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Da opressão para a libertação: um novo olhar ao princípio reformador do sola fide, numa perspectiva africana From oppression to liberation: a new look at the reformer principle of sola fide, from an African perspective Emiliano Jamba António João1 Resumo: O presente artigo tem como escopo essencial discutir o princípio Reformador do sola fide fide,, numa perspectiva africana. Ele é fruto das discussões feitas no GT-Teologia Teologia e Negritude em Campinas. A sua relevância surge por meio dos vários questionamentos que irmãos(as) negros cristãos têm feito ao longo de suas caminhadas na fé: da necessidade de pertencer a uma religião de matriz afro para se sentir realmente religados com o Deus criador de todas as coisas que a religião cristã prega, já que não conseguem enxergar no cristianismo ou na sua crença a Deus (cristão) elementos identitários que os perm permita ita servir a Deus em toda sua plenitude. Daí a necessidade de lançar um novo olhar sobre esse princípio a fim de ressignificá ressignificálo não só a realidade do negro(a) africano(a) como também do negro(a) cristão na diáspora. Palavras chaves:: afrodescendente. Teologia; Negritude; Decolonialidade; Cristianismo; Abstract: The present article has essential aim to discuss sola fide reformer principle, from an African perspective. It is the result of discussions in GT GT-Theology and Negritude in Campinas. Its relevance arises through the various questions that Christian black brothers and sisters have been making throughout their faith walks: from the need to belong to an Afro Afro-Christian Christian religion to feel really connected with the God who created all things the Christian rreligion eligion preaches. Since they can not see in Christianity or their belief in God (Christian) identity elements that allow them to serve God in all its fullness. It gives us the need to take a fresh look at this principle in order to reaffirm not only the re reality ality of the black African but also of the black Christian in diaspora. Key words: Theology; Blackness; Decoloniality; Christianity; afrodescendant Introdução Introduzimos este textoapresentando algumas conceituações preliminarespara melhor compreensão da temática aqui proposta, sobre o princípiodo "sola fide" e sobre o contexto africano queserão retomados e analisados com maior solidez no 1Mestrando em História Social (Unicamp); graduado em Teologia (Faculdade Nazarena do Brasil), e graduando em Direito (Universidade Paulista). Membro do GT GT- Teologia e Negritude Negr (FTL-campinas). Contato: emilianojamba1@gmail.com egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 313 decorrer do texto (que (querr no que concerne a este princípio, quer em relação à historiografia africana). Sem querermos nos precipitar em conceituações, vale elucidar de antemão que o princípio do Sola Fide foi cunhado no sec.XVI, durante a Reforma Protestante,2enquadrando-sedentro de outros quatros princípios fundamentais dos reformistas, que foram denominados os "Cinco Solas": Sola fide somente a fé; Sola scriptura - somente a Escritura; Solus Christus - somente Cristo; Sola gratia - somente a graça; Soli Deo gloria - glória somente ente a Deus.Esses princípios tornaram-se se conhecidos como lemas de protestos contra os abusos do clero, evoluindo para uma proposta de Reforma no catolicismo romano a partir da mudança em diversos pontos da doutrina da Igreja Católica Romana. Tais movimentoss entendiam os princípios como sendo a base de um retorno às escrituras sagradas, para tal tinham como ponto de partida as críticas às vendas de indulgências da Igreja3. Relativamente aonosso objeto de estudo, o princípio Sola Fide se insere no rol dos debates ebates sistemáticos e doutrinários da teologia cristã que tiveram lugar ao longo da história da Igreja Cristã, correspondendo a Fé como meio de salvação. E é nesta perspetiva que nos propusemos analisar a aplicabilidade deste princípio no contexto africano.. Todavia, a análise seria superficial se não fizéssemos um levantamento da historiografia africana, ainda que de forma panorâmica. Pois, falar de história africana se configura num verdadeiro desafio para qualquer um que se propõe a fazê fazêlo, devido ao fato o da problematização da história. Tal problematização tem aver com a cronologização da história, bem como com as fontes históricas que deixam a desejar em sua veracidade, uma vez que pendem sempre para o ponto de vista de um dos lados. No entanto, até que não se prove o contrário, podemos aceitar estas fontes conforme nos são apresentadas e trabalhar para aperfeiçoá aperfeiçoá--las. Indo por esse caminho, o professor Elíkia M”Bokolo nos aconselha que "é preciso (...) aceitar a África tal como no-la la dão: um mistério com compacto, pacto, no qual por falta de meios, por preguiça ou de propósito deliberado, o conhecimento de então só abre hesitantes e raras brechas (2012, p.102). É dentro destas brechas históricas que iremos articular o presente artigo. foi um movimento reformista cristão do século XVI liderado por Martinho Lutero, simbolizado pela publicação de suas 95 Teses em 31 de outubro de 1517 na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, Alemanha.. 3 A indulgência é uma política da igreja, que sim simplificando plificando significava pagar pelas remissões dos pecados. 2 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 314 Esta revisão historiográfica se será rá crucial neste trabalho pelas frequentes associações feitasentre o cristianismo e colonizaçãona África, o que não é de todo errado, contudo, se formos fiéis à história, veremos que esta premissa não é verdadeira. O cristianismo na África é fruto de um lo longo ngo processo de relações ora pacíficas ora violentas,destacando violentas,destacando-se se em larga escala a região Norte, pois foi a que mais relacionamento teve com o cristianismo primitivo. Numa primeira fase tais relacionamentos ocorreram sobretudo com o judaísmo, vindo a est estreitar-se posteriormente com o cristianismo e o islamismo. Conforme o Padre John Baur, "O cristianismo em África não é um acontecimento recente, nem muito menos um subproduto do colonialismo – As suas raízes remontam ao próprio tempo dos Apóstolos" (2014, p.11). Porém de algum tempo para cá a história do cristianismo na África tem-se se configurado obscura, nas palavras de Baur “é, por muitos séculos, como um fio de água que vai correndo através do deserto" (2014, p.11)4. A pertinência deste artigo se encontr encontra a no fato de que se percebem certas dificuldades e crises identitárias na compreensão da cristandade relacionadaao continente africano. Assim,pensar a respeito da fé é o mesmo que adentrar em um assunto cristológico-eclesial, eclesial, de modo que esta (a fé) "se en encarne carne no ser, na cultura e na civilização dos diferentes povos e continentes numa contínua e mútua dialética: a cultura que é purificada e enriquecida pela fé; a fé que é enriquecida pela cultura" (PAULO, 2013 p.13). Em outras palavras, a fé se configura eem m um pensar libertador, pensamento este que é a priori a peça condutora da ação redentora de Cristo sobre a sua criação. Segundo Calvino, se torna extremamente importante estudar acerca da fé, pois, "não basta opinião qualquer ou ainda uma igual convicção" desta feita a verdadeira propriedade da fé deve ser investigada por nós – e com o maior cuidado e empenho" (CALVINO, 2009, p.22). A questão doSola Sola Fide é um tema que apresenta elementos de continuidade que atravessam toda história da igreja no proce processo sso do ato redentor da humanidade e isto fundamenta a legitimidade para repensar o oSola Fide não só no campo Reformador como também no âmbito da temática aqui apresentada.Ainda que o teor Em 697 os árabes conquistaram Catargo que até então era considerada a última fortaleza da fé cristã, contudo houve sempre uma cultura cristã florescente nas montanhas da Etiópia que se igualava a cultura da Europa medieval até o momento que foi foi-se se desfazendo devido aos constantes ataques jihadistas isto em 1527. Deste ponto em diante seguiram seguiram-se se as corridas de expansões territoriais colonialistas ao passo que disputavam disputavam-se também as expansões religiosas giosas que ao nosso ver não se configuraram como benéficas para os africanos, já que "trocaram "trocaram-se se os pés pelas mãos", ou seja, as prioridades do evangelho (BAUR, 2014). 4 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 315 deste trabalho seja histórico, este contributo será mais de caráter tteológico porque tem como finalidade descobrir até que ponto um meio de graça e salvação que é a fé veio se tornar mecanismo de opressão. Tendo em vista isso, a nossa temática procurará responder uma questão que se configura no eixo condutor deste trabalho: se a salvação é pela fé por qual motivo isso não valeu para o negro africano? 