Impacto social dos acidentes de trabalho
Acidentes de trabalho: uma perspetiva
epistemológica
João Areosa
Referenciação recomendada:
Areosa, João (2012), Acidentes de trabalho: uma perspetiva
epistemológica, In H. V. Neto; J. Areosa; P. Arezes (Eds.) –
Impacto social dos acidentes de trabalho, Vila do Conde:
Civeri Publishing, pp. 132-169.
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Impacto social dos acidentes de trabalho
Acidentes de trabalho: uma perspetiva
epistemológica
João Areosa 1
1. Introdução
Os acidentes sempre fizeram e sempre farão parte dos
eventos ocorridos em sociedade, e isto pode explicar, em
parte, o porquê de eles poderem ser considerados como um
problema social. É verdade que os acidentes podem ocorrer
em todos os lugares (escolas, casa, locais de trabalho,
estradas, etc.), em diversas circunstâncias, e derivar de
múltiplas causas. Esta fatalidade social à qual todos nós
estamos sujeitos depende dos riscos e dos perigos que
corremos ao longo das nossas vidas. Apesar de alguns
acidentes serem dramáticos nas consequências que produzem,
eles por definição são eventos relativamente raros, visto que
representam desvios à normalidade.
O acidente em sentido etimológico significa um qualquer
evento não planeado, fortuito, imprevisto e fruto do acaso. Na
linguagem do senso comum um acidente é entendido como
algo nefasto, maléfico e aleatório que provoca danos ou
prejuízos. Desta definição preliminar podemos antecipar a
existência de uma impossibilidade empírica para controlar
todas as situações passíveis de causar acidentes. Até meados
do século XVIII a noção ocidental de acidente esteve
essencialmente associada a manifestações divinas, isto é, as
grandes catástrofes eram vistas como fruto da vontade dos
Deuses. A laicização da catástrofe (Theys, 1987) surge como
um pensamento fraturante dentro da visão social dominante
acerca dos acidentes; este pensamento começa a emergir
após o terramoto de Lisboa de 1755 (Areosa, 2008). A partir
deste período os acidentes começam também a ser entendidos
como resultado de condições naturais. Nos dias de hoje, os
1
Investigador no CICS/UM
joao.s.areosa@gmail.com
e
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docente
no
ISLA.
E-mail:
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
acidentes são também fenómenos socialmente construídos
(Green, 1997), e variam com a interpretação social que lhe é
dada.
Em traços gerais, julgamos que não é possível prevenir e
evitar todos os acidentes, mas estamos convictos que as
análises de acidentes podem ajudar a prevenir alguns deles. É
precisamente por esse motivo que iremos apresentar de
seguida uma perspetiva histórica ou epistemológica sobre os
principais modelos de análise de acidentes.
2. A suscetibilidade individual para os acidentes
Uma das primeiras abordagens científicas sobre os
acidentes de trabalho foi apresentada por Greenwood e Woods
(1919). Esta perspetiva centrava-se na observação estatística
de sinistros laborais durante um determinado período de
tempo. Os autores sugeriam que poderia existir uma certa
suscetibilidade individual2 ou propensão para os acidentes,
num número limitado de trabalhadores. Esta teoria,
amplamente debatida na área da psicologia, incidia, entre
outros aspetos, sobre a identificação de determinadas
características individuais dos sujeitos sinistrados, ou seja,
tentava aferir a existência de propensões pessoais para o
acidente. Após serem analisadas algumas estatísticas de
acidentes de trabalho em diferentes indústrias britânicas,
verificou-se que determinados indivíduos tinham mais
acidentes,
por
comparação
com
os
seus pares,
desempenhando as mesmas tarefas laborais. É referido que os
aspetos relacionados com a personalidade podem explicar, em
parte, a ocorrência de múltiplos acidentes. “But, so far as our
present knowledge goes, it seems that the genesis of multiple
accidents under uniform external conditions is an affair of
personality and not determined by any obvious extrinsic factor,
such as greater or less speed of work. We cannot say that the
2
É pertinente referir que os autores reconhecem que incorporaram no
termo suscetibilidade individual uma série variada de motivos ou
fatores que serão realmente muito difíceis de separar e medir
(Greenwood e Woods, 1919).
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
victims are less healthy persons than those who escape, or that
they are better workers - so far as our data go there is no
reason to think that they are specially productive workers”
(Greenwood e Woods, 1919: 10).
Pontualmente, foram surgindo alguns resultados
contraditórios em relação à suscetibilidade individual para os
acidentes, no entanto, é frequente observar-se que para
determinados tipos de trabalhos alguns trabalhadores teriam
mais acidentes do que outros. A partir deste pressuposto
passou-se para uma segunda fase desta perspetiva onde se
estudou outras variáveis individuais, tais como: a idade, o
género, a inteligência, os níveis de fadiga, as atitudes perante o
risco, etc. Determinados autores (Hansen, 1989; Furnham,
1992) efetuaram e citaram diversos estudos onde se concluía
que alguns aspetos da personalidade e de desajustamento ou
inadaptação social de certos indivíduos estavam diretamente
ligados a uma maior propensão para os acidentes. “This study
demonstrated that some characteristics associated with
neurosis and social maladjustment are significantly related to
accidents, even when other influential variables such as level of
risk and employee age are taken into consideration. In future
studies, the global measures of social maladjustment and
neurotic distractibility should be decomposed into several
measures of individual traits that can then be woven into the
refined causal model and tested” (Hansen, 1989: 88).
Apesar da introdução de novas variáveis de pesquisa os
resultados dos estudos desta corrente continuaram a
considerar alguns acidentes como o resultado da inépcia do
trabalhador, quase sempre considerado como o elo mais fraco
do sistema, e tendo por base predisposições biológicas
particulares de certos indivíduos. A questão fulcral desta teoria
tentava responder à pergunta: Qual seria o motivo por que
determinados indivíduos tinham mais acidentes do que outros,
trabalhando nas mesmas circunstâncias? A pesquisa sobre
esta vulnerabilidade individual para o acidente estava centrada
em duas dimensões distintas: características fisiológicas e
características psicológicas. Esta perspetiva sobre a tendência
individual para o acidente foi também largamente criticada por
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
diversas correntes teóricas da segurança laboral, onde era
questionada a validade dos seus pressupostos.
Segundo Nebot (2003) o trabalhador pode, de facto,
atravessar um período da sua vida durante o qual sofre mais
acidentes; mas, esta situação tende a não estar relacionada
com aspetos individuais (biológicos ou genéticos) – como
defendia o modelo da propensão individual para os acidentes –
mas com aspetos de natureza familiar, profissional ou social.
Numa perspetiva com características diferentes da anterior,
autores como Reason (1990) e Amalberti (1996) afirmam que é
difícil evitar os erros humanos, e criticam os modelos que
concebem os acidentes estritamente a partir deste
pressuposto, visto que o erro faz parte da própria condição
humana. Outros estudos centrados no indivíduo, nos seus
aspetos cognitivos ou nos fatores sociais perante o trabalho
sugerem que o comportamento dos trabalhadores está
baseado em hábitos e rotinas (Areosa e Dwyer, 2010). Deste
modo, a realização de alguns tipos de trabalho pode ser vista
como um mecanismo quase automatizado e não tanto como
um processo de decisão permanentemente consciente
(Reason e Hobbs, 2003). Segundo a abordagem destes
autores a prevenção de acidentes a partir da alteração
comportamental dos trabalhadores não é o meio mais eficaz de
prevenção, pelo contrário, deve-se apostar nas defesas ou
barreiras que não dependam da componente humana (Reason,
1997). As múltiplas críticas ao modelo da suscetibilidade
individual para o acidente permitiram redirecionar a
investigação de acidentes para dimensões sociais e
organizacionais.
Apesar das críticas a teoria da predisposição individual
para os acidentes acabou por continuar fortemente conotada
com a perspetiva da atribuição da responsabilidade à própria
vítima do acidente. Por exemplo, Wildavsky (1979) afirmou que
muitos dos acidentes que acontecem em casa ou em contexto
laboral estão subjacentes a uma certa negligência individual. A
colocação da tónica dos acidentes na imprudência ou
negligência dos trabalhadores deu origem à culpabilização do
trabalhador sinistrado ou, quando não era manifestamente
possível responsabilizar os envolvidos no acidente adotava-se
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
a ideia da inevitabilidade dos acidentes, fruto do “inatacável”
desenvolvimento social e tecnológico. Os acidentes de trabalho
eram o preço a pagar pelo desenvolvimento da era industrial.
