A QU ESTÃ O
DO
IM POSSÍVEI
KRISHNAMURTI
E sta obra exam ina, com profundidade, q u e s tõ e s 'relevantes
para a vida hum ana. T rata, entre outras, das seguintes m alerias:
as raízes do pensam ento, a m ente e o cérebro, as relações cnire
pessoas, a m editação e o autoconhecim ento.
“ IN S T IT U IÇ Ã O C U LTU R A L KKISI INAMl JJRTI "
R io nr. Ja n k i r o
- G u a n a ij ARA
A Q U ESTÃ O D O IM PO SSÍV E L
A Instituição C ultural K rishnam urti,
editora oficial das obras de K rishnam urti
em nosso idiom a, tem a satisfação de
apresentar à coletividade brasileira a tra
dução vernácula de mais um a grande obra
desse psicólogo indiano — A Q U E ST Ã O
D O IM P O S S ÍV E L — , cujo título origi
nal e T H E IM P O S S IB L E Q U E S T IO N .
Inegavelm ente, nos últim os vinte anos
firmou-se K rishnam urti como um dos
mais profundos pensadores e m entores
do nosso tem po. Tem ele percorrido
várias partes do m undo e realizado con
ferências públicas em diversos países,
porém o seu ensino alcançou m aior pene
tração através de num erosos livros difun
didos em vários idiom as. T H E F IR S T
AN D LA ST F R E E D O M , CO M M ENTA R IE S O N L IV IN G , F R E E D O M FR O M
T H E K N O W , T H E O N L Y REVO LUT IO N , T H E U R G E N C Y O F C H A N G E ,
para citar apenas alguns deles, são traba
lhos de m agno p orte de sua autoria, já
publicados em nossa língua e divulgados
no Brasil.
A m ensagem verbal e escrita do autor
tende a seguir um a linha uniform e — a
constituir um a espécie de intercâm bio
entre ele e seus leitores. Isso mais uma
vez se confirm a neste novo livro, em que
se apresenta a m atéria versada em sete
reuniões de palestras e perguntas, reali
zadas em Saanen (Suíça) no verão de
1970 e, em seguida, sete diálogos entre
K rishnam urti e os ouvintes.
“ Nunca fazemos a pergunta sobre o
im possível. Só se interroga acerca do que
é possível. Se fazemos um a pergunta
sobre o im possível, a m ente tem de achar
a resposta na base do im possível, e não
do possível. . . E ra im possível ir à Lua.
( c o n tin u a na o u tra d o b ra )
P orque a coisa era im possível, trezentas
m il pessoas cooperaram e trabalharam dia
e noite, consagrando-lhe todas as suas
energias m entais — e o hom em foi à
Lua! A pergunta alusiva ao impossível
é esta: Pode a m ente esvaziar-se do
conhecido? — ela esvaziar-se a s i p r ó
p r ia , e não, n ó s a e s v a z ia r m o s ? Eis a p er
gunta sobre o im possível” . — Se tais
perguntas forem feitas com o m áxim o de
seriedade, com a paixão de descobrir,
novos horizontes se nos descortinarão.
É esse um dos objetivos das presentes
palestras e diálogos.
Neles se consideram os mais variados
assuntos. As raízes e a origem do pensa
m ento, a diferença entre m ente e cére
bro, o esclarecim ento, as relações entre
pessoas, o uso correto de nossas facul
dades pessoais, o m ilagre da m editação,
a conquista de um estado de bem -aven
turança baseado na verdade e na beleza
— eis alguns dos tópicos apresentados
para exame e que K rishnam urti resum e
com interrogar-nos o que é “ autoconhecim ento” . Os problem as que criamos
para nós mesmos e a sociedade, e a socie
dade que cria problem as para nós; o
m ovim ento das relações entre nós e a
sociedade; a natureza do m edo, e se a
m ente terá alguma possibilidade de libertar-se de todo desse fardo; a natureza do
prazer, que é inteiram ente diferente da
alegria; a questão dos inúm eros fragm en
tos constituintes do nosso ser; a n atu
reza da consciência e da atenção — tudo
isso, e m uito mais, é investigado como
só K rishnam urti sabe investigá-lo. São
questões vitais que, como entes hum a
nos, nos concernem fundam entalm ente.
E sta nova obra se revelará de inesti
m ável valor a quantos desejam tom ar
conhecim ento de K rishnam urti e sua ele
vada com preensão da vida.
A Q U ESTÃ O
DO
IM PO SSÍV E L
T ítu lo do original:
T H E IM P O S S IB L E Q U E S T IO N
Publicado p o r V ictor Gollancz L td., L ondres
C opyright ©
K rishnam urti F oundation T ru st L td ., L ondres, 1972
C opyright © K rishnam urti F oundation T ru st L td ., L ondres, 1975 —
V ersão P ortuguesa
1975
E ditado pela
IN S T IT U IÇ Ã O C U LTU RA L K R IS H N A M U R T I
Rio de Jan eiro (G B ) — Brasil
Im presso no Brasil >— P rin ted in Brazil
“ Sempre fazemos a pergunta sobre o que é possível.
Se fizerdes um a pergunta sobre o im possível, vossa
m ente terá d e descobrir a resposta na base do im pos
sível — e não do possível.”
ÍNDICE
P r im e ir a P a r t e
PAL ESTR A S E P E R G U N T A S
1 — O ATO DE OLHAR
“ Q uando um a pessoa é verdadeiram ente sé ria , então, n o m o
m ento de olhar, cessa o antigo m ovim ento.”
13
2 — L IB E R D A D E
“A dependência de qualquer form a de imaginação subjetiva,
fantasia ou conhecim ento, gera o m edo e destrói a lib erdade.”
21
3 — A N Á L ISE
“A análise nunca é com pleta; a negação dessa ação incom
ple ta é ação to ta l.”
30
4 — FRAGM ENTAÇÃO
“ Só nasce um problem a quando se vê a vida fragm entariam ente. D escobri a beleza de ver a vida com o um to do.”
39
5 — M E D O E PR A Z ER
“ Se se deseja com preender e ficar livre do m edo, deve-se
com preender o prazer; são coisas relacionadas.”
48
6 — A A T IV ID A D E M E C Â N IC A D O P E N S A M E N T O
“A m ente que com preendeu o in teiro m ovim ento do pensa
m ento torna-se sobrem odo quieta, absolutam ente silenciosa.”
60
7 — R E L IG IÃ O
“Religião é a força que conduz, a um a vida sem fragm entação.”
69
Se g u n d a P a r t e
D IÁ L O G O S
I — A necessidade de autoconhecim ento.
Saber e aprender: o
aprender req u er um a m ente libertada do passado: A fuga
ao m edo e o aprender a respeito do m edo. D ificuldade de
observ ar o m edo. Q uem está observando?
II
83
— Recapitulação. Os tem ores im pedem a m aturação. Vemos
os efeitos do m edo ou só sabem os da existência deles? D ife
rença en tre o m edo, com o m em ória, e o contato real com o
m edo. A dependência e o apego causados pelo m edo ao
vazio e ao “ser n ad a” . D escobrim ento de nossa solidão e
superficialidade. A in utilidade das fugas. “ Q uem está côns
cio do vazio?”
101
I I I — As profundezas da dependência e do m edo. O bservação do
apego. Níveis de apego. H áb ito . Necessidade de ver, em
seu todo, a rede dos hábitos. Como ver totalm ente? D ife
rença entre a análise e a observação. O m ecanism o que
sustenta o hábito. Q ue é ação criadora?
115
IV — N ecessidade de ver to da a tram a dos tem ores e fugas. A
lu ta contra o apego é um m ovim ento resultante da fragm en
tação. Pode-se alcançar a integração e o esclarecim ento po r
m eio da fragm entação?
Com o surge a fragm entação?
O
pensam ento e a categoria do tem po.
V isto que o pensa
m ento causa divisão e, entretan to , é um a função necessária,
que cum pre fazer? Função da m ente libertada do “conhe
cido” . Necessidade de fazer a pergunta sobre o “ im pos
sív el” .
131
V
— O consciente e o inconsciente; quais são as fro nteiras da
consciência? E ssa divisão é real ou faz p arte da fragm en
tação? Q u e m q u er “ saber” a respeito do inconsciente? A
neurose, “ exageração” do fragm ento.
N ecessidade de ver
a in utilidade da identificação com o fragm ento; um frag
m ento cham ado “ observador” . “V ir a ser” e “ ser” alguma
coisa — o estado de consciência em que vivem os — um a
form a de resistência. D iferença en tre ver esse fato com o ato
de observação, e vê-lo com o “ eu ” . O s sonhos. E stam os
aptos a fazer a “próxim a pergunta” : “ Q ue existe além da
consciência?”
149
V I — T oda ação procedente da consciência fragm entária produz
confusão. O conteúdo da consciência controla a sua estru
tu ra, ou esta é independente do seu conteúdo?
Pode a
consciência esvaziar-se de seu conteúdo? A rã que quer
saltar para fora do charco da consciência. O macaco preso
no espaço da consciência lim itada pelo centro: a atividade
egocêntrica. Q u e é espaço sem centro? Esclarecim ento —-
V II
um estado m ental em que o m acaco nunca está em ação.
A atenção. O problem a da atenção e as interrupções cau
sadas pelo macaco. N o apogeu da atenção, que acontece à
estru tu ra integral do ente hum ano?
164
— Recapitulação. A m ente necessita de ordem para funcionar
adequadam ente; o pensam ento to m a a segurança por ordem .
O macaco irrequieto não pode achar a segurança. D iferença
en tre estabilidade m ental e segurança. A busca de segurança
só produz fragm entação. A m ente em que não existe busca
de segurança.
“N ão há segurança” .
C om preender a si
próprio é com preender o m ovim ento do pensam ento.
Na
m ente que está sobrem odo aten ta não há fragm entação da
energia.
A com unicação não verbal.
Com o alcançar o
estado que é in finito e atem poral e no qual “ o conceito do
viver e do m orrer tem um significado tota lm ente d iferen te” .
176
P r im e ir a
Pa r t e
PA LESTRAS E PER G U N TA S
1
O ATO D E
OLHAR
“ Q uando um a pessoa é verdadeiram ente sé ria , então,
no m om ento de olhar, cessa o antigo m ovim ento.”
P \ [ u m m undo que se acha em tam anha confusão,
onde se vê tanta violência, revolta em todas as form as e m il
explicações para essas revoltas, é de esperar ocorra um a reform a
social, com diferentes realidades e mais liberdade para o hom em .
Em todos os países e climas, sob o estandarte da paz, im pera a
violência; em nom e da verdade, há exploração, m iséria, m ilhões
de pessoas a padecerem fom e, e a opressão das poderosas tira
nias, e m uita injustiça social. H á guerra, conscrição m ilitar e a
fuga à conscrição. Observa-se, com efeito, um a enorm e confu
são, terrível violência; o ódio é justificado, e a fuga, em todas
as form as, aceita como norm a da vida. Percebendo tudo isso,
ficamos confusos, incertos quanto ao que cum pre fazer, o papel
que devem os representar. Q ue cum pre fazer? A derir aos “ ati
vistas” !*) ou fugir para um a certa espécie de isolam ento in te
rior? Volver às velhas idéias religiosas? F undar um a nova seita,
ou continuarm os com os nossos preconceitos e inclinações? E m
presença de tudo isso, um a pessoa sente naturalm ente o desejo
(* ) a c t h i s ta , de a c t i v i s m : d o u trin a de que a vida é ação e luta.
(V . “ Standard D ictionary F unk & W agnals). (N . do T .)
13
de descobrir, por si própria, o que lhe cabe fazer, o que pensar,
como viver um a vida diferente.
Se, no decurso destas palestras e debates, puderm os encon
tra r um a luz em nós m esm os, um a m aneira de viver inteiram ente
isenta de violência, um a vida totalm ente religiosa e, p ortanto,
livre de m edo, interiorm ente estável, e inatingível pelos fatos
exteriores — penso que então estas nossas reuniões serão verda
deiram ente frutuosas. Estam os preparados para dispensar aten
ção plena, e sensível, aos problem as que vamos considerar? Nós
estam os trabalhando j u n to s , com o fim de descobrir como pode
rem os viver em paz. N ão é o orador quem irá dizer-vos o que
tendes de fazer, o que deveis pensar; ele não é nenhum a autori
dade, nem vai oferecer-vos nenhum a “ filosofia” .
U m dos problem as é que nosso cérebro funciona sem pre
segundo seus velhos hábitos, tal como um disco fonográfico, que
toca sem pre a m esma música. E nquanto dura o barulho da “ m ú
sica” , isto é, do hábito, não tem os possibilidade de escutar nada
novo. O cérebro foi condicionado para pensar de um a certa
m aneira, reagir de acordo com um a dada cultura, tradição e
educação; esse m esm o cérebro tenta escutar o que é novo e,
naturalm ente, não o consegue. Aí é que residirá nossa dificul
dade. Um a palestra gravada em fita pode ser apagada e a fita
utilizada de novo; m as, infelizm ente, o que está gravado na
“ fita ’ do cérebro, nela vem sendo im presso há tanto tem po que
se tornou dificílim o apagá-lo, para começar coisa nova. Vive
mos a rep etir e a rep etir o m esm o padrão, as m esmas idéias e
os m esm os hábitos físicos, e por essa razão nunca estam os recep
tivos para o que é novo.
Posso garantir-vos que temos possibilidade de livrar-nos da
velha “ fita ” , da velha m aneira de pensar, de sentir, de reagir,
dos inúm eros hábitos que adquirim os. Isso é possível quando
se presta realm ente atenção. Se a coisa que estam os escutando
é, para nós, verdadeiram ente séria, sum am ente im p o rtan te, então
haverem os de escutar de tal m aneira que o próprio ato de escutar
apagará tudo o que é velho. E xperim entai isso — ou, m elhor,
fazei-o! Vós estais profundam ente interessados, pois, de contrá
rio, não estaríeis aqui, E scutai com toda a atenção, para que,
nesse próprio ato de escutar, as velhas m em órias, os velhos há
bitos, a tradição acum ulada, tudo isso se apague.
14
Não podem os deixar de ficar sérios perante o caos exis
tente no m undo — incerteza, guerra, destruição — quando todos
os valores estão sendo desprezados, num a sociedade totalm ente
perm issiva, sexual e econom icam ente. N ão há m oralidade, não
há religião; tudo está sendo lançado fora e, por isso, tem os de
ser sérios, total e profundam ente sérios. Se tendes essa serie
dade em vosso coração, estais então preparados para escutar.
D epende de vós, e não deste orador, o serdes suficientem ente
sérios, para escutardes t o ta l m e n te e descobrirdes por vós mesm o
aquela luz que jam ais se extingue; descobrirdes um a m aneira de
viver não dependente de nenhum a idéia, de nenhum a circuns
tância, um a vida que seja sem pre livre, nova, juvenil, cheia de
vigor.
Se tendes um a m ente disposta a d e s c o b r ir , a todo custo,
então, vós e eu, que vos estou falando, poderem os trabalhar
juntos e alcançar aquela coisa m aravilhosa que há de pôr fim
a todos os nossos problem as — tanto os problem as triviais da
vida diária, como os problem as mais graves.
M as, como em preender esse trabalho?
P ara m im , só há
um a única m aneira: por m eio da negação, alcançar o positivo;
pela com preensão do que n ã o é , descobrir o q u e é. V er o que
somos realm ente, e ultrapassá-lo. O lhar o m undo e os fatos
do m undo, as coisas que estão sucedendo, e ver se em nossa
relação com o m undo existe separação. Um a pessoa pode olhar
os fatos do m undo como se eles não a atingissem individual
m ente e, todavia, querer moldá-los, fazer algum a coisa em rela
ção a eles. H á, assim, separação entre o indivíduo e o m undo.
Se o olham os dessa m aneira, com a nossa experiência e conheci
m entos, idiossincrasias, preconceitos, etc. — isso é olhar como
um a entidade separada do m undo. Cum pre-nos descobrir um a
m aneira de olhar em que vejam os todas as coisas que estão suce
dendo, fora e dentro de nós m esm os, como um processo unitário,
um m ovim ento total. O u olham os o m undo de um determ inado
ponto de vista — tom ando posição, verbalm ente, ideologica
m ente ligados a um determ inado m odo de ação e, por conse
guinte, isolados do resto; ou olham os o fenôm eno todo inteiro,
como um m ovim ento vivo, total, do qual fazemos parte, do
qual não estam os separados. O que somos — um resultado
da cultura, da religião, da educação, da propaganda, do clima, da
V
alim entação — o que somos é o m undo, e o m undo é nós.
Podem os ver esse todo, sem cuidarm os de fazer alguma coisa
a seu respeito? O im portante é verm os o todo, e não o que
cum pre fazer em relação a ele. Tem os o sentim ento da hum a
nidade como sendo um todo? N ão se trata de nos identificar
mos com o m undo — porque nós somos o m undo. A guerra
é o resultado de nós m esm os. A violência, o preconceito, a
terrível brutalidade que predom ina no m undo, são partes de
nós m esm os.
Assim , tudo depende de como olham os este fenôm eno, tanto
in terio r como exteriorm ente, e tam bém de quanto somos sérios.
Se um a pessoa é realm ente séria, cessa então o antigo m ovi
m ento — a repetição dos velhos padrões, das velhas m aneiras
de pensar, de viver e de agir. T endes um sério interesse em
descobrir um a m aneira de vida em que toda esta agitação, toda
esta aflição e sofrim ento, deixem de existir? Para a m aioria de
nós, a dificuldade é nos livrarm os dos velhos hábitos de pensa
m ento: “ Sou um a pessoa im p o rtan te’’, “ Desejo preencher-m e” ,
“ Desejo vir a ser” , “ Creio em m inhas opiniões” , “ E ste é o ca
m inho c erto ” , “ P ertenço a e sta seita” . No m om ento em que
tom am os posição, separamo-nos do processo total e nos tornam os
incapazes de olhá-lo.
E nquanto houver fragm entação da vida, tanto externa como
internam ente, haverá necessariam ente confusão e guerra. V ede
isso, po r favor, com vosso coração. V ede a guerra que se está
travando no O rien te M édio. Estais bem ao corrente de todos
esses fatos, e já se escreveram volum es para explicá-los. As
explicações nos seduzem •—• como se um a explicação pudesse
resolver alguma coisa!
É im portantíssim o com preender que
não devem os deixar-nos enredar pelas explicações — dadas por
quem quer que seja. Q uando vedes o q u e é , não há necessidade
de nenhum a explicação. O hom em que não vê o q u e é fica
em brenhado em explicações. V ede isso, p or favor, e tra tai de
com preendê-lo tão profundam ente que não mais vos deixeis se
duzir p o r palavras.
N a ín d ia , é costum e abrir o livro sagrado — o G ita — e
com ele explicar todas as coisas. M ilhões de pessoas escutam
as explicações sobre como se deve viver, o que se deve fazer,
como Deus é ou não é; tudo escutam , encantadas, e depois con
16
tinuam a viver na form a do costum e. As explicações cegam-nos,
im pedem -nos de ver realm ente o q u e é.
É de sum a im portância descobrirdes por vós m esm o a m a
neira de olhar o problem a da existência. Vós o olhais através
de um a explicação, de um determ inado ponto de vista, ou o
olhais não fragm entariam ente? Verificai isso. Id e dar um
passeio a sós, e aplicai-vos com todo o coração a descobrir a
m aneira como olhais esses fenôm enos. D epois, no correr destas
palestras, irem os coordenando os detalhes; pois vam os entrar
num a infinidade de detalhes, para d e s c o b r ir , c o m p r e e n d e r . M as,
antes disso, precisais estar bem certo de que estais livre de toda
fragm entação, de que não sois inglês, am ericano, judeu — enten
deis? — de que estais livre do condicionam ento de um a dada
religião ou cultura, condicionam ento que vos m antém agrilhoado
e segundo o qual tendes as vossas experiências, que só levam
a mais condicionam ento.
Vede o m ovim ento da vida como um só m ovim ento; nisso
há um a grande beleza e imensas possibilidades; há ação com
pleta, e liberdade. E a m ente necessita de liberdade para desco
brir o que é a realidade — não um a realidade inventada ou
im aginada. H á necessidade de liberdade total, isenta de toda
fragm entação, e essa liberdade só será possível se fordes real
e totalm ente sério — não de acordo com alguém que diz: “ E sta
é a m aneira de ser sério” ; lançai fora essas coisas, não lhes deis
atenção. T ratai de descobrir por vós m esm o, quer sejais velho,
quer sejais jovem .
Desejais fazer perguntas? A ntes de fazê-las, vede porque
as fazeis e de quem esperais a resposta. Q uando fazeis um a
pergunta, ficais sim plesm ente satisfeito com a explicação que
porventura se dá na resposta? Ao fazerm os um a pergunta —•
e é necessário indagar a respeito de tudo — fazemo-la porque
já estam os com eçando a investigar e, conseqüentem ente, a tom ar
parte ativa, a cam inhar, experim entar, criar, juntos?
IN T E R R O G A N T E : Se um a pessoa, digam os, um louco, anda
à solta, a m atar gente, e tem os possibilidade de im pedi-lo, m a
tando-o, que cum pre fazer?
K R IS H N A M U R T I: Nesse caso, vamos m atar todos os presi
dentes e governantes, todos os tiranos, todos os nossos seme
17
lhantes e — a nós m esmos. Nós fazemos p arte desse todo.
Com a nossa violência contribuím os para o estado atual do m un
do. N ão percebem os isso claram ente. Pensam os que se nos livrar
m os de um as tantas pessoas, repudiarm os o regim e vigente, tere
m os resolvido inteiram ente o problem a. Todas as revoluções
físicas se fizeram nessa base — • a francesa, a com unista, etc. —
e todas elas acabaram em burocracia ou tirania.
Assim , m eus amigos, in stitu ir um a nova m aneira de viver
não é instituí-la para outros, porém para si próprio; porque
“ o o u tro ” sou eu m esm o: não h á “ nós” nem “ eles” , só há “ eu
m esm o” . Se se percebe isso realm ente —• não verbal ou in te
lectualm ente, porém com o coração — ver-se-á que é possível
um a ação total, de resultado com pletam ente diferente, e haverá,
dessa m aneira, um a nova estru tu ra social, sem ser necessário
derribar um regim e para substituí-lo por outro.
O
investigar requer paciência; os jovens são im pacientes,
querem resultados instantâneos, e isso significa que ainda não
com preenderam o processo total do viver. Se se com preender
a totalidade do viver, virá um a ação instantânea, inteiram ente
diferente da ação im ediata da impaciência. Vede o que se passa
na Am érica, os distúrbios raciais, a pobreza, os g h e t t o s { * ) , o
absurdo sistem a educativo vigente. Considerai a desunião exis
ten te na E uropa e a dem ora que está havendo em criar-se a
Federação E uropéia. E vede o que está sucedendo na ín d ia , na
Ásia, na Rússia, na China. Considerando-se tudo isso, e m ais
as divisões criadas pelas religiões, só há um a solução possível,
um a única ação, ou seja a ação total, e não ação parcial ou
fragm entária. Essa ação total não consiste em m atar ninguém ,
porém em ver as divisões que estão destruin do o hom em . Q uan
do form os verdadeiram ente sérios e virm os as coisas com sensi
bilidade, haverá um a ação com pletam ente diferente.
IN T E R R O G A N T E : Suponham os um indivíduo nascido num
país onde im pera a tirania absoluta e ele se veja totalm ente
“ suprim ido” , sem se lhe dar oportunidade para fazer, p or sua
própria iniciativa, coisa algum a (creio que a m aioria dos p re
(* ) g h e t t o : N a E uropa (o u tro ra ): bairro em que os judeus eram
obrigados a residir. O A. parece referir-se aos bairros residenciais dos
negros, na Am érica (H arlem , em N ova Iorq u e, etc.).
18
sentes não podem im aginar tais condições) — esse hom em nas
ceu nessa situação, seus pais tam bém ; que fez ele para criar o
caos existente no m undo?
K R IS H N A M U R T I: N ada, provavelm ente.
Q ue fez o pobre
hom em que vive nos sertões da ín d ia , num a aldeola da África
ou num valezinho longínquo, com pletam ente alheio ao que se
está passando no resto do m undo? D e que m aneira pode ele
ter contribuído para essa m onstruosa estrutura?
D e m aneira
nenhum a, naturalm ente — que pode fazer esse pobre coitado?
IN T E R R O G A N T E : Q ue significa “ ser sério” . Tenho a im pres
são de não ser “ sério” ?
K R IS H N A M U R T I: Investiguem os isso juntos. Q ue é ser sério,
estar de tal m aneira dedicado a um a coisa, a um a vocação, que
se esteja disposto a segui-la até o fim ? N ão vou definir o que
é “ ser sério” ; não aceiteis definições de espécie algum a. Se um
hom em deseja descobrir um a nova m aneira de vida — um a vida
livre de violência, um a vida de total liberdade interior, e a esse
descobrim ento devota seu tem po, sua energia, seus pensam entos,
tudo — a essa pessoa eu cham aria um hom em sério. Esse hom em
não se deixa facilm ente desviar de seu intento; poderá buscar
entretenim entos, mas sua rota está traçada.
Isso não signi
fica ser dogm ático, obstinado, inadaptável.
E le está p ronto
a prestar ouvidos a outros, a considerar, exam inar, observar.
Pode acontecer que, nessa seriedade, um hom em se torne ego
cêntrico; esse egocentrism o, decerto, o im pedirá de exam inar;
mas o “ hom em sério” tem de prestar ouvidos aos outros, exam i
nar, indagar constantem ente; isso significa que ele deve ser
altam ente sensível. Cabe-lhe descobrir como e a quem escuta.
Esse hom em , pois, está sem pre a escutar, a buscar, a investigar,
a descobrir — • com um cérebro sensível, um a m ente sensível,
um coração sensível — que não são coisas separadas; está a
investigar com esse todo, com essa sensibilidade total. V eri
ficai se tendes um corpo sensível; notai seus gestos, seus hábitos
peculiares. Um a pessoa não pode ser fisicam ente sensível se se
alim enta em excesso, e tam pouco pode ser sensível padecendo
fom e ou subm etendo-se a jejuns. Tem os de dar atenção ao que
comemos. Tem os necessidade de um cérebro sensível, isto é,
um cérebro que não funcione p or força de seus hábitos, que não
19
esteja em busca de seus particulares e insignificantes prazeres
■
—• sexuais ou de o u tra natureza.
IN T E R R O G A N T E : Recom endastes-nos não dar ouvidos a expli
cações. Q ual a diferença entre o que dizeis e “ explicações” ?
K R IS H N A M U R T I: Q ue achais vós?
tudo é só palavrório?
H á alguma diferença, ou
IN T E R R O G A N T E : Palavras são palavras.
K R IS H N A M U R T I: Nós explicam os, m ostrando a causa e o
efeito. Dizem os, p or exem plo: O hom em herdou sua b ru ta
lidade do anim al.
Se aponto esse fato e, no m esm o ato de
apontá-lo, estou agindo, deixo de ser violento; não há diferença?
O que se requer é ação, mas pode a ação verificar-se com o resul
tado de explicações, de palavras? O u essa ação total só é pos
sível quando sou suficientem ente sensível para observar o m ovi
m ento total da vida? Q ue querem os fazer aqui? D ar explicações
sobre o “ p o rq u ê” e a causa do “ p orquê” ? O u querem os viver
de tal m aneira que nossa vida não esteja baseada em palavras,
m as, sim, no descobrim ento do que realm ente é? Esse descobri
m ento não depende de palavras. H á um a enorm e diferença entre
as duas coisas. Se um hom em sente fom e, podem os dar-lhe
explicações sobre a qualidade e o gosto da com ida, m ostrar-lhe
o m e n u , m ostrar-lhe os com estíveis expostos num a vitrine. M as
o que ele quer é comida de verdade, e nenhum a explicação lha
pode dar. Eis a diferença.
16 de julho de 1970.
20
2
LIBE R DADE
“ A dependência de qualquer form a de im aginação
subjetiva, fantasia ou conhecim ento, gera o m edo e
destrói a lib erdade.”
r * |T
1
e mo s m uitos assuntos para considerar, m
prim eiro lugar, cum pre-nos exam inar a fundo o que é liber
dade. Se não com preenderdes a liberdade, não apenas exter
nam ente, mas sobretudo interiorm ente; se não a com preenderdes
profunda e seriam ente, não apenas com o intelecto, porém sen
tindo-a deveras, o que vamos dizer pouco significará.
Já estivem os considerando a natureza da m ente. É a m ente
séria que vive verdadeiram ente, que conhece a alegria de viver
— e não aquela que anda m eram ente em busca de en treteni
m entos, de satisfação e preenchim ento próprio.
A liberdade
requer o repúdio total, a total negação de toda autoridade
interna, psicológica. A geração m ais jovem pensa que liberdade
é cuspir no rosto do policial, cada um fazer o que quer. M as,
a rejeição da autoridade externa não significa necessariam ente
que se está com pletam ente livre de toda autoridade interior,
psicológica. Q uando com preendem os a autoridade interior, a
m ente e o coração ficam total e inteiram ente livres; estam os
então habilitados a com preender a ação externa da liberdade.
A liberdade de ação no exterior depende p or inteiro de
um a m ente livre da auto ridade interna.
E sta questão exige
21
um a grande soma de paciente investigação e reflexão. É um a
questão de prim acial im portância; com preendida ela, estarem os
aptos a considerar outras coisas da vida e do viver diário com
um a m ente de todo nova.
C onform e o dicionário, a palavra “ autoridade” deriva de
“ a u to r” : “ aquele que lança um a idéia original, que cria alguma
coisa inteiram ente nova” . Esse hom em estabelece um padrão,
um sistem a baseado em suas idéias; outros seguem tal sistema,
nele encontrando um a certa satisfação. O u inicia um novo m odo
de vida religiosa, que outros seguem cegam ente, ou intelectual
m ente. Eis como se estabelecem os padrões ou m aneiras de
vida e de conduta política, psicológica — externam ente e in te
riorm ente. A m ente, em geral m uito preguiçosa e indolente,
acha mais fácil seguir o que um outro disse. O seguidor aceita
a “ auto rid ad e” , a fim de alcançar o que prom ete o seu sistem a
de filosofia ou de idéias; a esse sistem a se apega, dele fica depen
dendo e, dessa m aneira, confirm a a autoridade.
O seguidor,
pois, é um ente hum ano sem originalidade; assim é a m aioria
das pessoas. Poderão pensar que têm idéias originais, na pintura,
na literatu ra, etc., m as, essencialm ente, já que estão condicio
nados para seguir, im itar, ajustar-se, tornaram -se entes hum anos
“ de segunda m ão” , entes hum anos absurdos. E ste é um dos
aspectos da natu re 2a destrutiva da autoridade.
Com o ente hum ano, estais seguindo alguém , psicologica
m ente? N ão nos referim os à obediência externa, à observância
da lei; m as, interiorm ente, psicologicam ente, estais seguindo
alguém ? Se estais, nesse caso sois essencialm ente um ente sem
originalidade; podeis praticar boas obras, viver de m aneira m uito
ú til, m as essa vida pouco significa.
H á tam bém a autoridade da tradição. Tradição significa:
“ transportar do passado para o presente” — tradição religiosa,
tradição fam iliar, tradição racial. E há a tradição da m em ória.
Vê-se que seguir a tradição em certos níveis tem valor; noutros
níveis não tem valor algum . As boas m aneiras, a cortesia, a con
sideração, nascidas do estado de vigilância da m ente, podem
converter-se gradualm ente em tradição; um a vez fixado o padrão,
a m ente o repete: abrir a po rta a outrem , ser p o ntual às refei
ções, etc. M as, tendo-se tornado tradição, esses atos já não
22
procedem do estado de vigilância, de p enetrante percepção, de
lucidez.
A m ente que cultivou a m em ória funciona com base na
tradição; qual um com putador, repete sem cessar as mesmas
coisas. Jam ais pode perceber um a coisa nova, ouvir um a coisa
de m aneira totalm ente diferente.
Nossos cérebros são como
gravadores de fitas: certas m em órias vêm sendo cultivadas há
séculos e não fazemos o u tra coisa senão repeti-las. E m m eio ao
barulho dessa repetição, não podem os escutar nada novo. Assim ,
perguntam os “ Q ue devo fazer?” , “ Com o posso libertar-m e do
velho m ecanism o, da fita v elh a?” . O novo só pode ser ouvido
quando a fita velha silencia de todo, sem nenhum esforço de
nossa parte; quando somos sérios e, por conseguinte, temos
interesse em descobrir, p restar atenção.
Tem os, pois, a autoridade de outrem , de quem dependem os,
a autoridade da tradição, e a autoridade da experiência passada,
como m em ória, como conhecim ento. H á tam bém a autoridade
da experiência presente, que reconhecem os com base nos conhe
cim entos acum ulados no passado; e tal experiência, visto que
pode ser reconhecida, não é coisa nova. Com o pode um a m ente,
um cérebro que foi tão condicionado pela autoridade, pela im i
tação, pelo ajustam ento, escutar um a coisa inteiram ente nova?
Com o se pode ver a beleza do dia, com a m ente, o coração e o
cérebro obscurecidos pelo passado, como autoridade? Se puder
mos perceber realm ente o fato de que a m ente está transpor
tando a carga do passado e foi condicionada pela autoridade,
sob várias form as; de que ela não é livre, sendo p ortanto incapaz
de ver totalm ente — deixarem os, então, de lado o passado, sem
nenhum esforço.
A liberdade requer a to tal cessação de toda autoridade
interna. Desse estado m ental resulta um a liberdade externa toda
diferente da reação de oposição ou de resistência. O que estam os
dizendo é, em verdade, m uito sim ples e, justam ente por causa
dessa sim plicidade, pode escapar à vossa apreensão. A m ente,
o cérebro está condicionado p or causa da autoridade, da im itação,
da obediência; eis um fato. O hom em realm ente livre não reco
nhece nenhum a autoridade interior; esse hom em sabe o que
é am ar e m editar.
23
Com preendendo-se a liberdade, compreende-se tam bém o
que é disciplina. E sta poderá parecer um a asserção contradi
tória, porque em geral pensam os que liberdade significa estar
livre de toda disciplina. Q ual a natureza da m ente bem disci
plinada? N ão pode existir liberdade sem disciplina; mas isso
não significa que devemos prim eiro disciplinar-nos para, depois,
term os liberdade. A liberdade e a disciplina se acom panham
sem pre, não são coisas separadas. Assim, que significa “ disci
p lin a” ? C onform e o dicionário, a palavra “ disciplina” significa
aprender — e não, forçarm os a m ente a ajustar-se a um certo
padrão de ação baseado em algum a ideologia ou crença. A
m ente capaz de aprender é toda diferente daquela que só é
capaz de ajustar-se. A m ente que está aprendendo, observando,
vendo realm ente o q u e é, não está interpretando o q u e é em
conform idade com seus desejos, seu condicionam ento, seus par
ticulares prazeres.
Disciplina não significa reprim ir e controlar, nem tam pouco
ajustam ento a um padrão ou a um a ideologia; significa que a
m ente vê o q u e é e aprende de o q u e ê. A m ente é então sobre
m odo desperta, vigilante. “ D isciplinar-se” , no sentido comum ,
im plica um a entidade que se está disciplinando em conform i
dade com algum a coisa. Esse é um processo dualista. Digo
en tre m im : “ Preciso erguer-m e cedo, todas as m anhãs, e deixar
de ser preguiçoso” ou “N ão devo deixar-m e encolerizar” ; um
processo dualista: aquele que, p or m eio da vontade, procura
determ inar o que lhe cum pre fazer, em oposição ao que real
m ente faz. Nesse estado há conflito.
A disciplina im posta pelos pais, pela sociedade, pelas orga
nizações religiosas, é ajustam ento. C ontra esse ajustam ento vem
a revolta — o pai quer obrigar o filho a fazer certas coisas,
este se rebela, etc. — T al é a vida baseada na obediência e no
ajustam ento; e há o contrário: rejeitar o ajustam ento, para fazer
o que se entende. T ratem os, pois, de descobrir qual a natureza
da m ente que não se ajusta, que não im ita, não segue, não obe
dece e, contudo, é altam ente disciplinada — “ disciplinada” , no
sentido de que está constantem ente aprendendo.
Disciplina é aprender, e não, ajustar-se. A justam ento im pli
ca que me com paro com outrem , m edindo o que sou ou penso
que devia ser, em com paração com o herói, o santo, etc. O nde
24
há ajustam ento, há necessariam ente com paração — vede isso,
por favor. D escobri se sois capaz de viver sem com paração,
quer dizer, sem ajustam ento. Desde a infância, somos condicio
nados para com parar — “ Seja como seu irm ão, como sua tia-avó” , “ Seja igual ao santo” , “ Siga M ao” . N a educação, com pa
ram os: nas escolas dam os notas aos alunos e subm etem o-los a
exames. N ão sabem os o que significa viver sem com parar e
sem com petir e, p o rta n to , não agressivam ente, não violenta
m ente. Com parar-se com outro é um a form a de agressão e um a
form a de violência.
Violência não é só m atar ou espancar
alguém ; é tam bém espírito com parativo: “ Preciso ser igual a
f u la n o ” , ou “ Preciso aperfeiçoar-m e” . O aperfeiçoam ento p ró
prio é a verdadeira antítese da liberdade e do aprender. Desco
bri p o r vós m esm o um a m aneira de viverdes sem comparação,
e vereis acontecer um a coisa m aravilhosa.
Se realm ente vos
tornardes vigilante, sem nenhum a escolha, vereis o que significa
viver sem com paração e nunca mais pronunciareis as palavras
“ E u serei” .
Somos escravos do verbo “ ser” , que implica: “ Serei no
futu ro um a pessoa im p o rtan te.” A comparação e o ajustam ento
andam sem pre juntos; nada criam senão repressão, conflito, in te r
m inável sofrer. Im porta, pois, descobrir um a m aneira de viver,
em cada dia, sem nenhum a com paração. Fazei-o, e vereis como
isso é m aravilhoso, como vos liberta de tantas das vossas cargas.
Desse percebim ento nasce um a m ente sobrem odo sensível e,
p ortanto, disciplinada — que está constantem ente aprendendo,
não o que deseja aprender ou o que lhe dá gosto e satisfação
aprender: a p r e n d e n d o . Tornar-vos-eis, assim, cônscios do condi
cionam ento interior causado pela autoridade, pelo ajustam ento
a um padrão, pela tradição e a propaganda, pelos ditos de outras
pessoas, e pela experiência acum ulada, vossa própria e da raça
e da fam ília. T udo isso se tornou autoridade. O nde há autori
dade, a m ente não será jam ais livre para descobrir o que cum pre
descobrir: um a realidade eterna, inteiram ente nova.
A m ente sensível não está lim itada por nenhum padrão
fixo; acha-se em constante m ovim ento, a fluir como um rio, e
nesse m ovim ento constante não há repressão, não há obediên
cia, não há desejo de preenchim ento. M uito im porta com preen
der claram ente, com seriedade e profundeza, a natureza da m ente
que é livre e, p o rtan to , verdadeiram ente religiosa. A m ente
livre vê que qualquer espécie de dependência — de pessoas,
de amigos, do m arido ou da esposa, das idéias, da autoridade,
etc. — gera m edo: e sta é a origem do m edo. Se de vós dependo
para te r conforto, ou como m eio de fuga à m inha solidão e
fealdade, m inha superficialidade e insignificância, essa depen
dência causa m edo. A dependência de qualquer form a de im agi
nação subjetiva, fantasia ou conhecim ento, gera m edo e destrói
a liberdade.
Ao perceberdes todas as implicações, isto é, que não há
liberdade quando há dependência interior e, p o r conseguinte,
m edo; e que só um a m ente confusa e sem luz é dependente,
perguntais: “ D e que m aneira posso livrar-m e da dependência?”
E aí está m ais um a causa de conflito. Já se observardes que
a pessoa dependente está necessariam ente confusa; se conhe
cerdes esta verdade, que a pessoa que interiorm ente depende
de qualquer autoridade só pode criar confusão; se perceberdes
isso e não perg untardes de que m aneira podeis livrar-vos da
confusão, então deixareis de depender. Vossa m ente se tornará
sobrem odo sensível e, p ortanto, capaz de aprender e de disci
plinar a si própria sem nenhum a espécie de com pulsão ou de
ajustam ento.
E stá m ais ou m enos claro tudo isso — não verbalm ente,
porém de fato?
Posso im aginar ou pensar que estou vendo
claram ente, mas essa claridade é de breve duração. A verda
deira e clara percepção só se torna possível quando não há
dependência e, po r conseguinte, não há a confusão oriunda do
m edo. Podeis, honesta e seriam ente, aplicar-vos a descobrir se
estais livre de qualquer autoridade? Isso requer m uita investi
gação de vós m esm o, atenta vigilância. D aquela percepção clara
provém um a ação de espécie totalm ente diversa, ação não frag
m entária, não dividida, política ou religiosam ente; eis a ação
total.
IN T E R R O G A N T E : D o que dizeis pode-se depreender que um a
ação que, num ponto, pode ser considerada um a reação a um a
dada autoridade externa, pode, noutro ponto, ser ação total, da
p arte de ou tro indivíduo.
K R IS H N A M U R T I: Intelectualm ente, verbalm ente, podem os
com petir uns com os outros, liquidar-nos m utuam ente por m eio
26
de explicações, mas isso não tem significação nenhum a; o que
a vós pode parecer um a ação com pleta, a m im pode parecer
um a ação incom pleta. N ão é isso o que interessa. O que in te
ressa é ver se vossa m ente, como m ente hum ana, está atuando
de m aneira com pleta. U m ente hum ano pertencente ao m undo
não é um indivíduo. A palavra “ indivíduo” significa “ indivi
sível” . Indivíduo é um ser que não está dividido, que não é
fragm entário, um ser c o m p le to , m ental e fisicam ente são; e,
tam bém , “ com pleto” significa sagrado. Podeis dizer que sois um
indivíduo, mas não o sois absolutam ente. Vivei um a vida livre
de autoridades, livre de comparação, e vereis como isso é m aravi
lhoso; dispondes de um a energia trem enda quando não estais
com petindo, não estais com parando, não estais reprim indo; sois
então um a entidade viva, sã, c o m p le ta e, p or conseguinte, sagrada.
IN T E R R O G A N T E : O que estais dizendo não me é bem claro.
Q ue devo fazer?
K R IS H N A M U R T I: O u o que estou dizendo não está bem claro,
ou não com preendeis bem o inglês, ou, ainda, não estais dando
atenção continuada. É m uito difícil sustentar a atenção durante
um a hora e dez m inutos; há m om entos em que não se presta
toda a atenção, e então dizeis: “ Não entendo bem o que estais
dizendo” . Verificai se estais prestando constante atenção,
escutando, observando, ou se andais a divagar, a “ vagabun
dear” . . . Q ual é o caso?
IN T E R R O G A N T E : Credes que é possível aprender continua
m ente?
K R IS H N A M U R T I: Fazendo a vós m esmo esta pergunta, já
tornastes a coisa difícil. Com um a pergunta dessa natureza,
estais im pedindo a vós m esmo de aprender; percebeis?
Não
me interessa saber se posso aprender continuam ente; o que me
interessa é isto: E stou aprendendo? Se estou aprendendo, não
m e im porta ver se isso está ocorrendo constantem ente; não faço
disso um problem a. Tal pergunta não tem cabim ento quando
estou aprendendo.
IN T E R R O G A N T E : Pode-se aprender de qualquer coisa.
K R IS H N A M U R T I: D esde que se .esteja cônscio de estar apren
dendo. Isto é m uito complexo. Vam os examiná-lo um pouco?
27
“ Posso aprender continuam ente?”
Q ual é aqui o fator
im p o rtan te — “ aprender” ou “ continuam ente” ? N aturalm ente,
o im portante é “ aprender” . Q uando estou aprendéndo, pouco
m e im porta “ o resto do tem p o ” — o intervalo de tem po, etc.
Só m e im porta aquilo que estou aprendendo. É natural a m ente
dispersar-se, cansar-se, tornar-se desatenta.
Q uando desatenta,
a m ente se ocupa de coisas as mais absurdas. O im portante,
p o rtan to , não é “ como tornar atenta a m ente d esatenta” . O
im portante é que a m ente se torne cônscia de estar desatenta.
E sto u atento, observando as coisas — o m ovim ento das árvores,
o correr das águas — e observando a m im m esm o, sem nada
corrigir, sem dizer que is to “ devia ser” ou “ não devia ser” —
observando, sim plesm ente.
Q uando a m ente que está obser
vando se cansa, fica desatenta e, de súbito, torna-se cônscia desse
estado e ten ta obrigar a si própria a prestar atenção, surge o
conflito entre a atenção e a desatenção. E eu vos digo: Não
façais isso, porém ficai cônscio de estar desatento; só isso.
IN T E R R O G A N T E : Podeis explicar-nos como “ estar cônscio
de estar desatento” ?
K R IS H N A M U R T I: E stou aprendendo a respeito de m im m esmo
(não de acordo com “ tal” psicólogo ou especialista). E stou a
observar-m e, e vejo em m im m esm o um a certa coisa: não a
condeno, não a julgo, não a ponho de lado — observo-a, apenas.
Vejo que sou um a pessoa orgulhosa (isto, apenas para exem plo).
N ão digo: “ Q ue coisa feia o orgulho; preciso afastá-lo” — obser
vo-o, apenas. O bservando, estou aprendendo: observar o orgu
lho significa aprender o que nele está latente, como se origi
nou ele. N ão posso observá-lo durante mais de cinco ou seis
m inutos — e isso já é m uito; em seguida, torno-m e desatento.
Como eu estava atento e sei o que é “ desatenção” , luto para
converter a desatenção em atenção. Não façais tal coisa, porém
observai a desatenção, tornai-vos cônscio de estar desatento;
só isso e nada m ais. Parai aí. Não digais: “ Devo passar o m eu
tem po a ten to ” , mas apenas notai quando estais desatento. E sten
der-nos m ais a este respeito se tornaria m uito complicado. H á
na m ente a capacidade de estar continuam ente atenta e vigilante
—• vigilante, m esm o quando não há nada para aprender. Essa
capacidade, a m ente a possui quando está sobrem odo quieta,
25
silenciosa. Q ue tem para aprender a m ente que está em silên
cio, cheia de claridade?
IN T E R R O G A N T E : A comunicação por meio de palavras, de
idéias, não pode tornar-se um hábito, um a tradição?
K R IS H N A M U R T I: Só pode tornar-se hábito ou tradição quando
as palavras se tom am im portantes. H á necessidade de com uni
cação verbal, que é “ ver em com um ” a coisa que se está obser
vando, p or exem plo, o m edo. Isso significa estarm os — vós e
este que vos fala — observando, cooperando, com partilhando
no m esm o nível, ao m esmo tem po, com a m esma intensidade.
Nasce daí uma com unhão verbal que não é hábito.
IN T E R R O G A N T E : Com o pode um indivíduo total, com pleto,
m entalm ente são — um indivíduo não fragm entado, porém
“ indivisível” — am ar a outro? Como pode um ser hum ano
com pleto am ar um ser hum ano fragm entado?
E , m ais, como
pode um indivíduo com pleto am ar ou tro indivíduo com pleto?
K R IS H N A M U R T I: Não podeis ser com pleto se não sabeis o
que é o am or. Se sois com pleto — no sentido em que estam os
em pregando a palavra — não há então a questão de am ar a
outrem . Já observastes um a flor, na m argem do cam inho? Ela
existe, vive — banhada de sol, exposta ao vento, na beleza da
luz e da cor, e não vos diz: “ V inde cheirar-m e, deleitar-vos comi
go, olhar-m e” . Ela vive, e seu próprio viver é am or.
19 de julho de 1970.
29
3
ANÁLISE
“ A análise nunca é com pleta; a negação dessa ação
incom pleta é ação to tal.”
HL verdadeiram ente im portante com preender, no
seu todo, o problem a do viver: desde o m om ento de nascer
m os até à hora da m orte nos vem os em perene conflito. H á um a
lu ta incessante; não só dentro de nós m esm os, m as, exterior
m ente, em todas as nossas relações, há tensão e lu ta; há cons
tante divisão e a noção de nossa existência individual separada,
oposta à da com unidade. N as relações mais íntim as, cada um
busca, secreta ou abertam ente, seu mesm o prazer, cada um visa
seus próprios alvos, seu preenchim ento — criando, dessarte, frus
trações para si próprio. O que chamamos “ viver” é um estado
de confusão. No meio desta confusão, querem os ser criadores.
U m indivíduo dotado de talento escreve um livro, um poem a,
p in ta um quadro, etc. — tudo porém dentro do m esm o padrão
de luta, angústia e desespero; e isso é o que considera um
“ viver criador” . N o viajar para a Lua, no viver no fundo do
m ar, no fazer guerras — em tudo se m ostra esta constante e
encarniçada luta do hom em contra o hom em . Eis a nossa vida.
Penso que devemos considerar esta questão com m uita
seriedade e profundeza e, se possível, descobrir o estado m ental
em que se está inteiram ente livre de luta, tanto no nível cons
ciente como nas camadas subconscientes.
30
A beleza não resulta de conflito. Q uando se vê a .beleza
de um a m ontanha ou da rápida corrente d ’água, nessa percepção
direta não há nenhum estado de luta. Não há m uita beleza em
nossa vida p or causa da perene batalha nela existente.
M uito releva descobrir o estado m ental que é essencial
m ente belo e lúcido, jam ais atingido pela luta; na com preensão
dessa luta — não apenas no nível verbal ou intelectual, mas
no viver real de cada dia — encontrarem os, decerto, um a certa
espécie de paz, dentro em nós m esmos e no m undo. N esta
m anhã — se form os andando cautelosam ente, com sensível vigi
lância — talvez tenham os a possibilidade de com preender a b a ta
lha em que vivem os, e dela nos libertar.
Q ual a causa básica deste conflito e contradição?