1. A Reforma protestante e o princípio do Sola Fide Para entender a Reforma protestante e a questão da fé é necessário entender o fundamento do cristianismo, bem como o contexto vivenciado pelos Reformadores. A respeito do cristianismo, Harvey Cox argumenta dizendo que o cristianismo pode ser definido como um movimento do Espírito mediado pela Fé, pela esperança e pela confiança no reino anunciado por Cristo. Conforme Cox: O cristianismo tianismo irrompeu na história como movimento do Espírito, animado pela Fé - pela esperança e pela confiança numa era de Shalom, demonstrada e anunciada por Jesus. Esse "Reino de Deus" incluiria tanto judeus quanto gentios. Os pobres seriam redimidos, e os forasteiros, trazidos para dentro. Por quase três séculos a era da fé prosperou. Então, porém, num tempo relativamente curto, a fé nesse novo Reino inclusivo foi desaparecendo, e aquilo que tinha começado como vigoroso movimento popular coagulou coagulou-se num edifício fício excessivamente pesado no topo definido por crenças obrigatórias aplicadas por uma hierarquia5. Tendo em vista esse desvio da fé, vários teólogos levantaram levantaram-se tentando trazer a razão de tal degeneração do cristianismo. Assim haverá vezes oriundas de vários segmentos e épocas tentando explicar este fenômeno: O Reformador Protestante Martinho Lutero (1582 (1582-1546) 1546) julgava que aquilo que ele chamava de "queda da igreja" coincidia com a ascensão do papado. Outros Reformadores suspeitavam de que ela tinha começado muito antes. Os anabatistas do século XVI afirmavam que os cristãos tinham feito um desvio fatal quando, sob Constantino e seus sucessores, começaram a tornar tornar-se se soldados. Alguns dos primeiros quacres julgavam que o passo em falso aconteceu quando as escrituras foram redigidas sufocando deste modo o fluxo livre do Espírito. Teólogos gregos e russos, dizem que o desvio aconteceu por volta do ano 1000, quando a Igreja Católica Romana acelerou sua atitude desdenhosa em relação à Igreja Oriental, culminando nando na excomunhão do papa pelo patriarca ortodoxo de Constantinopla em 1054. Os católicos, é claro, têm uma visão mais positiva da Era da crença. Eles afirmam que os problemas começaram com as primeiras "heresias", que persistiram ao longo do período med medieval ieval e culminaram na Reforma6. Embora hajam muitas divergências, percebe percebe-se se que em quase todos os discursos se confirma que em algum momento da história algo deu muito errado. As 5 Paulo, Paulus, 2015 p. 103,103 COX, Harvey. O futuro da Fé, São Paulo 6 COX, 2015, pp. 103,104 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 316 mudanças epistêmicas da Fé, começaram a ocorrer um pouco depois da ascensão de Jesus para o Pai, solidificou solidificou-se se nos séculos III e IV com o surgimento das hierarquias e as fabricações de Credos pelos patriarcas e a consequente exigência dos mesmos aos povos leigos, que mal os entendiam, uma vez que, muito dos credos eram carregado carregados de linguagem excessivamente grega. Segundo Cox: Ao entrar no mundo grego, o terreno de Platão, os cristãos primitivos misturaram ideias bíblicas com um arcabouço grego que muitas vezes distorcia seu sentido original. Eles tentaram inventar uma filosofia cristã para tomar o lugar da pagã, e o cristianismo pouco a pouco passou da Fé às ideias. O triunfo da elite clerical sob Constantino cimentou essa perversão na estrutura da Igreja7. Posteriormente "a composição de Credos rapidamente tornou tornou-se um hábito uns diriam um vício e continuou desde então, estabelecendo as bases de todos os fundamentalismos cristãos posteriores"8. Seguem-se se os credos da era medieval e as ferrenhas disputas do lugar da "verdade".No período da Reforma houve várias formulações conflitantes onflitantes incluindo algumas formulações contraditórias de crenças, Cox irá nesta linha de pensamento ao dizer que: Nos anos da Era da Crença, o resultado líquido dessa criação compulsiva de credos foi que a esperança de um mundo diferente que tinha dado vida ao cristianismo primitivo desvaneceu. Os teólogos católicos identificavam o Reino de Deus com sua Igreja. Muitos protestantes jogavam jogavam-no no para um além. Enquanto isso, sistemas de crenças obrigatórios quase eclipsaram fé e a esperança9. Assim, sim, o século XVI se configura como um período diferenciado na história da humanidade e sobretudo do cristianismo ocidental, pois foi nesta época que surgiu o movimento confessional no seio da Igreja, tal como argumenta Wilhelm Wachholz, "a partir do século o XVI, todas as igrejas ocidentais, tanto católico católico-romana como as protestantes, tornaram-se se igrejas confessionais; elas elaboraram confissões, fixando assim seus princípios teológicos e confessionais"10. Tais denominações foram, ao longo do tempo, se distan distanciando ciando dos princípios dos Reformadores, do Sola Fide, e essa análise é o que pretendemos apresentar a seguir. O princípio do Sola Fide pode ser entendido como um grito a respeito do fundamento da salvação. Para os Reformadores era um grito da libertação da Fé ao sistema institucional vigente. Tinham, deste modo, como objetivo retirar a 7 COX, 2015, p.281 8 COX, 2015, p.104 9COX, 10 2015, p.105 Reforma, 2010, p.11 WACHHOLZ, Wilhelm. História e Teologia da Reforma egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 317 centralidade da fé nas instituições vigentes e direc direcioná-la la ao Cristo, pois o pensamento da época era de que não existia salvação fora da igreja (institucionalizada), todavia esses Reformadores acreditavam que a salvação se dá gratuitamente por meio da fé em Cristo e isto era algo que nenhuma instituição poderia oderia deter ou reter. Conforme Calvino, a Fé genuína é aquela que "tem olhos para o Deus uno" [...] mas que também "dá a conhecer aquele a quem o Pai enviou, Jesus Cristo"11. Segundo o mesmo, comentando Agostinho irá dizer que: "nos é necessário saber aondee e por onde se deve ir" concluindo desta feita que "o caminho mais seguro contra todos os erros é aquele que é Deus e é homem. Porque Deus é aquele para onde vamos e o homem é aquele por onde vamos, e somente em Cristo se encontra um e outro"12 A época dos Reformadores se caracterizava deste modo, como uma época de crises: crises teológicas, sociais, culturais e políticas. É neste ambiente que irão surgir os Reformadores com o intuito de colocar tudo no devido lugar. Em relação a isso, um princípio bastante debatido foi a respeito da Fé como meio de salvação (Sola Fide). 1.1 A teologia dos Reformadores segundo o princípio do Sola Fide Durante muito tempo as discussões feitas em relação a Lutero, bem como a Reforma protestante em geral, eram restritas ao p período eríodo em que se deu tal movimento. Todavia pensar assim é um tanto reducionista, já que se perde o significado profundo do movimento Reformador para a história da humanidade que perpassa a mesma história. Alguns consideram Lutero como o pai da Igreja, co contudo o mesmo não se considerava da mesma forma já que para ele se parecia mais "com um profeta" do que um pai da igreja13. Entendê-lo lo nesta perspetiva proporciona maior manobra de reflexão a respeito de Martinho Lutero. Todavia, deve ser aqui dito, que vá várias rias foram também as abordagens que se fizeram a respeito de Lutero; para alguns faziam ligação com o nazismo, outros viam nele semelhanças entre o marxismo e seu engajamento na luta 11 CALVINO, João. A Instituição da religião Cristã. São Paulo, Unesp, 2009 p.23 12 Agostinho Apud CALVINO, João. A Instituição da religião Cristã. São Paulo, Unesp, 2009 p.23 13 BARTH, 2007 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 318 dos camponeses. "Esporadicamente Lutero é mencionado quando se trata de assuntos ssuntos como o sacrifício e eucaristia ou, então na exposição da história do cristianismo"14. Para Heiler, Lutero é "alguém que faz parte, com o seu sim e o seu não, da história da piedade"15, outros ainda o consideram como "um grande estorvo"16, enquanto que outros nem sequer o mencionam na história da humanidade.17 Tais abordagens são uma tentativa de explicar as situações atuais, contudo jamais se deve esquecer que Lutero, bem como os Reformadores no geral (Zwingli, Calvino, os Valdenses com Pedro Valdo, ou ainda da própria Contra-Reforma Contra Católica), fizeram todos parte de um contexto e discutiram algumas problemáticas dos seus tempo, e outras simplesmente as deixaram passar, por receio talvez (que é muito difícil que o seja, devido a seus perfis críticos), o ou u porque era uma situação cômoda para a época (como muitos afirmam: não eram as perguntas da época). Contudo, seus princípios se configuram de extrema importância para o estudo em questão. Estes homens ao lado de outros Reformadores mudariam o rumo da cosmovisão, ovisão, quer de reis, papas ou leigos. Souberam posicionar posicionar-se se para dar seus sins e nãos, na hora adequada. Segundo Gottfied Maron, "Lutero foi uma personagem da história da humanidade e, como tal, o seu tempo ainda está à sua frente".Na perspetiva do mesmo, Lutero, "teve e ainda deve ter um papel importante, até decisivo, na história da liberdade humana"18. Para Hans –Martin Barth, Se o evangelho é válido para todas as pessoas e se a Reforma de Lutero decididamente tem algo a ver com esse Evangelho, a teologia de Lutero deve ser explorada quanto a uma possível eficácia global. Para tanto, são necessárias quatro tarefas: 1) a teologia de Lutero deve ser libertada dos trilhos das questões tradicionais e levada para o campo aberto da discussão religiosa e social atual; 2) ela deve ser exposta com uma postura crítica diante de seus evidentes erros de conexão; 3) ela deve ser des des-provincializada; lizada; e 4) ela deve receber uma formulação capaz de conectar conectar-se se globalmente. Os dois últimos aspectos são os mais importantes. 