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Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) SÓCRATES E OS JOGOS DE VERDADE: ANÁLISE SOBRE ÉTICA, ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA E LIBERDADE EM MICHEL FOUCAULT Priscila Céspede Cupello1 RESUMO: Este artigo almeja fazer uma análise crítica de determinadas noções e conceitos de ética, estética da existência e liberdade elaboradas por Michel Foucault (1926-1984) a respeito do modo de vida de Sócrates. Para tanto, partimos das últimas palavras do filósofo antes de sua morte – “Críton, devemos um galo a Asclépio” (PLATÃO, Fédon, 118) para investigar como tal episódio e o modo de vida socrático foram analisados por Foucault como um ato heroico, identificado como formas de escapes de todo uma tecnologia de saber e poder que constitui e subjetiva o sujeito. PALAVRAS-CHAVES: Parresía. Ética. Estética da existência. Liberdade. ABSTRACT: This article aims to make a critical analysis of certain notions and concepts of ethics, aesthetics of existence and freedom elaborated by Michel Foucault (1926-1984) regarding the way of life of Socrates. Therefore, we start from the philosopher's last words before his death - "Crito, we owe a cock to Asclepius" (Plato, Phaedo, 118) to investigate how such an episode and the Socratic way of life were analyzed by Foucault as a heroic act, Identified as forms of exhaustion of a whole technology of knowledge and power that constitutes and subjective the subject. KEYWORDS: Parresía. Ethic. Aesthetics of existence. Freedom. INTRODUÇÃO: Na Apologia (PLATÃO, 30e), Sócrates se apresenta como aquele que tem o ofício de incitar os outros a cuidarem de si mesmos. Sócrates se comparou ao tavão, um inseto que persegue e importuna os animais. Desse modo, o “cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência e constitui o princípio de um movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência” (FOUCAULT, 2011, p. 11). Sócrates relatou que os atenienses que sofrerão com a sua morte, pois não terão mais ninguém a incitá-los a cuidarem de si (apud FOUCAULT, 2011, p. 9). De acordo com Foucault, Sócrates era quem interpelava as pessoas a se ocuparem de si mesmas. O cuidado de si proporcionava uma permanente inquietude quanto à existência humana e o sentido da vida. 1 Doutoranda em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica da UFRJ. https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 6 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) Segundo Foucault, o sujeito parrhesiástico é uma sentinela de si e a filosofia seria uma arma usada para o melhoramento individual. Frédéric Gros afirma que: “Foucault insiste em fazer de Sócrates um exemplo da coragem de verdade. Figura maior, inclusive até a morte. Mas o objetivo dessa parrhesia não é mais a salvação da cidade, mas a provação das almas. Foucault tenta mostrar que Sócrates é aquele que articula a existência da parrhesia com a prática do cuidado de si e da técnica da existência” (GROS, 2004, p. 160-161). No diálogo Fédon, as últimas palavras de Sócrates foram: “Críton, devemos um galo a Asclépio2” (PLATÃO, Fédon, 118). Para Nietzsche, essas palavras significaram “Críton, a vida é uma doença!” (FW, § 340), sendo interpretado como uma afirmação pessimista por parte de Sócrates sobre sua experiência de vida.3 Nietzsche argumentou que: “ele [Sócrates] havia, justamente apenas feito uma cara boa para a vida e escondido a vida inteira seu juízo último, seu sentimento mais íntimo! Sócrates, Sócrates sofreu com a vida! E ainda tomou vingança por isso – com essa palavra encoberta, horrível, devota e blasfêmia! Até mesmo um Sócrates tinha que se vingar ainda? Havia um grão de altivez a menos em sua riquíssima virtude?- Ai, amigos! Temos de superar também os gregos!” (FW, § 340). Nietzsche interpretou as últimas palavras de Sócrates, como se ele não acreditasse que a razão pudesse trazer felicidade, refletindo o quanto sofreu ao viver e o quanto a vida teria sido um mal. Nietzsche ratificou: “Sócrates esteve apenas doente durante um longo tempo.” (GD, §12). Michel Foucault construiu sua hipótese diferente sobre o episódio do julgamento de Sócrates. E, mais especificamente, sobre o que denominou de “mancha negra” e/ou “ponto enigmático” na história: as últimas palavras de Sócrates. Para falar acerca deste assunto, Foucault retomou o livro de Dumézil, no qual afirmou: “fazer a Asclépio o sacrifício de um galo é o gesto tradicional pelo qual se agradece a ele quando ele, frisa Dumézil, efetivamente curou alguém, depois de efetuada a cura” (FOUCAULT, 2011, p. 84). 