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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS DEPARTAMENTO DE ECONOMIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS PATRÍCIA GRAEFF MACHRY AFEGANISTÃO E IÊMEN: CONDICIONANTES E CARACTERÍSTICAS DA CRISE DOS ESTADOS Porto Alegre 2016 PATRÍCIA GRAEFF MACHRY AFEGANISTÃO E IÊMEN: CONDICIONANTES E CARACTERÍSTICAS DA CRISE DOS ESTADOS Trabalho de conclusão submetido ao Curso de Graduação em Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharela em Relações Internacionais. Orientador: Prof. Dr. Paulo Gilberto Fagundes Visentini Porto Alegre 2016 PATRÍCIA GRAEFF MACHRY AFEGANISTÃO E IÊMEN: CONDICIONANTES E CARACTERÍSTICAS DA CRISE DOS ESTADOS Trabalho de conclusão submetido ao Curso de Graduação em Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharela em Relações Internacionais. Aprovado em: Porto Alegre, 12 de dezembro de 2016. BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Paulo Gilberto Fagundes Visentini – Orientador UFRGS Prof. Dr. Luiz Dario Teixeira Ribeiro UFRGS Prof. Dr. Marco Aurélio Chaves Cepik UFRGS Às manas da turma 9 AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço à República Federativa do Brasil, por ter me proporcionado um ensino público e gratuito de qualidade, e ao povo brasileiro, responsável pelo financiamento de meus estudos. À Universidade Federal do Rio Grande do Sul e à Faculdade de Ciências Econômicas, por terem me provido de todas as ferramentas para a realização de pesquisa e extensão, ao corpo docente pelo conhecimento transmitido, e aos servidores e funcionários terceirizados, pelos inúmeros e essenciais serviços prestados. Agradeço ao professor Paulo Visentini, meu orientador e mentor ao longo do último ano e a quem devo muitas das reflexões contidas nesse trabalho, pela confiança sempre depositada em mim. Agradeço também às professoras Sonia Ranincheski e Jacqueline Haffner, por terem sido grandes incentivadoras de meus voos para fora da Universidade. Devo muito também aos nossos projetos de extensão, em especial o UFRGSMUN e o UFRGSMUNDI. O crescimento obtido com a extensão é impossível de descrever em palavras, então fica o meu muito obrigada a todos os colegas que dividiram esses espaços comigo desde 2012. As amizades construídas na UFRGS tiveram um papel igualmente importante, e aqui entra um dos mais importantes agradecimentos: à minha querida turma 9, sem a qual não imagino minha vivência acadêmica – e nem minha vida. Alguns amigos merecem menção especial: Ana, Milagre, Lu, Robs, Alê, Marina, Rose, Willian, Silveira, Kanter, Pedro, Julinha, Marília, Simi e Mirko. Merecem menção, também, pessoas cuja leveza sempre me salvava “do lado de fora” das RI: Bita, Ally, Be, Ba, Lau, Nessa, Nina e Leti, com quem tenho a sorte de dividir a vida; e as “musas da copa”, simplesmente por sermos nós. E o João Arthur, por tudo. Por ter lido todo o meu trabalho e me aguentado surtando, mas principalmente por ter me enchido de amor e alegria durante o processo. Não há rótulos suficientes para explicar tudo que és para mim, meu bem. Não poderia terminar sem agradecer à minha família. À família de POA, pelo carinho de sempre. À minha mãe e ao meu pai, por sempre me apoiarem em todas as minhas decisões, e por sempre terem tido certeza de que eu faria algo bom com o investimento que fizeram em mim. Sem eles, em muitos sentidos, este trabalho não teria saído do plano das ideias; e nem sem o apoio emocional de minha mãe em Erechim na reta final do trabalho. Por fim, agradeço à minha irmãzinha, que foi cúmplice de muito da minha procrastinação, mas que sempre teve paciência e me ajudou com o TCC. Somos a prova viva de que ninguém vive só de amor ou de intelecto: é também preciso Netflix e iFood... Escutávamos o marmulhar das ondas, na quebra do horizonte, enquanto esperávamos ver a baleia. Era ali o lugar dela aparecer, quando o sol se ajoelhava na barriga do mundo. De repente, um ruído barulhoso nos arrepiava: era o bicharão começando a chupar a água! Sorvia até o mar todo se vazar. Ouvíamos a baleia mas não lhe víamos. Até que, certa vez, desaguou na praia um desses mamíferos, enormão. Vinha morrer na areia. Respirava aos custos, como se puxasse o mundo nas suas costelas. A baleia moribundava, esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não morrera e já seus ossos brilhavam no sol. Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si. Como se aquele fosse o último animal, a derradeira oportunidade de ganhar uma porção. Mia Couto, em Terra Sonâmbula RESUMO O presente trabalho visa compreender como os Estados no Afeganistão e no Iêmen se inserem na discussão sobre a falência ou colapso de Estados, que vem ganhando espaço no debate acadêmico de Relações Internacionais desde o fim da Guerra Fria. Parte-se da hipótese que o Estado se encontra em crise em ambos os casos, e que as razões para tal remontam ao seu processo de formação. Tendo em vista que se tratam de Estados fundamentalmente distintos dos Estados europeus, afirma-se que deve haver cautela ao classifica-los como “Estados falidos”, um conceito elaborado com base na concepção europeia de Estado. Em virtude dessas particularidades, o trabalho estrutura-se de forma a compreender como se dá o debate sobre o colapso de Estados nas Relações Internacionais e como os casos afegão e iemenita contribuem para confirmar ou refutar conceitos nessa discussão. Assim, o primeiro capítulo apresenta os aspectos conceituais sobre Estado no campo das RI, aprofundando-se nos conceitos de falência e colapso de Estados e suas críticas, e no processo de formação de Estados do Terceiro Mundo. O segundo capítulo apresenta como se formaram os Estados afegão e iemenita e quais os desafios e gargalos apresentados desde este momento. O terceiro capítulo, por fim, explica como o desmembramento da União Soviética e o fim da Guerra Fria contribuíram para expor as fragilidades destes Estados, as quais foram intensificadas, ainda, com o advento da Guerra ao Terror. O trabalho mostrará que alguns dos principais elementos que contribuem para a crise do modelo de Estado no Afeganistão e no Iêmen são o intenso sectarismo, a constante ingerência estrangeira e a atuação crescente de grupos não-estatais, que são acompanhados por enorme fragilidade econômica. Todas essas características têm raízes na formação destes Estados, não devendo ser entendidas como meramente conjunturais em virtude de estes países encontrarem-se, atualmente, em guerra civil. Palavras-chave: Afeganistão. Iêmen. Formação de Estados. Colapso estatal. Estados falidos. ABSTRACT The present work aims at understanding how the Afghan state and the Yemeni state are framed in the discussion on failed or collapsed states, which gained strength in the International Relations field since the end of the Cold War. The main hypothesis is that both states are in crisis and that the reasons for that date back to their formation processes. Bearing in mind that these states are fundamentally different from European states, there should be precaution in classifying them as “failed”, since the concept of failed states was elaborated based in an European conception of state. Due to these particularities, this work is structured to understand how the Afghan and Yemeni cases can contribute to confirm or refute the main concepts in the current debates about the state. The first chapter presents the conceptual aspects regarding the state in IR, focusing on the “failed” and “collapsed” state concepts and its critics, as well as on the discussion on state formation in the Third World. The second chapter explains the formation of the state in both Afghanistan and Yemen, and which where the main challenges and gaps faced during this process. Finally, the third chapter aims at explaining the influence of the disintegration of the Soviet Union and the end of the Cold War in exposing Afghan and Yemeni fragilities – which were intensified after the War on Terror. The work will reveal that some of the main characteristics that contribute to the crisis of state in Afghanistan and Yemen are sectarianism, foreign interference and the actions of non-state groups, all of which are accompanied by huge economic vulnerability. These characteristics have roots in the formation of those states, therefore they should not be understood simply as situational due to the fact that these countries are currently at civil war. Keywords: Afghanistan. Yemen. State formation. State collapse. Failed states. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AQPA – al-Qaeda na Península Arábica CDN – Conferência do Diálogo Nacional CGP – Congresso Geral do Povo CSNU – Conselho de Segurança das Nações Unidas EUA – Estados Unidos da América FLISO – Frente pela Libertação do Iêmen do Sul Ocupado FLN – Frente de Libertação Nacional FMI – Fundo Monetário Internacional HIH – Hizb-i Islami-yi Afghanistan (Hekmatyar) IDH – Índice de Desenvolvimento Humano ISAF – International Security Assitance Force JIA – Jamiat-i Islami-yi Afghanistan JMP – Joint Meeting Parties ONG – Organização Não Governamental ONU – Organização das Nações Unidas OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte PDPA – Partido Democrático do Povo Afegão PIB – Produto Interno Bruto PSI – Partido Socialista Iemenita RAI – República Árabe do Iêmen RDA – República Democrática do Afeganistão RDI – República Democrática do Iêmen RDPI – República Democrática Popular do Iêmen RI – Relações Internacionais UFP – União das Forças Populares URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11 2 FORMAÇÃO E FALÊNCIA DOS ESTADOS: PERSPECTIVAS TEÓRICAS ............... 17 2.1 A Paz de Westfália e a consolidação do Estado como ator das RI ................................ 18 2.2 A emergência e a instrumentalização do debate sobre a falência dos Estados ............ 20 2.3 O Estado no Terceiro Mundo ........................................................................................... 24 3 FORMAÇÃO E TRAJETÓRIAS DOS ESTADOS AFEGÃO E IEMENITA ................... 28 3.1 A formação do Afeganistão ............................................................................................... 29 3.1.1 Dos Impérios às Guerras Anglo-Afegãs: a conformação de um Estado-tampão .......... 32 3.1.2 Independência, abertura externa e modernização ......................................................... 36 3.1.3 A Revolução de Saur de 1978 e a intervenção soviética............................................... 42 3.2 A formação do Iêmen ........................................................................................................ 48 3.2.1. A era islâmica e a chegada dos impérios: das tribos à divisão Norte-Sul .................... 51 3.2.2 Os “dois Iêmens”: das independências à consolidação dos Estados revolucionários ... 53 3.2.3 O processo de unificação e a formação do novo Estado iemenita ................................ 60 4 A CRISE DOS ESTADOS NO PÓS-GUERRA FRIA .......................................................... 64 4.1 Sectarismo, insurgência e ingerência externa: o caso do Afeganistão .......................... 65 4.1.1 A queda de Rabbani e a ascensão do Talibã ................................................................. 69 4.1.2 A Guerra ao Terror no Afeganistão............................................................................... 73 4.1.3 A retirada da ISAF e o renascimento da guerra ............................................................ 77 4.2 Sectarismo, insurgência e ingerência externa: o caso do Iêmen .................................... 81 4.2.1 Os reflexos da Guerra ao Terror no Iêmen e a ascensão das insurgências al-Houthi e alHirak ....................................................................................................................................... 87 4.2.2 A Primavera Árabe e a queda de Ali Abdullah Saleh ................................................... 92 4.2.3 A guerra civil de 2015 e a retomada das ameaças ao Estado ........................................ 98 5 CONCLUSÃO......................................................................................................................... 100 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 106 11 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho busca analisar o processo de crise do Estado no Afeganistão e no Iêmen. A discussão sobre a falência ou colapso de Estados vem ganhando espaço na academia de Relações Internacionais desde o fim da Guerra Fria. Sobretudo após os ataques de 11 de setembro de 2001, os Estados apontados como falidos ou em falência passaram a ser considerados, por acadêmicos e formuladores de política externa, uma nova fonte de ameaça à segurança internacional. Pretende-se, aqui, portanto, analisar de que maneira Afeganistão e Iêmen se incluem neste debate. O trabalho parte da premissa de que é impossível entender o suposto colapso de um Estado sem compreender o contexto em que este Estado foi formado, especialmente quando se trata da periferia mundial. Por essa razão, atenção especial será dada ao processo de formação e consolidação dos Estados nacionais afegão e iemenita. A escolha por usar, no título, o termo “crise do Estado” se dá em virtude das críticas e ressalvas relacionadas aos termos “falência” ou “colapso”. Justifica-se, ainda, em função da cautela necessária para se dar uma sentença terminal, como “fim do Estado” ou “desintegração”, a Estados que se encontram ainda tomados por guerras civis, e cujas estruturas são recentes, particulares e estão ainda em desenvolvimento. Supõe-se que a estrutura estatal em ambos os países esteja em crise, o que significa que passa por dificuldades e enfrenta desafios, mas que essas características não necessariamente sejam sinônimo de falência e nem que sejam recentes e meramente conjunturais. Atenção especial será dada à explicação, instrumentalização e problematização desses conceitos, para melhor enquadrar os dois estudos de caso. A opção por analisar o Afeganistão e o Iêmen justifica-se em virtude de similaridades históricas, geográficas, políticas e estruturais entre os dois. Primeiramente, ambos são Estados que foram construídos em um contexto de disputa entre impérios: no caso afegão, a disputa entre o Império Russo e o Império Britânico durante o Grande Jogo do século XIX transformou o Afeganistão em um Estado-tampão, que serviria para conter as ambições imperiais de cada um e evitar contendas; no caso iemenita, as ambições do Império Otomano e do Império Britânico em dominar o território comercialmente estratégico ao sul da península arábica levaria à divisão deste território entre os dois impérios, o que resultaria na formação de dois Estados distintos, um ao Norte e outro ao Sul. 12 Tanto a sociedade afegã quanto a iemenita foram historicamente marcadas – e ainda o são – por importantes divisões regionais e tribais, que existem por motivos étnicos, religiosos ou meramente territoriais. Por serem territórios bastante acidentados, com cadeias de montanhas, cânions e desertos que dificultam o domínio do território como um todo e a formação de sociedades unificadas, diversas lideranças tribais se desenvolveram e mantiveram poder sobre significativas porções do território e da população. Essa tendência, que variou em intensidade a depender do período histórico, desempenhou um papel crucial na consolidação dos Estados desses países. Ademais, o Afeganistão e o Iêmen do Sul1 foram, ambos, países que tiveram regimes socialistas apoiados pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) durante a Guerra Fria – respectivamente, a República Democrática Popular do Iêmen e da República Democrática Popular do Afeganistão. Essa semelhança adicional permitirá verificar a influência desse período no desenvolvimento dos dois Estados e, especialmente, como o final da Guerra Fria e a desintegração da União Soviética influenciaram no processo de crise desses Estados. À luz de todas as questões expostas, o trabalho buscará responder se é possível de fato, falar em crise do Estado nos casos do Afeganistão e do Iêmen. A hipótese central para essa pergunta é de que é, sim, possível afirmar que as estruturas estatais nestes lugares estão passando por um longo período de crise, mas que as razões para tal são múltiplas e remontam à formação desses Estados. Nesse sentido, tem-se como objetivo secundário identificar o que permitiu que esse fenômeno se verificasse em cada um dos casos, por meio de uma análise comparada. Para tal, a primeira hipótese secundária do trabalho é que a formação dos Estados afegão e iemenita se deu com uma série de gargalos e dificuldades, tendo sido fundamentalmente diferente da formação dos Estados nacionais europeus. Assim, a análise sobre eles deve levar em conta suas particularidades, tomando-se cuidado com a tentação de classificá-los como “Estados falidos”. Ainda, acredita-se, como segunda hipótese secundária, que a desintegração da União Soviética desempenhou papel importante na exposição dessas fragilidades, e que elas foram intensificadas com o advento da Guerra ao Terror. Para desenvolver os objetivos e hipóteses colocados, buscar-se-á: i) compreender como se dá o debate acerca da crise dos Estados no campo das Relações Internacionais; ii) compreender 1 A divisão Norte-Sul do Iêmen se manteve até 1990, quando ambos os Estados se unificaram. A questão da divisão e da unificação e a sua influência na estrutura estatal iemenita atual será melhor explicada ao longo das seções três e quatro do trabalho. 13 como se formaram os Estados iemenita e afegão e, com isso, verificar os elementos de fragilidade que se verificavam desde sua formação; iii) entender quais foram as consequências do fim da Guerra Fria em ambos os países, investigando os elementos que contribuem para a manutenção da fragilidade desses Estados atualmente. Supõe-se como hipótese secundária final que, tanto no Afeganistão quanto no Iêmen, os seguintes fatores têm influência na crise do Estado: i) a interferência estrangeira, direta ou indireta, que se verifica desde a formação de ambos os Estados e exerce grande influência até hoje; ii) o sectarismo, seja ele religioso, étnico, tribal ou regional, que dificulta a coesão da população dentro das fronteiras atuais e exerce grande influência nos rumos políticos de cada país; e iii) as atividades de atores não-estatais, que vêm crescendo em importância ao longo dos últimos anos e que são fator significativo da perda de controle territorial e securitário por parte das autoridades estatais. Por fim, estima-se que a situação de enorme fragilidade econômica em que se encontram esses países agrava ainda mais a dificuldade do Estado em prover recursos à totalidade da população. De um ponto de vista prático e social, o presente trabalho se justifica pela crescente atenção que o Oriente Médio e o sul da Ásia têm recebido nos últimos anos. Embora historicamente caracterizadas pela ingerência externa e pelo domínio de grandes impérios, essas regiões têm, atualmente, atraído o interesse de grandes potências devido a questões estratégicas e securitárias. O Iêmen e o Afeganistão se enquadram nesse contexto por sua localização estratégica e pela crescente atuação de grupos terroristas dentro de seus limites. Diante do interesse crescente sobre o tema do terrorismo, a análise atenta sobre a crise dos Estados importa para compreender como se formam os supostos “vácuos de poder” e como, na maior parte das vezes, a atuação das grandes potências para combater a ameaça terrorista é tão politicamente orientada quanto a dos grupos que se busca derrotar. Do ponto de vista acadêmico, o trabalho justifica-se, primeiramente, em virtude da importância das discussões sobre Estado no campo das Relações Internacionais. De acordo com Fred Halliday, “desde o início dos anos 1970, a maior parte do debate teórico dentro das relações internacionais enfocou a questão do Estado” (1999, p. 87). As principais correntes teóricas das RI versavam, de alguma maneira, sobre o papel do Estado – fosse defendendo a sua proeminência como ator das RI, a exemplo dos realistas, fosse questionando-a ou relativizando-a, como os neoliberais ou estruturalistas. Percebe-se, portanto, que a simples discordância relativa a esse 14 papel foi suficiente para a criação de novas correntes, e para discussões e impasses que, até hoje, parecem não ter chegado a uma solução (HALLIDAY, 1999; SARFATI, 2005). Para além desse ponto de partida, o trabalho justifica-se, principalmente, em razão da ascensão da discussão sobre “declínio do Estado” ou “desintegração estatal” no campo das RI. Esse debate é relativamente recente e tem sido interpretado por acadêmicos e formuladores de política externa como uma das principais preocupações contemporâneas no campo da segurança internacional (MILLIKEN; KRAUSE, 2002; MAZARR, 2002). A elaboração e popularização de relatórios como o Índice dos Estados Falidos2 pelo Fund for Peace em parceria com a Foreign Policy, mostra a importância da realização de trabalhos que contribuam com essa discussão sobre a crise dos Estado, destrinchando, discutindo e contestando os conceitos mais usados. Sobretudo, são necessários trabalhos que levem em consideração as especificidades dos Estados de cada região, de modo a impedir que o debate seja monopolizado e instrumentalizado como forma de justificar intervenções militares e humanitárias. O método de abordagem basilar da pesquisa será o método dedutivo, a partir do qual se parte de um pressuposto mais amplo para chegar a conclusões específicas. Neste caso, a monografia buscará apresentar o que se entende, nas principais discussões dentro das Relações Internacionais, como sendo as condicionantes do colapso ou falência de Estado, bem como as críticas a esses conceitos, para entender como os casos particulares do Afeganistão e do Iêmen se enquadram nesse debate. Tendo presentes tais considerações, a técnica de pesquisa – que é, aqui, majoritariamente qualitativa – concentrou-se em três momentos principais. Em um primeiro momento, realizou-se extensa revisão bibliográfica de materiais acadêmicos, relatórios de institutos de pesquisa e documentos oficiais sobre o assunto. Em um segundo momento, utilizouse desta revisão para realizar os estudos de caso do Afeganistão e do Iêmen. Segundo Yin (2001), o estudo de caso é um método explanatório útil para casos em que é possível responder a questões de “como” e “por que”, e em casos em que o pesquisador não consegue ter controle sobre as variáveis elementares dos eventos que analisa. Com relação à primeira questão, é possível interpretar a pesquisa como tentando responder “por que razões” os Estados encontramse em crise, e “como” esse processo se deu desde sua formação. Em um terceiro momento, os Um relatório anual que elenca, em ordem decrescente, os Estados de acordo com seu grau de fragilidade – levando em consideração uma série de variáveis amplas e diversas, como “grau de intervenção estrangeira”, “condições socioeconômicas”, “observância dos direitos humanos”, entre outros. Tanto o Afeganistão quanto o Iêmen figuram entre os dez primeiros da lista (FUND FOR PEACE, 2016). 2 15 estudos de caso foram apresentados em perspectiva comparada nos mesmos momentos históricos, divididos pelo marco do fim da Guerra Fria. Ainda com relação ao método, considerou-se o recomendado por Wayne Booth, Gregory Colomb e Joseph Willians (2000) para pesquisas das ciências sociais no que se refere à formulação dos problemas e hipóteses deste trabalho: identificar um problema prático – que normalmente se trata de uma situação palpável com custos sociais, políticos ou econômicos – para motivar uma pergunta de pesquisa, a qual define o problema de pesquisa, que deve ser respondido com uma resposta de pesquisa que, caso desenvolvida em termos práticos, poderia ajudar a solucionar o problema prático inicial. Neste caso, o problema prático – a suposta incapacidade ou dificuldade de os Estados afegão e iemenita de proverem de determinados recursos as populações sob sua jurisdição – leva ao questionamento sobre se há uma crise nos Estados, o que gera o problema de identificar e definir os elementos que levam a esse fenômeno. A presente pesquisa não pretende, contudo, gerar respostas práticas ou recomendações sobre “o que fazer” como soluções ao problema investigado, buscando analisá-lo com vistas a conclusões mais conceituais do que práticas (BOOTH; COLOMB; WILLIANS, 2000). O desenvolvimento da pesquisa é apresentado em três etapas, cada uma equivalente a um capítulo. O primeiro capítulo apresenta brevemente como surgiu a discussão acerca da crise dos Estados no campo das Relações Internacionais, suas principais definições conceituais e as principais críticas a elas. Para isso, o capítulo se divide em três partes principais: uma primeira que apresenta a emergência do Estado enquanto unidade de análise universal das Relações Internacionais; uma segunda que mostra como a preocupação com o Estado ressurgiu a partir do debate sobre o colapso e falência de Estados; e uma terceira que explica como a formação dos Estados no Terceiro Mundo divergiu significativamente da formação dos Estados na Europa, argumentando que o conceito de Estado falido é criado tendo como base a segunda situação, e não a primeira, sendo, portanto, possivelmente inadequada para analisar Estados da periferia. Delineada a base teórica, o trabalho parte para a apresentação dos estudos de caso que serão analisados: o Afeganistão e o Iêmen. O estudo de caso de cada país foi dividido em dois momentos históricos e cada um equivale a um capítulo. O segundo capítulo trata da formação dos Estados e introduz os dois objetos de pesquisa em uma perspectiva histórica. O capítulo é dividido em duas partes, uma para análise da formação do Afeganistão e a outra para a análise da formação do Iêmen. Cada parte se inicia com 16 a explicação dos eventos que antecederam a formação dos Estados e que tiveram influência nesse processo, indicando que sociedades organizadas já existiam tanto no Afeganistão quanto no Iêmen antes de sua conformação institucional no formato de um Estado. Explica-se o estabelecimento de cada um enquanto Estado, sendo realizadas, ainda, as devidas contextualizações e explicações sobre aspectos centrais na formação estatal e nas trajetórias dos governos, como aspectos geográficos e étnicos. As revoluções e contrarrevoluções ocorridas nesses territórios também receberão atenção, uma vez que guardam diversas semelhanças entre si. O marco final do capítulo é o período de término da Guerra Fria, com destaque para a dissolução da União Soviética, acontecimento que teve enorme impacto em ambos os países. O terceiro capítulo, por fim, inicia-se com explicação sobre os impactos sofridos pelo Afeganistão e pelo Iêmen com o fim da ajuda, recebida por ambos, dos países do bloco soviético, em especial da própria URSS. O período de pós-Guerra Fria coincide justamente com o período de ascensão da discussão sobre falência dos Estados, e, entendendo-se que esse debate passou a ser instrumentalizado com o início da Guerra ao Terror da administração de George W. Bush, os efeitos da Guerra ao Terror em ambos os países também serão devidamente explanados. O capítulo está dividido em duas partes, cada uma para a análise da intensificação da crise de cada Estado no pós-Guerra Fria, começando pelo Afeganistão, e terminando pelo Iêmen. As subseções finais de cada uma dessas partes apresentam brevemente os acontecimentos vividos por estes países nos últimos dois anos. Não se pretende, neste trabalho, realizar uma análise de conjuntura sobre os atuais conflitos em curso em ambos os territórios. Isso porque, em primeiro lugar, trata-se de situações voláteis em que, como em toda guerra civil, há novos desenvolvimentos a serem acompanhados diariamente. Justamente por ainda estarem acontecendo, não há, ainda, análises consolidadas sobre elas. Em segundo lugar, para que não se conclua, de maneira equivocada, que as atuais guerras civis são as responsáveis pela crise dos Estados, não se confundindo a suposta “falência” com a simples existência de conflitos. Afinal, como será demonstrado pelo segundo e pelo terceiro capítulo do trabalho, a crise e o desmonte dos Estados afegão e iemenita têm raízes muito mais profundas e antigas do que os atuais conflitos podem fazer pensar, e a situação atual é reflexo de todas essas fragilidades acumuladas ao longo de muitos anos. 17 2 FORMAÇÃO E FALÊNCIA DOS ESTADOS: PERSPECTIVAS TEÓRICAS A abordagem acerca da fragilidade de Estados tem sido cada vez mais comum ao longo dos últimos anos. Embora tenha surgido na época da Guerra Fria, ela foi retomada com o final desta e ganhou força no século XXI. Apesar de o debate sobre o tema apresentar o colapso como uma nova tendência do sistema de Estados contemporâneo que ameaça a ordem mundial, o uso dos conceitos de colapso ou falência de Estado é, por vezes, instrumentalizado para fins políticos e estratégicos. Assim, o presente capítulo apresentará brevemente no que se baseia a discussão sobre os Estados falidos, como ela pode impactar as políticas perseguidas por grandes potências e quais as ressalvas e críticas que devem ser acrescentadas a essa discussão quando se trata de análises sobre países em desenvolvimento. A ideia é fornecer uma base para a posterior explanação dos processos de formação e de suposto colapso dos Estados no Afeganistão e no Iêmen, que costumam figurar entre as listas de Estados falidos. O Estado é um elemento essencial nas discussões sobre Relações Internacionais, sendo considerado o ator unitário do sistema internacional pela vertente realista da teoria das RI. Muitas teorias surgiram ou se adaptaram para confirmar ou refutar esse pressuposto realista básico, mas, na maioria delas – mesmo nas que acreditam que as organizações internacionais ou o mercado global são atores tão relevantes quanto os entes estatais - entender e levar em consideração o papel do Estado permanece uma preocupação central (SARFATI, 2005). O Estado moderno surgiu no continente europeu no período de enfraquecimento dos Estados absolutistas da Idade Média, e consolidou-se com o advento da Idade Moderna – um longo período entre os séculos XIV e XVII. Até então, o que havia no continente era um sistema pluralizado formado por diversos reis e senhores feudais, sem hierarquia clara entre si. No processo de consolidação dos Estados modernos, há um ano considerado chave: 1648, o ano da Paz de Westfália. Este ano é um marco no estudo das Relações Internacionais, por ser considerado o ano em que as relações interestatais – um dos elementos centrais nas RI –, passaram a se configurar da maneira que se conhece hoje (KISINGER, 2015; SARFATI, 2005). 18 2.1 A Paz de Westfália e a consolidação do Estado como ator das Relações Internacionais A Paz de Westfália foi um conjunto de tratados3 assinados após a Guerra dos Trinta Anos, que buscava soluções à desordem política causada pela guerra4. Esses tratados marcaram a ascensão de uma nova ordem, a qual, muito influenciada pelos escritos de Hugo Grócio (considerado o pai do direito internacional), se espalharia e consolidaria pelo mundo todo: uma ordem baseada na existência de Estados soberanos, iguais entre si, com liberdade de escolha de seu sistema político e religioso, e uma ordem na qual nenhum desses Estados poderia interferir nos assuntos internos e na soberania de outro (KISSINGER, 2015; SARFATI, 2005). A Paz de Westfália foi considerada um arranjo marcante para guiar as estruturas de todos os tempos subsequentes – no continente europeu, a princípio, e posteriormente em quase todo o globo –, uma vez que demarcava claramente a divisão entre as esferas nacional e internacional, colocando a religião cuidadosamente dentro do universo doméstico (EVANS, 2010; SARFATI, 2005). Nas palavras de Kissinger (2015, p.33), é nesse momento que o Estado é “consagrado como a pedra fundamental da ordem europeia”. É a partir deste momento que começam a surgir conceitos como o de “interesse nacional”, que guiaria as políticas externas de cada Estado, tanto no sentido de defender o seu próprio interesse quanto no sentido de limitar e impedir as pretensões de algum outro Estado de impor seus interesses sobre os demais. Três anos depois de Westfália, em 1651, Hobbes apresentaria sua obra “Leviatã”, inferindo que a arena internacional era anárquica por não existir nenhum poder superior ao poder individual de cada Estado que pudesse gerar segurança, e que apenas haveria ordem se as pessoas abdicassem de suas liberdades e direitos em prol de um poder soberano por elas criado (EVANS, 2010; KISSINGER, 2015). É com inspiração nessa crença que se consolida um conceito que tornaria ainda mais solidificada a ideia de que surgia, ali, uma “comunidade de Estados”: o conceito de “balança de poder”. A balança de poder consistiria em Estados contrabalanceando-se uns aos outros, evitando que algum se tornasse desproporcionalmente poderoso e subjugasse os demais. De fato, a Paz de Westfália não minou por absoluto com as 3 Embora comumente se refira à Paz de Westfália como um acordo ou um tratado, a Paz é, na realidade, o conjunto de três acordos realizados nas cidades de Münster e Osnabrück, na região de Westfália, ao longo do ano de 1648 (KISSINGER, 2015). 