Espasmo e estagnação: um século de
escravidão em Curitiba (1765-1862)
Boom and stagnation: a century of slavery in Curitiba (1765-1862)
Carlos Alberto Medeiros Lima*
Resumo: Neste artigo, busca-se utilizar registros de óbito a fim de descrever algumas
características básicas da população escrava de Curitiba, estudando a evolução das
atividades econômicas para as quais era destinado o trabalho cativo. Observaram-se duas
situações muito distintas: um espasmo ocorreu durante o último quarto do século XVIII, e a
ele se seguiu uma longa estagnação iniciada nos anos 1800. Os assentos de sepultamento
mostram igualmente que distribuições desequilibradas dos adultos por ambos os sexos
eram relativamente frequentes, que as condições de estabelecimento de famílias escravas
declinaram fortemente ao longo do século estudado e que as posses de escravos declinaram
consistentemente quanto a seu tamanho e sua importância.
Palavras-chave: escravidão; fronteira agrária; trabalho escravo; Curitiba.
Abstract: In this article an attempt is made to use burial records to describe some basic
characteristics of the slave population of Curitiba, studying also the economic activities to which
the slaves’ work was directed. Two distinct situations were detected: a boom occurred during
the last quarter of the eighteenth century, and it was followed by a long stagnation beginning in
the 1800s. Burial records also show that sex imbalances were relatively frequent in local slave
population, that slave families became less visible and important along the century studied,
and that slave holdings declined consistently in size and relevance.
Keywords: Slavery; Agrarian frontier; Slave Labor; Curitiba.
*
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado da
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista PQ-CNPq. E-mail: carlima3@gmail.com. ORCID: https://
orcid.org/0000-0003-0712-4594.
Mundos do Trabalho, Florianópolis | v. 13 | p. 1-21 | 2021
e-ISSN: 1984-9222 | DOI: https://doi.org/10.5007/1984-9222.2021.e76398
1
Carlos Alberto Medeiros Lima
Introdução, interpretação, recorte1
P
eriodizar a escravidão curitibana segundo prazo mais longo que o habitual permite
recolocar questões importantes a seu respeito. Isso se aplica às atividades econômicas
concentradoras do trabalho cativo, a aspectos da composição dessa população, à evolução
das posses e a traços das formas de convivência.
Isso é feito aqui com assentos de óbitos, por permitirem alongar a série mantendo um
mínimo de homogeneidade, não sendo um impedimento o fato de serem usados os registros
das mortes para observar a composição e a evolução de uma população (os óbitos retratam
aspectos de sua estrutura em períodos anteriores aos dos falecimentos).2 Tratados com
prudência, eles fornecem indicadores úteis, embora indiretos.3 Nada há de absoluto nos
números obtidos, nem mesmo uma taxa de mortalidade: ao confrontar os sepultamentos de
1793-1801 com a lista nominativa relativa a 1797, foi observada a equivocada taxa de 18 por
mil para a população cativa (as lacunas nos óbitos levam a resultados como esse).4 Se os
números, por si só, nada significam, sua evolução pode trazer informação relevante, inexistindo
razões para julgar terem o sub-registro e a taxa de mortalidade variado substancialmente
ao longo do período, se suprimidos em alguns encaminhamentos os anos de crise forte de
mortalidade.5
Sendo sempre revelador o estudo da escravidão em áreas não exportadoras e de poucos
cativos,6 realizar esse trabalho com listas nominativas limitaria a duração observada, e o
alongamento do período abordado fornece perspectivas insubstituíveis. Conforme assegurou
Martins, ao elaborar seu Índice de introversão da economia mineira (dízimos divididos pelo
valor das “entradas” cobradas aos gêneros introduzidos em Minas Gerais), os valores obtidos
“não carregam, em si, nenhum significado específico, apenas sua tendência é significante”.7
O mesmo se aplica aos dados utilizados aqui. A lição está sempre e apenas no sentido da
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7
O autor agradece as críticas e recomendações dos pareceristas anônimos de Mundos do Trabalho.
Existem precedentes para o uso de registros de óbito como fonte para a história social do cativeiro. Um
deles é ENGEMANN, Carlos; ASSIS, Marcelo de; FLORENTINO, Manolo. Sociabilidade e mortalidade
escrava no Rio de Janeiro – 1720-1742. In: FLORENTINO, M.; MACHADO, C. (org.). Ensaios sobre a
escravidão (I). Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003. p.189-200, p. 190-194. Paralelamente, há estudos
sobre o Brasil Meridional usando os registros de óbito com a finalidade, ligada à demografia, de observar a
mortalidade. Ver SCOTT, Dario. Livres e escravos: população e mortalidade na Madre de Deus de Porto
Alegre (1772-1872). 2020. Tese (Doutorado em Demografia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Unicamp, Campinas, 2020.
Aqui, aliás, serão usadas algumas outras fontes (batismos, inventários e recenseamentos), a fim de fazer
avançar um pouco mais algumas observações vindas dos sepultamentos.
Maços de população – Curitiba, 1797, Arquivo Público do Estado de São Paulo; Óbitos 1784 a 1806, Paróquia
de N. S. da Luz dos Pinhais de Curitiba.