2 3 Na Grécia tinha-se o costume de fazer oferendas a esse deus, quando se curava de alguma enfermidade. Nietzsche ironiza: “ele [Sócrates] havia, justamente apenas feito uma cara boa para a vida e escondido a vida inteira seu juízo último, seu sentimento mais íntimo! Sócrates, Sócrates sofreu com a vida! E ainda tomou vingança por isso – com essa palavra encoberta, horrível, devota e blasfêmia! Até mesmo um Sócrates tinha que se vingar ainda? Havia um grão de altivez a menos em sua riquíssima virtude?Ai, amigos! Temos de superar também os gregos!” (FW, § 340). https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 7 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) Nesse sentido, Foucault se contrapôs à leitura de Nietzsche sobre a interpretação das últimas palavras de Sócrates, pois Foucault não legitimou a afirmação de que Sócrates estava agradecendo a Asclépio por tê-lo curado do mal de ter a alma unida ao corpo, tal como Nietzsche argumentou (Ibid., p. 85). Nesse sentido, Foucault frisou que: “Nietzsche, pois, viu perfeitamente que entre essas palavras que Sócrates pronunciava no derradeiro momento da sua vida e todo o resto que ele dissera, fizera e fora no decorrer da sua existência, havia uma contradição. E ele resolveu a contradição dizendo que, em suma, Sócrates fraquejou e revelou esse segredo obscuro que ele nunca dissera, desmentindo assim no derradeiro momento tudo o que fizera” (Ibid., p. 86). Michel Foucault salientou que “a ideia de que a vida é uma doença da qual a morte cura não pode de modo algum funcionar, coincidir, se integrar com todo o ensinamento socrático” (Id., loc. cit.). Foucault continuou sua oposição direta à argumentação de Nietzsche e afirmou: “Sócrates nunca diz, nem pensa e não pensou que a vida é uma doença” (Ibid., p. 88). Foucault destacou que no diálogo intitulado Críton, o próprio havia proposto a Sócrates que fugisse da sua condenação, mas o filósofo se negou a aderir ao pedido do amigo e endereçou a Críton o pedido do sacrifício, ao dizer-lhe: “Críton, devemos um galo a Asclépio”. Nesse sentido, Foucault destacou que a doença que Sócrates desejava curar e da qual fora curado seria a das opiniões falsas, ou seja, das inverdades que causavam a destruição da alma, ou seja, “uma opinião falsa é efetivamente designada pelo nome de nósos (doença)” (Ibid., p. 92). Desse modo, Foucault salientou que “Críton havia sido acometido por uma doença que lhe fazia crer que era melhor Sócrates viver do que morrer” (Ibid., p. 94). Segundo o filósofo francês, Sócrates teria agido de acordo com sua avaliação do que era correto a se seguir, esperando o julgamento como um verdadeiro cidadão ateniense, que respeitava as leis da pólis. Sendo assim, Foucault destacou: “A acusação, se quisermos, consiste em dizer: não sei muito bem o que tu fizeste de mal, mas confessa que, de todo modo, é vergonhoso ter levado uma vida tal que agora te encontres diante dos tribunais, que agora estejas sob o golpe de uma acusação, que agora corras o risco de seres condenado e, até mesmo talvez, condenado à morte. Para alguém que levou um certo modo de vida, que não se sabe bem qual foi, mas tal que se arrisca a ser assim condenado à morte após um julgamento como este, afinal não há nisto alguma coisa de vergonhoso? Ao que Sócrates responde que, ao contrário, está muito orgulhoso de ter levado esta vida e que, se alguma vez lhe pedissem que levasse outra, recusaria” (FOUCAULT, 2006, p. 8). https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 8 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) Foucault encontrou nos textos de Platão os traços de uma história da “estética da existência” (FOUCAULT, 2006, p. 141). Foucault a relacionou também com a noção de “arte da existência”: “A arte da existência e o discurso verdadeiro, a relação entre a existência bela e a verdadeira vida, a vida na verdade, a vida pela verdade, é um pouco isso que gostaria tentar tratar. A emergência da vida verdadeira no princípio e na forma do dizer verdadeiro (dizer a verdade aos outros, a si mesmo, sobre si mesmo e dizer a verdade sobre os outros), vida verdadeira e jogo do dizer verdadeiro é esse o tema, o problema que gostaria de estudar” (Ibid., p. 143). Podemos perceber uma tentativa de associar o dizer verdadeiro com uma experiência estética relacionada a um determinado modo de vida. O êthos do cuidado de si