4 O conflito deu-se à mesma época em que o cardeal Richelieu disseminava pela França a ideia de política externa voltada à balança de poder, e em que circulavam os escritos de Maquiavel a respeito da entidade estatal como o exemplo do que deveria ser a unidade básica das relações internacionais. A Europa Central, vasta região sob domínio da dinastia dos Habsburgo, era vista como uma ameaça expansionista que devia ser contida (KISSINGER, 2015). 19 pretensões imperiais, porém, a ordem consolidada a partir dela foi suficiente para criar um ideário de pluralidade e diversidade entre as sociedades europeias, que, em diversas ocasiões ao longo da História, se uniram contra os aspirantes a hegemonia (EVANS, 2010; KISSINGER, 2015). Por ainda algum tempo, a ordem westfaliana limitou-se apenas ao território europeu. Enquanto o sistema de múltiplos Estados surgia na Europa, outras regiões do mundo mantinham suas próprias organizações, a exemplo do Império Turco-Otomano, que defendia a ideia de um único governo legítimo e desejava, portanto, estender sua supremacia pelo mundo árabe. Contudo, à medida que as nações europeias foram expandindo-se pelo mundo, seu modelo de ordem pluriestatal foi levado junto, sendo eventualmente apresentado às civilizações que colonizavam e passando a ser, cada vez mais, o modelo de ordem conhecido e aceito globalmente. Mesmo em casos em que as metrópoles se negaram a conceder às suas colônias a mesma soberania de que gozavam, em uma tentativa de prolongar sua subjugação, (...) quando esses povos começaram a exigir sua independência, eles o fizeram invocando princípios westfalianos. Os princípios da independência nacional, do Estado soberano, do interesse nacional e da não interferência se revelaram argumentos eficazes contra os próprios colonizadores durante as lutas pela independência e, em seguida, pela proteção aos seus estados recém-formados. O sistema westfaliano contemporâneo, agora global (...) empenhou-se em (...) estimular o livre-comércio e um sistema financeiro internacional estável, estabelecer princípios para a solução de disputas internacionais e fixar limites para conduta na guerra, quando estas vierem a ocorrer. Esse sistema de Estados abrange agora todas as culturas e regiões (KISSINGER, 2015, p.14). Ainda assim, nem todas as regiões do mundo conheceram a organização estatal tão cedo quanto a Europa ou mesmo as Américas5, e, nestas regiões – em especial o continente africano e o Oriente Médio – o modelo westfaliano, diferente em muitos aspectos das organizações preexistentes, foi imposto por acordos entre potências6. Isso ocorria, normalmente, para atender às ambições de grandes potências do século XX, que desejavam ter domínio ou controle de determinadas regiões e, para evitar contendas, estabeleciam linhas divisórias arbitrárias para dividir entre si determinados territórios. As fronteiras eram artificialmente definidas, sem que 5 Inclusive, os Estados Unidos da América são, atualmente, um dos maiores defensores da ordem mundial formada por Estados – eventualmente encontrando-se em contradições em virtude disso, em um grande paradoxo entre a defesa da estrutura estatal e da democracia e a não-intervenção em assuntos domésticos de outros países (KISSINGER, 2015). 6 O Acordo de Sykes-Picott é um bom exemplo de acordo formulado por países europeus (França e Inglaterra), que acabou por dividir uma região inteira (o Crescente Fértil e a Península Arábica, partes do então desmembrado Império Turco-Otomano) em uma “colcha de retalhos” de Estados artificialmente criados. O estabelecimento das fronteiras do Afeganistão no fim do século XIX também foi acordado entre dois grandes poderes em disputa, no caso, Inglaterra e Rússia, para acomodar as ambições de ambos os impérios em seus empreendimentos de conquista de rotas do continente asiático. 20 contivessem necessariamente raízes históricas ou qualquer precedente na história desses povos, causando problemas estruturais que tornaram difícil a consolidação imediata do modelo estatal, e que acompanham muitos desses Estados até hoje. Alguns Estados eram criados para servirem como estados-tampão, a exemplo do Afeganistão, que deveria servir como um Estado frágil no meio do caminho entre dois grandes impérios; outros eram colonizados, com imposição de normas e instituições por parte de seus colonizadores, que não desejavam que fossem fortes ou autônomos de nenhuma forma, servindo apenas para atender a determinadas necessidades estratégicas. 2.2 A emergência e a instrumentalização do debate sobre a falência dos Estados Embora a maneira como foram criados e desenvolvidos tenha diferido radicalmente, o fato é que o sistema internacional passou a ser composto por uma comunidade de Estados, e a ordem westfaliana tornou-se claramente preponderante em todo o globo. O campo das Relações Internacionais, surgido como tal apenas no século XX, preocupou-se, desde o princípio, com a análise do Estado, sendo o debate teórico acerca da importância deste ator um dos maiores da área. Diferentemente de outras áreas da ciência, porém, nas RI, nunca houve algo como uma “Teoria Geral” do Estado que fosse amplamente aceita por todas as correntes, sendo esse debate ainda uma “obra em construção” (SARFATI, 2005). A preocupação com esse ator voltou à tona no século atual em virtude de uma suposta nova tendência: o colapso do Estado moderno. Essa tendência foi amplamente propagada pelos governos dos Estados Unidos como sendo uma grande ameaça à sua segurança nacional, tornando-se um novo objeto de atenção e foco das estratégias nacionais de segurança do país. Com o fim da Guerra Fria e, consequentemente, com o fim da “ameaça comunista” apresentada pelos Estados socialistas, os Estados fracos tornavam-se o novo problema da ordem internacional. Inicialmente, o debate ficou restrito ao meio acadêmico, que realizava discussões sobre como definir a fraqueza de um Estado em contraposição à força de outro. Com os ataques de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center, em Nova Iorque, marcando a primeira vez que os EUA eram atingidos dentro do seu território continental, a discussão sobre a fraqueza de Estados assumiu outro tom. De acordo com a nova narrativa, esses Estados falidos ou fracos poderiam ser palco para cultivar, por exemplo, o terrorismo e o crime organizado, ou até mesmo doenças e desastres naturais, e seria dever dos Estados Unidos da América ajudar a estabilizá-los. Isso levou o país a engajar-se internacionalmente em diversas ações de statebuilding, ou 21 “construção de Estados”, investindo uma quantidade significativa de dinheiro e de aparato militar nesse esforço quase neoimperialista (CALL, 2008; CLAPHAM, 2002; FUKUYAMA, 2005; KRASNER; PASCUAL, 2005; MAZARR, 2014; WOLFF, 2011). Mas, afinal, no que consistiria, propriamente, um Estado fracassado ou falido? De acordo com Jennifer Milliken e Keith Krause (2002), avaliar se um Estado está falindo ou não é um trabalho complexo, e a conceituação desse fenômeno deve ser cuidadosamente feita. Afinal, o Estado moderno vem se desenvolvendo e se modificando desde que surgiu até os dias hoje. Os autores resumem a preocupação com a falência dos Estados a uma preocupação com o que seria uma prevalente crise nas capacidades e na legitimidade do Estado moderno. Ashraf Ghani e Clare Lockhart (2008), afirmando que uma quantidade preocupante de Estados ausentes de estabilidade política e de participação na riqueza global tem se visto à beira da implosão, introduzem o conceito de “lacuna de soberania” (sovereignity gap): a lacuna ou disjunção que existe ente a soberania de jure que o sistema internacional reconhece a esses Estados – ou seja, a suposição de que são todos soberanos independentemente de sua performance prática – e suas capacidades de facto de servirem à sua população com os serviços mais básicos e agirem como mesmos responsáveis do sistema internacional. Milliken e Krause argumentam que, quando se supõe que um Estado está colapsando, falindo ou em vias de falir, sempre há duas definições implícitas por trás dessas: uma dimensão institucional e uma dimensão funcional. Uma conceituação possível iniciaria por diferenciar claramente7 o colapso da falência ou fracasso: o primeiro diria respeito à dimensão institucional, ou seja, ao colapso total das instituições estatais; ao passo que o segundo caso, a falência, diria respeito à dimensão funcional. Ou seja, um Estado falido seria o Estado que falha em cumprir com suas funções básicas – o que não implica que suas instituições tenham deixado de existir –, um Estado que fracassa em manter uma ordem fundamental (MILLIKEN; KRAUSE, 2002). Já o autor Robert Rotberg não se preocupa tanto com a diferenciação entre as dimensões funcionais ou institucionais, prestando mais atenção à conceituação de Estados fracos e Estados fortes para identificar Estados que podem entrar em falência. Para ele, Estados fracassam porque são tomados por violência doméstica e porque não conseguem mais fornecer bens para seus habitantes. Seria, nesse sentido, a ausência do que Tilly define como a capacidade de o Estado 7 Para esses autores, a diferenciação é importante para deixar claro que, ao contrário do que se propaga, o colapso é a exceção, e não a regra: casos de total colapso institucional raros foram raros até então, e a manutenção do Estado tem sido a regra – mesmo que com fracasso no cumprimento de funções (MILLIKEN; KRAUSE, 2002). 22 alterar e controlar a distribuição de recursos em uma sociedade – algo que Estados fortes são capazes de fazer com maestria (CASTELLANO DA SILVA et al, 2013; ROTBERG, 2003, TILLY, 2007). Enquanto Estados fortes seriam capazes de controlar seus territórios e apresentar positivos crescimentos de renda e de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Estados fracos seriam o antagonismo disso. Estados fracos não necessariamente seriam Estados falidos, mas teriam mais chances de se tornarem um do que um Estado forte. De acordo com Rotberg, Estados falidos normalmente são caracterizados por disputas, insurgências e guerras civis, e o colapso do Estado é o estágio posterior à falência, sendo sua versão extrema – que, porém, não é uma condição irreversível (ROTBERG, 2003). Assim, a despeito dos detalhes relativos à maneira de conceituar ou classificar os Estados falidos ou colapsados, parece ser um consenso na literatura sobre o tema que, de maneira geral, o Estado em falência ou em vias de colapsar seria aquele que fracassa em cumprir com suas funções de Estado (KRASNER; PASCUAL, 2005; MAZARR, 2014; MILLIKEN; KRAUSE, 2002; ROTBERG, 2003; WOLFF, 2011). Mas, afinal, quais seriam as funções do Estado? Não há uma definição clara nas Relações Internacionais a respeito disso, provavelmente em resultado da ausência de uma teoria geral de Estado nas RI e da existência de muitas teorias igualmente relevantes. No Direito Internacional Público, que rege a relação entre os Estados no Sistema Internacional, importa a Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Obrigações dos Estados, do ano de 1930, que estabeleceu os critérios legais da condição ou qualidade de Estado (statehood). Seu artigo de número I prevê que é Estado todo sujeito de direito internacional que possuir as seguintes características: população permanente; território definido; governo, e capacidade de se relacionar com outros Estados (CRAWFORD, 2012). Isso, contudo, define, de maneira universalmente aceita, no que consiste um Estado, ou seja, o que ele é, mas não propriamente que funções são seu dever. Nesse sentido, Milliken e Krause buscam uma interpretação na Ciência Política. A partir de três interpretações clássicas acerca da razão pela qual surgiram os estados – a saber, a interpretação de Max Weber e Charles Tilly (Estados surgem para que haja monopólio da violência ou a partir da guerra), a do liberalismo político de Montesquieu e Locke (Estados surgem porque as pessoas abdicam de suas liberdades em prol de um governante que as represente, em um contrato social), e a da economia política (Estados surgem para garantir a 23 propriedade privada e o florescimento do capitalismo) – os autores depreendem que as funções básicas do Estado seriam a provisão de segurança e ordem pública, de representação legítima, e de riqueza e bem-estar aos seus cidadãos. Alguns Estados, portanto, poderiam não se encontrar em total colapso, mas se encaixar em uma condição de “falindo” caso se entendesse que está falhando nessas funções (MILLIKEN; KRAUSE, 2002). Ghani e Lockhart (2008), por sua vez, vão ainda mais além e delineiam dez funções centrais que Estados devem desempenhar, partindo de uma observação de trajetórias de Estados que, a despeito de problemas internos ou externos aparentemente graves, conseguiram criar Estados efetivos. Essas funções seriam a criação e a execução de leis; o monopólio dos meios legítimos de violência; o controle administrativo (levado a cabo por profissionais do governo); a administração sólida das finanças públicas; a realização de investimentos em capital humano; a criação de direitos cidadãos por meio de políticas sociais; a provisão de serviços de infraestrutura; a formação e expansão de um mercado; a gestão de bens públicos e a criação de instrumentos para empréstimo público efetivo. O Estado legítimo, portanto, ao desempenhar estas funções, “tornar-se-ia, assim, um instrumento de mobilização, cooperação e confiança. E pode, então, enfrentar ambas as necessidades sociais imediatas e os requerimentos ambientais e geracionais de mais longo prazo” (GHANI; LOCKHART, 2008, p.83). Henry Kissinger (2015) também aborda o tema – embora não use o termo “falido”, preferindo “declínio do Estado” ou “desintegração estatal” – e se refere à incapacidade dos Estados de estabelecerem formas de governo legítimas de controlarem efetivamente seu território. A desintegração dos Estados estaria dando lugar, atualmente, a unidades tribais ou sectárias em conflitos umas com as outras, e, o que é mais perigoso, abrindo espaço para a atuação de facções dispostas a permanecerem em conflito aberto com quem quer que considerem sejam seus rivais. Isso se materializaria hoje no caso das entidades não-estatais como a Al-Qaeda, o Estado Islâmico e o Talibã, que adotam conceitos diferentes de ordem mundial daquele que, até pouco tempo atrás, parecia ser o conceito consensual. Muitas críticas, porém, podem ser feitas, tanto ao conceito de Estado falido ou colapsado quanto ao trato que tem sido dado internacionalmente a esses Estados fragilizados. A crítica de Charles Call é bastante contundente em ambos os aspectos: o autor, que é um dos principais críticos ao conceito, afirma que, normalmente, a questão do fracasso estatal é tratada com 24 inúmeras variáveis que não necessariamente relacionam-se umas com as outras e que requereriam, portanto, soluções diferenciadas para cada uma delas. As ações de construção estatal resultantes dessa visão historicamente costumaram aglutinar todas essas variáveis, e propunham políticas mais generalistas e universais que, em muitos casos, não funcionavam (CALL, 2008; MAZARR, 2014). Call chama a atenção para o fato de que o uso do conceito de Estado falido tem sido usado como instrumento para justificar ações internacionais de promoção da paz, do desenvolvimento e da democracia, ou de assistência humanitária em situações de guerra nos Estados que supostamente não estariam servindo corretamente às suas populações. O autor critica a maneira como se conceitua o Estado falido por acreditar que o conceito é carregado de suposições culturais ocidentais sobre como deveria ser caracterizado um Estado “de sucesso”. Call acredita que as definições de Estados falidos são muito amplas, e que, portanto, dão margem para a inclusão de praticamente qualquer Estado nas listas de Estados que ameaçam a segurança internacional – tanto Estados que não conseguem promover grande crescimento econômico ou que possuem grandes níveis de desigualdade social, quanto Estados que vivem assolados por guerras civis (CALL, 2008). As intervenções estrangeiras por parte de países ou de Organizações Não Governamentais (ONGs) realizadas com o propósito de auxiliar na recuperação de Estados falidos ou colapsados pode acabar minando as motivações internas para transformação, uma vez que transfere a responsabilidade política para forças exógenas. Estas obrigatoriamente precisarão do apoio das forças internas locais para criarem uma estabilidade durável no longo prazo. Isso só reforça a suposição de que o processo de transformação de um Estado "frágil" para "forte" deve ser feito por atores locais e ter suas raízes no próprio Estado, levando em consideração as multiplicidades étnicas, tribais, religiosas, culturais, linguísticas, sociais, econômicas, políticas e raciais de cada território. Pode ser ajudada por forças estrangeiras, mas de maneira alguma ser imposta por elas (CALL, 2008; MAZARR, 2014). 2.3 O Estado no Terceiro Mundo Além das críticas ao conceito de Estado falido ou colapsado, é importante lembrar também que, na maioria das vezes, a construção desse conceito é feita tendo-se em mente uma ideia de Estado europeizada. A maneira como os Estados se conformaram ao redor do mundo, 25 porém, diferiram enormemente a depender da região que se analisa, e compreender essas especificidades é essencial no momento em que esses novos debates ganham força. O Estado Nacional consolidado como ator internacional com os acordos de Westfália surgiu nas cidades e nos campos de guerra da Europa moderna durante o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, e grande parte desses Estados ocidentais existe até hoje. É, contudo, importante notar que os acordos e estruturas políticas e econômicas estáveis existentes nesses Estados foram forjados durante séculos, sendo, normalmente, resultados de longos períodos de conflito violento. O Reino Unido e a França, por exemplo, hoje tidos como Estados fortes e estáveis e grandes exemplos de democracia, são o resultado de centenas de anos de beligerância, violência extrema e, inclusive, períodos de autoritarismo (MOORE JR, 1967; PHILLIPS, 2011; RUBIN, 2002). De acordo com Charles Tilly, a monopolização dos meios de constrangimento e violência e a consequente profissionalização dos exércitos permitiu a formação desses Estados, e a proteção e disponibilidade de recursos de cada um definia o tamanho dos governos e o tipo de organização interior (burocracia) a cada um deles (TILLY, 2000). Esse processo durou centenas de anos. Com a expansão colonial, o modelo de Estado foi difundido ao redor do globo, até se tornar um sistema universal. Algumas colônias atraíram atenção e investimento e foram capazes de desenvolver uma infraestrutura que possibilitou o desenvolvimento capitalista após a descolonização. Esse foi o caso de diversos Estados que surgiram no continente americano. Em outras partes do mundo, porém, alguns territórios atraíam a atenção dos grandes poderes mundiais apenas por sua localização estratégica. Nesses locais, portanto, não se desenvolviam estruturas para promover o crescimento e desenvolvimento econômico, e as necessidades dos poderes imperiais eram mantidas apenas por forças militares (RUBIN, 2002). Com os processos de descolonização e de desmembramento de grandes impérios ao longo do século XX, multiplicaram-se o número de Estados que se tornaram independentes e reconhecidos pela comunidade internacional8. Porém, nos novos Estados que se formavam, os governantes enfrentavam problemas e viviam contextos significativamente diferentes daqueles enfrentados pelos “criadores” dos primeiros Estados europeus. Não havia, na nova ordem 8 Em 1919, havia 59 Estados reconhecidos internacionalmente. Em 1950, esse número saltou para 69. Dez anos depois, em 1960, época do processo de descolonização de muitos países da África, o número já era 90. Com o fim da Guerra Fria e o desmembramento da União Soviética, uma nova onda de novos Estados emergiu e o número superou os 190 Estados (ROTBERG, 2003). 26 mundial, espaço ou possibilidades para esses novos Estados estabelecerem impérios coloniais que serviriam como fonte de riqueza e desenvolvimento para seus sistemas internos. Esses Estados, entretanto, surgiam em um ambiente internacional com normas e leis internacionais relativas à guerra bem menos permissivas que as existentes ao longo da Idade Moderna. Isso ajudou novos Estados que se formavam a se protegerem de ambições predatórias de grandes potências ou de vizinhos mais poderosos, devido aos princípios de não-intervenção e autodeterminação dos povos. Esses princípios também permitiram que sobrevivessem Estados que não eram dotados das características de statehood. Muitos deles não precisaram desenvolver suas próprias capacidades, uma vez que podiam sobreviver enquanto existissem outros que estivessem dispostos a mantê-los: exportando seus sistemas de armas e de defesa, enviando ajuda financeira ou fornecendo ajuda técnica. Sem instituições fortes para manterem um poder de barganha que permitisse sua sobrevivência no sistema internacional, muitos desses novos Estados, portanto, acabavam tendo sua soberania garantida por fontes de ajuda financeira e militar externas. Com essa garantia, eliminava-se a necessidade de construir legitimidade governamental, identidade nacional ou economias produtivas (HOBSBAWM, 2012; PHILLIPS, 2011; RUBIN, 2002). Em algumas partes do mundo onde surgiam novos Estados, especialmente na África, no Oriente Médio e no sul da Ásia, a existência de fortes características tribais também merece atenção. Nos casos que serão estudados nos próximos capítulos, essas características se mantiveram fortes ao longo de toda a história desses Estados, e são mais um elemento que os tornam fundamentalmente diferentes dos Estados europeus, que surgiram na ausência de organizações tribais ou parentescos poderosos que pudessem dificultar sua soberania (TILLY, 1975; BADIE; BIRNBAUM, 19839 apud RUBIN, 2002). No Oriente Médio e no sul da Ásia, a interação de tribos ou castas com Estados ainda é muito forte, e o é particularmente nos casos do Iêmen e do Afeganistão, em que o tribalismo historicamente se manifestou mais forte em momentos de disputa sobre o poder do Estado. É importante atentar a esse fato para não confundir a existência dessa característica com, necessariamente, a falência dos Estados. Essa ideia é abordada por Martin Doornbos que questiona o uso do termo “falido” para determinados Estados, por considerar que o termo dá a ideia de que as sociedades sob sua jurisdição não possuem nenhum tipo de ordem quando, na 9 Badie, Bertrand, and Pierre Birnbaum. The Sociology of the State. Translated by Arthur Goldhammer. Chicago: University of Chicago Press, 1983. 27 verdade, possuem estruturas de governança distintas e mais dependentes de estruturas de clãs ou tribos do que do Estado (DOORNBOS, 2002). Entendendo-se as dinâmicas particulares dos Estados nessas regiões e os problemas relativos à tipificação e rotulação de Estados falidos, o próximo capítulo mostrará como se deu a formação dos Estados no Afeganistão e no Iêmen, chamando atenção para todas as características que os acompanharam ao longo de toda sua história e que não são, portanto, propriamente fruto de fraqueza ou falência, e sim de uma formação fundamentalmente diferente da formação estatal europeia. 28 3 FORMAÇÃO E TRAJETÓRIAS DOS ESTADOS AFEGÃO E IEMENITA Após a introdução ao debate acerca do Estado e dos estudos sobre colapso do Estado realizada no capítulo anterior, este capítulo introduzirá os dois objetos de pesquisa em uma perspectiva histórica. Em um primeiro momento, pretende-se retomar a história da formação do Estado afegão, destacando os principais desenvolvimentos deste Estado. Em seu período de formação, sobressaem-se a disputa entre os Impérios Russo e Britânico e as Guerras AngloAfegãs. Após a declaração da independência, será acompanhada a trajetória do Afeganistão ao longo do século XX, destacando-se, ao final, a Revolução de Saur de 1978, a invasão soviética de 1979 e o posterior período de ocupação soviética. Esta seção mostrará a importância das divisões étnicas e tribais ao longo de toda a história afegã, mostrando que a unidade nunca foi inerente ao território e que o Estado nunca conseguiu atravessar longos períodos sem instabilidades ou disputas de poder. A retirada das tropas soviéticas e o fim da ajuda de Moscou com o enfraquecimento da URSS exporia ainda mais as fragilidades do Estado afegão. Em um segundo momento, será abordada a história do Estado iemenita, o qual teve uma trajetória significativamente distinta da trajetória do Afeganistão no que diz respeito à sua formação: ao passo que o Afeganistão atual mantém praticamente intactas as fronteiras estabelecidas no início do século XX, o Iêmen atual nasceu apenas em 1990, tendo seu território passado boa parte do século ocupado por dois diferentes Estados, o Iêmen do Norte e o Iêmen do Sul. Contudo, como a atual República do Iêmen nada mais é do que a unificação dos “dois Iêmens” anteriormente existentes – seus limites com a Arábia Saudita10, ao norte, e com o Omã, ao leste, nada mudaram –, sendo inclusive as forças sociais e políticas atuantes as mesmas que protagonizavam os eventos e instituições nos antigos Norte e Sul, considera-se absolutamente necessário retomar a trajetória de ambos os Estados para que se compreenda a formação do atual Iêmen. Portanto, a segunda parte deste capítulo ocupar-se-á em explicar a formação do Iêmen do Norte e Iêmen do Sul e descrever os principais eventos do século XX em ambos os países, com destaque especial às revoluções de 1962, no Norte, e a revolução de 1963, no Sul. Após esta retomada, serão explicados o contexto em que se formou o atual Estado iemenita, em 1990, após os impactos sentidos pelo enfraquecimento da União Soviética. 10 Os quais, contudo, não eram bem definidos até 2000. 29 3.1 A formação do Afeganistão O território onde hoje se encontra o Estado afegão foi, historicamente, ocupado e disputado por diversos grupos, impérios e dinastias. Trata-se de um território que consiste em uma larga faixa montanhosa com desertos e alguns vales férteis isolados, habitado por populações e sociedades distintas. Praticamente todo o país está a uma altura de 700 a 3 mil metros acima do mar, sendo três quartos desse território terrenos inacessíveis (MCCAULEY, 2002). Onde não há planaltos, o território é coberto por regiões desérticas. A natureza difícil do território afegão fez com que seu povo precisasse se adaptar à geografia para desenvolver seus modos de vida e de sociedade. Esses povos tiveram diversas vantagens para defenderem-se de conquistadores ao longo da História, pois, apesar de ser facilmente acessível a partir da Ásia Central, o Afeganistão é um território cuja geografia o torna muito difícil de manter sob conquista em sua totalidade (TANNER, 2002; RUNION, 2007). O Hindu Kush e sua extensão ocidental são as cadeias de montanhas que separam as planícies do norte do país do restante. Nessas planícies, além de ter sido possível desenvolver agricultura, foram também descobertos importantes depósitos de gás natural e de minerais (MCCAULEY, 2002; RUNION, 2007). Figura 1: Topografia do Afeganistão Fonte: Wikimedia Commons. 30 Apesar da geografia difícil, o Afeganistão nunca esteve afastado das ambições de grandes impérios e potências. Inicialmente ocupada por tribos nômades que se instalaram perto das montanhas, a região foi, a partir do século XIII, invadida sucessivamente por conquistadores mongóis, otomanos, persas e islâmicos. A conformação do território dentro dos limites ocupados hoje pelo Afeganistão deu-se no século XIX, pela necessidade de se criar um Estado tampão entre dois impérios concorrentes: o Império Britânico, vindo da Índia, ao Sul; e o Império Russo, vindo da Ásia Central, ao Norte. Posteriormente, a disputa na região entre os dois impérios seria substituída pela disputa entre os dois blocos concorrentes na Guerra Fria, representados pelos Estados Unidos da América (EUA) e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) (RUBIN, 2002; TANNER, 2002; RUNION, 2007). A ausência de recursos cobiçados internacionalmente como o petróleo, contudo, além das dificuldades de locomoção resultantes da formação montanhosa de 80% do território, fez com que o Afeganistão nunca tivesse uma importância econômica significativa. Por que razão, então, foi tantas vezes conquistado e disputado ao longo da História? Uma das razões que o tornou estrategicamente importante foi justamente sua posição geográfica: podia ser acessado pela Ásia Central e, a partir daí, levar até a Índia, ao leste, ou ao Irã – e, consequentemente, aos demais países petrolíferos do Oriente Médio -, a oeste. Era a conexão entre os impérios da Ásia Central, o subcontinente indiano, o Império Persa e o Extremo Oriente. Historicamente, foi usado como uma passagem fundamental por exércitos persas, gregos, mongóis, britânicos, soviéticos e americanos (MCCAULEY, 2002; TANNER, 2002). Após a ascensão das potências navais a importância do Afeganistão enquanto passagem terrestre entre vários impérios diminuiu drasticamente, uma vez que, agora, navios poderiam contornar oceanos para alcançar os oceanos Índico e Pacífico. Apesar disso, o território seguiu sendo estrategicamente importante, em termos políticos e securitários, por ter sido percebido como uma potencial zona tampão entre os impérios rivais citados acima. Para essas potências, ele não deveria ser um Estado forte e poderoso por si só, existindo apenas como uma zona de segurança que evitaria o choque entre as diferentes esferas de influência (TANNER, 2002; MCCAULEY, 2002; RUBIN, 2002). É impossível compreender o Afeganistão sem compreender também, para além de seus principais eventos históricos, as suas questões étnicas e tribais. O território afegão foi, desde sempre, ocupado por variadas etnias, e o é até hoje, apesar de ter sido quase sempre governado 31 por uma delas: a dos pashtuns. Os pashtuns sempre foram o maior grupo étnico afegão em termos demográficos, mas seu poder político enquanto detentores do poder central também aumentou significativamente sua importância (RUBIN, 2002; TANNER, 2002). São sunitas e falantes do idioma pashto, embora alguns também falem persa11. Os tajiques, também sunitas, são o segundo maior grupo étnico-linguístico e são povos não tribais falantes de Dari. O terceiro são os uzbeques, que também seguem o Islã sunita, ao passo que o grupo étnico dos hazaras é o único a seguir o xiismo. Há ainda, em menor número, turcomenos, baluches, aimaqs, nuristanis, entre outros. As lideranças de cada uma dessas tribos, em especial pashtuns, tajiques e uzbeques, importaram para as divisões e disputas de poder ao longo da história do país, tendo papel maior ou menor a depender da região em que se localizavam. Os pashtuns foram mais proeminentes nas regiões centrais do país, especialmente, em Cabul; os tajiques e uzbeques no Norte; os hazaras nas regiões próximas à Pérsia/Irã, e os baluches nas regiões mais ao extremo Sul (MCCAULEY, 2002; RUBIN, 2002; RUNION, 2007). Nas palavras de Barnett Rubin (2002, p.22-26), “nenhuma área do Afeganistão é etnicamente uniforme” e “apenas a sua incorporação [dessas sociedades e populações distintas] em um Estado as fez uma sociedade única”. Figura 2: Grupos étnicos do Afeganistão Fonte: DORRONSORO, 2009. 