Cosmorama [do grego kósmos, universo + hórama, espetáculo], s. m., conjunto
de imagens ampliadas por instrumentos óticos; local em que essas imagens são
expostas ou instrumento com o qual é possível observá-las ampliadamente.
Vestigia Dei
Uma leitura teotopológica
da literatura portuguesa
Vestigia Dei
Uma leitura teotopológica
da literatura portuguesa
José Rui Teixeira
Cosmorama Edições
Rua Nossa Senhora da Paz 90
4470-804 Maia | Portugal
www.cosmorama.pt
Teotopias 01
1.ª edição 2019
ISBN 978-989-8029-72-0
Capa ilustração de José Rodrigues
Impressão Papelmunde
Depósito legal 000000/19
Edição com o apoio da Cátedra Poesia e Transcendência | Sophia de Mello Breyner
Andresen, Universidade Católica Portuguesa [Centro Regional do Porto].
Vestigia Dei
Uma leitura teotopológica
da literatura portuguesa
José Rui Teixeira
À memória de Ruy Belo. Somos ainda
«a grande ilha do silêncio de deus»*.
* Ruy Belo, Todos os poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p. 58. Ruy Belo morreu
há 40 anos, no dia 8 de agosto de 1978. O título desta reflexão evoca o título do seu
poema «Vestigia Dei» (ibid., pp. 35-36) e cada capítulo convoca um verso do poeta.
PÓRTICO
A POUCO E POUCO VEMOS ONDE MORA1
Data de 2014 a antologia Verbo – Deus como interrogação na
poesia portuguesa2, organizada e prefaciada por José Tolentino
Mendonça e Pedro Mexia. Não se trata, com efeito, de uma
antologia de poesia religiosa portuguesa; e mesmo que a sua
leitura possa convocar e provocar interrogações sobre Deus,
o seu propósito – explicitamente expresso – é o de perscrutar
«Deus como interrogação na poesia portuguesa», convocando
para isso 13 poetas nascidos no século XX3. Terei essa antologia
presente ao longo desta reflexão sobre o «lugar de Deus» na poesia, particularmente no contexto da poesia portuguesa. E tê-la-ei
presente na medida em que a interrogação teoliterária – ou especificamente teopoética – pode ser um «lugar»: lugar de interseções e interações, convergências e dispersões, encontros e
desencontros; e o poema(-lugar) onde essa interrogação assoma
pode ser concebido como uma «teotopia» da qual nos abeiramos até se tornar uma estância. Para topografar os lugares de
Deus na poesia, talvez tivéssemos de dispor dos rudimentos de
uma ciência como a teotopologia literária.
Com efeito, se a teotopologia literária existisse, não seria apenas uma espécie de topografia de teologemas. Nem teria a pretensão de resultar num estudo sobre a colocação ou disposição,
num texto, de teologemas ou de semantemas análogos ao semantema «Deus».
Se existisse uma teotopologia literária, e se alguma pragmática
lhe assistisse, serviria certamente para estabelecer sistemas de
coordenadas multidimensionais que, nos vastos territórios da
Ruy Belo, Todos os poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p. 35.
José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia (org.), Verbo – Deus como interrogação
na poesia portuguesa, Porto, Assírio & Alvim, 2014.
3
Vitorino Nemésio (1901-1978), Ruy Cinatti (1915-1986), Jorge de Sena (19191978), Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), Fernando Echevarría
(1929), José Bento (1932), Ruy Belo (1933-1978), Cristovam Pavia (1933-1968),
Pedro Tamen (1934), Armando Silva Carvalho (1938), Carlos Poças Falcão (1951),
Adília Lopes (1960) e Daniel Faria (1971-1999).
1
2
9
literatura, permitissem situar a teoliterária, analisar a sua organicidade paradoxalmente eutópica e distópica, e documentar a diversidade topológica de teotopias, esses lugares que Deus (como
interrogação) habita, mesmo quando parece habitar apenas o
sentimento da sua ausência.
Se a teotopologia literária existisse, creio que o teologismo seria a sua primeira e mais perigosa tentação. Outras tentações –
benevolamente mais ingénuas – seriam inevitáveis, como a de
sobrepor simplisticamente teotopia e teofania, ou a de supor
uma relação de inerência entre teoliterária e teopneustia.
Se a teotopologia literária existisse, creio que não poderia prescindir de ferramentas como a comoção estésica e a intuição (enquanto pressentimento da verdade).
Tratar-se-ia de uma heurística e tornar-se-ia uma importante
ferramenta para perscrutar Deus como interrogação na literatura. Na literatura em geral e concretamente na poesia, sendo que
a poesia não é apenas um género literário, mas – mais profundamente – uma condição essencial que perpassa e qualifica todas
as formas de arte. E, aqui, importa esclarecer que o deslocamento do objeto não diminui o alcance dessa teotopologia que, em
última análise, não prescindiria dos seus pressupostos nem da
sua metodologia mesmo quando incidisse sobre sistemas mais
vastos, galáxias como a da teoestética.
10
ANTECÂMARA
POR MUITOS ROSTOS GESTOS LONGES DISPERSADO4
Admitamos – mesmo que se trate de um exercício inútil – que
desejamos estabelecer os rudimentos da teotopologia literária.
Não basta, com efeito, resistir à tentação do teologismo, é preciso evitar uma certa tendência reducionista que enferma a história e a teoria da literatura, denunciada por María Negroni em
El arte del error:
Uno de los malentendidos más viejos en materia literaria es el que
se empeña en clasificar las obras en categorías, géneros, escuelas, allí
donde, en sentido estricto, no hay más que autores, es decir, aventuras espirituales, asaltos y expediciones dificilísimas que se dirigen a
un núcleo imperioso y siempre elusivo.5
Isto permite-nos a afirmação de um primeiro pressuposto:
no âmbito da teotopologia literária, o lugar não é um compartimento e nenhuma categoria geral se sobrepõe à experiência
dialógica e comunial – idiossincraticamente considerada – que
ocorre no texto-lugar: o encontro entre o autor e o leitor. A teotopologia literária não pode enfermar da tendência para a compartimentação e catalogação obsessivas, causa e efeito do exercício academista de esquadrinhar, redutoramente, até ao limite
da exaltação do catálogo e da ininteligibilidade (ilegibilidade)
do conteúdo catalogado.
Prescindindo hermeneuticamente da comoção estésica e da
intuição (enquanto pressentimento da verdade), o texto-lugar
será pouco mais do que um cadáver dissecado ou autopsiado; e
o compartimento e o catálogo tornar-se-ão fins em si mesmos,
tendo já perdido o seu importante múnus instrumental.
Ocorre-me a irrepreensível organização e arrumação de uma
biblioteca escolar que conheci há uns anos, obstinadamente
guardada pela sua zelosa bibliotecária. Um observador distraído
4
5
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 109.
María Negroni, El arte del error, Madrid, Vaso Roto Ediciones, 2016, p. 9.
11
julgaria que aqueles livros estavam arrumados por força de não
serem lidos, mas – na verdade – os livros não eram lidos apenas
por força de estarem arrumados.
Com efeito, na sequência de circunstâncias como estas, o maior
dano que uma certa hermenêutica academista e escolar pode
infligir à literatura é, precisamente, a pretensão de ser autossuficiente, a pretensão de deixar no leitor a consciência de que a
hermenêutica literária pode substituir-se à literatura.
Nesse sentido, o ponto de partida do exegeta deveria ser a consciência de que, com o tempo, ninguém trocará a leitura hermenêutica, por muita acuidade e pertinência que lhe assistam, por
um parágrafo do texto interpretado. É isso que nos lembra Ramón Ribeyro nas suas Prosas apátridas:
A crítica não se opõe necessariamente à criação e são conhecidos
casos de criadores que foram excelentes críticos e vice-versa. Mas
geralmente as duas atividades não se dão bem juntas, pois o que as
separa é uma maneira diferente de operar sobre a realidade. Depois
de ler as atas de um colóquio sobre Flaubert fiquei assombrado com
o saber, a inteligência, a argúcia, a subtileza e até com a elegância dos
conferencistas, mas ao mesmo tempo dizia para comigo: «Dentro
de cinco ou dez anos ninguém lerá estes homens que desconstruíram tão lucidamente a obra de Flaubert. Um só parágrafo dele, eu
diria mesmo uma única das suas metáforas, tem mais longevidade
do que estes trabalhos laboriosos». Por que será? Só consigo encontrar uma explicação: os críticos trabalham com conceitos, e os criadores com formas. Os conceitos passam, as formas ficam.6
Afirma-se, assim, um segundo pressuposto: no âmbito da teotopologia literária, os conceitos não se sobrepõem às formas e
a exegese não se sobrepõe nem se substitui ao texto. O mistério
íntimo que habita cada teotopia – enquanto lugar de encontro, mas também de desencontro – não se esquadrinha desde
o exterior, ao modo da dissecação de um cadáver. No âmbito da
teotopologia literária, o exegeta tem de adentrar-se no mistério
6
Julio Ramón Ribeyro, Prosas apátridas, Porto, Edições Ahab, 2011, p. 99.
12
e só alumiará na medida em que se deixar alumiar, sendo o
seu ofício, tantas vezes, apenas o de perscrutar essa lâmpada
apagada «cujo ouro brilha no escuro pela memória da extinta
luz»7, como escreveu Pessoa.
É ainda Ramón Ribeyro quem nos lembra que «a existência de
um grande escritor é um milagre»8. E talvez não seja despropositado afirmar que, na sequência desse milagre, o exegeta pode
bem não ser mais do que uma contingência.
Importa, finalmente, para a afirmação de um terceiro pressuposto, convocar Walter Benjamin e o seu Das passagen-werk:
«“A verdade não há de escapar-nos”, lê-se numa passagem do
epigrama de Keller. Fica assim formulado o conceito de verdade com que se rompe nestas exposições»9. É ainda Benjamin
quem nos adverte: «A história que apresentou as coisas “como
elas realmente foram” foi o mais potente narcótico do século»10.
O terceiro pressuposto pode bem ser este: no âmbito da teotopologia literária, é muito provável que a verdade nos escape.
Mais: na teotopologia literária a verdade é tanto mais referencial,
quanto mais despossuída. Aí se escora a intuição como pressentimento da verdade. Fernando Pessoa escreveu que «não há verdade senão no supô-la»11; seria o mesmo que dizer que não há
verdade senão no pressenti-la: verdade que se pressente e que,
por isso, ocasionalmente escapa e que – mesmo quando não escapa – não se chega a possuir. Sem prescindir – e precisamente
por não prescindir – da acuidade da inteligência, a teotopologia
literária não tem a presunção de apresentar as coisas como elas
realmente são.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 156.
Julio Ramón Ribeyro, Prosas apátridas, p. 23.
9
Walter Benjamin, Libro de los pasajes (N 3 a, 1), Madrid, Ediciones Akal, 2017,
p. 466.
10
Ibid. (N 3, 4), p. 465.
11
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, p. 239.
7
8
13
[1.] CONJETURAR E DESCONSTRUIR12
MESMO AO FALAR DE DEUS EU ME ESQUEÇO DE DEUS13
Há uns anos, em «A primitiva labareda»14, Tolentino Mendonça
repetiu a pergunta de Jean-Claude Pinson, em Habiter en poète15:
«Que relação pode ainda estabelecer a poesia moderna com
qualquer coisa da ordem do sagrado?». E repetiu-a não certamente como quem se dispõe a encontrar uma resposta, mas
como quem se propõe a adentrar-se na pergunta. Não quero
distanciar-me de «A primitiva labareda» de Tolentino Mendonça,
não porque aí encontre uma resposta, mas porque me permite
recentrar o problema na densidade premente da pergunta.
Esta reflexão sobre o lugar de Deus na poesia não parte de um
propósito académico específico mais ou menos definido. Pode
mesmo ser o exercício de uma certa ininteligibilidade propositada, na medida em que se não consigo abranger a extensão de um
conceito como «poesia», como poderei estabelecer os critérios
para a compreensão de uma expressão como «lugar de Deus»?
Mesmo se circunscrevesse esta reflexão à poesia contemporânea;
ou, especificamente, à poesia portuguesa contemporânea, continuaria com um conceito excessivamente extenso. E o problema
não é tanto a abstrata extensão do conceito, mas sobretudo as
concretas dimensões do objeto. Mesmo se me limitasse à obra
poética de um autor, como poderia aí «situar» Deus?
Perscrutar o lugar de Deus (como interrogação) na poesia contemporânea ou na obra de um determinado autor, passa por saber se Deus é aí – ainda – um «nome» possível, ou seja: passa
por saber se nos vastos territórios da poesia – da literatura e da
A partir de um ensaio de 2013: «O vazio que persiste à minha beira. Sobre o lugar
de Deus na poesia contemporânea», escrito para o n.º 224 da revista Igreja e Missão (setembro/dezembro de 2013, pp. 369-384) e posteriormente publicado pela
Cátedra Poesia e Transcendência (Porto, Universidade Católica Portuguesa, 2013).
13
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 374.
14
José Tolentino Mendonça, «A primitiva labareda» (prefácio), in Ana Marques
Gastão, António Rego Chaves e Armando Silva Carvalho, Três vezes Deus, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pp. 9-12.
15
Jean-Claude Pinson, Habiter en poète, Ceyzérieu, Champ Vallon, 1995.
12
15
arte – ainda há teotopias. E esta não é necessariamente uma formulação mais simples. Esta questão não é simples em nenhuma
das suas formulações possíveis, independentemente do enquadramento temporal ou dos processos de redução contextual da
reflexão.
Quando nos perguntamos sobre o lugar de Deus na poesia
contemporânea, talvez admitamos, mais ou menos conscientemente, a existência deste pressuposto: o lugar de Deus na literatura é temporalmente variável. Ou seja: na literatura antiga
ou medieval, Deus ocupava um lugar diferente daquele que
veio a ocupar na literatura moderna ou que ocupa na literatura
contemporânea.
Levanta-se aqui um problema que não é meramente temporal,
mesmo que a pergunta de Jean-Claude Pinson incida concretamente na possibilidade da relação da «poesia moderna» com
qualquer coisa da ordem do sagrado. Presumo que – por «poesia moderna» – Pinson queira dizer «poesia contemporânea»
e optarei por «poesia contemporânea» no sentido de desambiguar a relação com a modernidade.
Nesse sentido, creio que não é problemático considerarmos
contemporânea a literatura do nosso tempo: dos últimos trinta
anos, se tivermos a queda do Muro de Berlim como referência
histórico-simbólica do fim da modernidade – chamemos-lhe
«pós-moderna», nem que seja por uma questão de conveniência circunstancial. Também não creio que seja problemático
aceitarmos, com o propósito bem definido de compartimentação temporal, que um autor da primeira metade do século XX já
não é contemporâneo16.
Podemos desdobrar os espaços transfronteiriços da cronologia da história da
cultura, fazendo uso de outra perspetiva de Walter Benjamin: podemos aceitar –
não sem algumas reservas – que a obra de um autor seja contemporânea em
função do alcance e da perduração da sua legibilidade. Pensemos na vida e na
obra de dois autores como Pascoaes e Pessoa à luz da questão da «legibilidade»
proposta por Walter Benjamin (cf. Libro de los pasajes [N 3, 1], p. 465). Nasceram
em 1877 e 1888, respetivamente; Pascoaes morreu em 1952, com 75 anos, e Pessoa
em 1935, com 47. Pascoaes viveu mais tempo, foi mais reconhecido em vida, teve
mais edições (e inúmeras traduções) e foi significativamente mais lido na primeira
metade do século XX; porém – durante a segunda metade – esta situação inverteu16
16
Não importa esmiuçar aqui esta questão, até porque o lugar de
Deus, ou essa «qualquer coisa da ordem do sagrado» da pergunta de Pinson, seja na poesia, seja nas mais prosaicas expressões
do quotidiano, é uma questão temporalmente enfatizada pelo
processo de secularização, que a modernidade (sob)redimensionou no final do século XIX e durante o século XX, até aos nossos
dias. E, se não importa esmiuçar aqui esta questão, é fundamentalmente porque parece-me uma questão acessória: afirmar
que o processo de secularização expulsou Deus da poesia dos
últimos duzentos anos – ou dos últimos trinta – resulta numa
observação irrelevante, numa generalização precipitada.
E se centramos esta reflexão no aqui e agora da nossa condição, não importa tanto saber se hoje se escrevem (ou se leem)
mais ou menos livros sobre Deus, ou se os seus títulos, explícita
ou implicitamente, integram o semantema «Deus». Ou seja: à
teotopologia literária não importa tanto saber se, proporcionalmente, Deus é mais ou menos evocado, refletido, afirmado ou
negado em obras medievais, nos versos de um poeta romântico
ou nas páginas de um ficcionista contemporâneo. Um estudo
desse género teria certamente algum interesse, mas é pouco relevante para sabermos se Deus é ainda, na poesia – na literatura,
na arte – do nosso tempo, um «nome» possível.
