente considerar que o tratado, conforme os casos, é válido, permanece em vigor ou continua a ser aplicável; ou 55 56 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL No plano nacional, a inconstitucionalidade da Lei 7/74 também permaneceu sem consequência, por falta de ter sido reconhecida pelas autoridades jurisdicionais competentes naquela época. Com efeito, nos termos da legislação revolucionária vigorando antes da adoção da Constituição de 02 de abril de 1976, cabia ao Conselho de Estado verificar a constitucionalidade dos atos jurídicos adotados pelo Governo Provisório relativos à “definição do regime geral das províncias ultramarinas” (artigo 13 §1, alínea 2 e da Lei 3/74). Conforme uma conceção naquela altura dualista das relações entre a ordem jurídica internacional e a ordem jurídica interna, o Conselho de Estado teria podido fazer prevalecer a Constituição Portuguesa sobre o Acordo de Alvor. Isso teria proibido a promulgação pelo Presidente da República de um ato de receção deste acordo no direito nacional (artigo 13 §2 da Lei 3/74). Provavelmente porque encontrava-se estreitamente integrado nas autoridades militares revolucionárias que governavam então o Portugal, o Conselho de Estado não fiscalizou a constitucionalidade da Lei 7/74, nem a fortiori a declarou inconstitucional. Ora, este controlo não tendo sido efetuado no passado, não poderia ser exercido no presente pelo Tribunal Constitucional Português, através de um controlo por ação, abstrato e a posteriori, uma vez que esta Lei deixou de existir com a entrada em vigor, em 25 de abril de 1976, da Constituição Portuguesa de 02 de abril de 1976. 4. A Vertente da Autodeterminação: O Direito do “Povo Cabinda” a Dispor de Si Mesmo 4.1. Aspetos Gerais Há que recordar, em primeiro lugar, que este argumento é fundamentalmente de caráter subsidiário. Inscreve-se na esteira da nulidade do Acordo de Alvor: por causa da nulidade deste tratado, Angola não seria o soberano legítimo de Cabinda mas uma potência ocupante, contra a qual existiria, portanto, um direito à autodeterminação. Tendo concluído que o Acordo de Alvor é manifestamente válido e que não há nenhum motivo de invalidade contra ele, este argumento subsidiário cai automaticamente para o vazio. Será aqui mencionado unicamente em vista a analisar de forma completa a questão jurídica do estatuto do enclave de Cabinda. Os desenvolvimentos a seguir não podem, contudo, ser tomados como uma admissão implícita da relevância do terceiro argumento da FLEC; eles são referidos apenas ex abundante cautela. No documento da FLEC de 1992, Trâmites para a libertação do Estado de Cabinda, a reivindicação essencial que aparece desde o primeiro ponto é a do reconhecimento da soberania de Cabinda. A independência do Estado Cabinda b) Deva, em razão da sua conduta, ser considerado como tendo aceite, conforme os casos, a validade do tratado ou a sua permanência em vigor ou em aplicação”. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público deveria ser reconhecida dentro das fronteiras dos antigos reinos de Loango, Cakongo e N’goio que concluíram os Tratados de protetorado com Portugal, e cujo conjunto teria formado uma colónia distinta de Angola na Constituição Portuguesa de 1933 (ponto 2). Ela exigiria, além disso, a retirada das forças de ocupação angolanas, as quais teriam ilegalmente anexado o território do enclave em 1975 (ponto 3) para tornar o mesmo a décima oitava província do país, fazendo assim de Angola, como muitas vezes se lê nos blogs dos movimentos independentistas, a única potência colonizadora em África86. Portugal, por ter quebrado o seu compromisso de respeitar a integridade territorial dos seus protetorados87, e Angola, por ocupar militarmente o enclave, seriam ambos os principais responsáveis pela violação do direito fundamental da população cabinda à sua autodeterminação. 4.2. O Direito à Autodeterminação dos Povos: Externa e Interna88 86 Ver nomeadamente neste sentido : Raymond Goy, « Cabinda : un Congo lusophone », op. cit., pp. 206ss (“angolização” do enclave); o prefácio do Abade Doutor Jorge Casimiro ConGo, in A.M. KouanGo, Cabinda : un Koweït africain, op. cit., p. 9 (“colonialismo angolano”); Jean-Michel sCharr, « Vers un Congo Cabinda indépendant : le Cabinda serait-il une colonie angolaise après avoir été une colonie portugaise ? L’appel de Monsieur Nzita Tiago Henriques, Président du FLEC », Réseau Forum Radio Télévision des Droits de l’Homme, 20 de julho de 2010 (http://www.frtdh.org/article. php?artNo=14). 87 Para Raymond Goy, “Lisboa violou o protetorado, substituindo-lhe um regime de colónia e, em seguida, a integridade do território, ligando-o administrativamente à Angola, e ajudando depois à sua anexação. Portugal violou a sua própria Constituição e o direito da descolonização ao recusar a autodeterminação e ao apoiar a anexação” (« Cabinda : un Congo lusophone », op. cit., p. 206, tradução nossa). Ora, a renúncia de Portugal aos seus direitos como colonizador não podia de maneira nenhuma apagar as suas obrigações em relação ao enclave cabinda, que devia ter tido a oportunidade de escolher o seu destino e, no mínimo, de ter sido protegida enquanto território ainda não descolonizado. Neste sentido, o Governo Português deveria ser considerado culpado de ter “abandonado e entregue Cabinda à Angola” (ibid., p. 225, tradução nossa). 88 Sobre este princípio, entre uma literatura extensa, ver: Rupert eMerson, « Self-determination », American Journal of International Law, 1971, vol. 65, pp. 459-475; Umozurike Oji uMozuriKe, SelfDetermination in International Law, Hamden, CT, Archon books, 1972; P.K. Menon, « The right to self-determination: a historical appraisal », Revue de droit international, de sciences diplomatiques et politiques, 1975, vol. 52, pp. 183-200; G.S. swan, « Self-determination and the United Nations Charter », The Indian Journal of International Law: a Quarterly, 1982, vol. 22, pp. 264-277; H.A. strydoM, « Self-determination: its use and abuse », South African Yearbook of International Law, 1991-1992, vol. 17, pp. 90-116; Ian brownlie, « The rights of peoples in modern international law », in James Crawford (ed.), The Rights of Peoples, Oxford, Clarendon Press, 1992, pp. 1-16; Morton H. halperin, David J. sCheffer, Patricia L. sMall, Self-Determination in the New World Order, Washington, D.C., Carnegie Endowment for International Peace, 1992; Christian toMusChat, Modern Law of SelfDetermination, Dordrecht, Nijhoff, 1993; Robert MCCorquodale, « Self-determination: a human rights approach », International and Comparative Law Quarterly, 1994, vol. 43, pp. 857-885; Antonio Cassese (ed.), Self-Determination of Peoples: a Legal Reappraisal, Cambridge, Cambridge University Press, 