Estas explicações para os acidentes talvez sejam um dos
principais motivos pelo qual, quer a teoria da predisposição
para o acidente, quer a perspetiva da inevitabilidade dos
acidentes tenham sido tão criticadas – saliente-se que nem
sempre justamente. A culpabilização das vítimas sinistradas
pode ser vista como um mecanismo de “ilusão” organizacional,
visto que não aprofunda outras eventuais causas subjacentes
do próprio acidente. Ao atribuir a culpa ao sinistrado a
organização (e as hierarquias que efetivamente determinam as
condições em que o trabalho é executado) iliba-se de qualquer
responsabilidade sobre as consequências do acidente.
Os opositores das perspetivas de culpabilização das
vítimas, entre os quais se podiam encontrar sindicatos e outras
associações de trabalhadores ou cívicas, defendiam princípios
morais e éticos, tais como: 1) o principal beneficiado do
trabalho em termos económicos (entre outros) era o
empregador, portanto, deve também ser ele a acarretar com o
ónus que possa resultar desse mesmo trabalho; 2) os
acidentes de trabalho, segundo esta lógica, promovem uma
dupla penalização da vítima, visto que é o trabalhador
sinistrado que contrai as lesões decorrentes do acidente e,
simultaneamente é-lhe atribuída a responsabilidade por esse
evento ter acontecido.
3. A perspetiva sequencialista dos acidentes
Os modelos sequenciais para a análise de acidentes
partem do pressuposto que até chegarmos ao acidente existe
uma série sequencial de acontecimentos que os possibilitam.
Estes eventos/condições surgem numa ordem específica até
ao momento em que ocorre o acidente. Nesta perspetiva os
acidentes podem ser compreendidos a partir de atos
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
inseguros3 ou de outros perigos mecânicos ou físicos. Nas
primeiras versões dos modelos sequencialistas os acidentes
eram vistos como o resultado de uma causa única. Podemos
afirmar que esta era uma visão muito simplista dos acidentes,
visto que considerava apenas um único fator explicativo para a
ocorrência destes eventos. Contudo, os modelos sequenciais
mais recentes contemplam a possibilidade de alguns acidentes
poderem derivar de uma complexa interação e sequência de
fatores. O modelo sequencial dos acidentes preconiza que
qualquer acidente pode ocorrer quando o sistema está,
aparentemente, a trabalhar com normalidade. Porém, a simples
ocorrência de um evento repentino e/ou inesperado pode dar
origem a uma sequência de outros acontecimentos que podem
terminar no acidente. Para os teóricos deste modelo os atos
inseguros, fortemente associados ao erro humano, são a
principal causa dos acidentes; embora as falhas em máquinas,
equipamentos ou outras componentes do sistema possam
também estar na sua origem. A figura 1 demonstra
esquematicamente a sequência do acidente de forma
simplificada.
Figura 1 - Modelo sequencial dos acidentes
Fonte: Adaptado de Hollnagel (2004: 48).
3 Na literatura a noção de ato inseguro é definida como uma ação que
contraria os pressupostos de segurança, podendo vir a causar a
ocorrência do acidente.
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
O exemplo clássico do modelo sequencialista dos
acidentes foi concebido por Heinrich (1931), sendo designado
como teoria dominó. Este modelo pode ser considerado como
uma das primeiras teorias da segurança industrial, concebida a
partir de dez grandes axiomas. Iremos reproduzi-los de seguida
a partir de uma das suas versões mais recentes (Heinrich et al.,
1980: 21):
1. A ocorrência de uma lesão resulta invariavelmente de uma
sequência completa de fatores – a última das quais é o
acidente em si mesmo. O acidente é invariavelmente
causado ou permitido por um ato pessoal e/ou por um
perigo mecânico ou físico.
2. A maioria dos acidentes pode ser atribuída a atos
inseguros.
3. As pessoas que sofreram uma lesão incapacitante
estiveram, em média, próximas de uma lesão grave cerca
de 300 vezes antes de terem sofrido a referida lesão
incapacitante, tendo cometido o mesmo ato inseguro. A
mesma regra aplica-se à exposição a perigos mecânicos
antes de sofrer uma lesão.
4. A severidade da lesão é em grande medida fortuita,
embora o acidente que origina a lesão seja previsível e
passível de prevenção.
5. As quatro razões básicas para a ocorrência de atos
inseguros (1- atitude imprópria; 2- falta de conhecimentos
ou capacidade; 3- inaptidão física; 4- ambiente mecânico ou
físico inadequado) providenciam um guia para a seleção de
medidas corretivas adequadas.
6. Estão também disponíveis quatro métodos básicos para a
prevenção de acidentes: engenharia; persuasão e
sensibilização; ajustamento pessoal e disciplina.
7. Os métodos mais adequados para a prevenção de
acidentes são similares aos métodos de controlo da
qualidade, de custo e da quantidade produtiva.
8. A gestão é o órgão que está melhor posicionado para
impulsionar as tarefas preventivas e, por esse motivo, deve
assumir essa responsabilidade.
9. Os capatazes e supervisores são as pessoas chave para a
prevenção de acidentes industriais. O seu posicionamento
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
hierárquico permite-lhes exercer maior influência no
sucesso da prevenção de acidentes.
10. A motivação humanitária para a prevenção de acidentes é
complementada por dois poderosos fatores económicos:
I. Um estabelecimento seguro é eficiente do ponto de vista
da produtividade e, pelo contrário, um estabelecimento
inseguro é ineficiente;
II. Para o empregador o custo direto resultante do
pagamento das indemnizações derivadas do acidente e
respetivos cuidados médicos, representa apenas um
quinto do custo total que ele paga efetivamente.
A designação teoria dominó decorre da analogia que
Heinrich efetuou entre o conjunto de uma sequência de fatores
que podem influenciar a ocorrência de acidentes e a sequência
da queda das peças do jogo de dominó alinhadas na vertical. O
autor propõe que cinco peças de dominó representem igual
número de fatores (agrupáveis numa sequência pré-definida);
assim, o fator precedente atuará sobre o seguinte até chegar à
lesão (último fator). Cada uma das cinco peças do dominó
representa um fator específico (tal como demonstrado na figura
2) pertencente ao “percurso sequencial” do acidente. O modelo
proposto por Heinrich possibilitou a explicação do processo
causal dos acidentes recorrendo à metáfora da queda das
peças de dominó, ou seja, a queda da primeira peça irá dar
origem à queda das seguintes. Estes cinco fatores podem
constituir-se numa sequência de eventos, onde a ligação entre
a causa e o efeito é clara e determinística (o evento A
possibilita ou determina o evento B). Assim, a teoria dominó
preconiza que a origem dos acidentes se deve a uma única
causa. É por este motivo que a corrente sequencialista é
designada como determinística, ou seja, os acidentes são
explicados como o resultado de um único evento ou são
consequência de uma única causa.
O percurso do acidente é representado do seguinte modo:
tal como as peças de dominó caem sucessivamente após a
queda da primeira peça (causa ou génese), os acidentes
também resultam de uma sequência de acontecimentos que
apresentam uma única origem. As peças caídas resultam e
representam simbolicamente as falhas, enquanto as peças que
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
ficam de pé representam os eventos normais ou o sistema a
funcionar normalmente. Segundo Heinrich qualquer acidente
pode ser evitado se um dos fatores inibir a sequência de
fatores acidentológicos, ou seja, metaforicamente, se pelo
menos uma das peças for retirada ou se for travada a sua
queda. Por outras palavras, o contributo deste modelo
preconiza que, tal como a retirada de uma peça pode inibir a
queda das seguintes, a retirada de um dos fatores sequenciais
também evitará a ocorrência do acidente e, por consequência,
dos danos ou lesões eventualmente ocorridas.
Figura 2 – Teoria Dominó
Fonte: Adaptado de Heinrich (1931).
Heinrich afirma que cerca de 88% dos acidentes se devem
a atos inseguros, 10% a condições perigosas e 2% a situações
fortuitas. É por este motivo que o autor indica que a prevenção
de acidentes deve estar centrada na terceira peça do dominó,
isto é, no fator dos atos inseguros. Para além disso, o autor
alega que é difícil exercer algum controlo sobre os dois
primeiros fatores. A perspetiva de Heinrich teve e ainda
continua a ter uma forte influência nas abordagens de alguns
técnicos de segurança ao nível organizacional. Apesar disso,
são também muitos os autores que criticam o carácter
ideológico da perspetiva de Heinrich (1931) quando esta
preconiza que a grande maioria dos acidentes ocorre por falhas
humanas (atos inseguros). Para sustentar a sua visão crítica,
autores como Vilela et al. (2007: 31) recorrem a algumas
teorias da alienação social, onde é efetuada uma analogia
entre os acidentes e a pobreza (tal como o pobre está nesta
condição por culpa própria – preguiça, ignorância, etc. – ou por
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
inferioridade natural, o sinistrado também sofreu o acidente por
desleixo, desatenção ou incapacidade). A principal limitação
dos modelos unicausais está em considerarem que os
acidentes ocorrem devido a uma causa única, relegando para
segundo plano a interação de fatores.4
Contudo, os modelos sequencialistas dos acidentes não
se reduzem apenas a sequências simples de eventos, podem,
pelo contrário, representar modelos mais complexos, tais como
os designados modelos em rede ou árvores de eventos, onde,
por exemplo, os eventos podem estar hierarquizados. A título
de exemplo, podemos referir que os modelos de raízes de
causas são muito utilizados nos sistemas de segurança
organizacional, particularmente nas organizações de alto-risco
e/ou com sistemas tecnológicos complexos. As análises das
raízes de causas pretendem identificar as deficiências
subjacentes nos sistemas de gestão de segurança. Estas
deficiências, quando detetadas e corrigidas, podem inibir a
ocorrência de novos acidentes ou acidentes similares aos
verificados anteriormente.
