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A RELAÇÃO INTERMIDIÁTICA DA OBRA BATMAN: A PIADA MORTAL PARA A ANIMAÇÃO Odon Bastos Dias¹ Suellen Cordovil da Silva¹ ¹Universidade Federal da Santa Maria (UFSM), Santa Maria, Brasil. RESUMO Utilizando como base os estudos de intermidialidade defendidos pelo Prof. Claus Cluver, da Universidade da Indiana (EUA), estudamos os conceitos introdutórios necessários para realizar a análise da adaptação da obra de Alan Moore e Brian Bolland, entitulada Batman: The Killing Joke (1988). Originalmente, o título foi publicado em formato comics (no Brasil, História em Quadrinhos, ou HQ), e algum tempo depois (2016), transformado em um filme de animação pela DC universe. Aqui, pretende-se observar as diferenças apresentadas na transcrição de um meio impresso para outro tipo de mídia. A princípio, detectou-se que muitos diálogos foram mantidos inalterados na animação. Por outro lado, esta última apresenta o acréscimo de um relacionamento entre personagens (Barbara e Batman) inexistente na versão original. Tal alteração da trama poderia implicar em diversas consequências com potencial para afetar o famoso dénouement que empresta o nome à história. Adicionalmente, a linguagem de comics sugere que seja possível explorar um nível de complexidade maior quando são associadas imagens que contam uma história própria no subtexto visual, em paralelo com o texto dos diálogos, que eventualmente podem seguir outra direção, criando um efeito de contraste. Assim, conclui-se que existem decisões mais complexas à disposição do leitor de comics, e estes elementos afetam sua da recepção da narrativa, e.g., a interpretação da linguagem multimodal na qual a cena é exibida, em comparação com a linguagem direta dos elementos que o diretor optou por manter na animação. PALAVRAS-CHAVE: Batman: The Killing Joke; Intermidialidade; Comics e Animação. INTRODUÇÃO Neste artigo, seguindo as propostas teóricas da Intermidialidade, apresentamos a obra do escritor e roteirista Alan Moore intitulada Batman: A Piada Mortal, e discutimos a sua transposição para o filme animado pertencente ao DC universe. Desenhada pelo ilustrador Brian Bolland, com o título original de Batman: The Killing Joke em Língua Inglesa, e Batman: A Piada Mortal em Língua Portuguesa, o romance gráfico aportou por aqui pouco depois dos EUA, em setembro de 1988, dentro da série Graphic Novel da Editora Abril, que a republicou em 1999. Em 2005, a editora Opera Graphica inspirou-se numa edição francesa, de bolso e em preto e branco, remodelando toda a arte. A editora Panini republicou o álbum diversas vezes desde 2009, na versão colorida. No ano de 2011, a obra foi publicada novamente pela Panini Books, desta vez em uma edição de especial de luxo. A primeira publicação nos Estados Unidos ocorreu pela DC Comics no ano de 1988, e desde então, o título tem sido reeditado periodicamente. No ano de 1989, a obra ganhou o Prêmio Eisner para “Melhor Álbum Gráfico”. Diversas tiragens novas ocorrem ao longo do final da década de 80 e durante a década seguinte. No ano de 2008, o álbum ganhou edição de luxo, e ganhou novas cores, aparecendo na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times, em Maio de 2009. A partir de então, a obra A Piada Mortal tornou-se uma das HQs mais vendidas na história do personagem Batman e da editora DC Comics. O autor, Alan Moore, é famoso por seus roteiros extensos, mas A Piada Mortal talvez seja seu recorde pessoal: são 128 páginas datilografadas para descrever 46 páginas de HQ. A narrativa ocorre na cidade fictícia de Gotham, e apresenta uma história em flashback que reconta uma versão da origem do super-vilão Coringa (The Joker), baseada na história publicada na revista Detective