1995; Mitchell A. hill, « What the principle of self-determination means today », ILSA Journal of International & Comparative Law, 1995, vol. 1, pp. 120-134; Donald ClarK, Robert williaMson, Allan blaKeney (eds.), Self-Determination: International Perspectives, Basingstoke, Macmillan/New York, St. Martin’s Press, 1996; Pierre-François GonideC, « Conflits internes et question nationale en 57 58 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL Os titulares do direito à autodeterminação dita externa que possuem um direito à secessão ou à separação, são exclusivamente os povos coloniais ou submetidos a uma ocupação estrangeira. A dificuldade reside na noção de “povo”, que sofre de uma deficiência ao nível da definição jurídica. Das numerosas resoluções da Assembleia Geral tomadas no domínio da autodeterminação dos povos, é possível, no entanto, deduzir os seguintes elementos89. No contexto colonial (em que estamos aqui localizados), nos termos da Resolução 1541 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas (1960) sobre os “Princípios que devem guiar os Estados Membros na determinação da existência da obrigação de comunicar as informações requeridas pela alínea e) do artigo 73 da Carta”, um território nãoautónomo (colónia) é “à primeira vista” “um território geograficamente separado e etnicamente ou culturalmente distinto do país que o administra” (princípio IV). Trata-se aqui apenas de uma presunção refutável que, em determinadas situações, pode exigir ser reforçada pela tomada em consideração de outros elementos: “Estes elementos suplementares podem ser nomeadamente de natureza administrativa, política, jurídica, económica ou histórica” quando “afetam as relações entre o território metropolitano e o território considerado por tal forma que colocam arbitrariamente este último numa posição ou num estado de subordinação” (princípio V). Cabe essencialmente à Assembleia Geral das Nações Unidas avaliar estes elementos. A Assembleia tem desempenhado um papel de liderança no contexto da autodeterminação, sendo esse papel eminente reconhecido na prática internacional. No caso de Cabinda, é evidente que a Assembleia Geral das Nações Unidas nunca qualificou este território como não-autónomo, nem com base unicamente no afastamento geográfico, nem com base em outros elementos que colocariam o povo Cabinda num estado de subjugação em relação ao Estado Angolano. Esta posição da Assembleia Geral é apoiada por a do Comité Especial de Descolonização. Este Afrique : le droit à l’autodétermination », African Journal of International and Comparative Law, 1997, vol. 9, pp. 543-572; Lauri hanniKainen, « Self-determination and autonomy in international law », in Markku Suksi (ed.), Autonomy: Applications and Implications, Haia, Kluwer Law International, 1998, pp. 79-95; Edward MCwhinney, « Self-determination of peoples in contemporary constitutional and international law », in Emile yaKpo, Tahar bouMedra (eds.), Liber Amicorum Judge Mohammed Bedjaoui, Haia, Kluwer Law International, 1999, pp. 725-733; B.C. nirMal, The Right to SelfDetermination in International Law: Evolution, UN Law and Practice, New Dimensions, Nova Délhi, Deep & Deep, 1999; Théodore ChristaKis, Le droit à l’autodétermination en dehors des situations de décolonisation, Paris, La Documentation française, 1999; Jeffrey herbst, « Self-determination and the future of the African State », in Elizabeth sidiropoulos (ed.), A Continent Apart: Kosovo, Africa and Humanitarian Intervention, Joanesburgo, South African Institute of International Affairs, 2001, pp. 197-210; Wolfgang F. danspeCKGruber (ed.), The Self-Determination of Peoples: Community, Nation and State in an Interdependent World, Boulder, CO, Lynne Rienner, 2002; Peter hilpold, « Selfdetermination in the 21st century: modern perspectives for an old concept », Israel Yearbook on Human Rights, 2006, vol. 36, pp. 247-288; Francis M. denG (ed.), Self-Determination and National Unity: a Challenge for Africa, Trenton, NJ, Africa World Press, 2010. 89 Ver sobre este ponto Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 233234. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público tratou constantemente Cabinda como uma parte integrante da colónia portuguesa que era Angola90, o que demostra claramente a lista dos territórios portugueses não-autónomos presente no seu site91. Neste sentido igualmente, o Relatório do Comité Especial sobre a Situação Respeitante à Implementação da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos coloniais, elaborado pelo Sr. Najmuddine Rifai em 1963 e dedicado aos territórios sob administração portuguesa, precisa desde as suas primeiras linhas que Angola envolve Cabinda: “The territories under Portuguese administration comprise the Cape Verde Archipelago; Guinea, called Portuguese Guinea; São Tomé Príncipe and their dependencies; Angola, including the enclave of Cabinda; Mozambique; Macau and dependencies; and Timor and dependencies”92. Nos blogs dos independentistas, pode-se ler contudo que a OUA teria, em 1964, catalogado Cabinda entre os territórios africanos por descolonizar de acordo com uma classificação que o teria posicionado no lugar 39, ou seja, atrás e distintamente de Angola, posicionado no lugar 3593. Esta classificação seria assim a prova de que “para o continente africano, não havia então nenhuma dúvida de que Cabinda constituía uma entidade bem separada de Angola. Uma nação por descolonizar, assim como todas as outras que aguardavam a sua independência”94. Todavia, em apoio desta alegação, não é citada nenhuma resolução que permite verificar a sua autenticidade. Em realidade, Cabinda nunca foi qualificado pela OUA como território não-autónomo. O site da atual União Africana, dando acesso aos documentos aprovados pelo seu predecessor, não fornece nenhum elemento que poderia vir corroborar a afirmação de uma qualquer classificação de Cabinda numa lista de territórios não-autónomos95. Pelo contrário, na Decisão sobre o atentado terrorista contra a equipa nacional de futebol do Togo, tomada pela Conferência de Chefes de Estado e de Governo da União Africana em 02 fevereiro de 2010, o ato condenado é explicitamente localizado “na província angolana de Cabinda”96. Além disso, o 90 A posição conforme a qual as Nações Unidas, e mais especificamente o Comité Especial dos Vinte e Quatro, têm constantemente reconhecido Cabinda como fazendo parte integrante do território de Angola nos foi confirmada por um e-mail de 04 de janeiro de 2012 pela Decolonization Unit da ONU em Nova Iorque (DPA/UN). 91 Ver http://www.un.org/fr/decolonization/nonselfgov.shtml#2. 