Fazei
a vós m esmo esta pergunta. Não tenteis form ular um a expli
cação verbal, mas tratai, tão-só, de descobrir, não verbalm ente,
se possível, a base desta contradição e divisão, desta lu ta e con
flito. Pode-se investigar analiticam ente ou perceber im ediata
m ente essa base. A naliticam ente, ela poderá revelar-se pouco
a pouco; desse m odo, poderá descobrir-se a natureza, a estru
tura, a causa e o efeito desta nossa luta interior, da luta entre
o indivíduo e o E stado. O u pode-se perceber instantaneam ente
a sua causa. P o r essa m aneira, descobre-se a causa de todo este
conflito, e de pro n to se percebe a verdade respectiva.
T ratem os, pois, de com preender o que significa analisar,
ten tar descobrir intelectualm ente, verbalm ente, a causa do con
flito. Porque, no m esmo instante em que com preenderdes o
processo analítico — em que virdes sua verdade ou falsidade —
dele ficareis com pletam ente livre, para sem pre. M as, essa com
preensão significa que vossos olhos, vossa m ente, e vosso cora
ção perecebem de im ediato a verdade relativa a esse “ processo” .
A ele já nos habituam os; estam os condicionados para depender
mos da análise e das conjecturas filosóficas e psicológicas dos
especialistas — para procurarm os com preender o inteiro e com
plexo processo do viver, analiticam ente, intelectualm ente. Com
isso não estam os advogando o contrário: a sentim entalidade
ou o emocionalism o. M as, se com preenderdes com toda a clareza
a natureza e estrutura do processo analítico, tereis então um a
nova visão das coisas e podereis im prim ir à energia até agora
aplicada à análise um a direção totalm ente diferente.
31
Análise implica divisão — o analista e a coisa a analisar.
N ão Im porta se sois vós m esm o que vos analisais ou se é um
especialista quem o faz — de qualquer m aneira há divisão e,
p o r conseguinte, já tem os o começo do conflito.
Só somos
capazes de fazer coisas extraordinárias quando há um a grande
paixão e, p o rtan to , abundante energia; só essa paixão pode criar
um a vida de espécie totalm ente diferente, em nós m esm os e
no m undo. Eis porque tanto im porta com preender o “ processo”
da análise, a que a m ente hum ana está apegada há tantos séculos.
D en tre os num erosos fragm entos em que nos acham os divi
didos, um assum e a autoridade como “ analista” ; a coisa que se
vai analisar é outro fragm ento. Esse analista se to rn a o “ cen
sor” ; com seus conhecim entos acum ulados avalia o bom e o
m au, o certo e o errado, o que deve ou não deve ser reprim ido,
etc. O utrossim , o analista tem o dever de fazer análises com
pletas, senão suas avaliações, suas conclusões serão parciais. O
analista tem de exam inar cada pensam ento — tudo o que for
necessário analisar — e isso leva tem po. Pode-se passar a vida
inteira analisando — se a pessoa tem dinheiro e inclinação para
isso ou se apaixona pelo analista, etc. Podeis passar todos os
dias da vida analisando e, no fim , vos achareis no m esm o lugar
de onde saístes e com m ais coisas ainda para analisar.
Já vimos que na análise há a divisão em analista e coisa
analisada, e tam bém que o analista deve analisar com m uita
precisão, com pletam ente, senão suas conclusões dificultarão a
próxim a analise. Vim os tam bém que o processo analítico requer
um tem po infinito, durante o qual outras coisas podem suceder.
Assim , ao verdes a inteira estru tu ra da análise, esse ver é então,
na realidade, um a negação, um a rejeição dela; ver o que a aná
lise im plica é a negação dessa ação — ou seja ação com pleta.
IN T E R R O G A N T E : Q ue entendeis p or ação incom pleta?
K R IS H N A M U R T I: A ação que segue um a idéia, um a ideologia,
a experiência acum ulada. Essa ação visa sem pre a aproxim ar-se
do ideal, do p rotótipo e, por conseguinte, há separação entre ela
e o ideal. Essa ação nunca é com pleta, jam ais é com pleta a aná
lise; a negação dessa ação incom pleta é a ação total. Ao perce
ber a futilidade, a inanidade da análise, e todos os problem as a
ela inerentes, a m ente nunca mais se interessará nela, nunca
mais quererá com preender a “ verdadeira” análise.
32
A m ente que com preendeu o processo da análise tornou-se
deveras penetrante, viva, sensível, já que rejeitou essa coisa que
considerávam os como o único m eio e m odo de com preensão.
Se virdes m uito claram ente, p or vós m esmo — e não fo r
çado ou com pelido pelos argum entos e raciocínios de outrem —
a falsidade ou a verdade em referência à análise, vossa m ente se
tornará então livre dela e terá a energia necessária para olhar,
investigar noutra direção. Q ue é essa outra direção? É a p er
cepção im ediata, ou seja a ação total.
Com o já vim os, há separação entre o analista e a coisa a
analisar, entre o observador e a coisa observada: esta é a causa
básica do conflito. Q uando observam os, sem pre o fazemos com
base num centro, em nosso fundo de experiência e conheci
m ento; o “ e u ” — como católico, com unista ou “ especialista”
— está observando. H á, assim, separação entre “ m im ” e a
coisa observada. Isso não requer m uita com preensão, sendo um
fato óbvio. Q uando olhais um a árvore, vosso m arido ou esposa,
existe essa separação. Ela existe entre vós e a com unidade. H á,
pois, “ observador” e “ coisa observada” : nesta divisão produz-se,
inevitavelm ente, a contradição. Essa contradição é a raiz de
todas as lutas.
Se se percebe que essa é a causa básica do conflito, logo
se pergunta: Pode-se observar sem o “ eu” , o “ censor” , sem
nenhum a de nossas experiências acum uladas, de aflição, conflito,
brutalidade, vaidade, orgulho, desespero, que constituem o “ eu ” ?
Podeis observar sem o passado — m em órias, conclusões e espe
ranças, trazidas do passado — observar sem esse fundo ( b a c k g r o u n d )?
Esse fundo — sendo o “ eu ” , o “ observador” —
separa-vos da coisa observada. Já algum a vez observastes sem
ele? Fazei-o a g o ra , p or favor! — ainda que por divertim ento.
Olhai as coisas externas objetivam ente; escutai os sons do rio,
observai os contornos das m ontanhas, a beleza, a claridade, que
vos rodeiam . Isso é relativam ente fácil, sem a presença do “ e u ”
— que é o passado — como observador. M as, podeis olhar-vos
interiorm ente, sem “ observador” ? T ende a bondade de olhar-vos — vosso condicionam ento, vossa educação, vossa m aneira
de pensar, vossas conclusões e preconceitos — sem nenhum a
espécie de condenação, explicação ou justificação — o b s e r v a n d o ,
apenas. Q uando assim se observa, não há observador e, por
conseguinte, não há conflito algum.
Essa m aneira de vida difere totalm ente da outra; não é o
oposto da outra, nem um a reação a ela: é d ife r e n te . Nela, há
liberdade infinita, abundante energia e paixão.
Ela é obser
vação total, ação com pleta. Q uando tiverdes visto e com preen
dido com pletam ente, vossa ação será sem pre lúcida. É como
olhar o m apa inteiro, em vez do detalhe — o lugar aonde dese
jais ir.
D escobris, assim, p o r vós m esm o, como ente hum ano, que
é possível viver sem nenhum a espécie de conflito. Isso im plica
um a trem enda revolução interior. A revolução interior, com
pleta e total, produto da com preensão do conflito causado pela
divisão entre o observador e a coisa observada, faz surgir um
viver de qualidade inteiram ente diferente.
A gora, se vos aprouver, penetrem os mais nesta m atéria por
m eio de perguntas.
IN T E R R O G A N T E : Com o podem os divorciar-nos dos proble
m as, se vivem os num m undo cheio de problem as?
K R IS H N A M U R T I: Sois diferente do m undo?
m undo?
IN T E R R O G A N T E :
m undo.
Sou
um a
simples
Vós não sois o
pessoa
que
vive
no
K R IS H N A M U R T I: “ Um a simples pessoa que vive no m undo”
— dissociada, desligada de tudo o que está ocorrendo no m undo?
IN T E R R O G A N T E : Não, eu faço parte dele.
divorciar-m e dele?
M as, como posso
K R IS H N A M U R T I: N ão tendes nenhum a possibilidade de divor
ciar-vos do m undo: vós sois o m undo. Se viveis num m undo
cristão, estais condicionado por sua civilização, religião, educa
ção, por sua industrialização, etc. Não podeis de m odo nenhum
separar-vos desse m undo. O s m onges sem pre tentaram retirar-se do m undo, isolando-se em m osteiros e, todavia, eles são o
resultado do m undo em que vivem ; pretendem fugir dessa cul
tura, voltando-lhe as costas, dedicando-se ao que consideram ser
a verdade, ao ideal de Jesus, etc.
IN T E R R O G A N T E : Q ue possibilidade tenho de exam inar a
m im m esm o com a m ente cheia de preocupações — ganhar di
nheiro, adquirir casa própria, etc.?
34
K R IS H N A M U R T I: Como encarais o vosso em prego, como o
considerais?
IN T E R R O G A N T E : Com o meio de subsistência, neste m undo.
K R ISEIN A M U R TI: “ Preciso de um em prego para subsistir” .
T oda a estru tu ra da sociedade, seja aqui, seja na Rússia, baseia-se no subsistir a qualquer preço, no fazer o que a sociedade
determ ina. Com o subsistir em segurança, duradouram ente, quan
do há divisão entre nós? Q uando vós sois europeu e eu sou
asiático, quando há separação, cada um de nós com petindo para
ter segurança, para subsistir, por conseguinte a batalharm os uns
contra os outros, individual ou coletivam ente, como é possível a
subsistência — subsistência tem porária?
A verdadeira questão, pois, não é a subsistência, mas, sim,
se se pode viver neste m undo sem nenhum a divisão. Q uando
não houver mais divisão, poderem os subsistir, a pleno, sem
m edo. Já houve guerras religiosas; houve guerras m edonhas
entre católicos e protestantes •— cada um a das facções alegando
“ precisam os subsistir” . N unca disseram a si próprios “ Como
é insensata esta divisão — um crer nisto, outro crer naquilo!” ;
jamais perceberam eles o absurdo de seu condicionam ento. P o
demos aplicar toda a força de nosso pensar, de nosso sentir,
de nossa paixão, em descobrir se é possível viver sem essa divi
são, vale dizer, viver com plenitude e com pleta segurança? Mas,
nada disso vos interessa. Só vos interessa subsistir.
Vede, senhores, os governos soberanos, com seus exércitos,
dividiram o m undo e estão sem pre a agredir-se m utuam ente, a
fim de m anter o seu prestígio e garantir a própria subsistência
econômica. Em boas mãos, e sem necessidade dos políticos, os
com putadores poderão alterar toda a estru tu ra deste m undo.
M as, nós não tem os interesse na união da hum anidade. E n tre
tanto, politicam ente, é este o único problem a. E esse problem a
só será resolvido quando não houver m ais políticos, nem gover
nos soberanos, nem seitas religiosas separadas.
E vós, aqui
presentes, sois os hom ens mais aptos para resolvê-lo.
IN T E R R O G A N T E : Não é necessária um a análise consciente,
para se chegar a essa conclusão?
K R IS H N A M U R T I: Isso é um a conclusão, um resultado de aná
lise? O bservai, sim plesm ente, o fato. Pode-se ver que o m undo
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está dividido pelos governos soberanos e as religiões; vós podeis
vê-lo; ver é análise?
IN T E R R O G A N T E : Não achais que, para alterarm os esse estado
de coisas, necessitam os tam bém de um a revolução externa?
K R IS H N A M U R T I: Revolução interna e externa ao mesm o
tem po. Não, prim eiro um a e depois a outra; as duas devem ser
sim ultâneas. Deve ser um a instantânea revolução interior e exte
rior, sem se dar mais relevo a um a ou à outra. Como realizá-la?
Só quando se vê esta verdade que a revolução interior é a revo
lução exterior. Q uando a virdes de fato, e não intelectualm ente,
verbalm ente, idealm ente, a revolução se realizará. O ra, existe
em vós essa interior e total revolução? Se não existe e quiser
des prom over a revolução exterior, im plantareis o caos no m un
do. M as — já h á caos no m undo.
IN T E R R O G A N T E : Falais de G overnos, Igrejas e Nacionalism o;
eles têm isso que se cham a “ o p o d er” .
K R IS H N A M U R T I: O s burocratas querem o poder e o têm .
Não desejais exercer poder — sobre vossa esposa ou m arido?
Em vossas conclusões, em relação ao que pensais ser correto, há
poder; todo ente hum ano deseja um a certa espécie de poder.
P o rtan to , não ataqueis o poder de que outros se acham inves
tidos, porém libertai-vos do desejo de poder existente em vós
m esm o; vossa ação será então totalm ente diferente. Querem os
atacar o poder externo, arrancá-lo das mãos de quem o detém
para dá-lo a outrem ; nunca dizemos “ livrem o-nos de toda espé
cie de dom ínio e de posse” . Se realm ente aplicásseis toda a
energia de vossa m ente em libertar-vos de qualquer espécie de
poder — quer dizer, fu n c io n a r sem assum irdes um a p o siç ã o —
teríeis a possibilidade de criar um a sociedade inteiram ente dife
rente.
IN T E R R O G A N T E : Se tendes fom e, não podeis sequer começar
a tra tar destas questões.
K R IS H N A M U R T I: Se vós estivésseis realm ente com fom e, não
estaríeis aqui! Nós não estam os com fom e e, p ortanto, dispo
mos de tem po para escutar e para observar. Podeis alegar que,
sendo um pequeno grupo de pessoas, um a gota dágua no oceano,
que podem os nós fazer? É esta um a pergunta válida, quando
36
nos vem os em presença cio enorm e e com plexo problem a do
m undo em que vivem os? Como ente hum ano, como simples
indivíduo, que posso fazer?
Se estivésseis realm ente enfren
tando o problem a, farieis tal pergunta? Estaríeis, agora mesm o,
trabalhando. Com preendeis, senhor? Ao dizerdes “ Q ue posso
eu fazer?” — esta pergunta já denota desespero.
IN T E R R O G A N T E : M uita gente está a m orrer de fom e e pre
cisa fazer im ediatam ente o necessário para sobreviver.
Q ue
pode significar para eles o que se está dizendo aqui?
K R IS H N A M U R T I: Nada. Q uando estou com fome, quero co
m ida — e o que se está dizendo aqui tem para m im m uito
pouca significação. Assim, que quereis perguntar?
IN T E R R O G A N T E : Nós somos um a m inoria, um grupo insigni
ficante, A grande m aioria — na ín d ia , na Ásia, em certas par
tes da E uropa e da Am érica — anda realm ente fam inta. Q ue
influência pode ter em toda essa gente o que se está dizendo
aqui?
K R IS H N A M U R T I: Isso depende de vós, do que fizerdes, m es
mo como um a m inoria insignificante. Um a enorm e revolução
ocorrerá no m undo, quando um a m inoria de pessoas se tiverem
transform ado interiorm ente.
P reocupado com as aflições do
m undo —• a pobreza, a degradação, a fome — perguntais “ Q ue
posso fazer?” . O que se pode fazer é, ou aderir im pensada
m ente a um a dada revolução externa, tentando despedaçar a
atual estrutura social para criar o u tra de nova espécie (com o
que voltarão as mesmas aflições de a n te s), ou considerar a pos
sibilidade de um a revolução total — não parcial ou m eram ente
física — na qual a psique possa atuar, num a relação inteiram ente diferente com a sociedade.
IN T E R R O G A N T E : Falais como se a revolução interior se veri
ficasse instantaneam ente; é realm ente assim que ela ocorre?
K R IS H N A M U R T I: A revolução interior depende do tem po, de
um a gradual m udança interna? Eis um a questão m uito com
plexa. Nós estam os condicionados para aceitar a idéia de que
a m udança ocorrerá em virtude de um a interna e gradual revo
lução. Verifica-se ela (a m udança) aos poucos, gradativam ente,
ou a c o n te c e instantaneam ente, ao perceber-se a verdade a seu
respeito? Ao ver-se um perigo súbito, a ação é instantânea, não?
N ão é gradual ou analítica; em presença do perigo, há ação
im ediata. Estam os a apontar-vos perigos — os perigos da aná
lise, o perigo da sede de poder, o perigo do adiam ento, da
divisão. Q uando se vê a periculosidade de um a coisa — não
verbalm ente, porém realm ente, física e psicologicam ente — há
então ação instantânea, a ação da revolução im ediata. P ara ver
des esses perigos psicológicos, necessitais de um a m ente sensí
vel, alertada, vigilante. Se perguntardes “ Como adquirir um a
m ente vigilante e sensível?” , vos vereis de novo às voltas com
a gradualidade. M as, se perceberdes a necessidade da revolução
instantânea, tal como, em presença de um perigo, percebeis a
necessidade de ação im ediata — e a sociedade é um perigo, e
todas as coisas que vos cercam são perigosas — haverá então
ação total.
21 de julho de 1970.
38
4
FRAGMENTAÇÃO
“ Só nasce um problem a quando se vê a vida fragm entariam ente. D escobri a beleza de ver a vid a com o
um to d o .”
K - R i s h n a m u r t i : E m presença de nossos num e
rosos problem as, tem os a propensão de resolvê-los cada um de
per si. Se é um problem a sexual, tratam o-lo com o coisa com ple
tam ente isolada dos outros problem as. O mesm o acontece em
relação ao problem a da violência ou da fom e, problem as que
procuram os resolver no cam po político, econômico ou social.
Não sei porque querem os resolver cada problem a separadam ente.
O m undo está sob o im pério da violência; os poderes existentes
procuram resolver cada problem a como se estivesse separado do
resto da vida. Não consideram os os problem as como um todo,
cada problem a em relação com outros problem as.
A violência, como podem os observá-la em nós m esm os, faz
parte de nossa herança anim al. Um a boa parte de cada um de
nós é anim al e, se não com preendem os nossa estru tu ra de entes
hum anos totais, e apenas tratam os de acabar com a violência,
separadam ente, daí resultará mais violência ainda. Penso que
isso precisa ser com preendido claram ente por cada um de nós.
H á m ilhares de problem as, aparentem ente separados, e nunca
vemos que eles estão relacionados entre si e que nenhum deles
pode ser resolvido isoladam ente, de per si. Tem os de considerar
a vida como um contínuo m ovim ento de problem as e de crises,
39
graves e insignificantes. P enetrem os com m uito cuidado nesta
m atéria, porque, se não for com preendida claram ente, quando
estiverm os considerando as questões do m edo, do am or, da m or
te, da m editação e da realidade, não com preenderem os como
essas coisas possam estar relacionadas en tre si. P orque a beleza
da vida, o êxtase, a im ensidade, não estão separados de nossos
problem as diários. Se disserdes: “ Só m e interessa a m editação
e a verdade” — nunca as descobrireis, sem a com preensão de
que os problem as estão relacionados. O problem a da fom e, por
exem plo, não pode ser resolvido isoladam ente, um a vez que está
em relação com as divisões nacionais, políticas, econôm icas, so
ciais, religiosas e psicológicas — entre os hom ens. E tem os
o problem a das relações pessoais, o problem a do sofrim ento —
não apenas físico, mas tam bém psicológico — os problem as ati
nentes às aflições que não só nos atingem individualm ente, mas
ao m undo inteiro — toda a angústia e confusão existentes no
m undo. Se tentam os achar um a solução para cada problem a em
particular, o que fazemos é criar mais divisão e mais conflito'.
Se sois entes verdadeiram ente sérios e am adurecidos, já deveis
ter perguntado a vós m esm os por que razão a m ente tenta resol
ver cada problem a como se ele não estivesse em relação com
outros problem as. P o r que razão faz a m ente hum ana essa
divisão em “ e u ” e “ m eu” , “ n ó s” e “ eles” , religião e política,
etc.? P orque essa constante divisão e tanto esforço para resol
ver cada problem a de per si, isoladam ente?
P ara poderm os responder a essa pergunta, cum pre-nos
investigar a função do pensam ento, seu significado, sua subs
tância e estrutura; porque é possível que o próprio pensam ento
seja o fato r da divisão e, p ortanto, o próprio processo de ten tar
um a solução por meio do pensam ento, do raciocínio, seja cau
sador de separação.
Deseja-se um a revolução física, a fim de estabelecer um a
ordem m elhor, esquecendo-se as conseqüêncías da revolução
física, esquecendo-se a integral natureza psicológica do hom em .
É preciso, pois, fazer esta pergunta. E , de quem a resposta?
D o pensam ento ou da com preensão desta vasta estru tu ra da
vida hum ana?
Q uerem os averiguar porque existe esta divisão. Dela tra
tamos há dias, em relação ao “ observador” e à “ coisa observada” .
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Deixem os isso de parte, e olhem o-la de diferente m aneira. O
pensam ento cria de fato divisão? Se cria, a razão é que ele
procura a solução de um dado problem a separadam ente de outros
problem as.
P o r favor, não concordeis comigo; não é caso de concordar,
mas, sim, de verdes por vós m esm o a verdade ou falsidade do
que se está dizendo. N ão aceiteis em circunstância nenhum a e
em tem po algum o que este orador diz. A qui não há autoridade
nenhum a, nem vossa, nem m inha; estam os, em com um , inves
tigando, observando, olhando, aprendendo.
Se o pensam ento, por sua própria natureza e estrutura,
divide a vida em tantos problem as, o procurar-lhes a solução
por m eio do pensam ento só pode levar a um a solução isolada
e, por conseguinte, tal solução cria mais confusão e mais aflição.
Cum pre-nos averiguar, p or nós m esm os, livrem ente, sem pre
conceitos e conclusões, se é dessa m aneira que o pensam ento
funciona. Em geral tentam os achar a solução de um problem a
intelectualm ente ou em ocionalm ente, ou dizemos que a encon
tram os intuitivam ente. É preciso m uito cuidado com esta pala
vra “ intuição” ; nela se encerra m uita ilusão, porquanto a in tu i
ção pode ser ditada por nossas próprias esperanças, tem ores,
am arguras, desejos, etc.
Procuram os um a solução de ordem
intelectual ou em ocional, como se o intelecto fosse coisa sepa
rada da emoção, e a emoção coisa separada da reação física.
Nossa educação e cultura, bem como todos os nossos conceitos
filosóficos, se baseiam nessa perspectiva intelectual da vida;
nossa estrutura social e nossa m oralidade fundam entam -se nessa
divisão.
O ra, se o pensam ento divide, de que m aneira o faz? Se
realm ente observardes isso em vós m esm o, vereis a extraordi
nária descoberta que fareis. Sereis a luz de vós m esm o, sereis
um ente hum ano “ integrado” , e não necessitareis de ninguém
para dizer-vos o que deveis fazer, o que deveis pensar, e como
deveis pensar. O pensam ento pode ser adm iravelm ente racional;
ele deve raciocinar conseqüentem ente, logicam ente, objetiva
m ente, sãm ente; deve funcionar perfeitam ente, qual um com pu
tador, trabalhando com precisão, sem atrito nem conflito. Racio
cinar é necessário; a sanidade m ental faz p arte da capacidade de
raciocinar.
41
P ode o pensam ento, alguma vez, ser novo, pu ro ? T odo
problem a hum ano —• não problem as m ecânicos e científicos —
é sem pre novo, e o pensam ento procura com preendê-lo, procura
alterá-lo, procura traduzi-lo, procura fazer alguma coisa a seu
respeito.
Se sentíssem os, profundam ente, am or uns pelos outros —
não verbalm ente, porém realm ente — toda esta divisão cessaria.
Isso só pode ocorrer quando não h á condicionam ento algum,
nenhum centro, constituído pelo “ e u ” e o “ vós” . M as o pensa
m ento, sendo atividade do cérebro, do intelecto, é com pleta
m ente incapaz de am ar. O pensam ento precisa ser com preen
dido, e perguntam os se o pensam ento é capaz de ver qualquer
coisa nova; ou o fato é que o “ novo” pensam ento é sempre
velho, de m odo que, ao enfrentar um problem a da vida — que
é sem pre novo — ele não pode vê-lo como novo, porquanto
ten ta traduzi-lo de acordo com seu próprio condicionam ento.
O pensam ento é necessário, e, contudo, vê-se que o pensa
m ento divide — “ eu” e “ não e u ” , etc.; ten ta resolver o p ro
blem a da violência isoladam ente, não relacionado com todos os
outros problem as da existência.
O pensam ento é sem pre o
passado; se não tivéssem os o cérebro, que, como um gravador
de fitas, acum ulou inform ações e experiências de toda espécie,
não teríam os possibilidade de pensar ou de reagir. O pensa
m ento, ao encontrar-se com um novo problem a, não pode deixar
de traduzi-lo em seus próprios term os, relativos ao passado e,
p or conseguinte, criar divisão.
Deixai de parte tudo o m ais, por ora, e observai vosso pen
sar; ele é reação do passado. Se não tivésseis pensam entos,
não haveria passado, vos acharíeis num estado de amnésia. O
pensam ento, inevitavelm ente, divide a vida em passado, presente
e futuro. E nquanto existir pensam ento, como passado, a vida
será dividida nessas seções de tem po.
Se desejo com preender o problem a da violência, com ple
tam ente, totalm ente, de m odo que a m ente dela se liberte de
form a total, só o com preenderei pela com preensão da estru tu ra
do pensam ento. É o pensam ento que gera a violência: “ m inha”
casa, “ m in h a” m ulher, “ m inha” p átria — contra-sensos! —
Q uem é esse “ eu ” perm anente, oposto a tudo o m ais? Q ual a
sua causa? A educação, a sociedade, o G overno, a Igreja? T udo
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o está causando, e eu faço parte desse todo. O pensam ento é
m atéria; está localizado na própria e stru tu ra, nas próprias célu
las do cérebro e, assim, quando o cérebro funciona — psicoló
gica, social ou religiosam ente — fá-lo, necessariam ente, de acordo
com seu condicionam ento passado. Vem os que o pensam ento é
de essencial im portância e deve funcionar de m aneira absoluta
m ente lógica, objetiva, im pessoal, e vemos, ao m esmo tem po,
que ele é fato r de divisão.
Não p retendo im pelir-vos a concordar com o que estou
dizendo, mas percebeis que o pensam ento inevitavelm ente di
vide? N otai o que acontece: vendo que o nacionalism o tem
levado a toda espécie de guerras e de aflição, o pensam ento
diz: “ Unam o-nos todos e form em os um a liga de nações” . Mas
o pensam ento está ainda a funcionar, ainda a m anter a sepa
ração — vós como italiano, conservando vossa soberania italiana,
etc. Ao m esm o tem po que se fala em fraternid ade, m antém -se
a separação, e isso é hipocrisia. Esse jogo duplo é característico
do pensam ento.
E stá visto, pois, que o pensam ento não traz nenhum a solu
ção, mas daí não decorre que é preciso m atar a m ente. Q ue
m ente é essa que vê, em sua totalidade, todos os problem as
que surgem ? Um problem a sexual é um problem a total, relacio
nado com a cultura, o caráter, os vários problem as da vida —
e não um fragm ento de problem a. Q ue m ente é essa que vê
cada problem a totalm ente?
IN T E R R O G A N T E : C om preendi o que dissestes, mas resta um a
questão.
K R IS H N A M U R T I: Dizeis ter com preendido o que o pensa
m ento faz, tan to no mais alto como no m ais baixo nível, m as, se
há ainda o u tra questão, q u e m é que a apresenta? Q uando o
cérebro, o sistem a nervoso inteiro, a m ente — que abrange
todo esse conjunto — diz “ C om preendi a natureza do pensa
m en to ” — então o passo seguinte é este: ver se a m ente pode
olhar a vida, em toda a sua vastidão e com plexidade, com suas
aparentem ente interm ináveis aflições. E sta é a única questão,
e não é o pensam ento quem a está apresentando. A m ente,
tendo observado a inteira estru tu ra do pensam ento, conhece ago
ra o seu valor relativo; pode essa m ente olhar com olhos jamais
turvados pelo passado?
43
E sta é um a questão m uito séria e não um m ero passatem po.
Tem os cie devotar nossa energia e paixão, e nossa vida, a com
preendê-la, porque essa é a única solução para esta terrível
brutalidade, aflição, degradação, corrupção de toda espécie. Pode
a m ente, o cérebro — que tam bém se corrom peu p or influência
do tem po — ficar quieta, para que possa ver a vida como um
todo e, por conseguinte, livrar-se de todos os problem as? Só
surge um problem a quando a vida é vista íragm entariam ente.
D escobri quanto é belo ver a vida como um todo. Q uando se
vê a vida como um todo, não há mais problem a nenhum . Só
a m ente e o coração que se acham fragm entados criam proble
mas. O centro do fragm ento é o “ e u ” . O “ eu ” é criado pelo
pensam ento; n ã o t e m , e m si, n e n h u m a rea lid a d e . O “ e u ” —
“ m inha” casa, “ m inha” desilusão, “ m eu” desejo de tornar-m e
im portante — esse “ e u ” é p ro d u to do pensam ento, que d iv i d e .
Pode a m ente olhar sem o “ e u ” ? Não tendo possibilidade de
fazê-lo, esse mesm o “ e u ” diz: “ Vou devotar-m e a Jesus, a Buda,
a isto ou àquilo” — com preendeis? — “ Tornar-m e-ei com unista,
para dedicar-m e a todo o m undo” . O “ e u ” que se identifica
com aquilo que considera “ m aior” , é sem pre “ e u ” .
Assim , pergunta-se: Pode a m ente, o cérebro, o coração,
o ser inteiro, observar sem “ e u ” ? O “ eu ” vem do passado;
não existe “ eu ” do presente. O presente não pertence ao tem po.
P ode a m ente libertar-se do “ e u ” , para olhar toda a vastidão
da vida? Pode, sim, e de m aneira com pleta, total, quando se
com preendeu fundam entalm ente, com todo o ser, a natureza do
pensar. Se não tiverdes dedicado vossa atenção, tudo o que
tendes, a descobrir o que é o pensar, jamais tereis a possibilidade
de descobrir se é possível observar sem o “ e u ” . Se não fordes
capaz de observar sem o “ eu” , os problem as continuarão exis
tentes —• cada problem a em oposição a outro. E posso garantir-vos que todos esses problem as cessarão quando o hom em com e
çar a viver de m odo com pletam ente diferente, quando a m ente
puder olhar o m undo como um m ovim ento total.
IN T E R R O G A N T E : N o começo da palestra, dissestes que gos
taríeis de saber por que razão tentam os resolver os problem as
separadam ente. Não é a urgência um a das razões que nos im pe
lem a resolver os problem as isoladam ente?
44
K R IS H N A M U R T I: Q uando vedes perigo, agis. Nessa ação não
há nenhum a questão de urgência, nenhum a impaciência — a
gente age. Só há “ urgência” e a exigência de ação im ediata
quando se vê o perigo como um a ameaça ao “ eu” , como pensa
m ento. Q uando se vê, em seu todo, a periculosidade do pensa
m ento, a dividir o m undo em fragm entos, esse v e r ê a urgência
e a ação. Ao verdes realm ente a fom e, tal como existe na
índia, e ao verdes como foram criadas essas condições, a indi
ferença das pessoas e dos governos, a inépcia dos políticos, que
deveis fazer? A tacar um dado aspecto do problem a da fom e,
isoladam ente? O u dizeis: “ T udo isso é um fato psicológico,
centralizado no “ e u ” , que foi criado pelo pensam ento” ? Se esse
problem a, em todos os seus aspectos, é com pleta e totalm ente
com preendido — não só a fom e física, mas a m iséria hum ana
decorrente da falta de am or — sabereis qual é a ação correta.
A própria m udança é urgência; não é p or causa da urgência
que a m udança ocorre.
IN T E R R O G A N T E : Pareceis dizer que o pensam ento deve fun
cionar, e ao m esmo tem po que não pode funcionar.
K R IS H N A M U R T I: O pensam ento deve funcionar logicam ente,
im pessoalm ente e, contudo, m anter-se quieto. Como pode isso
verificar-se?
Vedes ou com preendeis, realm ente, a natureza do pensar
(não de acordo comigo ou com algum especialista) — vedes,
vós m esm o, como funciona o pensam ento? O ra, senhor, quando
vos fazem um a pergunta sobre um a coisa com que estais perfei
tam ente fam iliarizado, vossa resposta é im ediata, não?
Se
a pergunta é um tanto complicada, necessitais de mais tem po
para responder. Q uando ao cérebro se apresenta um a pergunta
cuja resposta ele não pode achar, após rebuscar todas as suas
lem branças e livros — então ele diz: “ Não sei” . Fez ele uso
do pensam ento para dizer “ N ão sei” ? Ao dizerdes “ Não sei” ,
vossa m ente não está a buscar, não está a esperar: a m ente que
diz “ Não sei” é inteiram ente diferente da m ente que funciona
com o conhecim ento. Pode, pois, a m ente ficar com pletam ente
livre do conhecim ento, e, todavia, funcionar eficazm ente no cam
po do conhecim ento? O s dois campos não são separados. Q uan
do se deseja descobrir um a coisa nova, cum pre rejeitar o passado.
O novo só pode m anifestar-se quando se está libertado do conhe
cim ento.
Essa liberdade pode ser constante, o que significa
que a m ente está vivendo em com pleto silêncio, num estado de
n ã o -e x is tê n c ia .
Esse estado de não-existênda e de silêncio é
vasto e, dentro dele, podem os servir-nos do conhecim ento —*
conhecim ento técnico —■para fins práticos. T am bém , de dentro
desse silêncio, pode ser observado o todo da vida —■sem o “ e u ” .
IN T E R R O G A N T E : N o começo da palestra dissestes que,
quando se quer m udar as coisas externam ente, essa ação conduz
à d itadura de um grupo ou de um a pessoa. Não achais que
estam os vivendo debaixo da ditadura do dinheiro e da indústria?
K R IS H N A M U R T I: N aturalm ente. O nde há autoridade, há dita
dura. P ara prom over-se um a m udança social, religiosa, ou hum a
na, é necessário, prim eiram ente, com preender toda a estru tu ra
do pensam ento, como o “ e u ” , que busca o poder. Pode a m ente
viver sem buscar o poder? Respondei, senhor.
IN T E R R O G A N T E : Não é natural buscar o poder?
K R IS H N A M U R T I: D ecerto é “ n atu ral” — como se costum a
dizer. É natural um cachorro querer dom inar os outros cachor
ros. M as, nós somos tidos por entes hum anos cultos, educados,
inteligentes, e parece que em todos estes m ilênios não aprende
mos a viver sem essa sede de poder.
IN T E R R O G A N T E : E u gostaria de saber se a m ente é capaz de
fazer um a pergunta a respeito de si própria cuja resposta ela
já não conheça.
K R IS H N A M U R T I: Q uando a m ente como “ e u ” , como pensa
m ento separado, faz a si própria um a pergunta a seu próprio
respeito, já achou a resposta, porque está falando acerca de
si m esm a; está tocando o m esm o sino com um badalar diferente,
mas o sino é o m esmo.
IN T E R R .O G A N T E : Podem os atuar sem nenhum “ eu ” ?
não significa viver em contem plação?
Isso
K R IS H N A M U R T I: Podeis viver no isolam ento, em contem pla
ção? Q uem irá dar-vos comida, roupas? O s m onges e os vários
im postores religiosos sem pre fizeram isso. N a ín d ia , há gente
que diz: “ E u vivo em contem plação; alim entai-m e, vesti-m e,
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banhai-m e, estou com pletam ente desligado do m undo” . O ra,
isso é m uito infantil. N ão tendes possibilidade nenhum a de
isolar-vos, já que estais sem pre em relação com o passado ou
com as coisas que vos cercam. V iver no isolam ento, cham ando
a isso “ contem plação” , é m era fuga, autom istificação.
23 de julho de 1970.
47
5
M E D O E PRAZER
“ Se se deseja com preender e ficar livre do m edo,
deve-se com preender o prazer; são coisas relacionadas.”
I N Í A últim a reunião estivem os falando sobre a
estru tu ra e atividades do pensam ento — sobre a m aneira como
o pensam ento divide e cria enorm e conflito nas relações hum a
nas. N esta m anhã, será oportuno considerarm os — não in te
lectual ou verbalm ente — a natureza do prazer e do m edo, e
se tem os possibilidade de libertar-nos totalm ente do sofrim ento.
N esta investigação, tem os de exam inar com m uita atenção a
questão do tem po. Um a das coisas mais difíceis é a com uni
cação, que não só requer precisão no em prego das palavras,
mas tam bém um a precisão de percebim ento que transcenda todas
as palavras, e um sentim ento de íntim o contato com a realidade.
Se, escutando este orador, vos lim itais a in terp retar as suas
palavras em conform idade com vossos gostos e aversões pessoais,
sem tom ardes conhecim ento de vossas próprias tendências interpretativas, então a palavra se torna esta prisão em que, infeliz
m ente, a m aioria de nós estam os cativos. M as, se a pessoa
está cônscia do significado da palavra e do que atrás dela se
esconde, torna-se então possível a comunicação. “ Com unicação”
im plica, não só com preensão verbal, mas tam bém viajar conjun
tam ente, exam inar conjuntam ente, participar conjuntam ente,
criar conjuntam ente. Isso é m uito im portante, principalm ente
quando se está falando a respeito do sofrim ento, do tem po e da
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natureza do prazer e do m edo. Estas são questões m uito com
plexas. T odo problem a hum ano é verdadeiram ente com plexo e
requer, para sua percepção, um a certa austeridade e sim plicidade.
Com a palavra “ austeridade” não nos referim os à rigidez ou seve
ridade — significado com um ente dado a essa palavra — a
nenhum a idéia de sequidão, disciplina e controle. O que tem os
em m ente é a austera sim plicidade que deve existir no exam e e
na com preensão dos assuntos de que vamos tratar. A m ente
deve ser realm ente sensível. Sensibilidade implica inteligência
que ultrapassa a interpretação intelectual, que ultrapassa o emocíonalism o e o entusiasm o. N o exam inar, no escutar, no obser
var e aprender a respeito do tem po, do prazer, do m edo e do
sofrim ento, é necessária aquela sensibilidade que dá a im ediata
percepção de que um a coisa é verdadeira ou falsa. T al sensi
bilidade não é possível, se o intelecto, em sua atividade pensante,
está dividindo, interpretando. Espero tenhais com preendido o
que dissem os, na últim a reunião, sobre como o pensam ento, por
sua própria natureza, divide as relações hum anas — em bora ele
seja necessário, para o raciocínio, para o pensar são, claro e
objetivo.
No que respeita à m aioria de nós, o m edo é nosso constante
com panheiro; quer a pessoa esteja cônscia dele, quer não, ele
está presente em algum escuro recesso da m ente; e nós estam os
perguntando se é possível a m ente livrar-se, com pleta e to tal
m ente, dessa carga. O orador pode sugerir esta pergunta, mas
a vós é que cabe resp o n d er; pois o problem a é vosso; por conse
guinte, deveis ser suficientem ente persistente e suficientem ente
sutil, para o perceberdes e o seguirdes até o fim , de m odo que, ao
sairdes deste pavilhão, nesta m anhã, vossa m ente esteja deveras
livre do m edo. Isso talvez seja pedir m uito, mas a coisa é pos
sível. Para a m ente que foi condicionada na cultura do m edo,
com as complicadas conseqüências neuróticas de suas ações, o
simples form ular da pergunta sobre a possibilidade de se ficar
com pletam ente livre do m edo já é, em si, um problem a. Um
problem a só existe quando insolúvel, quando não podem os dar
cabo dele e ele volta e to rn a a voltar. Pensais te r resolvido a
questão do m edo e, entretanto, ele continua a m anifestar-se em
diferentes form as. Se dizeis: “ É impossível livrar-nos do m edo” ,
já fechastes o cam inho a vós m esm o. Devem os ter m uito cui
dado para não fecharm os o cam inho a nós m esm os, não im pe
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dirm os a nós mesmos de exam inar a questão do m edo até sua
com pleta solução.
T odo estado de m edo gera atividades nocivas, não só neu
rótica e psicologicam ente, mas tam bém exteriorm ente. Torna-se
existente o problem a da segurança, tanto física como psicológica.
P restai atenção ao que estam os dizendo, porque nós vamos exa
m inar um a coisa que requer m uita atenção — não o vosso con
cordar, nem vossa interpretação, porém vosso perceber e ver a
coisa tal como é. Não necessitais de nenhum in térp rete; exam i
nai por vós mesm o, descobri por vós mesm o.
A m aioria de nós já tivem os tem ores físicos, como o m edo
de um a doença, da ansiedade que ela inspira e da dor com que
nos atenaza, ou a presença de um perigo físico. A nte um perigo
físico, de qualquer espécie, sentis m edo? Q uando se cam inha
por lugares selvagens da ín d ia, da África ou da Am érica, pode-se
encontrar um urso, um a serpente ou um tigre; há então ação
im ediata — não ação consciente, deliberada, porém ação instin
tiva. O ra, essa ação procede do m edo, ou da inteligência? E sta
mos tentando achar um a ação que seja inteligente, em com pa
ração com a ação nascida do m edo. Ao encontrar-nos com um a
serpente, só há a instantânea reação física: fugir, suar, procurar
fazer algum a coisa em face da situação. Essa é um a reação con
dicionada, porque há m uitas gerações nos dizem que devemos
ter cuidados com as serpentes, os animais selvagens. O cérebro,
o sistem a nervoso, reage instintivam ente, para proteger-se; essa
é um a reação natural, inteligente. É necessário proteger o orga
nism o físico; a serpente representa um perigo, e a reação de
proteção, frente a esse perigo, é um a ação inteligente.
Considerem os a dor física. Sofrestes dores anteriorm ente
e tendes m edo de que elas voltem . Esse m edo é causado pelo
pensam ento, pelo pensardes num a coisa que aconteceu há um
ano ou ontem , e que poderia to rn ar a acontecer am anhã. E xa
m inai bem isso, observai vossas próprias reações e a natureza
de vossas atividades. A qui, o m edo é produto do pensam ento
consciente ou inconsciente — o pensam ento como tem po (não
tem po cronológico), a pensar no que sucedeu e criando o m edo
de que to rn e a suceder no fu tu ro . O pensam ento é, pois, tem po.
E o pensam ento produz m edo: “ Posso m orrer am anhã” ; “ Pode-se ficar sabendo de um a certa coisa que p ratiquei no passado”
'— o pensar nisso faz m edo. Fizestes algo que não desejais se
torne conhecido, ou desejais fazer, no fu turo, um a certa coisa
que não tereis possibilidade de fazer. T udo isso é produto do
pensam ento como tem po.
Pode esse m ovim ento do pensam ento, que gera o m edo,
no tem po, e que é tem po, cessar? C om preendestes esta p er
gunta? H á a ação inteligente de proteção e preservação p ró
prias, a necessidade física de sobrevivência — que é um a reação
natural e inteligente. E há a outra reação: o pensam ento pensar
um a coisa e “ p ro jetar” a possibilidade de sua repetição no
futuro, gerando, assim, m edo. A questão, pois, é esta: Pode
esse m ovim ento do pensam ento, tão direto, tão constante e p er
suasivo, cessar natu ralm ente? Não pela oposição; se a ele vos
opondes, essa oposição é ainda produto do pensam ento.
Se
exerceis a vontade para detê-lo, isto é ainda produto do pensa
m ento. Se dizeis “ Não quero pensar dessa m aneira” — quem
é a entidade que diz “ Não q u ero ” ? O pensam ento — na espe
rança de que, fazendo cessar esse m ovim ento, alcançará um a
o utra coisa. Aí tem os, pois, mais um produto do pensam ento.
O pensam ento poderá “ p ro jetar” essa coisa e não ter a possibi
lidade de obtê-la; p or conseguinte, mais um a vez, o m edo.
Assim, perguntam os se toda essa atividade de pensam ento,
que produziu o m edo psicológico — não um a só espécie de
m edo, mas um a m ultidão de espécies — pode cessar natural
m ente, facilm ente, sem nenhum esforço.
Se se faz qualquer
esforço, esse esforço é ainda pensam ento e, conseqüentem ente,
gerador de m edo. C um pre achar um a m aneira de fazer o pensa
m ento deter-se naturalm ente e não mais criar m edo.
Estam os todos nós em comunicação — não apenas no nível
verbal? Podeis ter percebido claram ente a idéia, mas o que
nos interessa não é a com preensão verbal da idéia, e, sim, o
fato de terdes m edo em vossa vida diária. Não nos interessa
descrever a vossa vida; a descrição não é a realidade, a expli
cação não é a coisa explicada, a palavra não é a coisa que ela
representa. Vossa vida, vosso m edo não estão sendo descritos
pelas palavras do orador; m as, escutando-as, cabe-vos revelar a
vós m esm o o vosso m edo, e ver como o pensam ento gera esse
m edo.
Estam os perguntando se a atividade do pensam ento, que
gera, cria, sustenta e n u tre o tem or — pode cessar naturalm ente,
sem a m ínim a resistência. A ntes cie poderm os descobrir a ver
dadeira resposta, devem os exam inar tam bém o desejo de prazer;
porque, aqui tam bém , é o pensam ento quem sustenta o prazer.
Podeis ter fruído um m om ento deleitável; por exem plo, ao con
tem plardes, ontem , o m aravilhoso p ô r do Sol, sentistes um im en
so deleite. E n tra, então, em ação o pensam ento e diz: “ Como foi
belo aquilo; desejo repetir essa experiência am anhã.” A coisa
é a m esm a, quer se trate do p ô r do Sol, quer se trate de um a
lisonja que ouvistes, de um a experiência sexual, de algo que con
seguistes e sentis necessidade de conservar porque vos dá prazer.
H á o prazer derivado das próprias realizações, do próprio suces
so, o prazer da expectativa do que pretendeis fazer am anhã, da
repetição de algo que experim entastes, sexualm ente, ou artisti
cam ente.
A m oralidade social está baseada no prazer e, por conse
guinte, não é m oralidade; a m oralidade social é im oralidade. Mas
isso não significa que, se nos revoltarm os contra a m oralidade
social, nos tornarem os m orais. Se se deseja com preender e ficar
livre do m edo, deve-se tam bém com preender o prazer; são duas
coisas relacionadas. Com isso não quero dizer que devemos
renunciar ao prazer. As religiões organizadas — que sem pre
foram a praga da civilização — determ inam que devemos absternos do prazer, do sexo, aproxim ar-nos de Deus como entes
hum anos torturados. D eterm inam que não olhem os para um a
m ulher ou qualquer coisa que nos lem bre o sexo, etc. D izer
que não devem os ter prazer é dizer que não devem os ter desejo.
Assim , ao apresentar-se o desejo, abrim os a Bíblia, para fazê-lo
desaparecer; ou repetim os certas palavras do G ita. P uro contra-senso!
O m edo e o prazer são as duas faces de um a m esm a m oeda;
não podem os livrar-nos de um sem nos livrarm os do outro tam
bém . Desejais ter prazer toda a vossa vida e ao m esm o tem po
estar livre do m edo; só isso vos interessa. M as, não percebeis
que, se vos for negado o prazer de am anhã, vos sentireis frus
trado, não preenchido, irritado, ansioso, “ culpado” — terão
começo todas as aflições psicológicas. Assim , tendes de olhar
o m edo e o prazer conjuntam ente. Para com preenderdes o p ra
zer, cum pre tam bém com preender o que é alegria. P razer é
alegria? A alegria de existir não é um a coisa totalm ente dife
rente do prazer?
j á perguntam os se o pensam ento, com suas atividades gera
doras e m antenedoras do m edo e do prazer, pode cessar, n a tu
ralm ente e sem esforço algum. H á os tem ores inconscientes,
que têm um a influência m uito m aior em nossa vida que os tem o
res de que estam os conscientes. Com o irem os descobrir esses
tem ores inconscientes — expô-los à luz? P o r meio da análise?
Se disserdes “ Vou analisar os m eus tem ores” , que é, então, o
analista? N ão é ele próprio um a parte, um fragm ento do tem or?
P o rtan to , a análise de vossos próprios tem ores não terá valor
nenhum . O u se procurais um analista, este, tal como vós, está
tam bém condicionado — p or F reud, por Jung ou A dler: ele
faz a análise de acordo com seu condicionam ento e, por conse
guinte, não vos ajuda a livrar-vos do m edo. Com o dissemos
anteriorm ente, a análise é a negação da ação.
Sabendo que a análise é sem valor, como ireis descobrir
o m edo inconsciente? Se disserdes “ Exam inarei os m eus sonhos”
— torna a surgir o m esmo problem a. Q uem é a entidade que
irá exam inar os sonhos? Um fragm ento, dentre inúm eros frag
m entos. Assim, cabe-vos fazer um a pergunta inteiram ente dife
rente: “ P orque é que sonho?” — Os sonhos são m eram ente a
continuação das atividades do dia; está sem pre havendo ação,
de um a ou de o utra espécie. Com o pode essa atividade ser
com preendida e term inar?
Isto é, pode a m ente, durante o
dia, m anter-se tão desperta que seja capaz de observar todas as
suas “ m otivações” , todos os seus im pulsos, todas as suas com
plexidades, seus orgulhos, suãs ambições e frustrações, sua neces
sidade de preenchim ento, de se to rn ar “ im p o rtan te” , etc.? Pode
todo esse m ovim ento do pensam ento durante o dia ser obser
vado sem o “ observador” ? P orque se há um observador obser
vando, esse observador faz parte do pensam ento, que se separou
e atribuiu a si próprio autorização para observar.
Se observardes durante o dia o m ovim ento de vossas ativi
dades, de vossos pensam entos e sentim entos, sem interpretação,
vereis que os sonhos são m uito pouco significativos. E , então,
provavelm ente nunca mais tornareis a sonhar. Se, d u rante as
horas do dia, estiverdes desperto, e não m eio-acordado, meio-dorm indo, se não vos achais enredado em vossas crenças, vossos
preconceitos, vossas m esquinhas e absurdas vaidades, vossos
insignificantes conhecim entos, vereis que não só term inam os
sonhos, mas tam bém o próprio pensam ento começa a quietar-se.