19 14 BARTH, 2007, p.131 15Ibdm 16Leukelapud BARTH, p.131 17 BARTH, 2007 18 "Apud BARTH, 2007, p.124. 19BARTH, 2007, p.125 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 319 É no âmbito antropológico que se achará a melhor compreensão sobre a justificação pela fé de Martinho Lutero (1483 – 1546), uma vez que, para ele, a justificação pela fé era uma prerrogativa para todos seres humanos sem exceção. Já que, conforme o apóstolo Paulo, "todos pecaram e destituídos estão da graça de Deus"20. Assim, várias vezes empregava a expressão "todo ser humano” ccom o intuito de "combater o dualismo aristotélico de corpo e alma"21. Ele ainda entendia o pecado original como a corrupção real da natureza humana que exercia força sobre o mesmo até a sua morte.22 Para ele, o ser humano não tem só pecado mas é em si mesmo pecado, ele é tão pecador que por si só não tem escapatória da condenação futura, caso para dizer novamente conforme o apóstolo Paulo "Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?"23 A partir dessa concepção antropológica, "segundo a q qual ual o ser humano é completamente corrupto, conclui que não existe livre arbítrio para o bem ou mal, no que se refere à salvação. Logo, a salvação pressupõe graça absoluta mediante a fé"24 sendo o pecado original o afastamento do Ser humano de Deus ou em out outras palavras descrença que se configura o primeiro pecado na história da humanidade25. Assim, se da descrença advém a condenação, da fé advém a salvação. Desta maneira, o ser humano somente será justificado quando aceitar a palavra, ceder-se se a ela e sujeita sujeitar-se se com humildade. Ceder significa dar o devido lugar que Deus merece, reconhecer a condição humana e deixar Deus ser Deus26. Uma vez feito isso, o ser humano agiria em resposta a essa dádiva de Deus livre e espontaneamente conforme o mesmo Lutero diz, "Um cristão é Senhor e livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém ao passo que ele (o cristão) é ao mesmo tempo servidor de todas as coisas e sujeito a todos.27 No seu livro da liberdade cristã, Lutero explica o que se configura a verdadeira lib liberdade: erdade: "Eis a liberdade cristã: a fé somente, que não nos converte em gente ansiosa ou em pessoas, que cometem o mal, 20 ROMANOS cp.3:23 21 WACHHOLZ, 2010, p.92 22 WACHHOLZ, 2010, p.92 23 ROMANOS 7:24 24 WACHHOLZ, 2010, p.92 25 GEN 3:1 SS 26 WACHHOLZ, 2010 27 LUTERO APUD WACHHOLZ, 2010, p.93 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 320 mas, antes, em pessoas que não necessitam de obra alguma para tornarem tornarem-se agradáveis a Deus e bem aventuradas"28. Semelhantemente outr outro o Reformador como Filipe Melanchthon, (1497 – 1560) contemporâneo e colaborador de Lutero, acreditava também que "o ser humano não tem livre arbítrio sobre questões espirituais e que por isso não pode contribuir para a sua salvação"29 Para ele o princípio do amor ao próximo se configura no fundamento da fé. Já que fé e amor são indissociáveis. Todavia esta fé e este amor são provocados no coração do ser humano mediante a Ação do Espírito Santo de Deus e não mediante uma vontade humana deliberada. Portanto "pelo amor se reconhecerá a verdadeira fé"30, o que fará com que "a pessoa atingida pela graça redentora de Deus testemunhe a partir de sua fé"31. Segundo Wachholz, Lutero e Melanchthon, apesar de suas semelhanças, diferenciam diferenciam-se se nos detalhes, uma vez que, para o primeiro "é necessário viver intensamente a fé para então compreendê compreendê-la"32 e para o segundo "fé é o conhecimento de todos artigos de fé, e a concordância de todos os seus conteúdos."33 Ainda para outro Reformador alemão, Martim Bucer (1491 - 1551), a fé seria uma convicção e não apenas uma concordância. Este teólogo buscava seus argumentos no termo grego pistis que uma vez traduzido para o latim significaria persuasio.. "Então, a fé é a convicção de que Deus é autor de todas as coisas, fonte do bem, criador, iador, salvador. Fé é, portanto, a certeza de que Cristo é nosso salvador e regenerador". Semelhantemente, Bucer compreendia também, que Deus é o autor da própria fé, Não sendo, portanto, causada por esforço humano. Assim, a eficácia da fé se encontra no fato ato do "justo viver pela fé".34 Um outro grande teólogo desta época que muito discorreu sobre este assunto foi o francês João Calvino (1509 – 1564). Para poder entendê-lo lo tem que se entender ao mesmo tempo a sua antropologia, pois ele compreendia que toda pessoa é essencialmente religiosa e com a queda não se apaga a sua "semente religiosa"35, ou seja, sua pendência para o divino. Todavia esse conhecimento natural a respeito de 28 LUTERO, Martinho. Da Liberdade Cristã. São Leopoldo, Sinodal, 1998 p.17 29 WACHHOLZ, 2010, P.94 WACHHOLZ, 2010, p.95 WACHHOLZ, 2010, p.95 32 WACHHOLZ, 2010, p.95 33 WACHHOLZ, 2010, p.95 34 HEBREUS 10:20 35 CALVINO APUD WACHHOLZ, 2010, p.95 30 31 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 321 Deus não é suficiente para ser salvo uma vez que ele se encontra corrompido. Assi Assim, quando ele enxerga sua pequenez então volta volta-se se para Deus para poder experimentar a majestade de Deus. Conforme Calvino, nisto se encontra a verdadeira sabedoria: No conhecimento de Deus e no conhecimento de nós mesmos [...]Assim, de sentimento de ignorâ ignorância, ncia, vaidade, indigência, enfermidade, enfim, de depravação e da própria corrupção, reconhecemos que não está em outro lugar, senão em Deus, a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a perfeita confluência de todos os bens, a pureza da justiça a ta tall ponto que somos estimulados por nossos males a considerar os bens divinos[...] o homem jamais chega a um conhecimento puro de si sem que, antes, contemple a face de Deus, e, dessa visão desça para a inspeção de si mesmo.36 Desta forma, Deus dá dá-se a conhecer ecer aos seres humanos na pessoa de Jesus Cristo, conforme testemunhado na Bíblia, a mesma escritura é o canal pelo qual o Espírito Santo irá provocar o conhecimento da Salvação no ser humano. Isto é, o conhecimento sobre Deus e sobre ele mesmo. Saberá des desta ta forma que Deus em Cristo se tornou humano para que pela fé ele (ser humano) possa ser colocado em Cristo, segundo Calvino, Assim, foi preciso que o filho de Deus fosse feito para nós um Emanuel, um "Deus conosco" de tal maneira que por uma conjugação mú mútua, tua, sua divindade e natureza humana fossem divididas entre si, do outro lado não haveria proximidade tão direita, nem afinidade tão firme, donde se daria a esperança de Deus habitar conosco, tão grande era a separação entre nossa sordidez e a suma pureza de Deus. Por mais que o homem se mantivesse afastado de toda mancha, era muito miserável sua condição para que se achegasse a Deus sem um mediador [...] quem teria tal poder, a não ser que o filho de Deus fosse feito também filho do homem e recebesse o que é nosso para transferir para nós o que é seu? [...] por essa razão é certa para nós a herança do reino celeste, uma vez que o filho único de Deus, de quem somente a herança era própria adotou adotou-nos nos como seus irmãos, uma vez que, somente irmãos, portanto tam também bém somos consortes na herança [Rm 8:17]37 Nesta linha de raciocínio, Calvino irá entender fé como um dom do Espírito Santo de Deus e um conhecimento que nos capacita a apreender a graça salvífica proporcionada por Deus em Cristo. Assim, há semelhança com Lutero, no sentido de que, para Calvino a certeza da salvação se encontra na intensidade vivencial da fé. Esta premissa de trazer um novo olhar em relação à fé, isto é, trazer à discussão o princípio Reformador do Sola Fide numa perspetiva iva até então pouco debatida, que é a partir do olhar do africano pelo viés das teologias contextuais (teologia negra, bem como da teologia africana) se configura no teor do segundo e do terceiro subtema sobre os quais iremos nos debruçar logo em seguida. 