Título do original: FREEDOM FROM THE KNOWN
Publicado por Victor Gollancz Ltd., Londres © Krishnamurti Foundation, 1969
Edição
Ano
8-9
S8-S9-9O-9!-92-9J
Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade pela
EDITORA CÜLTRIX LTDA.
Rua Dr. Mário Vicente, 374, 04270 São Paulo, SP, fone: 63-3141, que se reserva a
propriedade desta tradução
Impresso nas oficinas gráficas da Editora Pensamento.
Escreveu-se este livro por sugestão de Krishnamurti e com sua aprovação. Os
textos foram selecionados de várias de suas recentes palestras em inglês, gravadas
em fitas e ainda não publicadas, proferidas em diversas partes do mundo. A seleção
e a ordem em que estão apresentados são de minha responsabilidade.
M.L.
I
A Busca do Homem — A Mente Torturada — O Caminho Tradicional — A
Armadilha da Respeitabilidade — O Ente Humano e o Indivíduo — A Batalha
da Existência — A Natureza Básica do Homem — A Responsabilidade — A
Verdade — A Dissipação de Energia — A Libertação da Autoridade.
Através das idades veio o homem buscando uma certa coisa além de si
próprio, além do bem-estar material — uma coisa que se pode chamar verdade,
Deus ou realidade, um estado atemporal — algo que não possa ser perturbado
pelas circunstâncias, pelo pensamento ou pela corrupção humana.
O homem sempre indagou: Qual a finalidade de tudo isto? Tem a vida
alguma significação? Vendo a enorme confusão reinante na vida, as brutalidades,
as revoltas, as guerras, as intermináveis divisões dá religião, da ideologia, da
nacionalidade, pergunta o homem, com um profundo sentimento de frustração, o
que se deve fazer, o que é isso que se chama viver e se alguma coisa existe além
de seus limites.
E, não podendo encontrar essa coisa sem nome e de mil nomes que sempre
buscou, o homem cultivou a fé — fé num salvador ou num ideal, a fé que
invariavelmente gera a violência.
Nesta batalha constante que chamamos "viver", procuramos estabelecer um
código de conduta, conforme a sociedade em que somos criados, quer seja uma
sociedade comunista, quer uma pretensa sociedade livre; aceitamos um padrão de
comportamento como parte de nossa tradição hinduísta, muçulmana, cristã ou
outra. Esperamos que alguém nos diga o que é conduta justa ou injusta,
pensamento correto ou incorreto e, pela observância desse padrão, nossa conduta
e nosso pensar se tornam mecânicos, nossas reações, automáticas. Pode-se
observar isso muito facilmente em nós mesmos.
Durante séculos fomos amparados por nossos instrutores, nossas
autoridades, nossos livros, nossos santos. Pedimos: "Dizei-me tudo; mostrai-me o
que existe além dos montes, das montanhas e da Terra" — e satisfazemo-nos com
suas descrições, quer dizer, vivemos de palavras, e nossas vidas são superficiais e
vazias. Não somos originais. Temos vivido das coisas que nos tem dito, ou guiados
por nossas inclinações, nossas tendências, ou impelidos a aceitar pelas
circunstâncias e o ambiente. Somos o resultado de toda espécie de influências e em
nós nada existe de novo, nada descoberto por nós mesmos, nada original, inédito,
claro.
Consoante a história teológica garantem-nos os guias religiosos que, se
observarmos determinados rituais, recitarmos certas preces e versos sagrados,
obedecermos a alguns padrões, refrearmos nossos desejos, controlarmos nossos
pensamentos, sublimarmos nossas paixões, se nos abstivermos dos prazeres
sexuais, então, após torturar suficientemente o corpo e o espírito, encontraremos
uma certa coisa além desta vida desprezível. É isso o que tem feito, no decurso das
idades, milhões de indivíduos ditos religiosos, quer pelo isolamento, nos desertos,
nas montanhas, numa caverna, quer peregrinando de aldeia em aldeia a esmolar,
quer em grupos, ingressando em mosteiros e forçando a mente a ajustar-se a
padrões estabelecidos. Mas, a mente que foi torturada, subjugada, a mente que
deseja fugir a toda agitação, que renunciou ao mundo exterior e se tornou
embotada pela disciplina e o ajustamento — essa mente, por mais longamente que
busque, o que achar será em conformidade com sua própria deformação.
Assim, para descobrir se de fato existe ou não alguma coisa além desta
existência ansiosa, culpada, temerosa, competidora, parece-me necessário
tomarmos um caminho completamente diferente. O caminho tradicional parte da
periferia para dentro, para, através do tempo, da prática e da renúncia, atingir
gradualmente aquela flor interior, aquela íntima beleza e amor — enfim, tudo fazer
para nos tornarmos estreitos, vulgares e falsos; retirar as camadas uma a uma;
precisar do tempo: amanhã ou na próxima vida chegaremos — e quando, afinal,
atingimos o centro, não encontramos nada, porque nossa mente se tornou incapaz,
embotada, insensível.
Após observar esse processo, perguntamos a nós mesmos se não haverá
outro caminho totalmente diferente, isto é, se não teremos possibilidade de
"explodir" do centro.
O mundo aceita e segue o caminho tradicional. A causa primária da
desordem em nós existente é estarmos buscando a realidade prometida por
outrem; mecanicamente seguimos todo aquele que nos garante uma vida espiritual
confortável. É um fato verdadeiramente singular esse, que, embora em maioria
sejamos contrários à tirania política e à ditadura, interiormente aceitamos a
autoridade, a tirania de outrem, permitindo-lhe deformar a nossa mente e a nossa
vida. Assim, se de todo rejeitarmos, não intelectual, porém realmente, a autoridade
dita espiritual, as cerimônias, rituais e dogmas, isso significará que estamos
sozinhos, em conflito com a sociedade; deixaremos de ser entes humanos
respeitáveis. Ora, um ente humano respeitável nenhuma possibilidade tem de
aproximar-se daquela infinita, imensurável realidade.
Começais agora por rejeitar uma coisa que é totalmente falsa — o caminho
tradicional — mas, se o rejeitardes como reação, tereis criado outro padrão no qual
vos vereis aprisionado como numa armadilha; se intelectualmente dizeis a vós
mesmo que essa rejeição é uma idéia importante, e nada fazeis, não ireis mais
longe. Se entretanto a rejeitardes por terdes compreendido quanto é estúpida "e
imatura, se a rejeitais com alta inteligência, porque sois livre e sem medo, criareis
muita perturbação dentro e ao redor de vós, mas vos livrareis da armadilha da
respeitabilidade. Vereis então que cessou o vosso buscar. Esta é a primeira coisa
que temos de aprender: não buscar. Quando buscais, agis, com efeito, como se
estivésseis apenas a olhar vitrinas.
A pergunta sobre se há Deus, verdade, ou realidade — ou como se queira
chamá-lo — jamais será respondida pelos livros, pelos sacerdotes, filósofos ou
salvadores. Ninguém e nada pode responder a essa pergunta, porém, somente vós
mesmo, e essa é a razão por que deveis conhecer-vos. Só há falta de madureza na
total ignorância de si mesmo. A compreensão de si próprio é o começo da
sabedoria.
E, que é vós mesmo, o vós individual? Penso que há uma diferença entre o
ente humano e o indivíduo. O indivíduo é a entidade local, o habitante de qualquer
país, pertencente a determinada cultura, uma dada sociedade, uma certa religião.
O ente humano não é uma entidade local. Ele está em toda parte. Se o indivíduo só
atua num certo canto, isolado do vasto campo da vida, sua ação está totalmente
desligada do todo. Portanto, é necessário ter em mente que estamos falando do
todo e não da parte, porque no maior está contido o menor, mas o menor não
contém o maior. O indivíduo é aquela insignificante entidade condicionada, aflita,
frustrada, satisfeita com seus pequeninos deuses e tradições; já o ente humano
está interessado no bem-estar geral, no sofrimento geral e na total confusão em
que se acha o mundo.
Nós, entes humanos, somos os mesmos que éramos há milhões de anos —
enormemente ávidos, invejosos, agressivos, ciumentos, ansiosos e desesperados,
com ocasionais lampejos de alegria e afeição. Somos uma estranha mistura de
ódio, medo e ternura; somos a um tempo a violência e a paz. Têm-se feito
progressos, exteriormente, do carro de boi ao avião a jato, porém,
psicologicamente, o indivíduo não mudou em nada, e a estrutura da sociedade, em
todo o mundo, foi criada por indivíduos. A estrutura social, exterior, é o resultado
da estrutura psicológica, interior, das relações humanas, pois o indivíduo é o
resultado da experiência, dos conhecimentos e da conduta do homem,
englobadamente. Cada um de nós é o depósito de todo o passado. O indivíduo é o
ente humano que representa toda a humanidade. Toda a história humana está
escrita em nós.
Observai o que realmente está ocorrendo dentro e fora de vós mesmo, na
cultura de competição em que viveis, com seu desejo de poder, posição, prestígio,
nome, sucesso etc.; observai as realizações de que tanto vos orgulhais, todo esse
campo que chamais viver e no qual há conflito em todas as formas de relação,
suscitando ódio, antagonismo, brutalidade e guerras intermináveis. Esse campo,
essa vida, é tudo o que conhecemos, e como somos incapazes de compreender a
enorme batalha da existência, naturalmente lhe temos medo e dela tentamos fugir
pelas mais sutis e variadas maneiras. Temos também medo ao desconhecido —
temor da morte, temor do que reside além do amanhã. Assim, temos medo ao
conhecido e medo ao desconhecido. Tal é a nossa vida diária; nela, não há
esperança alguma e, por conseguinte, qualquer espécie de filosofia, qualquer
espécie de teologia representa meramente uma fuga à realidade — do que é.
Todas as formas exteriores de mudança, produzidas pelas guerras,
revoluções, reformas; pelas leis e ideologias, falharam completamente, pois não
mudaram a natureza básica do homem e, portanto, da sociedade. Como seres
humanos, vivendo neste mundo monstruoso, perguntemos a nós mesmos: "Pode
esta sociedade, baseada na competição, na brutalidade e no medo, terminar? —
terminar, não como um conceito intelectual, como uma esperança, porém como um
fato real, de modo que a mente se torne vigorosa, nova, inocente, capaz de criar
um mundo totalmente diferente?" Creio que isso só ocorrerá se cada um de nós
reconhecer o fato central de que, como indivíduos, como entes humanos — seja
qual for a parte do universo em que vivamos, não importando a que cultura
pertençamos — somos inteiramente responsáveis por toda a situação do mundo.
Somos, cada um de nós, responsáveis por todas as guerras, geradas pela
agressividade de nossas vidas, pelo nosso nacionalismo, egoísmo, nossos deuses,
preconceitos, ideais — pois tudo isso está a dividir-nos. E só quando percebemos,
não intelectualmente, porém realmente, tão realmente como reconhecemos que
estamos com fome ou que sentimos dor, bem como quando vós e eu percebemos
que somos os responsáveis por todo este caos, por todas as aflições existentes no
mundo inteiro, porque para isso contribuímos em nossa vida diária e porque
fazemos parte desta monstruosa sociedade, com suas guerras, divisões, sua
fealdade, brutalidade e avidez — só então poderemos agir.
Mas, que pode fazer um ente humano, que podeis vós e que posso eu fazer
para criar uma sociedade completamente diferente? Estamos fazendo a nós
mesmos uma pergunta muito séria. É necessário fazer alguma coisa? Que podemos
fazer? Alguém no-lo dirá? Muita gente no-lo tem dito. Os chamados guias
espirituais, que supõem compreender essas coisas melhor do que nós, no-lo
disseram, tentando modificar-nos e moldar-nos em novos padrões, e isso não nos
levou muito longe; homens sofisticados e eruditos no-lo têm dito, e também eles
não nos levaram mais longe. Disseram-nos que todos os caminhos levam à
verdade; vós tendes o vosso caminho, como hinduísta, outros o tem como cristão,
e outros, ainda, o têm como muçulmano; mas, todos esses caminhos vão
encontrar-se diante da mesma porta. Isso, quando o consideramos bem, é um
evidente absurdo. A verdade não tem caminho, e essa é sua beleza; ela é viva.
Uma coisa morta tem um caminho a ela conducente, porque é estática, mas,
quando perceberdes que a verdade é algo que vive, que se move, que não tem
pouso, que não tem templo, mesquita ou igreja, e que a ela nenhuma religião,
nenhum instrutor, nenhum filósofo pode levar-vos — vereis, então, também, que
essa coisa viva é o que realmente sois — vossa irascibilidade, vossa brutalidade,
vossa violência, vosso desespero, a agonia e o sofrimento em que viveis. Na
compreensão de tudo isso se encontra a verdade. E só o compreendereis se
souberdes como olhar tais coisas de vossa vida. Mas não se pode olhá-las através
de uma ideologia, de uma cortina de palavras, através de esperanças e temores.
Como vedes, não podeis depender de ninguém. Não há guia, não há
instrutor, não há autoridade. Só existe vós, vossas relações com outros e com o
mundo, e nada mais. Quando se percebe esse fato, ou ele produz um grande
desespero, causador de pessimismo e amargura; ou, enfrentando o fato de que vós
e ninguém mais sois o responsável pelo mundo e por vós mesmo, pelo que pensais,
pelo que sentis, pela maneira como agis, desaparece de todo a autocompaixão.
Normalmente, gostamos de culpar os outros, o que é uma forma de
autocompaixão.
Poderemos, então, vós e eu, promover em nós mesmos — sem dependermos
de nenhuma influência exterior, de nenhuma persuasão, sem nenhum medo de
punição — poderemos promover em nossa própria essência uma revolução total,
uma mutação psicológica, para que não sejamos mais
brutais, violentos,
competidores, ansiosos, medrosos, ávidos, invejosos — enfim, todas as
manifestações de nossa natureza que formaram a sociedade corrompida em que
vivemos nossa vida de cada dia?
Importa compreender desde já que não estou formulando nenhuma filosofia
ou estrutura de idéias ou conceitos teológicos. Todas as ideologias se me afiguram
totalmente absurdas. O importante não é uma filosofia da vida, porém que
observemos o que realmente está ocorrendo em nossa vida diária, interior e
exteriormente. Se observardes muito atentamente o que se está passando, se o
examinardes, vereis que tudo se baseia num conceito intelectual. Mas o intelecto
não constitui o campo total da existência; ele é um fragmento, e todo fragmento,
por mais engenhosamente ajustado, por mais antigo e tradicional que seja,
continua a ser uma parte insignificante da existência, e nós temos de interessarnos pela totalidade da vida. Quando consideramos o que está ocorrendo no mundo,
começamos a compreender que não há processo exterior nem processo interior; há
só um processo unitário, um movimento integral, total, sendo que o movimento
interior se expressa exteriormente, e o movimento exterior, por sua vez, reage ao
interior. Ser capaz de olhar esse fato — eis o que é necessário, só isso; porque, se
sabemos olhar, tudo se torna claríssimo. O ato de olhar não requer nenhuma
filosofia, nenhum instrutor. Ninguém precisa ensinar-vos como olhar.
Olhais,
simplesmente.
Assim, vendo todo esse quadro, vendo-o não verbalmente porém realmente,
podeis transformar-vos, natural e espontaneamente? Esse é que é o verdadeiro
problema. Será possível promover uma revolução completa na psique?
Eu gostaria de saber qual é a vossa reação a uma pergunta dessas. Direis,
porventura: "Não desejo mudar" — e a maioria das pessoas não o deseja,
principalmente aqueles que se acham em relativa segurança, social e
economicamente, ou que conservam crenças dogmáticas e se satisfazem em
aceitar a si próprios e às coisas tais como são ou em forma ligeiramente
modificada. Tais pessoas não nos interessam. Ou talvez digais, mais sutilmente:
"Ora, isso é dificílimo, está fora do meu alcance". Nesse caso, já fechastes o
caminho, já cessastes de investigar e será completamente inútil prosseguir. Ou,
ainda, direis: "Percebo a necessidade de uma transformação interior, fundamental,
em mim mesmo, mas como empreendê-la? Peço-vos me mostreis o caminho, me
ajudeis a alcançá-la". Se assim falardes, então o que vos interessa não é a
transformação em si, não estais realmente interessado numa revolução
fundamental: estais, meramente, a buscar um método, um sistema capaz de
efetuar a mudança.
Se fôssemos tão sem juízo que vos déssemos um sistema, e vós tão sem
juízo que o seguísseis, estaríeis meramente a copiar, a imitar, a ajustar-vos, a
aceitar, e, fazendo tal coisa, teríeis estabelecido em vós mesmo a autoridade de
outrem, do que resultaria conflito entre vós e essa autoridade. Pensais que deveis
fazer tal e tal coisa porque vo-la mandaram fazer e, no entanto, sois incapaz de
fazê-la. Tendes vossas peculiares inclinações, tendências e pressões, que colidem
com o sistema que julgais dever seguir e,' por conseguinte, existe uma contradição.
Levareis, assim, uma vida dupla, entre a ideologia do sistema e a realidade de
vossa existência diária. No esforço para ajustar-vos à ideologia, recalcais a vós
mesmo e, no entanto, o que é realmente verdadeiro não é a ideologia, porém
aquilo que sois. Se tentardes estudar-vos de acordo com outrem, permanecereis
sempre um ente humano sem originalidade.
O homem que diz: "Desejo mudar, dizei-me como consegui-lo" — parece
muito atento, muito sério, mas não o é. Deseja uma autoridade que ele espera
estabelecerá a ordem nele próprio. Mas, pode algum dia a autoridade promover a
ordem interior? A ordem imposta de fora gera sempre, necessariamente, a
desordem. Podeis perceber essa verdade intelectualmente, mas sereis capaz de
aplicá-la de maneira que vossa mente não mais projete qualquer autoridade — a
autoridade de um livro, de um instrutor, da esposa ou do marido, dos pais, de um
amigo, ou da sociedade? Como sempre funcionamos segundo o padrão de uma
fórmula, essa fórmula torna-se em ideologia e autoridade; mas, assim que
perceberdes realmente que- a pergunta "como mudar?" cria uma nova autoridade,
tereis acabado com a autoridade para sempre.
Repitamo-lo claramente: Veio que tenho de mudar completamente, desde as
raízes de meu ser; não posso mais depender de nenhuma tradição, porque foi a
tradição que criou essa colossal indolência, aceitação e obediência; não posso
contar com outrem para me ajudar a mudar, com nenhum instrutor, nenhum deus,
nenhuma crença, nenhum sistema, nenhuma pressão ou influência externa.
Que
sucede então?
Em primeiro lugar, podeis rejeitar toda autoridade? Se podeis, isso significa
que já não tendes medo. E então que acontece? Quando rejeitais algo falso que
trazeis convosco há gerações, quando largais uma carga de qualquer espécie, que
acontece? Aumentais vossa energia, não? Ficais com mais capacidade, mais
ímpeto, maior intensidade e vitalidade. Se não sentis isso, nesse caso não largastes
a carga, não vos livrastes do peso morto da autoridade.
Mas, uma vez vos tenhais livrado dessa carga e tenhais aquela energia em
que não há medo de espécie alguma — medo de errar, de agir incorretamente —
essa própria energia não é então mutação? Necessitamos de grande abundância de
energia, e a dissipamos com o medo; mas, quando existe a energia que vem depois
de nos livrarmos de todas as formas do medo, essa própria energia produz a
revolução interior, radical. Nada tendes que fazer nesse sentido.
Ficais então a sós com vós mesmo, e esse é o estado real que convém ao
homem que considera a sério estas coisas. E como já não contais com a ajuda de
nenhuma pessoa ou coisa, estais livre para fazer descobertas. Quando há liberdade,
há energia; quando há liberdade, ela não pode fazer nada errado. A liberdade difere
inteiramente da revolta. Não há agir correta ou incorretamente, quando há
liberdade. Sois livre e, desse centro, agis. Por conseguinte, não há medo, e a
mente sem medo é capaz de infinito amor. E o amor pode fazer o que quer.
O que agora vamos fazer, por conseguinte, é aprender a conhecer-nos, não
de acordo comigo ou de acordo com um certo analista ou filósofo; porque, se o
fazemos de acordo com outras pessoas, aprendemos a conhecer essas pessoas e
não a nós mesmos. Vamos aprender o que somos realmente.
Tendo percebido que não podemos depender de nenhuma autoridade exterior
para promover a revolução total na estrutura de nossa própria psique, apresenta-se
a dificuldade infinitamente maior de rejeitarmos nossa própria autoridade interior, a
autoridade de nossas próprias e insignificantes experiências e opiniões acumuladas,
conhecimentos, idéias e ideais. Digamos que tivestes ontem uma experiência que
vos ensinou algo, e isso que ela ensinou se torna uma nova autoridade, e vossa
autoridade de ontem é tão destrutiva quanto a autoridade de um milhar de anos. A
compreensão de nós mesmos não requer nenhuma autoridade, nem a do dia
anterior nem a de há mil anos, porque somos entidades vivas, sempre em
movimento, sempre a fluir e jamais se detendo. Se olhamos a nós mesmos com a
autoridade morta de ontem, nunca compreenderemos o movimento vivo e a beleza
e natureza desse movimento.
Livrar-se de toda autoridade, seja própria, seja de outrem, é morrer para
todas as coisas de ontem — para que a mente seja sempre fresca, sempre juvenil,
inocente, cheia de vigor e de paixão. Só nesse estado é que se aprende e observa.
Para tanto, requer-se grande capacidade de percebimento, de real percebimento do
que se está passando no interior de vós mesmo, sem corrigirdes o que vedes, nem
dizerdes o que deveria ou não deveria ser. Porque, tão logo corrigis, estais
estabelecendo outra autoridade, um censor.
Vamos, pois, investigar juntos a nós mesmos; ninguém ficará explicando
enquanto ides lendo, concordando ou discordando do explicador ao mesmo tempo
que ides seguindo as palavras do texto, porém vamos fazer juntos uma viagem,
uma viagem de exploração dos mais secretos recessos de nossa mente. Para
empreender essa viagem, precisamos estar livres; não podemos transportar uma
carga de opiniões, preconceitos e conclusões — todos os trastes imprestáveis que
juntamos no decurso dos últimos dois mil anos ou mais. Esquecei-vos de tudo o
que sabeis a respeito de vós mesmo. Esquecei-vos de tudo o que pensastes a vosso
respeito; vamos iniciar a marcha como se nada soubéssemos.
A noite passada choveu torrencialmente e agora o céu está começando a
limpar-se; é um dia novo, fresco. Encontremo-nos com este dia novo como se fosse
nosso único dia. Iniciemos juntos a jornada, deixando para trás todas as
lembranças de ontem, e comecemos a compreender-nos pela primeira vez.
II
O Aprender a Conhecer-se — A Simplicidade e a Humildade — O
Condicionamento.
Se considerais importante conhecerdes a vós mesmo só porque eu ou outro
disse que é importante, receio então que esteja terminada toda comunicação entre
nós. Mas, se concordamos ser de vital importância compreendermos a nós
mesmos, totalmente, torna-se então diferente a relação entre vós e mim e
poderemos explorar juntos, fazer com agrado uma investigação cuidadosa e
inteligente.
Eu não vos exijo fé; não me estou arvorando em autoridade. Nada tenho
para ensinar-vos — nenhuma filosofia nova, nenhum sistema novo, nenhum
caminho novo para a realidade; não há caminho para a realidade, como não o há
para a verdade. Toda autoridade, de qualquer espécie que seja, sobretudo no
campo do pensamento e da compreensão, é a coisa mais destrutiva e danosa que
existe. Os guias destroem os seguidores, e os seguidores destroem os guias.
Tendes de ser vosso próprio instrutor e vosso próprio discípulo. Tendes de
questionar tudo o que o homem aceitou como valioso e necessário.
Se não seguis alguém, vos sentis muito solitário. Ficai solitário, pois. Porque
tendes medo de ficar só? Porque vos defrontais com vós mesmo, tal como sois, e
descobris que sois vazio, embotado, estúpido, repulsivo, pecador, ansioso — uma
entidade insignificante, sem originalidade. Enfrentai o fato; olhai-o e não fujais
dele. Tão logo começais a fugir, começa a existir o medo. Ao investigar-nos não nos
estamos isolando do resto do mundo. Não se trata de um processo mórbido. O
homem, em todo o mundo, se vê enredado nos mesmos problemas diários, tal
como nós, e, assim, investigando a nós mesmos, não estamos de modo nenhum
procedendo como neuróticos, porque não há diferença entre o individual e o
coletivo. Este é um fato real. Criei o mundo tal como sou. Portanto, não nos
desorientemos nesta batalha entre a parte e o todo.
Tenho de estar cônscio de todo o campo de meu próprio ser, que é
constituído da consciência individual e social. É só quando a mente transcende a
consciência individual e social, que posso tornar-me a luz de mim mesmo, a luz que
nunca se apaga.
Pois bem; onde começarmos a compreender a nós mesmos? Aqui estou eu, e
como é que vou estudar-me, observar-me, ver o que realmente está sucedendo em
meu interior? Só posso observar-me em relação, porque a vida é toda de relação.
De nada serve ficar sentado num canto a meditar sobre mim mesmo. Não posso
existir sozinho. Só existo em relação com pessoas, coisas e idéias e, estudando
minha relação com as pessoas e coisas exteriores, assim como com as interiores,
começo a compreender a mim mesmo. Qualquer outra forma de compreensão é
mera abstração, e não posso estudar-me abstratamente; não sou uma entidade
abstrata; por conseguinte, tenho de estudar-me na realidade concreta — assim
como sou, e não como desejo ser.