Com efeito, poderíamos tentar situar o problema na expressão do semantema «Deus» num contexto mais circunscrito. Por
exemplo, na poesia portuguesa publicada durante o ano passado. Depois de sabermos quantos livros foram publicados em
Portugal em 2017, precisaríamos saber quantos desses livros
imprimiram poesia e teríamos de, depois de uma leitura criteriosamente analítica e hermenêutica, quantificar ocorrências,
identificar contextos, estabelecer similitudes semânticas e, por
fim, apresentar estatísticas.
-se: hoje, Pessoa não tem apenas mais reconhecimento, mais edições e mais leitores – tornou-se um autor universal. Significa isto que o tempo de um autor não
coincide necessariamente com o seu contexto existencial, mas com o alcance e a
perduração da sua legibilidade.
17
Porém, não importa tanto saber quanto espaço o semantema
«Deus» ocupou nas páginas dos livros de um género literário
específico num determinado período ou numa perspetiva histórico-literária mais geral. Importa, sim, tentar perceber o modo
como Deus (como interrogação) tem habitado não só as páginas
dos livros, mas também o imaginário dos seus autores, seja na
homilética barroca, nos labirínticos enredos dos românticos e
dos existencialistas, ou nas derivas dos experimentalistas. E perceber o modo como Deus tem habitado o imaginário dos escritores, implica – de alguma maneira – tentar perceber o modo
como tem habitado o imaginário dos leitores. E é isso que define
a teotopia literária: não se trata de um «templo», reduto de um
sagrado abstrato e interdito, mas de um lugar despossuído (penso em periferias ou em baldios), um lugar coabitado, cuja referencialidade mais íntima é a da presença e da ausência.
Existe a consciência generalizada de que nos nossos dias Deus
(a ideia de Deus, o mistério de Deus, Deus como interrogação)
é uma questão secundária. Do mesmo modo, considera-se que
terá sido uma questão fundamental na Idade Média, tão insistentemente caracterizada e compartimentada como teocêntrica
e, também por isso, tão depreciada. Devemos este tipo de perspetivas ao simplismo com que se estabelecem os estereótipos.
Seria desnecessário – e mesmo risível – perguntarmos quantos
contemporâneos de Francisco de Assis terão experimentado a
intensidade incendida da sua espiritualidade ou quantos contemporâneos de Tomás de Aquino terão discutido as implicações da sua Suma de Teologia. É evidente que o comportamento
de Francisco de Assis constituía uma excentricidade – e até mesmo um escândalo – para a generalidade os seus contemporâneos, mesmo no meio eclesiástico, onde não faltou quem o considerasse herético; e foram raros os interlocutores intelectuais de
Tomás de Aquino – terão sido mais os que reagiram à fama da
sua eloquência do que os que se adentraram nas profundezas do
seu pensamento teológico e filosófico.
Talvez não seja fácil aceitarmos que em todas as sociedades
existe uma percentagem pouco relevante e mais ou menos estável
18
de pessoas para quem a questão de Deus – a ideia de Deus, o
mistério de Deus, Deus como interrogação – é uma dimensão
importante das suas vidas. Com efeito, independentemente da
diversidade e da especificidade dos contextos sociológicos, eclesiais e histórico-culturais, a generalidade das pessoas – na Idade
Média ou nos nossos dias – não considera essa uma questão estruturante e existencialmente relevante. E considerar a questão
de Deus como estruturante e existencialmente relevante não depende de as igrejas estarem cheias ou vazias, nem de se tratar de
um meio urbano ou de um meio rural, nem de se observarem
mais ou menos práticas religiosas, nem de se tratar de uma sociedade com mais ou menos promiscuidade institucional entre
a Igreja e o Estado.
Não creio que em Portugal o número de batizados – ou mesmo
o número de pessoas com o mínimo de implicação eclesial – seja
determinante para revalorizar a questão de Deus nas suas implicações e expressões mais profundas. Quero com isto relativizar
o argumento da diferenciação espácio-temporal, ou seja: creio
que a questão de Deus não é necessariamente mais considerada
num contexto medieval ou rural – em que a Igreja tem uma presença institucional, sociológica e tradicional mais evidente – do
que nos labirintos desta indefinida pós-modernidade, nas encruzilhadas das nossas grandes cidades. Do mesmo modo, uma
poesia em que o semantema «Deus» é recorrente não considera
necessariamente mais a questão de Deus do que uma poesia em
que esse semantema é fundamentalmente omisso.
Importa ainda afirmar que a questão de Deus – a ideia de Deus,
o mistério de Deus, Deus como interrogação – está longe de ser
uma questão circunscrita aos meios religiosos sociologicamente
demarcados. No caso concreto da literatura portuguesa dos últimos duzentos anos, o contributo de autores considerados ateus,
agnósticos ou apenas anticlericais para a reflexão sobre a questão de Deus não foi menos profundo nem menos consequente
do que o do pensamento teológico em contexto académico ou
eclesial.
19
[2.] UMA TERRA DE POETAS
E UM POVO DE SUICIDAS
DOU CAÇA UM POR UM AOS MEUS FANTASMAS17
António José Saraiva escreveu sobre o «novelo afetivo»18 que
caracteriza a «personalidade portuguesa», novelo afetivo que
implica, entre outras particularidades idiossincráticas, um certo sentimento de insularidade, o messianismo sebastianista e a
saudade, e que aparece «a observadores estrangeiros como desnorteante e paradoxal»19. Esta afirmação transporta-nos para
Lisboa, numa tarde de novembro de 1908. Miguel de Unamuno,
diante do Convento do Carmo, cujas ruínas góticas sobreviveram ao terramoto de 1755, desabafa: «pensaba qué terremoto
íntimo, moral, amenaza este pueblo»20. Depois compra três diários, lê algumas notícias, percorre as ruas da cidade e escreve:
Entre tanto van y vienen las gentes de esta ciudad cosmopolita;
parecen contentas, ríen, gesticulan, acuden a sus negocios o sus
distracciones. Y un satisfecho podría decirles al verlas: «Éste es un
pueblo como todos los demás; aquí no pasa nada». Y, sin embargo,
Portugal, esta misma tierra, es un pueblo triste.
Es si, un pueblo triste. Y de aquí el encanto que para algunos tiene,
a pesar de la evidente trivialidad de sus manifestaciones exteriores.
Portugal es un pueblo triste, y lo es hasta cuando sonríe. Su literatura […] es una literatura triste.21
O que é que Unamuno viu – pressentiu – nas ruas de Lisboa?
O que é que faz deste povo, aos seus olhos, um povo triste mesmo quando sorri? E o que é que faz da sua literatura uma literatura triste? Unamuno vai mais longe e escreve: «Portugal es un
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 211.
António José Saraiva, A Cultura em Portugal – Teoria e História (vol. I), Lisboa,
Gradiva, 1996, p. 85.
19
Ibid., p. 84.
20
Miguel de Unamuno, «Un pueblo suicida», in Por tierras de Portugal y de España, Madrid, Alianza Editorial, 2011, p. 105.
21
Ibid., p. 106.
17
18
21
pueblo de suicidas, tal vez un pueblo suicida. La vida no tiene
para él sentido transcendente. Quiere vivir tal vez, sí, pero ¿para
qué? Vale más no vivir»22.
Aqui nos situamos numa primeira encruzilhada: se, para António José Saraiva, a cultura portuguesa revela algum «desinteresse pela especulação filosófica à ocidental», assim como a «ausência de polémicas teológicas e de doutrinação propriamente
mística»23, para Unamuno, a vida não tem um «sentido transcendente» para o povo português.
Ainda que se trate de afirmações sem excessivas pretensões
epistémicas, estamos na presença de observações contundentes sobre um povo que, particularmente desde o século XIV,
abdicou da condição europeia que Castela lhe coartava e desenvolveu um certo sentimento de isolamento, porque – entre
Portugal e a Europa – Castela funcionou historicamente como
um deserto isolador, mais do que um espaço de ressonância e
comunicação24.
Esse ensimesmamento, simbolicamente, nimba a sua vocação
atlântica de uma vertigem suicidária: um povo tão afetivamente
apegado às suas raízes, às suas origens, projeta-se numa diáspora que ainda hoje reúne quase um terço dos portugueses. E
se esporadicamente buscou em França, sobretudo a partir do
século XIX, o lenitivo para um persistente sentimento de orfandade25, esse contacto não só não o tornou mais europeu, como
acentuou, por cotejamento, a disforia da sua singularidade.
A intelligentsia portuguesa dos séculos XIX e XX escolheu exprimir-se preferencialmente por meio da literatura, absorvendo vastos domínios do pensamento filosófico e teológico, geralmente autónomos e que, em Portugal, se tornaram difusos.
Importa referir que no final do século XIX, se a condição de teólogo rareava e se circunscrevia a meios clericais mais ou menos
entrincheirados, não existia uma demarcação evidente nem da
Ibid.
António José Saraiva, A Cultura em Portugal, p. 104.
24
Cf. ibid., pp. 81-82.
25
Cf. ibid., p. 107.
22
23
22
condição, nem do âmbito da ação dos filósofos e dos políticos;
todos, mesmo os homens da ciência, procuravam afirmar-se
através do meio literário. Talvez por isso Jaime Cortesão tenha
escrito, em 1911 – a propósito de Teixeira de Pascoaes –, que
«Portugal é uma terra de poetas»26.
Neste contexto, o caso de Antero de Quental é exemplar: a sua
consagração cívica, na conjuntura da resistência ao Ultimato inglês, em 1890, é uma consequência de uma outra consagração,
anterior, significativamente mais profunda: o poeta era considerado um «santo»27, com um estatuto moral e espiritual que,
numa sociedade progressivamente mais secularizada e anticlerical, já não era reconhecido à Igreja. Ao contrário do que se passava em muitos países, onde o herói nacional era geralmente um
chefe militar, em Portugal, no centro do culto patriótico, estava
um poeta28.
Não se trata de um caso isolado ou de algo sem precedentes
na cultura portuguesa: bastaria ter em consideração o prestígio
do rei-trovador D. Dinis e de uma figura como a de Camões, a
quem cabe – no século XVI – a missão de (re)inventar Portugal
em Os Lusíadas, esse livro, o único livro que – nas palavras de
Eduardo Lourenço – «não se pode reescrever, pois foi ele que
nos fez, tal como a nós mesmos continuamos a sonhar-nos»29.
Não é assim de estranhar que, de Almeida Garrett e Alexandre
Herculano a Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, os poetas
sejam reconhecidos como os legítimos representantes do «génio
nacional» .
Aqui nos situamos numa segunda encruzilhada: apesar do «desinteresse pela especulação filosófica à ocidental» e da «ausência
Jaime Cortesão, «O poeta Teixeira de Pascoaes», in Teixeira de Pascoaes, A Saudade e o Saudosismo, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, p. 275.
27
Cf. Eça de Queirós, «Um génio que era um santo», in Antero de Quental – In
memoriam, Porto, Mathieu Lugan – Editor, 1896, pp. 481-483.
28
Sobre a condição e o múnus do poeta, não especificamente no contexto português: Luis Alegre Zahonero, El lugar de los poetas – Un ensayo sobre estética y
política, Madrid, Ediciones Akal, 2017.
29
Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade,
Lisboa, Gradiva, 1999, p. 154.
26
23
de polémicas teológicas e de doutrinação propriamente mística»,
e apesar de, aos olhos de Unamuno, a vida não ter para este povo
um «sentido transcendente», a tendência dominante do pensamento filosófico português, entre a segunda metade do século
XIX e a primeira metade do século XX, é precisamente a filosofia da
religião, situada no âmbito de uma «meta-religião»30, que acaba
por ser a expressão da saudade, enquanto nostalgia do absoluto
(numa aproximação à Sehnsucht alemã), premente nas formulações do messianismo sebastianista, do Quinto Império e do Encoberto, de Sampaio Bruno a Fernando Pessoa, à Era Lusíada e
ao saudosismo de Teixeira de Pascoaes.
Compreende-se assim que, em 1922, em Madrid, Leonardo
Coimbra tenha afirmado que «a moderna poesia portuguesa é
fundamentalmente de ordem religiosa. Representa, desde Antero,
por Nobre e Junqueiro, até Pascoaes, uma crise de valores espirituais interpretativos e diretores da Vida»31.
Regressamos a Antero, porque é precisamente nele que descobrimos «as ruínas e os escombros interiores, a inquietação
moral e metafísica, numa reinvenção da missão do poeta»32.
É isso que faz de Antero de Quental, nas palavras de Eduardo
Lourenço, «um místico em estado um pouco menos selvagem
do que Rimbaud, numa cultura que odeia de instinto o diálogo direto, real ou imaginário, à Bergman, com Deus ou a sua
ausência»33. Por isso, o seu suicídio «não é uma peripécia subjetiva, nem uma tragédia sentimental ou cultural, à Werther ou
Chatterton, é o último ato de uma vida que desejou tocar a face
de Deus e não a encontrou»34. Com efeito, Antero levou até às
«Antiteologia» ou «crença substituta», conceitos de George Steiner (cf. Nostalgia
do Absoluto, Lisboa, Relógio d’Água, 2003, p. 13).
31
Leonardo Coimbra, «Sobre la moderna poesía portuguesa», in Obras Completas
V (1922-1923) / Tomo I, Lisboa, INCM, 2009, p. 42.
32
José Tolentino Mendonça e Paulo Pires do Vale, «Literatura religiosa. Época contemporânea», in Carlos Moreira Azevedo (dir.), Dicionário de História Religiosa de
Portugal (vol. J-P), Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p. 132.
33
Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, p. 43.
34
Ibid., pp. 43-44.
30
24
últimas consequências aquilo que se pressente em tantos outros
poetas portugueses, mesmo naqueles em quem, muitas vezes,
a «exploração do desejo e o risco da confissão dão lugar ao
tradicionalismo métrico e louvor de um Portugal rural e de um
povo crente»35, como acontece com a generalidade dos poetas
neorromânticos.
Uns resilientes, outros dissidentes, entre profissões de fé e apostasias, com mais ou menos intensidade mística, com mais ou menos tragicidade, o que os une é a abertura – tantas vezes agónica
– à transcendência, a procura que se desdobra em instantes de
perda e abandono.
Entre encontros, desencontros e reencontros, muitos evocam a
fé perdida, uma fé puída pelas agruras e vicissitudes da vida. Tal
como Antero de Quental36, Cesário Verde37 e António Nobre38,
Camilo Pessanha procura alhear-se de Deus e lamenta-o, até porque se pressente, implícita na sua poesia, uma profunda tensão
espiritual, eivada de uma saudade de si próprio, uma saudade da
infância e uma saudade desse Deus que seria lenitivo para o desterro e impediente do afundamento:
Eu mesmo quero a fé, e não a tenho...
– Um resto de batel – quisera um lenho,
Para não afundir na treva imensa,
O Deus, o mesmo Deus que te fez crente...
Nem saibas que esse Deus omnipotente
Foi quem arrebatou a minha crença.39
José Tolentino Mendonça e Paulo Pires do Vale, «Literatura religiosa. Época contemporânea», p. 134.
36
«Deixá-la ir, a alma lastimosa,/ Que perdeu fé e paz e confiança»; «O último lírio,
a Fé, secou-se… morre…» (Antero de Quental, Poesia Completa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, pp. 251 e 354).
37
«Nós ignoramos, sem religião,/ Ao rasgarmos caminho, a fé perdida» (Cesário
Verde, O Livro de Cesário Verde, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 124).
38
«Pedi-te a fé, Senhor! pedi-te a graça,/ mas não te curvas nunca p’ra me ouvir»;
«Não creio em nada! e fui tão religioso!» (António Nobre, Poesia Completa, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 2000, pp. 383 e 395).
39
Camilo Pessanha, Clepsidra e outros poemas, Porto, Lello Editores, 1997, p. 193.
35
25
Com efeito, nas antologias de poesia religiosa portuguesa40,
encontramos menos os pedregosos e íngremes caminhos que
alguns poetas percorreram no sentido de perscrutar Deus como
interrogação, enquanto abundam exemplos de uma familiaridade inquestionada e autocomprazida, que prescindem das tensões mais profundas da experiência espiritual, como se muitos
poetas descansassem «numa cómoda satisfação de conhecer ou
de dizer Deus»41.