11 O persa originou o idioma que hoje é um dos oficiais do Afeganistão, o Dari (falado por cerca de 50% dos afegãos, ao passo que o pashto é falado por cerca de 35%), enquanto no Irã, originou o Farsi. 32 3.1.1 Dos Impérios às Guerras Anglo-Afegãs: a conformação de um Estado-tampão O território hoje correspondente ao Estado afegão, antes de sua conformação como tal e, ainda mais cedo, antes das invasões dos primeiros conquistadores, era ocupado por tribos nômades. Embora no século IV a.C. Alexandre o Grande tenha chegado à região e deixado sua marca, foi no século VII, com a chegada do Islã, que as tribos passaram a ter maior contato com outras formas de organização social. Ao longo dos séculos IX e X, algumas dinastias locais passaram a adotar o Islã e, gradualmente, a maioria da população se tornaria muçulmana. A parte norte era comandada por dinastias oriundas do Uzbequistão (na época, Bukhara), enquanto a parte Sul tinha mais influência da Índia (MCCAULEY, 2002; RUNION, 2007). No século XIII, mais precisamente em 1219, Gengis Khan chegou à região e levou a cabo algumas guerras de conquista que foram responsáveis pelo saque das cidades e pela destruição da infraestrutura rural existentes no local, atrasando enormemente os povos ali habitantes, que, em virtude disso, acabaram revertendo ao nomadismo (TANNER, 2002; RUBIN, 2002; MCCAULEY, 2002). Após a morte de Gengis Khan, a região afegã acabou sendo dominada por Tamerlão, um conquistador nômade turco-mongol. No século XVI, os uzbeques conquistaram o poder no Norte, ao passo que o Leste ficou sob domínio do Império Mogol, e o Oeste, de uma dinastia persa. Foi em meados do século XVIII que pôde se identificar a primeira tentativa de centralizar poder que levou à emergência do Afeganistão moderno, sob iniciativa de Ahmad Khan. Ele beneficiou-se de um relativo vácuo de poder na região, com os impérios Mogol e Persa em declínio e os uzbeques dividindo-se em vários emirados. Ahmad Khan logrou poder e influência suficientes para adquirir o título de “xá” e se tornar rei, ficando conhecido como Ahmad Shah12, e estabelecendo Kandahar como sua capital. Em 1775, o governante Timur Shah moveria a capital para Cabul, uma região falante de Dari, com o objetivo de minimizar um pouco a influência dos khans Pashtun (MCCAULEY, 2002; TANNER, 2002; RUBIN, 2002). 12 Durante a soberania do Império Safávida, os Pashtuns foram organizados em duas confederações, a dos Abdalis e a dos Ghilzais, e foi nesse momento e nessa organização que, pela primeira vez, lograram organizar-se militarmente em escala significativa. Os Ghilzai se revoltaram quando o imperador Safávida tentou forçar o xiismo aos pashtuns sunitas, e os confrontos levaram à sua queda e à ascensão de um conquistador turco chamado Nadir Afshar. Apesar de contar com o apoio dos Abdalis, ele foi assassinado em 1747, e seu comandante de cavalaria, Ahmad Khan, tornou-se o novo líder. A dinastia dos Abdalis passou a ser conhecida como Durranis, devido ao título de durran-idurran, ou “pérola das pérolas”, com que foi condecorado o Xá (RUBIN, 2002, p. 45). 33 Ahmad era membro do clã Muhammadzai, da tribo Barakzai da confederação Durrani, um dos três maiores grupos de tribos pashtun. De 1747, quando Ahmad Xá assumiu, até 1973, todos os governantes afegãos foram pashtuns – com a breve exceção de nove meses, em 1929, quando um tajique tomou o poder – marcando, portanto, o domínio desta etnia no Afeganistão desde sua primeira conjunção em um território uno. Esse grupo étnico sempre fez parte do topo da hierarquia política, seguidos dos demais grupos majoritariamente sunitas (como os uzbeques e os tajiques), estando o grupo étnico Hazara, xiita, na base da pirâmide (RUBIN, 2002; MCCAULEY, 2002). O objetivo de Ahmad Shah era reforçar o domínio pashtun em todo o território, conduzindo sua conquista para as áreas não-pashtun, mas isso se provou uma tarefa difícil, não só durante seu tempo, mas ao longo de toda a história afegã. A razão disso era a grande multiplicidade de etnias e tribos que resistiam em se submeter ao domínio dos reis pashtuns, que, para manterem-se no poder, acabavam concedendo poder e influência local aos líderes tribais, que posteriormente, nos tempos da guerrilha anticomunista, se tornariam verdadeiros senhores de guerra (RUBIN, 2002; MCCAULEY, 2002). Ahmad Shah conseguiu obter riqueza de fontes externas, em especial de conquistas realizadas na Índia, para não precisar depender dos recursos das tribos ou de uma eventual complicação que adviria com a cobrança de tributos desses locais. Além disso, havia o agravante de que os líderes tribais comandavam a maior parte das forças armadas. Ahmad criou unidades profissionais não-Pashtun sob seu comando direto para tentar equilibrar a situação, mas a dependência ainda muito grande do poder dos líderes locais exigia uma relação minimante amigável entre o governante e estes quadros (RUBIN, 2002). No século XIX, o Afeganistão passou a se ver em uma situação delicada em virtude de ter ficado localizado entre dois impérios que se expandiam13, o russo e o britânico. No ano de 1836, o Império Britânico anexou a província de Peshawar, ao sul do Afeganistão, e que durante o tempo de Ahmad Shah havia estado sobre controle afegão. Essas áreas eram povoadas por pashtuns e, além, disso, eram fonte das riquezas com a qual os reis Durrani conseguiam governar seu país sem precisarem se indispor com os líderes tribais. A situação ficou ainda mais complicada quando a cidade de Herat foi dominada pelo governador persa em 1837. Os 13 Com a derrota de Napoleão na Europa e, consequentemente, com o fim da ameaça de uma agressão francesa, a Grã-Bretanha se viu livre para expandir suas conquistas no Oriente. O Império Russo, também envolvido nas guerras napoleônicas, também pôde canalizar suas energias para uma expansão ao Sul, desejada há muito tempo (TANNER, 2002). 34 britânicos, com medo de perder o controle sob o território afegão para forças em disputa, invadiram o Afeganistão em 1839, em episódio que ficou conhecido como a Primeira Guerra Anglo-Afegã. Tentaram instalar um rei nomeado por eles no trono, o que enfureceu os afegãos e levou a uma derrota desastrosa para os britânicos, que se retiraram em 1842 (MCCAULEY, 2002; TANNER, 2002). Com a retirada, foi permitido que Dost Mohammad, que havia assumido o poder em 1826, retornasse e se mantivesse nesta posição até sua morte, em 1863. Ele foi o primeiro governante afegão a ter contato em primeira mão com as instituições do Estado moderno, por ter passado algum tempo exilado nas Índias britânicas, e essa experiência o fez ter como objetivo modernizar o Afeganistão para que pudesse lutar por sua independência. Seus filhos entraram em disputa intensa pela sucessão no poder, levando o país a uma guerra civil, que só foi controlada em 1868 com a administração de um deles, Sher Ali (RUBIN, 2002). A derrota britânica na Primeira Guerra Anglo-Afegã, contudo, nem de longe significou o fim do interesse britânico pelo Afeganistão, e uma nova invasão ocorreu em 1878, iniciando a Segunda Guerra Anglo-Afegã. A guerra terminou com vitória parcial afegã: uma embaixada britânica foi estabelecida e os britânicos passaram a ter controle da política externa afegã (uma espécie de protetorado), mas os assuntos domésticos seguiram sob controle do xá, que manteve, portanto, a soberania interna (RUBIN, 2002). As Guerras Anglo-Afegãs levaram o Afeganistão a se envolver diretamente com o sistema internacional de Estados do qual ainda não fazia parte. Esse sistema vinha se aproximando a partir da Índia e também do Norte, onde os povos da Ásia Central estavam sendo subordinados pelos russos. Inevitavelmente, em algum momento, esses movimentos de expansão levariam o Afeganistão a ser incorporado de alguma maneira no sistema estatal eurocêntrico – e de fato o foi, em especial na Segunda Guerra Anglo-Afegã, quando sua política externa ficou sob suserania britânica. Para além disso, as invasões britânicas também tiveram como efeito colateral o fortalecimento do tribalismo, uma vez que as forças locais lutavam contra a ingerência externa, mas também disputavam com o governante por controle social, desestabilizando a balança de poder no território afegão (RUBIN, 2002; TANNER, 2002). No ano de 1893, uma linha arbitrária foi desenhada pelos britânicos para expandir a fronteira indiana empurrando-a mais para dentro do território pashtun, que ficou dividido. Essa linha foi chamada de Linha Durand, conforme mostrado na figura 3 (abaixo). Dois anos depois, a 35 Grã-Bretanha realizou alguns ajustes nessa linha de fronteira, e decidiu pela adição do Corredor de Wakhan ao território afegão. Tal corredor consistia em uma pequena faixa territorial montanhosa de pouco valor que ligava o nordeste do Afeganistão com a China, separando a fronteira indiana da fronteira do Império Russo. Tratou-se de uma jogada britânica e russa para evitar contendas fronteiriças entre si, mas que foi imposta sem consultar o governante da época, Abdul Rahman Khan, sobrinho de Sher Ali (MCCAULEY, 2002; RUBIN, 2002; TANNER, 2002). Figura 3: A Linha Durand Fonte: KINZER, 2014. Figura 4: O Corredor de Wakhan Fonte: Wikimedia Commons. Abdul Rahman governou o Afeganistão de 1880 a 1901, e pode ser considerado o primeiro governante a unificar o país. Seu desejo último era proteger o Afeganistão de interferências externas e garantir o máximo possível de independência aos afegãos. Para isso, 36 tratou de garantir que o Afeganistão não se tornasse economicamente atrativo, isolando-o para o comércio. Ele considerava meios de transporte e comunicação modernos verdadeiros inimigos à segurança do povo afegão, e acreditava que a manutenção da característica de impenetrabilidade de suas montanhas era crucial para protege-lo. Esse distanciamento da tecnologia e dos mercados internacionais acabaria tendo custos econômicos e de desenvolvimento (MCCAULEY, 2002). Durante seu governo, os britânicos inundaram o país de armas e dinheiro, em uma tentativa de fortalecer seu poder coercitivo e, consequentemente, estabilizar suas fronteiras. Acabavam, assim, por tornar o governante dependente de sua ajuda para obter esse tipo de recursos. Rahman, por sua vez, concordou em nunca ultrapassar a linha Durand (RUBIN, 2002). A ajuda externa proporcionava algumas vantagens ao próprio governante afegão, pois a disponibilidade de oferta de armas e de dinheiro o liberava de precisar conseguir apoio das lideranças tribais para governar. Abdul apostou na manipulação das rivalidades étnicas e tribais como instrumento de garantir seu comando e evitar que alguma liderança rival emergisse (MCCAULEY, 2002). Para tentar legitimar seu poder, ele se apoiava no Islã de uma maneira semelhante a que os reis absolutistas europeus se apoiavam na ideia de direito divino. Apesar de todos os seus esforços para fragmentar o poder tribal, ele percebeu que se tratava de algo já muito consolidado para ser rapidamente destruído. Tendo isso em mente, ele buscou criar uma nova elite burocrática voltada para as atividades governamentais, que fosse deslocada das tribos e leal a ele, que seria especialmente treinada para guerras ou para a administração (RUBIN, 2002). Tentava, assim, deixar uma estrutura de Estado quase consolidada para seu filho mais velho, Habibullah, que o sucedeu no trono após sua morte, em 1901. 3.1.2 Independência, abertura externa e modernização Após o período de isolamento perseguido por Abdul Rahman Khan, sob Habibullah o Afeganistão passou a viver uma nova fase de abertura. Habibullah permitiu que a educação moderna penetrasse o Afeganistão, criando, por exemplo, instituições de educação secundária. Embora seu pai, Abdul Rahman, ao menos em discurso, tivesse desejado criar um corpo administrativo, ele nunca havia, de fato, criado instituições sólidas de treinamento para o serviço governamental, sendo a maioria dos currículos ainda governados por núcleos religiosos, sem a aprendizagem de contabilidade, engenharia, ciências militares ou idiomas estrangeiros. Habibullah tinha a percepção de que, para encontrar seu lugar no sistema internacional de 37 Estados imposto ao mundo pelos poderes coloniais, os afegãos precisariam adquirir essas habilidades e conhecimentos, para poderem se autogovernar. Aos poucos, uma nova classe intelectual foi emergindo nas novas escolas criadas. Além disso, famílias que haviam sido exiladas por Abdul Rahman foram permitidas de voltar ao Afeganistão, e elas trouxeram consigo as ideologias de modernização que aprenderam no exterior enquanto exiladas (RUBIN, 2002). Quanto à política externa, Habibullah seguiu a linha de seu pai de uma certa cooperação com o Reino Unido, e, em 1914, quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial, manteve-se em posição de neutralidade14 (MCCAULEY, 2002). Habibullah foi assassinado em 1919 e foi sucedido por seu filho, Amanullah, que buscaria continuar perseguindo os ideais de modernização de seu pai. Tão logo assumiu, Amanullah declarou a independência do Afeganistão. A União Soviética15 prontamente reconheceu a independência do novo Estado, mas os britânicos recusaram-se a fazê-lo. O governante afegão, portanto, incentivou o lançamento de jihads nas áreas tribais da fronteira da linha Durand, em uma provocação cujo objetivo seria atrair a atenção dos britânicos (RUBIN, 2002; TANNER, 2002). Essa ofensiva acabou sendo chamada de Terceira Guerra Anglo-Afegã, mas não durou muito devido à grande superioridade das forças britânicas. A guerra na Europa, porém, tinha diminuído a disposição das nações europeias em se envolverem em conflitos, e a Rússia estava envolvida com a própria revolução. Portanto, em agosto de 1919, foi assinado um tratado de paz concedendo ao Afeganistão controle total sobre suas políticas domésticas e externas, significando uma desistência do Reino Unido em insistir na submissão afegã. Na Conferência de Paz de Paris, o Afeganistão foi finalmente reconhecido como um Estado independente, tornando-se, assim, um membro soberano do sistema internacional de Estados – o único muçulmano da Liga das Nações (MCCAULEY, 2002; RUBIN, 2002). Essa soberania seria institucionalizada e oficializada com o lançamento da nova constituição afegã, em 1921. Essa nova constituição buscava fortalecer a legalidade do Estado, 14 A Alemanha tentou compelir Habibullah a entrar na guerra ao seu lado, alegando que o Afeganistão também teria razões para lutar contra o Império Russo e o Britânico, mas o governante afegão considerou que isso seria um empreendimento arriscado, por estar o território afegão tão perto de ambos os impérios – em outras palavras, quase encurralado por eles (MCCAULEY, 2002). 15 Importa destacar que dois anos antes, em 1917, ocorreram as revoluções (Revolução de Fevereiro e Revolução de Outubro) que levaram à implantação do governo socialista na Rússia e à formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Portanto, em 1919, embora o período de expansão do socialismo para além de suas fronteiras ainda não tivesse iniciado, a URSS já era simpática à ideia de novos Estados surgindo desvinculados das tradicionais potências europeias, uma vez que poderiam configurar potenciais zonas de influência futuras. 38 incluindo, para isso, regulações administrativas para todas as operações governamentais (RUBIN, 2002). O reconhecimento da independência em termos globais, contudo, teve como consequência a perda da ajuda financeira e militar britânica que o Afeganistão recebia em quantidades significativas. Assim, Amanullah precisou reverter o isolacionismo que havia sido defendido por Abdul Rahman e abrir o país ao comércio para promover alguma acumulação de capital guiada pelo próprio Estado (RUBIN, 2002). Na ausência de ajuda britânica, o governante passou a manter boas relações com Lênin, assinando, em 1920, um tratado de paz e amizade com a União Soviética. A paz e a amizade entre as duas partes vinham em forma de dinheiro, armamentos, munições, aviões e ajuda técnica soviética, em uma quase cópia das práticas imperialistas por parte dos comunistas, que desejavam expandir sua influência (MCCAULEY, 2002). Amanullah também buscou desenvolver o país internamente, para criar uma base doméstica de acumulação de recursos, e começou tentando criar um exército profissional. Ele regularizou o sistema de coleta de impostos, baseando-se, principalmente, em impostos diretos à agricultura, e aboliu a escravidão e o trabalho forçado, medidas que deixaram os líderes tribais proprietários de terra insatisfeitos. Foi criada uma nova moeda, o afghani, e uma nova rede de transportes foi planejada. Escolas foram expandidas e abertas para as influências estangeiras, e a participação de mulheres na vida pública foi encorajada (RUBIN, 2002). Apesar de tudo, isso, a acumulação de capital permanecia sendo um empreendimento difícil e demorado, e, para isso, Amanullah decidiu realizar uma longa viagem internacional em busca de apoio externo para obter investimento e tecnologia. Quando retornou, anunciou um novo pacote de reformas que seguiriam a mesma linha das anteriores, e isso desencadeou uma série de revoltas no país. Essas revoltas eram, em grande medida, lideradas por ulemás16, que criticavam o tom modernizador do governo de Amanullah e questionavam sua legitimidade islâmica17. O seu governo, com os esforços de regulamentação e institucionalização das atividades estatais supracitados, havia alienado em grande parte muitas lideranças tribais que, até então, tinham tido um papel indireto essencial na administração do país. Assim, quando as revoltas eclodiram, as lideranças tribais recusaram-se a ajuda-lo. Ficava claro que era impossível 16 São a classe de especialistas em questões religiosas e jurídicas do Islã (DEMANT, 2004). Exemplos de medidas impopulares entre grupos islâmicos mais conservadores foram o banimento do véu e da burca e a introdução da vestimenta ocidental no Afeganistão (MCCAULEY, 2002). 17 39 governar sem esse apoio, e, mesmo com a ajuda soviética recebida para reprimir as manifestações, Amanullah precisou fugir do país (RUBIN, 2002). Assim como durante as duas primeiras guerras anglo-afegãs, a derrota do governante levou a um enfraquecimento do poder do Estado, à perda de controle social e ao ressurgimento do tribalismo (RUBIN, 2002, p.58). Após um breve período de disputa de poder indefinição acerca de quem seria o próximo líder do Afeganistão, inclusive levando à guerra civil, o General Nadir Khan, que havia sido exilado por Amanullah devido a desentendimentos, surgiu como candidato viável. Os britânicos, preocupados com o caos no Afeganistão, mas felizes com a renúncia de Amanullah, apoiaram Nadir Khan, que foi nomeado, em 1929, Nadir Shah, rei do Afeganistão. Os membros de sua família, os Musahiban, governariam o Afeganistão até 1978 (RUBIN, 2002). Nadir Shah manteve o mesmo objetivo de modernizar o Afeganistão perseguido por Amanullah, mas, agora, o poder tribal estava muito fortalecido e o poder estatal muito fraco para que Nadir pudesse implementar mudanças muito drásticas, ou mesmo para que pudesse se apoiar na cobrança de tributos da agricultura, tal qual Amanullah, para arrecadar recursos para o governo. O alvo mais fácil para arrecadação de impostos acabou sendo o setor exportador, mas isso ainda era insuficiente. Dessa forma, acabou voltando-se para o mundo exterior para obter esses recursos sem que precisasse se confrontar com os poderes tribais rurais, de quem dependia para garantir uma estabilidade mínima para o país (RUBIN, 2002). Nadir Shah morreria em 1933, e seu filho, Mohammed Zahir, assumiria o poder até 1973. Quando da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha de Hitler tentou seduzir o governo afegão a entrar na guerra ao lado do Eixo, mas Zahir escolheu esperar para tomar uma decisão – o que se provou sábio, uma vez que a União Soviética entrou na guerra contra a Alemanha e ocupou o vizinho Irã, que também tinha regiões ocupadas por forças britânicas. Durante a guerra, o Afeganistão vendia seus produtos alimentícios para os países envolvidos cujas produções de comida haviam diminuído consideravelmente; por outro lado, não conseguia mais importar bens de capital para seguir com o processo de modernização, o que acabou atrasando o desenvolvimento da agricultura (MCCAULEY, 2002). Em 1947, um evento-chave se deu na fronteira do Afeganistão: a retirada dos britânicos da Índia e o estabelecimento do Estado do Paquistão. Desde o princípio, o Afeganistão se opôs a esse novo Estado, devido ao fato de que ele incluía dentro de seu território uma porção 40 significativa da população pashtun. O que os afegãos reivindicavam era que os pashtuns pudessem escolher viver sob uma mesma nação, o “Pashtunistão”, o qual acreditavam que acabaria sendo englobado pelo Afeganistão. A Grã-Bretanha, porém, não deu essa opção aos pashtuns, que tiveram de escolher entre tornarem-se cidadãos da Índia ou do Paquistão. A maioria escolheu a segunda opção, mas essa questão nunca seria plenamente resolvida, levando à existência de uma tensão constante entre o Afeganistão e o Paquistão (MCCAULEY, 2002; RUBIN, 2002). A formação do Paquistão não importaria, contudo, apenas no que dizia respeito a essa contenda fronteiriça por questões étnicas: ela seria responsável por definir as parcerias internacionais mais importantes dos dois países no período do pós-Segunda Guerra. O Afeganistão dependia, em alguma medida, das relações com o Paquistão por razões comerciais, visto que o Afeganistão ficara sem saída para o mar e o porto de Karachi, no Paquistão, era o lugar ideal para viabilização de seu comércio internacional. Com as tensões entre os dois países, o governo afegão passou a buscar maneiras de contornar esse problema. O transporte através do Oeste, pelo Irã, era extremamente precário, então restava a Ásia Central, que estava sob domínio soviético (RUBIN, 2002). A União Soviética aproveitou-se da situação e assinou novo tratado com o Afeganistão que permitia a exportação de seus produtos pelo território soviético livre de impostos. Assim foram se consolidando as parcerias no sul da Ásia ao longo dos anos 1950: o Afeganistão e a Índia receberiam ajuda soviética, ao passo que o Paquistão passaria a receber ajuda dos Estados Unidos e, posteriormente, também da China (RUBIN, 2002; MCCAULEY, 2002). Ao fim da década de 1950, o Afeganistão já era completamente dependente de Moscou para obtenção de armas e quase completamente para recursos petrolíferos, uma relação única fora do mundo socialista (HALLIDAY, 1980). Tamanha dependência do exterior – que se intensificava por serem, ainda, as exportações as fontes mais importantes de arrecadação de impostos do Estado – fez com que o Afeganistão se tornasse um Estado fraco e rentista, que dependia da ajuda externa e de algumas vendas de gás natural para a URSS. Porém, “diferentemente dos Estados petrolíferos, (...) que podem controlar seu volume de vendas, o Afeganistão não tinha nenhum controle sobre a ajuda externa” (RUBIN, 2002, p. 65). Essa ajuda era importante para a consolidação de um exército moderno e para o financiamento de gastos voltados ao desenvolvimento do país, como saúde, educação, infraestrutura e indústria. Ao longo 41 da Guerra Fria, foi o nível de ajuda externa que o Afeganistão recebeu que definiu a habilidade de seu governo de perseguir políticas de desenvolvimento mais ou menos intensivas (RUBIN, 2002). Em 1953, o primo de Zahir, Mohammad Daud Khan, tornou-se primeiro ministro e tomou controle do governo. Ele permaneceu nessa posição até 1964, quando Zahir Shah decidiu introduzir uma forma de governo mais representativa por considerar que o Estado precisava de novas formas de convencer o povo – em especial os intelectuais e as forças políticas tradicionais – de sua legitimidade. Nesse novo arranjo, membros da família real não poderiam ocupar cargos como ministros – os quais seriam ocupados pela classe intelectual. Uma nova constituição seria lançada em 1964, instituindo uma monarquia parlamentarista (RUBIN, 2002; MCCAULEY, 2002). O período de 1963 até 1973, ano em que Zahir seria deposto, ficou conhecido como “Nova Democracia”, e foi um período em que o governo perseguiu uma estratégia de construção estatal que o tornou mais independente dos poderes tribais, rurais e islâmicos, expandindo o crescimento educacional e o exército. A vida política ativa, contudo, era ainda existente em poucas cidades, sendo bastante concentrada na classe média intelectual. Assim, mesmo distanciada das tribos, à medida que a administração ia ficando mais dependente da classe de intelectuais formados pelo sistema educacional do Estado, passavam a importar também as lealdades desse novo grupo (RUBIN, 2002; VISENTINI, 2013; TANNER, 2002). Durante esse período, a União Soviética vinha se fortalecendo muito no mundo todo. O comunismo tornava-se, cada vez mais, uma força atraente para os Estados que buscavam a saída do subdesenvolvimento, da pobreza e do atraso – um fenômeno visto com muito temor por alguns países no Ocidente, que temiam que a onda comunista fosse impossível de conter (MCCAULEY, 2002). É nesse contexto que, em 1965, é fundado o Partido Democrático do Povo Afegão (PDPA)18. Os comunistas afegãos conseguiram conquistar alguns assentos no parlamento, sendo um deles para Barbak Karmal, um dos maiores nomes do Partido. As hostilidades entre Karmal e Nur Muhammad Taraki, que era secretário-geral do partido, mas que não conseguira um assento parlamentar, levaram à separação do PDPA, em 1967, em duas facções distintas: o Khalq, liderado por Taraki e predominantemente pashtun; e o Parcham, liderado por Karmal e consistindo também de outros grupos étnicos. Ambos ainda juravam lealdade à União Soviética, mas o Parcham era aliado à burguesia local e pregava uma 18 Tradução do inglês People’s Democratic Party of Afghanistan (PDPA). 42 transformação política gradual, ao passo que o Khalq era aliado às classes operária e campesina, e tinha uma posição mais radical (MCCAULEY, 2002; VISENTINI, 2013; TANNER, 2002). Não é possível esquecer, porém, que o novo período “democrático” do Afeganistão comandado por Zahir Shah acabara por excluir seu primo Mohammad Daud do poder. Esse distanciamento deixou-o muito descontente, levando-o a protagonizar, em 1973, um golpe de Estado contra Zahir. O Afeganistão seria proclamado uma República e Daud se autoproclamaria presidente (RUBIN, 2002; TANNER, 2002). Ele teria de lidar com as novas tensões e divisões políticas que emergiam no país. 3.1.3 A Revolução de Saur de 1978 e a intervenção soviética O golpe de 1973 encabeçado por Mohammed Daud fora apoiado pelo Parcham. Alguns dos nomes que ele indicou para diversos postos importantes do governo eram associados a essa facção do PDPA, mas não demoraria para que Daud se incomodasse com a influência crescente do Partido – que ele considerava estar se aproximando demais da URSS – em seu governo. Ele não demonstrou muito esforço para modificar a política e aprofundar o ensaio de democracia que havia ocorrido com seu primo: pelo contrário, apoiou-se bastante em seu núcleo familiar para governar. (TANNER, 2002; RUBIN, 2002). É importante ressaltar que essa grande reviravolta na política afegã ocorria em um contexto internacional – e também regional – de mudanças. O ano de 1973 foi marcado pelo boom do petróleo, com os preços dos barris subindo cerca de quatro vezes e inundando de petrodólares os países produtores. No Irã, o xá apoiado pelos Estados Unidos estava usando o dinheiro advindo do petróleo para se tornar uma potência regional, e Daud se beneficiou disso recebendo expressiva ajuda do xá – o que tornava o Irã uma nova alternativa à União Soviética para saída ao mar. O boom do petróleo também beneficiou o Afeganistão no sentido de que aumentou suas vendas de gás natural e também pelo dinheiro enviado por afegãos que trabalhavam nos países petrolíferos do Golfo Pérsico. O Paquistão reorientava sua política externa para o mundo islâmico, tornando-se um parceiro muito próximo da Arábia Saudita – uma relação que se manteria e se intensificaria poucos anos depois, causando problemas para o Afeganistão. Os Estados Unidos, após a desastrosa intervenção no Vietnã, afastavam-se do continente asiático. A União Soviética, por sua vez, cética com os movimentos nacionalistas não- 43 comunistas, passava a adotar uma postura mais ativista no Terceiro Mundo, apoiando os partidos de libertação marxistas-leninistas19 (HOBSBAWM, 2012; RUBIN, 2002). Daud promulgou uma nova constituição em 1977, suplantando a constituição lançada em 1963 por Nadir Shah. A nova constituição diminuía as liberdades civis e estabelecia que apenas um único partido poderia existir e desempenhar as funções de comunicação com o governo e de integração nacional. Isso gerou grande insatisfação entre os setores esquerdistas, inclusive os militares que haviam ajudado Daud a chegar no poder. Líderes islâmicos que foram reprimidos pelo governo – sendo os principais nomes Gulbuddin Hekmatyar, Burnahuddin Rabbani e Ahmad Shah Masoud – também manifestavam insatisfação e, refugiando-se no Paquistão, passaram a planejar contra Daud. Em 27 de abril de 1978, Daud e sua família foram derrubados e assassinados pelos setores de oposição marxistas, em episódio que ficou conhecido como a Revolução de Abril (Saur, no calendário afegão). Era proclamada a República Democrática do Afeganistão (RUBIN, 2002; MCCAULEY, 2002; VISENTINI ET AL, 2013). O novo governo foi liderado por Taraki, do Khalq, e tomou de imediato uma orientação mais à esquerda. Desde o princípio, o governo comunista já lançou reformas sociais e econômicas visando modernizar-se rapidamente. Essas reformas minaram alguns valores tradicionais afegãos, especialmente importantes para o clero e para os setores rurais mais conservadores – os quais não eram tão atingidos pela vida pública, que era concentrada em Cabul. Algumas das medidas mais polêmicas eram a defesa da reforma agrária e da emancipação feminina, inclusive com abolição da burca (VISENTINI, 2014; MCCAULEY, 2002; TANNER, 2002). Uma revolta rural se iniciou em 1979, apoiada por Hafizullah Amin, um membro do Khalq que se opunha à Taraki, e apoiada pelo Paquistão (VISENTINI ET AL, 2013). Embora os soviéticos ainda tivessem influência muito limitada no cenário político doméstico afegão, o presidente estadunidense Jimmy Carter, influenciado por um contexto internacional de Guerra Fria que causava histeria dentro dos EUA20, anunciou que retiraria seus diplomatas do Afeganistão. Não se tratava, porém, apenas de uma precaução e de zelo com seu 19 As revoluções socialistas que ocorriam no Iêmen do Sul (ver sessão 3.2.2), no Vietnã, na África Portuguesa e no chifre da África deixavam a URSS mais otimista com relação a uma nova postura mais ativista e ideológica (RUBIN, 2002). 20 “À medida que o esboroado império africano de Portugal (Angola, Moçambique, Guiné-Cabo Verde) passava para o domínio comunista e a revolução que derrubou o imperador da Etiópia se voltava para o Leste; à medida que a velozmente desenvolvida marinha soviética passava a contar com grandes novas bases nos dois lados do oceano Índico; à medida que o xá do Irã caía, um clima beirando a histeria foi tomando conta do público americano” (HOBSBAWM, 2012, p. 243). 