A compreensão não é um processo intelectual. A aquisição de conhecimentos
a vosso próprio respeito e o aprendizado de vós mesmo são duas coisas diferentes,
porque o conhecimento que a vosso respeito acumulais é sempre do passado, e à
mente que leva a carga do passado é uma mente lamentável. O aprendizado de vós
mesmo não é como o aprendizado de uma língua, uma técnica ou uma ciência;
neste último caso, naturalmente, tendes de acumular e memorizar, pois seria
absurdo voltar sempre de novo ao começo. Mas, no campo psicológico, o
aprendizado de vós mesmo está sempre no presente, ao passo que o conhecimento
está sempre no passado e, como a maioria de nós vive no passado e está satisfeita
com o passado, o conhecimento se torna sumamente importante para nós. É por
essa razão que endeusamos o homem erudito, talentoso, sagaz. Mas, se estais
aprendendo a todo momento, a cada minuto, aprendendo pelo observar e pelo
escutar, aprendendo pelo ver e atuar, vereis então que o aprender é um
movimento infinito, sem o passado.
Se dizeis que aprendereis a conhecer-vos gradualmente, acrescentando
sempre mais alguma coisa, pouco a pouco, não vos estais estudando agora como
sois, porém por meio do conhecimento adquirido. O aprender requer muita
sensibilidade. Não há sensibilidade se existe alguma idéia, que é do passado,
dominando o presente. A mente já não é então ágil, flexível, alertada. A maioria de
nós não é sensível, nem mesmo fisicamente. Comemos em excesso, sem nos
importarmos com o regime mais adequado; abusamos do fumo e da bebida, e,
dessa maneira, o nosso corpo se torna pesado e insensível; a capacidade de
atenção do próprio organismo se embota. Como pode haver uma mente muito
alertada, sensível, clara, se o próprio organismo está embotado e pesado? Podemos
ser sensíveis a certas coisas que nos atingem particularmente, mas, para sermos
completamente sensíveis a tudo o que decorre das exigências da vida, não deve
haver separação entre o organismo e a psique. Trata-se de um movimento total.
Para compreendermos qualquer coisa, temos de viver com ela, observá-la,
conhecer-lhe todo o conteúdo, a natureza, a estrutura, o movimento. Já
experimentastes viver com vós mesmos? Se o experimentardes, começareis a ver
que "vós" não sois uma entidade estática, porém uma coisa vigorosa, viva. E, para
poder viver com uma coisa viva, vossa mente também tem de estar viva. Não
pode, porém, estar viva, se está enredada em opiniões, juízos e valores.
Para observardes o movimento de vossa mente e de vosso coração, de vosso
ser inteiro, necessitais de uma mente livre; e não de uma mente que concorda e
discorda, que toma partido numa discussão, disputando por causa de meras
palavras, porém que acompanha a discussão com a intenção de compreender. Isso
é dificílimo, porque não sabemos olhar nem escutar o nosso próprio ser, assim
como não sabemos olhar a beleza de um rio, ou escutar o murmúrio da brisa entre
as árvores.
Quando condenamos ou justificamos, não podemos ver com clareza, e
também
não
podemos
fazê-lo
quando nossa mente está a tagarelar
incessantemente; não observamos então o que é; só olhamos nossas próprias
"projeções". Temos, cada um de nós, uma imagem do que pensamos ser ou
deveríamos ser, e essa imagem, esse retrato, nos impede inteiramente de vermos
a nós mesmos como realmente somos.
Uma das coisas mais difíceis do mundo é olharmos qualquer coisa com
simplicidade. Como nossa mente é muito complexa, perdemos a simplicidade. Não
me refiro à simplicidade no vestir ou no comer, no usar apenas uma tanga ou bater
um recorde de jejum, ou qualquer outra das absurdas infantilidades que os santos
praticam; refiro-me àquela simplicidade que nos torna capazes de olhar as coisas
diretamente e sem medo, capazes de olhar a nós mesmos sem nenhuma
deformação, de dizer que mentimos quando mentimos e não esconder o fato ou
dele fugir.
Outrossim, para compreendermos a nós mesmos, necessitamos de muita
humildade. Se começais dizendo: "Eu me conheço" — já travastes o processo do
auto-aprendizado; ou, se dizeis "Não há muito que aprender a meu respeito,
porque sou apenas um feixe de memórias, idéias, experiências e tradições" —
tereis também parado o processo de aprendizado a vosso próprio respeito. No
momento em que alcançais qualquer alvo, perdeis o atributo da inocência e da
humildade; no momento em que chegais a uma conclusão ou começais a examinar
com base no conhecimento, está tudo acabado, porque então estais traduzindo
tudo o que é vivo em termos do velho. Mas se, ao contrário, não tendes nenhum
ponto de apoio, nenhuma certeza, nenhuma perfeição, estais em liberdade para
olhar, e quando olhais uma coisa em liberdade, ela é sempre nova. Um homem
seguro de si é um ente morto.
Mas, como ser livre para olhar e aprender, quando nossa mente, da hora do
nascimento à hora da morte, é moldada, por uma determinada cultura, no estreito
padrão do "eu"? Há séculos vimos sendo condicionados pela nacionalidade, a casta,
a classe, a tradição, a religião, a língua, a educação, a literatura, a arte, o costume,
a convenção, a propaganda de todo gênero, a pressão econômica, a alimentação
que tomamos, o clima em que vivemos, nossa família, nossos amigos, nossas
experiências — todas as influências possíveis e imagináveis — e, por conseguinte,
nossas reações a cada problema são condicionadas.
Percebeis que estais condicionado? Esta é a primeira coisa que deveis
perguntar a vós mesmo, e não como vos libertardes do condicionamento. Pode ser
que nunca vos livrareis dele, e se disserdes "Preciso livrar-me dele", podereis cair
noutra armadilha, noutra forma de condicionamento. Assim, percebeis que estais
condicionado? Sabeis que até mesmo quando olhais uma árvore e dizeis "Aquela
árvore é uma figueira" ou "Aquela árvore é um carvalho", o dar nome à árvore, que
é conhecimento botânico, de tal maneira vos condiciona a mente que a palavra se
interpõe entre vós e o real percebimento da árvore? Para entrardes em contato
com a árvore tendes de tocá-la com a mão, e a palavra não vos ajudará a tocá-la.
Como podeis saber que estais condicionado? Que é que vos diz isso? Que é
que vos diz que estais com fome? — não como teoria, porém o fato real da fome?
Do mesmo modo, como é que descobris o fato real de que estais condicionado?
Pela vossa reação a um problema, a um desafio, não é? Reagis a cada desafio
segundo o vosso condicionamento e como vosso condicionamento é inadequado
reagirá sempre inadequadamente.
Quando vos tornais cônscio dele, esse condicionamento de raça, de religião e
cultura vos faz sentir aprisionado? Considerai uma única modalidade de
condicionamento, a nacionalidade, considerai-a seriamente, com pleno
percebimento, para verdes se vos agrada ou se vos revolta, e se vos revolta, se
sentis vontade de libertar-vos de todo condicionamento. Se vosso condicionamento
vos satisfaz, é óbvio que nada fareis a respeito dele; mas, se não vos sentis
satisfeito ao vos tornardes cônscio dele, percebereis que nunca fazeis coisa alguma
sem ele. Nunca Por conseguinte, estais sempre vivendo no passado, com os
mortos.
Só percebereis por vós mesmo o quanto estais condicionado quando se
manifestar um conflito na continuidade do prazer ou na fuga à dor. Se tudo ao
redor de vós decorre de maneira perfeitamente feliz, vossa esposa vos ama, vós a
amais, tendes uma bonita casa, filhos interessantes e dinheiro à farta, nesse caso
não estais cônscio de vosso condicionamento. Mas, quando surge uma perturbação,
quando vossa esposa olha para outro homem, ou perdeis vossa fortuna, ou vos
vedes ameaçado pela guerra ou qualquer outra coisa que cause dor ou ansiedade
— então sabeis que estais condicionado. Quando lutais contra uma perturbação
qualquer ou vos defendeis de uma dada ameaça exterior ou interior, sabeis então
que estais condicionado. E, como a maioria se vê perturbada na maior parte do
tempo, seja superficialmente, seja profundamente, essa nossa própria perturbação
indica que estamos condicionados. Enquanto um animal é mimado, reage
agradavelmente, mas no momento em que se vê hostilizado, toda a violência de
sua natureza se revela.
Vemo-nos perturbados a respeito da vida, da política, da situação econômica,
do horror, da brutalidade e do sofrimento existentes tanto no mundo como em nós
mesmos, e essa perturbação nos revela quão estreitamente condicionados estamos.
Que devemos fazer? Aceitar a perturbação e ir vivendo com ela, como o faz a
maioria dos homens? Acostumar-nos com ela, assim como nos acostumamos com
uma dor nas costas? Conformar-nos com ela?
É tendência de todos nós conformar-nos com as coisas, acostumar-nos com
elas, delas culpando as circunstâncias. "Ah, se as coisas estivessem correndo bem,
eu seria diferente", dizemos, ou "Dai-me a oportunidade e eu me preencherei", ou
"Esmaga-me a injustiça de tudo isso" — sempre a culparmos das nossas
perturbações os outros ou o nosso ambiente ou a situação econômica.
Se nos acostumamos com a perturbação, isso significa que nossa mente se
embota, assim como uma pessoa pode acostumar-se de tal maneira com a beleza
que a cerca, que nem a nota mais. Tornamo-nos indiferentes, calejados,
insensíveis, e nossa mente se embota mais e mais. Se não podemos acostumar-nos
com a perturbação, dela tratamos de fugir, recorrendo a uma certa droga, ou
ingressando num partido político, bradando, escrevendo, assistindo a uma partida
de futebol, indo a uma igreja ou templo, ou procurando outro tipo de divertimento.
Por que razão fugimos dos fatos reais? Temos medo da morte — isso apenas
para exemplo — e inventamos teorias, esperanças e crenças de toda espécie, para
disfarçarmos o fato da morte, mas esse fato continua existente. Para
compreendermos um fato cumpre olhá-lo e não fugir dele. Em geral, temos tanto
medo do viver como do morrer. Temos medo de nossa família, da opinião pública,
de perder nosso emprego, nossa segurança, medo de centenas de outras coisas. O
fato simples é que temos medo, e não que temos medo disto ou daquilo. Mas,
porque é que não podemos enfrentar esse fato?
Só podemos enfrentar um fato no presente; mas, se nunca o deixais estar
presente, porque estais sempre a fugir dele, nunca podereis enfrentá-lo, e, tendo
criado uma verdadeira rede de fugas, estamos dominados pelo hábito da fuga.
Ora, se sois sensível, sério, por pouco que seja, não só estareis cônscio de
vosso condicionamento, mas também dos perigos dele decorrentes, da brutalidade
e do ódio a que ele conduz. Por que então, se estais vendo o perigo de vosso
condicionamento, não agis? É por que sois indolente? Indolência é falta de energia;
entretanto, não vos faltará energia em presença de um perigo físico imediato —
uma serpente no vosso caminho, um precipício, um incêndio. Por que então não
agis ao verdes o perigo de vosso condicionamento? Se vísseis o perigo do
nacionalismo para vossa própria segurança, não agiríeis?
A resposta é que não vedes. Por um processo intelectual de análise podeis
ver que o nacionalismo leva à autodestruição, mas nisso não há nenhum conteúdo
emocional. Só quando há esse conteúdo emocional, tendes vitalidade.
Se vedes o perigo de vosso condicionamento como um mero conceito
intelectual, jamais fareis coisa alguma em relação a ele. No perceber um perigo
como uma mera idéia, há conflito entre a idéia e a ação e esse conflito tira-vos a
energia. Só quando vedes o condicionamento e o seu perigo imediatamente, tal
como vedes um precipício, é só então que agis; portanto, ver é agir.
A maioria de nós percorre a vida desatentamente, reagindo sem pensar, de
acordo com o ambiente em que fomos criados, e tais reações só acarretam mais
servidão, mais condicionamento; mas, no momento em que aplicardes toda a
atenção ao vosso condicionamento, ver-vos-eis inteiramente livres do passado; ele
se desprenderá naturalmente de vós.
III
A Consciência — A Totalidade da Vida — O Percebimento
Ao vos tornardes cônscio do vosso condicionamento compreendereis a
totalidade de vossa consciência. A consciência é o campo total onde funciona o
pensamento e existem as relações. Todos os motivos, intenções, desejos, prazeres,
temores, inspiração, anseios, esperanças, dores, alegrias, se encontram nesse
campo. Mas nós dividimos a consciência em ativa e latente, em nível superior e
nível inferior; quer dizer, na superfície todos os pensamentos, sentimentos e
atividades de cada dia e, abaixo deles, o chamado subconsciente, as coisas que não
nos são familiares, que ocasionalmente se expressam por meio de certas
sugestões, intuições e sonhos.
Ocupamo-nos com um pequeno canto da consciência, que constitui a maior
parte de nossa vida; quanto ao resto, a que chamamos subconsciente, com todos
os seus motivos, temores, atributos raciais e hereditários, não sabemos sequer
como penetrá-lo. Agora, pergunto-vos: Existe mesmo tal coisa — o subconsciente?
Empregamos muito livremente essa palavra. Admitimos que essa coisa existe e
todas as frases e terminologias dos analistas e psicólogos se insinuaram na nossa
linguagem; mas, existe ela? E, por que razão lhe atribuímos tamanha importância?
A mim ela parece tão trivial e estúpida como a mente consciente, tão estreita, tão
fanática, condicionada, ansiosa e sem valor quanto ela.
Assim, será possível ficarmos completamente cônscios de todo o campo da
consciência e não meramente de uma parte, de um fragmento? Se puderdes
tornar-vos cônscio da totalidade, agireis sempre com vossa atenção total e não com
uma atenção parcial. Importa compreender isso, porque, quando se está cônscio de
todo o campo da consciência, não há atrito. Quando se divide a consciência — toda
ela constituída de pensamento, sentimento e ação — em diferentes níveis, é então
que há atrito.
Vivemos de maneira fragmentária. No escritório somos uma coisa, em casa
somos outra coisa; falais de democracia e, no íntimo, sois autocrata; falais em
amor ao próximo e ao mesmo tempo o estais matando na competição; uma parte
de vós está ativa, a olhar, independentemente da outra. Estais cônscio dessa
existência fragmentária em vós mesmo? E será possível ao cérebro, que dividiu o
seu próprio funcionamento, o seu próprio pensar em fragmentos, tornar-se cônscio
do campo inteiro? É possível olharmos o todo da consciência completa e
totalmente, o que significa sermos entes humanos totais?
Se, a fim de compreender a estrutura total do "eu", de extraordinária
complexidade, procederdes passo a passo, descobrindo camada por camada,
examinando cada pensamento, sentimento e_ motivo, ver-vos-eis todo enredado
no processo analítico, que vos levará semanas, meses, anos; e quando admitimos o
tempo no processo da autocompreensão, temos de estar preparados para toda
espécie de deformação, porquanto o "eu" é uma entidade complexa, que se move,
vive, luta, deseja, nega; sujeita a pressões e tensões de toda espécie, que nela
atuam continuamente. Descobrireis, assim, por vós mesmo, que não é esse o
caminho que deveis seguir; compreendereis que a única maneira de olhardes a vós
mesmo é fazê-lo totalmente, imediatamente, fora do tempo; e só podeis ver a
totalidade de vós mesmo quando a mente não está fragmentada. O que vedes em
sua totalidade é a verdade.
Mas, sois capaz disso? A maioria não o é, porque nunca nos abeiramos do
problema com seriedade, porque na realidade nunca olhamos a nós mesmos.
Nunca! Lançamos a culpa a outros, satisfazemo-nos com explicações, ou temos
medo de olhar. Mas, quando olhardes totalmente, aplicareis toda a vossa atenção,
todo o vosso ser, tudo o que tendes, vossos olhos, vossos ouvidos, vossos nervos;
estareis atento com o mais completo auto-abandono e não haverá então mais lugar
para o medo, para a contradição e, por conseguinte, não haverá mais conflito.
Atenção não é a mesma coisa que concentração. A concentração é exclusão;
a atenção é percebimento total, que nada exclui. A maioria de nós não me parece
estar cônscia, não só do que estamos dizendo aqui, mas também de nosso
ambiente, das cores que nos rodeiam, das pessoas, da forma das árvores, das
nuvens, do movimento da água. Isso acontece, talvez, porque estamos tão
interessados em nós mesmos, em nossos insignificantes problemas, nossas
próprias idéias, nossos prazeres, ocupações e ambições, que não podemos ficar
objetivamente cônscios. Entretanto, muito se fala de percebimento. Certa vez, na
índia, eu viajava de automóvel. Um motorista conduzia o carro, e eu ia sentado a
seu lado. Atrás, três homens discutiam com muito ardor sobre o percebimento,
fazendo-me de vez em quando perguntas sobre o assunto. Naquele momento, o
motorista, que estava a olhar para outra parte, infelizmente, atropelou uma cabra,
e aqueles três homens prosseguiram na discussão sobre o percebimento,
completamente alheios ao atropelamento da cabra. Quando essa falta de atenção
lhes foi apontada, os três cavalheiros, que tanto se empenhavam em estar atentos,
demonstraram grande surpresa.
A mesma coisa acontece com a maioria de nós. Não estamos conscientes
nem das coisas exteriores nem das interiores. Se desejais compreender a beleza de
uma ave, de uma mosca, de uma folha, de uma pessoa, com todas as suas
complexidades, tendes de dispensar-lhe toda a vossa atenção — e isso é
percebimento. E só podeis dar toda a atenção quando tendes zelo, quer dizer,
quando amais realmente o compreender; aplicais então ao descobrimento todo o
vosso coração e toda a vossa mente.
Esse percebimento é coisa semelhante a viverdes com uma serpente em
vosso quarto; observais cada um dos seus movimentos, sois altamente sensível a
cada ruído que ela produz. Um tal estado de atenção é energia total; nesse
percebimento se revela instantaneamente a totalidade de vós mesmo.
Ao vos olhardes dessa maneira profunda, podeis descer mais fundo ainda.
Empregando as palavras "mais fundo" não estamos fazendo comparação. Nós
pensamos comparativamente — profundo e superficial, feliz e infeliz. Estamos
sempre a medir, a comparar. Mas, será que existe em alguém mesmo tal estado —
o superficial e o profundo? Quando digo "minha mente é superficial, mesquinha,
estreita, limitada" — como sei dessas coisas? Porque comparei minha mente com
vossa mente, que é mais brilhante, tem mais capacidade, é mais inteligente e
alertada. Posso conhecer minha pequenez sem comparação? Quando sinto fome,
não comparo essa fome com a fome que ontem senti. A fome de ontem é uma
idéia, uma lembrança.
Se estou sempre a medir-me por vós, a esforçar-me para ser igual a vós,
estou então negando a mim mesmo. Por conseguinte, estou criando uma ilusão. Ao
compreender que a comparação, em qualquer forma, só leva a uma ilusão e um
sofrimento maiores ainda (tal como acontece quando analiso a mim mesmo,
aumentando o meu conhecimento pouco a pouco, ou identificando-me com algo
fora de mim mesmo — o Estado, um salvador ou uma ideologia), ao compreender
que todos esses processos só levam a mais ajustamento e conflito, abandono toda
comparação. Minha mente já não está a buscar. Muito importa compreender isso.
Minha mente já não está então a tatear, a buscar, a indagar. Isso não significa
estar satisfeito com as coisas como são, porém, sim, que a mente não tem ilusão
nenhuma. Pode então mover-se numa dimensão totalmente diferente. A dimensão
na qual vivemos nossa vida cotidiana, de dor, de prazer, de medo, condiciona a
mente, limita-lhe a natureza, e quando aquela dor, aquele prazer e aquele medo
deixaram de existir (o que não significa não ter mais alegria; a alegria é coisa
totalmente diferente do prazer), a mente passa então a funcionar numa dimensão
diferente, na qual não existe conflito, nenhuma idéia de diferença.
Verbalmente, só podemos chegar até esse ponto; o que existe além não
pode ser expresso em palavras, porque a palavra não é a coisa. Até aqui, pudemos
descrever, explicar, mas nem palavras nem explicações podem abrir a porta. O que
abrirá a porta é o percebimento e a atenção diários — percebimento da maneira
como falamos, do que dizemos, de nossa maneira de andar, do que pensamos. Isso
é como limpar e manter em ordem um aposento.
Manter o aposento em ordem é
importante a um respeito e totalmente sem importância a outro respeito. Deve
haver ordem no aposento, mas a ordem não abrirá a porta ou a janela. O que abre
a porta não é vossa volição ou desejo. Não se pode de modo nenhum chamar o
outro "estado de espírito". O que se pode fazer é apenas manter o aposento em
ordem, o que significa ser virtuoso por amor à virtude e não pelo que isso nos
trará, ser equilibrado, racional, ordenado. Então, talvez, se tiverdes sorte, a janela
se abrirá e a brisa entrará. Ou pode ser que não. Tudo depende do estado de vossa
mente. E esse estado da mente só pode ser compreendido por vós mesmo ao
observá-lo sem tentar moldá-lo, sem ser parcial, sem contrariá-lo, sem jamais
concordar, justificar, condenar, julgar; quer dizer, estar vigilante sem fazer
nenhuma escolha. E, em razão desse percebimento sem escolha, a porta talvez se
abrirá e conhecereis aquela dimensão em que não existe o conflito nem o tempo.
IV
A Busca do Prazer - O Desejo — A Perversão pelo Pensamento -A Memória
— A Alegria.
No capítulo precedente, dissemos que a alegria era uma coisa inteiramente
diferente do prazer; por conseguinte, vejamos o que está implicado no prazer e se
é possível viver-se num mundo em que não exista o prazer, porém um
extraordinário estado de alegria, de bem-aventurança.
Estamos, todos nós, empenhados na busca do prazer, nesta ou naquela
forma — prazer intelectual, sensual ou cultural; o prazer de reformar, de dizer aos
outros o que devem fazer, de atenuar os males da sociedade, de fazer o bem; o
prazer de ter conhecimentos mais vastos, maior satisfação física, mais
experiências, mais compreensão da vida, de possuir todas as qualidades
engenhosas e sutis da mente; e, naturalmente, o prazer supremo: a posse de
Deus.
O prazer é a estrutura da sociedade. Da infância à morte, secreta ou
ardilosamente, ou abertamente, buscamos o prazer. Assim, qualquer que seja a
nossa forma de prazer, acho que devemos vê-la muito claramente, porque será ela
que irá guiar e moldar a nossa vida. Por conseguinte, o importante é que cada um
de nós investigue com atenção, cautela, precisão, a questão do prazer, porque
achar o prazer e depois nutri-lo e mantê-lo constitui uma necessidade básica da
vida e sem ele a existência se torna monótona, estúpida, ensombrada pela solidão
e sem nenhum significado.
Perguntareis: "Então por que razão não deve a vida ser guiada pelo prazer?"
— Pela razão muito simples que o prazer traz necessariamente a dor, a frustração,
o sofrimento, o medo, e, como resultado do medo, a violência. Se desejais viver
dessa maneira, vivei; aliás, é o que a maioria faz. Mas, se desejais livrar-vos do
sofrimento, deveis compreender a inteira estrutura do prazer.
Compreender o prazer não significa negá-lo. Não o estamos condenando ou
dizendo que é bom ou mau, mas, se o cultivamos, façamo-lo de olhos abertos,
sabendo que a mente que está sempre a buscar o prazer encontrará
inevitavelmente a sua sombra — a dor. As duas coisas não podem ser separadas,
embora busquemos o prazer e procuremos evitar a dor.
Ora, por que é que a mente está sempre a exigir prazer? Por que razão
fazemos coisas nobres e ignóbeis sempre com esse desejo secreto de prazer? Por
que nos sacrificamos e sofremos, sempre pendentes desse tênue fio do prazer? Que
é o prazer, e como nasce? Não sei se alguns dentre vós já fizeram a si próprios
essas perguntas e foram até a última conseqüência das respostas.
O prazer se torna existente em quatro fases: percepção, sensação, contato e
desejo. Vejo um belo automóvel, por exemplo; vem em seguida uma sensação,
uma reação; depois o toco com as mãos ou imagino tocá-lo; e vem então o desejo
de possuir o carro e ostentar-me com ele. Ou vejo uma nuvem formosa, uma
montanha claramente delineada contra o céu, uma folha que acaba de brotar na
primavera, um vale profundo, cheio de encantos e esplendor, um glorioso pôr-dosol, um belo rosto, inteligente, vivo e «5o cônscio de sua beleza e, portanto, já sem
beleza. Olho essas coisas com intenso deleite e, enquanto as observo, não há
observador, porém, tão-só a beleza pura, qual a do amor. Por um momento estou
ausente com todos os meus problemas, ansiedades e aflições; só existe aquela
coisa maravilhosa. Posso olhá-la com alegria e no próximo momento esquecê-la,
ou, então, a mente pode interferir — e aí começa o problema: minha mente pensa
naquilo que viu e na sua beleza; digo de mim para mim que gostaria de tornar a
vê-lo muitas vezes. O pensamento começa a comparar, a julgar, a dizer: "Quero
repetir isso amanhã".
A continuidade de uma experiência que por um segundo
proporcionou deleite é mantida pelo pensamento.
O mesmo sucede em relação ao desejo sexual ou outro. Não há nada de mau
no desejo. Reagir é perfeitamente normal. Se me picais com um alfinete, eu reajo,
a não ser que esteja paralisado. Mas, o pensamento interfere, fica a ruminar aquele
deleite e o converte em prazer. O pensamento deseja repetir a experiência e,
quanto mais repetida, tanto mais mecânica ela se torna; quanto mais pensais nela,
tanto mais força o pensamento confere ao prazer. Desse modo, o pensamento cria
e mantém o prazer através do desejo e dá-lhe continuidade; por conseguinte, a
reação natural do desejo, ante uma coisa bela, é pervertida pelo pensamento. O
pensamento a converte em memória, que é então nutrida pelo pensar
repetidamente naquela coisa.
