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O cuidado espiritual e sua importância no paliativismo Carlos Frederico Barboza de Souza Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas; Professor do curso de especialização em Cuidados Paliativos, da Faculdade Unimed, com as disciplinas: Aspectos religiosos da morte e do morrer; Espiritualidade e saúde. Publicado em: CORRADI-PERINI, Carla; ESPERANDIO, Mary Rute Gomes; SOUZA, Waldir. Biohcs: bioética e tanatologia. Curitiba: CRV, 2019, p. 121-146. Introdução Temáticas envolvendo a espiritualidade aparecem de diversas formas em artigos e pesquisas. Uma perspectiva interessante e que vem apontar e agregar possibilidades é a sua relação com a área de saúde. Neste sentido, este capítulo quer contribuir com esta discussão, trazendo a relação e a colaboração que a espiritualidade pode propiciar para os casos envolvendo os cuidados e a medicina paliativa. E ao fazer isto, entende que os cuidados paliativos, por possuírem uma visão centrada não na cura, mas nos cuidados promovidos no final da vida, proporcionam um olhar diferenciado sobre as concepções que envolvem a saúde e as ações dos profissionais desta área. Estabelece-se um novo paradigma, centrado numa concepção global do paciente, incluindo o cuidado com sua família e todas suas dimensões, assim como pensando o acompanhamento de forma inter e transdisciplinar. Neste sentido, aberto a esta perspectiva, Franklin Santana Santos propõe um olhar para além de uma visão mecanicista, afirmando que “achar e trabalhar como se os sofrimentos físicos fossem mais frequentes e relevantes que os outros aspectos é perpetuar uma visão mecanicista, positivista e biológica do ser humano” (SANTOS, 2009, apresentação). Segundo este autor, esta visão biologicista e mecanicista do ser humano possui relação com a angústia que envolve os profissionais das ciências da vida, sobretudo, os médicos. Também possui relação com a dificuldade de se integrar a espiritualidade e a aceitação da morte nos processos terapêuticos, bem como o desenvolvimento de processos de racionalização e isolamento das próprias emoções. Isto leva a uma “obstinação terapêutica” e tem como consequência uma “luta incessante contra ela [a morte], inclusive levando a processos distanásicos e, consequentemente, provocando sofrimento e dor quando deveriam aliviá-los” (SANTOS, 2009, apresentação). Assim sendo, em um primeiro momento, neste texto, discutir-se-á o que são os cuidados paliativos. Em seguida, o que é a espiritualidade no paliativismo, sobretudo, procurando focar na contribuição da espiritualidade para os cuidados paliativos e os processos terminais que lhe são intrínsecos, trazendo a questão das necessidades e dos sofrimentos espirituais, da importância do diagnóstico espiritual e o consequente acompanhamento espiritual dos pacientes que se encontram em fase de terminalidade. Os cuidados paliativos: uma filosofia centrada no cuidado Os cuidados paliativos surgem com Dame Cicely Saunders e sua equipe, relacionados ao movimento hospice. Trata-se de uma nova filosofia sobre o cuidar que se baseia em uma concepção de que a morte é um processo natural e humano e inclui o controle da dor e dos sintomas relacionados aos tratamentos em fases avançadas das doenças, além do cuidado em relação às dimensões psicológicas, sociais e espirituais dos pacientes e suas famílias. Implica em apoio emocional e comunicação com o enfermo, a família e a equipe terapêutica, assim como mudanças nas organizações / instituições que favoreçam o trabalho inter e transdisciplinar e uma adaptação às necessidades e objetivos do paciente (BERMEJO, 2009, p. 17). Tendo-se em mente que o termo latino palliare significa proteger, amparar, cobrir, abrigar, com esta perspectiva entende-se que se está diante da “dimensão feminina da medicina”, pois quer-se não apenas curar, mas cuidar. Para isto, se “recorre aos instrumentos terapêuticos mais antigos: a palavra e as mãos” (BERMEJO, 2009, p. 13). Os cuidados paliativos possuem sua origem relacionados ao contexto contemporâneo da forma de se lidar com o morrer. Em sociedades tradicionais, o usual era que as pessoas morressem em suas próprias casas, cercadas de seus familiares e amigos, sendo capazes de expressar suas vontades e as ver sendo respeitadas. Com o advento do século XX, a medicalização da saúde e o desenvolvimento de uma medicina fortemente técnica, as pessoas passam a morrer nos hospitais. Neste ambiente é comum se experimentar a solidão do isolamento familiar e da vida cotidiana, o que implicará na associação de novos sentidos ao morrer. Ao mesmo tempo em que ancorado na realidade do século XX ocidental, os cuidados paliativos também nascem em relação com o movimento hospice. A palavra hospice é proveniente do latim hospes, que significava estranho e, posteriormente, anfitrião. Desta palavra se desenvolveu a palavra hospitalis, que aponta para a postura de “ser amigável”, ou seja, a atitude de dar boas-vindas ao estranho, ser anfitrião. Mais tarde, este termo gerou a palavra hospitalidade. Em 1840, na França, os hospices “eram abrigos para peregrinos durante seus percursos e tinham origem religiosa” (MELO & CAMPONERO, 2009, p. 258). Neles também se cuidava de pessoas que estavam em processo de morrer. E quando os peregrinos deixavam os hospices para continuarem seus trajetos, era comum receber um manto ou uma capa, pallium, para que estivessem mais protegidos e aconchegados durante sua viagem. Inspirada nestas “casas” e provocada pela busca de uma medicina mais humanizada, em 1967 Cicely Saunders e sua equipe fundam na Inglaterra o Saint Cristopher’s Hospice, o que dá origem a esta proposta médico-filosófica e a efetiva concretamente: “Com esse movimento, começou a ser introduzido um novo conceito de cuidar e não só curar, focado no paciente até o final de sua vida” (MELO & CAMPONERO, 2009, p. 259). Para Cicely Saunders, ao se cuidar de uma pessoa deve-se levar em consideração sua totalidade, pois as causas e sinais da dor e do sofrimento são variadas. Neste sentido, ela vai afirmar o conceito de “dor total” ou “sofrimento global” (CAPELAS, 2008, p. 10), pois esta pode ser simultaneamente de diversas ordens: física, psicológica, social, emocional e espiritual, não devendo nenhuma dimensão ser desvalorizada ou descuidada, sendo que aspecto espiritual também é importante de ser cuidado. Neste sentido, a espiritualidade é fundamental em todo processo de cuidados paliativos. Segundo Eduardo Bruera (cf. MELO & CAMPONERO, 2009, p. 265), pode-se falar em quatro estágios evolutivos dos cuidados paliativos no mundo. Esta concepção que identifica posturas e perspectivas diferentes no processo de aceitação do paliativismo é interessante. Por meio dela se pode entender que sua prática em sua integralidade supõe a aceitação e a inclusão de alguns aspectos, dentre os quais, gostaria de chamar a atenção para a visão inter e transdisciplinar e para a perspectiva da espiritualidade no acompanhamento dos processos de morrer. Assim, Bruera identifica quatro momentos: Negação – neste momento, que é o primeiro, nega-se o valor e o sentido dos cuidados paliativos e se afirma que o trabalho já feito na área de saúde é suficiente, no sentido de controle dos sintomas, não demandando nenhuma medida que busque seu aprimoramento, a não ser em nível técnico; Palifobia: é o segundo estágio da recepção da cultura paliativa. Este estágio, porém, representa uma