Concordo com José Tolentino Mendonça e Paulo Pires do Vale,
quando afirmam que
Literatura e Religião iluminam aquilo que se encontra tatuado em
algumas interrogações humanas: a necessidade de organizar a nossa experiência do mundo; colocar em diálogo o finito que somos e
o infinito que irrompe dentro de nós e da história; decifrar o silêncio ardente da presença de Deus.42
Se isto é evidente em obras poéticas como as de Sophia, Ruy
Belo e Daniel Faria, não é menos impressivo na poesia Herberto
Helder43 e Jorge Melícias44, poetas que dificilmente se acomodariam numa antologia deste tipo.
40
Destaco três antologias: Cem das melhores poesias religiosas da língua portuguesa,
organizada por César de Frias (Lisboa, Guimarães e C.ª, 1932); Antologia de poesias religiosas, organizada por Guilherme de Faria (Lisboa, Edições Gama, 1947);
e Na mão de Deus – Antologia de poesia religiosa portuguesa, organizada por José
Régio e Alberto de Serpa (Lisboa, Portugália Editora, 1958). Nataniel Costa, em
1952, escolheu 31 poemas para a edição de Cristo – tal como os pintores, escultores
e poetas portugueses O viram, sentiram e entenderam (Lisboa, Editorial Estúdios
Cor, 1952). E, em 1973 e 1974, são publicados os dois volumes de Poesia e Teologia
– poetas de língua portuguesa, antologia organizada por António de Azevedo Pires
(Lisboa, União Gráfica, 1973 e 1974).
41
José Tolentino Mendonça e Paulo Pires do Vale, «Literatura religiosa. Época contemporânea», p. 134.
42
Ibid., p. 130.
43
É muito interessante o texto de Tolentino Mendonça, na revista do Expresso,
aquando da morte de Herberto Helder: «Até que Deus é destruído pelo extremo
exercício da beleza», in E, Edição 2213, 28 de março de 2015, p. 10.
44
Eu próprio o referi em «Onde a resiliência da pedra toca a exação da fratura.
Leituras da poesia de Jorge Melícias», posfácio à edição de Alvídrio (Maia, Cosmorama Edições, 2014, pp. 175-190).
26
[3.] A MORTE DO [MITO DO]
POETA ROMÂNTICO
O SOL ESCURECEU E NÃO SE OUVIA A VOZ45
Não creio que Deus – a ideia de Deus, o mistério de Deus, Deus
como interrogação – esteja menos presente na poesia deste
mundo «largamente desdivinizado» em que vivemos, mesmo
que a secularização pareça ter prescindido da condição e do
múnus do mito do poeta romântico, mesmo que, no século XX,
a condição de poeta e o ofício da poesia tenham perdido um
certo halo hierático.
Com efeito, o processo de secularização, como o entendemos
nas suas descrições mais consensuais, implica que aceitemos
que até ao crepúsculo da Idade Média o sagrado se sobrepunha
ao profano. Trata-se, com efeito, de uma perspetiva distorcida,
sob os escombros de tantos preconceitos, algures entre o fantasma da «idade das trevas» e as representações românticas do
simbolismo neomedievalista do final do século XIX. Se, por um
lado, nutrimos cruéis preconceitos em relação à Idade Média,
por outro, mitificamos – embevecidos – uma espécie de idílio
monástico, sob a magnífica abóboda de uma estética «sacra»:
igrejas e oratórios, edénicos claustros, pinturas, vitrais e esculturas, bibliotecas com preciosos códices, mobiliário, paramentos
e todo o tipo de alfaias litúrgicas, tudo isto envolvido pelo rumor do canto gregoriano ou das primícias da polifonia.
Quase nos esquecemos que até o monaquismo mais arreigado
às «coisas de Deus» participa inerente e ativamente das «coisas
do mundo». O beneditino ora et labora pode bem ter sido um
modo de resistência à tentação maniqueísta de separar o sagrado e o profano, mesmo que o monaquismo represente a mais
eloquente expressão dessa separação. É curioso como parece ter
sido tão fácil domesticar a consciência de que a incarnação de
Cristo representa o fim dessa dicotomia.
45
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 196.
27
Talvez o sagrado nunca se tenha sobreposto ao profano,
mesmo em experiências teocráticas ou em contextos como o
da Florença de Savonarola. O ocasional ascendente do sagrado
não está nas dimensões do fenómeno, mas nas especificidades
conjunturais do seu exercício de influência. Depois de um longo e arrastado processo de secularização, não é tanto a dicotomia que está esbatida, mas os domínios do sagrado que são
residuais e ainda mais escassa a sua influência, sobretudo em
relação aos referenciais sobre os quais se estruturava organicamente a vida das sociedades tradicionais: os ciclos, as referências espácio-temporais, as festividades.
Num mundo «largamente desdivinizado», que engendrou a
mise en scène da «aldeia global», o melhor património arquitetónico dos históricos domínios do sagrado – não apenas do
cristianismo medieval – é hoje pouco mais do que atração turística. E uma boa parte do restante património jaz morto em museus ou em espaços requintados, agora «higienicamente» laicos.
A questão de Pinson («Que relação pode ainda estabelecer a
poesia moderna com qualquer coisa da ordem do sagrado?»)
torna-se extremamente pertinente neste contexto. E a sua reformulação não é uma questão de retórica. Assumi «poesia contemporânea» em detrimento de «poesia moderna», por uma
questão de desambiguação em relação à modernidade, e terei
de preterir a expressão «qualquer coisa da ordem do sagrado»,
com o objetivo de possibilitar que as teotopias literárias não
coincidam com o sentido dominante de «sagrado», religiosamente restrito, exclusivo e disjuntivo.
Este não é apenas um problema da teotopologia literária. Do
mesmo modo que a representação Deus já não é um privilégio
da «arte sacra» ou da «arte religiosa» em lato sensu, as teotopias
literárias há muito que não são um privilégio da «literatura religiosa» nem de uma «literatura sagrada» – que remeteria para
o texto teopnêustico e para um outro conceito específico: o de
«sagrada escritura». Para além de hinos e de outras composições poéticas com intencionalidade litúrgica ou devocional, a
poesia religiosa ocupou-se de representações tradicionais, de
28
temática preferencialmente bíblica e hagiográfica. Com efeito,
a poesia religiosa não é por inerência uma teotopia literária: sê-lo-á se aí for possível perscrutar Deus como interrogação, mas
não por ser uma expressão de folk-motives religiosos.
Prefiro, em vez de «qualquer coisa da ordem do sagrado»,
falar de abertura à transcendência ou, arriscando prescindir
da demarcação – também ela dicotómica – entre imanência e
transcendência, escolher os domínios (bem menos suscetíveis à
compartimentação) da «banalidade intranscendente»46 e da
«transimanência»47.
Mesmo que legitimamente aceitemos que em certos períodos
históricos a religião tenha sido um elemento cultural agregador
mais influente, é necessário desconstruir esse lugar-comum que
concebe períodos em que uma sociedade, sendo teocêntrica ou
tendencialmente teocrática, vive imersa em experiências espirituais e até mesmo místicas; e outros períodos em que Deus aparentemente desaparece do mundo dos homens, das suas preocupações ontológicas e existenciais – um «mundo sem Deus»
(conceito que não corresponde a qualquer exemplo histórico de
uma sociedade em que o fenómeno religioso tenha sido mais
ou menos reprimido).
Por outro lado, importa perceber que o mito do poeta romântico não estava isento de limites mesmo quando era predominante. Basta termos em consideração a reação parnasiana, assim como todo o tipo de ocorrências de poesia de intervenção
social, satírica e amorosa48 (ou mesmo erótica) em tom jocoso.
Além disso, a tendência hierática, que vem a encorpar o mito
do poeta romântico, não deixou de ser secular, mesmo que tenha reclamado um múnus profético e oracular.
Conceito de Pedro Castelao (cf. La visión de lo invisible. Contra la banalidad
intrascendente, Moliaño, Sal Terrae, 2015).
47
Conceito de Jean-Luc Nancy (cf. Las Musas, Buenos Aires, Amorrortu Editores,
2008).
48
Ocorre-me o improvável «Não te amo», que Júlio Dinis escreveu em 1857, com
17 anos; trata-se de um poema romântico de desamor, um chiste, um poema picaresco (cf. Poesias, Lisboa, J. Rodrigues & C.ª, 1924, pp. 248-249).
46
29
É interessante que o mito do poeta romântico talvez seja apenas
o mito romântico da missão do poeta que, em França, entre
Nerval e Saint-Pol-Roux, não escapou à fulguração – entre o
flâneur e o boulevardier – de «poetas malditos» como Baudelaire,
Verlaine, Lautréamont e Rimbaud.
Em Portugal, não esquecendo, entre outros, poetas como Gomes
Leal, José Duro e João Lúcio, gostaria de destacar os casos de
Antero de Quental, António Nobre e Teixeira de Pascoaes.
É Antero que, na sequência dos desgastes e desgostos das suas
derivas de «cavaleiro andante»49, permite que o filósofo assassine o poeta, como se lê numa carta de 7 de agosto de 1885, que
escreve a Carolina Michaëlis de Vasconcelos:
o filósofo, que por muito tempo só se exprimiu pela boca do poeta,
acabou por confiscar, por absorver, por devorar o pobre poeta, e
agora que este acabou, impõe-se ao filósofo (para não passar por
um assassino gratuito e aleivoso) a obrigação de ser gente por si só
e de falar pela própria boca. A coleção dos meus Sonetos é o testamento do pobre poeta que acabou. Entro agora numa fase nova, e
tenho jurado consagrar-me daqui em diante, todo e exclusivamente,
ao trabalho de coordenação definitiva das minhas ideias filosóficas
e, se tanto puder, à exposição metódica e rigorosa das mesmas.50
As cartas deste período testemunham, assim, a opção definitiva
pela filosofia, a consciência de que a poesia e, consequentemente,
o poeta já não têm serventia num mundo velho e obscurecido.
Lê-se na mesma carta:
Afinal, aquilo de que o mundo mais precisa, nesta fase de extraordinário obscurecimento da alma humana, é de ideias, é de filosofia
– e a Poesia, voltando a adormecer nos recessos mais misteriosos
do coração do homem, tem de ficar à espera até que o novo Símbolo se desvende e novos Ideais lhe forneçam um novo alimento, lhe
insuflem nova vida… e então voltará a cantar.51
Antero de Quental, «O palácio da ventura», in Poesia Completa, p. 248.
Id., Cartas (vol. II), Lisboa, Editorial Comunicação, 1989, p. 748.
51
Ibid., pp. 748-749.
49
50
30
Num texto de 1881 – «A poesia na atualidade»52 –, encontramos alguns dos argumentos que terão legitimado esta decisão e
percebemos o quanto poderão ter condicionado não apenas o
desfecho da sua obra, mas também o desfecho da sua vida.
No final do século XIX e no princípio do século XX, ao contrário
do que pode parecer, os poetas românticos nem sempre gozaram do beneplácito dos seus coetâneos. Os casos de António
Nobre e de Teixeira de Pascoaes são disso um bom exemplo.
Em 1892, em Paris, o conceituado livreiro Léon Vanier – editor de poetas como Verlaine, Mallarmé e Rimbaud – publica o
Só de António Nobre; nesse mesmo ano, em Coimbra, Sanches
da Gama manda imprimir Nós Todos, uma acerba sátira à poesia de Nobre, assinada com o pseudónimo Estephanio Rimbó,
jocosa combinação dos nomes de Stéphane Mallarmé e Arthur
Rimbaud.
E nem a morte do poeta, em 1900, nem a admiração por parte
de figuras como Fernando Pessoa53 e Raul Brandão, inibiram ataques como o de Albino Forjaz de Sampaio54. Vale a pena ler este
extraordinário apontamento de Brandão, nas suas Memórias:
Fugiam dele antes de publicar o Só; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o Só. Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Viveu
Id., «A poesia na atualidade», in Prosas (vol. II), Lisboa, Couto Martins, s/d, pp.
310-326.
53
Em 1915, A Galera dedica inteiramente um número a António Nobre. Aí, encontramos um comovente texto de Fernando Pessoa, onde se lê: «Quando ele nasceu, nascemos todos nós. A tristeza que cada um de nós traz consigo, mesmo no
sentido da sua alegria, é ele ainda, e a vida dele, nunca perfeitamente real nem com
certeza vivida, é, afinal, a súmula da vida que vivemos – órfãos de pai e mãe, perdidos de Deus no meio da floresta, e chorando, chorando inutilmente, sem outra
consolação do que essa, infantil, de sabermos que é inutilmente que choramos»
(«Para a memória de António Nobre», in A Galera, 1.º ano, n.º 5-6 [25 de fevereiro
de 1915], p. 35).
54
«António Nobre é dos poetas mais queridos do público snob que lê poetas para
apenas lhes citar monossílabos de admirativo êxtase. […] António Nobre é moda,
as suas edições esgotam-se e o poeta tem, hoje ainda, quem lhe pretenda continuar
a obra, restaurando o sosismo como se ele não fosse coisa que com o seu autor nasceu, morreu e com ele foi definitivamente enterrada» (Albino Forjaz de Sampaio,
Os Bárbaros. I. António Nobre, Guimarães & C.ª, 1920, pp. 11-12).
52
31
sempre isolado. […] Entrou na morte como tinha vivido – só. Digamo-lo, digamo-lo… No fundo detestaram-no, detestaram-no todos.
Não lhe puderam perdoar a impertinência, o desdém, o génio. Era
um ser diferente. […] Estávamos todos mortos por nos desfazermos
desse ser à parte, desse eterno cônsul sem consulado, desse estudante
de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas
debalde o arredámos: houve uma coisa nova que passou pelo mundo e que ficou no mundo – que nos ficou na alma… Agora estamos
todos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade, a afetação e o desdém infantil de António Nobre.55
O caso de Pascoaes56 é diferente, mas denuncia a morte do mito
ou mesmo do próprio poeta romântico. Em 1914, António
Sérgio escreve nas páginas d’A Águia, no contexto da polémica57
que os dividiu: «Confesso ser este último carácter – noturnamente sacerdotal –, que na sua pessoa acima de tudo me aterroriza e me conturba»58.
Raul Brandão, Memórias, Lisboa, Quetzal, 2017, pp. 59-60.
Acerca da índole romântica de Pascoaes, Manuel Antunes escreveu: «Se, pelo termo “romantismo”, entendemos, não o culto do folclore nativo, mas o retorno às
fontes originárias da nossa história e do nosso ser de humanos; não o extravasar do
sentimentalismo, porém um modo de sentir erguido a categoria metafísica; se, por
esta palavra, entendemos ainda o predomínio do Mito sobre a Razão, do Sonho
sobre a Vigília, e da Noite sobre o Dia; a afirmação, feita com igual energia, da Subjetividade e da Natureza, como sendo o Real e sua Sombra; o potenciamento da Vida
como devir, em poderoso e incessante impulso cósmico e, se, finalmente, tomamos
como norma histórica de romantismo não qualquer forma derivada – a francesa, a
inglesa, a italiana, etc. – mas a forma original – a alemã – se todas estas hipóteses
se verificam, parece que não haverá dificuldade em aceitar que Teixeira de Pascoaes
foi, não só o nosso maior romântico mas, porventura, o nosso único romântico
completo». E acrescenta: «Um romântico de índole essencialmente religiosa» (cf.
«Três poetas do sagrado: Pascoaes, Pessoa, Régio», in Brotéria 1 [1957], p. 45).
57
Esta polémica, sobre o saudosismo, nas páginas d’A Águia, corresponde a oito
textos – quatro assinados por Sérgio e outros quatro por Pascoaes – publicados
entre outubro de 1913 e julho de 1914 (cf. Teixeira de Pascoaes, A Saudade e o
Saudosismo, pp. 97-154).
58
António Sérgio, «Regeneração e tradição, moral e economia», in Teixeira de
Pascoaes, A Saudade e o Saudosismo, p. 111. E prossegue: «os seus comentários
foram para mim ainda mais transcendentes e incompreensíveis; são de um espírito celeste que nada tem de comum com a minha pessoa humana; pareceu-me que
o meu amigo me refutava com uma sonata de Beethoven. O seu pensar é encantador e feiticeiro. As suas palavras têm a doçura e a insubstância do voo espiritual
55
56
32
António Sérgio procura isolar Pascoaes na «ilha-saudade»59
onde a sua obra e o seu pensamento poético, filosófico e religioso pudessem alucinar quixotescamente sem perturbar o
movimento das engrenagens que, no entendimento de muitos
intelectuais, numa perspetiva por vezes eivada de positivismo
e utopismo, constituíam a esplendorosa máquina do mundo
moderno, esse admirável mundo novo que a I Guerra Mundial
logo soterrou entre as trincheiras, sob tantos escombros.