Para evitar os anos nos quais a taxa de mortalidade variou com violência, foram eliminados de alguns gráficos
os anos de crise forte, identificados com o método de DUPÂQUIER, Jacques. L’analyse statistique des crises
de mortalité. In: CHARBONNEAU, H.; LAROSE, A. (org.). The great mortalities. Liège: IUSSP, 1979. p. 83112. Ele propõe dividir a diferença entre o valor de um ano e a média dos dez anos anteriores pelo desvio
padrão relativo aos mesmos dez anos anteriores. Resultados entre 4 e 8 indicam que o ano em apreço foi de
crise forte de mortalidade. Valores mais alentados indicam crises maiores ou catástrofes.
Ver, por exemplo, LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de
São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005. p. 17.
MARTINS, Roberto B. Crescendo em silêncio. Belo Horizonte: ICAM/ABPHE, 2018. p. 205.
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Espasmo e estagnação
movimentação de cada um dos indicadores e na relação entre os movimentos exercidos por
indicadores diferentes.
Quanto às questões da participação escrava na população e do tamanho das posses,
não basta dar-lhes como resposta expressões como “pequena” ou “diminuto”; é bem melhor
levar em conta as variações de ambos e sua interação com outros fatores. Está evidentemente
vencida a antiga questão da ausência de escravidão no Paraná, como se isso fosse possível
em alguma parte do Brasil.8 Em 1822, 16% dos curitibanos eram escravizados9 (e essa não
foi a maior proporção de escravizados na população vista através da série), ao passo que a
população municipal era cerca de um terço do total do Paraná. Isso conduz a lembrar que
qualquer grupo social tinha ínfimos contingentes na região.
Segundo o recenseamento de 1872, a população paranaense era de 126.722 pessoas
(os indígenas não controlados não deviam aumentar esse número nem em um quinto,
após uma longa história de incursões preadoras paulistas e a desarticulação do Guairá10),
compondo uma densidade demográfica de cerca de seis habitantes para cada 10 km2. Ela,
de fato, representou um grande avanço em relação à época da Independência, quando a
densidade deve ter ficado bem abaixo de dois habitantes para cada 10 km2.11 A imigração
europeia não foi decisiva numericamente entre 1830 e 1860, embora os imigrantes fossem
visíveis em colônias oficiais na década de 1850.12 Ela só explodiu a partir de 1880. Assim, o
que era pequeno era a população total, e não só a escrava.
Além do mais, nem sempre o peso da escravidão na sociedade curitibana foi diminuto.
Nos anos 1780, os óbitos escravos consistiram em cerca de três em cada dez falecimentos na
paróquia. Para dar alguma concretude a esses 30%, comparo com Rio Claro, paradigmático
“sistema brasileiro de grande lavoura”13 no Oeste Paulista do século XIX, época, aliás, na
qual a participação escrava nas populações rurais paulistas aumentou. Entre 1839 e 1850,
sepultamentos de cativos compuseram cerca de 25% dos óbitos registrados, bem menos que
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13
IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962; WESTPHALEN,
Cecília M. Afinal, existiu ou não regime escravo no Paraná? Revista da SBPH, Curitiba, n. 13, p. 25-63, 1997;
LIMA, Adriano B. M. Trajetórias de crioulos. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – PPGHIS, UFPR,
Curitiba, 2001; PENA, Eduardo Spiler. O jogo da face. 1990. Dissertação (Mestrado em História) – Curso de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1990.
BALHANA, Altiva Pilatti. Estruturas populacionais do Paraná no ano da Independência. Boletim da
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, n. 19, p. 5-26, 1972, p. 21-23.
Infere-se isso de HEMMING, John. Red gold. 2ª ed., Chatham: Papermac, 1995, p. 511; AMOROSO,
Marta. Catequese e evasão. 1998. Tese (Doutorado em Antropologia) – Departamento de Antropologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. p. 25; MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang.
Maringá: UEM, 1994.
BALHANA, 1972, op. cit., p. 12; NADALIN, Sergio O. Paraná: ocupação do território, população e migrações.
2ª ed., Curitiba: SAMP, 2017, p. 51-57; GUTIÉRREZ, Horacio. A estrutura fundiária no Paraná antes da
imigração. Estudos de História, Franca, v. 8, n. 2, p. 209-231, 2001, p. 210.
BALHANA, Altiva Pilatti; MACHADO, Brasil Pinheiro; WESTPHALEN, Cecília Maria. História do Paraná.
Curitiba: Grafipar, s/d., v. 4. p. 164-165; BALHANA, Altiva P. Un mazzolino de fiori. Curitiba: Imprensa Oficial;
Secretaria do Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, 2003, v. III, p. 447-463, p. 451; NADALIN, op.
cit., p. 58 et seq.
DEAN, Warren. Rio Claro. São Paulo: Paz e Terra, 1977. Cúria Diocesana de Piracicaba, Livro 1 – óbitos –
São João Batista de Rio Claro – 1830-1842; Óbitos 2 – jan./1843-abr./1860. Os escravizados, na companhia
de Piracicaba de onde Rio Claro seria destacada, compunham, em 1828, 33% da população (Maços de
população, Piracicaba, 1828 – Arquivo Público do Estado de São Paulo).
