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Série Investigação Filosófica TEXTOS SELECIONADOS DE FILOSOFIA POLÍTICA Everton Maciel (Organizador) Pelotas, 2021 CAPÍTULO VII ........................................................................................ 300 DEMOCRACIA........................................................................................................... 301 1. Definição de democracia .......................................................................... 302 2. A justificativa da democracia............................................................. 303 2.1 Instrumentalismo ......................................................................303 2.1.1 Argumentos instrumentais a favor da democracia.......................... 303 2.1.2 Argumentos instrumentais contra a democracia ............................. 305 2.1.3 Motivos para o instrumentalismo ....................................................... 306 2.2 Valores não-instrumentais............................................................... 307 2.2.1 Liberdade ................................................................................307 2.2.2 Democracia como justificação pública.............................................. 308 2.2.3 Igualdade ................................................................................311 3. O problema da cidadania democrática ................................................... 315 3.1 Algumas soluções oferecidas para o problema ................................ 316 3.1.1 A teoria elitista da democracia ........................................................... 316 3.1.2 Pluralismo de grupos de interesse .................................................... 318 3.1.3 Neoliberalismo .......................................................................319 3.2. A suposição do interesse próprio ........................................................ 320 3.3 O papel da cidadania na escolha de objetivos .................................... 320 4. Representação legislativa......................................................................... 322 5. A autoridade da democracia..................................................................... 325 5.1 Concepções instrumentalistas da autoridade democrática .............. 326 5.2 Teorias do consentimento democrático da autoridade ...................... 327 5.2.1 Liberdade e autoridade ........................................................................ 329 5.2.2 Igualdade e autoridade .................................................................. 330 5.3 Limites para a autoridade da democracia ............................................ 331 5.3.1 Limites internos para a autoridade democrática .............................. 332 5.3.2 Minorias persistentes .................................................................... 333 5.3.3 Limites externos à autoridade democrática ...................................... 334 Apêndices.. .....................................................................................338 Construtivismo representativo vs. representação descritiva .................. 338 A democracia contestatória de Phillip Pettit..............................................341 Capítulo VII DEMOCRACIA131 Texto: Thomas Christiano Tradução: Gustavo Dalaqua (UNESPAR) Revisão: Celina Alcantara Brod (UFPel) A teoria democrática normativa lida com as bases morais da democracia e as instituições democráticas. Ela é diferente da teoria democrática descritiva e explicativa. Não oferece, em primeira instância, um estudo científico das sociedades que são chamadas de democráticas. Ela visa fornecer uma explicação de quando e por que a democracia é moralmente desejável, bem como os princípios morais para orientar a elaboração de instituições democráticas. É claro que a teoria democrática normativa é inerentemente interdisciplinar e deve recorrer aos resultados da Ciência Política, da Sociologia e da Economia para oferecer esse tipo de orientação concreta. Este breve resumo da teoria democrática normativa se concentra em quatro questões distintas analisadas em trabalhos recentes. Primeiro, delinearemos algumas abordagens diferentes à questão de por que a democracia é moralmente desejável. Em segundo lugar, exploraremos a questão do que seria razoável esperar dos cidadãos em grandes sociedades democráticas. Como veremos, essa questão é crucial para a avaliação das teorias democráticas normativas. Muitos são da opinião de que a maior parte da teoria democrática normativa clássica é incompatível com o que podemos esperar de maneira razoável dos cidadãos. Também discutiremos modelos de instituições democráticas, a fim de lidar com questões que surgem de uma concepção democrática de cidadania. Em terceiro lugar, examinaremos diferentes abordagens sobre qual seria a caracterização adequada de igualdade nos processos de representação. Estas duas últimas partes exibem a natureza interdisciplinar da teoria democrática normativa. Em quarto 131 Tradução do verbete “Democracia” de Thomas Christiano, publicado pela Stanford Encyclopedia of Philosophy (primeira publicação em julho de 2006), edição de Edward N. Zalta. Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/fall2018/entries/democracy. This is a translation of the entry on democracy published by the Stanford Encyclopedia of Philosophy. This translation might differ from the current version of the entry, which may have been updated since the time of this publication. We would like to thank the editors of the Stanford Encyclopedia of Philosophy, mainly Prof. Dr. Edward Zalta, for granting permission to translate and to publish this entry. 301 lugar, averiguaremos se e quando as instituições democráticas têm autoridade e discutiremos diferentes concepções dos limites da autoridade democrática. 1. DEFINIÇÃO DE DEMOCRACIA O termo “democracia”, tal qual utilizado neste texto, se refere de forma muito geral a um método de tomada de decisão de grupo caracterizado por um tipo de igualdade entre seus participantes. Devemos destacar quatro aspectos dessa definição. Em primeiro lugar, a democracia diz respeito à tomada de decisão coletiva, isto é, decisões que são tomadas para grupos e vinculantes a todos os seus membros. Em segundo lugar, essa definição pretende cobrir todos os diferentes tipos de grupos que possam ser chamados de democráticos. Portanto, pode haver democracia em famílias, organizações voluntárias, empresas econômicas, bem como em Estados e organizações transnacionais e globais. Em terceiro lugar, a definição não tem a intenção de carregar qualquer peso normativo. É perfeitamente compatível com essa definição de democracia reconhecer que, em um determinado contexto, a democracia não seja desejável. A definição de democracia não resolve nenhuma questão normativa. Em quarto lugar, a igualdade exigida pela definição de democracia pode ser mais ou menos profunda. Pode ser meramente a igualdade formal resultante da fórmula “uma cabeça, um voto”, utilizada para uma eleição de representantes em que há candidatos competindo por um cargo, ou pode ser mais robusta, incluindo a igualdade nos processos de deliberação e construção de alianças. “Democracia” pode se referir a qualquer um desses arranjos políticos. Ela pode envolver a participação direta dos membros de uma sociedade na decisão de suas leis e políticas públicas, ou pode envolver a participação desses membros na seleção de representantes para a tomada de decisão. A função da teoria democrática normativa não é resolver questões de definição, mas sim determinar quais, dentre as formas que a democracia pode assumir, são moralmente desejáveis, além de quando e como elas o são. Por exemplo, Joseph Schumpeter argumenta (1956, cap. 21), com certa contundência, que apenas um tipo extremamente formal de democracia, no qual os cidadãos votam em um processo eleitoral a fim de selecionar elites concorrentes, é altamente desejável. Ele afirma que uma teoria da democracia que se baseia em uma concepção mais ambiciosa de igualdade é perigosa. Por outro lado, Jean-Jacques Rousseau (1762, Livro II, cap. 1) argumenta que a variante formal da democracia 302 é semelhante à escravidão e afirma que apenas as democracias firmemente igualitárias têm legitimidade política. Outros filósofos argumentaram que a democracia não é desejável de forma alguma. Para examinar seus argumentos, devemos avaliar os méritos de diferentes princípios e as concepções de humanidade e sociedade das quais procedem. 2. A JUSTIFICATIVA DA DEMOCRACIA Podemos avaliar a democracia em pelo menos duas dimensões diferentes: de maneira consequencialista, mediante referência aos seus resultados em comparação com outros métodos de tomada de decisão política; ou intrinsecamente, mediante referência às qualidades inerentes a seu método, avaliando, por exemplo, se há algo inerentemente justo em decidir de maneira democrática os problemas sobre os quais as pessoas discordam. 2.1 INSTRUMENTALISMO 2.1.1 ARGUMENTOS INSTRUMENTAIS A FAVOR DA DEMOCRACIA Dois tipos de benefícios fundamentais são comumente atribuídos à democracia: leis e políticas relativamente boas e melhorias no caráter dos participantes. John Stuart Mill (1861, cap. 3) argumentou que um método democrático de criar leis é melhor do que os não democráticos em três pontos: de forma estratégica, de forma epistêmica e por meio da melhoria do caráter dos cidadãos democráticos. Estrategicamente, a democracia é vantajosa porque obriga os tomadores de decisão a considerar os interesses, os direitos e as opiniões da maioria das pessoas na sociedade. Como a democracia fornece certo grau de poder político para cada um, mais pessoas são levadas em conta do que em uma aristocracia ou monarquia. A declaração mais contundente desse argumento instrumental foi feita por Amartya Sen (1999, p. 152), que sustenta, por exemplo, que “nenhuma fome coletiva substancial jamais ocorreu em um país independente com uma forma democrática de governo e uma imprensa relativamente livre”. O fundamento desse argumento é que os políticos em uma democracia multipartidária com eleições livres e liberdade de imprensa têm incentivos para responder às expressões de necessidades dos pobres. Epistemologicamente, a democracia é considerada o melhor método de tomada de decisão por ser geralmente mais confiável em ajudar os participantes a descobrirem as decisões certas. Visto que inclui muitas pessoas no processo de 303 tomada de decisão, a democracia consegue tirar proveito de várias fontes de informação e de avaliações críticas das leis e políticas públicas. A tomada de decisão democrática tende a ser mais informada do que as demais sobre os interesses dos cidadãos e os mecanismos causais necessários para promovê-los. Além disso, a ampla discussão típica da democracia melhora a avaliação crítica das diferentes ideias morais que orientam os tomadores de decisão. Muitos apoiaram a democracia com base na proposta de que ela tem efeitos benéficos sobre o caráter. Seguindo Mill e Rousseau, muitos observaram que a democracia tende a fazer com que as pessoas se defendam mais do que em outras formas de governo, pois faz com que as decisões coletivas dependam mais delas do que em uma monarquia ou aristocracia. Portanto, em sociedades democráticas, os indivíduos são encorajados a ser mais autônomos. Além do mais, a democracia tende a fazer com que as pessoas pensem mais cuidadosa e racionalmente do que em outras formas de governo, pois isso lhes faz diferença. Finalmente, alguns argumentaram que a democracia tende a melhorar as qualidades morais dos cidadãos. Quando participam de tomadas de decisão, os cidadãos precisam ouvir os outros, são solicitados a se justificar perante eles e forçados a pensar, parcialmente, conforme os interesses alheios. Alguns argumentam que, quando se encontram nesse tipo de circunstância, as pessoas passam genuinamente a pensar em termos do bem comum e da justiça. Portanto, alguns argumentam que os processos democráticos tendem a melhorar a autonomia, a racionalidade e a moralidade dos participantes. Visto que são considerados dignos por si só, esses efeitos benéficos contam a favor da democracia e pesam contra outras formas de governo (Mill, 1861, cap. 3; Elster, 2002, p. 152). Outros argumentam, ademais, que os supramencionados efeitos sobre o caráter também tendem a melhorar a qualidade da legislação. Uma sociedade de tomadores de decisão morais, racionais e autônomos é mais propensa a produzir boas leis do que uma sociedade governada por uma só pessoa ou por um pequeno grupo de pessoas ensimesmadas que governa súditos servis e imponderados. Um conhecimento mais detalhado dos efeitos das instituições políticas pode ser utilizado para favorecer tipos específicos de instituições democráticas ou de suas variantes. Nos Estados Unidos, por exemplo, James Madison defendeu um governo federal razoavelmente forte baseado no fato de que os governos locais são mais propensos a serem opressivos com relação às minorias (Madison; 304 Hamilton; Jay, 1788, nº 10). Evidentemente, a solidez de qualquer um dos argumentos supracitados depende da verdade ou validade das visões substanciais sobre justiça e o bem comum que lhes são associadas, assim como das teorias causais das consequências de diferentes instituições. 