44 pessoal, uma vez que, poucas semanas antes, Carter assinara um acordo que garantia ajuda ao movimento de oposição que poderia desestabilizar o governo afegão (MCCAULEY, 2002). Em dezembro, Taraki, desesperado com a situação interna – a revolta rural virara uma guerra civil que escapava ao controle do governo –, buscou a ajuda de Moscou. Foi assinado um Tratado de Amizade e Cooperação cujo principal objetivo era minar a influência crescente de Amin no Afeganistão. Amin, porém, percebendo a manobra, assassinou Taraki em seu retorno da União Soviética (VISENTINI, 2014). Desde a Revolução de Saur, um grande fluxo de armas já se direcionava para a guerrilha conservadora contrarrevolucionária afegã, vindo, principalmente, dos Estados Unidos, do Paquistão e da Arábia Saudita (VISENTINI ET AL, 2013). Com esse contexto em mente, temendo que o Afeganistão caísse em mãos estadunidenses e virasse mais um fantoche da política externa norteamericana, a União Soviética decidiu invadir em 27 de dezembro de 1979, com uma intervenção militar que ajudou a derrubar Amin e instalou no poder Barbak Karmal (VISENTINI ET AL, 2013; MCCAULEY, 2002). Não foi, contudo, apenas a força da oposição que levara à intervenção soviética. Na verdade, a essa época, a oposição ainda não era tão forte quanto ela viria a ser nos próximos anos, mas o problema residia no fato de que o Estado afegão já era muito frágil. O exército, por exemplo, já se encontrava fragmentado, dividindo-se entre os quadros que apoiavam o regime comunista e aqueles que, dissidentes, fugiam para apoiar as guerrilhas na fronteira. Conforme Rubin (2002, p.121), “foi a desintegração interna do Estado e do partido, mais do que a força militar da resistência, que provocaram a intervenção soviética”. Os soviéticos pensavam que, em dentro de um mês, conseguiriam controlar a situação no país e que Karmal seria facilmente manipulado em prol dos interesses de Moscou. Enquanto os soldados soviéticos buscavam revitalizar o exército afegão para que o controle do território pudesse ser retomado, o novo governo era incentivado a promover certa abertura política e a se aproximar de líderes tribais e religiosos para tentar recuperar alguma legitimidade entre a população (VISENTINI ET AL, 2013). A intervenção soviética, porém, enfraquecera significativamente a revolução do PDPA, pois a identificação do governo de Karmal com um exército estrangeiro era muito mal vista pelos afegãos. A União Soviética, ignorante sobre a cultura e a sociedade afegãs, logo percebeu que seu cálculo inicial se mostraria errado: sair do Afeganistão se provaria cada vez mais difícil (MCCAULEY, 2002; TANNER, 2002). 45 Antes mesmo de as forças soviéticas invadirem o Afeganistão, conforme supracitado, a oposição anticomunista já estava sendo auxiliada. Os Estados Unidos, porém, também entendiam pouco sobre o Afeganistão e menos ainda sobre o Islã, estando mais preocupados em enfraquecer os soviéticos (MCCAULEY, 2002). Assim, em dezembro de 1979, bases guerrilheiras já estavam instaladas no Paquistão, formadas, principalmente, por guerrilheiros mujahidin21. Os mujahidin eram os membros das guerrilhas conservadoras e religiosas que se opunham ao governo socialista, e que passaram a ser cada vez mais presentes no interior do Afeganistão (VISENTINI ET AL, 2014). A ascensão do regime comunista e os conflitos subsequentes tinham gerado um enorme fluxo de refugiados para a região de fronteiras com o Paquistão, visto que aqueles que fossem contrários ao regime por vezes eram presos e perseguidos dentro do Afeganistão. Os mujahidin, que começaram a se organizar em partidos para criar uma oposição mais robusta ao regime afegão, passaram a realizar recrutamento de membros e apoiadores entre os campos de refugiados instalados na fronteira O governo do Paquistão tinha plena consciência desses esforços de recrutamento, mas não buscou obstruí-los, contanto que permanecessem discretos (MARSDEN, 2009). Esses campos recebiam um enorme montante de ajuda internacional, tanto de governos quanto, principalmente, ao menos no período inicial, de organizações não governamentais que não apenas enviavam dinheiro, mas prestavam serviços médicos e enviavam alimentos aos refugiados. O Paquistão era responsável por receber essa ajuda – que, cada vez mais, em especial dos EUA, Arábia Saudita, Egito e China, passava a vir em forma de armamentos – e repassá-los aos campos de refugiados que, depois de algum tempo, passaram a ser difíceis de distinguir dos campos de recrutamento dos partidos mujahidin. Esses partidos, porém, se multiplicavam, e a ausência de uma liderança política para unificar as forças militares que se formavam levou o governo paquistanês a temer perder o controle da situação. Nesse sentido, em 1980, o regime de Islamabad optou por reconhecer oficialmente seis partidos como representantes dos refugiados e dos mujahidin, e apenas a eles distribuir ajuda financeira e militar. Os mais importantes, que merecem destaque aqui, foram o Partido Islâmico do Afeganistão de Hekmatyar, mais conhecido como Hizb-i Islami-yi Afghanistan (Hekmatyar), e o Sociedade Islâmica do Afeganistão, mais conhecido como Jamiat-i Islami-yi Afghanistan. O Hizb era o mais revolucionário dos partidos mujahidin, era apoiado majoritariamente por pashtuns e liderado por Gulbuddin Hekmatyar. O 21 Que significa “aquele que faz o jihad”, “aquele que luta a guerra santa” (DEMANT, 2004). 46 Jamiat era mais moderado, apoiado predominantemente por tajiques, e seu líder era Burnahuddin Rabbani (RUBIN, 2002; MARSDEN, 2009). Esses nomes viriam a ter enorme importância no futuro do Afeganistão. A tática de guerrilha, porém, era desconhecida para Moscou, e os esforços para contê-la foram quase totalmente fracassados (MCCAULEY, 2002). O governo afegão buscou suprimir insurgências por meio de milícias contratadas para atuar no interior do país, e não do exército oficial, cujo contingente ainda não era suficiente para controlar todo o território. Como era de se esperar, essas milícias, usando de violência sistemática para conter a contrarrevolução, não tiveram muito sucesso em trazer as zonas rurais para o lado governista, e, devido a isso, o governo passou a adotar táticas diferentes como ajuda médica e a distribuição de alimentos e utensílios agrícolas. Porém, o medo causado pelo fortalecimento dos mujahidin fazia com que muitas pessoas fossem reticentes a apoiar o Karmal e acabassem recebendo mal as campanhas governamentais. A grande lacuna existente entre o campo e a cidade22 faziam com que grande parte das transformações positivas do período socialista apenas atingissem uma parcela limitada da população. A inteligência dos partidos e as classes mais escolarizadas residiam nas zonas urbanas, sendo quem mais se beneficiou das políticas educacionais implementadas. A ampliação dos direitos das mulheres, outra pauta levantada pelo Partido, também afetou mais as zonas centrais do país e, ainda, era vista com maus olhos pelas camadas mais conservadoras da população que residiam no campo, onde as estruturas tribais, étnicas e religiosas eram muito fortes. Além disso, os afegãos, desde sempre, tiveram uma cultura muito forte contra a intervenção estrangeira, e a presença soviética era rejeitada por grande parte da população. Isso tudo, somado ao fracasso da reforma agrária implementada pelo governo, portanto, fazia com que grande parte da população acabasse ficando suscetível à influência dos mujahidin (HALLIDAY, 1980; VISENTINI ET AL, 2014; TANNER, 2002). Os soviéticos buscaram apelar para ataques aéreos mais intensivos como meio de desmobilizar e derrotar as guerrilhas mujahidin, mas estas eram cada vez mais bem armadas por seus fornecedores externos23. Aos poucos, a guerra civil que se instaurara no país foi se tornando 22 À época da intervenção soviética, 90% da sociedade afegã era analfabeta e 85% era rural (HALLIDAY, 1980; TANNER, 2002) 23 A partir de 1985, em um momento em que a URSS já diminuía sua atuação no Afeganistão, os Estados Unidos passavam a fornecer aos mujahidin mísseis antiaéreos portáteis “stinger” com lançadores, que atingiam os sistemas aéreos de combate e transporte soviéticos. Era a primeira vez que essa arma superpoderosa era distribuída para fora da OTAN (HOBSBAWM, 2012; RUBIN, 2002). 47 economicamente insustentável para a União Soviética, visto que, durante quase toda a década de 1980, Moscou foi diretamente responsável por fornecer ajuda militar ao governo para combater as guerrilhas apoiadas pelo Paquistão e pelos EUA. Fora a primeira vez em muitos anos que a União Soviética se vira envolvida diretamente em uma guerra, e isso gerou uma pressão perigosa sobre a economia (HOBSBAWM, 2012). Com a ascensão de Mikhail Gorbachev ao poder, em 1985, Moscou começou, portanto, a considerar um desengajamento. Em 1986, pressionaram para que Najibullah, presidente do serviço secreto afegão24, assumisse o poder. O novo governo receberia cada vez menos ajuda soviética, e buscaria começar alguma negociação com os partidos mujahidin, em detrimento da estratégia baseada apenas em ofensivas militares. O regime também procurou ir, aos poucos, se desvinculando dos símbolos socialistas para assumir um tom mais nacionalista e patriótico, e, com isso, reconquistar simpatia popular. A retirada da URSS do Afeganistão iniciou com as negociações de Genebra, e foi completada em fevereiro de 1989 (VISENTINI ET AL, 2014). A guerra civil durou o tempo todo em que os soviéticos estiveram no país. Eles levaram cerca de 350 mil soldados ao Afeganistão ao longo de todo o período, e perderam cerca de 150 mil. Os afegãos, por sua vez, perderam 1,3 milhões de vidas, e o mesmo número de pessoas foi mutilada pela guerra (MCCAULEY, 2002). O que era para ser uma intervenção breve e pontual de um mês, acabou se tornando, nas palavras de Eric Hobsbawm (2012, p. 464), “o Vietnã da União Soviética”. Os Estados Unidos, durante esse período, adotando um raciocínio de “soma-zero” típico da Guerra Fria – ou seja, uma perda para o bloco comunista era um ganho para o bloco capitalista, e vice-versa –, escolheram ignorar o fato de que o Afeganistão já estava na esfera de influência soviética desde a década de 1950 sem causar maiores distúrbios ao bloco ocidental, e adotaram um discurso que defendia que a intervenção soviética era uma grande ofensiva global da onda comunista incontrolável (HOBSBAWM, 2012, MCCAULEY, 2002). Para causar as perdas desejadas à URSS, “despejaram dinheiro e armamentos avançados sem limites nas mãos de guerrilheiros fundamentalistas muçulmanos das montanhas” (HOBSBAWM, 2012, p. 464) A grande consequência dessa atitude, porém, foi que “(...) na base de ‘o inimigo do meu inimigo é meu amigo’, Washington acabou ajudando a criar a mais formidável organização terrorista de todos os tempos” (MCCAULEY, 2002, p. 18 e 19). A al-Qaeda formou-se em 1989 em Jaji, no 24 O KHAD, criado nos moldes da KGB soviética (VISENTINI ET AL, 2014). 48 Afeganistão, pelo saudita Osama bin Laden, que treinara na fronteira afegã-paquistanesa contra os comunistas durante os anos 1980. Os enormes montantes de dinheiro enviados pelos EUA e pelo Paquistão aos mujahidin beneficiaram o surgimento deste grupo, que se tornaria uma organização internacional e transformaria o jihad anticomunista em um jihad mundial – como será visto no próximo capítulo (MCCAULEY, 2002). Depois da retirada das tropas soviéticas, os Estados Unidos, entretanto, também se afastaram das fronteiras onde apoiavam fortemente os mujahidin. O Paquistão seguiu as apoiando, buscando assim ter influência sobre os acontecimentos no Afeganistão e garantir que algum regime amigo pudesse ser instaurado agora que não havia mais o suporte da URSS. Sem o apoio de Moscou, de um lado, e Washington, de outro, os partidos começaram a disputar uns com os outros pela supremacia. O presidente Najibullah, mesmo sem a ajuda econômica e militar soviética com a qual gozava até então, conseguiu manter o poder ainda até 1992. Mesmo com a manutenção do governo, as disputas por poder vinham se intensificando desde a retirada soviética, que era vista como uma janela de oportunidade para ascensão de outros grupos, e, em 1992, uma guerra civil eclodiu no país. Burnahuddin Rabbani, de etnia tajique, assumiria o poder no país, marcando a primeira vez em centenas de anos que um não-pashtun governava Cabul (MCCAULEY, 2002; RUBIN, 2002). A contenda se daria, essencialmente, entre setores remanescentes do governo, que mantinham uma postura mais moderada e sugeriam a formação de um novo governo de coalizão com independência de potências estrangeiras, e as guerrilhas fundamentalistas, apoiadas pelo Paquistão (VISENTINI, 2014). O altíssimo grau de violência e instabilidade atingidos pelo Afeganistão nesse período posterior ao desmantelamento da União Soviética levou muitos autores a começarem a classificalo como um Estado colapsado, falido ou desintegrado. A escalada da violência na guerra civil, a disputa por poder e a consequente impossibilidade de manter controle do território para muito além da capital permitiria a ascensão de outro grupo fundamentalista que faria a comunidade internacional, aos poucos, voltar a olhar para o Afeganistão: o Talibã. A crescente desintegração e desestabilização do Estado afegão serão analisados no próximo capítulo. 3.2 A formação do Iêmen O Iêmen localiza-se na porção sul da península arábica, e sua localização geográfica é o principal elemento de sua importância estratégica. Ao Norte, faz fronteira com a Arábia Saudita, 49 e a leste, com o Omã. Ao seu Sul, é banhado pelo Golfo de Áden e o Mar Arábico, ao passo que a Oeste, o é pelo Mar Vermelho. Entre o Golfo de Áden e o Mar Vermelho, fica o estreito de Babel-Mandeb, que separa os continentes africano e asiático. O controle do estreito tem grande significado estratégico, uma vez que é, juntamente com o canal de Suez egípcio, um caminho que permite a navegação do Mar Mediterrâneo ao Oceano Índico por meio do Mar Vermelho, e viceversa. Além dessas importantes características relativas às suas fronteiras, o território iemenita também possui características geográficas internas que foram determinantes ao longo de seu desenvolvimento. Assim como o Afeganistão, o Iêmen também é um território bastante acidentado, e, portanto, também considerado muito difícil de governar inteiramente (DAY, 2012). A região noroeste do país é marcada por planaltos montanhosos nos arredores da cidade de Sanaa, e uma cadeia de montanhas se encontra ao longo da costa oeste do país (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011). Avançando a leste para o interior do país, encontra-se o deserto de Rub alKhali, que, inclusive, se estende ao Norte e adentra o próprio território da Arábia Saudita – o que tornou, historicamente, difícil a demarcação de fronteira entre os dois territórios, o que aconteceu apenas nos anos 2000. A metade Leste do país, por fim, é caracterizada pela existência de um enorme sistema de cânions, dentro do qual se encontra o fértil e verde Vale Hadramaut. A região de Hadramaut também tem agricultura relevante, mas é significativamente menos povoada que a porção ocidental do país. Por ser uma região de difícil acesso, seus povos permaneceram protegidos contra invasores por muito tempo ao longo da História, mas também isolados do restante dos iemenitas (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011). Assim, é possível perceber que a topografia peculiar do Iêmen faz com que o território seja formado por regiões com características muito diferentes que, ao longo do desenvolvimento de seus governos e sociedades, possibilitaram o surgimento de comunidades regionais distintas em costumes, hábitos e interesses. Na história iemenita, a unidade foi muito mais a exceção do que a regra, tendo sido conquistada apenas quando alguma dinastia acumulava poder suficiente para subordinar as demais – e o controle territorial era sempre muito difícil, nunca durando, portanto, mais de algumas décadas (DAY, 2012). 50 Figura 5: Topografia do Iêmen Fonte: Wikimedia Commons. Figura 6: Divisões regionais do Iêmen Fonte: Wikimedia Commons. Para além das questões regionais e tribais, é importante destacar também a divisão de ordem religiosa existente no Iêmen desde o final do século IX d.C.: a entre os xiitas zaiditas e os sunitas chafeítas25. O zaidismo chegou no Iêmen depois do chafeísmo, em 893 d.C, e se trata de 25 O chafeísmo é um dos quatro grupos de tradição e práticas jurídico-religiosas Islã sunita (todos fundamentados no Alcorão) cujos seguidores são adeptos do teólogo Abu Abdullah Mohammad al-Shafi, e representa uma abordagem moderada da lei islâmica, a sharia (ROCHE, 2012). 51 uma linha minoritária do xiismo26 que, atualmente, existe apenas no Iêmen. Os zaiditas se consolidaram na região de planaltos montanhosos no Noroeste iemenita pelo fim do século IX, dando início a uma longa sucessão de imãs27 zaiditas que perduraria até a metade do século XX. Tanto as práticas religiosas chafeítas quanto as zaiditas são consideradas moderadas dentro das tradições, respectivamente, do sunismo e do xiismo. Assim, apesar de fazerem parte de correntes diferentes do Islã, chafeítas e zaiditas conseguiram manter, por algum tempo, uma convivência pacífica, inclusive com tentativas de aproximação e reconciliação cultural. A divisão existente, portanto, era mais um resultado da geografia do que de um sectarismo religioso. A razão pela qual ambos os grupos permaneceram separados foi a discordância com relação a escolha de um governante, que é a raiz do próprio conflito entre xiismo e sunismo: o fato de os xiitas acreditarem que deva ser um descendente de Maomé e os sunitas julgarem que deva ser alguém com habilidades de liderança reconhecido pela comunidade muçulmana. Para governar o Iêmen, dificilmente os zaiditas aceitariam um chafeíta do Sul (DAY, 2012; DEMANT, 2004). O Iêmen no tamanho e na organização conhecidos hoje em dia, porém, conformou-se apenas em 1990. Antes disso, para além das divisões regionais mencionadas acima, predominou, em especial após a chegada dos impérios Otomano e Britânico durante o século XX, uma divisão política entre o Norte e o Sul do país. Contudo, apesar de sua formação ser bastante recente, a atual República do Iêmen nada mais é do que a unificação entre os dois Estados anteriormente existentes. Portanto, compreender a formação do atual Estado iemenita implica necessariamente compreender as origens dessa divisão, bem como as razões que levaram à unificação e a maneira como isso ocorreu. 3.2.1 A era islâmica e a chegada dos impérios: das tribos à divisão Norte-Sul O Iêmen é um país de população majoritariamente árabe, sendo árabe também o idioma falado pela vasta maioria da população. Assim como na maioria dos países árabes, a maior parte do povo iemenita também segue a religião muçulmana. Muitos grandes impérios, como o sassânida persa, o islâmico, o otomano e o britânico, passaram pelo Iêmen em algum momento de Os zaiditas são também chamados de xiitas “dos Cinco”, em virtude de terem sido o ramo que se originou na disputa de sucessão da geração do quinto imã xiita, no começo do século VIII – eram o grupo minoritário que acreditava ser Zayd ibn Ali o último sucessor legítimo do profeta Maomé. São diferentes, portanto, dos xiitas “dos Doze”, ou duodecimanos – o ramo majoritário no Irã e no Iraque – que consideram legítimas as sucessões ocorridas até o décimo segundo imã, o qual acreditam ter desaparecido misticamente (DEMANT, 2004; DAY, 2012). 27 Imã é o nome dado pelos xiitas à autoridade máxima do Islã, ou seja, aos sucessores do profeta Maomé. É o equivalente do “califa” para os sunitas (DEMANT, 2004). 26 52 sua história, levando os povos iemenitas a se referirem à sua terra da mesma maneira que os povos afegãos: “um cemitério de impérios” (DAY, 2012, p. 23) O território foi, por muito tempo, organizado em cidades-estados independentes e prósperas que enriqueciam através do comércio de especiarias. O nome “Iêmen” foi adotado apenas a partir da era islâmica, sendo oriundo do termo al-Yaman, que significa “ao sul de Meca”. Quase dois séculos após a chegada do Islã, os primeiros seguidores do xiismo zaidita chegaram e consolidaram-se nas regiões montanhosas ao Norte do Iêmen, mas isso não alterou drasticamente nem imediatamente as divisões preexistentes no território onde o sunismo já se disseminara: foi apenas no século XII que tanto o zaidismo quanto o sunismo chafeíta consolidaram dois sistemas de governos distintos (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011). Os imãs zaiditas buscaram expandir o seu domínio na região de planaltos e na costa do Mar Vermelho, para arrecadar mais impostos e controlar mais mercados e terrenos agrícolas. Do século XIII ao século XV, a dinastia sunita dos Rasulid, uma das maiores dinastias da história do Iêmen, resistiu fortemente ao avanço dos imãs xiitas na região de Taiz (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011). Foi ao longo do século XV também que o Iêmen e o Mar Vermelho passaram a se tornar uma área de disputa entre os egípcios, os otomanos, e várias potências europeias, que buscavam controlar o mercado emergente da região e o comércio tradicional de especiarias que vinham do Oriente pelo Oceano Índico (ETHEREDGE, 2011). A partir do século XVII, a dinastia zaidita dos Qasimi logrou expandir seu controle até as regiões de Aden, ao Sul, e de Hadramaut, ao Leste – a qual tinha permanecido, até então, praticamente livre da influência do chafeísmo e do zaidismo, adotando uma linha distinta do sunismo. Essa expansão levou ao fim do domínio religioso sunita que governava o território até então, e, desse momento até os anos 1960, quando as ideologias nacionalistas e socialistas tornarse-iam populares, o zaidismo tornou-se predominante na política iemenita (DAY, 2012). O século XVIII marcou uma diminuição significativa no interesse estrangeiro pela região: a rota marítima que contornava a África passou a ser a preferida pelos europeus para chegar a Ásia. Isso mudaria no século XIX, particularmente em 1838, com a tomada de Aden pelos britânicos. O interesse primordial da Grã-Bretanha era a Índia, mas, mesmo assim, julgava importante defender uma pequena colônia no sul da península arábica, onde financiaram e armaram os líderes tribais locais, porque o porto de Aden poderia ser uma estação segura no meio 53 do caminho entre Bombaim, na Índia, e Suez, no Egito28. No ano de 1869, com a abertura do Canal de Suez, o Mar Vermelho voltou a ser a rota preferida de passagem entre a Europa e a Ásia. Três anos depois, em 1872, como prova disso, os otomanos ocuparam o Norte do território iemenita, buscando se estabelecerem nas regiões de Sanaa e Taiz, ao passo que os britânicos visavam expandir-se ao norte e ao leste de Aden. Assim como os britânicos, os otomanos também estabeleceram seu domínio especialmente pelo envio de tropas, deixando bastante autonomia às autoridades locais (ETHEREDGE, 2011; DAY, 2012; CHAGNOLLAUD; SOUIAH, 2004). Era de se esperar que, eventualmente, esses dois impérios, cujos domínios não conheciam fronteiras demarcadas, acabariam se chocando, e isso aconteceu no começo do século XX. Em 1904, uma comissão especial realizou uma inspeção da área fronteiriça para elaborar um tratado que estabeleceria a fronteira entre o norte do Iêmen otomano e as possessões britânicas do Sul. O tratado foi colocado em prática em 1914, marcando, portanto, o início do período de uma divisão mais explícita no território iemenita (ETHEREDGE, 2011, DAY, 2012). 3.2.2 Os “dois Iêmens”: das independências à consolidação dos Estados revolucionários Figura 7: Os dois Iêmens Fonte: STRATFOR, 2016. O imã zaidita que governava os povos do norte do Iêmen desde 1904, Yahya Hamid alDin, buscou manter-se relativamente próximo dos otomanos para garantir que poderia exercer seu poder e que receberia proteção em caso de agressão britânica. Durante a Primeira Guerra, Yahya apoiou os otomanos, mas não participou ativamente das hostilidades. Ao fim da guerra, em 1918, 28 A colônia de Aden, inclusive, foi por muito tempo controlada e administrada a partir da Índia, e não de Londres, sendo parte da defesa britânica da rota para a Índia (HELD; CUMMINGS, 2014). 54 o enfraquecido Império Otomano retirou suas tropas do Iêmen, deixando o norte do país independente e sob o domínio do imã Yahya – que, para seus seguidores, mantinha um discurso contrário à presença das tropas estrangeiras (CHAGNOLLAUD; SOUIAH, 2004; ETHEREDGE, 2011). Enquanto governante do norte do Iêmen, Yahya utilizava a sharia islâmica como constituição, e recusava qualquer forma de modernização e de comunicação com o mundo exterior, à semelhança do que Abdul Rahman fizera no Afeganistão para garantir isolamento e proteção das potências imperialistas europeias (CHAGNOLLAUD; SOUIAH, 2004). Ele buscava compensar esse isolamento externo com o apoio dos homens das tribos zaiditas para formar o seu poderio militar, e governava ao lado de uma pequena classe de nobres do Norte. Além do isolamento, porém, o novo governo independente de Yahya tinha outra característica importante: o expansionismo para regiões além dos planaltos montanhosos do Norte. A tentativa de avanço ao Leste e ao Sul de Sanaa tinha base na reivindicação do “Iêmen histórico”, ou seja, no nãoreconhecimento do domínio britânico de Aden e no desejo de incorporar as áreas majoritariamente chafeítas ao seu domínio (ETHEREDGE, 2011). A partir de 1919, Yahya empreendeu diversas conquistas em regiões majoritariamente chafeítas, e a arrecadação de impostos desses locais era usada, basicamente, para financiar seus exércitos tribais. Os povos subjugados reivindicavam que o dinheiro dos tributos fosse gasto para desenvolver suas cidades ao invés de simplesmente integrarem o tesouro imã, mas isso não surtiu muito efeito, levando ao surgimento de reivindicações pela saída dos zaiditas e pelo direito ao autogoverno (DAY, 2012). O entendimento de “Iêmen” de Yahya não envolvia apenas a parte sul dominada pelos britânicos, mas também uma porção ao norte que já pertencia ao Reino da Arábia Saudita. Essa ambição levou ao conflito com os sauditas, em 1934, mas o imã foi facilmente derrotado. O rei saudita, Ibn Saud, não fez nenhuma concessão territorial mas permitiu que Yahya mantivesse os territórios que já detinha antes da contenda, levando-o a concentrar-se mais nos esforços de estabilização da área que já dominava (ETHEREDGE, 2011). A insatisfação entre os sunitas chafeítas mostrava-se cada vez mais organizada, e o surgimento do grupo “Iemenitas Livres”29 durante o governo de Ahmad, filho de Yahya, representou a disposição em terminar com o imanato zaidita. Esse grupo buscava angariar solidariedade popular introduzindo ideais nacionalistas árabes em torno da unidade. Ao Sul, 29 Traduzido do inglês Free Yemenis. 55 muitas famílias acreditavam que seria mais vantajoso cooperar com os britânicos do que correr o risco de serem subjugadas pelo domínio zaidita. Já fazia algum tempo que alguns moradores do Norte migravam para o Sul do Iêmen para trabalhar na colônia britânica, onde as oportunidades de trabalho eram mais abundantes e os salários mais altos em virtude da expansão econômica no porto de Aden. O contato com os povos do Sul gerou ainda mais solidariedade para com as demandas do Norte, fortalecendo o sentimento de oposição ao imã Ahmad (DAY, 2012; HALLIDAY, 1990). No sul do Iêmen, os britânicos não tinham criado uma estrutura de governo unificada como os zaiditas fizeram no Norte. Os líderes tribais – e principalmente os sultões da região de Hadramaut, bastante isolados da vida de Aden – eram relativamente independentes uns dos outros, mas o receio de um futuro avanço zaidita somado à disseminação dos ideais nacionalistas, nos anos 1950, os fez começarem a negociar alguma transição de poder com os britânicos que fosse vantajosa. Os britânicos julgaram que o modelo federalista seria a melhor opção, e em fevereiro de 1959, anunciaram a criação da Federação dos Emirados Sul Arábicos. A iniciativa, porém, não obteve muito sucesso: os protetorados do Leste permaneceram separados e independentes, não se sentindo muito incentivados a participar da federação, em especial devido à grande centralidade dada pelos britânicos à região de Aden (DAY, 2012). A situação mudou drasticamente nos anos 1960. Em 1962, no Norte, o imã zaidita Ahmad faleceu e foi sucedido por seu filho, Mohammed al-Badr. Dentro de uma semana, porém, no dia 26 de setembro, um golpe de Estado apoiado por militares e pelas organizações políticas de oposição ao imanato fundou a República Árabe do Iêmen (RAI, o Iêmen do Norte). O imã foi forçado a se retirar de Sanaa e Abdullah al-Sallal foi nomeado primeiro presidente do Iêmen do Norte. Al-Badr passou a tentar angariar o apoio de seus aliados tribais tradicionais e, ao mesmo tempo, os republicanos que tomaram o poder buscaram apoio externo do Egito (ETHEREDGE, 2011; DAY, 2012). Gamal Abdel Nasser, líder do Egito à época, enviou cerca de 50 mil soldados em apoio à causa republicana, para reforçar a luta contra a guerrilha monarquista. A Arábia Saudita, agora governada pelo rei Faysal, considerava a presença egípcia uma ameaça, e imediatamente decidiu enviar grande ajuda militar para a guerrilha formada por al-Badr e seus apoiadores. O Reino Unido e a Jordânia também apoiaram os opositores da república, em uma tentativa de enfraquecer o poder egípcio na região, e a União Soviética apoiou o Egito enviando ajuda para os republicanos iemenitas (CLOAREC; LAURENS, 2000; HALLIDAY, 1990). 56 A disputa entre republicanos e monarquistas no Iêmen do Norte tornou-se uma verdadeira guerra civil. O apoio aos republicanos mostrou-se cada vez mais custoso ao Egito, que não desejava comprometer seus planos de desenvolvimento interno em virtude da ajuda enviada ao Iêmen. Assim, em 1964, Nasser começou a negociar com Faysal um cessar-fogo, o qual, porém, não foi respeitado. Apenas em 1967 o Egito faria uma negociação final com os sauditas e decidiria oficialmente pela saída do Iêmen do Norte, influenciado fortemente pela derrota que sofrera na Guerra dos Seis Dias contra Israel (CLOAREC; LAURENS, 2000; HALLIDAY, 1990). Em 1968, o regime de al-Sallal foi deposto por um golpe civil encabeçado por Abdul Rahman al-Iryani. Dois anos depois, com mediação egípcia e saudita, o Compromisso de 1970 foi acordado entre os líderes em disputa no Norte, estabelecendo um governo republicano que, contudo, contava com a participação de facções monarquistas – o que agradou enormemente a Arábia Saudita. Foi concordado que o imã não voltaria a governar e não teria papel no novo Estado. A guerra civil, em curso desde 1962, chegara a seu fim (ETHEREDGE, 2011). A revolução de 1962 não passara despercebida pelo Sul. Motivados e inspirados pelos eventos do Norte, os sul-iemenitas que desejavam pôr termo ao domínio britânico passaram a se organizar e, no fim de 1963, lançaram uma guerrilha para reivindicar independência. Duas organizações principais tomaram a frente da disputa pelo poder: de um lado, a Frente pela Liberação do Iêmen do Sul Ocupado (FLISO)30, apoiada pelo Egito – já envolvido no apoio aos republicanos do Norte – e, de outro, a Frente de Libertação Nacional (FLN)31, antipática à presença egípcia e apoiada pelos elementos indígenas e tribais do Sul. Enquanto no Norte a guerra civil entre republicanos e monarquistas se estendeu ao longo de quase todo a década de 1960, no Sul a disputa por poder entre a FLISO e a FLN também evoluiu para uma guerra civil, que se estendeu por quatro anos de campanhas violentas até que os britânicos optaram pela retirada em 30 de novembro de 1967 (ETHEREDGE, 2011; DAY, 2012). A retirada foi precedida por negociações entre o Reino Unido e as guerrilhas, as quais haviam se iniciado já em 1964, ocasião em que Londres anunciara, pela primeira vez, a intenção de desocupar sua colônia. No começo do mês de novembro de 1967, a FLN infligiu uma derrota decisiva nas forças da rival FLISO, tornando-se, assim, a organização com quem deveria ser arranjada a transferência da soberania do Sul (ETHEREDGE, 2011; HALLIDAY, 1990). As 30 31 Traduzido do inglês Front for the Liberation of Occupied South Yemen (FLOSY). Traduzido do inglês National Liberation Front (NFL). 