92 Report of the Special Committee on the situation with regard to the implementation of the Declaration on the granting of independence to colonial countries and peoples, Territories under portuguese administration, Relator: Sr. Najmuddine RIFAI (Syria), A/5446/Add.1, 19 de julho de 1963, §1. 93 Ver nomeadamente: http://www.cabinda.org/histoire.htm; http://justinodaoliveirabango.blog.tdg. ch/archive/2010/01/19/quelques-moments-cles-de-l-histoire-du-cabinda.html; http://liberationcabinda. wordpress.com/le-cabinda/. 94 Nicolas Gasparoni, « Balles tragiques au Cabinda », 09 de janeiro de 2009 (http://www.instantcube. com/discernement/ballestragiques.html). 95 Ver o site da UA, na seção « Documentos »: http://www.africa-union.org/root/ua/index/index.htm. 96 Assembly/AU/Dec. 273(XIV) Rev, 2 de fevereiro de 2010. Encontra-se esta mesma expressão na Resolução da UA sobre a decisão da Confederação Africana de Futebol (CAF) de suspender o Togo das próximas duas edições do Campeonato Africano das Nações, Assembly/AU/Res. 1(XIV) Rev.1, 2 59 60 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL Comité de Libertação criado pela OUA para ajudar tais territórios no continente africano para aceder à independência, cessou as funções em 1990, antes de ser dissolvido na 30ª Cimeira de Túnis em 15 de junho de 199497. Ora, ao encerrar os seus trabalhos, ele reconheceu, naquela altura, que apenas o arquipélago das Ilhas Canárias e da Ilha da Reunião podiam ser considerados em África como territórios não-autónomos98 – com a exceção, portanto, de Cabinda. Finalmente, parece difícil imaginar que tal classificação haja realmente existido, na medida em que a ONU, que baseia-se nesta matéria na qualificação da organização regional em causa (neste caso a OUA), reconheceu consistentemente em numerosas resoluções que Cabinda faz parte integrante de Angola. Apenas dois movimentos – a FNLA e o MPLA (mais tarde também a UNITA) – são qualificados pela Assembleia Geral da ONU como os “representantes autênticos” e os “interlocutores designados”, tal como foram previamente reconhecidos pela OUA, de novo com a exceção de um movimento qualquer representando Cabinda. Um último argumento dos independentistas cabindas consiste em traçar um paralelo entre a situação em Cabinda, que teria sido invadido e anexado pela força por Angola imediatamente após a sua declaração de independência e a partida das tropas portuguesas em 1975, e a situação de Timor-Leste. Este último, depois de ter sido parte integrante do império colonial de Portugal, foi invadido pela Indonésia vizinha após a partida dos Portugueses em 1975, e anexado no ano seguinte99. Ora, o silêncio da ONU no caso de Cabinda contrasta com a sua reação no caso de Timor-Leste. De facto, no caso de Timor-Leste a anexação não foi reconhecida pela ONU, a qual continuou a exercer pressões sobre a Indonésia até obter o direito de organizar um referendo em 1999 sob a sua égide. Este voto desembocou finalmente na plena independência deste território em 2002. A disparidade de tratamento de situações semelhantes seria a demonstração de uma política de dois pesos e duas medidas. Na realidade, esta diferença de tratamento explica-se facilmente pela diferença dos contextos. Com efeito, para além da aparente semelhança das situações, é claro que a presença das forças militares angolanas em Cabinda nunca foi qualificada, nem pela OUA, nem pela ONU, de agressão ou de ocupação. Além disso, enquanto a Assembleia Geral, imediatamente depois da invasão pela Indonésia, reconheceu ao povo de Timor-Leste a titularidade do direito à autodeterminação e à independência na sua Resolução 3485 (XXX) de 12 de dezembro de 1975 – o que será confirmado em todas as outras resoluções aprovadas de fevereiro de 2010. Textos disponíveis em: www.africa-union.org/.../Assembly%20Dec.268-288%20 Decl.%201-3_%20Res%20Fr.pdf. 97 Raymond Goy, « Cabinda : un Congo lusophone », op. cit., p. 211. 98 Embora esta Comissão não ter tido um site internet, pode-se, no entanto, encontrar informações nesse sentido em fontes indiretas. Ver em especial: http://rasd-polisario.blogspot.com/2010/02/addisabeba-manuvres-de-lunion.html. 99 Nicolas Gasparoni, « Balles tragiques au Cabinda », 09 de janeiro de 2009 (http://www.instantcube. com/discernement/ballestragiques.html). O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público nos anos seguintes sobre este assunto pela Assembleia100 como pelo Conselho de Segurança101 –, tal nunca foi o caso de Cabinda. Este nunca foi objeto de nenhuma resolução específica, nem da Assembleia Geral nem do Conselho de Segurança, enquanto território distinto de Angola. Deve-se, portanto, concluir que a população cabinda nunca recebeu a qualificação política de “povo”, nem o enclave foi identificado como um território não-autónomo, colonizado ou ocupado, todas estas noções sendo determinantes em matéria de autodeterminação, a fim de tirar as consequências jurídicas ligadas a esse direito. A autodeterminação interna, respeitosa do quadro estadual existente, aplica-se a povos já constituídos em Estados ou integrados num Estado que reconhece a sua existência e que lhes permite participar plenamente na expressão da vontade política em vista a determinar livremente o seu destino102. Ela traduzse pelo respeito dos direitos humanos, bem como, nos Estados multinacionais, multiétnicos ou multiculturais, por um regime de proteção das minorias, ou mesmo, por um direito à democracia, que ainda tem de se consolidar em direito internacional103. Em razão dos riscos decorrentes desses movimentos para a paz e a segurança internacionais, a clara distinção entre um povo, por um lado, e uma minoria, por outro lado, é capital104. Deve permitir excluir a faculdade de secessão 100 A Resolução 3485 (XXX) de 1975 da Assembleia Geral foi nomeadamente seguida por várias resoluções afirmando o direito do povo de Timor-Leste a dispor de si mesmo, e designando Portugal como potência administrante do território, de acordo com a qualificação então adotada de Timor-Leste como território não-autónomo pelo Comité dos Vinte e Quatro. Ver, em especial, as seguintes resoluções: 31/53 de 1 de dezembro de 1976; 32/34 de 28 novembro de 1977; 33/39 de 13 de dezembro de 1978; 34/40 de 21 novembro de 1979; 35/27 de 11 novembro de 1980; 36/50 de 24 novembro de 1981; 37/30 de 23 novembro de 1982. 101 Ver nomeadamente a Resolução 384, aprovada pelo Conselho de Segurança em 22 de dezembro de 1975 depois de ter sido solicitado pelo Governo Português, na qual é pedido, por um lado, “a todos os Estados de respeitar a integridade territorial de Timor-Leste bem como o direito do seu povo à autodeterminação, nos termos da Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral” (§1), por outro lado, “ao Governo da Indonésia de retirar imediatamente todas as suas forças do território” (§2). 