Naturalmente, a memória tem seu lugar próprio, num certo nível. Sem ela,
não teríamos possibilidade de atuar na vida de cada dia. Em sua própria esfera, a
memória tem de ser proficiente, mas há um estado da mente onde há muito pouco
lugar para ela. A mente que não está tolhida pela memória tem a verdadeira
liberdade.
Já notastes que, quando reagis a uma dada coisa totalmente, com todo o
coração, quase não fica memória? £ só quando não respondeis a um desafio com
todo o vosso ser que se apresenta o conflito, a luta, que acarreta confusão e prazer
ou dor. A luta gera memória. Essa memória é continuamente acrescentada por
outras memórias, e são essas memórias que reagem. Tudo o que é resultado da
memória é velho e, por conseguinte, nunca é livre. Liberdade de pensamento é algo
que não existe; é puro contra-senso.
O pensamento nunca é novo, porque o pensamento é a resposta da
memória, da experiência, do conhecimento. O pensamento, que é velho, torna
também velho aquilo que olhastes com deleite e que por um momento sentistes
profundamente, do velho vem o prazer; nunca do novo. No novo não existe o
tempo.
Assim, se puderdes olhar todas as coisas sem permitir a intrusão do prazer —
olhar uma rosa, uma ave, a cor de um sari, a beleza de uma extensão de água
rutilando ao sol, ou qualquer coisa deleitável — se puderdes olhar assim, sem
desejardes que a experiência se repita, então não haverá dor, nem medo e, por
conseguinte, haverá uma alegria infinita.
É a luta para repetir e perpetuar o prazer que o converte em dor. Observai
isso em vós mesmo. A própria exigência da repetição do prazer produz dor, porque
ele nunca é a mesma coisa de ontem. Lutais para alcançar o mesmo deleite não só
para o vosso senso estético, mas também para a vossa mente, e ficais magoado e
desapontado, porque ele vos é negado.
Já observastes o que acontece quando vos é negado um pequeno prazer?
Quando não tendes o que desejais, vos tornais ansioso, invejoso, rancoroso. Já
notastes que quando vos é negado o prazer de fumar ou de beber, o prazer sexual
ou outro qualquer — já notastes as lutas que tendes de sustentar? E tudo isso é
uma forma de medo, não é verdade? Tendes medo de não obter o que desejais ou
de perder o que possuis. Quando uma dada fé ou ideologia que cultivais há muitos
anos é abalada ou vos é arrebatada pela lógica da vida, não tendes medo de vos
verdes só? Essa crença vos proporcionou durante anos satisfação e prazer, e
quando vos é retirada ficais desgovernado, vazio, e o medo perdura até achardes
outras formas de prazer, outra crença.
Isso me parece muito simples, e, por ser tão simples, não queremos ver a
sua simplicidade. Gostamos de complicar tudo. Se vossa esposa vos abandona, não
sentis ciúme? Não sentis raiva? Não odiais o homem que a seduziu? E que é tudo
isso senão o medo de perder o que vos dava muito prazer, de perder essa
companhia, perder aquela segurança e satisfação conferidas pela posse?
Assim, se compreendeis que quando se busca o prazer tem de haver dor,
podeis, se vos aprouver, viver dessa maneira, porém com pleno conhecimento do
passo que estais dando. Se, entretanto, desejais pôr fim ao prazer, o que significa
pôr fim à dor, deveis estar completamente atento à estrutura total do prazer; mas
não deveis repeli-lo, como o fazem os monges e os sanyasis, que não olham para
uma mulher porque é pecado e, dessa maneira, destroem a vitalidade da própria
compreensão: porém, cumpre ver todo o significado e importância do prazer.
Encontrareis então infinita alegria na vida. Não se pode pensar na alegria. A alegria
é uma coisa imediata e se nela pensais a converteis em prazer. Viver no presente é
a percepção imediata da beleza e o grande deleite que nela se encontra, sem dela
procurar extrair prazer.
V
O Egoísmo - A Ânsia de Prestígio — Os Temores e o Medo Total - A
Fragmentação do Pensamento — A Cessação do Medo.
Antes de irmos mais adiante, eu desejava perguntar-vos qual é o vosso
interesse fundamental, constante, na vida. Pondo de parte quaisquer respostas
equívocas, e encarando a questão direta e honestamente, que responderíeis?
Sabeis?
Não é vossa própria pessoa? — Pelo menos é isso o que diria a maioria de
nós, se respondêssemos sinceramente. O que me interessa são os meus
problemas, meu emprego, minha família, o pequeno canto em que estou vivendo, a
conquista de uma posição melhor para mim, mais prestígio, mais poderio, mais
domínio sobre os outros etc. etc. Penso que seria lógico reconhecermos para nós
mesmos, que é nisso que está principalmente interessada a maioria de nós:
primeiro "eu".
Diriam alguns que é mau estarmos interessados principalmente em nós
mesmos. Mas, que há de mau nisso senão o fato de o admitirmos tão raramente,
decente e honestamente? Se o fazemos, sentimo-nos um tanto envergonhados. Eis,
portanto, o fato: Cada um está fundamentalmente interessado em si próprio e, por
várias razões, lógicas e tradicionais, pensa que isso é mau. Mas, o que uma pessoa
pensa é irrelevante. Ora, porque introduzir esse fator — o pensar que isso é mau?
Isso é uma idéia, um conceito. O fato é que, fundamentalmente, e perenemente,
cada um está interessado em si próprio.
36
Direis que é mais satisfatório ajudar o próximo do que pensar em si mesmo.
Qual a diferença? Isso continua a ser interesse em si próprio. Se encontrais maior
satisfação em ajudar os outros, estais interessado numa coisa que vos proporciona
uma satisfação maior. Por que admitir qualquer conceito ideológico a esse respeito?
Por que essa maneira dupla de pensar? Por que não dizer: "O que realmente desejo
é satisfação, seja sexual, seja ajudando os outros ou tornando-me um grande
santo, um grande cientista ou político"? Trata-se do mesmo processo, não achais?
Satisfação, de todas as maneiras, sutis ou óbvias, é o que desejamos. Dizendo que
desejamos liberdade, desejamo-la porque nesse estado se encontra uma satisfação
maravilhosa, e a satisfação máxima, naturalmente, é essa peculiar idéia de autorealização. O que na verdade estamos buscando é uma satisfação, sem nenhum
vestígio de insatisfação.
A maioria de nós aspira à satisfação de ocupar uma certa posição na
sociedade, porque temos medo de ser ninguém. A sociedade é formada de tal
maneira, que um cidadão que ocupa uma posição respeitável é tratado com toda a
cortesia, enquanto aquele que não tem posição é tratado a pontapés. Todos, neste
mundo, desejam prestígio, prestígio na sociedade, na família, ou à direita de DeusPadre, mas esse prestígio tem de ser reconhecido por outros, pois, do contrário,
não será prestígio. Queremos estar sempre sentados no palanque. Interiormente,
somos remoinhos de aflição e de malevolência, e, por conseguinte, ser olhado
exteriormente como uma grande figura proporciona imensa satisfação. Esse anseio
de posição, de prestígio, de poder, de ser reconhecido pela sociedade como pessoa
de destaque, representa uma vontade de dominar os outros, e essa vontade de
domínio é uma forma de agressão. O santo que busca posição em sua santidade é
tão agressivo como as aves que se bicam num aviário. E, qual a causa dessa
agressividade? O medo, não?
O medo é um dos mais formidáveis problemas da vida. A mente que está nas
garras do medo vive na confusão, no conflito, e, portanto, tem de ser violenta,
tortuosa e agressiva. Não ousa afastar-se de seus próprios padrões de pensamento,
e isso gera a hipocrisia.
Enquanto não nos livrarmos do medo, ainda que
galguemos o mais alto cume, ainda que inventemos toda espécie de deuses,
ficaremos sempre na escuridão.
Vivendo numa sociedade tão corrupta e estúpida, em que a educação nos
ensina a competir — o que gera medo — vemo-nos oprimidos por temores de toda
espécie; e o medo é uma coisa terrível, que torce e deforma, que ensombra os
nossos dias.
Existe o medo físico, mas esse é uma reação herdada do animal. É o medo
psicológico que nos interessa aqui, porque, compreendendo os temores psicológicos
em nós profundamente enraizados, estaremos aptos a enfrentar o medo animal, ao
passo que, se primeiramente nos interessamos no medo animal, jamais
compreenderemos os temores psicológicos.
Todos nós temos medo de alguma coisa; não existe o medo como abstração,
porém o medo só existe em relação com alguma coisa. Sabeis quais são os vossos
temores — o medo de perder vosso emprego, de não ter comida ou dinheiro
suficiente; medo do que pensam de vós os vizinhos ou o público, de não serdes um
"sucesso", de perderdes vossa posição na sociedade, de serdes desprezado ou
ridicularizado; medo da dor e da doença, de serdes dominado por outrem, de não
chegardes a conhecer o amor, ou de não serdes amado, de perderdes vossa esposa
ou vossos filhos; medo da morte ou de viver num mundo que é igual à morte, um
mundo de tédio infinito; medo de vossa vida não corresponder à imagem que os
outros fazem de vós; medo de perderdes a vossa fé — esses e muitos outros e
incontáveis temores; conheceis vossos temores pessoais? E que costumais fazer em
relação a eles? Não é verdade que fugis dele ou que inventais idéias e imagens
para encobri-los? Mas, fugir do medo é torná-lo maior.
Uma das causas principais do medo é que não desejamos encarar-nos tais
como somos. Assim, temos de examinar tanto os nossos temores como essa rede
de vias da fuga que criamos para nos libertarmos deles. Se a mente, que inclui o
cérebro, procura dominar o medo, se procura reprimi-lo, discipliná-lo, controlá-lo,
traduzi-lo em coisa diferente, daí resulta atrito e conflito, e esse conflito é um
desperdício de energia.
A primeira coisa, portanto, que devemos perguntar a nós mesmos é: "Que é
o medo, e como nasce?" Que entendemos pela palavra medo, em si? Estou
perguntando a mim mesmo o que é o medo e não de que é que tenho medo.
Vivo de uma certa maneira; penso conforme um determinado padrão; tenho
algumas crenças e dogmas, e não quero que esses padrões de existência sejam
perturbados, porque neles tenho as minhas raízes. Não quero que sejam
perturbados porque a perturbação produz um estado de desconhecimento de que
não gosto. Se sou separado violentamente das coisas que conheço e em que creio,
quero estar razoavelmente seguro do estado das coisas que irei encontrar. As
células nervosas criaram, pois, um padrão, e essas mesmas células nervosas
recusam-se a criar outro padrão, que pode ser incerto. O movimento do certo para
o incerto é o que chamo medo.
Neste momento em que estou aqui sentado, não estou com medo; não tenho
medo do presente, nada me está acontecendo, ninguém me está fazendo ameaças
nem me tomando nada. Mas, além deste momento presente, uma camada mais
profunda da mente está, consciente ou inconscientemente, a pensar no que poderá
acontecer no futuro, ou a preocupar-se com algum fato passado que me possa
prejudicar. Portanto, tenho medo do passado e do futuro. Dividi o tempo em
passado e futuro. O pensamento interfere, dizendo "Tem cuidado, para que isso
não torne a acontecer", ou "Prepara-te para o futuro! O futuro pode ser perigoso.
Agora tens alguma coisa, mas podes perdê-la. Podes morrer amanhã. Tua esposa
pode abandonar-te. Podes perder teu emprego. Talvez nunca te tornes famoso.
Podes ver-te na solidão. Precisas estar perfeitamente seguro do amanhã".
Considerai agora vosso temor particular. Olhai-o. Observai vossas reações a
ele. Podeis olhá-lo sem nenhum movimento de fuga, de justificação, condenação ou
repressão? Podeis olhar aquele medo, sem a palavra que causa medo? Podeis olhar
a morte, por exemplo, sem a palavra que suscita o medo da morte? A própria
palavra produz um estremecimento, não é exato? — assim como a palavra amor
produz seu estremecimento, sua imagem peculiar. Pois bem; a imagem que tendes
na mente a respeito da morte, a lembrança de tantas mortes a que assististes, e o
relacionar a vossa pessoa com tais incidentes — é essa a imagem que está criando
o medo? Ou, com efeito, tendes medo do findar e não da imagem que cria o fim?
É a palavra morte que vos causa medo ou é o próprio findar? Se é a palavra ou a
memória que vos está causando medo, então não se trata realmente do medo.
Estivestes doente há dois anos, digamos, e a lembrança daquela dor, daquela
doença, persiste, e a memória, agora em funcionamento, diz: "Tem cuidado, para
não adoeceres de novo!" Por conseguinte, a memória, com suas associações, está
criando o medo, e isso não é realmente medo, porque, com efeito, neste momento
estais gozando perfeita saúde. O pensamento, que é sempre velho — pois o
pensamento é reação da memória, e as lembranças são sempre velhas — o
pensamento cria, no tempo, a idéia que vos faz medo, a qual não é um fato real. O
fato real é que estais bem de saúde. Mas, a experiência, que permaneceu na mente
como memória, faz surgir o pensamento "Tem cuidado para não adoeceres
novamente".
Estamos vendo, pois, que o pensamento engendra uma espécie de medo.
Mas, separado desse, existe realmente medo? É o medo sempre resultado do
pensamento? Se é, existe alguma outra forma de medo? Tememos a morte — uma
coisa que acontecerá amanhã ou depois de amanhã, no tempo. Há uma distância
entre a realidade e o que será. Ora, o pensamento experimentou esse estado;
observando" a morte, ele diz: "Eu vou morrer". O pensamento cria o medo da
morte; e, se não o cria, existe então realmente o medo?
É o medo resultado do pensamento? Se é, uma vez que o pensamento é
sempre velho, o medo é sempre velho. Como dissemos, não há pensamento novo.
Se o reconhecemos, ele já é velho. Portanto, o que tememos é a repetição do velho
— o pensamento sobre o que foi, projetando-se no futuro. Por conseguinte, o
pensamento é o responsável pelo medo. Isso é um fato que podeis observar por
vós mesmo. Quando vos vedes diretamente em presença de alguma coisa, não há
medo. Só quando surge o pensamento é que há medo.
Por conseguinte, perguntamos agora: É possível à mente viver de maneira
completa, total, no presente? Só assim a mente não tem medo. Mas, para
compreender isso, tendes de compreender a estrutura do pensamento, da
memória e do tempo. E, compreendendo-a, não intelectual nem verbalmente,
porém de maneira real, com vosso coração, vossa mente, vossas entranhas,
ficareis livre do medo; a mente pode então servir-se do pensamento, sem criar
medo.
O pensamento, como a memória, é naturalmente necessário ao viver. É o
único instrumento de que dispomos para nos comunicarmos, para trabalharmos em
nossos empregos etc. O pensamento é a reação da memória, memória acumulada
por meio de experiência, do conhecimento, da tradição, do tempo. Desse acúmulo
de memória é que provêm as nossas reações, e essas reações constituem o pensar.
O pensamento, portanto, é essencial em certos níveis, porém, quando o
pensamento se projeta, psicologicamente, como futuro e como passado, criando o
medo bem como o prazer, a mente se embota e, por conseguinte, torna-se
inevitável a inércia.
Assim, pergunto a mim mesmo: "Mas por que penso no futuro e no passado
em termos de prazer e de dor, quando sei que esse pensamento gera medo? Não é
possível o pensamento deter-se, psicologicamente, pois de outro modo o medo
nunca terá fim?"
Uma das funções do pensamento é estar continuamente ocupado com
alguma coisa. Em geral, desejamos ter a mente continuamente ocupada, para nos
impedir de ver-nos como realmente somos. Temos medo de sentir-nos vazios.
Temos medo de encarar os nossos temores.
Conscientemente, podeis perceber os vossos temores, mas estais cônscio
deles nos níveis mais profundos? E como ireis descobrir os temores ocultos,
secretos? Pode o medo dividir-se em consciente e inconsciente? Esta é uma
pergunta muito importante. O especialista, o psicólogo, o analista, dividiram o
medo em camadas profundas e camadas superficiais, mas, se fordes seguir o que
diz o psicólogo ou o que eu digo, tereis a compreensão de nossas teorias, de nossos
dogmas, de nossos conhecimentos, mas não tereis a compreensão de vós mesmos.
Não podeis compreender-vos de acordo com Freud, Jung, ou de acordo comigo. As
teorias de outras pessoas não têm importância alguma. É a vós mesmo que deveis
perguntar se o medo pode ser dividido em consciente e subconsciente.
Ou só
existe medo, que traduzis de diferentes maneiras? Só existe um desejo; só há
desejo. Vós desejais. Os objetivos do desejo variam, mas o desejo é sempre o
mesmo. Assim, talvez, da mesma maneira, só existe o medo. Tendes medo de uma
porção de coisas, mas só existe um medo.
Ao perceberdes que o medo não pode ser dividido, vereis que acabastes com
o problema do subconsciente, pregando um logro aos psicólogos e aos analistas. Ao
compreenderdes que o medo é um movimento único que se expressa de diferentes
maneiras, e ao verdes o movimento e não o objetivo a que se dirige, estareis então
em presença de uma questão imensa: Como olhar o medo sem a fragmentação que
a mente cultivou?
5o há o medo total, mas como pode a mente que pensa fragmentariamente
observar esse quadro total? Pode observá-lo? Temos levado uma vida de
fragmentação e só somos capazes de olhar o medo através do processo
fragmentário do pensamento. Todo o processo do mecanismo do pensamento é
dividir tudo em fragmentos: Eu te amo e eu te odeio; tu és meu amigo, tu és meu
inimigo; minhas idiossincrasias e inclinações, meu emprego, minha posição, meu
prestígio, minha mulher, meu filho, minha pátria e tua pátria, meu Deus e teu Deus
— tudo isso é fragmentação do pensamento. E o pensamento olha o estado atual
de medo, ou tenta olhá-lo, e o reduz a fragmentos. Vemos, por conseguinte, que a
mente só pode olhar esse medo total quando não há movimentação do
pensamento.
Podeis observar o medo sem nenhuma conclusão, sem nenhuma
interferência do conhecimento que a seu respeito acumulastes? Se não podeis,
então o que estais observando é o passado e não o medo; se podeis, nesse caso
estais, pela primeira vez, observando o medo sem a interferência do passado.
Só se pode olhar com a mente muito quieta, assim como só se pode ouvir o
que alguém está dizendo, quando a mente não está a tagarelar, a travar consigo
um diálogo a respeito de seus problemas e ansiedades. Podeis, da mesma maneira,
olhar o vosso medo, sem procurardes dissolvê-lo, sem trazerdes à cena o seu
oposto, a coragem; olhá-lo de fato, e não tentar fugir dele?
Quando dizeis: "Eu tenho de controlá-lo, tenho de livrar-me dele, tenho de
compreendê-lo" — estais tentando fugir dele.
Podeis observar uma nuvem, uma árvore ou o movimento de um rio, com a
mente relativamente quieta porque essas coisas não são sumamente importantes
para vós; mas o observar a vós mesmo é muito mais difícil, porque então as
exigências são muito práticas, as reações muito rápidas. Assim, quando estais
diretamente em contato com o medo ou o desespero, com a solidão e o ciúme, ou
qualquer outro estado repulsivo da mente, podeis olhar de maneira tão completa
que vossa mente fique suficientemente quieta para vê-lo?
Pode a mente perceber o medo, e não as diferentes formas de medo;
perceber o medo total, e não aquilo de que tendes medo? Se olhais meramente
para os detalhes do medo ou procurais acabar com os vossos temores um a um,
nunca alcançareis o ponto central, que é aprender a viver com o medo.
O viver com uma coisa viva, tal o medo, requer uma mente e um coração
altamente sutis, que não chegaram a qualquer conclusão, podendo, portanto,
seguir cada movimento do medo. Então, se observardes o medo, e com ele
viverdes — e isso não leva um dia inteiro, porque um minuto ou um segundo pode
bastar, para se conhecer a inteira natureza do medo — se viverdes com ele
completamente, perguntareis, inevitavelmente: "Qual a entidade que está vivendo
com o medo? Qual a entidade que está observando o medo, observando cada
movimento de todas as formas do medo, e ao mesmo tempo consciente do fato
central do medo? Será o observador uma- entidade morta, um ente estático, que
acumula uma grande quantidade de conhecimentos e informações a respeito de si
próprio, e essa coisa morta é que está observando e vivendo com o movimento do
medo?" — Qual é a vossa resposta? Não respondais a mim, porém a vós mesmo.
Sois vós — o observador — uma entidade morta a observar uma coisa viva, ou sois
uma coisa viva a observar outra coisa viva? Porque, no observador existem os dois
estados.
O observador é o censor que não deseja o medo; o observador é o conjunto
de todas as suas experiências relativas ao medo.
E, assim, o observador está
separado da coisa a que chama medo; há espaço entre ambos; está perpetuamente
tentando dominá-lo ou dele fugir, e daí provém essa batalha entre ele próprio e o
medo — essa batalha que é uma enorme perda de energia.
Observando-o, aprendereis que o observador é meramente um feixe de
idéias e lembranças sem validade, sem substância nenhuma, ao passo que aquele
medo é uma realidade; assim, estais tentando compreender um fato com uma
abstração, e isso, naturalmente, não podeis fazer. Mas, será o observador, que diz
"Tenho medo", diferente da coisa observada, o medo? O observador é o medo e,
uma vez percebido isso, não há mais dissipação de energia no esforço para livrar-se
do medo, e o intervalo de tempo-espaço, entre o observador e a coisa observada,
desaparece. Quando percebeis que sois uma parte do medo, que não estais
separado dele, que vós sois o medo, então nada podeis fazer a seu respeito: o
medo terminou totalmente.
VI
A Violência — A Cólera — A Justificação e a Condenação — O Ideal e o
Real.
O medo, o prazer, o sofrimento, o pensamento e a violência estão
relacionados entre si. Em maioria encontramos prazer na violência, em não gostar
de alguém, em odiar uma dada raça ou grupo de pessoas, em nutrir sentimentos
hostis para com os outros. Mas, no estado mental em que a violência desapareceu
completamente, há uma alegria muito diferente do prazer da violência, com os seus
conflitos, rancores e temores.
Podemos penetrar a raiz da violência e dela nos livrarmos? De contrário,
viveremos a batalhar perenemente uns com os outros. Se é dessa maneira que
desejais viver — e aparentemente a maioria das pessoas o deseja — continuai
então assim; se dizeis: "Ora, sinto muito, mas a violência nunca terá fim, jamais
acabará" — nesse caso vós e eu não temos possibilidade de comungar, uma vez
que vos emparedastes; mas se dizeis que talvez exista uma diferente maneira de
viver, teremos então a possibilidade de comunhão.
Consideremos, pois, juntos — aqueles de nós que têm a capacidade de
comungar — se existe alguma possibilidade de acabarmos totalmente com qualquer
forma de violência em nós mesmo existente, e ao mesmo tempo vivermos neste
mundo monstruoso e brutal. Acho que é possível. Não desejo ter em mim a mais
leve sombra de ódio, de ciúme, de ansiedade ou medo. Desejo viver
completamente em paz. Mas isso não significa que desejo morrer.
Desejo viver
nesta terra maravilhosa, tão cheia de vida, de riqueza e de beleza! Desejo olhar as
árvores, as flores, os rios, os prados, as mulheres, as crianças, e ao mesmo tempo
viver completamente em paz comigo mesmo e com o mundo. Que posso fazer?
Se soubermos olhar a violência, não só exteriormente, na sociedade —
guerras, rebeliões, antagonismos nacionais e conflitos de classes — mas também
em nós mesmos, talvez então tenhamos a possibilidade de transcendê-la.
Este é um problema muito complexo. Há séculos e séculos que o homem é
violento; as religiões, em todo o mundo, tentaram amansá-lo, e nenhuma delas foi
bem-sucedida. Assim, se vamos examinar esta questão, devemos, acho eu, encarála com toda a seriedade, porque esse exame nos levará a um domínio
completamente
diferente.
Mas
se
desejamos
meramente
entreter-nos
intelectualmente com o problema, não iremos muito longe.
Podeis pensar que de vossa parte esse problema vos interessa seriamente,
mas, uma vez que há tanta gente no mundo que não o leva a sério e não se mostra
disposta a tomar alguma medida em relação a ele, de que serve fazerdes alguma
coisa? Não me importa se os outros o levam a sério ou não; eu o levo a sério, e
tanto basta. Eu não sou o guarda de meu irmão (1). Eu, de minha parte, como ente
humano, sinto-me fortemente interessado nesta questão da violência, e farei o
necessário para eu próprio não ser violento; mas não posso dizer a vós nem a
ninguém: "Não sejais violento". Isso não tem significação alguma, a não ser que
também não desejeis sê-lo. Assim, se pessoalmente desejais compreender o
problema da violência, prossigamos juntos a nossa viagem de exploração.
O problema da violência é exterior ou interior? Desejais resolver o problema
no mundo exterior, ou estais questionando a violência em si, tal como em vós
existe? Se, interiormente, em vós mesmos, estais livre da violência, surge logo a
pergunta: "Como posso viver num mundo cheio de violência, ganância, avidez,
inveja, brutalidade? Não serei destruído?" — Esta alusão às palavras de Caim,
após
assassinar
Abel, é a pergunta que inevitável e invariavelmente se faz.
Fazendo tal pergunta, não me pareceis estar vivendo realmente em paz. Se viveis
pacificamente, não tendes problema de espécie alguma. Podeis ir para a prisão se
vos recusardes a alistar-vos no exército, ou ser fuzilado se vos recusardes a
combater; mas isso não é problema: sereis fuzilado. É extremamente importante
compreender isso.
Estamos tentando compreender a violência como um fato, não como uma
idéia; como um fato existente no ente humano, e o ente humano sou eu. E, para
examinar o problema, eu tenho de ser completamente vulnerável, aberto a ele.