57 negociações entre a FLN e o Reino Unido ocorreram em Genebra entre os dias 21 e 29 de novembro, e resultaram em um documento acordado entre as partes que reconhecia que a República Popular do Iêmen do Sul seria proclamada pela FLN no dia 30 do mesmo mês e que as relações diplomáticas entre Aden e Londres seriam mantidas. Esse acordo simbolizou o reconhecimento, por parte dos britânicos, de que insistir em manter posições no sul da península arábica se tornaria cada vez mais custoso. O governo britânico acabou por dar o poder e, ainda, ajuda econômica e militar, àqueles que mais se opunham ao seu domínio desde 1963. O Egito, por sua vez, que através da FLISO buscava estender sua influência do norte ao sul do Iêmen, também acabou com seus objetivos frustrados pela vitória da FLN, o que culminou com a retirada, anteriormente citada, de suas próprias tropas no Norte (HALLIDAY, 1990). Quando os britânicos se retiraram do Sul, a região estava passando por uma crise econômica devido ao fechamento do Canal de Suez do Egito, e que fizera com que o porto de Aden ficasse praticamente inutilizado. Ao assumir o poder, portanto, a FLN comprometeu-se a mudar radicalmente a economia local, realizando medidas como a reforma agrária e a nacionalização das empresas estrangeiras. O modelo de transformação estatal, econômica e social visada pelo governo do Iêmen do Sul era inspirado em modelos estrangeiros, particularmente na orientação socialista soviética (VISENTINI ET AL, 2013; HALLIDAY, 1990). Ao mesmo tempo, o Iêmen do Norte também passava por um período de dificuldades devido à retirada das tropas egípcias e o consequente fortalecimento das forças monarquistas apoiadas pela Arábia Saudita. Nesse sentido, outro comprometimento da FLN no fim da década, além das medidas econômicas citadas acima, foi a busca pela unidade iemenita com base na crença de que o Iêmen era uma só nação. Assim, o governo no Sul apoiava as forças republicanas ao Norte, da mesma forma que a República, no Norte, havia fornecido apoio para a guerrilha anticolonialista no Sul (HALLIDAY, 1990). Dentro da própria FLN, porém, havia grupos que desejavam seguir diferentes diretrizes, e a rivalidade entre eles não demorou a aparecer. Destacavam-se, nesse ponto, a ala nacionalista, mais moderada, e a ala socialista, mais radical. Em 1970, o grupo radical de esquerda acabou se sobressaindo e predominando os congressos da FLN, depondo o presidente al-Shabi, representante da ala nacionalista, e instalando Salim Rubayi Ali em seu lugar. Um grupo de homens mais jovens assumiram cargos importantes do governo, imprimindo componentes ideológicos do marxismo para reformar a política iemenita. O nome do país foi mudado para 58 República Democrática Popular do Iêmen32 (RDPI) (HALLIDAY, 1990; VISENTINI ET AL, 2013; DAY, 2012). Essa mudança de nome desagradou o governo em Sanaa, uma vez que dava a impressão de que Aden não mais se considerava a capital de uma parte de Iêmen, a saber, o Iêmen do Sul, conforme o nome anterior sugeria, mas sim do Iêmen inteiro. O entendimento no Norte era de que, para o Sul, portanto, a unidade apenas viria como uma expansão do governo do Sul para o Norte, e não de uma fusão entre ambos os sistemas (HALLIDAY, 1990). Ao longo dos anos 1970, todas as empresas estrangeiras, bancos e companhias de seguro e navegação seriam nacionalizadas na RPDI, permitindo, juntamente com os investimentos estrangeiros, um crescimento da economia. Outro fator que contribuiu para tal crescimento foram as remessas enviadas pelos iemenitas que trabalhavam nas ricas petromonarquias do Golfo – que era um montante significativo, uma vez que 15% dos iemenitas encontravam-se nessa situação (VISENTINI ET AL, 2013). A reforma agrária levada a cabo pelo governo atingiu as terras que eram anteriormente ocupadas por sultanatos, emirados e xerifados. Essa medida era simbólica do objetivo do governo sul-iemenita de eliminar as lealdades e alianças tribais preexistentes, e era complementada por outras, como a proibição do porte de armas e o redesenho das regiões administrativas para que não coincidissem com as províncias tribais anteriores. Muitas famílias donas de terras fugiram e se exilaram na Arábia Saudita. Ainda em termos de políticas públicas, estima-se que o papel do Estado na economia tenha mais que dobrado (DAY, 2012; VISENTINI ET AL, 2013). No Iêmen do Norte, porém, os acordos tribais ainda eram um componente crucial da tradição política. Apesar de o governo implantado depois Compromisso de 1970 ter sido fruto de um acordo entre todas as partes envolvidas na guerra civil, a falta de recursos e de pessoal da nova administração deixou-a vulnerável a um golpe de Estado militar apoiado por elementos tribais, que ocorreu em 1974. Ibrahim al-Hamdi assumiu o poder e iniciou um programa de desenvolvimento, mas nem toda a sociedade aceitou a influência do novo governante sobre as relações sociais tribais tradicionais. O ápice do descontentamento popular e da dificuldade do povo no Norte em se submeter aos governantes se mostrou com dois assassinatos de presidentes um após o outro: al-Hamdi em 1977, e Ahmad al-Gashmi, seu sucessor, em 1978. A Assembleia Popular Constituinte, então, escolheu o coronel Ali Abdullah Saleh como sucessor de al-Gashmi (ETHEREDGE, 2011). Ao contrário de seus antecessores, Saleh, extremamente habilidoso 32 Traduzido do inglês People’s Democratic Republic of Yemen (PDRY). 59 politicamente, demonstrou-se capaz de conciliar as facções rivais e, assim, acalmar os ânimos da oposição fazendo acordos com líderes tribais poderosos e criando relações clientelistas com vários grupos em outras regiões do país. Além disso, ele foi responsável por incluir o Iêmen do Norte na era do petróleo, expandindo a prospecção de petróleo, e por melhorar as relações com países vizinhos – em especial a Arábia Saudita – e com o Ocidente. Ele também criou a organização política que acabaria tornando-se seu partido, o Congresso Geral do Povo (CGP)33 (ETHEREDGE, 2011; BREHONY, 2011; DAY, 2012). Por volta da mesma época, também em 1978, no Iêmen do Sul, conturbações políticas levaram igualmente ao assassinato do presidente, Salim Rubayi Ali, que foi substituído por Abdul Fattah Ismail, membro da ala esquerdista mais radical do FLN. Esse evento marcou a preponderância desta ala na disputa dentro da Frente, e culminou na sua transformação em Partido Socialista Iemenita (PSI). O novo governo salientou a importância da relação com a União Soviética para o Iêmen do Sul e aprofundou o discurso sobre a necessidade de se obter aprendizados com o bloco socialista. Em 1979, um Tratado de Amizade e Cooperação foi assinado entre Aden e Moscou, prevendo a cooperação técnica entre o Partido Comunista da URSS e o PSI. A população, porém, não se mostrou muito favorável a essa nova orientação voltada fortemente para a União Soviética, o que foi aumentado com a dificuldade de a economia apresentar melhorias no período. A insatisfação levou à sua renúncia, em 1980, e à ascensão de Ali Nasir Muhammad. Apesar de também buscar manter boas relações com a URSS, Ali Nasir também procurou aproximar a RPDI de outros países árabes e, inclusive, do Iêmen do Norte e da Arábia Saudita (HALLIDAY, 1990). Contudo, as disputas internas no PSI continuavam mesmo após a extinção da FLN, e isso voltou a se manifestar em meados dos anos 1980, culminando na crise de janeiro de 1986. Nessa ocasião, o conflito entre as lideranças evoluiu para um conflito armado em Aden e regiões vizinhas, que ocasionou milhares de mortes. Um dos episódios mais notáveis dessa disputa foi o assassinato, em plena reunião do Comitê Central do Partido (ou Politburo), de diversos membros do governo, incluindo o ex-presidente Ismail. Desse episódio, saiu vencedora a facção mais radical, agora encabeçada por Abu Bakr al-Attas, como presidente, e Ali Salim al-Bid, como secretário-geral do Partido, reafirmando a linha socialista do país (VISENTINI ET AL, 2013; HALLIDAY, 1990). 33 Traduzido do inglês General People’s Congress (GPC). 60 3.2.3 O processo de unificação e a formação do novo Estado iemenita Tanto no Norte quanto no Sul, após as revoluções, os líderes passaram a propagar ideias de unidade nacional entre ambas as partes. O nacionalismo árabe dos anos 1950 já se encontrava fortemente disseminado no território iemenita, e as revoluções de 1962 e 1963 ajudaram a popularizar sentimentos unionistas entre o povo, que sentia orgulho em ter deposto seus governantes tradicionais e lutado contra o colonialismo. A unidade, porém, seria um empreendimento difícil de conquistar. Por um lado, porque nos anos após a proclamação das repúblicas, cada lado precisou enfrentar a árdua tarefa de unificar a própria metade do país, uma vez que, como visto anteriormente, as múltiplas divisões regionais e tribais ainda eram muito fortes no Norte e no Sul. Por outro, porque cada um dos dois Iêmens desenvolveu regimes políticos com orientações distintas. Nas palavras de Day (2012, p. 41-60), Depois da queda do imanato zaidita do Norte e a deposição dos britânicos no Sul, um espírito populista de nacionalismo no Iêmen se espalhou pelo país. Infelizmente, quando os novos governos republicanos se estabeleceram em fundações mais sólidas, a República Árabe do Iêmen do Norte e a República Democrática Popular do Iêmen do Sul seguiram rumos distintos devido a políticas sociais e econômicas rivais (...) enquanto no Sul, a República buscava eliminar o tribalismo e alterar as antigas divisões territoriais regionais, no Norte os limites dos distritos provinciais e locais mal mudaram. Ao passo que o Sul, um Estado secular, tornou-se cada vez mais urbanizado, no Norte a população era majoritariamente rural e mais apegada aos valores muçulmanos tradicionais, vendo com maus olhos os vizinhos “ateus” no Sul. Ademais, enquanto o governo socialista do Sul promovia políticas voltadas à educação que dobraram a taxa de alfabetização em uma década, no Norte a população era massivamente analfabeta (VISENTINI ET AL, 2013). As diferenças levaram à eclosão de uma breve guerra entre o Norte e o Sul em 1972, em virtude da formação de guerrilhas que se opunham à unificação e recebiam apoio estrangeiro em ambos os lados. O conflito se limitou a região fronteiriça de ambos os países. A continuidade das discordâncias levaria a outra guerra na fronteira, em 1979. Em ambos os casos, as hostilidades foram terminadas com um acordo superficial que previa a unidade dos dois lados (ETHEREDGE, 2011; HALLIDAY, 1990). Os altos e baixos na relação entre o Norte do Sul desde a eclosão da revolução no Norte até o início das conversações a respeito da unificação são bem sumarizados por Fred Halliday, que os divide em seis fases principais: “(...) A primeira fase, começando em 1967, foi de entusiasmo inicial por uma cooperação mais próxima em ambos os lados (...). A segunda fase, de 1970 a 1972, foi de crescente tensão entre 61 os dois Estados, levando à primeira guerra inter-iemenita (...). Na terceira fase, de 1972 a 1977, negociações entre os dois Estados a respeito da unidade continuaram. No entanto, pouco progresso substancial foi feito, e essa fase terminou abruptamente – com o assassinato do presidente da República Árabe do Iêmen (...). Na fase quatro, durando de 1977 a 1979, houve crescimento da tensão entre os dois Estados, juntamente com a deterioração da relação entre Aden e a Arábia Saudita: esse período culminou na segunda guerra inter-iemenita (...). Na fase cinco, de 1979 a 1986, houve, inicialmente, apoio da RDPI a forças de guerrilha operando dentro da RAI. Mas estas foram derrotadas em 1982, e negociações interestatais tornaram-se mais importantes (...). O término das atividades de guerrilha dentro da RAI em 1982 foi acompanhado pela (...) proclamação de uma proposta de Constituição de um Estado unificado. A crise de janeiro de 1986, porém, abriu uma nova sexta fase com novas áreas de conflito entre os dois Estados” (HALLIDAY, 1990, p. 110) . A ascensão de Mikhail Gorbachev na segunda metade da década de 1980 e o início da abertura econômica e política soviética com as políticas da glasnost (abertura política) e da perestroika (reestruturação econômica), tiveram grande impacto no Iêmen do Sul, assim como no Afeganistão, conforme mencionado na seção 2.1.3. Aos poucos, o governo em Moscou começava a sugerir que a República Democrática Popular do Iêmen observasse como a perestroika estava funcionando na União Soviética para aplicar as lições que coubessem ao Iêmen. Com mudanças internas tão profundas, parecia improvável que a URSS seguisse apoiando Aden por mais muito tempo (BREHONY, 2011). Ao final da década, Gorbachev decidiria abandonar seu apoio aos governos de diversos países da Europa Oriental, alguns dos quais, como a Alemanha Oriental, eram as principais fontes de assistência do Iêmen do Sul (ETHEREDGE, 2011). Quando a ajuda desses países e da União Soviética começou a ficar escassa, as lideranças do Partido Socialista Iemenita logo perceberam que, caso quisessem que seu regime sobrevivesse, deveriam implementar reformas drásticas ou voltar a buscar a unidade com o Norte como último recurso para evitar que o governo quebrasse (BREHONY, 2011; JOHNSEN, 2014). Em 1988, o PSI já montara comitês especiais para estudarem a questão da unificação, sinalizando que a segunda opção seria considerada. Nessa época, as tensões na fronteira entre o Norte e o Sul agravaram-se em virtude, especialmente, das atividades de exploração de petróleo por soviéticos e por companhias petrolíferas ocidentais nas fronteiras não muito bem demarcadas entre Marib, no Sul, e Shabwa, no Norte. A descoberta de petróleo e gás natural nessa região, cujos limites ainda estavam em disputa entre os dois países, foi, juntamente com a queda do apoio financeiro recebido pelo Sul, um dos fatores mais importantes que levou os dois países à mesa de negociação para discutir uma unificação. Ainda, havia grandes suspeitas sobre a existência de promissores campos de petróleo em Hadramaut, que ficava sob jurisdição da RDPI. Assim, ao passo que o Sul via a unificação com o Norte como um meio para não precisar declarar 62 bancarrota, o Norte via vantagens na exploração conjunta de petróleo nas novas áreas descobertas que teria de disputar com o Sul (ETHEREDGE, 2011; BREHONY, 2011). Ao longo de 1988 e 1989, as lideranças da RAI e da RDPI encontraram-se para negociar acordos de unificação. As etapas finais para concretizar a unificação começaram com a primeira reunião da Comissão Conjunta para uma Organização Política Unificada, em outubro de 1989, e a unificação foi decidida pelos dois partidos no poder em cada país. Os termos finais dos acordos de unificação pediam pela fusão total dos dois Estados e a criação de um novo sistema político baseado em uma democracia multipartidária. Sanaa foi escolhida para ser a capital política e Ali Abdullah Saleh para ser presidente interino, em virtude, principalmente, de a população do Norte ser muito maior – mas também graças à enorme habilidade política de Saleh –, enquanto Aden permaneceria sendo o centro econômico e Ali Salim al-Bid, que se tornara presidente do Iêmen do Sul em 1990, seria vice-presidente. A unificação ocorreu em 22 de maio de 1990, quando uma nova Constituição foi declarada, formando a República do Iêmen. A nova Constituição previa que novas eleições deveriam ocorrer para eleger a legislatura nacional em novembro de 1992. Os postos deveriam ser divididos igualmente entre os dois partidos – o CGP, de Saleh, e o PSI, de alBid. Apesar de algumas unidades de soldados do Norte se moverem para o Sul e vice-versa, as Forças Armadas, na prática, não foram unificadas como as demais instituições, permanecendo separadas conforme as divisões anteriores (ETHEREDGE, 2011; BREHONY, 2011; VISENTINI ET AL, 2013; DAY, 2012). A unificação encontrou forte oposição por parte de islâmicos zaiditas no Norte e setores da esquerda no Sul, mas, de forma geral, foi bem-vinda pela maioria da população. Saleh e al-Bid discursavam que a unidade nacional era o destino do povo iemenita que compartilhava origens comuns, sempre evocando as revoluções de 1962 e 1963. Grandes expectativas públicas de prosperidade futura foram geradas devido, especialmente, ao novo potencial petrolífero descoberto na região de Hadramaut. Narrativas de uma história antiga comum da época dos impérios foram retomadas e propagadas pelas lideranças do Norte e do Sul, e influenciaram de tal modo a sociedade – em especial a população mais jovem – que, em 1990, o cidadão iemenita comum provavelmente rejeitaria qualquer insinuação de que já haviam existido diferenças regionais significativas entre seu povo (BREHONY, 2011; DAY, 2012). Tão logo foi formado o novo Estado, uma crise econômica severa e sem precedentes comprometeu sua consolidação imediata. Uma das causas principais da crise foi a posição da 63 nova república iemenita na Guerra do Golfo (1990-1991): acreditando que a solução para a agressão do Iraque contra o Kuwait devesse ser diplomaticamente encontrada entre os países árabes, o Iêmen recusou-se a apoiar a coalizão militar liderada pela Arábia Saudita e pelos Estados Unidos. Isso levou a Arábia Saudita a expulsar os milhares de trabalhadores iemenitas que há anos vinham trabalhando nas petromonarquias, e cujas remessas eram responsáveis por grande parte do Produto Interno Bruto (PIB) do Iêmen. Além disso, cortou toda a ajuda financeira que fornecia ao Iêmen, no que foi seguida por outros Estados árabes petrolíferos. O PIB iemenita caiu drasticamente em questão de meses, e a situação foi agravada com altas taxas de inflação e desemprego, bem como com o aumento do déficit orçamentário (ETHEREDGE, 2011; VISENTINI ET AL, 2013). A crise econômica, entretanto, não foi o único fator a abalar o jovem Estado iemenita. Sinais de crise e violência política começaram a se mostrar já no ano da unificação, sinalizando que a união entre os dois Iêmens não colocaria um ponto final no problema de disputas políticas que ambas as repúblicas enfrentavam anteriormente. Nas palavras de Gregory Johnsen (2014, p. 21), “quase tão logo eles [Saleh e al-Bid] anunciaram o novo e unificado Iêmen, ambos começaram a pensar em maneiras de puxar o tapete do outro”. No ano de 1994, todos esses elementos somados a outros novos eventos levariam à eclosão da primeira guerra entre os lados Norte e Sul do Iêmen. O jovem Estado iemenita, pouco após sua formação, já demonstrava seus primeiros sinais de fragilidade – os quais, porém, haviam estado presentes desde o momento da unificação, e que já existiam dentro mesmo dos próprios Estados antigos que foram fundidos. Isso será abordado no próximo capítulo. 64 4 A CRISE DOS ESTADOS NO PÓS-GUERRA FRIA O desmantelamento da União Soviética no final da Guerra Fria causou impactos no mundo inteiro. Esses impactos foram especialmente sentidos nos países que eram dependentes da ajuda soviética, tanto militar quanto financeira. Ambas as regiões aqui estudadas sofreram as consequências desse evento histórico. A instabilidade que permeou os Estados no Iêmen e no Afeganistão quase imediatamente no pós-Guerra Fria fez com que estudos sobre o provável colapso desses Estados começassem a inundar o meio acadêmico. Eric Hobsbawm, ao descrever esse período, afirma que as crises ocorridas em diversas nações não se encaixavam mais nos conceitos clássicos de “guerra”, fossem elas civis ou internacionais, e que pareciam ser situações de colapso e desintegração nacionais – mesmo que os motivos e os grupos envolvidos, por vezes, não fossem ainda bem conhecidos (HOBSBAWM, 2012, p. 539). No começo do século XXI, a suposta nova ameaça dos Estados falidos passaria a ser propagada pelo Ocidente, em especial pelos Estados Unidos, e tanto o Afeganistão quanto o novo Estado do Iêmen passariam a figurar nas listas de Estados nos quais dever-se-ia prestar atenção dada a possibilidade de colapso. O ano de 1989 foi simbólico no Afeganistão, uma vez que foi marcado pela retirada das tropas soviéticas que apoiavam o governo do Partido Democrático do Povo Afegão desde 1979. O desengajamento soviético em virtude do grande gasto que essa intervenção causara à Moscou exigia que as instituições afegãs, em especial as Forças Armadas, adquirissem mais autonomia. Tão logo as forças soviéticas saíram de Cabul, instaurou-se uma disputa entre os quadros republicanos remanescentes do governo e os diversos grupos que haviam emergido como opções contrarrevolucionárias. Todas essas forças previam a queda iminente de Najibullah e um consequente vácuo de poder que gostariam de preencher, o que, apesar desse contexto, só ocorreu depois de 1992. A partir daí as disputas intensificaram-se, fazendo a comunidade internacional ter poucas esperanças de que o Estado afegão poderia sobreviver. O enfraquecimento da União Soviética também levou à drástica diminuição da ajuda conferida ao Iêmen do Sul. A unificação entre o Norte e o Sul do Iêmen em 1990 foi praticamente uma consequência deste fenômeno, uma vez que o Estado socialista do Sul provavelmente quebraria sem a unificação com o Norte. As diferenças regionais e políticas históricas desse território não demoraram a se manifestar, e o novo Estado unificado logo se veria dividido de novo em disputas entre os dois lados. O fim da guerra civil de 1994, não significou, porém, a estabilização política do país: na verdade, o fim das agressões resultou em uma 65 preponderância definitiva das forças do Norte, fazendo com que o ímpeto separatista permanecesse vivo no Sul. O século XXI seria palco da ascensão de novos grupos em cada uma das partes e da intensificação dos desafios postos ao modelo de Estado tanto no Iêmen quanto no Afeganistão, principalmente após o início da Guerra ao Terror levada a cabo pelos Estados Unidos da América. Esse capítulo, portanto, apresentará essas evoluções supracitadas, a começar pelo período do pós-Guerra Fria que dá continuidade ao capítulo anterior, adentrando nos anos 2000 e explicando que desafios se desenvolveram no novo século e como se colocam nos dias atuais. Em um primeiro momento, será exposta a trajetória do Estado afegão, para depois ser explicado o curso seguido pelo jovem Estado iemenita. O capítulo buscará mostrar que as semelhanças entre ambas as regiões, demonstradas no capítulo anterior, continuaram existindo no período mais recente, mesmo que com diferentes intensidades, sendo tanto o Iêmen quanto o Afeganistão desafiados pelo sectarismo, pela insurgência de um ou mais grupos domésticos ou transnacionais, e pelo alto grau de ingerência externa, tanto financeira quanto, especialmente, militar. 4.1 Sectarismo, insurgência e ingerência externa: o caso do Afeganistão O seguinte trecho do trabalho de Barnett Rubin (2002) é bastante elucidativo para começar a explicar os efeitos sentidos pelo Estado afegão com a retirada soviética e o final da Guerra Fria: O emir Abdul Rahman Khan criou o Estado moderno do Afeganistão com armas e dinheiro fornecidos pelos britânicos que tinham suas próprias motivações estratégicas. Potências estrangeiras cujos principais interesses estratégicos centravam-se na Europa também forneceram armas, dinheiro e treinamento a Daud, Taraki, Amin, Karmal, e Najibullah, habilitando-os a perseguir projetos domésticos que fossem de encontro com os objetivos estratégicos de seus fornecedores. Quando a União Soviética quebrou ao final de 1991, também se desmanchou o império russo na Ásia. O conflito estratégico bipolar terminara, e o mapa imperialista europeu do sudoeste da Ásia foi redesenhado. A ajuda externa ao Afeganistão dos poderes competidores euro-atlânticos cessou, e, junto com ela, o projeto ancestral de construir um Estado tampão financiado pelo exterior e liderado pelos pashtuns. Tanto os EUA quanto a agora extinta URSS suspenderam a ajuda militar a seus clientes afegãos no fim de 1991. (...) ambos anunciaram o apoio à formação de um governo interino mediado pela ONU que poderia substituir Najibullah. Tão logo a ajuda cessou, as milícias do Norte, que não mais precisavam de Najibullah como intermediário com os doadores soviéticos, rebelaram-se contra os comandantes pashtuns de Cabul e se aliaram com os mujahidin do Norte (RUBIN, 2002, p. 265). O plano da ONU para a formação de um governo interino, que era apoiado internacionalmente, parecia cada vez mais distante de se executar, em virtude, principalmente, da 66 contrariedade dos principais líderes mujahidin. A saída de Najibullah parecia ser o único caminho possível para que alguma transição pudesse ser realizada no Afeganistão. A desintegração da União Soviética no final de 1991 cessou o envio de ajuda do qual o governo em Cabul dependia para manter sua existência. Desde agosto, Washington e Moscou já haviam negociado acordos comprometendo-se com o fim do envio de ajuda para seus respectivos clientes no Afeganistão a partir do primeiro dia de 1992; quando este dia chegou, porém, a própria URSS já estava extinta (RUBIN, 2002; MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). Vendo-se sem os recursos que redistribuía para os comandantes regionais, Najibullah apelou para a ferramenta clássica dos governantes afegãos para tentar se manter no poder: o fomento da segmentação social por meio da manipulação das etnias. O controle das relações com os comandantes do Norte do país era essencial para que o Estado afegão continuasse existindo, uma vez que eram protegidos por milícias que, caso se voltassem contra o governo, poderiam causar severas perdas. Najibullah tentou nomear comandantes pashtuns nas guarnições do Norte para garantir sua influência, mas sua estratégia não funcionou. O uzbeque Abdul Rashid Dostum, que tinha uma milícia de 120 mil homens, opôs-se a Najibullah e, em 18 de março, tomou a região de Mazar-i Sharif. No mesmo dia, Najibullah anunciou que renunciaria e entregaria seu poder tão logo um governo interino fosse negociado pela ONU (RUBIN, 2002; MALEY, 2002). A perspectiva de saída do presidente acirrou os ânimos entre os grupos que tinham potencial para tomar o poder em Cabul. Nem todas as lideranças formadas ao longo do período soviético, porém, tinham esse potencial. É importante mencionar aqui que, após a retirada dos soldados soviéticos e a consequente diminuição da pressão das milícias sobre a zona rural, o comércio e a agricultura renasceram em muitas regiões do país. Porém, “muito dessa produção renovada tomou a forma de cultivo de ópio, refinamento de heroína e contrabando; esses empreendimentos eram organizados por (...) partidos mujahidin” (RUBIN, 2002, p. 183). A economia do ópio ajudou a enriquecer as unidades mais organizadas, que, com a entrada dessas rendas, tornaram-se ainda mais poderosas. A principal disputa orbitou entre Ahmad Massoud, que comandava os assuntos militares do partido Jamiat de Rabbani e era seguido por tajiques e antigos apoiadores do Parcham; e Gulbuddin Hekmatyar, que comandava o Hizb-i Islami e era seguido por pashtuns e antigos apoiadores do Khalq (RUBIN, 2002; MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). 67 Najibullah retirou-se em 15 de abril de 1992, e as tensões em Cabul aumentaram à medida em que as forças de Massoud, apoiadas pelos homens de Dostum, fortaleciam-se na região ao redor da capital e as forças de Hekmatyar também se aproximavam. Lideranças dos principais partidos sunitas já se reuniam em Peshawar, no Paquistão, para negociar a transição, mas Massoud, com medo da tomada da cidade pelo Hizb-i Islami, ordenou que suas forças tomassem o aeroporto de Cabul. Najibullah nem sequer conseguiu sair de Cabul, buscando refúgio no escritório da ONU. No dia 26 de abril, os Acordos de Peshawar estabeleceram uma estrutura para o período de transição e transferência para um governo mujahidin (RUBIN, 2002; MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). Os acordos de Peshawar definiram que Sibghatullah Mojaddedi serviria como presidente por um período de dois meses, e seria substituído por Rabbani nos próximos quatro. Um conselho seria instituído para eleger um governo interino por 18 meses, período ao final do qual eleições deveriam ocorrer. A Massoud foi oferecida a posição de ministro da defesa, e a Hekmatyar a posição de primeiro-ministro, a qual não aceitou. O governo de Mojaddidi foi instituído no dia 28 de abril. Ao final do período inicial de seis meses, quando da reunião do conselho para eleger a nova presidência, Rabbani manipulou votos suficientes para ser eleito, ganhando o título de presidente interino do Afeganistão até junho de 1994 (MALEY, 2002). O Estado, porém, encontrava-se em frangalhos, e nenhum governo interino aparentemente conseguiria oferecer solução para o problema de desordem política. O Estado quase não tinha fontes de renda, uma vez que as ajudas externas haviam cessado e as alfândegas estavam quase todas sob controles de comandantes regionais. A fragmentação das Forças Armadas, cujos elementos dissidentes buscaram alianças com partidos e líderes de todos os espectros ideológicos, impossibilitava o governo de monopolizar os meios de violência e, portanto, garantir poder institucional para além das simples posições ministeriais. As facções armadas emergiam, nesse contexto, como principal forma de ação coletiva, e a cristalização da divisão entre esses novos atores nacionais tornava difícil a reconstrução social e estatal. Seria um desafio para qualquer governo compensar a dissolução do Estado (RUBIN, 2002; MALEY, 2002). Sob o governo de Rabbani, o Hizb-i Islami começou a lançar foguetes contra Cabul, levando o presidente a rotular Hekmatyar como um terrorista. Rabbani, porém, que inicialmente contra-atacava as forças do Hizb, passou a considerar que alguma acomodação com este partido seria preferível à continuidade das hostilidades. Em 7 de maio de 1993, portanto, o Acordo de 68 Islamabad reiterou a posição de Rabbani como presidente e tentou insistir novamente na colocação de Hekmatyar como primeiro-ministro. O Acordo, porém, não previa nenhuma medida de retirada das forças do Hizb dos arredores de Cabul, e, em abril, mísseis já estavam sendo lançados novamente para enfraquecer Massoud e Rabbani (RUBIN, 2002; MALEY, 2002). Enquanto Cabul era, desde 1989, e em especial desde 1992, palco de ataques praticamente diários, o restante do país, porém, permanecia em relativa estabilidade. A fragmentação das Forças Armadas afegãs permitira a ascensão de novos focos de poder regionais, sob liderança de senhores de guerra que vinham tanto dos quadros mujahidin quanto das redes de influência do antigo governo. Esses comandantes locais utilizavam-se de taxações como pedágios – em sua maioria, não regulamentados – para adquirirem renda e sustentarem suas redes de poder (MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). As forças de Dostum operavam a partir de Mazar-i Sharif, promovendo estabilidade na região do Norte do país. Essa estabilidade fez com que consulados estrangeiros e escritórios das Nações Unidas migrassem de Cabul para esta região – sobre a qual Cabul não exercia nenhuma soberania de fato. A região nordeste – com exceção de Kunduz e Imam Shabib, controladas por pashtuns – era controlada por forças do Jamiat, que haviam sido suficientemente consolidadas por Massoud para operarem com eficácia mesmo que ele estivesse em Cabul. A leste, nas regiões de fronteira com o Paquistão, comandantes mujahidin controlavam a região de Paktia e Jalalabad, que continuaria sendo um importante centro de treinamento mujahidin. A região central de Hazarajat era controlada pelo Hisb-e-Wadhat, onde a etnia dos hazaras teve mais autonomia e liberdade do que nunca antes na história do Afeganistão – e isso duraria até que as forças de Hekmatyar começassem se aproximar da região em 1993. Herat, próxima ao Irã, era comandada pelo tajique Ismail Khan, que não precisou travar nenhuma batalha para exercer seu controle e que conseguiu promover um significativo renascimento econômico na região. A região Sul, de maioria pashtun, permaneceria estável também durante o primeiro ano de transição pósNajibullah, para a partir de 1993 ser disputada entre os exércitos dos hazara e de Hekmatyar (MARSDEN, 2009; MALEY, 2002; RUBIN, 2002). De acordo com Willian Maley, a razão pela qual a capital Cabul era o maior foco de instabilidade era que, “onde o Estado colapsou, o controle de símbolos do Estado pode ser tudo que os combatentes podem realisticamente esperar atingir” (MALEY, 2002, p.201). Dominar a capital era, portanto, simbólico para aqueles que desejassem obter poder e tentar retomar o 69 controle territorial do Afeganistão. Em janeiro de 1994, um novo golpe atingiu Cabul: Dostum, que temia o fortalecimento crescente de Massoud e Rabbani, mudou de lado e associou-se com Hekmatyar, lançando bombardeios massivos contra a capital e demonstrando a extrema fragilidade das alianças estabelecidas entre as lideranças mujahidin. Esses novos ataques geraram um novo fluxo de refugiados e tornaram necessário o assentamento de novos campos nos arredores de Jalalabad para pessoas internamente desalojadas (MCCAULEY, 2002; MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). As forças de Massoud, porém, resistiram, e conseguiram manter o controle sobre Cabul. O Paquistão, que até então tinha apoiado o Hizb de Hekmatyar, passou a procurar por outros meios de estabelecer um bloco islâmico sob sua influência no Afeganistão. Esse meio surgiu ainda em 1994: um grupo de estudantes da religião educados nas escolas corânicas (madrasas) do Paquistão – que haviam sido criadas em grandes quantidades no período soviético em que refugiados abundavam nas fronteiras paquistanesas –, agrupados sob o nome de Talibãs34, emergiu como uma alternativa (MARSDEN, 2009; MALEY, 2002; MCCAULEY, 2002). 