O pensam ento está sem pre a buscar algum a coisa, a sus
ten tar o m edo ou a evitá-lo; produz, tam bém , o prazer, pelo
n u trir continuam ente a lem brança de um a experiência aprazível.
Vem o-nos aprisionados nessa rede do m edo e do prazer, fatores
de sofrim ento; como pode isso term inar? Com o poderá a m aqui
naria do pensam ento, que produz todo esse m ovim ento de prazer
e de m edo — deter-se, natu ralm ente? Eis o problem a. Q ue
cum pre fazer? A bandonar esse m ovim ento, ou continuar a viver
como antes, entre o prazer e a dor? — e essa é a própria caracte
rística da m ente m edíocre, pois é próprio da m ente m edíocre
viver enredada no m edo e no prazer. E nfrentai este problem a.
Com o ireis resolvê-lo? Vós tendes a obrigação de resolvê-lo,
se desejais um a vida de espécie totalm ente diferente, um a socie
dade diferente, um a nova m oralidade; tendes de resolver este
problem a. Se sois jovem , podeis dizer “ Ele é sem im portância” ,
“ C ontinuarei a ter o prazer “ do m om ento” , o m edo “ do m o
m en to ” . M as, ainda assim, o problem a se irá desenvolvendo,
e um belo dia nele vos vereis com pletam ente enredado. É vosso
problem a, e nenhum a autoridade pode resolvê-lo para vós. Já
tivestes autoridades — os sacerdotes e as autoridades psicoló
gicas — e eles não foram capazes de resolvê-lo; deram -vos meios
de fuga — • drogas, crenças, ritos. T udo isso vos ofereceram ,
mas jam ais resolveram o problem a básico do m edo e do prazer.
Cabe-vos resolvê-lo. Com o?
Q ue ides fazer?
Aplicai-lhe a
vossa m ente, já que ninguém pode resolvê-lo para vós. Ao com
preenderdes que ninguém pode resolvê-lo para vós, já estais
começando a livrar-vos da m ediocridade.
A m enos que resolvais esse problem a do m edo e do prazer,
é inevitável o sofrim ento — não só vosso sofrim ento pessoal,
mas tam bém o “ sofrim ento do m undo” . Sabeis o que é o
sofrim ento do m undo? Sabeis o que está acontecendo no m un
do? Não exteriorm ente — as guerras, os m alfeitos dos políticos
— mas interiorm ente, a m edonha solidão do hom em , suas p ro
fundas frustrações, a total falta de am or que se observa neste
m undo tão vasto, im piedoso, endurecido. Se não for resolvido
este problem a, o sofrim ento é inevitável. O tem po não o resol
verá. Não podeis dizer: “ Pensarei nisto am anhã” , “ Q uero fruir
o prazer do m om ento, ainda que acom panhado de m edo” , “ T udo
suportarei” . Q uem vai dar-vos a solução? Levantada esta ques
tão e vendo-se sua enorm e com plexidade e que nenhum poder
54
hum ano nem divino resolverá este problem a essencial, qual a
vossa reação? Q ue dizeis vós, senhores? N ão podeis responder,
podeis? Se sois verdadeiram ente honestos, se« não sois hipócritas
ou não estais tentando esquivar-vos, ao defrontar-vos com este
problem a, que é o problem a decisivo — nenhum a resposta ten
des. Assim , como descobrir a m aneira de pôr-lhe fim , n atural
m ente? —• sem se fazer uso de nenhum m étodo, porque todo
m étodo, obviam ente, exige tem po. Se alguém vos dá um m étodo,
um sistem a, e o pondes em prática, ele tornará vossa m ente
cada vez mais m ecânica e criará cada vez mais conflito entre
o q u e ê e o sistem a.
O sistem a prom ete um certo resultado,
mas o fato é que continuais com m edo; praticando o sistem a,
estais a afastar-vos cada vez mais de o q u e é ; p or conseguinte,
o conflito aum enta, consciente ou inconscientem ente.
Assim
sendo, que podeis fazer?
Agora, que sucedeu à m ente, depois de escutar o que se
disse, não se lim itando a ouvir palavras, mas e s c u ta n d o , com par
tilhando, com ungando, aprendendo? Q ue sucedeu à vossa m ente,
após e sc u ta r com intensa atenção a com plexidade do problem a,
percebendo seus próprios tem ores e vendo que o pensam ento
gera e n u tre tanto o m edo como o prazer, que sucedeu à m ente
que assim escutou? Essa m ente é agora de todo diferente do
que era no início desta palestra, ou é ainda a m esm a m ente
“ repetitiva” , enredada no prazer e no m edo? Possui ela agora
um a nova capacidade ? É ela agora um a m ente que não está
dizendo “ Tem os de p ô r fim ao m edo ou ao prazer” , porém
um a m ente que está aprendendo pela observação? N ão se to r
nou vossa m ente um pouco m ais sensível? A ntes, íeis levando
esta carga de m edo e de prazer; e agora, conhecendo o peso
da carga, não vos livrastes dela com toda a facilidade? N ão a
deixastes cair e, por conseguinte, estais agora andando m uito
cautelosam ente?
Se realm ente seguistes o que se disse, sim plesm ente a obser
var — não po r efeito de determ inação ou esforço — vossa m ente
se tornou sensível e, por conseguinte, m uito inteligente.
A
prim eira vez que o m edo surgir — e ele surgirá — a inteli
gência reagirá, mas não “ em term os d e” prazer, repressão ou
fuga. Essa inteligência ou sensibilidade nasceu do observar e
do depor a carga. Ela se tornou sum am ente viva; é capaz de
fazer um a pergunta com pletam ente diferente, ou seja: Se o
prazer não é a norm a da vida, como sempre foi para a m aioria
de nós, a vida é então estéril? Q uer dizer, não posso fruir as
delícias da vida?
Não há diferença entre prazer e alegria? A ntes, estivestes
vivendo pela norm a do prazer e do m edo — do prazer “ do
m om ento” , sexo, bebida, m atar um anim al para comer-lhe a
carne, etc. Foi sem pre esta a vossa norm a de vida e, agora,
descobris subitam ente que o prazer não é de m odo nenhum o
cam inho certo, porquanto conduz ao m edo, à frustração, à afli
ção, à tristeza, a perturbações sociais e pessoais, etc. Assim,
fazeis agora um a pergunta m uito diferente: “ E xiste um a alegria
não contam inada pelo pensam ento e pelo p razer?” P orque, se
contam inada pelo pensam ento, ela se tornará prazer e, portanto,
m edo. Assim , com preendidos o prazer e o m edo, existe um a
m aneira de viver, em cada dia, com alegria — e não a tran s
p o rtar o prazer e o m edo de dia para dia? — O lh ar aquelas
m ontanhas, a beleza do vale, a luz a brilhar nos m ontes, nas
árvores, no rio que corre, e sentir deleite nisso — sem dizerdes
“ Q ue coisa m aravilhosa!” , sem o pensam ento a servir-se dela
como m eio de prazer.
Podeis olhar para aquela m ontanha, para o m ovim ento de
um a árvore, para o rosto de um a m ulher ou de um hom em , e
achar nisso um extraordinário deleite. Isso, um a vez ocorrido,
está acabado. M as, se o transportardes no pensam ento, começa
então a dor e o prazer. Podeis olhar dessa m aneira e d ar a
coisa p or acabada? P restai m uita atenção a isso. Podeis olhar
para aquela m ontanha e bastar-vos esse deleite? Não o levardes
em pensam ento para am anhã, por perceberdes quanto isso é
perigoso? Podeis experim entar um grande prazer e dizer: “ Aca
b o u !” — m as, acabou de fato? Não está a m ente, consciente ou
inconscientem ente, a pensar nessa experiência, a desejar que se
repita?
Vedes, pois, que o pensam ento não tem absolutam ente nada
em com um com a alegria. Eis um im portantíssim o descobrim ento
feito p or vós. Não se trata de um a coisa que vos disseram , de
um a coisa escrita e interpretada para vós. H á enorm e diferença
entre deleite, alegria e bem -aventurança, a um lado, e o prazer,
a outro lado.
Não sei se alguma vez notastes que os prim itivos quadros
religiosos do m undo ocidental evitavam toda espécie de prazer dos
56
sentidos; neies n ã o se veem paisagens — sò o corpo hum ano
torturado, ou a Virgem M aria, etc. Não há, naqueles quadros,
paisagens, porque dá prazer vê-las e isso poderia desviar o in te
resse da pessoa na figura e seu sim bolism o. Só m uito mais
tarde introduziram -se as paisagens, coisas que na China e na
ín d ia sempre fizeram parte da vida.
Podeis observar tudo isso e encontrar a beleza do viver
sem esforço, do viver num grande êxtase, sem nenhum a inge
rência do prazer, do pensam ento e do m edo.
IN T E R R O G A N T E : Q uando sonho, às vezes
m ente como vai acontencer no fu tu ro . Sonhei
neste salão, pendurar ali a capa e ajustar o
foi, positivam ente, um sonho com um a coisa
na m anhã seguinte.
vejo algo exata
que vos vi entrar
m icrofone. Isso
que ia acontecer
K R IS H N A M U R T I: Como explicar isso? — E m prim eiro lugar,
porque atribuís tanta im portância ao que vai acontecer no fu tu
ro? P orquê? O s astrólogos, os adivinhos, os quirom antes —
quantas coisas m aravilhosas vos prom etem esses hom ens! P o r
que tanto interesse no fu tu ro ? P orque não vos interessa o viver
real de cada dia, que tantos tesouros encerra — e não os vedes?
O ra, depois de terdes escutado o que aqui se disse, a m ente se
tornou sensível em certo grau — não digo com pletam ente sen
sível, porém “ sensível num certo grau” — e, naturalm ente, capaz
de observar m ais, seja do am anhã, seja do hoje. Isso é como
olhar para baixo, de um avião, e ver dois barcos que se apro
xim am um do outro de diferentes direções, no mesm o rio; vê-se
que eles se encontrarão num certo pon to — e isso é o futuro. A
m ente, tendo-se tornado um pouco mais sensível, pode estar
cônscia de coisas que poderão acontecer am anhã, bem como
daquelas que estão ocorrendo agora. Em geral dam os enorm e
im portância ao que vai acontecer am anhã, e tão pouca ao que
está acontecendo agora! M as, se aprofundardes bem esta m até
ria, descobrireis que nada a co n tece', todo a c o n te c im e n to é um a
parte da vida. P orque desejais qualquer experiência? A m ente
que é sensível, ativa, com pletam ente lúcida, tem ela necessidade
de “ experiência” ? R espondei vós m esm o a esta pergunta.
IN T E R R O G A N T E : Dizeis-nos que observem os nossas ações na
vida de cada dia, mas quem é a entidade que decide sobre o
57
que se deve observar, e quando?
m os observar?
Q uem é que decide que deve
K R IS H N A M U R T I: Vós “ decidis” observar? O u sim plesm ente
observais? Tom ais a decisão e dizeis “ V ou observar e apren
d e r” ? P orque, nesse caso, pergunta-se “ Q uem é que está deci
d in d o ? ” A vontade, que díz “ D evo” ? E , quando ela falha, ela
se disciplina, a dizer “ devo, devo, devo” ; nisso há conflito; por
conseguinte, o estado da m ente que decidiu observar não é de
m odo nenhum um estado de observação.
Ides cam inhando pela estrada, alguém passa p or vós e o
observais, e provavelm ente dizeis para vós m esm o: “ Como é
feio; que cheiro ele tem ; ele não devia fazer isto ou aquilo.”
E stais cônscio de vossas reações àquele passante, estais cônscio
de que estais julgando, condenando ou justificando; estais obser
vando. N ão dizeis “ Não devo julgar, não devo justificar” . Pelo
fato de estardes cônscio de vossas reações, não há decisão nenhu
m a. Vedes alguém que ontem vos insultou. Logo vos ouriçais
todo, ficais nervoso ou ansioso, começais a detestar; ficai côns
cio de vossa aversão, ficai cônscio de tudo o m ais, não “ decidais”
ficar cônscio. O bservai, e nessa observação não haverá “ o obser
v ad o r” nem “ coisa observada” — só haverá observação.
Só
existe o “ observador” quando, na observação, acum ulam os; Se
dizeis: “ E le é m eu amigo porque me disse coisas lisonjeiras” ,
ou “ Ele não é m eu amigo, porque falou m al de m im ou disse-me
alguma verdade de que não gosto” — isso é acumulação por
m eio da observação, e essa acumulação é o observador. Q uando
observam os sem nenhum a acumulação, não há julgam ento. Isso
podeis fazer a todas as horas; nessa observação, naturalm ente,
tomam -se certas decisões definidas, mas tais decisões são resul
tados naturais e não decisões tom adas pelo observador que
acum ulou.
IN T E R R O G A N T E : D issestes, no começo, que a reação instin
tiva de autoproteção, diante de um anim al selvagem, é inteligên
cia, e não m edo, e que o pensam ento que gera m edo é inteira
m ente diferente.
K R IS H N A M U R T I: N ão são diferentes? Não vedes a diferença
entre o pensam ento que gera e n u tre o m edo, e a inteligência
que diz “ C uidado!”
O pensam ento criou o nacionalism o, o
58
preconceito racial a aceitação de certos valores m orais; mas o
pensam ento não vê a periculosidade dessas coisas. Se a visse,
haveria então a reação, não de m edo, mas da inteligência, reação
que seria idêntica à do encontro com um a serpente. D iante da
serpente, há um a reação natural de autoproteção; diante do
nacionalism o, que é p ro d u to do pensam ento, que separa os ho
m ens, e é um a das causas da guerra, o pensam ento não vê o
perigo.
26 de julho de 1970.
6
A A T IV ID A D E M E C Â N IC A
D O PE N SA M E N T O
“ A m ente que com preendeu o in teiro m ovim ento do
pensam ento torna-se sobrem odo quieta, absolutam ente
silenciosa.”
E s t iv e m o s falando sobre a im portância do pensa
m ento e ao m esm o tem po de sua não im portância; de como o
pensam ento é capaz de enorm e atividade e, dentro de seu próprio
campo, só tem liberdade lim itada. Falam os tam bém acerca de
um estado m ental totalm ente descondicionado. N esta m anhã,
podem os considerar esta questão do condicionam ento — não
apenas o condicionam ento cultural, superficial, mas tam bém con
siderar porque há condicionam ento. Podem os investigar a n atu
reza da m ente não condicionada, da m ente que transcendeu todo
condicionam ento. Cum pre-nos p enetrar bem fundo nesta ques
tão, a fim de descobrirm os o que é o am or. E , com preendendo
o que é o am or, estarem os aptos a com preender a pleno o signi
ficado da m orte.
Assim , em prim eiro lugar, tratem os de averiguar se a m ente
pode tornar-se total e com pletam ente livre de condicionam ento.
É bem óbvio que somos condicionados superficialm ente pela
cultura, pela sociedade, pela propaganda de que nos vemos rodea
dos, e tam bém pela nacionalidade, por determ inada religião, pela
educação e pelas influências am bientes. Parece-m e bastante fácil
e sim ples ver como a m aioria dos entes hum anos, de todos os
60
países e raças, estão condicionados pelas respectivas culturas e
religiões. São eles m oldados e m antidos d entro de um determ i
nado padrão. Esse condicionam ento é bastante fácil de rejeitar.
M as, há o condicionam ento mais profundo, como, por
exem plo, um a atitude agressiva perante a vida. A agressividade
im plica tendência de dom ínio, busca de poder, de posses, de
prestígio. P ara nos libertarm os desse condicionam ento, tem os
de m ergulhar bem fundo em nós m esmos, porquanto ele é
m uito sutil e m ultiform e. Pode um a pessoa julgar que não é
agressiva, mas, se declarada ou não declaradam ente, ela tem
algum ideal, ou opinião, ou escala de valores, existe então um a
tendência para a arrogância, que se tornará gradualm ente agres
siva e violenta. Q ualquer um pode observar isso em si mesm o.
A trás da própria palavra “ agressividade” — ainda que a pronun
ciemos m uito docem ente — há um certo im pulso, um a ativi
dade furtiva e predom inante, im periosa, a qual se torna cruel
e violenta. Esse condicionam ento agressivo precisa ser desco
b erto , para verm os se o herdam os do anim al ou se nos tornam os
agressivos pelo prazer de nos im porm os aos outros, de tomar-lhes
a frente.
O u tra form a de condicionam ento é o que resulta da com
paração: “ com param o-nos” com aquilo que consideram os nobre
ou heróico, com o que gostaríam os de ser, em oposição ao que
realm ente somos. A atividade com parativa é um a form a de
condicionam ento; essa atividade, por sua vez, é extrem am ente
sutil. Com paro-m e com alguém que é um pouco mais in teli
gente ou fisicam ente mais belo do que eu. Secreta ou aberta
m ente, há, em vosso interior, um constante m onólogo de
caráter com parativo. O bservai isso em vós m esm o. O nde há
comparação, há sempre um a certa form a de agressividade, um a
determ inação de conseguir o que querem os, e, quando não o
conseguimos, um sentim ento de frustração, de inferioridade.
D esde a infância somos condicionados para com parar.
Nosso
sistem a educativo baseia-se na com paração — dar notas, fazer
exames. Q uando nos com param os com alguém que é mais in te
ligente, sentim os inveja, despeito, e segue-se o conflito. Com
paração im plica m edida; estou a m edir-m e, em comparação com
um a coisa que se me afigura m elhor ou mais nobre.
Pergunta-se: “ Pode a m ente libertar-se desse condiciona
m ento social e cultural, desse m edir e com parar, do condiciona
61
m ento de m edo, de prazer, de recom pensa e de castigo? Nossas
estruturas m orais e religiosas baseiam-se totalm ente nesse condi
cionam ento. P o r que razão somos condicionados? Vem os as
influências externas que nos estão condicionando e, interior
m ente, a “ voluntária necessidade” de sermos condicionados.
P orque aceitam os tal condicionam ento?
P orque se deixou a
m ente condicionar? Q ual o fato r que está atrás de tudo isso?
P o r que razão eu, nascido num certo país, num a certa cultura,
que m e denom ino hindu, com toda a carga de superstição e tra
dição im posta pela fam ília, pela sociedade — por que razão
aceito esse condicionam ento?
Q ual o im pulso existente atrás
disso? Q ual o fato r que constantem ente exige, aceita, cede ou
resiste a esse condicionam ento? Vem os que desejam os estar em
segurança, num a sociedade que está seguindo determ inado pa
drão. Se não observam os esse padrão, podem os perder nosso
em prego, ficar sem dinheiro, não serm os considerados entes
hum anos respeitáveis. C ontra ele nasce a revolta, e essa revolta
form a o seu peculiar condicionam ento — como está aconte
cendo com a m aioria dos jovens, hoje em dia. D evem os desco
b rir esse im pulso que nos faz ajustar-nos a um padrão.
A
m enos que, por nós m esm os, o descubram os, perm anecerem os
condicionados, de um a ou de o utra m aneira, positiva ou nega
tivam ente. D o nascim ento à m orte, vemos esse processo conti
nuam ente em vigor. Pode um a pessoa revoltar-se contra ele,
buscar refúgio noutro condicionam ento, recolher-se a um m os
teiro, como fazem certos indivíduos que devotam sua vida à
contem plação, à filosofia, mas o m ovim ento é sem pre o m esm o.
Q ue m ecanism o é esse que se acha em constante m ovim ento,
ajustando-se a diferentes form as de condicionam ento?
O pensam ento está perpetuam ente condicionado, já que é
reação cio passado, como m em ória.
O pensam ento é sem pre
m ecânico; facilm ente deixa-se cair num padrão, num a rotina;
e pensais, então, estar em extraordinária atividade — na rotina
católica, na rotina com unista, ou n outra qualquer. Essa é a
coisa mais fácil e mecânica que se pode fazer; e pensam os estar
vivendo! Assim, em bora o pensam ento desfrute, em seu p ró
prio cam po, um a certa e lim itada liberdade, tudo o que ele faz
é mecânico. Afinal de contas, um a viagem à Lua é um a coisa
perfeitam ente mecânica, já que é o resultado da ciência acum u
lada pelos séculos em fora. O cultivo do pensam ento técnico
62
pode levar-vos à Lua ou ao fundo do m ar, etc. A m ente quer
estar seguindo um a rotina, quer ser m ecânica, pois assim há
proteção, segurança, e não há perturbações. O viver m ecanica
m ente não é apenas estim ulado pela sociedade, mas tam bém por
cada um de nós, porque esta é a m aneira m ais fácil de viver.
Assim , o pensam ento, sendo um a atividade m ecânica, “ repe
titiv a” , aceita qualquer form a de condicionam ento que lhe possi
bilite continuar em sua atividade m ecânica. U m filósofo inventa
uma nova teoria, um econom ista um novo sistem a — e aceita
mos tal rotina e ficamos a segui-la. N ossa sociedade, nossa
cultura, nossas inspirações religiosas, tudo parece funcionar m eca
nicam ente, em bora nos proporcione um a certa e estim ulante
sensação.
Q uando ides à missa, encontrais um determ inado
enlevo, um a certa emoção, que se torna o padrão. Não sei se
algum a vez experim entastes esta coisa — fazei-a, um a vez, para
verdes como é “ engraçada” : pegai um pedaço de pau ou um a
pedra — qualquer um a serve, desde que tenha alguma form a
— colocai-a sobre a lareira e todas as m anhãs depositai a seu
lado um a flor; d entro de um mês vos tereis habituado a ver
essa coisa como um sím bolo religioso e já começastes a indentificar-vos com ela.
O pensam ento é reação do passado. Se um a pessoa apren
deu engenharia, como profissão, pode aum entar e ajustar esse
conhecim ento, mas ficará fixada nesse ram o de atividade; a
m esm a coisa, se a pessoa se form ou em m edicina, etc. O pensa
m ento tem um a certa liberdade d entro de um dado cam po,
mas fica sem pre lim itado a seu funcionam ento m ecânico. E stais
vendo isso, não apenas verbal ou intelectualm ente, porém de
fato?
E stais tão cônscio disso como estais cônscio de ouvir
aquele trem ? ( b a ru lh o d e u m tr e m q u e p a s s a ).
Pode a m ente libertar-se dos hábitos que cultivou, de certas
opiniões, juízos, atitudes e valores? Q uer dizer, pode a m ente
libertar-se do pensam ento?
Se isso não ficar bem com preen
dido, então o que vou dizer sobre o próxim o assunto que vamos
exam inar, nada significará. A com preensão deste ponto conduz,
inevitavelm ente, à seguinte questão: Se o pensam ento é m ecâ
nico, se conduz forçosam ente ao condicionam ento da m ente, que
é então o am or? O am or é p ro d u to do pensam ento? É o am or
nutrido, cultivado, pelo pensam ento, dependente do pensam ento?
63
Q ue é o am or? — mas, tenha-se em m ente que a descrição
não é a coisa descrita, a palavra não é a coisa. P ode a m ente
libertar-se da atividade m ecânica do pensam ento, a fim de desco
b rir o que é o am or? Para a m aioria de nós, o am or está asso
ciado, ou igualado ao sexo. Essa é um a form a de condiciona
m ento. Ao investigardes essa coisa realm ente tão complexa,
intricada e sum am ente bela, deveis ver o quanto a palavra “ sexo”
condicionou a m ente.
Dizem os que não querem os m atar, que não irem os para o
V ietnã ou outro lugar, para m atar gente; mas não nos im por
tam os de m atar anim ais. Se vós m esmo tivésseis de m atar um
anim al, para vossa alim entação, e vísseis quanto isso é horrível,
seríeis capaz de com er esse anim al? D uvido m uito. M as não
vos im portais que o carniceiro o m ate, para vós o com erdes;
quanta hipocrisia!
Perguntam os, pois, não só o que é o am or, mas tam bém
o que é a com paixão. N a cultura cristã, os animais não têm
alm a, foram postos na T erra po r D eus, para vós os com erdes;
tal é o condicionam ento cristão. E m certas partes da ín d ia,
é pecado m atar — m atar um a m osca, um anim al, qualquer ser.
Lá, p o rtan to , não m atam o mais insignificante inseto, vão ao
extrem o do exagero; esse é o condicionam ento deles.
E há
os que são contra a vivissecção e, contudo, ostentam suntuosos
casacos de peles — a m esm a hipocrisia p or toda a parte!
Q ue significa ser com passivo? Ser com passivo, não apenas
verbalm ente, mas de fato? A compaixão é questão de hábito,
de pensam ento, questão de repetição mecânica da ação bondosa,
cortês, delicada, terna? Pode a m ente, que se acha toda en tre
gue à atividade do pensam ento, com seu condicionam ento, sua
repetição m ecânica, ser compassiva, por pouco que seja? P oderá
falar de compaixão, aprovar a reform a social, ser generosa para
com os “ pobres pagãos” , etc.; mas, isso é com paixão? Q uando
o pensam ento dita, quando o pensam ento está ativo, pode haver
algum lugar para a com paixão? — sendo a compaixão ação sem
m otivo, sem interesse egoísta, sem nenhum a idéia de m edo,
nenhum a idéia de prazer.
Assim , pergunta-se “ O am or é p razer?” — o sexo, decerto,
é prazer. Nós achamos prazer na violência, achamos prazer em
realizar algum a coisa im portante, na arrogância, na agressividade.
64
Acham os tam bém prazer em ser “ im p o rtan tes” . E tudo isso é
produto do pensam ento, p roduto da m edição: “ E u fui aquilo”
e “ E u serei isto ” . O prazer (n o sentido em que dele estam os
falando) é am or? Com o pode a m ente que se acha toda e n tre
gue ao hábito, à m edição e à com paração, saber o que é am or?
Podem os dizer que o am or é isto ou aquilo — mas tudo isso é
p ro d u to do pensam ento.
Dessa observação vem a questão: Q ue é a m orte? Q ue
significa isto — m orrer? M orrer deve ser a mais m aravilhosa
das experiências! D eve significar que um a coisa chegou com ple
tam ente a seu fim . O m ovim ento que fora desencadeado —
conflito, luta, confusão, desesperos e frustrações — cessou subi
tam ente. A atividade do hom em que quer tornar-se fam oso,
que é arrogante, violento, b ru tal — essa atividade é interrom
pida. Já notastes que tudo o que tem continuidade psicológica
se torna m ecânico, “ rep etitiv o ” ? Só quando cessa a continuidade
psicológica, surge alguma coisa totalm ente nova; isso podeis
observar em vós m esm o. Criação não é a continuidade do que
é ou do que f o i, mas o findar dessa continuidade.
O ra, pode-se m orrer psicologicam ente? E ntendeis esta p er
gunta? Podeis m orrer para o conhecido, m orrer para o que
f o i — não com o fim de vos tornardes o u tra coisa —- sendo
esse m orrer o fim do conhecido, a libertação do conhecido?
A final de contas, a m orte é isso.
O organism o físico, naturalm ente, m orrerá; dele se abusou,
foi subm etido a m al tratos e frustrações; com eu e bebeu coisas
de toda espécie. Vós sabeis de que m aneira viveis, e pelo m esm o
cam inho continuareis até ele (o organism o físico) perecer. O
corpo, po r m otivo de acidente, de velhice, de doença, da tensão
da constante batalha em ocional, no interior e no exterior, se
deform a, torna-se feio, e m orre. Nesse m orrer há autocom paixão,
e ela existe tam bém quando o u tra pessoa m orre. Q uando m orre
alguém que pensam os am ar, não há em nossa tristeza um a grande
porção de m edo? P orque nos vem os sós, abertos a nós mes
m os, sem ninguém para nos am parar, nos dar conforto. Nossa
tristeza é toda mesclada dessa autocom paixão e desse m edo e,
naturalm ente, nessa incerteza, aceitam os qualquer espécie de
crença.
3
65
A Ásia inteira crê na reencarnação, no renascer em o utra
vida. Se indagam os o que é que vai renascer na próxim a vida,
deparam -se-nos dificuldades. Q ue é que vai renascer? Vossa
pessoa? Q ue sois vós? — um m onte de palavras, de opiniões,
apego a vossas posses, a vossos m óveis, vosso condicionam ento.
Esse m onte de coisas, que chamais vossa alma, vai renascer na
próxim a vida? Reencarnação im plica que o que hoje sois deter
m ina o que sereis na próxim a vida. P o rtan to , com portai-vos
bem! — não am anhã, mas hoje, porque pelo que hoje fazeis
ides pagar na próxim a vida. Os que creem na reencarnação
pouco se im portam com seu com portam ento; trata-se de um a
m era crença, sem valor nenhum . Reencarnai-vos hoje, renovaivos hoje, e não na próxim a vida! M udai com pletam ente e s ta
v id a , agora; m udai-a com um a grande paixão, fazei a m ente
despojar-se de todas as coisas, de todos os condicionam entos, de
todos os conhecim entos, de tudo o que pensar ser “ correto” ;
esvaziai-a. Sabereis então o que significa m orrer; sabereis então
o que é o am or. P orque o am or não pertence ao passado, ao
pensam ento, à cultura; não é, tam pouco, prazer. A m ente que
com preendeu o inteiro m ovim ento do pensam ento se torna sobre
m odo quieta, absolutam ente silenciosa. Esse silêncio é o começo
do novo.
IN T E R R O G A N T E : Senhor, pode o am or ter objeto?
K R IS H N A M U R T I: Q u e m está fazendo essa pergunta? O pen
sam ento ou o am or? Não é o am or. Q uando amais, amais!
— não perguntais: “ E xiste objeto ou nenhum objeto, o am or
é pessoal ou im pessoal?” . O h! vós não sabeis o que ele signi
fica, não conheceis a sua beleza. O am or, tal como o conhe
cemos, é um torm ento, nossas m útuas relações, um m edonho
conflito. Nosso am or está baseado na imagem que tendes de
m im , e na imagem que tenho de vós. Olhai-o m ui atentam ente,
olhai a relação existente en tre essas duas imagens isoladas, que
dizem um a para a o utra “ N ós nos am am os” . As im agens são
p roduto do passado, das lem branças, lem branças do que me dis
sestes e do que eu vos disse. Essa relação entre as duas imagens
há de ser, forçosam ente, um processo de isolam ento. Eis o que
chamamos “ relação” . E star em relação significa “ estar em con
ta to ” — não apenas fisicam ente — e esse contato não é possível
quando existe alguma im agem, quando há o processo de auto-
66
-isolam ento do pensam ento, que é o “ e u ” e o “ vós” . Pergun
tam os “ Tem o am or algum objeto? É o am or divino ou p ro
fan o ? ” — Senhor, quando amais, não estais dando nem rece
bendo.
IN T E R R O G A N T E : Q uando penetram os as palavras “ beleza” e
“ am or” , não desaparecem todas essas divisões?
K R IS H N A M U R T I: Algum a vez estivestes sentado, não a sonhar
acordado, porém m uito quieto e plenam ente desperto? Nessa
vigilância, não há verbalização, não há escolha, nem repressão
ou diretriz. Q uando o corpo está inteiram ente descontraído, já
notastes o silêncio que vem ? E sta questão requer m uita inves
tigação, porque nossa m ente nunca está quieta, está sem pre a
fazer barulho e, p or conseguinte, dividida. Nós dividim os a vida
em fragm entos.
Pode essa fragm entação term inar? Sabendo que o pensa
m ento é o responsável p or ela, perguntam os “ Pode o pensam en
to tornar-se com pletam ente silencioso e, todavia, reagir, quan
do necessário, sem violência, objetivam ente, sãm ente, racional
m ente — deixando, ao m esm o tem po, predom inar esse silêncio?
E ste é o único cam inho a seguir: descobrirdes p o r vós m esm o
aquela m ente que não tem fragm entos, que não está fracionada
como “ vós” e “ c u ” .
IN T E R R O G A N T E : Senhor, o ato de m atar um a mosca acha-se
no mesm o nível que o ato de m atar um anim al ou um ente
hum ano?
K R IS H N A M U R T I: Senhor, onde começareis a com preensão de
m atar? Dizeis que não quereis ir para a guerra, que não quereis
m atar entes hum anos ( não sei se de fato o dizeis — isso depende
de v ó s), mas não tendes escrúpulo em tom ar partidos ■
— vosso
grupo e m eu grupo. Não vos im portais de crer num a coisa e
de defender o que credes. Não tendes escrúpulo em m atar entes
hum anos com um a palavra, um gesto — e tendes tanto escrú
pulo em m atar um a mosca! H á anos, este orador esteve num
país onde o budism o é a religião professada. Se sois budista
praticante, sabeis que um dos princípios reconhecidos é o de
não m atar. Duas pessoas vieram visitar o orador, dizendo “ T e
mos um problem a: Não querem os m atar.
Somos fervorosos
67
budistas, e fom os criados para não m atar; m as, nós gostam os
de ovos, e não querem os m atar um ovo fecundado; que devemos
fazer?” Com preendeis? A m enos que, interiorm ente, vos esteja
bem claro o significado de m atar •— não apenas com um fuzil,
mas com um a palavra, p or gestos, pela divisão, pelo dizermos
“ m inha p á tria ” , “ vossa p átria” , “ m eu D eus” , “ vosso D eus” —
continuar-se-á inevitavelm ente a m atar, de alguma m aneira. Não
façais tanto “ b arulho” sobre a questão de m atar um a mosca,
para depois irdes m atar o vosso sem elhante com um a palavra.
E ste que vos fala jam ais com eu carne em sua vida, não
sabe sequer que gosto ela tem e, no entanto, usa sapatos de
couro. E le tem de viver, como vós outros, e, em bora, de cora
ção, não deseje m atar nada, não deseje ferir ninguém , é obrigado
a “ m atar” os legum es que come. ÍPorque, se um a pessoa não
come, acaba depressa. Deve cada um investigar com toda a
clareza e sem nenhum a escolha, nenhum preconceito; cada um
tem de ser altam ente sensível e inteligente, e deixar essa in teli
gência agir — em vez de dizer “ não quero m atar m oscas” e,
contudo, dizer coisas brutais a respeito do próprio m arido.
28 de julho de 1970.
68
7
RELIGIÃO
“ Religião é a força que conduz a um a vida sem frag
m entação.”
ONs id e r e m o s nesta m anhã o problem a da reli
gião. M uitas pessoas desadoram esta palavra, reputando-a “ fora
de m oda” e de m ui pouca significação no m undo m oderno. E
há os “ religiosos de fim de sem ana” , que vestem suas m elhores
roupas no dom ingo de m anhã, e fazem todo o m al que podem
no correr da semana. M as, quando n ó s (* ) em pregam os a pala
vra “ religião” , não estam os de m odo nenhum interessado em
religiões organizadas, igrejas, dogm as, rituais, ou na autoridade
dos salvadores, representantes de D eus, etc. Estam o-nos refe
rindo a coisa m uito diferente.
O s entes hum anos, no passado como no presente, sem pre
indagaram se existe um a coisa transcendental, m uito m ais real
que a existência de todos os dias, com sua tediosa rotina, sua
violência, seus desesperos e tristezas.
M as, não conseguindo
achá-la, começaram a adorar um sím bolo, atribuindo-lhe enorm e
significado.
P ara descobrirm os se existe realm ente alguma coisa verda
deira e sagrada (em prego essa palavra com alguma hesitação),
(* ) K rishnam urti refere-se a si próprio (evita quase sem pre a p ri
meira pessoa ( “ I ” — “e u ” ) d i z e n d o “ nós” , “ o orador”, e tc .). (N . do T .)
69
devem os procurar, não um a certa coisa concebida pelo desejo
e a esperança, pelo m edo e a ansiedade, não um a coisa depen
dente do am biente, da cultura e da educação — porém algo
que o pensam ento jam ais atingiu, algo que seja total e inaudita
m ente novo. Talvez possam os nesta m anhã aplicar algum tem po
em investigar este assunto, tentando descobrir se existe essa
im ensidade, esse êxtase, essa vida inextinguível; se não fizer
esse descobrim ento, p or mais virtuosa, por m ais regrada, por
m ais “ não violenta” que seja a pessoa, *a vida, em si, pouco
significará. A religião —• no sentido em que estam os em pregando
a palavra, o qual não com preende nenhum a espécie de m edo ou
crença — é a força que conduz a um a vida sem fragm entação.
Se vamos investigar esta questão, não só devemos estar livres
de toda crença, mas tam bém perceber claram ente o caráter deform ador de toda espécie de esforço, de direção e finalidade. Vede
quanto isso é im portante; se estais verdadeiram ente interessados
nesta m atéria, m uito im porta com preender que qualquer espécie
de esforço deform a a percepção direta; e, tam bém , que toda
form a de repressão, toda form a de diretiva oriunda de escolha,
de propósitos fixos, criados p o r nossos próprios desejos, igual
m ente deform am a percepção direta. T udo isso torna a m ente
incapaz de ver as coisas como são.
P ara investigar esta questão, ou seja o que é a verdade,
se existe isso que se cham a “ ilum inação” , se algum a coisa existe
com pletam ente independente do tem po, um a realidade não depen
dente de nossos próprios desejos — necessita-se de liberdade,
de um a certa espécie de ordem . Em geral, associamos a ordem à
disciplina — sendo disciplina obediência, im itação, ajustam ento,
repressão, etc.; forçar a m ente a seguir um a determ inada linha
de conduta, um padrão considerado “ m oral” . M as, a ordem nada
tem em com um com a disciplina; a ordem nasce, natural e inevi
tavelm ente, quando com preendem os todos os fatores p ertu rb a
dores, as desordens e conflitos que estão ocorrendo continua
m ente, d entro e fora de nós mesm os. Q uando nos tornam os
cônscios dessa desordem , vendo todos os m ales que ocasiona,
o ódio existente en tre os hom ens, suas atividades de com pa
ração — nasce então a ordem ; e esta nada tem que ver com a
disciplina. Necessitam os de ordem ; afinal de contas, ordem é
virtu d e (palavra de que talvez não gosteis). A virtu d e não é
cultivável; se criada pelo pensam ento, pela vontade, se resultado
70
de repressão, já não é virtude. M as, se com preenderdes o estado
de desordem de vossa vida, a confusão, a to ta l inanidade de
nossa existência, se perceberdes todos esses fatos bem clara
m ente — não apenas intelectual e verbalm ente — sem conde
ná-los, sem deles fugir, porém observando-os na vida, então,
desse percebim ento e observação nasce, naturalm ente, a ordem
— que é virtude. Essa v irtude é inteiram ente diferente da vir
tude social, com sua respeitabilidade, suas sanções religiosas e
sua hipocrisia; inteiram ente diferente da disciplina que a nós
mesmos im pom os.
É indispensável a ordem , para que possam os descobrir se
há — ou não há — um a realidade não dependente do tem po,
um a realidade incorruptível, não dependente de coisa algum a. Se
realm ente vos interessa a ordem , que é um a parte de nossa
vida tão im portante como o ganho do sustento, a busca de
prazer — um a p arte essencial de nossa vida — percebereis então
que ela só pode ser descoberta pela m editação. Segundo o dicio
nário, a palavra “ m editação” significa “ ponderar, refletir, inqui
r ir ” — ■o que requer um a m ente capaz de observar, um a m ente
inteligente, sã, não pervertida ou neurótica, e que não espera
receber “ de algum lugar” um a certa coisa.
E xiste algum m étodo, algum sistem a, algum caminho a per
correr, para chegarm os à com preensão do que é m editação, do
que é a percepção da realidade? Infelizm ente, há certas pessoas
vindas do O riente com seus sistemas e m étodos e que nos dizem:
“ Fazei isto ” , “ N ão façais aquilo” , “ P raticai o Zen, e alcançareis
a ilum inação” . Alguns de vós talvez já tenham ido à ín d ia ou
ao Japão, e lá passado anos a estudar, a disciplinar-se, concen
trando a atenção no dedo grande do pé ou no nariz, a exercitar-se
interm inavelm ente, a repetir palavras que têm a v irtude de quie
tar a m ente, para, nessa quietação, terem a percepção de algo
transcendente ao pensam ento. Tais artifícios podem ser p rati
cados po r um a m ente que se to rn o u m u ito estúpida e em bo
tada. E m prego a palavra “ estúpido” com o sentido de “ en to r
pecido” ! * ) — um a m ente entorpecida. Só essa m ente é capaz de
praticar tais artifícios. As coisas de que estam os tratando talvez
(* ) Cf. dicionário “J. Seguier” : “ e s t ú p i d o : entorpecido, paralisado” .
(N . do T .)
71
não vos interessem , mas deveis descobri-las. Depois de as ouvir
des m uito atentam ente, talvez tenhais vontade de sair pelo m un
do a ensiná-las; tal pode ser a vossa m issão, na vida — e eu
espero que seja. Cum pre-vos conhecer a pleno a substância, o
significado, a riqueza, a beleza, o êxtase das coisas de que esta
m os falando.
A m ente em botada, a m ente entorpecida pela disciplina,
não pode, em circunstância algum a, com preender o que é a reali
dade. Tem os de libertar-nos com pleta e totalm ente do pensa
m ento. Necessitam os de um a m ente não deform ada, m uito lúci
da, m ente não em botada — e que não esteja seguindo nenhum a
diretiva ou propósito. P erguntareis: “ É possível alcançar esse
estado m ental em que não há experim entar?” — “ E xp erim en tar”
im plica um a entidade que está experim entando, p or conseguinte,
dualidade: o experim entador e a coisa experim entada, o obser
vador e a coisa observada. Q uase todos nós desejam os um a
certa experiência profunda, m aravilhosa, m ística; nossas expe
riências de cada dia são tão triviais, tão banais e superficiais,
que desejam os algo de “ eletrizante” . Nessa extravagante idéia
de term os um a experiência m aravilhosa encerra-se a duali
dade representada pelo “ experim entador” e a “ experiência” .
E nq u an to ex istir essa dualidade, haverá deform ação; porque o
experim entador é o passado, com todos os conhecim entos e m e
m órias nele acum ulados. Insatisfeito com as atuais experiências,
deseja ele um a experiência m uito m ais grandiosa, “ projeta-a”
com o idéia e trata de alcançar essa “ projeção” : mais um a vez,
dualidade e deform ação.
A verdade não é um a coisa que se possa experim entar. A
verdade não pode ser buscada e achada. E stá fora do tem po.
E o pensam ento, que é tem po, nenhum a possibilidade tem de
buscá-la e “ pegá-la” . P o rtan to , é necessário com preender p ro
fundam ente essa questão do desejo de experiência. V ede, por
favor, quanto isso é im portante. Q ualquer form a d e esforço,
de desejo, de busca da verdade, de exigência de experiência, é
o observador a querer algo transcendental e a esforçar-se por
alcançá-lo; sua m ente, po r conseguinte, não é lúcida, incorrom pida, não-m ecânica. Q uando a m ente está a buscar um a expe
riência, po r mais m aravilhosa que seja, isso significa que o “ eu”
a está buscando — o “ e u ” , que é o passado, com todas as suas
frustrações, aflições, esperanças.
72
O bservai, p or vós m esm o, com o funciona o cérebro. Ele
é o depósito da m em ória, do passado. Essa m em ória está sem
pre a reagir, “ gostando” e “ não gostando” , justificando, conde
nando, etc.; a reagir de acordo com seu condicionam ento, de
acordo com a cultura, a religião, a educação, nela arm azenadas.
Esse depósito, de onde surge o pensam ento, guia a m aior parte
de nossa vida. E stá dirigindo e m oldando nossa vida, a cada
m inuto do dia, consciente ou inconscientem ente; está gerando
pensam ento, gerando o “ eu” , que é a essência mesma do pensa
m ento e das palavras. Pode esse cérebro, com seu conteúdo —
o “ velho” — tornar-se com pletam ente quieto — só despertando
quando necessário operar, funcionar, falar, agir, porém , a m aior
p arte do tem po, com pletam ente estéril?
M editação é descobrir se o cérebro, com todas as suas expe
riências, pode tornar-se absolutam ente quieto. N ão forçado a
isso, porque, no m om ento em que o forçam os, torna a surgir
a dualidade, a entidade que diz “ E u gostaria de ter experiências
m aravilhosas e, p ortanto, tenho de obrigar o m eu cérebro a quietar-se.” N unca o conseguirá! M as, se com eçardes a investigar,
a olhar, a observar, a “ escutar” todos os m ovim entos do pensa
m ento, seu condicionam ento, seus alvos, seus tem ores e prazeres;
observar como o cérebro funciona — vereis então que ele se
tornará sobrem odo quieto; essa quietação não é um estado de
sono, pois o cérebro se acha então sum am ente ativo e, portanto,
em silêncio. Um dínam o grande, em perfeito estado de funcio
nam ento, quase não faz barulho; só quando há atrito, há barulho.
Cum pre-nos descobrir se nosso corpo é capaz de ficar sen
tado ou deitado, em com pleta quietação, sem nenhum m ovi
m ento, sem estar sendo forçado. Podem o corpo e o cérebro
— pois estão psicossom aticam ente relacionados — tornar-se quie
tos? H á vários exercícios para p ô r o corpo quieto, m as tais
exercícios im plicam coerção; o corpo quer erguer-se e andar,
mas lhe im pom os que fique quieto, e começa a batalha: querer
sair à rua e querer ficar sentado e quieto.
A palavra “ ioga”
“ aju n tar” é im próprio,
m ente a ioga, como um a
m entos respiratórios, foi
Sua finalidade é m anter
significa “ aju n tar” . O próprio term o
porque im plica dualidade.
Provavel
determ inada série de exercícios e m ovi
inventada na ín d ia há m ilhares de anos.
as glândulas, os nervos e todo o orga73
nism o funcionando saudavelm ente, sem rem édios, e sobrem odo
sensível. O corpo precisa ser sensível, porque de o u tro m odo
não se pode te r um cérebro claro. É fácil ver este sim ples fato
que precisam os ter um corpo perfeitam ente são, sensível, aler
tado, e um cérebro a funcionar m uito claram ente, não em ocional
m ente, não pessoalm ente; o cérebro é então capaz de pôr-se
absolutam ente quieto. M as, como conseguir isso? Com o pode
o cérebro, que anda sem pre tão ativo — não apenas d u rante o
dia, mas tam bém quando dorm im os — ficar em com pleto repou
so, inteiram ente quieto?
D ecerto, nenhum m étodo produzirá
esse efeito, já que todo m étodo im plica repetição m ecânica, que
entorpece e em bota o cérebro; e, nesse estado de em botam ento,
pensais ter experiências m aravilhosas!
Com o pode o cérebro, que anda sem pre a m onologar ou a
palrar, sem pre julgando, avaliando, “ gostando” e “ não gostando” ,
constantem ente variando, quietar-se de todo? E stais vendo, por
vós m esm o, quanto é im portante ter o cérebro com pletam ente
quieto? P orque, em qualquer m om ento em que o cérebro está
agindo, sua ação é reação do passado, traduzida em pensam ento.
Só quando totalm ente quieto, é ele capaz de observar um a
nuvem , um a árvore, a correnteza de um rio. Podeis ver quanto
é bela a luz que brilha naquelas m ontanhas e, contudo, estar com
o cérebro totalm ente quieto. Já deveis ter observado isso, não?
Como sucede? A m ente, em presença de algo extraordinário,
como um m ecanism o extrem am ente complicado, um m aravilhoso
com putador, ou um esplendoroso pô r do Sol, fica perfeitam ente
quieta, ainda que por um a fração de segundo. Sabeis, quando
se dá um brinquedo a um a criança, como o brinquedo a absorve,
como a criança fica toda interessada nele. D o m esm o m odo, a
m ajestade das m ontanhas, a beleza de um a árvore, a correnteza
das águas, absorvem a m ente e a põem quieta. M as, nesses casos,
o cérebro é posto quieto p or alguma coisa. P ode o cérebro im o
bilizar-se sem a ingerência de nenhum fato r externo?
Não
descobrindo nenhum a m aneira de quietá-lo, certas pessoas espe
ram pela graça de D eus, rezam , têm fé, absorvem -se em Jesus,
nisto ou naquilo. É bem evidente que essa absorção num a coisa
externa só pode verificar-se num a m ente em botada, entorpecida.
O cérebro está em contínua atividade, do despertar ao adorm e
cer — e m esm o então a atividade cerebral prossegue.
Essa
atividade, na form a de sonhos, é o m esmo m ovim ento do dia,
74
continuado durante o sono. O cérebro nunca tem um m om ento
de repouso, nunca diz “ A cabei” . Leva para as horas de sono
os problem as que acum ulou durante o dia, e, ao despertardes,
os mesmos problem as continuam , ininterruptam ente: um círculo
vicioso. O cérebro, para que possa quietar-se, não deve ter
sonhos. Q uando o cérebro está quieto durante o sono, introduz-se na m ente um a capacidade inteiram ente nova. Como pode
o cérebro, sem pre tão intensa e ardorosam ente ativo, im obili
zar-se, natural e sim plesm ente, sem nenhum esforço ou coerção?
E u vo-lo m ostrarei.
Com o dissem os, durante o dia o cérebro está incessante
m ente ativo. Se ao despertardes e olhardes pela janela, excla
mais “ O h, que chuva!” ou “ Q ue dia m aravilhoso, mas quente
dem ais” — já pusestes o cérebro em m ovim ento! Assim , no
m om ento de olhardes pela janela, não digais para vós m esmo
um a só palavra. Isso não significa reprim ir as palavras, porém ,
apenas, com preender que no m om ento em que dizeis “ Q ue linda
m anhã!” ou “ Q ue tem po h orrível!” — o cérebro se põe em
m ovim ento. M as se, olhando pela janela, observais as coisas
sem pronunciardes um a única palavra (e isso não é reprim ir a
p a lav ra), se ficais apenas observando, sem a im ediata introm issão
da atividade cerebral, tendes então a solução, a chave do pro
blem a (d e pôr o cérebro q u ieto ). Q uando não reage o velho
cérebro, começa a despontar o cérebro novo. Podeis observar
as m ontanhas, os rios, os vales, as som bras, as árvores form osas,
as m aravilhosas nuvens, totalm ente ilum inadas, além das m onta
nhas — sem pronunciar um a palavra, sem com parar.
