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Entre metro e mantra: a poesia grega arcaica em tradução e performance brasileiras Guilherme Gontijo Flores (UFPR) A verdade é como um tigre que tivesse muitos cornos, ou então como uma vaca a que faltasse o rabo. (Poema zen anônimo, por Herberto Helder) Perviver, verbo difícil. Impossível, no étimo, que seria viver pleno, por inteiro, quando toda vida é, por definição, precária, mutável, inacabada; no entanto também uma abertura, se pensarmos como um viver além do vivido, um modo de continuidade do que acaba. É no contraste entre as duas ideias que as obras pervivem, paradoxalmente vivas e com certa estabilidade material — sobretudo após o desenvolvimento da imprensa e das gravações de áudio e vídeo —, ou seja, inteiras, porém na medida mesma em que finitas, findas, abertas à subjetividade que as interpela. Isso se dá porque a condição de pervivência é o anacronismo constitutivo de toda escritura; nesse sentido, perviver é viver fora do suposto tempo original, fora do tempo de um texto original; é lançar a demanda do sentido adiante, abrir a semiose da obra além do que poderia estar nas condições históricas de sua produção. Ao tratar sobre a noção de origem (Ursprung), dizia Walter Benjamin: Apesar de ser uma categoria plenamente histórica, a origem não tem nada em comum com a gênese. ‘Origem’ não designa o processo de devir de algo que nasceu, mas antes aquilo que emerge do processo de devir e desaparecer. A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano do factual, cru, manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado (2013: 34) Se pensarmos assim, a pervivência das obras de origem da literatura ocidental — a saber, as gregas e as romanas — está lançada num devir de abertura que exige sempre que a sua condição de inacabamento produza novas respostas. Ao comentar essa passagem de Benjamin, Georges DidiHuberman concluirá que o processo deve se dar numa “verdadeira montagem temporal”, que ele mesmo explica: “Não há ‘remontar' histórico senão pela ‘remontagem’ de elementos previamente dissociados de seu lugar habitual” (2017: 121). Poucas linhas depois, ele chega ao ponto fulcral: Não se construirá um saber histórico filosoficamente digno desse nome, senão ao expor, além das narrativas, dos fluxos e das singularidades eventuais, as heterocronias (empreguemos essa palavra se quisermos sublinhar seu efeito de heterogeneidade), ou as anacronias (empreguemos essa palavra se quisermos sublinhar seu efeito de anamnese) dos elementos que compõem cada momento da história. E poderíamos ampliar a noção de um conhecimento histórico “filosoficamente digno” também para um conhecimento “poeticamente digno”, no sentido de estabelecimento de uma poética histórica e de uma poética presente. Decerto, Benjamin carregava, no período da escrita de Origem do drama trágico alemão, certa ideia de messianismo que, ao seu modo, perdurará até suas Teses sobre o conceito de história; quando vemos o revirar do passado como condição de redenção do presente; no entanto poderíamos manter o projeto ético como demanda de construção do presente, sem considerarmos um aspecto — possível ou não — de redenção. Quero com isto dizer que, sendo a heterocronia ou anacronia uma condição do pensamento acerca das origens e de suas pervivências, é preciso inundar de presente o passado também como condição de levar o pensamento ao seu limite crítico. Desse modo, o anacronismo fundacional de todos os Estudos Clássicos por todo o mundo deixa de ter seu peso melancólico (que já associei ao pensamento tradutório mais tradicional em Flores 2014a) e pode assumir certa alegria, uma “Babel feliz” nos termos de Roland Barthes. Assim, poderíamos “compreender que em cada objeto histórico todos os tempos se encontram, entram em colisão, ou ainda se fundem plasticamente uns nos outros, bifurcam ou se confundem uns com outros” (Didi-Huberman, 2015:46). Nessa compreensão da anacronia, a proposta de Paul Zumthor de que o melhor modo de conhecer as poéticas orais do passado é ver as poéticas orais vivas no presente aparece não como um gesto resignado à falta de amostras, mas sim como gesto político e ético das poéticas; donde vem sua injunção fundamental: “é preciso não apenas descrever o passado: deve-se fazê-lo reviver” (Zumthor, 2005: 113). E quero acreditar que um lugar chave para fazer reviver o passado e para garantir sua pervivência, no sentido mais forte e complexo do termo, está nas traduções poéticas; entendo como traduções poéticas não necessariamente aquelas que processam uma isomorfia em relação ao original (como propunha Haroldo de Campos, 2004), ou mais as mais formalizantes e formalistas; proponho que as traduções poéticas sejam aquelas que põem a poética do passado em vertigem com a poética do presente, e há modos muito variados de fazer isso, porque, como defende Henri Meschonnic “A poética da tradução, como prática teórica, é uma poética experimental.” (1973:306). Em outras palavras, a tradução poética se dá num lugar de abertura violenta da anacronia, porque demanda uma aventura histórica do sujeito em choque com outras