Nos dias de hoje, até algumas abordagens mais recentes
acerca dos acidentes preconizam que estes dependem de uma
sequência e/ou ligação de fatores. Por isso, é difícil refutar que
os acidentes têm uma sequência temporal que os precede e os
possibilita; isto significa que os acidentes resultam
normalmente de um conjunto de eventos e/ou condições que
os antecedem. Todavia, a maior crítica que se pode apontar
aos modelos sequencialistas é quando eles pretendem centrar
excessivamente a sua atenção no erro humano ou nos atos
inseguros, descurando outras dimensões que contribuem
igualmente para os acidentes.
4. O modelo epidemiológico dos acidentes
O modelo epidemiológico dos acidentes, tal como o
próprio nome indica, efetua uma analogia entre a ocorrência de
acidentes e a terminologia médica sobre a extensão de uma
4 Um debate sobre a unicausalidade e multicausalidade dos acidentes
pode ser encontrado em Areosa e Dwyer (2010).
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
doença numa determinada população. A designação deste
modelo emergiu e ganhou visibilidade após a publicação do
trabalho de Gordon (1949). Este autor defendia que os
acidentes são um problema de saúde das populações, tal como
algumas doenças, e por isso devem ter um tratamento
epidemiológico similar, onde devem ser recolhidos dados
(estatísticos) e analisados os comportamentos da população
em observação. Ao longo do seu texto John Gordon vai
revelando outras semelhanças entre acidentes e doenças.
Assim, o autor considera que a abordagem epidemiológica
permite verificar certas regularidades ao longo do tempo, e isto
pode ajudar a melhorar a análise dos acidentes, a sua
compreensão, bem como a sua prevenção (suportada por
políticas adequadas). Existem três fatores fundamentais para
compreender a abordagem epidemiológica dos acidentes: o
hospedeiro (alvo do sinistro), o agente ou objeto (fator
“agressivo”) e meio ou ambiente (local cujas características
possibilitam a ocorrência do acidente). “The causative factors in
accidents have been seen to reside in agent, in the host, and in
the environment. The mechanism of accident production is the
process by which the three components interact to produce a
result, the accident” (Gordon, 1949: 509).
Gordon (1949) afirma que qualquer programa público de
prevenção de acidentes necessita da colaboração de
especialistas de várias áreas científicas e de organismos
estatais. Western (citado em Turner e Pidgeon, 1997: 29)
refere que alguns autores no passado defendiam que uma das
principais críticas que podia ser apontada ao modelo
epidemiológico dos acidentes tinha por base a falta de
unificação e consistência da informação sobre os acidentes.
Por um lado, estes autores preconizavam que a recolha de
informação e a análise dos acidentes eram “pobres”, por outro
lado, defendiam que devido à especialização das várias
disciplinas científicas estas tendiam a analisar características
muito distintas dos acidentes, tornando as suas abordagens
dificilmente comparáveis. Para além disso, ainda havia a
crença que todos os acidentes eram diferentes, logo, não
haveria fundamento para a sua comparação, ou seja, não
poderiam ser efetuadas previsões sobre eventuais acidentes
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
no futuro recorrendo à experiência do passado.5 Western
rejeita toda esta argumentação com base no estudo sobre as
pré-condições dos acidentes, bem como, segundo a sua
opinião, no falso apriorismo: “cada acidente é diferente”.
O modelo epidemiológico dos acidentes enquanto
abordagem científica revelou inúmeras características dos
acidentes (regularidades, catalogação dos riscos mais comuns,
rutura com a ideia do acidente como infortúnio, etc.) que
possibilitaram melhorar a sua observação e compreensão, bem
como redefinir a sua conceptualização. De certo modo, alguns
tipos de acidentes deixaram de ser considerados como fruto do
acaso e do aleatório (e por essa razão imprevisíveis), para
passarem a ser observados como eventos passíveis de
prevenção. Este facto deu origem àquilo que Green designou
como a “profissionalização da prevenção dos acidentes”, em
meados do século XX. “When epidemiological research
reconstructed accidents as patterns at a population level, rather
than disparate and individual misfortunes, public health
identified them as a key concern. By the end of the twentieth
century, the accidental itself had become a central focus, as the
ultimate challenge for risk technologies. To predict the
unpredictable, and make random misfortune preventable, was a
notable success for epidemiology” (Green, 1999: 37).
O modelo epidemiológico dos acidentes é visto, por alguns
autores, como uma resposta à insuficiente explicação dos
acidentes por parte do modelo sequencialista, particularmente
nas suas primeiras versões determinísticas uni-causais. O
contributo do modelo epidemiológico tende a enfatizar a
complexidade de alguns acidentes, nomeadamente a
interligação em rede de diversos fatores que possibilitam a sua
ocorrência, superando a ideia simplista de sequência causal
em série, ou seja, o modelo epidemiológico preconiza que os
acidentes resultam de uma constelação de riscos, em vez de
causas únicas e aleatórias (Green, 1997: 101). Na perspetiva
epidemiológica a análise dos acidentes não deve apenas deterse na procura das causas simples e imediatas, deve deter-se,
5
Apesar de controversa esta ideia é debatida de forma
extraordinariamente assertiva num ensaio recente preconizado por
Nassim Taleb (2008).
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
sobretudo, na articulação entre os agentes patogénico nocivos
(designados “carriers”) e as condições latentes, bem como a
possível interação complexa destes diferentes fatores. Nesta
corrente os acidentes são considerados como eventos não
aleatórios, visto que uma abordagem epidemiologia pode
demonstrar o mapeamento da sua incidência. Hollnagel (2004:
54 e 55) preconiza quatro grandes diferenças entre o modelo
sequencialista e o modelo epidemiológico dos acidentes:
Desvios na performance: O modelo sequencialista começa
por destacar o problema dos acidentes a partir dos atos
inseguros. Esta noção está fortemente conotada com o
designado “erro humano” (erros, lapsos e violações dos
trabalhadores). O termo erro humano apresenta uma carga
simbólica negativa e culpabilizante para quem cometeu o
denominado ato inseguro. A perspetiva epidemiológica suaviza
esta noção quando fala em desvios na performance, tornandoa mais neutra e, simultaneamente, amplia a sua definição
conceptual. Os desvios na performance incorporam tanto as
dimensões humanas, como as componentes tecnológicas.
Assim, o problema da responsabilidade pode encontrar-se mais
esbatido, visto que os desvios não são vistos obrigatoriamente
como erros.
Condições ambientais: O modelo epidemiológico considera
que as condições ambientais (características do meio onde
decorre a situação/ação) podem conduzir ou influenciar os
desvios na performance. A importância das condições
ambientais já foi abordada anteriormente quando falamos
sobre as causas não imediatas dos acidentes (as raízes das
causas), e esta questão veio abrir novas perspetivas para a
análise dos acidentes. As condições ambientais influenciam
quer a tecnologia, quer os indivíduos. Esta noção é mais
alargada no modelo epidemiológico, onde estão incorporadas
mais dimensões, e mais estreita no modelo sequencialista,
onde normalmente eram consideradas apenas as condições de
trabalho.
Barreiras: As barreiras são mecanismos de proteção para
inibir a ocorrência de eventos e consequências inesperadas,
sabendo que a sua principal função, neste contexto, é prevenir
ou evitar acidentes. As barreiras de proteção podem ser
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
colocadas em qualquer fase ou momento do processo
(produtivo). Ao contrário daquilo que era preconizado pelo
modelo sequencialista, onde o acidente quase só poderia ser
evitado
através
da
inibição
dos
atos
inseguros
(comportamentos e/ou práticas humanas), o modelo
epidemiológico defende que os acidentes podem ser evitados
em qualquer fase. As barreiras são conceptualizadas como
dispositivos de segurança que tanto podem proteger os erros
humanos, como as falhas tecnológicas, ou ainda outras
condições latentes que possam “desviar” o sistema do seu
normal funcionamento. Adiante iremos aprofundar a temática
das barreiras, bem como a sua função na questão dos
acidentes.