2.1.2 ARGUMENTOS INSTRUMENTAIS CONTRA A DEMOCRACIA Nem todos os argumentos instrumentais são a favor da democracia. Platão (República, Livro VI) argumenta que a democracia é inferior a várias formas de monarquia, aristocracia e inclusive oligarquia, na medida em que ela tende a minar o conhecimento especializado necessário para se governar uma sociedade de maneira adequada. Em uma democracia, diz ele, os especialistas em vencer eleições e nada mais acabarão dominando a política. A democracia tende a enfatizar essa especialidade à custa do conhecimento necessário para se governar uma sociedade de maneira apropriada. A razão disso é que a maioria das pessoas não tem os tipos de talentos que lhes possibilita pensar bem sobre as questões complicadas envolvidas na política. Mas para ganhar um cargo político ou aprovar uma lei, os políticos devem apelar à concepção que essas pessoas têm do que é justo e do que não é justo. Portanto, o Estado será guiado pelas ideias extremamente mal ponderadas que os especialistas em manipular as massas conseguirão mobilizar para ganhar um cargo. Hobbes (1651, cap. 19) argumenta que a democracia é inferior à monarquia porque promove uma dissensão desestabilizadora entre os súditos. Seu ceticismo, contudo, não se baseia na ideia de que a maioria das pessoas não tem aptidão intelectual para a política. Na visão de Hobbes, os cidadãos individuais, inclusive os políticos, tendem a não ter um senso de responsabilidade para com a qualidade da legislação em uma democracia, pois neste tipo de regime ninguém exerce diferença significativa nos resultados da tomada de decisão. Por conseguinte, as preocupações dos cidadãos não se concentram na política e os políticos têm sucesso apenas quando fazem apelos manipulativos e escandalosos aos cidadãos para obter mais poder, sendo que nenhum deles é incentivado a considerar visões que sejam genuinamente para o bem comum. Portanto, a sensação de falta de responsabilidade pelos resultados enfraquece a preocupação dos políticos pelo bem comum e os inclina a fazer apelos sectários e facciosos aos cidadãos. 305 Para Hobbes, enfim, a democracia tem efeitos danosos sobre os súditos e os políticos e, consequentemente, sobre a qualidade dos resultados da tomada de decisão coletiva. Muitos teóricos da escolha pública do pensamento econômico contemporâneo se baseiam nessas críticas hobbesianas. Eles argumentam que os cidadãos não estão informados sobre política e que frequentemente são apáticos, o que dá margem para que interesses particulares controlem o comportamento dos políticos e usem o Estado para seus limitados propósitos pessoais, ao mesmo tempo em que espalham o ônus destes para todos. Alguns destes teóricos defendem que se conceda ao mercado o total controle da sociedade porque, segundo eles, uma democracia mais ampla tende a produzir sérias ineficiências econômicas. Versões mais modestas desses argumentos foram usadas para justificar a modificação de instituições democráticas. 2.1.3 MOTIVOS PARA O INSTRUMENTALISMO Os instrumentalistas defendem que esses argumentos instrumentais a favor e contra o processo democrático constituem as únicas bases para a avaliação da democracia ou para compará-la a outras formas de tomada de decisão política. Há diversos tipos de argumentos a favor do instrumentalismo. Um deles deriva de um certo tipo de teoria moral. Por exemplo, o utilitarismo clássico, em sua teoria do valor fundamental, simplesmente não confere espaço para ideias de justiça ou liberdade intrínsecas, ou para a importância intrínseca de uma distribuição equânime do poder político. Sua preocupação única com a maximização da utilidade, compreendida como prazer ou satisfação do desejo, faz com que ele forneça apenas argumentos instrumentais a favor ou contra a democracia. Há muitas teorias morais desse tipo. Entretanto, não é preciso ser totalmente consequencialista para se argumentar a favor do instrumentalismo na teoria democrática. Existem argumentos a favor do instrumentalismo que se referem diretamente à questão da democracia e à tomada de decisão coletiva em geral. Um deles afirma que o poder político envolve o exercício do poder de algumas pessoas sobre outrem e que o exercício de poder de uma pessoa sobre outra só pode ser justificado mediante referência à proteção dos interesses ou direitos da pessoa sobre a qual se exerce poder. Sendo assim, nenhuma distribuição de poder político poderia ser justificada, a não 306 ser mediante referência à qualidade dos resultados do processo de tomada de decisão (Arneson, 2002, p. 96-7). Outros argumentos questionam a coerência da ideia segundo a qual processos de tomada de decisão coletiva sejam intrinsecamente justos. A teoria da escolha social, por exemplo, questiona a ideia de que possa haver uma função de tomada de decisão justa que transforme um conjunto de preferências individuais em uma preferência coletiva racional. Não é possível elaborar uma regra geral, capaz de satisfazer restrições razoáveis, que consiga transformar qualquer conjunto individual de preferências em uma preferência social racional. Riker (1980, p. 116) recorre a este argumento para mostrar que os procedimentos democráticos não podem ser intrinsecamente justos. Dworkin, por sua vez, sustenta que a ideia de igualdade – que para ele constitui o fundamento da justiça social – não pode receber uma interpretação coerente e plausível, quando se trata da distribuição do poder político entre membros da sociedade. A relação dos políticos com os cidadãos inevitavelmente gera desigualdade, logo, não pode ser intrinsecamente justa (Dworkin, 2000, cap. 4 [publicado originalmente em 1987]). Em um trabalho posterior, Dworkin se afastou desse instrumentalismo extremo (Dworkin, 2000, cap. 10 [publicado originalmente em 1999]). 2.2 VALORES NÃO-INSTRUMENTAIS Poucos teóricos negam que as instituições políticas devam ser, ao menos em parte, avaliadas com base nos resultados que elas produzem. Além disso, alguns argumentam que certas formas de tomada de decisão são moralmente desejáveis, independentemente de suas consequências. Uma variedade de diferentes abordagens foi utilizada para mostrar que a democracia possui esse tipo de valor intrínseco. A mais comum delas, geralmente, enfatiza os valores da liberdade e da igualdade. 2.2.1 LIBERDADE Alguns argumentam que os princípios básicos da democracia se baseiam na ideia de que todo indivíduo tem direito à liberdade. Afirma-se que a democracia estende a ideia de que cada um deve ser o mestre de sua própria vida para o domínio da tomada de decisão coletiva. Em primeiro lugar, a vida de cada pessoa é profundamente afetada pelo ambiente social, legal e cultural mais amplo em que vive. Em segundo lugar, uma pessoa terá controle sobre seu ambiente mais amplo 307 apenas quando tiver igualdade de voz e voto no processo de tomada de decisão coletiva. Filósofas como Carol Gould (1988, p. 45-85) concluem que os indivíduos terão chance de se autogovernar somente quando algum tipo de democracia for implementado. Visto que têm direito ao autogoverno, os indivíduos têm direito à participação democrática. A ideia, aqui, é que o direito ao autogoverno confere às pessoas um direito limitado de cometer injustiças. Assim como um indivíduo tem o direito de tomar decisões ruins para si próprio, um grupo de indivíduos tem o direito de tomar decisões ruins ou injustas para si em relação às atividades que compartilha. Podemos observar, aqui, o surgimento de um argumento contra o instrumentalismo. Quando um instrumentalista visa diminuir o poder de uma pessoa de contribuir para o processo democrático a fim de maximizar a qualidade das decisões, ele pressupõe que não existe perda moral no fato de que nosso poder foi diminuído. No entanto, se o argumento da liberdade estiver correto, nosso direito ao controle de nossas vidas é violado pelo instrumentalismo. Uma grande dificuldade com essa linha de raciocínio é que ela parece exigir que a regra básica da tomada de decisão seja o consenso ou a unanimidade. Se cada pessoa deve escolher livremente as decisões que lhe são vinculantes, então quem se opõe a qualquer uma destas não é autogovernado. Ele vive em um ambiente que lhe é imposto por outrem. Portanto, apenas quando todos concordam com uma decisão é que a adotam livremente. O problema é que raramente existe concordância sobre as grandes questões da política. De fato, parece que uma das principais razões para se adotar procedimentos de tomada de decisão política é que eles podem resolver questões apesar da discordância. Torna-se difícil, então, ver como qualquer método de tomada de decisão política pode respeitar a liberdade de todos. 2.2.2 DEMOCRACIA COMO JUSTIFICAÇÃO PÚBLICA Um parente distante da abordagem do autogoverno é a caracterização da democracia como um processo de justificação pública, defendida, entre outros, por Joshua Cohen (2002, p. 21). A ideia por trás dessa abordagem é a de que as leis e políticas são legítimas na medida em que são publicamente justificadas aos cidadãos da comunidade. A justificação pública é a que se dá para cada cidadão como resultado do debate livre e razoável entre iguais. Os cidadãos justificam leis 308 e políticas uns para os outros com base em razões mutuamente aceitáveis. Compreendida de maneira adequada, a democracia é o contexto no qual os indivíduos se engajam livremente, e em pé de igualdade, em um processo de discussão e deliberação razoável. As ideias de liberdade e de igualdade fornecem diretrizes para a estruturação das instituições democráticas. O objetivo da democracia como justificação pública é o consenso razoável entre os cidadãos. Todavia, um problema sério surge quando perguntamos o que acontece quando o desacordo permanece. Duas respostas foram sugeridas para esse tipo de preocupação. A primeira delas argumenta que formas de consenso mais fracas do que o consenso total são suficientes para a justificação pública e que estas formas mais fracas são alcançáveis em muitas sociedades. Por exemplo, pode haver consenso sobre a lista de razões aceitas publicamente, mas desacordo sobre o peso das diferentes razões. Também é possível haver um acordo sobre razões gerais compreendidas de maneira abstrata, mas desacordo sobre suas interpretações específicas. O que dever-se-ia mostrar, aqui, é que tal consenso fraco é alcançável em muitas sociedades e que os desacordos remanescentes não são incompatíveis com o ideal da justificação pública. Outro conjunto de preocupações relacionadas a essa abordagem surge quando perguntamos por que devemos tentar garantir que as decisões políticas sejam fundamentadas em princípios que podem ser razoavelmente aceitos por todos. Qual é a base dessa necessidade de consenso? Com efeito, o consenso que se visa é o consenso razoável que se dá entre pessoas razoáveis. O consenso razoável não implica um consenso real. Os membros de uma sociedade que não são razoáveis não precisam concordar com os princípios associativos estabelecidos por pessoas razoáveis, a fim de que os mesmos sejam legítimos. O princípio básico parece ser o princípio da razoabilidade, de acordo com o qual pessoas razoáveis apenas oferecerão princípios para regular sua sociedade que outras pessoas razoáveis conseguem aceitar razoavelmente. A noção de razoabilidade deve ser bem fraca nesta explicação. Pode-se rejeitar razoavelmente uma doutrina na medida em que ela é incompatível com a doutrina que se adota, contanto que esta não seja imposta aos outros e seja uma doutrina que passou pelo crivo da reflexão crítica e constante. Esse princípio, portanto, é um tipo de princípio de reciprocidade. O indivíduo só oferece princípios que possam ser aceitos pelos demais cidadãos, que, por sua vez, procedem da mesma forma. 