M as, isso se torna bem mais difícil quando se observa outra
pessoa, porque, aí, já tendes imagens estabelecidas. O b s e r v a i ,
ainda assim! Assim observando, com claro percebim ento, vereis
que a ação assum e um a extraordinária vitalidade: é a ação com
pleta, que nunca é levada para o próxim o m inuto. C om preen
deis?
Todos nós tem os problem as, profundos ou superficiais —
insônia, brigas com a m ulher, problem as que vam os levando de
dia para dia. O s sonhos são a repetição desses m esmos p ro
blem as, a interm inável repetição do m edo e do prazer. Isso,
decerto, entorpece a m ente e em bota o cérebro. O ra, é possível
pôr fim a cada problem a, no m om ento de surgir? — não levá-lo
75
para diante? Tom em os um problem a: alguém me insulta, cha
m a-m e “ id io ta” . Instantaneam ente, o velho cérebro reage,
dizendo “ Id io ta é você!”
Se, antes de o cérebro reagir, me
to rn o perfeitam ente cônscio do que foi dito — um a coisa desa
gradável — abro um intervalo, de m odo que o cérebro não
pode logo precipitar-se para a arena. Assim , se du ran te o dia
observardes, em vossos atos, o m ovim ento do pensam ento, perce
bereis que ele está a criar problem as, e que problem as são coisas
incom pletas e, por conseguinte, têm de ser levados para diante.
M as, se observardes com o cérebro realm ente quieto, vereis que
a ação é com pleta, instantânea; não se leva para diante o p ro
blem a, não se leva para diante o insulto, o elogio: é coisa aca
bada. E , depois, d u rante o sono, o cérebro já não levará con
sigo as “ velhas” atividades do dia, estará em com pleto repouso.
E , estando o cérebro quieto d u ran te o sono, verifica-se um reju
venescim ento de toda a sua e stru tu ra — desponta a inocência.
A m ente “ inocente” é capaz dc ver o verdadeiro — não a com
plicada m entalidade do filósofo ou do sacerdote.
A m ente inocente abrange aquele todo em que está contido
o corpo, o coração, o cérebro e a m ente propriam ente dita. A
m ente inocente, jam ais atingida pelo pensam ento, pode ver o
verdadeiro, o real. Isso é m editação. P ara alcançar-se aquela
m aravilhosa beleza da verdade e seu êxtase, é necessário lançar
a base adequada. Essa base é a com preensão do pensam ento, que
gera m edo e n u tre o prazer; é a com preensão da ordem e, p o r
tanto, virtude. Fica-se, assim, livre de todo conflito, de toda
agressividade, brutalidade e violência.
Lançada essa base da
liberdade, desponta um a sensibilidade que é a culm inância da
inteligência, e a vida do hom em se torna, em todos os seus
aspectos, inteiram ente diferente.
IN T E R R O G A N T E : Acho m uito im portante com preender a v ó s,
para se com preender o que dizeis. Surpreendeu-m e o que disses
tes a respeito da ioga, pois sei que a praticais, regularm ente,
duas horas p or dia. Isso m e parece um a form a bem distinta
de disciplina. E n tretan to , m ais im portante do que isso é a ques
tão da inocência. Interessa-m e a inocência da vossa m ente.
K R IS H N A M U R T I: A ntes de poderdes ver a inocência da m ente
— vossa ou m inha — deveis ser inocente. N ão estou usando
de subterfúgios. Para verdes a inocência da m ente, deveis estar
livre, não ter m edo, e possuir um a certa capacidade que vem
quando o cérebro está funcionando sem nenhum esforço.
P raticar a ioga diariam ente, d u rante duas horas, não é um a
form a de disciplina? O ra, o corpo nos inform a quando está
cansado, dizendo-nos: “ H oje, n ão !” Q uando abusamos do corpo,
forçando-o de todas as m aneiras, estragando-lhe a inteligência,
tom ando alim entos im próprios, fum ando, bebendo, etc. — o
corpo se torna insensível. E o pensam ento “ diz” : “ É necessário
forçá-lo.” Esse com pelir e forçar o corpo se torna disciplina.
M as, se quiserdes praticar essas coisas regularm ente, sem nenhum
esforço, essa regularidade dependerá da sensibilidade do vosso
corpo. A gente as pratica um dia, e se, no dia seguinte, o
corpo estiver cansado, direm os: “ M uito bem , hoje n ão !” Não
se requer um a regularidade mecânica. T udo isso exige um a certa
inteligência, não só da m ente, mas tam bém do corpo, e essa
inteligência vos dirá o que deveis e o que não deveis fazer.
IN T E R R O G A N T E : Podem os desejar nossa m ente quieta, mas
às vezes tem os de tom ar decisões; isso pode causar dificuldades
e criar problem as.
K R IS H N A M U R T I: Se a m ente é incapaz de decidir claram ente,
surgem problem as; a própria decisão é um problem a. D e c id ir
significa tom ar um a decisão en tre is to e a q u ilo ; isso im plica
escolha. H avendo escolha, há conflito, e deste vêm problem as.
M as, quando vedes as coisas m uito claram ente, não há escolha
de espécie alguma e, po r conseguinte, não há decisão. Sabeis
m uito bem o cam inho que vai daqui ao lugar onde m orais;
seguis esse cam inho, que é perfeitam ente claro; já o percorrestes
centenas de vezes e, por conseguinte, não há escolha de espécie
alguma, em bora possais descobrir um atalho e o tom ardes na
próxim a vez. Isso é um a coisa m ecânica, e não há problem a
nenhum . O cérebro deseja que a m esm a coisa to rn e a acon
tecer, a fim de que possa funcionar autom aticam ente, m ecanica
m ente, de m odo que não surjam problem as. O cérebro exige
de si próprio que opere m ecanicam ente. P o r conseguinte, “ diz” :
“ E u m e disciplinarei para funcionar m ecanicam ente” , “ Tenho
necessidade de um a crença, de um propósito, de um a diretiva,
a fim de determ inar o cam inho a seguir.” — e fica funcionando
nesse canal. Q ue acontece? A vida não perm itirá isso, pois a
todas as horas sucedem coisas de toda espécie; portanto, o pensa
77
m ento resiste, ergue um a m uralha de crença, e essa própria resis
tência cria problem as.
Q uando tendes de decidir entre is to e a q u ilo , isso signi
fica que há confusão: “ devo ou não devo fazer is to ? ” Só faço
a m im m esmo tal pergunta quando não estou vendo claram ente
o que cum pre fazer. Nós escolhem os por causa de nossa con
fusão, e não quando há claridade. Se tendes claridade, vossa
ação é com pleta.
IN T E R R O G A N T E : M as nem sem pre pode ser com pleta.
K R IS H N A M U R T I: P orquê?
IN T E R R O G A N T E : Trata-se freqüentem ente de um a escolha
com plexa, e necessita-se de tem po para considerá-la.
K R IS H N A M U R T I: Sim, senhor, necessita-se de tem po, de
paciência, para considerá-la. T endes de com parar; com parar o
quê? Com parais dois panos, azul e branco, interrogais a vós
m esm o se gostais mais desta ou daquela cor, se deveis subir
este m orro ou aquele m orro. Decidis: “ P refiro subir este m orro
hoje, e am anhã subirei o o u tro ” . O problem a se apresenta
quando se está lidando com a psique — o que fazer, dentro em
si mesm o. V ede prim eiram ente o que implica a decisão. D ecidir
fazer isto ou aquilo — em que se baseia essa decisão? N a esco
lha, é óbvio: D evo fazer isto ou devo fazer aquilo?” . Percebo
que, quando há escolha, há confusão. E stou, pois, vendo a
verdade, o fato — o q u e é. E o fato é este: onde há escolha,
há inevitavelm ente confusão. O ra, porque estou confuso? P o r
que não sei ou porque prefiro, em vez de um a coisa, o u tra coisa
mais agradável, que dê m elhores resultados, m ais sorte, etc.
Escolho, portanto, essa coisa. M as, adotando-a, nela encontro
tam bém frustração, dor. Vejo-m e, assim, mais um a vez, apa
nhado na m esm a rede, entre o m edo e o prazer. E, então, p er
gunto: “ Posso atuar sem escolha?” Isto significa: tenho de to r
nar-m e cônscio da confusão e de todas as implicações da decisão,
pois nesta existe dualidade: “ aquele que decide” e a “ coisa deci
dida” . P o r conseguinte, vem o conflito e a perpetuação da
confusão.
D ireis que ficar cônscio de todas as complicações desse
m ovim ento levará tem po. Levará tem po?
O u ele (o m ovi
78
m e n to ) pode ser visto instantaneam ente e a ação, por conse
guinte, ser im ediata? Só necessito de tem po quando não estou
cônscio dele. M eu cérebro, que está condicionado, diz: “ P re
ciso decidir” — decidir em conform idade com o passado, como
é seu hábito. “ Preciso decidir sobre o que é correto, o que é
errado, o que é dever, o que é responsabilidade, o que é am or.”
As decisões do cérebro criam m ais conflito — sendo isso o
que estão fazendo os políticos por este m undo afora. O ra, pode
esse cérebro tornar-se quieto, a fim de ver instantaneam ente o
problem a da confusão, e agir, p or estar esclarecido? Não há
então decisão de espécie alguma.
IN T E R R O G A N T E : Pode-se aprender da experiência?
K R IS H N A M U R T I: D e m odo nenhum . O aprender requer liber
dade, curiosidade, investigação. Q uando um a criança está apren
dendo um a coisa, torna-se curiosa a respeito dela, deseja saber;
é um m ovim ento livre, e não um m ovim ento consistente em
adquirir, para p a rtir dessa aquisição. Tem os inum eráveis expe
riências. Já tivem os cinco m il anos de guerras; não aprendem os
nada, a não ser inventar engenhos mais m ortíferos. Tivem os
inúm eras experiências, com os nossos amigos, nossas esposas,
nossos m aridos, nossa nação — e nada aprendem os. O aprender,
com efeito, só pode verificar-se quando estam os libertados da
experiência. Se quereis descobrir um a coisa nova, vossa m ente
deve estar livre do “ velh o” , é claro. Assim, m editação é esvaziar
a m ente do conhecido, com o experiência, porque a verdade não
é um a coisa que nós inventam os, porém um a coisa totalm ente
nova, independente do passado, do “ conhecido” . O novo não
é o oposto do velho; a verdade é um a coisa incrivelm ente nova:
a m ente que dela se abeira com a experiência não pode vê-la.
30 de julho de 1970.
79
Se g u n d a
Pa r t e
DIÁLOGOS
DIÁLOGO
I
A necessidade de autoconhedm ento. Saber e apren
der: o aprender req u er um a m ente libertada do pas
sado. A fuga ao m edo e o aprender a respeito do
m edo. D ificuldade de observar o m edo. Q uem está
observando?
K R IS H N A M U R T I: Vam os realizar aqui sete “ reuniões de exa
m e” , nas quais cada um de nós tom ará p arte ativa. Não se tra
tará sim plesm ente de ouvir o que direm os uns aos outros e, de
pois, continuarm os com as nossas opiniões e juízos; mas, exam i
nando e considerando juntos as diversas questões, começarem os
a descobrir, po r nós m esm os, com o pensam os, de que ponto de
vista consideram os a vida, e com o as fórm ulas e conclusões
governam e controlam a nossa m ente. D urante estas sete reu
niões, poderem os exam inar vários problem as, tom ando para
estudo, cada m anhã, um a determ inada questão, para a considerar
mos o m ais com pletam ente possível, a fim de que todos nós a
com preendam os perfeitam ente — não apenas no nível verbal
ou intelectual, pois isso, decerto, não é com preensão — e pos
samos deixá-la para trás. Assim , de que tratarem os nesta m anhã?
IN T E R R O G A N T E ( 1 ) : Podem os considerar as raízes e a ori
gem do pensam ento?
IN T E R R O G A N T E ( 2 ) :
“ cérebro” e “ m ente” ?
Podem os exam inar a diferença entre
IN T E R R O G A N T E ( 3 ) : Pode-se descobrir em si m esm o um sis
tem a de m editação, ou tal sistem a é tam bém um m étodo?
83
IN T E R R O G A N T E ( 4 ) : Estam os fazendo uso correto de nossas
faculdades e capacidades pessoais?
IN T E R R O G A N T E ( 5 ) : Podeis dizer alguma coisa sobre as
relações e n tre pessoas?
IN T E R R O G A N T E ( 6 ) : Podem os considerar a questão de nos
livrarm os de nosso condicionam ento?
IN T E R R O G A N T E ( 7 ) : Q ue é “ ilum inação” ?
IN T E R R O G A N T E ( 8 ) : P orque nos é tão difícil alcançar um
estado de bem -aventurança, baseado na verdade e na beleza?
K R IS H N A M U R T I: Vam os reunir num a só todas essas pergun
tas?
Se exam inássemos a questão do autoconhecim ento, não
achais que todas elas ficariam respondidas? Q uestões, como: Q ue
é m editação — um sistem a? Q ual a diferença entre a m ente e o
cérebro? P orque é tão difícil alcançar ou com preender o que
é ilum inação? P o r que razão a m aioria de nós tem os de lutar
de várias m aneiras? — Podem os considerar a questão do auto
conhecim ento, que abrange todas essas perguntas? H á algum
m étodo ou sistem a de nos conhecerm os? E xiste alguma m a
neira de descobrirm os p or nós próprios a resposta a todas as
perguntas que nesta m anhã form ulam os, sem a pedirm os a nin
guém ? A única m aneira é conhecerm os por nós m esm os o m eca
nism o do pensam ento, com o funciona o cérebro, com o a m ente
está toda entregue ao condicionam ento, quanto está apegada
a diferentes coisas, e quanto deseja libertar-se. H á um a luta
constante d entro de nós e tam bém exteriorm ente. Assim , para
serem respondidas todas as perguntas que a nós fazemos e fica
rem resolvidos todos os problem as existentes exteriorm ente, não
achais im portante com preenderm os a nós m esm os? Vam os con
siderar esta questão?
E m prim eiro lugar, como observo a m im m esm o? Observo-me de acordo com o que disseram as autoridades, os especialistas,
os psicólogos — coisas que obviam ente condicionaram a m inha
m ente? Posso não gostar de F reud, de Jung, de A dler e dos mais
m odernos psicólogos e analistas, mas como justam ente as asser
ções deles penetraram a m inha m ente, estou olhando a m im pró
prio com os olhos deles. Posso olhar-m e objetivam ente, sem
nenhum a reação em ocional, apenas para ver o que sou?
E,
para ver o que sou, necessito de análise?
84
Todas essas perguntas estão im plícitas quando digo que
preciso conhecer-m e; sem esse autoconhecim ento, não tenho base
para nenhum a ação. Se não conheço a m im m esm o e estou
confuso, qualquer ação que eu em preenda levará necessariam ente
a m ais confusão. Assim , tenho n e c e ss id a d e de conhecer a m im
m esm o. Preciso investigar profundam ente a e stru tu ra de m inha
natureza. D evo ver o arcabouço de m inhas atividades, os padrões
em que estou funcionando, as linhas que estou seguindo, as
diretivas que estabeleci para m im m esm o, ou a sociedade esta
beleceu para m im . Tenho de com preender o im pulso que me
leva a agir harm oniosam ente ou contraditoriam ente. P ara com
preender tantos problem as, tais com o se existe Deus, se existe
a V erdade, o que é m editação, quem é o “ m editador” (e isso
é m uito mais im portante do que a m editação), preciso conhecer-me com pletam ente. Percebeis a im portância de conhecerdes,
por vós m esm o, o que sois? P orque, sem esse conhecim ento
próprio, tudo o que fizerdes será feito num estado de igno
rância, por conseguinte, de ilusão, de contradição; e assim haverá
confusão, tristeza, etc. E stá claro isto? Devem os conhecer-nos,
não só no nível consciente, mas tam bém nas cam adas pro fu n
das de nós m esmos. Esse conhecim ento deve ser claro e cabe-vos alcançá-lo por vós m esm o — e não pelo que eu digo.
O ra, como posso conhecer-m e? Q ual o m étodo? Posso
seguir as autoridades, os especialistas, que aparentem ente inves
tigaram e alcançaram certas conclusões, que poderão ser altera
das ou robustecidas p or posteriores psicólogos e filósofos? Não
digais “ N ão ” . Se não posso segui-los, como poderei com preen
der a m im m esm o? Todas as investigações dos filósofos e in stru
tores do passado (a m ente indiana penetrou m uito fundo nesta
questão) e mais as dos m odernos im prim iram -se na m inha
m ente, consciente ou inconscientem ente. Assim, posso segui-los
porque sou apenas um principiante, e eles se acham m uito à
m inha frente, e, p or fim , ir mais longe ainda do que eles foram ?
O u será m elhor não seguir ninguém , mas olhar-m e a m im m es
m o? Se posso olhar-me como “ o que é ” , estou então olhando a
m im m esmo como o resultado de todos os ditos dos filósofos,
instrutores e salvadores. P o r conseguinte, não preciso seguir
ninguém . E stá claro isto? Vede-o bem , por favor, não o deixeis
para depois.
85
M inha m ente é o resultado de tudo o que eles disseram .
Essas coisas não foram sim plesm ente aceitas po r nós, invadi
ram -nos, com o um a vaga, não só do presente, mas tam bém do
passado, através de um a m ultidão de instrutores.
E u sou o
resultado de tudo isso. Assim , o que m e cabe fazer é, tão-só,
observar-m e, ler o livro que eu m esmo sou. Com o lê-lo, como
posso observar com tanta clareza que nada possa im pedir-m e de
ver? Posso olhar com óculos coloridos, ter certos preconceitos,
certas conclusões que me im pedirão de olhar-m e e de ver tudo
o que esse olhar pode revelar. Assim , que devo fazer? Já que
estou condicionado, não posso olhar-m e em com pleta liberdade;
p o r conseguinte, devo tornar-m e cônscio de m eu condiciona
m ento. Sou, pois, levado a perguntar: Q ue é estar cônscio?
M as, continuem os. Não posso olhar-me em plena liberdade
porque m inha m ente não é livre. Tenho dúzias de opiniões e de
conclusões, e um núm ero infinito de experiências. Recebi um a
certa educação, que faz p arte de m eu condicionam ento; por con
seguinte, cumpre-m e tornar-m e cônscio desses condicionam entos,
que fazem parte de m im m esm o. Assim , em prim eiro lugar,
preciso com preender o que significa “ estar cônscio” . Q ue signi
fica, para vós, “ estar cônscio” ?
H á dias, este orador disse:
“ P o r favor, não tom eis no tas” — vós o ouvistes, e vários dentre
vós continuaram a tom ar notas. Isso é “ estar cônscio” ?
IN T E R R O G A N T E : Sei que não posso estar cônscio p or mais
de dois m inutos; em seguida, começa a confusão.
K R IS H N A M U R T I: Irem os verificar se esse percebim ento pode
prolongar-se ou se só é possível por um breve período. Mas,
antes disso, vejam os o que significa “estar cônscio” . E stou
cônscio do barulho daquele rio? E stou cônscio das diferentes
cores dos trajes usados pelos hom ens e m ulheres aqui reunidos?
E sto u cônscio da estru tu ra e form a deste pavilhão? E stou côns
cio do espaço que o circunda, dos m ontes, das árvores, das
nuvens, do calor — estou objetivam ente, externam ente, cônscio
de tudo isso? De que m aneira estais cônscios?
IN T E R R O G A N T E : Estam os cônscios interior e exteriorm ente
ao m esm o tem po.
K R IS H N A M U R T I: P o r favor, vamos devagar. E stais cônscio
deste pavilhão, das cores dos trajes das pessoas, estais cônscio
86
dos m ontes, das árvores, dos prados? Estais cônscios, no sen
tido de estardes conscientes dessas coisas? Estais — não?
IN T E R R O G A N T E : Q uando lhes fixo a atenção, torno-m e côns
cio delas.
K R IS H N A M U R T I: Se lhes prestais atenção, estais cônscio;
por conseguinte, não estais cônscio quando desatento. Só no
prestar atenção, estais cônscio. P o r favor, observai isso bem
de perto.
IN T E R R O G A N T E : Ao prestar atenção a um a coisa, nela
me absorvo; não posso prestar atenção às outras coisas que me
cercam.
K R IS H N A M U R T I: Vós vos absorveis num a certa coisa e o resto
se apaga. E stais cônscio de que, quando estais a olhar atenta
m ente o pavilhão, as árvores, as m ontanhas, estais m oldando em
palavras o que vedes? Dizeis: “ A quilo é um a árvore, aquilo
um a nuvem , aquilo um a tenda, gosto desta cor, não gosto daquela
cor” — não é verdade? P o r favor, fazei um pequeno esforço
a esse respeito, não vos deixeis enfadar. P orque, se penetrardes
bem profundam ente nesta questão, ao sairdes deste pavilhão,
vereis algo p or vós m esm o. Pois bem ; quando observais, estais
cônscio de vossas reações?
IN T E R R O G A N T E : A atenção parece expandir-se.
K R IS H N A M U R T I: Pergunto-vos um a coisa e respondeis outra.
E stou cônscio daquele vestido: m inha reação diz: “ b o n ito !” ou
“ feio!”
P ergunto: ao olhardes aquela cor verm elha, estais
cônscio de vossas reações? Não de um a dúzia de reações, porém
daquela peculiar reação que tendes ao verdes a cor verm elha?
— P orque não? Isso não faz p a rte do p erceb im en to ?(* )
IN T E R R O G A N T E : Q uando dam os nom e a um a coisa, não esta
m os cônscios dela.
K R IS H N A M U R T I: E u vou averiguar, senhor, o que significa
“ estar cônscio” . — Q uero estar cônscio e sei que não estou
(* )
do T .)
P erguntas dirigidas a um aparteante (as duas ú ltim as).
(N .
87
conscio. Às vezes estou atento, mas a m aior p arte do tem po
estou sem i-adorm ecido. E stou pensando n o u tra coisa, enquanto
olho um a árvore ou um a cor. Com o disse, desejo conhecer-m e
com pletam ente, porque percebo que, se não m e conheço, não
tenho base para fazer coisa algum a. P ortanto, p r e c is o conhecer
a m im m esm o. Com o me tornarei cônscio de m im m esm o, como
observarei a m im m esm o? O bservando, aprendo.
P o rtan to ,
o aprender faz p arte do percebim ento. Posso aprender algum a
coisa a m eu respeito em conform idade com o u tra pessoa — em
conform idade com os filósofos, os instrutores, os salvadores, os
sacerdotes? Isso é aprender? Se aprendo de acordo com o que
outros disseram , cesso de aprender acerca de m im m esm o, e isso
é o principal. O ra, que significa esse aprender a respeito de
m im próprio? Investigai isso, penetrai-o, descobri o seu signi
ficado — o que significa “ aprender a respeito de si m esm o” .
IN T E R R O G A N T E : Significa “ ver m inha reação” .
K R IS H N A M U R T I: N ão, m inha senhora, não é isso o que quero.
Q ue significa aprender?
IN T E R R O G A N T E : Parecem os andar a buscar freneticam ente
um sistem a prático de alcançar esse estado de percebim ento.
H ouve tem po em que eu pensava que poderíam os “educar-nos”
anotando todos os nossos pensam entos, para depois lê-los, ven
do-os com o se vê um film e. Talvez desse m odo fosse possível
aprender algum a coisa.
K R IS H N A M U R T I: Diz o interrogante que vemos razão para co
nhecerm os a nós m esm os e ansiam os po r descobrir com o fazê-lo,
m as, p o r causa dessa ansiedade, desejam os um sistem a, querem os
achar um m étodo, p orquanto não sabem os o que fazer com nós
m esm os. Assim , precisam os que alguém nos diga: “ Faça tais
coisas e você conhecerá a si m esm o” .
O ra, senhores, tende a bondade de escutar-m e. A qui estou
eu: sou o resultado d a sociedade, da cultura em que vivo, da
religião, do m undo dos negócios, do m undo econôm ico, do clima,
da alim entação; sou o resultado de tudo isso, do passado infi
n ito e do presente. Q uero conhecer-m e, isto é, quero aprender
a respeito de mim m esm o. Q ue significa a palavra “ aprender” ?
V ede a dificuldade aí contida. E u não sei alem ão, e isso signi
88
fica que tenho de aprender o significado das palavras, decorar
os verbos e aprender a sintaxe da língua. Q uer dizer, tenho de
acum ular conhecim ento de palavras, etc. — e, então, talvez eu
seja capaz de falar alem ão. A cum ulo — verbalm ente ou de
o utra m aneira qualquer — para depois agir. A í, aprender signi
fica acumulação. Agora, que sucede se quero aprender a respeito
de m im m esm o? Vejo algo em m im e digo “ A prendi tal coisa” .
Vi que “ isto é assim ” , aprendi a tal respeito. Ficou, pois, um
resíduo de conhecim ento, e com esse conhecim ento exam ino o
próxim o incidente. E isso, p o r sua vez, aum enta a acumulação.
Assim , quanto mais me observo e aprendo sobre m inha pessoa,
tanto mais conhecim ento acum ulo a respeito de m im m esm o.
N ão é exato isso?
IN T E R R O G A N T E : — E stou m udando.
K R IS H N A M U R T I: E stou acum ulando conhecim ento e, ao m es
mo tem po, m udando. O ra, por m eio da observação, estou acum u
lando conhecim ento e experiência. E , então, que acontece? Com
esse conhecim ento olho a m im m esm o.
P o r conseguinte, o
conhecim ento m e im pede a observação nova. Percebeis isso?
P o r exem plo, dissestes-m e algo que me ofendeu. Esse é m eu
conhecim ento, e a próxim a vez que vos vejo, é esse conheci
m ento de ter sido ofendido que vai ao vosso encontro. O
passado vem ao encontro do presente. O conhecim ento, por
tanto, é o passado, e com os olhos do passado estou olhando o
presente. Com preendeis? O ra, para aprender sobre m im m es
m o, para olhar-m e, tenho de estar livre do conhecim ento trazido
do passado. Isto é, o aprender sobre m im m esm o deve ser
sem pre novo. Percebeis a dificuldade?
IN T E R R O G A N T E : E u diria que há, na vida, co n stan tes(* ) que
nunca se alteram .
K R IS H N A M U R T I: Considerarem os m ais adiante o problem a da
m udança. E stou vigilante, quero aprender a respeito de m im
m esm o. “ O que sou” é m ovim ento, não é estático; é vivo, ativo,
está sem pre tom ando direções diferentes. Assim , se aprendo
(* ) “C onstantes” (substantivo, p l.) no sentido m atem ático (q u an
tidades constantes” : que têm sem pre o m esm o v alor). (N . do T .)
89
com a m ente e o cérebro vindos do passado, eles m e im pedirão
o auto-aprendizado. Percebendo isso, logo perguntais: “ Como
pode um a pessoa libertar-se do passado, para que possa apren
der a respeito de si m esm a, um a coisa constantem ente nova?
V ede quanto isso é belo e apaixonante!
Q uero aprender sobre m im , e “ o que sou” é um a coisa
viva, não um a coisa m orta. H oje penso de um a m aneira, e,
am anhã, de diferente m odo. Isso é um a constante, um m ovi
m ento vivo. E para observá-lo e a seu respeito aprender, a
m ente deve estar livre. P o r conseguinte, se ela está levando
a carga do passado, não pode observar. Assim , que cum pre
fazer?
IN T E R R O G A N T E : Isso não significa amnésia, m as, sim, estar
livre do passado.
K R IS H N A M U R T I: Sim, senhor, é isso m esm o que quero dizer.
O ra, que devo fazer? Percebo o que acontece: Ao ver aquela
cor verm elha, digo “ N ão gosto dela” . Isto é, o passado “ reage” .
O passado e n tra logo em ação e, p or conseguinte, põe term o
ao aprender. Q ue fazer?
IN T E R R O G A N T E : A gente deve esquecer-se de pensar — não
ter pensam entos.
K R IS H N A M U R T I: N ão m e estais seguindo. D izendo “ não ter
pensam entos” , chegastes a um a conclusão. N ão estais apren
dendo realm ente.
IN T E R R O G A N T E : Tem os de esvaziar-nos.
K R IS H N A M U R T I: O u tra conclusão!
Com o podeis esvaziar
m os? Q u e m ê a entidade que vai esvaziar a m ente?
IN T E R R O G A N T E : Tem os de esvaziar-nos de tudo.
esvaziar-nos tam bém da entidade.
Tem os de
K R IS H N A M U R T I: Q u e m vai fazê-lo? O ra, senhor, não estais
escutando ■
— predoai-m e dizê-lo! E u disse que desejo aprender
a respeito de m im m esm o. Não o posso, se o passado interfere.
A p r e n d e r é presente ativo; significa estar ativo n o p r e s e n t e ;
mas isso não é possível quando a m ente, quando o cérebro está
levando toda a carga do passado. Dizei-me agora o que cum pre
fazer.
90
IN T E R R O G A N T E : T enho de estar atento.
K R IS H N A M U R T I: E stais vendo?
Com o posso estar atento?
IN T E R R O G A N T E : T enho de viver no presente.
K R IS H N A M U R T I: Como posso viver no presente, com a carga
do passado?
IN T E R R O G A N T E : E stando cônscio do m ovim ento que se está
desenrolando.
K R IS H N A M U R T I: E isso significa o quê? E star cônscio de
que o passado está interferindo e im pedindo o cérebro de apren
der?
Id e devagar, senhor. E stais cônscio desse m ovim ento,
enquanto estam os falando? Pois, se estais cônscio dele enquanto
falam os — que está ocorrendo?
Não suponhais nada!
Não
digais “ deve ser” , “ não deve ser” ; isso não significa nada. Q ue
é que está realm ente ocorrendo quando- estais cônscio desse
m ovim ento, que é o passado a interferir no presente e, por
conseguinte, im pedindo o aprender — no sentido em que esta
mos em pregando essa palavra? Q uando se está cônscio de todo
esse “ processo” , que ocorre?
IN T E R R O G A N T E : Vem o-nos como um efeito do passado.
K R IS H N A M U R T I: Sabemos que isso é um fato. P erguntam os
qual é o resultado, o que é que acontece quando estam os côns
cios de que somos o efeito do passado e que ele nos está im pe
dindo de aprender no presente? N ada de suposições. Q ue é
que acontece, em vós, quando estais cônscios desse processo?
IN T E R R O G A N T E ( 1 ) : Cessa o m ovim ento.
IN T E R R O G A N T E ( 2 ) : N ão há mais pensam ento.
IN T E R R O G A N T E ( 3 ) : H á m edo.
K R IS H N A M U R T I: Um diz que não há mais pensam ento, outro
que há silêncio, e mais outro que há m edo.
IN T E R R O G A N T E : Parece que nada existe senão o presente.
K R IS H N A M U R T I: Q ual dessas respostas é verdadeira?
IN T E R R O G A N T E : Estam os confusos.
91
KRISHNAMURTI: Tendes razão: estamos confusos.
IN T E R R O G A N T E ( 1 ) : Estam os cônscios.
IN T E R R O G A N T E ( 2 ) : Estam os aprendendo.
IN T E R R O G A N T E ( 3 ) : Sinto que há um a contradição que
precisa ser anulada pela ação direta.
K R IS H N A M U R T I: Peço-vos, senhores, não chegar a conclusões,
porque elas vos im pedirão de aprender. E , se dizeis “ É neces
sária ação d ire ta ” — isso é um a conclusão. Estam os apren
dendo. Vejo que sou o efeito do passado. O passado pode ser
o ontem ou o segundo precedente, que deixou sua m arca como
conhecim ento. Esse conhecim ento, que é o passado, m e está
im pedindo de aprender no presente; ele é um m ovim ento cons
tante. O ra, quando estou cônscio desse m ovim ento, que sucede?
N ão quero conclusões. Se aceito vossas conclusões, vós sereis
“ o novo filósofo” . E u não quero novos filósofos! Q uero apren
der; p o r conseguinte, o que me cabe fazer é ver o que realm ente
sucede quando o cérebro se torna cônscio desse m ovim ento.
P ode o cérebro estar cônscio dele, ou tem m edo do novo?
IN T E R R O G A N T E : O m ovim ento cessa.
K R IS H N A M U R T I: E , então, que acontece?
E stou aprendendo?
IN T E R R O G A N T E : Se estou suficientem ente quieto, creio que
posso ver o que percebo ( s i c ) e o que provém de m im mesm o.
K R IS H N A M U R T I: Sim, senhor; observai bem isso. Q uero
aprender a respeito desse m ovim ento; para aprender, preciso de
curiosidade. Se m eram ente chego a um a conclusão, cessa a m inha
curiosidade. P o r conseguinte, a curiosidade é necessária ao apren
der. Necessito de paixão, necessito de energia. Sem isso, não
posso aprender. Se sinto m edo, não tenho paixão. P o r conse
guinte, deixem os de p arte aquele m ovim ento (do p assad o ), e
perguntem os: “ P orque tem em os aprender a respeito de algo que
pode ser um a coisa n o v a?” — Cabe-me investigar o m edo.
A bandonei o m ovim ento do passado e vou agora aprender acerca
do m edo. Estais-m e seguindo? O ra, porque tenho m edo?
IN T E R R O G A N T E : Tem em os perder a nossa imagem de nós
mesm os.
92
K R IS H N A M U R T I: Tem o perder a im agem que form ei de mim
m esm o, a qual está repleta de conhecim entos e é um a coisa
m orta. N ão, senhor, não deis explicações( * ) . Percebo que tenho
m edo — porquê? P orque vejo que estou m orto? E stou vivendo
no passado e não sei o que significa observar e viver no p re
sente; isso, por conseguinte, é um a coisa inteiram ente nova e
eu tenho m edo de fazer qualquer coisa nova, E isso significa
o quê?
Q ue m inha m ente e m eu cérebro estão seguindo o
velho padrão, o velho m étodo, a velha m aneira de pensar, de
viver, de trabalhar. M as, para aprender, a m ente deve estar
livre do passado; isso já é um a verdade estabelecida. Pois bem ;
que aconteceu? Estabeleci como verdadeiro este fato que não
há aprender se o passado interfere. E percebo tam bém que estou
com m edo. H á , p ortanto, um a contradição: C om preendi que,
para aprender, a m ente deve estar livre do passado e, ao m esm o
tem po, tenho m edo de ver esse fato. H á, pois, dualidade: vejo
e tenho m edo de ver.
IN T E R R O G A N T E : H á sem pre esse m edo de ver coisas novas?
K R IS H N A M U R T I: N ão há?
N ão tem os m edo de m udar?
IN T E R R O G A N T E : O novo é o desconhecido.
desconhecido.
N ós tem em os o
K R IS H N A M U R T I: E por isso ficam os apegados ao velho, e
isso inevitavelm ente causa m edo, porque a vida está sem pre a
m udar; há convulsões sociais, agitações populares, guerras, Conseqüentem ente, há m edo. O ra, com o posso aprender sobre o
m edo? Afastam o-nos do m ovim ento anterior; agora querem os
aprender a respeito do m ovim ento do m edo.
Q ue é o m ovim ento do m edo? E stais cônscios de que ten
des m edo? Estais cônscio de que tendes tem ores?
IN T E R R O G A N T E : N em sem pre.
K R IS H N A M U R T I: Senhor, sabeis agora, estais cônscio agora
de vossos tem ores?
Podeis “ ressuscitá-los” , e dizer: “ Tenho
m edo do que outras pessoas digam a m eu respeito” . Estais
cônscio de que tendes m edo da m orte, m edo de perder dinheiro,
(* )
Palavras dirigidas a um aparteante.
(N . do T .)
93
m edo de perder vossa esposa? E stais cônscio desses tem ores?
T am bém dos tem ores físicos — de sofrerdes dores am anhã, etc.?
Se estais cônscio, qual o m ovim ento que se verifica nesse estado?
Q ue sucede quando estais cônscio de que tendes m edo?
IN T E R R O G A N T E : P rocuro livrar-m e dele.
K R IS H N A M U R T I:
sucede?
Q uando
procurais
livrar-vos
dele,
que
IN T E R R O G A N T E : Reprim o-o.
K R IS H N A M U R T I: O u o reprim is ou dele fugis; há um con
flito e n tre o m edo e o desejo de livrar-se dele, não é verdade?
H á repressão, ou há fuga. E n o esforço para vos libertardes
do m edo, há conflito, que só pode aum entar o m edo.
IN T E R R O G A N T E : P erm itis um a pergunta?
N ão é o “ eu”
o próprio cérebro? O cérebro cansa-se de estar sem pre a buscar
experiências novas e deseja repouso.
K R IS H N A M U R T I: Q uereis dizer que o próprio cérebro tem
m edo de largar o m ovim ento do passado e é a causa do m edo?
V ede, senhor, desejo aprender a respeito do m edo; isso signi
fica que devo ter curiosidade, paixão. A ntes de mais nada, p re
ciso te r curiosidade, e não a posso te r se form o um a conclusão.
Assim , para aprender a respeito do m edo, não devo distrair-m e,
fugindo dele; não deve haver nenhum m ovim ento de repressão,
que é tam bém um a distração do m edo. Não deve haver o senti
m ento de que “ preciso livrar-m e do m edo” . Se tenho tais senti
m entos, não posso aprender. O ra, tenho esses sentim entos quan
do vejo que há m edo? N ão estou dizendo que não os devais
ter; eles existem . Se deles m e torno cônscio, que devo fazer?
São tão fortes os m eus tem ores, que deles desejo fugir. E o
próprio m ovim ento de fuga gera mais m edo; estais percebendo
tudo isso? Percebo a verdade e o fato de que, fugindo do m edo,
aum ento o m edo: por conseguinte, não há nenhum m ovim ento
de fuga — certo?
IN T E R R O G A N T E : N ão com preendo isso, porque sinto que se
tenho um certo tem or e dele trato de fugir, estou em m ovim ento
para algum a coisa que lhe irá pô r fim , algum a coisa que dele
me libertará.
94
KRISHNAMURTI: De que tendes medo?
IN T E R R O G A N T E : D o dinheiro.
K R IS H N A M U R T I: Tendes m edo de p erder dinheiro, e não do
dinheiro. Q uanto m ais dinheiro tem os, mais contentes ficamos!
M as, vós tendes m edo de perdê-lo, não é certo?
P o r conse
guinte, que fazeis? Tom ais todas as m edidas para colocar em
segurança o vosso dinheiro; en tretan to , o m edo continua: ele
pode não estar em segurança neste m undo variável, o banco pode
falir, etc. A inda que tenhais dinheiro em abundância, existe
sem pre esse m edo. Fugir desse m edo não lhe põe fim , e tam
pouco reprim i-lo, dizendo “ não quero pensar nele” — porque
daqui a um segundo e sta r e is p e n s a n d o nele. Assim, a fuga ao
m edo, o esforço para evitá-lo, o fazer alguma coisa em relação
a ele — dá continuidade ao m edo. Eis um fato. Descobrim os,
agora, dois fatos: que, para aprender, precisam os te r curiosi
dade e não deve haver nenhum a pressão do passado; e que,
para aprenderm os a respeito do m edo, não deve haver fuga ao
m edo. D escoberto este fato, descoberta esta verdade, n ã o fu g is .
O ra, quando não fujo do m edo, que sucede?
IN T E R R O G A N T E : Deixo de identificar-m e com ele.
K R IS H N A M U R T I: Isso é aprender?
Vós parastes.
IN T E R R O G A N T E : N ão entendo.
K R IS H N A M U R T I: P arar não é aprender. P o r causa do desejo
de não sentir m edo, quereis fugir dele. V ede como isso é sutil.
Sinto m edo e desejo aprender a seu respeito. Não sei o que
vai acontecer, mas desejo conhecer o m ovim ento do m edo.
Assim, que acontece?
N ão estou fugindo dele, não o estou
reprim indo nem evitando: Q uero aprender a seu respeito.
IN T E R R O G A N T E : E u penso em com o livrar-m e dele.
K R IS H N A M U R T I: Se desejais livrar-vos dele — como há pouco
expliquei — quem é a pessoa que vai livrar-se dele? Vós dese
jais livrar-vos do m edo, o que significa que a ele resistis; por
conseguinte, o m edo aum enta. Se não percebeis esse fato, sinto
não poder ajudar-vos.
IN T E R R O G A N T E : N ós tem os de aceitar o m edo.
95
K R IS H N A M U R T I: E u não aceito o m edo; quem é a entidade
que está aceitando?
IN T E R R O G A N T E : Se não é possível fugir, é necessário aceitar.
K R IS H N A M U R T I: F ugir dele, evitá-lo, ler um rom ance, ver o
que outros estão fazendo, ver televisão, freqüentar o tem plo ou
a igreja — tudo isso é ainda ev itar o m edo, e todo esforço para
evitá-lo só pode aum entar e dar mais força ao m edo. Isso é
um fato. Um a vez estabelecido esse fato, não quero fugir, não
quero reprim ir. E stou aprendendo, e n ã o fugindo. P o r conse
guinte, que sucede quando há a percepção do m edo?
IN T E R R O G A N T E : A com preensão do processo do m edo.
K R IS H N A M U R T I: É o que estam os fazendo. E u estou em pe
nhado em com preender o processo, estou a observá-lo, estou
aprendendo a seu respeito. T enho m edo e não estou fugindo
dele; pois bem — que está acontecendo?
IN T E R R O G A N T E : Estais frente-a-frente com o m edo.
K R IS H N A M U R T I: E que acontece então?
IN T E R R O G A N T E : N ão há m ovim ento algum , em nenhum a
direção.
K R IS H N A M U R T I: Q ual a pergunta que deveis fazer?
Por
favor, escutai-m e por dois m inutos apenas. E u não estou fugindo
do m edo, não o estou evitando, não lhe estou resistindo. Ele
está à m inha frente, e eu o estou observando. A p ergunta natural
é: Q uem está observando o m edo? P o r favor, não suponhais
nada. Ao dizerdes “ E stou observando o m edo e aprendendo a
respeito dele” — quem é a entidade que o está observando?
IN T E R R O G A N T E : O próprio m edo.
K R IS H N A M U R T I: O próprio m edo observando a si próprio?
P o r favor, não façais suposições, não busqueis nenhum a con
clusão: descobri. A m ente não está a fugir do m edo, não está
erguendo nenhum a m uralha contra o m edo, adquirindo coragem,
etc. Q ue sucede, quando estou observando? P ergunto n atu ral
m ente a m im m esm o: Q uem é que está observando a coisa
cham ada “ m edo” ? P o r favor, não respondais. E u fiz a p er
96
gunta a m im mesm o e não a vós ( **) .
quem é que está observando o m edo?
m esm o?
T ratai, pois, de descobrir
O u tro fragm ento de mim
IN T E R R O G A N T E : A entidade que está observando não pode
ser um resultado do passado; só pode ser um a entidade nova —
um a coisa que se está m anifestando neste m om ento.
K R IS H N A M U R T I: N ão perguntei se quem está observando é
resultado do passado. E u estou observando. E stou cônscio do
m edo. E stou cônscio de que tenho m edo de perder dinheiro,
de adoecer, de ser abandonado por m inha m ulher, e sabe D eus
de que mais. E desejo aprender a respeito desse m edo; por
conseguinte, estou observando e m inha pergunta natural é esta:
Q uem está observando o m edo?
IN T E R R O G A N T E : A imagem que tenho de m im m esm o.
K R IS H N A M U R T I: Q uando pergunto “ Q uem está observando?”
— que sucede? A própria pergunta contém um a divisão, não?
Isso é um fato. Q uando digo “ Q uem está observando?” — isso
significa que à m inha frente está um a coisa, e eu a estou obser
vando ■
— portanto, um a divisão. O ra, porque há essa divisão?
Respondei-m e, não suponhais nada, não repitais o que outrem
disse — inclusive eu próprio. T ratai de descobrir porque existe
essa divisão, no m om ento em que se pergunta “ Q uem está obser
v an d o ?” Descobri isso!
IN T E R R O G A N T E : H á em mim o desejo de observar.
K R IS H N A M U R T I: Q u er dizer, o desejo diz: “ O bservai, a fim
de fugir” . E ntendeis? A ntes dissestes “ Com preendi que não
devo fugir” , e agora verificais que o desejo, m uito sutilm ente,
vos está fazendo fugir; po r conseguinte, estais ainda a observar
o m edo como quem está “ de fo ra” . V ede quanto isso é im por
tante. E stais a observar com a intenção de vos livrardes do
m edo. E , como dissemos há poucos m inutos, ten tar livrar-se
do m edo significa que houve um a prévia c en su ra(* ) do m edo.
P ortanto, o vosso observar im plica o desejo de livrar-vos do
(* )
(* )
4
Palavras dirigidas a um aparteante. (N . do T .)
“C ensura” , no sentido de “ exam e crítico” . (N . do T .)
97
m edo; há, pois, um a divisão que só tem o efeito de dar mais
força ao m edo. Assim , mais um a vez, pergunto: Q uem está
observando o m edo?
IN T E R R O G A N T E : N ão há tam bém outro ponto?
a pergunta “ Q uem está observando o m edo?”
Q u e m faz
K R IS H N A M U R T I: Sou eu, senhor.
IN T E R R O G A N T E : M as, q u e m a está fazendo?
K R IS H N A M U R T I: T ornais a perg u n tar a m esm a coisa! Isso
é andar para trás. T ende a bondade de escutar; essa é a m a
neira mais prática de proceder. Se escutardes com toda a aten
ção o que se está dizendo, vereis que a m ente ficará livre do
m edo. M as, vós não o estais fazendo.
T enho m edo de perder dinheiro e, por conseguinte, que
faço? F ujo desse m edo, evitando pensar nisso. M as, com preen
dendo quanto é estulto evitá-lo — pois, quanto m ais resisto,
mais m edo sinto — estou a observá-lo. P o r conseguinte, apre
senta-se a questão: Q uem está a observá-lo? O desejo de livrar-me dele, de ultrapassá-lo — é o desejo quem o está observando?
É — e sei que observar dessa m aneira é dividir e, p o r conse
guinte, to rn ar m ais fo rte o m edo. Vejo, assim, a verdade a
esse respeito e, po r conseguinte, desapareceu o desejo de livrar-me dele. E ntendeis? É o m esm o que ver um a serpente vene
nosa; não tenho vontade de tocá-la. O desejo de tom ar drogas
desaparece logo que percebo o perigo real que elas representam ;
não tenho vontade de tomá-las. E nquanto não vir esse perigo,
continuarei a tomá-las. D o m esm o m odo, enquanto não vejo
que a fuga ao m edo robustece o m edo, continuo a fugir. N o
m om ento em que o percebo, já não tenho vontade de fugir.
E ntão, que acontece?
IN T E R R O G A N T E : Com o pode um a pessoa o lh a r , se tem m edo
de ver-se em dificuldades?
K R IS H N A M U R T I: É o que estou apontando. Se sentis m edo
de olhar o m edo, nada aprendereis a seu respeito, e se desejais
aprender a respeito do m edo, não tenhais m edo. Eis como isto
é sim ples. Se não sei nadar, não tenho vontade de saltar no rio.
Q uando sei que não tenho nenhum a possibilidade de pôr fim
98
ao m edo, se tenho m edo de olhá-lo e, em bora tenha m edo de
olhá-lo, desejo realm ente fazê-lo, digo: “ N ão im porta, eu quero
olh ar” .
IN T E R R O G A N T E : Já se disse que é o desejo de fugir ao m edo
que gera constantem ente mais m edo. Q uando sinto m edo, quero
distanciar-m e dele, de m odo que o que sem pre faço é considerá-lo
como um a coisa com que estou em relação, a fim de identificar-me, unir-m e com ele.
K R IS H N A M U R T I: Estais vendo? Tais são os ardis que p rati
camos com nós m esm os. Q uem está dizendo isso? Fazeis esfor
ço para vos identificardes com o m edo.
IN T E R R O G A N T E : E u sou o m e d o .
K R IS H N A M U R T I: Ah! U m m om ento: se sois esse m edo, como
o dizeis, que acontece então?
IN T E R R O G A N T E : Se chego a um “ entendim ento” com ele, ele
começa a dim inuir.
K R IS H N A M U R T I: Não. N ada de “ entendim entos” ! A o dizer
des que s o is o m edo, o m edo não está separado de vós. Q ue
sucede? E u sou m oreno. Tenho m edo de ser m oreno, mas digo
“ O ra, eu sou m oreno” — e o caso está liquidado, não? Não
estou fugindo dele. Q ue há, então?
IN T E R R O G A N T E : Aceitação.
K R IS H N A M U R T I: E u aceito isso? Pelo contrário, esqueço-me
de que sou m oreno. N ão estais com preendendo bem ; estais ape
nas a fazer suposições.
E u quero aprender sobre m im . Tenho de conhecer a m im
m esm o, com pletam ente, apaixonadam ente, porque essa é a base
de toda ação. Sem essa base, terei um a vida de extrem a con
fusão. P ara aprender a respeito de m im m esm o, não posso
seguir ninguém . Se sigo alguém , não estou aprendendo. A pren
d er acerca de m im m esm o im plica que o passado não está inter
ferindo, porque “ o que sou” é um a coisa extraordinária, vital,
m óbil, dinâm ica. Assim, tenho de olhá-lo de m aneira nova, com
um a m ente nova. N ão pode haver m ente nova, se o passado
está sem pre a atuar. Isso é um fato. Vejo-o. E , vendo-o,
com preendo que tenho m edo porque não sei o que irá acontecer.
P o rtan to , desejo aprender a respeito do m edo. E ntendeis?
A prendendo, estou em constante m ovim ento. Q uero conhecer-me e percebo um acoisa — um a verdade profunda: T enho de
aprender a respeito do m edo, e isso significa que não devo
fugir dele, c u s te o q u e c u s ta r . Não devo ter nenhum desejo
sutil de fugir. Assim , que acontece à m ente que é capaz de olhar
o m edo sem nenhum a divisão? A divisão consiste em procurar
libertar-m e dele, p o r m eio de form as sutis de fuga, de repressão,
etc.; que sucede à m ente ao ver-se frente-a-frente com o m edo
e quando já não existe a questão de fugir dele?
P o r favor,
tratai de descobrir isso, aplicai-lhe a vossa m ente.
2 de agosto de 1970.
100
DIÁLOGO
II
Recapitulação.
Os tem ores im pedem a m aturação.