O mito do poeta romântico ou o mito romântico da missão do
poeta, na sua condição hierática, está em permanente construção e desconstrução, revelem os poetas mais ou menos abertura
à transcendência, mais ou menos familiaridade com a ortodoxia católica, mais ou menos feridas ontológicas e existenciais.
Todas as gerações têm os seus poetas tendencialmente místicos,
antes ou depois das medievais cantigas de escárnio e maldizer,
antes ou depois do ready made.
Há uns vinte anos, poetas nascidos na década de 70 do século
XX discutiam acesamente, evocando paternidades e filiações difusas, primogenituras e bastardias, se eram mais poetas os que
se deixavam impregnar pela realidade e pelo prosaísmo, prescindindo praticamente de uma linguagem metafórica, ou se,
pelo contrário, eram mais poetas aqueles que se apossavam de
uma certa consciência de absoluto, com uma escrita tendencialmente mais hermética, abstrata ou onírica. Tratou-se de uma
questiúncula, algures entre as Elegias de Hölderlin e a Fonte de
Duchamp.
dum silfo; e se fosse possível conceber a claridade de um raio da lua, numa noite
de nevoeiro místico, ao beijar o mais fundo do oceano – eu diria que a sua alma é
alguma coisa ainda de mais delicado e de mais ténue, de mais ultramundano e de
mais puro. Com que sentido deslumbrar a subtilidade do seu verbo? Ele é, para o
meu espírito, o perfume de uma rosa à distância de mil sonhos…».
59
Expressão de Eduardo Lourenço (cf. Portugal como Destino seguido de Mitologia
da Saudade, p. 93).
33
[4.] POESIA RELIGIOSA E TEOTOPIAS POÉTICAS
É MUITO TRISTE ANDAR POR ENTRE DEUS AUSENTE60
Em meados da década de 20, o poeta Guilherme de Faria dedicou-se à organização de uma Antologia de poesias religiosas.
Apesar de ser muito jovem, valeu-se de uma invulgar cultura
literária para reunir 112 poemas, aos quais adicionou 21 quadras populares. Quando, no Natal de 1926, D. Manuel Mendes
da Conceição Santos, arcebispo de Évora, escreveu uma carta-prefácio para esta Antologia de poesias religiosas, Guilherme de
Faria não tinha ainda vinte anos.
Um extenso subtítulo, explica que ali se antologiam poesias religiosas «desde o século XV […] até aos nossos tempos, incluindo
romances e cantigas da tradição popular». Na carta-prefácio, o
arcebispo de Évora destaca o «reflexo constante da religião em
toda a evolução da poesia nacional»61 e acrescenta:
a sua preciosa coleção de poesias põe diante dos olhos de todos
uma verdade flagrante e é que, em todas as fases da literatura portuguesa, uma forte inspiração religiosa dominou a alma nacional. E
é tanto mais curioso este fenómeno quanto o vemos reproduzir-se,
diríamos quase contra a vontade dos próprios poetas, porquanto é sabido que alguns nomes que firmam poesias contidas neste
volume não são crentes. Prevaleceu neles a inspiração coletiva ao
preconceito pessoal: sentiu e cantou na sua obra a alma da raça.62
O arcebispo de Évora denuncia a superficialidade da poesia
religiosa dos autores mais recentes e louva as «regiões serenas
e puras onde as almas nobres encontram inspiração sublime
para as suas composições», acima «dos pântanos onde se revoluteiam os discípulos de Epicuro»63.
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 119.
D. Manuel Mendes da Conceição Santos, «Prefácio», in Antologia de poesias
religiosas, Lisboa, Edições Gama, 1947, p. 12.
62
Ibid., p. 13.
63
Ibid., p. 13.
60
61
35
São 11 os poemas que separam a «Oração do Justo Juiz», de D.
Duarte, de cinco excertos de autos de Gil Vicente. Entre Sá de
Miranda e Bocage, destacam-se oito poemas de Camões e 15 de
Frei Agostinho da Cruz. Do século XIX, entre outros, ombreiam-se Alexandre Herculano, Almeida Garrett, João de Deus, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Gomes Leal e António Nobre.
Como a antologia só foi publicada em 194764, quase vinte anos
após a morte de Guilherme de Faria, os editores acrescentaram
quatro poemas do desventurado poeta que se suicidou no princípio de 1929.
Pouco depois, César de Frias organizou a antologia Cem das
melhores poesias religiosas da língua portuguesa, publicada em
1932. Na introdução, repara que uma das características mais
vincadas da poesia portuguesa e brasileira é a frequência de
motivos religiosos; repara ainda que, apesar de «cada vez mais
enfraquecida a fé, à medida que os séculos foram rolando, da
poesia ela não se ausentou»65.
Como Guilherme de Faria morreu em 1929 e a sua Antologia de poesias religiosas só foi publicada em 1947, os documentos não se influenciaram. São, por isso, poucos os poemas que
coincidem nas duas antologias.
De cada autor, César de Frias escolheu apenas um poema,
entre Sá de Miranda e Guilherme de Faria. Mesmo considerando
os poetas brasileiros, esta antologia integrou poemas de vários
autores mais recentes, como é o caso de Eugénio de Castro,
Júlio Brandão, Fausto Guedes Teixeira, Augusto Gil, Afonso
Lopes Vieira, Afonso Duarte, António Sardinha, Mário Beirão,
Américo Durão e, entre outros, algumas poetisas, como Florbela
Espanca, Virgínia Vitorino e Fernanda de Castro.
Passados vinte anos, em 1952, é publicado Cristo – tal como
os pintores, escultores e poetas portugueses O viram, sentiram e
64
E foi reeditada em 1996, com o título: As mais belas poesias religiosas (Publicações Europa-América), com um texto de apresentação do presbítero António
Costa Marques.
65
César de Frias «Prefácio», in Cem das melhores poesias religiosas da língua portuguesa, Lisboa, Guimarães e C.ª, 1932, p. 7.
36
entenderam. Não se tratando especificamente de uma antologia
de poesia religiosa, aí se reúnem 31 poemas, escolhidos por
Nataniel Costa, muitos dos quais já integrados nas antologias
de Guilherme de Faria e César de Frias. Destacam-se cinco autores nascidos no século XX: José Régio, Alberto de Serpa, Miguel
Torga, Pedro Homem de Melo e Sebastião da Gama.
E, em 1958, dois desses poetas – José Régio e Alberto de Serpa
– publicam Na mão de Deus – Antologia de poesia religiosa portuguesa, título que evoca o notável soneto de Antero66.
Na introdução, a mesma consciência de que quase «todos os
melhores poetas portugueses se voltaram, uma que outra vez,
para Deus, ao longo de uma vida tão dada ao mundo como frequentemente é a dos poetas»67. Conscientes também de que para
a grande maioria dos nossos poetas – e aqui se aproximam eles da
alma do nosso povo – a mão de Deus não é, muitas vezes, concebida senão através das misericordiosas mãos da Virgem Santíssima,
[…] ou através das mãozinhas rosadas de Jesus pequenino […]; ou
através das mãos penitentes dos seus Santos […]; ou através das
mãos cravadas do Crucificado […]. Não se estranhe, pois, que nesta
recolha abundem os poemas em louvor a Nossa Senhora, de Santa
Maria Madalena, dos passos da Paixão de Jesus Cristo, do mistério do Natal. Revela isso uma característica muito importante da
religiosidade dos portugueses. E, pelo menos em crítica literária,
é inútil discutir com a natureza profunda dum povo, ainda mais
quando revelada e sancionada pelos poetas.68
Isto justifica que José Régio e Alberto de Serpa, enquanto organizadores desta antologia, não façam depender a inclusão ou exclusão de certos poemas do modo como concebem a experiência religiosa ou a experiência mística, mesmo com a consciência
de que são raros os poemas religiosos que atingem «um superior
nível metafísico, ou uma consciência profunda e analítica, ou a
Cf. Antero de Quental, «Na mão de Deus», in Poesia Completa, p. 313.
José Régio e Alberto de Serpa, «Prefácio», in Na mão de Deus – Antologia de
poesia religiosa portuguesa, Lisboa, Portugália Editora, 1958, p. 7.
68
Ibid., pp. 9-10.
66
67
37
riqueza dos embates entre a fé e a tentação»69, o que não significa
que em muitos dos poemas que escolheram – muitos deles também escolhidos por Guilherme de Faria e César de Frias70 – «não
fulgurem versos que voam alto ou mergulham fundo»71.
Esta antologia reúne 153 poemas de 86 poetas e termina com
17 quadras populares. Nomes como os de Vitorino Nemésio,
Jorge de Sena e Fernando Echevarría aparecem entre os poetas nascidos no século XX, juntamente com o dos presbíteros
António de Magalhães e Moreira das Neves. Mas – entre os 86
poetas aí representados – é Antero de Quental quem José Régio
e Alberto de Serpa destacam, pois só nele encontram
a trituração do pensamento sobre a espontânea necessidade de crer;
o ansioso exame a uma crença perdida, mas nunca de todo abandonada, a conceção de Deus sublimada por uma inteligência superior
que se dilacera.72
Datam de 1973 e 1974 os dois volumes de Poesia e Teologia –
poetas de língua portuguesa, organizados por António de Azevedo
Pires. Trata-se de um modelo diferente de antologia, dividida
por temas e apresentada ao modo de aforismos, com poemas e
excertos, às vezes apenas um verso.
Entre o princípio do primeiro volume e o final do segundo,
Azevedo Pires divide a sua eclética antologia de poetas portugueses e brasileiros em 42 capítulos/temas, entre «À procura de
Deus» e «Paraíso». Cada capítulo é introduzido por uma pequena reflexão e são muitas as breves apresentações circunstanciais,
uma espécie de intermezzos que acentuam o efeito de manta de
retalhos.
Ibid., p. 10.
Régio e Serpa não esquecem o contributo das duas antologias anteriores: «Resta-nos declarar que nos foram boa ajuda as antologias da mesma natureza que precederam esta: como a de César de Frias e, muito particularmente, a de Guilherme
de Faria» (ibid., p. 11).
71
Ibid., p. 10.
72
Ibid., pp. 7-8.
69
70
38
Enferma esta antologia de dois pressupostos que a fragilizam
irremediavelmente: o primeiro é o que afirma que o poeta é, ao
seu modo, um teólogo – não se deve estranhar, por isso, «o recurso à Poesia para encher páginas de Teologia»73 –; e o segundo
é o que afirma que «o Poeta é um escolhido de Deus»74, caracterizando-o Azevedo Pires como «alguém que procura um paraíso perdido e, para o encontrar, conserva-se livre, isento, silencioso e puro, totalmente disponível para captar as ressonâncias
do Verbo»75. É impressionante a ingenuidade desta afirmação.
Quarenta anos separam a publicação de Poesia e Teologia de
Verbo – Deus como interrogação na poesia portuguesa, antologia organizada por Tolentino Mendonça e Pedro Mexia. Não se
trata de uma recolha de poesia religiosa, mas de uma antologia de poetas portugueses nascidos no século XX, em cuja obra
Deus assoma como interrogação. Não é a mesma coisa. E talvez
não responda à pergunta de Jean-Claude Pinson: «Que relação
pode ainda estabelecer a poesia moderna com qualquer coisa
da ordem do sagrado?». Ou talvez balbucie outras perguntas
por dentro dessa mesma pergunta reformulada: de que modo a
poesia contemporânea recusa a banalidade intranscendente e se
situa nas estâncias transimanentes de Deus como interrogação?
As antologias anteriores tinham um propósito significativamente menos ambicioso: bastava-lhes, de acordo com critérios
pouco discutíveis, escolher poemas de temática religiosa escritos
por poetas representativos de cada contexto histórico-literário.
Respeitados os critérios e certas evidências, o cânone resultante
dependia fundamentalmente das escolhas dos organizadores,
que estavam legitimadas nem que fosse por circunstâncias idiossincráticas.
Quando Tolentino Mendonça e Pedro Mexia decidem organizar a antologia Verbo – Deus como interrogação na poesia portuguesa, o desafio é claramente outro, significativamente mais
António de Azevedo Pires, «Introdução», in Poesia e Teologia – poetas de língua
portuguesa (vol. I), Lisboa, União Gráfica, 1973, p. 7.
74
Ibid., p. 8.
75
Ibid.
73
39
exigente. É certo que não se pode dizer que tenham corrido
grandes riscos na escolha dos poetas e dos poemas que os representam, mas conseguiram deslocar a perspetiva: se, nas antologias que a precederam, havia uma certa condescendência com
poetas que, não sendo crentes, como que se imiscuíam nos domínios da religião, nem que fosse por meio de elementos da tradição e do folclore religioso, nesta antologia o foco é Deus como
interrogação, «porque Deus existe, na poesia como na vida, em
modo interrogativo, mesmo para quem tem fé»76.
Arriscaria afirmar que o princípio que preside às anteriores
antologias – consciente ou inconscientemente – é o da apologética de um catolicismo nacionalista e neogarrettista77: apesar da
ação erosiva da secularização, afirmam que um dos principais
leitmotive do «génio nacional» continua a ser a religiosidade do
nosso povo, um cristianismo castiço e bucólico que os poetas
exprimiram liricamente, quase sem angústias os crentes e em
contrição os apóstatas e os anticlericais. Trata-se, portanto, de
antologias que – mais do que confortar os que têm fé – provocam e convocam os dissidentes do catolicismo.
Quanto à antologia organizada por Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, essencialmente constituída por poemas da segunda
metade do século XX, a provocação é sobretudo dirigida àqueles
cuja vida espiritual se reduz a uma área de conforto, com as suas
rotinas cultuais e uma experiência sacramental meramente sociológica. Prescinde – também por isso – de poemas explicitamente religiosos e da separação maniqueísta entre poetas crentes e poetas não crentes, sendo que os católicos aí representados
não são poetas católicos, mas católicos poetas, de acordo com a
feliz asserção de Ruy Cinatti: «Sou um católico poeta. Não um
poeta católico»78.
José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, «Explicação», in Verbo, p. 13.
Particularmente entre Palavras loucas de Alberto d’Oliveira (Coimbra, F. França
Amado – Editor, 1894) e os últimos resquícios do neorromantismo lusitanista, em
meados do século XX. Importa recordar o segundo volume do Cancioneiro de João
de Lemos: Religião e Pátria (Lisboa, Escritório do Editor, 1859).
78
Citado por Peter Stilwell em A condição humana em Ruy Cinatti (Lisboa, Presença, 1995, p. 69).
76
77
40
Outra questão muito interessante prende-se com o facto de
José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia terem convocado o insuspeito Gottfried Benn, com a afirmação contundente de que
«Deus é um mau princípio estilístico. Quando alguém se torna
religioso, isso fatalmente abranda a sua expressividade». […] A alternativa que o poeta alemão apresentou passou a constituir um dos
modos mais representativos de afrontar o problema: a arte (e, neste
particular, a poesia) é a única forma possível de transcendência. A
religião perdeu o poder de impulsionar os homens no seu desenvolvimento espiritual e «apenas a arte permanece como a verdadeira
tarefa da vida, como sua identidade, sua atividade metafísica, à qual
ela mesma, a vida, nos obriga».79
Noutra perspetiva, apesar da revalorização da estética nos
meios eclesiais desde meados do século XX, a experiência religiosa de abertura à transcendência, nas suas múltiplas expressões,
considera ainda a estética prescindível e instrumental; admite-a, mas não sem suspeição; procura frequentemente regulá-la,
domesticá-la; e considera-a teologicamente pouco profunda e
teologalmente pouco comprometida.
Com efeito, entre uma e a outra perspetiva, poderíamos escrever uma história da relação entre a Igreja e os artistas. Com
os poetas foi diferente. Basta não ter havido uma dependência
do mecenato eclesial. O poeta foi sempre uma espécie de artista
sui generis: eventualmente mais livre, certamente mais limiar e
mais oracular.
79
José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, «Explicação», in Verbo, p. 13.
41
[5.] CONTEXTUALIZAÇÃO
HISTÓRICO-CULTURAL
OH QUE DIFÍCIL NÃO É CRIAR UM HOMEM PARA DEUS80
Se assumíssemos a teotopologia literária como uma ciência auxiliar da teologia e da teoria da literatura, o estudo da poesia
religiosa no contexto de uma história da literatura regional seria
um assunto para o ramo da teoetnografia.
Partimos do belíssimo poema de Guerra Junqueiro: «As ermidas», oportunamente escolhido por Guilherme de Faria para
a sua Antologia de poesias religiosas e, depois, por Régio e Serpa.
