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Impacto social dos acidentes de trabalho Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica João Areosa Referenciação recomendada: Areosa, João (2012), Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica, In H. V. Neto; J. Areosa; P. Arezes (Eds.) – Impacto social dos acidentes de trabalho, Vila do Conde: Civeri Publishing, pp. 132-169. - 132 - Impacto social dos acidentes de trabalho Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica João Areosa 1 1. Introdução Os acidentes sempre fizeram e sempre farão parte dos eventos ocorridos em sociedade, e isto pode explicar, em parte, o porquê de eles poderem ser considerados como um problema social. É verdade que os acidentes podem ocorrer em todos os lugares (escolas, casa, locais de trabalho, estradas, etc.), em diversas circunstâncias, e derivar de múltiplas causas. Esta fatalidade social à qual todos nós estamos sujeitos depende dos riscos e dos perigos que corremos ao longo das nossas vidas. Apesar de alguns acidentes serem dramáticos nas consequências que produzem, eles por definição são eventos relativamente raros, visto que representam desvios à normalidade. O acidente em sentido etimológico significa um qualquer evento não planeado, fortuito, imprevisto e fruto do acaso. Na linguagem do senso comum um acidente é entendido como algo nefasto, maléfico e aleatório que provoca danos ou prejuízos. Desta definição preliminar podemos antecipar a existência de uma impossibilidade empírica para controlar todas as situações passíveis de causar acidentes. Até meados do século XVIII a noção ocidental de acidente esteve essencialmente associada a manifestações divinas, isto é, as grandes catástrofes eram vistas como fruto da vontade dos Deuses. A laicização da catástrofe (Theys, 1987) surge como um pensamento fraturante dentro da visão social dominante acerca dos acidentes; este pensamento começa a emergir após o terramoto de Lisboa de 1755 (Areosa, 2008). A partir deste período os acidentes começam também a ser entendidos como resultado de condições naturais. Nos dias de hoje, os 1 Investigador no CICS/UM joao.s.areosa@gmail.com e - 133 - docente no ISLA. E-mail: Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica acidentes são também fenómenos socialmente construídos (Green, 1997), e variam com a interpretação social que lhe é dada. Em traços gerais, julgamos que não é possível prevenir e evitar todos os acidentes, mas estamos convictos que as análises de acidentes podem ajudar a prevenir alguns deles. É precisamente por esse motivo que iremos apresentar de seguida uma perspetiva histórica ou epistemológica sobre os principais modelos de análise de acidentes. 2. A suscetibilidade individual para os acidentes Uma das primeiras abordagens científicas sobre os acidentes de trabalho foi apresentada por Greenwood e Woods (1919). Esta perspetiva centrava-se na observação estatística de sinistros laborais durante um determinado período de tempo. Os autores sugeriam que poderia existir uma certa suscetibilidade individual2 ou propensão para os acidentes, num número limitado de trabalhadores. Esta teoria, amplamente debatida na área da psicologia, incidia, entre outros aspetos, sobre a identificação de determinadas características individuais dos sujeitos sinistrados, ou seja, tentava aferir a existência de propensões pessoais para o acidente. Após serem analisadas algumas estatísticas de acidentes de trabalho em diferentes indústrias britânicas, verificou-se que determinados indivíduos tinham mais acidentes, por comparação com os seus pares, desempenhando as mesmas tarefas laborais. É referido que os aspetos relacionados com a personalidade podem explicar, em parte, a ocorrência de múltiplos acidentes. “But, so far as our present knowledge goes, it seems that the genesis of multiple accidents under uniform external conditions is an affair of personality and not determined by any obvious extrinsic factor, such as greater or less speed of work. We cannot say that the 2 É pertinente referir que os autores reconhecem que incorporaram no termo suscetibilidade individual uma série variada de motivos ou fatores que serão realmente muito difíceis de separar e medir (Greenwood e Woods, 1919). - 134 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica victims are less healthy persons than those who escape, or that they are better workers - so far as our data go there is no reason to think that they are specially productive workers” (Greenwood e Woods, 1919: 10). Pontualmente, foram surgindo alguns resultados contraditórios em relação à suscetibilidade individual para os acidentes, no entanto, é frequente observar-se que para determinados tipos de trabalhos alguns trabalhadores teriam mais acidentes do que outros. A partir deste pressuposto passou-se para uma segunda fase desta perspetiva onde se estudou outras variáveis individuais, tais como: a idade, o género, a inteligência, os níveis de fadiga, as atitudes perante o risco, etc. Determinados autores (Hansen, 1989; Furnham, 1992) efetuaram e citaram diversos estudos onde se concluía que alguns aspetos da personalidade e de desajustamento ou inadaptação social de certos indivíduos estavam diretamente ligados a uma maior propensão para os acidentes. “This study demonstrated that some characteristics associated with neurosis and social maladjustment are significantly related to accidents, even when other influential variables such as level of risk and employee age are taken into consideration. In future studies, the global measures of social maladjustment and neurotic distractibility should be decomposed into several measures of individual traits that can then be woven into the refined causal model and tested” (Hansen, 1989: 88). Apesar da introdução de novas variáveis de pesquisa os resultados dos estudos desta corrente continuaram a considerar alguns acidentes como o resultado da inépcia do trabalhador, quase sempre considerado como o elo mais fraco do sistema, e tendo por base predisposições biológicas particulares de certos indivíduos. A questão fulcral desta teoria tentava responder à pergunta: Qual seria o motivo por que determinados indivíduos tinham mais acidentes do que outros, trabalhando nas mesmas circunstâncias? A pesquisa sobre esta vulnerabilidade individual para o acidente estava centrada em duas dimensões distintas: características fisiológicas e características psicológicas. Esta perspetiva sobre a tendência individual para o acidente foi também largamente criticada por - 135 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica diversas correntes teóricas da segurança laboral, onde era questionada a validade dos seus pressupostos. Segundo Nebot (2003) o trabalhador pode, de facto, atravessar um período da sua vida durante o qual sofre mais acidentes; mas, esta situação tende a não estar relacionada com aspetos individuais (biológicos ou genéticos) – como defendia o modelo da propensão individual para os acidentes – mas com aspetos de natureza familiar, profissional ou social. Numa perspetiva com características diferentes da anterior, autores como Reason (1990) e Amalberti (1996) afirmam que é difícil evitar os erros humanos, e criticam os modelos que concebem os acidentes estritamente a partir deste pressuposto, visto que o erro faz parte da própria condição humana. Outros estudos centrados no indivíduo, nos seus aspetos cognitivos ou nos fatores sociais perante o trabalho sugerem que o comportamento dos trabalhadores está baseado em hábitos e rotinas (Areosa e Dwyer, 2010). Deste modo, a realização de alguns tipos de trabalho pode ser vista como um mecanismo quase automatizado e não tanto como um processo de decisão permanentemente consciente (Reason e Hobbs, 2003). Segundo a abordagem destes autores a prevenção de acidentes a partir da alteração comportamental dos trabalhadores não é o meio mais eficaz de prevenção, pelo contrário, deve-se apostar nas defesas ou barreiras que não dependam da componente humana (Reason, 1997). As múltiplas críticas ao modelo da suscetibilidade individual para o acidente permitiram redirecionar a investigação de acidentes para dimensões sociais e organizacionais. Apesar das críticas a teoria da predisposição individual para os acidentes acabou por continuar fortemente conotada com a perspetiva da atribuição da responsabilidade à própria vítima do acidente. Por exemplo, Wildavsky (1979) afirmou que muitos dos acidentes que acontecem em casa ou em contexto laboral estão subjacentes a uma certa negligência individual. A colocação da tónica dos acidentes na imprudência ou negligência dos trabalhadores deu origem à culpabilização do trabalhador sinistrado ou, quando não era manifestamente possível responsabilizar os envolvidos no acidente adotava-se - 136 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica a ideia da inevitabilidade dos acidentes, fruto do “inatacável” desenvolvimento social e tecnológico. Os acidentes de trabalho eram o preço a pagar pelo desenvolvimento da era industrial. Estas explicações para os acidentes talvez sejam um dos principais motivos pelo qual, quer a teoria da predisposição para o acidente, quer a perspetiva da inevitabilidade dos acidentes tenham sido tão criticadas – saliente-se que nem sempre justamente. A culpabilização das vítimas sinistradas pode ser vista como um mecanismo de “ilusão” organizacional, visto que não aprofunda outras eventuais causas subjacentes do próprio acidente. Ao atribuir a culpa ao sinistrado a organização (e as hierarquias que efetivamente determinam as condições em que o trabalho é executado) iliba-se de qualquer responsabilidade sobre as consequências do acidente. Os opositores das perspetivas de culpabilização das vítimas, entre os quais se podiam encontrar sindicatos e outras associações de trabalhadores ou cívicas, defendiam princípios morais e éticos, tais como: 1) o principal beneficiado do trabalho em termos económicos (entre outros) era o empregador, portanto, deve também ser ele a acarretar com o ónus que possa resultar desse mesmo trabalho; 2) os acidentes de trabalho, segundo esta lógica, promovem uma dupla penalização da vítima, visto que é o trabalhador sinistrado que contrai as lesões decorrentes do acidente e, simultaneamente é-lhe atribuída a responsabilidade por esse evento ter acontecido. 