309 Tal princípio constitui um tipo de princípio restritivo que exige que pessoas razoáveis não proponham leis e políticas que visam regular a sociedade com base em princípios controversos. Quando oferecem propostas para regular a sociedade, os indivíduos não devem apelar à verdade completa como a veem, mas apenas à parte dela que outros possam razoavelmente aceitar. Posto nos termos de Rawls, a sociedade política deve ser regulada por princípios sobre os quais haja um consenso sobreposto (Rawls, 2011, Palestra IV). Pretende-se, assim, evitar a necessidade de um consenso total sobre os princípios que regulam a sociedade. Que razões morais podem existir para que alguém se contenha ao oferecer o que considera ser as melhores propostas justificadas para os termos da sociedade em que vive? Podemos examinar diversos argumentos para esse princípio de razoabilidade. Dentre eles, consta um argumento epistêmico, segundo o qual não há nenhuma justificativa independente sobre o que as pessoas acreditam, ou pelo menos, sobre o que as pessoas razoáveis acreditam. Portanto, se alguém não consegue justificar seus princípios de um modo que os outros cidadãos, munidos de suas crenças razoáveis, consideram aceitável, esses princípios não são justificados para essas pessoas. Um segundo argumento [para esse princípio de razoabilidade] é moral. Segundo ele, falha-se em respeitar a razão dos outros membros da sociedade quando se lhes impõe termos de associação que eles não podem aceitar, dadas suas visões razoáveis. Essa falha em respeitar a razão dos outros membros da sociedade anula o valor dos princípios que se propõe para a sociedade. Um terceiro argumento é especificamente democrático. Segundo ele, não se trata os outros genuinamente como iguais quando se insiste em lhes impor princípios que eles não podem aceitar razoavelmente, mesmo se essa imposição ocorra em um contexto no qual os processos de tomada de decisão são igualitários. Cada um desses três argumentos pode ser questionado. No que diz respeito ao argumento democrático, não está claro por que é necessário, à igualdade democrática, justificar as visões que se tem nos termos que os demais possam aceitar. Se cada pessoa tem direitos sólidos para participar do debate e da tomada de decisão e suas visões são ouvidas de forma razoável, não fica claro por que a igualdade exige mais do que isso. Minha rejeição da crença de outra pessoa não necessariamente pressupõe que considero essa pessoa inferior a mim em capacidade, em valor moral ou no direito de ter uma voz na sociedade. O argumento epistemológico, por sua vez, parece pressupor uma concepção de justificação 310 muito restrita para ser plausível. Mesmo se não forem compatíveis com as minhas crenças políticas atuais, muitas crenças me são justificadas, contanto que possam ser defendidas pelo uso de procedimentos e métodos de pensamento que eu uso para avaliar as crenças políticas. No que diz respeito ao argumento moral, não parece óbvio que a concepção de respeito pela razão favoreça o princípio da razoabilidade. Ela pode exigir que eu faça o máximo possível para garantir que a sociedade em que vivo obedeça o que considero serem normas racionalmente defensáveis. É claro que posso também acreditar que tal sociedade deva ser organizada democraticamente. Nesse caso, tentarei promover esses princípios por meio do processo democrático. Ademais, é difícil ver como essa abordagem evita a necessidade de um consenso total, consenso este que é extremamente improvável em qualquer sociedade que seja moderadamente plural. A razão para tanto é que não está claro por que minha obrigação de me restringir, ao propor leis ou políticas públicas, às considerações aceitas pelas outras pessoas razoáveis, não constitui uma imposição análoga àquela que surgiria caso eu tentasse aprovar uma legislação com base em razões que as outras pessoas razoavelmente rejeitam. Afinal, se me restrinjo dessa forma, então a sociedade em que vivo não corresponde aos padrões que acredito serem essenciais para avaliá-la. Devo, então, viver e dar suporte a uma sociedade que não está de acordo com minha concepção de como ela deve ser organizada. Não está claro por que isso não constitui uma perda de controle sobre a sociedade similar àquela infligida àqueles que devem viver em uma sociedade parcialmente regulada por princípios que eles não aceitam. 2.2.3 IGUALDADE Muitos teóricos da democracia argumentaram que o regime democrático é uma forma de tratar as pessoas como iguais quando, embora haja uma boa razão para impor algum tipo de organização em suas vidas compartilhadas, elas discordam sobre a melhor forma de fazê-lo. Uma versão deste argumento foi defendida por Peter Singer (1973, p. 30-41). Segundo ele, quando os indivíduos defendem formas diferentes de se organizar adequadamente as questões coletivas, cada um deles, de certa forma, reivindica o direito de ser um ditador sobre suas vidas compartilhadas. Porém, prossegue o argumento, não é possível sustentar todas essas reivindicações ditatoriais. A democracia incorpora um tipo de compro311 misso [compromise] pacífico e justo entre essas visões conflitantes de como exercer o poder. Cada cidadão se compromete [compromises] igualmente sobre o que reivindica, desde que os demais também o façam. Daí se segue que cada cidadão tenha uma voz equânime na tomada de decisão. A tomada de decisão democrática respeita o ponto de vista de cada pessoa sobre assuntos de preocupação comum, dando a cada uma delas uma voz igual sobre o que se deve fazer quando há discordância (Singer, 1973; Waldron, 1999, cap. 5). Uma dificuldade é que essa visão – não menos do que os argumentos supramencionados que se baseiam no princípio da liberdade – pressupõe a existência de um acordo. E se as pessoas discordarem do método democrático ou da forma específica que a democracia deve ter? Devemos decidir esta questão por meio de um procedimento de ordem superior? E se houver uma discordância no procedimento de ordem superior, devemos também decidir essa questão democraticamente? Essa visão parece levar a um regresso infinito. Outra defesa igualitária da democracia afirma que ela incorpora, publicamente, o avanço equânime dos interesses dos cidadãos, quando há uma discordância sobre como melhor organizar suas vidas compartilhadas. A ideia, aqui, é que uma sociedade deve ser estruturada para dar prosseguimento igualitário aos interesses de seus membros. A igualdade dos membros deve ser promovida de forma que cada um veja que está sendo tratado como igual aos demais. Assim, essa defesa da democracia requer um avanço igualitário de interesses, conforme uma medida pública estabelecida pelos membros da sociedade. A justiça exige o avanço público e igualitário dos interesses dos membros da sociedade, ou seja, exige igualdade pública. A ideia da igualdade pública requer um pouco de explicação. Se partimos do princípio de igual avanço de interesses, vamos querer saber o que isso implica. Tratar-se-ia da igualdade de bem-estar, da igualdade de oportunidade para o bemestar, ou da igualdade de recursos? Existem outras possibilidades, mas o problema dessas interpretações é que elas não podem ser realizadas de forma que toda pessoa consciente e informada saiba que estão sendo implementadas. Então, mesmo que um desses princípios seja implementado, muitos pensarão que não estão sendo tratados de forma igualitária. É provável que haja muitas discordâncias sobre em que consiste o bem-estar de cada pessoa e como compará-lo ao das outras. A questão que se coloca para uma sociedade política é a seguinte: há algum tipo de igualdade que realmente promova, de maneira equânime, os 312 interesses dos membros da sociedade, mas que o faça de forma que todas as pessoas conscientes e informadas consigam concordar que são tratadas como iguais? A resposta para essa pergunta deve tomar como base a diversidade, os preconceitos cognitivos, a falibilidade e o desacordo factuais de um dado contexto. A igualdade pública é a realização da igualdade de promoção de interesses que todos conseguem reconhecer como tal. O argumento básico em prol da democracia é o de que ela realiza o igual avanço de interesses quando levamos em conta as contextualizações acima. A igualdade pública possui grande valor. A importância da própria publicidade se baseia na igualdade. Dados os fatos da diversidade, dos preconceitos cognitivos, da falibilidade e do desacordo, cada um terá razão para pensar que, se for governado de acordo com alguma noção específica de igualdade promovida por algum grupo particular, seus interesses provavelmente serão obstruídos de alguma forma. Apenas uma concepção de igualdade que pode ser compartilhada pelos membros da sociedade consegue oferecer uma boa razão para se pensar que isso não acontecerá. Dentro do contexto estabelecido pela igualdade pública, as pessoas podem defender implementações mais específicas de igualdade entre os cidadãos no que diz respeito à lei e à política, ao mesmo tempo em que sabem que haverá desacordo considerável e consciente sobre elas. Contanto que o enquadramento dentro do qual propõem e votam visões opostas se pauta pela igualdade pública, as pessoas poderão saber que, em sua base, a sociedade as trata como iguais de uma forma que elas conseguem reconhecer como tal. Para que a igual promoção dos interesses seja reconhecida publicamente, é necessário que os juízos dos indivíduos sejam levados igualmente em consideração quando há desacordo. Eis o argumento para a transição da igual consideração dos interesses para a igual consideração dos juízos. O respeito pelo juízo de cada cidadão se baseia no princípio de igualdade pública, acrescido de vários fatos básicos e interesses fundamentais que acompanham a vida social em sociedades comuns. Os fatos básicos são que os indivíduos são muito diversos em termos de seus interesses. Os interesses das pessoas são diversos por causa de seus diferentes talentos naturais, porque elas são criadas em setores diferentes da sociedade e porque são criadas em sociedades em que há uma diversidade de contextos culturais. Em parte como consequência do fato de que são criadas em setores diferentes da sociedade e em ambientes culturais distintos, as pessoas 313 são propensas a ter preconceitos cognitivos profundos quando tentam compreender