4.1.1 A queda de Rabbani e a ascensão do Talibã O grupo Talibã surgiu como um movimento islâmico determinadamente contrário à modernização. Os estudantes foram inicialmente agrupados e liderados pelo carismático mulá35 Mohammad Omar, que discursava defendendo um movimento religioso de juventude que "limparia” o Afeganistão da corrupção e da “depravação” dos comandantes regionais e mujahidin. Com o fracasso dos partidos mujahidin em garantirem segurança para o povo afegão, o Talibã rapidamente conquistou apoio popular. O caos gerado pelas intensas divisões regionais e partidárias fizeram com que a população se sentisse disposta a aceitar qualquer tipo de disciplina imposta se a ordem fosse retomada. Além disso, a população pashtun via o Talibã, predominantemente pashtun, como uma possibilidade de retomar o domínio da etnia no país. O Paquistão e a Arábia Saudita passaram a patrocinar o grupo, oferecendo dinheiro, armas e treinamento36. O serviço de inteligência paquistanês também tentava vender o Talibã para seus 34 Talib é uma palavra árabe para estudante. Mulás são professores ou pregadores religiosos que pertencem aos ulemás (DEMANT, 2004). 36 Um relatório de 2001 da Human Rights Watch detalhava ainda mais o nível da ajuda provida pelo Paquistão aos militantes talibãs: “arrecadação de fundos para o Talibã, patrocínio às operações do Talibã, prover apoio diplomático como emissários dos talibãs no exterior, treinamento dos combatentes talibãs, recrutamento de homens habilidosos 35 70 aliados estadunidenses como o único ator capaz de trazer estabilidade e servir a seus interesses na região. O apoio recebido fortaleceu o grupo, que intensificou seu discurso de apelo pelo fim da guerra civil e, em 1995, passou a avançar em direção a Cabul (MARSDEN, 2009; MALEY, 2002; MCCAULEY, 2002; SAIKAL, 2001; VISENTINI, 2014; IHS 2016). Ao final de 1994, o Talibã já tinha recrutado cerca de 12 mil jovens afegãos e paquistaneses (MCCAULEY, 2002). O Talibã muito rapidamente deixou de ser apenas uma organização de jovens estudantes de religião, e tornou-se uma verdadeira organização militar (DAVIS, 2001). Em novembro de 1994, o grupo conquistou Kandahar e diversas outras províncias do sul do Afeganistão – nesse momento, mulá Omar declarou-se emir do Afeganistão. Apesar de ter uma visão bastante radical e fundamentalista do Islã, com forte ênfase em questões sociais como comportamento e vestimenta, e desejar impor essa visão à totalidade da população afegã, nesse primeiro momento de conquista, sua presença foi relativamente suave. Talvez isso tenha sido em virtude de as regiões ao sul serem majoritariamente pashtuns, assim como os talibãs. O fato é que esses povos viveram nos primeiros anos sob domínio do Talibã com relativa liberdade, contanto que aceitassem esse domínio. Em 1995, porém, ao tomar a região de Herat, a presença do Talibã sentiu-se de maneira mais dura, com a imediata proibição do trabalho a mulheres e da educação a meninas. Em setembro de 1996, o Talibã estendeu seu domínio também a Jalalabad, para, logo em seguida, tentar conquistar Cabul (MARSDEN, 2009; MCCAULEY, 2002). A queda de Rabbani não demorou, visto que os talibãs eram um instrumento militar muito forte devido à ajuda paquistanesa. Ao contrário do Talibã, as forças de Massoud não tinham nenhum apoiador estrangeiro poderoso, visto que as grandes potências tinham desviado sua atenção do Afeganistão após a derrota do regime soviético. Percebendo que não seria possível vencer o avanço talibã, Massoud ordenou que suas forças saíssem de Cabul, e, em 27 de setembro, o Talibã oficialmente tomou o poder e anunciou a criação do Emirado Islâmico do Afeganistão (MALEY, 2002; MARSDEN, 2009; IHS 2016). A esperança de que o Talibã iria apaziguar as disputas existentes no país logo desapareceram. Nos primeiros momentos de seu governo, o Talibã já deu uma pequena amostra da brutalidade que caracterizaria seu período no poder. Na manhã do dia 27, o ex-presidente Najibullah e seu irmão foram encontrados enforcados37 em uma praça no centro de Cabul. O para servir nos exércitos talibãs, planejamento e direção de ofensivas, provimento de embarcações de munições e combustível e, em muitas ocasiões, suporte logístico direto em combate” (HUMAN RIGHTS WATCH, 2001). 37 Ambos foram castrados e arrastados até a morte por carros, antes de serem colocados enforcados em praça pública. 71 Talibã mostrava, assim, que estava disposto a lidar brutalmente com aqueles que não reconhecessem seu domínio, em especial as minorias não-pashtuns. Apesar desse espetáculo, pouca atenção internacional foi dada. O governo Talibã foi reconhecido apenas pela Arábia Saudita, pelo Paquistão e pelos Emirados Árabes Unidos, mas o não-reconhecimento por parte da comunidade internacional38 foi, por muito tempo, a única reação à ascensão dos Talibãs (MARSDEN, 2009; MALEY, 2002; VISENTINI, 2014; MCCAULEY, 2002; VISENTINI, 2014). Os objetivos do Talibã eram limitados e são bem sumarizados por Marsden (2009, p. 89): Como Abdul Rahman no final do século XIX, o objetivo primário do Talibã era alcançar a total conquista do país e garantir segurança dentro dos territórios conquistados. De igual importância era a criação de um Estado Islâmico baseado na lei da sharia39, exigindo que a população se comportasse e se vestisse apropriadamente em acordo com suas crenças altamente conservadoras (...) eles não viam a diminuição da pobreza e da precariedade da saúde como parte de suas metas. Tampouco fez o regime do Talibã algum esforço significativo no sentido de reconstruir o Estado afegão. O Estado não tinha um papel central na abordagem do Talibã para dominar, que precisava apenas de uma rádio para propagar suas ideias e de uma polícia religiosa para afirmalas. A diferença entre o Talibã enquanto um movimento político e enquanto um Estado islâmico era difícil de perceber (MALEY, 2002). O governo não tinha nenhum plano político concreto e exequível e suas ações em nada condiziam com o considerado aceitável no mundo modernizado e globalizado em que se inseria. Tamanha, porém, era a destruição a que tinha sido submetida a sociedade afegã por tanto tempo, que o regime sobreviveu por mais de cinco anos (VISENTINI, 2014). Nem mesmo o Talibã, porém, mostrou-se capaz de rapidamente dominar a totalidade do território afegão, um empreendimento que se provara difícil ao longo de toda a história da nação. Embora estime-se que tenham chegado a conquistar 90% do território, algumas regiões foram tomadas apenas nos anos 2000. Anos de conflito com senhores de guerras locais e mujahidins pelo controle da região de vales de Shomali, ao norte de Cabul, levaram à destruição da agricultura e, consequentemente, da economia local. Sem controle daa moeda, o Talibã passou a 38 Com relação a isso, cabe mencionar que a ONU optou por preservar o governo Rabbani sob controle do assento do Afeganistão da Assembleia Geral, um gesto simbólico que representava que o Talibã era visto como um governo ilegítimo pela comunidade internacional. 39 Mais precisamente, na interpretação Deobandi da lei da sharia (IHS 2016). 72 presidir uma economia criminosa ao se envolver com o comércio de drogas, em especial o ópio 40, e com atividades de terrorismo internacional, angariando o apoio do bilionário saudita Osama bin Laden – que, por sua vez, precisou do refúgio no Afeganistão após ser expulso do Sudão, de onde comandava as atividades de sua organização, a al-Qaeda (VISENTINI, 2014; RUNION, 2007; MCCAULEY, 2002; MALEY, 2002). O tratamento dado às mulheres e meninas pelo regime talibã gerou protestos e declarações de repúdio por parte de movimentos feministas no mundo todo, e as perseguições – e massacres41 – às minorias étnicas (não-pashtuns) e religiosas (xiitas) alarmava organizações defensoras dos direitos humanos e a própria ONU (MARSDEN, 2009). Por muito tempo, porém, pouco foi feito pela comunidade internacional de Estados para frear o avanço do Talibã – talvez porque o Talibã, assim como a maioria dos países ocidentais, também se opunha ao regime xiita do Irã. Os Estados Unidos começaram novamente a prestar atenção no Afeganistão em 1998, após os ataques às embaixadas estadunidenses de Nairobi, no Quênia, e Dar es Salaam, na Tanzânia, comandados pela al-Qaeda. O governo estadunidense imediatamente exigiu que o governo do Talibã entregasse Osama bin Laden. O Talibã, porém, que passava por um processo de radicalização e que ainda precisava de ajuda financeira, aproximara-se significativamente de bin Laden, e optou por protege-lo. Conquistou, assim, a inimizade da maior superpotência da época. No mesmo ano, o presidente estadunidense Bill Clinton autorizou que os centros de treinamento militar comandados por bin Laden em Jalalabad fossem atacados por mísseis cruzadores Tomahawk, mas Osama saiu ileso. No ano seguinte, Clinton começaria a impor uma série de sanções ao regime talibã. O conselho de Segurança da ONU também ordenou que bin Laden fosse entregue para ser efetivamente julgado, mas o Talibã não cedeu. Os EUA, por fim, esperavam que o aliado Paquistão poderia servir como mediador para moderar o Talibã. A gota d’água, porém, foi o 11 de setembro (MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). 40 Sob o governo do Talibã, o Afeganistão se tornou o maior produtor mundial de ópio. Isso não significa que o ópio era a maior cultura cultivada no país: a produção de cereal, por exemplo, era mais de dez vezes maior que a de ópio. A grande questão sobre o ópio, porém, era o fato de ser um produto ilegal que constituía fonte crucial de lucros para o Talibã – 97% das lavouras de ópio eram controladas pelo regime, que incentivava os produtores distribuindo fertilizantes para as mudas. Os próprios produtores beneficiavam-se disso de alguma maneira, visto que tiravam o seu sustento desta atividade, e ficaram severamente ressentidos quando o Talibã baniu o cultivo das sementes nos anos 2000 (MALEY, 2002). 41 O massacre de três dias iniciado em 8 de agosto de 1998 em Mazar-i Sharif foi um dos mais conhecidos e denunciados internacionalmente (MALEY, 2002). Mais informações em HUMAN RIGHTS WATCH, 1998. 73 4.1.2 A Guerra ao Terror no Afeganistão No dia 11 de setembro de 2001, o mundo foi surpreendido pelo ataque às torres gêmeas do World Trade Center em Nova Iorque, nos Estados Unidos. As torres foram atingidas por dois aviões sequestrados por militantes da al-Qaeda, em uma operação supostamente comandada por Osama bin Laden, que atingiu também o Pentágono e que pretendia atingir a Casa Branca – alvo, porém, que os demais aviões sequestrados falharam em alcançar. Dois dias antes, no dia 9, Ahmad Massoud fora assassinado por um ataque surpresa de dois falsos jornalistas que o procuraram para uma entrevista, em um plano que não demorou a ser ligado também a bin Laden – sendo, talvez, um ato de reciprocidade em “agradecimento” ao abrigo dado pelo Talibã, a quem Massoud fortemente se opunha. Os ataques à Nova Iorque e Washington, porém, ofuscaram a morte de Massoud: era a primeira vez que a superpotência mundial era atingida no continente (MALEY, 2002; VISENTINI, 2014). Os EUA já vinham há algum tempo preocupados com as evidências de que o Afeganistão vinha sendo usado como base para treinamento militar de elementos radicais islamitas do mundo todo, em especial na região de Jalalabad. É verdade, também, que os EUA tinham interesses estratégicos na região, e estabelecer uma presença militar permanente no Afeganistão ia ao encontro desses interesses, uma vez que poderia servir como forma de cercar o Irã de bases estadunidenses – do outro lado, com bases também nas petromonarquias do Golfo – e de conter o avanço da China na região da Ásia Central, cheia de novas repúblicas ricas em petróleo e gás natural. Além disso, havia o interesse em construir um gasoduto do Uzbequistão ao Paquistão, que passasse pelo Afeganistão, e a existência de um governo amigável em Cabul se mostraria útil também nesse sentido (MARSDEN, 2009; MONIZ BANDEIRA, 2014). Não foi difícil convencer a opinião pública de que o Afeganistão deveria ser o primeiro alvo de uma Guerra ao Terror, ou seja, de uma guerra contra o terrorismo, uma vez que o regime talibã, controverso por si só, dava abrigo a Osama bin Laden, líder da al-Qaeda, e que era um território onde seus militantes eram treinados. Na esteira desse discurso contra o terrorismo, passava a caber também um discurso que defendia a intervenção militar no Afeganistão como uma “cruzada mural no sentido em que buscava depor um regime cujos valores se criticava e estabelecer, em seu lugar, um governo democraticamente eleito” (MARSDEN, 2009, p. 95; VISENTINI, 2014). 74 Um ultimato foi dado ao Talibã com relação à entrega de bin Laden, mas, como das outras vezes, isso não adiantou. Assim, os Estados Unidos, baseados nas resoluções 1368 (2001)42 e 1373 (2001)43 do Conselho de Segurança, e no artigo 5144 do capítulo 7 da Carta da ONU, decidiu por atacar o Afeganistão, justificando que era um ato de autodefesa em resposta ao ataque sofrido em seu território, que fora planejado por quadros abrigados pelo regime afegão (UNITED NATIONS 2001a; UNITED NATIONS 2001b; UNITED NATIONS, 1945). Também alegou que intervir no Afeganistão era aceitável para retirar do poder um governo que falhava em cumprir com obrigações internacionais de combate ao terrorismo (MARSDEN, 2009). No dia 7 de outubro de 2001, os primeiros ataques aéreos estadunidenses atingiram posições do Talibã e da al-Qaeda no Afeganistão. A operação ficou conhecida como Operação Liberdade Duradoura. A ideia inicial era que a campanha durasse durante o restante de 2001 e 2002 (MALEY, 2002). Os tomadores de decisão estadunidenses, porém, lembravam-se bem das consequências drásticas que a intervenção no Afeganistão tivera na falecida União Soviética. Para isso, buscaram aliados regionais e domésticos para tentar conduzirem uma operação mais limitada, ou seja, que consistisse no envio de um pequeno número de soldados das Forças Especiais e unidades paramilitares da CIA para coordenar seus aliados afegãos em uma campanha de bombardeio aéreo (ANDERSON, 2015; MAHNKEN, 2008). Em termos regionais, o Paquistão, cuja ajuda era necessária tanto no sentido de apoio logístico enquanto país vizinho do Afeganistão, quanto no sentido de parar a ajuda enviada ao Talibã, foi o primeiro aliado pensado. Domesticamente, os Estados Unidos buscaram angariar o apoio dos líderes da Aliança do Norte45, que lutavam desde 1996 contra o regime do Talibã (GANNON, 2004; MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). Sobre “ameaças para a paz e segurança internacionais causadas por atos terroristas”, que, dentre outras recomendações, condenava os ataques de 11 de setembro e chamava a “todos os Estados a trabalharem juntos para julgar os perpetradores, organizadores e patrocinadores de atos terroristas” e a “redobrar os esforços para prevenir ou suprimir atos terroristas” (UNITED NATIONS, 2001a). 43 Sobre o mesmo assunto da resolução 1368, que reafirmava tudo por ela proposto e adicionava novas recomendações e medidas, reforçando que “todos os Estados devem tomar as medidas necessárias para prevenir a execução de atos terroristas” (UNITED NATIONS, 2001b). 44 “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais” (UNITED NATIONS, 1945). 45 Consistia na cooperação entre as forças de Rabbani e Massoud, principalmente, mas também de outros líderes tajiques ou de outras etnias como o uzbeque Dostum e o hazara Mohaqqeq. O nome original da Aliança é Frente Islâmica Unida para a Salvação do Afeganistão. 42 75 Em novembro, o Talibã perdeu várias cidades importantes para o domínio das forças locais que apoiavam – e eram apoiadas por – os Estados Unidos. Mazar-i Sharif e outros nove distritos do Norte e Nordeste voltaram ao controle da Aliança do Norte, assim como Herat. Percebendo a potencial derrota, as forças do Talibã rapidamente fugiram de Cabul e refugiaramse na fronteira com o Paquistão, e a Aliança do Norte tomou Cabul (MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). Em dezembro, iniciou-se o Processo de Bonn, com uma conferência na cidade de Bonn, na Alemanha, na qual se pensaria em um plano internacional para a criação de uma administração interina no Afeganistão, agora que o Talibã havia saído. A ideia era que fosse representativa do povo afegão, ou seja, politicamente balanceada e multiétnica. Como esperado, nenhum representante do Talibã foi convidado. Mais do que cumprir o papel de um “acordo de paz”, os acordos pretendiam servir como guia para reestabelecer estruturas de Estado no Afeganistão, mesmo que muito primitivas. Assim, acordou-se que uma Assembleia (ou Loya Jirga, nos termos usados pelo povo afegão) ocorreria em junho de 2002 para eleger um governo de transição e fazer um rascunho de constituição (GANNON, 2004; MALEY, 2002; MARSDEN, 2009). A presidência, nesse período, seria exercida pelo pashtun Hamid Karzai, que era um grande opositor do regime talibã e que tinha grande habilidade em trabalhar com setores não-pashtun da população – e que, sob grande pressão internacional, acabaria sendo eleito presidente posteriormente, nas eleições de 2004 (MALEY, 2002). Também no mês de dezembro, outro desenvolvimento de grande importância ocorreu: a adoção, pelo Conselho de Segurança da ONU, da Resolução 1386, que autorizava o “estabelecimento por 6 meses de uma Força Internacional de Assistência para Segurança para assistir a Autoridade Interina Afegã na manutenção da segurança em Cabul e arredores” (UNITED NATIONS, 2001c, p.2). A Resolução convocava a todos os Estados membros a contribuírem com pessoal, equipamento e quaisquer outros recursos à Força, que ficou também conhecida como ISAF, devido à sigla em inglês International Security Assistance Force (VISENTINI, 2014). Mesmo com a administração interina, porém, grande parte do poder voltava, como em outros tantos momentos da história afegã, às mãos daqueles que exerciam poder no nível local antes da submissão ao Talibã. A fragmentação do poder era tanta que Karzai ficara conhecido jocosamente como “prefeito de Cabul” ou, ainda, “presidente do Cabulistão”, tendo em vista que 76 o controle que exercia era limitado praticamente apenas à capital (FREEDMAN, 2008; VISENTINI, 2014). O Talibã saíra, mas os problemas existentes durante seu regime, relativos à ausência de capacidades estatais, continuavam. Não havia um exército forte e com contingente significativo para tomar conta do território, tampouco uma força policial ou mesmo um sistema judiciário robusto para proteger a população. Karzai, como tantos outros, precisava ceder poder aos senhores tribais locais para conseguir se manter no poder. A ausência de estrutura estatal também fazia com que a comunidade internacional relutasse em ajudar financeiramente o Afeganistão, uma vez que havia poucas garantias de como a redistribuição e alocação desse dinheiro seria feita (MARSDEN, 2009). O povo afegão tampouco ficou muito satisfeito com o novo governo, em especial porque o percebiam como muito próximo aos Estados Unidos. Ao contrário do que os líderes estadunidenses haviam propagado em 2001, as ações da intervenção americana não foram apenas uma autodefesa contra o terrorismo e uma luta em prol da democracia afegã. As operações causaram inúmeras mortes de civis ao bombardearem todas as localidades em que suspeitava haver membros do Talibã. O desconhecimento da cultura afegã também levou os soldados a agirem de maneira por vezes considerada ofensiva para a população muçulmana, ao invadir lares e revistar mulheres indiscriminadamente, tratando todos os afegãos como potenciais suspeitos de atividades terroristas. Diferentemente da época da intervenção soviética, em que as forças afegãs eram as responsáveis por interrogar e prender suspeitos, agora eram os soldados americanos que desempenhavam essas tarefas, e a brutalidade com que o faziam passou a ser fortemente criticada (MARSDEN, 2009). Pouco se levava em consideração o fato de que, muitas pessoas, especialmente na área rural, ainda tinham muito medo das forças do Talibã ou da al-Qaeda ou, mesmo, dos próprios senhores de guerra mujahidin, e, portanto, não se sentissem confortáveis em cooperar com os Estados Unidos. Com a invasão realizada ao Iraque em 2003, muitos soldados foram transferidos do Afeganistão para o Iraque, pois os EUA consideravam que a situação no Afeganistão já estava mais sob controle com a saída do Talibã. Isso, porém, somado à antipatia da população aos soldados estrangeiros, levou a um novo fortalecimento dos talibãs, que passaram a realizar novos ataques. A falta de sensibilidade das operações de contraterrorismo fazia com que o Talibã se sentisse estimulado a responder na mesma altura. Nesse contexto, em 2003, as forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) assumiram o comando das operações da 77 ISAF, a qual, supostamente, deveria ter terminado suas atividades no mesmo ano, mas cujo mandato foi estendido. Sob o controle da OTAN, a ISAF expandiu também suas atividades para além de Cabul, realizando, ao longo de 2004, 2005, 2006 e 2007, operações em províncias em praticamente todas as regiões do Afeganistão – cada uma delas sob controle de um país diferente da OTAN. O objetivo estadunidense de capturar bin Laden ainda permanecia vivo (MARSDEN, 2009; NATO, 2015; STAPLETON; KEATING, 2015). Além de simplesmente expandir sua presença ao longo do território, porém, a ISAF também assumiu o compromisso de ajudar a reconstruir e treinar as Forças Nacionais de Segurança Afegãs. A ideia era que, quando as forças internacionais pudessem sair do país, as forças afegãs fossem capazes – tanto em tamanho, quanto em treinamento, quanto em equipamentos – de tomar controle de todo o território (MILLER, 2016; STAPLETON; KEATING, 2015). A ação da ISAF, era, contudo, prejudicada pela alta impopularidade que a intervenção conquistara entre a população pashtun, que passava, cada vez mais, a voltar a apoiar o Talibã – em virtude, também, das ameaças realizadas pelo grupo, que, aos poucos, retomava o controle da região de Kandahar. No Norte, porém, havia o receio de que as forças afegãs não conseguissem prover segurança suficiente para contra-atacar uma nova ascensão talibã. Durante a intervenção, a coalizão militar liderada pelos EUA tinha, no contexto de desconfiança da população, se engajado em uma campanha de desarmamento dos senhores de guerra, e isso também não contribuía para que a população sob influência deles se sentisse segura (MARSDEN, 2009). A tarefa de estabilizar o Afeganistão em pouco tempo, que tinha sido subestimada pela União Soviética já em 1979, também o fora para os Estados Unidos e a OTAN. Ficava claro que a abordagem fortemente militarizada não ajudara a eliminar a ameaça insurgente e terrorista do território, e nem unificar as regiões historicamente fragmentadas. Assim, em 2008, muita expectativa foi criada em virtude das eleições estadunidenses: se o candidato democrata, Barack Obama, fosse eleito, as esperanças corriam no sentido de uma mudança de abordagem no Afeganistão. 4.1.3 A retirada da ISAF e o renascimento da guerra Em 2009, o novo presidente eleito Barack Obama assumiu a presidência dos Estados Unidos da América, e, sabendo do descontentamento da população com relação aos soldados que 78 estavam no violento ambiente do Afeganistão, não demorou a manifestar-se sobre a situação. Em discurso no seu primeiro ano de mandato, Obama afirmou que não pretendia manter tropas no Afeganistão e que sabia que os problemas no país não seriam resolvidos apenas com uso da força militar. Apesar disso, considerava a luta contra a al-Qaeda e o Talibã necessárias, e, apesar do discurso indicador de mudança, durante os primeiros anos do seu governo, os EUA apertaram ainda mais o cerco no Afeganistão e mais de 800 soldados estadunidenses foram mortos e mais de sete mil foram feridos no Afeganistão – uma quantidade maior do que nos sete anos anteriores de operações da ISAF. Esse período, em que 30 mil soldados a mais foram enviados ao Afeganistão, ficou conhecido como o período de pico (“the surge”) da atuação de contraterrorismo estadunidense no Afeganistão. (CHESSER, 2012; MONIZ BANDEIRA, 2014; STAPLETON; KEATING, 2015). Após o surge, o número de mortes, em 2011 e 2012, finalmente começou a cair, bem como o avanço do Talibã, que parecia, finalmente, enfraquecido, e alguns distritos voltaram ao controle do Estado afegão (BIDDLE, 2013; JONES, 2011; MILLER, 2016). A ideia em expandir as operações de contraterrorismo e contrainsurgência, ao menos em discurso, era proteger a população, e os defensores dessa estratégia dentro do Departamento de Defesa norte-americano defenderiam que o aumento de soldados faria emergir a boa governança e a prosperidade nas regiões ameaçadas pela insurgência e pelo terrorismo. Mas, como bem questionado por Karl Eikenberry: “Proteger a população” faz um bom slogan, mas levanta a questão: protege-la de quem e contra quem? Certamente significava proteger o povo afegão da criminosa insurgência Talibã. Mas o que dizer dos narcotraficantes, dos chefes de polícia local, ou dos predatórios oficiais do governo? O que deve ser feito sobre as tribos que se voltam para o Talibã para pedir ajuda na luta contra tribos mais poderosas cujos patrões fazem parte do governo de Cabul? E o que dizer sobre os casos complexos de violência étnica com raízes datando de mais de um século atrás? Homens jovens sem empregos são supostamente seduzidos pelo recrutamento insurgente, então deve-se oferecer proteção contra o desemprego? A provisão de serviços básicos de saúde é frequentemente citada como um serviço que o Talibã não consegue oferecer. Para fazer o governo afegão parecer, comparativamente, mais efetivo, deve o povo ser protegido contra a doença? Essas não eram questões hipotéticas, mas sim desafios muito reais que as forças militares, o serviço diplomático e os especialistas em desenvolvimento dos Estados Unidos tinham de lutar enquanto tentavam implementar sua doutrina de contraterrorismo (EIKENBERRY, 2013, p. 61). Todos esses questionamentos trazem à tona a discussão realizada no primeiro capítulo, sobre a necessidade de se pensar na reconstrução de Estados devastados por conflitos de uma maneira que considere as especificidades e demandas locais. Assim, reconhecendo, talvez, que a 79 abordagem militarizada não tivera sucesso em diminuir o sofrimento da população e que o simples ataque a alvos terroristas não diminuiria, por outro lado, a grande influência dos senhores de guerras e comandantes tribais que subjugavam as populações em todos os cantos do Afeganistão. Apesar disso, o sucesso em retrair o Talibã e a al-Qaeda foi enormemente divulgado pelo governo dos EUA. Em parte, pode-se dizer que a estratégia agressiva implementada pelos Estados Unidos a partir de 2009 foi um reconhecimento de que a situação securitária em deterioração no Afeganistão não permitia que a OTAN garantisse segurança ao longo de todo o território e, ao mesmo tempo, se engajasse em construção estatal. A estratégia do surge visava ganhar tempo para que as forças afegãs se desenvolvessem em um cenário em que a ameaça terrorista e insurgente fosse significativamente menor (LARSDEN, 2013). Nesse contexto, com a confirmação do sucesso de sua estratégia, Obama anunciou que um período de transição iniciaria em 2011. A transição consistiria no começo da retirada de tropas da OTAN e o anúncio de que as Forças Afegãs deveriam preparar-se para a retirada total em 2014 (LARSDEN, 2013; NATO, 2015). “Quando anunciei a intensificação das operações no Afeganistão, nós tínhamos objetivos claros: retomar o foco na al-Qaeda, reverter o momento do Talibã, e treinar as forças de segurança afegã para defenderem o próprio país. Também deixei claro o nosso comprometimento não seria eterno, e que começaríamos a retirar nossas forças nesse mês de julho. Hoje, posso dizer que estamos cumprindo com nossas promessas. (...) após a redução inicial, nossos soldados continuarão voltando para casa em um ritmo contínuo enquanto as Forças Afegãs seguem seu rumo. Nossa missão mudará de combate para apoio. Até 2014, esse processo de transição terá sido completado, e o povo afegão será responsável por sua própria segurança. (...) teremos que trabalhar duro para manter os ganhos que tivemos, enquanto removemos nossas forças e transferimos a responsabilidade pela segurança ao governo afegão. (...) o que podemos fazer, e faremos, é construir uma parceria com o povo afegão que dure – uma que garanta que seremos capazes de continuar identificando terroristas e apoiando um governo afegão soberano (OBAMA, 2011). O fato de que uma operação comandada pelos EUA, em 2011, tivera sucesso em capturar e assassinar Osama bin Laden em seu suposto refúgio em Islamabad, no Paquistão, diminuíra o apoio da opinião pública estadunidense à intervenção no Afeganistão, e as esperanças eram, após esse “sucesso”, que negociações pudessem ser realizadas com o Talibã para uma transição política segura no Afeganistão. Essas esperanças foram bastante frustradas quando Rabbani foi assassinado em 2011, uma vez que era ele um dos principais condutores das negociações com os talibãs (KUMAR, 2011). Em 2012 foi assinado um acordo de Parceria Estratégica entre Washington e Cabul que previa que os EUA seguiriam provendo assistência ao Afeganistão por 80 dez anos após a retirada de suas tropas do país, que estava prevista para o ano de 2014. A ideia era que isso aliviasse um pouco o pânico entre o povo afegão de uma possível volta do Talibã, tendo em vista o assassinato de Rabbani, e, principalmente, o fato de que o governo afegão teria que se sustentar sozinho com uma economia extremamente fragilizada e Forças Armadas julgadas insuficientes quando a ISAF saísse (LARSDEN, 2013; MILLER, 2016; STAPLETON; KEATING, 2015). Em dezembro de 2014, a ISAF terminou suas operações no Afeganistão e as Forças Nacionais de Segurança Afegãs passaram a ser responsáveis pela segurança e defesa do território afegão. A parte da ISAF que era responsável pelo treinamento e capacitação das forças nacionais afegãs foi, em 2015, substituída pela Missão Apoio Resoluto (Resolut Support Mission), que consistiria apenas em apoio e treinamento para as forças afegãs. Desde então, contudo, uma nova fase iniciou-se na interminável guerra afegã. Sem as forças estrangeiras atuando em solo afegão, o Talibã recomeçou a avançar, passando a, gradativamente, conquistar posições no território (MILLER, 2016; NATO, 2016). Atualmente, o Afeganistão, sob a presidência de Ashraf Ghani – eleito nas primeiras eleições democráticas do país, ocorridas em 2014 –, carece de inúmeros elementos que caracterizariam um Estado forte. O governo e as forças armadas não detêm controle de uma porção significativa do território, algo que, já difícil em virtude da geografia do país e da histórica e ainda presente importância do domínio dos senhores de guerra tribais, torna-se ainda mais desafiador com a contestação do Talibã, com a forte presença da al-Qaeda e, no momento, com a ascensão do grupo Estado Islâmico no país. A retirada da ISAF foi seguida quase imediatamente de uma retomada da ameaça terrorista, e o ano de 2015 foi o ano com mais mortes desde a intervenção estadunidense em 2001. A situação econômica também vem se deteriorando, com 40% da população atualmente vivendo abaixo da linha da pobreza e baixos índices de crescimento do PIB desde a retirada dos soldados estrangeiros, que eram responsáveis por boa parte do consumo no país. A economia ainda é bastante dependente da agricultura, e a economia do ópio segue desempenhando um papel importante na aquisição de rendas dos chefes tribais locais e também do próprio Talibã, nas regiões em que o grupo atualmente controla46 (CIA, 2016; IISS, 2016; UNAMA, 2016). 