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Carlos Alberto Medeiros Lima
o nível curitibano da década de 1780. Assim, a situação do fim do século XVIII era comparável
à da agroexportação mais voraz do Oeste Paulista do século XIX.
Vê-se ter havido um espasmo escravista em Curitiba no último quarto do século XVIII,
levantando questões importantes sobre a América Portuguesa em seu conjunto. O boom foi
parte do chamado “renascimento agrícola” da época,14 e este implicou migrações internas
e ocupação colonial de sertões. Para lidar com isso, são abordados na sequência alguns
problemas de interpretação.
A ênfase clássica na situação periférica do Paraná15 levou a enfatizar fenômenos como
as pequenas posses de escravos e a baixa participação cativa na população. Descrever as
posses como diminutas, no entanto, não ajuda muito a entender a evolução da propriedade
escrava e da presença relativa dos cativos entre os habitantes. Seguiu-se outro esquema
interpretativo, enfatizando as atividades não exportadoras, voltadas ao abastecimento, com
sua estabilidade e sua capacidade de oportunizar acumulação e crescimento endógeno das
escravarias.16 Um terceiro aporte veio da percepção acerca da centralidade das práticas e
instituições ligadas à fronteira agrária expansiva. Este último tipo de análise foi experimentado
por Balhana em um ensaio no qual, embora seja abordada a região Sul em seu conjunto, há
elementos de interesse acerca de Curitiba.17
Estudando agricultura e povoamento do Brasil Meridional, ela raciocina, quanto
a alguns aspectos, em termos de relações entre centro e periferia. Aborda processos
resultantes de políticas coloniais, como a distribuição de sesmarias, a indução da imigração
de açorianos e a regulamentação da criação de mulas. Ademais, usa a expressão “ciclo”
para fazer referência ao charque e à coleta de erva-mate.18 O foco do trabalho, no entanto,
é a interação entre grandes espaços e a evolução da (ínfima) população, remetendo às
ideias de Boserup acerca dos efeitos da dinâmica demográfica sobre a evolução agrária.
Essa dinâmica, e não as políticas coloniais, definiu atividades produtivas e formato das
unidades agrárias. Assim, associa os desflorestamentos sulinos à instauração da agricultura
de alimentos, alude à falta de braços e ao impacto técnico da relação terra-trabalho, além
de abordar mecanismos de expansão ocorridos à margem do peso da metrópole (citam-se a
expansão paulista, que podia dar-se atrás de ouro, mas que terminava por prear indígenas,
ou então a difusão descontrolada de animais exógenos, gerando atividades novas e de
difícil regulação).19
14 PRADO Jr., Caio. História econômica do Brasil. 12ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1970, cap. 10; ALDEN,
Dauril. O período final do Brasil Colônia, 1750-1808. In: BETHELL, L. (org.). História da América Latina. São
Paulo: Edusp; Brasília: FUNAG, 1999, v. II. p. 527-592.
15 IANNI, op. cit., p. 13.
16 GUTIÉRREZ, Horacio. Demografia escrava numa economia não exportadora: Paraná, 1800-1830. Estudos
Econômicos, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 297-314, jul.-dez. 1987.
17 BALHANA, 2003, op. cit., v. III, p. 47-56.
18 BALHANA, 2003, op. cit., v. III, p. 48-51.
19 BALHANA, 2003, op. cit., v. III, p. 51-52. Brasil P. Machado parece ter endossado a abordagem, ao lembrar
testemunhos do início do século XVIII no sentido de que a terra não tinha valor, corroborando a ideia de
fronteira agrária expansiva, fazendo viger um ímpeto migrante na direção de baldios. Ver MACHADO, Brasil
P. Três cadernos de história, ideias e reflexões. Curitiba: Arte e Letra, 2002. p. 71.
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Espasmo e estagnação
A ideia de fronteira com recursos abertos combina com a análise de Schwartz sobre a
formação de um campesinato abastecedor em Curitiba no século XVIII20 e com a percepção
de Burmester quanto às baixíssimas idades das mulheres ao se casarem; a disponibilidade de
recursos – terra – permitia a formação precoce de famílias.21 As questões de financiamento e a
preeminência do capital mercantil na formação de regiões produtivas novas22 foram evocadas
por Machado: a “classe senhorial” situada no “centro” de “Toda a estrutura social e econômica”
descendia “da primeira geração de portugueses vindos para o Brasil durante a imigração
peninsular do século XVIII”, e tais imigrantes “primeiro se estabeleceram como comerciantes
nas vilas” para, “depois, pelo casamento das antigas famílias ou aquisição de terras com o
capital conseguido no comércio, inclusive no comércio de tropas”, estabelecerem fazendas.23
Atentar para a fronteira agrária em movimento leva a enfatizar o que Alencastro
chamou de desterritorialização do mercado de trabalho – a capacidade da ordem social
de reproduzir-se movimentando ou importando adultos “prontos”. Isso relativizava
constantemente os mecanismos de socialização, constituindo um tipo de sociedade no qual
crianças e as instituições dedicadas à formação de adultos integrados eram, sordidamente,
quase prescindíveis.24 Ele se refere ao par tráfico de escravos-migrações atlânticas, mas,
na época abordada aqui, uma situação de migrações internas forçadas conduzia a mais ou
menos o mesmo.