reação forte aos cuidados paliativos, que é taxado de não ser científico, identificando-se com uma “eutanásia disfarçada”; Palilalia: este é o terceiro estágio do processo de recepção da filosofia e concepção paliativas. Nele, repete-se mecanicamente os conceitos relacionados aos cuidados paliativos, porém, sem nenhuma eficácia e ação efetiva. Cria-se grupos de discussão, cursos, palestras, nomeia-se setores e equipes de hospitais, mas, concretamente, não se alteram práticas, não se mudam consciências e concepções. O paliativismo se configura como um modismo; Por fim, há o estágio final, o Paliativo, que é quando se implanta a concepção paliativista de fato: formam-se equipes de trabalho, com pessoal qualificado; estrutura-se e investe-se em formação nesta perspectiva, com a criação de disciplinas; investe-se em equipes e concepções inter e transdisciplinar; investe-se e suporta-se financeiramente as ações de implementação dos cuidados paliativos. Quer-se, realmente, se chegar a prática desta filosofia do cuidado. Assim, tendo como horizonte estes quatro momentos da implantação da cultura dos cuidados paliativos, compreende-se que a espiritualidade e a atenção a esta dimensão é tão fundamental e relevante que é um dos indicativos mais significativos de que se chegou no momento Paliativo propriamente dito. Neste sentido, se partimos da concepção de Willians segundo a qual pode-se considerá-la como “o maior indicador de boa assistência no final da vida” (WILLIANS, apud SAPORETTI, in: SANTOS, 2009, p. 270), ou a concepção de Twycross, segundo a qual a espiritualidade engloba e integra as demais dimensões humanas (física, social e psicológica) (TWYCROSS, 2003, p. 57), a espiritualidade trabalhada nos cuidados paliativos também pode se converter em um dos indicadores de que o quarto estágio foi atingido. A espiritualidade nos cuidados paliativos Segundo Luis Alberto Saporetti (in: SANTOS, 2009), o ser humano possui diversas dimensões, ou seja, é multidimensional. Estas dimensões são as seguintes: Física: diz respeito à dimensão biológica propriamente dita dos seres humanos, incluindo sua corporalidade e os sofrimentos a ela relacionados, como as náuseas, vômitos, dores, dentre outros; Sócio-cultural: esta dimensão se refere às pertenças étnicas e a outras pertenças de cunho sócio-cultural, como a nacionalidade e a religião. Além disso, envolve o nível de escolaridade, a classe social, a linguagem específica utilizada por uma pessoa e os seus valores; Familiar: esta dimensão se relaciona com o menor núcleo de subsistência de uma pessoa, seus relacionamentos mais primários, assim como com as questões financeiras relacionadas à subsistência, que qualquer ser humano vivencia para se manter na vida e garantir seu sustento; Psíquica: nesta dimensão se encontram nossos medos, raivas, mágoas, alegrias, tristezas, estados depressivos, angústias, dentre outros sentimentos e emoções. É a dimensão da psique que nos possibilita a memória, os desejos mais íntimos, assim como os processos que ocorrem na mente humana, tais como seus pensamentos e percepções; Existencial: é a dimensão que se estrutura ao redor do sentido e significado das coisas, do mundo e da vida, englobando as demais dimensões e lhes dando significado; Espiritual: dimensão do indivíduo que se relaciona com os sentidos profundos da existência e sua relação com a transcendência, com o transcendente e com o Transcendente, entendendo cada uma destas expressões como relacionadas a um Absoluto (perspectiva para os não crentes) ou a um Sagrado. Neste sentido, é interessante se ter presente que a dimensão espiritual pode se relacionar ou não com a religião, assim como a religião, que está presente na dimensão sócio-cultural, também pode se relacionar com a dimensão espiritual. E esta relação pode ser boa, no sentido de favorecer a espiritualidade, ou pode não ser boa, no sentido de não favorecer o desenvolvimento da espiritualidade, que supõe liberdade para a construção de sentidos profundas na existência. Nos cuidados paliativos, todas estas dimensões devem ser atendidas e acolhidas, cada uma delas a partir de sua especificidade e características peculiares. Entretanto, nos casos em que a terminalidade está próxima, a espiritualidade recebe um sentido mais forte, pois Embora a dor e os sintomas físicos sejam sem dúvida aflitivos para os pacientes com câncer em estado avançado, permanece o fato de que sintomas vinculados com o sofrimento psicológico e com preocupações existenciais os afetam ainda mais (PORTENOY et alii, 1994). Integrar a espiritualidade e questões vinculadas com o sentido e a fé nos cuidados destinados a apoiar o paciente de câncer em estado avançado tornou-se hoje um componente essencial da excelência dos cuidados de apoio (BREITBART, in: PESSINI & BERTACHINI, 2004, p. 209). Porém, o termo espiritualidade é utilizado de diversas formas hoje. E embora já tenhamos delimitado seu uso no quadro acima, ainda seria interessante explicitarmos um pouco melhor este conceito. Assim, de que falamos quando utilizamos o termo espiritualidade? Em artigo anterior, apoiado em trabalho elaborado por Márcio Fabris dos Anjos (2008, p. 23-25), tentei classificar as diversas formas com que este termo pode ser compreendido. Assim sendo, na história do uso e aplicação deste conceito, podemos chegar a quatro grandes compreensões, tais como: “A espiritualidade é o fato de ser espiritual”. Segundo essa concepção, compreende-se a espiritualidade como fazendo parte ontologicamente de todo ser humano, uma de suas características e, portanto, uma de suas possibilidades a serem desenvolvidas. É este o conceito utilizado neste capítulo. “Espiritualidade como o conjunto de referenciais e práticas com que se cultivam os valores do espírito”. É o sentido mais utilizado atualmente, que se relaciona com a procura de se assumir os “valores espirituais”, assim como praticá-los e cultivá-los. Portanto, possui uma relação com a “ação do ser espiritual” (ANJOS, 2008, p. 24). E estes valores se encontram presentes em “tradições espirituais”, como as transmitidas pelas religiões ou por determinada época histórica. Neste sentido, há um enorme leque de possibilidades de vivências espirituais, associadas à cada tradição religiosa e momento histórico: espiritualidade budista, moderna, medieval, franciscana, dominicana, muçulmana, cristã, laical, matrimonial, etc. E em cada uma destas abordagens, a espiritualidade se relaciona, também, com concepções acerca da vida, do cosmo, dos seres humanos, dentre outras perspectivas. “Espiritualidade como a disciplina que estuda as teorias e práticas referentes ao cultivo do espírito”. Aqui, a espiritualidade é compreendida como objeto de estudo, que visa o aprimoramento do conhecimento a seu respeito e, ao mesmo tempo, a transmissão de conceitos, conteúdos, etc, que facilitem sua aplicação no cotidiano e nas diversas práticas, tanto em nível religioso, como em nível profissional. É nesta perspectiva que surgem pesquisas, cursos e disciplinas que procuram tratá-la sob uma ótica acadêmica, buscando teorizá-la e sistematizá-la, além de colocá-la em diálogo com outras áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, a Teologia, a Filosofia, a História etc. No caso da formação em cuidados paliativos, é comum haver disciplinas como Espiritualidade e Saúde que visem a formação de profissionais para atuarem com atenção a esta dimensão humana tão importante. “Espiritualidade