Termina assim o extenso poema de Junqueiro:
Alvas capelinhas, sempre milagrosas,
Sois nessas alturas para os olhos meus,
Como ninhos virgens de orações piedosas,
Miradouros brancos de luar e rosas,
Donde as almas simples entreveem Deus.81
A poesia religiosa em Portugal revela um interessante ressurgimento durante o período que separa o terceiro centenário da
morte de Camões (1880) da proclamação da República (1910),
apesar do agressivo anticlericalismo que se fazia sentir, como nos
livros de Miguel Bombarda, que exigia a deportação para uma
ilha deserta ou o internamento em manicómios de todos os jesuítas, que ele considerava uma raça degenerada82. Com efeito,
em Portugal – apesar dos «brandos costumes» – não era difícil
mobilizar a população das cidades para a perseguição dos padres
e para o assalto aos conventos, como se viu em outubro de 191083.
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 26.
Cf. Guilherme de Faria (org.), Antologia de poesias religiosas, pp. 159-163; José Régio
e Alberto de Serpa (org.), Na mão de Deus – Antologia de poesia religiosa portuguesa,
pp. 249-254.
82
Cf. Miguel Bombarda, A ciência e o jesuitismo, Lisboa, Parceria António Maria
Pereira, 1900, p. 188.
83
Cf. Rui Ramos, A Segunda Fundação, in José Mattoso (dir.), História de Portugal
(vol. 6), Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, pp. 404-406.
80
81
43
Mais do que as consequências de um longo processo de secularização, assistia-se em Portugal a um movimento social de
descristianização84. O método dos republicanos não era o dos
filósofos, mas o dos religiosos, e o seu fim era também a fundação de uma «nova religião»: a da pátria. Isto é muito interessante, na medida em que, em Portugal, houve sempre uma espécie
de cristianismo nacionalista que, na sua ambiguidade, permitiu
que a mundividência, a liturgia, a semântica ou, simplesmente,
um paradigma de inteligibilidade especificamente cristão, tenham sido utilizados por todo o tipo de messianismos seculares.
Com efeito, a Monarquia e a Igreja sofriam, no final do século
XIX, de uma apatia e de um ensimesmamento que deixaram o vácuo onde a República procurou criar a sua mitologia, a que não
faltou visão profética nem textos canónicos. Assim, desenvolveu
uma linguagem própria, um idioma característico, e reciclou
símbolos, insígnias, metáforas e cenários dramáticos.
A República procurou instituir uma religião patriótica dos
portugueses. Coube a Ana de Castro Osório a redação de um
decálogo onde, como não poderia deixar de ser, o «primeiro dever de um português é amar Portugal acima de tudo»85. A pátria
esperava devoção absoluta do novo cidadão da República portuguesa.
O patriotismo tornou-se uma forma de governo, enquanto a
instrução primária foi a catequese da República: eram instituídos festejos e comemorações com uma religiosidade fremente,
em que o culto da bandeira e do hino puseram Afonso Henriques
a combater em Ourique sob as cores da República e ao som d’A
Portuguesa, de Alfredo Keil.
Importa ainda relembrar que as tendências dominantes do pensamento filosófico português refletiram a difícil relação entre uma
parte significativa da intelligentsia portuguesa e a Igreja nas suas
estâncias clericais. Proposta em filosofias da religião difusas (que,
em Portugal, ao longo da segunda metade do século XIX, tiveram
Cf. ibid., pp. 407-409.
Ana de Castro Osório, De como Portugal foi chamado à Guerra, Lisboa, Casa
Editora «Para as Crianças», 1918, p. 98.
84
85
44
paternidades tão diversas como as de Amorim Viana, Cunha
Seixas, Teófilo Braga, Antero, Junqueiro, Sampaio Bruno e Basílio
Teles86), essa espécie de religião secular manifestou-se nas formulações do messianismo sebastianista, do Quinto Império e do Encoberto, e esteve presente em todas as propostas de «reaportuguesamento» de Portugal: do neogarrettismo de Alberto d’Oliveira
ao saudosismo de Teixeira de Pascoaes, não esquecendo contributos como os de Afonso Lopes Vieira e António Sardinha.
Importa ainda referir que, desde finais do século XIX, o catolicismo se encontrava em profunda recomposição interna87. O
processo da «questão religiosa», antes e durante o período da Primeira República, sendo de radicalização das relações entre o Estado e a Igreja Católica, foi simultaneamente um tempo de novos
espaços e de novos entendimentos de autonomia entre o crente
e o cidadão, entre o fenómeno religioso e a organização social.
A criação – sobretudo a partir de 1912 – de novas organizações,
orientadas particularmente para jovens e estudantes, assinala a
necessidade de redefinir o espaço católico. Em 1917, no contexto da I Guerra Mundial e da agitação social que grassava em Portugal, irrompeu em Fátima uma mobilização religiosa em torno
das aparições de Nossa Senhora a três crianças. Manifestava-se
assim uma outra dimensão amplamente conjuntural no universo eclesial português: uma religiosidade marcadamente popular,
num período em que a Igreja se sentia coartada na sua ação e
procurava por todos os meios estimular a mobilização desse espírito religioso como forma de resistência.
A dinâmica religiosa em torno do fenómeno de Fátima constituiu-se, progressivamente, num epicentro de recomposição do
catolicismo português, desenvolvendo um imaginário de desígnio coletivo concebido como milagre: a salvação de Portugal.
Cf. Afonso Rocha, A filosofia da religião em Portugal (1850-1910), Porto, Universidade Católica Editora, 2013.
87
Sobre esta questão, sugiro os capítulos «O regresso ao catolicismo» de Rui Ramos (cf. A Segunda Fundação, pp. 557-561) e «A vitalidade religiosa do catolicismo português do Liberalismo à República» de Manuel Clemente (cf. Carlos
Moreira Azevedo [dir.], História Religiosa de Portugal – Religião e Secularização
[vol. 3], Lisboa, Círculo de Leitores, 2002, pp. 65-127).
86
45
Este fenómeno e a sua dinâmica revelaram que, para além do
confronto entre a Igreja Católica e o regime republicano, o catolicismo possuía outras dimensões de identificação e de mobilização: a devoção mariana como o lugar de convergência da
religião «oficial» e da devoção popular.
Também a beatificação de Nuno Álvares Pereira (1918) enfatizou, neste contexto, mas de modo diverso, a identificação entre
a regeneração católica e a salvação da Pátria, pela apresentação
de um modelo de virtudes como meio de formação das consciências e como explicitação de uma imagem e de um ideário
católicos de patriotismo.
Em 1918, António Sardinha perguntava por que motivo a
República parecia incapaz de estabelecer em torno do regime
aquele consenso que a monarquia constitucional usufruíra na
segunda metade do século XIX. No seu entendimento, a resposta
era simples: em 1852, a monarquia constitucional tinha conseguido captar a «geração nova». No ano em que Sardinha escrevia, o apoio dos jovens ao sidonismo parecia a prova de que
aquela geração que atingira a idade adulta por volta de 1910
nunca se entendera com a República de Afonso Costa.
Como lembra Rui Ramos, perceber a relação entre o Governo
da República e a geração de intelectuais de 1910 ajudará a
compreender muito do que aconteceu em Portugal no século
XX88. Afinal, não foi apenas a geração de Gonçalves Cerejeira e
Salazar, mas também de António Sérgio, Leonardo Coimbra,
Jaime Cortesão, Raul Proença, Raul Leal, António Sardinha,
Amadeo de Souza-Cardoso e Pessoa, entre tantos outros.
É desta geração – familiarizada com a filosofia de Nietzsche,
William James, Georges Sorel e, sobretudo, Henri Bergson – que
irromperá a Renascença Portuguesa, o Integralismo Lusitano,
Orpheu e, mais tarde, em 1921, a Seara Nova (no mesmo ano
em que é fundado o Partido Comunista Português). E é neste
período que se assistirá ao regresso ao catolicismo.
88
Cf. Rui Ramos, A Segunda Fundação, p. 529.
46
A conversão de Paul Claudel, em 1886, na Catedral de Notre-Dame de Paris, inspirou a conversão de importantes intelectuais franceses e tornou-se uma «indústria» cuidadosamente gerida pela Igreja Católica89. Um dos mais importantes pensadores
tomistas do século XX, Jacques Maritain, vinha dessa colheita.
Em Portugal, as conversões começaram com a Geração de 70:
Na versão oficial das suas mortes, Oliveira Martins e Eça de Queirós
tinham-se reconciliado com a Igreja Católica. Gomes Leal converteu-se espetacularmente, passou a ir à missa todos os dias e renegou
toda a sua obra anterior. Junqueiro, o feroz autor d’A velhice do padre eterno (1885), era publicamente um místico em 1908 […]. Nas
gerações seguintes, as conversões multiplicaram-se em vida: o escritor da Renascença Portuguesa, Antero de Figueiredo e o escritor
anarquista Manuel Ribeiro tornaram-se proselitistas católicos […].
Estas conversões eram favorecidas pelo modo como quer o republicanismo, como quer o sociologismo positivista homenageavam as
pulsões religiosas.90
Entre a proposta de uma «religião laica» e um cristianismo patriótico, passando por um tolstoiano franciscanismo, encontramos parte significativa da intelligentsia portuguesa deste período.
E, tal como em França, «também em Portugal guardas avançadas
da Igreja espiavam os vacilantes, escrevendo-lhes cartas, proporcionando-lhes encontros, rodeando-os com o conveniente tipo
de gente, persistindo»91. Com efeito, a Igreja dispunha de figuras
carismáticas, presbíteros e religiosos cuja reputação correspondia ao franciscanismo, apreciado por todos. Conversões como as
de Junqueiro e de Leonardo Coimbra, devem-se ao Padre Cruz,
unanimemente reconhecido como santo.
Talvez o caso mais exemplar seja o de Gomes Leal. Esse admirável Claridades do Sul foi publicado em 1875, com alguns
poemas anticlericais – como é o caso de «Acusação a Cristo»92
Cf. ibid., p. 557.
Ibid., pp. 557-558.
91
Ibid., p. 558.
92
Gomes Leal, Claridades do Sul, Lisboa, Braz Pinheiro – Editor, 1875, p. 63.
89
90
47
– e outros em que se afirma o apóstata, como em «Acusação à
cruz»93 e «Visita», que aqui transcrevo:
Ontem dormia à noite – e, eis que desperto,
Sacudido dum vento agudo e forte,
Como um homem tocado pela Morte,
Ou varrido dum vento do deserto.
Acordei – era Deus, que de mim perto,
Me dizia: Alma cética e sem norte!
É preciso que creias e te importe
Adorar o Deus Uno, Eterno e Certo!
É preciso que a fé cresça em tua alma,
Como no inútil saibro a verde palma,
Verme! filho da Dúvida – Eis-me aqui!
Eu sou a Espada, o Antigo, o Omnipotente!
Crê, barro vil! – Mas eu, descortesmente,
Voltei-me do outro lado e adormeci.94
No entanto, aquando da segunda edição de Claridades do Sul,
em 1901 – ainda antes da sua (re)conversão ao catolicismo, num
e no outro poema, Gomes Leal introduz esta nota: «Este soneto
publica o autor, para obedecer apenas ao plano de reedição integral da primeira edição»95.
Neste contexto, para além das antologias e da consciência de
que praticamente todos os poetas escreveram pelo menos um
poema explicitamente religioso96, são vários os livros de poesia
Ibid., p. 29.
Ibid., p. 56.
95
Id., Claridades do Sul, Lisboa, Empresa da História de Portugal, 1901, pp. 33 e 60.
96
Seria interessante refletir sobre a religiosidade implícita na poesia em torno do
tema da morte ou mesmo na lírica amorosa, na qual – como repara António José
Saraiva – persiste uma certa espiritualidade: «O amor é um tema extraordinariamente obsessivo na literatura portuguesa […]. É um sentimento em que certa sensualidade insatisfeita e uma certa espiritualidade impura se temperam mutuamente
[…]. Falou-se de uma certa “religião do amor em Portugal” e pode dizer-se que
ele é entre nós quase uma forma de misticismo, e de um misticismo que não logra
despegar-se inteiramente da carne» (A Cultura em Portugal, pp. 84-85).
93
94
48
inteiramente consagrados a esta temática, dentro e fora do amplexo da ortodoxia católica. Basta termos em consideração livros
como Jesus e Pã (1903) e Regresso ao Paraíso (1912) de Pascoaes,
Auto da Vida Eterna (1925) de Augusto de Santa-Rita e Verbo ser e
verbo amar (1926) e Job (1932) de António Correia d’Oliveira, cuja
obra poética é marcadamente religiosa.
No âmbito da poesia de temática especificamente hagiográfica,
destaco O Santo (1927) de Manuel da Silva Gaio (livro dedicado
a Francisco de Assis) e Teresinha (1929) de Correia d’Oliveira.
Ainda neste âmbito, muitos foram os poetas portugueses que
escreveram – embebecidos – sobre a «mística mulher»97, como
se lê num poema de António Nobre. De Antero de Quental à
vasta família dos poetas neorromânticos, particularmente os
lusitanistas, no contexto histórico-cultural das primeiras décadas do século XX, poucos não terão dedicado um poema a Nossa Senhora, entre a visitação e a natividade, aportando não raras
vezes na mater dolorosa e na pietà.
César de Frias explicita-o no prefácio da sua antologia: «os
poetas têm continuado a genufletir perante a imagem de Cristo,
Salvador do Mundo, e, sobretudo, da imagem de Maria Santíssima, sua Mãe»98.
Mesmo se não tivermos em consideração representações heterodoxas de Santa Maria99, poderemos destacar A Senhora da
Melancolia (1910) de Gomes Leal e Alba Plena – Vida de Nossa
Senhora (1916) de Augusto Gil. Cerca de um terço dos poemas
que Guilherme de Faria escolheu para a sua Antologia de poesias
Do poema «A Nossa Senhora»: António Nobre, Poesia Completa, p. 139.
César de Frias «Prefácio», in Cem das melhores poesias religiosas da língua portuguesa, p. 8. E prossegue: «Dizemos sobretudo perante a imagem da Virgem, porque, se Deus e seu Filho são cantados com enternecimento por muitos poetas portugueses e brasileiros, mesmo modernos, então a Mãe de Jesus não é apenas, por
eles, cantada: é glorificada. A poesia marial, entre os vates lusitanos, é simplesmente maravilhosa: maravilhosa em quantidade e qualidade. Afoitamente podemos
assegurar que poucas mais literaturas poderão competir connosco nesse ponto».
99
Seria muito interessante refletir sobre a inspiração mariana das representações
da saudade de Teixeira de Pascoaes, em livros como Senhora da noite (1909) e
Marânus (1911).
97
98
49
religiosas são de temática mariana, um pouco mais do que na antologia de José Régio e Alberto de Serpa, em cujo prefácio se lê:
Para a grande maioria dos nossos poetas – e aqui se aproximam
eles do nosso povo – a mão de Deus não é, muitas vezes, concebida
senão através das mãos da Virgem Santíssima, tão Mãe de Deus
como maternal advogada nossa.100
Importa ter aqui em consideração o fenómeno de Fátima e a
figura de Afonso Lopes Vieira que, segundo Costa Brochado101,
terá testemunhado o «milagre do sol»: estando na sua casa, em
S. Pedro de Moel, a cerca de cinquenta quilómetros de Fátima,
Lopes Vieira terá sido surpreendido com «os espantosos fenómenos solares». Este acontecimento torná-lo-á profundamente
devoto de Nossa Senhora de Fátima102.
Para além do Poema de Fátima (1928) de Augusto de Santa-Rita, importa destacar Fátima: poema do mundo (1955) de
António Botto: tendo sido exonerado em 1942 do Arquivo
Geral do Registo Criminal e Policial de Lisboa – por comportamentos condenados pela moral social103 –, Botto partiu em
José Régio e Alberto de Serpa, «Prefácio», in Na mão de Deus – Antologia de
poesia religiosa portuguesa, pp. 7-9.
101
Cf. Costa Brochado, As Aparições de Fátima, Lisboa, Portugália, 1952, pp. 130131.