Como as enormes paróquias iniciais acabavam por ser desmembradas, observar a de
Curitiba com sua abrangência de 1800 (após a separação da Lapa, de Castro e de S. José
dos Pinhais durante o século XVIII)25 impõe considerar os sepultamentos de Campo Largo
e Palmeira. Esta resultou da transferência para o atual município de Palmeira, em 1823, de
uma paróquia criada em 1813 (N. S. da Conceição do Tamanduá).26 Parte dessa freguesia
antiga, abarcando as fazendas agropastoris ligadas ao tropeirismo,27 continuou pertencendo
à paróquia de Curitiba e depois à de Campo Largo, a partir da criação desta (1833).28
20 Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Slaves, peasants, and rebels. Urbana: University of Illinois Press, 1992, p. 77-78.
21 Cf. BIDEAU, A.; BURMESTER, Ana Maria de O.; BRUNET, G. Les familles de Curitiba (Brésil) au XVIIIe siècle:
approche de la fécondité. Annales de Démographie Historique, Paris, p. 7-24, 1993; sobre fronteira, ver
PONTAROLO, Fabio. Terra, trabalho e resistência na fronteira agrária. 2019. Tese (Doutorado em História)
– Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido
Rondon, 2019. p. 18-19, passim.
22 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001. cap. 1.
23 MACHADO, op. cit., p. 79; ver também BORGES, Joacir Navarro. Das justiças e dos litígios. 2009. Tese
(Doutorado em História) – PPGHIS, UFPR, Curitiba, 2009. p. 195, 205-206.
24 ALENCASTRO, Luiz F. de. A pré-revolução de 30. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 18, p. 17-21, set. 1987.
25 BURMESTER, Ana M. de O. A população de Curitiba no século XVIII - 1751-1800. 1974. Dissertação
(Mestrado em História) – Departamento de História, UFPR, Curitiba, 1974. p. 16-20; ANDREAZZA, Maria
L. Olhares para a Ordem Social na Freguesia de Santo Antônio da Lapa 1763-1798. In: XIII ENCONTRO
DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 2002, Ouro Preto/MG. Anais [...]. Ouro
Preto: ABEP, 2002. p. 1-21. Disponível em: http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/article/
view/1140/1103. Acesso em: 12 ago. 2020; MACHADO, Cacilda. A trama das vontades. Rio de Janeiro:
Apicuri, 2008.
26 LOPES, José Carlos Veiga. Aconteceu nos Pinhais. Curitiba: Progressiva, 2007. p. 607.
27 GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 102-127,
jul.-dez. 2004.
28 MARQUES, Leonardo. Por aí e por muito longe. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009; BARCIK, Vergínia. Campo
Largo, 1832-1885. 1992. Dissertação (Mestrado em História) – Curso de Pós-Graduação em História,
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O marco inicial é 1765 por ser preciso deixar para outras análises os períodos de alta
proporção de indígenas administrados,29 pois estes apareciam nos óbitos de modo sempre
muito ambíguo. Foi rápido o aumento da importância da escravidão africana na passagem de
1765-1774 para 1775-1801. Isso é consistente com a imagem proposta aqui de uma chegada
súbita de escravos como migrantes forçados no último quarto do Setecentos.
Uma longa caminhada, batendo duas vezes com a cabeça no teto
O gráfico 1 mostra a média anual de óbitos de escravos. Deixou-se ressaltada a informação
relativa aos adultos (15 anos ou mais), pois as das crianças sempre foram mais problemáticas.
É necessária muita cautela para ler os dados: aumentos na quantidade de adultos mortos a
cada ano sinalizam que a população era crescente e vice-versa; e é só, pois nem uma taxa
de crescimento ou decréscimo pode ser inferida. Uma precaução foi tomada para fazer essa
série de óbitos descrever melhor o movimento da população. Como um eventual aumento
no número de mortes podia ser devido a uma crise de mortalidade e não a um aumento da
população em anos anteriores, suprimiram-se os dados sobre 1774, 1781 e 1818, pois foram
de crises fortes entre os escravizados.30
O crescimento da população cativa foi enérgico no final do Setecentos e letárgico no
século XIX. Isso não constitui ilusão de ótica derivada de se usarem os óbitos como informação
de base; só se trataria de ilusão se a taxa de mortalidade tivesse caído muito – e não se
acredita nisso. A população cativa de Curitiba simplesmente não cresceu durante boa parte do
século XIX. A comparação entre o movimento dos óbitos escravos e as informações sobre a
população total esclarecem melhor o ponto. As colunas (gráfico 1) relativas a 1824-30 e 185962 sugerem ter havido algum aumento da população adulta. Mas a população livre cresceu
muito mais.31
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1992. p. 8.
29 SCHWARTZ, op. cit., p. 145. Nos dados usados aqui, se forem reunidos aos óbitos de administrados e
administradas identificados aqueles de seus filhos, e se esse total for confrontado com o de escravizados
mortos, percebe-se que, entre 1765 e 1774, foram enterrados dois afrodescendentes cativos para cada
administrado; a partir de 1775, até 1801, essa proporção foi de nove escravizados para cada indígena sob
controle colonial estrito.