como o cultivo da dinâmica – ou considerando-se a própria dinâmica – que impulsiona o ser humano consciente em seus conhecimentos e escolhas vitais”. Nesta perspectiva, a espiritualidade é a tentativa, religiosa ou não, de atualizar a vivência espiritual por meio do cultivo e prática desta dimensão humana, favorecendo o desenvolvimento de uma sensibilidade para esta dimensão visando níveis profundos e singulares de existência e de consciência-de-si, valorizando-se, sobretudo, a qualidade com que se cultiva esta dimensão profunda humana (cf. SOUZA, 2013, p. 136-137) No âmbito deste capítulo, as opções de compreensão do termo espiritualidade se situam nas perspectivas 1, ou seja, espiritualidade como dimensão humana, e na perspectiva 4, espiritualidade como o cultivo da dinâmica que impulsiona os seres humanos em seus conhecimentos e escolhas vitais, embora, seja um texto que trabalhe no nível 3, procurando teorizar acerca da espiritualidade nos cuidados paliativos. Portanto, no teor deste capítulo, trabalha-se com uma concepção de que espiritualidade e religião são duas coisas distintas. Entretanto, a importância desta distinção é tentar ler e compreender a espiritualidade para além das tradições religiosas, como uma dimensão humana importante de ser cuidada, que diz respeito à uma construção de sentido intrapessoal, interpessoal e transpessoal, segundo concepção de Reed (1992). Neste sentido, pode-se entender, com Angelo Brusco, que espiritualidade é o conjunto de aspirações, convicções, valores e crenças capazes de organizar em um projeto unitário da vida do homem, causando determinados comportamentos. Desta plataforma de interrogantes existenciais, princípios e valores partem caminhos que conduzem a elevadas metas do espírito (BRUSCO, 2002, p. 37). Ou seja, compreende-se a espiritualidade como uma dimensão que pode propiciar às pessoas uma condição de lidar com sua força vital mais profunda, seu ânimo de viver, seu sopro profundo (ruah). Segundo a tradição bíblica presente no Gênesis, é este sopro que anima toda a criação, sobretudo, o ser humano que, feito do barro, a partir dele se torna ser humano. Força inspiradora que colabora no enfrentamento dos desafios da existência, conferindo sentido e significado ao viver, ao mesmo tempo em que propicia unidade de vida, integração. Neste sentido, a espiritualidade aponta para as experiências mais profundas que um ser humano possa vivenciar; experiências estas que lhe dão sentido à existência e propiciam a realização de um projeto de vida. Ao mesmo tempo, a espiritualidade diz respeito à capacidade de se construir um sentido para a vida e para a realidade de forma integrada e não fragmentada. E isto sendo feito não no ensimesmamento, no fechamento em si, mas na abertura auto transcendente em direção à realidade, à sociedade, ao cosmo, tudo isto integrado ao que se compreende como os valores últimos da existência. A vivência desta perspectiva, outrossim, propicia a percepção da própria existência como consciente de si e prenhe de sentido, o que favorece o perceber-se como vocacionado à realização de opções fundamentais, à realização de um projeto de vida e um propósito inalienável, sem o qual o ser viveria a ausência de um sentido profundo (cf. SOUZA, 2013, p. 138). Entretanto, há alguns riscos a se evitar, sobretudo em áreas que envolvem a relação com seres humanos, como é o caso da saúde: a espiritualidade não é panaceia para resolver todos os problemas enfrentados. Principalmente porque ela não é da ordem da utilidade – do ponto de vista pragmático e utilitarista –, mas da criação de posturas e atitudes frente à vida e às situações desafiadoras que a vida propõe. Portanto, à ela devem ser aliadas outras posturas, olhares e saberes. Ou seja, ela pode ser rica quando trabalhada de forma inter e transdisciplinar. Além disso, trabalhar com a espiritualidade supõe um processo longo de contato consigo mesmo e com a vida e seus dilemas e desafios e não é, portanto, algo da ordem do mágico e do facilmente adquirível. Mas desenvolve-se no aprofundamento existencial na relação consigo e com a realidade. Isto posto, entende-se que a espiritualidade, na perspectiva de sua relação com a religião, pode viver os mesmos aspectos. Entretanto, no “caso da espiritualidade religiosa, que radica tais princípios e valores na relação com um ser transcendente” (BRUSCO, 2002, p. 37), as possibilidades acima apontadas são mediadas por um encontro com um Sagrado. Mas na relação entre religião e espiritualidade, também é importante salientar que podem haver desvios, como a associação da espiritualidade exclusivamente ao espírito ou alma e desvinculá-las da corporeidade, do contexto e da história humana; ou associá-la exclusivamente a práticas como meditação, oração e silêncio e não percebê-la na vida cotidiana da profissão e dos relacionamentos; relacioná-la como exclusividade de certos momentos e ambientes; pensá-la de forma dicotômica na relação com a corporalidade. Neste sentido, vale a afirmação de Pedro Casaldáliga e José María Vigil, para os quais Espiritualidade”, decididamente, é uma palavra infeliz. [...] poderá significar algo distante da vida real, inútil e talvez até odioso. [...] A palavra espiritualidade deriva de “espírito”. E, na mentalidade mais comum, espírito se opõe à matéria. Os “espíritos” são seres imateriais, sem corpo, muito diferentes de nós. Nesse sentido, será espiritual o que não é material, o que não tem corpo. E se dirá que uma pessoa é “espiritual” ou “muito espiritual” se vive sem se preocupar com o material, nem sequer com seu próprio corpo, procurando viver unicamente de realidades espirituais (CASALDÁLIGA e VIGIL, 1993, p. 21). Os riscos reais de se pensar a espiritualidade longe da realidade e da materialidade da vida. Assim, urge que se busque referenciais interessantes que pensem a espiritualidade numa perspectiva profunda, integrada na totalidade das dimensões que compõem os seres humanos e não na fragmentação que a desvincula da vida e de seus componentes. Em termos da relação com a corporalidade, há que se ter presente que a mesma não se encontra isolada da dimensão espiritual, mas deve, também ela, ser incluída. Neste aspecto, Gustavo Gutierrez possui uma reflexão pertinente. Muitas vezes se leu, na história do ocidente, corpo como algo negativo e sede da condição pecaminosa dos seres humanos, visando-se, com isto, enfatizar a necessidade de se “viver segundo o espírito”, conforme afirma Paulo em sua carta aos Romanos (Rm 8,4). Esta discussão foi lida como colocando em oposição carne, corpo e espírito. Porém, a perspectiva é nunca perder a dimensão de totalidade do ser humano, pois quando se fala em espírito ou carne no texto paulino, se está levando em consideração o ser humano todo quando aberto à totalidade da vida ou quando fechado em si mesmo (viver segundo a carne). E todas estas afirmações conduzem para que se pense a espiritualidade numa perspectiva “não espiritualizante”, que a desvincule da vida, da matéria, da luta pela existência, etc., e que a mesma seja compreendida sob um prisma mais amplo: Neste contexto semântico, espírito significa vida, construção, força, ação, liberdade. O espírito não é algo que está fora da matéria, fora do corpo ou fora da realidade real, mas algo que está dentro, que habita a matéria, o corpo, a realidade, e lhes dá vida, os faz ser o que são, enche-os de força, move-os, os impele; lança-os ao crescimento