102 Ver Antonio Cassese, « The self-determination of peoples », in L. HENKIN (ed.), The International Bill of Rights: the Covenant on Civil and Political Rights, Columbia, Columbia University Press, 1981, pp. 101ss. 103 Philippe Chrestia, « L’influence des droits de l’Homme sur l’évolution du droit international contemporain », RTDH, 1999, vol. 40, p. 721: “O princípio da integridade territorial, protetor da soberania territorial, tornando impossível qualquer forma de secessão ou de partição, é no interior do Estado onde elas se exprimem que as reivindicações podem e devem ser cumpridas. Portanto, o encontro de uma solução política, como o pede a comunidade internacional todas as vezes em que surge o irredentismo, é a manifestação deste imperativo democrático”. É verdade que este imperativo ainda permanece mal assegurado por causa da autonomia constitucional do Estado, resultado da indiferença do direito internacional em relação aos regimes políticos. Não obstante, o fim da Guerra Fria e o colapso da URSS, e com eles o direito à coexistência pacífica concebido como um direito à indiferença, poderiam dar ao “direito à democracia” um novo sopro, como fica evidenciado pelo crescente interesse da comunidade internacional por eleições “periódicas e honestas” Ver nomeadamente as Resoluções da Assembleia Geral 45/150 de 18 de dezembro de 1990 e 58/180 de 17 de março de 2004. 104 Como indica Carlos Blanco de Morais, se a proteção desses direitos tem-se, até agora, focalizado principalmente sobre a Europa e a Ásia Central, a inclusão desta temática na agenda da ONU deixa 61 62 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL juridicamente reconhecida às minorias105. Fora do direito de usufruir de um regime de proteção – o direito das minorias106 tendo sido qualificado como imperativo pela Comissão Badinter107 e pelo Comité dos Direitos Humanos108 – ou, atendendo à sua importância, do direito de reclamar uma certa autonomia administrativa e/ ou política para as suas regiões, essas minorias não beneficiam de um direito à autodeterminação pleno e completo. A estrita restrição do direito das minorias à uma autodeterminação na sua dimensão interna (respeito dos direitos) – com exclusão da sua dimensão externa (direito à secessão) – é nomeadamente confirmada pela Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas, aprovada por consenso pela Assembleia Geral na sua Resolução 47/135 de 18 de dezembro de 1992109. De acordo com esta Declaração, os Estados prefigurar que esta vai gradualmente espalhar-se à Ásia Oriental, à América Latina, bem como à África (A autodeterminação dos povos (…), op. cit., pp. 250-251). 105 Ver nomeadamente Eduardo Correia Baptista, Ius cogens em direito internacional, Lisboa, Lex, 1997, p. 417. 106 É no rescaldo da Primeira Guerra Mundial que nasceu o sistema de proteção internacional das minorias. Introduzido pela Sociedade das Nações, este assume a forma de uma densa rede de tratados de paz visando a garantir às minorias o direito a um tratamento igual ao da maioria, o que passa nomeadamente por o direito de usar a sua língua, bem como um direito de petição ao Conselho da Sociedade das Nações. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, a atenção da comunidade internacional vira-se mais para um sistema de proteção internacional dos direitos humanos. Estabelecido pela ONU, não pretende unicamente à proteção de certos grupos em certos países, mas à proteção de todos os homens em todos os países. Se as opiniões divergem na doutrina quanto ao reconhecimento de uma natureza juris cogentis aos direitos das minorias, todos concordam para reconhecer que, “se houver jus cogens, encontra-se bem nesta primazia explícita dos objetivos e princípios da Carta que conjuga respeito dos direitos humanos e autodeterminação dos povos num quadro que permanece fundamentalmente estadual” (Emmanuel deCaux, « Le jus cogens, faiblesses d’une idée-force ? », L’Observateur des Nations Unies, 1997, vol. 3, pp. 16-17, tradução nossa), ou seja, no equilíbrio a encontrar entre a integração de todos os grupos dentro do Estado e a capacidade das minorias a preservar a sua identidade (veja, neste sentido, o terceiro relatório do Grupo de Trabalho criado em 1995 pela Subcomissão de luta contra as medidas discriminatórias e a proteção das minorias, E/CN.4/ Sub.2/1997/18, §18). 107 Ver: o aviso n°1 de 29 de novembro de 1991, RGDIP, 1992-I, vol. 96, pp. 264-266, p. 265; o aviso n°2 de 11 de janeiro de 1992, ibid., pp. 266-267, p. 266; o aviso n°9 du 4 de julho de 1992, RGDIP, 1993-II, vol. 97, pp. 591-593, p. 592; o aviso n°10 da mesma data, ibid., pp. 594-995, p. 595. 108 Na sua Observação Geral nº23 relativa ao artigo 27 do PIDCP, o Comité dos Direitos do Homem salientou que os direitos das minorias devem ser protegidos “como tais”, ou seja, sem confusão com as outras disposições do Pacto, nomeadamente em matéria de não-discriminação ou de igualdade perante a lei. Além disso, ele lembrou que a existência de minorias nacionais é objetiva, de modo que ela não pode nem ser negada pelo Estado, nem sequer depender de uma decisão do Estado (CCPR/C/21/Rev.1/ Add.5, 04 de agosto de 1994, §9). O Comité reiterará a sua posição na sua Observação Geral nº24 relativa às reservas, na qual ele exclui para os Estados a possibilidade de formular uma reserva em vista a negar às minorias os direitos que lhes são reconhecido pelo artigo 27 do Pacto (CCPR/C/21/Rev.1/ Add.6, 11 de novembro de 1994, §8), e depois na sua Observação Geral n°29 relativa aos estados de emergência, na qual ele afirma que “a proteção internacional dos direitos das pessoas pertencentes a minorias comporta aspetos que devem ser respeitados em todas as circunstâncias” (CCPR/C/21/Rev.1/ Add.11, 31 de agosto de 2001, §13 c, tradução nossa). 