Comics, número 168, de Fevereiro de 1951, uma década após a primeira aparição do personagem. O Coringa acompanha a trajetória do homem-morcego desde o primeiro número de publicação, no ano de 1940. Os créditos da criação foram disputados por Bill Finger, Bob Kane, e Jerry Robinson. Na narrativa, ele é apresentado ao leitor como um comediante fracassado que concorda em ajudar um grupo de criminosos comuns, mas é impedido por uma ação do Batman. Em consequência da intervenção do herói, o comediante sofre um processo de transfiguração. Dessa forma, ele sofre um trauma que gera problemas psicóticos, influenciando o personagem a aderir a ideia de ser um vilão. No ano de 2016, a obra tornou-se um filme de animação pela Warner Bros Animations. Neste trabalho, pretendemos discutir a correspondência da obra no formato HQ com a animação, sob a perspectiva do estudioso Claus Clüver e suas considerações à respeito dos conceitos de intermidialidade e dos estudos interartes. Adicionalmente, adotamos como referências as ideias de Pascal Lefevre sobre adaptação de HQ para filmes, conforme manifestadas no capítulo “Ontologias visuais incompatíveis? A adaptação problemática de imagens desenhadas” publicado em 2012 no segundo volume da coletânea Intermidialidade e estudos Interartes: desafios da arte contemporânea, editada pela professora Thaïs Flores Nogueira Diniz (UFMG) e pelo professor André Soares Vieira (UFSM), embora Lefevre não se dedique apenas às adaptações em animação. Por sua vez, Plaza (2008) segue uma outra proposta de tradução intersemiótica em diálogo mais amplo. CONCEITOS SOBRE QUADRINHOS (HQ) OS ESTUDOS INTERARTES E HISTÓRIAS EM A transposição de uma HQ para o cinema ocorreu à primeira vez no final do século XIX. Em seu livro intitulado Desvendando os Quadrinhos (1995), Scott McCLOUD afirmou que a animação seria uma espécie de sequência de fotogramas da HQ transposto para o filme de modo mais lento. O professor Claus Clüver, em artigo intitulado “Estudos interartes conceitos, termos, objetivos”, apresenta a ideia de adaptação conforme executada para transformar novelas em peças teatrais, peças de óperas e contos de fada em balés, e contos em filmes. Segundo ele, adaptar: “implica um ajuste ao novo meio que por sua vez nos leva de volta ao tópico da transposição intersemiótica.” (CLÜVER, 1997, p. 45), porém, o teórico reitera que o conceito carrega conjuntamente a ideia de reelaboração da obra de origem em outro contexto, de modo a produzir algo novo, por meio de “um desvio deliberado da fonte” (CLÜVER, 1997, p.45). Para o crítico Lefèvre, existe uma ideia negativa das adaptações de quadrinhos, pois dificilmente ganham seu espaço canônico, conforme ele identifica na obra de Steven Schneider (2003) intitulada 1001 Movies You Must See Before You Die, há apenas uma adaptação live action de quadrinhos, a dizer Batman, de Tim Burton. Também em outras listas, adaptações de quadrinhos raramente aparecem: como o Les films-clés du cinema, de Claude Beylie (2002) e Beste films aller tijden, de Robert Hofman, de 1993 (LEFÈVRE, 2012, p. 189). Lefèvre observa as duas mídias. Em relação ao leitor da HQ, comparando este com o espectador de um filme, Lefevre afirma: “Não só a recepção, mas também a produção da HQ e do filme é diferente. Por necessidade, a produção de um filme implica uma maior organização e orçamento do que a produção de uma HQ. A parte criativa no filme é feita por um grupo de pessoas (escritor, fotógrafo, diretor, ator, editor, entre outros), enquanto as ações de desenhar e escrever uma HQ podem ser feitas por um grupo pequeno ou por apenas uma pessoa.” (LEFÈVRE, 2012, p.193). Lefevre apresenta três problemas principais na adaptação de quadrinhos: os quadros são organizados em uma