e à criatividade num ímpeto de liberdade (CASALDÁLIGA e VIGIL, 1993, p. 21-22). E Gustavo Gutierrez, numa perspectiva teológica, mas elucidadora, também vai nesta linha de pensamento: A espiritualidade não se restringe aos aspectos – assim chamados – religiosos: a oração, o culto. Ela não é algo setorial, mas sim, algo total. É toda a existência humana que se põe em marcha, existência pessoal e comunitária. Trata-se de um estilo de vida que dá unidade profunda ao nosso orar, nosso pensar e nosso agir (GUTIERREZ, 1987, p. 100). A formação para se trabalhar com a espiritualidade nos Cuidados Paliativos A espiritualidade, embora seja uma dimensão fundamental nos cuidados em processos terminais, por outro lado, não aponta para uma tarefa fácil. Ainda mais que se compreendemos que o cuidado com a dimensão estritamente espiritual não é tarefa exclusiva dos “agentes de pastoral”: capelães, pastores, padres, religiosos, etc, “mas é tarefa de todo profissional da saúde estar atento à dimensão espiritual dos pacientes, de modo especial na última fase da vida, quando esta dimensão cobra especial relevância” (BERMEJO, 2009, p. 24). Mais ainda: qualquer pessoa pode atuar nesta perspectiva, desde que esteja ao menos relativamente preparada. Destarte, tendo presente que o cuidado espiritual não é uma “opção extra” (SAUNDERS, apud O’CONNOR, 1993, p. 133), mas uma condição sine qua non dos cuidados paliativos, é importante que se atente para a formação para se lidar com esta dimensão humana. Neste sentido, Shafranske, abordando a formação do psicólogo para encarar o aspecto religioso nos processos terapêuticos no terreno da psicologia, possui uma perspectiva interessante, que vale, também, para o caso do cuidado espiritual no paliativismo. Afirma ele: A extensão na qual os temas religiosos são tratados e a natureza das técnicas que são usadas são determinadas primariamente pelo envolvimento religioso pessoal mais do que por um treino clínico. A educação e o treino na área da psicologia e religião mostram-se, como muito, limitados; a grande maioria relata que temas religiosos são raramente (ou nunca) abordados. A conclusão é que a aproximação que os clínicos adotam para a compreender a religiosidade de seus clientes é baseada, primariamente, em suas convicções pessoais mais do que em uma educação graduada e em um treino clínico dirigido à necessidade profissional de refletir nas suas atitudes fundamentais para com a religião considerada como uma variável da saúde mental e da prática clínica da psicologia” (SHAFRANSKE, 2005, p. 160). Ou seja, segundo Shafranske, a formação técnica e profissional para se enfrentar a dimensão religiosa das pessoas é quase nula, ficando restrita, na maioria dos casos, a uma formação espontânea, que segue as convicções pessoais do profissional. Isto indica a séria lacuna que há para se lidar com a dimensão religiosa. O mesmo se pode dizer da dimensão espiritual. Nesta direção, faz-se necessário se pensar na imprescindibilidade de formação para se trabalhar com a espiritualidade. Formação esta que deve começar visando propiciar a autoconsciência dos diversos profissionais envolvidos com os cuidados paliativos acerca de seus posicionamentos e convicções pessoais sobre a espiritualidade; ao mesmo tempo, deve favorecer o desenvolvimento da capacidade de acolher a diversidade religiosa, uma vez que em muitos casos, junto com as necessidades espirituais, aparecem necessidades religiosas (ou, ao menos, as necessidades espirituais se manifestam mediadas por formas religiosas). Neste aspecto, é fundamental que se tenha acesso aos conhecimentos básicos envolvendo as tradições religiosas, bem como a uma formação que facilite a convivência com diversidade religiosa por meio do acesso a teologias que tratem de forma positiva e rica este fenômeno (teologias do pluralismo religioso). Por teologias do pluralismo religioso se entendem as diversas concepções de fé que as religiões elaboram para pensar a diversidade religiosa. Neste sentido, ajuda a compreender estas concepções quando se pensa a partir de alguns paradigmas. Uma formulação interessante – e que aqui apresento de forma reduzida e simplificada – é entender que existem posturas exclusivistas. Segundo esta visão, fora da minha religião não há salvação. Também existem possibilidades chamadas inclusivistas. Nesta perspectiva, há salvação fora da minha religião, porém, o agente da salvação ainda é o princípio da minha religião, que atua para além das fronteiras confessionais, sendo eficaz em outras tradições religiosas. Por fim, há o paradigma pluralista, que entende que toda religião possui, em si mesma e nos seus rituais, princípios salvíficos, havendo, neste sentido, igualdade entre todas as religiões na perspectiva da salvação. Por fim, a formação neste campo deve oportunizar a se lidar com as necessidades espirituais, seu diagnóstico e a necessidade de acompanhamento espiritual. Entretanto, quem trabalha com cuidados paliativos e com ações relacionadas à espiritualidade, também deve se preparar para ocupar-se com suas expectativas: devem ser realistas e se preparar para lidar com frustrações e possíveis não adesões dos pacientes à proposta levada adiante pelo cuidador. Além do mais, faz-se mister o cultivo da espiritualidade de forma pessoal e na equipe de trabalho cuidadora dos pacientes. Assim é que se pode pensar na importância de se cultivar a interioridade, que nada mais é que estar atento aos próprios sentimentos, pensamentos, reflexões, incômodos e satisfações. E isto se aprende gastando tempo consigo, sem distrações, cultivando momentos de leitura pessoal, reflexão, silêncio e certo “estar consigo a sós”. Igualmente é importante se cultivar e investir na qualidade de vida, buscando o equilíbrio entre as várias dimensões da vida, como a profissional, a pessoal, o lazer, o esporte, a formação intelectual, os relacionamentos amorosos e as amizades, etc. Isto tudo tentando manter a dimensão de encantamento no processo que envolve a vida, os relacionamentos e a história, buscando redescobrir formas de vivenciar o encanto e as emoções do olhar que não querem perder de vista a esperança e a novidade que pode ser descoberta, mesmo em meio às rotinas mais duras. Por fim, ainda no campo do cultivo da espiritualidade, é fundamental que se aprenda a aprender com os momentos difíceis. Nas linguagens das tradições religiosas, muitos destes momentos são denominados de noites (evocam momentos de perda de referências, em que tudo parece escuro e sem saída), de desertos (aludem aos tempos de aridez, quando as coisas perdem o sabor e o gosto) e tempestades (indicando as situações invasivas e diversas que, atuando simultaneamente, geram confusão, abalando a segurança e ameaçando o que pensamos ter construído). Com isto, quer-se permitir aos profissionais que trabalham com os cuidados paliativos que se abram à dimensão de Mistério que a tudo envolve e desenvolvam uma atitude que não se fecha em respostas prontas, mas que se percebe podendo ser surpreendido a cada situação, porque a realidade não é esgotada por minhas percepções. Como afirma Comte-Sponville, devemos nos abrir à “Experiência do mistério, por trás da fingida transparência das explicações. Na maioria das vezes passamos ao largo: somos prisioneiros das falsas evidências da consciência comum, do cotidiano, da repetição, do já conhecido, do já pensado, da familiaridade suposta ou comprovada de tudo, em suma, da ideologia ou do hábito...” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p. 134). E todo este esforço formativo é essencial, do ponto de vista da espiritualidade, porque Satisfazer as necessidades espirituais implica um acompanhamento desde o eu profundo, e para isto é preciso que sejamos conscientes do que sentimos, do que pensamos, do que expressamos verbal e não verbalmente. É necessário, em definitiva, ter a capacidade de captar-se a si mesmo em profundidade. Somente a partir de um nível fundo e profundo podemos satisfazer as necessidades espirituais. Somente uma relação madura pode acompanhar espiritualmente a uma pessoa em fase terminal (BERMEJO & SANTAMARÍA, 2007, p. 150). A espiritualidade no agir paliativista Se a espiritualidade é algo tão importante nos processos de terminalidade, como ela se efetiva, realmente, na prática paliativista? É sobre esta temática que nos depararemos agora, compreendendo que boa parte da espiritualidade presente nos cuidados paliativos se apresenta, de forma concreta, na capacidade de elaboração de um diagnóstico espiritual, que identifique necessidades espirituais, assim como sofrimento espiritual e, a partir disso, proponha um caminho de acompanhamento. Sobre estes três aspectos nos deteremos com mais detalhes a seguir. Diagnóstico espiritual Conforme já afirmado anteriormente, segundo Cicely Saunders há dores de ordem física, psicológica, social, emocional e espiritual. Porém, a diferença das dores de ordem física, as dores e os sofrimentos espirituais são desprovidos de uma sintomatologia objetiva, o que dificulta o processo de diagnóstico do que vivem os pacientes neste terreno. Neste sentido, torna-se fundamental a capacidade de se elaborar um diagnóstico, embora possa ser concebido por muitos com certas resistências, entendendo-o como técnica despersonalizadora, ou um juízo artificial sobre o paciente, ou mesmo como uma invasão à sua intimidade e um atentado contra sua liberdade. Por diagnóstico espiritual se compreende um processo cognitivo, feito pelo ajudante, sobre as informações verbais ou não verbais da pessoa ajudada e seus familiares, em que captando o seu “mundo interior” poderá dar resposta às necessidades reais e concretas da pessoa, não caindo em pressupostos subjectivos do próprio ajudante. [...] Para a sua realização deve-se recorrer a instrumentos e técnicas próprias para tal fim (MENDES, 2011, p. 54). O diagnóstico espiritual é dinâmico, pois ocorre em um processo que se estabelece a partir de vários encontros com os pacientes, através dos quais se vivencia a relação de forma diferenciada, sobretudo, devido às vivências de diferentes estados psíquico-espirituais comum nas condições de enfermidade e terminalidade. Assim sendo, o diagnóstico espiritual é construído levando-se em consideração este processo de contato profissional-paciente. Para o diagnóstico espiritual alguns elementos são fundamentais, como ter clareza em relação às necessidades espirituais, ser capaz de identificar os problemas vivenciados pelos pacientes e que podem ser de diversas ordens; dar atenção à alguns sintomas espirituais; estar atento aos pontos fortes das pessoas (características singulares, elementos que dão qualidade à uma personalidade e a caracterizam; elementos motivadores fortes; capacidades e interesses pessoais, etc); ter contato com os familiares, quando isto é possível; favorecer a narrativa da história de vida dos pacientes. Existem, também, alguns métodos que podem servir de orientação para a diagnose espiritual dos pacientes. Neste sentido, apresentamos abaixo alguns modelos que possam favorecer a identificação de necessidades espirituais. O primeiro modelo é apresentado por José Carlos Bermejo (2009, p. 47-48). Nele se estabelecem áreas a partir de seis categorias: sentido da vida; sentido da morte; sentido da enfermidade; culpabilidade; esperança; e experiência religiosa. A partir de uma tabela contendo diversas perguntas em cada um destes campos, o profissional de saúde pode identificar situações que estão presentes no paciente, assim como situações que não se aplicam. Realizadas as questões num ambiente, pelo menos em termos ideais, com certa privacidade, tranquilidade e clima de empatia e confiança mútuas, com o profissional focando numa escuta ativa, pode-se identificar muitas questões envolvendo a vida do enfermo. Outro modelo que visa facilitar o diagnóstico espiritual é o conhecido como FICA, proposto por Cristina Puchaslski e Anna Romer (2000, p. 131). A palavra FICA é formada com as iniciais em inglês das categorias que são abordadas neste texto, conforme quadro abaixo: Faith (fé) Qual é sua fé ou crença? Você se considera uma pessoa religiosa ou espiritualizada? Que crenças você possui que dão sentido à sua vida? Importance and influence (importância e influência) A fé é importante em sua vida? Que influência ela tem na maneira que você cuida de si mesmo? Como sua fé tem lhe influenciado em seu período de enfermidade? Que papel tem sua fé na recuperação de sua saúde? Community (comunidade) Você participa de alguma Igreja ou comunidade espiritual? Ela é suporte para você e como? Adress (abordagem) Como nós (equipe) podemos abordar e incluir essa questão no seu atendimento? De modo semelhante ao anterior, o modelo seguinte é denominado SPIRIT, proposto por Todd Maugans (1996, p. 12), também formado com as letras iniciais de cada conjunto de questões diagnósticas. Spiritual belief system (Sistema de crenças espirituais) Qual é a sua filiação religiosa? Descreva seu sistema de crença espiritual Personal Spirituality (Espiritualidade pessoal) Descreva as crenças e práticas de sua religião ou sistema espiritual que você aceita Descreva as crenças e práticas de sua religião ou sistema espiritual que você não aceita Você aceita ou acredita... (princípios ou práticas)? O que a sua religião ou espiritualidade significam para você? Qual é a importância da sua religião / espiritualidade em seu cotidiano? Integration within spiritual community (Integração em uma comunidade espiritual) Você pertence a alguma Igreja, grupo religioso ou outra forma de comunidade espiritual? Qual é a sua posição ou função? Que importância este grupo tem para você? É uma fonte de suporte? De que maneira? Este grupo ajuda ou pode ajudar no lidar com questões de saúde? Ritualized practices and restrictions (Práticas ritualizadas e restrições) Há alguma prática que você realiza como parte de sua religião / espiritualidade (ex.: oração, meditação)? Há alguma prática ou atividade no seu estilo de vida que sua religião / espiritualidade encoraja ou proíbe? Você concorda? Que significado estas práticas ou restrições possuem para você? Há elementos específicos dos cuidados médicos que você proíbe baseado(a) em suas perspectivas religiosas / espirituais? Implications for medical care (Implicações para os cuidados médicos) Qual desses aspectos espirituais ou religiosos você gostaria que eu estivesse atento? Você gostaria de discutir as implicações religiosas ou espirituais para sua saúde? Que conhecimentos ou concepções fortaleceriam nossa relação paciente/médico? Há alguma barreira para nossa relação baseada em sua religião ou espiritualidade? Terminal events planning (Planejamento da terminalidade) No planejamento do final da sua vida, como sua fé interfere nas suas decisões? Há algum aspecto particular do cuidado que você desejaria levar renunciar ou manter por causa de sua fé? Há outros