Vemos os efeitos do m edo ou só sabemos da existên
cia deles? D iferença en tre o m edo, com o m em ória,
e o contato real com o m edo. A dependência e o
apego causados pelo m edo ao vazio e ao “ ser n ada” .
D escobrim ento de nossa solidão e superficialidade. A
in utilidade das fugas. “ Q uem está cônscio do vazio?”
K R IS H N A M U R T I: O ntem estivem os falando a respeito do
m edo e da necessidade de autoconhecim ento. N ão sei se p er
cebeis a grande im portância de com preenderdes a natureza e a
estrutura de vós mesmos. Com o dissem os, se não há com preen
são (não só intelectual ou verbal, porém um a real com preensão
do que somos e da possibilidade de o transcenderm os), criare
mos inevitavelm ente confusão e contradição em nós m esmos,
com atividades que conduzirão a m uitos males e sofrim entos.
Torna-se, pois, de essencial im portância com preenderm os, não
só as camadas superficiais de nós m esm os, mas a entidade total,
todas as partes ocultas.
E espero que, c o m u n ic a n d o -n o s uns
com os outros, com preendendo em com um todo esse problem a,
ficarem os aptos a ver, realm ente e não teoricam ente, se pelo
autoconhecim ento a m ente pode transcender seu próprio condi
cionam ento, seus próprios hábitos, seus preconceitos, etc.
Falam os tam bém sobre o aprenderm os a respeito de nós
mesm os. A p r e n d e r implica um m ovim ento não acum ulativo; se
há acumulação, não há m ovim ento. Se o rio que corre term ina
num lago, não há mais m ovim ento. Só há m ovim ento quando
há um constante fluir, a forte corrente.
E é isso o que o
aprender implica; aprender, não só acerca de coisas exteriores e
101
de fatos científicos, mas tam bém a respeito de nós m esm os,
porque “ o que som os” é um a coisa que está constantem ente
a m udar, um a coisa dinâm ica, versátil. Para aprenderm os sobre
o que somos, a experiência trazida do passado em nada pode
ajudar-nos; pelo contrário, o passado põe fim ao aprender e,
po r conseguinte, à ação com pleta. Espero tenhais visto bem
claram ente este fato, ou seja que estam os lidando com um m ovi
m ento sem pre vivo, da vida. Esse m ovim ento é o “ e u ” . P ara
com preender esse “ e u ” tão sutil, é necessária intensa curiosi
dade, persistente vigilância, com preensão não acum ulativa. O xa
lá possam os pôr-nos em comunicação acerca desta questão do
aprender. Pois a esse respeito vam os ter dificuldades, porquanto
nossa m ente gosta de funcionar d en tro de canais, de padrões,
com base num a conclusão ou preconceito, ou no conhecim ento.
A m ente está ligada a um a certa crença e, com base nela, ten ta
com preender o extraordinário m ovim ento do “ eu” . Conseqüentem ente, há um a contradição entre o “ e u ” e o observador.
Estivem os tam bém falando acerca do m edo, que faz parte
desse m ovim ento total do “e u ” — desse “ eu ” que fragm enta o
m ovim ento da vida e separa a si próprio como “ vós” e “ e u ” .
Perguntam os “ Q ue é o m ed o ?” — Vam os aprender, não acumulativam ente, a respeito do m edo; a própria palavra “ m edo”
im pede-m e de en trar em contato com aquela sensação de perigo
a que chamamos “ m edo” . V ede, senhores, a m aturidade im plica
um desenvolvim ento total e n atural do ente hum ano; natural,
no sentido de não ser contraditório, porém harm ônico. A m atu
ridade nada tem que ver com a idade da pessoa. E o fato r
“ m edo” im pede esse natural e total desenvolvim ento da m ente.
Exam inarei isso um pouquinho e, depois, o considerarem os
juntos.
Q uando sentim os m edo, não só de coisas físicas, mas tam
bém de fatores psicológicos, que sucede, nesse m edo? Tenho
m edo, não só de adoecer fisicam ente, de m orrer, m edo do
e scu ro . . . sabeis dos inum eráveis tem ores que tem os, tan to b io
lógicos, como psicológicos. Q ue fazem eles à m ente — à m ente
que os criou? Com preendeis esta pergunta? N ão m e respon
dais im ediatam ente, olhai a vós m esmos. Q ual o efeito do m edo
na m ente e em to d a a nossa vida? O u já estam os tão acostu
m ados com o m edo (q u e se tornou um h á b ito ), que não perce
102
bem os os seus efeitos? Se m e acostum ei com o sentim ento nacio
nalista hindu, com o dogm a, com as crenças, estou fechado nesse
condicionam ento e totalm ente inconsciente de seus efeitos. Vejo
apenas o sentim ento que em m im é despertado, o nacionalism o,
e tanto me basta. Identifico-m e com a nação, com a crença, etc.
M as não percebem os os efeitos gerais de tal condicionam ento.
D o m esm o m odo, não vem os os efeitos do m edo, tan to psicos
som áticos, como psicológicos. Q ue é que o m edo causa? Senho
res, estam os num a “ reunião de exam e” e vós tendes de tom ar
p arte ativa nesse exam e.
IN T E R R O G A N T E : Vejo-m e em dificuldades, toda vez que
ten to im pedir que essa coisa (o m edo) aconteça.
K R IS H N A M U R T I: O m edo detém ou paralisa a ação. Estais
cônscio disso? T ende o cuidado de não generalizar. Estam os
realizando estas reuniões com o fim de ver o que está realm ente
ocorrendo d en tro em nós; de o u tro m odo, elas não terão u tili
dade nenhum a. C onsiderando juntos os efeitos do m edo e nos
tornando cônscios dele, podem os achar a possibilidade de trans
cendê-lo. Assim , se sou realm ente s é rio , cumpre-m e ver os efei
tos do m edo. Conheço de fato os efeitos do m edo? O u só os
conheço verbalm ente? Conheço-os como coisa ocorrida no pas
sado e que perm anece como m em ória, e esta m em ória m e está
dizendo “ Eis os efeitos do m edo” ? P o r conseqüência, é a m e
m ória, e não a m ente, que está vendo os efeitos do m edo. Percecebeis? Acabo de dizer um a coisa realm ente m uito im portante.
IN T E R R O G A N T E : Podeis repeti-la?
K R IS H N A M U R T I: Q uando digo que conheço os efeitos do
m edo, que significa isso? O u os conheço verbalm ente, ou seja
intelectualm ente, ou os conheço com o m em ória, com o coisa suce
dida no passado, e digo “ Isso aconteceu” . P o r conseguinte, é
o passado quem me diz quais são esses efeitos. M as, eu não os
vejo no m om ento presente; trata-se de coisa lem brada, e não de
um a realidade. M as, “ saber” im plica v e r s e m a c u m u l a r ; não,
reconhecim ento, porém v e r o fato. Consegui c o m u n ic a r -v o s isso?
Q uando digo “ tenho fom e” , é a lem brança de ter tido
fom e ontem que m o diz, ou é o fato real de que estou com
fom e a g o ra ? O percebim ento real de te r fom e agora é inteira-
m ente diferente da reação de um a lem brança que m e diz que
tive fom e antes e, p o r conseguinte, devo estar com fom e agora.
É o passado que vos está “ contando” os efeitos do m edo, ou
estais cônscios de que esses efeitos estão realm ente ocorrendo
a g o r a ? As ações, em am bos os casos, são com pletam ente dife
rentes, não? Se estou perfeitam ente cônscio dos efeitos do m edo
a g o r a , atuo instantaneam ente. M as se é a m em ória que m e diz
quais são esses efeitos, m inha ação é diferente. E stá claro? Pois
bem ; qual é o caso?
IN T E R R O G A N T E : Pode-se distinguir en tre um determ inado
tem or — e o percebim ento atual dos efeitos do m edo c o m o ta l
— sem a lem brança dos efeitos de um dado tem or?
K R IS H N A M U R T I: É isso que eu estava procurando explicar.
As ações, em am bos os casos, diferem com pletam ente. P erce
beis isso?
P o r favor, se não o percebeis, não digais “ sim ” ;
não “ brin quem os” uns com os outros. M uito im porta com pre
ender isso. JÉ o passado que vos está m ostrando os efeitos do
m edo, ou há um percebim ento, um conhecim ento direto dos
efeitos do m edo a g o ra ? Se é o passado, a ação é incom pleta e,
por conseguinte, contraditória e causadora de conflito. M as, se
estais perfeitam ente cônscio dos efeitos do m edo a g o ra , a ação
é total.
IN T E R R O G A N T E : N este m om ento, aqui sentado, neste pavi
lhão, não sinto m edo, porque vos estou escutando. Mas esse
m edo pode reaparecer quando eu sair do pavilhão.
K R IS H N A M U R T I: M as, não podeis agora, aqui no pavilhão,
ver o m edo que porventura ontem tivestes, não podeis “ invo
cá-lo” , “ chamá-lo” ?
IN T E R R O G A N T E : Pode tratar-se de tem ores relativos à p ro
teção da vida.
K R IS H N A M U R T I: Não im porta qual seja a espécie de m edo.
M as há necessidade de dizerdes: “ N ão sinto tem ores agora, mas
quando sair daqui tornarei a senti-los” ?
IN T E R R O G A N T E : A gente pode “ invocá-los” — como disses
tes — pode “ chamá-los” , mas já nos prevenistes a respeito deste
ponto — apelar para a m em ória, para o pensam ento relativo ao
m edo.
104
K R IS H N A M U R T I: E u estou perg untando: Preciso esperar até
sair deste pavilhão, para descobrir quais são os m eus tem ores?
O u, enquanto estou aqui sentado, posso estar cônscio deles?
N este m om ento, não tenho m edo de que alguém m e diga certas
coisas; m as, quando encontrar-m e com o hom em que me vai
dizê-las, sentirei m edo. N ão posso ver agora o fato real?
IN T E R R O G A N T E : N ão estais sugerindo um exercício?
K R IS H N A M U R T I: N ão, nenhum exercício. Q ue m edo tendes
de fazer exercícios! Senhor, não tendes m edo de perder o vosso
em prego? N ão tendes m edo da m orte? N ão tendes m edo de
não poderdes preencher-vos? Não tendes m edo de ficar só?
N ão tendes m edo de não ser am ado? N ão tendes alguma espé
cie de m edo?
IN T E R R O G A N T E : Só se há um desafio.
K R IS H N A M U R T I: M as e u vos estou “ desafiando” . N ão com
preendo essa m entalidade!
IN T E R R O G A N T E : Se há um im pulso, agimos; tem os de fazer
algum a coisa.
K R IS H N A M U R T I: Não!
E stais tornando complicada demais
um a coisa tão natural com o ouvir o barulho daquele trem que
passa. O u podeis lem brar-vos do barulho do trem , ou podeis
escutá-lo realm ente. N ão com pliqueis a coisa, por favor.
IN T E R R O G A N T E : N ão estais, de certa m aneira, a complicá-la,
falando em “ invocar o m edo” ? N ão tenho necessidade de “ invo
car” nenhum dos m eus tem ores; pelo simples fato de estar aqui,
posso observar m inhas reações.
K R IS H N A M U R T I: É isso m esm o que estou dizendo.
IN T E R R O G A N T E : Para poderm os “ estar em com unicação”
aqui, tem os de conhecer a diferença entre cérebro e m ente.
K R IS H N A M U R T I: Já tratam os disso. Estam os agora procuran
do averiguar o que é o m edo, procurando aprender a respeito
dele. E stá livre a m ente para aprender a respeito do m edo?
A prender a seu respeito é observar o seu m ovim ento. Só podeis
observar o m ovim ento do m edo quando não estais a lem brar105
-vos de vossos tem ores passados e a observar o m edo com essas
m em órias. Percebeis a diferença? E u posso observar o m ovi
m ento. Estais aprendendo a respeito do que realm ente ocorre
quando há m edo? N ós estam os “ fervilhantes” de m edo, a todas
as horas. Parecem os incapazes de libertar-nos dele. Q uando
tivestes tem ores no passado e deles estivestes cônscio, que efeito
tinham eles em vós e em vosso am biente? Q ue acontecia? Não
vos sentíeis desligado dos dem ais? O s efeitos desses tem ores
não vos isolavam ?
IN T E R R O G A N T E : Eles me paralisavam .
K R IS H N A M U R T I: Punham -vos num estado de desespero, sem
saber o que fazer. O ra, quando se verificava esse isolam ento,
como era a ação?
IN T E R R O G A N T E : F ragm entária.
K R IS H N A M U R T I:
P restai bem atenção, p o r favor: H ouve
ocasiões, no passado, em que sentí m edo, e os seus efeitos eram
de m e isolar, paralisar, fazer-me sentir desesperado. Vinham m e ânsias de fugir, de buscar conforto em algum a coisa. P o r
ora, cham arem os a isso “ isolar-se de todas as relações” . O
efeito desse isolam ento na ação é o de fragm entá-la. N ão vos
acontecia isso?
Q uando sentíeis m edo, não sabíeis o que fa
zer a seu respeito, e vossa reação era de fugir dele, de ten tar
reprim i-lo ou racionalizá-lo. E , quando éreis obrigado a agir,
vossa ação era ditada pelo m edo, que, em si, isola. P o rtan to ,
um a ação resultante desse m edo é necessariam ente fragm entá
ria. E , como a fragm entação é contraditória, havia m uita lu
ta, dor, ansiedade, não?
IN T E R R O G A N T E : Senhor, assim como um alejado anda de
m uletas, assim tam bém a' pessoa que se vê tolhida, paralisada
pelo m edo, tem de usar várias espécies de m uletas.
K R IS H N A M U R T I: É isso que estam os dizendo. T endes ra
zão. T endes agora um a idéia bem clara dos efeitos do m edo
sentido no passado: produzem ação fragm entária. Q ual a di
ferença e n tre esta e a ação do m edo sem a reação da m em ó
ria? Q uando se vos apresenta um perigo físico, que acontece?
IN T E R R O G A N T E :
106
Ação espontânea.
K R IS H N A M U R T I: Cham am -na “ ação espontânea” — m as, é
realm ente espontânea? Averiguai isso, po r favor; nós estam os
tentando descobrir alguma coisa. Id es pela floresta, sozinho,
num a região selvagem e, de repente, surge-vos à frente um a
ursa com crias. Q ue acontece?
Sabendo que o urso é um
anim al perigoso, que vos acontece?
IN T E R R O G A N T E :
K R IS H N A M U R T I:
A um enta a adrenalina.
Sim, qual a ação que se verifica?
IN T E R R O G A N T E : A gente vê que é perigoso transm itir o
próprio m edo ao urso.
K R IS H N A M U R T I:
N ão, não é isso: que acontece a v ó s ?
N aturalm ente, se sentis m edo, transm itis ao urso esse m edo,
ele se assusta e vos ataca. Isto é m uito sim ples; não estais
percebendo o pon to essencial.
Já vos encontrastes com um
urso, na floresta?
IN T E R R O G A N T E :
periência .
H á um a pessoa aqui que teve essa ex
K R IS H N A M U R T I: E u tam bém . A quele cavalheiro e eu, em
certos anos, tivem os várias dessas experiências.
M as, que é
que sucede? A poucos pés de distância de vós, está um urso.
M anifestam -se todas as reações corporais — o fluxo de adre
nalina, etc.; im ediatam ente vos detendes, fazeis m eia-volta e
fugis. Q ue aconteceu? Q ual foi a reação? Um a reação con
dicionada, não? H á m uitas gerações vos vêm dizendo “ C uida
do com os anim ais selvagens!”
Se vos assustais, transm itis
ao anim al o vosso m edo e ele vos ataca. T udo se passa instan
taneam ente. Q ue está funcionando, o m edo ou a inteligência?
É o m edo despertado pela contínua repetição da advertência
“ cuidado com os animais selvagens!” — que vos condiciona
desde a infância? O u é a inteligência? A reação condicionada,
em presença da fera e a ação dessa reação condicionada é um a
coisa; a percepção e a ação da inteligência é o u tra coisa; as
duas ações são inteiram ente diferentes.
E stais percebendo?
Vem um ônibus a toda velocidade; vós não vos lançais à sua
frente: a inteligência vos diz “N ão faça isso!” Isso não é
m edo — a m enos que sejais neurótico ou tenhais tom ado dro
107
gas. È vossa inteligência, e não o m edo, que vos im pede de
fazê-lo.
IN T E R R O G A N T E : N o encontro com um anim al feroz, não
tem a gente necessidade tanto da inteligência com o da reação
condicionada?
K R IS H N A M U R T I: Não, senhor. Com preendei isso. Se se
tra ta de um a reação condicionada, nela existe m edo e este é
transm itido ao anim al; mas assim não acontece quando é a in
teligência que funciona.
T ratai, pois, de descobrir qual das
duas coisas está operando. Se o m edo, então a sua ação é in
com pleta e, por conseguinte, existe perigo p or p arte do ani
m al; m as, na ação da inteligência não há m edo nenhum .
IN T E R R O G A N T E ( 1 ) : Q uereis dizer que, se observo o u r
so com essa inteligência, posso deixar-m e m atar po r ele sem
sentir m edo?
IN T E R R O G A N T E ( 2 ) : Se eu nunca tivesse visto um urso,
nem sequer saberia que estava em presença de um urso.
K R IS H N A M U R T I:
Q ue complicações estais am bos criando!
Isso é tão simples. Bem, deixem os de parte os anim ais. P a r
tam os de nós m esm os — pois, em parte, somos tam bém ani
mais.
O s efeitos do m edo e suas ações baseadas em lem branças
são destrutivos, contraditórios e paralisantes.
Percebeis isso
— não verbalm ente, porém realm ente?
Percebeis que, quan
do tendes m edo, vos vedes com pletam ente isolado e que qual
quer ação provinda desse isolam ento só pode ser fragm entária,
p or conseguinte contraditória, havendo, conseqüentem ente, lu
ta, dor, etc.? O ra, a ação resultante do percebim ento do m e
do, sem as reações da m em ória, é um a ação com pleta. E xpe
rim entai isso! F a ze i-o ! Ficai vigilante, quando estiverdes vol
tando para casa; vossos velhos tem ores virão à superfície.
Observai-os; vede se são tem ores reais ou
apenas tem ores p ro
jetados pelo pensam ento, como m em ória. Ao surgirem eles,
verificai se os estais observando pela reação do pensam ento, ou
se estais sim plesm ente o b s e rv a n d o . O que nos interessa é a
ação, porque a vida é ação. Não estam os dizendo que só um a
p arte da vida é ação. O viver, todo inteiro, é ação, e essa
108
ação foi dividida em fragm entos; a fragm entação da ação é
esse processo da m em ória, com seus pensam entos e seu isola
m ento. E stá claro?
IN T E R R O G A N T E : Q uereis dizer que se trata de experim en
tar totalm ente, em cada fração de segundo, sem interferência
da m em ória?
K R IS H N A M U R T I:
Senhor, fazendo um a pergunta dessas,
cum pre-vos investigar a questão da m em ória. Vós necessitais
da m em ória — quanto mais clara, quanto mais precisa, tanto
m elhor. Para poderdes funcionar tecnologicam ente, até m esmo
para poderdes voltar a casa, necessitais da m em ória. M as, o
pensam ento, como reação da m em ória e, dessa m em ória, a pro
jetar o m edo, é um “ processo” inteiram ente diferente. O ra,
que é o m edo? Q ue acontece, para que exista m edo? Como
se verificam os nosso tem ores? Podeis dizer-mo?
IN T E R R O G A N T E :
No m eu caso, é o apego ao passado.
K R IS H N A M U R T I:
C onsiderem os esta coisa: Q ue entendeis
pela palavra “ apego” ?
IN T E R R O G A N T E :
A m ente está aferrada a um a certa coisa.
K R IS H N A M U R T I: Q uer dizer, a m ente não quer largar um a
certa m em ória. “ Q uando eu era jovem , como tudo era belo !”
O u não posso largar a idéia de um a coisa que pode acontecer;
assim, para me proteger cultivo um a crença. E stou apegado a
um a lem brança, a um a peça de m obília, ao livro que estou
escrevendo porque, escrevendo-o, m e tornarei fam oso.
E stou
apegado a um nom e, a um a fam ília, a um a casa, a diferentes
lem branças, etc. Com tudo isso m e identifiquei. P orque esse
apego?
IN T E R R O G A N T E :
Não é porque o m edo constitui a base
m esm a de nossa civilização?
K R IS H N A M U R T I: Não, senhor; porque tendes apego? Que
significa essa palavra — apego? E u dependo de alguma coisa.
D ependo de vosso com parecim ento, para ter a quem falar. D e
pendo de vós e, por conseguinte, tenho-vos apego, porque esse
apego me dá um a certa energia, um certo ím peto, — e outras
109
baboseirais tais!
E stou, pois, apegado — e isso significa o
quê? D ependo d e vós, dependo de m eus m óveis. Apegado
como estou, apegado à m obília, a um a crença, a um livro, a
m inha fam ília, a m inha esposa, de tudo isso dependo para ter
conforto, para ter prestígio, posição social.
A dependência,
pois, é um a form a de apego. O ra, porque dependo? Não res
pondais. O bservai isso em vós mesm o. Vós dependeis de al
gum a coisa, não? De vossa pátria, de vossos deuses, de vossas
crenças, das drogas que tom ais, das bebidas que bebeis!
IN T E R R O G A N T E : Isso faz p arte do condicionam ento social.
K R IS H N A M U R T I: É o condicionam ento social que vos faz
depender? Isso significa que sois um a p arte da sociedade. A
sociedade não é independente de vós; vós a criastes e corrom
pestes, e ficastes preso nessa m esm a gaiola que construístes,
fazeis p arte dela. P o rtan to , não lanceis a culpa à sociedade.
E stais percebendo as “ im plicações” da dependência?
Q ue é
que ela im plica? P orque sois dependente?
IN T E R R O G A N T E :
Para não me sentir só.
K R IS H N A M U R T I:
Um m om ento; escutai em silêncio: D e
pendo de um a certa coisa, porque ela preenche m eu vazio. D e
pendo de m eu saber, de m eus conhecim entos, de m eus livros,
porque encobrem o m eu vazio, m inha superficialidade, m inha
estupidez; o saber, po rtan to , se tornou sobrem odo im portante.
Falo acerca da beleza de certos quadros porque, em m im m es
m o, deles dependo. Assim , a dependência denuncia o m eu va
zio, m inha solidão, m inha insuficiência; é isso que m e faz d e
pender de vós. Eis um fato — não? N ão precisais aduzir teo
rias ou argum entos a respeito dele. Se eu não estivesse vazio,
se não fosse insuficiente, não me im portaria com o que dissés
seis ou fizésseis. N ão dependeria de nada. P orque m e vejo
vazio e só, não sei o que faça com m inha vida. Escrevo um
livro estulto, e ele satisfaz m inha vaidade. C onsequentem ente,
dependo; e isso significa que tenho m edo de estar só, tenho
m edo de m eu vazio e, po r isso, o preencho com coisas m ate
riais, com idéias, com pessoas.
N ão tendes m edo de desvendar vossa solidão, vosso va
zio, vossa insuficiência?
Vós o estais fazendo agora, não?
110
P or isso, sentis m edo, a g o ra , desse vazio. Q ue ides fazer? Q ue
está ocorrendo? A ntes, tínheis apego a pessoas, a idéias, a coi
sas de toda ordem ; e agora percebeis que essa dependência es
conde o vosso vazio, a vossa superficialidade.
Percebendo-o,
estais livre, não? O ra, qual a reação? Esse m edo é reação da
m em ória? O u ele é real, e o estais vendo?
E stou tendo um trabalhão p or vossa causa, não? O ntem ,
de m anhã, vi um a caricatura: um m enino diz para outro m e
nino: “ Q uando eu crescer, vou ser um grande profeta, vou fa
lar de verdades profundas, mas ninguém quererá escutar-m e.” E
o outro m enino diz: “ P orque então quereis falar, sem ninguém
para escu tar?” “ Ah! — retrucou ele — nós, os profetas, so
mos m uito teim osos” .
Desvelastes agora o vosso m edo resultante do apego, que
é dependência. Exam inando-o, vedes o vosso vazio, a vossa su
perficialidade, a vossa insignificância, e sentis m edo. Q ue su
cede? Vede-o, senhores!
IN T E R R O G A N T E :
T rato de fugir.
K R IS H N A M U R T I: Tentais fugir p o r m eio de ou tro apego,
o utra dependência. P o r conseguinte, voltais ao velho padrão.
M as, se estais vendo a verdade de que o apego e a dependên
cia estão escondendo o vosso vazio, não tendes vontade de fu
gir, tendes? Se não vedes esse fato, não podeis deixar de fu
gir. T ratareis de preencher aquele vazio de outras m aneiras.
A ntes, o preenchíeis com drogas, agora, o preencheis com o
sexo ou o utra coisa. Assim , quando vedes o fato, que aconte
ce? C ontinuai, senhores, ide para diante!
E stive apegado a
m inha casa, m inha m ulhar, m eus livros, m eus escritos, m eu
desejo de ser fam oso; vejo que o m edo surge porque não sei
o que faça com o m eu vazio e, por conseguinte, dependo, tenho
apego. Q ue faço quando m e vem esse sentim ento de um gran
de vazio dentro em m im ?
IN T E R R O G A N T E :
Tenho um fo rte s e n tim e n to .. .
K R IS H N A M U R T I:... que é m edo. D escubro que sinto m e
do e, por conseguinte, tenho apego. Esse m edo é a reação da
m em ória ou é um descobrim ento real? — descobrim ento in
teiram ente diferente da reação do passado. O ra, qual é o vos
111
so caso?
passado?
m esm o.
T rata-se de real descobrim ento? O u da reação do
N ão respondais. Descobri-o, senhor, penetrai em vós
IN T E R R O G A N T E :
Senhor,
abertos para o m undo, não?
nesse
vazio
estam os,
decerto,
K R IS H N A M U R T I: N ão; estou perguntando um a coisa bem
diferente.
O sentim ento de vazio, de solidão e insuficiência
— que não com preendestes bastantem ente, para dar cabo de
le — criou m edo. Vós o descobristes agora, a q u i, neste pavi
lhão? O u trata-se do reconhecim ento de um a coisa vinda do
passado? D escobristes que tendes apego porque dependeis, e
que dependeis porque tendes m edo do vazio? Estais cônscio
de vosso vazio e do “ processo” que ele im plica? Ao vos to r
nardes cônscio do vazio, há, nessa percepção, m edo, ou estais
sim plesm ente vazio?
Estais vendo, sim plesm ente, o fato de
estardes só?
IN T E R R O G A N T E :
solidão.
Se se pode ver esse fato, não há mais
K R IS H N A M U R T I: Vam os devagar, passo a passo, se não vos
desagrada. E stais vendo esse fato?
O u quereis voltar à an
tiga dependência, ao velho apego, à interm inável repetição do
costum ado padrão? Q ue ides fazer?
IN T E R R O G A N T E : Tuclo isso não é a nossa condição hum a
na? N ão m e vejo em m elhor situação do que um cachorrinho,
que não tem nenhum desses problem as.
K R IS H N A M U R T I: Infelizm ente, nós não somos cachorros.
E stou fazendo um a pergunta, a que não estais respondendo.
D escobristes p or vós m esm o o m edo que vem de verdes o vos
so vazio, vossa superficialidade, vosso isolam ento?
O u , após
descobri-lo, quereis fugir, apegar-vos a alguma coisa? Se não
fugis p o r m eio da dependência e do apego, que sucede, então,
ao verdes o vazio.
IN T E R R O G A N T E :
Liberdade.
K R IS H N A M U R T I: O lhai bem isso, trata-se de um problem a
m uito com plexo; não digais “ lib erdade” . A ntes, eu tinha ape
go para esconder o m eu m edo; agora, fazendo aquela pergunta,
112.
descubro que o apego era um a fuga ao m edo que vinha quan
do, p o r um a fração de segundo, eu percebia o m eu vazio. Ago
ra não fujo m ais. E , então, que sucede?
IN T E R R O G A N T E : E u diria que, após essa fração de segun
do, dá-se outra fuga.
K R IS H N A M U R T I: Isso significa que não estais vendo a inu
tilidade das fugas. C onseqüentem ente, persistis em fugir. Mas,
se vedes, se percebeis o vosso vazio, que sucede? Se estam os
de fato atentos, o que em geral sucede é perguntarm os: Q u e m
é que está cônscio do vazio?
IN T E R R O G A N T E :
É a m ente.
K R IS IIN A M U R T I: P o r favor, não vos precipiteis.
Ides se
guindo passo a passo. Q uem é que está cônscio do vazio? A
m ente? Uma p arte da m ente cônscia de o u tra p arte que está
só? C om preendeis esta pergunta? Torno-m e subitam ente côns
cio de que estou só. É um fragm ento de m inha m ente que diz
“ E stou só” ? E ntão, há divisão. E , enquanto houver divisão,
haverá fuga. N ão percebeis isso?
IN T E R R O G A N T E : Q ue sucede quando se experim enta o va
zio? Ao experim entar-se a solidão, já não se está cônscio dela.
K R IS H N A M U R T I: T ende a bondade de escutar, senhor. O
que se requer aqui é a observação persistente, e não um a con
clusão ou algum a coisa que achais que “ devia ser” . Isto é,
estou cônscio de m eu vazio; antes eu o escondia, agora ele foi
desnudado e dele estou cônscio. Q u e m está cônscio dele? Um
segm ento separado, de m inha m ente? Se é, há então divisão
entre o vazio e a entidade que está percebendo o seu vazio.
Q ue sucede, então, nesse vazio, nessa divisão? A esse respeito
nada posso fazer. M as, como quero fazer algum a coisa, digo:
“ Preciso desfazer a divisão” , “ preciso experim entar o vazio” ,
“ Preciso agir” . E nquanto houver divisão entre o observador e a
coisa observada, haverá contradição e, p or conseguinte, conflito.
É isso que estais fazendo? Um segm ento separado, da m ente, a
observar um vazio que não faz p arte de si próprio? Q ual é o
caso? Senhores, vós tendes de responder a esta pergunta. Se
é um a parte que está observando, então, que parte é essa?
113
IN T E R R O G A N T E :
A inteligência nascida da energia?
K R IS H N A M U R T I: N ão com pliqueis a questão, já suficiente
m ente com plexa. N ão aduzais novas palavras. M inha pergun
ta é m uito sim ples. P erguntei: Ao vos tornardes cônscio desse
vazio, do qual estáveis fugindo p o r m eio do apego, e dele não
estais fugindo agora, quem é que está cônscio? Cabe-vos descobri-lo.
IN T E R R O G A N T E : Esse percebim ento de estarm os vazios é
um a o u tra form a de fuga, e vem os que nada m ais somos do
que todas essas coisas juntas.
K R IS H N A M U R T I: Q uando dizeis “ E stou cônscio de m eu va
zio” , isso é o u tra form a de fuga e ficais em aranhado num a rede
de fugas. Assim é nossa vida. Se percebeis que apego é fuga,
abandonais o apego. Q uereis continuar andando de um m eio de
fuga para outro? O u, vendo um só fato r da fuga, com preen
destes todos os demais fatores?
★
Senhores, não é possível sustentar um a contínua vigilância
p or mais de dez m inutos, e já falam os durante um a hora e quinze
m inutos. P o rtan to , é m elhor pararm os. C ontinuarem os, ama
nhã, a exam inar esta m esm a coisa, até ela se to rn ar rea l para
vós — não p o r eu o dizer: trata-se de vossa própria vida.
3 de agosto de 1970.
114
DIÁLOGO
III
As profundezas da dependência e do m edo. O bser
vação do apego. Níveis de apego. H ábito. Neces
sidade de ver, em seu todo, a rede dos hábitos. Como
ver totalm ente? D iferença entre a análise e a obser
vação. O m ecanism o que sustenta o hábito. Q ue é
ação criadora?
K R IS H N A M U R T I: O n tem estivem os falando sobre a depen
dência e os apegos e tem ores que ela determ ina. Essa me parece
um a questão im portante de nossa vida, que m erece profundo
exam e. Bem consideradas as coisas, pode-se ver que não há
possibilidade de liberdade quando há qualquer form a de depen
dência. H á a dependência física e a dependência psicológica.
A dependência biológica de alim entos, roupas e m orada é um a
dependência natural; mas existe um apego oriundo da necessidade
biológica — com o, po r exem plo, possuir um a casa e a ela estar
apegado psicologicam ente; ou estar apegado a um a certa espécie
de alim ento, ou alim entos que nos forçam os a com er, em virtude
de outros fatores de m edo ainda não descobertos — e assim
por diante.
H á dependências físicas de que podem os tornar-nos cônscios
com relativa facilidade, como a dependência do fum o, das dro
gas, da bebida e outros estim ulantes físicos de que dependem os
psicologicam ente. E m seguida, as diversas form as de depen
dência psicológica. E stas têm de ser observadas m ui atenta
m ente, já que se interpenetram , estão m utuam ente relacionadas:
a dependência de um a pessoa, de um a crença, de um a relação,
de um hábito psicológico de pensam ento. Acho que se pode
115
estar cônscio delas com relativa facilidade. E , um a vez que
existe dependência e apego, físico ou psicológico, o pensarm os
na possibilidade de perderm os aquilo a que estam os apegados cria
m edo.
Podem os depender de um a crença, de um a experiência ou
de um a conclusão, ligada a determ inado preconceito; até que
profundidade vai esse apego? Não sei se já o observastes em
vós m esm o. E stiv em o s(* ) vigilante um dia inteiro, para ver
se existe alguma form a de apego — vir aqui pontualm ente,
viver num certo chalé, andar de terra em terra, falando a dife
rentes públicos, a ser olhado como pessoa im portante, a ser criti
cado, refutado. Q uando se esteve observando o dia inteiro,
descobre-se naturalm ente o quanto se está apegado a alguma
coisa ou pessoa, ou se não há apego algum. Se existe qualquer
form a de apego — não im porta de que natureza — a um livro,
a determ inado regim e alim entar, determ inado padrão de pensa
m ento, determ inada responsabilidade social —• tal apego, invaria
velm ente, gera m edo. E a m ente que tem m edo, em bora ignore
que esse m edo provém do apego a alguma coisa, essa m ente,
decerto, não é livre e, por conseguinte, está condenada a viver
num constante estado de conflito.
P ode um a pessoa ser dotada de um certo talento, tal um
m úsico ou cantor, fortem ente apegado a seu instrum ento, à sua
voz — se essa pessoa se vê incapacitada de m anejar o in stru
m ento ou de cantar, fica inteiram ente desnorteada, estão term i
nados os seus dias de glória. Poderá ter as mãos ou o violino
no seguro (e receber a respectiva indenização) ou tornar-se re
gente de orquestra; m as, em v irtude do apego, não poderá esca
par à inevitável escuridão do m edo.
N ão sei se cada um de nós aqui presentes — se somos
verdadeiram ente s é rio s — já exam inou esta questão, porque
liberdade significa estar livre de todo e qualquer apego e, por
conseguinte, de toda e qualquer dependência. A m ente que está
apegada não é objetiva, não é clara, não pode pensar sãm ente
e observar diretam ente.
H á os apegos psicológicos superficiais, e há as cam adas pro
fundas, onde pode encontrar-se alguma form a de apego. Como
(* )
K rishnam urti se refere a si próprio.
(N . do T .)
descobri-los? Corno poderá a m ente — que conscientem ente
talvez seja capaz de observar seus diferentes apegos e compreender-lhes a natureza — discernir a verdade e tudo o que ela
im plica?
Posso ter outras form as ocultas de apego. Com o
desvendar esses apegos ocultos, secretos? A m ente apegada a
alguma coisa não pode escapar ao conflito, ao conpreender que
deve abandonar esse apego, pois, de contrário, ele lhe causará
sofrim ento e ela tratará de apegar-se a o utra coisa. Assim é
nossa vida. Vejo que tenho apego a m inha m ulher e posso
perceber todas as conseqüências desse apego. E stando-lhe ape
gado, percebo que isso, inevitavelm ente, im plica m edo.
P or
conseqüência, vem o conflito do desapegar-m e dela, e o sofri
m ento, o conflito na m inha relação com ela. Isso é bem fácil
de observar e de expor à luz, para nós mesm os.
A questão, pois, é de verm os o quanto estam os apegados
a algum a form a de tradição, nos recessos profundos e ocultos
de nossa m ente. P restai atenção, po r favor, para verdes que
a liberdade implica que se esteja com pletam ente livre de todos
os apegos, pois, do contrário, haverá necessariam ente m edo. E
a m ente que leva um a carga de m edo é incapaz de com preender,
de ver as coisas como são, e de transcendê-las.
Com o observar os apegos ocultos? Posso ser um a pessoa
obstinada e pensar que não tenho apego a nada; posso ter che
gado à conclusão de que não dependo de coisa alguma. T al
conclusão leva à obstinação. M as, se estam os aprendendo, bus
cando, observando, então, nesse ato de aprender, não há con
clusão alguma. E m geral, estam os apegados a um a dada form a
de conclusão e de acordo com ela funcionam os. Pode a m ente
livrar-se de form ar conclusões? — estar livre de conclusões a
todas as horas, e não apenas ocasionalm ente?
“ G osto de cabelos com pridos, não gosto de cabelos com pri
dos” , “ G osto disto, não gosto daquilo” . Intelectualm ente, ou
em virtude de um a dada experiência, adquiristes um a certa
m aneira de pensar, não im porta qual. Pode a m ente agir sem
nenhum a conclusão? E ste é um dos pontos essenciais. Em
segundo lugar, pode a m ente revelar a si própria os ocultos
apegos, padrões e dependências? E , por últim o, considerando-se
a natureza e a estru tu ra do apego, pode a m ente atu ar num a m a
neira de vida que não produza isolam ento, mas seja sobrem odo
117
dinâm ica, em bora não fixada em ponto algum?
isso.
Exam inem os
A ntes de m ais nada, estam os cônscios de que, biologica
m ente, fisicam ente e psicologicam ente, estam os apegados? E stais
cônscio de vos achardes fisicam ente apegado a coisas? E estais
igualm ente cônscio das consequências desses apegos? Se estais
apegado ao uso do fum o, vede quanto é difícil abandoná-lo.
P ara os que fum am — para quem o fum ar se tornou um hábito
— isso é incrivelm ente difícil; o fum ar não só atua como e sti
m ulante e hábito social, mas há tam bém o apego a ele. Se
um a pessoa se torna cônscia de estar apegada à bebida, às drogas,
a várias espécies de estim ulantes, pode essa pessoa abandonar
instantaneam ente esse apego?
Suponham os que eu sou apegado ao uísque e estou cônscio
desse apego. Ele se tornou um hábito trem endo, m eu corpo o
exige, porque a ele se acostum ou, não pode passar sem ele. E
cheguei à conclusão de que não devo beber, porque é um hábito
nocivo e os m édicos m e recom endaram abandoná-lo. M as, o
corpo e a m ente contraíram o hábito. Pode a m ente, obser
vando esse hábito, abandoná-lo de todo, im ediatam ente? Vede
o que aí está im plicado. O corpo exige a bebida, porque a ela
se habituou, e a m ente diz: “ Tenho de abandoná-la” . H á, pois,
um a batalha entre as exigências do corpo e a decisão da m ente.
Q ue fareis? E m vez do uísque, considerai vossos próprios há
bitos; se não bebeis uísque, podeis ter outros hábitos fisioló
gicos, como franzir o sobrolho, olhar de boca aberta, tam borilar
com os dedos. Exam inem os isso, senhor, se vos apraz. O
corpo está apegado à bebida e a m ente diz “ Preciso livrar-m e
dela” — e percebeis tam bém que, quando há conflito entre o
corpo e a m ente, esse conflito se torna um problem a, um a luta.
Q ue fareis? P o r favor, senhores, começai! Deveis estar verda
deiram ente livre de todos os hábitos, se não desejais esclarecer
esta questão.
IN T E R R O G A N T E : O u a gente deixa de beber ou continua a
beber.
K R IS H N A M U R T I: Q ue fazeis vós, realm ente? P o r favor, não
brinqueis com esta questão, porquanto, um a vez a tenhais com
preendido, vereis sua enorm e im portância, vereis quanto é impor-
118
tarite agir e viver sem nenhum a espécie de esforço, vale dizer,
nenhum a deform ação.
IN T E R R O G A N T E : Vejo que eu sou o m eu hábito.
K R IS H N A M U R T I: Sim. E ntão, que ireis fazer?
m eu hábito, m eu hábito é o m eu próprio “ e u ” .
IN T E R R O G A N T E ( 1 ) :
desses hábitos?
Vejo que sou
Não devem os pen etrar até às raízes
IN T E R R O G A N T E ( 2 ) : D evem os com eçar por fazer cessar a
resistência ao hábito.
K R IS H N A M U R T I: Senhor, posso dizer um a coisa? Deíxemo-nos de teorias, de especulações. N ão m e digais o que se deve
fazer, mas tratem os de investigar, de aprender não só a olhar,
mas tam bém que desse próprio ato de olhar vem a ação.
Tenho um certo h ábito de coçar a cabeça, de tam borilar
com os dedos, de olhar as coisas de boca aberta — coisas m uito
físicas. O ra, como acabar com ele sem o m ínim o de esforço?
Estam os considerando hábitos a que estam os apegados, consciente
ou inconscientem ente.
E stou tom ando para exem plo hábitos
m uito triviais, como coçar a cabeça, puxar m inhas próprias ore
lhas, ou tam borilar com os dedos. Com o pode a m ente fazer
cessar qualquer desses hábitos sem nenhum esforço, sabendo que
todo esforço implica dualidade, im plica resistência, condenação
do hábito, desejo de transcedê-lo — reprim indo-o ou dele fu
gindo, verbalm ente ou não verbalm ente?
Assim , tendo tudo
isso em m ente, com preendendo esses fatos, como posso acabar
com um hábito físico sem esforço?
IN T E R R O G A N T E : O bservando-o em sua totalidade.
K R IS H N A M U R T I: Um m om ento, senhor, essa asserção pode
constituir a resposta a todas as nossas perguntas. “ O bservar o
hábito em sua to talidade” — que significa isso? Não apenas
u m dado hábito, como o de coçar a cabeça ou de tam borilar com
os dedos, mas todo o m ecanism o dos hábitos: a to ta lid a d e do
hábito e não apenas um fragm ento. O ra, como pode a m ente
observar a totalidade de seus hábitos?
IN T E R R O G A N T E : Pelo percebim ento passivo ou pela passiva
observação.
119
K R IS H N A M U R T I: Estais citando este orador. Acho que isso
de nada vos valerá. Não citeis ninguém , senhor!
IN T E R R O G A N T E : É a m ente a form adora do hábito?
K R IS H N A M U R T I: Vede, senhor, que esta é um a questão im por
tantíssim a, quando realm ente a penetram os. Pode a m ente obser
var, não apenas um certo h ábito insignificante, mas estar côns
cia de todo o m ecanism o form ador dos hábitos? N ão digais “ sim ” ,
não chegueis a nenhum a conclusão. V ede o que esta questão
implica. Tem os, não só hábitos insignificantes, como o de tam
borilar com os dedos, mas tam bém hábitos sexuais, hábitos
constituídos p o r padrões de pensam entos, por atividades várias.
Penso i s t o , concluo is to — e está form ado um hábito. Vivo
“ im erso” em hábitos, toda a m inha vida é um a estrutura de
hábitos. Com o pode a m ente tornar-se cônscia do inteiro meca
nism o do hábito?
Tem os mil-e-um hábitos — nossa m aneira de escovar os
dentes, de pentear os cabelos, de ler, de andar. U m desses
hábitos é o desejo de tornar-nos fam osos, de nos tornarm os
im portantes. Com o pode a m ente fazer-se cônscia de todos esses
hábitos?
P ode tornar-se cônscia deles, um por um ?
Sabeis
quanto tem po isso levaria?
E u poderia passar todo o resto
de m inha vida a observar cada um dos m eus hábitos e, contudo,
não dissolver nenhum deles. Q uero aprender a esse respeito.
Q uero descobrir isso, sem esm orecim ento. E stou perguntando:
É possível à m ente ver toda a rede dos hábitos? Como poderá
fazê-lo? N ão façais conjecturas, não chegueis a algum a conclu
são, não deis nenhum a explicação — isso não m e interessa; não
tem nenhum a significação dizer-se “ T ratai de fazer algum a coisa” .
E u quero aprender a esse respeito, agora. Q ue faço?
IN T E R R O G A N T E : Podem os tornar-nos cônscios do desperdí
cio de energia que há em seguirm os um determ inado padrão de
hábito — ou vários padrões — e desse m odo nos libertarm os
dele?
K R IS H N A M U R T I: V enho ter convosco e digo: “ P o r favor,
ajudai-m e a descobrir isso. E stou com fom e, não me deis um
m e n u , dai-me comida! E stou perguntando: “ Q ue ides fazer” ?
IN T E R R O G A N T E : C om preendendo totalm ente um dado hábi
to, talvez me seja possível libertar-m e de todos os hábitos.
120
K R IS H N A M U R T Í: Como posso observar um hábito, como o
de fazer girar os polegares, e ver todos os demais hábitos? É
possível isso, quando se trata de um hábito tão insignificante?
Sei que o faço devido a um a certa tensão. N ão suporto m inha
m ulher e, assim, criei esse hábito peculiar; ou faço-o porque
sou nervoso, tím ido, etc. M as, eu quero aprender sobre toda a
tram a dos hábitos. D evo fazê-lo pouco a pouco, ou há um a
m aneira de ver toda a tram a instantaneam ente? Respondei-m e,
p or favor.
IN T E R R O G A N T E : A e stru tu ra
duas p a r t e s .. .
dos hábitos se com põe
de
K R IS E tN A M U R T I: D uas partes: os hábitos e o observador
ocupado com esses hábitos. E o observador é tam bém um há
bito. São, p o rtan to , dois hábitos. E stou tam borilando com os
dedos e a observação desse hábito vem de um a entidade que é
tam bém o resultado de hábitos. T udo hábito! Assim , senhores,
como ireis ajudar-m e, ensinar-m e, fazer-me aprender a esse res
peito?
IN T E R R O G A N T E : M inha vida é toda de hábito; m inha m ente
é um hábito; é o estado de m inha m ente que tenho de m udar.
K R IS H N A M U R T Í: Q uem é o “ eu” que vai m udá-lo? O “ eu”
é tam bém um hábito, o “ e u ” é um a série de palavras, m em órias
e conhecim entos, vindos do passado, tam bém um hábito.
IN T E R R O G A N T E : Já que estam os com pletam ente enredados
em hábitos, é óbvio que não sabemos.
K R IS H N A M U R T Í: E ntão, porque não dizeis logo: “ N ão sei”
— em vez de ficardes jogando com palavras? Se n ã o s a b e is ,
vam os então aprender juntos. M as, prim eiro, tende certeza de
que “ não sabeis” ; e não citeis ninguém . Estam os preparados
para dizer “ R ealm ente, não sei” ?
IN T E R R O G A N T E : M as, porque é que tem os esses hábitos?
K R IS H N A M U R T Í: Isso é b astante sim ples.
Se tenho um a
dúzia de hábitos — levantar-m e todas as m anhãs às oito horas,
ir para o escritório, voltar a casa às seis, tom ar um “ gole” , etc.
— não tenho necessidade de pensar m uito, de estar m uito des-
121
perto. A m ente gosta de funcionar dentro de canais, de hábitos,
porque, assim, se sente abrigada, em segurança. Isto não requer
m uita explicação. O ra, como pode a m ente observar to d a a
rede dos hábitos?
IN T E R R O G A N T E : Talvez prestando atenção em todos os m o
m entos, en quanto nossas energias o perm itirem .
K R IS L IN A M U R T I: E stais vendo? — isso é um a pura idéia.
N ão m e interessam idéias. Senhor, dissestes um a coisa: Se a
m ente fo r capaz de ver to d a a e stru tu ra e a natureza do m eca
nism o do h ábito, poderá haver um a ação de espécie diferente.
É isso que estam os investigando; posso examiná-lo? Façamos
juntos esse exame.
Com o pode a m ente, que inclui o cérebro, ver um a coisa
totalm ente? — não apenas o hábito: qualquer coisa? Nós vemos
as coisas fragm entariam ente, não é verdade? T rabalho, fam ília,
com unidade, indivíduos, m inha opinião, vossa opinião, m eu D eus,
vosso D eus — tudo vemos em fragm entos. N ão é um fato isto?
E stais cônscio dele?
Se só se vê fragm entariam ente, não há
possibilidade de ver-se a totalidade. Se vejo a vida em frag
m entos, porque m inha m ente está condicionada, é claro que
não posso ver a totalidade do ente hum ano. Se m e separo,
p o r causa de m inha ambição, de m eus preconceitos pessoais,
não posso ver o todo. E stou bem cônscio de estar olhando a
vida parcialm ente — “ e u ” e “ não e u ” , “ n ós” e “ eles” ? É
assim que olho a vida? Se é, então, naturalm ente, não posso
ver coisa alguma totalm ente. A presenta-se, assim, a questão:
Com o pode a m ente, tão enredada que está nesse hábito de ver
e agir fragm entariam ente, ver o todo?
Claro que não pode.
Se estou todo interessado em m eu próprio preenchim ento, na
realização de m inha ambição, no com petir e no m eu desejo de
sucesso, não posso ver a hum anidade no seu todo. Assim , que
m e cum pre fazer? O desejo de m e preencher, de ser um a nota
bilidade, de realizar alguma coisa im portante, é um hábito —
um hábito social e bem assim um hábito que m e dá prazer. Se
ando pela rua, e todos me olham e apontam : “ Lá vai e le \ ” —
isso m e dá um enorm e prazer. E nquanto a m ente continuar
a operar nesse campo da fragm entação, é óbvio, não poderá
ver o todo. Agora, o que pergunto é isto: “ Q ue pode fazer a
m ente que está funcionando em fragm entos e percebe que não
122
tem nenhum a possibilidade de ver o todo? T erá de analisar e
com preender cada fragm ento? Isso levará um a eternidade.
Estais aguardando um a resposta deste orador?