os interesses de outrem e compará-los com seus próprios interesses. Esses preconceitos tenderão a assimilar os interesses de outras pessoas a seus próprios em algumas circunstâncias ou subestimá-los quando há uma ampla divergência de interesses. Portanto, as pessoas têm preconceitos cognitivos profundos em relação a seus próprios interesses. Os fatos da diversidade e dos preconceitos cognitivos fazem com que os indivíduos sejam extremamente falíveis com relação à compreensão de seus próprios interesses e dos interesses alheios, provocando um desacordo considerável entre ambos. Os indivíduos tendem a ser extremamente falíveis em seus esforços para comparar a importância dos interesses alheios com os seus próprios. Portanto, eles serão extremamente falíveis em seus esforços para realizar o igual avanço de interesses na sociedade. E, é claro, haverá bastante desacordo sobre como melhor promover o interesse de cada pessoa de forma igualitária. Em uma sociedade pluralista, cada pessoa tem interesses que se destacam como especialmente importantes. É do interesse delas corrigir os preconceitos cognitivos dos outros quando se trata da criação ou da revisão das instituições econômicas, legais e políticas. Toda pessoa tem interesse em viver em um mundo que lhe faça certo sentido, que esteja de acordo, dentro de certos limites, com sua percepção de como esse mundo social deve ser estruturado. Os fatos descritos acima e o princípio de igualdade sugerem que cada pessoa deve ter uma voz equânime na hora de determinar as instituições legais, econômicas e políticas sob as quais vive. Devido a esses interesses, cada cidadão teria uma boa razão para pensar que, quando tem menos poder de tomada de decisão que os demais, seu interesse não recebe o mesmo peso que os dos outros. Portanto, toda pessoa privada do direito a uma voz equânime teria razão para acreditar que está sendo publicamente tratada como inferior. Ademais, visto que cada pessoa tem interesse em ser reconhecida como membro equânime da comunidade, e visto que a diminuição do peso de sua voz sugere que ela esteja sendo tratada como inferior, apenas a igualdade no poder de tomada de decisão é compatível com o avanço público e igualitário dos interesses. O princípio do igual avanço de interesses também postula limites ao que pode estar sob controle democrático e, assim, evita o regresso infinito observado acima. Em um contexto marcado pela diversidade, por preconceitos cognitivos, pela falibilidade e pelo desacordo, cada pessoa tem interesses fundamentais em 314 ter uma voz igual no que diz respeito aos processos de tomada de decisão coletiva. Logo, para que as pessoas sejam publicamente tratadas como iguais, elas devem ter uma voz equânime na tomada de decisão coletiva (Christiano, 2004). Várias preocupações se seguem desse tipo de visão. Em primeiro lugar, considera-se geralmente que a regra da maioria é necessária para tratar as pessoas como iguais em uma tomada de decisão coletiva. Isso ocorre porque apenas a regra da maioria é neutra em relação a uma tomada de decisão. Não menos do que as várias formas de maioria qualificada, a unanimidade tende a favorecer o statu quo. Porém, se for assim, a visão acima levanta o duplo perigo da tirania da maioria e das minorias persistentes, isto é, de grupos de pessoas que sempre se veem perdendo em decisões majoritárias. Certamente, estes fenômenos hão de ser incompatíveis com a igualdade, inclusive com a igualdade pública. Em segundo lugar, o tipo de visão defendido acima é suscetível a críticas levantadas contra o ideal de igualdade em processos de tomada de decisão. Tratar-se-ia de um ideal coerente, especialmente no Estado moderno? Essa última preocupação será discutida mais detalhadamente nas próximas seções, que versam sobre a cidadania democrática e a representação legislativa. A primeira preocupação será mais discutida quando discorrermos sobre os limites da autoridade democrática. 3. O PROBLEMA DA CIDADANIA DEMOCRÁTICA Um problema renitente da teoria democrática tem sido determinar se os cidadãos comuns estão aptos para a tarefa de governar uma grande sociedade. Existem três problemas distintos aqui. Em primeiro lugar, Platão (República, Livro VI) argumenta que algumas pessoas são mais inteligentes e morais que outras e que elas é que deveriam governar. Em segundo lugar, outros argumentaram que uma sociedade deve efetuar uma divisão de trabalho. Se todos estivessem envolvidos na complexa e difícil tarefa da política, haveria pouco tempo ou energia sobrando para as outras tarefas essenciais de uma sociedade. Em contrapartida, se esperamos que a maioria das pessoas se envolva nas demais tarefas difíceis e complexas de uma sociedade, como podemos esperar que elas tenham tempo e recursos suficientes para se dedicarem de maneira inteligente à política? Em terceiro lugar, como os indivíduos têm muito pouco impacto nos resultados da tomada de decisão política em grandes sociedades, eles se sentem pouco responsáveis pelos resultados. Alguns argumentam que não é lógico votar, já que as probabilidades desse voto afetar o resultado de uma eleição são quase 315 zero. Além disso, como Anthony Downs (1957, cap. 13) argumentou, todos os eleitores têm pouca razão para se informar sobre como votar melhor. Se supormos que os cidadãos raciocinam e se comportam, de modo geral, conforme o modelo downsiano, de duas uma: ou concluiremos que a sociedade deve ser governada por um grupo de pessoas relativamente pequeno e com uma contribuição mínima do povo, ou então concluiremos que a adoção do regime democrático gerará um mau governo. Como podemos ver, essas críticas ecoam os tipos de críticas feitas por Platão e Hobbes. Estas observações apresentam desafios para qualquer concepção solidamente igualitária ou deliberativa de democracia. Sem a habilidade de participar de forma inteligente na política, ninguém consegue usar o voto para avançar seus objetivos, tampouco pode dizer que participa de um processo de deliberação razoável entre iguais. Sendo assim, ou a igualdade de poder político desemboca em um tipo de participação igualitária dos cidadãos que é contraproducente na política, ou então uma divisão razoável de trabalho, que enfraquece a igualdade de poder, afirma-se como necessária. Ou a participação ampla dos cidadãos na deliberação pública ocasiona a negligência considerável de outras tarefas, ou então o funcionamento adequado dos outros setores da sociedade requer que a maioria das pessoas não participe de forma inteligente na deliberação pública. 3.1 ALGUMAS SOLUÇÕES OFERECIDAS PARA O PROBLEMA DA CIDADANIA DEMOCRÁTICA 3.1.1 A TEORIA ELITISTA DA DEMOCRACIA Alguns teóricos modernos da democracia, chamados teóricos do elitismo, argumentaram contra as formas igualitárias e deliberativas da democracia por causa dos motivos elencados acima. Eles defendem que altos níveis de participação popular tendem a produzir leis ruins criadas por demagogos para apelar aos cidadãos mal informados e excessivamente emotivos. Eles consideram a suposta desinformação dos cidadãos, evidenciada em diversos estudos empíricos nas décadas de 1950 e 1960, perfeitamente aceitável e previsível. Com efeito, consideram a suposta apatia dos cidadãos em Estados modernos como um fenômeno social altamente desejável. Eles acreditam que, na ausência deste fenômeno, muito provavelmente teríamos uma população extremamente participativa que não sabe nada e que tem muito mais propensão em seguir objetivos irracionais e emocionalmente atraentes. 316 A afirmação de Joseph Schumpeter (1956, p. 269) de que “o método democrático é o arranjo institucional para chegar a decisões políticas nas quais os indivíduos adquirem o poder de decisão por meio de uma luta competitiva pelo voto do povo” ainda se mantém como uma declaração concisa da visão elitista. Nela, a ênfase recai na liderança política responsável. Os líderes políticos devem evitar questões polêmicas e emocionalmente carregadas e criar políticas e leis com pouca consideração pelas exigências instáveis e difusas feitas por cidadãos comuns. Os cidadãos participam do processo de competição por meio do voto, mas como sabem muito pouco, não são a parte efetivamente governante da sociedade. Via de regra, o processo da eleição é apenas um modo relativamente pacífico de manter ou mudar os governantes. Contudo, segundo Schumpeter, os cidadãos têm um papel a desempenhar para evitar sérios desastres. Quando os políticos agem de forma que quase todos veem como problemática, os cidadãos podem destituí-los do poder. Portanto, mesmo nessa versão limitada, a democracia cumpre a função de proteger a sociedade dos piores políticos. A teoria elitista da democracia parece compatível com alguns dos argumentos instrumentalistas supramencionados, mas se opõe frontalmente aos argumentos intrínsecos de liberdade, justificação pública e igualdade. Contra os argumentos baseados nos valores da liberdade e da igualdade, a teoria elitista simplesmente rejeita a possibilidade de que os cidadãos participem da política como iguais. A sociedade deve ser governada por elites e o papel dos cidadãos é meramente garantir a transição tranquila e pacífica das elites. Contra a visão da justificação pública, a teoria elitista afirma que não se deve esperar que os cidadãos comuns participem da deliberação pública; tampouco deve-se esperar que as visões das elites sejam transformadas fundamentalmente por causa da deliberação pública geral. Certamente, dado tudo o que foi dito, é concebível haver uma democracia deliberativa elitista, na qual as elites deliberem, talvez até fora da vista da população em geral, sobre como governar a sociedade. Alguns democratas deliberativos acentuam, com efeito, a deliberação em assembleias legislativas. Contudo, os democratas deliberativos via de regra defendem uma abordagem mais amplamente igualitária no que diz respeito à deliberação, que, por sua vez, torna-se vulnerável aos tipos de preocupações levantados por Schumpeter e Downs. 317 3.1.2 PLURALISMO DE GRUPOS DE INTERESSE Uma abordagem que é, em parte, motivada pelo problema da cidadania democrática, mas que tenta preservar alguns elementos de igualdade contra a crítica elitista, é a teoria política do pluralismo dos grupos de interesse. A primeira declaração de Robert Dahl sobre esta teoria é bastante impactante: Grosso modo, a essência de toda política competitiva consiste no suborno do eleitorado pelos políticos. [...] o fazendeiro [...] apoia um candidato comprometido a manter altos preços mínimos dos produtos agrícolas, [...] o empresário [...] vota em um propugnador de baixos impostos para as empresas, [...] o consumidor [...] vota em candidatos que são contrários ao imposto de circulação de mercadorias (Dahl, 1959, p. 69). Nessa concepção dos processos democráticos, cada cidadão é membro de um grupo dotado de interesses estritamente definidos e intimamente vinculados a suas vidas cotidianas. No que diz respeito a esses assuntos, supõe-se que os cidadãos estejam bem informados e interessados em influenciá-los. Ou, no mínimo, as elites de cada um dos grupos de interesse, relativamente próximas à perspectiva dos cidadãos comuns, são os principais agentes no processo. De acordo com esta teoria, a democracia não é o governo da maioria absoluta, mas sim de coalizões de minorias. A política e a lei na sociedade democrática são decididas por meio da barganha entre os diferentes grupos de interesse. Essa abordagem pode ser compatibilizada com uma teoria mais igualitária da democracia. Isso é possível porque a teoria do pluralismo dos grupos de interesse tenta reconciliar a igualdade com a tomada de decisão coletiva, limitando as tarefas dos cidadãos àquelas que eles sejam capazes de executar razoavelmente bem. Ela tenta fazer isso de uma forma que