subjetividades; portanto, em vez de responder à demanda do original com a formulação arqueológica de uma forma mentis1 organizada e estável, ela produz um entrecruzamento que põe o 1 Conceito muito usado no belo trabalho de Paulo Martins (2011). texto do passado em nova chance de vida; porque acabado, morto, ele pervive. Donde se pode pensar um outro uso de per, com o sentido de “até o fim”, perviver é viver até o fim, ou melhor dizendo, viver a partir do fim. Nesse ponto, podemos perceber de que modo na tradução, como nas poéticas orais, as funções de receptor e produtor se confundem, porque instáveis e abertas, na medida em que uma nova performance se faz, quer porque o ouvinte passou a cantar, quer porque o tradutor acaba por produzir um novo texto: “o ouvinte torna-se por seu turno intérprete, e, em sua boca, em seu gesto, o poema se modifica de forma, quem sabe, radical” (Zumthor 2010: 258). Essa modificação é o gesto da pervivência; como um organismo humano, que ao longo de sua vida precisa se alterar quase que por completo, para permanecer vivo, a tradição literária, ao viver, se altera, no mais das vezes hermeneuticamente, mas também materialmente; quando é performada, quando é traduzida. Gostaria então de, saindo deste preâmbulo teórico, apresentar um pouco da poética experimental que tem regido a minha prática de tradução e performance de poesia mélica grega arcaica, tanto na solitude da escrita, quanto em performances coletivas com o grupo Pecora Loca. Um percurso diante do metro Quando comecei a traduzir as Elegias de Sexto Propércio, em meados de 2005, o problema da métrica antiga em tradução parecia resolvido: havia um consenso de que, sendo impossível recriar os padrões rítmicos das sílabas longas e breves numa língua moderna que não apresentava as mesmas características fonéticas, a solução mais plausível para uma tradução poética isomórfica seria utilizar metros mais tradicionais da língua portuguesa. É o que encontramos no Livro de Catulo por João Angelo Oliva Neto, na Ilíada de Homero por Haroldo de Campos, nas Bucólicas de Virgílio por Raimundo Carvalho, etc.; obras em que, coincidentemente, todos optavam por traduzir o hexâmetro datílico por dodecassílabos. Diante da auctoritas de tradutores que eu admirava e admiro, senti-me livre para emular o modelo de Oliva Neto na tradução do dístico elegíaco, usando um dodecassílabo seguido de decassílabo. Não cabe aqui a discussão formal e métrica que apresentei depois, na escrita de minha dissertação; fundamental é notar que a proposta de outros modelos, como a criação de novos metros por Carlos Alberto Nunes, estava em baixa, soava como mal resolvida, porque estrangeirizante e sem fundamento na história da nossa própria literatura2 . A apreciação crítica de Haroldo de Campos (1999:143) acerca do trabalho de Nunes talvez tenha surtido efeito negativo sobre as gerações seguintes, apesar de a considerar “digna de estima” e apontar que ela é responsável pela “introdução de uma espécie de hexâmetro brasileiro”. Nos últimos anos, Gonçalves et alii (2011) e Oliva Neto (2014) retomaram a discussão acerca do versos núnico com argumentos para recepção mais positiva. 2 Quando, quase uma década depois, eu decidi traduzir as Odes de Horácio para meu doutorado, as coisas estavam mudando. Para mim, surgia um problema novo, que era a incrível polimetria das Odes, com treze esquemas métricos diferentes; para além disso, havia ainda a questão de como a poesia lírica seria, de fato, lírica. Nos meus primeiros experimentos, em 2010, optei por criar estrofes em português sempre a partir da métrica tradicional de língua portuguesa, como já havia feito com Propércio, de modo a produzir um paralelismo nos usos métricos de Horácio; para cada metro dele, eu faria um metro em português, e assim recriaria os jogos derivados das repetições métricas em odes distantes. No entanto, ao tomar conhecimento do trabalho de Leonardo Antunes (2011), com traduções que se baseavam no experimento métrico de Nunes, e da obra do helenista francês Philippe Brunet com traduções e performances de teatro e música gregas3 , me senti impelido a radicalizar o processo. Em vez de usar a métrica portuguesa, ou mesmo de criar metros em português a partir de Nunes, eu me propus a vocalizar os poemas latinos segundo os padrões rítmicos dados pelos jogos de sílabas breves e longas, para então traduzi-los vocalmente, como se fosse uma tradução de canção. Os detalhes técnicos não retomo aqui (cf. Flores 2014b), mas posso resumir dizendo que, ao contemplar a poética oral inerente aos metros antigos, a canção popular brasileira se tornou o principal contraponto para compreensão, experimentação e formulação das soluções poéticas em jogo; esse anacronismo passou a ser a condição de uma aproximação. Por exemplo, diante da forma da estrofe sáfica horaciana: —v———vv—v—x —v———vv—v—x —v———vv—v—x —vv—x Eu me propus a traduzir uma ode para recriar na voz aquele padrão rítmico, mesmo que ele não fosse natural na fonética falada da nossa língua. Eis o exemplo da ode 1.38 Persicos odi, puer, apparatus. Displicent nexae philyra coronae; mitte sectari, rosa quo locorum sera moretur. Brunet é responsável por uma tradução hexamétrica da Ilíada (Homère, 2010), polimétrica de Safo (Sapho, 1991) e diretor do grupo de teatro Démodocos, dentre vários outros trabalhos. 