102
De tal modo que viria a ser servita na Cova da Iria. Juntamente com Henrique
Trindade Coelho, Lopes Vieira prestou cuidados aos doentes e pegou no andor de
Nossa Senhora, no Santuário de Fátima. Em 1929, na sua casa de S. Pedro de Moel,
o poeta consagrou uma pequena capela a Nossa Senhora de Fátima e concebeu os
famosos versos do Avé de Fátima, então musicados por Viana da Mota. Escreveu
ainda a oratória Fátima, musicada por Ruy Coelho e estreada no Teatro São Carlos, em 1931. Nesse mesmo ano, Lopes Vieira recebeu uma proposta da Comissão
d’Iniciativa de Fátima e da Comissão Nacional de Turismo, no sentido de fazer
um filme sonoro sobre os acontecimentos da Cova da Iria. Existe na Biblioteca
Municipal de Leiria um dactiloscrito intitulado Fátima, guião desse projeto escrito
e cinematograficamente coordenado por Afonso Lopes Vieira, com música de Ruy
Coelho, posteriormente abandonado (cf. Cristina Nobre, Afonso Lopes Vieira – A
reescrita de Portugal [vol. 1], Lisboa, INCM, 2005, p. 83).
103
«Entre outras justificações, consta do Diário do Governo que não mantém “na
repartição a devida compostura e aprumo, dirigindo galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega, denunciando tendências condenadas pela moral
social”; que faz versos e os recita durante as horas regulamentares do funciona100
50
1947 para o Brasil, onde viveu com muitas dificuldades económicas, tendo procurado por todos os meios regressar a Portugal.
É nesse contexto que escreve Fátima: poema do mundo, livro
em que cede a um anacrónico tradicionalismo métrico e ao
louvor de um Portugal rural e de um povo crente. Nas suas páginas, Nossa Senhora bendiz os feitos dos portugueses,
essa raça dominadora e sentimental, e a sua história, lição de raro
cristianismo. […] revolta-se contra as promessas não cumpridas dos
eleitos pelo povo, refere as saudades de uma vida rural, com as procissões, as feiras, a desfolhada, as romarias… insurge-se contra as
inovações e as máquinas que substituem a beleza do arado. De forma teatral chora a morte do Filho, mas lembra aos pastorinhos, na
Cova da Iria, que tudo fará para manter unidos Portugal e o Brasil.
O melhor conselho que Maria dá aos meninos é lerem os poetas.104
Fátima: poema do mundo lembra, depreciando-se lamentavelmente, a recomendação de Alberto d’Oliveira aos poetas portugueses – em Palavras Loucas (1894) –, para que emigrassem para
as aldeias105. António Botto garantira na década de 20 o seu lugar
na história da literatura portuguesa, ele que fora editado por Pessoa
e admirado pela Presença. Mas, em 1955, nem a aprovação da
publicação de Fátima: poema do mundo pelo cardeal Cerejeira
lhe facilitou o regresso a Portugal. Continuou a viver com muitas dificuldades no Rio de Janeiro, onde morreu passados quatro
anos.
mento da repartição; que carece “da necessária idoneidade moral para o exercício
das suas funções”» (Aníbal Fernandes, «Cronologia, ou quase (continuação)», in
Raul Leal, Sodoma Divinizada, Lisboa, Guimarães / Babel, 2010, p. 146).
104
José Tolentino Mendonça e Paulo Pires do Vale, «Literatura religiosa. Época contemporânea», p. 134.
105
Cf. Alberto d’Oliveira, Palavras Loucas, pp. 218-221.
51
[6.] POETAS EM TEMPO DE INDIGÊNCIA
AGORA NENHUM GESTO NESSE ALGUÉM
COMEÇA OU MORRE106
É um exercício arriscado o da teotopologia literária, sobretudo
quando todas as perguntas convergem e se densificam na interrogação de Hölderlin. É como se houvesse um antes e um depois da elegia «O pão e o vinho»107, um antes e um depois dessa
incontornável pergunta: wozu Dichter in dürftiger Zeit? («para
que servem poetas em tempo de indigência?»108).
Heidegger reflete e insiste na interrogação109. O tempo a que se
refere – tempo de indigência, de penúria – é a «noite do mundo»,
o nosso tempo, caracterizado pela ausência de Deus:
A falta de Deus significa que já não existe um Deus que reúne em
si, visível e univocamente, as pessoas e as coisas e que, com base
nessa reunião, articule a história do mundo e a estância humana
nessa história. A falta de Deus anuncia, porém, algo de muito pior.
Não só se foram os deuses e Deus, como também se apagou na
história do mundo o fulgor da divindade. O tempo da noite do
mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele tornou-se tão indigente que já nem é capaz de notar
que a falta de Deus é uma falta.110
E ser poeta em tempos de indigência significa – para Heidegger
– dizer o sagrado, «cantar, tendo em atenção o vestígio dos
deuses foragidos»111, cuja desaparição coincide – a partir da leitura de um dos Sonetos a Orfeu de Rilke – com a ocultação da
essência da dor, do amor e da morte112: «A própria indigência é
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 108.
Hölderlin, Elegias, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992, pp. 51-61.
108
Ibid., pp. 58-59.
109
Martin Heidegger, «Para quê poetas?», in Caminhos de floresta, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 307-367.
110
Ibid., p. 309.
111
Ibid., p. 312.
112
Rainer Maria Rilke, «Sonetos a Orfeu» (XIX), in Poemas – As Elegias de Duíno
– Sonetos a Orfeu, Porto, Edições Asa, 2001, p. 210
106
107
53
indigente porque esconde o domínio essencial no qual a dor, a
morte e o amor pertencem uns aos outros»113.
Mas é num outro poema, de Rilke – versos que improvisou
numa carta de 1924114 –, que Heidegger desdobra a pergunta
de Hölderlin, articulando conceitos como «risco», «desamparo», «aberto» e «círculo mais vasto», com a consciência de que a
poesia é também «tarefa para um pensamento, eis o que ainda
temos de aprender neste instante do mundo. Tomemos o poema como um ensaio de meditação poética»115.
Ainda assim, Heidegger aborda a pergunta de Hölderlin ao
modo dos filósofos. Há um momento na sua reflexão em que
parece ruminar o poema de Rilke e já não nos ocorre a pergunta de Hölderlin. Quando é assim, quase nos convencemos de
que a verdade não há de escapar-nos.
Sem se referir a Hölderlin, Antero de Quental escreve, a propósito da edição de Lira íntima (1881) de Joaquim de Araújo, um
importante texto – «A poesia na atualidade»116 – onde reflete sobre o fim da poesia: «A fase poética da Humanidade pode dizer-se que está a terminar. Este século terá visto os últimos poetas,
como viu os últimos crentes»117. Para Antero, o espírito humano tinha entrado decididamente numa fase de racionalismo, de
análise e crítica.
Trata-se de uma reflexão extraordinária, na qual Antero afirma que «entre a poesia, a metafísica e a teologia há relações tão
íntimas, há um ar de família tão característico, que imediatamente denuncia uma verdadeira comunidade de origem»118.
Martin Heidegger, «Para quê poetas?», p. 316.
Cf. ibid., pp. 317-318.
115
Ibid., p. 318. Na sequência desta afirmação de Heidegger, seria interessante convocar a reflexão de Chantal Maillard: La creación por la metáfora – Introducción a
la razón-poética, Barcelona, Anthropos, 1992.
116
Antero de Quental, «A poesia na atualidade», in Prosas (vol. II), Lisboa, Couto
Martins, s/d, pp. 310-326.
117
Ibid., p. 310.
118
Ibid., p. 311. «A poesia, tomada nos seus altos exemplares, nos Salmos hebreus,
na Tragédia esquiliana, e ainda na de Sófocles e Eurípedes, em Hesíodo e Píndaro,
em Virgílio e Lucrécio, em Dante e Calderón, participa da natureza da especulação
113
114
54
Como num cosmorama, desde Homero e Hesíodo, Antero de
Quental guia-nos até à Renascença, antecâmara do «império
decidido da análise, pela constituição das ciências e a correspondente organização dum ponto de vista racional, sistematicamente positivo»119. Esta seria, no seu entendimento, a última e
a maior das revoluções do espírito humano. E entre «os destroços do passado, com os deuses e as entidades metafísicas, ficaria
também soterrada a poesia»120.
Porém, foram ainda necessários mais três séculos para que tal
resultado se manifestasse claramente. O ciclo poético do fim do
século XVIII e do primeiro quartel do século XIX é, para Antero,
apenas um incidente, «o rebento tardio da velha árvore que, antes de morrer, concentrou nele um resto de seiva»121:
Essa poesia (sinal bem claro de enfraquecimento) é toda subjetiva.
É o individualismo, o egotismo que a inspira nos seus grandes representantes, Byron, Shelley, Schiller, Heine, Lamartine, Hugo (onde é
verdadeiramente Hugo), Mickiewicz, Espronceda, Herculano, João
de Deus (que, por vir tão tarde, não deixa por isso de pertencer a
essa ilustre família), Leopardi, Foscolo. Eles não representam já
a vida coletiva do espírito humano, a crença e as aspirações dum
mundo, a apoteose gloriosa ou sombria da humanidade, que os tem
por intérpretes: representam-se apenas a si, eles, os últimos de uma
raça condenada a desaparecer e que, sentindo a ferida interior por
onde lhes foge a vida, interrogam inquietos o horizonte e, chorando
ou rugindo, se assentam à beira da estrada para morrerem.122
Para Antero, esse egotismo e o desaparecimento da matéria
poética objetiva determinam o fim da poesia. E foi frustrada a
tentativa de Goethe de retomar a grande tradição: «A tentativa
metafísica e do dogmatismo teológico. E, por outro lado, o que são a metafísica
e a teologia senão vastos poemas cosmogónicos e psicológicos, construídos com
uma amálgama de símbolos e raciocínios, em que a imaginação, apesar duma subtileza silogística toda formal, domina e triunfa?» (ibid., pp. 311-312).
119
Ibid., p. 317.
120
Ibid.
121
Ibid.
122
Ibid., pp. 317-318.
55
de Goethe era vã. E se ele, um dos maiores espíritos do seu século e do nosso, o não conseguiu, loucura seria esperar ainda bom
êxito duma empresa que o momento histórico condena»123.
Coube a Heine – escarnecendo o que adorava, fazendo a sátira
da própria comoção, elevando o ceticismo à categoria de uma
estética – entoar
o consumatum est sobre os destroços do antigo sentimento poético
e quem sabe se de todo o sentimento…
O riso cheio de fel e lágrimas de Heine foi o suor da agonia, o suor
de sangue da poesia, que a prosa racional, decididamente e universalmente triunfante do mundo, ia pregar num madeiro, dizendo-lhe: «se és filha de Deus, livra-te a ti mesma!»124
Seguiram-se Baudelaire – «prostituindo a poesia, a antiga inspiradora da virtude e do heroísmo, e obrigando-a a respirar as
pestíferas flores do mal e a cantar o vício incurável, a maldade
impenitente»125 – e Poe, que «assentava o Desespero no sólio sagrado, a repetir num sonambulismo de tédio incurável, de tédio
infinito, o seu estribilho de morte: “Never, oh, never more!”»126.
Para Antero, foi assim que a poesia, na segunda metade do século XIX, anunciou ao mundo a sua próxima extinção.
Apesar de ser muito extensa a citação, não quero substituir-me
às suas palavras:
Outrora, em Israel, os poetas foram os pastores do Povo. Os vates
sagrados, depois de criarem Deus, fizeram do Povo o primogénito
desse Deus e o seu servo fiel no cativeiro do mundo. E, pelos
seus poetas, impôs Israel a sua fé às nações, a fé que eles haviam
criado. – Um pouco mais tarde, em Atenas, a República erguia em
face da Acrópole a estátua de bronze de Ésquilo, como um segundo
génio tutelar da cidade: as representações das suas tragédias eram
solenidades religiosas, faziam parte do culto público, e uma cópia
Ibid., p. 319.
Ibid., pp. 319-320.
125
Ibid., p. 320.
126
Ibid.
123
124
56
autêntica conservava-se nos arquivos da República, entre os documentos dos tratados, das alianças, das fundações de colónias, como
uma das bases da grandeza nacional. – Mais tarde ainda, a Senhoria
de Florença fazia explicar publicamente, na Igreja de Santa Maria,
a Divina Comédia, como um quinto Evangelho, e encarregava esse
ofício a Boccaccio, o maior erudito da época. – Camões morreu
na miséria: mas não serviu o seu livro de consolação ao seu povo
decaído e cativo? Não o uniu o povo no culto messiânico prestado
ao Salvador encoberto? Não lhe comentou as estrofes como texto de
profecias de futura grandeza? Não lhas contaram os últimos portugueses do Oriente, entre balas, no cerco de Colombo? Esta apoteose transformou num sólio, ou num altar, a legendária enxerga do
hospital.
E o que é hoje a poesia? O que é hoje o poeta? Que diz ele hoje ao
mundo? Uma experiência de Berthelot ou de Virchow, uma descoberta de Darwin ou Haeckel, uma página histórica de Ranke ou
Renan valem mais, dizem mais ao espírito do século, do que toda a
Babel sonora das estrofes de Victor Hugo.
E o mundo, a ele, que lhe diz, que ele entenda e que o inspire? Que
lhe podem dizer o determinismo, o transformismo, a concorrência
vital, a fatalidade da história? O mundo real, o mundo visto à luz da
ciência, é uma coisa atroz – atroz e ao mesmo tempo inexpressiva.
Despair and die!
O divórcio é completo. A poesia deixou de ter missão social. Os
raros poetas, que ainda existem, são apenas os restos destroçados
duma raça de outras idades e que breve terá desaparecido.
A poesia passou decididamente à categoria de literatura amena
– ao lado da teologia, outra espécie também de literatura, com a
diferença de ser mais enfadonha. Requiescant in pace.
Quererá isto dizer que a poesia ou pelo menos o poetar, tenha de
desaparecer completamente?
Não é esse o meu pensamento. Mas afigura-se-me que ficará reduzida à expressão isolada de sentimentos muito pessoais e muito
limitados, e cultivada e amada só por aquelas pessoas que, ou permanentemente e por natureza, como as mulheres, ou temporariamente, como os rapazes muito moços e dotados dalguma fantasia,
reagem contra a tirania da reflexão e tendem a isolar o seu mundo
de sentimentos da influência mortal do espírito analítico e positivo.
57
A alta poesia, épica, trágica, lírica – essa irmã da metafísica e da
religião – terá assim desaparecido, mas subsistirá a poesia subjetiva, familiar e pessoal, como expressão de estados de espírito, ou
particulares, ou raros e passageiros.
A poesia conservar-se-á, pois, mas tendo perdido o antigo carácter de uma das grandes forças sociais e espirituais da Humanidade,
de agente poderoso da civilização. Ao som augusto da lira de Orfeu
já se não erguerão cidades nem civilizarão povos. Essas cordas solenes e soberanas terão emudecido para sempre.127
É impressionante o vaticínio de Antero de Quental. É como se
o mito do poeta romântico tivesse consistido num simulacro: o
poeta romântico é um egotista autocomprazido na mornidão
de «estados de alma» e o seu mito não é mais do que a tentativa de reanimação de um cadáver. Para que servem os poetas
em tempos de indigência? Que relação pode ainda estabelecer a
poesia moderna – neste caso romântica e pós-romântica – com
qualquer coisa da ordem do sagrado?
Há tanta verdade pressentida nas palavras de Antero. E, ainda assim, alguma verdade há de ter-lhe escapado. Antero é, no
contexto da literatura portuguesa, o mais alto representante dos
poetas em tempos de indigência. Ao pôr fim à sua vida no dia
11 de setembro de 1891, em Ponta Delgada, num banco junto
ao muro que fecha a cerca do Convento da Esperança – sob
uma âncora e a palavra «esperança», em relevo e pintadas a azul
sobre a parede branca –, Antero redime simbolicamene o múnus do poeta: a sua poesia pode não ter erguido cidades nem
civilizado povos, mas será uma caixa de ressonância para a pergunta de Hölderlin.
E, no fundo, seria esse o trabalho da teotopologia literária, se a
teotopologia literária existisse: tentar perceber – enquanto reitera
a pergunta de Hölderlin – de que modo a literatura, recusando a
banalidade intranscendente, se situa nas estâncias transimanentes de Deus como interrogação.
127
Ibid., pp. 320-322.
58
Quando os habitantes de Macondo – aldeia de Cem anos de
solidão (1967) de García Márquez –, vítimas de insónia, procuravam retomar a sua vida sem a preocupação com o inútil hábito de dormir, Aureliano Buendía concebeu a fórmula que havia
de os defender das evasões da memória: identificar cada objeto
com um papel com o respetivo nome inscrito. Em pouco tempo,
por toda a aldeia havia inscrições que identificavam todas as coisas, dos objetos domésticos aos animais e às plantas. Mais tarde,
«estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, deu-se conta de que podia chegar o dia em que se reconhecessem
as coisas pelas inscrições, mas em que não se lembrasse da sua
utilidade»128. Na luta contra o esquecimento, os insones habitantes de Macondo, depois de identificarem cada porção do seu
quotidiano, procuraram descrever quais as funcionalidades de
cada uma dessas porções: uma espécie de manual de vida prática desdobrado na realidade, que já não exigia apenas a identificação dos objetos e das suas funcionalidades, mas também dos
sentimentos. «Na entrada do caminho para o pântano tinham
posto um cartaz que dizia Macondo e outro, maior, na rua central, que dizia Deus existe»129.