página, os quadros possuem desenhos estáticos e uma HQ não produz ruídos ou sons. O filme é bem diferente. Primeiramente, existe o enquadramento da tela; segundo, as imagens são móveis e fotográficas; terceiro, o filme possui uma trilha sonora. Essas diferenças nas características das duas mídias se revelam como os quatro problemas da adaptação, a dizer do (1) processo de subtração/adição que ocorre na reescrita de textos quadrinizados originais para o filme; (2) as características únicas do layout da página e da tela do filme; e (30 os dilemas da tradução de desenhos para a fotografia; e (4) a importância do som no filme comparada ao “silêncio” dos quadrinhos. Diante de tais problemas, talvez a questão principal sobre a adaptação fílmica de quadrinhos não seja “quão fiel/respeitoso à HQ o filme será”, mas “quão menos diferente da HQ pode o filme ser?” (LEFEVRE,2012, p.193) Assim, a HQ adaptada para o filme ou animação segue uma alteração, por sofrer uma mudança do suporte. Por exemplo, na HQ de Alan Moore e Campbell intitulada Do Inferno, haviam dois personagens policiais, todavia, no filme há somente um. Em entrevista para o francês Benoít Mouchart (MOUCHART, 2004, p. 30), Moore declara: Eu me forço a não ter uma opinião [sobre adaptações]. Aqueles filmes não se parecem como os meus livros. Se são bons filmes, é mérito dos diretores. Não tem nada a ver comigo. O mesmo acontece se os filmes são medíocres. Eu me interesso em vê-los, mas uma vez que eu não gosto de trabalhar para Hollywood e cinema não é uma das minhas mídias preferidas, eu não me sinto muito envolvido nestes projetos. (MOUCHART, 2004, p. 30 apud LEVÉFRE, 2012, p. 194) A relação de independência entre os meios, sugerida por Moore, é analisada em Plaza (PLAZA, 2008, p. 90-94), que trabalha com uma tipologia de traduções intersemióticas. Ele apresenta três tipos de tradução, nesta relação da obra com sua transposição para outra mídia: Tradução Icônica, Indicial e Simbólica. A primeira, Tradução Icônica, é uma transcriação mais fiel ao original. Na segunda, a Tradução Indicial, existe uma tênue relação entre original e a tradução, proporcionando uma transposição entre os meios. No terceiro, a Tradução Simbólica, existe uma diferença radical entre o original e a tradução, ocorrendo uma transcodificação entre as obras. A OBRA BATMAN: THE KILLING JOKE Criada como a versão de Moore sobre a psicologia e o mito da origem do Coringa, a história tornou-se famosa pela abordagem e o caráter de herói trágico atribuído ao personagem: um homem de família, comediante fracassado, em consequência, sendo ele incapaz de sustentar uma vida em comum com a esposa, fazendo-a passar por privações, frustração que o levou à loucura. Os efeitos de algumas das passagens da história sobre a continuidade do personagem Batman passaram a ser canônicos, incluindo o tiro que causou a paralisia de Barbara Gordon (que possui um alter-ego, a Batgirl). Em Batman: The Killing Joke, Moore explora a relação de oposição antagônica dos dois personagens principais, como se um fosse o espelho ou reflexo negativo do outro. A profundidade da abordagem também é refletida na adequação da escolha do esquema de cores. No ano de 2006, The Killing Joke foi re-impressa como parte da coletânea DC Universe: The Stories of Alan Moore e, no ano de 2008, a DC Comics voltou a fazê-lo em uma edição de luxo, com um novo colorido de Bolland, na qual a paleta de cores adotada era mais sombria, realista e moderada do que a original. Brian Bolland adaptou as cores da edição original de A Piada Mortal, que foram aplicadas por outro colega britânico, John Higgins (o ilustrador de Watchmen). Na época, a editora DC não deixou Bolland colorir, justificando que o estilo do artista levaria