modelos ainda, que podem ser encontrados, de forma esquemática e sintética, na obra de Elizabeth Johnston Taylor (2010, p. 651ss), como o HOPE, de Anandarajah e Hight, o FACT, de La-Rocca-Pitts, o MVAST, de Skala e McCoy, o BELIEF, de McEvoy, para ser aplicado em um contexto pediátrico. Entretanto, todos eles reproduzem a mesma estrutura de processo diagnóstico e se encontram no mesmo paradigma de acesso às necessidades espirituais dos enfermos, com estruturas semelhantes de questões. E, segundo Aline Fantin Cervelin (2012), podem reproduzir uma concepção homogeinizadora dos pacientes, compreendendo-os quase que de forma semelhante, como se todos tivessem as mesmas necessidades e as manifestassem das mesmas formas. De certa maneira, são formas padronizadas de pensar a diagnose e quando aplicadas mecanicamente não favorecem a humanização que os cuidados paliativos e a perspectiva dos cuidados a partir da espiritualidade querem proporcionar. Assim, podem “normalizar corpos e atitudes, produzindo determinados modos de pensar e agir [...] instituem um regime de verdades que produz certo tipo de profissional e de paciente” (CERVELIN, 2012, p. 27). As mesmas observações podem ser feitas em relação à metodologia proposta por FACIT SP-12, de Peterman et alii (2002), com o inconveniente de que este método introduz a matemática no estabelecimento do diagnóstico espiritual e pretende certa exatidão dos resultados. Segue a tabela: Sp 1 Sinto-me em paz Sp 2 Tenho uma razão para viver Sp 3 A minha vida tem sido produtiva Sp 4 Custa-me sentir paz de espírito Sp 5 Sinto que minha vida tem um propósito Sp 6 Sou capaz de encontrar conforto dentro de mim mesmo(a) Sp 7 Sinto-me em harmonia comigo mesmo(a) Sp 8 Falta sentido e propósito em minha vida Sp 9 Encontro conforto na minha fé ou crenças espirituais Sp 10 A minha fé ou crenças espirituais dão-me força Sp 11 A minha doença tem fortalecido a minha fé ou crenças espirituais Sp 12 Independentemente do que acontecer com a minha doença, tudo acabará em bem Respondendo a este quadro, o enfermo marca seu estado nos últimos sete dias numa escala de 0 a 4, que vai de “nem um pouco” a “muitíssimo”, passando por “um pouco”, “mais ou menos” e “muito”. Outra perspectiva é a que se encontra nos questionários que procuram propiciar uma autoavaliação espiritual. Neste sentido, Taylor (2010, p. 652) também indica um quadro com questões para que o paciente possa preencher e tomar consciência de questões relacionadas à sua espiritualidade. Este quadro possui perguntas tais como: O que o(a) enfermeiro(a) poderia fazer que lhe ajudaria a alimentar ou ampliar sua espiritualidade? Após esta pergunta, o paciente marcaria com um X as situações em que ele(a) gostaria que o profissional de saúde estivesse atento: ____ ficar um tempo com você em silêncio ____ orar com você ____ ajudar a meditar ____ favorecer tempo e espaço para sua oração privada ou meditação ____ permitir que você saiba que seus enfermeiros oram por você privadamente ____ ler literaturas espirituais que possam lhe ajudar ____ trazer arte ou música que alimentem seu espírito ____ ajudá-lo a estar conectado com sua comunidade espiritual ____ ajudá-lo a observar práticas religiosas ____ ouvir seus pensamentos sobre certas questões espirituais ____ ajudá-lo a contar sua história espiritual Há outras questões neste quadro, porém, as que estão aqui já nos auxiliam a ter uma visão do teor do mesmo. Por fim, no quesito diagnóstico espiritual, mais que este processo formal de responder a itens em um questionário, são fundamentais as atitudes do cuidador: aceitar e acolher a autonomia do paciente, que a tudo deve dar seu consentimento; desenvolver uma relação de confiança com o paciente por meio de um processo de diálogo e escuta atenta e ativa; neste diálogo, saber ouvir as comunicações não verbais, tais como as linguagens do corpo (mesmos as fisiológicas), as linguagens do ambiente (que objetos ou livros estão no ambiente, por exemplo) e os silêncios; também ser capaz de ouvir as metáforas dos enfermos, perceber temáticas que envolvam a espiritualidade e que são recorrentes em suas falas; ouvir suas emoções, percebendo onde ele centra suas energias; colocar-se não como uma autoridade em assuntos sobre vida e morte, mas como alguém que dá suporte, que acompanha, muitas vezes, fazendo-se presente silenciosamente. E como um dos aspectos importantes que facilitam e predispõem a diagnose é ser capaz de identificar necessidades espirituais, resta-nos, agora, desenvolver este conceito e identificar algumas necessidades que podem ser associadas à dimensão espiritual dos seres humanos. Necessidades espirituais Um elemento importante para o diagnóstico espiritual é se perceber as necessidades espirituais que os pacientes possuem. Neste sentido, apoiando-me em José Carlos Bermejo (2009, p. 50-52), pode-se elencar algumas necessidades que podem se fazer presente no enfermo em processo de terminalidade: Necessidade de ser reconhecido como pessoa: o enfermo sente, muitas vezes, sua doença como uma intrusa, que impacta negativamente em sua vida, autonomia e capacidades físicas, mentais e psíquicas. Diante deste tipo de situações, ele tem necessidade de lutar contra todo mecanismo de despersonalização, visando ser reconhecido como pessoa, com seus desejos, medos, nome e condição. Necessidade de amor: junto com a necessidade anterior, há o medo da solidão, de não ser compreendido e de não ser ouvido ou cuidado com paciência. Esta necessidade, muitas vezes, gera uma tendência a que o paciente se centre em si mesmo, manifestando queixas relacionadas à sintomatologia de sua doença. Necessidade de reler a própria vida: no final da vida de uma pessoa, o passado adquire uma importância fundamental, pois é uma forma de a pessoa se recuperar diante do risco de morrer. Surge, assim, a necessidade de narrar a própria vida para tomar e retomar consciência de si. Muitas vezes, o rever a própria vida gera mágoas e sentimentos de culpabilidade, reivindicando a necessidade de perdão. Necessidade de perdão: Necessidade de fazer as pazes consigo, com as pessoas, sua própria história e com o Sagrado. Necessidade de sentido: o processo de morrer faz a pessoa rever sua vida, o que lhe propicia se situar frente ao seu passado e ao todo de sua vida. Gera buscas do que é essencial e provoca o surgimento de perguntas sobre o sentido último das coisas. Também surge o desejo de satisfazer-se profundamente, de auto realização. Necessidade de estabelecer a vida em um “mais além”: esta é uma necessidade que está presente durante a vida por meio do cultivo da arte, dos estudos, da procriação, etc. No final da vida esta necessidade se manifesta com a procura de se projetar para além do tempo e da própria história, seja deixando algo para a família ou os entes queridos, seja pensando na possibilidade de uma vida após a morte. Necessidade de continuidade: associada a necessidade anterior, muitas pessoas querem deixar algo para a posteridade, transmitir seus conhecimentos, entendendo-se, desta forma, ainda vivos e capazes de deixar uma marca no mundo. Necessidade de expressar sentimentos religiosos: principalmente quando crente, o paciente necessita expressar suas vivências religiosas como experimentada em sua tradição religiosa, principalmente por meios celebrativos, quando se une à sua comunidade, se expressa por meios de gestos e significados e ritualiza sua relação com a dimensão sagrada, por