Tenho de desmascarar-me a mim mesmo; não há necessidade de me desmascarar
diante de vós, porque isso talvez não vos interesse — mas devo achar-me num
estado mental que queira levar o exame completamente a cabo, sem me deter em
nenhum ponto, dizendo "não irei mais adiante".
Ora, devo ver bem claramente que sou um ente humano violento. Tenho
experimentado a violência na cólera, nos apetites sexuais, no ódio, no criar
inimizades, no ciúme etc. Tendo-a experimentado, conhecido, digo de mim para
mim: "Desejo compreender este problema integralmente, e não apenas um
fragmento seu, conforme se expressa na guerra; quero compreender essa
agressividade existente no homem e que também existe nos animais, dos quais
faço parte".
Violência não é meramente assassinar. Há violência no uso de uma palavra
áspera, num gesto de desprezo, na obediência motivada pelo medo. A violência,
portanto, não é apenas a carnificina organizada, em nome de Deus, da sociedade,
da pátria. A violência é muito mais sutil e profunda, e nós queremos investigar as
suas últimas profundezas.
Quando vos denominais indiano, ou maometano, ou cristão, ou europeu, ou o
que quer que seja, estais sendo violento. Sabeis por quê? Porque vos estais
separando do resto da humanidade. Quando vos separais, pela crença, pela
nacionalidade, pela tradição, gera-se a violência. Assim, o homem que deseja
compreender a violência, não deve pertencer a nenhuma nação, nenhuma religião,
nenhum partido político ou sistema partidário; o que deve interessá-lo é a
compreensão total da humanidade.
Pois bem; há duas escolas principais de pensamento que se interessam pela
violência. Uma delas diz: "A violência é inata no homem"; a outra diz: "A violência
é o resultado da herança social e cultural do homem". Não nos interessa a escola a
que pertenceis, pois isso não tem importância nenhuma. O importante é o fato de
que somos violentos e não a razão desse fato.
Uma das expressões da violência mais comuns é a cólera. Quando atacam
minha esposa ou minha irmã, sinto-me justamente encolerizado; quando são
atacados a minha pátria, as minhas idéias, os meus princípios, a minha maneira de
vida, fico também justamente encolerizado. Sinto também cólera, quando são
atacados os meus hábitos, as minhas insignificantes opiniões. Se me pisais no pé
ou me insultais, enraiveço-me, ou se fugis com minha mulher sinto ciúme, um
ciúme também justo, porque ela é minha propriedade. Todas essas manifestações
de cólera são moralmente justificadas. Também se justifica o matar pela pátria.
Assim, falando a respeito da cólera, que faz parte da violência, consideramo-la em
termos de cólera justa e cólera injusta, conforme nossas próprias inclinações ou as
pressões do ambiente ou a consideramos como cólera simplesmente? Existe cólera
justa? Ou só existe a cólera? Não há influência boa ou influência má — só há
influência; mas quando sou influenciado por uma coisa que não me convém,
chamo-lhe má influência.
Se protegeis vossa família, vossa pátria, um trapo colorido chamado
bandeira, uma crença, uma idéia, um dogma, aquilo que quereis possuir ou que já
tendes nas mãos, essa própria proteção denota cólera. Assim, podeis olhar a cólera
sem nenhuma explicação ou justificação, sem dizerdes: "Tenho de proteger o que é
meu" ou "Tive razão para me encolerizar" ou "Que estupidez minha, ter-me
encolerizado"? Podeis olhar a cólera como uma coisa em si? Podeis olhá-la de
maneira completamente nova, quer dizer, sem defendê-la, nem condenada?
Podeis?
Posso olhar-vos se vos sou hostil ou se vos considero uma pessoa excelente?
Só posso ver-vos, quando vos olho com certo cuidado em que não esteja contida
nenhuma dessas coisas.
Ora, posso eu olhar a cólera da mesma maneira, o que significa que sou
vulnerável ao problema, que não resisto a ele, que estou observando, que estou
observando esse extraordinário fenômeno sem nenhuma reação a ele?
É muito difícil considerar a cólera desapaixonadamente, porquanto ela faz
parte de mim, mas é isso o que estou tentando fazer. Aqui estou eu, um ente
humano violento, não importando se sou preto, se sou moreno, branco ou
vermelho. Não importa se herdei essa violência ou se a sociedade a produziu. Só
isto me importa: "Se é possível libertar-me dela". Livrar-me da violência significa
tudo para mim. É-me mais importante do que o sexo, o alimento, a posição, porque
essa coisa me está corrompendo. Estou a destruir-me e a destruir o mundo, e
preciso compreender a violência, transcendê-la. Sinto-me responsável por toda a
cólera e toda a violência existentes no mundo. Sinto-me responsável, e isso não
são meras palavras. Digo de mim para comigo: "Só posso fazer alguma coisa se eu
próprio transcender a cólera, a violência, a nacionalidade". E esse meu sentimento
de que devo compreender a violência em mim existente me confere uma estupenda
vitalidade e paixão para compreendê-la.
Mas, para transcender a violência, não posso reprimi-la, negá-la, não posso
dizer: "Ora, ela faz parte de mim, e está acabado" ou "Eu não a quero". Tenho de
enfrentá-la, de estudá-la, de entrar em intimidade com ela, e essa intimidade não é
possível se a condeno ou justifico. Entretanto, na verdade, nós a condenamos e
justificamos. Por conseguinte, digo "Deixemos, por ora, de condená-la ou de
justificá-la".
Ora bem, se desejais acabar com a violência, acabar com as guerras, quanta
vitalidade, quanto de vós mesmo aplicais a isso? Não vos importa que vossos filhos
pequenos sejam mortos, que vossos filhos mais velhos se alistem no exército para
serem maltratados e abatidos como reses? Não vos importa isso? Deus meu! Se
isso não vos importa, o que mais vos importa? Conservar vosso dinheiro? Gozar a
vida? Tomar drogas? Não percebeis que a violência em vós existente está
destruindo os vossos filhos? Ou a vedes apenas como uma espécie de abstração?
Bem; se tendes interesse nisso, aplicai-vos de corpo e alma a compreendêlo. Não vos recosteis na cadeira, dizendo: "Está bem; conta-nos toda a história".
Preciso fazer-vos ver que não se pode olhar a cólera nem a violência com olhos que
condenam ou justificam, e que, se a violência não representa para vós um urgente
problema, não podeis afastar aquelas duas coisas. Assim, em primeiro lugar,
tendes de aprender; tendes de aprender a olhar a cólera, a olhar vosso marido,
vossa esposa, vossos filhos: tendes de escutar o político, aprender porque não sois
objetivo, porque condenais ou justificais. Tendes de aprender que condenais e
justificais porque isso faz parte da estrutura social em que viveis,- faz parte de
vosso condicionamento como alemão, indiano, negro, americano — ou o que acaso
sois por nascimento — com todo o embota-mento mental resultante desse
condicionamento. Para aprender, para descobrir uma coisa fundamental, precisais
de penetração. Se tendes um instrumento obtuso, um instrumento embotado, não
podeis penetrar profundamente. Assim, o que agora estamos fazendo é aguçando o
instrumento, que é a mente — essa mente que se embotou por causa do justificar e
do condenar. Só sereis capaz de penetrar fundo se vossa mente for penetrante
como uma agulha e forte como o aço.
De nada serve ficardes recostado e perguntar: "Como chegarei a ter essa
mente?". Vós tendes de desejá-la assim como desejais a vossa próxima refeição, e
para a terdes deveis ver que o que está tornando vossa mente embotada e
estúpida é esse estado de invulnerabilidade que ergueu muralhas ao redor dela e
que faz parte da condenação e da justificação. Se a mente puder libertar-se desse
estado, sereis então capaz de olhar, de estudar, de penetrar e, assim, talvez,
alcançar um estado totalmente consciente do problema em seu todo.
Voltemos, pois, ao problema central: É possível erradicarmos a violência em
nós existente? É uma forma de violência dizer: "Não mudaste! Por que não
mudaste?" -— Não é isso que estou fazendo. Para mim, nada significa convencervos de uma coisa. Trata-se de vossa vida, e não da minha vida. Vossa maneira de
viver é da vossa própria conta. O que pergunto é se é possível a um ente humano
que psicologicamente vive em não importa que sociedade, se é possível a esse ente
humano libertar-se interiormente da violência. Se é possível, esse mesmo processo
criará uma nova maneira de viver neste mundo.
A maioria aceita a violência como maneira de vida. Duas guerras medonhas
nada nos ensinaram a não ser a levantar mais e mais barreiras entre os seres
humanos — entre vós e mim. Mas, quanto àqueles que desejam libertar-se da
violência, que se deve fazer? Penso que nada se conseguirá por meio da análise,
feita por vós mesmo ou por um profissional. Poderíamos, talvez, modificar-nos
ligeiramente, viver um pouco mais sossegadamente, com um pouco mais de
afeição, mas isso, por si só, não nos dará a percepção total. Mas eu preciso saber
analisar, pois, no processo da análise a mente se torna sobremodo penetrante e é
essa capacidade de penetração, de atenção, de seriedade, que dará a percepção
total. Ninguém tem olhos capazes de ver o todo num relance; essa clarividência só
é possível se podemos ver os detalhes e, depois, saltar.
Alguns dentre nós, a fim de se libertarem da violência, têm-se servido de um
conceito, de um ideal chamado "não violência", e pensamos que, tendo um ideal
que seja o oposto da violência — a não violência — podemos libertar-nos do fato,
da coisa real; mas não podemos. Temos tido inumeráveis ideais, todos os livros
sagrados estão cheios deles e, contudo, continuamos violentos; portanto, por que
não enfrentar a própria violência e esquecer de todo a palavra?
Se desejais compreender a realidade, a isso deveis aplicar toda a vossa
energia. Essa atenção e energia são desviadas quando se cria um mundo fictício,
ideal. Assim, podeis banir completamente o ideal? O homem que é realmente sério,
que sente a ânsia de descobrir o que é a verdade, o que é o amor, não tem
conceito de espécie alguma. Só vive dentro de o que é.
Para investigar o fato de vossa própria cólera, não deveis pronunciar
julgamento sobre ela, porque no mesmo instante em que concebeis o seu oposto, a
estais condenando e, por conseguinte, não podeis vê-la tal como é. Quando dizeis
que não gostais ou que tendes ódio de alguém, isso é um fato, embora pareça
terrível. Se o olhais, se o examinais cabalmente, ele deixa de existir; mas se
disserdes "Eu não devo odiar; devo ter amor no coração", ficais então vivendo num
mundo hipócrita, de duplos padrões. Viver com plenitude no momento presente é
viver com o que é, o real, sem idéia de condenação ou justificação; então o
compreendeis tão completamente que ficais livre dele. Quando se vê claramente, o
problema está resolvido.
Mas, podeis ver claramente a face da violência, não só fora mas também
dentro de vós, o que significa que estais totalmente livre da violência, uma vez que
não aceitastes nenhuma ideologia para, por meio dela, vos libertardes da violência?
Isso exige meditação muito profunda, e não uma simples concordância ou
discordância verbal.
Acabastes de ler uma série de asserções, mas tereis compreendido tudo?
Vossa mente condicionada, vossa maneira de vida, a inteira estrutura da sociedade
em que viveis, vos impedem de olhar um fato e dele vos livrardes imediatamente.
Dizeis: "Vou pensar a respeito disso; vou considerar se é ou não possível libertarme da violência. Vou tentar ser livre". Esta é uma das coisas mais terríveis que se
podem dizer: Vou tentar. Não há tentar, não há esforçar-se. Ou a gente age ou não
age. Estais admitindo o tempo, com a casa em chamas. A casa está a arder, como
resultado da violência existente no mundo inteiro e em vós mesmo, e dizeis "Vou
pensar nisso. Qual é a melhor ideologia para extinguir o fogo?" Quando a casa está
em chamas, discutis sobre a cor dos cabelos do homem que traz a água?
VII
As Relações — O Conflito — A Sociedade — A Pobreza — As Drogas — A
Dependência — A Comparação — O Desejo — Os Ideais — A Hipocrisia.
A cessação da violência, que acabamos de considerar, não implica
necessariamente um estado em que a mente fica em paz consigo mesma e, por
conseguinte, em todas as suas relações.
As relações entre os seres humanos se baseiam no mecanismo defensivo,
formador de imagens. Em todas as relações cada um de nós forma uma imagem a
respeito de outrem e as duas imagens ficam em relação e não os próprios entes
humanos. A esposa tem uma imagem do marido — talvez inconsciente, contudo
existente — e o marido tem uma imagem da esposa. Temos uma imagem a
respeito de nosso país e a respeito de nós mesmos e estamos constantemente a
fortalecer essas imagens, acrescentando-lhes sempre alguma coisa. A relação
existente é entre essas imagens. A verdadeira relação entre dois ou vários seres
humanos cessa completamente, quando há a formação de imagens.
A relação baseada em tais imagens jamais produzirá a paz, porquanto as
imagens são fictícias, e não se pode viver abstratamente. Entretanto, é isto o que
todos fazemos: vivemos entre idéias, teorias, símbolos, imagens que criamos a
respeito de nós mesmos e de outros e que, em absoluto, não são realidades. Todas
as nossas relações, sejam com a propriedade, sejam com idéias ou pessoas, se
baseiam essencialmente nessa formação de imagens e, por essa razão, existe
sempre conflito.
Como é então possível estarmos completamente em paz em nosso interior e
em todas as nossas relações com outros? A vida é um movimento de relações, pois
de outro modo não há vida; e se essa vida está baseada numa abstração, numa
idéia, numa suposição especulativa, então esse viver abstrato produzirá
inevitavelmente relações que se tornam um campo de batalha. Ora, será possível
ao homem viver uma vida interior de perfeita ordem, sem compulsão, imitação,
repressão ou sublimação, em nenhuma forma? Pode o homem estabelecer, em si
mesmo, uma ordem que seja uma qualidade viva, não aprisionada na estrutura das
idéias — uma tranqüilidade interior que não conheça perturbação em momento
algum — não num mundo abstrato, fantástico, mítico, porém na vida de cada dia,
no lar e no emprego?
Devemos examinar esta questão muito cuidadosamente, porquanto não há
um só ponto em nossa consciência não contaminado pelo conflito. Em todas as
nossas relações, sejam com a pessoa mais íntima, sejam com nosso vizinho ou a
sociedade, esse conflito existe — o conflito é uma contradição, um estado de
divisão, de separação, de dualidade. Observando-nos e observando nossas relações
com a sociedade, notamos que em todos os níveis de nossa existência há conflito,
de menor ou maior importância, o qual provoca ou reações muito superficiais ou
conseqüências devastadoras.
O homem aceitou o conflito como parte da existência diária, porque aceitou a
competição, o ciúme, a avidez, a ganância e a agressão como norma natural da
vida. Quando aceitamos tal norma de vida, estamos aceitando a estrutura social tal
qual é e vivendo segundo o padrão da respeitabilidade. E é nessa rede que está
aprisionada a maioria, visto que quase todos aspiram a ser respeitáveis.
Examinando nossa mente e coração, nossa maneira de pensar, nossa maneira de
sentir e de agir na vida diária, observamos que, enquanto estamos a ajustar-nos ao
padrão da sociedade, a vida tem de ser um campo de batalha. Se não a aceitamos
— pois uma pessoa religiosa não pode de modo nenhum aceitar uma tal sociedade
— estaremos então completamente livres da estrutura psicológica da sociedade.
A maioria de nós é rica das coisas da sociedade. O que a sociedade criou em
nós e, também, o que criamos em nós mesmos, é avidez, inveja, cólera, ódio,
ciúme, ansiedade — de tudo isso somos muito ricos. As religiões, em todo o
mundo, sempre pregaram a pobreza. O monge toma um hábito, muda de nome,
rapa a cabeça, entra numa cela e faz voto de pobreza e de castidade; no Oriente
eles trajam uma tanga, um manto e só tomam uma refeição por dia. Todos nós
respeitamos essa espécie de pobreza. Mas, os homens que vestiram o manto da
pobreza continuam, interiormente, psicologicamente, ricos das coisas da sociedade,
porquanto estão ainda em busca de posição e de prestígio; pertencem a esta ou
àquela ordem, a esta ou àquela religião; continuam a viver nas divisões próprias de
uma dada cultura ou tradição. Isso não é pobreza. Pobreza é estar completamente
livre da sociedade, mesmo possuindo algumas roupas e tomando mais refeições —
meu Deus! Que importa isso? Mas, infelizmente, na maioria das pessoas existe esse
impulso para o exibicionismo.
A pobreza se torna uma coisa maravilhosa e bela, quando a mente está livre
da sociedade. Temos de ser pobres interiormente, porque então não há mais
buscar, nem indagar, nem desejar, nem — nada! Só essa pobreza interior pode ver
a verdade existente numa vida completamente sem conflito. Tal vida é uma bênção
não encontrável em nenhuma igreja ou templo.
Mas, como será possível nos libertarmos da estrutura psicológica da
sociedade, o que equivale a "libertar-nos da essência do conflito? Não é difícil
aparar ou podar certos ramos do conflito; mas estamos perguntando a nós mesmos
se é possível vivermos em completa tranqüilidade interior e, por conseguinte,
exterior. Isso não significará vegetar ou estagnar. Ao contrário, tornar-nos-emos
dinâmicos, cheios de vitalidade e de energia.
Para compreendermos e nos libertarmos de um problema, necessitamos de
abundante energia, apaixonada, persistente, não só energia física e intelectual, mas
também uma energia independente de qualquer motivo, de qualquer estímulo
psicológico ou droga. Se dependemos de algum estímulo, esse próprio estímulo
tornará a mente embotada e insensível. Tomando uma certa droga, podemos
encontrar, temporariamente, energia suficiente para vermos as coisas muito mais
claramente, mas temos de voltar ao estado anterior e, por conseguinte, nos
tornarmos cada vez mais dependentes dessa droga. Assim, todo estímulo, seja da
igreja, seja do álcool ou das drogas, da palavra escrita ou falada, acarretará
inevitavelmente a dependência — e essa dependência nos impede de ver
claramente, por nós mesmos, e, por conseguinte, de ter a energia vital.
Infelizmente, todos nós dependemos de alguma coisa. Por que dependemos?
Por que existe esse impulso a depender? Estamos viajando juntos; não estais à
espera de que eu vos mostre as causas de vossa dependência. Se investigarmos
juntos, nós as descobriremos, e tal descobrimento será então vosso e, por
conseguinte, sendo vosso, vos dará vitalidade.
Descubro por mim mesmo que dependo de uma certa coisa, de um auditório,
por exemplo, para ser estimulado. Desse auditório, do falar a uma grande reunião
de pessoas, me vem uma certa espécie de energia. Conseqüentemente, dependo
desses ouvintes, dessas pessoas, quer concordem, quer não concordem comigo.
Quanto mais discordarem de mim, tanto mais vitalidade me darão. Se concordam,
o que lhes digo se torna uma coisa muito superficial, vazia. Assim, descubro que
necessito de ouvintes, porque é uma coisa muito estimulante dirigir a palavra a
muitas pessoas. Ora, por quê? Por que tenho essa dependência? Porque
interiormente nada tenho, interiormente não existe em mim uma fonte sempre
cheia, abundante de vida e de movimento. Por isso, eu dependo. Descobri a causa.
Mas o descobrimento da causa me livrará de ser dependente? O
descobrimento da causa é puramente intelectual e, portanto, evidentemente, não
pode libertar a mente de sua dependência. A mera aceitação intelectual de uma
idéia ou a aquiescência emocional a uma ideologia, não pode libertar a mente da
dependência daquilo que lhe dá estímulo. O que liberta a mente da dependência é o
percebimento da inteira estrutura e natureza do estímulo e da dependência e de
como essa dependência torna a mente estúpida, embotada e inerte. Só o
percebimento dessa totalidade liberta a mente.
Cumpre, pois, investigar o que significa ver totalmente. Enquanto eu estiver
vendo a vida de um certo ponto de vista, de uma dada experiência ou
conhecimento que acumulei e que constitui o meu fundo, meu "eu", não posso ver
totalmente.
Descobri intelectualmente, verbalmente, pela análise, a causa de minha
dependência, mas tudo o que o pensamento investiga só pode ser fragmentário e,
portanto, só posso ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não
interfere.
Percebo então o fato — minha dependência. Percebo realmente o que é.
Vejo-o sem agrado nem desagrado, e não desejo libertar-me dessa dependência ou
de sua causa. Observo-a e com essa qualidade de observação percebo o quadro
inteiro; e quando a mente percebe o quadro inteiro, dá-se a libertação. Ora,
descobri que há uma dissipação de energia quando há fragmentação. Descobri a
própria fonte da dissipação da energia.
Podeis pensar que não há desperdício de energia se imitais, se aceitais a
autoridade, se dependeis do sacerdote, do ritual, do dogma, do partido, ou de uma
certa ideologia, mas o aceitar e seguir uma ideologia, boa ou má, sagrada ou
profana, é uma atividade fragmentária e, portanto, uma causa de conflito; e o
conflito surge inevitavelmente quando há separação entre o que "deveria ser" e "o
que é", e todo conflito é dissipação de energia.
Se fazeis a vós mesmo a pergunta: "Como posso libertar--me do conflito?" —
estais criando outro problema e, por conseguinte, aumentando o conflito, ao passo
que, se o perceberdes simplesmente como um fato — o virdes como veríeis um
objeto concreto — clara e diretamente — compreendereis então a essência, a
verdade de uma vida inteira isenta de conflito.
Em outras palavras: Estamos sempre a comparar o que somos com o que
deveríamos ser. O "deveria ser" é uma projeção do que pensamos que deveríamos
ser. A contradição existe quando há comparação, não só com alguma coisa ou
pessoa, mas também com o que ontem éramos, e, por conseguinte, há conflito
entre o que foi e o que ê. Só existe O que ê quando não há comparação de espécie
alguma, e viver com o que é, é viver em paz. Podeis aplicar então toda a vossa
atenção, sem distinção alguma, ao que existe dentro de vós mesmo — desespero,
malevolência, brutalidade, medo, ansiedade, solidão — e viver com isso,
completamente; não há então contradição e, por conseguinte, não há conflito.
Mas, estamos continuamente a comparar-nos — com os que são mais
inteligentes ou mais ricos, mais intelectuais, mais afetuosos, mais famosos, mais
isto e mais aquilo. O "mais" tem um importantíssimo papel em nossas vidas; essa
medição de nós mesmos com alguma coisa ou pessoa é uma das principais causas
do conflito.
Ora, por que é que existe comparação? Por que vos comparais com outrem?
Essa comparação vos foi ensinada desde a infância. Em toda escola, A é comparado
com B, e A destrói a si próprio, a fim de igualar-se a B. Quando não se faz
comparação alguma, quando não há ideal, nem oposto, nem fator de dualidade,
quando não mais lutais para serdes diferente do que sois — que aconteceu à vossa
mente? Vossa mente deixou de criar o oposto e se tornou altamente inteligente e
sensível, capaz de extraordinária percepção, porquanto todo esforço é dissipação de
paixão — a paixão que é energia vital — e nada se pode fazer sem paixão.
Se não vos comparais com outra pessoa, sois o que sois. Pela comparação
esperais evolver, tornar-vos mais inteligente, mais belo. Mas, consegui-lo-eis? O
fato é o que sois, e quando o comparais, estais fragmentando o fato — o que é
desperdício de energia. O verdes o que na realidade sois, sem comparação, vos dá
uma tremenda energia para olhar. Quando vos podeis olhar sem comparação, já
transcendestes a comparação, e isso não significa que a mente se estagna no
contentamento. Vemos, pois, em essência, como a mente desperdiça a energia que
é tão necessária para se compreender a totalidade da vida.
Não desejo saber com quem estou em conflito; não desejo conhecer os
conflitos periféricos de minha existência; o que desejo saber é por que razão existe
o conflito. Ao fazer a mim mesmo essa pergunta, percebo uma questão
fundamental que nada tem em comum com os conflitos periféricos e suas soluções.
Estou interessado no problema central e vejo — talvez vós também o vejais — que
a própria natureza do desejo, se não for devidamente compreendida, levará
inevitavelmente ao conflito.
O desejo está sempre em contradição. Desejo coisas contraditórias.
Não
estou dizendo que devo destruir, reprimir, controlar ou sublimar o desejo: estou
vendo, simplesmente., que o desejo em si é contraditório. Não é o objeto do
desejo, mas a sua verdadeira natureza que é contraditória. Tenho de compreender
a natureza do desejo, antes de poder compreender o conflito. Em nós mesmos,
vemo-nos num estado de contradição, e este estado de contradição é criado pelo
desejo — sendo o desejo a busca do prazer e o evitar a dor que já conhecemos.
Assim, vemos o desejo como a raiz de toda contradição — desejando uma coisa e
ao mesmo tempo não a desejando: uma atividade dual. Quando fazemos uma coisa
agradável não há esforço algum, há? Mas o prazer traz a dor e vem em seguida a
luta para evitar a dor: mais uma maneira de dissipar energia. Por que é que existe
dualidade? Há, decerto, dualidade na natureza — homem e mulher, luz e sombra,
noite e dia; mas, interiormente, psicologicamente, por que temos a dualidade? Por
favor, pensai nisso, de maneira completa, junto comigo; tendes de exercer vossa
mente para descobrirdes as coisas; minhas palavras são simplesmente um espelho
em que vos estais mirando. Por que temos essa dualidade psicológica? É por que
fomos educados para comparar sempre "o que é" com o que "deveria ser?" Fomos
condicionados para discriminar o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que
é mau, o que é moral e o que é imoral. Terá surgido esta dualidade porque
acreditamos que se pensarmos no oposto da violência, no oposto da inveja, do
ciúme, da mediocridade, isso nos ajudará a libertar-nos dessas coisas? Servimo-nos
do oposto como de uma alavanca para nos livrarmos de "o que é"?