3 Simplici myrto nihil allabores sedulus curo. Neque te ministrum dedecet myrtus neque me sub arta uite bibentem. Essas pompas persas, garoto — odeio. Eu dispenso a tília ao trançar coroas: não procures onde talvez a rosa tarda perdura. Não me ponhas nada na simples murta. Murta não destoa de ti, que serves, nem de mim destoa, que sob a densa vinha hoje bebo. Uma primeira gravação foi feita e apresentada online, de modo amador, apenas como um esboço de performance4 . Pela gravação já é possível depreender um novo passo desse experimento: para realizar uma poética lírica, eu precisava não apenas vocalizar o ritmo musical dos poemas segundo os metros gregos e romanos, mas também cantá-los. Na ausência de melodia sobrevivente, optei por compor melodias simples, em geral modais (a melodia está em modo dórico antigo), que permitissem manter a atenção no texto complexo das Odes e fiz, para além de uma recriação métrica vocal também uma melodia para cada esquema horaciano5 ; para tanto, achei que, para levar o desafio trans-histórico ao limite, valeria a pena compor com a limitação formal dada pelas sete cordas de uma lira. Por isso, comprei primeiro uma lira pequena, depois mais duas, que se tornaram parte constitutiva do processo tradutório; e aqui está uma questão fundamental, o canto e a matéria capaz de fundar a melodia do canto passaram a ser decisivas no texto; as palavras precisavam caber não apenas no metro, mas no modo de enunciar melodicamente o poema cantado em português. Ao longo desses anos de tradução experimental, percebi que eu precisava também alterar o modo epistêmico das minhas apresentações em eventos, palestras, aulas, etc.; porque, diante da prática tradutória vocal, passou a haver a necessidade de uma apresentação vocal e instrumental melódica dessas traduções; em outras palavras, para ser esse tradutor que eu buscava ser, eu precisava me transformar em performer das traduções, um procedimento que, depois, vim a saber que também tinha se tornado praxe nos trabalhos de Leonardo Antunes. Considero isso um ponto teórico 4 O resultado dessa primeira gravação está disponível em: https://soundcloud.com/guilherme-gontijo-flores/ode-138carmen-138. Mais gravações podem ser consultadas em: https://soundcloud.com/guilherme-gontijo-flores. Lá é possível perceber que, para traduzir no canto a poesia antiga, passei também a traduzir o canto da canção do presente, com suas melodias. No site deixo as duas frentes misturadas, numa espécie de convite crítico e poético ao contraste entre poéticas vocais; ou seja, produzi uma montagem anacrônica de relações. 5 fundamental: o modo de traduzir pode levar a alterações imensas no próprio modo como concebemos uma palestra crítica e tradutória sobre poesia antiga, porque, ao priorizar a poética vocal, a apresentação do texto se mostra insuficiente, e a anacronia do canto e da melodia nova passa a ser a base a partir da qual a discussão se organiza. Foi nesse mesmo período que se formou o grupo Pecora Loca, em Curitiba. Junto com Rodrigo Gonçalves e alguns alunos, nós traduzimos ritmicamente e performaticamente o poema 63 de Catulo, com o mito de Átis, em 2015 (cf. Gonçalves et alii, 2015). Nós dois já narramos, com certa brevidade, o início dessa experiência de poética experimental tradutória em grupo (cf. Flores & Gonçalves, 2017:333-335); o que importa dizer aqui é que, no trato com a poesia grega e latina, a experiência do canto, da percussão, do choque de instrumentos, foi fundamental para a tradução dos poemas; as condições materiais presentes passaram a influir cada vez mais na determinação de como organizar o texto poético traduzido, porque não podíamos mais pensar a tradução fora da performance; dessa forma, ao traduzir um poema para ser cantado na Pecora Loca, as possibilidades de execução já entram em jogo, embora sempre haja uma grande abertura para desenvolver os arranjos em grupo, de modo imprevisto, seguindo uma poética oral instável. Nesse momento de choques uma questão ficou clara: o uso exclusivo de instrumentos musicais que imitassem os instrumentos antigos estava gerando uma confusão sobre os objetivos tradutórios e performáticos, tanto de minhas falas em eventos, quanto das apresentações da Pecora Loca em lugares variados; pois boa parte do público saía com a impressão de que estávamos fazendo um trabalho arqueológico de música e poética antiga, quando na verdade nos propúnhamos a colocar a poesia antiga cantada em português como experimento de alteridade e desestabilização das tradições poéticas vigentes. Diante disso, optamos por radicalizar os cruzamentos históricos a ponto de deixar óbvio que se tratava de uma poética do presente, de uma anacronia constitutiva; foi assim que somamos à lira, ao címbalo e ao tímpano também aulos, tambor Lakota, bodhran, contrabaixo, violino, violão, mandolim, matraca, castanhola, pandeiro, etc. Passei também a compor acompanhado de violão, considerando harmonia como parte da construção, ou