Se a teotopologia literária existisse, o teotopólogo literário teria
de conhecer quem escreveu esse grande cartaz na rua central da
aldeia. Por que motivo os habitantes de Macondo precisavam
de se lembrar que Deus existe em tempos de insónia e amnésia?
Cada objeto tinha já uma inscrição com o seu nome e o seu
modo de utilização. A banalidade intranscendente estava já
descrita: o pormenor de cada descrição era já uma forma de
anuência e até de exaltação do prosaísmo. Não sendo relativo a
um objeto concreto, o cartaz onde se lia Deus existe não tinha
qualquer utilidade e não consta que nele tivesse descrito para
que é que Deus – ou a existência de Deus – servia.
Se Hölderlin tivesse, então, passado por Macondo, teria certamente querido conhecer o autor daquele cartaz, porque nele
128
129
Gabriel G. Márquez, Cem anos de solidão, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2001, p. 45.
Ibid.
59
reconheceria o poeta em tempos de indigência; porque só
Hölderlin poderia assumir até às últimas consequências, não
qualquer resposta, mas a pergunta: por que motivo precisamos de nos lembrar que Deus existe em tempos de insónia e
amnésia?
60
[7.] TEOTOPOGRAFAR A POESIA
O MELHOR SÍTIO PARA SABER QUALQUER COISA DA VIDA130
Regressemos só mais uma vez à ação de antologiar: já vimos
como a antologia Verbo – Deus como interrogação na poesia
portuguesa é diferente das que a precederam. Em Na mão de
Deus, Régio e Serpa escolhem um poema de Fernando Pessoa:
«D. Fernando, Infante de Portugal»131, da Mensagem (1934), na
antologia intitulado «Gládio»132:
Deu-me Deus o seu gládio, por que eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro de mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
José Régio e Alberto de Serpa retiram este poema do contexto da Mensagem, mudam o seu título e, silenciando a voz do
Infante D. Fernando, emprestam-lhe o estatuto de «poema religioso» de Pessoa. Confesso que, se organizasse uma antologia
de poesia no âmbito da teotopologia literária, teria preferido
este fragmento poético do Livro do Desassossego:
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 59.
Fernando Pessoa, Mensagem, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 30.
132
Cf. Na mão de Deus – Antologia de poesia religiosa portuguesa, p. 304.
130
131
61
Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como
uma carícia não propriamente materna.
Um regaço para chorar, mas um regaço enorme, sem forma, espaçoso como uma noite de verão, e contudo próximo, quente, feminino, ao pé de uma lareira qualquer… Poder ali chorar coisas
impensáveis, falências que não sei quais são, ternuras de coisas inexistentes, e grandes dúvidas arrepiadas de não sei que futuro…
Uma infância nova, uma ama velha outra vez, e um leito pequeno
onde acabar por dormir, entre contos que embalam, mal ouvidos,
com uma atenção morna, de perigos que penetravam em jovens cabelos louros como o trigo… E tudo isto muito grande, muito eterno, definitivo para sempre, da estatura única de Deus, lá no fundo
triste e sonolento da realidade última das Coisas…
Um colo ou um berço ou um braço quente em torno do meu pescoço… Uma voz que canta baixo e parece querer fazer-me chorar…
O ruído de lume na lareira… Um calor no inverno… Um extravio
morno da minha consciência… E depois sem som, um sonho calmo num espaço enorme, como a luz rodando entre estrelas…133
O texto prossegue: «De meu pai sei o nome; disseram-me que
se chamava Deus, mas o nome não me dá ideia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e faço-me uma ideia dele a que possa amar…»134. Talvez seja assim que
a literatura se situa nas estâncias transimanentes de Deus como
interrogação. E talvez seja assim que certos homens continuem
a ser «a grande ilha do silêncio de deus»135, como escreveu Ruy
Belo. Deus entranhado nas páginas do Livro do desassossego.
Deus entranhado nas páginas de Húmus (1917) de Raul Brandão:
Cheguei ao ponto, Morte. Cheguei onde queria. Tu és o meu sonho
frenético. […] Cheguei ao ponto em que não te distingo da vida.
Tu és a vida maior. […] Cheguei ao ponto, Morte, em que não me
metes medo. Aceito-te. […] És o único mistério que me interessa.
[…] recebo-te, mas como um passo mais para outra iniciação, para
Fernando Pessoa, Livro do desassossego, p. 107.
Ibid.
135
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 58.
133
134
62
outro assombro, e até para outra dor, se quiseres, porque da dor extraio mais beleza, mais vida e mais sonho.
… E contudo esta resignação é fictícia… Não, nunca acordei sem
espanto nem me deitei sem terror. […]
Siga a vida seu curso esplêndido. Sabe a sonho e a ferro. É ternura,
desgraça e desespero. Leva-nos, arrasta-nos, impele-nos, enche-nos
de ilusão, dispersa-nos pelos quatro cantos do globo. Amolga-nos.
Levanta-nos. Aturde-nos. Ampara-nos. Encharca-nos no mesmo
turbilhão do lodo. Mata-nos. Mas, um momento só que seja, obriga-nos a olhar para o alto, e até ao fim ficamos com os olhos estonteados. Eu creio em Deus.136
É mesmo possível que seja assim que a literatura se situa nas
estâncias transimanentes de Deus como interrogação. Profissão
de fé tremenda, esta… diante da morte. Se tivermos em consideração a intensa trama existencialista de Húmus, percebemos
o drama de uma fé que freme: uma fé-frémito.
Recordo, a esse propósito, o modo como Manuel Laranjeira,
talvez refletindo sobre a sua própria fé, descreve a de Unamuno
numa passagem do Diário íntimo, no dia 15 agosto de 1908:
Unamuno ainda. Com a violência de quem precisa enganar-se.
Unamuno proclama a fé. Compreendo: Unamuno quer ter fé, debate-se e sente-se homem – sem fé. Raciocinar a fé é duvidar. A fé
morreu. Unamuno quer reanimar as cinzas mortas e desvaira porque as cinzas lhe gelam as mãos. A fé não se demonstra, crê-se. E
Unamuno quer demonstrar a fé. Eis o seu drama íntimo.137
Raul Brandão, Húmus, Lisboa, Relógio D’Água, 2015, pp. 224-225. Lembra este
texto, esse outro – magnífico – com que Brandão prefacia as suas Memórias: «Se
tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não
me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é
eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma
árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a
vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de
uma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas
do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este
espetáculo desabalado da vida» (id, Memórias, p. 11).
137
Manuel Laranjeira, «Diário íntimo» (15 de agosto de 1908), in Obras de Manuel
Laranjeira, Porto, Edições Asa, 1993, pp. 271-272.
136
63
No dia seguinte, Manuel Laranjeira regressa ao seu diário:
«Penso em Unamuno e no seu drama íntimo. O grito de fé deste
homem faz-me lembrar uma lâmpada que, antes de extinguir-se, despede clarões mais intensos, mais vivos»138. «Al rector de
Salamanca le interesaron siempre hombres de la estirpe moral
del médico de Espinho, hombres atormentados», escreve García Morejón, que oportunamente acrescenta: Unamuno «había
descubierto el retrato más vivo del hombre de pasión portugués
después de la desesperación de Antero»139.
Estou convencido de que a relação com Laranjeira, entre 1908
e 1912, afeta significativamente a trama de Del sentimiento trágico de la vida (1912). Laranjeira não ensinou Unamuno a ver
apenas a alma trágica de Portugal, como ele próprio confessa:
«me enseñó a ver no pocos rincones de los abismos tenebrosos
del alma humana»140.
E tudo isto traz-me à memória essas outras palavras de Miguel
Unamuno, quando escrevia sobre Espinosa, em Del sentimiento
trágico de la vida: «Como a otros les duele una mano, o un pie,
o el corazón, o la cabeza, a Spinoza le dolía Dios»141. Unamuno sabia que também a Laranjeira «le dolía Dios». E como não encontrou na vida lenitivo para essa dor, assumiu a postura de apóstata,
descrente de tudo, ímpio que avoca o suicídio como um ato de
sedição, como se lê nessa notável «Blasfémia inútil»:
Diz esta lenda vã
que tu, minh’alma, és barro convertido
em espírito, ao sopro do Senhor…
Mas revoltou-se o pó: veio Satã
tentar-te com o fruto proibido
e ensinar-te o caminho do amor
– e da culpa saborosa…
Ibid. (16 de agosto de 1908), p. 272.
Julio García Morejón, Unamuno y Portugal, Madrid, Ediciones Cultura Hispánica, 1964, p. 459.
140
Miguel de Unamuno, «Prefácio», in Manuel Laranjeira, Cartas, Lisboa, Portugália Editora, 1943, p. 20.
141
Id., Del sentimiento trágico de la vida, Madrid, Alianza Editorial, 2013, p. 34.
138
139
64
E tu, alma rebelde, ambiciosa,
querendo igualar Deus, foste punida...
Mas Deus sabe punir e perdoar,
alma caída;
Deus ama ainda a vida, e deu-te a Dor
em redenção, pra voltar
até ele, de novo, arrependida…
Alma rebelde, suicida,
seja a Obra maior que o Criador:
sê maior que Deus – despreza a vida…142
Pergunto-me se arriscaria incluir este impressivo poema numa
antologia de poesia no âmbito da teotopologia literária: uma antologia de poesia dolente de Deus.
Recentemente, numa leitura comparada de Húmus de Raul
Brandão e de Grito de Rui Nunes, apercebi-me de que essa fé-frémito é um sintoma que invariavelmente ocorre na vida e
na obra daqueles que, consciente ou inconscientemente, assumem o risco de ser-habitar «a grande ilha do silêncio de deus»,
coabitá-la – uma teotopia literária, portanto. E dói-lhes Deus,
invariavelmente.
A dor como um halo em torno «dessas figuras imóveis, e sobre
elas outra figura maior, curva e atenta, que há séculos espera o
desenlace»143. A dor, esse «animal insaciável»144 – e as figuras
imóveis, e essa outra figura maior. «Deus é uma pequena coisa»,
disse-me Rui Nunes uma vez. Uma pequena coisa e um grande
silêncio.
Talvez seja Deus esse «tu» com quem Brandão enseja um monólogo: «Tu não existes! tu não existes! […] – E tu rodeias-me,
tu reclamas-me e queres viver comigo para todo o sempre. Não
te posso ver!…»145. Ali em Húmus, como aqui em Grito:
142
Manuel Laranjeira, «Comigo (Versos dum solitário)», in Obras de Manuel Laranjeira (vol. I), p. 192.
143
Raul Brandão, Húmus, p. 56.
144
Rui Nunes, Grito, Lisboa, Relógio D’Água, 1997, p. 24.
145
Raul Brandão, Húmus, pp. 59-60.
65
que voz se insinua nas vozes e nelas produz os interstícios da soletração? Há um ouvido a ouvir os sons maculados, e deus não nasce,
deus não morre, deus é o nome que oscila entre dois abandonos.146
Se a morte é o semantema implicitamente predominante nestas
duas obras, Deus é a interrogação que perpassa as suas paisagens
desoladas. E a relação difusa que aqui se estabelece é o sitz im leben da nostalgia de absoluto, ali em Húmus tão expressivamente
agónica: «Toda a gente fala no céu, mas quantos passaram no
mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, na sua temerosa realidade?»147. Ali em Húmus, como aqui em Grito, apercebemo-nos de que o mundo estava parado na noite dos sons e
que o «céu era o som que mais se aproximava de Deus, a clara
perfeição do que se ouvia»148. Aprendemos que Deus – com «d»
maiúsculo ou minúsculo – chega «como uma eira silenciosamente branca»149 e espera as palavras que o enredem num segredo150.
Trata-se de um Deus desfigurado, sem rosto; despossuído. Ocasionalmente, uma personagem sabe que Deus não dorme; acredita que a sua própria insónia contém todos os sinais da insónia
de Deus – «Deus é uma eterna insónia»151. «Nenhuma palavra
diz o presente, Deus disse, Deus não diz»152 – ocasionalmente,
uma personagem sabe que o presente é o passado de Deus.
Ali em Grito, como aqui em Húmus, enquanto as personagens
se apertam no «pressentimento de uma absoluta solidão»153, é a
dor o que interessa. É ainda um Deus temporalmente desfasado, essa outra figura maior. E o homem é, disforicamente, esse
animal aflito:
Rui Nunes, Grito, p. 53.
Raul Brandão, Húmus, p. 59.
148
Rui Nunes, Grito, p. 116.
149
Ibid., p. 123.
150
Cf. ibid., p. 62.
151
Ibid., p. 114.
152
Ibid., p. 115.
153
Ibid., p. 27.
146
147
66
Sinto uma dor sem gritos por trás da imobilidade. Cada hora é menos uma hora na minha vida. E o tempo foge, o tempo cor de mata-borrão que ao granito salitroso junta camada denegrida, e às almas
sepultadas outra pazada de cinza… Há momentos em que as figuras têm tanta vida como os santos imóveis nos seus nichos – mas
há momentos em que cada um redobra de proporções, há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. Há
momentos em que cada um grita: – Eu não vivi! eu não vivi! – Há
momento em que deparamos com outra figura maior que nos mete
medo. A vida é só isto? Por mais que queira não posso desfazer-me
de pequenas ações, de pequenos ridículos, não posso desfazer-me
de imbecilidades nem deste ser esfarrapado que vai de polo a polo.
Tenho de aturar ao mesmo tempo esta ideia e este gesto ridículo.
Tenho de ser grotesco ao lado da vida e da morte, mesmo quando
estou só o meu riso é idiota. E estou só e a noite. Por trás daquela
parede fica o céu infinito.154
Ali em Grito, como aqui em Húmus, o tempo tem metástases
e a consciência é um coágulo, até se tornar um corpo que obstrui, um êmbolo. Brandão insiste. Sabe que o tempo chega para
tudo, o tempo dura séculos. Brandão sabe que «dentro de cada
ser como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem
na escuridão e no silêncio, teias de escuridão e de silêncio»155.
Situa-se meticulosamente na periferia da realidade: «O nosso
mundo não é real: vivemos num mundo como eu o compreendo e o explico. Não temos outro. Estamos aqui como peixes num
aquário»156. Está dentro do aquário, mas observa-se a si mesmo
de fora do aquário. E denuncia:
E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até à cova sem
dar por ela. E não só esta vida monstruosa e grotesca é a única que
podemos viver, como é a única que defendemos com desespero. […]
Estamos aqui a representar. Estamos aqui todos ao lado da morte e
do espanto […]. Estamos aqui a matar o tempo.157
Raul Brandão, Húmus, p. 60.
Ibid., p. 59.
156
Ibid., pp. 60-61.
157
Ibid., p. 61.
154
155
67
Ali em Húmus, como aqui em Grito, ouve-se a mesma ruína, «a
mesma exposição do abandono»158, a mesma voz que atravessa
o mesmo declínio159. E Rui Nunes, enquanto escreve «contra a
mudez do olhar que espia»160, reconhece que o grito que habita
a casa161 é um grito mudo: um grito que se vê, mas não se ouve:
essa tão grande «falta de som que vem da boca entreaberta»162,
boca que está cheia de eu não querer falar; boca que está cheia
de eu me calar – boca que «é um animal espesso»163.
E assim se chora o lugar desocupado164. Com o tempo, tudo
«vem à superfície da sua solidão»165 e, como «não há noite que
me proteja desta noite que a sombra ilumina, fico parado no
seu interior como na dispersão»166. E assim Deus é ainda essa
pequena coisa que me falta:
falta-me o teu corpo e é Deus que me falta, falta-me a tua voz e é
Deus que me falta, falta-me a tua pele e é Deus que falta, tu és um
erro que alimentei, a monstruosidade de um erro a que soube dar
nome […] e onde não descanso. Tornaste-te a palavra mais pobre:
a da sobrevivência.167
Pergunto: que tipo de antologia seria a que reunisse alguns destes textos? Diferente, por certo, de Verbo – Deus como interrogação na poesia portuguesa, assumindo mais ou menos riscos,
descomedindo-se ocasionalmente.