Ou trata-se
de uma fuga à realidade?
Será que vos servis do oposto como meio de evitar "o que é", por não
saberdes o que fazer com ele? Ou fostes ensinado, por milhares de anos de
propaganda, que deveis ter um ideal — o oposto de "o que é" — para poderdes
enfrentar o presente? Quando tendes um ideal, credes que ele vos ajudará a
libertar-vos de "o que é", o que, entretanto, nunca acontece.* Podeis pregar a nãoviolência até o fim de vossa vida, e em todo esse tempo estar semeando os germes
da violência.
Tendes um conceito do que deveríeis ser e de como deveis agir, e o fato é
que estais sempre atuando de maneira completamente diferente. Vê-se, pois, que
os princípios levam inevitavelmente à hipocrisia e a uma vida desonesta. É o ideal
que cria o oposto de "o que é"; assim, se souberdes ficar com "o que é", o oposto
se tornará desnecessário.
O procurardes tornar-vos igual a outrem ou igual ao vosso ideal é uma das
principais causas de contradição, de confusão e de conflito. A mente que está
confusa, não importa o que faça, em qualquer nível que deseja, permanecerá
confusa. Vejo isso muito claramente; vejo-o com tanta clareza como vejo um
perigo físico imediato. Que acontece, pois? Deixo de agir em termos de confusão.
Por conseguinte, a inação e ação completa.
VIII
A Libertação — A Revolta — A Solidão — A Inocência — Viver com Nós
Mesmos como Somos.
Nunca as agonias da repressão, nem a brutalidade da disciplina de
ajustamento a um padrão conduziram à verdade. Para encontrar-se com a verdade,
a mente deve estar completamente livre e sem a mínima deformação.
Mas, primeiramente, perguntemo-nos se desejamos realmente ser livres.
Quando falamos de liberdade, estamo-nos referindo à liberdade completa ou à
libertação de uma certa coisa inconveniente, desagradável ou indesejável?
Gostaríamos de ficar livres de lembranças dolorosas e desagradáveis e de nossas
experiências infelizes, conservando, porém, nossas aprazíveis e satisfatórias
ideologias, fórmulas e relações. Mas, conservar uma coisa sem a outra é
impossível, porque, como já vimos, o prazer é inseparável da dor.
Cabe, pois, a cada um de nós decidir se desejamos ou não ser
completamente livres. Se dizemos que o desejamos, temos então de compreender
a natureza e a estrutura da liberdade.
É liberdade estar-se livre de alguma coisa — livre de uma dor, de uma
espécie de ansiedade? Ou a liberdade, em si, é coisa inteiramente diferente? Podeis
estar livre do ciúme, por exemplo, mas não é essa liberdade uma reação e, por
conseguinte, liberdade nenhuma? Podeis libertar-vos muito facilmente de um
dogma, analisando-o, rejeitando-o, mas o motivo dessa libertação tem sua reação
própria, porquanto o desejo de nos livrarmos de um dogma pode dever-se a ter ele
caído de moda, já não sendo conveniente. Ou podeis ficar livre do nacionalismo por
crerdes no internacionalismo, ou porque sentis que, economicamente, já não é
necessário estar-se apegado a esse estúpido dogma nacionalista, com sua bandeira
e demais futilidades. Podeis facilmente rejeitá-lo. Ou podeis reagir a um certo líder
espiritual ou político que vos prometeu a libertação como resultado de disciplina e
de revolta. Mas, terá uma racionalização, uma conclusão dessa espécie, alguma
coisa em comum com a liberdade?
Se dizeis que estais livre de uma certa coisa, trata-se de uma reação, que
depois se tornará outra reação que produzirá uma outra maneira de ajustamento,
uma outra forma de domínio. Dessa maneira, podeis ter uma cadeia de reações e
aceitar cada reação como uma libertação. Mas isso não é libertação, porém,
apenas, a continuidade modificada de um passado a que a mente está apegada.
A juventude de hoje, como a juventude de sempre, está em revolta contra a
sociedade, e isso, em si, é uma coisa boa, mas revolta não é libertação, porquanto
o revoltar-se constitui uma reação, reação que estabelece o seu peculiar padrão, no
qual ficais enredado. Pensais que se trata de uma coisa nova. Mas não é; é o velho,
posto num diferente molde. Qualquer espécie de revolta social ou política reverterá
inevitavelmente à boa e velha mentalidade burguesa.
A liberdade só existe quando vedes e agis, e nunca mediante a revolta. Ver é
agir, e essa ação é tão importante como a ação que se modifica ao verdes um
perigo. Não há então atividade mental, não há discussão nem hesitação; o próprio
perigo compele ao ato e, por conseguinte, ver é agir e ser livre.
A liberdade é um estado mental; não é estar livre de alguma coisa, porém
um estado de liberdade — liberdade para duvidar e questionar todas as coisas e,
portanto, uma liberdade tão intensa, ativa e vigorosa, que expulsa toda espécie de
dependência, de escravidão, de ajustamento e aceitação. Essa liberdade implica o
estar completamente só. Mas, pode a mente que foi criada numa dada cultura e
que tanto depende do ambiente e das próprias tendências descobrir aquela
liberdade que é solidão total e na qual não há líderes, nem tradição, e nenhuma
autoridade?
A solidão é um estado mental interno, independente de qualquer estímulo ou
conhecimento, e não o resultado de alguma experiência ou conclusão. A maioria de
nós nunca está só, interiormente. Há diferença entre o isolar-se, o segregar-se, e o
estar só, a solidão. Todos sabemos o que significa estar isolado — o levantar uma
barreira ao redor de nós para que nunca sejamos molestados, nunca sejamos
vulneráveis; ou o cultivar o desapego, que é uma outra espécie de agonia; ou o
viver na fantástica torre de marfim de uma ideologia. A solidão é completamente
diferente disso.
Nunca estais só porque estais cheio de todas as memórias, todas as
murmurações de ontem; vossa mente nunca está livre desses trastes imprestáveis
que acumulou. Para ficardes só, tendes de morrer para o passado. Quando estais
só, totalmente só, sem pertencer a qualquer família, a nenhuma nação, a qualquer
continente em particular, tendes a sensação de ser um estranho. O homem que,
dessa maneira, está completamente só, é inocente, e essa inocência é que liberta a
mente do sofrimento.
Levamos conosco a carga de tudo o que disseram milhares de pessoas, e das
lembranças de todos os nossos infortúnios. Abandonar tudo isso, totalmente, é
estar só, e a mente que está só não apenas é inocente, mas também jovem — não
no tempo ou na idade, porém juvenil, purificada, viva, qualquer que seja a idade;
só essa mente pode ver o que é a verdade, e aquilo que as palavras não podem
medir.
Nessa solidão, compreendereis a necessidade de viverdes com vós mesmo tal
como sois e não como pensais deveríeis ser ou como fostes. Vede se podeis olharvos sem nenhum estremecimento, sem falsa modéstia, medo, justificação ou
condenação; vivei com vós mesmo, tal como realmente sois.
Só vivendo intimamente com uma coisa, começais a compreendê-la. Mas, tão
logo vos acostumais com ela, tão logo vos acostumais com vossa ansiedade ou
inveja ou o que mais seja, já não estais vivendo com ela. Se ides morar perto de
um rio, passadas algumas semanas já não ouvireis o som das águas, ou, se tendes
um quadro na sala, que vedes todos os dias, após uma semana já o perdestes. O
mesmo em relação às montanhas, aos vales, às árvores; o mesmo em relação aos
filhos, ao marido, à esposa. Mas, para viverdes com uma coisa, tal como o ciúme, a
inveja, a ansiedade, nunca deveis acostumar-vos com ela, nunca deveis aceitá-la.
Deveis cuidar dela, como cuidais de uma árvore recém-plantada, que protegeis
contra o sol e as intempéries. Tendes de zelar aquela coisa, jamais condená-la ou
justificá-la. Assim, começais a amá-la. Quando tendes zelo por ela, já estais
começando a amá-la. Isso não significa amar a inveja ou a ansiedade, como há
quem o faça, porém, sim, ter o zelo necessário à observação.
Assim, será possível, vós e eu, vivermos com o que realmente somos,
sabendo que somos estúpidos, invejosos, medrosos, crentes de que possuímos uma
enorme capacidade de afeição, quando não a possuímos, facilmente ofendidos,
facilmente lisonjeados e entediados; poderemos viver com tudo isso, sem o aceitar
nem rejeitar, porém, tão-só, observando-o, sem nos tornarmos mórbidos,
deprimidos ou orgulhosos?
Agora, façamos a nós mesmos mais uma pergunta: Pode essa liberdade,
essa solidão, essa entrada em contato com a inteira estrutura daquilo que somos
em nós mesmos, ser alcançada mediante o tempo? Isto é, pode a liberdade ser
alcançada por meio de um processo gradual? Não pode, evidentemente, porque,
tão logo se introduz o tempo, ficais a escravizar-vos cada vez mais. Ninguém pode
libertar-se gradualmente. Não é uma questão de tempo.
A pergunta subseqüente é esta: Podeis tornar-vos consciente dessa
liberdade? Se dizeis "Sou livre", nesse caso não estais livre. É o mesmo que um
homem dizer "Sou feliz". No momento em que diz: "Sou feliz", está vivendo na
lembrança de uma coisa passada. A liberdade só pode vir naturalmente, e não pelo
crer, desejar, ansiar por ela. Também, não pode ser encontrada mediante a criação
de uma imagem do que pensais ser ela. Para encontrar-se com ela, a mente tem de
aprender a olhar a vida, esse vasto movimento não sujeito ao tempo, porque a
liberdade reside além do campo da consciência.
IX
O Tempo — O Sofrimento — A Morte
Sou tentado a repetir a história de um grande discípulo que foi a Deus pedir
que lhe ensinasse a verdade.
Disse o "pobre" Deus: "Meu amigo, hoje está fazendo muito calor; por favor,
vai buscar-me um copo d'água". O discípulo sai e vai bater à porta da primeira casa
que encontra e uma linda jovem lhe abre a porta. O discípulo dela se enamora, os
dois se casam e têm vários filhos. Então, um dia começa a chover, a chover sem
parar. Os rios se engrossam, as ruas se inundam, as casas são arrastadas pelas
águas. O discípulo se agarra à mulher, põe sobre os ombros os filhos e. ao sentir-se
arrastado pela torrente, brada: "Senhor, imploro-vos que me salveis". E o Senhor
responde: "Que é do copo d'água que te pedi?"
É uma história bastante instrutiva, porquanto, em geral, pensamos em
termos de tempo. O homem vive do tempo. A invenção do futuro se tornou seu
favorito jogo de fuga.
Pensamos que as mudanças em nós mesmos só podem ser efetuadas no
tempo, que a ordem só pode ser estabelecida em nós mesmos pouco a pouco,
aumentada dia por dia. Mas, o tempo não traz a ordem nem a paz e, portanto,
temos de deixar de pensar em termos de gradualidade. Isso significa que não há
um amanhã em que viveremos em paz, Temos de alcançar a ordem
imediatamente.
Quando se apresenta um perigo real, o tempo desaparece, não é verdade? A
ação é imediata. Mas, nós não percebemos o perigo existente em muitos dos
nossos problemas e, por conseguinte, inventamos o tempo como um meio de
superá-los. O tempo é um embusteiro, porquanto nada faz para ajudar-nos a
promover uma mudança em nós mesmos. O tempo é um movimento que o homem
dividiu em passado, presente e futuro. E, enquanto fizer essa divisão, o homem
viverá sempre em conflito.
O aprender depende do tempo? Após tantos milhares de anos, ainda não
aprendemos que existe uma maneira de vida melhor do que odiarmos e matarmos
uns aos outros. Muito importa compreender o problema do tempo, se desejamos
uma solução para esta vida que cada um de nós contribuiu para tornar tão
monstruosa e sem significação como é.
A primeira coisa, pois, que se deve compreender é que só podemos olhar o
tempo com aquele vigor e aquela inocência da mente, que já estivemos
considerando. Vemo-nos confusos a respeito de nossos numerosos problemas, e
perdidos no meio desta confusão. Ora, quando uma pessoa se perde numa floresta,
qual a primeira coisa que faz? Pára e olha em torno de si. Mas nós, quanto mais
nos vemos confusos e perdidos na vida, tanto mais corremos em todos os sentidos,
buscando, indagando, rogando. A primeira coisa que deveis fazer, se me permitis
sugeri-lo, é fazer alto, interiormente. E, quando parais, interiormente,
psicologicamente, vossa mente se torna muito tranqüila e clara. Podeis então
considerar verdadeiramente a questão do tempo.
Os problemas só existem no tempo, isto é, quando nos encontramos com um
fato de maneira incompleta. Esse encontro incompleto com o fato cria o problema.
Quando enfrentamos um desafio parcial, fragmentariamente, ou dele tentamos
fugir — isto é, quando o enfrentamos com atenção incompleta — criamos um
problema. E o problema continua existente enquanto continuarmos a dar-lhe
incompleta atenção, enquanto esperarmos resolvê-lo um dia destes.
Sabeis o que é o tempo? — Não o tempo medido pelo relógio, o tempo
cronológico, porém o tempo psicológico? É o intervalo entre a idéia e a ação. Uma
idéia visa, naturalmente, à autoproteção: a idéia de estar em segurança. A ação é
sempre imediata; não é do passado nem do futuro; o agir deve estar sempre no
presente; mas a ação é tão perigosa, tão incerta, que preferimos ajustar-nos a uma
idéia que nos promete uma certa segurança.
Olhai isso em vós mesmo. Tendes uma idéia do que é certo ou errado, ou um
conceito ideológico relativo a vós mesmo e à sociedade, e de acordo com essa idéia
ides agir. A ação, por conseguinte, ajusta-se àquela idéia, aproxima-se da idéia, e
por essa razão existe sempre conflito. Há a idéia, o intervalo, e a ação. Nesse
intervalo encontra-se todo o campo do tempo. Esse intervalo é, essencialmente,
pensamento. Quando pensais que amanhã sereis feliz, tendes então uma imagem
de vós mesmo a alcançar um certo resultado no tempo. O pensamento, pela
observação, pelo desejo, e pela continuidade desse desejo, sustentada por mais
pensamento, diz: "Amanhã serei feliz; amanhã terei sucesso; amanhã o mundo
será um belo lugar." Dessa maneira, o pensamento cria esse intervalo que é o
tempo.
Agora, perguntamos: Pode-se deter o tempo? Podemos viver tão
completamente que não haja um amanhã para o pensamento pensar nele? Pois o
tempo é sofrimento. Isto é, ontem ou há um milhar de "ontens", amastes ou tínheis
um companheiro que se foi, e essa memória perdura e ficais pensando naquele
prazer ou naquela dor; estais a olhar para trás e a desejar, a esperar, a lamentar,
e, assim, o pensamento, ruminando continuamente aquilo, gera essa coisa que se
chama sofrimento e dá continuidade ao tempo.
Enquanto existir esse intervalo de tempo, gerado pelo pensamento, tem de
haver sofrimento, tem de haver a continuidade do medo. Assim, perguntamos a
nós mesmos: Pode esse intervalo terminar? Se disserdes: "Terminará ele algum
dia?", isso então já é uma idéia, uma coisa que desejais conseguir e, por
conseguinte, tendes um intervalo e de novo vos vede na armadilha.
Agora, considere-se a questão da morte, um problema imenso para a maioria
das pessoas. Conheceis a morte, pois a vedes todos os dias, andando a vosso lado.
Será possível encararmos a morte de maneira tão completa, que não façamos dela
um problema?
Para a encararmos dessa maneira, todas as crenças, todas as
esperanças, todos os temores a ela relativos devem acabar, senão estareis
encarando essa coisa extraordinária com uma conclusão, uma imagem, com uma
ansiedade premeditada e, por conseguinte, a estareis encarando com o tempo. O
tempo é o intervalo entre o observador e a coisa observada. Isto é, o observador —
vós — tem medo de enfrentar essa coisa chamada "morte". Não sabeis o que ela
significa; tendes esperanças e teorias de toda espécie a respeito dela; credes na
reencarnação ou na ressurreição, ou numa certa coisa chamada alma, "atman",
uma entidade espiritual, eterna, a que chamais por diferentes nomes. Ora, já
descobristes por vós mesmo se existe alguma alma? Ou trata-se de uma idéia que
vos foi dada pela tradição? Existe alguma coisa de permanente, de contínuo, além
do pensamento? Se o pensamento pode pensar nela, ela se acha no campo do
pensamento e, por conseguinte, não pode ser permanente, porque, no campo do
pensamento, não existe nada permanente. É de enorme importância descobrir que
nada é permanente, porque só então a mente estará livre, só então poder-se-á
olhar; e nisso há uma imensa alegria.
Não podeis ter medo do desconhecido, pois não sabeis o que ele é e,
portanto, não há nada que temer. A morte é uma palavra, e é a palavra, a imagem
que cria o medo. Assim, podeis olhar a morte sem a imagem da morte? Enquanto
existir a imagem, que dá origem ao pensamento, o pensamento haverá sempre de
criar medo. Tratais então de racionalizar o vosso medo da morte e de levantar uma
resistência contra o inevitável, ou inventais inumeráveis crenças para vos
protegerdes do medo da morte. Há, portanto, um vão entre vós e a coisa de que
tendes medo. Nesse intervalo de espaço-tempo tem de haver conflito, ou seja
medo, ansiedade, autocompaixão. O pensamento, que gera o medo da morte, diz:
"Adiemo-la, evitemo-la, mantenhamo-la o mais distante possível, não pensemos
nela" — mas vós estais pensando nela. Ao dizerdes "Não quero pensar nela", já
pensastes numa maneira de evitá-la. Tendes medo da morte, porque a tendes
adiado.
Separamos o viver do morrer, e o intervalo entre o viver e o morrer é —
medo. Esse intervalo, esse tempo, é criado pelo medo. Viver é nossa tortura diária
— insultos, sofrimentos, confusão, e, ocasionalmente, uma janela aberta nos
mostra mares encantados. É a isso que chamamos "viver", e temos medo de
morrer, que é o fim dessa aflição. Preferimos aferrar-nos ao conhecido a enfrentar
o desconhecido — o conhecido, que é nossa casa, nossos móveis, nossa família,
nosso caráter, nosso trabalho, nossos conhecimentos, nossa fama, nossa solidão,
nossos deuses — essa coisa insignificante que incessantemente gravita em torno de
si própria, com seu limitado padrão de amargurada existência.
Pensamos que o viver está sempre no presente e que o morrer é algo que
nos aguarda num tempo distante. Mas nunca indagamos se essa batalha da vida
diária é de fato viver. Queremos saber a verdade a respeito da reencarnação,
desejamos provas da sobrevivência da alma, prestamos ouvidos às asserções dos
clarividentes e às conclusões das pesquisas psíquicas, porém nunca perguntamos,
nunca perguntamos como viver — viver com deleite, com encantamento, com a
beleza, todos os dias. Aceitamos a vida tal qual é, com toda a sua agonia e
desespero, com ela nos acostumamos, e pensamos na morte como uma coisa que
devemos diligentemente evitar. Mas, a morte se assemelha extraordinariamente à
vida, quando sabemos viver. Não podeis viver sem morrer. Isso não é um paradoxo
intelectual. Para se viver completamente, totalmente, de modo que cada dia seja
uma nova beleza, tem-se de morrer para todas as coisas de ontem, pois, de
contrário, viveremos mecanicamente, e uma mente mecânica jamais saberá o que
é o amor ou o que é a liberdade.
Em geral tememos a morte, porque não sabemos o que significa viver. Não
sabemos viver, e por isso não sabemos morrer. Enquanto tivermos medo da vida,
teremos medo da morte. O homem que não teme a vida não teme a insegurança,
porque compreende que, interiormente, psicologicamente, não existe segurança
nenhuma. Quando não há segurança, há um movimento infinito, e então a vida e a
morte são uma só coisa. O homem que vive sem conflito, que vive com a beleza e
o amor, não teme a morte, porque amar é morrer.
Se morreis para tudo o que conheceis, inclusive vossa família, vossa
memória, tudo o que sentistes, a morte é então uma purificação, um processo de
rejuvenescimento; traz então a morte a inocência, e só os inocentes são
apaixonados, e não aqueles que crêem e que desejam descobrir o que acontece
após a morte.
Para descobrirdes o que realmente acontece quando se morre, tendes de
morrer. Isso não é pilhéria. Tendes de morrer, não fisicamente, mas
psicologicamente, interiormente, morrer para as coisas que vos são caras e para as
coisas que vos amarguram. Se morrestes para cada um dos vossos prazeres, tanto
os insignificantes como os mais importantes, sem nenhuma compulsão ou
discussão, então sabereis o que significa morrer. Morrer é ter uma mente
completamente vazia de si mesma, vazia de seus diários anseios, prazeres e
agonias. A morte é uma renovação, uma mutação, em que o pensamento não
funciona, porque o pensamento é coisa velha. Quando há a morte, há uma coisa
totalmente nova. Estar livre do conhecimento é morrer; e, então, estais vivendo!
X
O Amor
A necessidade de segurança nas relações gera inevitavelmente o sofrimento
e o medo. Essa busca de segurança atrai a insegurança. Já encontrastes alguma
vez segurança em alguma de vossas relações? Já? A maioria de nós quer a
segurança no amar e no ser amado, mas existirá amor quando cada um está a
buscar a própria segurança, seu caminho próprio? Nós não somos amados porque
não sabemos amar.
Que é o amor? Esta palavra está tão carregada e corrompida, que quase não
tenho vontade de empregá-la. Todo o mundo fala de amor — toda revista e jornal e
todo missionário discorre interminavelmente sobre o amor. Amo a minha pátria,
amo o meu rei, amo um certo livro, amo aquela montanha, amo o prazer, amo
minha esposa, amo a Deus. O amor é uma idéia? Se é, pode então ser cultivado,
nutrido, conservado com carinho, moldado, torcido de todas as maneiras possíveis.
Quando dizeis que amais a Deus, que significa isso? Significa que amais uma
projeção de vossa própria imaginação, uma projeção de vós mesmo, revestida de
certas formas de respeitabilidade, conforme o que pensais ser nobre e sagrado; o
dizer "Amo a Deus" é puro contra-senso. Quando adorais a Deus, estais adorando a
vós mesmo; e isso não é amor.
Incapazes, que somos, de compreender essa coisa humana chamada amor,
fugimos para abstrações. O amor pode ser a solução final de todas as dificuldades,
problemas e aflições humanas. Assim, como iremos descobrir o que é o amor? Pela
simples definição? A Igreja o tem definido de uma maneira, a sociedade de outra, e
há também desvios e perversões de toda espécie. A adoração de uma certa pessoa,
o amor carnal, a troca de emoções, o companheirismo — será isso o que se
entende por amor? Essa foi sempre a norma, o padrão, que se tornou tão pessoal,
sensual, limitado, que as religiões declararam que o amor é muito mais do que
isso. Naquilo que denominam "amor humano", vêem elas que existe prazer,
competição, ciúme, desejo de possuir, de conservar, de controlar, de influir no
pensar de outrem e, sabendo da complexidade dessas coisas, dizem as religiões
que deve haver outra espécie de amor — divino, belo, imaculado, incorruptível.
Em todo o mundo, certos homens chamados "santos" sempre sustentaram
que olhar para uma mulher é pecaminoso; dizem que não podemos aproximar-nos
de Deus se nos entregamos ao sexo e, por conseguinte, o negam, embora eles
próprios se vejam devorados por ele. Mas, negando o sexo, esses homens
arrancam os próprios olhos, decepam a própria língua, uma vez que estão negando
toda a beleza da Terra. Deixaram famintos os seus corações e a sua mente; são
entes humanos "desidratados"; baniram a beleza, porque a beleza está ligada à
mulher.
Pode o amor ser dividido em sagrado e profano, humano e divino, ou só há
amor} O amor é para um só e não para muitos? Se digo "Amo-te", isso exclui o
amor a outro? O amor é pessoal ou impessoal? Moral ou imoral? Familial ou não
familial? Se amais a humanidade, podeis amar o indivíduo? O amor é sentimento?
Emoção? O amor é prazer e desejo? Todas essas perguntas indicam — não é
verdade? — que temos idéias a respeito do amor, idéias sobre o que ele deve ou
não deve ser, um padrão, um código criado pela cultura em que vivemos.
Assim, para examinarmos a questão do amor — o que é o amor — devemos
primeiramente libertar-nos das incrustações dos séculos, lançar fora todos os ideais
e ideologias sobre o que ele deve ou não deve ser. Dividir qualquer coisa em o que
deveria ser e o que é, é a maneira mais ilusória de enfrentar a vida.
Ora, como iremos saber o que é essa chama que denominamos amor — não
a maneira de expressá-lo a outrem, porém o que ele próprio significa? Em primeiro
lugar, rejeitarei tudo o que a Igreja, a sociedade, meus pais e amigos, todas as
pessoas e todos os livros disseram a seu respeito, porque desejo descobrir por mim
mesmo o que ele é. Eis um problema imenso, que interessa a toda a humanidade;
há milhares de maneiras de defini-lo e eu próprio me vejo todo enredado neste ou
naquele padrão, conforme a coisa que, no momento, me dá gosto ou prazer. Por
conseguinte, para compreender o amor, não devo em primeiro lugar libertar-me de
minhas inclinações e preconceitos? Vejo-me confuso, dilacerado pelos meus
próprios desejos e, assim, digo entre mim: "Primeiro, dissipa a tua confusão. Talvez
tenhas possibilidade de descobrir o que é o amor através do que ele não é".
O governo ordena: "Vai e mata, por amor à pátria!" Isso é amor? A religião
preceitua: 'Abandona o sexo, pelo amor de Deus". Isso é amor? O amor é desejo?