3. A perspetiva sequencialista dos acidentes Os modelos sequenciais para a análise de acidentes partem do pressuposto que até chegarmos ao acidente existe uma série sequencial de acontecimentos que os possibilitam. Estes eventos/condições surgem numa ordem específica até ao momento em que ocorre o acidente. Nesta perspetiva os acidentes podem ser compreendidos a partir de atos - 137 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica inseguros3 ou de outros perigos mecânicos ou físicos. Nas primeiras versões dos modelos sequencialistas os acidentes eram vistos como o resultado de uma causa única. Podemos afirmar que esta era uma visão muito simplista dos acidentes, visto que considerava apenas um único fator explicativo para a ocorrência destes eventos. Contudo, os modelos sequenciais mais recentes contemplam a possibilidade de alguns acidentes poderem derivar de uma complexa interação e sequência de fatores. O modelo sequencial dos acidentes preconiza que qualquer acidente pode ocorrer quando o sistema está, aparentemente, a trabalhar com normalidade. Porém, a simples ocorrência de um evento repentino e/ou inesperado pode dar origem a uma sequência de outros acontecimentos que podem terminar no acidente. Para os teóricos deste modelo os atos inseguros, fortemente associados ao erro humano, são a principal causa dos acidentes; embora as falhas em máquinas, equipamentos ou outras componentes do sistema possam também estar na sua origem. A figura 1 demonstra esquematicamente a sequência do acidente de forma simplificada. Figura 1 - Modelo sequencial dos acidentes Fonte: Adaptado de Hollnagel (2004: 48). 3 Na literatura a noção de ato inseguro é definida como uma ação que contraria os pressupostos de segurança, podendo vir a causar a ocorrência do acidente. - 138 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica O exemplo clássico do modelo sequencialista dos acidentes foi concebido por Heinrich (1931), sendo designado como teoria dominó. Este modelo pode ser considerado como uma das primeiras teorias da segurança industrial, concebida a partir de dez grandes axiomas. Iremos reproduzi-los de seguida a partir de uma das suas versões mais recentes (Heinrich et al., 1980: 21): 1. A ocorrência de uma lesão resulta invariavelmente de uma sequência completa de fatores – a última das quais é o acidente em si mesmo. O acidente é invariavelmente causado ou permitido por um ato pessoal e/ou por um perigo mecânico ou físico. 2. A maioria dos acidentes pode ser atribuída a atos inseguros. 3. As pessoas que sofreram uma lesão incapacitante estiveram, em média, próximas de uma lesão grave cerca de 300 vezes antes de terem sofrido a referida lesão incapacitante, tendo cometido o mesmo ato inseguro. A mesma regra aplica-se à exposição a perigos mecânicos antes de sofrer uma lesão. 4. A severidade da lesão é em grande medida fortuita, embora o acidente que origina a lesão seja previsível e passível de prevenção. 5. As quatro razões básicas para a ocorrência de atos inseguros (1- atitude imprópria; 2- falta de conhecimentos ou capacidade; 3- inaptidão física; 4- ambiente mecânico ou físico inadequado) providenciam um guia para a seleção de medidas corretivas adequadas. 6. Estão também disponíveis quatro métodos básicos para a prevenção de acidentes: engenharia; persuasão e sensibilização; ajustamento pessoal e disciplina. 7. Os métodos mais adequados para a prevenção de acidentes são similares aos métodos de controlo da qualidade, de custo e da quantidade produtiva. 8. A gestão é o órgão que está melhor posicionado para impulsionar as tarefas preventivas e, por esse motivo, deve assumir essa responsabilidade. 9. Os capatazes e supervisores são as pessoas chave para a prevenção de acidentes industriais. O seu posicionamento - 139 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica hierárquico permite-lhes exercer maior influência no sucesso da prevenção de acidentes. 10. A motivação humanitária para a prevenção de acidentes é complementada por dois poderosos fatores económicos: I. Um estabelecimento seguro é eficiente do ponto de vista da produtividade e, pelo contrário, um estabelecimento inseguro é ineficiente; II. Para o empregador o custo direto resultante do pagamento das indemnizações derivadas do acidente e respetivos cuidados médicos, representa apenas um quinto do custo total que ele paga efetivamente. A designação teoria dominó decorre da analogia que Heinrich efetuou entre o conjunto de uma sequência de fatores que podem influenciar a ocorrência de acidentes e a sequência da queda das peças do jogo de dominó alinhadas na vertical. O autor propõe que cinco peças de dominó representem igual número de fatores (agrupáveis numa sequência pré-definida); assim, o fator precedente atuará sobre o seguinte até chegar à lesão (último fator). Cada uma das cinco peças do dominó representa um fator específico (tal como demonstrado na figura 2) pertencente ao “percurso sequencial” do acidente. O modelo proposto por Heinrich possibilitou a explicação do processo causal dos acidentes recorrendo à metáfora da queda das peças de dominó, ou seja, a queda da primeira peça irá dar origem à queda das seguintes. Estes cinco fatores podem constituir-se numa sequência de eventos, onde a ligação entre a causa e o efeito é clara e determinística (o evento A possibilita ou determina o evento B). Assim, a teoria dominó preconiza que a origem dos acidentes se deve a uma única causa. É por este motivo que a corrente sequencialista é designada como determinística, ou seja, os acidentes são explicados como o resultado de um único evento ou são consequência de uma única causa. O percurso do acidente é representado do seguinte modo: tal como as peças de dominó caem sucessivamente após a queda da primeira peça (causa ou génese), os acidentes também resultam de uma sequência de acontecimentos que apresentam uma única origem. As peças caídas resultam e representam simbolicamente as falhas, enquanto as peças que - 140 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica ficam de pé representam os eventos normais ou o sistema a funcionar normalmente. Segundo Heinrich qualquer acidente pode ser evitado se um dos fatores inibir a sequência de fatores acidentológicos, ou seja, metaforicamente, se pelo menos uma das peças for retirada ou se for travada a sua queda. Por outras palavras, o contributo deste modelo preconiza que, tal como a retirada de uma peça pode inibir a queda das seguintes, a retirada de um dos fatores sequenciais também evitará a ocorrência do acidente e, por consequência, dos danos ou lesões eventualmente ocorridas. Figura 2 – Teoria Dominó Fonte: Adaptado de Heinrich (1931). Heinrich afirma que cerca de 88% dos acidentes se devem a atos inseguros, 10% a condições perigosas e 2% a situações fortuitas. É por este motivo que o autor indica que a prevenção de acidentes deve estar centrada na terceira peça do dominó, isto é, no fator dos atos inseguros. Para além disso, o autor alega que é difícil exercer algum controlo sobre os dois primeiros fatores. A perspetiva de Heinrich teve e ainda continua a ter uma forte influência nas abordagens de alguns técnicos de segurança ao nível organizacional. Apesar disso, são também muitos os autores que criticam o carácter ideológico da perspetiva de Heinrich (1931) quando esta preconiza que a grande maioria dos acidentes ocorre por falhas humanas (atos inseguros). Para sustentar a sua visão crítica, autores como Vilela et al. (2007: 31) recorrem a algumas teorias da alienação social, onde é efetuada uma analogia entre os acidentes e a pobreza (tal como o pobre está nesta condição por culpa própria – preguiça, ignorância, etc. – ou por - 141 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica inferioridade natural, o sinistrado também sofreu o acidente por desleixo, desatenção ou incapacidade). A principal limitação dos modelos unicausais está em considerarem