Condições latentes: O último aspeto apontado por Hollnagel
(embora em alguns momentos possa ser considerado o mais
importante de todos) é designado por condições latentes. Este
conceito foi apresentado por Reason (1987; 1990; 1997),
apesar de na sua origem ter sido designado como falhas
latentes.6 As condições latentes podem contribuir fortemente
para a ocorrência do acidente, embora não sejam vistas como
causas imediatas ou visíveis; pelo contrário são fatores
subjacentes, “escondidos” e aparentemente com pouca
relevância, mas que se encontram incorporados no próprio
sistema ou organização. De certo modo, as condições latentes
podem ser comparadas com aquilo que Turner (1978) designa
por período de incubação, ou como as raízes das causas dos
acidentes. As condições latentes foram detetadas inicialmente
em organizações de alto risco e/ou com sistemas tecnológicos
complexos, nomeadamente, na aviação moderna, em
plataformas de exploração de gás e petróleo, indústria química,
sistemas ferroviários, centrais nucleares, etc.
Apesar da rutura com alguns princípios importantes do
modelo sequencialista, a análise epidemiológica dos acidentes
continua a incorporar certas características do modelo
precedente; o exemplo mais notório desta situação é expresso
através do entendimento sobre a causalidade dos acidentes,
isto é, a propagação dos efeitos (do início até ao fim) indica a
6 Embora o autor tenha voltado a utilizar este conceito numa das suas
obras mais recentes (Reason e Hobbs, 2003).
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
direção da causalidade (Hollnagel, 2004: 58). O modelo
epidemiológico dos acidentes preconiza dois pontos essenciais
para a prevenção de acidentes. O primeiro aspeto identifica a
necessidade de isolar as tarefas ou situações perigosas, isto é,
confinar e evitar a propagação do agente patogénico, enquanto
o segundo defende a colocação ou reforço de barreiras
protetoras, de modo a mitigar ou bloquear os erros ou
violações (oriundas, por exemplo, do desvio na performance).
Erik Hollnagel (2004: 58) recupera de outros autores uma certa
dose de ironia quando afirma que o modelo epidemiológico dos
acidentes não é uma perspetiva tão forte como a sua própria
analogia. Esta opinião é sustentada a partir da dificuldade que
este modelo detém em incorporar e especificar detalhes
adicionais dos acidentes. Embora, a noção metafórica de
patogenia permita caracterizar a “saúde” do sistema. Na sua
essência qualquer o modelo epidemiológico de acidentes,
particularmente na sua versão tradicional, é fortemente
dominado por modelos estatísticos de acidentes, ou seja,
pretende aferir a frequência de determinados eventos
negativos. Porém, diversos autores criticam esta perspetiva,
devido a considerarem que as estatísticas de acidentes apenas
mostram uma parte dos problemas de segurança. “Historical
data on a certain type of accident, for example an injury rate,
provide information about the safety level. But we cannot use
just one indicator, such as the injury rate, to draw conclusions
about development in the safety level as a whole. The safety
level is more than the number of injuries. A statement
concerning the safety level based on observations of the injury
rate only, would mostly have low validity” (Aven, 2003: 11).
Os acidentes ocorrem através da combinação de fatores
(manifestos e/ou latentes) coexistentes no tempo e no espaço.
O modelo epidemiológico dos acidentes também foi, em parte,
adaptado para explicar os acidentes organizacionais. Reason
sugeriu que as condições latentes nos sistemas técnicos ou
organizações com tecnologias complexas poderiam ser vistas
como algo análogo a agentes patogénicos no corpo humano,
os quais seriam acionados por fatores locais/ambientais com
capacidade para violar ou contornar o sistema imunitário (as
barreiras ou proteções) que por sua vez provocariam a doença
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
(o acidente). Por si só os designados agentes patogénicos não
teriam capacidade para despoletar o acidente, visto que
necessitam que estejam criadas condições locais adequadas
para eles poderem atuar. Esta analogia foi designada pelo
autor como a “metáfora do agente patogénico residente”, onde
está implícito que não existem sistemas completamente
autoimunes aos acidentes. Esta metáfora enfatiza a presença
de “agentes nocivos” dentro do sistema, antes mesmo da
sequência do acidente ter tido o seu início. Tal como ao cancro
ou às doenças cardiovasculares não são atribuídas causas
únicas, os acidentes organizacionais também não surgem de
causas singulares; pelo contrário derivam da articulação de
condições diversas e multicausais. A noção do agente
patogénico residente centra a sua atenção nos indicadores da
“morbilidade do sistema” que se encontram a montante do
desastre em si mesmo (Reason, 1990). Segundo o próprio
autor a metáfora do agente patogénico residente apresenta
algumas características interessantes, no entanto esta teoria
necessita de ser aprofundada ou trabalhada, visto que alguns
termos ainda são vagos.
5. A perspetiva da transferência de energia e das barreiras
preventivas
A década de sessenta do século XX acabou por nos
proporcionar um “salto qualitativo” na abordagem aos
acidentes. É neste período que emergem diversas correntes,
as quais permitem analisar os acidentes a partir de pontos de
vista diversificados. São exemplos disso mesmo a teoria da
fiabilidade dos sistemas,7 a perspetiva ergonómica (assente na
observação dos processos de trabalho e na adaptação do
7 Nesta perspetiva é preconizado que os acidentes decorrem dos
processos de adaptação do sistema à sua finalidade. A correlação
entre o acidente e o objetivo final do sistema torna-se evidente. O fator
que serve de intermediário entre estes dois vetores é o contexto
específico de trabalho. Aqui o acidente já é visto como um conjunto de
fatores desviantes, posicionados em locais e momentos distintos em
relação ao objetivo final do sistema.
- 148 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
trabalho ao homem)8 e o modelo que iremos aprofundar neste
ponto, sobre a transferência de energia e as barreiras
protetoras.
Esta última perspetiva surge no início dos anos sessenta e
preconiza que os acidentes devem ser vistos como resultado
de uma transferência de energia. A libertação e a respetiva
propagação de um determinado tipo de energia, para poder
causar um acidente, deve ser superior àquela que o sujeito ou
objeto (que pretendemos defender) consegue suportar sem
efeitos nocivos. É a partir daqui que o fenómeno dos acidentes
passa a estar associado às barreiras ou defesas. Estas
barreiras pretendem proteger as diversas fraquezas dos
trabalhadores e/ou dos bens materiais de eventuais danos
provocados por essa libertação descontrolada de energia. 9 O
modelo da energia e das barreiras foi introduzido por Gibson
(1961) e alguns dos seus pressupostos foram seguidos por
diversos autores, inclusive até aos dias de hoje. Podemos dar
como exemplo os trabalhos de Haddon (1966) na área da
medicina, de Johnson (1980) na análise e gestão de riscos e
de Reason (1997) no estudo dos acidentes organizacionais.
Vejamos também como Rasmussen efetua a articulação deste
modelo, incluindo as suas potencialidade para acidentes
8 Paralelamente, o modelo ligado à ergonomia ganha força entre as
décadas de sessenta e setenta do século XX, e permite uma visão
complementar sobre os acidentes de trabalho, os quais passam a ser
vistos como eventos que resultam do próprio processo de trabalho.
Faverge (1972) foi um dos autores que avançou com a questão dos
acidentes estar profundamente ligada com o desenvolvimento das
atividades e tarefas de trabalho. Este avanço teórico e metodológico
passou a comparar as situações de trabalho similares que davam
origem a acidentes e as que não davam origem a acidentes. Em
resumo, a abordagem dos acidentes a partir do contexto de trabalho
definiu os acidentes de trabalho como fenómenos decorrentes das
situações de trabalho, onde cada situação específica contém um
determinado potencial para o acidente que depende de um
determinado evento “detonador”; e este, por sua vez, ofereceria as
condições necessárias para o acidente potencial passasse para
acidente real.
9
A noção de energia que é utilizada neste modelo é bastante
abrangente visto que considera diversos tipos ou formas de energia,
nomeadamente, química, elétrica, cinética, etc.
- 149 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
“maiores e menores”. “When models of the accident process,
such as propagation of energy releases, are formulated in
terms of accidental courses of events, then focus will be on the
behavioural sequences of the actors involved. This model of
accident causation and release processes introduces systems
thinking into occupational safety and invites a transfer of the
concepts and methods developed for high hazard systems into
the general occupational safety work” (Rasmussen, 1997: 205).