Não digais que não. Para a maioria de 41ÓS, ;,é; desejo acompanhado de prazer,
prazer derivado dos sentidos, pelo apego e o preenchimento sexual. Não sou
contrário ao sexo, mas vede o que ele implica. O que o sexo vos dá
momentaneamente é o total abandono de vós mesmo, mas, depois, voltais à vossa
agitação; por conseguinte, desejais a constante repetição desse estado livre de
preocupação, de problema, do "eu". Dizeis que amais vossa esposa. Nesse amor
está implicado o prazer sexual, o prazer de terdes uma pessoa em casa para cuidar
dos filhos e cozinhar. Dependeis dela; ela vos deu o seu corpo, suas emoções, seus
incentivos, um certo sentimento de segurança e bem--estar. Um dia, ela vos
abandona; aborrece-se ou foge com outro homem, e eis destruído todo o vosso
equilíbrio emocional; essa perturbação, de que não gostais, chama-se ciúme. Nele
existe sofrimento, ansiedade, ódio e violência. Por conseguinte, o que realmente
estais dizendo é: "Enquanto me pertences, eu te amo; mas, tão logo deixes de
pertencer-me, começo a odiar-te. Enquanto posso contar contigo para satisfação de
minhas necessidades sociais e outras, amo-te, mas, tão logo deixes de atender a
minhas necessidades, não gosto mais de ti".
Há, pois, antagonismo entre ambos,
há separação, e quando vos sentis separados um do outro, não há amor. Mas, se
puderdes viver com vossa esposa sem que o pensamento crie todos esses estados
contraditórios, essas intermináveis contendas dentro de vós mesmo, talvez então —
talvez — sabereis o que é o amor. Sereis então completamente livre, e ela
também; ao passo que, se dela dependeis para os vossos prazeres, sois seu
escravo. Portanto, quando uma pessoa ama, deve haver liberdade — a pessoa deve
estar livre, não só da outra, mas também de si própria.
No estado de pertencer a outro, de ser psicologicamente nutrido por outro,
de outro depender — em tudo isso existe sempre, necessariamente, a ansiedade, o
medo, o ciúme, a culpa, e enquanto existe medo, não existe amor. A mente que se
acha nas garras do sofrimento jamais conhecerá o amor; o sentimentalismo e a
emotividade nada, absolutamente nada, têm que ver com o amor. Por conseguinte,
o amor nada tem em comum com o prazer e o desejo.
O amor não é produto do pensamento, que é o passado.
O pensamento não pode de modo nenhum cultivar o amor.
O amor não se deixa cercar e enredar pelo ciúme; porque o ciúme vem do
passado. O amor é sempre o presente ativo. Não é "amarei" ou "amei".
Se
conheceis o amor, não seguireis ninguém. O amor não obedece. Quando se ama,
não há respeito nem desrespeito.
Não sabeis o que significa amar realmente alguém — amar sem ódio, sem
ciúme, sem raiva, sem procurar interferir no que o outro faz ou pensa, sem
condenar, sem comparar — não sabeis o que isso significa? Quando há amor, há
comparação? Quando amais alguém de todo o coração, com toda a vossa mente,
todo o vosso corpo, todo o vosso ser, existe comparação? Quando vos abandonais
completamente a esse amor, não existe "o outro".
O amor tem responsabilidades e deveres, e emprega tais palavras? Quando
fazeis alguma coisa por dever, há nisso amor? No dever não há amor. A estrutura
do dever, na qual o ente humano se vê aprisionado, o está destruindo. Enquanto
sois obrigado a fazer uma coisa, porque é vosso dever fazê-la, não amais a coisa
que estais fazendo. Quando há amor, não há dever nem responsabilidade.
A maioria dos pais, infelizmente, pensa que são responsáveis por seus filhos,
e seu senso de responsabilidade toma a forma de preceituar-lhes o que devem
fazer e o que não devem fazer, o que devem ser e o que não devem ser. Querem
que os filhos conquistem uma posição segura na sociedade. Aquilo a que chamam
responsabilidade faz parte daquela respeitabilidade que eles cultivam; e a mim me
parece que, onde há respeitabilidade, não existe ordem; só lhes interessa o tornarse um perfeito burguês. Preparando os filhos para se adaptarem à sociedade, estão
perpetuando a guerra, o conflito e a brutalidade.
Pode-se chamar a isso zelo e
amor?
Zelar, com efeito, é cuidar como se cuida de uma árvore ou de uma planta,
regando-a, estudando as suas necessidades, escolhendo o solo mais adequado,
tratá-la com carinho e ternura; mas, quando preparais os vossos filhos para se
adaptarem à sociedade, os estais preparando para serem mortos. Se amasseis
vossos filhos, não haveria guerras.
Quando perdeis alguém que amais, verteis lágrimas; essas lágrimas são por
vós mesmo ou pelo morto? Estais pranteando a vós mesmo ou ao outro? Já
chorastes por outrem? Já chorastes o vosso filho, morto no campo de batalha?
Chorastes, decerto, mas essas lágrimas foram produto da autocompaixão ou
chorastes porque um ente humano foi morto? Se chorais por autocompaixão,
vossas lágrimas nada significam, porque estais interessado em vós mesmo. Se
chorais porque vos foi arrebatada uma pessoa em quem "depositastes" muita
afeição, não se trata de uma afeição real. Se chorais a morte de vosso irmão,
chorai por e/e! É muito fácil chorardes por vós mesmo porque ele partiu.
Aparentemente, chorais porque vosso coração foi atingido, mas não foi atingido por
causa dele; foi atingido pela autocompaixão, e a autocompaixão vos endurece, vos
fecha, vos torna embotado e estúpido.
Quando chorais por vós mesmo, será isso amor? — chorar porque ficastes
sozinho, porque perdestes o vosso poder; queixar-vos de vossa triste sina, de
vosso ambiente — sempre vós a verter lágrimas. Se compreenderdes esse fato, e
isso significa pôr-vos em contato com ele tão diretamente como quando tocais uma
árvore ou uma coluna ou uma mão, vereis então que o sofrimento é produto do
"eu", o sofrimento é criado pelo pensamento, o sofrimento é produto do tempo. Há
três anos eu tinha meu irmão; hoje ele é morto e estou sozinho, desolado, não
tenho mais a quem recorrer para ter conforto ou companhia, e isso me traz
lágrimas aos olhos.
Podeis ver ludo isso acontecer dentro de vós mesmo, se o observardes.
Podeis vê-lo de maneira plena, completa, num relance, sem precisardes do tempo
analítico. Podeis ver num momento toda a estrutura e natureza dessa coisa
desvaliosa e insignificante, chamada "eu" — minhas lágrimas, minha família, minha
nação, minha crença, minha religião — toda essa fealdade está em vós. Quando a
virdes com vosso coração, e não com vossa mente, quando a virdes do fundo de
vosso coração, tereis então a chave que acabará com o sofrimento.
O sofrimento e o amor não podem coexistir, mas no mundo cristão
idealizaram o sofrimento, crucificaram-no para o adorar, dando a entender que
ninguém pode escapar ao sofrimento a não ser por aquela única porta; tal é a
estrutura de uma sociedade religiosa, exploradora.
Assim, ao perguntardes o que é o amor, podeis ter muito medo de ver a
resposta. Ela pode significar uma completa reviravolta; poderá dissolver a família;
podeis descobrir que não amais vossa esposa ou marido ou filhos (vós os amais?);
podeis ter de demolir a casa que construístes; podeis nunca mais voltar ao templo.
Mas, se desejais continuar a descobrir, vereis que o medo não é amor, a
dependência não é amor, o ciúme não é amor, a posse e o domínio não são amor,
responsabilidade e dever não são amor, autocompaixão não é amor, a agonia de
não ser amado não é amor, que o amor não é o oposto do ódio, como também a
humildade não é o oposto da vaidade. Dessarte, se fordes capaz de eliminar tudo
isso, não à força, porém lavando-o assim como a chuva fina lava a poeira de
muitos dias depositada numa folha, então, talvez, encontrareis aquela flor
peregrina que o homem sempre buscou sequiosamente.
Se não tendes amor — não em pequenas gotas, mas em abundância; se não
estais transbordando de amor, o mundo irá ao desastre. Intelectualmente, sabeis
que a unidade humana é a coisa essencial e que o amor constitui o único caminho
para ela, mas quem pode ensinar-vos a amar? Poderá uma autoridade, um método,
um sistema ensinar-vos a amar? Se alguém vo-lo ensina, isso não é amor. Podeis
dizer: "Eu me exercitarei para o amor. Sentar-me-ei todos os dias para refletir
sobre ele. Exercitar-me-ei para ser bondoso, delicado e me forçarei a ser atencioso
com os outros"? — Achais que podeis disciplinar-vos para amar, que podeis exercer
a vontade para amar? Quando exerceis a vontade e a disciplina para amar, o amor
vos foge pela janela. Pela prática de um certo método ou sistema de amar, podeis
tornar-vos muito hábil, ou mais bondoso, ou entrar num estado de não-violência,
mas nada disso tem algo em comum com o amor.
Neste mundo tão dividido e árido não há amor, porque o prazer e o desejo
têm a máxima importância, e, todavia, sem amor, vossa vida diária é sem
significação. Também, não podeis ter o amor se não tendes a beleza. A beleza não
é uma certa coisa que vedes — não é uma bela árvore, um belo quadro, um belo
edifício ou uma bela mulher; só há beleza quando o vosso coração e a vossa mente
sabem o que é o amor. Sem o amor e aquele percebimento da beleza, não há
virtude, e sabeis muito bem que tudo o que fizerdes — melhorar a sociedade,
alimentar os pobres — só criará mais malefício, porque, quando não há amor, só há
fealdade e pobreza em vosso coração e vossa mente. Mas, quando há amor e
beleza, tudo o que se faz é correto, tudo o que se faz é ordem. Se sabeis amar,
podeis fazer o que desejardes, porque o amor resolverá todos os outros problemas.
Alcançamos, assim, este ponto: Poderá a mente encontrar o amor sem
precisar de disciplina, de pensamento, de coerção, de nenhum livro, instrutor ou
guia — encontrá-lo assim como se encontra um belo pôr-de-sol?
Uma coisa me parece absolutamente necessária: a paixão sem motivo, a
paixão não resultante de compromisso ou ajustamento, a paixão que não é lascívia.
O homem que não sabe o que é paixão, jamais conhecerá o amor, porque o amor
só pode existir quando a pessoa se desprende totalmente de si própria.
A mente que busca não é uma mente apaixonada, e não buscar o amor é a
única maneira de encontrá-lo; encontrá-lo inesperadamente e não como resultado
de qualquer esforço ou experiência. Esse amor, como vereis, não é do tempo; ele é
tanto pessoal como impessoal, tanto um só como multidão. Como uma flor
perfumosa, podeis aspirar-lhe o perfume, ou passar por ele sem o notardes. Aquela
flor é para todos e para aquele que se curva para aspirá-la profundamente e olhá-la
com deleite. Quer estejamos muito perto, no jardim, quer muito longe, isso é
indiferente à flor, porque ela está cheia de seu perfume e pronta a reparti-lo com
todos.
O amor é uma coisa nova, fresca, viva. Não tem ontem nem amanhã. Está
além da confusão do pensamento. Só a mente inocente sabe o que é o amor, e a
mente inocente pode viver no mundo não inocente. Só é possível encontrá-la, essa
coisa maravilhosa que o homem sempre buscou sequiosamente por meio de
sacrifícios, de adoração, das relações, do sexo, de toda espécie de prazer e de dor,
só é possível encontrá-la quando o pensamento, alcançando a compreensão de si
próprio, termina naturalmente. O amor não conhece oposto, não conhece conflito.
Podeis perguntar: "Se encontro esse amor, que será de minha mulher, de
minha família? Eles precisam de segurança". Fazendo essa pergunta, mostrais que
nunca estivestes fora do campo do pensamento, fora do campo da consciência.
Quando tiverdes alguma vez estado fora desse campo, nunca fareis uma tal
pergunta, porque sabereis o que é o amor em que não há pensamento e, por
conseguinte, não há o tempo. Podeis ler tudo isto hipnotizado e encantado, mas
ultrapassar realmente o pensamento e o tempo — o que significa transcender o
sofrimento — é estar cônscio de uma dimensão diferente, chamada "amor".
Mas, não sabeis como chegar-vos a essa fonte maravilhosa — e, assim, que
fazeis? Quando não sabeis o que fazer, nada fazeis, não é verdade? Nada,
absolutamente. Então, interiormente, estais completamente em silêncio.
Compreendeis o que isso significa? Significa que não estais buscando, nem
desejando, nem perseguindo; não existe centro nenhum. Há, então, o amor.
XI
Observar e Escutar — A Arte — A Beleza — A Austeridade — As Imagens —
Os Problemas — O Espaço.
Acabamos de investigar a natureza do amor e alcançamos, creio, um ponto
que requer maior penetração, maior percebimento. Descobrimos que, para a
maioria, amor significa conforto, segurança, uma garantia de satisfação emocional,
contínua, para o resto da vida. Chega então uma pessoa como eu e diz: "Será isso
realmente amor?", e vos contesta, e vos pede que olheis para dentro de vós
mesmo. Procurais não olhar, porque isso é muito perturbador; seria preferível
discutir sobre a alma ou a situação política ou econômica. Mas, quando vos vedes
encostado a um canto e obrigado a olhar, percebeis que isso que sempre pensastes
ser amor não é, de forma nenhuma, amor; é uma satisfação mútua, mútua
exploração.
Quando digo: "O amor não tem amanhã nem ontem", ou "não existindo
centro algum, então há amor", isso tem realidade para mim, mas não para vós.
Podeis citá-lo e convertê-lo numa fórmula, mas sem qualquer validade. Tendes de
ver o fato por vós mesmo, e, para tanto, necessita-se de liberdade para olhar,
precisa-se estar livre de toda condenação, de todo juízo, de toda aquiescência ou
discordância.
Ora, olhar é uma das coisas mais difíceis da vida — ou escutar — olhar e
escutar são a mesma coisa. Se vossos olhos estão obcecados por vossas
inquietações, não podeis ver a beleza do pôr-do-sol. A maioria de nós perdeu o
contato com a natureza.
A civilização tende muito à formação de grandes
cidades; estamo-nos tornando cada vez mais gente urbana, vivendo em
apartamentos apertados, e tendo muito pouco espaço mesmo para olhar o céu da
tarde e da manhã e, por conseguinte, estamos perdendo o contato com a beleza.
Não sei se já notastes quão poucos dentre nós olham o nascer ou o pôr-do-sol, ou
o luar ou os reflexos da luz na água.
Tendo perdido o contato com a natureza, tendemos naturalmente a
desenvolver as aptidões intelectuais. Lemos um grande número de livros,
freqüentamos muitos museus e concertos, vemos televisão e temos outros mais
entretenimentos. Citamos interminavelmente as idéias de outrem, muito pensamos
e falamos sobre arte. Por que razão dependemos tanto da arte? Constitui ela uma
forma de fuga, de estímulo? Se estais diretamente em contato com a natureza; se
observais o movimento de uma ave a voar, se vedes a beleza de cada movimento
das nuvens, observais as sombras nos montes ou a beleza manifestada no rosto de
outra pessoa, achais que tereis vontade de ir a um museu para ver quadros?
Talvez, porque não sabeis olhar todas as coisas que vos circundam; talvez seja por
essa razão que recorreis a uma certa droga, para estimular--vos a ver melhor.
Conta-se uma história acerca de um instrutor religioso que todas as manhãs
falava aos seus discípulos. Uma certa manhã, subiu ao palanque e, justamente
quando ia começar a falar, um passarinho pousou no peitoril de uma janela e
começou a cantar, a cantar, com toda a alma. Depois calou-se e foi-se, a voar.
Disse então o instrutor: "Está terminado o sermão desta manhã".
Parece-me que uma das nossas maiores dificuldades é vermos, por nós
mesmos, com toda a clareza, não só as coisas exteriores, mas também a vida
interior. Quando dizemos que vemos uma árvore ou uma flor ou uma pessoa,
vemo-la realmente? Ou vemos meramente a imagem que a palavra criou? Isto é,
quando olhais uma árvore ou uma nuvem, numa tarde luminosa, vós a vedes
realmente, não só com vossos olhos e intelectualmente, porém totalmente,
completamente?
Já experimentastes alguma vez olhar uma coisa objetiva, uma árvore, por
exemplo, sem nenhuma das associações, nenhum dos conhecimentos que a
respeito dela adquiristes, sem nenhum preconceito, nenhum juízo, nenhuma
palavra a constituir uma cortina entre vós e a árvore, e impedindo-vos de a ver tal
qual é realmente? Experimentai, para verdes o que realmente acontece, quando
observais a árvore com todo o vosso ser, com a totalidade de vossa energia. Nessa
intensidade, vereis que não há observador nenhum; só há atenção. Só quando há
desatenção existe "observador e coisa observada". Quando estais olhando com
atenção completa, não há espaço para nenhum conceito, fórmula, lembrança.
Importa compreender isso, porque vamos examinar um assunto que requer mui
cuidadosa investigação.
Só a mente que olha as árvores ou as estrelas com total abandono de si
própria, só essa mente sabe o que é a beleza, e quando estamos realmente vendo,
achamo-nos num estado de amor. Em geral, conhecemos a beleza pela comparação
ou através das criações do homem, o que significa que atribuímos beleza a um
certo objeto. Vejo aquilo que considero um belo edifício e aprecio essa beleza por
causa de meu conhecimento de arquitetura e pela comparação com outros edifícios
que vi. Mas, agora pergunto a mim mesmo: "Existe beleza sem objeto?". Quando
há um observador, ou seja o censor, o experimentador, o pensador, não há beleza,
porque a beleza é então algo exterior, algo que o observador olha e julga; mas,
quando não há observador — e isso requer muita meditação, investigação — há
então a beleza sem objeto.
A beleza reside no total abandono do observador e da coisa observada, e só
pode haver auto-abandono quando há austeridade total, não a austeridade do
sacerdote, com sua rudeza, suas sanções, regras e obediência; não a austeridade
no vestir, nas idéias, no alimentar-se, no comportamento — porém a austeridade
que consiste em ser totalmente simples, que é a humildade completa. Não há então
realização, não há escada para galgar, só há o primeiro degrau, e o primeiro
degrau é o degrau eterno.
Suponhamos, por exemplo, que estejais passeando a sós ou com alguém, e
vos calastes. Estais rodeado pela natureza e não se ouve o latido de um cão, o
barulho de um carro que passa, nem mesmo o ruflar das asas de um pássaro.
Estais em completo silêncio, e silenciosa também está a natureza circundante.
Nesse estado de silêncio existente tanto no observador como na coisa observada —
quando o observador não está a traduzir em pensamento o que está vendo —
nesse silêncio há uma diferente qualidade de beleza. Não existe nem a natureza
nem o observador. O que existe é um estado em que a mente está total e
completamente só; só — não isolada — só em sua quietude, e essa quietude é
beleza. Quando amais, existe algum observador? Só há observador quando o amor
é desejo e prazer. Quando o desejo e o prazer não estão relacionados com o amor,
então o amor é intenso. Como a beleza, ele é uma coisa totalmente nova em cada
dia. Como já disse, ele não tem nem ontem nem amanhã.
É só quando vemos sem nenhum preconceito, nenhuma imagem, que somos
capazes de estar em direto contato com alguma coisa na vida. Todas as nossas
relações baseiam-se, com efeito, em imagens formadas pelo pensamento. Se tenho
uma imagem a respeito de vós, e vós tendes uma imagem a respeito de mim,
naturalmente não nos vemos um ao outro como realmente somos. O que vemos
são as imagens que formamos um do outro, as quais nos impedem o contato, e é
por essa razão que nosso relacionamento não funciona bem.
Quando digo que vos conheço, quero dizer que vos conheci ontem. Não vos
conheço realmente, agora. O que conheço é só a imagem que tenho de vós. Essa
imagem é constituída pelo que dissestes em meu louvor ou para me insultardes,
pelo que me fizestes; é constituída de todas as lembranças que tenho de vós; e
vossa imagem relativa a mim é constituída da mesma maneira, e são essas
imagens que estão em relação e nos impedem de comungar realmente um com o
outro.
Duas pessoas que viveram em comum por muito tempo têm imagens uma da
outra, que as impedem de estar em relação. Se compreendemos as relações,
podemos cooperar, mas não há possibilidade de cooperação através de imagens, de
símbolos, de conceitos, ideologias. Só quando compreendemos a verdadeira e
mútua relação entre nós, há possibilidade de amor, mas o amor é negado quando
temos imagens. Por conseguinte, importa compreenderdes, não intelectualmente
porém realmente, em vossa vida diária, como formastes imagens a respeito de
vossa esposa, de vosso marido, de vosso vizinho, de vosso filho, de vossa pátria,
vossos políticos, vossos deuses; nada mais tendes senão imagens.
Essas imagens criam o espaço entre vós e aquilo que observais, e nesse
espaço há conflito. Vamos, pois, agora descobrir juntos se é possível nos livrarmos
do espaço que criamos, não só fora de nós, mas também dentro de nós mesmos, o
espaço que separa as pessoas em todas as suas relações.
Ora, a própria atenção que dais a um problema constitui a energia que
resolve o problema. Quando dispensais toda a atenção — quer dizer, tudo o que
tendes — não existe observador nenhum. Há só o estado de atenção, que é energia
total, e essa energia total é a forma mais elevada de inteligência. Naturalmente,
esse estado da mente deve ser todo de silêncio; e esse silêncio, essa quietude,
surge quando há atenção total, e não quietude disciplinada. Esse completo silêncio
em que não há observador nem coisa observada é a mais alta forma de uma mente
religiosa. Mas o que sucede, nesse estado, não pode ser expresso em palavras,
porque o que sei por meio de palavras não é o fato. Para descobrirdes por vós
mesmo, tendes de passar por esse estado.
Cada problema está relacionado com todos os outros problemas e, assim
sendo, se puderdes resolver um só problema completamente — não importa qual
seja — vereis que sereis capaz de enfrentar e resolver facilmente todos os demais.
Naturalmente, estamos falando de problemas psicológicos. Já vimos que um
problema só pode existir no tempo, isto é, quando enfrentamos uma dada situação
incompletamente. Assim, não só temos de estar cônscios da natureza e estrutura
do problema e vê-lo totalmente, mas também devemos enfrentá-lo tão logo surge
e resolvê-lo imediatamente, para que não possa enraizar-se na mente. Se
deixamos um problema durar um mês, um dia, ou mesmo alguns minutos, ele
deforma a mente. Assim, será possível enfrentarmos imediatamente um problema,
sem nenhuma deformação, e nos livrarmos dele imediata e completamente, sem
que fique, na mente, nenhuma memória, nenhuma arranhadura? Essas memórias
são as imagens que levamos conosco e são essas imagens que enfrentam essa
coisa portentosa que é a vida e, por conseguinte, há contradição e, daí, conflito. A
vida é muito real; não é uma abstração; e, quando a enfrentamos com imagens,
nascem problemas.
Será possível enfrentar cada caso que surge, sem esse intervalo de espaçotempo, sem esse vão entre a própria pessoa e aquilo de que ela tem medo? Só é
possível, quando o observador não tem continuidade, o observador, que é o
formador da imagem, o observador que é uma coleção de memórias e idéias, um
feixe de abstrações.
Quando olhais as estrelas, existe vós, que estais a olhar as estrelas; o céu
está todo inundado do brilho das estrelas, o ar é fresco, e lá estais vós, o
observador, o experimentador, o pensador, vós, com vosso coração dolorido, vós, o
centro, a criar espaço. Jamais compreendereis nada acerca do espaço existente
entre vós e as estrelas, entre vós e vossa esposa ou marido ou amigo, porque
nunca os olhastes sem a imagem, e essa é a razão por que não sabeis o que é a
beleza ou o que é o amor. Falais sobre eles, escreveis a seu respeito, mas jamais
os conhecestes, a não ser, talvez, em raros intervalos de total abandono de vós
mesmo. Enquanto existir um centro a criar espaço em torno de si, não haverá amor
nem beleza. Não havendo nenhum centro e nenhuma circunferência, então há
amor. E quando amais, vós sois beleza.
Ao olhardes um rosto à vossa frente, estais olhando de um centro, e esse
centro cria o espaço entre as pessoas, e é por isso que nossas vidas são tão vazias
e insensíveis. Não podeis cultivar o amor ou a beleza e tampouco podeis inventar a
verdade; mas, se estiverdes sempre cônscio do que estais fazendo, podereis
cultivar o percebimento e, graças a esse percebimento, começareis a ver a
natureza do prazer, do desejo e do sofrimento, e a total solidão e tédio em que vive
o homem; começareis então a descobrir aquela coisa chamada "espaço".
Havendo espaço entre vós e o objeto que estais observando, sabereis que
não há amor e, sem o amor, por mais que vos esforceis para reformar o mundo ou
criar uma nova ordem social, ou por mais que discurseis a respeito de melhorias, só
criareis agonia. Portanto, tudo depende de vós. Não há líder, não há instrutor, não
há ninguém que possa ensinar-vos o que deveis fazer.
Estais só neste mundo
insano e brutal.
XII
O Observador e a Coisa Observada.
Tende a bondade de continuar a acompanhar-me um pouco mais. Esta
matéria poderá ser um tanto complexa e sutil, mas, por favor, continuai comigo a
investigá-la.
Pois bem; quando formo uma imagem a respeito de vós ou de qualquer
coisa, tenho a possibilidade de observar essa imagem e, assim, há a imagem e o
observador da imagem. Vejo uma pessoa, suponhamos, de camisa vermelha, e
minha reação imediata é de gostar ou não gostar dessa camisa. O gostar ou não
gostar é resultado de minha cultura, de minha educação, minhas relações, minhas
inclinações, minhas características adquiridas ou herdadas. É desse centro que eu
observo e faço meu julgamento, e, assim, o observador está separado da coisa que
observa.