meio da qual sente-se em contato e conectado(a) com o Sagrado. Necessidade de pôr ordem: pôr em ordem nas próprias coisas, como a vida pessoal, financeira, etc... Necessidade relacionada ao desejo de se encerrar um ciclo, transferir responsabilidades, expressar os últimos desejos, desfazer-se de coisas e dá-las a outras pessoas, relacionar-se com alguém para finalizar um conflito ou passar uma mensagem significativa. “Deixar resolvido aquilo que se experimenta como não encerrado proporciona uma grande paz à pessoa”. (BERMEJO, 2009, p. 52) Necessidade de transcendência: este tipo de necessidade aponta para uma perspectiva primordial da condição humana: o sentido da existência só pode ser encontrado para além de si mesmo. Isto é, como abertura para algo maior, para conectar-se e comungar com algo que está para além de si mesmo, seja na realização de um projeto, seja no encontro com pessoas, seja na descoberta de um sentido para a própria vida. Como afirma Victor Frankl, O ser humano sempre aponta e se dirige para algo ou alguém diferente de si mesmo – seja um sentido a realizar ou outro ser humano a encontrar. Quanto mais a pessoa se esquece de si mesma – mais humana será e mais se realizará. O que se chama de autorrealização não é de modo algum um objetivo atingível, pela simples razão de que quanto mais a pessoa se esforçar tanto mais deixará de atingi-lo. Em outras palavras, a autorrealização só é possível como um efeito colateral da autotranscendência (FRANKL, 2008, p. 135). Em relação às necessidades espirituais, no entanto, é importante se ter presente que elas apontam para uma facilitação da diagnose espiritual, na medida em que dá indicativos do que se observar e avaliar. Ao mesmo tempo, é um indicativo forte de por onde deverá caminhar o acompanhamento espiritual, momento por excelência da efetivação dos cuidados da dimensão espiritual humana. O acompanhamento espiritual Acompanhar espiritualmente a pessoa que sofre é entrar no mundo interior da outra pessoa e em toda a sua biografia, implica perceber as suas necessidades e apelos ou “gritos” mais profundos, compreender o seu modo de estar e de sentir e, sobretudo, saber permanecer ali ao lado, ainda que a muito custo e, por vezes, sem saber o que fazer (MENDES, 2011, p. 56). Identificada as necessidades espirituais em um paciente específico, surge a tarefa do acompanhamento espiritual, tendo consciência de que as perspectivas que conduzem à transcendência são umas das mais eficazes para restaurar a integridade de uma pessoa quando se sente ameaçada ou fortemente afetada por algo, como a proximidade da morte e sua sintomatologia, por exemplo. Isto posto, é importante se partir de alguns pressupostos: no acompanhamento espiritual o fundamental é deixar-se ser conduzido pelo paciente. Ou seja, quem pauta os assuntos ou quem dá o ritmo ao acompanhamento não é o profissional de saúde, que pode até provocar situações, criar condições, mas não determinar o processo. Este, sempre, está por conta do paciente, de suas necessidades e desejos. Além do mais, acompanhar espiritualmente uma pessoa significa trabalhar a partir da singularidade de cada paciente: singularidade de suas questões, de suas buscas, de suas necessidades. Luis Alberto Saporetti (2017), em palestra realizada no Pestana São Paulo Hotel, em evento do Instituto Paliar, afirma que a espiritualidade pode se manifestar de diversas formas ou diferentes focos. Desta maneira, ele concebe a sigla SOMUS para, a partir das suas letras iniciais, entender que a espiritualidade pode se manifestar de diversos modos, seja no Sagrado, nos outros, no momento, no universo ou em si mesmo. Muitas vezes os pacientes focam mais em uma perspectiva que em outra; outras vezes, podem focar em duas ou mais perspectivas, sendo que sua percepção pode se atrelar a um aspecto em determinados momentos da vida e em outros variar completamente. Ou seja, se na juventude uma pessoa se encontrou com sua espiritualidade mediada pelo contato com o universo, em outro momento distinto, o Sagrado é que será importante para a expressão de sua espiritualidade ou o contato consigo mesmo. Além disso, a essência do cuidado e acompanhamento espirituais não é o suporte doutrinal ou dogmático, mas a capacidade de entrar no mundo dos pacientes e lidar com suas questões em profundidade e intensidade, pois “Esta fundamental capacidade humana envolve tocar o outro em um nível que é mais profundo que o das diferenças ideológicas ou doutrinais” (O’CONNOR, 1993, p. 138). Mesmo porque, em relação à questão doutrinal, o que se encontra na concretude dos processos de acompanhamento não são as doutrinas puras, perfeitas e acabadas, mas o que se encontra é um sujeito com suas vivências e o resultado do que ele absorveu, refletiu, deu conta de incorporar em sua vida das doutrinas e crenças pelas quais ele ou ela transitaram. Ou seja, encontramos sempre fragmentos imperfeitos do que são os códigos doutrinais e as crenças, mas que dão sustento à vida de um determinado sujeito. Uma coisa interessante de se observar, já identificada na literatura científica, é que muitas vezes o que o paciente entende e vive como espiritualidade é bem diferente do que o profissional de saúde entende por espiritualidade e suas práticas. Segundo Selby et alii (2017, p. 146), a partir de uma pesquisa de campo com 16 pacientes com processos terminais avançados e 21 profissionais da saúde, identificaram perspectivas e compreensões diferentes entre estes dois grupos. De maneira geral, os enfermos pensam sua espiritualidade de modo muito mais simples, prático e imediato que os profissionais de saúde, que ficam mais preocupados e centrados em suas conceituações; os pacientes focam mais nos seus sentidos, sensações e experiências que os profissionais, que se focam mais nos sistemas de crenças e nas buscas por respostas; por fim, os pacientes afirmam a vivência dos momentos presentes e as pequenas coisas, enquanto os profissionais de saúde se preocupam com a construção de sentidos e a descoberta de propósitos. Nesta perspectiva, o papel e a função do cuidador mais do que dar respostas é ajudar a criar um ambiente no qual as questões espirituais do paciente, assim como sua orientação espiritual possam se manifestar e florescer. Para isto, é fundamental conhecer a orientação espiritual do paciente e suas necessidades e, com estas ferramentas, se pôr a caminho junto com ele, uma vez que o acompanhamento espiritual é mais sentido que visto, que observado. Também se há de ter presente que o fato de um paciente possuir relação com alguma tradição religiosa isto não quer dizer que ele esteja “nutrido” ou acompanhado espiritualmente. Muitas vezes, sua relação profunda não se estabelecerá com sua comunidade de fé nem com suas lideranças, mas com alguém que lhe estenda a mão a partir da concretude de sua situação e vivências cotidianas. Tudo isto posto, podemos partir para trabalhar o desenvolvimento dos cuidados espirituais, que acontecem, sobretudo, por meio da presença, da esperança e do reconhecimento de que apesar da vida de uma pessoa não ser mais produtiva do ponto de vista econômico, ainda permanecem possibilidades de frutificar e ainda é vida. É importante se trabalhar a partir da compreensão que deve vir marcada pela aceitação incondicional do paciente e de seus questionamentos. Isto se manifesta no evitar, da parte do profissional, todo julgamento e interpretações rápidas, rasas e