A implementação de barreiras em qualquer ponto do sistema
(organização) pode constituir-se como uma das principais
formas para a prevenção de acidentes. De certo modo,
podemos considerar as barreiras como algo que pretende parar
a passagem de alguém ou de alguma coisa (no sentido físico
do termo). Porém, a utilização de barreiras na vida quotidiana
vai muito além deste sentido estritamente físico, pois
atualmente é frequente o recurso a barreiras simbólicas (a
sinalização de trânsito é um bom exemplo deste tipo de
barreiras). Estas últimas requerem sempre uma dada
interpretação para alcançarem o seu propósito (Hollnagel,
2004). Após a ocorrência de um acidente as barreiras
protetoras servem para tentar proteger os possíveis resultados
não desejados ou consequências negativas. Neste sentido,
Hollnagel (2004: 78) refere a pertinência de distinguir entre as
barreiras para “desviar” as consequências e as barreiras para
minimizar certas consequências.
Segundo Haddon (1966), as características das barreiras
são determinadas pela natureza do “objeto” que pretendem
proteger, bem como pelo tipo de energia que pretendem
bloquear. Para além disso as barreiras só devem ser
consideradas como uma entre várias medidas (possíveis) para
prevenir os acidentes e as lesões físicas, isto é, são um
caminho para separar o objeto ou alvo a proteger de um ou
vários perigos. Algumas versões do programa/método MORT
(Management Oversight and Risk Tree) utilizam a distinção
entre barreiras de controlo e barreiras de segurança (embora
também seja proposta a distinção entre outros tipos de
barreiras). As primeiras destinam-se a fluxos de energia
esperados ou intencionais, enquanto as segundas estão
direcionadas para fluxos de energia inesperados ou não
- 150 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
intencionais. Ainda no âmbito dos acidentes podemos
considerar as barreiras como dispositivos de segurança que
pretendem evitar a ocorrência de determinados eventos
indesejados ou, quando não for possível evitá-los, pretende-se
que as barreiras devam tentar que os efeitos destes eventos
não causem danos ou que estes sejam residuais. Em resumo,
as barreiras devem ser definidas como construções,
equipamentos, saberes, símbolos, regras ou procedimentos
suscetíveis de poder parar o desenvolvimento de um acidente
ou evitar/reduzir as suas consequências nefastas.
Em parte, os acidentes podem ser vistos como a falha de
uma ou mais barreiras (caso elas existam no sistema ou
organização). No entanto, segundo Hollnagel (2004) a eventual
falha de uma ou mais barreiras raramente pode ser vista como
a causa principal dos acidentes. Na perspetiva deste autor as
barreiras são normalmente entendidas como um obstáculo,
uma obstrução ou um entrave à ocorrência de um determinado
evento ou, caso não o consiga “travar”, pelo menos pretende
diminuir o impacto das suas consequências. Assim, as
barreiras podem ter funções distintas; por um lado, podem
tentar evitar ou “impossibilitar” um evento (barreiras
preventivas), por outro lado, podem tentar suavizar,
enfraquecer ou atenuar os efeitos de um determinado evento
(barreiras protetoras). Se tomarmos um acidente como ponto
de referência, isto significa que nos sistemas ou organizações
podem ser colocadas barreiras a montante, para tentar evitar
um acidente, ou a jusante, para tentar minimizar ou limitar os
seus efeitos ou consequências. “Barriers that intended to work
before a specific initiating event takes place, serve as a means
of prevention. Such barriers are supposed to ensure that the
accident does not happen, or at least to slow down the
developments that may result in an accident. Barriers that are
intended to work after a specific initiating event has taken place
serve as means of protection. These barriers are supposed to
shield the environment and the people in it, as well as the
system itself, from the consequences of the accident”
(Hollnagel, 2004: 76).
Neste momento já identificamos três tipos de barreiras: as
simbólicas, as preventivas e as protetoras. Podemos
- 151 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
considerar as vacinas um exemplo clássico das barreiras
preventivas e a construção de um muro (em termos físicos)
como um exemplo de barreiras protetoras, as quais pretendem
evitar a passagem de alguém ou de algo, como, por exemplo, a
transferência excessiva de um certo tipo de energia ou massa
para um determinado alvo (que não a consegue receber sem
danos), tal como sugere a figura seguinte:
Figura 3 – Representação da transferência de energia e das
barreiras protetoras
Fonte: Adaptado de Gibson (1961).
O modelo de Reason (1997) para a análise de acidentes
organizacionais assenta, em grande medida, na observação de
como as defesas ou barreiras podem ser violadas. Tal como se
pode verificar na figura 4 as falhas ativas e as condições
latentes podem criar “buracos” nos dispositivos de segurança
das organizações, isto é, nas suas defesas. Metaforicamente,
Reason compara as barreiras defensivas das organizações ao
queijo suíço, ou seja, preconiza que as defesas não são
estruturas perfeitas, visto que podem conter “buracos”
provocados por falhas ativas e condições latentes. Nos
sistemas sociotécnicos complexos as defesas em profundidade
são construídas a partir de dois pontos essenciais: a
redundância (diversas camadas de proteção) e a diversidade
(diferentes formas de proteção). No entanto, a utilização destes
mecanismos revela alguns problemas; as defesas em
- 152 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
profundidade são dispositivos falíveis e nem sempre a sua
violação é visível ou detetável no momento em que decorre a
ação (Rasmussen, 1997).
Figura 4 – Trajetória do acidente
Fonte: Adaptado de Reason (1997: 12).
A existência de “buracos” nas sucessivas camadas
defensivas das organizações pode dar origem, em
circunstâncias excecionais, à ocorrência de acidentes. A
trajetória do acidente corresponde à sucessiva passagem do
“perigo” (entendido como uma entidade ou fonte de energia
passível de causar danos)10 através dos diversos dispositivos
de segurança (defesas ou barreiras). Esta “janela de
oportunidades”, tal como o próprio autor a designa, é rara
devido à multiplicidade de barreiras existentes nas
organizações com sistemas tecnológicos complexos. A
trajetória dos acidentes organizacionais pode passar através de
pequenas “fissuras” do próprio sistema, aparentemente
10
Esta abordagem efetuada por Reason articula duas perspetivas
clássicas no estudo dos acidentes. A primeira assemelha-se ao
modelo sequencialista proposto por Heinrich (1931), particularmente
quando o autor fala na trajetória do acidente, ou seja, é defendido que
existe uma sequência antes da ocorrência do acidente. A segunda
aproxima-se do modelo proposto por Gibson (1961), onde este autor
afirma que a ocorrência de acidentes ou lesões encontra-se
normalmente associada a uma fonte de energia (perigo) suscetível de
causar danos.
- 153 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
insignificantes, mas que permitem a sua consumação. A
articulação de falhas ativas e de condições latentes permite
criar situações raras onde a trajetória do acidente não é
travada pelas barreiras do sistema, sendo o culminar do trajeto
(completo) o próprio acidente. Contudo, é ainda pertinente
considerar que os “buracos” nas camadas defensivas podem
ter “mobilidade”, mesmo num curto espaço de tempo (por
exemplo, podemos encontrar dispositivos de segurança
desligados durante os trabalhos de manutenção), podendo
ainda variar a sua eficácia ao “longo da vida” do sistema,
nomeadamente, através da degradação das barreiras
defensivas. Isto significa uma dificuldade acrescida para
qualquer estratégia de prevenção de acidentes dentro das
organizações, visto que os sistemas que operam tecnologias
complexas são dinâmicos e “permitem” que os “buracos” ou
“janelas” nas suas barreiras defensivas apareçam,
desapareçam, voltem a aparecer, possam expandir ou encolher
a sua “dimensão” ou ainda modifiquem a sua localização na
camada defensiva. Assim, são muitos os autores que tal como
Reason reiteram que ninguém consegue prever todos os
cenários possíveis de acidente. É inevitável que algumas
defesas possam vir a enfraquecer durante o período de vida do
sistema, ou mesmo que não se encontrem incorporadas nesse
mesmo sistema desde o seu início.
6. A teoria sociológica dos acidentes de trabalho
No início da década de 1970, Hale e Hale (1972)
apelavam à urgente necessidade de criar novas teorias e
novos métodos para compreender o fenómeno dos acidentes.
Este apelo motivou, em parte, a elaboração de uma teoria
sociológica para compreender os acidentes de trabalho (Dwyer,
1989; 1991; 2000; 2006). Para dar sequência a esta demanda
foram observadas diversas relações sociais nos locais de
trabalho, por vezes, separadas analiticamente enquanto objeto
de estudo, mas profundamente interligadas ao nível empírico.