36 Apud WACHHOLZ, 2010, p.96 37 Apud WACHHOLZ, 2010, p.96 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 322 2. A fé como instrumento de opressão Entre outras mudanças epistêmicas a respeito da fé, conforme já abordado, vale aqui salientar o período escolástico como um marco definidor dos novos paradigmas. Será a fé, neste período, entendida como uma iniciativa da vontade humana a Deus; em outras palavras, a pessoa deve, por sua própria força, preparar preparar-se para receber a graça, fazendo o melhor que pode, advindo daí a graça verdadeira de Deus aos seres humanos. Assim a fé neste modelo escolástico precisaria ser completada letada através das obras de caridade como condição para a salvação. Ante essas teologias, os Reformadores se empenharam em rebater tais pensamentos, enfatizando a corrupção total da natureza humana e a salvação pela fé e não pelas obras.38 Calvino analisa eeste fato da seguinte forma: [...]esse mal, como inúmeros outros, deve ser imputado aos escolásticos, que como que envolveram a Cristo com um véu fechado, e em vista disso, a menos que nos esforcemos por andar em linha reta, tocar tocar-nos-á á sempre vagar por labirintos. la Mas além disso, porque debilitam, com sua tenebrosa definição toda a força da fé – e quase mesmo a exaurem -,, fabricam a ficção da fé “implícita" nome com a qual, adornando a mais crassa ignorância, iludem a pobre gente simples para a sua grande ruína. Mais (para dizer de forma clara e aberta o que a coisa é): essa ficção não apenas põe a perder a verdadeira fé, como a destrói totalmente39. O mesmo Teólogo ainda prossegue com a seguinte indagação: será que crer é isto, não entender nada, con contanto tanto que obedientemente submetas teu intelecto à Igreja?40 Esta indagação, não só terá relevância para a época deste Reformador como também para os africanos em geral. Pois, a obediência sem questionamento e a submissão à igreja cristã ocidental marcaram a era sombria da história da humanidade. Fala-se se aqui precisamente do tráfico de escravizados que decorreu entre o século XV ao século XIX. 2.1 . O discurso da fé aliado à subjugação de outros povos Afirma o historiador da África negra, Elikia M'bokolo, que se os Estados cristãos só começaram a praticar diretamente o comércio dos africanos no fim do século XV e princípio do século XVI, mas apresentam a particularidade de já disporem muito antes desta época de uma doutrina sobre a escravatura em geral.41 WACHHOLZ, 2010, P.92 CALVINO, 2009, p.24 40 CALVINO, 2009, p.24 41 M’BOKOLO 2012, pp 356, 357 38 39 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 323 Todavia, davia, tal doutrina se configurava eminentemente ambígua e devia levar a uma "dupla utilização da bíblia para justificar, por um lado, a escravatura em geral e o tráfico em particular e para o combater por outro lado"42 Seja no Antigo como no Novo Testament Testamento, o, existe um predomínio e reconhecimento explícito da escravatura, bem como frequentes convites à obediência, àresignação ou ainda a um tratamento justo por parte dos senhores. Talvez resida aí a grande diferença com o desenrolar da escravatura. Alguns tex textos de cabeceira bastante apreciados nesta época para legitimar a escravatura se encontram nos textos do apóstolo Paulo, sobretudo Coríntios e Filemon, segundo M’bokolo era o que mais uso se fazia durante o período negreiro, pois, no primeiro o Apóstolo di diz que cada um devia permanecer na condição em que foi chamado por Deus: Foste chamado sendo escravo? Não te preocupes com isso. Mas se ainda podes conseguir tua liberdade, aproveita a oportunidade. Pois aquele que, sendo escravo foi chamado pelo Senhor, é liberto e pertence ao Senhor; e da mesma forma, aquele que era livre quando foi chamado, agora é escravo de Cristo. Fostes comprados pelo mais elevado preço; não vos torneis escravos de homens! Portanto, irmãos, cada um deve permanecer diante de Deus na condição em que foi chamado (1 Coríntios, cps 21-24). 24). Mas, para se entender esta passagem há de se ter em conta todo o contexto que enseja a mensagem para que se não retirem daí conclusões precipitadas (1 coríntios 7.20-24). 24). Quanto a Filemon o texto é apreciado porque o apóstolo Paulo remete Onésimo (escravo43 que o apóstolo tornara cristão) ao seu patrão cristão Filemon, e a igreja, por muito tempo, seguiu pela conveniência sem muita análise exegética do teor das duas cartas, reconhecendo daí a sujeição entre irmãos em Cristo"44 . Muito menos lembrara-se se de uma outra carta do mesmo apóstolo aos Gálatas em que dizia que em Cristo: Não há judeu, nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. (Gl 3:28) Nas palavras de M’bokolo a "igreja também iria não só se beneficiar com a escravatura, mas também condenar indivíduos a este estatuto"45 Todavia a redução da escravatura dos africanos pelos europeus tem seu início num período em que a Europa substituía a escravatura pel pelo o estado de servidão. Segundo M'bokolo, contribuiu para este fato “a imagem especialmente negativa dos africanos durante a duração da Idade Média e a exploração da maldição de 42 ALPHONSE QUENUM APUD M’BOKOLO, 2012, p.357 43Por escravo entenda-se se escravizado, mantemos tal palavra para fazer jus a citação. M’BOKOLO,2012, p.357 45 IBDEM 44 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 324 Caim[cam], tudo coisas que pareciam fazer do negro de África um ser predestinado de certa maneira à escravatura"46. O mesmo autor continua argumentando ainda que "no que se refere ao mito da maldição de Caim [cam] e da sua descendência escrita em Gênesis 9:25 (Maldito seja Canaã. Que ele seja o último dos escravos para seus irmãos)47, jáá vários autores árabes haviam usado este recurso para justificar a escravatura dos negros. Com o tráfico noAtlântico, os europeus recuperaram progressivamente esta argumentação por sua conta. É, contudo, necessário observar que, durante o famoso debate en entre tre Sepulveda e Bartolomé de Las Casas a propósito da escravatura dos índios e, mais globalmente, do direito à servidão, ninguém evocou a maldição de Caim[cam]. O primeiro a fazê fazê-lo lo foi ao que parece um dominicano espanhol, Francisco de La cruz, que declar declarou ou perante a inquisição que, para expiar os pecados de seu pai Caim[Cam] os negros deviam ser escravos e que, como sinal de sua maldição, Deus lhes tinha precisamente dado a cor negra. Mas este mito só viria a impor impor-se no séc. XVII, no auge do tráfico, e sobretudo obretudo no século XIX no momento do colonialismo nascente e triunfante.48 Contribuíram para a difusão deste pensamento os missionários, quer sejam católicos, como protestantes.Entre os católicos teremos: o Pe. Libermann, Monsenhor Comboli ou Monsenhor Lav Lavigerie, igerie, e, entre os protestantes seu expoente máximo foi David Livingstone, que em uma de suas frases dizia: Peço que dirijais a vossa atenção para a África. Sei que dentro de poucos anos estarei longe desse país, que se encontra hoje aberto. Não o deixeis fechar-se de novo! Volto a África para tentar manter aberta uma via para o “comércio” e para o cristianismo. Continuai a obra que eu comecei. A vós a entrego.49 Percebe-se se assim que houve um acomodamento por parte da igreja como instituição com o tráfico e com a escravização dos africanos. Isto quando não foram elas a incentivá-los. No século XIX, muitas vezes, foram as comunidades de missionários europeus que convenceram nvenceram os seus governos a colonizar a África, especialmente a África Oriental, invocando como argumento a necessidade moral de pôr fim ao comércio árabe de escravos e de divulgar o Evangelho. Em alguns casos, o zelo e o entusiasmo dos missionários supri suprimiram as reticências governamentais.50 É só observar as bulas pontifícias e encíclicas da segunda metade do século XV, nas quais reconheciam a Portugal todos os direitos sobre as terras que os seus navegadores "tinham descoberto" (M'BOKOLO, 2012). Estava iincluído ncluído neste pacote IBDM Gênesis 9:25 - Versão Católica com cabeçalhos 46 47 48 M’BOKOLO, 2012 pp.357,358 LIVINGSTONE, Davidapud NEILL, Stephen. História das missões. São Paulo: Vida Nova,1989, p.324 49 50 MAZRUI, Ali A. 2010, p.138 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 325 "atacar, conquistar e submeter os sarracenos pagãos e outros infiéis inimigos de Cristo, de se apoderar de seus territórios e de seus bens, de submeter a pessoa em perpétua servidão e de transmitir territórios e bens aos sucessores dos reis de Portugal"51. Apenas um papa assumiu a responsabilidade condenando a prática do tráfico dos negros, considerado por ele como um grande crime ((magnum magnum