IN T E R R O G A N T E : H á necessidade de silêncio total.
K R IS H N A M U R T I: Lá está ele citando alguém !( * )
IN T E R R O G A N T E : Se pudéssem os ver, agora m esm o, todos os
nossos hábitos, tais como realm ente são, e ver o processo que
nos está im pedindo de vê-los realm ente, neste in stan te. . .
K R IS H N A M U R T I: N ão é isso o que estam os fazendo? Não
estais indo para diante, mas voltando para trás repetidam ente.
N este m om ento, estou a tam borilar com os dedos, a escutar de
boca aberta o que se diz, e vejo que isso é um hábito. E o que
pergunto é isto: Posso com preender, agora m esm o, todo o m eca
nism o do hábito? Não estais prestando atenção. O ra, senhor,
a m ente que está em fragm entos não pode de m odo nenhum
ver o todo. Assim , pego um determ inado hábito e, aprendendo
a respeito desse hábito, percebo o inteiro m ecanism o de todos os
hábitos. Q ue hábito podem os considerar?
IN T E R R O G A N T E : F u m a r ...
K R IS H N A M U R T I: E stá bem . E u não estou analisando; com
preendeis a diferença en tre análise e observação? Análise im plica
a entidade que analisa, e as coisas que vão ser analisadas. A
coisa a analisar é o hábito de fum ar e, para analisá-la, há neces
sidade de um analista. A diferença entre análise e observação
é esta: observar é ver diretam ente, sem análise, ver sem o obser
vador, ver o vestido verm elho, cor-de-rosa ou preto, tal qual é,
sem dizer “ não gosto” . Só há observação. E ntendeis?
No
ver, não há observador. Vejo a cor verm elha e não há “ gostar”
nem “ não gostar” . A análise im plica: “ Não gosto do verm elho
porque m inha m ãe, que brigava m uito com o m eu p ai. .
A
análise levou o que estou analisando para os dias de m inha infân
cia. A análise, p o rtan to , requer um analista. P o r favor, procurai
perceber a divisão en tre o analista e a coisa analisada.
Na
(* ) “ Alguém ” refere-se ao próprio K rishnam urti.
disse que há necessidade de silêncio to tal. (N . do T .)
Foi ele quem
123
observação, não há separação: há observação sem o “ censor’’,
sem se dizer “ gosto” , “ não gosto” , “ isto é belo ” , “ aquilo não
é belo” , “ isto é m eu ” , “ aquilo não é m eu” . Eis o que vos
cabe fazer, em vez de vos lim itardes a tecer teorias a respeito
do assunto. E ntão, d e s c o b r ir e is !
Com o disse, não estam os analisando, porém sim plesm ente
observando o hábito de fum ar. Observando-o, que é que se
revela? — não peço vossa interpretação do que se revela. P er
cebeis a diferença? N ão há interpretação, não há tradução, não
há justificação, não há condenação. Q ue revela o hábito de
fum ar?
IN T E R R O G A N T E : Revela que estam os enchendo os pulm ões
de fum aça.
K R IS H N A M U R T I: Sim, isso é um fato. E m segundo lugar,
que vos diz esse fato? Ele vos “ contará a h istó ria” do hábito
de fum ar, se vos abstiverdes de interpretar. Se puderdes
“ escutar” , se puderdes observar o h ábito de fum ar, o quadro
que observardes vos dirá tudo. O ra, que vos revela esse hábito?
— que estais enchendo de fumaça os pulm ões. Q ue mais?
IN T E R R O G A N T E : Q ue dependem os dele.
K R IS H N A M U R T I:
um a erva.
Re vela-vos que estais na dependência de
IN T E R R O G A N T E : E que, interiorm ente, estam os vazios.
K R IS H N A M U R T I: Essa é vossa tradução.
vos revela — a v ó s ?
Q ue é que o hábito
IN T E R R O G A N T E : Vejo que é apenas um a ação m ecânica, que
pratico autom aticam ente, sem pensar.
K R IS H N A M U R T I: Revela-vos que estais fazendo m aquinal
m ente um a certa coisa. Revela-vos que, a prim eira vez que fu
m astes, vos sentistes mal; achastes desagradável fum ar, mas,
vendo outras pessoas fum arem , continuastes a fazê-lo. Agora,
isso se tornou um hábito.
IN T E R R O G A N T E : N ão nos revela tam bém que, de certo m odo,
ele nos tranquiliza?
124
K R IS H N A M U R T I: Revela-vos que ele vos faz dorm ir, ajuda-vos
a narcotizar-vos, acalma-vos os nervos, tira-vos o apetite, não
vos deixando engordar demais.
IN T E R R O G A N T E : Revela-nos que estam os aborrecidos da vida.
K R IS H N A M U R T I: D em onstra-vos que ele vos põe à vontade,
quando travais conhecim ento com certas pessoas, se vos sentis
nervoso. M uita coisa pode ele revelar.
IN T E R R O G A N T E : M ostra-m e que estou desatento.
K R IS H N A M U R T I: Essa é vossa tradução; ele não vos está
dizendo que sois desatento.
IN T E R R O G A N T E : Proporciona-m e um a certa satisfação, p rin
cipalm ente depois do jantar.
K R IS H N A M U R T I: Sim, ele vos ajuda, vos está dizendo tudo
isso. E, porque fazeis essa coisa?
Escutai, senhor, não me
respondais tão apressadam ente, por fa v o r(* ).
P orque é que
estais aceitando tudo o que ele vos revelou? A televisão vos
diz o que deveis saber, que m arca de sabonete usar, etc. etc.
Conheceis bem esses anúncios.
A todas as horas vos estão
dizendo algum a coisa — porque a aceitais? O s livros sagrados
vos dizem o que deveis e o que não deveis fazer. P orque aceitais
a propaganda das igrejas ou dos políticos?
IN T E R R O G A N T E : P orque é mais fácil seguir um sistema.
K R IS H N A M U R T I: P orque o seguis?
P orque necessitais de
segurança; da com panhia de outros; porque desejais ser igual
aos demais? Isso significa que tendes m edo de não ser igual
aos outros. Q uereis ser igual a todos os demais porque nisso
achais perfeita segurança. Se não sois católico num país cató
lico, encontrais m uitas dificuldades. Se estais num país com u
nista, e não seguis a linha do partido, encontrareis tam bém difi
culdades.
Vejo, agora, o que revelou o quadro desse hábito (o fum o)
e porque nele estou enredado: a relação entre m im e o cigarro.
Assim é o hábito, tal é a m aneira com o está funcionando m inha
(* )
Palavras dirigidas a um aparteante.
(N . do T .)
125
m ente inteira. Faço um a certa coisa porque ela m e dá segu
rança. C ontraio um hábito — trivial ou im portante — porque
ele me dispensa de pensar no que estou fazendo. Assim , a
m ente considera seguro funcionar na rede dos hábitos. E stou
vendo todo o m ecanism o da form ação dos hábitos. P o r m eio
do hábito de fum ar, descobri todo o padrão, descobri o m eca
nism o que está produzindo os hábitos.
IN T E R R O G A N T E : N ão com preendo bem com o, “ escutando”
um só hábito, posso ver todo o m ecanism o do hábito.
K R IS H N A M U R T I: E u vo-lo m ostrei. O hábito implica estar
mos funcionando m ecanicam ente e, pela observação do hábito
m ecânico de fum ar, percebo como a m ente funciona num a rede
de hábitos.
IN T E R R O G A N T E : M as, são m ecânicos todos os hábitos?
K R IS H N A M U R T I: Têm de ser; se usamos a palavra “ h áb ito ” ,
ela indica necessariam ente um a coisa mecânica.
IN T E R R O G A N T E : N ão há form as de dependência mais p ro
fundas do que os m eros hábitos m ecânicos?
K R IS H N A M U R T I: Se se usa a palavra “ h áb ito ” , ela implica
repetição m ecânica; form ar um hábito significa fazer a m esm a
coisa vezes sobre vezes.
Assim , não há “ bom h áb ito ” nem
“ m au h áb ito ” : estam os interessados unicam ente no hábito.
IN T E R R O G A N T E : Se, po r exem plo, tenho o hábito do poder,
ou o hábito do conforto, ou o hábito da propriedade, isso não
é um a coisa mais profunda do que o m ero h áb ito m ecânico?
K R IS H N A M U R T I:
O “ hábito do poder” , a necessidade de
poder, posição, dom ínio, agressão, violência — tudo isso está
im plicado no desejo de poder. Fazer o que se quer, com o um a
criança, ou um adulto — isso se tornou um hábito.
IN T E R R O G A N T E :
O u, necessitando de segurança. . .
K R IS H N A M U R T I: E u já disse que o hábito proporciona segu
rança, etc. E xam inando aquele hábito (fu m a r), vi que todos
os hábitos se baseiam na necessidade de segurança. U m a vez
que os hábitos são m ecânicos, “ repetitivos” , quando digo “ De-
126
sejo ser um grande hom em ” , caí na rede, porque nesse hábito
encontro segurança, e é isto que estou buscando. N o fundo
( não estam os considerando os hábitos bons ou m aus, m as, tão-só,
o h á b i t o ) , no fundo todos os hábitos são mecânicos.
T udo o
que faço repetidam ente, o que significa fazer a m esm a coisa de
ontem para hoje, de hoje para am anha, é necessariam ente mecâ
nico.
Certas ações m ecânicas podem ter um pouco mais de
“ polim ento” , não sofrer atritos, m as são sem pre hábitos, coisas
repetidas, como é bem óbvio.
IN T E R R O G A N T E : D iríeis que certas atividades criadoras são
hábitos?
K R IS H N A M U R T I: Respondam os a esta pergunta: Pode-se di
zer que a atividade criadora é um hábito?
IN T E R R O G A N T E : A ação criadora im plica vigor; não se faz
esforço para ser criador.
K R IS H N A M U R T I: E stais dizendo isso porque sois “ criador” ,
ou estais apenas conjecturando?
Tem os de perguntar o que
entendeis p or “ atividade criadora” . E sta pergunta é im portan
tíssim a, e vós a desconsiderais. P intais um quadro: ou o fazeis
porque amais a arte, ou porque ela vos dá dinheiro, ou porque
desejais descobrir um a m aneira original de pintar, etc. Q ue
significa “ ser criador” ? U m hom em que escreve um poem a
porque não pode suportar sua m ulher ou a sociedade, é criador
esse hom em ? O hom em que está apegado ao seu violino, p o r
que com ele ganha rios de dinheiro, é criador? E aquele que,
vendo-se num estado de grande tensão interior, escreve dram as
que o m undo aplaude — cham aríeis a esse hom em “ criador” ?
O hom em que bebe e, no estado de em briaguez, escreve um a
m aravilhosa poesia, cheia de ritm o — é criador?
IN T E R R O G A N T E : Com o podeis julgar?
K R IS H N A M U R T I: E u não julgo.
IN T E R R O G A N T E : M as vós suscitastes esta questão.
que alguém é ou não é criador, estou julgando.
Se digo
K R IS H N A M U R T I: E u não estou julgando, senhor; estou p er
guntando, estou aprendendo. O bservo as pessoas que escrevem
127
livros, que com põem poem as ou dram as, que tocam violino. Vejo
o fato à m inha frente, não digo “ isto é b o m ” ou “ isto é m au” ;
pergunto: Q ue é atividade criadora? N o m om ento em que digo
“ Isto é b o m ” , acabou-se, não posso aprender. E eu quero apren
der, quero descobrir o que significa “ ser criador” .
IN T E R R O G A N T E : Talvez signifique ser dotado de um a certa
e “ inocente” ( * ) capacidade de apreender o t o d o . . .
K R IS H N A M U R T I: N ão sei; talvez.
aprender.
E u quero descobrir, quero
IN T E R R O G A N T E : Significa estar desperto, vivo.
K R IS H N A M U R T I: V ou ao m useu, vejo todos os quadros, adm i
ro-os, com paro-os en tre si e digo: “ Q ue gênios criadores!” P o r
isso, quero averiguar o que significa “ ser criador” . Preciso
com por um a poesia, p in tar um quadro, escrever um dram a, para
ser criador? Isto é, a potência de criar exige expressão? T ende
a bondade de escutar atentam ente. A m ulher que coze pão,
num a cozinha sufocante, é criadora?
IN T E R R O G A N T E : Em geral chamamos “ criadoras” a tais ati
vidades.
K R IS H N A M U R T I: E stou interrogando.
sejam ; não sei; quero aprender.
Não digo que não
IN T E R R O G A N T E : Se faço pão, sem nunca o ter feito na
m inha vida, sou criador.
K R IS H N A M U R T I: E u vos estou perguntando, senhor, o que é
atividade criadora.
IN T E R R O G A N T E : Nós somos “ criadores” neste m om ento.
K R IS H N A M U R T I: N ão, não. O bservando as atividades que o
hom em costum a cham ar “ criadoras” , pergunto a m im m esm o:
Q ue é potência criadora? E la necessita de expressão? — tal
como assar pão, p in tar quadros, escrever dram as, ganhar di
nheiro. E la exige expressão?
(* ) Isto é, não contam inada pelo passado (este é o sentido geral
q u e K. dá à palavra “ inocente” ). (N . do T .)
128
IN T E R R O G A N T E ; Sim, penso que somos criadores agora.
K R IS H N A M U R T I: N ão é esse o ponto essencial. O pon to é
este: Sois criador ou estais m eram ente a ouvir alguém que vos
está cham ando a atenção para isso?
IN T E R R O G A N T E : Penso que um a pessoa cria quando observa
não criticam ente.
K R IS H N A M U R T I: N ão digais “ p e n so '’. Vede, senhor, estou
apaixonadam ente em penhado em descobrir.
IN T E R R O G A N T E : N o m om ento em que um a pessoa vê que
está apegada a certas coisas, nesse m esm o m om ento de ver ela
atua. Esse é o m om ento da criação.
K R IS H N A M U R T I: P o r conseguinte, estais dizendo “ ver é agir,
e nesse m om ento há criação” . — Isso é um a definição.
IN T E R R O G A N T E : Criação não é estar em harm onia com a
N atureza?
K R IS H N A M U R T I: Vós estais em harm onia com a N atureza?
Não estais percebendo aonde quero chegar. E u quero descobrir,
senhor, tenho fom e; observei os grandes pintores, assisti a todos
os dram as célebres, etc., e perg unto: Q ue é criação?
Q ue é
ser criador? N ão deis um a definição. E u quero aprender.
IN T E R R O G A N T E : Fazer um a coisa nova é ser criador.
K R IS H N A M U R T I: Q ue significa isso? Fazer um a coisa total
m ente nova e original, sem nenhum a decisão?
Isso significa
que o passado deve term inar. E m vós, ele term inou? O u estais
m eram ente a falar acerca de criação assim como falais acerca
de um livro? Se é isso, estou fora desse jogo. Q uero a p r e n d e r ,
estou apaixonado, quero verter lágrim as nesse trabalho, nessa
busca! Um hom em pode viver criadoram ente, sem fazer nenhu
m a dessas coisas, sem assar pão, sem p in tar quadros, sem escre
ver um poem a. Só podeis viver criadoram ente quando vossa
m ente não está fragm entada, quando não há m edo, quando a
m ente está livre de tudo o que vem do passado, livre do co
nhecido.
IN T E R R O G A N T E : Para m im a criação não é um a coisa, é um
m ovim ento.
5
129
K R IS H N A M U R T I: N ão “ para vós” , senhor, nem “ para m im ”
— • estais, todos vós, tornando a coisa pessoal. Criação não é
um a opinião. E stou com fom e, e m e estais enchendo de pala
vras. Isso significa que vós não tendes fom e. O n tem , depois
de falar sobre o apego, estive observando esse fato; a m ente
esteve vigilante o dia todo, para ver se eu tin ha apego a a lg u m a
co isa — a sentar-m e num estrado para discursar, falar a pessoas,
a escrever; apego a alguém , a idéias, a um a cadeira. Cum pre
investigar, pois, investigando, descobrem -se coisas extraordinárias,
a beleza da liberdade, e do am or que nasce dessa liberdade.
Q uando se fala em criação isso significa um a m ente que desco
nhece a agressão.
,
Assim , para com preenderm os
hábitos, tem os de estar vigilantes,
cular em nossas veias, fluir com o
Deixai que essa investigação vos
m aravilhosos descobrim entos!
o m ecanism o, a tram a dos
pen etrar o fato, fazê-lo cir
aquele rio em m ovim ento.
conduza, através do dia, a
4 de agosto de 1970.
VO
DIÁLOGO
IV
Necessidade de ver toda a tram a dos tem ores e fugas.
A lu ta contra o apego é um m ovim ento resultante da
fragm entação. Pode-se alcançar a integração e o escla
recim ento por meio da fragm entação? Com o surge a
fragm entação? O pensam ento e a categoria do tem po.
V isto que o pensam ento causa divisão e, entretanto,
é um a função necessária, que cum pre fazer? Função
da m ente libertada do “conhecido” . Necessidade de
fazer a pergunta sobre o “im possível” .
K R IS H N A M U R T I: Estivem os falando sobre o apego, que leva
inevitavelm ente ao m edo. Aludim os, tam bém , às várias form as
do m edo — os tem ores que tem os, tanto conscientes, como
inconscientes. Perguntam os, agora, se se pode observar todo o
conjunto desses tem ores e os diferentes meios de fuga, sem se
fazer uso de nenhum processo analítico. Acho necessário apro
fundarm os bem esta m atéria, porque a m ente que não está livre
do m edo e das diferentes form as de fuga ficará inevitavelm ente
paralisada, se tornará ininteligente, ainda que esteja seguindo
vários sistemas de m editação, etc. —- o que é m uito fútil e infan
til, quando não se está com pletam ente libertado do m edo.
Podem os fazer agora um exam e m uito mais profundo da
m ente, observando não apenas as suas camadas superficiais, mas
tam bém penetrando-lhe as camadas mais profundas e ocultas,
onde existem tem ores? Com o a m aioria das pessoas estão ape
gadas a um a coisa ou outra, isso indica que elas estão fugindo
de sua própria solidão, suas frustrações, seu vazio e superficiali
dade. O ra, estando-se cônscio desse m ovim ento de m edo, desse
131
m ovim ento de fuga ao vazio — pode-se ver esse “ processo”
em sua inteireza, e não apenas parcialm ente?
P ara se ver um a coisa totalm ente, deve cessar de todo a
atividade fragm entária da m ente que deseja resultados: “ Q uero
livrar-m e do m edo, a fim de atingir um outro estado” ; ou
“ Seguirei tais e tais sistem as de m editação, a fim de alcançar
o esclarecim ento” ; “ V ou disciplinar, controlar, m oldar a m im
m esm o, para ver coisas extraordinárias” . — T al m aneira de
pensar, de viver e agir é fragm entária. N ão sei se percebeis
isso claram ente.
Pode-se observar toda a tram a do m edo, do qual passam os
toda a existência a fugir, bem como os vários m eios de fuga
de que nos servim os? Podem -se observar essas complicadas e
tão sutis form as de fuga que são a própria essência do m edo?
Vê-se que a ação resultante de qualquer espécie de con
clusão é fragm entária, já que susta o aprender; podeis começar
a aprender, m as, se em qualquer m omento' form ar-se um a con
clusão, como resultado desse aprender, ele se tornará fragm en
tário. Q ue é que produz a fragm entação? Já consideram os o
m edo que há quando nos vemos apegados a algum a coisa, e o
cultivo do desapego como m eio de vencer o m edo. Isso é pensa
m ento fragm entário. Q ue é que causa a fragm entação em nossa
vida? Peço-vos, senhores, não tirardes nenhum a conclusão do
que estais ouvindo.
E u desejo realm ente comunicar-vos um a
coisa, dizer-vos que tem os a possibilidade de libertar-nos total
e com pletam ente do m edo — não só de nossos tem ores bioló
gicos, físicos, mas tam bém dos profundos tem ores psicológicos.
O m edo é um a conseqüência da fragm entação. O apego é
um a conseqüência da fragm entação. E ver o apego e ten tar ser
desapegado é um m ovim ento resultante da fragm entação. Tenho
apego a m inha fam ília e descubro que esse apego causa dor
ou prazer. Se é doloroso, quero lutar contra ele, para dele
m e libertar. Esse, como dissem os, é um m ovim ento resultante
da fragm entação e, p or conseguinte, dele não pode vir solução
nenhum a. Q ual é a base, qual o m ecanismo dessa fragm entação
de nossa vida? — fragm entação tanto interior como exterior:
divisão em diferentes nacionalidades, religiões, costum es? Com
um desses fragm entos esperam os chegar a um a síntese, ao estado
de integração, de esclarecim ento, ou como quer que o chameis.
132
Isto é, por m eio da fragm entação, esperais “ produzir” um a m ente
não fragm entária. Isso é possível? Os iogues, os r is h is e os
vários g u r u s prom etem tais coisas. M as, n ó s tem os de descobrir
porque se to m a existente a fragm entação, qual o seu m ecanism o,
e não, chegar a um a conclusão verbal ou intelectual a respeito
de seu processo. Tem os de ver, na realidade, não analitica
m ente, todo o seu m ecanism o. Não sei se me estou fazendo
entender. Senão, é bom parar, para considerarm os juntos esta
m atéria.
IN T E R R O G A N T E : Esses sábios, esses r is h is — como os cha
mais -—• não são hom ens esclarecidos?
K R IS H N A M U R T I: Q ue achais vós? Q uereis m inha opinião?
Só os desassisados dão opiniões. Com o podeis saber quem é
“ esclarecido” ? N unca fazeis essa pergunta. E u posso sentar-m e
num palanque e dizer que sou o m ais sábio, o mais esclarecido,
o mais divino dos entes hum anos, m as, como podeis saber que
o sou? É isso que está acontecendo no m undo. Chega um
hom em , faz tais asserções e m anda-vos fazer certas coisas para
alcançardes o esclarecim ento: “ E u o tenho e vo-lo posso d a r” .
Como sabeis que ele é um hom em esclarecido? E que im porta
saber quem é esclarecido e quem não é?
IN T E R R O G A N T E : Um a pessoa pode ter experiências por si
própria, fazendo certas coisas, seguindo um certo m étodo.
K R IS H N A M U R T I: Não, senhor, não há nenhum m étodo para
seguir. N ão vamos oferecer-vos nenhum m étodo. Nós estam os
aprendendo. A prender não é seguir um m étodo. Pode-se apren
der algum a coisa por m eio de um m étodo, mas o que se aprende
só serve para condicionar a m ente a esse sistem a. A prender é
observar. Se observam os que um dado sistem a condiciona e
mecaniza a m ente, então todos os sistemas dão o m esm o resul
tado: aprende-se o que o sistem a dá. P or m eio de um sistem a
pode-se ter a mais fantástica experiência, mas tal experiência será
sem pre m uito lim itada. Isso é perfeitam ente óbvio.
IN T E R R O G A N T E : Para começar, não se poderia fazer uso de
um sistem a, só para se ter um a idéia, ainda que parcial, de sua
eficácia e, daí, iniciar a “ grande viagem ” ?
133
K R IS H N A M U R T I: Q ue utilidade tem começar com m uletas e
depois largá-las? Senhor, porque ficar agarrado a cordéis, quando
tendes a possibilidade de, pela observação de vós m esm o, “ apren
d e r” todo o fenôm eno da existência — e passar além ? Senhor,
se quereis a ajuda de um in stru to r, perm iti-m e ponderar, m ui
respeitosam ente, que essa idéia de que alguém pode ensinar-vos
é o m aior dos em pecilhos. É começar justam ente com um a
fragm entação, um a divisão — vós e o in stru to r, vós e o “ ilum i
n ad o ” . U m a evidente divisão.
IN T E R R O G A N T E : M as, vós não estais ensinando?
K R IS H N A M U R T I: E u?
D esde o começo, este orador tem
dito que não há in stru to r nem discípulo. Isso ele vem dizendo
h á quarenta e cinco anos, não p or falta de siso ou por efeito
de um a reação, mas, sim, porque percebeu a verdade de que
ninguém pode “ ensinar esclarecim ento” a outra pessoa por meio
de um sistem a, nem tam pouco pela m editação ou qualquer espé
cie de disciplina. E sta verdade, ele a viu há quarenta e cinco
anos e, agora, perguntais: sois ou não sois um in stru to r? E u
já vos expliquei que não o sou. Ser in stru to r significa que um a
certa pessoa acum ulou conhecim entos e os transm ite a outros,
assim como um professor transm ite aos alunos os seus conhe
cim entos. N ão é esta, de m odo nenhum , a nossa relação aqui.
A qui, nós estam os aprendendo juntos, como já explicam os bem
claram ente. C o m u n ic a ç ã o significa que as pessoas estão apren
dendo juntas, criando juntas, observando juntas.
C om preen
dendo-se isso, a comunicação se torna totalm ente diferente. Mas,
se supondes que este orador, p or estar sentado num palanque,
sabe mais do que vós, é um hom em esclarecido, eu vos peço:
tende a bondade de não atribuir-lhe tais coisas! Vós nada sabeis
acerca de “ esclarecim ento” . Se soubésseis o que é isso, se o
com preendêsseis, se o vivêsseis, não vos acharíeis aqui. Uma
das coisas mais extraordinárias é descobrir, aprender, e não, “ ser
ensinado” . N ão se precisa pagar nada a ninguém , para a p r e n d e r .
Im agine-se — pagar dinheiro para “ aprender a verdade” ! Q ue
estais vós fazendo — aprendendo ou “ sendo ensinados” ?
Senhores, estam os tentando descobrir o que a fragm enta
ção im plica. Q uando há in stru to r e discípulo, isso é fragm en
tação. “ E u superior” , “ eu in ferior” “ alm a” e “ corpo” . . . divi
são, sem pre divisão!
134
IN T E R R O G A N T E : O pensam ento só é capaz de dar atenção
a um a coisa de cada vez. Não é, pois, o pensam ento a causa
da fragm entação? Se o pensam ento, para dar atenção a um a
coisa, tem de rejeitar as dem ais, isso significa que o pensam ento,
inevitavelm ente, gera fragm entação; a própria atividade de pen
sar é fragm entação.
K R ISH N A M U R TT : Nós vamos aprender: tende a bondade de
não tirar conclusões. E u estou perguntando por que razão vive
mos neste estado de fragm entação, com o acontece isso. Q ual
a causa oculta dessa fragm entação? Suponham os um a coisa m uito
simples: Vós sois o in stru to r, e eu o discípulo; porque esta
divisão entre vós e m im ? Q uero aprender ou quero seguir a
autoridade que estais representando ou que a vós m esm o o u to r
gastes? Vós dizeis que sabeis, que sois um hom em esclarecido;
e eu quero ter o que tendes, sou ávido, preciso de um a coisa
que m e dê felicidade. P o r isso, vos sigo: sois o m estre, e eu
o discípulo. Seguir é fragm entação. N unca indaguei po r que
razão vos sigo. Q ual a razão, qual a base de m inha aceitação
de vós como autoridade? Podeis ser um neurótico, um m aníaco
que teve algum a experiência insignificante e a encheu de vento
até torná-la um a coisa “ form idável” ; como sou incapaz de julga
m ento, deixo-m e fascinar po r vossas barbas, vossos olhos ou
o u tra coisa qualquer, e vos sigo, pura e sim plesm ente. M as, se
desejo aprender, não vos aceitarei como autoridade, porque no
m esm o instante em que o fizer estará iniciada a fragm entação.
V ede isso, p o r favor!
Q ualquer que seja a espécie de autoridade — espiritual,
política, m ilitar — no m om ento em que a supom os, no m om ento
em que suponho que vós sabeis e eu não sei, está criada a frag
m entação.
E esta, inevitavelm ente, levará ao conflito entre
vós, o m estre, e e u ( * ) . E stá bem claro isto? Se está, n u n c a
m a is seguirei ninguém .
IN T E R R O G A N T E : Se a pessoa nos faz bem , senhor, porque não
devemos segui-la? Não é m elhor um fragm ento do que nada?
K R IS H N A M U R T I: O m estre m e ensina um a coisa e eu a faço.
Fazendo-a, sinto m uito deleite, m uito prazer: com preendi o que
(* ) Isto é, entre vós (q u e sois o m estre) e eu.
e não três. (N . do T .)
São duas pessoas
m e foi ensinado! Q ue indica isso? Indica m inha ânsia de expe
riência, de com preensão, não de m im m esm o, mas daquilo que
o g u r u diz. Se ele dissesse: “ Com preendei a vós m esm o” —
isso, sim, seria m uito mais im portante do que o u tra qualquer
coisa que ele dissesse. Não tenteis com preender-m e: tratai de
com preender-vos. M as, preferis seguir-me a com preender a vós
m esmo! P orque existe essa fragm entação?
IN T E R R O G A N T E : P orque somos constituídos de “ processos”
fragm entários. Nossas faculdades são fragm entárias, cada um a
delas com um a função especial.
K R IS H N A M U R T I: T endes talento para a engenharia; porque
deve, dessa faculdade, resultar fragm entação?
T enho aptidão
para tocar piano; porque deve essa aptidão produzir fragm en
tação? N ão estis pondo a carroça na frente do cavalo?
É a
faculdade que produz a fragm entação, ou é a m ente que, estando
fragm entada, se está servindo de um dos seus fragm entos, um a
das suas faculdades e, por conseguinte, tornando mais forte a
divisão?
E u quero aprender a respeito dessa fragm entação. Se eu
pudesse esclarecê-la, m inha ação se tornaria com pletam ente dife
rente, já não seria fragm entária. P ortanto, preciso investigá-la.
N ão quero chegar a nenhum a conclusão, nem com eçar com um a
conclusão. H á fragm entação: o in stru to r e o discípulo, a auto
ridade, o seguidor, o hom em que se diz “ ilu m inado” , o que
diz “ não sei” , o com unista, o socialista — porquê? Com o acon
tece isso? Se eu a com preendesse verdadeiram ente, aprendesse
tudo a seu respeito, ficaria livre dela. M inha relação com outrem
seria inteiram ente diferente, m inha ação seria total, de cada vez.
P o rtan to , tenho o d e v e r de com preendê-la. Q ue dizeis vós,
senhores?
IN T E R R O G A N T E : Nós vivem os num estado de expectativa e
de desejo.
K R IS H N A M U R T I: Vivem os na expectativa, e essa própria
expectativa é um a das conseqüências da fragm entação. Q ue estais
e s p e r a n d o ? É essa a verdadeira causa da fragm entação? O u é
um dos efeitos da fragm entação, tal como o desejo de sucesso?
D esejar sucesso é efeito de m inha fragm entação? E sta é um a
136
questão da m aior im portância.
Q uero ter sucesso, pintando,
escrevendo, por este ou aquele m eio. Assim, qual a base da
fragm entação?
IN T E R R O G A N T E : E la se deve a que cada um a de nossas facul
dades é lim itada, nossa visão é lim itada, nossos sentidos e nossa
inteligência são lim itados; nenhum a possibilidade tem os de ver
o todo de um a só vez.
K R IS H N A M U R T I: “ M inha visão só tem um a direção; se eu
tivesse olhos atrás, poderia ver a coisa toda in teira’’. É disso
que estam os tratando?
E stou, por acaso, dizendo que m inha
visão é lim itada? N aturalm ente, m inha visão física é lim itada:
não posso ver to d a a cordilheira dos Alpes; talvez pudesse vê-la
do alto, num avião. M as, certam ente, não é disso que esta
mos tratando. Estam os considerando po r que razão a m ente, o
cérebro, divide.
IN T E R R O G A N T E : Não temos possibilidade de pensar no m un
do inteiro de um a só vez.
K R IS H N A M U R T I: Estais, p ortanto, dizendo que a fragm en
tação existirá enquanto existir o pensam ento, que é incapaz de
pensar no todo de um a só vez; que ele é a causa da fragm en
tação.
IN T E R R O G A N T E : Sim; e nossa comunicação com outras pes
soas é tam bém fragm entária. Agora m esm o estam os pensando
em autoconhecim ento e não em alpinism o. N ão se pode pô r
tudo junto.
K R IS H N A M U R T I: O ra, vejam os bem claram ente de que é que
estam os tratando. Não é de alpinism o — como dissestes —
nem de ter olhos atrás. Estam os falando a respeito de nossa
m ente, de nossas m aneiras de pensar, de olhar, de escutar, de
tirar conclusões. P orque existe esse “ processo” , que inevita
velm ente acarreta fragm entação? É disso que estam os tratando.
IN T E R R O G A N T E : Exam iná-lo já é um a atividade fragm en
tária.
K R IS H N A M U R T I: Sim; o próprio exame desta questão já é
um a fragm entação. M as, nós estam os perguntando porque é que
137
existe essa fragm entação. P o rq u e não posso estar em total com u
nicação convosco, e vós comigo?
Averigüem o-lo com vagar.
Q ual o processo, o m ecanism o, a causa dessa fragm entação?
IN T E R R O G A N T E : É que estam os apegados a nossas idéias
acerca de nós m esm os, e a nossas idéias sobre certas coisas.
K R IS H N A M U R T I: Sim, estam os apegados com todas as forças
a um a conclusão, e tal é a causa da fragm entação. M as, porque
ficamos apegados a um a conclusão?
IN T E R R O G A N T E : C ontinuo a pensar que tudo é resultado da
P o r exem plo, na escola recebem os lições de fran
cês, de inglês, de geografia. D esde o começo, nossa educação é
fragm entária.
c o m u n ic a ç ã o .
K R IS H N A M U R T I: E stais dizendo que nossa educação é frag
m entária e, por conseguinte, desde pequenos nossa m ente é con
dicionada p or esta fragm entação.
IN T E R R O G A N T E : O processo de pensar consiste em form ar
conclusões; não se pode pensar sem form ar um a conclusão.
K R IS H N A M U R T I: P o rtan to , todos vós estais dizendo, por pala
vras mais ou m enos diferentes, que o pensam ento é a origem
de toda a fragm entação.
IN T E R R O G A N T E : O
m esmos.
pensam ento é um fragm ento de nós
K R IS H N A M U R T I: Sim, o pensam ento, o pensar, é fragm en
tário. É um fragm ento de nós m esmos.
IN T E R R O G A N T E : O resultado de nosso pensar, ou sejam nos
sas conclusões, produz necessariam ente mais fragm entação.
K R IS H N A M U R T I: Tendes razão, senbor. E stais, pois, a dizer-me — e eu tam bém estou aprendendo, tal como vós — que o
pensam ento é a origem de toda a fragm entação. Averiguem os
bem isso; não digais “ sim ” nem “ não” . O pensam ento é o
resultado, a reação da m em ória, e a m em ória é o passado. E ,
evidentem ente, essa m em ória do passado é sem pre dividida —
o passado, boje, e am anbã; a experiência passada, a experiência
presente, e a futura. É o passado quem diz “ não aprendi, não
138
sei, e vou aprende** de vós” . Não é esta a causa principal da
fragm entação? Q ue dizeis, senhores?
IN T E R R O G A N T E : Já dissestes tudo isso ao falardes sobre o
tem po. O percebim ento do tem po afasta-nos a atenção do p re
sente e, p o rtan to , divide.
K R IS H N A M U R T I: O tem po divide, sem dúvida.
Q ue é o
tem po? Averiguai-o, senhor. H á o tem po cronológico: tenho
de ir à estação para tom ar um trem que p arte a um a certa hora.
E há o tem po de que necessito para realizar alguma coisa, para
ter sucesso: vós sabeis, eu não sei, mas aprenderei; tudo isso
im plica o tem po psicológico! Isto é, eu penso: V ou aprender
passo por passo. Irei subindo gradualm ente, de degrau em de
grau e, no fim , alcançarei aquele estado m aravilhoso; há, p or
tanto, um a divisão criada pelo pensam ento que deseja sucesso.
O sucesso, desta vez, não é riqueza, porém esclarecim ento ou fé.
Todos vós, pois, dizeis que o pensam ento é o m ecanismo
que produz a fragm entação, não é verdade? — esse pensam ento
que d i z “ Vós sois h in d u ísta” , “ Vós sois católico” , “ Vós sois
m oreno” , “ Vós sois p re to ” , “ Vós sois rosado” . O pensam ento
condicionou os valores de um a determ inada sociedade e cultura
de tal m aneira que os que não pertencem a essa cultura são
considerados “ b árb aro s” . E stá bem claro isto? Se é o pensa
m ento o responsável pela fragm entação, que nos cum pre fazer?
E u tenho de trabalhar, para viver, para m anter m inha fam ília
— e tam bém para m i m , pois tenho m eus problem as, m inhas
ambições, m eu desejo de êxito na vida.
H á, pois, o ganho do sustento, a fam ília, a fu n ç ã o e o
desejo de po r m eio dela alcançar p o s iç ã o e, po r últim o, e u —
■
—- todo fragm entado. O ra, que m e cum pre fazer? Vejo que
o pensam ento é o responsável po r tudo isso. É exato isso, ou
não é? Nós estam os aprendendo; se o orador está enganado,
dizei-lho! Investigai!
IN T E R R O G A N T E : M as nós estam os sem pre pensando; neste
mesm o instante estam os pensando.
K R IS H N A M U R T I: Um m om ento! Verifiquem os isso. E sta
mos sem pre pensando, e dizemos: “ Preciso trabalhar; tenho
fam ília; necessito de diversões, de êxitos, de esclarecim ento, do
139
g u r u , da autoridade, etc. etc/*
E , pelo m eio de tudo isso, o
“ e u ” a criar confusão. M as, vós m e dizeis que o pensam ento é
o responsável p or esse estado de coisas. Tenho pensam entos, e
esses pensam entos criaram um a certa cultura, a qual, p or sua
vez, me condicionou. O pensam ento é o culpado de tudo e me
diz tam bém que tenho de trabalhar, ganhar dinheiro, para m an
te r a fam ília, os filhos. Em sum a, o culpado é o pensam ento.
E stais bem certo de que tendes razão? N ão digais, depois, que
não era bem isso o que queríeis dizer; certificai-vos, a p r e n d e i\
IN T E R R O G A N T E : A gente sente que, atrás do pensam ento,
há ainda algum a coisa.
K R IS H N A M U R T I: L á chegarem os.
M as, vejam os prim eira
m ente de que é que estam os tratando. O ra, não se pode alcan
çar essa coisa que está atrás do pensam ento, sem se com preender
todo o m ecanism o do pensam ento; de ou tro m odo, estarem os
apenas a fugir do pensam ento. É verdade (não vossa verdade
ou m inha verdade, nem m inha opinião pessoal ou a vossa), é
verdade, é fato que o pensam ento divide? O pensam ento separa
o viver de hoje do m orrer de am anhã. Sei que am anhã m orrerei;
penso “ m o rrerei” e fico apavorado. O u penso; “ Q ue experiên
cia m aravilhosa, aquela! Preciso repeti-la.” O u , ainda: “ Tenho
m edo porque fiz um a certa coisa; preciso ter cuidado para não
tornar a fazê-la, não deixar que seja descoberta” . — Õ pensa
m ento, p o rtan to , está sem pre a gerar m edo, d o r e prazer. O
pensam ento divide. E sta é a verdade, quer a vejais, quer não.
Assim , sabendo que o pensam ento produz fragm entação e, por
conseguinte, sustenta a divisão, que ides fazer?
IN T E R R O G A N T E : É o pensam ento que divide, ou a m aneira
com o nos servim os de nossos pensam entos?
K R IS H N A M U R T I: Q uem é esse “ nós” ? Q uem é esse “ e u ”
que se serve do pensam ento que divide?
Não salteis a nenhum a conclusão; escutai prim eiram ente o
que o orador vai dizer. É necessário “ ganhar a vida” e, p or
tanto, o pensam ento tem de ser utilizado nisso. Q uando volto
a casa, diz-me o pensam ento “ M inha fam ília” , “ m inhas respon
sabilidades” ; “ O sexo me proporciona m uito prazer; sinto-m e
aflito, porque m inha esposa pode abandonar-m e” . O pensam ento
140
está em funcionam ento a todas as horas, a produzir fragm en
tação — o in stru to r, o discípulo, o desejo de sucesso. Q ue ides
fazer, sabendo que o pensam ento produz fragm entação, quer
dizer, m edo e, p ortanto, conflito? Fragm entação significa que
não haverá nenhum a possibilidade de se ter paz. Pode-se falar a
respeito da paz, ingressar num a organização que prom ete a paz,
mas nunca haverá paz, enquanto houver a fragm entação p ro d u
zida pelo pensam ento. Assim, diante desse fato, que ides fazer?
IN T E R R O G A N T E : Identificar-m e com o pensam ento.
K R IS H N A M U R T I: Q uem é esse “ eu” que se identifica com o
pensam ento? O pensam ento não criou o “ e u ” ? O “ e u ” são
m inhas experiências, m eu saber, m eu sucesso, e tudo isso é
pro d u to do pensam ento. E se dizeis que há o “ eu superior” ,
Deus — isso ainda é pensam ento; pensastes “ D eus” . Q ue ides
fazer, pois?
IN T E R R O G A N T E : P ô r fim ao pensam ento.
K R IS H N A M U R T I: Com o?
Escutai, senhor, o pensam ento
precisa funcionar para executarm os um trabalho mecânico, até
m esm o guiar um carro. Dizeis que é necessário p ô r fim ao
pensam ento. Nesse caso, não poderíeis ganhar a vida, nem vol
tar a casa, nem m esm o falar. Senhor, observai-vos, a p r e n d e il
Nós tem os de servir-nos do pensam ento, e vemos tam bém que
ele produz fragm entação. Assim, que podem os fazer?
IN T E R R O G A N T E : Parece-me que sem pre chegamos a este
ponto, em quase todas as nossas reuniões. Pergunto-vos, pois:
Essa pergunta é respondível?
K R IS H N A M U R T I: Vamos ver.
IN T E R R O G A N T E : Tenho m edo, porque percebo que ela repre
senta um verdadeiro tropeço.
K R IS H N A M U R T I: Pois bem ; percebendo agora que não sabeis
o que deveis fazer, quereis a p r e n d e r , senhor?
IN T E R R O G A N T E : Se possível.
K R IS H N A M U R T I: P orque dizeis “ se possível” ? Não pergun
tei se é possível ou não, mas, sim: Q uereis aprender? A prender
141
— que requer isso? Curiosidade. N ão discordeis precipitada
m ente. E stais verdadeiram ente interessado, desejais apaixona
dam ente aprender? P orque isso pode resolver to d o s os nossos
problem as. P o r conseguinte, necessitais de “ intensidade” , de
curiosidade, de paixão, para aprender.
Tendes essas coisas?
O u ireis dizer: “ P refiro esperar. A té hoje funcionei com con
clusões. Preciso de um a nova conclusão, para agir.”
Se desejais aprender, são absolutam ente necessárias estas
três coisas: curiosidade, seriedade, energia; essa energia vos dará
a paixão de que necessitais para descobrir, para aprender. T en
des essas três coisas? O u apenas quereis conversar indiferen
tem ente a respeito deste assunto?
IN T E R R O G A N T E : Requer-se m uita sutileza?
K R IS H N A M U R T I: Não, senhor, o aprender não requer suti
leza. R equer um a m ente que deseje aprender, descobrir, qual
um a criança que diz: “ E u quero saber de que é feita aquela
m ontanha.”
IN T E R R O G A N T E : Posso ficar apegado ao aprender.
K R IS H N A M U R T I: Senhor, porque traduzis em vossos próprios
term os o que estivem os dizendo? Eu disse que necessitam os de
abundante energia, de curiosidade, para aprender. T am bém de
persistência; não é m ostrar-se cheio de curiosidade p or um m i
n uto apenas, e no m inuto seguinte dizer-se: “ Desculpe, estou
cansado, “ chateado” , vou lá fora fum ar um cigarro.” Desse
m odo não se pode aprender.
IN T E R R O G A N T E : T enho necessidade de certeza.
incerteza.
Tem o a
K R IS H N A M U R T I: P restai atenção a isso, O que dissestes sig
nifica: “ E stou disposto a aprender se isso me garantir absoluta
certeza para o resto da vida” .
IN T E R R O G A N T E : A fragm entação me dá um sentim ento de
segurança, e eu necessito desta ilusão.
K R IS H N A M U R T I: “ E vós vindes p ertu rb ar a m inha segurança!
P o r isso, sinto m edo, não quero ap render.”
É o que todos
dizem!
“ Deu-m e grande deleite escrever um livro.
Sei que
142
funciono fragm entariam ente, mas esse livro me está dando fam a,
dinheiro, posição. Não m e digais nada. A casa está em chamas,
mas não me p ertu rb eis!”
C ontinuem os deste ponto. Se o pensam ento é a origem
da fragm entação e, contudo, tem os de utilizá-lo, que se pode
fazer? Com o pode o pensam ento funcionar e ao m esm o tem po
não funcionar?
O pensam ento é responsável pela fragm entação, e todas
as conclusões são fragm entos. Vede bem isso. “ E u preciso de
segurança, tem o a incerteza” . O ra, deve haver um a m aneira
de viver que poderá dar-vos a segurança física de que neces
sitais e ao mesm o tem po liberdade psicológica. Essa liberdade
vos dará absoluta segurança física, mas vós não vedes isso. P o r
tanto, é necessário aprender.
Se o pensam ento é responsável pela fragm entação e, con
tudo, dele precisam os para subsistir, que nos cum pre fazer?
Entendeis esta pergunta? Se não a com preendeis, examinem o-la.
E u tenho de servir-m e do pensam ento para ir daqui à casa onde
m oro, para ganhar dinheiro, para dirigir-m e ao lugar onde traba
lho e lá funcionar eficientem ente. E , todavia, vejo que esse
m esm o pensam ento é a causa da fragm entação e, p o rtan to , do
conflito. Vejo que o pensam ento deve funcionar, e vejo tam bém
que ele produz fragm entação.
IN T E R R O G A N T E : V er a fragm entação não é, em verdade,
estabelecer um a ligação entre os fragm entos?
K R IS H N A M U R T I: N ão, senhor, não há ligação; não se pode
reunir fragm entos para form ar um todo. O s raios de um a
roda não constituem a roda; a m aneira de dispor os raios é que
faz a roda.
IN T E R R O G A N T E : Com o tem os de servir-nos do pensam ento,
e não desejam os a fragm entação, não podem os sim plesm ente to r
nar-nos cônscios da tendência do pensam ento para produzir essa
fragm entação?
K R IS H N A M U R T I: Se estam os cônscios de que o pensam ento
produz fragm entação, o próprio fato de estarm os cônscios desse
processo faz nascer um estado com pletam ente diferente. É isso
que quereis dizer? É isso que está sucedendo em vós? Cui-
143
dado, senhor, ide devagar!
O pensam ento precisa ser exer
cido, m as, ao m esm o tem po, percebo que ele gera fragm entação
e, p o rtan to , conflito, m edo, e todas as agonias deste m undo.
E n tre tan to , é o próprio pensam ento que, como dizeis, deve to r
nar-se cônscio desse processo.
V ede, agora, o que acontece.
Dissem os que o pensam ento é a base da fragm entação; p or con
seguinte, o pensam ento, ao tornar-se cônscio de sí próprio e de
como gera fragm entação, divide-se em is to e a q u ilo .
IN T E R R O G A N T E : Tem os de servir-nos do pensam ento, e
tem os de estar cônscios daquela espécie de pensam ento que está
causando a fragm entação.
K R IS H N A M U R T I: Devagar!
cio” ?
Q ue entendeis p o r “ estar côns
IN T E R R O G A N T E : Ver.
K R IS H N A M U R T I: Q ue entendeis por “ v er” ? Vedes esse “ p ro
cesso” m ecanicam ente? O uvistes as palavras, intelectualm ente
as com preendestes e, po r conseguinte, quereis aplicar essas pala
vras e a conclusão intelectual ao v e r. Cuidado, não digais “ não” !
Estais vendo com um a conclusão, ou estais sim plesm ente v e n d o ?
Com preendestes?
IN T E R R O G A N T E : Ao chegarm os ao ponto em que fizestes
aquela p e rg u n ta ,(* ) v ó s m e s m o a fizestes? P orque me parece
que, se nesse ponto se faz tal pergunta, isso mais um a vez é
fragm entação.
K R IS H N A M U R T I: Diz essa senhora que, se neste ponto faze
mos tal pergunta, estam os novam ente iniciando um a fragm en
tação.
IN T E R R O G A N T E : E , se assim é, de que serviu toda esta
investigação? Q ual a sua validade?
K R IS H N A M U R T I: E u vo-lo explicarei. C hegando a este ponto,
fazemos a pergunta. E aquela senhora diz: “ Q u e m está fazendo
essa p e rg u n ta ? ” É o pensam ento quem a faz? Se é, então,
(* ) A pergunta foi esta: Nós tem os de servir-nos do pensam ento,
e vem os tam bém que ele produz fragm entação; assim, que podem os fazer?
(N . do T .)
144
isso é mais um a fragm entação. E u a faço, porque não estais
P o rtan to , vamos a p re n d e r .
aprendendo.
Estam os vendo, pois, este quadro (esse “ ta n to ” a m ente
está v e n d o ): O pensam ento produziu a fragm entação; o pensa
m ento deve fu n c io n a r , e tam bém produz fragm entação. Se se
v ê isso, com pletam ente, não há mais nada para perguntar. M as,
só podem os vê-lo quando não há nenhum a conclusão, nenhum
desejo de solução, nenhum desejo de passar além. Só quando
se vê com pletam ente esse m ecanism o do pensam ento — como
ele opera, como funciona, o que há atrás dele — só então o
problem a está resolvido. Ficais então funcionando não fragmentariam ente.
Ainda que tenhais de trabalhar num escritório,
vossa ação não é fragm entária quando vedes o m ecanism o em seu
todo. Se não o vedes, então fazeis a divisão — em prego, fam ília,
vós, eu. Estais vendo agora o m ecanism o todo inteiro?
IN T E R R O G A N T E : Senhor, estais sugerindo que é possível
viver um a vida não dualista e ao m esm o tem po funcionar na
sociedade?
K R IS H N A M U R T I; E u vos esto u m ostrando que é possível —
desde que se veja to d o o m ecanism o do pensam ento, e não ape
nas um a parte dele: sua natureza e estru tu ra, seu m ovim ento.