A tese central da teoria sociológica de Dwyer preconiza que os
acidentes de trabalho são, em grande medida, o resultado do
- 154 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
funcionamento de sistemas de relações sociais. De certo modo
podemos afirmar que este modelo (concebido essencialmente
como fruto de relações sociais) está ancorado quer à
perspetiva de Durkheim, onde era defendido que o social deve
ser explicado pelo social, quer à perspetiva fenomenológica de
Schutz (derivada da Sociologia de Max Weber).
No âmago da teoria sociológica de Dwyer existem,
essencialmente, três níveis ou dimensões sociais com
capacidade para explicar o desenvolvimento das relações entre
empregadores e trabalhadores – a recompensa, o comando e o
organizacional – e, por arrastamento, do próprio fenómeno dos
acidentes de trabalho; a estas três dimensões é acrescentada
uma quarta de carácter não-social: o indivíduo-membro. A
importância de cada uma destas dimensões é construída nos
próprios locais de trabalho, não é dada antecipadamente, logo,
a importância de uma dimensão num determinado contexto não
significa que ela tenha o mesmo “peso” noutra realidade sóciolaboral distinta. Em termos metodológicos são testadas quatro
hipóteses de análise11 a partir de uma observação direta e
participante, onde é privilegiada uma certa dialética “negocial”
entre o conhecimento do especialista (investigador) e o saber
prático dos sujeitos observados (objeto de estudo). Esta
situação caracteriza, em parte, a originalidade e pertinência
desta pesquisa sociológica.
Nesta perspetiva, os acidentes de trabalho dependem da
relação direta ou indireta dos trabalhadores com os riscos. Os
acidentes são também vistos como uma situação de erro
específico,
produzido
organizacionalmente,
fruto
do
funcionamento e interação das quatro dimensões referidas na
figura 5. O modelo idealizado para conceber como é que as
11 As referidas hipóteses de análise são as seguintes: “1- As relações
sociais de trabalho produzem acidentes; 2- Quanto maior o peso de
um nível de relações sociais na gestão das relações dos trabalhadores
com os perigos de suas tarefas, maior a proporção de acidentes
produzidos nesse nível; 3- Quanto maior o grau de gestão da
segurança pela administração em um nível, menor a proporção de
acidentes produzidos no nível que essa ação procura controlar; 4Quanto maior o grau de autocontrole pelos trabalhadores em um nível,
menor a proporção de acidentes produzidos no nível que a ação do
trabalhador procura controlar” (Dwyer, 2006: 260).
- 155 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
relações sociais de trabalho e o nível indivíduo-membro podem
interagir de modo a produzir acidentes foi esquematizado da
seguinte forma:
Figura 5 – A relação das dimensões nos locais de trabalho
Fonte: Adaptado de Dwyer (2006: 142).
Vejamos agora com maior detalhe cada uma das quatro
dimensões concebidas por Dwyer na sua teoria sociológica dos
acidentes de trabalho. A primeira dimensão – a recompensa –
está relacionada com a utilização de incentivos para gerir a
relação das pessoas com o seu trabalho. Estes incentivos
podem ser subdivididos em três fatores distintos: 1) materiais
ou financeiros relacionados com intensificação do trabalho; 2)
prolongamento do trabalho, por exemplo, através do recurso a
horas extraordinárias; 3) recompensas simbólicas. Este último
ponto está articulado com dimensões culturais dos próprios
trabalhadores, tais como: o prestígio, o estatuto social, a estima
ou o cumprimento de “rituais” de integração no grupo ao qual
se quer pertencer. Alguns antropólogos estudaram a questão
das recompensas simbólicas no trabalho e verificaram, por
exemplo, que os índios norte-americanos que trabalharam na
construção de arranha-céus executavam o seu trabalho sem a
menor segurança laboral. Esta situação deve-se à aceitação
dos perigos por parte destes atores sociais, visto que a
- 156 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
deliberada exposição ao risco é entendida como um ato
heroico e, simultaneamente, como um mecanismo de reforço
dos seus valores culturais tradicionais (bravura, audácia,
coragem, etc.) por contraposição aos valores tendencialmente
preventivos das sociedades modernas.
Já as recompensas financeiras podem derivar, por
exemplo, da aceitação, por parte dos trabalhadores, em
executarem tarefas de maior risco a troco de dinheiro ou em
obterem melhores salários através do aumento da sua carga
horária (quanto maior for o número de horas extraordinárias
trabalhadas, maior será o salário obtido). Todas as situações
descritas anteriormente podem resultar num aumento do
número de acidentes de trabalho, considerando que a
aceitação de riscos mais elevados – quer seja por recompensa
simbólica, quer seja através da ampliação do horário de
trabalho – aumentam a possibilidade de ocorrerem acidentes.
Aliás, Dwyer (2006) cita diversos estudos onde se pode
concluir que existe uma relação direta entre o aumento
excessivo de horas trabalhadas e o aumento do número de
acidentes de trabalho.
Os incentivos financeiros que visam o aumento da
produtividade dão normalmente origem à execução de tarefas
de forma mais rápida (aumentando simultaneamente o cansaço
dos trabalhadores e o número de erros ou falhas) em
detrimento, por exemplo, do cumprimento das normas e regras
de segurança estabelecidas para aquela tarefa. Existe uma
certa tendência para estes problemas serem escamoteados
devido à aparente relação mutualista que parece daqui resultar
para empregadores e trabalhadores; ou seja, os primeiros
veem a sua produção aumentada, enquanto os segundos veem
os seus salários alargados. Todavia, os custos subjacentes a
esta prática estão situados, por exemplo, no aumento do
número de acidentes (McKelvey et al., 1973 – citado em
Dwyer, 2006: 153) e em todas as consequências que daí
advêm. Mais tarde, observou-se que esta prática acarretava
ainda outros problemas. Uma das desvantagens para os
empregadores que recorriam à utilização de incentivos
económicos para o aumento da produção, era que este fator
acabava por induzir uma certa rejeição nos trabalhadores das
- 157 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
tarefas que não seriam alvo de incentivos. Este modelo de
gestão provocava também o “corte” de algumas etapas
supostamente consideradas dispensáveis12 ou a diminuição da
produtividade quando as metas para obter os incentivos
económicos eram demasiado exigentes.
A segunda dimensão ou nível da teoria sociológica dos
acidentes de trabalho, designada por comando, está
relacionada com a forma como os empregadores tentam gerir
as relações dos trabalhadores com o seu trabalho, através de
um controlo direto ou indireto sobre as suas ações. Regra
geral, os trabalhadores tentam resistir a formas de controlo
mais “apertadas” (que tendem a inibir a sua autonomia). O
conflito latente entre empregadores e trabalhadores pode ser
explicado, em parte, através do exercício desta forma de poder
e de dominação. De certo modo, podemos afirmar que para
contrabalançar um poder dominante do empregador existe um
contrapoder dominado dos trabalhadores e este último pode
assumir formas e estratégias muito diversificadas.
A dinâmica da dimensão comando é também ela
produzida através de três tipos de relações sociais distintas: 1)
o autoritarismo; 2) a desintegração do grupo de trabalho e 3) a
servidão voluntária. As estratégias de autoritarismo utilizadas
por alguns empregadores são concebidas não tanto como um
mecanismo de defesa da segurança dos trabalhadores, mas
antes como uma tentativa deliberada para garantir que o
trabalho seja executado de forma célere. Na área da
construção civil francesa verificou-se a existência de um
número significativo de trabalhadores “insatisfeitos”, devido ao
seu trabalho ser gerido pelo autoritarismo. Estes trabalhadores
compreendiam que este fator era responsável por uma parte
dos acidentes ocorridos no seu local de trabalho (Dwyer, 1989:
29). Todavia, se um trabalhador reclamar das más condições
de trabalho às quais está sujeito, o seu empregador pode
12
Para ilustrar esta situação verifica-se que, por exemplo: “andaimes
são erguidos e não adequadamente fixados; máquinas que requerem
manutenção são colocadas em funcionamento sempre que reparos
preventivos implicam interrupção do trabalho que leve a reduções no
pagamento; restos são deixados para outros limparem; o carvão
subterrâneo é extraído à custa de escorar o teto; cálculos da produção
fraudados” (Dwyer, 2006: 147).
- 158 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
encontrar determinados enredos (moralmente condenáveis e
de legalidade duvidosa) para terminar esta relação contratual
(despedimento). Porém, se as condições de trabalho são más
e não forem corrigidas provavelmente irá haver mais acidentes;
este é um dos aspetos em que se torna visível a estreita
relação entre autoritarismo e acidentes de trabalho, ou seja, o
autoritarismo pode produzir acidentes (Dwyer, 2006: 174).