que os acidentes ocorrem devido a uma causa única, relegando para segundo plano a interação de fatores.4 Contudo, os modelos sequencialistas dos acidentes não se reduzem apenas a sequências simples de eventos, podem, pelo contrário, representar modelos mais complexos, tais como os designados modelos em rede ou árvores de eventos, onde, por exemplo, os eventos podem estar hierarquizados. A título de exemplo, podemos referir que os modelos de raízes de causas são muito utilizados nos sistemas de segurança organizacional, particularmente nas organizações de alto-risco e/ou com sistemas tecnológicos complexos. As análises das raízes de causas pretendem identificar as deficiências subjacentes nos sistemas de gestão de segurança. Estas deficiências, quando detetadas e corrigidas, podem inibir a ocorrência de novos acidentes ou acidentes similares aos verificados anteriormente. Nos dias de hoje, até algumas abordagens mais recentes acerca dos acidentes preconizam que estes dependem de uma sequência e/ou ligação de fatores. Por isso, é difícil refutar que os acidentes têm uma sequência temporal que os precede e os possibilita; isto significa que os acidentes resultam normalmente de um conjunto de eventos e/ou condições que os antecedem. Todavia, a maior crítica que se pode apontar aos modelos sequencialistas é quando eles pretendem centrar excessivamente a sua atenção no erro humano ou nos atos inseguros, descurando outras dimensões que contribuem igualmente para os acidentes. 4. O modelo epidemiológico dos acidentes O modelo epidemiológico dos acidentes, tal como o próprio nome indica, efetua uma analogia entre a ocorrência de acidentes e a terminologia médica sobre a extensão de uma 4 Um debate sobre a unicausalidade e multicausalidade dos acidentes pode ser encontrado em Areosa e Dwyer (2010). - 142 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica doença numa determinada população. A designação deste modelo emergiu e ganhou visibilidade após a publicação do trabalho de Gordon (1949). Este autor defendia que os acidentes são um problema de saúde das populações, tal como algumas doenças, e por isso devem ter um tratamento epidemiológico similar, onde devem ser recolhidos dados (estatísticos) e analisados os comportamentos da população em observação. Ao longo do seu texto John Gordon vai revelando outras semelhanças entre acidentes e doenças. Assim, o autor considera que a abordagem epidemiológica permite verificar certas regularidades ao longo do tempo, e isto pode ajudar a melhorar a análise dos acidentes, a sua compreensão, bem como a sua prevenção (suportada por políticas adequadas). Existem três fatores fundamentais para compreender a abordagem epidemiológica dos acidentes: o hospedeiro (alvo do sinistro), o agente ou objeto (fator “agressivo”) e meio ou ambiente (local cujas características possibilitam a ocorrência do acidente). “The causative factors in accidents have been seen to reside in agent, in the host, and in the environment. The mechanism of accident production is the process by which the three components interact to produce a result, the accident” (Gordon, 1949: 509). Gordon (1949) afirma que qualquer programa público de prevenção de acidentes necessita da colaboração de especialistas de várias áreas científicas e de organismos estatais. Western (citado em Turner e Pidgeon, 1997: 29) refere que alguns autores no passado defendiam que uma das principais críticas que podia ser apontada ao modelo epidemiológico dos acidentes tinha por base a falta de unificação e consistência da informação sobre os acidentes. Por um lado, estes autores preconizavam que a recolha de informação e a análise dos acidentes eram “pobres”, por outro lado, defendiam que devido à especialização das várias disciplinas científicas estas tendiam a analisar características muito distintas dos acidentes, tornando as suas abordagens dificilmente comparáveis. Para além disso, ainda havia a crença que todos os acidentes eram diferentes, logo, não haveria fundamento para a sua comparação, ou seja, não poderiam ser efetuadas previsões sobre eventuais acidentes - 143 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica no futuro recorrendo à experiência do passado.5 Western rejeita toda esta argumentação com base no estudo sobre as pré-condições dos acidentes, bem como, segundo a sua opinião, no falso apriorismo: “cada acidente é diferente”. O modelo epidemiológico dos acidentes enquanto abordagem científica revelou inúmeras características dos acidentes (regularidades, catalogação dos riscos mais comuns, rutura com a ideia do acidente como infortúnio, etc.) que possibilitaram melhorar a sua observação e compreensão, bem como redefinir a sua conceptualização. De certo modo, alguns tipos de acidentes deixaram de ser considerados como fruto do acaso e do aleatório (e por essa razão imprevisíveis), para passarem a ser observados como eventos passíveis de prevenção. Este facto deu origem àquilo que Green designou como a “profissionalização da prevenção dos acidentes”, em meados do século XX. “When epidemiological research reconstructed accidents as patterns at a population level, rather than disparate and individual misfortunes, public health identified them as a key concern. By the end of the twentieth century, the accidental itself had become a central focus, as the ultimate challenge for risk technologies. To predict the unpredictable, and make random misfortune preventable, was a notable success for epidemiology” (Green, 1999: 37). O modelo epidemiológico dos acidentes é visto, por alguns autores, como uma resposta à insuficiente explicação dos acidentes por parte do modelo sequencialista, particularmente nas suas primeiras versões determinísticas uni-causais. O contributo do modelo epidemiológico tende a enfatizar a complexidade de alguns acidentes, nomeadamente a interligação em rede de diversos fatores que possibilitam a sua ocorrência, superando a ideia simplista de sequência causal em série, ou seja, o modelo epidemiológico preconiza que os acidentes resultam de uma constelação de riscos, em vez de causas únicas e aleatórias (Green, 1997: 101). Na perspetiva epidemiológica a análise dos acidentes não deve apenas deterse na procura das causas simples e imediatas, deve deter-se, 5 Apesar de controversa esta ideia é debatida de forma extraordinariamente assertiva num ensaio recente preconizado por Nassim Taleb (2008). - 144 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica sobretudo, na articulação entre os agentes patogénico nocivos (designados “carriers”) e as condições latentes, bem como a possível interação complexa destes diferentes fatores. Nesta corrente os acidentes são considerados como eventos não aleatórios, visto que uma abordagem epidemiologia pode demonstrar o mapeamento da sua incidência. Hollnagel (2004: 54 e 55) preconiza quatro grandes diferenças entre o modelo sequencialista e o modelo epidemiológico dos acidentes:  Desvios na performance: O modelo sequencialista começa por destacar o problema dos acidentes a partir dos atos inseguros. Esta noção está fortemente conotada com o designado “erro humano” (erros, lapsos e violações dos trabalhadores). O termo erro humano apresenta uma carga simbólica negativa e culpabilizante para quem cometeu o denominado ato inseguro. A perspetiva epidemiológica suaviza esta noção quando fala em desvios na performance, tornandoa mais neutra e, simultaneamente, amplia a sua definição conceptual. Os desvios na performance incorporam tanto as dimensões humanas, como as componentes tecnológicas. Assim, o problema da responsabilidade pode encontrar-se mais esbatido, visto que os desvios não são vistos obrigatoriamente como erros.  Condições ambientais: O modelo epidemiológico considera que as condições ambientais (características do meio onde decorre a situação/ação) podem conduzir ou influenciar os desvios na performance. A importância das condições ambientais já foi abordada anteriormente quando falamos sobre as causas não imediatas dos acidentes (as raízes das causas), e esta questão veio abrir novas perspetivas para a análise dos acidentes. As condições ambientais influenciam quer a tecnologia, quer os indivíduos. Esta noção é mais alargada no modelo epidemiológico, onde estão incorporadas mais dimensões, e mais estreita no modelo sequencialista, onde normalmente eram consideradas apenas as condições de trabalho.  Barreiras: As barreiras são mecanismos de proteção para inibir a ocorrência de eventos e consequências inesperadas, sabendo que a sua principal função, neste contexto, é prevenir ou evitar acidentes. As barreiras de proteção podem ser - 145 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica colocadas em qualquer fase ou momento do processo (produtivo). Ao contrário daquilo que era preconizado pelo modelo sequencialista, onde o acidente quase só poderia ser evitado através da inibição dos atos inseguros (comportamentos e/ou práticas humanas), o modelo epidemiológico defende que os acidentes podem ser evitados em qualquer fase. As barreiras são conceptualizadas como dispositivos de segurança que tanto podem proteger os erros humanos, como as falhas tecnológicas, ou ainda outras condições latentes que possam “desviar” o sistema do seu normal funcionamento. Adiante iremos aprofundar a temática das barreiras, bem como a sua função na questão dos acidentes.  