dê aos cidadãos um papelchave na tomada de decisão. Essa teoria garante que os indivíduos possam participar quase como iguais à medida que restringe, rigidamente, as questões com as quais cada indivíduo se preocupa. Ela não é compatível com a abordagem deliberativa da justificação pública, pois evita a deliberação sobre o bem comum ou sobre a justiça. Ademais, ela faz com que o processo democrático se restrinja, fundamentalmente, à barganha entre diferentes grupos de interesse, sendo que as preferências a serem promovidas por cada grupo não estão sujeitas a debates posteriores realizados pela sociedade como um todo. Com efeito, embora possa 318 haver um certo grau de deliberação no interior dos grupos de interesse, não há deliberação na sociedade como um todo. 3.1.3 NEOLIBERALISMO Uma terceira abordagem inspirada pelo problema da cidadania pode ser designada de abordagem neoliberal da política, abordagem esta que foi defendida por teóricos da escolha pública como James Buchanan e Gordon Tullock (1965). Contra as teorias elitistas, eles sustentam que as elites e seus aliados tendem a expandir os poderes do governo e da burocracia em prol de seus interesses próprios e que essa expansão ocorrerá à custa de um público extremamente desatento. Por isso, eles defendem severas restrições aos poderes das elites. Na contramão dos teóricos do pluralismo dos grupos de interesse, eles argumentam que o caráter problemático observado na participação política dos cidadãos comuns também ocorre com relação aos grupos de interesse. Por conseguinte, os grupos de interesse não se formarão com tanta facilidade. Somente os grupos orientados por fortes interesses econômicos têm probabilidade de ter sucesso em se organizar para influenciar o governo. Logo, apenas alguns grupos de interesse terão sucesso em influenciar o governo e o farão amplamente para o benefício das poderosas elites econômicas que os financiam e orientam. Além disso, eles argumentam que tais grupos de interesse tendem a produzir governos extremamente ineficientes porque tentarão promover seus interesses na política enquanto espalham os custos de suas ações para todos os demais. A consequência disso é que serão criadas políticas que tendem a ser mais onerosas (pois são impostas a todos na sociedade) do que benéficas (porque beneficiam apenas as elites que fazem parte do grupo de interesse). Os neoliberais argumentam que qualquer forma de organizar um Estado democrático grande e poderoso tem propensão de produzir sérias ineficiências. Eles concluem, portanto, que muitas das funções assumidas pelo Estado, hoje, devem ser transferidas para o mercado. A função do Estado deve ser limitada à proteção de liberdades e direitos de propriedade básicos. Semelhante tarefa pode ser mais facilmente compreendida e colocada sob o controle de cidadãos comuns. Contudo, a explicação neoliberal da democracia deve responder a duas grandes preocupações. Em primeiro lugar, os cidadãos em sociedades modernas têm concepções mais ambiciosas de justiça social e do bem comum do que aquelas que podem ser realizadas pelo Estado mínimo. Portanto, a teoria neoliberal 319 acaba gerando uma redução muito grave da própria democracia. É necessário haver mais evidência para defender a tese de que essas aspirações não podem ser realizadas pelo Estado moderno. Em segundo lugar, a abordagem neoliberal ignora o problema das grandes concentrações privadas de riqueza e poder que são capazes de manipular pequenos Estados em benefício próprio e de impor seus desejos em populações sem o consenso delas. As suposições que levam ao ceticismo dos neoliberais sobre o grande Estado moderno geram problemas igualmente perturbadores no que tange às grandes concentrações privadas de riqueza em uma sociedade neoliberal. 3.2. A SUPOSIÇÃO DO INTERESSE PRÓPRIO Uma parte considerável da Ciência Política e da teoria econômica do Estado se baseia na suposição de que os indivíduos agem primária, e talvez até exclusivamente, em interesse próprio, compreendido de maneira estrita. O problema da participação e as teorias do processo democrático descritas acima dependem, em grande parte, dessa suposição. Embora tenham gerado resultados interessantes e se tornado cada vez mais sofisticadas, essas ideias têm ganhado um número crescente de opositores. Contra o axioma do interesse próprio, os defensores da democracia deliberativa e outros teóricos afirmam que os cidadãos são capazes de serem motivados por uma preocupação pelo bem comum e pela justiça. Seguindo Mill e Rousseau, eles afirmam que tais preocupações não simplesmente antecedem à política, mas que podem crescer e melhorar por meio do processo de discussão e debate políticos. Eles alegam que o fato de os cidadãos estarem dispostos a participar, de maneira crítica [open-minded], de discussões com pessoas que têm pontos de vistas informados por uma moral diferente da deles, é o que torna inteligível muitos debates e discussões políticas. As evidências empíricas sugerem que os indivíduos são motivados por considerações morais na política que vão além de seus interesses. Sendo assim, muitos propõem que as instituições democráticas sejam estruturadas no sentido de encorajar a vontade de participar de uma discussão moral e crítica [open-minded] com outras pessoas (cf. Mansbridge, 1990). 3.3 O PAPEL DA CIDADANIA NA ESCOLHA DE OBJETIVOS Uma vez que consideramos a ideia de cidadania a partir de um ponto de vista moral e reconhecemos a importância de uma divisão de trabalho, surge a 320 questão: qual é o papel adequado para um cidadão em uma democracia? Se pensarmos que os cidadãos geralmente são desinformados, devemos fazer duas perguntas: O que os cidadãos devem conhecer para cumprir seu papel? Quais padrões suas crenças devem satisfazer para serem adequadamente apoiadas? Alguns autores, como Dahl na passagem supracitada, propuseram que os cidadãos conhecem seus setores específicos da sociedade, mas não outros. Vimos que essa teoria apresenta várias dificuldades. Assim como outros autores, Christiano (1996, cap. 5) propõe que os cidadãos devem pensar quais são os fins que a sociedade deve almejar e deixar a questão de como alcançá-los para os especialistas. Uma teoria desse tipo deve responder o problema de como garantir que os políticos, gestores e especialistas irão de fato tentar realizar os objetivos propostos pelos cidadãos. Deve, ademais, mostrar como as instituições podem ser estruturadas a fim de estabelecer essa divisão de trabalho, ao mesmo tempo em que preservam a igualdade dos cidadãos. Se os cidadãos realmente escolhem os objetivos e os políticos, gestores e especialistas buscam fielmente os meios para alcançá-los, quem está no comando da sociedade, então, são os cidadãos. É difícil verificar como os cidadãos podem satisfazer até mesmo padrões modestos para as crenças sobre como melhor alcançar seus objetivos políticos. O conhecimento dos meios requer uma quantidade imensa de ciência social e conhecimento de fatos específicos. Para que os cidadãos em geral tivessem esse tipo de conhecimento, precisaríamos abandonar a divisão do trabalho na sociedade. Por outro lado, os cidadãos têm decerto experiências imediatas e cotidianas em relação ao pensamento sobre os valores e objetivos que almejam. Isso lhes dá uma oportunidade de satisfazer padrões de crenças em relação a quais são os melhores objetivos. Ainda assim, uma teoria desse tipo não é defensável sem uma resposta institucional convincente à questão de como garantir que aqueles que detêm autoridade estejam genuinamente buscando os meios de alcançar os objetivos especificados pelos cidadãos. Na visão que se propõe, os representantes legislativos, burocratas e juízes devem subordinar suas atividades à tarefa de descobrir como perseguir os objetivos dos cidadãos. Há, aqui, um enorme problema decorrente da separação entre principal e agente. 321 Além do mais, devemos perguntar: como as instituições devem ser estruturadas a fim de reconciliar a busca pela igualdade dos cidadãos com a necessidade de uma divisão de trabalho? Examinemos uma dimensão desse problema na questão da representação legislativa. 4. REPRESENTAÇÃO LEGISLATIVA Diversos debates se centralizaram na questão de quais tipos de instituição legislativa são melhores para uma sociedade democrática. A posição que adotarmos com relação a esta questão dependerá muito de nossa justificativa ética para a democracia, de nossa concepção de cidadania, bem como de nossa compreensão empírica das instituições políticas e de seu funcionamento. Os tipos mais básicos de representação política formal disponíveis são a representação de voto distrital, a representação proporcional e a representação de grupo. Além disso, muitas sociedades têm optado pelas instituições multicameralistas. Em alguns casos, testou-se a combinação entre dois ou mais desses tipos de representação. A representação de voto distrital elege para o Legislativo representantes únicos de áreas geográficas definidas que contêm populações aproximadamente do mesmo tamanho. Ela está presente, de maneira mais saliente, nos Estados Unidos e Reino Unido. A forma mais comum de representação proporcional é a de lista por partido. Em uma versão simples desse esquema, vários partidos disputam uma eleição para ganhar cadeiras em uma assembleia legislativa que não se encontra dividida em distritos geográficos. Os partidos ganham tantas cadeiras legislativas quanto for a proporção do número total de votos que obtiveram da população votante como um todo. A representação de grupo ocorre quando a sociedade é dividida em grupos definidos não geograficamente, tais como grupos étnicos e linguísticos, ou até mesmo grupos funcionais, como trabalhadores, fazendeiros e capitalistas. Cada um desses grupos elege para o Legislativo representantes próprios. Muitos defendem uma representação de voto distrital afirmando que ela parece levar a um governo mais estável do que as outras formas de representação. O argumento deles é que a representação proporcional tende a fragmentar o povo em áreas homogêneas opostas, que aderem estritamente a suas linhas partidárias e que disputam continuamente o controle do governo. Como há muitos partidos e eles não estão dispostos a efetuar um compromisso [compromise] uns 322 com os outros, os governos formados por coalizões de partidos tendem a cair rapidamente. A experiência pós-guerra de governos na Itália parece confirmar essa hipótese. A representação de voto distrital, em contrapartida, é considerada capaz de melhorar a estabilidade dos governos em virtude de seu favorecimento a um sistema de governo bipartidário. Cada ciclo eleitoral determina qual partido deve ficar no poder por um determinado período de tempo. Charles Beitz (1989, cap. 7) defende que a representação de voto distrital encoraja a moderação nos programas partidários que se oferecem à consideração dos cidadãos. Isso resulta da tendência desse tipo de representação a favorecer sistemas bipartidários. Argumenta-se que, em um sistema bipartidário que utiliza a regra da maioria, cada partido deve apelar ao eleitor mediano no espectro político e, para isso, deve moderar seu programa de governo. Além do mais, a representação de voto distrital encoraja o compromisso [compromise] entre grupos, já que estes devem tentar apelar a muitos dos outros grupos para se tornar parte de um dos dois partidos líderes. Essas tendências encorajam a moderação e o compromisso [compromise] entre os cidadãos, na medida em que os partidos políticos e os grupos de interesse consideram essas qualidades necessárias para o bom funcionamento de uma democracia. Em um viés crítico, os defensores da representação proporcional e da representação de grupos argumentam que a representação de voto distrital tende a abafar as vozes, e ignorar os