relaciona-se com a parresía para que se possa pensar em diferentes formas de experiências de liberdade, na qual Foucault exaltou a filosofia como modo de vida. “Esse êthos filosófico pode ser caracterizado como uma atitude-limite. Não se trata de um comportamento de rejeição. Deve-se de escapar à alternativa do fora e do dentro: é preciso situar-se nas fronteiras. A crítica é certamente a análise dos limites e a reflexão sobre eles. Mas, se a questão kantiana era saber a que limites o conhecimento deve renunciar a transpor, parece-me que atualmente a questão crítica deve ser revertida em uma questão positiva no que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e fruto de imposições arbitrárias. Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida sob forma de limitação necessária em crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível. [...] Nesse sentido, essa crítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar possível uma metafísica: ela é genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método. Arqueológica – e não transcendental – no sentido de que ela não procurará depreender as estruturas universais de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos como acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que somos o que para nós é possível fazer ou conhecer, mas ela deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos.” (FOUCAULT, 2000, p. 347-348). Foucault destacou que essa atitude “histórico-crítica deve ser também uma atitude experimental” (FOUCAULT, 2000, p. 348). O que ele salientou nessa “ontologia histórica de nós mesmos” é que devemos desviar de “todos esses projetos que pretendem ser globais e radicais” (Id., loc. cit.). Foucault frisou, então, o projeto de um “êthos filosófico” como uma característica da “ontologia crítica de nós mesmo” para https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 9 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) que possamos traçar os limites que podemos transpor em um trabalho nosso em nós mesmo como seres livres (Id., loc. cit.). A parresía No curso “A Coragem de Verdade”, Foucault salientou que chegou ao problema da parresía a partir das questões levantadas pelas análises entre sujeito e verdade. No entanto, ele não quis estudar o discurso de verdade que se poderia dizer sobre o sujeito, “mas o discurso de verdade que o sujeito é capaz de dizer sobre si mesmo.” (FOUCAULT, 2011, p. 5). As pesquisas foucaultianas apontaram para uma grande quantidade de falas sobre si na antiguidade greco-romana. Para que houvesse tais práticas se fazia necessária a presença do outro. “O outro que escuta, o outro que incentiva a falar e que fala ele próprio” (Ibid., p. 6). Esse “outro” pode ser o filósofo de profissão ou qualquer pessoa (Ibid., p. 7). Na cultura cristã esse “outro” assumiu a forma do confessor ou do diretor de consciência. Já na modernidade o “outro” identificou-se com a figura do “médico, o psiquiatra, o psicólogo ou o psicanalista” (FOUCAULT, loc. cit.). A noção de parresía é uma noção política, portanto, é impossível estudá-la sem pensar a “relação de poder e seu jogo entre sujeito e verdade” (Ibid., p. 9). Essa noção tem uma correlação com a “esfera da ética pessoal” e com a “constituição do sujeito moral” (FOUCAULT, loc. cit.). “A parresía é, portanto, o ‘dizer tudo’, mas indexado à verdade, não ocultar nada da verdade, dizer a verdade sem mascará-la com o que quer que seja” (FOUCAULT, 2011, p. 11). Ao dizer a verdade, o parresiasta corre o risco extremo da perda da própria vida: “O sujeito, [ao dizer] essa verdade que marca como sendo sua opinião, seu pensamento, sua crença, tem de assumir certo risco, risco que diz respeito à própria relação com a pessoa a quem se dirige. Para que haja parresía é preciso que, dizendo a verdade, se abra, se instaure e se enfrente o risco de ferir o outro, de irritá-lo, de deixá-lo com raiva e de suscitar de sua parte algumas condutas que podem ir até a mais extrema violência” (FOUCAULT, 2011, p. 12). O jogo da parresía é jogado pelo interlocutor que assume o risco de dizer a verdade (“coragem de verdade”) e pelo receptor que respeita a pessoa que assume o risco do falar franco. Nesse jogo destaca-se a coragem de quem fala e de quem escuta. https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 10 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) “o parresiasta é de fato aquele que assume o risco de questionar sua relação com o outro e até sua própria existência dizendo