usando escalas estranhas ao mundo antigo, como a pentatônica moderna ocidental e mesmo usando uma pentatônica japonesa. Outros membros do grupo passaram também a compor, fizemos colagens de melodias de Roberto Carlos e de Ramones para a tradição de Anacreonte e das odes anacreônticas, produzimos uma versão de Catulo 8 aproximada do thrash/death-metal de bandas como Sepultura, compusemos uma colagem multilíngue para a abertura de De rerum natura de Lucrécio, etc.6; passamos a cantar com várias pessoas ao mesmo tempo, ou a variar quem canta, pensando em como cada voz interfere no poema. Com a Pecora Loca ficou claro que a performance determinava profundamente os sentidos do original, porque o experimento da forma não se resumia à escolha do metro, das palavras, do registro, mas incluía a voz, os instrumentos, o ambiente inteiro da performance possível7; por isso entendemos hoje que nosso trabalho é o de tradução e(m) performance: a tradução ao mesmo tempo se ajunta e adentra a performance, numa simbiose complexa que não se encerra no mero significado textual. O fragmento: dilema da performance Tudo que narrei aqui como relato de poética tradutória experimental estava ainda ligado a poemas maiores, com uma sequência discursiva elaborada e um desenvolvimento poético. Alguns pontos interessantes surgiram ao perceber, por exemplo, que era possível cantar qualquer estrofe sáfica com a mesma melodia feita para o poema de Horácio, fosse ela o texto latino, a tradução brasileira, ou mesmo um texto grego de Safo e também sua tradução ao português. Vejamos a abertura do fragmento 16 de Safo: Ο]ἰ µὲν ἰππήων στρότον οἰ δὲ πέσδων οἰ δὲ νάων φαῖσ᾽ ἐπ[ὶ] γᾶν µέλαιναν ἔ]µµεναι κάλλιστον, ἔγω δὲ κῆν᾽ὄτ τω τις ἔραται. Dizem uns que exércitos e uns que os barcos e uns que os carros sejam o ser mais belo s]obre a terra negra — por mim seria o ser que se ama A própria organização do texto parece pressupor um modo melódico de apresentação que garante o contrafactum (prática de inserir um novo texto em melodia anterior) como um modelo possível para compreendermos a métrica antiga. Seria possível imaginar, embora nada reste que comprove tal hipótese, que os antigos (ou pelo menos os gregos arcaicos) sabiam os metros não por uma 6 Há alguns vídeos ao vivo disponíveis em: http://youtube.com/c/pecoraloca. Seria pertinente discutir, em outro momento, como a mudança de contexto altera profundamente o sentido da performance. No caso da Pecora Loca, já fizemos apresentações em lugares que vão de eventos internacionais acadêmicos a bares ao relento; em cada local o público estabelece uma relação muito diversa, que pode mudar por inteiro o sentido de uma mesma peça. 7 contagem silábica, mas por um modelo rítmico-melódico que demandava determinada distribuição de palavras, quase ao modo de um nomos. Isso, infelizmente, tomaria mais tempo do que eu poderia aqui desenvolver, mas permanece como uma hipótese interessante, sobretudo pelo fato de ser derivada de uma experiência prática de passar a cantar diferentes poemas de um mesmo metro com a mesma melodia. O problema maior que apareceu e tomou plena forma durante a tradução dos Fragmentos completos de Safo (2017) foio que fazer, do ponto de vista da performance, com um fragmento, mais especificamente com os fragmentos minúsculos. Antes dessa empreitada, apesar de ter lidado com alguns fragmentos longos de mélica grega arcaica, eu tinha passado muito rápido pelo dilema ao tentar musicar o breve frag. 413 de Anacreonte: µεγάλωι δηὖτέ µ’ Ἔρως ἔκοψεν ὥστε χαλκεὺς πελέκει, χειµερίηι δ’ ἔλουσεν ἐν χαράδρηι. outra vez feito ferreiro o Amor bateu martelo sobre mim na água invernal banhou-me por inteiro Ao perceber a recorrência métrica dos dois versos, regularizei os dois criando uma espécie que chamo “metro da execução”, no caso o seguinte: v v — || — v v — v — v — v — — Com esse padrão rítmico, criei uma melodia que relacionava acordes de violão e algumas interferências harpejadas de notas8 e, dada a brevidade do poema, passei a repeti-lo nas apresentações diversas vezes, livre ao improviso, enquanto variava o texto português e o grego; o modelo melódico, com seus acordes dissonantes, criava um movimento de tensionamento e repouso que me parecia interessante, porque fazia com que o fragmento pudesse, de fato, ter uma vivência poética de unidade; assim, sua repetição reforçava o caráter de poema integral, mesmo que não seja essa sua história. Nessa interferência performática, a anacronia das condições de leitura se impõe como condição de crítica do fragmento, pois, em vez de propor uma discussão acerca de seus possíveis contextos e sentidos originais, a tradução cantada propõe a contemplação do fragmento como obra, formando uma verdadeira poética do fragmento. 