interesses, dos grupos minoritários da sociedade. Os interesses e as visões das minorias tendem a ser articulados em negociações de segundo plano e sob formas que abafam suas peculiaridades. Ademais, os representantes de interesses e visões das minorias muitas vezes têm dificuldade para se eleger em sistemas de voto distrital. Daí a acusação de que as visões e os interesses das minorias são geralmente sub-representados em um sistema representativo distrital. Às vezes, esses problemas são contornados mediante redefinição das fronteiras dos distritos eleitorais, que é feita a fim de criar distritos que propiciem uma representação maior das minorias. Os esforços são invariavelmente muito controversos, já que há uma discordância considerável sobre os critérios da redefinição. Na representação proporcional, em contrapartida, os representantes de diferentes grupos são eleitos para a assembleia legislativa na proporção das escolhas dos cidadãos. As minorias não precisam conformar suas exigências à dicotomia básica de visões e interesses que caracteriza os sistemas de 323 voto distrital. Por conseguinte, suas visões são mais articuladas, nuançadas e mais bem representadas. Outra crítica à representação de voto distrital é que ela encoraja os partidos a buscarem estratégias de campanha mais dúbias. A necessidade de apelar a um setor mais amplo, diverso e, de certa forma, amorfo da população pode muitas vezes ser melhor satisfeita pelo uso de apelos ambíguos, vagos e, geralmente, muito irrelevantes para os cidadãos. Assim, em vez de encorajar um compromisso [compromise] razoável, o esquema tende a apoiar disposições à ignorância, superficialidade e insensatez nas campanhas políticas e na população. A representação de voto distrital encoraja os líderes políticos a tratar as questões políticas mais relevantes nos bastidores, ao mesmo tempo em que os estimula a interpelar os cidadãos por meio de truques de fumaça e espelhos [smoke and mirrors]. É claro que aqueles que concordam, em geral, com as teorias de tipo elitista não verão nada de errado nestas práticas; de fato, eles podem muito bem defendê-las. A representação proporcional exige que os partidos sejam relativamente claros e diretos em relação a suas propostas. Por isso, aqueles que acreditam que a democracia se baseia, eticamente, no apelo à igualdade tendem a favorecer a representação proporcional (cf. Christiano, 1996, cap. 6). Defensores da representação de grupo como Iris Marion Young (1990, cap. 6) argumentam que alguns grupos historicamente privados do direito de votar ainda podem não se sair muito bem com a representação proporcional. Eles podem não ser capazes de organizar e articular suas visões com tanta facilidade quanto outros grupos. Além disso, grupos minoritários ainda podem ser continuamente derrotados na assembleia e seus interesses podem ser sistematicamente postos de lado mesmo se obtiverem alguma representação. Para esses grupos, alguns defendem que a única forma de proteger seus interesses é garantir legalmente que tenham representação adequada e, até mesmo, desproporcional. Uma das preocupações com relação à representação de grupo é que ela tende a congelar alguns aspectos da agenda política que talvez fosse melhor permanecerem abertos à mudança. Consideremos, por exemplo, uma população dividida, há muito tempo, em grupos linguísticos. Consideremos, ademais, que apenas alguns cidadãos continuem a julgar o conflito linguístico relevante. Nessas circunstâncias, o esquema de representação de grupo pode tender a ser enviesado de uma maneira cuja arbitrariedade favorece as visões ou os interesses daqueles que consideram o conflito linguístico relevante. 324 5. A AUTORIDADE DA DEMOCRACIA Como a democracia é um processo de decisão coletiva, surge, naturalmente, a questão de averiguar se há qualquer obrigação dos cidadãos de obedecer à decisão democrática. É necessário averiguar, em particular, se o cidadão tem a obrigação de obedecer à decisão democrática quando discorda dela. Há três conceitos principais da autoridade legítima do Estado. Em primeiro lugar, um Estado tem autoridade legítima na medida em que esta, ao ser imposta a seus membros, é moralmente justificada. Nessa perspectiva, a autoridade legítima não tem implicações diretas em relação às obrigações ou deveres que os cidadãos podem ter para com o Estado. Ela simplesmente diz que o Estado sempre tem autoridade legítima quando tem justificativa moral para fazer o que faz. Em segundo lugar, um Estado tem autoridade legítima na medida em que suas diretrizes geram deveres para que os cidadãos obedeçam. Os deveres dos cidadãos não precisam ser dívidas para com o Estado, mas constituem deveres que precisam ser efetivamente obedecidos. Em terceiro lugar, o Estado tem um direito de governar correlacionado com o dever dos cidadãos de obedecê-lo. Essa é a noção mais forte de autoridade e parece ser a ideia central por detrás da legitimidade do Estado. A ideia é que, quando os cidadãos discordam sobre o direito e a política, é importante conseguir responder à pergunta: quem tem o direito de escolher? Em relação à democracia, podemos imaginar três abordagens principais à questão de averiguar se as decisões democráticas têm autoridade. Em primeiro lugar, podemos apelar às concepções gerais de autoridade legítima. Alguns filósofos pensam que a questão da autoridade é totalmente independente de o Estado ser ou não democrático. As teorias de consentimento da autoridade política, assim como as concepções instrumentalistas de autoridade política, estabelecem critérios gerais que podem ser satisfeitos por Estados não democráticos, bem como pelos democráticos. Em segundo lugar, alguns filósofos pensam que há uma ligação conceitual entre democracia e autoridade, de sorte que, quando uma decisão é realizada democraticamente, ela deve, portanto, ter autoridade. Em terceiro lugar, alguns pensam que há princípios gerais de autoridade política que são realizáveis unicamente por um Estado democrático situado sob certas condições definidas. 325 Leitores interessados em concepções mais gerais de autoridade política podem consultar o verbete sobre autoridade política [da Stanford Encyclopedia of Philosophy] para maiores discussões. O segundo tipo de abordagem foi largamente abandonado pelos teóricos da democracia. Abordemos, então, o terceiro tipo de concepção da autoridade política da democracia. 5.1 CONCEPÇÕES INSTRUMENTALISTAS DA AUTORIDADE DEMOCRÁTICA Em geral, as concepções instrumentalistas de autoridade não fazem menção especial à democracia. Os argumentos instrumentais em prol da democracia dão algumas razões do por que é preciso respeitar a democracia quando discordamos de suas decisões. Pode haver, contudo, muitas outras considerações instrumentais que desempenham um papel importante na hora de determinar se devemos ou não obedecer uma decisão política. Estas considerações instrumentais são basicamente iguais quando se considera obedecer à democracia ou outra forma de governo. Há uma abordagem instrumentalista bem peculiar à democracia que parece fundamentar uma forte concepção da autoridade democrática. Trata-se da abordagem inspirada pelo teorema do júri de Condorcet (Goodin, 2003, cap. 5; Estlund, 2002, p. 77-80). De acordo com este teorema, nas questões em que há duas opções e apenas uma delas é a resposta certa, se os eleitores tiverem, em média, uma chance melhor de escolher a opção certa, a maioria tem mais propensão de acertar a resposta do que qualquer um na minoria. A probabilidade de a maioria estar certa cresce conforme aumenta a população votante. Em populações muito grandes, a probabilidade de a maioria estar certa se aproxima da certeza. O teorema de Condorcet é um exemplo da lei dos grandes números. Se cada eleitor tem uma probabilidade independente melhor que 0,5 de acertar a resposta correta, então a probabilidade de mais de 0,5 dos eleitores acertarem a resposta se aproxima de 1 à medida que o número de eleitores se torna muito grande. Tal resultado dá sentido à célebre passagem do Contrato social: Quando se propõe uma lei na assembleia do povo, o que se lhes pergunta não é precisamente se aprovam ou rejeitam a proposta, mas se estão ou não de acordo com a vontade geral que é a deles; cada um, dando o seu sufrágio, dá com isso a sua opinião, e do cálculo dos votos se conclui a decla- ração da vontade geral. Quando, pois, domina a opinião contrária à minha, tal coisa não prova senão que 326 aquilo que julgara ser a vontade geral, não o era (Rousseau, 1762, p. 95-6). Nesta passagem, encontramos uma concepção da autoridade da democracia. Os membros da minoria têm uma razão poderosa para assentir seu apoio à posição majoritária, já que cada cidadão tem uma boa razão para pensar que a maioria está certa. Existem várias dificuldades com a aplicação do teorema do júri de Condorcet para o caso do voto em eleições e referendos. Em primeiro lugar, muitos notaram que as opiniões dos eleitores não são independentes umas das outras. Com efeito, o processo democrático parece enfatizar a persuasão e a criação de coalizões, e o teorema só funciona em testes independentes. Em segundo lugar, o teorema não parece se aplicar a casos em que a informação a que os eleitores têm acesso, e com base na qual formam seus juízos, é segmentada de diversas maneiras, de modo que alguns setores da sociedade acabam não tendo as informações relevantes, enquanto outros as têm. A política e as sociedades modernas parecem exemplificar esse tipo de segmentação em termos de classe, raça, agrupamentos étnicos, religião, posição ocupacional, localização geográfica e assim por diante. Quando se está na minoria, pode-se sempre ter uma boa razão para pensar que a maioria não está adequadamente posicionada para tomar uma decisão razoável sobre uma determinada questão. Finalmente, todos os eleitores abordam as questões que precisam decidir com fortes vieses ideológicos, o que, por sua vez, enfraquece a impressão de que cada eleitor traria um tipo de observação independente sobre a natureza do bem comum no momento do voto. Seja como for, outra preocupação sobre a aplicação do teorema de Condorcet parece ser a de que ele denegre a prática comum da oposição leal nas democracias. Com efeito, mesmo nas comunidades científicas, o fato de a maioria dos cientistas favorecer uma visão particular não faz a minoria dos cientistas pensar que está errada, muito embora a leve, talvez, a reexaminar suas teses (Goodin, 2003, cap. 7). 