scelus), scelus e chegou a ameaçar sanções contra aqueles que praticassem tal crime, contudo sua voz não se fez sentir. Seu nome foi Pio II e manifestou seu parecer em uma carta dirigida ao bispo da Guiné Portuguesa em 1492. Porém vale aqui ressaltar que a preocupação nesta altura não era a condição dos africanos que a igreja almejava proteger mas sim dos índios. os. Foi tendo em vista os índios, seguindo o raciocínio de Las Casas, que se promulgou a bula papal de 1537 de Paulo III onde se proclamava o seguinte: "Os índios (...) não podem de modo algum ser escravizados: e se forem escravizados, a sua escravatura deve ve ser considerada sem efeito"52. Mbokolo irá tecer o seguinte comentário: É notável que esta bula não faça nenhuma referência explícita aos africanos, que eram bem conhecidos pelos europeus e cujo tráfico começava a adquirir uma grande dimensão. Pelo contr contrário, ário, em 1516, o papa Leão X tinha imposto aos portugueses a obrigação de mandar batizar todos os negros destinados às Américas, tendo este batismo lugar seja no Congo e em Angola, seja nas Ilhas de Cabo Verde. Pelo contrário, os ingleses e os holandeses p protestantes rotestantes evitavam com cuidado mandar batizar os seus escravos, a não ser que estivessem na agonia. Aqueles que excepcionalmente, escapavam à morte, tornavam tornavam-se livres e só podiam ser obrigados a trabalhar para os seus antigos patrões como criados.53 Obrigação esta que se estendeu durante vários anos nos países negros católicos. Quanto ao restante da Europa observa observa-se se uma certa demora ao digerir esta prática deplorável, uma vez que a França, na pessoa do rei Luiz XIII (1610 (1610-1643), ainda se mostrava um tanto reticente em entrar na nova forma de fazer dinheiro, deixando-se se convencer apenas quando o provaram que era uma prática já existente naturalmente na África e de que daí dependeria a salvação das almas dos mesmos. "quando os seus súditos, ao transp transportar ortar negros para as Américas, asseguravam com esse movimento a salvação da sua alma ao mesmo tempo que se dava aos colonos a mão de obra necessária à riqueza nacional. Por essa razão as cartas patentes da companhia negreira prescreviam que se recrutasse p padres para batizar os escravos54 Bulas dum diversas de Nicolau v, 18 de junho de 1452 citado por M'Bokolo, 2012, p.358 51 Bula papal de Paulo III citado por M'bokolo, 2012, p.358 M’BOKOLO, 2012, P.358 54 M'BOKOLO, 2012, P.358 52 53 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 326 Muitos missionários preocupados com o desenrolar dessa cumplicidade entre religião e comerciantes já alertavam das consequências que poderiam advir daí. Isto provocou que muitos missionários deixassem de investir na propaga propagação da fé ou na salvação das almas para tornarem tornarem-se se comerciantes negreiros. Sobretudo na África Central,como é o caso de Angola.55 Nesta mesma região outros como os Teresinos e os Franciscanos preferiram "aumentar seus bens temporais e praticar o tráfico de escravos em vez de se ocupar com a missão"56, contudo "por outro lado, cada um constatava uma aversão crescente e "horror extremo" dos negros de Angola em relação ao cristianismo que, a seus olhos, se tinha tornado sinônimo de escravatura"57, premissa essa que ainda perdura até hoje para uma boa parte. Pode-se se afirmar que os anos do tráfico negreiro foram um período que se caracterizou pelo silêncio da igreja cristã. Apenas no século XVIII é que ela se posicionou a respeito desta problemática, começando pel pelos os protestantes devido à dispersão das suas denominações, e, do outro lado, a igreja católica só um século mais tarde (século XIX) irá se mobilizar neste sentido, impulsionada sobretudo por Pio VII. 2.2 Algumas Correntes de pensamentos Observa-se, se, deste modo, ao longo deste trabalho que vários foram os avanços e retrocessos de pensamentos no seio da igreja católica, e em parte é devido às divergências individuais existentes no seio da mesma instituição. Procurou Procurou-se aquelas com maior relevância; contudo, vvárias árias foram também as individualidades que se opuseram ao tráfico bem como aquelas que afirmavam a continuidade do mesmo. As discussões eram assentadas precisamente quanto às condições humanas dos negros e quanto a boa fé do comprador. Assim, para a maiori maioria a dos pensadores, ter escravizados era um meio legítimo e lícito de servir-se se de outro ser e abençoado inclusive por Deus. Isso se expressa na "dissertação do teólogo e advogado J. Bellon sobre o "tráfico e o comércio dos negros" em que afirmava: "podem te ter-se se licitamente escravos e deles se servir; estas posses 55 M’BOKOLO, 2012. Relatório da congregação para a propagação da fé divulgada em 1765 em Luanda,citado por M’bokolo, 2012, p.359. 56 57 M'BOKOLO, 2012, p.358 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 327 não são nem contrárias à lei natural, nem contrárias à lei divina escrita, nem sequer contrárias à lei do evangelho" (M'bokolo,2012, 359). A respeito da legitimidade e da inquietação de consciência, lembrou os tempos antigos, a existência da escravatura entre os Judeus, "o povo de Deus", a maldição de Caim e, em relação aos tempos modernos, citou o recrutamento de soldados "à força ou a custa de dinheiro” (M'bokolo,2012, 359). Este teólogo prosseguia assim sua reflexão: "(No que se refere) à espécie de escravos de que trata quando se pergunta se o comércio que se faz na Guiné [África como um todo] é permitido e legítimo (...), são homens nascidos escravos ou que assim se tornaram devido a uma cadeia inevitável nevitável de guerras contínuas que os seus chefes travam com eles. Não dão feitos de maneira alguma escravos ao compra compra-los" los" [em comparação a Africa e Europa dizia ele]"Não há entre nós grande inquietude de consciência, quando se alugam servidores homens e mulheres. Porque haveria ela de incomodar os habitantes das nossas ilhas ao comprar escravos? Não é a mesma coisa estar ligado a um senhor durante um ou vários anos na qualidade de servidor, ou está está-lo durante a vida inteira como escravo? 58 Todavia, haviam aqueles que eram contrários a este pensamento, pois condenavam com tanta firmeza e paixão a prática de escravatura e o tráfico, que eram considerados na época como radicais. O jurista laico Bartolomé de Albirnoz parecia ter maior princípio que muitos líde líderes res religiosos da época, uma vez que, em 1573, atacava todo princípio da escravatura argumentando da seguinte forma: quando se ignora a legitimidade das fontes da escravatura, [...] a presunção deve ser sempre em favor da liberdade. (...) e quando se diz q que mais vale eles serem escravos e cristãos do que ficarem livres e ignorar a lei de Deus, seria em primeiro lugar necessário demonstrar que os negros só podem ser convertidos por meio da escravatura e não penso que a lei de Cristo ensine que a liberdade d da alma deva pagar-se se com a servidão do corpo.59 Há ainda aqueles que sem condenar a escravatura empenhavam empenhavam-se em denunciar o tráfico como uma prática contrária às regras do comércio e aos princípios da humanidade. Denunciavam ainda que as guerras geradoras de escravizados na África eram uma artimanha usada pelos colonizadores como meio de obtê obtê-los.60 Uma vez que praticavam as velhas estratégias políticas de dividir para dominar, assinandos tratados de amizade e de protetorado com alguns chefes, reis e impera imperadores tradicionais, fornecendo fornecendo-lhes lhes armas e munições em prejuízos de outros.61 Denunciavam ainda a inércia dos colonizadores quanto à excessiva taxa de M'BOKOLO, 2012, PP.359,360 M’BOKOLO, 2012 P. 360 60 M’BOKOLO, 2012, p.360 61 SERRANO, Carlos; MUNANGA, Kabekele. Kabekele.A revolta dos colonizados. 