precipitadas, além de se evitar qualquer tipo de moralismos e de moralização da conversa e da vida dos enfermos. E para isto, todo cuidador deve estar atento à sua forma de comunicação com seus pacientes. Atentos à sua comunicação verbal, mas, sobretudo, à sua comunicação não verbal, pois, como afirma Mendes, O saber-estar, apenas estar ao lado de quem sofre, utilizando a linguagem não verbal; os gestos, o olhar, o toque, a postura corporal (González, 2007, pp. 226-233) é o que a maioria das vezes é possível fazer junto de doentes e familiares, que constantemente agradecem o tão pouco que se consegue dar, mas que para eles já é muito. A “haptonomia”, ou seja, a aproximação táctil afectiva, é muitas vezes a melhor forma de complementar a intervenção técnica, dando uma maneira de ser mais humana aos tratamentos, ao proporcionar o encontro humano, entre o cuidador e o doente, de forma a valorizar a linguagem da sua corporalidade (Hennezel, 2005, p. 52). [...] Também a linguagem para verbal ou paralinguagem, modificando o tom de voz, os sons “hum, ah”, acompanhados por expressões faciais ou visuais ou toques físicos, podem ajudar a que algumas vezes seja possível manter uma comunicação com alguns doentes em grande dependência, sendo por vezes um especial instrumento de intervenção espiritual. [...] Assim, a comunicação, verbal e não verbal, acaba por ser um grande instrumento de diagnóstico e intervenção espiritual, passando por ser um processo onde se inclui informação, compreensão, apoio mútuo e, sobretudo, uma grande capacidade de relação de confiança (Pessini & Bertachini, 2005, pp. 491-509). (MENDES, 2011, p. 57-58). Assim sendo, cabe aos profissionais de saúde um papel importante e uma disponibilidade interior para acompanhar na dimensão espiritual seus pacientes e escutá-los. Dentre as técnicas que são importantes, Rousseau (2000) e outros autores, citados por Breitbart (2006, p. 214), são da opinião que a narrativa de vida e a revisão de vida, como técnicas psicoterapêuticas, na abordagem do sofrimento espiritual com pessoas perto da morte, podem ser técnicas muito úteis, na relação de ajuda, ao doente e à família. Do diálogo com a família podem surgir dados, sugestões, questões e ideias muito importantes que a equipa e cada técnico da respectiva área, muitas vezes, pode utilizar para completar o diagnóstico e respectiva intervenção, favorecendo assim uma atenção mais adequada à realidade de cada situação, concretamente na área espiritual, são muito importantes as referências que os familiares partilham sobre crenças, rituais, práticas religiosas, preocupações e outras questões importantes referentes ao seus entes queridos (MENDES, 2011, p. 58). Por outro lado, tendo consciência que a proximidade da morte pode sugerir questões relacionadas à espiritualidade, também se há de se ter a percepção que a espiritualidade é uma questão presente na vida das pessoas e que nem sempre vem acompanhada de sofrimento espiritual. Isto posto, deve-se ter presente que o trabalho de acompanhamento espiritual possuirá características específicas e implicará na ajuda aos sujeitos em relação: A manejar a angústia e as perguntas difíceis; A trabalhar a pergunta pelo sentido e a valorização pessoal da morte: a pessoa em estado terminal – ou com um diagnóstico de uma doença ameaçadora – pode experimentar a vivência de novos valores descobertos a partir da situação vivida, assim como de novos sentidos em sua vida; A favorecer sua reconciliação com a própria vida: elaboração da culpa e trabalho com a memória, o remorso, o perdão e a reconciliação consigo, com a própria história, com outras pessoas e com o Sagrado; A reassumir as próprias opções fundamentais; A reformular metas diante do tempo que lhe resta e das situações vividas; A elaborar a dor pelas separações; A crer e a experimentar a continuidade da história humana; A trabalhar os conflitos éticos; A trabalhar a esperança; A trabalhar a relação com o Sagrado; A facilitar a expressão religiosa que, para o crente, possui profunda relação com sua identidade e intimidade ou pode ser vivida de forma conflituosa, precisando ser elaborada e experimentada de forma reconciliada; A encorajar revisão de vida para que se possibilite a construção de um sentido e propósito; A favorecer o sentido de pertença a um grupo mais amplo, como uma comunidade de fé ou uma comunidade espiritual; A favorecer e incentivar a participação em processos celebrativos e simbólicos, pois permitiria a ritualização (no sentido da palavra rito como gesto que traduz crenças fundamentais) da relação com o Sagrado, colocando-o numa dimensão comunitária, simbólica e gestual; além de favorecer outras linguagens (para além da linguagem verbal) para se elaborar as situações vividas, propiciando encontro com outras pessoas; Ajudar a construir o sentido de um sofrimento inerente à sua situação; A encorajar e possibilitar experiências de meditação e relaxamento das tensões como formas de contato consigo e o favorecimento de novos insights e intuições acerca da própria vida; A favorecer o acesso a “modelos espirituais” sobre como lidar com certas situações de vida; A incentivar a partilha da própria experiência, afetos, crenças e esperanças; A propiciar um sentido de universalidade ao vivido. Conclusão A espiritualidade nos cuidados paliativos, longe de ser uma dimensão isolada e fragmentada do processo de cuidar é uma dimensão fundamental da filosofia paliativista. Por meio dela, se pode permitir às pessoas quando não há mais possibilidades de cura que venham a resgatar e recuperar valores importantes de suas vidas, valores estes muitas vezes esquecidos e abandonados, precisando ser redescobertos e atualizados. Não é um trabalho de pouco valor, mas uma necessidade para que as pessoas, em seu processo de morrer, o façam com consciência, dignidade e sentido, elementos fundamentais para que se possa alcançar conforto existencial, paz e criatividade. Diante de tal desafio, pode-se ver que falta muito para caminhar. A estrada é longa e o caminho é difícil. Facilmente, nos percebemos pouco preparados. Nós e boa parte dos profissionais de saúde. Ainda mais que esta dimensão implica no autocuidado, na busca de equilíbrio pessoal e qualidade de vida, além da vivência em profundidade de nós mesmos. O desafio está posto. A própria vida nos convoca, por vezes. Mas, como dizia o poeta: “Navegar é preciso, viver não é”. Frase atribuída por Plutarco ao general romano Pompeu, do século I a.C, que, mais tarde, Petrarca (séc. XIV) lhe conferiu a formatação que a tornou conhecida. Fernando Pessoa, em seu poema “Navegar é preciso”, a retoma, dando-lhe uma interpretação interessante: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. Fonte: : http://www.secrel.com.br/jpoesia/fpesso.html. Acesso em 09/08/2018. Felizmente, viver não é preciso. As portas estão abertas e a criativa pode se instalar. Que este texto seja um convite a nos recriarmos continuamente na relação conosco mesmos e nas nossas relações profissionais! Referências ANJOS, M. F. Para compreender a espiritualidade em bioética. In: PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. de. Buscar sentido e plenitude de vida. Bioética, saúde e espiritualidade. São Paulo: Paulinas, Centro Universitário São Camilo, 2008. p. 19-28. BREITBART, W. Espiritualidade e sentido nos cuidados paliativos. In: PESSINI, L. & BERTACHINI, L. (orgs.). 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