Condições latentes: O último aspeto apontado por Hollnagel (embora em alguns momentos possa ser considerado o mais importante de todos) é designado por condições latentes. Este conceito foi apresentado por Reason (1987; 1990; 1997), apesar de na sua origem ter sido designado como falhas latentes.6 As condições latentes podem contribuir fortemente para a ocorrência do acidente, embora não sejam vistas como causas imediatas ou visíveis; pelo contrário são fatores subjacentes, “escondidos” e aparentemente com pouca relevância, mas que se encontram incorporados no próprio sistema ou organização. De certo modo, as condições latentes podem ser comparadas com aquilo que Turner (1978) designa por período de incubação, ou como as raízes das causas dos acidentes. As condições latentes foram detetadas inicialmente em organizações de alto risco e/ou com sistemas tecnológicos complexos, nomeadamente, na aviação moderna, em plataformas de exploração de gás e petróleo, indústria química, sistemas ferroviários, centrais nucleares, etc. Apesar da rutura com alguns princípios importantes do modelo sequencialista, a análise epidemiológica dos acidentes continua a incorporar certas características do modelo precedente; o exemplo mais notório desta situação é expresso através do entendimento sobre a causalidade dos acidentes, isto é, a propagação dos efeitos (do início até ao fim) indica a 6 Embora o autor tenha voltado a utilizar este conceito numa das suas obras mais recentes (Reason e Hobbs, 2003). - 146 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica direção da causalidade (Hollnagel, 2004: 58). O modelo epidemiológico dos acidentes preconiza dois pontos essenciais para a prevenção de acidentes. O primeiro aspeto identifica a necessidade de isolar as tarefas ou situações perigosas, isto é, confinar e evitar a propagação do agente patogénico, enquanto o segundo defende a colocação ou reforço de barreiras protetoras, de modo a mitigar ou bloquear os erros ou violações (oriundas, por exemplo, do desvio na performance). Erik Hollnagel (2004: 58) recupera de outros autores uma certa dose de ironia quando afirma que o modelo epidemiológico dos acidentes não é uma perspetiva tão forte como a sua própria analogia. Esta opinião é sustentada a partir da dificuldade que este modelo detém em incorporar e especificar detalhes adicionais dos acidentes. Embora, a noção metafórica de patogenia permita caracterizar a “saúde” do sistema. Na sua essência qualquer o modelo epidemiológico de acidentes, particularmente na sua versão tradicional, é fortemente dominado por modelos estatísticos de acidentes, ou seja, pretende aferir a frequência de determinados eventos negativos. Porém, diversos autores criticam esta perspetiva, devido a considerarem que as estatísticas de acidentes apenas mostram uma parte dos problemas de segurança. “Historical data on a certain type of accident, for example an injury rate, provide information about the safety level. But we cannot use just one indicator, such as the injury rate, to draw conclusions about development in the safety level as a whole. The safety level is more than the number of injuries. A statement concerning the safety level based on observations of the injury rate only, would mostly have low validity” (Aven, 2003: 11). Os acidentes ocorrem através da combinação de fatores (manifestos e/ou latentes) coexistentes no tempo e no espaço. O modelo epidemiológico dos acidentes também foi, em parte, adaptado para explicar os acidentes organizacionais. Reason sugeriu que as condições latentes nos sistemas técnicos ou organizações com tecnologias complexas poderiam ser vistas como algo análogo a agentes patogénicos no corpo humano, os quais seriam acionados por fatores locais/ambientais com capacidade para violar ou contornar o sistema imunitário (as barreiras ou proteções) que por sua vez provocariam a doença - 147 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica (o acidente). Por si só os designados agentes patogénicos não teriam capacidade para despoletar o acidente, visto que necessitam que estejam criadas condições locais adequadas para eles poderem atuar. Esta analogia foi designada pelo autor como a “metáfora do agente patogénico residente”, onde está implícito que não existem sistemas completamente autoimunes aos acidentes. Esta metáfora enfatiza a presença de “agentes nocivos” dentro do sistema, antes mesmo da sequência do acidente ter tido o seu início. Tal como ao cancro ou às doenças cardiovasculares não são atribuídas causas únicas, os acidentes organizacionais também não surgem de causas singulares; pelo contrário derivam da articulação de condições diversas e multicausais. A noção do agente patogénico residente centra a sua atenção nos indicadores da “morbilidade do sistema” que se encontram a montante do desastre em si mesmo (Reason, 1990). Segundo o próprio autor a metáfora do agente patogénico residente apresenta algumas características interessantes, no entanto esta teoria necessita de ser aprofundada ou trabalhada, visto que alguns termos ainda são vagos. 5. A perspetiva da transferência de energia e das barreiras preventivas A década de sessenta do século XX acabou por nos proporcionar um “salto qualitativo” na abordagem aos acidentes. É neste período que emergem diversas correntes, as quais permitem analisar os acidentes a partir de pontos de vista diversificados. São exemplos disso mesmo a teoria da fiabilidade dos sistemas,7 a perspetiva ergonómica (assente na observação dos processos de trabalho e na adaptação do 7 Nesta perspetiva é preconizado que os acidentes decorrem dos processos de adaptação do sistema à sua finalidade. A correlação entre o acidente e o objetivo final do sistema torna-se evidente. O fator que serve de intermediário entre estes dois vetores é o contexto específico de trabalho. Aqui o acidente já é visto como um conjunto de fatores desviantes, posicionados em locais e momentos distintos em relação ao objetivo final do sistema. - 148 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica trabalho ao homem)8 e o modelo que iremos aprofundar neste ponto, sobre a transferência de energia e as barreiras protetoras. Esta última perspetiva surge no início dos anos sessenta e preconiza que os acidentes devem ser vistos como resultado de uma transferência de energia. A libertação e a respetiva propagação de um determinado tipo de energia, para poder causar um acidente, deve ser superior àquela que o sujeito ou objeto (que pretendemos defender) consegue suportar sem efeitos nocivos. É a partir daqui que o fenómeno dos acidentes passa a estar associado às barreiras ou defesas. Estas barreiras pretendem proteger as diversas fraquezas dos trabalhadores e/ou dos bens materiais de eventuais danos provocados por essa libertação descontrolada de energia. 9 O modelo da energia e das barreiras foi introduzido por Gibson (1961) e alguns dos seus pressupostos foram seguidos por diversos autores, inclusive até aos dias de hoje. Podemos dar como exemplo os trabalhos de Haddon (1966) na área da medicina, de Johnson (1980) na análise e gestão de riscos e de Reason (1997) no estudo dos acidentes organizacionais. Vejamos também como Rasmussen efetua a articulação deste modelo, incluindo as suas potencialidade para acidentes 8 Paralelamente, o modelo ligado à ergonomia ganha força entre as décadas de sessenta e setenta do século XX, e permite uma visão complementar sobre os acidentes de trabalho, os quais passam a ser vistos como eventos que resultam do próprio processo de trabalho. Faverge (1972) foi um dos autores que avançou com a questão dos acidentes estar profundamente ligada com o desenvolvimento das atividades e tarefas de trabalho. Este avanço teórico e metodológico passou a comparar as situações de trabalho similares que davam origem a acidentes e as que não davam origem a acidentes. Em resumo, a abordagem dos acidentes a partir do contexto de trabalho definiu os acidentes de trabalho como fenómenos decorrentes das situações de trabalho, onde cada situação específica contém um determinado potencial para o acidente que depende de um determinado evento “detonador”; e este, por sua vez, ofereceria as condições necessárias para o acidente potencial passasse para acidente real. 9 A noção de energia que é utilizada neste modelo é bastante abrangente visto que considera diversos tipos ou formas de energia, nomeadamente, química, elétrica, cinética, etc. - 149 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica “maiores e menores”. “When models of the accident process, such as propagation of energy releases, are formulated in terms of accidental courses of events, then focus will be on the behavioural sequences of the actors involved. This model of accident causation and release processes introduces systems thinking into occupational safety and invites a transfer of the concepts and methods