IN T E R R O G A N T E : Com o se pode vê-lo mais rapidam ente?
K R IS H N A M U R T I: Escutando, a g o ra i Aí está, mais um a vez,
o desejo de conseguir alguma coisa! E isso significa que não
estais e s c u ta n d o ; vossos olhos, vossos ouvidos, estão fixados em
“ chegar a algum a p a rte ” .
Assim, senhor, m inha pergunta agora — e eu a faço como
amigo — é esta: “ E stais vendo todo o m ecanism o?” — e como
amigo vos digo: “ D e v e is vê-lo, senão ireis ter um a existência
terrível, aflitiva — tereis guerras, tereis os piores sofrim entos.
Pelo am or de D eus, vede-o! P orque não o vedes? Q ue vos
está im pedindo de vê-lo? Vossa ambição? Vossa indolência?
Vossas inum eráveis conclusões?
Agora, quem vai responder?
IN T E R R O G A N T E ( 1 ) : P orque responder?
145
IN T E R R O G A N T E ( 2 ) : Sei que tenho conclusões, mas delas
não posso livrar-m e; elas continuam existentes.
IN T E R R O G A N T E ( 3 ) : Com o podem os ter segurança?
K R IS H N A M U R TT. A mesma pergunta de sempre! “ Dizei-me
como posso ter segurança” . . . A eterna pergunta do hom em !
IN T E R R O G A N T E : Talvez seja m elhor tornar-nos m ais cônscios
de que estam os vivendo a g o ra , e não ontem ou no ano passado.
Um a grande soma de nossa atenção é desviada pelo nosso vezo
de viver no passado e de sonhar com o futuro.
K R IS H N A M U R T I: Sois capaz de viver no presente?
fica viver um a vida em que não existe o tem po.
Isso signi
IN T E R R O G A N T E : Fisicam ente estou vivo.
K R IS H N A M U R T I: E u vos estou perg untando, senhor, se sois
capaz de viver no presente. P ara viverm os no presente, não
deve existir o tem po — nem passado, nem fu tu ro , nem desejos
de êxito, nem ambição. Sois capaz disso?
IN T E R R O G A N T E : U m “ bocadinho” . O próprio “ processo”
de construir, digamos um a casa, requer um program a.
K R IS H N A M U R T I: N aturalm ente, senhor. P ara construir um a
casa, necessitam os de um arquiteto, para traçar a planta, e do
em preiteiro para fazer a construção de acordo com a planta.
A nalogam ente, nós desejamos um plano. “ Vós sois o arquiteto:
dai-me o plano, que eu funcionarei em conform idade com esse
plano.”
IN T E R R O G A N T E : Não foi isso o que eu quis dizer. E u disse
que quero construir um a casa — um a coisa concreta.
Para
isso, precisam-se fazer certos p l a n o s .. .
K R IS H N A M U R T I: Faz-se então uso do pensam ento.
IN T E R R O G A N T E : P o rtan to , não podem os viver unicam ente
no presente.
K R IS H N A M U R T I: E u nunca disse tal coisa, senhor. Se se con
sidera atentam ente esta questão, nunca se pergunta: “ Como
viver no p resen te?” . Se perceberdes bem claram ente a n atu
reza e estru tu ra do pensam ento, vereis que tendes a posssibi146
lidade de funcionar com a m ente inteiram ente livre do pensa
m ento, e que, contudo, deveis fazer uso do pensam ento. Eis a
verdadeira m editação, senhor — e não aquela coisa sem valor
a que se cham a “ m editação” .
Pois bem ; nossa m ente está repleta do conhecido, que é
p ro d u to do pensam ento; repleta de conhecim entos e da expe
riência acum ulados no passado. A m em ória, que faz parte do
cérebro, está cheia do conhecido. Posso traduzir o conhecido
em term os do futuro ou em term os do presente, mas trata-se
sem pre do conhecido. Esse conhecido é que divide. O passado,
com seu reservatório de m em ória, m e diz: “ Faça isto, não faça
aquilo” , “ Isto dar-lhe-á certeza; aquilo dar-lhe-á incerteza.”
Assim , quando a m ente inteira, inclusive o cérebro, está
vazia do conhecido, então podeis fazer uso do conhecido quando
necessário, mas estareis sem pre funcionando com base no desco
nhecido — na m ente libertada do conhecido. Senhor, isso é
um a coisa que d e s p o n ta ; não é tão difícil como parece.
Se
tendes um problem a, sobre ele ficais a refletir, a cogitar, po r um
ou dois dias; p or fim , vos cansais, o abandonais, e ides dorm ir.
N a m anhã seguinte, ao despertardes, se fordes um a pessoa sen
sível, tereis achado a solução. Isto é, estivestes tentando resol
ver o problem a com a m ira em algum proveito, em o bter êxito,
certeza, em sum a, com base no conhecido, no pensam ento. E ,
depois de exercer de todos os m odos o pensam ento, este d iz
“ estou cansado” . E , na m anhã seguinte, encontrastes, pronta,
a solução. Isto é, exercestes ao m áxim o a m ente, o pensam ento
e, p or fim , desististes. É então que se vê algo totalm ente novo.
Mas, se continuardes a exercer o pensam ento, in interruptam ente,
a form ar conclusões sobre conclusões — que são o conhecido
— então, é claro que não vereis nada novo.
Isso requer extraordinário percebim ento in terno, um senso
interno de ordem ; não desordem , mas ordem .
IN T E R R O G A N T E : E xiste algum m étodo para seguir?
K R IS H N A M U R T I: O ra, senhor — levanto-m e, dou uns passos,
desço a escada. Isso é seguir um m étodo? Levanto-m e e exe
cuto aqueles atos naturalm ente. N ão invento prim eiro um m é
todo e depois o sigo: v e jo o que quero fazer. N ão se pode
sujeitar tudo a m étodo.
147
ÍN T E R R O G A N T E : Poderei eu, em algum tem po, esvaziar esse
reservatório de im pressões vividas?
K R IS H N A M U R T I: Essa é um a pergunta errônea. E rrônea, p o r
que dizeis “ Poderei eu, em algum tem po” —- Q uem é esse “ e u ” ,
e que entendeis dizendo “ em. algum tem po” ? Q uereis dizer
“ isso é possível?”
Senhores, nunca fazemos a pergunta relativa ao impossível.
Só se pergunta sobre o que é possível. Se se faz um a pergunta
sobre o im possível, a m ente tem de achar a resposta na base
do im possível — e não do que é possível. Todas as descobertas
científicas baseiam-se nele — no impossível. E ra im possível ir
à Lua. Se se dissesse “ isso é possível” , o problem a seria aban
donado. M as, porque a coisa era im possível, trezentas m il pes
soas cooperaram e trabalharam dia e noite, a ela aplicando todas
as suas energias m entais — e o hom em foi à Lua!
M as, nós nunca perguntam os sobre o impossível! Nossa
pergunta sobre o im possível é esta: Pode a m ente esvaziar-se do
conhecido? — ela esvaziar a si p r ó p r ia , e não, n ó s a e sv a zia r
m o s ? Eis um a pergunta sobre o im possível. Se a fizerdes com
enorm e entusiasm o, seriedade, paixão, achareis a resposta. Mas,
se disserdes: Oh! isso é possível” , continuareis preso no atoleiro.
5 de agosto de 1970.
148
D
íÁ L ü G O
V
O consciente e o inconsciente; quais são as fronteiras
da consciência? Essa divisão é real ou faz p arte da
fragm entação?
Q u e m q uer “ saber” a respeito do
inconsciente? A neurose, “ exageração” do fragm ento.
N ecessidade de ver a inutilidade da identificação com
o fragm ento; um fragm ento cham ado “ observ ador” .
“V ir a ser” e “ ser” alguma coisa — o estado de
consciência em que vivemos — um a form a de resis
tência. D iferença entre ver esse fato como ato de
observação, e vê-lo como “ eu ” . O s sonhos. Estam os
aptos a fazer a “próxim a pergunta” : “ Q ue existe
além da consciência?”
K R IS H N A M U R T I: N esta m anhã vamos conversar sobre o que
existe abaixo do consciente. N ão sei se já fizestes tal investi
gação, ou se m eram ente aceitastes o que disseram os analistas
e psicólogos. M as, para se exam inar esta m atéria com certa
profundeza —- como espero o farem os nesta m anhã — é preciso
fazer um a ou duas perguntas fundam entais.
Nós tem os de
a p r e n d e r — isto é, de descobrir, de explorar, por nós m esmos,
todo o conteúdo da consciência. P orque fazemos a divisão de
consciente e inconsciente? É esta um a divisão artificial, inven
tada pelos analistas, pelos psicólogos, pelos filósofos?
Existe
realm ente tal divisão? Se se quer investigar profundam ente a
estrutura e natureza da consciência, q u e m fará a investigação?
Um fragm ento, dentre os m uitos fragm entos? O u existe um a
entidade, um agente transcendental capaz de observar a cons
ciência? Pode a m ente consciente, aquela que funciona todos os
dias, observar o conteúdo das camadas inconscientes ou mais p ro
fundas? E quais são as fronteiras, os lim ites da consciência?
149
E sta é um a questão m uito séria, e se ela for com preendida,
quase todos os problem as hum anos serão resolvidos. Não é,
p o rtan to , um entretenim ento para as horas vagas, um a coisa
para estudar superficialm ente, p o r um a ou duas sem anas, e de
pois largá-la e continuar com o m esm o m odo de vida. E xam i
nar profundam ente este assunto é um a “ m aneira de vida” . N ão
se tra ta de “ com preender a coisa” e pô-la de lado. Só se poderá
com preender o conteúdo da consciência e os respectivos lim ites
se isso constituir um em penho de todos os dias; não um m ero
divertim ento, porém um a tarefa que deverá preencher vossa
vida, tornar-se vossa m issão, vossa vocação. T rata-se de inves
tigar as profundezas m esmas da m ente hum ana, não conform e
vossa opinião ou a deste orador, mas observando-a a pleno e
vendo o que além dela existe; não apenas arranhar a superfície
e pensar tê-la com preendido. C um pre perceber bem claram ente
que não estam os falando de um conhecim ento que se pode
adquirir dos livros para, depois, aplicá-lo praticam ente. Se assim
procederdes, o que aprenderdes será sem valor, coisa “ de segun
da m ão” . E , se considerardes esta investigação um a espécie de
en tretenim ento intelectual ou em ocional, ela naturalm ente ne
nhum efeito terá em vossa vida. Nós estam os seriam ente in te
ressados na revolução fundam ental da m ente, da estru tu ra inteira
de nosso ser — para que a m ente se liberte de todo o seu con
dicionam ento e não sejamos sim ples pessoas educadas e “ sofisti
cadas” , porém verdadeiros entes hum anos, am adurecidos, p ro
fundos.
N esta m anhã, nós vamos aprender juntos, inteirar-nos, se
possível, do que existe abaixo do consciente e, observando suas
diferentes camadas (ou única cam ada), descobrir po r nós m es
mos o conteúdo da consciência: se esse conteúdo constitui o
consciente ou se o consciente encerra em suas fronteiras “ o
que é ” . O conteúdo da consciência compõe a consciência? —
E u estou apenas investigando, seguindo passo a passo; portan to ,
cam inhem os juntos. N ão me digais depois: “ T ende a bondade
de repetir o que dissestes” . N ão posso fazer isso.
E m prim eiro lugar, porque existe esta divisão entre o cons
ciente e as chamadas camadas inconscientes ou mais profundas?
Estais cônscios dessa divisão? O u ela existe porque tem os tan
tas divisões em nossa vida? Q ual é o caso? É o m ovim ento
consciente um m ovim ento separado, tendo as camadas m ais p ro
fundas seu m ovim ento próprio, ou todo o conjunto constitui
um m ovim ento único?
M uito im porta descobrir isso, porque
nós aprim oram os a m ente consciente, exercitam o-la, educamo-la,
forçamo-la, m oldam o-la, em conform idade com as exigências da
sociedade e nossos próprios im pulsos, nossa agressividade, etc.
A camada inconsciente, mais profunda, está ainda p or educar?
Já educam os as camadas superficiais; estam os educando as cama
das m ais profundas? O u continuam elas intatas? Q ue achais?
Nas camadas mais profundas devem encontrar-se a fonte
e os m eios de descobrir coisas novas, um a vez que as cam adas
superficiais se tornaram m ecânicas, condicionadas, só sendo capa
zes de repetir, de im itar; nelas, não há liberdade para descobrir,
para m over-nos, voar, irm anar-nos com os ventos! E nas cama
das profundas — não educadas, não “ sofisticadas” e, po r conse
guinte, ainda prim itivas — prim itivas, não “ selvagens” — pode
encontrar-se a fonte de algo com pletam ente novo.
N ão sei o que sentis, o que descobristes. E stá a m ente
superficial tão condicionada que se to rn o u m ecânica?
Se eu
sou hinduísta ou cristão, funciono como hinduísta ou cristão.
E existe abaixo desse nível um a cam ada ainda não atingida pela
educação? O u a educação já a atingiu e, por conseqüência, todo
o conteúdo da consciência é m ecânico? Estais-m e acom panhando?
IN T E R R O G A N T E : Senhor, como podem os saber algum a coisa
sobre o inconsciente?
K R IS H N A M U R T I: M uito bem , senhor, comecemos. Q uando
em pregam os a palavra “ saber” , que entendem os po r ela? Não
quero ser puram ente “ verbal” , mas é necessário entrarm os com
m uito cuidado nesta m atéria. Q ue entendeis ao dizerdes: “ E u
quero saber” ?
IN T E R R O G A N T E : Não tenho nenhum a experiência dele.
K R IS H N A M U R T I: Atende-vos àquela, tende a bondade de não
introduzir outras palavras. Q ue entendeis pela palavra “ saber” ?
Ao em pregardes essa palavra, que entendeis?
E u sei de um
fato que ontem sucedeu. T odo conhecim ento representa o pas
sado — não é verdade? Peço-vos não concordar: apenas v e r.
Conheço-vos, porque ontem m e fostes apresentado. T o d o conhe
151
cim ento, pois, supõe o passado. Q uando digo “ Sei que aquilo
é um avião a voar” , em bora o “ voar” esteja ocorrendo neste
m om ento, o saber que “ aquilo” é um avião, é do passado. Como
pode a m ente superficial inteirar-se das camadas mais profundas?
Com o pode a m ente superficial tom ar conhecim ento da “ o u tra ” ?
IN T E R R O G A N T E : M antendo quieta a m ente superficial, pode
m os inteirar-nos dos níveis mais profundos.
K R IS H N A M U R T I: Q ue há para aprender nos níveis mais p ro
fundos? Presum is que há, lá, alguma coisa para aprender. Estais
realm ente cônscio das operações da m ente consciente? Como
está ela funcionando? Quais as suas reações? Tem os conheci
m ento da m ente consciente? Vede quanto é difícil isso!
A
m ente precisa observar bem de p erto esse m ovim ento. Dizeis
que no inconsciente existem m uitas coisas. É o que dizem todos
os especialistas. E xistem de fato? Q uando se separa o cons
ciente das camadas m ais profundas, logo se pergunta: Como
pode a m ente superficial pen etrar na “ o u tra ” ? M as, se não
existe divisão, o que há é um m ovim ento total. Estam os apenas
cônscios de um m ovim ento fragm entário e, por isso, perguntam os
“ Q ual é o conteúdo do inconsciente” ? Se estam os cônscios do
m ovim ento total, não fazemos tal pergunta. E stá claro isto?
Certificai-vos bem , n ã o verbalm ente, mas realm ente.
Se se divide em fragm entos a consciência, um dos fragm en
tos indaga: “ Q ue são os outros fragm entos?” . M as, se só
h á um m ovim ento total, não existe fragm entação e, po r conse
guinte, não se faz tal pergunta. M uito im porta, com efeito, escla
recer-nos bem a esse respeito, porque então já não necessita
rem os dos especialistas. Percebeis a consciência como um todo,
ou a vedes como um fragm ento a exam inar os outros fragm entos?
Vós a vedes parcialm ente, ou a vedes em sua inteireza, com o
um m ovim ento total, qual o de um rio? Podeis cavar um fosso
ao lado da m argem e chamá-lo “ o rio ” — mas não é o rio.
N este está o m ovim ento total. Q ue é então esse m ovim ento?
Com o observá-lo sem fragm entá-lo?
IN T E R R O G A N T E : Perm itis-m e um a pergunta? Falais acerca
da m ente inconsciente. M as, existe essa m ente inconsciente?
Não se pode falar sobre um a coisa que não existe. Todavia,
pode-se falar sobre o consciente. T ende a bondade de definir
152
“ consciente” e “inconsciente” . P ergunto: Estam os agora incons
cientes?
K R IS H N A M U R T I: H á pouco perguntam os: Estam os conscien
tes das fronteiras da consciência?
O u estam os cônscios dos
num erosos fragm entos que com põem o consciente? Pode um
fragm ento tornar-se cônscio dos outros fragm entos? O u estam os
cônscios do m ovim ento total da consciência, sem divisão ne
nhum a?
IN T E R R O G A N T E : E m am bos os sentidos, estam os cônscios.
Intelectualm ente, estam os a dividir-nos em partes.
K R IS H N A M U R T I: V ede, por favor, que não estam os anali
sando. H avendo análise, há o analista e a coisa analisada
— um fragm ento assume a autoridade e analisa a outra parte.
E , nessa divisão, surgem o consciente e o inconsciente. É então
que perguntam os: Pode a m ente consciente exam inar o incons
ciente? — e isso im plica que a m ente consciente se separa do
resto. Dizemos que a resposta a esta pergunta errônea pode
ser dada pelos sonhos, por m eio de sinais e sugestões. P artim os,
p ortanto, da falsa suposição de que a m ente superficial é sepa
rada da “ o u tra ” . Isso significa que nunca sentim os ou perce
bem os ou tom am os conhecim ento do m ovim ento total da m ente
consciente. Se o fizéssem os, não faríam os tal pergunta. Não
sei se estais percebendo.
IN T E R R O G A N T E : E videntem ente, certas pessoas sofrem de
neurose, sem saberem de sua origem . Essa origem não está
no inconsciente?
K R IS H N A M U R T I: Sofreis de algum a neurose? V ede, por
favor, que esta não é um a pergunta sim plória. Estais cônscio
de serdes neurótico, num a ou n o u tra form a?
IN T E R R O G A N T E : Q uem pode dizer que eu sou neurótico?
K R IS H N A M U R T I: Vós não sabeis quando sois neurótico?
Alguém precisa dizer-vos que o sois?
T ende a bondade de
escutar: Sem pre que há “ exageração” de qualquer fragm ento,
há neurose. Se sois superiorm ente intelectual, isso é um a form a
de neurose, em bora os indivíduos altam ente intelectuais sejam
tidos em elevada conta. E star apegado a um a certa crença —
153
cristã, b udista, com unista — estar apegado a qualquer espécie
de crença é um a form a de neurose. Senhor, olhai bem isso;
ide com vagar. Atende-vos a vossa pergunta. Q ualquer espécie
de m edo é um a form a de neurose, todo ajustam ento é um a
form a de neurose e qualquer com paração de vós m esm o com
o u tra pessoa é de fundo neurótico. Não estais fazendo isso?
IN T E R R O G A N T E : E stou.
K R IS H N A M U R T I: Logo, sois neurótico! E stam os tratando de
um assunto m uito sério. D este nosso exam e algum a coisa já
aprendem os: toda “ exageração” de qualquer fragm ento da cons
ciência (pois a vemos toda fragm entada), todo em penho em
realçar um dado fragm ento, é um a form a de neurose. Senhores,
recebei esta verdade em vossos corações, senti-a, ide com ela,
devotai-lhe tem po, deixai-vos envolver por ela, aplicai-a a vós
m esm os, e fareis então “ a próxim a pergunta” .
N ós, como agora somos, dividim os a consciência, e nessa
divisão há m uitas fragm entações, m uitas subdivisões — de
ordem intelectual, em ocional, etc.; e atribuir im portância a um
dado fragm ento é neurose.
Isso significa que, exagerando a
im portância de um dado fragm ento, a m ente se to rn a incapaz
de ver com clareza. P o r conseguinte, a ação de realçar um dado
fragm ento cria confusão. E u vos estou pedindo que vejais por
vós m esm o se há, ou não, fragm entação em vós. Essa frag
m entação — se nela se dá realce a um fragm ento, a seus in te
resses, seus problem as, desprezando-se os demais fragm entos —
leva não só ao conflito, mas tam bém a grande confusão, p or
que cada fragm ento quer m anifestar-se, salientar-se, e, se damos
im portância a um só, os outros começam a pro testar, a clam ar.
Esse clam or é confusão; e, desta confusão, provêm im pulsos neu
róticos, desejos de preenchim ento, de “ vir a ser” , “ realizar-se” .
IN T E R R O G A N T E : Às vezes, o que nos faz sofrer não é a
coisa visível. Se um a pessoa hesita em atravessar um a praça,
não é da praça que está com m edo. O u, se tem m edo da solidão,
pode haver algum a coisa, no seu inconsciente, que está causando
esse tem or.
K R IS H N A M U R T I: Sim. A neurose é apenas um sintom a, a
causa pode achar-se no inconsciente. É claro que assim pode
ser, e provavelm ente é. D e que se tra ta então?
V 4
IN T E R R O G A N T E : D e um a neurose.
K R IS H N A M U R T I: Após term os com preendido toda a estru
tura, poderem os passar à particularidade; mas, com eçar pela par
ticularidade não nos leva a parte alguma. Percebeis que exa
gerar a im portância de um fragm ento é um a form a de neurose?
H á o fragm ento intelectual, o em ocional, o físico, o psicossom á
tico; quase todos nós atribuím os im portância a um dado aspecto
desses num erosos fragm entos. Dessa “ exageração” , dessa desar
m onia, surgem outros fatores de desarm onia.
Q uando, por
exem plo, digo “ Tenho m edo de atravessar a ru a ” ou “ tenho
m edo do escuro” , a explicação pode ser que em m inha infância
m inha m ãe não me tratou convenientem ente ( * ) .
O ra, o que se pergunta não é “ P orque não posso atravessar
a ru a ? ” —• pergunta a que podem os responder, sem necessidade
de recorrer ao analista, se com preendem os a fragm entação da
consciência. Q uando se com preende essa fragm entação, nunca
se torna existente o problem a “ de atravessar a ru a ” . Estam o-nos entendendo bem ? Q uando vemos o todo, a im ensidade,
desaparece o menos im portante. M as, se continuam os a dar
im portância ao m enos im portante, este começa a criar seus pe
culiares “ problem azinhos” .
IN T E R R O G A N T E : M as, quando falais sobre a im portância de
ver a totalidade da consciência, que significa esse “ v er” ? P or
exem plo, às vezes sei um a coisa, mas não vejo como a sei.
K R IS H N A M U R T I: Não, senhor, percebei o que estou dizendo.
E stais escutando to ta l m e n te o m ovim ento daquele rio? F a zei-o ,
senhor! Não especuleis. E scutai o rio, e “ vede” se estais
escutando com pletam ente, sem fazerdes m ovim ento algum, em
nenhum a direção. E , tendo-o escutado, que dizeis?
IN T E R R O G A N T E :
nisso.
O reconhecim ento não tem participação
K R IS H N A M U R T I: E xatam ente. O reconhecim ento não tem
nenhum a participação. Não dizeis “ Aquilo é o rio e eu o estou
(* ) K rishnam urti se refere, talvez, ao sistem a de certos pais igno
rantes, de castigar as crianças, prendendo-as num quarto escuro, e ameaça
das freqüente m ente com o “ quarto escuro” . (N . do T .)
escutando” . Tam pouco estais v ó s , como entidade separada,
escutando o rio; só há o estado de “ escutar o som ” . Não dizeis
“ Sei que aquilo é um rio ” . Agora, voltem os; precisam os pene
trar bem nisto. Cam inhem os juntos.
IN T E R R O G A N T E : D ar relevo ao fragm ento é a essência da
neurose ou é o sintom a?
K R IS H N A M U R T I: É a própria essência e o sintom a.
IN T E R R O G A N T E : Ser intelectual é a essência e é o sintom a?
K R IS H N A M U R T I: N ão achais que é? V ede senhor, dou toda
a im portância à m inha capacidade intelectual. Considero-a m ara
vilhosa. Venço qualquer um num a argum entação. Li m uito
e sou capaz de correlatar tudo o que li. Escrevo livros geniais.
Não é esta a própria causa e o sintom a de m inha neurose?
IN T E R R O G A N T E : Parece ser o sintom a de um a agitação mais
profunda.
K R IS H N A M U R T I: De fato? Dizeis que é um sintom a, e não
a causa. E eu digo: vejamos! E stá a m ente inteira, não divi
dida e, por conseguinte, a causa e o efeito são idênticos? Vede,
senhor: O que era causa se to rn a efeito, e o efeito se to m a a
causa do próxim o m ovim ento; não há dem arcação precisa entre
a causa e o efeito. O que ontem foi causa se tornou efeito hoje,
e o efeito de hoje se torna a causa de am anhã. É um m ovi
m ento, um a cadeia contínua.
IN T E R R O G A N T E : M as, não é essencial ver o processo todo
inteiro, e não apenas causa e efeito?
K R IS H N A M U R T I: É o que estam os fazendo; isso, porém , não
é possível se damos mais im portância ao aspecto intelectual, ao
aspecto em ocional, ao físico, ao espiritual, e assim por diante.
O que pergunto, pois — e esta foi m inha prim eira per
gunta — é: P orque dividim os a m ente? Essa divisão é artifi
cial, ou necessária? É ela sim plesm ente um a invenção dos espe
cialistas, à qual nos escravizamos, a qual aceitam os com a m esm a
facilidade com que aceitam os tantas outras coisas? Dizem os:
“ G randes hom ens dizem isto ” — e engulim os o que eles dizem
e ficamos a repeti-lo. M as, quando vemos a fragm entação e a
im portância que a ela se dá, e percebem os que dela surge toda
a cadeia de causas e efeitos, e que ela é um a form a de neurose
— então a m ente vê a totalidade do m ovim ento, sem nenhum a
divisão. Pois bem , senhor; podeis vê-la?
IN T E R R O G A N T E : Só se não há identificação com o fragm ento.
K R IS H N A M U R T I: Sim. Se vos identificais com qualquer dos
fragm entos, trata-se evidentem ente do mesm o processo. Q uer
dizer, o “ processo” de estar identificado com um fragm ento,
desprezando-se os dem ais, é um a form a de neurose, um a contra
dição. Façamos agora a “ próxim a p erg u n ta” : Podeis identificarvos com o resto dos fragm entos? Vós, um fragm ento, identifi
car-vos com todos os outros fragm entos? Percebeis os truques
que estamos praticando nesta questão da identificação?
IN T E R R O G A N T E : Só posso responder se estou identificado
com um fragm ento; porque, então, sinto que estou incom
p leto . . .
K R IS H N A M U R T I: E xatam ente. Sentis que estais incom pleto e,
p o r conseguinte, tratais de identificar-vos com os outros frag
m entos. O ra, quem é a entidade que está procurando identifi
car-se com a m ultiplicidade? Ela é um dos fragm entos; por
conseguinte, trata-se de um artifício. E ntendeis? Estam os sem
pre dizendo: “ Preciso identificar-m e” .
IN T E R R O G A N T E : Não é m elhor nos identificarm os com m ui
tos fragm entos, para nos tornarm os mais com pletos?
K R IS H N A M U R T I: Não, não é m elhor. O ra, senhor, prim eira
m ente deixai-me explicar isso de novo. H á em m im m uitos
fragm entos. Um dos fragm entos diz que identificar-m e com
um só fragm ento causa confusão.
Esse fragm ento põe-se a
fazer esforços trem endos para identificar-se com os outros frag
m entos. Assim , digo: “ Identificar-m e-ei com os outros fragm en
to s” . Q uem é essa entidade que tenta identificar-se com os
outros fragm entos? É tam bém um fragm ento, não achais? P or
conseguinte, ela está iludindo a si própria. Isto é tão simples!
Bem, continuem os; há tanto que considerar, e ainda não saímos
da superfície.
Vem os que não há nenhum a divisão real.
Isso eu vejo
não verbalm ente. Percebo que o observador é um fragm ento
157
que se separa dos restantes fragm entos para observá-los. Nessa
observação, há um a divisão: observador e coisa observada; e
há conflito, há confusão. Q uando a m ente percebe essa frag
m entação e a futilidade de dividir-se a si própria, pode então
ver o m ovim ento total. Se não o vedes, não podeis fazer “ a p ró
xim a p erg u n ta” , ou seja: Q ue existe além do consciente? O u
abaixo, acima, ao lado? — conform e preferirdes.
Assim , se tendes m uito interesse, cabe-vos descobrir o que
E ntendeis
esta pergunta? E u estou trabalhando sozinho! Senhor, tendes
de aprender tudo o que é necessário aprender a este respeito; e,
aprendendo-o, podereis ajudar outros a aprender.
P o rtan to ,
aprendei agora, pelo am or de Deus! E sta é vossa missão na
vida!
Estam os perguntando que coisa é essa que se chama
“ consciência” ? Q uando é que dizeis “ E stou consciente” ?
é a consciência, e quando é que estais consciente.
IN T E R R O G A N T E : Q uando há pensam ento.
K R IS H N A M U R T I: M ais para perto!
IN T E R R O G A N T E : Q uando há dualidade.
K R IS H N A M U R T I: O quê? Mais para perto! E stais indo para
m uito mais longe!
IN T E R R O G A N T E : Q uando estam os fragm entados.
K R IS H N A M U R T I: Senhor, escutai: Q uando é que sabeis que
estais consciente? Isto é tão difícil assim?
IN T E R R O G A N T E : Q uando sofro.
K R IS H N A M U R T I: Diz aquela senhora que estam os conscientes
quando sofrem os, quando há conflito, quando tem os um pro
blem a, quando estam os resistindo; de contrário, a vida é um
fluir m anso, igual, harm ônico. Se estais vivendo sem contra
dição, tendes consciência disso? Tendes consciência de quando
sois suprem am ente feliz?
IN T E R R O G A N T E : Tenho.
K R IS H N A M U R T I: Sim?
IN T E R R O G A N T E : Q ue significa “ estar consciente” ?
K R IS H N A M U R T I: Não tendes necessidade de m o perguntar:
vós m esm o ireis descobri-lo. N o m om ento em que vos tornais
consciente de que sois feliz, existe ainda felicidade? Ao dizerdes
“ Como estou co n ten te!” — foi-se o contentam ento. Q uando
estais contente, podeis dizê-lo?
IN T E R R O G A N T E : Se estou consciente do contentam ento.
K R IS H N A M U R T I: Q ue então já é “ passado” ! Só se pode estar
consciente de um a coisa que passou, ou de um conflito, de um a
dor, quando tem os percebim ento de estarm os confusos. Q ual
quer perturbação que se verifica nesse m ovim ento é “ estar
consciente” , e nossa vida toda inteira é um a perturbação contra
a qual estam os resistindo.
Se em vossa vida não houvesse
nenhum a desarm onia, diríeis alguma vez “ estou consciente” ?
Q uando seguis o vosso cam inho, sem nenhum a espécie de
atrito , de resistência, de batalha, nunca dizeis “ eu existo” .
Só quando dizeis “ E u serei” , “ E u sou” — só então estais cons
ciente.
IN T E R R O G A N T E : Esse estado a que vos referis não é o m es
m o “ processo” de identificação com um a á r v o r e .. .?
K R IS H N A M U R T I: N ão, senhor. E u já expliquei a identifica
ção. Ao ver um a árvore, não a tom o p o r um a m ulher ou um a
igreja: é um a árvore; isso não é identificação. Vede, senhor,
descobrim os um a coisa, aprendem os um a coisa: Só há consciên
cia quando há “ vir a ser” , ou no ten tar “ vir a ser” . “ V ir a
ser” implica conflito: “ E u serei” . Q u er dizer, só existe conflito
enquanto a m ente está presa ao verbo “ ser” . T oda a nossa
cultura baseia-se nesta palavra “ ser” : “ Serei um hom em bem
sucedido” , “ Sou um fracassado” , “ Preciso realizar alguma coisa
im p o rtan te” , “ E ste m eu livro vai transform ar o m undo” . Estais-me seguindo? E nquanto há esse m ovim ento de “ vir a ser” ,
há conflito, e esse conflito torna a m ente “ consciente” . O u,
diz-se “ Preciso ser bom ” , em vez de “ Serei b o m ” : s e r bom .
Isso é tam bém um a form a de resistência: ser bom . “ Ser” e
“ V ir a ser” são a m esm a coisa.
IN T E R R O G A N T E : Pode-se estar consciente de um conflito?
K R IS H N A M U R T I: Pode-se, decerto. De outro m odo, não seria
possível “ estar consciente” .
IN T E R R O G A N T E : Um a pessoa não pode estar tão envolvida
em um conflito que não o percebe?
159
K R IS H N A M U R T I: D ecerto; isso é um a form a de neurose.
Senhor, já visitastes alguma vez urn hospital de alienados —
qualquer de vós? E u estive num deles — não como doente,
porém em com panhia de um analista — e todos os doentes —
do andar m ais alto, onde são confinados os mais violentos, ao
andar mais baixo, onde se acham os mais ou m enos m ansos —
todos se achavam em conflito ( elevado ao grau de “ exageração” ,
bem e n ten d id o ). A diferença é só que eles estão “ lá d en tro ” ,
e nós “ cá fora” .
IN T E R R O G A N T E : E stou tentando distinguir entre “ consciên
cia” e “ percebim ento ” .
K R IS H N A M U R T I: É a m esm a coisa. “ P ercebim ento” implica
que se está consciente da divisão. Q uando se está consciente
sem haver divisão e escolha, isso significa que a m ente não
está presa do m ovim ento de “ vir a ser” ou de “ ser” . E n ten
destes? O m ovim ento da consciência é, todo ele, no sentido
de “ vir a ser” ou de “ ser” : “ vir a ser fam oso” , “ vir a ser” um
trabalhador social, ú til ao m undo. Após observar a fragm en
tação, após observar o m ovim ento total da consciência, desco
bre-se que todo esse m ovim ento se baseia nisto: “ vir a ser”
ou “ ser” .
Se aprendestes isto, senhor — e não sim plesm ente concor
dastes comigo — podeis fazer agora um a pergunta inteiram ente
diferente: Q ue existe além do m ovim ento de “ vir a ser” e de
“ ser” ? Vós não estais fazendo esta pergunta, mas eu a faço.
Vós a com preendeis, senhor? O lhando este problem a da cons
ciência, tan to do ponto de vista analítico com o do filosófico,
percebi que a divisão foi criada pelo “ vir a ser” ou “ ser” .
Q uero “ ser hin d u ísta” , porque isso não só me prom ete vanta
gens m ateriais, mas tam bém progresso espiritual. Se rejeito o
hinduísm o, quero “ ser o utra coisa” , “ ser eu m esm o” , identifi
car-me comigo m esm o. Aí temos idêntico processo, mais um a
vez. Assim , observo, vejo que o m ovim ento total da consciência
é esse m ovim ento de “ ser” ou “ vir a ser” alguma coisa, ou
“ não ser” ou “ não vir a ser” . O ra, como vejo esse m ovim ento?
Vejo-o como coisa exterior a m im , ou vejo-o sem o centro que,
como “ e u ” , observa o “ vir a ser” e o “ não vir a ser” ? Com
preendeis esta pergunta? Não, parece-me que não.
160
Percebo que a consciência total é esse m ovim ento. D izendo
“ Percebo-o’', significa isso que o percebo como um a coisa exis
tente fora de m im , qual um quadro pendente da parede ou
exposto à m inha frente? O u vejo esse m ovim ento como parte
de “ m im ” , como m inha própria essência? Vejo esse m ovim ento
de um centro? O u vejo-o sem esse centro? Se o vejo de um
centro, esse centro é o “ ego” , o “ e u ” , que constitui a essência
m esm a da fragm entação.
P or conseguinte, quando há obser
vação por p arte do centro, só estou observando o m ovim ento
como um fragm ento, com o coisa exterior a m im , a qual preciso
com preender, “ agarrar” , com ela lu tar, etc. M as, se nenhum
centro há, isto é, nenhum “ eu ” , porém apenas um o b s e rv a r de
todo esse m ovim ento, esse observar conduzirá à “ próxim a p er
g unta” . Assim , qual das duas coisas estais fazendo?
Vede, por favor, que não estam os fazendo “ terapia em
grupo” , que isto não é um entretenim ento de “ fim de sem ana” ,
que não estam os aprendendo de alguém alguma coisa — “ como
tornar-se sensível” , ou “ como aprender a viver criadoram ente” .
Deixai de lado tudo isso. Estam os em penhados num trabalho
difícil, num a investigação profunda.
O ra, como estais obser
vando? Se não se com preende esta questão, a vida se torna
um a to rtu ra, um cam po de batalha. Nesse cam po de batalha,
desejais aperfeiçoar a artilharia, ou prom over a fraternidade —m antendo-vos, en tretan to , em vosso isolam ento.
H á quanto
tem po vimos fazendo este jogo!
Assim , se sois verdadeira e
profundam ente s é rio , deveis responder a esta pergunta: E stais
observando o m ovim ento total da consciência como um a enti
dade exterior, sem nenhum a relação com a coisa que estais
observando? O u estais observando sem nenhum centro? E ,
quando se observa dessa m aneira, que sucede?
Podem os fazer um a pequena digressão? Todos vós sonhais
m uito, não é verdade?
Já perguntastes porque sonhais? —
não “ como in terp retar os sonhos?” , que é um a pergunta im per
tinente, a que m ais adiante responderem os.
M as, já alguma
vez fizestes a pergunta p ertinente, ou seja: P o r que razão so
nham os?
IN T E R R O G A N T E : P orque nos acham os em conflito.
K R IS H N A M U R T I: N ão, senhor, não respondais precipitada
m ente; “ olhai” a pergunta. P orque sonhais? A “ próxim a per-
8
161
g u n ta ” é: É possível um sono sem sonhos? N ão digais “ sim ” ,
senhor.
T odos vós sonhais; que são esses sonhos, e porque sonhais?
O s sonhos, como já dissem os, são o m ovim ento de continuação
da atividade diurna, sim bolizado, disposto em diferentes cate
gorias, porém o m esm o m ovim ento. Não é exato isto? Não
concordeis, nem discordeis; averiguai isso. É tao óbvio!
Se
os sonhos são um m ovim ento de continuação da atividade diurna,
que sucede ao cérebro quando há essa atividade incessante, esse
barulho constante?
IN T E R R O G A N T E : Não pode descansar.
K R IS H N A M U R T I: Q ue lhe sucede?
IN T E R R O G A N T E : Esgota-se, gasta-se.
K R IS H N A M U R T I: Ele se gasta. N unca tem descanso. N unca
vê nada novo.
Não rejuvenesce. T udo isso está im plicado
quando há um contínuo m ovim ento, um a continua atividade
diurna, a qual prossegue, no cérebro, durante o sono. N o estado
de sono, pode-se prever algum acontecim ento fu tu ro , porque
há então um pouco mais de sensibilidade, um pouco mais de
percepção, etc.; m as, trata-se do mesmo m ovim ento. O ra, pode
esse m ovim ento que se verifica durante o dia, term inar com o
dia, não ser transportado para o sono? Isto é, ao irdes para
a cama, estar inteiram ente term inado? N ão respondais já a esta
pergunta. Nós vam os examiná-la.
Ao vos recolherdes ao leito, não costum ais “ fazer um b a
lanço” de tudo o que fizestes durante o dia, ou sim plesm ente
vos “ jogais na cama e ferrais no sono?” Não costum ais passar
em revista o dia, dizendo “ isto devia ter sido feito ” ou “ isto
não devia ter sido feito ” ? — perguntando a vós m esm o a signi
ficação d is to ou d a q u ilo ? Fazer esse balanço significa “ pô r as
coisas em ordem ” . O cérebro necessita de ordem , para fu n
cionar eficientem ente. Se sonhais, isto é, se o m ovim ento das
atividades do dia prossegue em vosso sono, não pode haver
ordem . Com o o cérebro necessita de ordem , ele a produz, instin
tivam ente, enquanto dorm is. D espertais um pouco m ais revigo
rado, porque tendes um pouco mais de ordem . O cérebro não
pode funcionar eficientem ente se há qualquer form a de conflito,
qualquer form a de desordem .
162
IN T E R R O G A N T E : N ão existem outras espécies de sonhos, nos
quais são transm itidas comunicações de diferente natureza?
K R IS H N A M U R T Í: Em prim eiro lugar com preendei o que é
“ o rdem ” . O m ovim ento da vida diária prossegue no decurso
do sono, porque nesse m ovim ento diário há contradição, há
desordem , desarm onia. E , durante o sono, p or m eio dos sonhos
e diferentes form as de “ não sonhar” , o cérebro trata de estabebelecer a ordem em seu próprio caos. Se “ fazeis ordem ” durante
o dia, o cérebro não tem necessidade de “ pôr as coisas em ordem ”
durante o sono. V ede quanto isso é im portante. P o r conse
guinte, o cérebro fica em repouso, quieto, revigorando-se, reno
vando-se. N ão sei se já notastes, quando tendes um problem a,
como passais o dia a refletir nele, e com ele continuais a preo
cupar-vos durante a noite; na m anhã seguinte, despertais, can
sado do problem a, mas continuais pelo dia a fora a atorm entar-vos com ele, tal como um cachorro a roer um osso. Nesse
trabalho ficais em penhado o dia inteiro, até à hora de irdes de
novo para a cama. Afinal, o cérebro esgota-se de todo e, então,
nesse estado de exaustão, podeis ver algo novo.
O que querem os dizer é coisa m uito diferente: Ponde fim
ao problem a logo ao surgir. Não o transporteis para o dia se
guinte, nem para o m inuto seguinte: acabai com ele! Alguém
vos insultou, vos ofendeu — dai-o p or acabado! Alguém vos
enganou, disse-vos coisas desam áveis: v e d e isso e não o leveis
para a frente, não o ponhais às costas como um fardo. Acabai-o
na m esma hora em que está sendo dito, e não depois.
A desordem é um estado neurótico do cérebro, que acaba
provocando um caso de doença m ental.
“ O rd em ” significa
term inar o problem a logo que surge, de m odo que o m ovi
m ento do dia não prossiga durante a noite e não haja sonhos,
porque fostes resolvendo tudo pelo cam inho. Não sei se p er
cebeis a im portância disso. P orque, então, se pode fazer “ a
próxim a p ergunta” : Q ue existe além de tudo isso? Dela trata
rem os amanhã.
7 de agosto de 1970.
163
DIÁLOGO
VI
T oda ação procedente da consciência fragm entária pro
duz confusão. O conteúdo da consciência controla a
sua estru tu ra, o u esta é independente do seu co nteú
do? P ode a consciência esvaziar-se de seu conteúdo?
A rã que q uer saltar para fora do charco da consciên
cia. O macaco preso no espaço da consciência lim i
tada pelo centro: a atividade egocêntrica. Q u e é espa
ço sem centro? Esclarecim ento — um estado m ental
em que o macaco nunca está em ação. A atenção.
O problem a da atenção e as interrupções causadas
pelo macaco. N o apogeu da atenção, q u e acontece à
estru tu ra integral do ente hum ano?
K R IS H N A M U R T I: C ontinuem os de onde param os ontem , quan
do estávam os considerando a natureza e estru tu ra da consciên
cia. Sem dúvida, a fim de poder operar-se um a to tal m utação
na m ente hum ana e, por conseguinte, na sociedade, é necessário
considerar esta questão. Nela tem os de p en etrar profundam ente,
para descobrir se existe alguma possibilidade de a consciência
passar p or um a m etam orfose, um a com pleta m udança de si p ró
pria. P orque é evidente que todas as nossas ações, sérias ou
levianas, superficiais ou profundas, resultam , originam -se dessa
consciência. E, como dissem os, dentro dessa consciência exis
tem num erosos fragm entos, cada um dos quais assume o predo
m ínio, conform e as circunstâncias. Se não com preenderm os o
conteúdo da consciência (e a possibilidade de o ultrapassarm os),
toda ação, por mais significativa que seja, produzirá necessaria
m ente confusão. Releva, pois, com preender bem claram ente a
natureza fragm entária de nossa consciência -— o dar-se dem a
siada atenção a um fragm ento, como o intelecto, um a crença, o
164
corpo, etc. Esses fragm entos que com põem a nossa consciência
—• de onde em ana toda a ação — produzirão inevitavelm ente
contradição e aflição. E stá claro isto, pelo menos verbalm ente?
Não tem sentido dizerm os para nós m esmos que todos esses
fragm entos devem ser reunidos ou “ integrados” , porque então
aparece o problem a relativo a q u e m tem a possibilidade de in te
grá-los, e, concom itantem ente, o esforço para operar a integração.
Assim , deve haver um a m aneira de olhar todo esse conjunto de
fragm entos com um a m ente não fragm entária. É esta a m atéria
de que vamos tratar nesta m anhã.
P ercebo que m inha m ente — que tam bém com preende o
cérebro e todas as reações nervosas e psicológicas — percebo
que a totalidade dessa consciência está fragm entada, fracionada,
pela cultura em que vivem os, cultura criada pelas gerações pas
sadas e continuada pela atual. E to d a ação, ou o predom ínio
de um fragm ento sobre os outros, levará inevitavelm ente a um a
enorm e confusão. D ar especial im portância à atividade social,
a um a crença religiosa, a um conceito intelectual, à U topia, isso
inevitavelm ente terá efeitos contraditórios e, por conseguinte,
causará confusão.
Assim , pergunta-se: “ H á um a ação que não seja fragm en
tária e não possa contradizer outra ação que irá verificar-se daqui
a um m in u to ? ”
Vem os que o pensam ento desem penha um papel m uito
im portante nessa consciência. O pensam ento não só é a reação
do passado, mas tam bém a reação de todo o nosso sentir. Todas
as nossas reações nervosas, esperanças, tem ores, prazeres, sofri
m entos, estão nele contidos. Perguntam os, pois, se o conteúdo
da consciência constitui a estru tu ra da consciência, ou se a
consciência é indepedente dele.
Se a consciência se constitui de m eus desesperos, m inhas
ansiedades, tem ores, prazeres, m inhas inum eráveis esperanças,
“ sentim entos de culpa” , e da vasta experiência do passado, então,
nenhum a ação dela em anada poderá, em tem po algum, liber
tar a consciência de suas lim itações. Não concordeis com o que
estou dizendo, pois não estam os tratando de um a simples m atéria
escolar. Tende a bondade de pôr-vos em com unhão comigo —
isto é, trabalhar, observar em vós m esmo o que estou dizendo
165
— e, depois, poderem os ir m ais longe. P o r ora, estou falando
à m aneira de introdução.
M inha consciência é o resultado da cultura em que vivo.
Essa cultura tem estim ulado e desestim ulado várias atividades,
vários prazeres, tem ores, esperanças e crenças. Essa consciência
constitui o “ eu” . T oda ação nascida dessa consciência condicio
nada é, necessária e inevitavelm ente, fragm entaria e, po r conse
guinte, contraditória, causadora de confusão. Se nascestes num
m undo com unista, socialista, ou católico, vossa m ente está con
dicionada p o r essa cultura, pelos padrões, valores, aspirações
dessa sociedade. E toda ação oriunda dessa consciência não
pode deixar de ser fragm entária. Não m e façais perguntas, p or
enquanto; ficai observando a vós m esm o. Escutai, prim eiro o
que o orador tem a dizer, sem introm eterdes vossas perguntas
ou pensam entos.
Após terdes ouvido tudo, sossegadam ente,
podereis com eçar a fazer perguntas, podereis dizer “ E stais enga
nado, estais certo ” , etc. M as, se ficardes a questionar m ental
m ente o que se for dizendo, neste caso não estareis escutando,
cessará a com unicação entre nós, não estarem os em com unhão.
E , sendo extrem am ente com plexo e sutil o problem a que vamos
considerar, deveis, previam ente, escutar.
E stam os investigando o que é a consciência. É ela consti
tuíd a das num erosas coisas que contém , ou é livre de seu
conteúdo? Se é livre do conteúdo, então a ação resultante dessa
liberdade não é ditada pelo conteúdo. Se não é livre, então o
conteúdo dita toda a ação. Vam os agora “ aprender” sobre essa
consciência.
O bservando a m im m esm o, percebo que sou o resultado
do passado, do presente, das esperanças que tenho para o futuro.
T udo isso, e seus inúm eros fragm entos, constitui o palpitante
conteúdo, a essência, da consciência; e toda ação nascida desse
conteúdo não só será, necessariam ente, fragm entária, m as, dela,
não virá liberdade.
Pode, pois, essa consciência esvaziar-se e descobrir se existe
um a consciência livre de onde prom ana um a ação inteiram ente
nova? Estou-m e fazendo claro?
O conteúdo da consciência é como um pequeno charco onde
um a pequena rã está a fazer enorm e barulho.
Essa rã diz:
“ H ei de descobrir como sair deste charco” — e se está esfor
166
çando p or ultrapassar a si própria. M as, continua a ser um a
ra aprisionada num charco.
P ode esse charco esvaziar-se de
to d o o seu conteúdo? M eu pequeno charco é a cultura em que
vivo, e m eu pequenino “ eu” — a rã que m ora nesse charco —
está a b atalhar contra essa cultura e a dizer “ Preciso sair daqui” .
M as, ainda que consiga sair, continuará a ser um a insignificante
ra, e o lugar para onde irá, não im porta qual seja, será ainda
“ um pequeno charco” por ele próprio criado. V ede isto, por
favor. A m ente percebe que toda atividade a que se entrega,
ou a que é forçada, é um m ovim ento entre os lim ites da cons
ciência e seu conteúdo. E m vista disso, que pode a m ente fazer?
T erá ela algum a possibilidade de ultrapassar essa lim itada cons
ciência? E sta é a prim eira questão.