30 As estações mais difíceis em 1774 foram o verão e a primavera, nos dois casos afetando crianças e adultos.
Em 1781, foi problemático o inverno, especialmente para crianças. Em 1818, o outono foi cruel para crianças,
tendo sido esta última a maior anomalia do intervalo estudado.
31 Juntando aos de Curitiba os dados de São José dos Pinhais, Votuverava e Iguaçu, Balhana mostrou ter a
população livre de Curitiba passado de mais de 9 mil em 1824 para quase 19 mil em 1854. BALHANA, 2003,
op. cit., v. III, p. 449.
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Espasmo e estagnação
Gráfico 1 – Movimento médio anual, por subperíodos, de sepultamentos escravos
segundo a faixa etária (Curitiba, 1765-1862)
Obs.: foram suprimidos os anos de crise forte de mortalidade.
Fontes: Paróquia de N. S. da Luz dos Pinhais de Curitiba – Óbitos, 17651862; Paróquia de Palmeira – Batismos, livro 1; Óbitos, 1836-1874; Paróquia
de N. S. da Piedade de Campo Largo – Óbitos, 1831-1862.
O movimento de sepultados adultos aponta com força para um forte crescimento da população
escravizada no final do século XVIII, simultaneamente ao avanço da população total, resultado,
certamente, de migrações. Tratou-se do boom escravista na área, estabelecendo um ápice do
recurso ao cativeiro que, ligado a migrações e terras novas, faz ver a escravidão em Curitiba
como algo praticado na fronteira agrária.32
O travejamento posterior do avanço da população cativa dá a impressão de se estar
diante de uma atividade incapaz de acumular. Mas essa impressão é incorreta, pois, como
se verá, um motivo importante para a população cativa não crescer era o fato de Curitiba ter
passado de área atrativa a foco de novas migrações. A fronteira agrária continuou a moverse e, assim, a expansão perdeu ímpeto na sequência, pelo fato de novas áreas de ocupação
terem começado a surgir mais a oeste.33 1824-1830 foi outro período de movimento elevado
de escravos adultos mortos, mas os cativos compuseram então 14% dos sepultados, tendo,
portanto, diminuído sua participação (embora ela continuasse importante). Em 1859-1862,
eles perfizeram um décimo dos falecimentos.
O gráfico 1 indica duas ondas de avanço do cativeiro curitibano, tendo sido a primeira
um autêntico espasmo. A segunda foi mais lenta, o que deve ter tido relação com o fato de a
população da época do boom ter sido migrante e, assim, majoritariamente masculina (havia
32 Cacilda Machado seguiu Octavio Ianni ao apontar que o “apogeu do regime escravocrata” no Paraná teria
incidido no século XVIII. Cf. MACHADO, C. Cor e hierarquia social no Brasil escravista: o caso do Paraná,
passagem do século XVIII para o XIX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 45-66, jul.-dez. 2008, p. 50; IANNI,
op. cit., p. 85.
33 Talvez Guarapuava tenha sido apenas um dos exemplos, já que a população inicial foi pequena. Cf.
PONTAROLO, op. cit., p. 92; GUTIÉRREZ, 2001, op. cit., p. 210; FRANCO NETTO, Fernando. População,
escravidão e família em Guarapuava no século XIX. Guarapuava: Unicentro, 2007.
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poucas mulheres entre os migrantes forçados), com baixa capacidade de fazer crescer a
população posteriormente.
O crescimento anterior havia sido súbito. Entre 1780 e 1789, os óbitos de escravos
compuseram quase 30% do total de falecimentos,34 mostrando grande participação na
população. Os dados de Burmester sobre Curitiba remetem a esse boom de migrações
forçadas nos anos 1780. Entre 1776 e 1785, o contingente escravizado cresceu 11,1% ao
ano, taxa quase absurda, enquanto a população livre aumentou 5,9% anualmente. Depois
disso a massa cativa pôde diminuir (de 1785 a 1786), praticamente não aumentar (1786-1792
e 1798-1800) ou passar por um período eventual de crescimento de 2% ao ano (1792-1798),
enquanto a população livre crescia a taxas anuais bem mais altas. Segundo as mesmas
informações, os escravos foram mais de 29% da população curitibana em 1785 e 1786 (essa
proporção vinha crescendo desde 1776). Após isso, a participação relativa desceu a pouco
menos de um quarto, em 1792, e a pouco mais de um quinto em 1798 e 1800.35 Os mapas de
população corroboram a alta participação escrava na população indicada pelos óbitos, o que,
além de reforçar o argumento acerca do boom, atesta a viabilidade de usar séries construídas
a partir dos óbitos para observar a população no longo prazo.
O gráfico 1, por inevitável distorção derivada do procedimento, aponta maior importância
do cativeiro nos anos 1790 que na década de oitenta, resultado do fato de os óbitos escravos
indiciarem as características da população vivente alguns anos antes. É possível ter segurança
acerca das maiores participações de escravos na população durante os anos 1780; é
igualmente seguro terem elas caído na década seguinte. Segundo lista de habitantes de 1797
(excluindo-se a parte relativa a S. José dos Pinhais), os cativos eram 18% da população
total,36 o que não era pouco, mas representava redução frente ao decênio anterior. O boom
escravista dependeu, assim, da chegada de migrantes livres trazendo escravizados.37
A população livre também cresceu. Fez isso segundo taxas menores, mas mais
consistentes. A população do planalto paranaense – com o grosso dela em Curitiba – cresceu
bem mais que a brasileira no fim do século XVIII. Segundo Balhana, o período de avanço mais
acelerado no intervalo 1720-1822 foi o estendido de 1772 a 1800, especialmente no planalto.