a verdade, toda a verdade, contra todos e contra tudo, por outro lado, aquele a quem essa verdade é dita – quer se trate do povo reunido que delibera sobre as melhores decisões a tomar, quer se trate do Príncipe, do tirano ou do rei a que é preciso dar conselhos, quer se trate do amigo que você guia -, este (povo, rei, amigo), se quiser desempenhar o papel que lhe propõe o parresiasta dizendo-lhe a verdade, [deve] aceitá-la por mais desagradável que sejam para as opiniões estabelecidas na Assembléia, para as paixões ou os interesses do Príncipe, para a ignorância ou a cegueira do indivíduo” (Ibid., p. 13). A parresía é uma atitude, um modo de ser, de se portar, de conduzir a si mesmo. Ela é “uma maneira de ser que se aparenta à virtude, uma maneira de fazer” (Ibid., p. 15). Logo, “o parresiasta põe em jogo o discurso verdadeiro que os gregos chamavam de êthos” (Ibid., p. 25). O filósofo Michel Foucault destacou que: “É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula: é preciso concebê-la como uma atitude, um êthos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível” (Id., 2000, p. 351). Ainda sobre essa questão, Foucault destacou que a “ontologia histórica de nós mesmos” deve responder a questões em três eixos: saber, poder e ética. Esses eixos são importantes para pensar “como nos constituímos como sujeitos de nosso saber; como nos constituímos como sujeitos que exercem ou sofrem relações de poder; como nos constituímos como sujeitos morais de nossas ações” (Ibid., p. 350). Portanto, o debate sobre a parresía tem uma correlação com os debates contemporâneos sobre ética e estética da existência. O êthos do cuidado de si Foucault destacou que cuidar de si é também tomar conhecimento de si, tal como foi praticado pela filosofia socrático-platônica. Esse conhecimento de si também é “o conhecimento de um certo número de regras de conduta ou de princípios que são simultaneamente verdades e prescrições. Cuidar de si é se munir dessas verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo de verdade” (FOUCAULT, 2004, p. 269). “O cuidado de si constituiu, no mundo greco-romano, o modo pelo qual a liberdade individual – ou a liberdade cívica, até certo ponto foi pensada como ética. Se se considerar toda uma série de textos desde os antigos diálogos platônicos até os grandes textos do estoicismo tardio – Epícteto, https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 11 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) Marco Aurélio... – ver-se-á que esse tema do cuidado de si atravessou verdadeiramente todo o pensamento moral [...] nos gregos e romanos – sobretudo nos gregos – para conduzir bem, para praticar adequadamente a liberdade, era necessário se ocupar de si mesmo, cuidar de si, ao mesmo tempo para se conhecer – eis o aspecto familiar do gnôthi seautón – e para se formar, superar-se a si mesmo, para dominar em si os apetites que poderiam arrebatá-lo. Para os gregos, a liberdade individual era muito mais importante – contrariamente o que diz o lugar comum, mais ou menos derivado de Hegel, segundo o qual a liberdade do indivíduo não teria nenhuma importância diante da bela liberdade da cidade: não ser escravo (de uma outra cidade, daqueles que o cercam, daqueles que governam, de suas próprias paixões) era um tema absolutamente fundamental; a preocupação com a liberdade foi um problema essencial, permanente, durante os oito grandes séculos da cultura antiga. Nela temos toda uma ética que girou em torno do cuidado de si e que confere à ética antiga sua forma particular. Não digo que a ética seja o cuidado de si, mas que, na antiguidade, a ética como prática racional da liberdade girou em torno desse imperativo fundamental: ‘cuida-te de ti mesmo’ ” (Ibid., p. 268). De acordo com as reflexões foucaultianas, para os gregos o tema da liberdade individual era um problema ético, ou seja, era um problema do êthos, de um certo modo de se conduzir, de se portar. “O êthos de alguém se traduz pelos seus hábitos, por seu porte, pela maneira de caminhar, pela calma com que responde a todos os acontecimentos” (Ibid., p. 270). A conduta ética precisa ser investida de um êthos “bom, belo, honroso, respeitável, memorável e que possa servir de exemplo” (Ibid., p. 270). Nesse sentido, a ética (êthos) se articula a uma liberdade que também é política. Platão destaca no livro IV da República que “Ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem de seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, chamada