109 Nesse sentido, ver nomeadamente Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público “deverão proteger a existência e a identidade nacional ou étnica, cultural, religiosa e linguística das minorias, no âmbito dos seus respetivos territórios, e deverão fomentar a criação das condições necessárias à promoção dessa identidade” (artigo 1, §1). Para o efeito, eles “deverão adotar medidas adequadas, legislativas ou de outro tipo, para atingir estes objetivos” (artigo 1, §2). Preferindo a proclamação de direitos individuais à de direitos coletivos110, é às “pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas” que ela reconhece “o direito de fruir a sua própria cultura, de professar e praticar a sua própria religião, e de utilizar a sua própria língua, em privado e em público, livremente e sem interferência ou qualquer forma de discriminação” (artigo 2, §1). O penúltimo artigo deste instrumento precisa expressamente que: “Nenhuma disposição da presente Declaração poderá ser interpretada no sentido de permitir qualquer atividade contrária aos objetivos e princípios das Nações Unidas, nomeadamente os da igualdade soberana, integridade territorial e independência política dos Estados” (artigo 8, §4). O Comité dos Direitos Humanos, criado para controlar a aplicação do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos pelos Estados Partes, estabeleceu uma distinção entre os direitos individuais das minorias e o direito coletivo dos povos à autodeterminação externa. Desta forma, ele confirmou que as minorias podem reivindicar apenas um direito à autodeterminação interna. Assim, na sua Observação Geral nº23 sobre “Os direitos das minorias”, de 1994, ele indica que: “Em algumas comunicações apresentadas ao Comité no âmbito do Protocolo Facultativo, o direito consagrado no artigo 27 foi confundido com o direito dos povos a dispor de si mesmos, enunciada no artigo 1 do Pacto” (§2). Ora: “Uma distinção é feita no Pacto entre o direito dos povos a dispor de si mesmos e os direitos consagrados no artigo 27. O primeiro direito é considerado como um direito que pertence aos povos e é objeto de uma parte distinta do Pacto (primeira parte). O direito dos povos a dispor de si mesmos não é suscetível de ser invocado no âmbito do Protocolo Opcional. Além disso, o artigo 27 confere direitos a indivíduos e, como tal, ele aparece como os artigos relativos aos outros direitos individuais conferidos a particulares, na terceira parte do Pacto op. cit., pp. 246-248. O autor indica que mesmo se a Declaração não tem uma natureza juridicamente vinculativa, mas apenas um valor político, forneceu a base para diferentes resoluções da Assembleia Geral, em particular relativas à ex-Jugoslávia, bem como para a criação, em 1995, no âmbito da Subcomissão da ONU para a Prevenção da Discriminação e a Proteção das Minorias, de um Grupo de Trabalho sobre Minorias. Em paralelo, a Assembleia também criou, em 1993, o Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos (Resolução 48/141), incluindo no seu mandato a promoção da aplicação dos princípios contidos nessa Declaração (Resolução 49/192). 110 Neste sentido, o Comité dos Direitos Humanos indicará, na sua Observação Geral nº23 de 1994, relativa à interpretação do artigo 27 do Pacto Internacional sobre os direitos das minorias, que ele “constata que este artigo consagra um direito que é conferido a indivíduos pertencentes a grupos minoritários e que é distinto ou complementar de todos os outros direitos que eles já podem desfrutar, de acordo com o Pacto, enquanto indivíduos, em comum com todas as outras pessoas” (CCPR/C/21/ Rev.1/Add.5, §1, tradução nossa). 63 64 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL e pode ser objeto de uma comunicação em virtude do Protocolo Facultativo” (§3.1). Sobretudo, mesmo se “um ou outro dos direitos consagrados nesse artigo – por exemplo, o direito de ter a sua própria vida cultural – pode consistir num estilo de vida intimamente associada com o território e com o uso dos seus recursos”, “o gozo dos direitos enunciados no artigo 27 não afeta a soberania e a integridade territorial de um Estado Parte” (§3.2). Em suma, é óbvio que Cabinda não se pode ver reconhecer um direito de autodeterminação externa, dado que a população de Cabinda não é um “povo”, na aceção do direito internacional aplicável. Trata-se de uma componente de Angola, entre outras. No máximo, poder-se-ia admitir a existência de uma minoria. Na verdade, isto parece duvidoso, porque haveria, então, uma trintena de minorias em Angola, sem que haja uma maioria. Assumindo, portanto, que a população de Cabinda seja classificada entre as minorias, ela gozaria dos direitos humanos e de um direito à participação representativa nos assuntos do Estado. Resta a questão de saber se uma violação massiva dos direitos humanos e uma segregação de uma parcela da população, assim discriminada, poderia ativar um direito à autodeterminação externa, isto é, à secessão. Esta é o âmbito da alegada “secessão-remédio”. Deve notar-se que a situação em Cabinda não apresenta as características de uma violação massiva dos direitos humanos os mais fundamentais da população local, ou uma discriminação de grande escala. Portanto, as condições da aplicação de um alegado direito de secessão-remédio estão em falta. Além disso, a análise da prática internacional mostra que esse direito de secessão-remédio não existe em direito internacional positivo. Não é de surpreender, porquanto o direito internacional público é essencialmente criado pelos Estados. É claro que eles continuam ciumentos da sua integridade territorial e não desejam reconhecer ou multiplicar situações que possam levar – de forma incontrolada e incontrolável – à fragmentação dos Estados existentes. O argumento para a secessão-remédio, portanto, enfrenta dois problemas: (1) esse direito não é reconhecido em direito internacional; (2) e mesmo que fosse reconhecido, as suas condições de aplicação, tal com estão discutidas na doutrina, não seriam cumpridas. 4.3. O Alegado “Direito à Secessão” em Caso de Perseguições Defendida por uma parte da doutrina, a secessão-remédio (remedial secession)111 faz a ligação entre as duas vertentes, interna e externa, da autodeterminação. Em conformidade com esta noção, uma violação grave e persistente da vertente interna da autodeterminação pode levar a ativar a vertente externa da autodeterminação, 111 A expressão foi cunhada por Lee C. Buchheit, na sua obra Secession: the Legitimacy of SelfDetermination, New Haven/Londres, Yale University Press, 1978, p. 222. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público isto é, a reconhecer um direito à secessão para grupos minoritários constituídos em povos por causa da sua discriminação sistemática, da violação dos seus direitos fundamentais ou da sua impossibilidade de participar nas decisões políticas112. A elaboração doutrinal desta noção é essencialmente realizada com base em fontes textuais e não na prática internacional. Nesse sentido, a Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral de 1970, cujo um grande número de regras reflete o direito consuetudinário, configura uma “cláusula de salvaguarda” logo depois de ter consagrado o direito dos povos à autodeterminação. Assim, depois de ter expressamente previsto que: “Nada nos parágrafos precedentes deve ser interpretado como autorizando ou encorajando qualquer ação que possa desmembrar, ou danificar, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes”, a Resolução recorda o princípio da igualdade de direitos dos povos a dispor de eles mesmos, nomeadamente através de “um governo representando todo o povo que pertence ao território, sem distinção de raça, credo ou cor” (§7). De acordo com