8 Uma gravação se encontra em: https://soundcloud.com/guilherme-gontijo-flores/anacreonte-frag-413-outra-vez. Algo similar havia se dado também com o frag. 168B de Safo: Δέδυκε µεν ἀ σελάννα καὶ Πληΐαδες, µέσαι δὲ νύκτες πάρα δ᾽ ἔρχετ᾽ ὤρα, ἔγω δὲ µόνα κατεύδω. Agora mergulha a lua e as Plêiades todas noite profunda o instante passa e deito-me solitária Seguindo o metro de execução que regularizava as duas primeira sílabas como longas (— — v v — v — —), aqui usei a mesma lira em afinação dórica utilizada para a estrofe sáfica e preparei um pequeno solilóquio que se repetia, numa melodia de gosto estrangeirizante pelos saltos9. O resultado pode soar como uma espécie de haiku musicado, ponto de toque entre o extremo oriente e Lesbos arcaica, por causa do modelo musical e da sequência de imagens. Ou, se não um haiku, talvez uma canção camponesa do Japão, como esta traduzida por Herberto Helder (2010:131): AS TRÊS CLARIDADES A Lua a leste, a oeste as Pléiades, o meu amado ao meio. Por certo, o poema se desenvolvia além dos quatro versos que nos chegaram; no entanto, o modo de sua sobrevivência condiciona os modos de leitura, ou ao menos nos convida a traçar encontros inusitados de culturas, mesmo que essa remontagem tenha o mais alto grau de arbitrariedade inventiva. Tempos depois, ao apresentar poemas de Safo numa palestra, com o intuito de cantar o máximo possível, optei por usar melodias que Leonardo Antunes havia feito para suas próprias traduções. Como nós dois estávamos, ainda que sem propostas ou diálogos diretos, fazendo um procedimento muito similar, a lógica do contrafactum podia se aplicar aqui, e, em vez de cantar a tradução dele, dei-me à liberdade de usar a minha tradução como novo texto à melodia de Antunes, pois ela cabia 9 Uma gravação se encontra em: https://soundcloud.com/guilherme-gontijo-flores/safo-168b. sem requerer nenhuma alteração textual, fosse ela rítmica ou lexical. Antunes, em sua gravação, acompanhado de violão, performava apenas uma vez o texto grego, seguido da tradução, criando uma bela microcomposição de menos de um minuto de duração, que me parecia remeter ao estado fragmentário do texto. Ao preparar uma nova performance, percebi que seria possível repeti-lo indefinidamente, tal como eu tinha feito antes com o fragmento 413 de Anacreonte. Segue o texto de Safo, frag. 102 γλύκηα µᾶτερ, οὔτοι δύναµαι κρέκην τὸν ἴστον πόθωι δάµεισα παῖδος βραδίναν δι’ Ἀφροδίταν Não posso ó doce mãe mais enredar a minha trama domada de desejo por criança de Afrodite Como resultado, creio que produzi um modelo de repetição que tornava o fragmento um pequeno lamento que poderia lembrar as cantigas de amigo da poesia trovadoresca galaico-portuguesa, com o detalhe de que a melodia de Antunes parecia ser menos próxima do canto contemporâneo, por não se organizar em termos de tensão e relaxamento; ela parecia, mais do que minha composição para Anacreonte, convidar o texto a se reenunciar sem fim determinado, sobretudo com a cesura provocada pelo metro de execução (v — v — v — — || v v — v — v — — ), que quase organiza cada verso num dístico, que poderia ser assim disposto: γλύκηα µᾶτερ, οὔτοι δύναµαι κρέκην τὸν ἴστον πόθωι δάµεισα παῖδος βραδίναν δι’ Ἀφροδίταν Não posso ó doce mãe mais enredar a minha trama domada de desejo por criança de Afrodite Além disso, a aproximação do canto de amor feminino grego arcaico e medieval tinha potencial para ressignificar criticamente as duas tradições, que costumam ser estudadas nos cursos de Letras quase sempre apenas sob o viés textual, sem considerar sua performance. Aqui o cruzamento de duas frentes distantes numa montagem complexa ganhava força de crítica via tradução, na medida mesma em que a tradução também se organizava como performance vocal. Para a mesma palestra, decidi usar ainda outra melodia que Antunes apresentava de forma breve, acompanhado de violão10 , incorporando a minha tradução como contrafactum. Segue o texto de Safo, frag. 115: Τίωι σ', ὦ φίλε γάµβρε, κάλως ἐικάσδω; ὄρπακι βραδίνωι σε µάλιστ' ἐικάσδω. Ah meu noivo adorado a que te comparo? ao rebento delgado é que te comparo. O metro da execução (— — — v v — v v — v — —), somado a uma melodia que parecia ficar sempre no tensionamento leve do fim de verso, sem realizar um relaxamento de repouso na tônica, foi uma solução impressionante, pois dialogava com o fato de os dois versos terminarem na mesma palavra, ἐικάσδω. Diante disso, a ideia de uma repetição indeterminada me parecia uma solução capaz de reviver o fragmento como poema em que a pergunta e a resposta não anulam a tensão da repetição melódica e lexical. Ao realizar isso, optei por cantar o poema sem acompanhamento de cordas e percebi que poderia ainda fazer o texto grego ceder lentamente à tradução, a cada hemistíquio de verso, performando uma rasura vocal, que transcrevo do seguinte modo: Τίωι σ', ὦ φίλε γάµβρε, κάλως ἐικάσδω; ὄρπακι βραδίνωι σε µάλιστ' ἐικάσδω. Τίωι σ', ὦ φίλε γάµβρε, κάλως ἐικάσδω; ὄρπακι βραδίνωι é que te comparo. Τίωι σ', ὦ φίλε γάµβρε, κάλως ἐικάσδω; ao rebento delgado é que te comparo.. Τίωι σ', ὦ φίλε γάµβρε, a que te comparo? ao rebento delgado é que te comparo. Ah meu noivo adorado a que te comparo? ao rebento delgado é que te comparo. Na realização vocal, mais do que apresentar uma tradução, o que tentei realizar foi uma espécie de metamorfose reforçada pelas repetições métricas, melódicas e lexicais; é esse movimento metamórfico a partir do fragmento grego que se torna a obra na tradução da performance, incorporando uma melodia não minha