developed for high hazard systems into the general occupational safety work” (Rasmussen, 1997: 205). A implementação de barreiras em qualquer ponto do sistema (organização) pode constituir-se como uma das principais formas para a prevenção de acidentes. De certo modo, podemos considerar as barreiras como algo que pretende parar a passagem de alguém ou de alguma coisa (no sentido físico do termo). Porém, a utilização de barreiras na vida quotidiana vai muito além deste sentido estritamente físico, pois atualmente é frequente o recurso a barreiras simbólicas (a sinalização de trânsito é um bom exemplo deste tipo de barreiras). Estas últimas requerem sempre uma dada interpretação para alcançarem o seu propósito (Hollnagel, 2004). Após a ocorrência de um acidente as barreiras protetoras servem para tentar proteger os possíveis resultados não desejados ou consequências negativas. Neste sentido, Hollnagel (2004: 78) refere a pertinência de distinguir entre as barreiras para “desviar” as consequências e as barreiras para minimizar certas consequências. Segundo Haddon (1966), as características das barreiras são determinadas pela natureza do “objeto” que pretendem proteger, bem como pelo tipo de energia que pretendem bloquear. Para além disso as barreiras só devem ser consideradas como uma entre várias medidas (possíveis) para prevenir os acidentes e as lesões físicas, isto é, são um caminho para separar o objeto ou alvo a proteger de um ou vários perigos. Algumas versões do programa/método MORT (Management Oversight and Risk Tree) utilizam a distinção entre barreiras de controlo e barreiras de segurança (embora também seja proposta a distinção entre outros tipos de barreiras). As primeiras destinam-se a fluxos de energia esperados ou intencionais, enquanto as segundas estão direcionadas para fluxos de energia inesperados ou não - 150 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica intencionais. Ainda no âmbito dos acidentes podemos considerar as barreiras como dispositivos de segurança que pretendem evitar a ocorrência de determinados eventos indesejados ou, quando não for possível evitá-los, pretende-se que as barreiras devam tentar que os efeitos destes eventos não causem danos ou que estes sejam residuais. Em resumo, as barreiras devem ser definidas como construções, equipamentos, saberes, símbolos, regras ou procedimentos suscetíveis de poder parar o desenvolvimento de um acidente ou evitar/reduzir as suas consequências nefastas. Em parte, os acidentes podem ser vistos como a falha de uma ou mais barreiras (caso elas existam no sistema ou organização). No entanto, segundo Hollnagel (2004) a eventual falha de uma ou mais barreiras raramente pode ser vista como a causa principal dos acidentes. Na perspetiva deste autor as barreiras são normalmente entendidas como um obstáculo, uma obstrução ou um entrave à ocorrência de um determinado evento ou, caso não o consiga “travar”, pelo menos pretende diminuir o impacto das suas consequências. Assim, as barreiras podem ter funções distintas; por um lado, podem tentar evitar ou “impossibilitar” um evento (barreiras preventivas), por outro lado, podem tentar suavizar, enfraquecer ou atenuar os efeitos de um determinado evento (barreiras protetoras). Se tomarmos um acidente como ponto de referência, isto significa que nos sistemas ou organizações podem ser colocadas barreiras a montante, para tentar evitar um acidente, ou a jusante, para tentar minimizar ou limitar os seus efeitos ou consequências. “Barriers that intended to work before a specific initiating event takes place, serve as a means of prevention. Such barriers are supposed to ensure that the accident does not happen, or at least to slow down the developments that may result in an accident. Barriers that are intended to work after a specific initiating event has taken place serve as means of protection. These barriers are supposed to shield the environment and the people in it, as well as the system itself, from the consequences of the accident” (Hollnagel, 2004: 76). Neste momento já identificamos três tipos de barreiras: as simbólicas, as preventivas e as protetoras. Podemos - 151 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica considerar as vacinas um exemplo clássico das barreiras preventivas e a construção de um muro (em termos físicos) como um exemplo de barreiras protetoras, as quais pretendem evitar a passagem de alguém ou de algo, como, por exemplo, a transferência excessiva de um certo tipo de energia ou massa para um determinado alvo (que não a consegue receber sem danos), tal como sugere a figura seguinte: Figura 3 – Representação da transferência de energia e das barreiras protetoras Fonte: Adaptado de Gibson (1961). O modelo de Reason (1997) para a análise de acidentes organizacionais assenta, em grande medida, na observação de como as defesas ou barreiras podem ser violadas. Tal como se pode verificar na figura 4 as falhas ativas e as condições latentes podem criar “buracos” nos dispositivos de segurança das organizações, isto é, nas suas defesas. Metaforicamente, Reason compara as barreiras defensivas das organizações ao queijo suíço, ou seja, preconiza que as defesas não são estruturas perfeitas, visto que podem conter “buracos” provocados por falhas ativas e condições latentes. Nos sistemas sociotécnicos complexos as defesas em profundidade são construídas a partir de dois pontos essenciais: a redundância (diversas camadas de proteção) e a diversidade (diferentes formas de proteção). No entanto, a utilização destes mecanismos revela alguns problemas; as defesas em - 152 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica profundidade são dispositivos falíveis e nem sempre a sua violação é visível ou detetável no momento em que decorre a ação (Rasmussen, 1997). Figura 4 – Trajetória do acidente Fonte: Adaptado de Reason (1997: 12). A existência de “buracos” nas sucessivas camadas defensivas das organizações pode dar origem, em circunstâncias excecionais, à ocorrência de acidentes. A trajetória do acidente corresponde à sucessiva passagem do “perigo” (entendido como uma entidade ou fonte de energia passível de causar danos)10 através dos diversos dispositivos de segurança (defesas ou barreiras). Esta “janela de oportunidades”, tal como o próprio autor a designa, é rara devido à multiplicidade de barreiras existentes nas organizações com sistemas tecnológicos complexos. A trajetória dos acidentes organizacionais pode passar através de pequenas “fissuras” do próprio sistema, aparentemente 10 Esta abordagem efetuada por Reason articula duas perspetivas clássicas no estudo dos acidentes. A primeira assemelha-se ao modelo sequencialista proposto por Heinrich (1931), particularmente quando o autor fala na trajetória do acidente, ou seja, é defendido que existe uma sequência antes da ocorrência do acidente. A segunda aproxima-se do modelo proposto por Gibson (1961), onde este autor afirma que a ocorrência de acidentes ou lesões encontra-se normalmente associada a uma fonte de energia (perigo) suscetível de causar danos. - 153 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica insignificantes, mas que permitem a sua consumação. A articulação de falhas ativas e de condições latentes permite criar situações raras onde a trajetória do acidente não é travada pelas barreiras do sistema, sendo o culminar do trajeto (completo) o próprio acidente. Contudo, é ainda pertinente considerar que os “buracos” nas camadas defensivas podem ter “mobilidade”, mesmo num curto espaço de tempo (por exemplo, podemos encontrar dispositivos de segurança desligados durante os trabalhos de manutenção), podendo ainda variar a sua eficácia ao “longo da vida” do sistema, nomeadamente, através da degradação das barreiras defensivas. Isto significa uma dificuldade acrescida para qualquer estratégia de prevenção de acidentes dentro das organizações, visto que os sistemas que operam tecnologias complexas são dinâmicos e “permitem” que os “buracos” ou “janelas” nas suas barreiras defensivas apareçam, desapareçam, voltem a aparecer, possam expandir ou encolher a sua “dimensão” ou ainda modifiquem a sua localização na camada defensiva. Assim, são muitos os autores que tal como Reason reiteram que ninguém consegue prever todos os cenários possíveis de acidente. É inevitável que algumas defesas possam vir a enfraquecer durante o período de vida do sistema, ou mesmo que não se encontrem incorporadas nesse mesmo sistema desde o seu início. 