a doutrina em favor da secessão-remédio, o dever de respeitar a integridade territorial de um Estado existe e apenas se manteria, se e enquanto os direitos dos grupos minoritários não são violados gravemente e sistematicamente. Posteriormente, outros textos recordaram este dever. Tal é o caso da Declaração de Viena sobre os Direitos Humanos de 12 de julho de 1993113, ou ainda da Resolução 50/6 da 112 As condições de aplicação que têm mais crédito são as seguintes. (1) Deve tratar-se de um “povo”, ou seja, de uma minoria suficientemente delineada no contexto de um território, quer objetivamente (etnia, raça, religião, etc.), quer subjetivamente (estigmatização, sentimento de solidariedade). Essa minoria deve também formar uma maioria numérica numa parte do território nacional. Esta é a condição para que ela possa ser pressentida para uma secessão. Se a minoria não for assim ligada a uma porção do território, mas for dispersa, a secessão não é de nenhuma forma praticável. (2) As violações dos direitos dessa minoria devem ser graves e persistentes (estruturais), demostrando uma impossível vida futura em comum com o grupo majoritário, opressor. Trata-se de uma recusa de participação representativa no Governo, de perseguições, de discriminação, de violações massivas dos direitos das minorias e dos direitos humanos. Estas violações devem conduzir a graves consequências sobre a vida dos povos em questão. (3) A ausência de alternativas praticáveis para uma solução pacífica do diferendo, nomeadamente pela recusa de cooperação do governo central (ultima ratio). 113 Doc. ONU A/CONF.157/23, §2: “Todos os povos têm o direito de dispor de si mesmo. Em virtude desse direito, determinam livremente o seu estatuto político e perseguem livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural. Dada a situação particular dos povos submetidos ao domínio colonial ou a outras formas de dominação ou ocupação estrangeiras, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece que os povos têm o direito de tomar qualquer medida legítima, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, para realizar o seu direito inalienável à autodeterminação. Ela considera que a negação do direito à autodeterminação é uma violação dos direitos humanos e sublinha a importância que este direito seja efetivamente realizado. De acordo com a Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional relativos às Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados em conformidade com a Carta das Nações Unidas, o acima referido não deverá ser interpretado como autorizando ou encorajando qualquer medida que possa desmembrar ou prejudicar, no todo ou em parte, a integridade territorial ou a unidade 65 66 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL Assembleia Geral de 24 de outubro de 1995114, onde se encontra uma cláusula de salvaguarda semelhante à da Resolução 2625 de 1970 relativa às “Relações de amizade entre os Estados”, mas que considera desta vez também o caso em que o Governo não seria representativo de toda a população que pertence ao território “sem discriminação nenhuma”, e já não apenas com base em raça, credo ou cor. A elaboração doutrinária desta noção também foi forjada a partir de alguns precedentes, tanto judiciários como quase-judiciários. Assim, no seu parecer relativo ao Congresso do Povo Katanga, de 1992115, a Comissão Africana dos Direitos Humanos declarou que “a autodeterminação pode ocorrer em uma das seguintes maneiras: independência, autogoverno, governo local, federalismo, confederalismo, unitarismo ou de qualquer outra forma de relações consistentes com as aspirações do povo, mas reconhecendo os outros princípios estabelecidos, como a soberania e a integridade territorial” (§4). Considerando-se “obrigada a salvaguardar a soberania e a integridade territorial do Zaire, que é um Estado Membro da OUA” (§5), ela considera: “Na ausência de provas tangíveis para apoiar as violações dos direitos humanos de tal forma que é necessário pôr em causa a integridade territorial do Zaire e na ausência de qualquer prova que atesta a recusa ao Povo Katanga do direito de participar na condução dos assuntos públicos, em conformidade com o artigo 13(1) da Carta Africana, a Comissão sustenta que o Katanga é obrigado a usar uma forma de autodeterminação que seja compatível com a soberania e a integridade territorial do Zaire”(§6). Ela conclui que “a queixa não contém nenhuma prova de violação de quaisquer direitos no âmbito da Carta Africana” e que “o pedido de independência do Katanga não tem nenhum fundamento nos termos da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos” (dispositivo). Portanto, a Comissão não entrou em detalhes sobre a questão de saber se essa doutrina era ou não era, em última análise, recebida em direito política de Estados soberanos e independentes respeitosos do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos e, portanto, dotados de um Governo que representa a totalidade da população pertencente ao território sem qualquer distinção” (grifo nosso, tradução nossa). 114 Nesta declaração, aprovada na ocasião do cinquentenário da ONU, os Estados comprometem-se a: “Continuar a reafirmar o direito de todos os povos de dispor de si mesmos, tendo em conta a situação particular dos povos submetidos ao domínio colonial ou à outras formas de dominação ou ocupação estrangeiras, e reconhecer o direito dos povos de tomar medidas legítimas, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, para realizar o seu direito inalienável à autodeterminação. Isso não deverá ser interpretado como autorizando ou encorajando qualquer medida que possa desmembrar ou prejudicar, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes respeitosos do princípio da igualdade dos direitos e da autodeterminação dos povos e, portanto, dotados de um governo que representa toda a população pertencendo ao território, sem qualquer distinção” (grifo nosso, tradução nossa). 