1995 p5 58 59 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 328 mortalidade nos barcos negreiros. Assim, destacavam destacavam-se se nesta linha de pensamento os Padres Thomas de Merc Mercado e Fernando Rebello.62 Essa política de divisão praticada pelo invasor Europeu teria enfraquecido os africanos e facilitado a ocupação colonial. Na realidade não houve nem lutas populares nem coalizão de todos estados africanos contra a invasão. Houve ap apenas resistência individual de alguns Estados sob o comando de dirigentes fortes que tentaram defender seus territórios e poderes.63 Esses poucos dirigentes acabaram por perder pois os europeus, além da colaboração destes líderes protegidos, possuíam tecno tecnologia logia mais avançada quer de embarcações como de armamentos que os permitiu finalmente subjugarem e consequentemente se lançarem na prática quer da escravatura numa primeira fase como do tráfico numa segunda fase. Houve ainda aqueles que aceitavam a es escravatura cravatura para os negros pois seria um meio de se achegar à autêntica fé mas não mais aos índios. Como é o caso do Jesuíta António Vieira que passou pela Ilha de Cabo Verde, assim como no Brasil, tendo trabalhado nesta região com os escravizados negros ent entre re 1630 e 1680. Ardente defensor dos índios, aceitava substituí substituí-los los pelos escravizados negros, fiel à doutrina da igreja que a considerava como legítima64. Contudo era oposto ao tráfico, nas palavras do mesmo afirmava o seguinte: Nos outros países (...) faz-se se comércio daquilo que produzem os homens que trabalham a terra, as mulheres fiando e tecendo; Lá (em Angola) vendem vendem-se e compram--se se seres vivos, que os pais engendraram e que as mães alimentaram com o seu seio. Oh o tráfico desumano, no qual as merca mercadorias dorias são os homens! (...) Não são estes homens filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Não foram estas mesmas almas resgatadas pelo sangue do mesmo Cristo? Não nascem estes corpos e não nascem morrem como os nossos? Não respiram eles o mesmo ar que os nosso nossos, não vivem sob o mesmo céu aquecidos pelo mesmo sol? Que má estrela, pois, os persegue?65 Vieira, não era contra o tráfico apenas no campo religioso, uma vez que atacava também os portugueses pelas suas caças aos africanos e também atacava os exploradoress no Brasil por suas explorações abusivas em relação aos escravizados negros, chegando, mesmo, a convocar os escravizadosa uma desobediência sempre que os senhores lhes dessem ordens contrárias à sua fé66. Caso para dizer que onde se encontra o limite da féé aí se encontra o limite da liberdade. M'BOKOLO 2012 p. 360 SERRANO; MUNANGA, 1995, p.5 64 M’BOKOLO, 2012 p.360 65 Apud M’BOKOLO, 2012, p.360 360 66 M'BOKOLO, 2012, p.361 62 63 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 329 3. Sola fide da opressão para a libertação Colonização pode ser definida como um sistema de exploração econômica, de dominação política e de sujeição cultural67 que teve, como bom aliado, o manejamento, articulação e manipulação teológica a respeito da fé. Contudo, esta articulação, ainda assim, não era suficiente para que se retirasse o fardo pesado da dominação branca em relação aos demais povos.Logo, seria nec necessária a criação de um sobrecarrego que lhes permitisse dominar, explorar, e sujeitar os demais seres humanos com a cabeça tranquila. Assim, os conquistadores legitimaram esse crime contra a humanidade nomeando nomeando-a a de "missão civilizadora", uma vez assim entendida, tendida, não deixaria de ser um peso, mas um peso que valha a pena ser carregado pelo homem branco. Pois é seu dever moral levar o progresso e as vantagens da civilização aos povos conquistados, por eles chamados de selvagens e de primitivos68 Assim, a colonização onização tinha dois objetivos: O primeiro encontra encontra-se no lema da "missão civilizadora" onde pretendia: "integrar os povos dominados no humanismo ocidental, trazendo-lhes lhes o que lhes "faltava" para serem civilizados, isto é, as vantagens da cultura intelectu intelectual, al, social, científica, moral, artística, literária, comercial e industrial do ocidente"69, este discurso foi de extrema importância ao que concerne à legitimação da ocupação dos territórios. O segundo objetivo não foi feito de forma explícita, mas sim implícita, ícita, ou seja, não foi declarado, e se configurou na utilização da colônia para desenvolvimento e enriquecimento próprio. Segundo Serrano e Munanga, "além de não declarado, era um objetivo tácito e totalmente desconhecido dos colonizados, pelo menos nas p primeiras rimeiras décadas da colonização. Se o primeiro objetivo figurando como promessa não funcionou, [...] o segundo teve mais êxito, revelando--se se o principal e verdadeiro objetivo da colonização70 Passaram-se se séculos e a África, até hoje, paga por tais atrocida atrocidades, uma vez que, apenas os papéis inverteram inverteram-se se em todos níveis: quer políticos, sociais e religiosos. Os colonizados de ontem se tornaram os subdesenvolvidos de hoje. Da categoria de selvagens e de primitivos a serem civilizados, eles ganharam, depois das independências, a condição de subdesenvolvidos a serem desenvolvidos. O desenvolvimento lhes será trazido pela mão do mesmo mestre ocidental que o colonizou para civilizá civilizá-lo. lo. De fato, o que mudou? O que significou a famosa “missão SERRANO; MUNANGA, 1995, p.3 SERRANO; MUNANGA, 1995, p3 69 SERRANO; MUNANGA, 1995, p.5 70SERRANO; MUNANGA, 1995, p.5 67 68 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 330 civilizadora" civilizadora"?? civilização ou exploração? Desenvolvimento ou subdesenvolvimento? Sucesso ou fracasso? Verdade ou mentira?71 Pode-se se ainda acrescentar outras perguntas, tais como: expansão da fé cristã ou expansão das colônias e do poder hegemônico? Várias são as possív possíveis respostas, contudo, se torna reducionista cravar uma resposta apenas como a ideal. Os antropólogos Serrano e Munanga afirmam: Do ponto de vista dos ex ex-colonizados, colonizados, as independências jurídicas foram grandes conquistas, que custaram muitas vidas e deixar deixaram am muitos traumas. Mas elas representam apenas a primeira fase da independência total, que se fará, entre outras formas, pela invenção de modelos políticos adequados às suas estruturas sociais e às suas realidades nacionais e regionais e pela conquista de igualdade no estabelecimento dos mecanismos que regulam as relações internacionais, ou seja, no estabelecimento daquilo que os políticos e especialistas de relações internacionais costumam chamar de “nova ordem internacional"72 Pode ser que haja quem afirm afirmee que a colonização teve seus benefícios, pois construíram -se se escolas, hospitais, ergueram ergueram-se se cidades, facilitaram-se facilitaram tecnologias etc... contudo, conforme Walter Rodney, a soma desses supostos serviços foi extremamente pequena e insignificante se comparad comparada a com a exploração, a humilhação e a desumanização pelas quais passaram os povos da África73. Pode-se ainda acrescentar aqui os "mundos separados" criados, desde então, entre brancos e negros. Assim, "seria um ato extremamente fraudulento considerar apenas as miseráveis amenidades sociais fornecidas durante a época colonial, passando por cima da exploração, para concluir que o lado bom excedia o lado mau"74 Desta forma, o que se encontra em causa aqui é a propaganda enganosa a respeito da fé trazida pelos col colonizadores, onizadores, fé esta que não respeitou o indivíduo como indivíduo, nem cultura alguma, muito menos questões identitárias, uma vez que, em muitos momentos, civilização e assimilação se confundiam com conversão.Muitos escravizados opunham-se se ao seu verdadeiro "eu" com a finalidade de acharem um pouco de conforto, alívio e reconhecimento. Conforme o historiador Elikia M'Bokolo: Deportados para longe das suas terras, cercados por todas as constrições da escravatura, aparentemente sem esperança de regresso, os escravos africanos poderiam ser tentados a agarrar agarrar-se se desesperadamente a alguns traços da sua singularidade ou, ao invés fundir fundir-se se ao máximo nas novas relações sociais. Toda a sua história confirma que combinaram as duas atitudes, tanto no novo mundo como nos países Árabes (2012, p.332) 71SERRANO; MUNANGA, 1995, p.71 SERRANO; MUNANGA, 1995, p.72 73 Apud SERRANO; MUNANGA, 1995, p.8 74 SERRANO; MUNANGA, 1995, p.8 72 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 331 3.1 Mudança de Paradigmas - A questão das Teologias contextuais O século XX é importante no que concerne à virada do pensamento teológico, filosófico e humano em relação ao continente africano. Os debates giravam em torno daunião da teologia às correntes ideológicas e filosóficas que pudessem livrar os africanos do fardo opressivo que carregavam75. No cerne da discussão teológica estavam as teologias contextuais, frequentemente acusadas de adotarem a ideologia marxista, por rejeitarem o modelo capitalista. Isso é notório ao se verificar que para os defensores das teologias contextuais, a burguesia bem como a teologia hegemônica, tiveram maior cumplicidade com o colonialismo e continuam tendo com o capitalismo. Isto fica melhorr exposto nas palavras de Dom Helder Câmara: “quando eu construo casas para os pobres chamam-me me de santo. Mas quando tento ajudar os pobres dando nome às injustiças que os tornaram pobres, chamam chamam-me me de subversivo, de marxista”.76Porém, tratando-se de missão cristã, deve deve-se se entender, que as pessoas estão inseridas ou envolvidas em um contexto e correspondem ou não a eles em suas ações. É preciso, todavia, avançar e escrever sobre o significado da missão para a nossa própria época, lembrando que a era presente difere fundamentalmente do período em que Mateus, Lucas e Paulo, escreveram seus evangelhos e suas cartas para as duas primeiras gerações de