Sim, queremos ainda saber de que modo a literatura contemporânea, recusando a banalidade intranscendente, se situa nas estâncias transimanentes de Deus como interrogação. Noutra perspetiva, mas com a mesma intencionalidade referencial: queremos
Rui Nunes, Grito, p. 70.
Cf. ibid., p. 69.
160
Ibid., p. 120.
161
Cf. ibid., p. 32.
162
Ibid., p. 57.
163
Ibid., p. 110.
164
Cf. ibid., p. 70.
165
Ibid., p. 59.
166
Ibid., p. 122.
167
Ibid., p. 120.
158
159
68
saber de que modo Deus habita a literatura – a poesia –, tendo
em consideração, neste caso, a poesia portuguesa e, mais especificamente, a poesia portuguesa contemporânea, do nosso tempo
(de indigência).
É interessante que em Portugal, na década de 90, uma poetisa –
então septuagenária – como Dalila Pereira da Costa e um jovem
poeta como Daniel Faria, tenham publicado obras tendencialmente místicas168.
Dalila Pereira da Costa subordinou a sua expressão literária
às funcionalidades oraculares de uma obra híbrida que, se não
desobstruiu um lugar para si na história da literatura portuguesa, assegurou pelo menos a continuidade com uma tradição de
poetas de tendência mística, ocasionalmente sincréticos e esotéricos, para os quais foram sempre pouco definidas as fronteiras
entre literatura, pensamento filosófico e experiência religiosa.
Daí as ressonâncias partilhadas com o gnosticismo de Teixeira
de Pascoaes.
Em relação a Daniel Faria, arrisco afirmar que – no âmbito da
teotopologia literária – ocupa no final do século XX o lugar de
destaque que Antero ocupou no final do século XIX. A relação
de Daniel Faria com a transcendência é, talvez, menos contundente do que a de Antero, mas nem por isso é menos agónica:
Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei
O que tive e a cadeira não serve o meu repouso.
Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres
O vazio que persiste à minha beira.169
Se queremos saber de que modo a literatura portuguesa contemporânea se situa nas estâncias transimanentes de Deus
como interrogação, teremos de escutar atentamente a voz deste
poeta que morreu com apenas 28 anos, em 1999.
A questão dos critérios que nos permitem considerar místico um poeta – e mística uma poética – carecem de algum aprofundamento. Sugiro, sobre esta questão:
Miguel García-Baró, De estética y mística, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2007.
169
Daniel Faria, Poesia, Porto, Assírio & Alvim, 2015, p. 57.
168
69
Tolentino Mendonça e Pedro Mexia dão-lhe um lugar de destaque na antologia Verbo – Deus como interrogação na poesia
portuguesa: dos 15 poemas que o representam, nove são do livro
Homens que são como lugares mal situados (1998) e seis de Dos
líquidos (2000). Mas talvez seja em Explicação das árvores e de
outros animais (1998) que melhor se percebe a intensa luta interior do poeta, entre a consciência de promessa não cumprida
e a espera dolorosamente prolongada: «Depois o tempo nunca
mais se abeirou da promessa/ Nem se cumpriu/ E a espera é não
acontecer […]/ E a saudade é tudo ser igual»170.
A temporalidade tende a ser uma mortificante experiência de
desterro. Mais ou menos inconformado, o poeta não disfarça a
desolação diante da ausência de Deus ou da sua presença não
pressentida. Por vezes, escuta-se um rumor de maceração nos
seus versos:
Vou-me pôr à mesa e esperar.
Tenho aflição por toda a ausência não anunciada
Acendi a luz por toda a casa e eletrifiquei a voz
Agora posso ampliar o clarão dos gritos. […]
Vou-me sentar à mesa. Vou deixar arrefecer a comida.
Fazer de conta que estou a esperar.171
«Um modo de te amar dentro do tempo»172 é a expressão da
saudade de Deus na obra de Daniel Faria, poeta que nas árvores
não buscou o lenitivo das raízes, mas a «incomparável paciência
de procurar o alto»173.
Se queremos saber de que modo a literatura contemporânea se
situa nas estâncias transimanentes de Deus como interrogação,
não podemos prescindir da Obra Poética174 de Sophia de Mello
Ibid., p. 110.
Ibid., p. 41.
172
Ibid., p. 85.
173
Ibid., p. 44.
174
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética, Lisboa, Caminho, 2011.
170
171
70
Breyner Andresen, da Obra inacabada175 de Fernando Echevarría e de A noite abre meus olhos176 de José Tolentino Mendonça,
mas não podemos evitar outros lugares, eventualmente mais
inóspitos, teotopias mais improváveis, desabridas como certos
lugarejos fronteiriços.
Fernando Echevarría, Obra inacabada, Porto, Edições Afrontamento, 2006 (vol. I)
e 2016 (vol. II).
176
José Tolentino Mendonça, A noite abre meus olhos, Porto, Assírio & Alvim, 2014.
175
71
[8.] O DESASSOSSEGO DA SALVAÇÃO
AQUI SÓ PODE SER A CASA DE DEUS177
Parece certo que a literatura – mesmo sem um compromisso especificamente soteriológico – gosta de conduzir o homem para
o desassossego da salvação178, desde os grandes poetas e tragediógrafos gregos a Virgílio (essa «antena inquieta» do mundo
antigo179), de Dante a Hölderlin e a Dostoievski, de Antero a
Daniel Faria. Como afirma Jorge Coutinho,
a literatura percorre os labirintos da vida, remexe as profundezas do
psiquismo humano, põe de manifesto o que passa ao lado da observação vulgar, denuncia as iniquidades da ordem estabelecida, questiona as certezas demasiado certas, abala as verdades petrificadas,
levanta interrogações, provoca dúvidas, abre novos horizontes […].
Onde tudo é normal suscita espanto. Torna-se antecipadora das
grandes questões de que irão ocupar-se os filósofos e os teólogos.180
E isso não é menos verdade hoje do que foi no passado. Esse
grande silêncio sobre Deus que nos provoca o sentimento da
ausência de Deus pela constatação da ausência explícita do semantema, nem corresponde ao silêncio de Deus, nem é um verdadeiro silêncio sobre Deus. Com Gadamer, diremos que a literatura, como forma específica do dizer humano, «não é apenas
o lugar ou o meio onde Deus, como quer que seja [nomeado ou
silenciado, afirmado ou combatido, adorado ou vilipendiado],
anda dito. Ela é também um meio ou instrumento privilegiado
do nosso dizê-lo»181.
Em «A primitiva labareda», José Tolentino Mendonça – evocando Ossip Mandelstam – lembra que «a poesia é a charrua
Ruy Belo, Todos os poemas, p. 210.
Expressão de Paul Poupard (cf. O Cristianismo no limiar do III milénio, Porto,
Livros do Brasil, 2001, pp. 35-52).
179
Expressão de Charles Moeller (cf. Umanesimo e santità, Brescia, Morcelliana,
1950, p. 53).
180
Jorge Coutinho, «Deus na Literatura», in Communio 6, Ano XIX (2002), p. 495.
181
Ibid., p. 497.
177
178
73
que opera sobre o tempo para fazer emergir o que, nele, repousa
no profundo». E conclui:
Se, de facto, uma relação se pode ainda estabelecer entre a poesia moderna e alguma coisa da ordem do sagrado, isso passa pelo
relato dos sulcos que, pacientemente, revolvem as devastações da
terra em busca de um brilho, de uma razão, de uma palavra ou
transtornam as escuridões planetárias que nos habitam, na esperança de um não sei quê agitado de esplendor. De que forma? Tanto
pelo despertar do encantamento que religa a palavra ao silêncio,
o visível ao invisível, por uma espécie de integridade inseparável
que se descobre em nós e nas coisas, como pelo desencanto face ao
inaceitável do mundo, à repetição sonâmbula do mal, à violência
desmedida da banalidade que contamina tudo.182
Estamos no âmago daquilo que seria – acaso existisse – o exercício da teotopologia literária. A «charrua que opera sobre o
tempo», nas palavras de Ossip Mandelstam, ou a «clareira da
verdade», numa hermenêutica inspirada por Heidegger: a clareira que se abre no dizer poético, «enquanto dizer metaforizante e simbolizante»183, dizer que diz e silencia, desvela e encobre,
enuncia o mistério não como quem exibe, mas como quem se
adentra no mistério.
Talvez Deus – a ideia de Deus, o mistério de Deus, Deus como
interrogação – esteja mais encoberto neste nosso tempo, vivamos a pós-modernidade ou a hipermodernidade, ou nem uma
coisa nem a outra. Sob tantos escombros, talvez Deus esteja mais
omisso neste mundo «largamente desdivinizado», essa «coisa
sem transcendência», como denunciou Ortega y Gasset,
distraído que está da profundidade dos grandes símbolos, dos códigos matriciais das linguagens que rondam o mistério que se consuma em nós, enquanto dispersa a sua fortuna no raso comércio de
sinais que se pretendem diretos e imediatos, longe, muito longe, da
preocupação pelo fulgor íntimo de um sentido.184
José Tolentino Mendonça, «A primitiva labareda», p. 10.
Jorge Coutinho, «Deus na Literatura», p. 498.
184
José Tolentino Mendonça, «A primitiva labareda», p. 10.
182
183
74
Ou talvez o mundo tenha sido sempre essa «coisa sem transcendência», esse tempo de indigência que depende dos poetas
para uma centelha de espanto, mesmo que já não ergam cidades
nem civilizem povos. Talvez as cordas solenes e soberanas da lira
de Orfeu não tenham emudecido para sempre.
A poesia – a literatura, a arte – torna-se «antecipadora das grandes questões de que irão ocupar-se os filósofos e os teólogos»,
porque é intuitiva, criativa, problematizante. Arrisca dizer Deus
nos limites da sua própria inteligibilidade, como um funâmbulo
que caminha sobre uma corda esticada, tensa; um funâmbulo sem
rede, numa certa suspensão ensimesmada, abstraída. E talvez seja
essa a única forma de dizer Deus em tempos de indigência: uma
espécie de funambulismo sonâmbulo, no limite da inteligibilidade
da realidade, por dentro da ininteligibilidade em que Deus – a
ideia de Deus, o mistério de Deus, Deus como interrogação – é
ainda inteligível, no limite da consciência do risco assumido em
cada movimento, no instante frágil de cada equilíbrio, de cada silêncio recolhido pela «mão trémula/ pobre/ assinalada pela escassez extrema dos nomes»185, como se lê num poema de Tolentino
Mendonça.
O lugar de Deus na poesia – na literatura, na arte – contemporânea é ainda um lugar que se pressente, que se intui. Pode
ser menos explícito do que nas formulações de outros contextos
histórico-culturais, mas nem por isso é menos autêntico. Com
efeito, talvez seja legitimamente mais interrogativo, mais fraturante, mais coerente com um certo sentido de implicitude sem
o qual Deus se torna um dado adquirido, uma mera construção, o produto de uma racionalidade redutora: um deus à imagem e semelhança de um homem que já não sabe conceber-se
– intuir-se – à imagem e semelhança de Deus.
Não se trata de uma atitude refratária ao discurso teológico e filosófico sobre Deus, mas a consciência de que, no caso concreto
do cristianismo, a teologia tende muitas vezes a ser o meio de legitimação dos processos de subversão da poética do Evangelho.
185
Id., A noite abre meus olhos, p. 42.
75
Como lembra Paul Tillich:
It is not easy to preach Sunday after Sunday without convincing
ourselves and others that we have God and can dispose of Him. It
is not easy to proclaim God to children and to pagans, to skeptics
and secularists, and at the same time to make clear to them that
we ourselves do not possess God, that we too wait for Him. I am
convinced that much of the rebellion against Christianity is due
to the overt or veiled claim of the Christians to possess God, and
therefore, also, to the loss of this element of waiting.186
E nesse sentido, mesmo com a erosão de tanta inocência perdida, mesmo com uma vaga melancolia dispersa em desgastes
e desgostos muitos, talvez este nosso indefinido tempo de indigência nos permita perceber que Deus não é de possuir; talvez
os teólogos e filósofos cristãos tenham de (re)aprender com os
poetas a esperar Deus sem a pretensão de possuí-lo; talvez a
poesia – a literatura, a arte – seja hoje uma espécie de sacrário
sem a pretensão de conter (um)a «presença real»: uma teotopia.
Com efeito, não sei se Deus está mais presente na poesia – na
literatura, na arte – contemporânea do que em outros modos de
presença (e pertença), em outros contextos histórico-culturais.
Mas estou certo de que Deus não está mais presente numa poesia que o enuncia explicitamente, do que numa poesia que implicitamente o pressente. E creio que o sentimento de ausência é,
muitas vezes, expressão de uma «presença mais pura»187, mesmo
que não saiba exatamente o que isso signifique – penso ainda na
lâmpada apagada «cujo ouro brilha no escuro pela memória da
extinta luz»188.
E creio que o Deus implícito – e ocasionalmente explícito189 –
na obra de tantos poetas contemporâneos é aquele no qual uma
Paul Tillich, The shaking of the foundations, Londres, Pelican Books, 1963, p. 152.
Expressão de José Tolentino Mendonça – cf. A noite abre os meus olhos, p. 94.
188
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, p. 156.
189
Como no caso de «Animal litúrgico», inédito com que Valter Hugo Mãe abre a
recente edição da sua poesia reunida (cf. Publicação da mortalidade, Porto, Assírio
& Alvim, 2018, pp. 13-30).
186
187
76
profissão de fé continua a ser um horizonte de possibilidade
de abertura à transcendência, a verdade íntima do mistério do
homem que se coloca diante do mistério de Deus, a inteligibilidade do homem que percebe – na sua intrínseca ininteligibilidade – a ininteligibilidade em que Deus se torna poeticamente
inteligível.
E creio que a poesia é um lugar onde Deus é – ainda – um
nome possível, essa charrua que opera sobre o tempo para fazer
emergir o que, nele, repousa no profundo; pode ser essa clareira
da verdade, de uma verdade que escapa. Talvez já não erga cidades nem civilize povos, mas creio que persiste onde realmente
importa: nesse íntimo «fundo informulado de uma vida»190 –
como se lê num poema de Herberto Helder –, que não é nem da
ordem do profano, nem da ordem do sagrado: mas uma dessas
estâncias transimanentes que Deus habita como interrogação –
uma teotopia.
E para que servem poetas em tempos de indigência? Servem
para redescobrir esse espaço em que a imanência e a transcendência se intersetam. O poeta a que se refere Hölderlin desdobra
a área de interseção transimanente – lugar coabitado, teotopia
poética. O poeta desdobra a área de interseção transimanente: é
um mediador, agente de intercessão ao modo do santo, mas em
sentido inverso: o santo intercede pelos homens junto de Deus,
o poeta intercede por Deus junto dos homens191.
Para que servem poetas em tempos de indigência? Servem ainda para perscrutar o que move a mão escrevente. E o que move
a mão escrevente é
uma qualquer compaixão pela vida, nua, pobre, passada, inocente,
esquecida, sussurrante, amante, quase nada. Uma compaixão que
Herberto Helder, Ofício Cantante – poesia completa, Lisboa, Assírio & Alvim,
2009, p. 109.
191
Ocorrem-me as palavras de Jaime Cortesão em Portugal, a Terra e o Homem:
«Depois atinge-se Amarante debruçada sobre o rio, vila antiga e solarenga dum
santo e dum poeta, de São Gonçalo e de Teixeira de Pascoaes. Poetas como este,
por vezes mais que os santos, santificam a vida» (Lisboa, Artis, 1966, p. 86).
190
77
ordena a mão na procura disso que, numa novela de Henry James,
se explicita assim: E a ti, o que te salva? Oh, os que não sabem que
a mão escrevente é a mão que salva!192
192
José Tolentino Mendonça, «A primitiva labareda», p. 10.
78
ÍNDICE
9
Pórtico
A pouco e pouco vemos onde mora
11
Antecâmara
Por muitos rostos gestos longes dispersado
15
[1.] Conjeturar e desconstruir
Mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus
21
[2.] Uma terra de poetas e um povo de suicidas
Dou caça um por um aos meus fantasmas
27
[3.] A morte do [mito do] poeta romântico
O sol escureceu e não se ouvia a voz
35
[4.] Poesia religiosa e teotopias poéticas
É muito triste andar por entre deus ausente
43
[5.] Contextualização histórico-cultural
Oh que difícil não é criar um homem para deus
53
[6.] Poetas em tempo de indigência
Agora nenhum gesto nesse alguém começa ou morre
61
[7.] Teotopografar a poesia
O melhor sítio para saber qualquer coisa da vida
73
[8.] O desassossego da salvação
Aqui só pode ser a casa de deus