115 Comunicação 75/92 (disponível em: http://www.achpr.org/files/sessions/16th/comunications/75.92/ achpr16_75_92_fra.pdf/): “A comunicação foi introduzida em 1992 pelo Sr. Gérard Moke, Presidente do Congresso do Povo Katanga para pedir que a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos reconheça o Congresso do Povo Katanga como um movimento de libertação tendo de ajudar Katanga a adquirir a sua independência; reconheça a independência de Katanga; ajude a obter a evacuação do Zaire do território Katanga” (§1, tradução nossa). O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público internacional positivo. Ao nível nacional, pode-se citar um acórdão de 31 de julho de 1995 do Tribunal Constitucional Russo sobre a Constitucionalidade de Determinados Decretos Presidenciais e Despachos do Governo Federal sobre a Situação na Chechénia116. Neste caso, onde estavam em causa as limitações dos direitos fundamentais num contexto de conflito armado não internacional de caráter secessionista, o Tribunal considerou que em nome da preservação da integridade do Estado em suas dimensões interna e externa – que constituem um dos fundamentos da ordem constitucional da Federação Russa – o Presidente bem como o Governo teriam o direito de decretar atos que ordenassem a aplicação de medidas de coerção estadual, incluindo o recurso às forças armadas. Este facto levava necessariamente a restrições dos direitos fundamentais. Sempre ao nível nacional, ainda pode ser reportado o parecer de 20 de agosto de 1998 sobre a Secessão do Québec do Supremo Tribunal do Canadá. Questionado sobre a possibilidade de existir em direito internacional um direito de secessão unilateral, o Tribunal responde: “Alguns dos que apoiam uma resposta afirmativa baseiam-se no direito reconhecido à autodeterminação que pertence a todos os ‘povos’. Embora seja certo que a maior parte da população do Québec partilha muitos dos traços que caracterizam um ‘povo’, não é necessário decidir a questão da existência de um ‘povo’, seja qual for a resposta correta a esta questão no contexto do Québec, uma vez que um direito de secessão só surge ao abrigo do princípio da autodeterminação dos povos em direito internacional no caso de um ‘povo’ governado como parte de um império colonial, no caso de um ‘povo’ sujeito à subjugação, ao domínio ou à exploração estrangeiras, e também, talvez, no caso de um ‘povo’ impedido de exercer utilmente o seu direito à autodeterminação no interior do Estado a que pertence. Em outras circunstâncias, aos povos é reconhecido o direito de exercer a sua autodeterminação no quadro do Estado ao qual eles pertencem. Um Estado cujo Governo representa todo o povo ou os povos residentes no seu território, em igualdade e sem discriminação, e que respeita os princípios de autodeterminação em suas disposições internas, tem direito à manutenção da sua integridade territorial em virtude do direito internacional e ao reconhecimento desta integridade territorial pelos outros Estados. O Québec não constitui um povo colonizado ou oprimido, e tampouco se pode pretender que aos Quebequenses seja recusado um acesso real ao Governo para prosseguir o seu desenvolvimento político, económico, cultural e social. Nestas circunstâncias, ‘a Assembleia Nacional, a legislatura, ou o Governo do Québec’ não possuem, em virtude do direito internacional, o direito de proceder unilateralmente à secessão do Québec do Canadá”. O Supremo Tribunal canadiano, contudo, acrescenta esta importante 116 Texto disponível em Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, 1997, vol. 54, p. 180. 67 68 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL precisão: “Apesar de não existir um direito de secessão unilateral nos termos da Constituição ou do direito internacional, isto não exclui a possibilidade de uma declaração inconstitucional de secessão levando a uma secessão de facto. O sucesso final de tal secessão seria dependente do seu reconhecimento pela comunidade internacional que, para decidir de conceder ou não este reconhecimento, é suscetível de considerar a legalidade e a legitimidade da secessão, tendo em conta especialmente a conduta do Québec e do Canadá. Mesmo se concedido, tal reconhecimento, no entanto, não forneceria qualquer justificação retroativa para o ato de secessão, nos termos da Constituição ou do direito internacional”. Em ambos os casos nacionais mencionados, as jurisdições chamadas a pronunciar-se afastam a secessão-remédio, afirmando que, mesmo supondo que ela se aplica, as suas condições não estariam reunidas no caso trazido à sua atenção. No caso do Québec, o Supremo Tribunal argumenta ao contrário in abstracto. Os autores favoráveis à secessão-remédio admitem que a prática dos Estados não é muito conclusiva. Isto não é surpreendente, sobretudo quando consideramos o apego dos Estados à sua integridade territorial. Os autores favoráveis à doutrina da separação-remédio evocam os casos muito especiais do Bangladesh (1971)117 ou doravante do Kosovo (1999-2008)118. Ora, este último caso é um tanto ambíguo. A denominada comunidade internacional – em especial o Conselho de Segurança – mostrou-se, de facto, inequivocamente empenhada na manutenção da integridade territorial da Sérvia, mesmo que apenas para evitar os efeitos de dominó na região instável dos Balcãs. O estado da prática internacional não permite concluir por uma existência de um tal direito de secessão. A Resolução 2625 (XXV) e os textos que retomam a sua disposição-chave não podem ser interpretados nesse sentido. De facto, o argumento da secessão ultrapassa muito claramente o texto. Este limita-se a consagrar um dever de os Estados em associar os grupos minoritários e em conceder-lhes direitos. É totalmente omisso acerca das consequências da violação desse dever. Poderá ser extraído um direito tão exorbitante como a secessão, em virtude de tal silêncio? Além disso, poder-se-ia ver na disposição da Resolução 2625 (XXV) uma cláusula de aplicação geral, ou deveria esta ser limitada a situações de descolonização? Os trabalhos preparatórios são pouco claros e não são suficientes, em qualquer caso, para permitir afirmar um direito tão extremo como a secessão119. De resto, será que se pode realmente afirmar que esta vertente 117 Ver nomeadamente John Dugard, David Raič, « The role of recognition in the law and practice of secession », in M. Kohen (ed.), Secession: International Law Perspectives, Cambridge, Cambridge University Press, 2006, pp. 120-123. 118 Ver nomeadamente Christian Tomuschat, « Secession and self-determination », in M. Kohen (ed.), Secession: International Law Perspectives, op. cit., p. 38. 