Ali, o avanço teve a incrível taxa de 4,2% ao ano, quase o dobro do ritmo dos anos anteriores
e posteriores,38 mesmo tratando-se de um município antigo, do século XVII. Era uma história
de gente se expandindo na direção de áreas novas. Isso ultrapassou paralelos da mesma
época: as estimativas de Alden para a população colonial apontam uma taxa de crescimento
de pouco mais de 1% ao ano entre 1776 e 1800.39 Já a população de São Paulo deve ter
34
35
36
37
Total de óbitos em BURMESTER, op. cit., p. 45-46.
BURMESTER, op. cit., p. 12.
Maços de população – Curitiba, 1797, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
A importância dos migrantes na formação das famílias livres também diminuiu a partir de 1790, segundo as
análises de BURMESTER, op. cit., p. 69 e KUBO, Elvira Mari. Aspectos demográficos de Curitiba: 18011850. 1974. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, UFPR, Curitiba, 1974. p. 86.
38 BALHANA, 1972, op. cit., p. 12-13.
39 ALDEN, op. cit., p. 529-530.
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Espasmo e estagnação
aumentado em quase 2% ao ano no último quarto do século.40 Curitiba, o fulcro da expansão
no planalto, cresceu duas vezes mais rapidamente que o conjunto da capitania.
Somente intensas migrações podem explicar uma taxa de crescimento de 11% ao ano
como a observada para os escravizados do período 1776-1785. Isso constituiu uma avalanche
que só a pequenez da população pôde tornar discreta.
Já a explosão escravista brasileira do período joanino e dos anos vinte41 teve poucos
efeitos em Curitiba. À frente será notado que, por outro lado, pode ter ocorrido então o início
de um segundo ciclo de proliferação de senhores de (muito poucos) escravos. Mas foi apenas
o início, e esse crescimento, quando ocorresse, não seria parecido nem com o curitibano do
fim do século XVIII, nem com aquele tangido pelas enormes importações de africanos que
marcaram os primeiros anos do Brasil independente.
No âmbito mais amplo do Império Luso-Brasileiro, esse enorme avanço escravista
deveu-se muito à ascensão do tráfico de escravos africanos. Para discuti-lo quanto a Curitiba,
é preciso considerar conjuntamente os gráficos 1 e 2. Este foi construído reunindo informação
sobre o número de sepultados adultos para cada cem mulheres que, ao morrerem, tinham
mais de 14 anos de idade. Isso retrata indiretamente o recurso ao tráfico africano na localidade,
pois, nos navios negreiros, os africanos ultrapassavam em muito as africanas. Mas pode da
mesma forma refletir as migrações forçadas internas de cativos, também marcadas por forte
proporção de homens. É seguro dizer que a subida da razão de sexo observada quanto a
1841-1850 deveu-se ao tráfico africano, enquanto faltam dados para saber se as altas razões
de sexo do último terço do século XVIII ancoraram em importações ou em migrações internas.
Gráfico 2 – Razão de sexo dos escravos adultos mortos (Curitiba, 1765-1862)
Fontes: vide o gráfico 1.
40 Calculado a partir dos dados de LUNA; KLEIN, op. cit., p. 148.
41 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 46.
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Carlos Alberto Medeiros Lima
Os gráficos 1 e 2 mostram que, apesar de real o avanço da crueldade escravizadora
expressa nos dados dos anos 1824-30, isso não teve relação com o tráfico, pois não aumentou
a participação dos homens nos óbitos, sendo ela a menor de toda a série. O crescimento
verificado entre 1815-19 e 1824-30 teve, provavelmente, origem na reprodução endógena da
população escravizada.
Gutiérrez mostrou haver a população escrava local se capacitado para o crescimento
endógeno. Notou, para os anos 1800-1830, números semelhantes de homens e mulheres
na população adulta (resultado da raridade do recurso ao tráfico) e, especialmente, a alta
presença relativa das crianças.42 Percebe-se o impacto dessa configuração nos dados aqui
utilizados. Mas o crescimento foi pequeno.
Se o avanço obtido com a reprodução endógena foi diminuto, a obra do tráfico africano,
quando intensificado, também não foi portentosa. A precária proibição do comércio de almas
estabelecida em 1830-1831 levou a uma relativa descentralização dos desembarques,
fazendo mais africanos ficarem no Paraná e tornarem-se acessíveis a senhores curitibanos.43
O gráfico 2 indica aumento da razão de sexo na década de 1840, mostrando o recurso a isso.
Mas o movimento de sepultados (gráfico 1) sugere os limites de seus efeitos. Os números
não cresceram muito. É difícil ligar ao tráfico africano o parco crescimento efetivamente
manifestado nos óbitos do fim dos anos 1850 (gráfico 1), pois, como se vê pelo gráfico 2, a
razão de sexo dos óbitos de adultos de 1859-1862 foi um pouco menor que a de 1841-1850.