anos para completar o serviço. Em 2008, Bolland convenceu a editora a fazer uma mudança radical nas cores para a edição Deluxe. Saíram, por exemplo, as cores lisérgicas de Higgins e entrou o preto e branco com alguns detalhes de cor nos flashbacks. Bolland ainda redesenhou alguns quadros, e é esta versão que é publicada desde então. Existem várias ambiguidades na narrativa. Na passagem final, há um quadro sugerindo uma possível interpretação de que Batman executou o vilão Joker, considerando que ele ultrapassou todos os limites de violência, ao quebrou todas as regras, embora não exista a cena explícita demonstrando o ato da execução. Em outra oportunidade, a interpretação também é deixada a cargo do leitor, aparece na questão associada ao possível fato do Joker ter cometido ou não o estupro de Barbara Gordon. Na sequência posterior, ao torturar psicologicamente o Comissário Gordon, o vilão mostra as fotos de Barbara Gordon, filha do Comissário, como evidências de que a personagem sofreu violência física, entretanto, sem explicitar a natureza das agressões. Os criadores de A Piada Mortal afirmam ter sofrido certas influências do clima opressivo de um filme do diretor David Lynch, Eraserhead (1997). Moore afirma ainda que os dois personagens antagonistas são semelhantes, mas opostos, como os dois lados de uma mesma moeda. Moore alega não ter gostado dessa obra suficientemente, conforme revela no comentário abaixo: Isso não tem nada a ver com a arte de Brian Bolland, que foi, claro, excelente. Eu nunca gostei de fato de minha história para A Piada Mortal. Acho que ela coloca melodrama demais em um personagem que não foi projetado para carregá-lo. Ela foi sórdida demais, violenta demais. Tem suas coisas boas, mas em termos de minha escrita, não é um de meus textos favoritos (MOORE, 2012, p. 138). Batman: The Killing Joke (2016) foi uma animação dirigida sob responsabilidade de Sam Liu e Bruce Timmm. A adaptação do roteiro original ficou a cargo de Brian Azzarello. O roteiro é baseado no enredo da história em quadrinhos, com o acréscimo de um prólogo, ocupando quase um terço do tempo total de duração da obra. Apesar da proximidade com o lançamento de Batman: Bad Blood, que a precedeu em 2016, dentro do DC Universe Animated Original Movies e DC Animated Movie Universe, embora animação não seja considerada sequência direta deste episódio. Apesar disto, a aparência dos personagens foi mantida. O lançamento oficial da animação nos cinemas foi no dia 25 de julho de 2016, e a distribuição em mídias físicas (Blu-ray e DVD) aconteceu no dia 2 de agosto de 2016. O filme traz de volta os primeiros dubladores do Batman e do Coringa. O dublador Kevin Conroy faz a voz do Batman, ele já havia retornado na animação Batman: Assault on Arkham. O ator Mark Hamill, conhecido por interpretar o personagem Luke Skywalker, da saga Star Wars, faz a voz do Coringa. Figura 1 – Edição com a capa envernizada. Fonte: MOORE, Alan; BOLLAND, Brian. Batman: The Killing Joke. DC Comics: New York, 1988. Mark Hamill afirmou só voltar a dublar o personagem Coringa, caso uma adaptação da HQ “A Piada Mortal” fosse lançada (os dois reprisam seus papéis anteriores dentro do Universo Animado DC). É o 27º filme da DC Universe Animated Original Movies. Batman: The Killing Joke conta a origem do Coringa em flashbacks. O Coringa, historicamente, foi o primeiro e um dos maiores inimigos do Batman. Os flashbacks revelam que ele já foi técnico de laboratório, mas abandonou seu emprego para se tornar comediante, porém sem sucesso. Falido financeiramente, e também desesperado para conseguir sustentar sua esposa Jeannie, que estava grávida, ele decide se unir a outros criminosos para realizar um grande golpe. De volta ao presente, após