e, portanto, borrando a noção de autoria estrita. O poema 10 Vídeo acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=WxoQgVNGfWM. começava a parecer um mantra para epitalâmio. Aqui precisamos, ainda que brevemente, ver algumas constatações sobre o mantra, segundo Mircea Eliade, para considerar melhor suas implicações performáticas. No clássico livro sobre Yoga, resultado de sua tese de doutorado, Eliade afirma que: O valor prático e a importância filosófica dos mantras reside em duas ordens de fatos: em primeiro lugar, a função yógica dos fonemas utilizados como “suportes” para concentração; em segundo — e esta é a contribuição peculiarmente tântrica —, elaboração de um sistema gnóstico e de uma liturgia interiorizada através da revalorização das tradições arcaicas concernentes ao “som místico”. (s/d: 212, traduções minhas) Então estaríamos diante de uma potência mística original da linguagem reencenada e performada no mantra, que apresentaria poderes imensos, porque com isso seria possível adquirir até mesmo um saber supremo “diretamente, sem estudo, pela pronúncia adequada de certos mantras” (p. 214), caso haja concentração minuciosa na execução de cada letra e cada sílaba pronunciada. Isso só pode se dar, afinal, se entendermos que o mantra apresenta um acontecimento muito específico da linguagem que transcende sua condição de canto material. Assim Eliade o descreve: Um mantra é um ‘símbolo’ no sentido arcaico do termo — é ao mesmo tempo a ‘realidade’ simbolizada e o ‘signo’ simbolizante. Há uma correspondência oculta entre as letras e sílabas místicas do mantra […] e os órgãos sutis do corpo humano, por um lado, e, por outro, entre esses órgãos e as forças divinas adormecidas ou manifestas no cosmos. Ao trabalhar no ‘símbolo’, a pessoa desperta todas as forças correspondentes a ela, em todos os níveis do ser. (ibid.: 215) Nessa visão, mais do que mera correspondência entre linguagem, corpo e cosmo, o mantra pode ser o próprio objeto que ele representa, assim abolindo a lógica da significância através da representação e estabelecendo uma relação direta entre som e sentido; desse modo, uma série de mantras poderia ter eficácia ilimitada sobre o mundo, pois neles a linguagem coincide com o real. Na mesma página, Eliade nos apresenta alguns casos impressionantes de mantras que se formaram por resumo e abreviação de obras imensa, com milhares de estrofes, que terminaram em apenas uma sílaba a ser repetida, que então conteria todo o saber antes acumulado, desde que pronunciada de maneira adequada e concentrada; é com essa movimentação entre mística da linguagem e técnica de concentração que o mantra, pela repetição recitada, poderia vir a atuar sobre a realidade, com sua performatividade plena. Ora, é claro que, ao traduzir poesia grega, não tenho a pretensão de implodir nosso sistema de linguagem contemporânea ocidental com uma visão mágica da língua a partir da sublimação de fragmentos da poesia arcaica, nem sugerir que eles contenham uma chave direta da realidade se corretamente pronunciados. Penso mais nas potencialidades muito abertas das relações que se estabelecem, inclusive pelo não entendimento do performer e do público. Nesse caso, mais do que o mantra na sua performatividade, talvez o que tenhamos em jogo seja algo próximo dos dhāranīs indianos, que são uma espécie de mantra para os não-iniciados que os pronunciavam sem conhecimento específico e sem alcançar o entendimento prometido, também em práticas cotidianas sem intenções esotéricas. Os dhāranīs, como os mantras, são aprendidos a partir da ‘boca do mestre’ (guruvaktratah); são, então, algo bem diferente dos fonemas que constituem a linguagem secular ou que podem ser aprendidos nos livros — precisam ser ‘recebidos’. Mas uma vez recebidos pela boca do mestre, os mantras têm poderes ilimitados. (ibid.: 213) Eliade entendia assim que “O tantrismo elevou as ‘sílabas místicas’ — mantra e dhāranī — à categoria de veículo de salvação” (1978: 114), ou seja, que seu uso sem religiosidade poderia cair num vazio banal; no entanto, não precisamos ir tão longe e podemos nos contentar com a ideia mais modesta e, talvez niilista, de Vasubandhu, que ainda segundo Eliade (que dele discorda), escrevera que “o verdadeiro sentido dos mantras está em sua ausência de sentido e que, ao meditar em seu não-sentido, o indivíduo poderia compreender a irrealidade ontológica do universo” (apud Eliade, s/ d: 216). Seria possível então imaginar que esses mantras aqui surjam sem a “boca do mestre” que transmite seus poderes ilimitados, mas que, pela sua pronúncia grega e tradutória, instaurariam certa mágica da linguagem que permanece fora do alcance, ou ao menos uma visão do não-sentido da história a partir de fragmentos que, recontextualizados, se desdobram em novos modos de sentido. Dessa forma, a potencialidade do mantra, para esclarecer o ponto poético sobre o poema grego fragmentário, serviria como dupla anacronia ou heterocronia poética, num processo relacionado com aquilo que Didi-Huberman havia chamado de “‘remontagem’ de elementos previamente dissociados de seu lugar habitual”. O mantra, aqui despido de sua função