5.2 TEORIAS DO CONSENTIMENTO DEMOCRÁTICO DA AUTORIDADE Alguns teóricos do consentimento julgam que existe uma relação especial entre democracia e autoridade legítima, pelo menos sob determinadas condições. John Locke (1690, seção 96) argumenta que quando uma pessoa consente à criação de uma sociedade política, ela necessariamente consente ao uso da regra 327 da maioria na decisão de como essa sociedade deve ser organizada. Locke pensa que a regra da maioria é a regra natural de decisão quando não há outras. Ele argumenta que, uma vez formada, uma sociedade deve se mover na direção da força maior. Pode-se entender esse argumento do seguinte modo: se considerarmos todos os membros da sociedade como iguais e julgarmos ser provável haver desacordo entre eles, devemos, então, aceitar a regra da maioria como a regra apropriada para decidir algo. Essa interpretação do argumento lockiano supõe que a expressão “força maior” deve ser interpretada como uma afirmação do igual valor dos interesses e direitos de cada pessoa. Portanto, a sociedade deve seguir a direção que o maior número de pessoas quer que ela siga. Com efeito, Locke considera que o povo, formado a partir da reunião de indivíduos que consentem em ser membros de um mesmo corpo político, poderia escolher ser governado por uma monarquia utilizando a regra da maioria; sendo assim, esse argumento por si só não nos oferece uma defesa da democracia. No entanto, Locke recorre a esse argumento quando defende a exigência de instituições representativas para decidir quando a propriedade deve ser regulada e quando os impostos devem ser arrecadados. Ele sustenta que uma pessoa deve consentir à regulamentação ou taxação de sua propriedade pelo Estado. Todavia, Locke (1690, seção 140) também afirma que essa exigência de consentimento é satisfeita quando uma maioria de representantes de detentores de propriedades consente com a regulamentação e taxação da propriedade. Isso parece ir em direção a uma concepção genuinamente democrática da autoridade legítima. O quanto essa concepção é democrática depende de como interpretamos o conceito de propriedade na filosofia de Locke. Se incluirmos, dentro do conceito de propriedade, os direitos dos cidadãos em geral, temos, então, um argumento em prol da tomada de decisão democrática. Porém, se a ideia de propriedade só inclui os detentores de propriedade privada, então, no melhor dos casos, temos um argumento em prol de uma forma de tomada de decisão cujo caráter democrático é bem tênue. Outro argumento que fundamenta a tese de que a democracia é necessária para a autoridade legítima na noção de consentimento afirma que, quando as pessoas participam do processo democrático, seu ato de participação faz com que elas consintam ao resultado do processo, mesmo se forem contra ele. Sua participação, portanto, confere legitimidade ao resultado e, talvez, à assembleia democrática que é eleita pelos cidadãos. Nessa perspectiva, o exercício do voto, 328 por exemplo, é também um ato de consentimento ao resultado do voto. Consequentemente, os participantes políticos são obrigados a aceitar a decisão tomada pela maioria. O problema com todas essas variantes da teoria do consentimento é que elas enfrentam um dilema preocupante, pois parecem envolver interpretações extremamente suspeitas de comportamentos que podem ou não produzir os tipos de consentimento que esses teóricos têm em mente. As preocupações de Hume (1748) sobre o modo como os teóricos do consentimento interpretam a residência em um território como um ato de consentimento a um dado governo reverberam bastante nesse tipo de contexto. Por que devemos supor que o voto de uma pessoa é compreendido por ela como um ato de consentimento ao resultado da votação? Por que não supor que essa pessoa visa simplesmente exercer um impacto no resultado final da votação? Ou ainda, por que devemos supor que a associação de alguém a uma sociedade – o “consentimento” que alguém sinaliza quando permanece em uma sociedade – realmente o obriga a concordar que as decisões devem ser tomadas pela regra da maioria? Seja como for, a fim de poder interpretar o voto de uma pessoa como um ato de consentimento, precisamos pressupor que tal pessoa necessariamente deve consentir ao resultado da votação, ou então que ela deve saber que está consentindo com o resultado [quando participa da votação]. O fato de que ela deve consentir ao resultado porque participou, de acordo com algumas teorias, basta para gerar uma obrigação. A tese de que as pessoas devem saber que consentem quando participam, por sua vez, geralmente se baseia na ideia de que elas devem estar consentindo quando votam. Mas esse tipo de interpretação parece se afastar muito da ideia básica dos teóricos do consentimento, que é a de que o consentimento ou não das pessoas é uma escolha delas que não deve ser determinada pela visão moral correta. A teoria do consentimento se baseia na necessidade de se pensar que o governo tem legitimidade quando os cidadãos discordam acerca do seu caráter bom ou justo. 5.2.1 LIBERDADE E AUTORIDADE As teorias da justificação da democracia que se baseiam na liberdade fornecem concepções distintas sobre a autoridade da democracia. A ideia delas é a de que a democracia tem autoridade na medida em que o povo constrói, de 329 maneira livre, uma decisão política. A razão para isso é que a democracia meramente estende a atividade de autodeterminação das pessoas para o âmbito político. Visto que a autodeterminação é um valor proeminente que a democracia estende para o âmbito político, a lealdade para com as decisões democráticas é necessária para a autodeterminação e, portanto, é necessária em virtude da importância proeminente da autodeterminação. Entretanto, esse tipo de abordagem causa certo receio. Ele parece pressupor que as decisões terão um apoio unânime, ou então, parece requerer várias condições para a realização da autodeterminação, condições estas que fazem grande parte do trabalho necessário para se gerar obrigações em uma democracia. Por exemplo, se uma decisão deve ser realizada por meio da regra da maioria, uma estratégia para reconciliar isso com a autodeterminação é afirmar que uma pessoa autodeterminada deve aceitar a legitimidade da regra da maioria sempre que houver desacordo. Pode-se justificar tal afirmação alegando que a pessoa autodeterminada deve aceitar a importância fundamental da igualdade e que a regra da maioria é essencial para a igualdade sempre que há desacordo. Portanto, se entendermos que uma pessoa não pode se autodeterminar sem aceitar o princípio da igualdade, então, poderíamos argumentar que uma pessoa autodeterminada precisa aceitar os resultados da regra da maioria. Contudo, esse argumento parece fazer a autoridade da democracia depender primariamente da importância da igualdade. Ademais, é preciso investigar a importância da ideia da autodeterminação para esta explicação. 5.2.2 IGUALDADE E AUTORIDADE Outra abordagem da questão da autoridade da democracia afirma que se recusar a obedecer às decisões de uma assembleia democrática equivale a tratar seus concidadãos como seres inferiores (Christiano, 2004, p. 284-7). Essa abordagem estabelece a autoridade da democracia afirmando que a desigualdade decorrente da recusa à obediência a uma assembleia democrática é a forma mais importante de desigualdade. De acordo com ela, é mais importante tratar as pessoas como iguais na tomada das decisões políticas do que tratá-las como iguais na esfera econômica. Pressupõe-se, aqui, que os cidadãos discordarão sobre como se tratar como iguais em questões substanciais sobre o direito e a política. O propósito da democracia é tomar decisões quando essas discordâncias surgem. A democracia realiza um tipo de igualdade a que todos os cidadãos podem jurar 330 fidelidade, mesmo quando eles discordam de muitas questões consideráveis relacionadas ao direito e à política. Visto que a democracia realiza a igualdade sob um modo altamente público, e visto a publicidade ser um valor elevado e igualitário, a igualdade realizada pela democracia triunfa [trumps] sobre todos os outros tipos de igualdade. A concepção de democracia que se baseia na igualdade pública nos fornece razão para pensar que a igualdade democrática deve ter certa preeminência sobre outros tipos de igualdade. A igualdade pública é a forma mais importante de igualdade e a democracia – bem como outros princípios, tais quais os direitos liberais – realizam de maneira peculiar a igualdade pública. As demais formas de igualdade, mobilizadas quando há conflito significativo sobre o direito e a política, são aquelas sobre as quais as pessoas conseguem discordar de maneira razoável (dentro dos limites especificados pelo princípio da igualdade pública). O princípio da igualdade pública exige que todos os cidadãos sejam tratados publicamente como iguais, e a democracia é necessária para isso. Na medida em que a igualdade pública tem precedência sobre outras formas de igualdade, os cidadãos devem respeitar o resultado de um processo de tomada de decisão democrático mesmo quando suas concepções de igualdade preferidas acabam sendo postas de lado por ele. Obviamente, existirão limites para aquilo que os cidadãos devem aceitar de uma assembleia democrática. Tais limites, segundo a teoria igualitária, devem ser compreendidos como derivados do valor fundamental de igualdade. Portanto, é possível pensar que a igualdade pública também requer a proteção de direitos liberais, inclusive a provisão de um nível econômico mínimo. 5.3 LIMITES PARA A AUTORIDADE DA DEMOCRACIA Se a democracia tem autoridade, quais são seus limites? Um limite para a autoridade democrática é um princípio cuja violação anula a autoridade democrática de um determinado ato. Quando tal princípio é violado por uma assembleia democrática, ela perde sua autoridade naquela instância ou o peso moral da sua autoridade é desconsiderado. Várias visões foram oferecidas sobre essa questão. Discriminemos, primeiro, os diferentes tipos de limites morais à autoridade democrática. Podemos discriminar os limites internos à autoridade democrática daqueles que lhe são externos. Um limite interno é aquele que surge das exigências do processo democrático ou que surge dos princípios que sustentam a democracia. 331 Um limite externo sobre a autoridade da democracia é aquele que surge de princípios que são independentes dos valores ou requisitos da democracia. Ademais, alguns limites para a autoridade democrática derivam de princípios que pesam contra os princípios que suportam uma tomada de decisão democrática. Algumas considerações podem simplesmente pesar mais em importância do que aquelas que justificam a autoridade democrática. Portanto, em uma determinada circunstância, um indivíduo pode entender que existem razões para obedecer uma assembleia democrática e razões para desobedecê-la, e é possível que as razões contrárias à obediência pesem mais do que as que a favorecem. Por outro lado, alguns limites que cerceiam a autoridade democrática procedem à maneira de uma suspensão. Esses limites se exercem não mediante contrapeso às considerações em favor da autoridade democrática, mas sim mediante uma interrupção desta. Nesse caso, os limites suspendem as razões para que uma assembleia democrática seja obedecida; estas deixam de existir, ou então, enfraquecem-se de maneira severa. 5.3.1 LIMITES INTERNOS PARA A AUTORIDADE DEMOCRÁTICA Alguns autores argumentaram que o processo democrático deve ser limitado a decisões que não sejam incompatíveis com seu funcionamento adequado. Sendo assim, eles defendem que o processo democrático não consegue, de maneira legítima, retirar os direitos políticos de seus cidadãos. Ele não deve excluir os direitos necessários ao processo democrático, como a liberdade de associação ou de expressão. Contudo, esses limites não se estendem para além das exigências necessárias ao funcionamento adequado de uma democracia. Eles não protegem o discurso artístico não-político ou a liberdade de associação no caso de atividades não-políticas (Ely, 1980, cap. 4). Outro tipo de limite interno é aquele que decorre dos princípios que fundamentam a democracia. Sua presença parece necessária para dar sentido ao primeiro limite, pois para que o primeiro limite seja moralmente importante precisamos saber por que uma democracia deve proteger o processo democrático. Locke (1690, cap. 11) oferece uma explicação para os limites internos da democracia quando afirma que há certos atos para os quais os cidadãos não podem consentir. Os cidadãos não podem consentir a um governo arbitrário ou à violação de direitos fundamentais, incluindo direitos democráticos e liberais. Visto que o consentimento é a base da autoridade democrática na filosofia lockiana, 332 este argumento de Locke sugere que há limites para os atos de uma assembleia democrática que derivam dos mesmos princípios que fundamentam sua autoridade. Tais limites simplesmente suspendem o direito que uma assembleia democrática tem para governar sempre que ela promulga atos para os quais os cidadãos não podem consentir. Esta explicação lembra um pouco o primeiro limite elencado acima, mas vai para além dele porque sugere que os direitos que não se relacionam de maneira íntima com o exercício do sufrágio também não devem ser violados caso sua violação não pudesse ser consentida pelos cidadãos. A concepção de autoridade democrática que se baseia na igualdade pública também fornece uma explicação dos limites dessa autoridade. Visto que se fundamenta na igualdade pública, a democracia não pode violar a igualdade pública em nenhuma de suas decisões. A ideia básica, aqui, é a de que a violação manifesta da igualdade pública por uma assembleia democrática nega a afirmação de que tal assembleia incorpore a igualdade pública. A incorporação da igualdade pública pela democracia é condição para que esta possa proteger aquela. Na medida em que os direitos liberais se baseiam na igualdade pública, e na medida em que uma provisão econômica mínima também se baseia na igualdade pública, infere-se que os direitos democráticos, os direitos liberais e os direitos a uma provisão econômica mínima criam um limite à autoridade democrática. Semelhante argumento também fornece uma base profunda para os tipos de limites impostos à autoridade democrática que decorrem do primeiro limite interno e vai além deles, na medida em que a proteção dos direitos não relacionados ao exercício do sufrágio também é necessária para a igualdade pública. 