conseguir fugir do Asilo Arkham, o Coringa inicia uma escala inédita de violência, até mesmo para seus padrões: ataca Barbara Gordon (a Batgirl) no apartamento onde ela mora, e sequestra o pai dela, o comissário de polícia Jim Gordon. Batman percebe que irá enfrentar seu maior inimigo em circunstâncias extremas. Na análise da obra, serão apresentadas descrições dos dois encontros entre Batman e Coringa: um no Asilo Arkham, e outro no epílogo. Além desses encontros, haverá uma descrição do momento onde o Coringa atira em Barbara Gordon na entrada do apartamento. Todas estas passagens mencionadas se encontram presentes na animação e na HQ original. ANÁLISE INTERMIDIÁTICA DA RELEÇÃO DA OBRA COM A ANIMAÇÃO Esta seção é dedicada à análise da HQ Batman: The Killing Joke (1988), e da sua transposição para a animação, em 2016. A princípio, a abertura da animação é apresentada ao espectador com um “prólogo” adicional, mas não possui passagem correspondente na HQ. Por sua vez, o prólogo introduz um subplot, uma trama extra que altera significativamente os pesos de alguns componentes existentes na história. Assim, a questão do prólogo será discutida por último, e a comparação envolverá as partes comuns em ambos os meios. A sequência abaixo mostra a HQ, no lado esquerdo da imagem, e os frames da animação, no lado direito: Figura 2 – HQ (MOORE, 1988, p.9) transposta na animação (AZZARELLO, 2016, posição 32:32) Fonte: MOORE, Alan; BOLLAND, Brian. Batman: The Killing Joke. DC Comics: New York, 1988. Nessa passagem, o personagem Batman faz uma visita ao asilo Arkham, onde o Coringa está detido. O diálogo é quase um solilóquio, um monólogo teatral, pois apenas Batman possui linhas de diálogo. Do mesmo modo, a sequência das cenas também aproxima-se do andamento pausado de um drama. Na última cena, ao tocar o Coringa, o Batman percebe o resíduo de tinta branca na sua luva, concluindo que está diante de um impostor, e, logicamente, que o verdadeiro Coringa já havia escapado da cela. A transposição da HQ para a animação é muito próxima, e mantém diversos detalhes do original. Uma das poucas diferenças está no efeito provocado pela óbvia ausência dos balões de diálogo na animação, pois esta conta com os dubladores para fazer as vozes dos personagens. Os balões de diálogo injetam uma área branca maior na imagem dos quadrinhos, e auxiliam a realizar o balanço de claro-escuro. Sua presença serve igualmente para compensar os excessos de áreas escuras, predominantes nos quadros. Ao tentar seguir o esquema de cores original da HQ, a animação se tornou um tanto mais sombria na comparação, praticamente como se o espectador observasse a imagem através de um vidro climatizado. Entretanto, os códigos da linguagem visual são respeitados na íntegra. A próxima sequência apresenta a passagem na qual Barbara Gordon é surpreendida, e recebe um tiro à queima-roupa na porta de sua residência: Figura 3 – HQ (MOORE, 1988, p.18) transposta na animação (AZZARELLO, 2016, posição 39:50) Fonte: MOORE, Alan; BOLLAND, Brian. Batman: The Killing Joke. DC Comics: New York, 1988. É possível perceber que a violência da cena é maior na HQ, na qual a arma é apontada de forma explicita para a vítima no momento do disparo, representando um ato claro de feminicídio. Na animação, esta representação é atenuada, sendo exibido apenas um close muito próximo, que oculta do espectador a visão total da arma (somente parte do cano do revólver é exibido), e da vítima (somente a parte próxima à cintura de Barbara Gordon aparece no frame). No início da cena, há uma ligeira troca da ordem dos quadros em relação a sequência original, todavia, sem implicar qualquer alteração de significado. A cena transcorre inteiramente sem diálogos, e os códigos da