46 Especula-se que a presença do grupo seja sentida em cerca de 50% do território afegão. 81 Nenhum desses problemas, porém, é totalmente novo no Afeganistão. O agravamento de crises após a diminuição da ajuda estrangeira parecer ser uma tendência no Afeganistão há muitos anos. A histórica dependência de ajuda externa e a falta de capacidade do Estado em controlar o território, seja em virtude das forças tribais, seja das ameaças dos grupos insurgentes, é uma constante na história afegã. O destino da guerra atualmente em curso contra o avanço do terrorismo é difícil de prever, mas a fragilidade do Estado afegão não é fruto de eventos ocorridos apenas nos últimos anos. Os desafios que se colocam hoje são resultados ou evoluções de desafios que sempre estiveram presentes. 4.2 Sectarismo, insurgência e ingerência externa: o caso do Iêmen Os efeitos do colapso da União Soviética e, consequentemente, do fim da sua ajuda financeira e militar, também foram fortemente sentidos no Iêmen. Nessa região, assim como no Afeganistão, o fim da disputa entre o bloco socialista e bloco capitalista resultou na percepção de que não era mais necessário patrocinar o pequeno e isolado Estado no sul da península arábica para incluí-lo em alguma zona de influência. Assim, as grandes potências que tinham ajudado o Iêmen do Norte e o Iêmen do Sul antes da unificação abandonaram a região no começo da década de 1990 (BREHONY, 2011). O efeito do abandono de Moscou no Iêmen do Sul, porém, diferentemente do Afeganistão – onde significou o colapso quase imediato do Estado –, foi a emergência de um novo modelo de funcionamento: a unificação entre os dois Estados existentes no Norte e no Sul, uma vez que o Sul não conseguiria sobreviver sem o auxílio soviético. A solução encontrada para combater as adversidades do pós-Guerra Fria, porém, como mostrado ao final do capítulo anterior, não foi suficiente para eliminar as discordâncias e diferenças existentes entre as duas regiões, e o jovem Estado logo após a unificação já parecia mostrar sinais de uma crise próxima. Como no Afeganistão, o controle para além da capital provava-se difícil em função da fragmentação das Forças Armadas e, não menos importante, da influência dos antigos regionalismos. A aproximação das primeiras eleições parlamentares que ocorreriam em 1992 acirrou as disputas entre ambos os lados. Tanto as elites do Norte quanto as do Sul esperavam que o outro lado cedesse e se comprometesse com o novo regime, enquanto desejavam manter sua influência. Os governos que tinham se desenvolvido no Iêmen do Norte e no Iêmen do Sul tinham sido tão diferentes que os povos governados por eles acumularam expectativas e crenças igualmente 82 distintas. Os líderes do Sul acreditavam que seu histórico progressista de lutas contra o analfabetismo e de ampliação dos direitos das mulheres poderiam atrair apoio entre os povos do Norte, mas isso não ocorreu, uma vez que, ao Norte, forças tribais e islâmicas mais conservadoras ainda eram extremamente influentes. Os diferentes níveis de desenvolvimento social entre as populações do Norte e do Sul preocupavam os líderes do Partido Socialista Iemenita. Do outro lado, Ali Abdullah Saleh passava a estabelecer contato com Tariq al-Fadhil47 e outras famílias que haviam sido exiladas depois de perderem suas terras durante a reforma agrária do governo socialista do Sul. Muitos jovens dessas famílias tinham migrado para o Paquistão, de onde passaram a fazer parte do grupo de mujahidins que eram treinados na fronteira do Afeganistão. Esses militantes começaram a voltar para o Iêmen após a unificação com a bênção de Saleh, que via sua presença como uma maneira de enfraquecer as forças políticas do Sul (ETHEREDGE, 2011; BREHONY, 2011, JOHNSEN, 2014). O acirramento das rivalidades políticas atrasou as eleições. Apesar de cerca de quarenta partidos terem sido legalizados após a nova constituição, as principais correntes eram o CGP, de Saleh e seus aliados, o Partido Socialista Iemenita, e uma terceira nova frente que emergia como principal organização de oposição à unificação: o Islah, movimento islâmico reformista (BREHONY, 2011). As eleições acabaram ocorrendo em abril de 1993 e foram monitoradas por organizações internacionais, que as julgaram relativamente justas e livres. O CGP ganhou a grande maioria dos assentos (122), ao passo que o Partido Socialista conseguiu manter apenas uma representação minoritária (56 assentos) ao lado do Islah (62 assentos) (ETHEREDGE, 2011; VISENTINI ET AL, 2013). É importante frisar que, no ano das eleições, o Iêmen ainda sofria as graves consequências da crise econômica iniciada à época da unificação: o PIB per capita havia caído 10% desde 1989, o desemprego atingia taxas de 25% e a inflação variava entre a casa dos 30% e 50%. As rendas oriundas da nova exploração conjunta de petróleo foram bem inferiores ao esperado, uma vez que as próprias reservas descobertas eram decepcionantemente pequenas. As poucas receitas que entravam no país, ao invés de ajudarem a estabilizar a economia, costumavam ir direto para os cofres do governo, a partir de onde eram seguidamente usadas para beneficiar homens de negócios do Norte. A URSS havia colapsado e o Ocidente perdera interesse no Iêmen, 47 Cuja família fugira, durante o governo socialista do Iêmen do Sul, para a Arábia Saudita, onde al-Fadhil se aproximara de Osama bin Laden – com quem treinaria táticas de guerrilha (JOHNSEN, 2016). 83 esvaziando o montante de ajuda estrangeira com o qual os Iêmens costumavam contar (BREHONY, 2011). Um censo realizado em 1995 mostrava que a população do território que correspondia ao antigo Iêmen do Norte era cinco vezes maior que à do antigo Iêmen do Sul, sendo a economia do Sul também cinco vezes menor que a do Norte. Esses fatores explicam em grande parte a predominância política conquistada pelo partido de Saleh nas urnas durante as eleições parlamentares de 1993. As lideranças oriundas do Sul, porém, em especial as do Partido Socialista, sentiam-se desconfortáveis com tal preponderância do GCP na política, que começava a se manifestar também na alocação dos próprios postos do governo: embora o número de postos ocupados por políticos do Sul fosse equivalente aos oriundos do Norte, estes últimos costumavam receber os cargos mais importantes. A preocupação também se estendia à influência do Islã político no Sul, especialmente através da presença do partido Islah. Durante e após as eleições, o PSI passou a reivindicar que as eleições tivessem uma paridade de 50/50 entre os votantes do Sul e do Norte, uma vez que, devido a questões de densidade demográfica, os líderes políticos do Norte seriam sempre preponderantes. Saleh, porém, discordava veementemente dessa posição e quis aceitar o resultado obtido nas eleições. Assim, após as eleições, lideranças do Sul pareciam sinalizar que a região estava disposta a se preparar para uma secessão, uma vez que passavam a acreditar que a unificação havia sido mal calculada (BREHONY, 2011). Em 1994, os assassinatos de alguns membros dirigentes do PSI gerou ainda mais desconfiança para com Saleh, levando al-Bid a abandonar Sanaa e retornar ao Sul, onde eclodiu um levante separatista. Em maio, ele anunciou na rádio de Aden que estava criando a República Democrática do Iêmen (RDI)48 como um novo Estado independente com capital em Aden, que não seria, porém, apenas um país separatista, mas sim, uma alternativa para o regime atual do Iêmen unificado. Uma guerra civil eclodiu entre o Norte e o Sul, espalhando-se ao longo de todo o seu território, inclusive a Leste – apesar de mais limitadamente. Ambos os lados lançavam propagandas contrárias ao lado oposto, voltando suas populações umas contra as outras e, inclusive, em alguns casos, utilizando-se de retórica religiosa: no Norte, líderes islâmicos pintavam a guerra como uma jihad contra os infiéis socialistas do Sul. A RDI, porém, teve uma vida curta, e foi reconhecida apenas pelo governo da Somália. No mês de julho, após de cerca de três meses de confronto, Aden acabou por ser praticamente destruída e tomada pelas forças de 48 Traduzido do inglês Democratic Republic of Yemen (RDI). 84 Saleh. Grande parte dos membros do PSI e dos militares que haviam apoiado a empreitada separatista acabaram fugindo para o exílio (VISENTINI ET AL, 2014; BREHONY, 2011; DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011; HALLIDAY, 1995). Finda a guerra, estabeleceu-se uma dominação militar do Norte em detrimento do Sul, e uma dominação política do Congresso Geral do Povo. Ali Abdullah Saleh, porém, tinha consciência de que sua agressão militar contra o Sul reforçara ainda mais o já existente ressentimento entre os povos sulistas com relação ao seu domínio (DAY, 2012). Ele entendia, portanto, que para criar um quadro institucional de poder efetivo, deveria manter a divisão de poder com os políticos do Sul, conforme combinado à época da unificação. Nunca houve um acordo político real entre as elites que fosse aceita pelos dois lados, mas, mesmo assim, Saleh agiu no sentido de apontar iemenitas do Sul para preencher pastas ministeriais ainda durante a guerra. O exemplo que merece destaque aqui é a nomeação de Abdu Rabbu Mansour Hadi para ministro da defesa – ele viraria vice-presidente posteriormente. Com nomeações como essa, Saleh pretendia mostrar aos povos sul-iemenitas que seu governo pós-guerra os incluiria. (BREHONY, 2011; DAY, 2012; DURAC, 2011; PHILLIPS, 2011). Em 29 de setembro de 1994, porém, Saleh, que fora eleito pelo parlamento por mais cinco anos, emendou a constituição iemenita para fortalecer o seu poder pessoal. Para tal, aboliu o conselho presidencial de cinco homens que havia sido estabelecido em 1990, e incluiu o direito de o presidente governar por decretos, o que, na prática, dava a si mesmo poderes quase absolutos (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011). Isso se deveu, contudo, não apenas à habilidade política e ao poder adquirido por Saleh, mas também à incapacidade do Partido Socialista de reconstruir-se. O aumento do poder do CGP foi também acompanhado de um reforço do poder das Forças Armadas e, junto a isso, de uma restrição nas liberdades gozadas até então pelos partidos de oposição, assim como pela mídia e pelas organizações não governamentais. Apesar de alguns governadores do Sul terem sido nomeados por Saleh no pós-guerra, seu poder era meramente simbólico, pois as forças militares e de segurança do Norte prevaleciam sobre eles (ETHEREDGE, 2011; DAY, 2012). O fato de que Saleh era um homem das montanhas do Norte fortemente ligado à cultura de lealdades tribais que permanecera na República Árabe do Iêmen – ao mesmo tempo em que fora praticamente eliminada da República Democrática Popular do Iêmen – explicava bastante do funcionamento do seu governo. Muito das receitas recebidas pelo pagamento de impostos ao 85 governo era redistribuída a chefes de tribos e comandantes que prometiam lealdade ao presidente (PHILLIPS, 2011). O antropólogo Paul Dresch defende a riqueza da cultura tribal iemenita e mostra diversos dos seus aspectos honráveis em contraponto a diversos autores que tendem a demonizar o funcionamento tribal do Iêmen como se fosse o de um povo “atrasado”. De fato, o tribalismo, em alguma medida, podia fazer com que o próprio presidente e seu círculo mais próximo fossem mais moderados com relação ao abuso da violência, uma vez que o grande poder exercido por esses líderes tribais poderia ser usado contra o governo de maneira desastrosa caso o presidente ultrapassasse os limites de seu poder. Isso, porém, não se aplicava a toda a população do Iêmen unificado. Enquanto podia ser uma verdade para o Norte, a população do Sul ficava sensivelmente vulnerável a essa lógica, pois o tribalismo havia sido quase erradicado na região. Enquanto no Norte os comandantes recebiam rendas extras do governo, no Sul, servidores público esperavam por até oito meses para receberem seus salários. Portanto, a cultura tribal das populações das regiões montanhosas do Norte, enquanto servia de base para as políticas nacionais iemenitas, era vista pelo restante da população como, de fato, “ultrapassadas”, pois retardava o desenvolvimento de instituições de Estado e do Estado de direito que impediria os abusos do governo contra uma determinada parte da população (DRESCH, 1989; DAY, 2012). A economia iemenita, que enfrentava problemas desde à unificação, continuava em crise, devido, principalmente, a dois fatores: à ausência de ajuda de potências estrangeiras, de que as antigas repúblicas tanto tinham gozado, e aos elevados níveis de corrupção dentro do governo, em especial entre os círculos mais próximos de Saleh, que triplicaram suas riquezas após a guerra de secessão, enquanto o restante da população empobrecia rapidamente (DAY, 2012; PHILLIPS, 2011). Em 1994, o PIB caíra mais de um bilhão de dólares devido à guerra civil, e a situação melhorara pouco em 1995. A inflação e o desemprego também cresciam, e isso tornava o país cada vez menos atrativo para investidores estrangeiros. Assim, em 1995, o primeiro-ministro iemenita se viu obrigado a realizar conversas com o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial para negociar pacotes de empréstimos emergenciais. O pacote adotado incluía planos de reformas estruturais para reestabelecer o valor da moeda iemenita e privatizar grande parte do setor público (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011; THE WORLD BANK, 2016). A primeira etapa do programa foi implementada com sucesso, com algumas reformas realizadas no setor de comércio e na política monetária. Em seguida, porém, o plano passou a se 86 mostrar pouco efetivo, porque pouco tocou no problema estrutural da corrupção e da ineficiência administrativa, e em parte porque a política de privatizações só se aplicou às empresas do Sul, que ainda eram controladas por políticos do Partido Socialista, e não às do Norte. O governo não demonstrava disposição em implementar reformas políticas econômicas mais profundas (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011). Em 1997, a República do Iêmen sediou suas segundas eleições parlamentares. Mais uma vez, o CGP obteve a maioria dos assentos (cerca de 62%), seguido pelo Islah. O Partido Socialista boicotou as eleições e recusou-se a participar, consequentemente não ganhando nenhum assento no parlamento, o que foi, segundo Laura Etheredege (2011, p. 133), o “suicídio político” do PSI. O CGP, por ser maioria, passou a praticamente governar sozinho, e o Islah se tornou a principal oposição dentro do governo49. O CGP controlava a mídia, os fundos do governo, e o próprio Supremo Comitê Eleitoral – o que tornava os resultados das eleições pouco confiáveis aos olhos da população50. Cada vez mais, o Iêmen tornava-se parecido com uma oligarquia, na qual o Estado existia simplesmente para enriquecer um pequeno grupo de privilegiados próximos a Saleh, às custas do restante do povo – ou, nas palavras de Robert Burrowes e Catherine Kasper, uma “cleptocracia”, ou seja, um governo de ladrões (BURROWES; KASPER, 2007; ETHEREDGE, 2011; DAY, 2012). Tudo isso não passava despercebido pela população, que, tanto no Norte quanto no Sul, lutava para sobreviver em uma economia decadente. Todas as tentativas de protestos e manifestações de descontentamento popular eram respondidas com repressão e violência por parte das forças comandadas por Saleh, o que aumentava ainda mais o ressentimento para com o regime. A insatisfação aumentou ainda mais quando, em 1998, o governo tentou criar novas divisões administrativas na região de Hadramaut: na visão do regime, quanto mais descentralizadas fossem as unidades do governo, mais dependentes de Sanaa elas seriam e, portanto, menos suscetíveis à secessão e insurgência. Isso gerou protestos massivos que fizeram o governo desistir do plano inicial, mas a insatisfação não cessou; pelo contrário, ela aumentou 49 Nas eleições de 1994, o Islah formara uma coalizão com o CGP, o qual reconhecia que demonstrar abertura a outras correntes serviria para mostrar à população que seu discurso de democracia e legitimidade eram equivalentes à realidade. O Islah, porém, teve pouco espaço de fato no círculo decisório do governo, que era basicamente coordenado pelo próprio Saleh (DAY, 2012; HALLIDAY, 1995). 50 Ainda assim, o CGP nunca apresentava resultados eleitorais de maioria absoluta, beirando, por exemplo, os 90% dos votos, pois sabia que mostrar uma disputa eleitoral aparentemente mais acirrada, mesmo que, na realidade, isso fosse pouco verdadeiro, não apenas corroborava o discurso democrático de Saleh, como também possibilitava que outros partidos e políticos fossem “culpados” pelo fracasso da economia iemenita, uma vez que o governo não seria governado apenas pelo CGP (DAY, 2012). 87 ainda mais em 1999, devido a uma emenda constitucional que alterou o mandato presidencial para sete anos. Saleh novamente venceu as eleições, devido ao boicote de milhares de eleitores do Sul que se recusaram a votar (DAY, 2012). Além dos elevados níveis de corrupção dentro do governo, outro fator fazia a economia iemenita continuar em crise: a ausência de ajuda de potências estrangeiras, de que as antigas repúblicas tanto tinham gozado. Para atrair investimento estrangeiro, a prioridade da agenda de política externa do governo Saleh passou a ser uma aproximação da Arábia Saudita e das monarquias petrolíferas do Golfo. O Iêmen desejava boas relações com esses países para angariar deles – especialmente da Arábia Saudita – financiamento e investimento, bem como a oportunidade de iemenitas voltarem a trabalhar em empresas petrolíferas nesses territórios e enviarem as rendas ao Iêmen. Com a Arábia Saudita, porém, havia uma questão de conflito pendente relativa à indefinição fronteiriça entre a porção Norte do Iêmen e a porção Sul da Arábia Saudita, que se conectam através do deserto Rub al-Khali. A fronteira seria oficialmente definida em 2000, com um acordo que tinha potencial para melhorar significativamente as relações entre os dois países, que seria, no século XXI, caracterizada pelo financiamento saudita ao regime de Saleh (ETHEREDGE, 2011). 4.2.1 Os reflexos da Guerra ao Terror no Iêmen e a ascensão das insurgências al-Houthi e alHirak Outra relação exterior mostrou-se muito importante para o Iêmen com a chegada dos anos 2000: a relação com os Estados Unidos da América. Ela seria drasticamente influenciada pelo advento da Guerra ao Terror estadunidense, a qual alterava também a dinâmica do Estado afegão, conforme visto anteriormente neste capítulo. A relação entre Sanaa e Washington, porém, vinha evoluindo desde antes dos atentados terroristas de 2001, mais especificamente desde 1998, quando o destroier USS Cole dos EUA foi bombardeado por homens-bomba da al-Qaeda no porto de Aden. Antes desse evento, a superpotência reaproximara-se do Iêmen em uma tentativa de reatar os laços que haviam sido seriamente prejudicados pela decisão iemenita, em 1990, de não entrar na guerra do Golfo ao lado dos EUA. Ao fim da década de 1990, a marinha dos EUA realizou um acordo com Aden para que seu porto servisse de estação de abastecimento para os navios americanos usados na região do Golfo, e foi isso que permitiu o ataque da al-Qaeda ao destroier (JOHNSEN, 2014). 88 Após o incidente do USS Cole, o governo dos Estados Unidos passou a se preocupar com a possível influência da al-Qaeda no Iêmen, tendo em vista que o ataque ocorrera logo após os ataques às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, supostamente também ligados à alQaeda de bin Laden (JOHSEN, 2014). A preocupação de Washington, porém, não era infundada. De fato, desde a unificação do Iêmen, muitos iemenitas cujas famílias tiveram suas terras expropriadas pelo governo do Iêmen do Sul e, consequentemente, fugido para outros países, voltavam ao Iêmen sob a proteção de Saleh. Como mencionado anteriormente, muitos desses jovens tinham tido treinamento de guerrilha nas fronteiras do Afeganistão e do Paquistão ao longo dos anos 1980, e, uma vez retiradas as tropas soviéticas do Afeganistão e diminuído o esforço estadunidense-saudita em financiar esses jovens, eles passaram a voltar ao Iêmen e ser usados por Saleh para desestabilizar a região sul do Iêmen. Após a ajuda oferecida por esses militantes do Islã na guerra civil de 1993, beneficiando o Norte, o presidente Saleh ficou em dívida com eles. Alguns passaram a fazer parte dos postos mais altos do governo e do partido do governo, o Congresso Geral do Povo (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011; JOHNSEN, 2014). Em 2001, porém, após o ataque ao World Trade Center e a intervenção no Afeganistão, as pressões sobre o governo iemenita aumentaram, com o presidente George W. Bush pedindo a Saleh que demonstrasse disposição para cooperar com os esforços de contraterrorismo. Isso era delicado para o governo não apenas pelo fato de que quadros ligados ao islamismo militante e com conexões à al-Qaeda de bin Laden faziam parte da sua cúpula, mas também pela grande oposição aos EUA dentre o povo iemenita: o apoio da superpotência a Israel contra a Palestina era muito mal vista, e a oposição aumentaria ainda mais quando os EUA invadissem o Iraque em 2003 (DAY, 2012). Imediatamente após os ataques de 11 de setembro, o presidente Saleh viajou aos Estados Unidos para informar o total apoio do Iêmen à Guerra ao Terror, mas a combinação era de que a cooperação permaneceria secreta devido ao grande anti-americanismo dentro do país – e, o que não era dito, para evitar dissidências dentro do governo por parte dos islamitas (ETHEREDGE, 2011). Em 2002, drones americanos bombardearam um veículo no meio do deserto de Marib que levava um dos membros da al-Qaeda supostamente responsáveis pelo incidente de Aden de 1998. O presidente Saleh afirmou que se tratava de uma ação das forças armadas iemenitas, mas um discurso do secretário de defesa americano elogiando a ação da administração Bush na operação causou uma reação negativa imediata entre o povo iemenita. As condenações ao presidente Saleh 89 aumentavam, assim como os receios de que o Iêmen fosse se tornar um próximo Afeganistão sob os olhos do governo de Washington, e ser vítima de uma intervenção militar (DAY, 2012). Foi nesse contexto de insatisfação que, em 2002, os partidos da oposição a Saleh – mais especificamente, o Islah, o Partido Socialista, o Partido Nasserista, o Baath e dois pequenos partidos zaiditas, o Hizb al-Haqq e o União das Forças Populares (UFP) – aproveitaram-se da impopularidade do presidente e se juntaram em uma coalizão chamada Joint Meeting Parties (JMP), visando obter uma maior representatividade nas eleições parlamentares previstas para 2003 (DURAC, 2011; ETHEREDGE, 2011; PHILLIPS, 2011). Devido à grande diversidade ideológica dentro do JMP, contudo, a campanha de oposição não seria suficiente para derrubar a forte influência do CGP, que seguiu com a maioria dos assentos. A continuidade dos níveis de corrupção levou o Banco Mundial a suspender o programa de assistência ao Iêmen, gerando ainda mais insatisfação popular com relação ao governo. Saleh, que realizava constantes emendas constitucionais para manter-se no poder por mais e mais tempo, tinha sua legitimidade cada vez mais questionada. Assim, por fora das instituições partidárias, outros movimentos de oposição emergiriam para desafiar a sustentação do Estado (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011; PHILLIPS, 2011). Para a surpresa de muitos, porém, a primeira rebelião significativa não veio dos quadros historicamente descontentes do sul do Iêmen, e sim da província de Saada, ao norte de Sanaa, em 2004 (DAY, 2012). O líder dessa rebelião foi Hussein al-Houthi, filho de um famoso clérigo zaidita da região de Saada. O grupo que ele reuniu, porém, já vinha sido recrutado ao longo dos anos 1990, como um movimento religioso de jovens chamado al-Shabaab al-Mu’minin, ou “Fórum da Juventude Crente”51. Eles iniciaram suas atividades como um grupo de estudos que defendia o retorno do imanato zaidita no Iêmen, mas, nos anos 2000, frente à aparente aliança do presidente Saleh com os Estados Unidos, o grupo religioso passou a ter objetivos políticos de contestação ao regime, e mudou seu nome para Ansar Allah, ou “Partidários de Deus”52. Tornaram-se conhecidos em 2002 quando al-Houthi encorajou seus seguidores a saírem das mesquitas gritando “Deus é grande! Morte à América e Israel! ” (DAY, 2012; PHILLIPS, 2011; IHS 2015b; BASU, 2015). Em junho de 2004, deu-se o primeiro confronto entre o Ansar Allah e as forças do governo. Em setembro, as forças de Saleh perseguiram os militantes e assassinaram o líder 51 52 Traduzido do inglês The Believing Youth Forum. Traduzido do inglês Partisans of God. 90 zaidita al-Houthi. Os militantes do Ansar Allah ficariam conhecidos como Houthis após o assassinato do líder por parte do governo, evento que, visando enfraquecer o movimento, tornou al-Houthi um mártir e deu mais força à causa. A partir desse momento, muitos outros embates com as tropas do governo ocorreriam – mais precisamente, de 2004 até 2010, foram seis confrontos armados, fato que levou muitos autores a usarem o termo “Guerras Houthis” para se referirem ao período (DAY, 2012; PHILLIPS, 2011; ETHEREDGE, 2011; FATTAH, 2009; IHS 2015a; IHS 2015b). Em meados dos anos 2000, a economia iemenita ainda seguia mal, nunca tendo se recuperado completamente da crise dos anos 1990. Em 2005, o governo tentou aumentar os impostos sobre os preços de alguns bens básicos, visando aumentar a arrecadação, e protestos irromperam em muitas cidades iemenitas, incluindo a capital, Sanaa. O governo, receando um descontrole social devido ao crescimento da rebelião Houthi, respondeu aos protestos com severidade (DAY, 2012; ETHEREDGE, 2011). Isso fez com que, na campanha presidencial de 2006, o JMP se unisse e se esforçasse mais para fazer uma campanha coesa de oposição ao CGP, deixando de lado algumas diferenças ideológicas e apoiando a candidatura de um candidato independente, Faisal Bin Shamlan, contra Saleh. Este, porém, utilizou-se dos subornos tradicionais de sua campanha para conquistar votos, e aproveitou-se do seu controle da mídia para criar uma campanha de escândalos ao redor do nome de Shamlam e de sua suposta proximidade com bin Laden, aterrorizando a população ao afirmar que, caso o candidato do JMP ganhasse, o Iêmen poderia tornar-se um novo Estado talibã – naturalmente, omitindo o fato de que ele próprio tinha ligações com políticos próximos a bin Laden. Tenha sido pelo sucesso dessa campanha ou pelo controle do CGP sobre o Comitê Eleitoral, Saleh ganhou novamente, mesmo com a popularidade em baixa. Como ficava cada vez mais claro tanto para a oposição quanto para a população num geral, A oposição não estava competindo contra um partido que temporariamente acabara encarregado de governar, mas que estava disposto a se afastar se não ganhasse a maioria dos votos. A oposição estava competindo contra um partido permanentemente dominante, equivalente ao próprio Estado, que tinha controle de todas as instalações e financiamentos do governo (DAY, 2012, p. 223). Os questionamentos sobre a legitimidade de Saleh, porém, não pararam após as eleições. Inclusive, não só a legitimidade do regime foi questionada, como também a validade da própria unidade do Iêmen. Nesse sentido, em maio de 2007, foi lançado o al-Hirak, ou “o Movimento”, 91 um novo movimento de oposição ao regime de Saleh, mas, dessa vez, vindo do Sul. Grupos em regiões próximas a Aden vinham se reunindo desde 2005, quando a rebelião Houthi se mostrava crescente. O al-Hirak nasceu como um movimento de protesto que, ao contrário dos Houthi, porém, defendia a contestação pacífica e a desobediência civil como meios de ação, em oposição ao uso de armas. Realizou grandes protestos ao longo de 2008 e 2009. Inicialmente, Saleh tentou atender a algumas das demandas dos manifestantes do Sul – que alegavam, por exemplo, a desigualdade de empregabilidade entre cidadãos do Norte e do Sul – mas, de maneira geral, os protestos eram respondidos com forte repressão. Isso fez com que, eventualmente, seus membros passassem também a realizar ataques contra alvos de forças de segurança e policiais. O descontentamento permanente com o governo levaria o al-Hirak a defender com mais força a questão da secessão53, e o grupo passou a ser chamado também de “Movimento Separatista do Sul”. Diferentemente da rebelião de Saada, portanto, não simbolizava apenas mais um desafio ao governo de Saleh, e sim um risco de dissolver a República do Iêmen (DAY, 2012; IHS 2015a; PHILLIPS, 2011). Como se não bastassem as rebeliões vindas do Norte e do Sul, em janeiro de 2009, a alQaeda estabeleceu oficialmente uma base no Iêmen54: a al-Qaeda na Península Arábica (AQPA)55. A situação parecia, porém, já estar sendo ensaiada há algum tempo: em fevereiro de 2006, 23 membros da al-Qaeda haviam escapado de uma prisão de alta segurança em Sanaa, evento que muitos observadores acreditaram ter sido intencional. Desde essa fuga, a al-Qaeda passara a ser significativamente mais ativa no Iêmen, indo contra as alegações de Saleh e de Washington de que as operações de contraterrorismo teriam sido efetivas em eliminar de uma vez por todas as atividades da organização no país. A AQPA já se lançou, portanto, forte, e gozando, inclusive, de apoio entre jovens iemenitas que se identificavam com Osama bin Laden devido tanto ao seu antiamericanismo quanto às suas origens iemenitas, já que seu pai nascera na região de Hadramaut. Temendo o fortalecimento da organização em um Estado que há décadas já se 53 O principal incentivador dessa demanda de independência política foi Tariq al-Fadhil, que passou a fazer parte do al-Hirak em 2009. Sua entrada tornou difícil a distinção, para as autoridades do governo, entre as atividades do movimento do Sul e da al-Qaeda, uma vez que o próprio Tariq era um dos mujahidin vindos do Afeganistão com relações mais próximas de Osama – e, que até então, tinha feito parte dos círculos mais próximos do governo Saleh (DAY, 2012). 54 A al-Qaeda na Península Arábica já atuava com esse nome desde 2002 na Arábia Saudita. Ao fim de 2005, porém, foi seriamente desgastada pelas ações contraterrorismo levadas a cabo pelas autoridades sauditas. O grupo no Iêmen inicialmente intitulou-se al-Qaeda no Sul da Península Arábica (AQSPA), mas acabou, em pouco tempo, adotando a sigla anterior (IHS, 2014; IHS, 2015a). 55 Traduzido do inglês al-Qaeda in the Arabian Peninsula (AQAP). 92 mostrava frágil e incapaz de conter ameaças, os Estados Unidos, agora sob a administração de Barack Obama, passaram a realizar mais ataques contra posições suspeitas de serem controladas pela al-Qaeda (BOUCEK, 2010; BOUCEK, 2011; IHS, 2014; IHS, 2015a; PHILLIPS, 2011; DAY, 2012). Assim, ao final da primeira década do século XXI, Ali Abdullah Saleh, além de ter que garantir as lealdades das tribos de que seu poder em muito dependia, enfrentava também agora três grandes desafios: um braço da maior organização terrorista do mundo atuando dentro do território iemenita, e dois movimentos insurgentes vindo dos dois extremos do país, os Houthi no Norte, e o Movimento Separatista no Sul. O número de apoiadores aos movimentos de oposição crescia, e o regime parecia estar perdendo controle do país. Dada a extrema divisão do país, líderes e acadêmicos, no âmbito regional e internacional, questionavam-se se o Iêmen continuaria unificado caso Saleh caísse – ou, ainda, se o Iêmen ainda podia ser considerado um Estado mesmo com a unificação formal (DAYUB, 200956 apud DAY, 2012). Os iemenitas pediam às Nações Unidas e aos países árabes que apoiassem o separatismo do Sul, mas a maioria dos países temia o que poderia acontecer na região se o Estado iemenita se desmanchasse, em especial com a presença da al-Qaeda. Por outro, lado, porém, a maioria dos países sabia que enviar dinheiro para apoiar o regime não seria solução para os problemas políticos e econômicos do país, tanto pela falta de legitimidade do líder quanto, principalmente – e tal qual no Afeganistão –, pelos altos níveis de corrupção de um governo que não era capaz de absorver e realocar a ajuda externa em prol do desenvolvimento do país (DAY, 2012, PHILLIPS, 2011; AL-QHADI, 2010). O Iêmen entrou, assim, no topo da lista de preocupações securitárias mundiais. 