religiosa original nas culturas hindus e budistas, para a realização de hinos e salvação, ainda guardaria a força de unidade e o potencial de relaxamento e meditação (ou, neste caso, de um transe poético); sua etimologia de man (mente) e tra (controle/proteção) poderia então se desdobrar num novo contexto de controle mental que recoloca a poesia grega arcaica num lugar em que música e religião não estariam tão separados quanto no mundo contemporâneo; mas essa experiência só poderia se dar por uma dupla diferenciação, por um lado, métrico-melódica rumo aos gregos, por outro, performática rumo ao oriente. A partir dessa primeira tentativa, realizei mais dois experimentos com fragmentos mínimos de Safo. O primeiro foi o frag. 147: µνάσεσθαί τινά φαιµι καὶ ἕτερον ἀµµέων sei que alguém no futuro também lembrará de nós Sendo apenas um verso, é muito difícil precisar o metro, mesmo que ele seja perceptível como: — — — v v — v — v v v — v —. No entanto, como em muitos poemas sáficos a abertura dos versos tende a uma série de ancípites (opcionais entre longa e breve), optei por considerar para metro da execução a seguinte disposição: — v — v v — v v — v v — v —, que aparece com mais frequência em outros fragmentos, assim alterando a segunda sílaba de longa para breve, no canto e trocando o lugar de longa entre a oitava e a nona sílabas. No início, tirei uma protomelodia dos próprios acentos do grego, influenciado pela gravação de Kalia Baklitzanaki para o novo fragmento de Safo conhecido como “poema dos irmãos”, com uma melodia composta por Armand D’Angour em modo mixolídio antigo11; desse modo, seguindo a suposta distância aproximada de uma quinta como base dos acentos gregos, fiz pequenas variantes pelos acentos específicos deste verso, em geral com semitons, sem pensar numa melodia para o metro em geral. Na Pecora Loca, este fragmento passou a ser performado com o violino realizando a melodia e um contrabaixo elétrico mantendo a nota de base constante, além alguns instrumentos de percussão12 ; com isso, realizamos uma peça que se torna longa, por vezes bem mais longa do que um poema que nos chegou inteiro, porque a melodia orientalizante, associada à repetição, permite um mantra coletivo que é, ao mesmo tempo, anúncio e confirmação da recepção e pervivência sáfica no Ocidente. No entanto, como qualquer performance desdobra os sentidos para sua função dêitica; cantar “sei que alguém no futuro também lembrará de nós” pode funcionar como duas frentes simultâneas: para além da confirmação sáfica, a frase desse mantra é também colocada e anunciada pela Pecora Loca que o performa e se apresenta historicamente como espaço de autoria que demanda a resposta de um público. Afinal, quando se canta um “de nós” (ἀµµέων no grego), como determinar quem é essa 11 Áudio disponível em https://www.bbc.co.uk/programmes/p02qpz87. 12 É possível conferir no início do vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bph5uUiZgeo&t=779s. coletividade? O fragmento atribuído a Safo não nos responde; afinal, não sabemos se seria a poeta assumindo o eu-lírico do poema, quem diria a frase, ou se uma figura outra, ficcional, ou se um coletivo num coral feminino, por exemplo. A abertura do fragmento libera ainda mais esse espaço vago para um nós-lírico que é performado (agora austinianamente) na performance vocal em que todos cantam e tocam juntos, variando entre o grego e o português uma frase que é rememoração do passado e reanúncio a um futuro imponderável. Cria-se afinal uma futurologia dupla que é gerada pela melodia arcaico-orientalizante por um lado (que desloca a experiência na geografia e no tempo), fazendo os performers se desdobrarem em vozes que anunciam o futuro do passado e o futuro do presente num só instante. Por fim, gostaria de apresentar o menor dos fragmentos que já performei, o frag. 146 de Safo: µήτε µοι µέλι µήτε µέλισσα mal me mexo por males e meles Como no caso anterior, precisar o metro em que o poema grego estaria composto é difícil, por isso segui o metro dado pelo verso, sem considerar sua relação com um todo maior; disso saiu o seguinte metro de execução: — v — v v — v v — —. À diferença do frag. 147, a performance fugiu de uma melodia baseada na lira, ou mesmo no acento das palavras, e se organizou como repetição monótona do ritmo, sem variar notas. A isso, depois, foram se agregando outros instrumentos além da voz. Primeiro a percussão, que acabou evocando certos movimentos da axé music baiana, com um pandeiro entre o samba e o repente, em seguida o baixo elétrico (emulando o movimento swing de “Odara” de Caetano Veloso) e o violino; como nos outros casos, quase todos cantam, porém, na ausência de uma melodia determinante, o modo de cantar está livre para cada intérprete durante a performance, assim como o tempo de duração13: em certos momentos, essa remontagem parece rememorar “How Beautiful Could a Being Be”, de Moreno Veloso, pela repetição de um só verso em forma dançante. O fragmento é bastante curioso, pois apresenta uma série hiperaliterativa sem equivalentes em todo o corpus sáfico (cinco palavras iniciadas com µ), que poderia ser traduzido como “não me importo