6. A teoria sociológica dos acidentes de trabalho No início da década de 1970, Hale e Hale (1972) apelavam à urgente necessidade de criar novas teorias e novos métodos para compreender o fenómeno dos acidentes. Este apelo motivou, em parte, a elaboração de uma teoria sociológica para compreender os acidentes de trabalho (Dwyer, 1989; 1991; 2000; 2006). Para dar sequência a esta demanda foram observadas diversas relações sociais nos locais de trabalho, por vezes, separadas analiticamente enquanto objeto de estudo, mas profundamente interligadas ao nível empírico. A tese central da teoria sociológica de Dwyer preconiza que os acidentes de trabalho são, em grande medida, o resultado do - 154 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica funcionamento de sistemas de relações sociais. De certo modo podemos afirmar que este modelo (concebido essencialmente como fruto de relações sociais) está ancorado quer à perspetiva de Durkheim, onde era defendido que o social deve ser explicado pelo social, quer à perspetiva fenomenológica de Schutz (derivada da Sociologia de Max Weber). No âmago da teoria sociológica de Dwyer existem, essencialmente, três níveis ou dimensões sociais com capacidade para explicar o desenvolvimento das relações entre empregadores e trabalhadores – a recompensa, o comando e o organizacional – e, por arrastamento, do próprio fenómeno dos acidentes de trabalho; a estas três dimensões é acrescentada uma quarta de carácter não-social: o indivíduo-membro. A importância de cada uma destas dimensões é construída nos próprios locais de trabalho, não é dada antecipadamente, logo, a importância de uma dimensão num determinado contexto não significa que ela tenha o mesmo “peso” noutra realidade sóciolaboral distinta. Em termos metodológicos são testadas quatro hipóteses de análise11 a partir de uma observação direta e participante, onde é privilegiada uma certa dialética “negocial” entre o conhecimento do especialista (investigador) e o saber prático dos sujeitos observados (objeto de estudo). Esta situação caracteriza, em parte, a originalidade e pertinência desta pesquisa sociológica. Nesta perspetiva, os acidentes de trabalho dependem da relação direta ou indireta dos trabalhadores com os riscos. Os acidentes são também vistos como uma situação de erro específico, produzido organizacionalmente, fruto do funcionamento e interação das quatro dimensões referidas na figura 5. O modelo idealizado para conceber como é que as 11 As referidas hipóteses de análise são as seguintes: “1- As relações sociais de trabalho produzem acidentes; 2- Quanto maior o peso de um nível de relações sociais na gestão das relações dos trabalhadores com os perigos de suas tarefas, maior a proporção de acidentes produzidos nesse nível; 3- Quanto maior o grau de gestão da segurança pela administração em um nível, menor a proporção de acidentes produzidos no nível que essa ação procura controlar; 4Quanto maior o grau de autocontrole pelos trabalhadores em um nível, menor a proporção de acidentes produzidos no nível que a ação do trabalhador procura controlar” (Dwyer, 2006: 260). - 155 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica relações sociais de trabalho e o nível indivíduo-membro podem interagir de modo a produzir acidentes foi esquematizado da seguinte forma: Figura 5 – A relação das dimensões nos locais de trabalho Fonte: Adaptado de Dwyer (2006: 142). Vejamos agora com maior detalhe cada uma das quatro dimensões concebidas por Dwyer na sua teoria sociológica dos acidentes de trabalho. A primeira dimensão – a recompensa – está relacionada com a utilização de incentivos para gerir a relação das pessoas com o seu trabalho. Estes incentivos podem ser subdivididos em três fatores distintos: 1) materiais ou financeiros relacionados com intensificação do trabalho; 2) prolongamento do trabalho, por exemplo, através do recurso a horas extraordinárias; 3) recompensas simbólicas. Este último ponto está articulado com dimensões culturais dos próprios trabalhadores, tais como: o prestígio, o estatuto social, a estima ou o cumprimento de “rituais” de integração no grupo ao qual se quer pertencer. Alguns antropólogos estudaram a questão das recompensas simbólicas no trabalho e verificaram, por exemplo, que os índios norte-americanos que trabalharam na construção de arranha-céus executavam o seu trabalho sem a menor segurança laboral. Esta situação deve-se à aceitação dos perigos por parte destes atores sociais, visto que a - 156 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica deliberada exposição ao risco é entendida como um ato heroico e, simultaneamente, como um mecanismo de reforço dos seus valores culturais tradicionais (bravura, audácia, coragem, etc.) por contraposição aos valores tendencialmente preventivos das sociedades modernas. Já as recompensas financeiras podem derivar, por exemplo, da aceitação, por parte dos trabalhadores, em executarem tarefas de maior risco a troco de dinheiro ou em obterem melhores salários através do aumento da sua carga horária (quanto maior for o número de horas extraordinárias trabalhadas, maior será o salário obtido). Todas as situações descritas anteriormente podem resultar num aumento do número de acidentes de trabalho, considerando que a aceitação de riscos mais elevados – quer seja por recompensa simbólica, quer seja através da ampliação do horário de trabalho – aumentam a possibilidade de ocorrerem acidentes. Aliás, Dwyer (2006) cita diversos estudos onde se pode concluir que existe uma relação direta entre o aumento excessivo de horas trabalhadas e o aumento do número de acidentes de trabalho. Os incentivos financeiros que visam o aumento da produtividade dão normalmente origem à execução de tarefas de forma mais rápida (aumentando simultaneamente o cansaço dos trabalhadores e o número de erros ou falhas) em detrimento, por exemplo, do cumprimento das normas e regras de segurança estabelecidas para aquela tarefa. Existe uma certa tendência para estes problemas serem escamoteados devido à aparente relação mutualista que parece daqui resultar para empregadores e trabalhadores; ou seja, os primeiros veem a sua produção aumentada, enquanto os segundos veem os seus salários alargados. Todavia, os custos subjacentes a esta prática estão situados, por exemplo, no aumento do número de acidentes (McKelvey et al., 1973 – citado em Dwyer, 2006: 153) e em todas as consequências que daí advêm. Mais tarde, observou-se que esta prática acarretava ainda outros problemas. Uma das desvantagens para os empregadores que recorriam à utilização de incentivos económicos para o aumento da produção, era que este fator acabava por induzir uma certa rejeição nos trabalhadores das - 157 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica tarefas que não seriam alvo de incentivos. Este modelo de gestão provocava também o “corte” de algumas etapas supostamente consideradas dispensáveis12 ou a diminuição da produtividade quando as metas para obter os incentivos económicos eram demasiado exigentes. A segunda dimensão ou nível da teoria sociológica dos acidentes de trabalho, designada por comando, está relacionada com a forma como os empregadores tentam gerir as relações dos trabalhadores com o seu trabalho, através de um controlo direto ou indireto sobre as suas ações. Regra geral, os trabalhadores tentam resistir a formas de controlo mais “apertadas” (que tendem a inibir a sua autonomia). O conflito latente entre empregadores e trabalhadores pode ser explicado, em parte, através do exercício desta forma de poder e de dominação. De certo modo, podemos afirmar que para contrabalançar um poder dominante do empregador existe um contrapoder dominado dos trabalhadores e este último pode assumir formas e estratégias muito diversificadas. A dinâmica da dimensão comando é também ela produzida através de três tipos de relações sociais distintas: 1) o autoritarismo; 2) a desintegração do grupo de trabalho e 3) a servidão voluntária. As estratégias de autoritarismo utilizadas por alguns empregadores são concebidas não tanto como um mecanismo de defesa da segurança dos trabalhadores, mas antes como uma tentativa deliberada para garantir que o trabalho seja executado de forma célere. Na área da construção civil francesa verificou-se a existência de um número significativo de trabalhadores “insatisfeitos”, devido ao seu trabalho ser gerido pelo autoritarismo. Estes trabalhadores compreendiam que este fator era responsável por uma parte dos acidentes ocorridos no seu local de trabalho (Dwyer, 1989: 29). Todavia, se um trabalhador reclamar das más condições de trabalho às quais está sujeito, o seu empregador pode 12 Para ilustrar esta situação verifica-se que, por exemplo: “andaimes são erguidos e não adequadamente fixados; máquinas que requerem manutenção são colocadas em funcionamento sempre que reparos preventivos implicam interrupção do trabalho que leve a reduções no pagamento; restos são deixados para outros limparem; o carvão subterrâneo é extraído à custa de escorar o teto; cálculos da produção fraudados” (Dwyer, 2006: 147). - 158 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica encontrar determinados enredos (moralmente condenáveis e de legalidade duvidosa) para terminar esta relação contratual (despedimento). Porém, se as condições de trabalho são más e não forem corrigidas provavelmente irá haver mais acidentes; este é um dos aspetos em que se torna visível a estreita relação entre autoritarismo e acidentes de trabalho, ou seja, o autoritarismo pode produzir acidentes (Dwyer, 2006: 174). A desintegração do grupo de trabalho pode ser efetuada, por exemplo, através de uma elevada rotatividade dos trabalhadores na empresa. Os empregadores procuram eliminar as ameaças que os grupos de trabalho coesos ou