A segunda questão é: O pequeno charco onde m ora a rã
poderá expandir-se e am pliar-se, mas o espaço que ela criar
continuará dentro dos lim ites de um a certa dim ensão. Essa rã
— ou, m elhor, esse macaco — é capaz de adquirir um a enorm e
soma de conhecim entos, de ilustração e experiência. Esse saber
e experiência poderão proporcionar-lhe um certo espaço para ele
expandir-se; m as, no centro desse espaço, está sem pre o macaco.
Assim , o espaço contido na consciência é sem pre lim itado
pelo centro. Se existe um centro, a circunferência ou fronteira
da consciência, p or mais que se dilate, é sem pre um lim ite. O
tal macaco poderá m editar e seguir sistem as vários, mas será
sem pre um m acaco. P o r conseguinte, o espaço que criar para
si próprio será sem pre lim itado e superficial. E sta é a segunda
questão.
A gora, a terceira: Q ue é espaço sem centro? T ratem os de
descobri-lo.
IN T E R R O G A N T E : P ode essa consciência, com suas lim itações,
transcender a si própria?
K R IS H N A M U R T I: Pode o macaco, com suas intenções e aspi
rações, sua vitalidade, libertar-se de seu condicionam ento e u ltra
passar as fronteiras da consciência criadas po r ele?
P o r outras palavras: P ode o “ eu” — o macaco — p o r m eio
de atividades várias — m editação, repressão, ajustam ento, não
ajustam ento — transcender a si próprio? Pode sua incessante
atividade, seu m ovim ento, transportá-lo para fora de seus lim i
167
tes? Q u er dizer, pode o conteúdo da consciência, o esforço por
p arte do m acaco, dar ao “ eu” a possibilidade de libertar-se do
confinam ento no charco? Assim , pergunto: P ode o macaco quie
tar-se com pletam ente, para ver a extensão de suas próprias fron
teiras? E há algum a possibilidade de ultrapassá-las?
IN T E R R O G A N T E : N o centro está sempre o macaco e, p or con
seguinte, não há espaço vazio, não há espaço para a liberdade.
K R IS H N A M U R T I: Senhor, notais, por vós m esm o, que estais
sem pre a agir com base num centro? Esse centro pode ser um
m otivo, esse centro pode ser o m edo, pode ser a ambição —
estais sem pre a agir com base num centro, não? “ E u te am o” ,
“ E u te odeio ” , “ Q uero ser poderoso” ■
— toda a ação que conhe
cemos parte de um centro. A inda que esse centro se identifique
com a com unidade ou com um a filosofia, continua a ser o cen
tro ; e a coisa com que ele se identificou se torna o centro. E stais
cônscio de que esse m ovim ento se está sem pre verificando, ou
há m om entos em que o centro está inativo?
Isso acontece:
repentinam ente, estam os observando, vivendo, sentindo, sem
nenhum centro. E essa é um a dim ensão totalm ente diferente.
M as, logo o pensam ento entra em ação, dizendo “ Com o foi
m aravilhoso iss o , gostaria de continuar assim ” . E ntão, “ isso”
se torna o centro. A lem brança de um a coisa sucedida há pou
cos segundos torna-se o centro, graças ao pensam ento. Perce
bem os o espaço que esse centro cria ao redor de si? — o iso
lam ento, a resistência, as form as de fuga?
E nquanto existir
um centro, existirá o espaço p o r ele criado; e desejam os expan
dir esse espaço, porque sentim os que a expansão do espaço é
necessária para viverm os com am plitude. M as, nessa consciên
cia expansível está sem pre o centro e, p or conseguinte, o espaço,
po r mais que se dilate, será sem pre lim itado. O bservai a vós
m esm o, não fiqueis apenas escutando; observai-vos e descobrireis
m uito sim plesm ente essas coisas. E a batalha das relações se
trava en tre dois centros, cada um deles querendo expandir-se,
impor-se, dom inar — os macacos em plena atividade!
P o rtan to , desejo a p re n d e r. D izendo “ Vejo isso m uito cla
ram en te” , a m ente está aprendendo. Com o se torna existente
aquele centro? É ele o resultado da sociedade, da cultura, ou
é um centro divino — desculpai-me o uso desta palavra “ divino”
168
— o qual sem pre foi sufocado pela sociedade, pela cultura? Os
hinduístas, e outros, chamam-no A t m a n , essa “ Coisa Sublim e”
que tem os dentro em nós e que está sem pre sendo sufocada.
P o r conseguinte, urge libertardes a m ente, para que ela deixe de
ser sufocada, e a coisa real, o macaco real, possa sair.
O centro, evidentem ente, é criado pela cultura em que vive
m os, po r nossas m em órias e experiências condicionadas, por nos
sa própria fragm entação.
P or conseguinte, não é só a socie
dade que cria o centro, mas tam bém o centro m ovim enta a si
próprio. Pode esse centro ultrapassar as fronteiras que ele pró
prio criou? Pode esse centro, silenciando a si próprio, contro
lando-se, m editando, seguindo um padrão, “ explodir” e “ ir
além ” ? N ão pode, decerto. Q uanto mais ele se aiustar ao
padrão, tan to mais fo rte se tornará, em bora im agine que se
está libertando. “ E sclarecim ento” , por certo, é aquele estado
m ental onde o macaco nunca está em ação. Com o poderá o
macaco pôr fim a suas atividades? — não pela im itação, ou o
ajustam ento, ou o dizer “ Fulano alcançou o esclarecim ento, vou
aprender d ele” — tudo isso são artes do macaco.
Percebe o macaco as m anhas que pratica consigo mesm o,
dizendo: “ E stou disposto a ajudar a sociedade, a transform ar a
sociedade, estou interessado nos valores sociais, no com porta
m ento virtuoso, na justiça social” ? Respondei a isso, senhor!
Não achais que tudo isso são m anhas que o macaco pratica con
sigo m esm o? Isto é tão claro, que não há duvidar a seu res
peito. Se não tendes certeza disso, senhor, então examinem o-lo,
consideremo-lo juntos.
IN T E R R O G A N T E : Às vezes, pareceis dizer que ajudar a socie
dade, prestar serviços sociais, é beneficiar a outrem . M as, eu
tenho o sentim ento de que não sou diferente da sociedade, e,
assim, entregar-m e a trabalhos sociais é a mesma coisa que tra
balhar para m im m esmo: não faço distinção.
K R IS H N A M U R T I: Mas, se não fazeis distinção —• não tenho
nenhum a intenção de m enoscabar-vos, senhor! — pergunto-vos:
O “ centro” continua existente?
IN T E R R O G A N T E : Não devia continuar.
K R IS H N A M U R T I: N ada de “ não devia” — porque então en tra
mos num dom ínio m uito diferente — “ devia” , “ não devia” ,
169
“ p o d ia” , “ não podia” — isto é, no dom ínio da teoria. O f a to
é este: em bora eu reconheça que eu e a sociedade somos um a
unidade, continua o centro, o “ e u ” , o m acaco, em ação?
A prim eira questão é esta: Percebo que enquanto houver
qualquer m ovim ento p o r p arte do macaco, esse m ovim ento levará
inevitavelm ente a alguma espécie de fragm entação, ilusão e caos.
E m palavras m ais simples: Esse centro — o “ e u ” , o egoísm o
sem pre em atividade, ainda que eu seja “ divino” , esteja m uito
interessado na sociedade e diga “ E u sou a sociedade” — esse
centro está em ação? Se está, então a frase “ E u sou a sociedade”
não tem sentido nenhum .
A segunda questão é: Com o pode esse centro desaparecer?
P o r m eio da determ inação, da vontade, de exercícios e várias
form as neuróticas de com pulsão, dedicação, identificação? T odo
m ovim ento dessa ordem é próprio do macaco; p o r conseguinte,
a consciência e o espaço nela contido estão ainda ao alcance do
macaco.
Assim , diz a m ente: “ E stou vendo com toda a clareza” —
“ vendo” , no sentido de estar percebendo a coisa, tal como se
percebe este m icrofone, isto é, sem condenação: v e n d o , sim ples
m ente. E , então, que acontece? P ara se ver um a coisa, escutar
um a coisa, necessita-se de atenção com pleta, não?
Se desejo
com preender o que estais dizendo, preciso prestar-lhe toda a
atenção. Nesse atenção está em atividade o m acaco? V erifi
cai isso.
Q uero escutar o que estais dizendo — que pode ser im por
tante ou sem im portância — e para com preendê-lo preciso pres
tar atenção; quer dizer, m inha m ente, m eu coração, m eus nervos,
tudo deve pôr-se em perfeita harm onia, para prestar atenção —
a m ente não separada do corpo, o coração não separado da
m ente: um todo perfeitam ente harm ônico, atento. Isso é que
é atenção. Pode a m ente p restar atenção com pleta às atividades
do m acaco? — sem condená-las, sem dizer “ certo ” ou “ errad o ” ?
—• estar sim plesm ente observando as m anhas do macaco? Nessa
observação não há análise. Isso é realm ente im portante, senho
res, “ cravai-lhe os dentes” . N o m om ento em que ela analisa
isoladam ente um dos fragm entos, lá está o macaco em atividade!
É, p o rtan to , a m ente capaz de observar dessa m aneira, com essa
170
atenção com pleta, todos os m ovim entos do macaco? Q ue sucede
quando há atenção c o m p le ta ? Vós a estais prestando?
Sabeis o que significa “ p restar atenção” ? Q uando estais
inteiram ente atento àquele trem , não h á resistência contra ele,
não há impaciência. O ra, quando se está escutando dessa m a
neira, existe um centro e, nele, um macaco em atividade? V eri
ficai-o, senhor, não espereis que eu diga nada, averiguai-o!
E stais escutando este orador com to d a a atenção? — quer dizer,
sem in terp retar o que ele está dizendo, sem concordar, nem dis
cordar, sem com parar ou traduzir o que ele diz, para ajustá-lo
a vossa própria m entalidade? H avendo qualquer atividade desse
gênero, não há atenção. P restar toda a atenção significa que a
m ente se pôs inteiram ente em silêncio para escutar. Estais fa
zendo isso? E stais escutando o orador, agora, com essa atenção?
Se estais, existe nela algum centro?
IN T E R R O G A N T E : Estam os passivos.
K R IS H N A M U R T I: N ão im porta se estais passivos ou ativos.
P erguntei “ Estais escutando?” “ E scutar” significa “ estar aten
to ” . E , nessa atenção, está em atividade o macaco? Não digais
nem “ sim ” nem “ n ão ” : descobri, aprendei! E qual é a n atu
reza dessa atenção onde não há centro, com um macaco a fazer
m anhas?
IN T E R R O G A N T E : Nessa atenção a m ente está vazia de pensa
m ento?
K R IS H N A M U R T I: N ão sei, senhor. N ão a “ verbalizeis” , com
expressões tais como “ sem pensam ento” , “ vazia” , etc. A pren
dei, descobri (e isso requer um a atenção constante, e não um a
atenção passageira) a natureza da m ente, quando nesse estado
de atenção com pleta.
IN T E R R O G A N T E : Ao dizerm os que a m ente não está presente,
ela está presente.
K R IS H N A M U R T I: N ão, senhor; se se diz que ela não está
presente para a comunicação verbal, então está presente a m em ó
ria. M as eu estou perguntando: Q uando estais com pletam ente
atento, existe “ centro” ? O ra, isto é tão simples!
Q uando estais assistindo a um a coisa verdadeiram ente diver
tida, que vos faz rir, existe •algum centro? Se um a coisa vos
171
interessa, e não estais a “ tom ar p artid o s” , porém sim plesm ente
observando, existe, nesse observar, algum centro, ou seja o
macaco? Se não h á centro, a questão, então, é esta: Pode essa
atenção fluir, m anter-se em m ovim ento — não apenas um m o
m ento e depois desaparecer — porém* continuar a fluir, naturalm ente, suavem ente, sem esforço algum ?
“ Esforço implica a
presença do m acaco, o aparecim ento do macaco. Estais-m e acom
panhando?
i 1R
O macaco d e v e entrar em ação quando se trata de executar
um certo trabalho. M as, nasce da atenção essa atividade do
m acaco, ou é independente da atenção? I r para o escritório,
trabalhar — isso é um m ovim ento da atenção ou é m ovim ento
do macaco, que entra em ação e diz: “ Q uero ser m elhor que
m eus colegas, ganhar m ais dinheiro, trabalhar mais, com petir,
tornar-m e gerente, etc.” ? P enetrai isso, senhor. Q ual dos dois
m ovim entos existe em vossa vida — o m ovim ento da atenção
(p o r conseguinte, m uito mais eficaz), ou o m ovim ento do m a
caco? Respondei a isso, senhor, po r vós mesm o. Se o macaco
en tra em ação e faz algum a diabrura — e os macacos estão sem
p re fazendo diabruras — pode essa diabrura ser apagada e
não deixar m arca? C ontinuai a penetrar, senhores! N ão estais
vendo a beleza que há nisso!
O n tem alguém vos disse um a coisa inverídica. E n tro u em
ação o macaco, dando-vos vontade de dizer “ Você é um m enti
ro so !” ? O u o que houve foi o m ovim ento da atenção, no qual
não está em atividade o m acaco? Se foi, então aquela inverdade
não produz m arca nenhum a. Q uando o macaco reage, ela deixa
m arca. Assim , pergunto: Pode essa atenção estar sem pre em
m ovim ento? N ão, “ Com o m anter um a atenção co n tín u a?” —
porque então é o macaco quem está perguntando. M as, quando
existe sem pre o m ovim ento da atenção, a m ente acom panha,
sim plesm ente, esse m ovim ento.
Cabe-vos responder a esta pergunta: Pode a atenção estar
sem pre em m ovim ento? Eis, com efeito, um a pergunta de vital
im portância. N ós só conhecemos o m ovim ento do macaco, e
só um a vez ou outra tem os a atenção em que o macaco absolu
tam ente não aparece. M as, depois, o macaco diz: “ E u quero
ter essa atenção” — e lá se vai ele para o Japão, aprender a m edi
tar, ou para a ín d ia, sentar-se aos pés de alguém, etc.
172
Perguntam os: Esse m ovim ento da atenção não está em
nenhum a relação com a consciência, tal como a conhecemos?
N ão está, evidentem ente. Pode essa atenção, como m ovim ento,
fluir, como fluem todos os m ovim entos? E se o macaco entra
em ação, pode ele próprio tornar-se cônscio de estar em ação
e, assim, não introm eter-se no m ovim ento da atenção?
O ntem alguém m e insultou, e o macaco estava acordado
para dar a resposta, m as, como se tornou cônscio de si próprio
e de todas as conseqüências de suas m anhas, ele se quietou e
deixou a atenção fluir. Não é questão de “ como m anter o
m ovim ento” . Im porta perceber isso, porque, no m om ento em
que se diz “ preciso m anter o m ovim ento” , isso é ação do macaco.
M as, se o macaco sabe que está em atividade, então, a sensibi
lidade própria desse percebim ento torna-o im ediatam ente quieto.
IN T E R R O G A N T E : Nesse m ovim ento da atenção, não há in te
resse egoísta; por conseguinte, não há resistência, nem desper
dício de energia.
K R IS H N A M U R T I: Senhor, atenção significa energia elevada ao
mais alto grau, não é verdade? N a atenção, está concentrada
toda a energia, não fragm entada. N o m om ento em que ela se
fragm enta e começa a ação, então está em atividade o macaco.
E quando o macaco — que tam bém está aprendendo e se tornou
sensível, cônscio — percebe o desperdício de energia, logo se
aquieta, naturalm ente. Não há, então, a um lado o macaco,
e a outro lado a atenção; não há divisão entre o macaco e a
atenção. Se há divisão, a atenção se torna “eu superior” . . .
sabeis quantos artifícios os macacos inventaram . M as a atenção
é um m ovim ento total, um a ação total, não oposta à atenção.
Infelizm ente, o macaco tem tam bém vida própria e desperta.
O ra, quando não há centro nenhum , isto é, no apogeu da
atenção, podeis dizer-m e o que então acontece? Q ue aconteceu
à m ente que está atenta em tão alto grau, sem o m ínim o desper
dício de energia? Q ue sucedeu então? Dizei-o, senhores; não
quero ficar falando o tem po todo!
IN T E R R O G A N T E : H á silêncio total.
cação. . .
Não há auto-identifi
K R IS H N A M U R T I: Não quero nenhum dos artifícios inventados
pelo macaco! Q ue foi que sucedeu, não só ao intelecto, ao cére-
b r o, mas tam bém ao corpo? M uito já falei, mas nao apren
destes! Se este orador não voltar mais aqui, se m orrer, que
acontecerá? Como ireis a p r e n d e r ? A prendereis de algum iogue?
Nunca! P o rtan to , aprendei a g o r a ! Q ue foi que aconteceu à
m ente que se tornou sobrem odo atenta, na qual se concentrou
toda a energia ■
— que sucedeu ao intelecto?
IN T E R R O G A N T E : Ele vê.
K R IS H N A M U R T I: Não o sabeis!
favor!
Não façais conjecturas, por
IN T E R R O G A N T E : E stá totalm ente quieto.
K R IS H N A M U R T I: V ede, senhor — o cérebro, que esteve em
atividade, a trabalhar, o cérebro que inventou o macaco —
não se tornou esse cérebro altam ente sensível? Se não o sabeis,
tende a bondade de não conjecturar. E há o vosso corpo: quando
tendes aquela energia trem enda, não contam inada, não desper
diçada, que sucedeu à totalidade do organism o, à inteira estru
tura do ente hum ano? É o que vos pergunto.
IN T E R R O G A N T E : D esperta, torna-se vivo, a p r e n d e ...
K R IS H N A M U R T I: N ão, senhor. Ele precisa tornar-se vivo,
para aprender; de contrário, não se pode aprender. Se dizeis
“ Creio no m eu preconceito, gosto de meu preconceito, m eu con
dicionam ento é m aravilhoso” — nesse caso estais dorm indo, não
estais desperto. M as, no m om ento em que começais a questio
nar, a aprender, estais começando a “ ficar vivo” . N ão é isso
o que estou perguntando. Q ue foi que aconteceu ao corpo, ao
cérebro?
IN T E R R O G A N T E : H á com pleta ação recíproca, não há divisão,
m as percebim ento total.
K R IS H N A M U R T I: Senhor, se não estais a dissipar energia com
frioleiras, que sucedeu ao m ecanism o do cérebro (pois ele é
um a sim ples m áquina)?
IN T E R R O G A N T E : E le está vivo.
K R IS H N A M U R T I: T ende a bondade de observar-vos. P restai
atenção a qualquer fato, com pletam ente, com vosso coração,
vosso corpo, vossa m ente, com tudo o que tendes, cada partícula,
cada célula — e vede o que acontece.
174
IN T E R R O G A N T E : Nesse m om ento a gente não existe.
K R IS H N A M U R T I: Sim, senhor. M as, que aconteceu ao cére
bro, não a v ó s ? Concordo que o “ centro” já não existe; mas
existe o corpo, o cérebro. Q ue sucedeu ao cérebro?
IN T E R R O G A N T E : Ficou em repouso, regenerando-se.
K R IS H N A M U R T I: Q ual a função do cérebro?
IN T E R R O G A N T E : O rdem .
K R IS H N A M U R T I: Não repitais o que eu disse, pelo am or de
Deus!
Q ue é o cérebro? E le evolveu no tem po; é o reservatório
da m em ória; é m atéria; acha-se em intensa atividade, reconhe
cendo, protegendo-se, resistindo, pensando, não pensando, assus
tado, buscando a segurança e, en tretan to , na incerteza; repleto
de m em órias — não apenas a m em ória de ontem , mas séculos
de m em ória, m em órias raciais, m em órias fam iliais, tradição.
Todas essas m em órias estão nele contidas. O ra, que aconteceu
a esse cérebro, naquela extraordinária atenção?
IN T E R R O G A N T E : R e n o v o u -s e ...
K R IS H N A M U R T I: N ão quero ser descortês — mas, está novo
o vosso cérebro? O u apenas estais dizendo um a palavra? D i
zei-me, po r favor, que sucedeu a esse cérebro tão m ecânico?
Não digais que ele se tornou “ não m ecânico” . O cérebro é
puram ente mecânico, reagindo sem pre de acordo com seu con
dicionam ento, seu f u n d o ( b a c k g r o u n d ) , seus tem ores, seu pra
zer, etc. Q ue acontece a esse cérebro m ecânico quando não há
o m ínim o desperdício de energia?
IN T E R R O G A N T E : Começa a tornar-se criador. ...
K R IS H N A M U R T I: Deixem os isso para am anhã.
8 de agosto de 1970.
17d
DIÁLOGO
VII
Recapitulação. A m ente necessita de ordem para fun
cionar adequadam ente; o pensam ento tom a a segu
rança p o r ordem .
O macaco irrequieto não pode
achar a segurança. D iferença entre estabilidade m en
tal e segurança.
A busca de segurança só produz
fragm entação. A m ente em que não existe busca de
segurança. “ N ão há segurança” . C om preender a si
próprio é com preender o m ovim ento do pensam ento.
N a m ente que está sobrem odo atenta não h á fragm en
tação da energia. A com unicação não verbal. Como
alcançar o estado que é in finito e atem poral e no
qual “ o conceito do viver e do m orrer tem um signi
ficado to talm ente diferente” .
K R IS H N A M U R T I: N estas últim as semanas estivem os conside
rando juntos inúm eros problem as concernentes a nossas vidas —
os problem as que nós m esmos criamos e os que a sociedade
nos cria. Vim os tam bém que nós e a sociedade não somos duas
entidades diferentes, porém um m ovim ento de relações.
Se
qualquer pessoa está seriam ente interessada na sociedade e ati
vam ente em penhada em alterar a sociedade — seus padrões,
seus valores, sua m oralidade — mas não está cônscia de seu
próprio condicionam ento, então esse condicionam ento p rodu
zirá fragm entação na sua ação; po r conseguinte, haverá m ais
conflito, mais aflição, mais confusão. T udo isso consideram os
mais ou m enos cabalm ente.
E stivem os tam bém considerando o que é o m edo, e se a
m ente poderá em algum tem po livrar-se com pleta e totalm ente
dessa carga — tanto superficialm ente como profundam ente. E
exam inam os a natureza do prazer, coisa bem diferente da alegria,
176
tio deleite.
Exam inam os, por igual, a questão dos inúm eros
fragm entos que com põem nossa estrutura, nosso ser. Em nosso
exame, vim os que esses fragm entos dividem e m antêm separa
das todas as relações hum anas; e que um dado fragm ento assu
m e a autoridade e se torna o analista, o censor dos outros
fragm entos.
O ntem , ao considerarm os a natureza da consciência, exa
m inam os a questão da atenção. Dissem os que a atenção é um
estado no qual toda a energia se acha altam ente concentrada; e
que nessa atenção não existe observador, não existe “ cen tro ”
que, como “ e u ” , está atento.
Vamos agora, tdos nós, aprender, averiguar o que acon
tece à m ente, ao cérebro, a todo o nosso ser psicossom ático,
quando a m ente está intensam ente atenta. Para com preender
mos isso com clareza, por nós m esm os, devemos prim eiro per
ceber que a descrição não é a coisa descrita. Podem os descrever,
em todas as suas m inúcias, este pavilhão, mas essa descrição
não é o pavilhão. A palavra não é a coisa, e, desde o começo,
deve ficar-nos perfeitam ente claro que a explicação não é a
coisa explicada. Satisfazer-se com descrições, explicações, é a
m aneira mais infantil de viver, e parece-me que a m aioria de nós
assim vive. Satisfazemo-nos com a descrição, com a explicação,
com o dizer-se “ Eis a causa” — e vam os flu tuando ao sabor da
corrente. M as, o que nesta m anhã querem os fazer é descobrir
p or nós m esmos o que acontece à m ente — sendo a m ente o
cérebro e toda a estru tu ra psicossom ática — quando há essa
atenção intensa em que não existe nenhum “ centro” como obser
vador ou censor.
Para com preender-se isso, aprendê-lo realm ente e não satisfazer-se, sim plesm ente, com a explicação dada pelo orador; para
descobri-lo, tem-se de começar com a com preensão de “ o que é” .
Não “ o que deveria ser” ou “ o que fo i” , mas “ o que é ” .
Acom panhai-me. Viajem os juntos. É m uito interessante
cam inhar juntos, aprendendo. E videntem ente, fazem-se neces
sárias enorm es m udanças, no m undo e em nós m esm os. As
tendências de nossos pensam entos e ações se tornaram de todo
em todo infantis, contraditórias, diabólicas — se podem os em pre
gar esta palavra. Inventa-se um a m áquina de m atar, e logo
aparece um a “ antim áquina” para “ m atar” aquela m áquina. É
177
o que se está fazendo no m undo, não só no dom ínio social, mas
tam bém na área m ecânica. E a m ente que está deveras interes
sada, toda entranhada da im portância da m udança, tanto psico
lógica como exterior, deve exam inar este problem a do ente
hum ano e sua consciência, seus desesperos, seus tem ores, suas
ambições, suas ansiedades, seu desejo dè preenchim ento desta
ou daquela form a.
Assim , para com preenderm os tudo isso, devem os começar
vendo “ o que é ” . “ O que é ” não é apenas o que está à nossa
frente, mas tam bém o que existe “ além ” . P ara verdes o que
está à vossa frente, necessitais de percepção m uito clara, incontam inada, livre de preconceitos, não em polgada do desejo de
transcendê-lo, mas sim plesm ente interessada em observá-lo; em
observar não só “ o que é ” , mas tam bém “ o que fo i” — que
é tam bém “ o que é ” . “ O que é ” ê o passado, é o presente, e
ê o futuro. V ede bem isto! Assim , “ o que é ” não é estático,
porém um m ovim ento. E , para acom panhar o m ovim ento de
“ o que é ” , necessitais de um a m ente m uito clara, um a m ente
sem preconceitos, sem deform ações. Isso significa que há defor
mação sem pre que se faz algum esforço. A m ente não pode ver
“ o que é ” e transcendê-lo, se de algum a m aneira está preo
cupada em alterar “ o que é ” , ou em ultrapassá-lo, ou em re
prim i-lo.
P ara observar “ o que é ” , faz-se m ister energia. Para se
observar qualquer coisa necessita-se de energia. P ara escutar o
que estais dizendo, necessito de energia; isto é, preciso de ener
gia quando desejo realm ente, a todo preço, com preender o que
estais dizendo. M as, se não estou interessado, e escuto indife
rentem ente, preciso apenas de um a fraca dose de energia, que
depressa se dissipa. D estarte, para se com preender “ o que é ” ,
cum pre ter energia. O ra, os fragm entos de que somos com postos
representam a divisão dessa energia. “ E u ” e “ N ão eu” , “ cólera”
e “ não cólera” , “ violência” e “ não violência” — são fragm entos
da energia. E quando um fragm ento assume autoridade sobre
os demais fragm entos, a energia que funciona é fragm entária.
Estam os em comunicação? “ E star em com unicação” significa
estar aprendendo juntos, trabalhando juntos, criando juntos,
vendo juntos, com preendendo juntos; não é apenas eu ficar falan
do, e vós ficardes escutando e dizendo “ intelectualm ente com
178
p reen d o ” ; isso não é com preensão. “Com unicação” é um m ovi
m ento em que se está aprendendo e, p or conseguinte, agindo.
Vê, pois, a m ente que todos os fragm entos — m eu D eus,
vosso D eus, m inha crença e vossa crença, representam fragm en
tações da energia. A energia é fragm entada pelo pensam ento, e
o pensam ento é o m ovim ento do condicionam ento, questão à
qual não voltarem os agora, porque precisam os ir para diante.
D este m odo, a consciência é a totalidade desses fragm entos
de energia. E , como dissemos, um desses fragm entos é o obser
vador, o “ e u ” — o m acaco, em incessante atividade. Tende
sem pre em m ente que a descrição não é a coisa descrita, e que
vos estais observando po r m eio das palavras do orador. Mas,
as palavras não são a coisa e, po r conseguinte, o orador pouco
im porta. O im portante é vossa observação de vós m esm o e de
como a energia foi fragm entada. Podeis ver isso — ou seja
“ o que é ” — livre do fragm ento representado pelo observador?
Pode a m ente ver todos os fragm entos que com põem o todo da
consciência? Esses fragm entos representam a divisão da ener
gia. Pode a m ente vê-los, sem um observador que faz parte
dos num erosos fragm entos? Im p o rta com preender isso. Se a
m ente não é capaz de ver os inúm eros fragm entos sem ser pelos
olhos de o u tro fragm ento, nesse caso jam ais com preendereis o
que é atenção. Estam o-nos entendendo?
A m ente vê os efeitos, tanto exteriores como interiores,
da fragm entação. E xteriorm ente, os governos soberanos, com
seus exércitos, seu racism o, etc.; divisão em nacionalidades,
crenças, dogm as religiosos; divisão na ação social e política —
T rabalhistas, C onservadores, Com unistas, Capitalistas. T udo isso
foi criado pelo pensam ento, visando à segurança. Pensam os que,
p or meio da fragm entação, terem os segurança, e esse pensam ento
cria mais fragm entação.
Percebeis isso?
N ão verbalm ente,
porém realm ente, como um fato? Jovens e velhos, ricos e po
bres, vida e m orte — vedes essa constante divisão, esse m ovi
m ento de fragm entação causado pelo pensam ento, que fica envol
vido no condicionam ento resultante dessa fragm entação? Pode
a m ente ver esse m ovim ento todo inteiro, sem haver um “ centro”
a dizer: “ Vejo-o” ? P orque, se há esse centro, ele logo se torna
um fator de divisão — “ e u ” e “ não e u ” — que sois vós. O
pensam ento criou esse “ e u ” p o r causa do desejo ou do im pulso
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a buscar segurança, proteção. E nesse desejo de encontrar a
segurança dividiu a energia em “ e u ” e “ não e u ” , trazendo,
assim, a si próprio, a insegurança. Pode a m ente ver isso como
um a totalidade? N ão pode, se há algum fragm ento como obser
vador.
Já perguntam os: Q ual a natureza da m ente que se acha
sum am ente atenta, na qual não existe nenhum a fragm entação?
Foi aí que param os ontem . N ão sei se investigastes, ou apren
destes, de ontem para hoje; este orador não é um professor
que vos está ensinando, transm itindo conhecim entos. P ara des
cobrir aquilo, não deve haver, naturalm ente, nenhum a fragm en
tação, vale dizer, nenhum esforço. Esforço significa deform ação
e, como a m ente de quase todos nós está deform ada, não tendes
nenhum a possibilidade de com preender o que significa “ estar
com pletam ente a ten to ” e de descobrir o que acontece à m ente
que se acha totalm ente cônscia, atenta.
H á diferença entre “ segurança” e “ estabilidade” . Dissem os
que o macaco é esse “ e u ” perm anente, com seus pensam entos,
seus problem as, ansiedades, tem ores, etc. Esse pensam ento, esse
macaco irrequieto, está sem pre a buscar a segurança, porquanto
tem m edo de errar em suas atividades, seus pensam entos, suas
relações. E le quer que tudo seja m ecânico, garantido. Conseqüentem ente, traduz “ segurança” por “ precisão m ecânica” . É
a estabilidade diferente da segurança — não digo seu “ oposto” ,
porém um a d im e n s ã o d i f e r e n t e ? Precisam os com preender isso.
A m ente que está inquieta e a buscar segurança jam ais encon
trará a estabilidade. Com o é belo ser estável ( “ firm e” não é
a palavra ap ro p riad a), inabalável, inam ovível, e, contudo, capaz
de infinita m obilidade! A m ente que busca segurança não pode
ser estável — ser m óbil, ágil e, contudo, irrem ovível, qual um
rochedo.
Percebeis a diferença?
Q ual das duas coisas está ocor
rendo em vossa vida? E stá o pensam ento — o macaco irrequie
to — a buscar a segurança e, não a encontrando num a direção,
a buscá-la n o u tra direção?
Nessa inquietação, ele q u er achar
a segurança; por conseguinte, jamais a achará. P oderá dizer
“ H á D eu s” — outra invenção do pensam ento, um a imagem
criada através de séculos de condicionam ento. O u foi condicio
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nado pelo m undo com unista, onde se diz “ Não há D eus” —
tam bém condicionam ento.
Assim , que estais vós fazendo? — • buscando segurança em
vosso desassossego?
O desejo de estar em segurança é um a
coisa das mais curiosas. E essa segurança precisa ser aprovada
pelo m undo. Escrevo um livro, e nele encontro m inha segurança.
Mas esse livro precisa ser aprovado pelo m undo, do contrário
não tenho segurança. V ede em que deu isso: M inha segurança
na dependência da opinião do m undo! “ M eus livros estão sendo
vendidos aos m ilhares” . Criei, pois, um valor: o m undo! Bus
cando a segurança p o r meio de um livro —• ou do que quer
que seja — estou na dependência do m undo p o r m im criado.
E isso significa que estou constantem ente a enganar a m im m es
m o. O h, se pudésseis ver isto! Assim, o desejo de segurança,
po r parte do pensam ento, é o cam inho da incerteza, da insegu
rança. Q uando há atenção com pleta, e nenhum centro, que
sucede à m ente, nesse estado de intenso percebim ento? Existe
nela segurança? E xiste nela a m ínim a inquietação? P o r favor,
não concordeis comigo; m uito im porta descobrirdes isso.
Com o sabeis, senhores, a m aioria de nós anda a buscar um a
solução para as agonias do m undo, um a solução para a m orali
dade social — que é im oral; a tentar descobrir um a m aneira de
organizar um a sociedade em que não haja injustiça social. A tra
vés dos séculos, o hom em sem pre buscou Deus, a Verdade —
ou como se chame — sem jam ais encontrá-lo, porém sem pre
crendo nele. M as, quando se crê em D eus, naturalm ente cada
um tem experiências de acordo com sua crença — p ortanto,
experiências falsas. Assim , na sua inquietação, no seu desejo
de proteção, de segurança, de tranqüilidade, o hom em inventou
todas essas garantias im aginárias, projetadas pelo pensam ento.
Ao nos tornarm os cônscios dessa fragm entação da energia —
que, p or conseguinte, deixa de ser fragm entária — que sucedeu
na m ente que esteve buscando a segurança? E m sua inquietação,
ela esteve a correr de um tem or para outro. Assim , que vos
cabe fazer, qual a vossa resposta?
IN T E R R O G A N T E : Já não estam os isolados, não há mais m edo.
K R IS H N A M U R T I: Já consideram os isso, senhor. A m enos que
isso esteja acontecendo realm ente convosco, não digais nada,
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porque não tem sentido. Podeis inventar, podeis dizer “ Sinto-o” ,
mas, se sois verdadeiram ente s é r io , se desejais aprender, tendes
de p en etrar fundo nesta questão. É vossa missão; é v o s sa v id a
— e não apenas o espaço desta m anhã.
Com o vistes, ao atravessarm os a aldeia, a cam inho do pavi
lhão, toda gente estava indo para a igreja — religião de “ fim
de sem ana” . M as, aqui, não há “ religião de fim de sem ana” .
Estam os interessados num a “ m aneira de viver” na qual a ener
gia não seja fracionada. Se chegásseis a com preender isso, teríeis
um extraordinário “ senso de ação” .
IN T E R R O G A N T E : Senhor, perguntando-se “ Q ue se pode fa
z e r? ” , logo o macaco se põe em m ovim ento.
“ D ispara-se” a
pergunta, e a pergunta “ dispara” o macaco.
K R IS H N A M U R T I: Só fiz a pergunta para ver onde estais.
IN T E R R O G A N T E : Só um fragm ento está atuando.
K R IS H N A M U R T I: Sim. Só um dos fragm entos daquela ener
gia que foi fracionada está a buscar incansavelm ente a segu
rança. Eis, justam ente, “ o que é ” . É isso que todos nós esta
mos fazendo. Esse desassossego, essa constante busca e indaga
ção, esse aderir a um grupo e depois ir procurar ou tro grupo
— o macaco nunca pára — tu d o isso indica que a m ente anda
em busca de um a m aneira de vida na qual só a segurança lhe
interessa.
O ra, quando se percebe isso bem claram ente, que aconte
ceu à m ente — já não interessada na segurança? O bviam ente,
ela não tem m edo. A segurança se torna um a coisa m uito
trivial quando se vê que o pensam ento fragm entou a energia,
ou fragm entou a si próprio, e que, po r causa dessa fragm entação,
existe m edo. E quando vemos a atividade fragm entária do pen
sam ento, então, somos capazes de enfrentar o m edo, de agir.
Assim , perguntam os: “ Q ue aconteceu à m ente que se tornou
sobrem odo atenta? E xiste, nela, algum m ovim ento de busca?
Tende a bondade de descobrir isso.
IN T E R R O G A N T E : A atividade mecânica se detém de todo.
K R IS H N A M U R T I: C om preendeis m inha pergunta? Q uando
estais sum am ente atento, a m ente ainda está buscando experiên-
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cia, buscando a com preensão de si própria, tentando ultrapassar
a si própria, tentando descobrir o que é ação correta, o que
é ação incorreta, buscando um a perm anência em que possa am pa
rar-se — perm anência nas relações, na crença, ou em alguma
conclusão? C ontinua a haver esse m ovim ento quando estam os
com pletam ente cônscios?
IN T E R R O G A N T E : A m ente já não busca nada.
K R IS H N A M U R T I: Sabeis o que significa fazer um a asserção
dessas com tanta facilidade? “ N ão buscar nada” — que signi
fica isso?
IN T E R R O G A N T E : E star a m ente p ro n ta para receber algo
novo, algo que ela é incapaz de im aginar.
K R IS H N A M U R T I: N ão, m inha senhora, vós não com preen
destes. A m ente percebeu a atividade do macaco no seu desas
sossego. Essa atividade — que é ainda energia — o pensam ento
a fracionou, no seu desejo de achar um a segurança perm anente,
um a certeza, um a garantia. Assim , dividiu ele o m undo em
“ eu ” e “ não e u ” , “ n ós” e “ eles” , e busca a V erdade como
m eio de segurança. O bservado isso, pergunto: E stá a m ente
ainda a buscar o que quer que seja? Buscar im plica um estado
de inquietação — não achei a segurança aqui, vou para lá e,
não a encontrando, vou para acolá.
IN T E R R O G A N T E : A m ente não está então interessada em
buscar.
K R IS H N A M U R T I: A m ente em que não há centro algum não
se interessa em buscar. M as, está isso sucedendo em vós?
IN T E R R O G A N T E : No m om ento em que estam os atentos, é
isso o que sucede.
K R IS H N A M U R T I: N ão digais isso, senhor!
IN T E R R O G A N T E : Acontecem à m ente coisas de toda ordem
quando ela pára de lutar.
K R IS H N A M U R T I: Vistes algum a vez, ao dardes um passeio
ou estando sentado em sossego, o que significa estar totalm ente
vazio? — n ã o isolado, n ã o retirado, n ã o erguendo um m uro em
183
red o r de vós e vendo, depois, que não estais em relação com
coisa algum a; não aludo a nada disso. Q uando a m ente está
totalm ente vazia, isso não significa que ela ficou desm em oriada;
as m em órias lá estão, pois sabeis o caminho de casa ou do escri
tório. Refiro-m e ao vazio da m ente que fez deter-se o m ovi
m ento de busca.
IN T E R R O G A N T E : T udo é, e eu so u . Q ue é “ eu sou” ? Quem
é esse “ e u ” que diz “ sou” ? O macaco?
K R IS H N A M U R T I: T ende o cuidado de não repetir o que dis
seram os propagandistas, o que disseram as religiões, o que dis
seram os psicólogos. Q uem é que diz “ eu sou” ? — o italiano,
o francês, o russo, o crente, o dogm a, os tem ores, o passado,
o hom em que está sem pre a buscar, e aquele que busca e acha?
O u aquele que se identificou com sua casa, seu m arido, seu di
nheiro, seu nom e, sua fam ília? — palavras, palavras, palavras!
Não; vós não percebeis isso. M as é o fato. Se percebeis que
sois apenas um feixe de m em órias e de palavras, deixa de existir
o irrequieto macaco.
IN T E R R O G A N T E : Se a m ente está de todo vazia quando nos
estam os dirigindo ao escritório, porque ir para o escritório? P o r
que continuam os a fazê-lo?
K R IS H N A M U R T I: Tendes de ganhar a vida, tendes de voltar
a casa, tendes de sair deste pavilhão.
IN T E R R O G A N T E : E ntão, a questão é seguram ente esta:
Com o posso estar vazio, com a m em ória em funcionam ento?
K R IS H N A M U R T I: O ra, senhor, vou dizer-vos um a coisa m uito
sim ples: isso de segurança é um a coisa que não existe. Essa
incansável busca de segurança parte do observador, do “ centro” ,
do macaco. E esse macaco irrequieto — ou seja o pensam ento
— fragm entou o m undo e o pôs num a terrível desordem . Q uan
ta aflição e agonia tem ele causado! E isso o pensam ento é
incapaz de resolver; p o r mais inteligente, e sagaz, e eru dito, e
capaz de funcionar eficientem ente, o pensam ento não tem ne
nhum a possibilidade de pôr em ordem este caos. D eve haver
um a m aneira de sair dele sem ser por meio do pensam ento.
Desejo comunicar-vos que, nesse estado de atenção, nesse m ovi
m ento da atenção, desapareceu todo senso de segurança, porque
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há estabilidade. Essa estabilidade nada tem que ver, absoluta
m ente, com a segurança. Q uando o pensam ento busca a segu
rança, tem a idéia de que ela é algo de perm anente, irrem ovível
e, po r conseguinte, ele se torna m ecânico. O pensam ento busca
a segurança nas relações. Nessas relações, cria um a imagem.
Essa imagem se torna “ o perm anente” e fragm enta as relações
— vós tendes a vossa imagem , e eu tenho a m inha. Nessa
imagem , o pensam ento se firm ou e identificou como “ a coisa
perm anente” .
E xteriorm ente, foi isso o que fizemos: vossa p átria, m inha
pátria, etc. A bandonando tudo isso, abandonando-o, po r ter
visto sua total futilidade e nocividade, a m ente o dá p or defini
tivam ente acabado. E , então, que sucede na m ente para quem
term inou de todo o conceito de segurança? Q ue sucede a essa
m ente que, estando tão atenta, se tornou absolutam ente estável,
de m odo que o pensam ento já não busca a segurança em form a
nenhum a e percebe que essa coisa cham ada “ o perm anente”
não existe? E u vos estou apontando os fatos; a descrição não
é a coisa descrita.
Vede que isto é m uito im portante. O cérebro evolveu com
a idéia de se pôr em perfeita segurança. A m ente, o cérebro,
deseja a segurança, porque, sem ela, não pode funcionar. Se
não há ordem , o cérebro funcionará ilogicam ente, neuroticam ente, e por isso está sem pre a desejar a ordem , tendo dado à
ordem o significado de “ segurança” . Se esse cérebro continua
a funcionar, continuará a buscar a ordem p or m eio da segu
rança. Assim , quando há atenção, está o cérebro ainda a buscar
segurança?
IN T E R R O G A N T E : Senhor, só há o presente.
K R ISEIN A M U R TI: Senhor, estou procurando transm itir-vos
um a coisa. Posso estar totalm ente enganado, posso estar dizendo
asneiras. M as, a vós com pete descobrir, por vós m esm o, se
estou dizendo asneiras.
IN T E R R O G A N T E : T enho a im pressão de que, no m om ento em
que estou atento, não estou buscando. Mas essa atenção pode
cessar; então, estarei novam ente a buscar.
K R IS H N A M U R T I: J a m a isl Esse é que é o ponto essencial. Se
o pensam ento percebe que tal coisa — a perm anência — não
18.5
existe, ja m a is to m ará a buscá-la. Isto é, o cérebro, com suas
m em órias relativas à segurança, e o cultivo que ele recebe num a
sociedade baseada na segurança, com idéias e um a m oralidade
baseadas na segurança, esse cérebro se tornou totalm ente vazio
do m ovim ento de busca da segurança.
Já algum a vez aprofundastes bem esta questão da m edita
ção, qualquer de vós? A m editação não se interessa na m edi
tação, m as, sim, no m editador.
Percebeis a diferença?
A
m aioria de vós estais interessados na m editação, no que fazer
para m editar, no como m editar “ passo p o r passo” , etc. M as, a
questão não é esta, absolutam ente. O “ m editador” é a m edi
tação. C om preender o “ m editador” é m editação.
O ra, se exam inastes bem a questão da m editação, tereis
visto que o “ m ed itad o r” precisa acabar, pela com preensão e
não pela repressão ou o “ assassínio” do pensam ento.
Q uer
dizer, com preender a si próprio é com preender o m ovim ento do
pensam ento — que é o m ovim ento do cérebro com suas m em ó
rias — é com preender o m ovim ento do pensam ento, que está
buscando a segurança, etc.
O ra, pergunta o m editador: “ P ode esse cérebro tornar-se
totalm ente q u ieto ? ” E isso significa: Pode o pensam ento estar
com pletam ente quieto e, en tretan to , funcionar em razão dessa
quietude, não considerada como um fim em si? Provavelm ente
estais achando isto complicado demais, m as, em verdade, é m uito
sim ples.
Sabem os, pois, que na m ente de todo atenta não há frag
m entação da energia. N otai bem : não há fragm entação da ener
gia — a energia é to ta l. Essa energia está operando sem frag
m entação quando vos dirigis ao escritório.
IN T E R R O G A N T E : Talvez fosse possível alcançar-se um a com
preensão real, sem a ajuda da palavra; m ediante um a espécie
de contato direto com a coisa que se deseja com preender. E ,
conseqüentem ente, não haveria necessidade de palavras, que são
um a fuga.
K R IS H N A M U R T I: Nisso é que está o busilis. Podeis estar em
com unicação sem palavras — já que as palavras são em pecilhos?
IN T E R R O G A N T E : Posso.
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K R IS H N A M U R T I: Vede, senhor, posso com unicar-m e não ver
balm ente convosco acerca da m ente que está toda atenta e, con
tudo, é capaz de funcionar no m undo sem dividir em fragm entos
a energia? Com preendestes esta pergunta?
IN T E R R O G A N T E : C om preendi.
K R IS H N A M U R T I: Pois bem ; posso comunicar-vos aquilo sem
fazer uso da palavra? Com o sabeis que posso? Q ue coisas estais
dizendo, todo vós!
IN T E R R O G A N T E : Creio que podeis.
K R IS H N A M U R T I: Vede, estivem os falando quase cinco sema
nas seguidas, explicando as coisas, entrando em m inúcias, consa
grando-lhes todo o nosso coração. E vós com preendestes —
ainda que verbalm ente?
E quereis com preender não verbal
m ente! Isso é possível se vossa m ente está em contato com o
orador com a m esm a intensidade, a m esm a paixão, e ao m esm o
tem po, no m esm o nível. Assim, podeis estar em comunicação
com ele. Estais?
O ra, escutai aquele trem !
Sem palavras,
estabeleceu-se comunicação entre nós, porque am bos estam os
escutando o barulho do trem , no m esmo m om ento, com a m es
ma intensidade, a m esma paixão.
Só assim há comunicação
direta. Estais atento com a m esm a intensidade e ao mesm o
tem po que o orador? Não estais, decerto. Senhor, quando se
gurais a m ão de outra pessoa, podeis fazê-lo p or simples hábito
ou costum e. O u podeis segurar a m ão da o u tra pessoa e, entre
am bos, estabelecer-se comunicação, sem se pronunciar um a só
palavra, quando ambos se acham, nesse m om ento, no m esmo
grau de intensidade. M as, nós não tem os “ intensidade” , nem
paixão, nem interesse.
IN T E R R O G A N T E : Não a todas as horas.
K R IS H N A M U R T I: Não digais isso; nem p or um m inuto!
IN T E R R O G A N T E : Como o sabeis?
K R IS H N A M U R T I: E u não o sei. Se tendes essa intensidade,
sabeis então o que significa estar vigilante, atento e, p o r conse
guinte, já não estais buscando a segurança; por conseguinte, já
não estais atuando ou pensando com base na fragm entação.
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O lhai o que sucedeu a um a m ente que percorreu todo o caminho
que estivem os percorrendo, todas as discussões e trocas de pala
vras. Q ue aconteceu à m ente, à pessoa, que esteve realm ente
escutando tudo?
Em prim eiro lugar, essa pessoa se tornou sensível, não ape
nas m entalm ente, mas tam bém fisicam ente. D eixou de fum ar,
de beber, de tom ar drogas. E , ao falarm os sobre a questão da
atenção, deveis ter visto que a m ente já não está em busca de
nada, nem a afirm ar nada. Essa m ente é bastante m óbil e,
contudo, perfeitam ente estável. Em virtude dessa estabilidade
e sensibilidade, ela é capaz de agir sem dividir a vida ou a
energia em fragm entos.
Q ue descobre essa m ente, além da
ação, da estabilidade? O hom em sem pre andou em busca de
um a coisa que ele considera ser Deus, a V erdade; sem pre lutou
para alcançá-la, por causa de seu m edo, de sua fraqueza, seu
desespero e desordem . Buscou essa coisa, e pensou tê-la desco
berto. E essa descoberta, ele tratou de organizá-la.
C onseqüentem ente, o que é estável, altam ente m óbil, sensí
vel, não busca nada; vê algo que nunca foi achado. Para essa
m ente, o tem po deixou com pletam ente de existir — o que natu
ralm ente não significa que podem os perder o trem . Assim , um
estado existe, que é atem poral e, por conseguinte, infinito.
Se o alcançardes, vereis como é m aravilhoso. E u poderia
descrevê-lo, mas a descrição não é a coisa descrita. Com pete-vos
descobri-lo com o observar-vos; nenhum livro, nenhum in stru to r
vo-lo pode m ostrar. Não dependais de ninguém . Não ingresseis
em organizações espirituais. Cum pre-vos aprender tudo isso de
vós m esm o. E , então, a m ente descobrirá coisas incríveis. M as,
para tanto, não pode haver fragm entação, porém um a extraor
dinária estabilidade, agilidade, m obilidade. Para essa m ente, não
existe o tem po e, por conseguinte, o conceito relativo ao viver
e ao m orrer tem um significado inteiram ente diferente.
9 de agosto de 1970.
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