Pôr lado a lado os movimentos da população escrava com a periodização das atividades
econômicas obtida na bibliografia faculta bons relances sobre a alocação do trabalho cativo
em Curitiba. Começo por um caso do século XIX.
O contingente cativo de Curitiba caiu junto com as tropas ao redor de 1840 (gráfico 1).
Recuperou-se em seguida, sem, no entanto, retomar o ímpeto anterior até o início dos anos
sessenta, mas ainda em paralelo com as chegadas de animais a Sorocaba. A questão está
na ascensão, durante ambos os intervalos – o dos anos 1830-1840 e o subsequente, iniciado
na metade do século –, dos negócios do mate, e é preciso saber se foi a isso que o cativeiro
local deu respostas.
A periodização das exportações de erva e da instalação de unidades de beneficiamento
sugerem relativo desligamento entre mate e escravidão. As exportações cresceram entre o
fim dos anos 1830 e a década seguinte, diferentemente da população escrava, atingindo um
auge em 1867 e decrescendo a partir de então, no tocante ao período abordado aqui.44 Assim,
o movimento da presença escrava combina mais com a evolução da pecuária que com os
avanços ervateiros.
42 GUTIÉRREZ, 1987, op. cit.; GUTIÉRREZ, H. Crioulos e africanos no Paraná, 1798-1830. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p.161-188, mar.-ago. 1988; GUTIÉRREZ, 2004, op. cit., p. 117.
43 WESTPHALEN, Cecília M. Porto de Paranaguá, um sedutor. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura,
1998, p. 133-150; BETHEL, L. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Expressão e Cultura/
Edusp, 1976. p. 92.
44 WESTPHALEN, 1998, op. cit., p. 519-520.
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Espasmo e estagnação
O movimento de instalação de unidades de beneficiamento também não combina
muito com a dinâmica da população cativa. Ele começou no litoral.45 Apareceram engenhos
em Curitiba nos anos 1830, mas isso só teve um pouco mais de ímpeto ao redor de 1850,
mantendo-se, no entanto, a posição de Morretes e Antonina. Só na década de 1870 a instalação
de engenhos foi decisiva em Curitiba.46 Inventários post mortem lavrados nos anos 1870 em
Campo Largo mostram, além de ervais, engenhos de soque, normalmente degradados. Mas
eles eram poucos e não se ligavam a grandes fortunas escravistas.47 Nos patrimônios descritos
nos inventários campo-larguenses de 1870-1880, os indícios de agricultura de alimentos e de
pecuária eram mais comuns que os ervais nas maiores unidades escravistas.48 Acresce ter
consistido a atividade ervateira em mero extrativismo combinado com beneficiamento muito
rudimentar. Não movimentava muito trabalho humano e não originava muitos efeitos em
cadeia. Mobilizava valores elevados, mas modificava pouco o ambiente social, à exceção da
formação de uma elite endinheirada, no fim das contas muito mais uma elite mercantil. Por
outro lado, Campo Largo, que teve participação crescente na população escrava do conjunto
(dentro do trio Curitiba-Palmeira-Campo Largo – que reconstitui a paróquia de Curitiba de
1800 – passou de 1/10 nos anos 1830 para quase 1/4 em 1859-62), mostrava ainda mais
sinais de voltar-se para a agricultura de abastecimento.
A produção de alimentos manteve relevância enquanto caía a presença cativa.49 Mas isso
não significa ter sido ela desligada da escravidão, e muito menos que não tinha importância.
Produtores de milho setecentistas, é verdade, queixavam-se de não terem a quem vender seus
excedentes.50 No entanto, esses excedentes eram produzidos, no fim das contas. Agricultores
habitualmente se aproximavam dos pousos de tropas para comércio.51 Essas queixas deviam
ter motivações não expressas. A dominação mercantil, por exemplo. Não podem ser usadas
para argumentar sobre uma precariedade da produção para o abastecimento.
No fim das contas, a oscilação do negócio de tropas ajuda a entender tudo. O movimento
em Sorocaba aponta para ascensão quase constante até 1835, uma longa queda daí até 1851,
45 WEBER, Silvio Adriano. Além do cativeiro. 2009. Dissertação (Mestrado em História) – PPGHIS, UFPR,
Curitiba, 2009.
46 WESTPHALEN, 1978, op. cit., p. 165-166.
47 Vara Cível de Campo Largo, Inventários post mortem, 1872 (Manoel Antônio da Costa), 1878 (dona Maria das
Dores Padilha) e 1879 (Manoel Ribeiro de Macedo),
48 Inventários post mortem de Campo Largo. Historiadores já se ocuparam da discussão da vida social nos
Campos Gerais após o declínio das fazendas agropastoris. Balhana et al. notaram queda no número de
cativos, degeneração e queda mais lenta no número de cabeças de gado, aumento da importância dos
“camaradas”, transformação de campos de criação em invernadas, fazendeiros assumindo a condução de
tropas, fazendas perdendo autossuficiência e ascensão do comércio urbano, fornecendo gêneros a crédito.
A atividade comercial alterou-se, passando da ênfase no financiamento de atividades econômicas de larga
escala para o do consumo no varejo. Cf. BALHANA; MACHADO; WESTPHALEN, op. cit., v. 4, p. 92-102.