linguagem visual seguem o proposto na HQ, pois são necessários para auxiliar a definir o contexto, o desenrolar da ação, e para caracterizar visualmente os personagens: através dos acessórios (câmera fotográfica, chapéu, óculos); através das expressões (o sorriso típico do Coringa, o misto de surpresa e pânico no rosto de Barbara Gordon); e através das reações esboçadas nos gestos. Por fim, o denouement da história, a antológica cena na qual o Batman encontra o Coringa, a sequência que justifica o título escolhido para a obra: Figura 4 – HQ (MOORE, 1988, p.51) transposto para (AZZARELLO, 2016, posição 1:12:09) Fonte: MOORE, Alan; BOLLAND, Brian. Batman: The Killing Joke. DC Comics: New York, 1988. O último ato não é muito diferente do primeiro encontro entre os dois personagens: quase não há muito movimento, apenas diálogo. Após Batman argumentar e propor reabilitar o Coringa, relevando os seus crimes anteriores, não há confronto, somente uma negociação. O Coringa ouve a proposta, mas concluí que é tarde demais para ser recuperado. O diálogo entre os antagonistas é teatral, assim também como suas figuras mascaradas, roupas, maquiagem, expressões faciais, e postura corporal, todos estes elementos remetem ao drama. As ações correspondem ao padrão de comportamento dos protagonistas de algumas das peças de Shakeaspeare: ao modo de “Ricardo II” (1595), Batman é diplomático, porém focalizado nos seus objetivos. Ao modo de “Hamlet” (escrito entre 1599 e 1602), Batman só obterá sua vingança no último ato. O Coringa, por sua vez, veste-se como o bobo da corte, contudo, comporta-se como um psicopata sádico e cruel. Na cena final, contudo, ele demonstra uma lucidez e sabedoria típicas do bufão de “Rei Lear” (escrito entre 1605 e 1606). A interpretação e os elementos gestuais dos personagens presentes na HQ (posições dos corpos, movimentos das cabeças e das mãos) são igualmente mantidos na mudança do registro para a animação. Os quadros revelam Batman e o Coringa parados sob uma chuva contínua, acrescentando um aspecto de film noir à ambientação atmosférica presente na cena. Ao optar por manter o esquema cromático original da HQ, a animação também se torna visualmente mais escura porque não existem balões brancos contendo diálogos para equilibrar o contraste das cores. Outro aspecto muito importante a ser destacado é a ambiguidade gerada na recepção desta sequência final. Após as tentativas de negociar a reabilitação do Coringa falharem, ou mesmo em virtude deste ter ultrapassado todos os limites de violência (ao cometer assassinato, possível estupro, e tortura ao longo da trama), a sequência final deixa em aberto para o leitor decidir a questão do Batman ter matado ou não seu antagonista. Na animação, até mais explicitamente do que na HQ, as mãos do Batman são representadas apoiando-se muito próximas da garganta do Coringa, antes das gargalhadas deste serem interrompidas. Na cena de encerramento, ao direcionar o olhar do observador para as poças de água da chuva no solo, tanto os quadros da HQ, quanto os frames da animação simulam o efeito de “afastamento da câmera”. A suposta “morte do Coringa”, apesar da repercussão das vendas da HQ, não se tornou um fato canônico na cronologia da DC Comics, pois o vilão voltou à aparecer, periodicamente. Por outro lado, a condição de Barbara Gordon, paralisada em razão do tiro e da queda que lesionaram sua coluna, passou para a biografia definitiva da personagem. A partir de então, ela passou a figurar nas histórias seguintes em cadeira de rodas, atuando sob o pseudônimo de “Oráculo”, cercada por computadores, e motivada a oferecer suporte aos heróis através de informações estratégicas sobre os crimes e os vilões. Considerando as passagens mencionadas