4.2.2 A Primavera Árabe e a queda de Ali Abdullah Saleh Em janeiro de 2011, protestos em massa eclodiram no mundo árabe pedindo por melhores condições econômicas e pela deposição de líderes corruptos e autoritários que estavam há décadas no poder. Iniciados na Tunísia, após a autoimolação de Mohammed Bouazizi em um ato de protesto na cidade de Sidi Bouzid, os protestos contra o presidente tunisiano Ben Ali se espalharam quase que imediatamente para o Egito, onde a população passou a pedir também pela saída do presidente Hosni Mubarak. O número de pessoas que saía às ruas protestar em diversas 56 Ammar Dayub, “Is Yemen Still a State?” al-Quds al-Arabi (in Arabic), November 7, 2009. 93 cidades desses países era algo nunca visto antes, e foram devidamente televisionados pela mídia ocidental, em especial dos Estados Unidos, que, sabendo de sua má reputação entre os povos árabes devido à sua aliança com Israel e às intervenções no Iraque e no Afeganistão, se colocara ao lado dos manifestantes, defendendo a democracia e dos direitos humanos. Os protestos, que ficaram conhecidos como Primavera Árabe, também chegaram na Argélia, no Marrocos, no Bahrein, na Arábia Saudita, na Síria e na Líbia, e eventualmente também atingiram o Iêmen. A despeito de semelhanças, em cada país em que aconteceram os protestos foram liderados por setores diferente das populações e tiveram motivações condizentes com a realidade de cada nação (JOFFÉ, 2011; PRASHAD, 2012; VISENTINI, 2012). Não cabe, aqui, no presente trabalho, realizar essa discussão mais ampla, importando aqui apenas o contexto em que a Primavera chegou no Iêmen e o que se desenvolveu a partir disso. Como visto, a situação no Iêmen antes da Primavera Árabe já estava bastante tensa, com a insatisfação popular crescendo a cada ano e movimentos de oposição ganhando força na luta contra o regime do presidente Ali Abdullah Saleh. Considerando-se também os governos do Iêmen antes da unificação, Saleh estava no poder desde 1978, sendo, portanto, um dos líderes do mundo árabe que permanecia no posto de presidência há mais tempo (atrás apenas do presidente líbio Muammar Gaddafi). No final de 2010, Saleh tinha realizado novas emendas constitucionais que praticamente excluíam a necessidade de um tempo limite para o mesmo governante se reeleger, ao que recebeu forte oposição por parte do JMP. Embora, portanto, os protestos iniciados na Tunísia possam ter criado uma solidariedade árabe entre os países da região, não faltam razões para acreditar que, no Iêmen, foram apenas o catalizador de uma erupção que já se ensaiava para acontecer há muito tempo. O que faltava, até então, era apenas uma unidade entre os movimentos de oposição que já existiam. Os protestos no Iêmen começaram no dia 15 de janeiro, com uma marcha de estudantes nas ruas de Taiz e Sanaa. À essa época, o Iêmen era o país árabe mais pobre, com 45% da população vivendo abaixo do nível de pobreza e com taxas de desemprego de 35% (MONIZ BANDEIRA, 2014; VISENTINI, 2012). No início, o presidente Saleh, temendo que fosse tirado do poder como seus vizinhos Ben Ali e Mubarak, tentou agradar os manifestantes respondendo a algumas das suas exigências e anunciando uma diminuição de 50% dos impostos, promessas de aumento de salário para funcionários públicos em até 30%, criação de novos empregos ao longo de 2011 e isenção de pagamento de taxas para estudantes universitários. Com o passar dos dias, 94 porém, as manifestações passaram a ser fortemente reprimidas, a começar pelo Sul – uma violência que foi usada unilateralmente, tendo em vista o caráter inicialmente ordeiro e pacífico dos manifestantes que foram às ruas em Aden. A “gota d’água” foi o dia 18 de março de 2011, que ficou conhecido como “sexta-feira sangrenta”, devido ao tiroteio em massa realizado contra protestantes reunidos na capital, Sanaa. Apesar de os atiradores não estarem identificados com uniformes da polícia ou das Forças Armadas, a população acreditava fortemente que as ordens do massacre foram dadas pelas autoridades governamentais (DAY, 2012; PHILLIPS, 2011). Muitas foram as consequências deste episódio: em primeiro lugar, levou a muitas dissidências dentro do regime, incluindo membros do próprio CGP e militares, que discordavam das ações empreendidas contra os manifestantes. Em segundo lugar, o evento levou a uma união mais forte entre os seguidores do al-Hirak, dos Houthi e do JMP, que viam as manifestações como uma maneira real de tirar Saleh do poder. Por fim, a sexta-feira sangrenta teve como resposta internacional a condenação dos atos do presidente e uma pressão, tanto dos Estados Unidos quanto da Arábia Saudita, até então apoiadores de Saleh, para realizar uma transição de governo. A mediação veio por meio do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), que elaborou uma proposta de transição de governo para o vice-presidente Abdu Rabbu Mansour Hadi que, ao obrigar Saleh a resignar, garantia que ele teria total imunidade pelos crimes cometidos durante seu governo. Os manifestantes se opuseram fortemente a este último elemento do plano, exigindo que Saleh fosse julgado – no que foram defendidos pela Anistia Internacional, que publicou nota dizendo que o parlamento iemenita não deveria permitir a impunidade para Ali Abdullah Saleh (AMNESTY INTERNATIONAL, 2012; DAY, 2010; PRASHAD, 2012). Este, porém, negando a possibilidade de se retirar do poder, recusou a assinar o acordo: três vezes durante o ano, o Conselho do Golfo tentou fazer o presidente assiná-lo, mas não obteve sucesso (DAY, 2012). No dia 3 de junho de 2011, uma bomba colocada dentro da mesquita do palácio presidencial explodiu durante as orações, ferindo gravemente diversas pessoas presentes; dentre elas, o presidente. Gravemente ferido, Saleh precisou ser transferido a um hospital na Arábia Saudita, onde ficou durante semanas realizando cirurgias. Ele garantiu que voltaria ao Iêmen para governar, mas parecia cada vez mais difícil que as facções presentes no país aceitariam seu retorno. Em sua ausência, o vice-presidente Hadi exerceu o poder, e os manifestantes, sabendo 95 que as origens do vice-presidente eram distintas das do presidente Saleh57, passaram a demandar que ele formasse um governo de transição na ausência do chefe de Estado. Isso, porém, era praticamente impossível de se realizar, pois as forças de segurança e a elite militar no Iêmen eram todas comandadas por filhos, sobrinhos ou primos de Saleh. Hadi, portanto, apesar do posto que detinha, não conseguia exercer comando presidencial de fato (DAY, 2010; VISENTINI, 2012). No dia 21 de outubro, o Conselho de Segurança passou a Resolução 2014, pedindo que Saleh assinasse os termos definidos pelo Conselho de Cooperação do Golfo e passasse o poder oficialmente para Hadi (UNITED NATIONS, 2011). Em novembro, Saleh voltou a Sanaa, e finalmente assinou o acordo, em um ato que simbolizava que ele próprio percebera não ter mais como sustentar sua legitimidade de seguir governando. Conforme o acordo, Hadi deveria estabelecer um comitê para reestruturar as Forças Armadas iemenitas, bem como realizar eleições, previstas para o ano de 2012. Para as eleições, porém, Abdu Rabbu Mansour Hadi foi o único candidato indicado pelo parlamento, obtendo consenso em sua nominação entre o Congresso Geral do Povo, seu partido, e o Joint Meeting Parties. A ideia era que a transição de poder fosse pacífica e tranquila, tendo em vista o passado recente caótico do país. Hadi foi, assim, eleito presidente do Iêmen no dia 21 de fevereiro de 2012. Muitos eleitores no Sul boicotaram as eleições, ao passo que outros manifestaram receio de que Hadi fosse permanecer leal ao antigo presidente. Porém, embora Hadi tivesse sido vice-presidente por dezessete anos, a maioria da população não o conhecia tão bem, dada a absoluta supremacia que o presidente Saleh exercera durante esse período, e, portanto, de forma geral, no dia das eleições, o clima era de otimismo (ALJAZEERA, 2012; AL MONITOR, 2012; KASINOF, 2012). Conquistar a população dividida, porém, não era uma tarefa fácil – nem conquistar as Forças Armadas, ainda sob influência de quadros leais a Saleh. Assim, o novo presidente buscou concentrar seus esforços em angariar apoio externo, realizando, para isso, discursos na Assembleia Geral da ONU em defesa da luta contra o terrorismo, em uma tentativa de conquistar simpatia ocidental (ZIMMERMAN, 2014). Ainda assim, ficava claro para Hadi que a maneira como o país era dirigido continuava sendo inaceitável para a maioria da população. Nesse sentido, em 2013, ele realizou a Conferência do Diálogo Nacional (CDN), um processo de negociações de paz que durou até janeiro de 2014, e contou com a participação de representantes 57 Hadi era um sul-iemenita, que, inclusive, tinha sido aliado de al-Bid na época da unificação do Iêmen, mas que passara a apoiar o CGP a partir da Guerra de Secessão de 1994, por discordar das ambiciosas intenções separatistas de al-Bid no Sul (JOHNSEN, 2014). 96 de todos os espectros políticos do Iêmen. O objetivo central da CDN era criar uma nova constituição para o Iêmen. Contudo, uma das decisões centrais realizadas durante os diálogos foi a de transformar o Iêmen em um Estado federativo (SALISBURY, 2014; ZIMMERMAN, 2014). É sabido que o Iêmen possui diversas fragmentações regionais históricas, e, nesse período de transição, o federalismo foi visto por alguns líderes como uma maneira de impedir uma fragmentação do Estado ao dar maior autonomia a unidades regionais. Assim, em fevereiro de 2014, o presidente Hadi reuniu um comitê formado especialmente para definir quais seriam as divisões federativas do Estado iemenita. No dia 10, foi votada uma proposta de divisão em seis regiões: duas no Sul, e quatro no Norte, enquanto as cidades de Aden e Sanaa seriam autogovernáveis, cada uma sendo um distrito federal separado. A divisão, contudo, desagradou enormemente os movimentos de oposição. Figura 7: A proposta de divisão do Iêmen em seis regiões Fonte: ZIMMERMAN, 2014 O al-Hirak alegava que a divisão do Sul era uma tentativa de enfraquecer as suas ambições de independência, ao passo que os Houthi alegaram que a divisão federativa deixava a maior parte das reservas de petróleo e gás natural para o Sul – de fato, as regiões com maior potencial petrolífero haviam ficado concentradas em apenas duas regiões federativas – e que a região de onde eles atuavam, Saada, tinha sido prejudicada pela falta de acesso ao mar. Os acordos, portanto, fracassaram, e serviram para intensificar ainda mais as tensões entre os grupos 97 insurgentes que, desde o período Saleh, não se sentiam representados pelas políticas do governo central (SALISBURY, 2014). Em agosto, Abdulmalek al-Houthi, que assumira a liderança do movimento Houthi desde a morte de seu fundador em 2004, convocou seus seguidores para protestos contra o governo, que caracterizava como corrupto e incapaz de levar a cabo as reformas necessárias para melhorar a vida da população. Em um país em que a taxa de desemprego entre os jovens com menos de 30 anos era de 65%, com 50% da população analfabeta – 70% entre as mulheres – e com os preços do petróleo em queda contribuindo para colapsar a economia já frágil do país, não era muito difícil encontrar apoiadores para esse discurso. Protestos ocorreram no mesmo mês, reunindo milhares de pessoas na cidade de Sanaa. A insurgência Houthi, armada, começou a formar acampamento ao redor da capital e de prédios ministeriais em uma tentativa de tomá-la. As forças do governo Hadi logo responderam, tomando as ruas e expulsando os manifestantes, preocupando a comunidade internacional de que a situação poderia novamente se tornar violenta no país. Em setembro, o presidente tentou negociar com os Houthi para incluir o grupo no governo, mas as propostas foram recusadas. No dia 18, as milícias Houthi tomaram Sanaa, tomando controle dos prédios do governo e da rede de televisão controlada pelo Estado (BALANCHE, 2014; GUÉHENNO, 2015; UNITED NATIONS, 2014). Um acordo foi assinado no dia 21 de setembro entre o governo, os Houthi, membros do al-Hirak e do GPC prevendo a nomeação de membros de todos os grupos para postos do governo e um cessar-fogo entre as forças Houthi e as forças do governo. Os Houthi, contudo, não se mostraram dispostos a cumprir com a parte do acordo que exigia que eles se desarmassem e saíssem de Sanaa, por conhecerem o histórico do país de preponderância das forças do Estado contra todo e qualquer tipo de oposição. O presidente Hadi nomeou um novo primeiro-ministro que não pertencia a nenhum partido político, como forma de demonstrar neutralidade e respeito aos acordos. O CGP, apesar de ser o partido de que Hadi fazia parte, pela primeira vez ficava à margem do processo decisório, cumprindo o papel de partido e não mais de Estado, como fora na época de Saleh. Isso levou a divisões dentro da própria cúpula do governo, com Hadi criando inimizades com quadros do CGP ainda leais a Saleh que discordavam da abordagem mais apaziguadora, enquanto, por outro lado, os Houthi seguiam avançando. O movimento do Sul, por sua vez, temia o avanço Houthi, pois considerava que o fortalecimento do grupo zaidita poderia 98 significar um retorno da predominância do Norte na política – além, é claro, das discordâncias existentes dado o fato de a maioria da população ao Sul ser muçulmana de orientação xiita. 4.2.3 A guerra civil de 2015 e a retomada das ameaças ao Estado As dificuldades de se chegar a um acordo em todas as partes em disputa levaram à eclosão de uma guerra civil em 2015, quando as milícias Houthi tomaram o palácio presidencial em Sanaa e derrotaram as forças do governo na capital. No dia 22, o presidente e o primeiro-ministro renunciaram, fazendo um acordo com os Houthi que garantia que seriam feitas as mudanças constitucionais por eles desejadas e uma maior participação nas instituições estatais. No mês seguinte, os Houthi dissolveram o parlamento e estabeleceram um governo interino. Hadi fugiu para Aden, de onde afirmou sua legitimidade como verdadeiro presidente do Iêmen e seu compromisso com o povo iemenita (AL BATATI, 2015; THE ECONOMIST, 2015; GUÉHENNO, 2015; 2015). Em março, os Houthi começaram a avançar em direção a Aden, e passaram a ser apoiados por forças dissidentes do exército leais a Saleh que, sob seu comando, apoiavam a insurgência para desestabilizar o domínio de Hadi. A situação culminou, no dia 25 de março, na intervenção militar de uma coalizão de países árabes liderada pela Arábia Saudita, em uma operação chamada Operação Tempestade Decisiva. A coalizão recebeu, desde o começo, apoio logístico dos EUA, os quais, contudo, mantiveram atuação direta apenas em operações contraterrorismo visando atingir a AQPA (IISS, 2016). A nova situação no Iêmen apresenta uma série de novos desafios à permanência do Estado. Por ser uma guerra ainda em andamento, não cabe aqui, neste trabalho, documentar todos os avanços e retrocessos das forças envolvidas, uma vez que o cenário muda a cada dia. O que é possível afirmar, contudo, é que, mais uma vez a República do Iêmen encontra-se dividida. De um lado do conflito, encontram-se os Houthis, apoiados por forças dissidentes do exército e avançando cada vez mais sobre cidades ao Sul. De outro, estão as forças do governo Hadi, recebendo apoio da coalizão militar liderada pela Arábia Saudita, que tenta recuperar as cidades sob controle Houthi. Existem, ainda, as forças separatistas do Sul do Iêmen, reunidas sob o alHirak, que, apesar de descontentes com o governo, sentem-se ainda menos representadas pelo avanço da insurgência zaidita do Norte. Nesse cenário de instabilidade, fortalecem-se a al-Qaeda na Península Arábica, cujas ações acabam sendo ignoradas momentaneamente pelo governo, e o 99 Estado Islâmico, que, em 2015, além do Afeganistão, anunciou ter estabelecido uma base também no Iêmen. O Estado iemenita, atualmente, perde o controle de significativas porções do território para os Houthi – afinal, vale lembrar que, as regiões dominadas pelos Houthi ao Norte, apesar de serem geograficamente menores que as regiões sob controle do governo, são algumas das regiões mais populosas do Iêmen. As Forças Armadas, assim como o território, também se encontram fragmentadas, divididas entre elementos leais ao presidente Hadi e dissidências em defesa do retorno do ex-presidente Saleh. A atuação da Arábia Saudita e seus aliados, bem como a dos Estados Unidos, em uma tentativa de defender o governo, acabam, também, contribuindo para a instabilidade do país, uma vez que, não raramente, seus bombardeios atingem centenas de civis. O conflito no Iêmen, apesar de não produzir significativos fluxos de refugiados para fora do país – em virtude, em grande medida, de ser uma população extremamente pobre que tem, portanto, poucas condições de emigrar – já é responsável por um grande número de pessoas internamente deslocadas. A população iemenita sofre com a falta de recursos básicos como água e comida, dependendo dos grupos que dominam cada região para obtê-los. Apenas a observação dos próximos acontecimentos pode mostrar se o Estado iemenita conseguirá sobreviver, mas é importante compreender que a crise desse Estado não é fruto apenas da guerra civil de 2015. Conforme visto neste capítulo e no capítulo anterior, o Estado iemenita foi sempre regionalmente fragmentado, funcionando em um sistema de lealdades e corrupção que dá grandes poderes a líderes tribais. A crise atual que o país vive nada mais é, portanto, do que o resultado da fragilidade que, por anos, permeou todas as instituições estatais iemenitas, das eleições às forças armadas. 100 5 CONCLUSÃO Este trabalho buscou analisar os casos do Afeganistão e do Iêmen dentro da discussão sobre a falência ou colapso de Estados no mundo contemporâneo. Tinha-se como hipótese que era possível afirmar que os Estados afegão e iemenita estão em crise – rejeitando-se, a princípio, o uso do termo “falência” –, e que as razões para isso eram múltiplas. Essas razões não eram tidas como meramente conjunturais, pelo contrário: acreditava-se que muitos dos desafios postos ao Estado nestes países estavam presentes desde sua formação. As hipóteses secundárias eram de que elementos como o sectarismo e o tribalismo, a intervenção estrangeira e a atuação de atores não-estatais eram elementos que contribuíam para a crise do Estado, e que eram intensificados pelas dificuldades enfrentadas pelas economias destes países. A desintegração da União Soviética ao final da Guerra Fria e a Guerra ao Terror iniciada em 2001 eram percebidas como eventos intensificadores da fragilidade destes Estados. De modo a desenvolver os problemas e hipóteses expostos na introdução, o trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, foi apresentada a discussão sobre a falência e o colapso de Estados surgida no pós-Guerra Fria e intensificada no século XXI. Para tal, mostrouse o papel fundamental que o Estado desempenha no campo das Relações Internacionais, principalmente desde a Paz de Westfália, quando se consolidou o reconhecimento do Estado como ator internacional. Demonstrou-se, porém, que a ordem mundial de Estados estabelecida desde 1648 foi moldada pelo continente europeu, e que a maneira como muitos dos debates acerca do Estado foram moldados posteriormente baseou-se nas características do Estado nacional europeu. O debate sobre a falência do Estados foi apresentado como sendo um desses casos, ressaltando-se, ainda, o fato de que foi convenientemente instrumentalizado pelo governo dos Estados Unidos após os ataques de 11 de setembro para justificar intervenções militares e humanitárias nos supostos “Estados falidos”. Tendo-se em vista o fato de que tanto o Afeganistão como o Iêmen passaram a figurar no topo das listas dos Estados falidos, o capítulo apresentou as principais definições conceituais deste debate, mostrando que, de maneira geral, supõe-se que Estados falidos são Estados que falham em cumprir com suas funções básicas, e que o colapso é o estágio posterior à falência. Esses conceitos, contudo, são bastante criticados, visto que não há um consenso na academia sobre o que configuram as funções do Estado. O conceito de falência abarca os mais variados tipos de fragilidades e modelos de Estados, sendo, portanto, um conceito cujo uso pode 101 ser facilmente equivocado ou instrumentalizado para fins políticos. Por fim, o primeiro capítulo mostrou que, além da crítica ao conceito amplo de falência de Estados, cabe ressaltar que se trata de um conceito fundamentado em uma concepção de Estado nacional europeia, que não se pode aplicar automaticamente a Estados do Terceiro Mundo. Isso porque estes Estados passaram por processos de formação muito distintos dos europeus, a depender da época e do continente em que se formaram, e, em muitos casos, possuem estruturas ainda muito distintas – o que não significa que sejam piores, falidas ou mais primitivas. Nesse sentido, o segundo capítulo apresentou as trajetórias de formação do Estado no Afeganistão e no Iêmen, compreendendo-se a atenção especial que as particularidades de cada Estado devem receber nesse tipo de análise. O Afeganistão teve sua integração ao sistema estatal eurocêntrico forçada, tendo sido criado como um Estado-tampão entre os impérios russo e britânico. Em 1919, o Afeganistão, que até então possuía uma sociedade e uma estrutura de governança distintas das dos países europeus, conquistou sua independência oficial, passando a ser reconhecido como membro do sistema internacional de Estados. O aparato estatal afegão, contudo, era ainda muito dependente das alianças tribais das diversas etnias existentes em seu território, e passou a primeira metade do século XX sendo fortemente dependente da ajuda financeira britânica. A partir dos anos 1950, passou a ser financiado pela União Soviética, o que culminou na intervenção soviética de 1979. Essa intervenção, realizada para defender o regime do partido comunista afegão que subira ao poder em 1978, acirrou ainda mais as divisões existentes no país e as dificuldades do Estado, cujas Forças Armadas passaram a depender da ajuda soviética e de milícias contratadas para controlar o território. A guerra civil do período socialista gerou um enorme fluxo de refugiados, muitos dos quais foram recrutados para guerrilhas de oposição formadas por soldados mujahidin que eram financiados, principalmente, pelo Paquistão, pelos EUA e pela Arábia Saudita. Essas bases de treinamento seriam o berço de organizações como a al-Qaeda, que viria a exercer influência na desestabilização do Estado. No caso do Iêmen, sua conformação como Estado também ocorreu em um contexto de disputa entre impérios, neste caso, entre o britânico e o otomano. Porém, diferentemente do ocorrido no Afeganistão, no território iemenita foram estabelecidos entrepostos coloniais e foi acordada uma linha divisória para evitar contendas entre os britânicos e os otomanos. A divisão não levou em consideração as divisões regionais, religiosas e tribais existentes no território, tal qual ocorreu no Afeganistão. A parte Norte tornou-se independente antes da Sul em virtude do 102 desmembramento do Império Otomano, e xiitas e sunitas passaram a ser governados por imãs xiitas zaiditas. A revolução de 1962 acabou com esse domínio e instaurou uma república. Ao Sul, os povos ainda dominados pelos britânicos lançaram sua revolução um ano após a revolução do Norte, e conquistaram sua independência em 1967. Ambas as revoluções contaram com apoio externo, tanto de países vizinhos quanto de grandes potências mundiais, como o caso da União Soviética no Iêmen do Sul. As relações entre o Norte e o Sul do Iêmen pendularam entre tensões e tentativas de unificação – estas sempre dificultadas pelos diferentes regimes estabelecidos em cada uma das partes e pelo tribalismo com que cada Estado precisava lidar internamente em busca de legitimar seus próprios governos. A unificação finalmente ocorreu em 1990, mas as divisões regionais, religiosas e políticas seguiram impedindo que a população fosse integrada em uma única sociedade nacional, e o Estado unificado não representava, portanto, um interesse popular universal. A desintegração da União Soviética teve grande impacto sobre os Estados afegão e iemenita que, como visto no capítulo dois, chegavam aos anos 1990 já com muitas dificuldades. Assim, o terceiro capítulo iniciou nesse marco histórico, mostrando como as fragilidades das estruturas estatais foram intensificadas com o fim da Guerra Fria e o advento do século XXI. O fim da ajuda de Moscou e dos países do bloco socialista fragilizou a economia afegã, e a retirada dos soldados soviéticos fez com que o governo central perdesse o controle sobre praticamente todo o território para além da capital, Cabul. O fim do apoio político da URSS também levou a uma disputa de poder entre as lideranças dos principais partidos mujahidin que tinham se oposto ao governo comunista. A disputa levou à guerra civil, que causou ainda mais fragmentação, com cada região dependendo das alianças de seus respectivos senhores de guerra e suas milícias. Gerou também divisões dentro das próprias Forças Armadas, desafiadas pelo poder militar dos líderes regionais. A quase ausência do Estado naquele momento permitiu a ascensão do Talibã, que prometia ordem e estabilidade ao Afeganistão. O grupo, porém, pouco se preocupou em construir um aparato estatal para além da lei islâmica e de uma polícia religiosa, promovendo a unidade regional através da violência e do terror. Nesse contexto, surgiu e se fortaleceu também a al-Qaeda, que viria a ser a maior organização terrorista do mundo. A proximidade do governo Talibã com a al-Qaeda, responsabilizada pelos ataques de 11 de setembro em Nova Iorque, levou à intervenção estadunidense no Afeganistão. As forças da OTAN que foram mobilizadas no país conseguiram derrubar o governo Talibã e retomar o controle do território em auxílio ao exército 103 afegão, mas a fragilidade da estrutura estatal impediria que o Afeganistão conseguisse adquirir plena autonomia no curto prazo. Além do fim da ajuda soviética, que influenciou fortemente a unificação do Iêmen, o período do imediato pós-Guerra Fria foi marcado por intensa crise econômica, bem como pela eclosão de uma guerra civil no novo país. A unificação das estruturas dos dois Estados anteriormente existentes não contribuiu para eliminar a importância das lealdades tribais e das grandes lacunas de desenvolvimento entre as regiões. O novo governo do Iêmen foi marcado, na metade final dos anos 1990, por um domínio autoritário das lideranças políticas do Norte sobre as do Sul, com instituições como o partido do governo e as eleições marcadas por crescente corrupção. Assim como no Afeganistão, no Iêmen, as Forças Armadas se encontravam fragmentadas, visto que os militares mantinham suas lealdades regionais e que, em virtude disso, o governo central discriminasse deliberadamente os oficiais oriundos do Sul. O descontentamento com a corrupção e com o autoritarismo do governo central levavam à percepção popular de que o Estado existia apenas para servir aos interesses de uma elite política. Foi a partir dessa percepção que surgiram de duas forças de oposição, uma no Norte, o movimento al-Houthi, e outra no Sul, o movimento al-Hirak. Esses dois movimentos eram a prova da existência de fragmentação social no Iêmen. O Iêmen também sofreu as consequências da Guerra ao Terror liderada pelos EUA, em virtude da presença de militantes da al-Qaeda no território iemenita, contra quem Washington passou a realizar bombardeios frequentes. A existência de movimentos da oposição e a presença estrangeira fragilizaram ainda mais a legitimidade do governo do presidente Ali Abdullah Saleh, que caiu após os protestos da Primavera Árabe e foi sucedido por Abdu Rabbu Mansour Hadi. O novo presidente, porém, enfrenta ainda sérios problemas para governar o território, dada a manutenção da fragmentação da sociedade e das Forças Armadas em razão de uma guerra civil que se prolonga desde janeiro de 2015. Com todas essas conclusões parciais obtidas com o desenvolvimento de cada capítulo para perseguir os objetivos da pesquisa, é possível concluir que as hipóteses apresentadas foram confirmadas. Se fossem levadas em consideração as definições conceituais sobre “Estado falido” contidas no primeiro capítulo, seria possível dizer que o Afeganistão e o Iêmen são, hoje, Estados falidos. Com a dificuldade em controlar o território, devido à fragmentação das Forças Armadas nacionais, com as economias em decadência cada vez maior, dependentes da ajuda externa ou do tráfico, com a existência de líderes regionais ou tribais que ainda exercem enorme poder e 104 contestam a legitimidade dos governos e partidos existentes, e com a necessidade de assistência internacional para mitigar problemas de corrupção, administração e realocação de recursos, seria difícil dizer que esses Estados cumprem com algumas das funções consideradas básicas por muitos acadêmicos. A existência de leis internacionais mais amplas com relação à independência de Estados permitiu a multiplicação do número de Estados existentes, bem como a sobrevivência dos mais frágeis. Contudo, conforme visto, o conceito de falência está carregado de significado político, e reduzir o Afeganistão e o Iêmen a Estados falidos seria incorrer em um equívoco ao se analisar como se deu o seu processo de formação. Muitas das lacunas e falhas existentes em suas estruturas estatais não são resultado do “fracasso” de suas sociedades ou de seus governos, mas sim de uma inserção forçada e tardia no sistema interestatal, ambos em um contexto de imperialismo. Nem o Estado afegão nem o Estado iemenita existem há tanto tempo quando os Estados nacionais europeus, os quais tiveram centenas de anos para se tornarem Estados fortes. Esses dois Estados foram mantidos no sistema internacional também forçosamente, visto que dependeram – e ainda dependem – enormemente de ajuda militar, econômica e técnica estrangeira para conseguirem prover o mínimo necessário à população. No século XXI, a ajuda a esses países passou a ser vista como necessária para que seus Estados não colapsassem, uma vez que vácuos de poder passavam a ser percebidos pelo mundo ocidental como terrenos para surgimento e fortalecimento de organizações terroristas. Em ambos os casos analisados, a estrutura do Estado também serviu, em alguma medida, para enriquecer as elites no poder: no Iêmen, por meio da corrupção desenfreada do regime de Saleh; no Afeganistão, por meio da economia do ópio. Esse funcionamento contribuiu para acirrar ainda mais os descontentamentos tanto do povo quanto dos líderes regionais e tribais. Em países como o Afeganistão e o Iêmen, cuja população é marcadamente fragmentada e não integrada em uma única sociedade nacional, o Estado passa, por vezes, a ser um interesse particular. Nesses casos, o tribalismo e os regionalismos sobrevivem e desafiam a consolidação do Estado. As guerras civis atualmente em curso no Afeganistão e no Iêmen tornam difícil fazer previsões sobre qual será o futuro desses dois Estados, nem mesmo afirmar até que ponto ainda existe uma estrutura estatal em funcionamento. Sabe-se que o controle territorial é baixo, que as instituições democráticas sofrem com fraudes frequentes e que as economias apresentam pouco 105 ou nenhum crescimento. Contudo, os Estados ainda estão em desenvolvimento, e, por enquanto, não é possível afirmar se conseguirão superar os desafios, se continuarão sendo Estados simplesmente diferentes dos Estados ocidentais ou se novos modelos emergirão. Apenas a observação dos próximos eventos permitirá chegar a tais conclusões. O que se pode afirmar é que os conflitos existentes hoje não expõem fragilidade meramente conjunturais, e sim reflexos de características que sempre existiram e que desafiam e transformam, diariamente, o modelo de Estado como se conhece. 106 REFERÊNCIAS AL BATATI, Saeed. 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