A desintegração do grupo de trabalho pode ser efetuada,
por exemplo, através de uma elevada rotatividade dos
trabalhadores na empresa. Os empregadores procuram
eliminar as ameaças que os grupos de trabalho coesos ou
integrados podem acarretar para si, no entanto, utilizam a
desintegração sem que isso impeça o desenvolvimento das
tarefas laborais. A desintegração do grupo de trabalho pode
resultar em acidentes quando pessoas que trabalham em
tarefas que requerem um trabalho interdependente não se
compreendem. A alta rotatividade de trabalhadores e os grupos
onde as pessoas não falam a mesma língua são fatores que
produzem esta relação. Um grupo de trabalho integrado pode
constituir a base de resistência dos trabalhadores à imposição
de trabalhos perigosos. A servidão voluntária está relacionada
com a execução de trabalhos perigosos, sem que haja
qualquer oposição por parte dos trabalhadores. De certo modo,
é uma aceitação quase fatalista dos riscos laborais. Nesta
teoria sociológica destaca-se ainda o papel positivo para a
prevenção de acidentes que alguns sindicatos podem
desempenhar ao combaterem dentro das empresas, estes três
tipos de relações sociais (autoritarismo, desintegração do
grupo de trabalho e servidão voluntária).
As relações que se estabelecem entre trabalhadores e
hierarquias são um aspeto decisivo nas relações sociais de
trabalho, particularmente na forma de dirigir a execução do
trabalho. Segundo João Freire (1991) os encarregados e
capatazes da construção civil, enquanto agentes de comando
de “primeira linha” (hierarquia direta), podem ter um papel
importante no aumento ou diminuição do número de acidentes
de trabalho, devido ao papel específico que desempenham
dentro das organizações. Se a sua sensibilidade para os temas
da segurança no trabalho for significativa, o poder e autoridade
- 159 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
inerente ao seu cargo podem constituir-se como um fator
inibidor para os acidentes. Aliás, como já observamos
anteriormente esta perspetiva vai ao encontro de um dos dez
axiomas da segurança industrial, apresentado por Heinrich et
al. (1980), onde é defendido que os supervisores e capatazes
são agentes chave para a prevenção de acidentes.
Dwyer define que o nível comando é também produzido,
em grande medida, de relações de poder. Segundo esta
perspetiva, a utilização do poder serve para combater os
comportamentos considerados indesejados e, tanto pode ser
usado pelo empregador (e respetiva cadeia hierárquica), como
pelos próprios trabalhadores entre pares. O poder dentro das
relações sociais pode ser utilizado na prevenção de acidentes,
por exemplo, através da punição de práticas e comportamentos
definidos como inseguros. No entanto, algumas pesquisas
indicam que as medidas disciplinares são provavelmente
capazes de reduzir mais o registo formal de acidentes do que
os próprios acidentes (Dwyer, 2006: 185). Este último aspeto é
importante visto que tem subjacente o medo que os
trabalhadores possuem de serem punidos disciplinarmente por
sofrerem acidentes, e este facto pode levá-los a não declarar
determinados tipos de acidentes. Para evitar situações desta
natureza algumas organizações preferem transferir a
responsabilidade da vigilância para os próprios trabalhadores.
Esta estratégia é designada como autocomando, ou seja, são
os próprios pares que impõem sanções àqueles que agem de
forma perigosa. Alguns estudos (cf. Dwyer, 2006) sugerem que
a maioria dos trabalhadores tem preferência por o modelo de
autocomando, em detrimento de programas de segurança
organizados pela empresa, todavia, ainda não existem estudos
suficientes para provar que o modelo de autocomando seja
mais eficaz na prevenção de acidentes.
O terceiro nível apresentado na teoria sociológica de
Dwyer (2006) é designado por organizacional. Este nível é
também produzido por três tipos distintos de relações sociais:
1) a subqualificação; 2) a rotina; e 3) a desorganização. A
subqualificação pretende observar qual é o tipo de
conhecimento dos trabalhadores sobre as suas tarefas, visto
que a falta de conhecimento pode dar origem a uma
- 160 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
incapacidade para executar as tarefas laborais em segurança.
Por sua vez, esta incapacidade pode depender da falta de
formação específica ou de um enviesamento na capacidade de
tradução do conhecimento formal em conhecimento prático.
Podemos, por exemplo, considerar que existe uma
subqualificação quando os trabalhadores têm de desempenhar
uma determinada tarefa, mas não têm as qualificações
necessárias para desempenhá-la de forma eficaz.
A introdução de novas técnicas e/ou tecnologias nos locais
de trabalho são também um novo fator de risco (Raposo e
Areosa, 2009) que pode aumentar a ocorrência de acidentes. A
génese destes acidentes pode ser encontrada numa rutura
entre a experiência e qualificações de trabalho desenvolvida na
situação anterior e a inexperiência e falta de qualificações
perante a nova situação de trabalho. Nestes casos os
trabalhadores ainda não desenvolveram os mecanismos
necessários para “dominar” os novos riscos, ou seja, ainda não
habituaram o seu corpo ou os seus conhecimentos às novas
situações de riscos, resultantes das alterações dos seus locais
de trabalho (Pinto, 1996).
Uma parte significativa da rotinização do trabalho parece
ter ocorrido após a emergência da designada organização
científica do trabalho, ou seja, após o Taylorismo e o Fordismo.
Foi a partir daqui que os trabalhadores mais qualificados do
setor industrial perderam tendencialmente o conhecimento
sobre os vários passos do processo produtivo, visto que
passaram apenas a realizar uma parte deste processo. Isto
resultou de uma semiautomatização e simplificação do trabalho
que acarretou diversas consequências, particularmente a
rotinização das tarefas. A desorganização pode manifestar-se
de diversas formas. Regra geral, quando o conhecimento
inerente a uma determinada tarefa não é transmitido de forma
adequada à pessoa que entra em contacto com os resultados
da execução dessa tarefa, podemos afirmar que esse trabalho
é administrado por meio de uma relação social de
desorganização. Outro exemplo pode ser apresentado quando
o próprio empregador efetuou uma conceção “defeituosa” ou
inadequada da tarefa que irá ser executada pelo trabalhador.
- 161 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
A literatura sobre as perceções de riscos (cf. Areosa,
2007; 2011) refere que as tarefas executadas com pouca
frequência são mais suscetíveis de originar acidentes13; isto
pode estar relacionado com a falta de determinados hábitos ou
rotinas, com a ausência de adaptação perante determinados
riscos ou ainda com a falta de qualificação. Para compreender
alguns tipos de acidentes é ainda importante considerar as
estratégias de gestão cognitiva dos trabalhadores (Amalberti,
1996) ou a questão dos gestos voluntários e involuntários como
fatores que podem produzir acidentes, particularmente em
trabalhos monótonos e cadenciados. Se um trabalhador de
uma linha de montagem é excecionalmente confrontado com
uma nova situação de trabalho ele até pode compreendê-la,
mas o designado reflexo condicionado anterior continua e isso
pode explicar alguns tipos de acidentes. Dwyer (2006) define
este tipo de acidentes como resultado de uma relação social do
trabalho de rotina.
A quarta e última dimensão apresentada por Dwyer na
teoria sociológica dos acidentes é a única dimensão não-social
e é designada por indivíduo-membro. O seu cariz está centrado
numa abordagem mais ligada à psicologia, onde é defendido
que o indivíduo detém uma certa autonomia para agir,
independentemente dos constrangimentos impostos pelas
relações sociais e organizacionais. Metaforicamente é a parte
do trabalhador que se consegue “libertar” da influência das três
grandes dimensões sociais descritas anteriormente. No fundo,
será o reconhecimento por parte da teoria sociológica que
existem fatores não sociais suscetíveis de influenciar a
ocorrência de acidentes de trabalho. Um dos aspetos
importantes desta dimensão está relacionado com a tentativa
para explicar a ocorrência de “acidentes” provocados por
autolesão (atos intencionalmente provocado pelo trabalhador)
ou por outro tipo de ações de natureza individual. Recorrendo a
alguns exemplos, Dwyer tenta explicar qual a importância da
dimensão indivíduo-membro no seio das relações de trabalho:
13
Nos antípodas desta teoria surgem outras teorias onde é defendido
que a ultrafamiliaridade com algumas situações de risco (trabalhos de
rotina) pode originar desatenções e, por consequência, aumentar o
número de acidentes.
- 162 -
Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
“O trabalhador expressa-se de forma individual ao chegar ao
local de trabalho contente, porque talvez tenha acabado de
ganhar um filho ou por estar intoxicado. O trabalhador pode
agir individualmente em um dos níveis sociais para reforçar o
seu poder ou o do patrão nesse nível. O indivíduo que sabota a
linha de montagem, o que organiza clandestinamente um
sindicato ou o que viola as normas de produtividade coletivas
numa fábrica que paga por produção, todos eles expressam
dimensões diferentes desse nível de realidade. O sabotador
recusa-se a aceitar o controlo de seu ritmo de trabalho imposto
pela linha de montagem. O sindicalista busca contestar
coletivamente o poder de controlo de seus patrões. O violador
das normas coletivas tenta aumentar seus ganhos aceitando as
definições do patrão e rejeitando as de seus colegas” (Dwyer,
1989: 27).