Porém, o observador está percebendo mais do que uma só imagem; ele cria
milhares de imagens. Ora, o observador difere dessas imagens? Não é ele apenas
outra imagem? Está sempre a acrescentar ou a subtrair alguma coisa do que ele
próprio é; ele é uma coisa viva, a todas as horas, ocupada em pesar, comparar,
julgar, modificar, mudar, em virtude de pressões do exterior e do interior; vive no
campo da consciência, que são seus próprios conhecimentos, as influências e
avaliações inumeráveis. Ao mesmo tempo que olhais o observador, que é vós
mesmo, vedes que ele é constituído de memórias, experiências, acidentes,
influências, tradições e infinitas variedades de sofrimento, sendo tudo isso o
passado. Assim, o observador é tanto o passado como o presente, e o amanhã o
aguarda e faz também parte dele. Ele está meio vivo, meio morto, e com essa
morte e vida é que observa. Nesse estado mental, situado no campo do tempo, vós
(o observador) olhais o medo, o ciúme, a guerra, a família (a entidade feia e
fechada chamada a família), e procurais resolver o problema da coisa observada, a
qual é o desafio, o novo; estais sempre a traduzir o novo nos termos do velho e,
por conseguinte, vos vedes num conflito perpétuo.
Uma imagem-, na qualidade de observador, observa dúzias de outras
imagens, ao redor e dentro de si mesmo, e o observador diz: "Gosto dessa
imagem, vou conservá-la", ou "Não gosto dessa imagem e, portanto, vou livrar-me
dela" — mas o próprio observador foi formado pelas várias imagens, nascidas da
reação a várias outras imagens. Assim sendo, alcançamos um ponto em que
podemos dizer: O observador é também imagem, porém separa a si próprio para
observar. Esse observador, que se tornou existente por causa de várias outras
imagens, julga-se permanente e entre si próprio e as demais imagens criou uma
separação, um intervalo de tempo. Isso gera conflito entre ele e as imagens que ele
crê serem a causa de suas tribulações. Diz, então: "Preciso livrar-me desse
conflito", mas o próprio desejo de livrar-se do conflito cria outra imagem.
O percebimento de tudo isso, que é a verdadeira meditação, revela haver
uma imagem central, formada por todas as outras imagens, e essa imagem central
— o observador — é o censor, o experimentador, o avaliador, o juiz que deseja
conquistar ou subjugar as outras imagens ou destruí-las de todo. As outras
imagens resultam dos juízos, opiniões e conclusões do observador, e o observador
é o resultado de todas as outras imagens — portanto, o observador ê a coisa
observada.
Assim, o percebimento revela os diferentes estados da mente; revela as
várias imagens e a contradição entre elas existente; revela o conflito daí resultante
e o desespero por não se poder fazer coisa alguma em relação ao conflito, e as
diferentes tentativas de fugir dele. Tudo isso foi revelado pela vigilância cautelosa,
hesitante, e percebe-se, então, que o observador é a coisa observada. Não é uma
entidade superior que se torna consciente dessas coisas, não é um "eu" superior (a
entidade superior, o eu superior são meras invenções, outras tantas imagens); o
próprio percebimento revelou que o observador é a coisa observada.
Se fazeis a vós mesmo uma pergunta, quem é a entidade que vai receber a
resposta? E quem é a entidade que vai investigar? Se essa entidade faz parte da
consciência, se faz parte do pensamento, nesse caso ela é incapaz de descobrir a
resposta. O que pode descobrir é apenas um estado de percebimento. Mas, se
nesse estado de percebimento continua a existir uma entidade que diz: "Preciso
estar cônscia, preciso praticar o percebimento" — essa entidade, por sua vez, é
mais uma imagem.
Esse percebimento de que o observador é a coisa observada não é um
processo de identificação com a coisa observada. Identificar-nos com uma dada
coisa é relativamente fácil. A maioria de nós se identifica com alguma coisa: com a
família, o marido, a esposa, a nação; e essa identificação leva a grandes aflições e
grandes guerras. Estamos considerando uma coisa inteiramente diferente, que não
devemos compreender verbalmente, porém no âmago, na raiz mesma de nosso
ser. Na China antiga, um artista, antes de começar a pintar qualquer coisa, uma
árvore, por exemplo — ficava sentado diante dela durante dias, meses, anos (não
importa quanto tempo) até ele próprio ser a árvore. Ele não se identificava com a
árvore, mas era a árvore. Isso significa que não havia espaço entre ele e a árvore,
não havia espaço entre o observador e a coisa observada, não havia um
experimentador a experimentar a beleza, o movimento, o matiz, a intensidade de
uma folha, a "qualidade" da cor. Ele era totalmente a árvore, e só nesse estado
podia pintá-la.
Qualquer movimento por parte do observador, se ele não percebeu que o
observador é a coisa observada, só cria outra série de imagens e, mais uma vez,
nelas se vê enredado. Mas, que sucede, quando o observador percebe que o
observador é a coisa observada? Andai devagar, bem devagar, pois estamos
examinando uma coisa muito complexa. Que sucede? O observador não age,
absolutamente.
O observador sempre disse: "Tenho de fazer algo em relação a
essas imagens; devo recalcá-las ou dar-lhes uma forma diferente"; está sempre
ativo em relação à coisa observada, agindo e reagindo, apaixonada ou
indiferentemente, e essa ação de gostar e não gostar, por parte do observador, é
chamada ação positiva — "Gosto desta coisa, portanto, devo conservá-la; não
gosto daquela, portanto, tenho de livrar-me dela". Mas, quando o observador
percebe que a coisa em relação à qual está agindo é ele próprio, não há então
conflito entre ele e a imagem. Ele ê ela. Não está separado dela. Quando separado,
ele fazia ou tentava fazer alguma coisa em relação a ela; mas, ao perceber que ele
próprio é aquilo, não há mais gostar nem não gostar, e o conflito cessa.
Pois, que pode ele fazer? Se uma coisa ê vós, que podeis fazer? Não podeis
revoltar-vos contra ela, ou fugir dela, ou, mesmo, aceitá-la. Ela existe. Assim, toda
ação resultante da reação, de gostar e não gostar, cessa.
Descobrireis, então, que há um percebimento que se torna extremamente
vivo. Não está sujeito a nenhum fator central ou a alguma imagem, e dessa
intensidade de percebimento provém uma diferente qualidade de atenção e a
mente, por conseguinte (pois a mente é esse percebimento), se torna sobremodo
sensível e altamente inteligente.
XIII
Que é Pensar? — As Idéias e a Ação — O Desafio Matéria — O Começo
do Pensamento.
Passemos agora a examinar a questão do pensar — o que é pensar — a
significação desse pensamento que deve ser exercido com cuidado, lógica e
equilíbrio (em nossas atividades diárias), e a significação do pensamento que
nenhuma importância tem. A menos que conheçamos essas duas qualidades (de
pensamento) não teremos possibilidade de compreender uma coisa muito mais
profunda, que o pensamento não pode atingir. Tratemos, pois, de compreender
toda a complexa estrutura que constitui o pensar, a memória — como o
pensamento nasce, como o pensamento condiciona as nossas ações; e,
compreendendo tudo isso, encontraremos talvez uma coisa que o pensamento
jamais descobriu, uma coisa cuja porta o pensamento é incapaz de abrir.
Por que se tornou o pensamento tão importante em nossa vida? — o
pensamento, que é idéias, reação às memórias acumuladas nas células cerebrais?
Talvez muitos de vós nem mesmo fizeram a si próprios uma pergunta dessas, ou,
se a fizeram, devem ter dito: "Isso é de mínima importância, o importante é a
emoção". Mas, não vejo como separar as duas coisas. Se o pensamento não dá
continuidade ao sentimento, o sentimento morre muito depressa. Assim, por que é
que o pensamento assumiu, em nossa vida diária, nesta vida tormentosa, tediosa,
assustada — tão desmedida importância? Perguntai a vós mesmo, como estou
perguntando a mim mesmo: ^'Porque somos escravos do pensamento — desse
pensamento sagaz e engenhoso, capaz de organização, de iniciativas; que tantas
coisas inventa, que tantas guerras engendrou e tanto medo criou, tanta ansiedade;
que está perenemente a criar imagens e a "correr atrás da própria cauda"; do
pensamento que fruiu o prazer de ontem e a esse prazer deu continuidade no
presente e também no futuro; desse pensamento que está sempre ativo, a
tagarelar, a mover-se, a construir, a subtrair, a adicionar, a supor?".
As idéias se tornaram para nós muito mais importantes do que a ação —
idéias tão habilmente expostas em livros pelos intelectuais, em todas as esferas de
atividade. Quanto mais sagazes e sutis essas idéias, tanto mais as veneramos e aos
livros que as contêm. Nós somos esses livros, somos essas idéias, tão fortemente
condicionados estamos por elas. Estamos perpetuamente a discutir idéias e ideais
e, dialeticamente, a apresentar opiniões. Toda religião tem seu dogma, sua
fórmula, seu próprio andaime para alcançar os deuses, e, como estamos
investigando as origens do pensamento, estamos contestando a validade de todo
esse edifício de idéias. Separamos as idéias da ação porque as idéias são sempre
do passado, e a ação é sempre o presente — isto é, o viver é sempre o presente.
Temos medo do viver e, por conseguinte, o passado, as idéias, se nos tornaram tão
importantes.
E realmente muito interessante observar as operações de nosso próprio
pensar, observar, simplesmente, como pensamos, a fonte de onde brota essa
reação que chamamos pensar. Essa fonte é, obviamente, a memória. Existe de fato
um começo do pensamento? Se existe, podemos achá-lo? — isto é, o começo da
memória, porque, se não tivéssemos memória, não teríamos pensamento.
Já vimos como o pensamento sustenta e dá continuidade a um prazer que
ontem fruímos, e como o pensamento também sustenta o contrário do prazer, o
medo e a dor; de modo que o experimentador, que é o pensador, ê o prazer e a
dor, e também a entidade que lhes dá nutrimento. O pensador separa o prazer da
dor. Não percebe que na própria exigência de prazer está atraindo a dor e o medo.
O pensamento, nas relações humanas, está sempre a exigir prazer, exigência que
ele disfarça com palavras tais como lealdade, auxílio, dádiva, amparo, serviço.
Pergunto-me: Por que queremos servir aos outros? O posto de gasolina oferece
bons serviços. Que significam estas palavras: auxílio, dádiva, serviço? Que
finalidade tem isso? Uma flor, cheia de beleza, de luz, de encantamento, essa flor
diz: "Eu estou dando, ajudando, servindo"? Ela é, e porque não está procurando
fazer coisa alguma, ela abarca toda a Terra.
O pensamento é tão sutil, tão hábil, que deforma todas as coisas para sua
própria conveniência. O pensamento, com sua exigência de prazer, traz sua própria
servidão. O pensamento é o criador da dualidade, em todas as nossas relações: há,
em nós, violência, a qual nos proporciona prazer, mas há também o desejo de paz,
o desejo de ser bondoso, delicado. Isso é o que se passa a todas as horas, em
nossa vida. O pensamento não só cria em nós essa dualidade, essa contradição,
mas também acumula nossas inumeráveis memórias de prazer e de dor e dessas
memórias renasce. Assim, o pensamento é o passado; o pensamento, como já
disse, é sempre velho.
Como todo desafio é enfrentado em termos do passado — desafio que é
sempre novo — nossa maneira de enfrentá-lo será sempre totalmente inadequada,
e daí decorre a contradição, o conflito, a aflição e o sofrimento a que estamos
sujeitos. Nosso insignificante cérebro está em conflito, não importa o que faça. Não
importa se aspira, se imita, se se sujeita, se reprime, se sublima, se toma drogas
para expandir-se — o que quer que jaca — ele se acha num estado de conflito e
produzirá sempre conflito.
Os que pensam muito são autênticos materialistas, porque o pensamento é
matéria. O pensamento é matéria, tanto quanto o soalho, a parede, o telefone, são
matéria. A energia que funciona num padrão se torna matéria. Há energia e há
matéria, É só isso que a vida é. Podeis pensar que o pensamento não é matéria;
mas é. O pensamento, como ideologia, ê matéria. Onde há energia, esta se
converte em matéria. Matéria e energia estão relacionadas entre si. Uma não pode
existir sem a outra. E quanto mais harmonia há entre ambas, tanto mais equilíbrio
existe e tanto mais ativas estão as células cerebrais. O pensamento estabeleceu o
padrão de prazer, de dor, de medo e dentro dele vem funcionando há milhares de
anos, e não pode quebrá-lo, porque foi ele quem o criou.
Um fato novo não pode ser percebido pelo pensamento. Posteriormente,
pode ser compreendido pelo pensamento, verbalmente, porém, a compreensão de
um novo fato não é uma realidade para o pensamento. O pensamento jamais
resolverá um problema psicológico. Por mais engenhoso, por mais sutil e erudito
que seja, e qualquer que seja a estrutura que o pensamento cria, por meio da
ciência, de um cérebro eletrônico, da compulsão ou da necessidade, o pensamento
nunca é novo e, por conseguinte, jamais poderá resolver uma questão sumamente
importante. O velho cérebro não pode resolver o enorme problema do viver.
O pensamento é tortuoso, porque pode inventar tudo e ver coisas que não
existem. É capaz dos mais extraordinários truques e, portanto, não merece
confiança. Mas, se puderdes compreender toda a sua estrutura, porque pensais, as
palavras que empregais, o vosso comportamento na vida diária, vossa maneira de
falar com as pessoas e de tratá-las, vossa maneira de andar, de comer — se
perceberdes todas essas coisas, então a vossa mente não vos enganará, então não
haverá nada para enganar-nos. A mente não é então uma entidade que exige, que
julga; torna-se sumamente quieta, flexível, sensível, só, e nesse estado não há
engano de espécie alguma.
Já notastes que, ao vos achardes num estado de completa atenção, o
observador, o pensador, o centro, o "eu" deixa de existir? Nesse estado de atenção,
o pensamento começa a definhar.
Se uma pessoa deseja ver uma coisa muito claramente, deve ter a sua
mente muito quieta, sem seus preconceitos, suas tagarelices, seus diálogos, suas
imagens, seus quadros — tudo isso tem de ser posto à margem, para olhar. É só no
silêncio que se pode observar o começo do pensamento, e não quando estamos a
buscar, a fazer perguntas e esperar respostas. Portanto, só quando há completa
quietude em nosso ser, e fazemos a pergunta: "Qual a origem do pensamento?",
começamos a ver, em virtude desse silêncio, como se forma o pensamento.
Se há o percebimento de como se inicia o pensamento, já não há
necessidade de controlá-lo. Despendemos uma grande soma de tempo e
desperdiçamos uma grande quantidade de energia, através de toda a vida, e não
apenas na escola, controlando os nossos pensamentos — "Este é um pensamento
bom, devo pensá-lo muitas vezes", "Este é um pensamento mau, devo reprimi-lo."
Trava-se uma perene batalha entre um pensamento e outro, entre um desejo e
outro (um prazer dominando todos os outros prazeres), mas se há o percebimento
da origem do pensamento, nele já não existe nenhuma contradição.
Agora, quando ouvis uma asserção, tal como: "O pensamento é sempre
velho" ou "O tempo é sofrimento", o pensamento começa a traduzi-la, a interpretála. Porém a tradução e a interpretação baseiam-se no conhecimento, na experiência
de ontem, de modo que, invariavelmente, a traduzireis de acordo com o vosso
condicionamento. Mas, se olhais essas asserções e não as interpretais de modo
nenhum, dispensando-lhes, tão-só, vossa atenção completa {não concentração),
descobris que não há observador nem coisa observada, que não há pensador nem
pensamento. Não digais "Qual o que começou primeiro?". Essa é uma pergunta
hábil, mas não conduz a parte alguma. Podeis observar em vós mesmo que,
quando não há pensamento — e isso não significa um estado de amnésia, de
vacuidade — quando não há pensamento derivado da memória, da experiência ou
do conhecimento, pois tudo isso é do passado, não há pensador nenhum. Isso não
é matéria filosófica ou mística. Estamos tratando de fatos reais e, se me
acompanhastes até aqui, passareis a responder a cada desafio, não com o velho
cérebro, porém de maneira totalmente nova.
XIV
Os Fardos do Passado — A Mente Tranqüila — A Comunicação — A
Realização — Disciplina — O Silêncio — A Verdade e a Realidade.
Na vida que em geral levamos há muito pouca solidão. Mesmo quando
estamos sós, nossa vida está tão repleta de influências, de conhecimentos, de
memórias e experiências, de ansiedade, aflição e conflito, que nossa mente se
torna cada vez mais embotada e insensível, funcionando numa monótona rotina.
Estamos sós, alguma vez? Ou estamos transportando conosco todas as cargas de
ontem?
Conta-se uma história interessante de dois monges que, caminhando de uma
aldeia para outra, encontraram uma jovem sentada à margem de um rio, a chorar.
Um dos monges dirigiu-se a ela, dizendo: "Irmã, por que choras?" E ela respondeu:
"Estás vendo aquela casa do outro lado do rio? Eu vim para este lado hoje de
manhã cedo e não tive dificuldade em vadear o rio; mas, agora ele engrossou e não
posso voltar; não há nenhum barco". "Oh!" diz o monge, "isto não é problema" — e
levantou nos braços a jovem e atravessou o rio, deixando-a na outra margem. E os
dois monges prosseguem juntos a jornada. Passadas algumas horas, diz o outro
monge: "Irmão, nós fizemos o voto de nunca tocar numa mulher. O que fizeste é
um horrível pecado. Não sentiste prazer, uma sensação extraordinária, ao tocar
uma mulher?" — E o outro monge responde: "Eu a deixei para trás há duas horas.
Tu ainda a estás carregando, não é verdade?"
É isso o que fazemos. Carregamos nossos fardos a todas as horas; nunca
morremos para eles, nunca os deixamos para trás. É só quando dispensamos a um
problema toda a nossa atenção e o resolvemos imediatamente, sem o
transportarmos para o dia seguinte, o minuto seguinte — é só então que há
solidão. Então, ainda que estejamos numa casa cheia de gente, ou viajando num
ônibus, temos solidão. E essa solidão denota uma mente nova, uma mente
inocente.
Ter silêncio e espaço interiores é muito importante, porque implica liberdade
para existir, mover-se, atuar, voar. Afinal de contas, a bondade só pode florescer
onde há espaço, assim como a virtude só pode medrar quando há liberdade.
Podemos ter liberdade política, mas, interiormente, não somos livres e, por
conseguinte, não há espaço. Nenhuma virtude, nenhuma qualidade valiosa, pode
funcionar ou medrar sem esse vasto espaço interior. E o espaço e o silêncio são
necessários, pois apenas a mente que está só, livre de influências, de disciplinas,
do controle de uma infinita variedade de experiências, é capaz de encontrar-se com
algo totalmente novo.
Cada um de nós pode verificar diretamente que só há possibilidade de
clareza quando a mente se encontra em silêncio. No Oriente, a finalidade da
meditação é produzir um estado mental capaz de controlar o pensamento, o que é
a mesma coisa que recitar constantemente uma oração para quietar a mente,
esperando-se que, nesse estado, se compreenderão os problemas do indivíduo.
Mas, a menos que sejam lançadas as bases, ou seja que se esteja livre do medo,
livre do sofrimento, da ansiedade e de todas as armadilhas que armamos para nós
mesmos, não vejo possibilidade de a mente ficar realmente quieta. Esta é uma das
coisas mais difíceis de transmitir. A comunicação entre nós requer, não só que
compreendais as palavras que estou empregando, mas também que ambas as
partes, vós e eu, estejam tensas ao mesmo tempo, nem um momento mais cedo
ou mais tarde, e sejam capazes de encontrar-se no mesmo nível. Essa comunicação
não é possível quando estais interpretando o que estais lendo de acordo com
vossos próprios conhecimentos, vosso prazer ou vossas opiniões, ou quando estais
fazendo um tremendo esforço para compreender.
Um dos piores tropeços na vida — parece-me — é essa luta constante para
alcançar, conseguir, adquirir. Desde a infância somos educados para adquirir e
realizar; as próprias células cerebrais criam e exigem esse padrão de realização, a
fim de terem segurança física, mas a segurança psicológica não se encontra no
campo da realização. Exigimos segurança em todas as nossas relações, atitudes e
atividades, mas, como já vimos, não existe realmente essa coisa chamada
segurança. Se descobris, por vós mesmo, que não há nenhuma forma de segurança
em qualquer espécie de relação — se percebeis que, psicologicamente, nada existe
de permanente, esse percebimento vos proporciona uma maneira totalmente
diferente de considerar a vida. É essencial, naturalmente, a segurança exterior —
teto, roupa, comida — mas essa segurança exterior é destruída pela exigência de
segurança psicológica.
O espaço e o silêncio são necessários para ultrapassarmos as limitações da
consciência, mas, como pode ficar quieta uma mente que está perenemente ativa
em seu próprio interesse? Podemos discipliná-la, controlá-la, moldá-la, mas essa
tortura não torna a mente quieta; só a torna embotada. Evidentemente, o mero
cultivo do ideal de ter uma mente quieta é sem valor, porque, quanto mais a
forçamos, mais estreita e estagnada ela se torna. Qualquer forma de controle, tal
como a repressão, só produz mais conflito. Assim, o controle e a disciplina exterior
não constituem o caminho certo, e tampouco tem algum valor uma vida não
disciplinada.
A vida de quase todos nós é exteriormente disciplinada pelas exigências da
sociedade, pela família, por nosso próprio sofrimento, nossa própria experiência,
pelo ajustamento a certos padrões ideológicos ou factuais, e essa forma de
disciplina é a coisa mais maléfica que existe. A disciplina deve ser sem controle,
sem repressão, sem nenhuma forma de medo. Como pode nascer essa disciplina?
Não é — primeiro disciplina, depois liberdade; a liberdade está bem no começo, e
não no fim. Compreender essa liberdade, que significa estar livre do ajustamento
que a disciplina impõe, é disciplina. O próprio ato de aprender é disciplina (aliás, a
própria raiz da palavra disciplina significa aprender), o próprio aprendizado
transforma-se em clareza. A compreensão de toda a natureza e estrutura do
controle, da repressão e da complacência, requer atenção. Não é necessário impor
disciplina para estudar, pois já o ato de estudar cria sua própria disciplina, sem
repressão de espécie alguma.
Para rejeitarmos a autoridade (referimo-nos à autoridade psicológica e não à
autoridade da lei), rejeitarmos a autoridade de todas as organizações religiosas, de
todas as tradições e da experiência, temos de ver por que, normalmente,
obedecemos; temos, com efeito, de estudar isso. Esse estado exige que nos
achemos livres da condenação, da justificação, da opinião, da aceitação. Ora, não
podemos aceitar a autoridade, e estudá-la; isso é impossível. Para se estudar toda
a estrutura psicológica da autoridade, cumpre exista liberdade dentro de nós
mesmos. E quando a estamos estudando, estamos rejeitando toda a sua estrutura,
e quando rejeitamos, essa própria rejeição é a luz da mente livre da autoridade. A
negação de tudo o que tem sido considerado valioso — como a disciplina externa, a
liderança, o idealismo — é estudá-lo; então, esse próprio ato de estudar não só é
disciplina, mas a negação dela, e a própria negação é um ato positivo. Assim,
estamos negando todas as coisas consideradas importantes para promover a
quietação da mente.
Como vemos, não é o controle que leva à quietação. Tampouco está quieta a
mente ao ter um objeto que de tal maneira a absorve que ela se perde nesse
objeto. Isso é como dar a uma criança um brinquedo interessante; a criança se
torna quieta, mas, tire-se-lhe o brinquedo e ela volta a fazer travessuras. Todos
nós temos os nossos brinquedos que nos absorvem, e, por isso, pensamos que
estamos muito quietos; mas, se um homem se dedica a uma certa forma de
atividade, científica, literária ou qualquer outra, o brinquedo apenas o absorve e ele
não está, em absoluto, totalmente quieto.
O único silêncio que conhecemos é o silêncio que vem quando cessa o
barulho, o silêncio que vem quando o pensamento cessa; mas isso não é silêncio. O
silêncio é coisa toda diferente, como a beleza, como o amor. Esse silêncio não é o,
produto de uma mente quieta, não é o produto de células cerebrais que, tendo
compreendido toda a estrutura, dizem: "Pelo amor de Deus, fica quieto!"; são,
então, as próprias células cerebrais que produzem o silêncio, e isso não é silêncio.
Tampouco é o silêncio produto da atenção em que o observador é o objeto
observado; não há então atrito, mas isso não é silêncio.
Estais esperando que eu vos descreva o que é esse silêncio, a fim de
poderdes compará-lo, interpretá-lo, levá-lo e enterrá-lo. Ele é indescritível. O que
pode ser descrito é o conhecido, e o estado livre do conhecido só pode tornar-se
existente quando há um morrer todos os dias para o conhecido, para os insultos, as
lisonjas, para todas as imagens que tendes formado, para todas as vossas
experiências: morrer todos os dias, para que as células cerebrais se tornem novas,
juvenis, inocentes. Mas, essa inocência, esse frescor, essa "qualidade" de ternura e
delicadeza não produz o amor; não é a "qualidade" da beleza ou do silêncio.
Aquele silêncio, que não é o silêncio do fim do barulho, é só um modesto
começo. Ê como passar por um túnel estreito para se chegar a um oceano imenso,
vasto, extenso — a um estado imensurável, atemporal. Mas isso não se pode
compreender verbalmente, a menos que se tenha compreendido toda a estrutura
da consciência e o significado do prazer, do sofrimento e do desespero, e as
próprias células cerebrais se tenham tornado quietas. Então, talvez alcanceis
aquele mistério que ninguém pode revelar-vos e nada pode destruir. Uma mente
viva é uma mente quieta, uma mente viva é uma mente que não tem centro algum
e, por conseguinte, não tem espaço nem tempo. Essa mente é ilimitada, e esta é a
única verdade, a única realidade.