com o mel nem com a abelha”, que, segundo Trifão (Tropos 25), seria um provérbio com o sentido de “não procuro nem o bem nem o mal”. No intuito de recuperar o jogo sonoro lúdico, recriei uma frase com cinco M’s em início de palavra, trocando a abelha por “males" 13 Performance disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bph5uUiZgeo&t=220s , a partir de 1h, 4m e 37s. e apresentando o mel em um plural arcaico “meles”. O resultado, na performance, é que esse fragmento, por ser brevíssimo, permite facilmente convidar o público para cantar em grego e, depois, também em português. Este relato, como percurso experimental, deve terminar inacabado, como todo movimento de pervivência. Não há como prever os efeitos específicos de fragmentos gregos traduzidos e musicados no presente, que circulam em espaços e contextos muito diversos, ainda mais quando se apropriam da poética da MPB e de certos aspectos do mantra: o que hoje fazemos na Pecora Loca é de fato experimentação com o inusitado, sonho de abertura em movimento. Este percurso narrado, então, se não chega a ser um manifesto, pode por certo se definir como um posicionamento de modos fluidos e corpóreos de organizar a tradição clássica a partir da tradução poética e da performance. Como relato, é também aspiração, potência de futurologia, essa ciência falha que não cessamos de praticar; como percurso pela metade, é um gesto a mais da maior pervivência dos clássicos e sonha continuar um caminho que ainda não se desvela por inteiro: é um caminho de risco, porque de experimento. O dom do dom Se o poema é uma espécie de dádiva, de dom que demanda a resposta do contradom da relação (de ouvinte, leitor, intérprete), a tradução funciona, paradoxalmente, como esse contradom em sua força maior e como o dom do dom, desdobramento da dádiva poética. Marcel Mauss, ao concluir seu ensaio sobre a dádiva, dizia que “felizmente, nem tudo ainda é classificado exclusivamente em termos de compra e venda. As coisas ainda possuem um valor sentimental além de seu valor venal, se é que há valores que sejam apenas desse gênero” (2015:292); com isso, percebia que um regime simbólico regia toda troca, com a demanda de um aceite à dádiva e uma reciprocidade. A obra do passado, em sua pervivência, é um caso raro em que temos a ilusão de que seria puro dom, oferta sem demanda de reciprocidade; no entanto, se o poema se oferta sem parar como o dom, sua demanda do contradom é a relação sempre renovada com o leitor e ouvinte. A tradução, como contradom, recebe o texto, devolve uma leitura crítica e poética, que por sua vez rasura e assume o lugar do novo dom, que demanda nova reciprocidade; porém as obras agem sempre num gesto público que remonta aos modelos do dom arcaico. Em sua proposta moral, Mauss afirma que “pode-se e deve-se voltar ao arcaico, ao elementar; serão descobertos motivos de vida e de ação que numerosas sociedades e classes ainda conhecem: a alegria de doar em público; o prazer do dispêndio artístico generoso; o da hospitalidade e da festa privada e pública” (p. 297, grifos meus). Se é assim, a lógica que rege a permanência das obras clássicas é também a permanência de um regime de trocas simbólicas entre os que se foram e os que continuam surgindo, numa teia complexa de cortes, revisões que expõem a anacronia como condição do contradom e na tradução o lugar muito delicado e importante em que o contradom para o passado torna-se esse dom do dom para o presente e o futuro. A demanda da tradução poética é então como estabelecer essa relação por uma remontagem ao passado e do passado; mais do que ponte para transmissão do passado ao presente, a tradução realiza um modelo de trocas em que valores simbólicos se pesam num mundo cambiante através dos tempos. Nesse sentido, um dos deveres dos Estudos Clássicos, em sua relação de dom e contradom (ou dádiva e retribuição) com as obras do passado, é o de pagar com a pervivência, fazer com que as obras do passado vivam em sua estranheza num novo espaço, com que encontrem um espaço novo em que elas, por alheias, permaneçam sendo novas. Num mundo em que as poéticas indígenas passam a receber atenção crescente e a voz retorna também ao centro da circulação da poesia contemporânea (penso nos saraus tradicionais, mas também em áudios e vídeos crescentes, na circulação cada vez maior de autores em feiras literárias, etc.), num mundo em que potencialmente as poéticas da canção se encontram com as da poesia escrita (Bob Dylan é um Nobel de literatura por sua obra musical), a revisão crítica e poética do universo grego e romano demanda contínuas guinadas que fazem da anacronia a condição de sobrevivência, o contradom do tradutor, seu dom de dom, sua performance primordial. Referências ANTUNES, Leonardo. Ritmo e sonoridade na poesia grega antiga: uma tradução comentada de 23 poemas. São Paulo: Humanitas, 2011. BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Trad. João Barrento. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. BRUNET, Philippe. (éd.). L’égal des dieux. Cent versions d’un poème recueillies par Philippe Brunet. 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