5.3.2 MINORIAS PERSISTENTES Esta explicação da autoridade da democracia também nos fornece alguma ajuda para lidar com um problema renitente da teoria democrática, qual seja, o problema das minorias persistentes. Há uma minoria persistente em uma sociedade democrática quando essa minoria sempre perde na votação. Trata-se de uma possibilidade sempre presente nas democracias por causa do uso da regra da maioria. Se a sociedade encontra-se dividida em dois ou mais blocos de votação altamente unificados cujos membros votam igual a todos os demais membros desse grupo, então, o grupo minoritário sempre perderá as votações. Esse problema tem atormentado algumas sociedades, particularmente aquelas com povos indígenas que vivem dentro de sociedades maiores. Embora geralmente esteja 333 relacionado à tirania da maioria, esse problema difere deste tipo de tirania porque pode acontecer de a maioria tentar tratar a minoria bem – conforme suas concepções de bom tratamento. A questão é que a minoria nunca concorda com a maioria sobre o que constitui um tratamento adequado. Fazer parte de uma minoria persistente pode ser extremamente opressivo mesmo quando a maioria não tenta agir de forma opressiva. Podemos compreender isso com a ajuda das mesmas ideias que sustentam a democracia. É do interesse das pessoas poder corrigir os preconceitos cognitivos dos outros e conseguir organizar o mundo de tal forma que lhes faça sentido. Tal interesse é desrespeitado no caso de uma minoria persistente, já que ela nunca consegue o que quer. A concepção de democracia como um tipo de regime que se baseia na igualdade pública pode esclarecer um pouco esse problema. Ela nos permite afirmar que a existência de uma minoria persistente viola a igualdade pública. Com efeito, uma sociedade dotada de uma minoria persistente equivale a um tipo de sociedade em que a minoria é tratada publicamente como inferior, haja vista ser evidente que seus interesses fundamentais são postos de lado. Portanto, na medida em que as violações da igualdade pública anulam a autoridade de uma assembleia democrática, a existência de uma minoria persistente corrói a autoridade da democracia, pelo menos no que diz respeito à minoria persistente. Daqui se infere que certas instituições devem ser criadas para que a minoria não seja persistente. 5.3.3 LIMITES EXTERNOS À AUTORIDADE DEMOCRÁTICA Um tipo natural de limite para a autoridade democrática decorre da ideia de que existem certas considerações favoráveis à tomada de decisão democrática e determinados valores independentes da democracia que podem ser ameaçados por decisões democráticas. Algumas teorias podem afirmar que existem apenas limites externos para a autoridade democrática. É possível, porém, pensar que existem tanto limites internos quanto externos. Tal questão pode surgir, por exemplo, em decisões de ir para a guerra. Em tais decisões, um cidadão pode, por um lado, ter o dever de obedecer à decisão da assembleia democrática, pois é assim que ele consegue tratar seus concidadãos como iguais, e, por outro lado, ter o dever de se opor à guerra caso ela agrida injustamente um outro povo. Se esta última possibilidade torna-se suficientemente séria, é capaz que ela se sobreponha às considerações de igualdade que sustentam a autoridade democrática. 334 Nesse caso, portanto, o cidadão tem o dever de não obedecer à decisão da assembleia. Em geral, questões de política externa parecem fazer surgir possíveis limites desse último tipo. 335 BIBLIOGRAFIA ARNESON, R., 2002, “Democracy at the National Level”, in Philosophy and Democracy, ed. T. Christiano. Oxford: Oxford University Press. BEITZ, C., 1989, Political Equality: An Essay on Democratic Theory. Princeton, NJ: Princeton University Press. BUCHANAN, J.; Tullock, G., 1965, The Calculus of Consent: Logical Foundations of Constitutional Democracy. Ann Arbor, MI: University of Michigan Press. CHRISTIANO, T., 1996, The Rule of the Many: Fundamental Issues in Democratic Theory. Boulder, CO: Westview Press. –––, 2004, “The Authority of Democracy”, Journal of Political Philosophy, vol. 12, n. 3, pp. 266-290. 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Embora admitam combinações entre si, o conceito de representação descritiva e o conceito de representação construtivista expressam concepções distintas do que significa representar. De acordo com o descritivismo, a função do representante político consiste em descrever os interesses e demandas dos representados. Representar significa espelhar uma realidade prévia de modo fidedigno, isto é, de um modo que, sem criar nada de diferente, apenas copia aquilo que existia antes de o ato representativo iniciar. No capítulo doze de Considerações sobre o governo representativo, John Stuart Mill menciona os Estados Gerais das Províncias Unidas Holandesas como exemplo do descritivismo representativo. A representação que se costumava praticar no Parlamento holandês, segundo o filósofo, pressupunha que os representantes eram “meros delegados”, cuja função se resumiria à apresentação das instruções que sua base eleitoral previamente lhes transmitira (Mill, 2018, p. 217). Sendo assim, “quando surgia alguma questão importante que não estava prevista em suas instruções, [os representantes] precisavam voltar a seus eleitores, exatamente como faz um embaixador retornando ao governo que o credenciou” (Mill, 2018, p. 217). Ao repudiar semelhante concepção de representação, Mill prenuncia duas críticas contra o descritivismo que se tornariam relativamente comuns entre os teóricos da democracia na filosofia contemporânea. Em primeiro lugar, a representação descritiva impede a realização do compromisso (compromise) entre os representantes dos diferentes grupos políticos. Visto que abrange diferentes grupos sociais, toda democracia representativa precisa recorrer à prática do compromisso a fim de promulgar leis. Se os representantes se recusassem a votar uma lei sempre que ela contivesse alguma novidade com relação aos interesses e demandas prévias de sua base eleitoral, muitas das leis necessárias ao funcionamento regular de uma democracia não seriam promulgadas. Em segundo lugar, a representação descritiva nega o aspecto transformador que comumente se atribui à deliberação conduzida pelos representantes eleitos de uma democracia repre338 sentativa. Longe de ser uma simples troca de monólogos que se sucedem, a deliberação democrática para Mill corresponde a um processo dialógico de revisão crítica das diferentes posições políticas. Tal processo se torna impossível sempre que os interlocutores de um debate se recusam a rever um ou outro ponto da posição que advogam quando são expostos a teses contrárias. O construtivismo representativo, por sua vez, entende que o trabalho da representação é menos o de espelhar uma realidade prévia e mais o de construir posições, demandas e interesses que só ganham pleno desenvolvimento ao longo do processo representativo. O construtivismo ganhou força na teoria democrática contemporânea graças ao trabalho de filósofos como Claude Lefort e Ernesto Laclau. Suas raízes, contudo, remontam à Idade Média e se estendem ao trabalho de autores modernos como Hobbes e Mill. No capítulo cinco de Considerações sobre o governo representativo, por exemplo, Mill afirma que a função da assembleia dos representantes em uma democracia representativa é a de ser “uma arena onde a opinião não só geral da nação, mas também de todos os seus setores, [...] pode-se produzir [produce] à plena luz e provocar debates” (Mill, 2018, p. 111, tradução levemente modificada). O construtivismo apresenta ao menos duas vantagens em relação à representação descritiva. Em primeiro lugar, o construtivismo torna a prática do compromisso viável em uma democracia representativa, pois permite que a deliberação conflituosa entre os diferentes representantes da nação gere novas posições políticas. Visto que contempla os interesses de um número maior de grupos políticos, a proposta que resulta do construtivismo representativo tende a ser melhor do que aquela que, antes de a deliberação entre os representantes iniciar, fora formulada. Em segundo lugar, o construtivismo representativo permite a um ou mais representantes exercer uma liderança que, em países de cultura democrática incipiente, é necessária para a consolidação da democracia. Consideremos, por exemplo, o projeto de lei que visava instituir o sufrágio feminino na Inglaterra, apresentado por Mill na Câmara dos Comuns, em 1866. Se considerasse que a função do representante era apenas refletir as demandas prévias dos representados, Mill nunca teria formulado esta proposta, haja vista seus eleitores não lhe terem instruído a defender o sufrágio feminino na assembleia representativa. Mill apresentou o projeto de lei em prol do sufrágio feminino justamente porque entendia que o representante deveria agir como um líder democrático – isto é, como um político que, em vez de simplesmente repetir as visões prévias dos representados, saberia 339 se diferenciar delas quando o respeito aos valores democráticos da igualdade e da liberdade de todos os cidadãos e cidadãs assim o exigisse. A grande crítica que se costuma levantar contra o construtivismo é a de que ele ameaça as credenciais democráticas da representação política. Se o representante pode formular as demandas políticas que apresenta na assembleia por conta própria, o que garante que ele não vai tornar o conjunto dos cidadãos que representa uma massa passiva de espectadores sobre a qual ele constrói qualquer demanda política como bem entender? Na teoria democrática contemporânea, um número considerável de autores tem investigado esse problema. Uma resposta possível à questão vislumbra-se na concepção mobilizadora da representação política formulada por Mill. Com efeito, uma análise atenta da filosofia e da prática políticas de Mill mostra que o que torna o construtivismo representativo democrático é a manutenção de uma relação horizontal entre representantes e representados, na qual estes podem interagir e contestar aqueles sempre que desejarem. O construtivismo é democrático na medida em que permite que os próprios cidadãos contestem e se apropriem das reivindicações que os representantes constroem em seu nome. BIBLIOGRAFIA MILL, J. S., 2018, Considerações sobre o governo representativo. Trad. D. Bottmann. Porto Alegre: L&PM. 340