anteriormente, de acordo com a tipologia de traduções intersemióticas proposta por Plaza (PLAZA, 2008, p.90-94), a relação entre as duas obras pode ser considerada Icônica, na qual existe uma clara correspondência entre a narrativa da HQ e da animação, entretanto, Batgirl parece ser o elemento divisor de águas neste julgamento. Na animação, o papel de Barbara Gordon ganha um destaque ainda maior que na HQ, devido ao acréscimo de um “prólogo” criado pelo roteirista Brian Azzarello. O prólogo adiciona à história um subplot, apresentando uma gangue de ladrões, que é investigada e confrontada por Batgirl, com auxílio do Batman, e acrescenta um novo tema e uma cena: a inadequação e/ou as dificuldades de Batgirl no combate ao crime, e em segundo lugar, há uma cena de envolvimento sexual entre Batgirl e Batman. Em razão disto, nos Estados Unidos a animação ganhou a classificação R (Restricted, destinada aos filmes nas quais menores de 17 anos devem ser acompanhados pelo pai ou responsável, pois contém temática adulta). Independente da recepção que o acréscimo do prólogo recebeu por parte de fãs e críticos, existe ao menos uma justificativa para o fato de tal acréscimo acontecer: o andamento da narrativa, lento, dramático e teatral, conforme já foi destacado antes, ganhou uma introdução na qual ocorrem cenas de ação, perseguições de veículos, e explosões. A adição de tais sequências pode ter sido necessária, correspondendo às expectativas que o público de uma animação geralmente espera. Por outro lado, ao incluir o relacionamento entre Batgirl e Batman, o peso compositivo da trama original também é alterado de modo significativo, e muito. A partir de então, encontrar o Coringa deixaria de ser apenas uma questão de justiça, e passaria a ser uma questão de vingança pessoal. Curiosamente, este é um fato que também remete outra vez ao drama: o tema da vingança é central em Hamlet, e ainda, em Ricardo II. Hamlet é um personagem meticuloso, e extremamente calculado ao planejar sua vingança, executando-a apenas após certificar-se de não estar cometendo um erro, o que somente acontece no último ato da peça. Batman passa por um dilema semelhante ao de Hamlet: seu código de ética pessoal o impede de matar um inimigo. Se Batman o fizesse (como Hamlet de fato o fez), ele seria visto como um monstro criminoso semelhante ao Coringa. Se Batman realmente poupou a vida do rival, causaria a impressão de ser misericordioso e magnânimo, atitude idêntica àquela de Ricardo II (ainda que o inimigo de Ricardo II tenha sido assassinado na prisão depois do confronto, por outro personagem, isentando-o da culpa). Assim, em diversos aspectos, Batman: The Killing Joke apresenta argumentos e características também presentes no drama: um universo de heróis e vilões trágicos, que enfrentam seus dilemas, seu destino, e não dispõem de poderes sobre-humanos. Em consequência, a transição das cenas, os temas explorados no roteiro da HQ original, não oferecem dificuldades para a adaptação ao teatro. Obviamente, esta é uma intenção que pode nunca ter sido cogitada. Ao contrário, na animação, o acréscimo das cenas de explosões e perseguições de veículos nas ruas de Gotham são muito difíceis de reproduzir no palco, e aproximam-se mais da linguagem cinematográfica, provavelmente tendo sido adicionadas para contrabalançar o ritmo do roteiro original. Além disto, há este outro aspecto do prólogo, o relacionamento entre Batgirl e Batman, conforme já foi discutido antes. Para realizar tal acréscimo, Brian Azzarello pode ter recorrido à própria obra de Alan Moore: “Watchmen” (1986–87). Inovadora em diversos aspectos da linguagem das HQs, “Watchmen” aborda questões não usuais no universo dos heróis até então, entre elas, a ideia de mostrar uma