cristãos. As profundas dessemelhanças entre sua época e a nossa implica que não basta apelar diretamente p para ara as palavras dos autores bíblicos e aplicar o que disseram a nossa própria situação como se houvesse uma correspondência exata e clara.77 Ainda o mesmo teólogo sul sul-africano diz: Dificilmente pode existir qualquer problema no uso da teoria marxista como instrumento na análise social. Como tal, ela certamente pode ser de enorme valor à questão, porém, é se alguns proponentes da teologia da Libertação”[…] das teologias contextuais no geral, “também não adotaram a ideologia marxista e se isso pode ser consi considerado compatível com a fé cristã.78 Além dos "rebeldes" africanos laicos, o cristianismo europeu também produziu africanos religiosos em revolta contra a ordem euro euro-cristã. Entre estes últimos, o congolês Simon Kimbangu marcou sua época. Segundo os seus adeptos, se Deus é o caso de Kwame Nkrumah que não via nenhum constrangimento unir o cristianismo e marxismo, dizia ele a respeito de si mesmo: “Eu sou ao mesmo tempo marxista marxista-leninista leninista e cristão sem confissão, não vejo aqui nenhuma contradição (Ali A. Mazrui, 2010, p.139 p.139) 76. CÂMARA, D. Helder, apudBOSCH, David J. Missão transformadora:: Mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: 4a Ed. ESTE Sinodal, 2014 p. 98 77. BOSCH, David J. Missão transformadora transformadora:: Mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: 4a Ed. ESTE Sinodal, 2014, p.227 78. BOSCH, David J. Missão transformadora transformadora:: Mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: 4a Ed. ESTE Sinodal, 2014, p. 527 75 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 332 quisera enviar uma mensagem à população negra negra,, por que teria ele escolhido um mensageiro branco?79 A igreja kinbanguista já em 1980 receberia bastante credibilidade no cenário internacional, tornando tornando-se se a primeira igreja africana aceita no conselho ecumênico das igrejas. Outros optaram não por uma separação, mas sim nos moldes do pensamento dos Reformadores, em repensar a cristandade e a situação humana, identitária e cultural do africano, ou seja, a construção de uma igreja africana para e pelos africanos com tudo que lhes é característico característico. Dando origem desta feita, feita à teologia africana. Uma teologia que saiba distinguir o evangelho (puro) — o qual é universal e eterno, das reflexões teológicas as quais são particulares e contextuais80, é dentro desta segunda premissa que se poderá falar de uma teologia africana, teologia latino americana, teologia da libertação, da inculturação, teologia feminista e teologia negra e várias outras teologias que permitam pensar a respeito da relação do divino com a sua criação. A respeito da teologia africana, Harry Sawyerr (apud Hovland 1993, 213) afirma que tem o seu fundamento não na crítica negativa da cultura e filosofia ocidentais, como muitos pensam, mas sim na avaliação positiva de sua própria cultura e filosofia africanas.81 Nisto estará a sua diferenciação com as demais teologias contextuais já que conforme Hovland, A teologia da libertação sul sul-americana caracteriza-se se por sua forte ênfase nos pobres e nas precárias condições econômicas do povo. A te teologia negra se caracteriza pela predominância da questão racial e da desigualdade social, ao passo que a teologia feminista se preocupa primariamente com o sexismo e a desigualdade entre homens e mulheres.82 Há no seio teológico africano várias definições a respeito da teologia africana. Para alguns ela não passa de "reflexão e expressão teológica feita por cristãos africanos"83, ao passo que para Gabriel M M. Setiloane o objetivo da teologia africana é libertar “a própria ‘alma da África’ do aprisionamento nos baús do conceitualismo e discurso ocidentais, da cerebração e pseudocientificidade para a humanidade 79 80 MAZRUI, Ali A. 2010, p.139 TUTU Apud HOVLAND, 1993, p.213 OVLAND, Thor H. O Novo Paradigma da Teologia Africana. São Paulo: Este, Sawyerr, apud HOVLAND, 1993, p.213 Disponível em:<http://bit.ly/1P7LSP8.>. :<http://bit.ly/1P7LSP8.>. Acesso em: 3 Dez. 2017. 81 82 HOVLAND, 1993, p.213 83 John S. Mbiti apud HOVLAND, 1993 p.214 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 333 [human-ness].”84Ambrose M M. Moyo apresenta uma definição mais singela e sucinta em que salienta que a teologia africana é “uma tentativa de traduzir a mensagem de Jesus por meio de formas de pensamento que a África achará relevantes e significativas”85 Todavia Todavia, W. Z. Kurewa foi aquele que trouxe a definição mais abrangente na qual diz que “A teologia africana [é]] o estudo que procura refletir sobre e expressar a fé cristã em idiomas e formas de pensamento africanos tais como são experimentados nas comunidades africanas, estando sempre em diálogo com o resto da cristandade.”86 Desde o longínquo ano de 1956 (data cunhada como sendo o início da teologia africana) ela tem desenvolvido desenvolvido-se. se. Várias foram as personalidades que tentaram pensar a respeito da teologia africana.A partir do momento que aqueles pais negros da igreja se perguntaram a respeito da fé no Deus trino,87 abriu--se ao mesmo tempo para as gerações ções futuras a oportunidade de sair sair-se se da acomodação letárgica da fépara uma fé de olhos abertos (Mertz, 2013), problematizadora da realidade e das encruzilhadas geradas por uma fé a serviço de um plano hegemônico, colonizador, expansionista e imperialista imperialista. Considerações finais As práticas missionárias foram inevitavelmente muito influenciadas pelo iluminismo. Isso é perceptível na visão de mundo expansionista, que visava elevar as fronteiras europeias para além do Mediterrâneo e do Atlântico, originando, deste modo, a expansão mundial undial da fé cristã e dos territórios, comércio e mercado europeus. Houve implicações para a vida religiosa do povo e para a vida humana em geral. O iluminismo, que surge como esforço de criar um mundo mais igualitário, onde a solidez da razão humana indic indicaria aria o caminho para a autonomia e felicidade universal, demonstrou resultar em novos problemas, para os quais ainda se busca solução. Assim sendo, enquanto difundia difundia-se a religião, difundia-se se também a cultura SETILOANE, Gabriel M. Teologia africana: uma introdução. São Bernado do campo/SP, editeo, 1992, p.65 84 85 Ambrose M. Moyo apud HOVLAND, 1993, p.214 86 W. Z. Kurewa, apud HOVLAND, 1993, 214 Para um bom aprofundamento no assunto recomenda recomenda-se se o livro de Rosino Gibelini - breve história da teologia do século XX; John Baur - 2000 anos de cristianismo em África; e Bujo e Muya - teologia africana no século XXI, (v.1,2,3). 87 egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 334 e, consequentemente, expandiam expandiam-se os domínios europeus. uropeus. Esta, certamente, foi uma das fortes razões de não impedirem que cada vez mais missionáriosdesembocassem em África, e, na maioria das vezes, trabalhando para o Estado (BOSCH2014). O que se tentou demonstrar neste trabalho não é de maneira nenhuma mover um processo contra as obras dos missionários, afinal graças a eles "a palavra tem ressoado nas savanas e nas florestas africanas, por cima das determinações dos cânones e dos gritos dos mercadores caravaneiros" (GIBELLINI, 2008, p.214), mas sim dar conta de que a missão funcionava, na época colonial, no contexto de uma "lógica imperial" e do "absolutismo colonial" (Mbembe apud GIBELLINI, 2008, p.214) e de que o acontecimento pós pós-colonial colonial está agora desconstruído e é uma desconstrução que interpela ig igreja reja e teologia ao mesmo tempo (GIBELLINI, 2008, p.214). Neste sentido não deveria causar surpresa a variação da teologia, nem da temática aqui apresentada, visto que as teologias partem sempre de um contexto e muitas vezes tais contextos carregam consigo bastante influência do pensamento de seu tempo, como aqui se tentou demonstrar.Assim a fé como libertação é aquela que se encontra desvencilhada dos aspectos institucionais e direcionada em Cristo somente. Pois, tal como a pedra é "perceptível somente pela fé a igreja também deve ser perceptível apenas pela fé" (KWESHI APUD GIBELLINI, 2008, p.214), ela deve se desfazer das amarras institucionais. A fé, nestes moldes entendida, se dirigirá pelo caminho da verdade88 88Conforme Lutero, Cristo é o caminho da verdade. E se encontram em oposição a esta verdade, aqueles que negam o Senhor, que, com a abominação do pontífice Romano, jactam seus esforços, pregam suas seitas, gabam suas ordens como santas, retas salutares, ofuscando o caminho da verda verdade, para os atribuírem as suas próprias ordens. Quanto a isso o monge agostiniano pergunta: acaso não se fortaleceu essa blasfémia de tal maneira que somente o clero, sobretudo os religiosos, sejam