de arché – poder, comando” (apud FOUCAULT, 2004, p. 270) que implica também uma certa maneira de cuidar dos outros, por isso: “é importante, para um homem livre que se conduz adequadamente, saber governar sua mulher, seus filhos, sua casa. Nisso também reside a arte de governar. O êthos também implica uma relação com os outros, já que o cuidado de si permite na cidade, na comunidade ou nas relações interindividuais o lugar conveniente – seja para exercer uma magistratura ou para manter relações de amizades. Além disso o cuidado de si implica também uma relação com o outro, uma vez que para cuidar de si, é preciso ouvir as lições de um mestre. Precisa-se de um guia, de um conselheiro, de um amigo, de alguém que lhe diga a verdade. Assim, o problema das relações com os outros está presente ao longo desse desenvolvimento do cuidado de si” (Ibid., p. 270-271). https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 12 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) Entretanto, Foucault afirmou que nessa ontologia de si, o cuidado de si vem “eticamente em primeiro lugar, na medida em que a relação consigo mesmo é ontologicamente primária” (Ibid., p. 271). Nessa lógica do cuidado de si, Foucault destacou que “uma cidade na qual todo mundo cuidasse de si adequadamente funcionaria bem e encontraria nisso o principio ético de sua permanência” (FOUCAULT, loc. cit.). O governo de si e o governo dos outros são importantes para pensar o governo da pólis. Na visão platônica, o tirano e o homem de alma tirânica são escravos dos desejos4. O abuso do poder e a escravidão colocam em risco o exercício da liberdade. O tirano se torna escravo de seus desejos “O bom soberano é precisamente aquele que exerce seu poder adequadamente, ou seja, exercendo ao mesmo tempo seu poder sobre si mesmo. É o poder sobre si que vai regular o poder sobre os outros” (Ibid., p. 272). “a partir do fato que se cuida de si em sua própria vida e de que a reputação que se vai deixar é o único além com o qual é possível se preocupar, o cuidado de si poderá então estar inteiramente centrado em si mesmo, naquilo que se faz, no lugar que se ocupa entre os outros; ele poderá estar totalmente centrado na questão da morte – o que ficará muito evidente no estoicismo tardio – e mesmo, até certo ponto, poderá se tornar quase um desejo de morte. Ele poderá ser, ao mesmo tempo, senão um cuidado dos outros, pelo menos um cuidado de si benéfico para os outros” (FOUCAULT, 2004, p. 273). Dessa forma, Foucault destacou que o cuidado de si é “uma atitude – para consigo mesmo, para com os outros, para com o mundo” (2006, p. 14). Ou seja, o “cuidado de si” é uma certa forma de olhar, sendo preciso “converter o olhar do exterior, dos outros, do mundo, etc., para ‘si mesmos’” (FOUCAULT, loc. cit.). Práticas de liberdades Quando se coloca em questão o tema da liberdade e da capacidade do sujeito se fazer livre, Foucault retornou aos estudos de Kant e, então, distinguiu e definiu a menoridade da maioridade. Kant argumentou sobre a importância do sujeito se libertar do livro, do médico e do diretor de consciência para conseguir conquistar sua liberdade. De acordo com Câmara Leme, “é preciso sublinhar que para Kant é a prioridade da razão prática que suporta a maioridade” (LEME, 2013, p. 27). De acordo com Kant, a saída da menoridade para maioridade aparece como um “princípio de desunião do 4 Platão desenvolve esses debates nos Livros VIII e IX da República. https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 13 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) rebanho como é também o que permite assinalar que seus membros não são todos iguais, pois há os covardes e os corajosos. Se anteriormente o que causava a dispersão do rebanho era a ausência do pastor, agora essa separação se deve à autonomia de seus membros” (Ibid., p. 26). Entretanto, Foucault destacou que: “o problema não é o livro, o diretor ou o médico, mas justamente a relação que cada um tem com eles. Muito mais do que a libertação dos preconceitos ou dos grilhões, o que está em causa é o modo como o reconhecimento da autoridade não compromete o uso próprio do entendimento. A questão decisiva é a relação que se tem com a autoridade, é essa relação que é preciso pensar. Portanto não se trata, como Foucault sublinha, de afastar o livro, negar o diretor de consciência ou afastar o médico (Foucault, 2008, p. 29), mas de saber em que condições e de que maneira um sujeito age de forma a tornar-se dependente