119 Ver Marcelo Kohen, « Introduction », in M. Kohen (ed.), Secession: International Law Perspectives, op. cit., p. 11. O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público particular da Resolução 2625 (XXV), interpretada no sentido da secessão-remédio, refletiria o direito internacional consuetudinário, considerando a hostilidade geral dos Estados à secessão? O que pode ser dito da jurisprudência? Para além da questão teórica de saber se o juiz pode “criar” o direito internacional ou se este privilégio é limitado aos Estados, deve-se notar que nenhum precedente judiciário consagra o direito de secessão de último recurso. Os juízes limitam-se a evocar a doutrina; eles não afirmam o seu estatuto como direito positivo; e afastam-no cada vez nos casos, considerando de qualquer maneira como não se encontrando reunidas as suas condições. Consequentemente, os argumentos a favor da secessão-remédio revelam-se insuficientes para fundamentar uma instituição jurídica contrária à integridade territorial do Estado. Para prever uma exceção a este princípio, seria necessária uma norma jurídica clara. Mas aqui, tal norma excecional não é minimamente estabelecida. É possível acrescentar que a secessão de último recurso não resolveria, na maioria dos casos, os problemas, mas criaria outros novos. Efetivamente, sobre a parcela do território secessionista, haverá frequentemente novas minorias que arriscarão em se sentir oprimidas. Os nacionais do antigo Estado unitário correm o risco de ser objeto de represálias. Estas minorias serão tentadas a emigrar (limpeza étnica?) ou a formar estruturas paralelas com intuitos novamente secessionistas (como aconteceu, por exemplo, no norte do Kosovo). Em vez de resolver um problema, ele só se moveu. E que dizer dos conflitos armados que esta noção convidaria a desencadear para exercer o direito de secessão? Estes conflitos causariam sofrimentos indescritíveis às populações, assim como a violação a mais massiva e generalizada dos seus direitos humanos fundamentais. Para proteger alguns desses direitos terão sido sacrificados outros, numa escala provavelmente muito mais significativa. Não é possível ignorar tais consequências. Mesmo admitindo que o princípio da secessão-remédio seja estabelecido em direito internacional geral – quod non –, sempre restaria determinar se as suas condições de aplicação estão reunidas. Em particular, ter-se-ia de determinar se a “população” cabinda sofre graves discriminações e violações maciças dos seus direitos humanos. Atrocidades e massacres foram, de facto, avançados em várias fontes, mas nunca foram objetivamente estabelecidos. A maioria das críticas focaliza-se mais modestamente sobre detenções arbitrárias e sobre a ausência de garantias judiciais adequadas. Ademais, devemos acrescentar o facto de que, por virtude do dinamismo que a elite cabinda tem manifestado desde os tempos coloniais, a presença de executivos originários do enclave pareça ser sobre-representada na sociedade política e civil angolana120. Portanto, a população, relativamente modesta, da província de Cabinda não é de nenhuma forma segregada e excluída do poder político, nem ao nível nacional, onde os Cabindas têm exercido e exercem responsabilidades políticas nos órgãos executivo e legislativo, nem sequer ao nível 120 Carlos Blanco de Morais, A autodeterminação dos povos (…), op. cit., p. 312. 69 70 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL local, onde as autoridades eleitas desfrutam de uma certa autonomia. Em suma, a situação em Cabinda é semelhante a centenas de outras situações no mundo. Isto não é suficiente para exercer o alegado direito, altamente excecional, de secessãoremédio. Concluir de outra forma significaria que na maioria dos Estados do mundo, existiriam vários “povos” com um direito de secessão..., um processo sem fim. Cabinda e a sua população fazem parte integrante de Angola. Enquanto grupo étnico em Angola, a população de Cabinda não tem um direito à secessão internacionalmente reconhecido. Se ele tentasse impor uma secessão pela força, parece claro que a União Africana (UA) tomaria a respeito dela uma posição claramente desfavorável. Ela condenaria as ações violentes de separação e adotaria provavelmente sanções. Ao mesmo tempo, ela iria tentar favorecer as negociações à luz de uma solução política do diferendo, em particular com medidas de autonomia local. Na esteira das medidas coletivas adotadas sob a égide da UA, haveria também, provavelmente, o não-reconhecimento da entidade secessionista, se esta devia ter conseguido estabelecer-se independentemente, por pouco que fosse, no seu território. O precedente das Comores é elucidativo a este respeito121. Estas tendências seriam ainda reforçadas se a secessão fosse obtida através da intervenção de Estados terceiros. Seria, então, aplicável o dever de nãoreconhecimento de situações territoriais criadas por um uso ilícito da força122. 5. Conclusões Da análise dos argumentos invocados para tentar justificar a independência de Cabinda, chegamos às seguintes conclusões. Em primeiro lugar, Cabinda nunca constituiu no século XIX um Estado independente com o qual Portugal teria podido concluir tratados de protetorado que garantissem o respeito pela integridade do território do primeiro pelo segundo. Os acordos que foram então celebrados pelas potências coloniais com os chefes indígenas apenas tinham por objetivo fortalecer o título jurídico sobre territórios muito cobiçados. Estes acordos com os chefes locais não foram reconhecidos como tratados internacionais. Em seguida, se o Acordo de Alvor de 1975, pelo qual Portugal incorporou explicitamente Cabinda no território do Estado recém-independente de Angola, parece apresentar irregularidades em relação ao direito interno português da época, estas explicam-se facilmente à luz do período revolucionário em que foi celebrado. Elas não podem pôr em causa, nem ontem nem hoje, a validade internacional ou interna deste acordo, que deixou de vigorar com a independência de Angola e cujo objetivo era implementar o direito do povo angolano a dispor de si mesmo, de 121 Ver Fatsah Ouguergouz, Djacoba L. Tehindrazanarivelo, « The question of secession in Africa », in M. Kohen (ed.), Secession: International Law Perspectives, op. cit., pp. 257ss, especialmente pp. 269-272. 122 Direito internacional consuetudinário, codificado no artigo 41 §2 dos Artigos sobre a Responsabilidade dos Estados (2001). O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público acordo com o direito internacional. Finalmente, Angola não é uma potência ocupante, nem uma potência colonial123. De facto, a República de Angola, como antigo território colonizado por Portugal, no qual sempre foi envolvido Cabinda, conquistou a sua independência em 1975, após um processo de descolonização impondo a observância do princípio do uti possidetis juris. Desta forma, as fronteiras atuais do Estado angolano sempre foram reconhecidas, tanto pela ONU como pela UA, como incluindo o enclave. Não existe nenhum direito de secessão unilateral em direito internacional. A população de Cabinda apenas pode revindicar uma melhoria do respeito pela autodeterminação interna, ou seja, um respeito mais desenvolvido pelos direitos humanos. Todavia, uma eventual violação desses direitos não ativa, no estado do direito internacional positivo atual, um direito à secessão. Porto/Genebra, 16 de novembro de 2012 123 Nota-se que a Constituição Angolana afirma no artigo 12, §2: “A República de Angola defende a abolição de todas as formas de colonialismo, agressão, opressão, domínio e exploração nas relações entre os povos”. 71