Na teoria sociológica dos acidentes de trabalho de Dwyer
é apresentada uma abordagem para a explicação dos
acidentes através da observação das relações sociais dentro
das organizações. As relações sociais de trabalho são
entendidas como a forma pela qual os próprios trabalhadores
gerem as suas relações com o trabalho. Esta perspetiva
discute que os acidentes são essencialmente fruto das
relações sociais de trabalho e, por isso, só podem ser
prevenidos através da alteração em algumas destas relações.
Assim, parece pertinente compreender quais são as relações
sociais que produzem erros e, por consequência, acidentes. A
capacidade de influência de cada uma das dimensões referidas
na teoria sociológica sobre os acidentes pode variar mediante
cada contexto ou local de trabalho, dependendo das
estratégias de empregadores e trabalhadores. A principal tese
desta teoria preconiza que quanto maior for o peso de um nível
nas relações sociais de trabalho, maior será a proporção de
acidentes causado por esse mesmo nível.
Apesar da teoria sociológica de Dwyer considerar os
quatro níveis ou dimensões, referidos na figura 5, como os
mais importantes para a compreensão e explicação da maioria
dos acidentes de trabalho, ela não deixa de reconhecer a
existência de outros aspetos interessantes para um melhor
entendimento acerca da possível complexidade multicausal dos
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
acidentes de trabalho, visto que tenta incorporar, no seu
modelo, alguns pressupostos retirados de conclusões de outros
estudos empíricos.
7. Reflexões finais sobre a prevenção de acidentes
Atualmente, os múltiplos tipos de riscos, bem como as
suas interações podem ser identificados como a chave para
compreender a produção de acidentes. Os riscos são as précondições ou as antecâmaras para os acidentes (Areosa, 2009;
2010). Assim, a prevenção de acidentes deve passar em larga
medida pela análise, avaliação e gestão dos riscos, embora,
não possamos esquecer que a prevenção não pode ser
mitificada ao ponto de podermos pensá-la como um meio para
prevenir todos os acidentes. De certo modo, podemos até
considerar a predição de acidentes como um objeto da
avaliação de riscos; contudo, o seu raio de ação será sempre
limitado e insuficiente para chegar à marca dos “zero
acidentes” ao nível organizacional ou social (universal). Tal
como refere Green (1997) os acidentes são uma característica
inevitável do universo.
Teoricamente nenhum acidente é inevitável, embora, na
prática, seja impossível preveni-los a todos. Aquilo que nos
interessa aprofundar na investigação de acidentes é
compreender como é que eles acontecem, para que possamos
encontrar caminhos e formas de os prevenir, pelo menos tantos
quantos for possível. Quando ocorre um acidente é quase
inevitável que nos interroguemos sobre o que é que correu mal
e qual foi a causa deste evento (como por exemplo, algo que
falhou). Porém, na maioria dos acidentes não existe
propriamente uma causa única; pelo contrário, tende a existir a
articulação inesperada de um conjunto de circunstâncias, cuja
sua ligação e interação possibilita a origem do acidente
(Hollnagel, 2004).
Os diversos modelos de acidentes que trabalhamos ao
longo deste capítulo revelam perspetivas diferentes, por vezes
até antagónicas, sobre os fatores predominantes que
influenciam a sua ocorrência. Naturalmente que este aspeto é
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
decisivo para a forma como cada um deles estrutura as
possibilidades para a prevenção desses mesmos acidentes.
São essas diferenças que iremos apresentar na tabela
seguinte, embora de forma bastante sintética e resumida. Cada
modelo apresenta as suas próprias especificidades e
características dominantes; isto não quer dizer que possamos
afirmar que um é melhor do que o outro, visto que cada um tem
as suas próprias virtudes, potencialidades e limites. Devido à
sua diversidade e pluralidade de abordagens não nos parece
possível integrar os seus pontos fortes na eventual criação de
um único modelo (o que em termos teóricos seria a situação
ideal). Eles valem essencialmente pela capacidade reflexiva
que suscitam e pela diversidade conceptual que permitem,
sem, no entanto, nenhum se tornar hegemónico perante os
restantes. Assim, a tabela 1 está predominantemente
direcionada para destacar os principais aspetos que os
modelos supracitados apresentam para a prevenção de
acidentes.
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
Tabela 1 – A prevenção de acidentes nos modelos apresentados
Perspetiva
teórica
Principais aspetos para a prevenção de acidentes
Teoria da
propensão
individual
para os
acidentes
Este modelo sugere que podem existir determinadas características
individuais (predisposições biológicas e/ou psicológicas) que estão
ligadas a uma maior propensão para sofrer acidentes. É apresentada
como “pano de fundo” a seguinte questão: quais os motivos por que
alguns trabalhadores sofrem mais acidentes, comparativamente com
os seus pares, realizando as mesmas tarefas? Dado que esta
corrente defende que existem determinadas vulnerabilidades para os
acidentes, específicas de certos indivíduos, a prevenção passaria por
não colocar determinados trabalhadores a executar certas tarefas.
Teoria
dominó
Para esta corrente a grande maioria dos acidentes decorre de fatores
humanos. Assim, a prevenção de acidentes deve passar em larga
medida pelo controlo dos comportamentos individuais dos
trabalhadores (atos inseguros). Os métodos básicos para a
prevenção de acidentes passam por processos de engenharia, de
persuasão e sensibilização, de ajustamento pessoal e por um
controlo hierárquico e disciplinar.
Modelo
epidemiológico dos
acidentes
Esta perspetiva procura compreender os acidentes mediante a
observação das principais causas que estiveram na origem destes
eventos (particularmente através da recolha de dados estatísticos),
dependentes da interação entre hospedeiro, agente ou objeto
agressivo e fatores ambientais. O comportamento de determinada
população (ou seja, as suas incidências e regularidades) é o fator
subjacente para a elaboração de estratégias e políticas para a
prevenção de acidentes.
Perspetiva
da
transferência de
energia e
das
barreiras
protetoras
Os acidentes acontecem devido a uma determinada “descarga”
energética ser superior àquela que o determinado alvo consegue
suportar sem danos. Para evitar ou minimizar esta transferência
energética sobre o alvo (a proteger) este modelo propõe a
implementação de barreiras protetoras ou de segurança. Os
primeiros estudos deste modelo surgem ligados à área da saúde,
estendendo-se posteriormente para o campo dos pequenos
acidentes. Atualmente, podemos verificar que este modelo apresenta
algumas limitações, dado que alguns acidentes não podem ser vistos
como uma transferência de energia excessiva; um dos exemplos
mais notórios desta situação é referenciado a partir dos acidentes
que ocorrem com profissionais de saúde (picadas com agulhas
aquando do manuseamento com material biológico contaminado).
Teoria
sociológica
dos
acidentes de
trabalho
Segundo a perspetiva de Dwyer os acidentes de trabalho são fruto
das relações sociais de trabalho desajustadas e da assimetria de
poder destas relações. Normalmente os acidentes decorrem do
conflito latente entre empregadores e trabalhadores, sendo estes
explicados a partir de quatro dimensões essenciais: recompensa,
comando, organizacional e individual. Desde modo, a prevenção de
acidentes poderá ser efetuada mediante a alteração das relações
sociais de trabalho, ou seja, através de uma gestão mais adequada
destas relações.
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Acidentes de trabalho: uma perspetiva epistemológica
Para finalizar, parece-nos pertinente referir que a
conceção de modelos para a análise de acidentes serve
essencialmente para duas funções: compreender aquilo que
correu mal (e que esteve na origem do acidente) e tentar
prevenir possíveis acidentes futuros, quer com características
semelhantes, quer com aspetos dissemelhantes. Quando nos
interrogamos sobre quais as reais possibilidades de prevenção
para todos os acidentes, a resposta parece ser relativamente
consensual, isto é, os acidentes vão continuar a surgir no
futuro. No entanto, isto não significa que estejamos perante
pessoas ou organizações “incompetentes”, significa antes que
a segurança revela limites inerentes à sua própria condição
(Sagan, 1993). Apesar de estas notícias não serem
propriamente animadoras, também existem boas notícias, dado
que quanto mais aprofundarmos o nosso conhecimento sobre
os acidentes, incidentes ou sinais de perigo, melhores serão as
possibilidades para a prevenção de eventuais acidentes
futuros.
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