deles, como é que se coloca em sua direção.” (apud LEME, 2013, p. 29). Sobre o tema da menoridade, José Luis Câmara Leme destacou também que: “Foucault começa por recordar que a menoridade é para Kant uma condição exclusiva aos sujeitos que podem exercer sua autonomia, que ‘são perfeitamente capazes de se guiar por si sós’ (Foucault, 2008, p. 28). O cerne da menoridade, o repto filosófico que ela representa, é que se trata duma opção que os sujeitos fazem por esse estado. Nas palavras de Foucault, “eles se colocam sob a direção dos outros”, eles “não querem dirigir-se a si mesmos”. Repare-se que se trata de uma escolha, de uma opção que o sujeito capaz de autonomia abraça. Não se trata de uma sujeição imposta de fora. (LEME, 2013, p. 29). Portanto, o desafio maior proposto por Foucault é pensar, justamente, que a posição de menoridade e maioridade podem coabitar no mesmo sujeito. E que a decisão pela posição da menoridade é uma escolha. “O que é difícil e crucial é a relação positiva do projeto crítico com a autoridade” (Ibid., p. 26). Logo, “a autonomia não é a única saída para a menoridade pastoral nem representa por si mesmo um estilo de vida [...] não é pelo fato do governo se libertar da incumbência de definir a vida boa que os sujeitos passam a persegui-la autonomamente” (Ibid., p. 32). O que é importante para pensar o tema da liberdade em Foucault é pensar que para o filósofo o sujeito não é uma substância, mas ele toma formas variáveis e maleáveis. Foucault estudou as “diferentes formas de sujeitos em relação aos jogos de verdade” (FOUCAULT, 2004, p. 275). Desse modo, as relações de poder se dão de formas “móveis, reversíveis e instáveis” (Ibid., p. 276). “Um poder só pode se exercer https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 14 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) sobre o outro à medida em que ainda reste a esse último a possibilidade de se matar, de pular da janela ou de matar o outro” (Ibid., p. 277). Nas relações de poder sempre há possibilidade de resistência, “pois se não houvesse possibilidade de resistência – de resistência violenta, de fuga, de subterfúgios, de estratégias que invertam a situação – não haveria de forma alguma relações de poder” (FOUCAULT, loc. cit.). Sobre a temática da liberdade, Foucault destacou: Recuso-me a responder à questão que às vezes me propõem: ‘Ora, se o poder está por todo lado, então não há liberdade’. Respondo: se há relações de poder em todo campo social, é porque há liberdade por todo lado. Mas há efetivamente estados de dominação. Em inúmeros casos, as relações de poder estão de tal forma fixadas que são perpetuamente dessimétricas e que a margem da liberdade é extremamente limitada” (Id., loc. cit.). Logo, Foucault entende que a liberdade não é natural, ela é uma conquista, um “uso” que pode ser feito ou não. Segundo Vera Portocarrero, “a liberdade não é tomada como um direito de ser, mas como uma capacidade de fazer” (PORTOCARRERO, 2012, p. 199). Em suas pesquisas Foucault analisou o sujeito pela perspectiva “da liberdade, das estratégias e da governabilidade” (FOUCAULT, 2004, p. 286). E, com isso, concluiu que “o poder não é mal. O poder são jogos de estratégias” (Ibid., p. 284). Foucault afirmou que a maior tarefa da filosofia é advertir sobre os perigos do poder. “A filosofia é justamente o que questiona todos os fenômenos de dominação em qualquer nível e em qualquer forma com que eles se apresentem – política, econômica, sexual, institucional. Essa função crítica da filosofia decorre, até certo ponto, do imperativo socrático: ‘ocupa-te de ti mesmo’, ou seja: ‘Constitua-te livremente, pelo domínio de ti mesmo’” (Ibid., p. 287). Portanto, o êthos crítico proposto por Foucault é constitutivo de um modo de vida filosófica implicada em “práticas refletidas do sujeito ético” que é capaz de fazer uso da liberdade. (PORTOCARRERO, op. cit., p. 198). *** https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm 15 Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 7, n. 1, 2016. (ISSN: 2236-0204) Lista de Abreviaturas: FW - A Gaia Ciência GD - Crepúsculos dos Ídolos REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. A coragem de verdade: o governo de si e dos outros II. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ______. “A ética do cuidado de si como prática da liberdade.” In: Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. ______. A hermenêutica do sujeito. 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