integrados podem acarretar para si, no entanto, utilizam a desintegração sem que isso impeça o desenvolvimento das tarefas laborais. A desintegração do grupo de trabalho pode resultar em acidentes quando pessoas que trabalham em tarefas que requerem um trabalho interdependente não se compreendem. A alta rotatividade de trabalhadores e os grupos onde as pessoas não falam a mesma língua são fatores que produzem esta relação. Um grupo de trabalho integrado pode constituir a base de resistência dos trabalhadores à imposição de trabalhos perigosos. A servidão voluntária está relacionada com a execução de trabalhos perigosos, sem que haja qualquer oposição por parte dos trabalhadores. De certo modo, é uma aceitação quase fatalista dos riscos laborais. Nesta teoria sociológica destaca-se ainda o papel positivo para a prevenção de acidentes que alguns sindicatos podem desempenhar ao combaterem dentro das empresas, estes três tipos de relações sociais (autoritarismo, desintegração do grupo de trabalho e servidão voluntária). As relações que se estabelecem entre trabalhadores e hierarquias são um aspeto decisivo nas relações sociais de trabalho, particularmente na forma de dirigir a execução do trabalho. Segundo João Freire (1991) os encarregados e capatazes da construção civil, enquanto agentes de comando de “primeira linha” (hierarquia direta), podem ter um papel importante no aumento ou diminuição do número de acidentes de trabalho, devido ao papel específico que desempenham dentro das organizações. Se a sua sensibilidade para os temas da segurança no trabalho for significativa, o poder e autoridade - 159 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica inerente ao seu cargo podem constituir-se como um fator inibidor para os acidentes. Aliás, como já observamos anteriormente esta perspetiva vai ao encontro de um dos dez axiomas da segurança industrial, apresentado por Heinrich et al. (1980), onde é defendido que os supervisores e capatazes são agentes chave para a prevenção de acidentes. Dwyer define que o nível comando é também produzido, em grande medida, de relações de poder. Segundo esta perspetiva, a utilização do poder serve para combater os comportamentos considerados indesejados e, tanto pode ser usado pelo empregador (e respetiva cadeia hierárquica), como pelos próprios trabalhadores entre pares. O poder dentro das relações sociais pode ser utilizado na prevenção de acidentes, por exemplo, através da punição de práticas e comportamentos definidos como inseguros. No entanto, algumas pesquisas indicam que as medidas disciplinares são provavelmente capazes de reduzir mais o registo formal de acidentes do que os próprios acidentes (Dwyer, 2006: 185). Este último aspeto é importante visto que tem subjacente o medo que os trabalhadores possuem de serem punidos disciplinarmente por sofrerem acidentes, e este facto pode levá-los a não declarar determinados tipos de acidentes. Para evitar situações desta natureza algumas organizações preferem transferir a responsabilidade da vigilância para os próprios trabalhadores. Esta estratégia é designada como autocomando, ou seja, são os próprios pares que impõem sanções àqueles que agem de forma perigosa. Alguns estudos (cf. Dwyer, 2006) sugerem que a maioria dos trabalhadores tem preferência por o modelo de autocomando, em detrimento de programas de segurança organizados pela empresa, todavia, ainda não existem estudos suficientes para provar que o modelo de autocomando seja mais eficaz na prevenção de acidentes. O terceiro nível apresentado na teoria sociológica de Dwyer (2006) é designado por organizacional. Este nível é também produzido por três tipos distintos de relações sociais: 1) a subqualificação; 2) a rotina; e 3) a desorganização. A subqualificação pretende observar qual é o tipo de conhecimento dos trabalhadores sobre as suas tarefas, visto que a falta de conhecimento pode dar origem a uma - 160 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica incapacidade para executar as tarefas laborais em segurança. Por sua vez, esta incapacidade pode depender da falta de formação específica ou de um enviesamento na capacidade de tradução do conhecimento formal em conhecimento prático. Podemos, por exemplo, considerar que existe uma subqualificação quando os trabalhadores têm de desempenhar uma determinada tarefa, mas não têm as qualificações necessárias para desempenhá-la de forma eficaz. A introdução de novas técnicas e/ou tecnologias nos locais de trabalho são também um novo fator de risco (Raposo e Areosa, 2009) que pode aumentar a ocorrência de acidentes. A génese destes acidentes pode ser encontrada numa rutura entre a experiência e qualificações de trabalho desenvolvida na situação anterior e a inexperiência e falta de qualificações perante a nova situação de trabalho. Nestes casos os trabalhadores ainda não desenvolveram os mecanismos necessários para “dominar” os novos riscos, ou seja, ainda não habituaram o seu corpo ou os seus conhecimentos às novas situações de riscos, resultantes das alterações dos seus locais de trabalho (Pinto, 1996). Uma parte significativa da rotinização do trabalho parece ter ocorrido após a emergência da designada organização científica do trabalho, ou seja, após o Taylorismo e o Fordismo. Foi a partir daqui que os trabalhadores mais qualificados do setor industrial perderam tendencialmente o conhecimento sobre os vários passos do processo produtivo, visto que passaram apenas a realizar uma parte deste processo. Isto resultou de uma semiautomatização e simplificação do trabalho que acarretou diversas consequências, particularmente a rotinização das tarefas. A desorganização pode manifestar-se de diversas formas. Regra geral, quando o conhecimento inerente a uma determinada tarefa não é transmitido de forma adequada à pessoa que entra em contacto com os resultados da execução dessa tarefa, podemos afirmar que esse trabalho é administrado por meio de uma relação social de desorganização. Outro exemplo pode ser apresentado quando o próprio empregador efetuou uma conceção “defeituosa” ou inadequada da tarefa que irá ser executada pelo trabalhador. - 161 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica A literatura sobre as perceções de riscos (cf. Areosa, 2007; 2011) refere que as tarefas executadas com pouca frequência são mais suscetíveis de originar acidentes13; isto pode estar relacionado com a falta de determinados hábitos ou rotinas, com a ausência de adaptação perante determinados riscos ou ainda com a falta de qualificação. Para compreender alguns tipos de acidentes é ainda importante considerar as estratégias de gestão cognitiva dos trabalhadores (Amalberti, 1996) ou a questão dos gestos voluntários e involuntários como fatores que podem produzir acidentes, particularmente em trabalhos monótonos e cadenciados. Se um trabalhador de uma linha de montagem é excecionalmente confrontado com uma nova situação de trabalho ele até pode compreendê-la, mas o designado reflexo condicionado anterior continua e isso pode explicar alguns tipos de acidentes. Dwyer (2006) define este tipo de acidentes como resultado de uma relação social do trabalho de rotina. A quarta e última dimensão apresentada por Dwyer na teoria sociológica dos acidentes é a única dimensão não-social e é designada por indivíduo-membro. O seu cariz está centrado numa abordagem mais ligada à psicologia, onde é defendido que o indivíduo detém uma certa autonomia para agir, independentemente dos constrangimentos impostos pelas relações sociais e organizacionais. Metaforicamente é a parte do trabalhador que se consegue “libertar” da influência das três grandes dimensões sociais descritas anteriormente. No fundo, será o reconhecimento por parte da teoria sociológica que existem fatores não sociais suscetíveis de influenciar a ocorrência de acidentes de trabalho. Um dos aspetos importantes desta dimensão está relacionado com a tentativa para explicar a ocorrência de “acidentes” provocados por autolesão (atos intencionalmente provocado pelo trabalhador) ou por outro tipo de ações de natureza individual. Recorrendo a alguns exemplos, Dwyer tenta explicar qual a importância da dimensão indivíduo-membro no seio das relações de trabalho: 13 Nos antípodas desta teoria surgem outras teorias onde é defendido que a ultrafamiliaridade com algumas situações de risco (trabalhos de rotina) pode originar desatenções e, por consequência, aumentar o número de acidentes. - 162 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica “O trabalhador expressa-se de forma individual ao chegar ao local de trabalho contente, porque talvez tenha acabado de ganhar um filho ou por estar intoxicado. O trabalhador pode agir individualmente em um dos níveis sociais para reforçar o seu poder ou o do patrão nesse nível. O indivíduo que sabota a linha de montagem, o que organiza clandestinamente um sindicato ou o que viola as normas de produtividade coletivas numa fábrica que paga por produção, todos eles expressam dimensões diferentes desse nível de realidade. O sabotador recusa-se a aceitar o controlo de seu ritmo de trabalho imposto pela linha de montagem. O