possível relação romântica entre os vigilantes, quando estes não estão em ação. A passagem que pode haver influenciado Brian Azzarello refere-se a cena na qual os personagens do Dr. Manhattan (Jon Osterman) e Silk Spectre II (Laurie Juspeczyk) esperam posicionados sobre o telhado de um prédio alto, durante a noite, longe dos olhares de todos. A sequência mostra os vigilantes em circunstâncias muito semelhantes àquelas exibidas no prólogo da animação, quando ocorre o envolvimento entre Batgirl e Batman. Brian Azzarello foi cuidadoso na construção desta passagem, apresentando a iniciativa da aproximação entre os dois como sendo uma escolha livre da personagem feminina, contrapondo e contrastando com a violência cometida pelo vilão contra ela, mais adiante na narrativa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, foram discutidas as inter-relações entre as diferentes artes: a HQ original de 1988, a sua adaptação lançada em 2016, e os empréstimos de linguagens originárias das diferentes fontes envolvidas. A recepção das narrativas, e.g., a interpretação da linguagem multimodal na qual as cenas são apresentadas, foi analisada mediante a comparação de ideias transdisciplinares, envolvendo textos em diferentes meios: HQ, cinema, teatro, e a própria obra de Alan Moore. As discussões apontam para uma interferência destas linguagens umas às outras, e a existência de um diálogo sútil entre a obra de Alan Moore, com elementos vindos do drama e da tragédia, diálogo que poderá ser investigado com maiores detalhes em trabalhos próximos. O roteiro escrito por Brian Azzarello para a animação, aponta influências da linguagem cinematográfica no prólogo, talvez motivadas por concessões às expectativas de uma película de ação com heróis. Assim, na introdução há uma notória diferença quanto à abordagem proposta por Alan Moore para a HQ, mas ao mesmo tempo, alguns elementos que foram adicionados na introdução apontam para influências dos trabalhos anteriores de Alan Moore (Watchmen). A partir do ponto na qual ocorre a sincronia entre as narrativas da HQ e da animação, o roteiro escrito por Brian Azzarello segue a obra original de Alan Moore em quase todos seus detalhes. São observados desde aspectos gestuais característicos dos personagens, o estilo de enquadramento das cenas, até a adoção de um esquema de cores equivalente, e as mesmas linhas de diálogos existentes na HQ, o que indica que a relação entre as duas obras pode ser considerada Icônica, de acordo com a tipologia de traduções intersemióticas definida em Plaza (PLAZA, 2008, p.90-94). REFERÊNCIAS CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e Sociedade – Revista de teoria literária e literatura comparada. USP: São Paulo, v. 2, n. 2, 1997. LEFÈVRE, Pascal. Ontologias visuais incompatíveis? A adaptação problemática de imagens desenhadas. Tradução de Camila Augusta Pires de Figueiredo. IN: DINIZ, T. F. N.; VIEIRA, A. S. Intermidialidade e estudos Interartes: desafios da arte contemporânea. Volume 2. Belo Horizonte: Rona Editora/FALE-UFMG, 2012. MILLIDGE, G. S. Alan Moore: O mago das histórias. Tradução de Alexandre Callari. São Paulo: Mythos Editora, 2012. McCLOUD, S. Desvendando os Quadrinhos. Tradução de Helcio de Carvalho e Marisa do Nascimento Paro. 1ª. Ed. São Paulo: Makron Books, 1995. MOORE, A.; BOLLAND, B. Batman: The Killing Joke. DC Comics: New York, 1988. MOORE, A.; BOLLAND, B. Batman: A Piada Mortal. Barueri, Sp: Panini Books, 2011. LIU, S.; TIMM, B. Batman: The Killing Joke. Roteiro adaptado por Brian Azzarello. Colorido. Warner Bros Animation. xxx min. New York: Warnes Bros Pictures, 2016. PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2008. SHAKESPEARE, W. 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