considerados cristãos? E que os outros são chamados aberta abertamente mente de seculares e mundanos sendo considerados tão somente o vulgo fora do caminho da salvação? e quando alguém ingressa numa ordem gloria-se e acredita-se se que ele está saindo do mundo, da vida secular; e por fim há a persuasão da vida de quem se quer sa salvar lvar tem que entrar numa ordem religiosa. Acaso isso não significa blasfemar contra o caminho da verdade? Não significa isso ensinar que Cristo está "aqui e ali"? Não está sendo aqui desprezado e abandonado o caminho da fé, sendo que em seu lugar se aceita a seita e a superstição das obras? Não tem que aqui perecer a confiança em Cristo e acontecer que as pessoas queiram confiar nas obras? [...] se alguém se insurgisse e denunciasse estes caminhos escolhidos pelos homens ou como os chama o apóstolo em 2 cl 2:23, estas ethelothreskeias, isso é, práticas religiosas arbitrárias, e ensinasse que são caminhos escandalosos, para a destruição da fé, para esvaziamento do evangelho, para sedução das almas, confirmados pelo papa e por eles apoiados; mas que o único caminho minho da salvação é a fé dos cristãos - que achas que fariam com ele? Não {seria declarado} seiscentas vezes herético, mil vezes o anticristo, satanás, diabo, cismático, vagabundo? Em suma, não haveria ódio, nem suplício, nem blasfémia bastante para esse p pior ior inimigo da igreja, temerário violador dos pais, pestilentíssimo sedutor do povo (1992, pp.40,41) egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 335 A respeito da época obscura do cristianismo apenas podemos falar, conforme disse Lutero nos seus dias: todos abusaram da palavra de Deus, de Cristo, do Espírito, da Igreja, da justiça, da verdade, da boa obra, e do mérito. Pois não aplicaram estes termos à fé libertadora, mas sim opressora. Seus pri princípios ncípios e pregações se desvaneciam na medida que comprometiam a fé. E isto acabaria por "enlouquecer" o povo enganado com estas ilusões extremamente especiosas que os espolia de todos os seus bens enquanto eles próprios se encontravam saturados, ociosos, rricos, potentes, honrados, gloriosos, e não obstante, santos e religiosos, servindo servindo--lhes para essas suas monstruosidade o santo nome de Deus (LUTERO, 1992, p.41). Com Lutero ainda se pode aprender que uma coisa é fé e outra coisa é acepção de pessoas, e ambos bos se encontram em polos diferentes. Segundo o monge agostiniano "Não queiras conciliar a fé do nosso senhor Jesus Cristo com a acepção de pessoas" (LUTERO, 1992, p.43) Assim, percebe percebe-se se ao longo do trabalho que houve um período que "Cristo e a fé foram o obscurecidos bscurecidos por doutrinas humanas deixando as consciências vulneráveis e devastando os frutos da fé" (LUTERO, 1992, p53). Uma vez que muitos "em lugar da fé ensinam as obras, em lugar da verdade a aparência; em lugar do mistério, a ilusão; em lugar do evan evangelho, gelho, proposições; em lugar da sinceridade a astúcia; em lugar da palavra de Deus seus decretos, destruindo assim as consciências e devastando o Espírito"(LUTERO, 1992, p.74). Desta feita somos todos chamados para a liberdade e a fé nos direciona para ela,, livres das ataduras da lei, tudo se faz não mais pensando na lei, mas no espírito da liberdade, ou seja, de forma voluntária. A fé que nos é proposta é absolutamente suficiente para a justificação. Aquele que obriga, manda e retira a liberdade de outro ser, er, em nome de Deus é tanto pecador quanto os seus resistentes. Pois encontra encontra-se pecado onde Cristo anula o pecado, estabelece estabelece-se se justiça onde Cristo tira a Justiça, enreda as consciências onde Cristo liberta as consciências, fazendo tudo ao contrário colocando cando o pecado no lugar da graça, e a lei no lugar da fé, seguem seguem-se as manipulações os sacrilégios, as insanidades abusivas e inimagináveis (LUTERO, 1992, p. 78). Conforme Lutero, "Toda criatura deve revelar revelar-se se na plena liberdade do Espírito" (LUTERO, 1992 1992,, p.31). A fé deve ser também aquela não simulada nem hipócrita, isto é, aquela que pode apresentar apresentar-se se diante de Deus, reconhecer da limitação humana e reconhecer o ato salvífico de Cristo na cruz (LUTERO, 1992, p.31). A fé em si mesma é vivencial e cultur cultural al nas palavras de João Paulo II, "a síntese egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 336 entre cultura e fé não é só uma exigência da cultura, mas também da fé"(LUTERO, 1992, p.31). Pois “uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida, nem inteiramente pensada nem fielmente vivida" (JOÃO PAULO II, 1995, p.65). Com Calvino se pode aprender que "a fé verdadeira não repousa na ignorância, mas no conhecimento", pois, "não é suficiente aceitar o que alguém declarou ser verdade; devemos ir mais a fundo no conhecimento pessoal de Deus Pai por meio de Jesus Cristo seu filho" (apud GEOGE, 1994, p.223, 224). Com este Reformador francês, aprende-se se ainda que a fé é um dom ao mesmo tempo que é um conhecimento “e de fato ela é um dom, e como dom se configura na "obra principal do Espírito Santo, um dom sobrenatural que aqueles que de outra maneira permaneceriam na descrença recebem pela graça" (apud GEOGE, 1994, p.223, 224). A fé como conhecimento nos remete à experiência, vivência diária com o criador, significa dizer que ela é mais um ato do cor coração ação do que do cérebro e mais da sensibilidade do que do intelecto (apud GEOGE, 1994, p.223, 224). Quanto ao dogma, surge como forma de preservação da Fé, todavia observa observa-se que muitas vezes os dogmas podem ser usados como ferramentas de aprisionamento da fé, aí residirá precisamente o grande problema. Isto é, quando o dogma aprisionar a fé cortar-se-áá ao mesmo tempo a ação do Espírito. Um outro ponto a ter em conta é o fato de que a fé do povo não se baseia nos dogmas, mas sim na experiência vivenciada no dia a dia. Tendo em vista essa premissa, a igreja precisa repensar sua atuação no mundo a fim de enxergar onde está a ação do Espírito para que também esteja sua ação. E desta feita ser um agente do Reino de Deus, movido pelo Espírito, mediante a fé, a esperança erança e a confiança no filho de Deus. A fé uma vez bem entendida se torna importante para compreender o lugar ocupado pelo ser humano diante de Deus, perceber o juízo que Deus faz a respeito do mesmo para fundamentar a certeza da sua salvação, bem como co compreender mpreender a forma de erigir um culto a Deus. Assim sendo, o ser humano "justificado pela fé, por meio da fé e revestido com ela, apresenta-se se ante o olhar do Pai, não como um pecador, mas como um Justo" (CALVINO, 1994, Pp.192,193). Em suma, respondendo à pergunta a que nos propusemos logo de início: se a salvação é pela fé porque foi negado isso ao negro? De forma curta e direta, pode pode-se argumentar que foi devido ao mesmo motivo de sempre: o ser humano, não se contentando com seu sta status, elevou-se se a fim de querer ser igual ou superior a Deus, entendendo ele que isso lhe daria poder de determinar o rumo dos acontecimentos egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 337 não só de si como de outrem, implementando assim um discurso de poder e não de liberdade.Desta forma é crucial para a Igreja romper com esse discurso dominador e opressor que vigorou durante séculos e enfatizar a mensagem primordial de Jesus Cristo: Liberdade89. Referências COX, Harvey. O futuro da Fé, São Paulo Paulo, Paulus, 2015 WACHHOLZ, Wilhelm. História e Teologia da Reforma,, 2010 CALVINO, João. A Instituição da religião Cristã. São Paulo, Unesp, 2009 LUTERO, Martinho. Da Liberdade Cristã. São Leopoldo, Sinodal, 1998 LIVINGSTONE, Davidapud NEILL, Stephen. História das missões. São Paulo: Vida Nova,1989 SERRANO, Carlos; os; MUNANGA, Kabekele. Kabekele.A A revolta dos colonizados. 1995 p5 BOSCH, David J. Missão transformadora transformadora:: Mudanças de paradigma na teologia da a missão. São Leopoldo: 4 Ed. ESTE Sinodal, 2014 HOVLAND, Thor H. O Novo Paradigma da Teologia Africana. São Paulo: Este, 1993, p.213 Disponível em em:<http://bit.ly/1P7LSP8.>. :<http://bit.ly/1P7LSP8.>. Acesso em: 3 Dez. 2017. SETILOANE, Gabriel M. Teologia africana: uma introdução. São Bernado do campo/SP, editeo, 1992. Recebido em: 16/06/2019 Aceito em: 02/09/2019 89Conforme Comblin,o tema da liberdade é fundamental na Teologia. O poder de Deus consiste em deixar os seres Humanos livres, mas ainda em ser fonte da sua liberdade e espontaneidade. O poder de Deus não tem nada de dominação porque é libertação. Deus não procura nenhuma vantagem, nenhuma satisfação. Ele é suscitador de vida e de Liberdade. Esta é a essencial mensagem de Jesus. Infelizmente essa mensagem nem sempre foi publicada com suficiente ênfase pela Igreja. egens, Juiz de Fora, v. 116, n. 1, p. 313-338, jan-jun/2019 Sacrilegens, 338