sindicalista busca contestar coletivamente o poder de controlo de seus patrões. O violador das normas coletivas tenta aumentar seus ganhos aceitando as definições do patrão e rejeitando as de seus colegas” (Dwyer, 1989: 27). Na teoria sociológica dos acidentes de trabalho de Dwyer é apresentada uma abordagem para a explicação dos acidentes através da observação das relações sociais dentro das organizações. As relações sociais de trabalho são entendidas como a forma pela qual os próprios trabalhadores gerem as suas relações com o trabalho. Esta perspetiva discute que os acidentes são essencialmente fruto das relações sociais de trabalho e, por isso, só podem ser prevenidos através da alteração em algumas destas relações. Assim, parece pertinente compreender quais são as relações sociais que produzem erros e, por consequência, acidentes. A capacidade de influência de cada uma das dimensões referidas na teoria sociológica sobre os acidentes pode variar mediante cada contexto ou local de trabalho, dependendo das estratégias de empregadores e trabalhadores. A principal tese desta teoria preconiza que quanto maior for o peso de um nível nas relações sociais de trabalho, maior será a proporção de acidentes causado por esse mesmo nível. Apesar da teoria sociológica de Dwyer considerar os quatro níveis ou dimensões, referidos na figura 5, como os mais importantes para a compreensão e explicação da maioria dos acidentes de trabalho, ela não deixa de reconhecer a existência de outros aspetos interessantes para um melhor entendimento acerca da possível complexidade multicausal dos - 163 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica acidentes de trabalho, visto que tenta incorporar, no seu modelo, alguns pressupostos retirados de conclusões de outros estudos empíricos. 7. Reflexões finais sobre a prevenção de acidentes Atualmente, os múltiplos tipos de riscos, bem como as suas interações podem ser identificados como a chave para compreender a produção de acidentes. Os riscos são as précondições ou as antecâmaras para os acidentes (Areosa, 2009; 2010). Assim, a prevenção de acidentes deve passar em larga medida pela análise, avaliação e gestão dos riscos, embora, não possamos esquecer que a prevenção não pode ser mitificada ao ponto de podermos pensá-la como um meio para prevenir todos os acidentes. De certo modo, podemos até considerar a predição de acidentes como um objeto da avaliação de riscos; contudo, o seu raio de ação será sempre limitado e insuficiente para chegar à marca dos “zero acidentes” ao nível organizacional ou social (universal). Tal como refere Green (1997) os acidentes são uma característica inevitável do universo. Teoricamente nenhum acidente é inevitável, embora, na prática, seja impossível preveni-los a todos. Aquilo que nos interessa aprofundar na investigação de acidentes é compreender como é que eles acontecem, para que possamos encontrar caminhos e formas de os prevenir, pelo menos tantos quantos for possível. Quando ocorre um acidente é quase inevitável que nos interroguemos sobre o que é que correu mal e qual foi a causa deste evento (como por exemplo, algo que falhou). Porém, na maioria dos acidentes não existe propriamente uma causa única; pelo contrário, tende a existir a articulação inesperada de um conjunto de circunstâncias, cuja sua ligação e interação possibilita a origem do acidente (Hollnagel, 2004). Os diversos modelos de acidentes que trabalhamos ao longo deste capítulo revelam perspetivas diferentes, por vezes até antagónicas, sobre os fatores predominantes que influenciam a sua ocorrência. Naturalmente que este aspeto é - 164 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica decisivo para a forma como cada um deles estrutura as possibilidades para a prevenção desses mesmos acidentes. São essas diferenças que iremos apresentar na tabela seguinte, embora de forma bastante sintética e resumida. Cada modelo apresenta as suas próprias especificidades e características dominantes; isto não quer dizer que possamos afirmar que um é melhor do que o outro, visto que cada um tem as suas próprias virtudes, potencialidades e limites. Devido à sua diversidade e pluralidade de abordagens não nos parece possível integrar os seus pontos fortes na eventual criação de um único modelo (o que em termos teóricos seria a situação ideal). Eles valem essencialmente pela capacidade reflexiva que suscitam e pela diversidade conceptual que permitem, sem, no entanto, nenhum se tornar hegemónico perante os restantes. Assim, a tabela 1 está predominantemente direcionada para destacar os principais aspetos que os modelos supracitados apresentam para a prevenção de acidentes. - 165 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica Tabela 1 – A prevenção de acidentes nos modelos apresentados Perspetiva teórica Principais aspetos para a prevenção de acidentes Teoria da propensão individual para os acidentes Este modelo sugere que podem existir determinadas características individuais (predisposições biológicas e/ou psicológicas) que estão ligadas a uma maior propensão para sofrer acidentes. É apresentada como “pano de fundo” a seguinte questão: quais os motivos por que alguns trabalhadores sofrem mais acidentes, comparativamente com os seus pares, realizando as mesmas tarefas? Dado que esta corrente defende que existem determinadas vulnerabilidades para os acidentes, específicas de certos indivíduos, a prevenção passaria por não colocar determinados trabalhadores a executar certas tarefas. Teoria dominó Para esta corrente a grande maioria dos acidentes decorre de fatores humanos. Assim, a prevenção de acidentes deve passar em larga medida pelo controlo dos comportamentos individuais dos trabalhadores (atos inseguros). Os métodos básicos para a prevenção de acidentes passam por processos de engenharia, de persuasão e sensibilização, de ajustamento pessoal e por um controlo hierárquico e disciplinar. Modelo epidemiológico dos acidentes Esta perspetiva procura compreender os acidentes mediante a observação das principais causas que estiveram na origem destes eventos (particularmente através da recolha de dados estatísticos), dependentes da interação entre hospedeiro, agente ou objeto agressivo e fatores ambientais. O comportamento de determinada população (ou seja, as suas incidências e regularidades) é o fator subjacente para a elaboração de estratégias e políticas para a prevenção de acidentes. Perspetiva da transferência de energia e das barreiras protetoras Os acidentes acontecem devido a uma determinada “descarga” energética ser superior àquela que o determinado alvo consegue suportar sem danos. Para evitar ou minimizar esta transferência energética sobre o alvo (a proteger) este modelo propõe a implementação de barreiras protetoras ou de segurança. Os primeiros estudos deste modelo surgem ligados à área da saúde, estendendo-se posteriormente para o campo dos pequenos acidentes. Atualmente, podemos verificar que este modelo apresenta algumas limitações, dado que alguns acidentes não podem ser vistos como uma transferência de energia excessiva; um dos exemplos mais notórios desta situação é referenciado a partir dos acidentes que ocorrem com profissionais de saúde (picadas com agulhas aquando do manuseamento com material biológico contaminado). Teoria sociológica dos acidentes de trabalho Segundo a perspetiva de Dwyer os acidentes de trabalho são fruto das relações sociais de trabalho desajustadas e da assimetria de poder destas relações. Normalmente os acidentes decorrem do conflito latente entre empregadores e trabalhadores, sendo estes explicados a partir de quatro dimensões essenciais: recompensa, comando, organizacional e individual. Desde modo, a prevenção de acidentes poderá ser efetuada mediante a alteração das relações sociais de trabalho, ou seja, através de uma gestão mais adequada destas relações. - 166 - Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica Para finalizar, parece-nos pertinente referir que a conceção de modelos para a análise de acidentes serve essencialmente para duas funções: compreender aquilo que correu mal (e que esteve na origem do acidente) e tentar prevenir possíveis acidentes futuros, quer com características semelhantes, quer com aspetos dissemelhantes. Quando nos interrogamos sobre quais as reais possibilidades de prevenção para todos os acidentes, a resposta parece ser relativamente consensual, isto é, os acidentes vão continuar a surgir no futuro. No entanto, isto não significa que estejamos perante pessoas ou organizações “incompetentes”, significa antes que a segurança revela limites inerentes à sua própria condição (Sagan, 1993). Apesar de estas notícias não serem propriamente animadoras, também existem boas notícias, dado que quanto mais aprofundarmos o nosso conhecimento sobre os acidentes, incidentes ou sinais de perigo, melhores serão as possibilidades para a prevenção de eventuais acidentes futuros. Referências bibliográficas Amalberti, René (1996), La conduite des systèmes à risques. Paris : Le Travail Humain / Presses Universitaires de France. 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