XV
A Experiência — A Satisfação — A Dualidade — A Meditação.
Todos nós desejamos experiências de alguma natureza: a experiência
mística, a religiosa, a sexual, a experiência de possuir muito dinheiro, poder,
posição, domínio. Tornando-nos mais velhos, podemos ter acabado com as
exigências de nossos apetites físicos, porém exigimos experiências mais amplas,
profundas, significativas e tentamos, por vários meios, obtê-las: expandindo a
nossa consciência, por exemplo, o que com efeito é uma arte, ou tomando drogas
de toda espécie. Este é um velho expediente, existente desde tempos imemoriais —
mastigar um pedaço de folha ou experimentar o mais novo produto químico, a fim
de provocar uma alteração temporária na estrutura das células cerebrais, uma
sensibilidade maior e uma percepção mais intensa que proporcione um simulacro
da realidade. Essa exigência de sucessivas experiências denota a pobreza interior
do homem. Pensamos que por meio delas podemos fugir de nós mesmos, mas
essas experiências são condicionadas pelo que somos. Se a mente é mesquinha,
ciumenta, ansiosa, a pessoa poderá tomar a mais moderna droga, porém só verá
sua própria e insignificante criação, as projeções sem importância de seu próprio
fundo condicionado.
A maioria exige experiências completamente satisfatórias e duradouras, que
não possam ser destruídas pelo pensamento. Assim, atrás dessa exigência, está o
desejo de satisfação, e esse desejo de satisfação dita a experiência; por
conseguinte, temos de compreender não só essa matéria de satisfação, mas
também a coisa que se experimenta. Ter uma grande satisfação é experimentar um
grande prazer; quanto mais duradoura, profunda e ampla a experiência, tanto mais
agradável e, portanto, o prazer dita a forma de experiência que queremos; o prazer
é justamente a medida com a qual avaliamos a experiência. Tudo o que é
mensurável encontra-se nos limites do pensamento e tem a propriedade de criar a
ilusão. Podeis ter experiências maravilhosas e vos sentirdes completamente
frustrado. Tereis inevitavelmente visões em conformidade com vosso
condicionamento; vereis o Cristo ou o Buda ou outro qualquer em quem credes, e
quanto mais crente fordes, tanto mais intensas serão as vossas visões, as
projeções de vossas exigências e ânsias.
Assim, se na busca de uma coisa fundamental, tal como a verdade, o prazer
é a vossa medida, já projetastes o que a experiência será e, por conseguinte, ela já
não é válida.
Que entendemos por experiência? Há nela alguma coisa nova ou original? A
experiência é um feixe de memórias reagindo a um desafio, e só pode reagir de
acordo com o passado, e quanto mais hábil fordes no interpretar a experiência,
tanto mais reage esse passado. Assim, deveis questionar não só â experiência de
outrem, mas também a vossa própria. Se não reconheceis uma experiência, não há
experiência nenhuma. Toda experiência já foi experimentada, senão não a
reconheceríeis. Reconheceis que uma experiência é boa, má, bela, sagrada etc.,
conforme o vosso condicionamento e, por conseguinte, o reconhecimento de uma
experiência tem de ser inevitavelmente velho.
Quando exigimos uma experiência da realidade — como todos nós a
exigimos, não? — para experimentá-la, devemos conhecê-la e, tão logo a
reconhecemos, já a projetamos e, portanto, ela não é real, porquanto está ainda no
âmbito do pensamento e do tempo. Se o pensamento pode pensar sobre a
realidade, isso não pode ser a realidade. Não se pode reconhecer uma experiência
nova. É impossível. Só reconhecemos aquilo que já conhecemos e, por conseguinte,
quando dizemos que tivemos uma nova experiência, ela não é absolutamente nova.
A busca de mais experiência pela expansão da consciência, como se tem feito por
meio de várias drogas psicodélicas, está ainda no campo da consciência e, por
conseguinte, é muito limitada.
Descobrimos, pois, uma verdade fundamental, ou seja que a mente que está
a buscar e a ansiar por experiências mais amplas e profundas é uma mente muito
superficial e embotada, porquanto está sempre vivendo com suas memórias.
Agora, se não tivéssemos experiência alguma, que nos aconteceria?
Dependemos de experiências, de desafios, para nos mantermos despertos. Se não
houvesse conflito em nosso interior, se não houvesse mudanças, perturbações,
estaríamos todos dormindo a sono solto. Assim, os desafios são necessários à
maioria das pessoas; pensamos que, sem eles, a mente se tornará estúpida e
pesada e, por conseguinte, dependemos de um desafio, de uma experiência, para
termos mais animação, mais intensidade, para termos uma mente mais penetrante.
Mas, com efeito, essa dependência dos desafios e das experiências, para nos
conservarmos despertos, só torna a nossa mente mais embotada ainda; não nos
mantém realmente despertos. Assim, pergunto a mim mesmo: "É possível nos
mantermos totalmente despertos — não superficialmente, em alguns pontos de
meu ser, porém totalmente despertos, sem nenhum desafio ou experiência?" Isso
exige uma grande sensibilidade, tanto física como psicológica; significa que devo
estar livre de todas as exigências, porque, no momento em que exijo uma
experiência, a terei. E, para ficar livre da exigência de satisfação, torna-se
necessária uma investigação de mim mesmo e uma compreensão total da natureza
da exigência.
Toda exigência nasce da dualidade: "Sou infeliz, e tenho de ser feliz". Nessa
própria exigência — tenho de ser feliz — está a infelicidade. Quando uma pessoa se
esforça para ser boa, nesse próprio ser bom está o seu oposto — ser mau. Tudo o
que se afirma contém o seu próprio oposto; e o esforço que se faz para dominá-lo
torna mais forte aquilo contra que se luta. Quando exigis uma experiência da
verdade ou da realidade, essa própria exigência nasceu de vosso descontentamento
com o que ê; por conseguinte, a exigência cria o oposto. No oposto está o que foi.
Temos, pois, de ficar livres dessa incessante exigência, porquanto, do contrário,
nunca se acabará a galeria da dualidade.
Isso significa conhecer a si próprio de
maneira tão completa que a mente não mais se ponha a buscar.
A mente, então, não exige experiência; não pode pedir ou conhecer um
desafio; não diz "Estou dormindo", "Estou acordada". Ela é, toda ela, o que é. Só a
mente frustrada, limitada, superficial, condicionada, está sempre a buscar o mais.
Será possível, então, viver neste mundo sem o mais — sem essa perene
comparação? É, decerto, mas temos de descobri-lo por nós mesmos.
A investigação completa dessa questão é meditação. Esta palavra tem sido
empregada, tanto no Oriente como no Ocidente, de uma maneira muito lamentável.
Há diferentes escolas de meditação, diferentes métodos e sistemas. Certos
sistemas ensinam: "Observa os movimentos do dedo grande de teu pé, observa-o,
observa-o, observa-o"; outros advogam o ficar sentado numa certa postura,
respirando regularmente ou praticando o percebimento. Tudo isso é completamente
mecânico. Outro método dá-vos uma certa palavra, e vos diz que, se ficardes
repetindo essa palavra, ela vos proporcionará uma certa experiência fundamental,
extraordinária. Isso é puro absurdo. É uma forma de auto-hipnose. Se ficardes
repetindo indefinidamente Amém ou Hun ou Coca-Cola, é óbvio que tereis uma
certa experiência, porque, pela repetição, a mente se aquieta. Esse é um fenômeno
bem conhecido, praticado há milhares de anos na índia; chama-se Mantra Ioga.
Pela repetição pode-se induzir a mente a tornar-se branda e macia, entretanto ela
continua pequenina, vulgar, mesquinha. O mesmo efeito se obteria com apanhar no
jardim um pedaço de pau, colocá-lo sobre a lareira, e oferecer-lhe todos os dias
uma flor. Daí a um mês o estaríeis adorando, e se deixásseis de depositar uma flor
diante dele, isso seria um pecado.
Meditação não é seguir um sistema; não é repetição e imitação constantes.
Meditação não é concentração. Um dos truques de certos instrutores de meditação
é insistirem em que os seus discípulos aprendam a concentração, ou seja fixar a
mente num pensamento e expulsar todos os outros pensamentos. Essa é uma das
coisas mais estúpidas e mais maléficas, e qualquer colegial é capaz de fazê-la, se
obrigado a tal.
Significa que ficais empenhado numa contínua batalha entre a
obrigação de vos concentrardes, a um lado, e a vossa mente, a outro lado, que se
põe a fugir para outras e variadas coisas — quando, ao contrário, devemos estar
atentos a cada movimento da mente, aonde quer que ela vá. Quando vossa mente
foge, isso significa que estais interessado em alguma outra coisa.
A meditação exige uma mente sobremodo vigilante; a meditação é a
compreensão da totalidade da vida, na qual não existe mais nenhuma espécie de
fragmentação. Meditação não é controle do pensamento, porque, quando o
pensamento é controlado, gera conflito na mente; mas, quando se compreende a
estrutura e origem do pensamento, assunto que já examinamos, o pensamento
então não mais interfere. Essa compreensão da estrutura do pensar é sua própria
disciplina, que é meditação.
Meditação é estar cônscio de cada pensamento e de cada sentimento, nunca
dizer que ele é certo ou errado, porém simplesmente observar e acompanhar seu
movimento. Nessa vigilância, compreendeis o movimento total do pensamento e do
sentimento. E dessa vigilância vem o silêncio. O silêncio criado pelo pensamento é
estagnação, coisa morta, porém o silêncio que vem quando o pensamento
compreendeu a sua própria origem, sua própria natureza, compreendeu que
nenhum pensamento é livre, porém sempre velho — esse silêncio é meditação, na
qual o meditador está de todo ausente, porque a mente se esvaziou do passado.
Se lestes este livro durante uma hora, isso é meditação. Se apenas
recolhestes umas poucas palavras e juntastes algumas idéias, para sobre elas
refletirdes mais tarde, isso então já não é meditação. Meditação é um estado em
que a mente olha todas as coisas com toda a atenção e não apenas com algumas
partes dela. Ninguém pode ensinar-vos a prestar atenção. Se algum sistema vos
ensina a estar atento, estais então atento ao sistema, e isso não é atenção. A
meditação é uma das maiores artes da vida — talvez a maior de todas — mas não
se pode de modo nenhum aprendê-la de alguém — e essa é que é a sua beleza. Ela
não tem técnica e, por conseguinte, nenhuma autoridade. Quando estais
aprendendo a conhecer-vos realmente, quando vos observais, observais vossa
maneira de andar, de comer, o que dizeis, vossas tagarelices, vosso ódio, vosso
ciúme, se estais cônscio de tudo isso, em vós mesmo, sem nenhuma escolha, isso
faz parte da meditação.
Assim, a meditação pode verificar-se quando estais sentado num ônibus ou
passeando numa floresta toda de luz e de sombra, ou ouvindo o canto dos
pássaros, ou olhando o rosto de vossa mulher ou de vosso filho.
Na compreensão dada pela meditação há amor, e o amor não é produto de
sistemas, de hábitos, da observância de um método. O amor não pode ser cultivado
pelo pensamento. O amor pode, talvez, nascer quando há silêncio completo, um
silêncio no qual esteja de todo ausente o meditador; e a mente só é capaz de
silêncio quando compreende seu próprio movimento como pensamento e
sentimento. Para se compreender esse movimento de pensamento e de
sentimento, não pode haver condenação enquanto se observa. Observar dessa
maneira é disciplina, e essa qualidade de disciplina é fluida, livre, e assim não é a
disciplina do ajustamento.
XVI
A Revolução Total — A Mente Religiosa — A Energia — A Paixão.
Em todas as páginas deste livro, o que sempre nos interessou foi a
realização, em nós mesmos e, por conseguinte, em nossas vidas, de uma revolução
total fora da estrutura social ora existente. A sociedade, como atualmente está
constituída, é uma coisa horripilante, com suas intermináveis guerras de agressão
— não importa se agressão defensiva ou ofensiva.
Necessitamos de uma coisa
totalmente nova, de uma revolução, uma mutação na própria psique.
O velho
cérebro nenhuma possibilidade tem de resolver o problema humano das relações.
O velho cérebro é asiático, europeu, americano ou africano, e, assim, interrogamos
a nós mesmos se é possível operar-se uma mutação nas próprias células cerebrais.
Investiguemos, também, agora que chegamos a compreender-nos melhor, se
é possível a um ente humano que vive sua vida normal de cada dia, neste mundo
brutal, violento, cruel — um mundo que se está tornando cada vez mais eficiente e,
por conseguinte, cada vez mais cruel — se é possível a esse ente humano
promover uma revolução não só em suas relações externas, mas também em toda
a esfera do seu pensar, sentir, agir e reagir.
Todos os dias vemos ou lemos coisas aterradoras que estão acontecendo no
mundo, como resultado da violência no homem existente. Podeis dizer: "Eu nada
posso fazer a esse respeito", ou "Como posso influir no mundo?".
Eu acho que
podeis influir no mundo de uma maneira admirável se em vós mesmo não sois
violento, se viveis realmente, em cada dia, uma vida pacífica, uma vida sem
competição, sem ambição, sem inveja, uma vida não causadora de inimizade.
Pequenas chamas podem tornar-se em incêndio. Reduzimos o mundo ao seu atual
estado de caos com nossa atividade egocêntrica, nossos preconceitos, nosso
nacionalismo, e quando dizemos que nada podemos fazer a tal respeito, estamos
aceitando como inevitável a desordem em nós mesmos existente. Partimos o
mundo em fragmentos e, se nós mesmos estamos partidos, fragmentados, nossa
relação com o mundo será também fragmentária. Mas se, quando agimos, agimos
totalmente, então a nossa relação com o mundo passa por uma enorme revolução.
Afinal de contas, todo movimento que vale o esforço, toda ação de profunda
significação, tem de começar em cada um de nós. Eu tenho de mudar primeiro;
tenho de ver qual é a natureza e a estrutura de minha relação com o mundo — e
no próprio ato de ver está o fazer — por conseguinte, como ente humano que vive
neste mundo, devo criar uma coisa diferente, e essa coisa, a meu ver, é a mente
religiosa.
A mente religiosa difere completamente da mente que crê na religião. Não
podeis ser religioso e ao mesmo tempo hinduísta, muçulmano, cristão, budista. A
mente religiosa nada busca, não pode fazer experiências com a verdade. A verdade
não é uma certa coisa ditada por vosso prazer ou vossa dor, ou por vosso
condicionamento hinduísta — ou qualquer que seja a religião a que pertenceis. A
mente religiosa é um estado de espírito em que não há medo e, por conseguinte,
não há crença de espécie alguma, porém, tão-só o que ê, o que realmente é.
Na mente religiosa há aquele estado de silêncio que já examinamos, que não
é produzido pelo pensamento, mas é oriundo do percebimento, ou seja da
meditação com completa ausência do meditador. Nesse silêncio há um estado de
energia isento de conflito. Energia é ação e movimento. Toda ação é movimento e
toda ação é energia. Todo desejo é energia. Todo sentimento é energia, todo
pensamento é energia. Todo viver é energia. Toda vida é energia. Se se deixa
essa energia fluir sem nenhuma contradição, nenhum atrito, nenhum conflito, ela é
então ilimitada, infinita. Quando não há atrito, não há limites à energia. O atrito é
que dá limites à energia. Assim, percebido isso, por que é que o ente humano
sempre introduz o atrito na energia? Por que cria atrito, nesse movimento a que
chamamos vida? A energia pura, a energia ilimitada é para ele apenas uma idéia?
Não tem realidade?
Necessitamos de energia, não só para promovermos a revolução total em nós
mesmos, mas também para podermos investigar, olhar, atuar. E, enquanto houver
atrito, de qualquer natureza, em qualquer de nossas relações, seja entre marido e
mulher, seja entre um homem e outro, entre uma e outra comunidade, ou uma e
outra nação, ou uma ideologia e outra — se há qualquer atrito, interior ou exterior,
em qualquer forma, por mais sutil que seja — há desperdício de energia.
Enquanto houver um intervalo de tempo entre o observador e a coisa
observada, esse intervalo criará atrito e, por conseguinte, desperdício de energia.
Essa energia se acumula até o mais alto grau quando o observador é a coisa
observada, e nisso não há nenhum intervalo de tempo. Haverá então energia sem
motivo, a qual encontrará seu próprio canal de ação, porque, então, o EU não
existe.
Necessitamos de uma enorme abundância de energia para compreender a
confusão em que estamos vivendo, e o sentimento "tenho de compreender" produz
a vitalidade necessária para a compreensão. Mas, o descobrir, o investigar, implica
o tempo, e, como já vimos, o gradual descondicionamento da mente não é a
maneira certa de proceder.
O tempo também não é o caminho certo. Quer sejamos velhos, quer jovens,
é agora que o integral processo da vida pode ser levado a uma dimensão diferente.
A busca do oposto do que somos não é, tampouco, o caminho certo e também não
o é a disciplina artificial imposta por um sistema, por um instrutor, um filósofo ou
sacerdote; tudo isso é muito infantil. Ao percebermos isso, perguntamos a nós
mesmos: "Será possível libertarmo-nos imediatamente desta secular e pesada
carga de condicionamento, sem cairmos noutro condicionamento — sermos livres,
com a mente completamente nova, sensível, viva, alertada, intensa, capaz?". Eis o
nosso problema. Não há outro problema, porque, quando a mente se renova é
capaz de enfrentar e resolver qualquer problema, É essa a única pergunta que
temos de fazer a nós mesmos.
Mas, nós não a fazemos. Preferimos ser ensinados. Um dos aspectos mais
curiosos da estrutura de nossa psique é o querermos, todos nós, ser ensinados,
porquanto somos o resultado de uma propaganda de dez mil anos. Queremos ver o
nosso modo de pensar confirmado e corroborado por outrem, ao passo que fazer
uma pergunta é fazê-la a nós mesmos. O que eu digo tem muito pouco valor. Vós o
esquecereis no mesmo instante em que fechardes este livro, ou vos lembrareis de
algumas frases, as quais ficareis repetindo, ou comparareis o que aqui lestes com o
que lestes noutro livro; não quereis olhar de frente a vossa própria vida. E só ela é
que importa: a vossa vida, vós mesmo, vossa mediocridade, vossa superficialidade,
vossa brutalidade, vossa violência, vossa avidez, vossa ambição, vossa diária
agonia e infinito sofrer; é isso que tendes de compreender, e ninguém, nem na
terra, nem no céu, pode salvar-vos, senão vós mesmo.
Vendo tudo o que se passa em vossa vida diária, em vossas atividades
cotidianas, quando escreveis, quando falais, quando sais de carro ou passeais a sós
numa floresta, podeis, num só alento, num só olhar, conhecer a vós mesmo, muito
simplesmente, tal como sois? Quando vos conhecerdes como sois, compreendereis
então toda a estrutura da luta do homem — seus embustes, suas hipocrisias, sua
busca. Para tanto, tendes de ser sumamente honesto perante vós mesmo, em todo
o vosso ser. Quando agis de acordo com vossos princípios, estais sendo desonesto,
porque, quando agis conforme o que julgais ser correto, não sois o que sois. É uma
coisa brutal — ter ideais. Se tendes ideais, crenças ou princípios de qualquer
espécie, não podeis de modo nenhum olhar-vos diretamente. Portanto, podeis ser
completamente negativo, manter-vos inteiramente tranqüilo, sem pensar, sem
temer, e ao mesmo tempo estar extraordinariamente, apaixonadamente, vivo?
Aquele estado em que a mente já não é capaz de lutar constitui a verdadeira
mente religiosa, e, nesse estado mental, podeis encontrar-vos com essa coisa
denominada verdade ou realidade ou bem-aventurança ou Deus ou beleza ou amor.
Essa coisa não pode ser chamada. Por favor, compreendei esse simples fato. Ela
não pode ser chamada, não pode ser buscada, porque vossa mente é tão estúpida
e limitada, vossas emoções tão vulgares, vossa maneira de vida tão confusa, que
aquela imensidade, aquela coisa ilimitada não pode ser chamada a vossa pequena
casa, ao insignificante canto em que viveis, tão pisado e cuspido. Não podeis
chamá-la. Para a chamardes, deveis conhecê-la, e vós não podeis conhecê-la. No
momento em que alguém, não importa quem, diz: "Sei" — não sabe. No momento
em que dizeis que achastes, não achastes. Se dizeis que a experimentastes, nunca
a experimentastes. Tudo isso são maneiras de explorar um homem — vosso amigo
ou inimigo.
Perguntamos então, a nós mesmos, se é possível encontrar-nos com essa
coisa sem a chamarmos, sem a esperarmos, sem a buscarmos ou explorarmos —
se é possível ela "acontecer", tal como a brisa fresca que entra na sala quando
deixamos a janela aberta. Não podeis convidar o vento a entrar, mas tendes de
deixar aberta a janela — o que não significa ficar num estado de espera; essa é
uma outra maneira de nos enganarmos. Não significa que devais "abrir-vos" para
receber; essa é uma outra forma de pensamento.
Nunca perguntastes a vós mesmo por que aos entes humanos falta essa
coisa? Eles geram filhos, satisfazem o sexo, têm ternuras, a capacidade de
compartilhar as coisas num estado de companheirismo, de amizade, de
camaradagem, mas essa coisa — por que razão não a tem? Nunca vos ocorreu,
num momento de folga — ao andardes sozinho por uma rua imunda, ao viajardes
num ônibus, ao passardes umas férias à beira-mar, ao passeardes numa floresta,
entre os pássaros, as árvores, os regatos, os animais selvagens — nunca vos
ocorreu perguntar por que razão o homem, que vive há milhões e milhões de anos,
ainda não possui essa coisa, essa flor maravilhosa e imarcescível; por que razão
vós, um ente humano, dotado de tanta capacidade, tanta inteligência, tanta
sutileza; vós, que tanto competis, que possuis uma tão maravilhosa tecnologia, que
sois capaz de elevar-vos aos espaços e de descer ao fundo do mar, de inventar
fantásticos cérebros eletrônicos — por que razão não possuis essa única coisa
verdadeiramente importante? Não sei se alguma vez já considerastes seriamente
esta questão: Por que está vazio o vosso coração?
Que responderíeis se fizésseis a vós mesmo essa pergunta; qual seria vossa
resposta imediata, inequívoca, sem sutilezas? Vossa resposta deveria corresponder
à intensidade com que fizésseis a pergunta, e ao vosso sentimento de urgência;
mas vós não sois intenso, nem sentis aquela urgência, e isso porque não tendes
energia, a energia que é paixão — pois nenhuma verdade se pode descobrir sem
paixão — paixão impelida por intenso fervor, paixão sem nenhum desejo secreto. A
paixão é uma coisa um tanto assustadora, porque, se tendes paixão, não sabeis
aonde ela vos levará.
Assim, será o medo a razão por que não possuis a energia daquela paixão,
para descobrirdes por vós mesmo por que vos falta aquela essência do amor, por
que não arde em vosso coração essa chama? Se examinastes com muita atenção
vossa mente e vosso coração, sabereis por que não a tendes. Se sois apaixonado,
no descobrir por que não a possuis, ela se vos mostrará. Só pela negação completa,
a mais alta forma da paixão, torna-se existente aquela coisa que é õ amor. Como a
humildade, não podeis cultivar o amor. A humildade vem à existência com a total
cessação da presunção — e, então, jamais sabereis o que é ser humilde. O homem
que sabe o que significa ter humildade é um homem vaidoso. Do mesmo modo,
quando aplicais vossa mente e vosso coração, vossos nervos, vossos olhos, todo o
vosso ser, a descobrir o caminho da vida, a ver o que realmente é, e a ultrapassálo, a rejeitar total e completamente a vida que hoje vivemos — nessa negação do
maléfico, do brutal, torna-se existente a outra coisa. E nunca o sabereis. O homem
que sabe que está em silêncio, o homem que sabe que ama, não sabe o que é o
amor ou o que é o silêncio.
KRISHNAMURTI
Jiddu Krishnamurti nasceu no Sul da Índia em 1895 e foi educado na
Inglaterra. Embora não tenha ligações com nenhuma organização filosóficoreligiosa nem se apresente com títulos universitários, vem fazendo conferências
para grupos de líderes intelectuais nas maiores cidades do mundo, há já várias
dezenas de anos.
Além dos volumes editados pela Cultrix, grande número de publicações, de
palestras e conferências suas foram lançadas em português, com êxito igual ao
obtido quando publicadas em espanhol, francês, alemão, holandês, finlandês e
vários outros idiomas, além do original inglês.
Obras de Krishnamurti publicadas pela Cultrix:
O Começo do Aprendizado
Comentários Sobre o Viver
A Cultura e o Problema Humano
O Descobrimento do Amor
Diálogos Sobre a Vida
Diário de Krishnamurti
A Educação e o Significado da Vida
Fora da Violência
O Homem e seus Desejos em Conflito
O Homem Livre
A Importância da Transformação
liberte-se do Passado
A Mente sem Medo
O Mistério da Compreensão
A Mutação Interior
Uma Nova Maneira de Agir
Novos Roteiros em Educação
Palestras com Estudantes Americanos
O Passo Decisivo
Perguntas e Respostas
A Primeira e Ultima Liberdade
Que Estamos Buscando?
A Rede do Pensamento
Reflexões Sobre a Vida
A Suprema Realização
Obras de Krishnamurti publicadas pela Instituição Cultural Krishnamurti:
A Essência da Maturidade
Onde Está a Bem-Aventurança
O Novo Ente Humano
A Questão do Impossível
A Outra Margem do Caminho
A Luz que não se Apaga
Como Viver Neste Mundo
A Libertação dos Condicionamentos
Encontro com o Eterno
O Despertar da Sensibilidade
O Vôo da Águia