49 As subestimativas de Müller, de 1836 (MÜLLER, Daniel P. Ensaio d’um quadro estatístico da província de
São Paulo. São Paulo: Gov. do Estado de São Paulo, 1978, p. 128-143), apontam para grande excedente
de milho e feijão. Refiro-me a “subestimativa” porque, aparentemente, não contabilizou as declarações do
tipo “planta para o seu gasto” (sobre esse tipo de declaração, ver MACHADO, Cor e hierarquia social, 2008,
op. cit.). Essa agricultura era muito voltada para o mercado, apesar de os mecanismos serem ainda pouco
conhecidos.
50 NEGRÃO, Francisco. Termos de vereanças. Boletim do Archivo Municipal de Curitiba, Curitiba, v. XXXI,
1927, vereança de 14 maio 1777, p. 14.
51 ANDREAZZA, op. cit., p. 3.
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um aumento subsequente muito forte – conduzindo ao pico do século por volta de 1855 e 1860
– e uma tendência a cair daí em diante, com alguns respiros durante e logo após a Guerra do
Paraguai.52 Esses movimentos explicam, grosso modo, a movimentação de sepultamentos de
escravizados adultos: queda na passagem dos anos vinte para a década seguinte e ascensão
nas proximidades do fim dos anos 1840, com novo pico por volta de 1860.53 Mas seu tempo foi
o do boom do fim do século XVIII. Esses paralelismos serão retomados adiante.
Homens e mulheres
Há mais lições no gráfico 2. Como demonstrou Gutiérrez, foi uma exceção a célebre situação
por ele estudada de números parecidos de escravizados de ambos os gêneros na população
escrava paranaense de 1798-1830.54 Os óbitos mostram a inexistência dessa situação no
século XVIII, época de fortes maiorias masculinas. O período de razão de sexo abaixo de
cem (denunciando igualdade nos números dos dois sexos, ou a preponderância feminina),
foi precedido e sucedido por intervalos de masculinidade bem maior. Em seus trabalhos,
Gutiérrez também mostrou a presença de maiorias masculinas em períodos anteriores a 17981830. Ao observar a razão de masculinidade da população escrava por faixa etária, descobriu
que, até 1810, o contingente cativo mais idoso (que retratava indiretamente a composição
da população em períodos anteriores a 1800) era singularmente masculino, diferentemente
do ocorrido com os mais jovens, tendentes a números parecidos de homens e mulheres,
situação típica de 1798-1830.55 Segundo ele, portanto, o período tratado aqui como o ápice
da presença escrava foi marcado por maiorias masculinas.
No intervalo 1815-1840 os números de adultos e adultas eram semelhantes. Em 18411850, nova mudança, reaparecendo maiorias masculinas, embora leves. Isso resultou do
recurso ao contrabando de africanos factível para proprietários paranaenses em função da
proibição do tráfico. Esse acréscimo de presença masculina não atingiu níveis setecentistas,
mal ultrapassando os de 1815-1819. Ainda assim, nota-se ter passado a crescer na época dos
contrabandos, com efeitos até 1860.
É preciso enfatizar essas variações da composição da população. A razão de sexo nos
anos 1780, a maior de todas, ultrapassou em muito o dobro daquela de 1824-30 (a menor
da série). Variações dessa magnitude referendam uma percepção sobre a população cativa:
52 KLEIN, Herbert S. A oferta de muares no Brasil Central: o mercado de Sorocaba, 1825-1880. Estudos
econômicos, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 347-372, maio-ago. 1989, p. 356-357.
53 A pecuária “ocupou, durante os séculos XVIII e parte do XIX, as mentes e o coração da população paranaense”;
cf. HARTUNG, Miriam. Muito além do céu: escravidão e estratégias de liberdade no Paraná do século XIX.
Topoi, Rio de Janeiro, v. 6, n. 10, p. 143-191, jan.-jun. 2005, p. 147.
54 COSTA, Iraci Del N. da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná. Mapas de população 1798-1830. São Paulo: IPE/
USP, 1985.
55 GUTIÉRREZ, 1987, op. cit., p. 302. Luna e Klein (op. cit., p. 186) observaram a razão de sexo da população
escravizada segundo as diversas sub-regiões de São Paulo, com os dados de Curitiba incluídos no que
denominam Caminho do Sul. Em 1777, este caminho apresentava a segunda maior, e não uma das menores
participações masculinas na população escrava de toda a capitania. Em 1804, no entanto, passou a ser a
segunda menor, e em 1829 tornou-se a mais baixa participação masculina.
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Espasmo e estagnação
ela era excessivamente suscetível a movimentos conjunturais bruscos, sendo isso efeito do
desenraizamento constitutivo do cativeiro.56 Levando em conta o retardo com que os óbitos
de adultos fazem suas referências indiretas à composição da população, conclui-se ter sido
realmente muito particular do período 1800-1830 a situação descrita por Gutiérrez. Tudo foi
diferente antes ou depois.57
As oscilações bruscas da participação masculina ajudam a entender por que uma
população com tantas crianças como aquela de 1800-1830 cresceu na verdade tão pouco.
Mesmo sendo notadas proporções infantis da ordem de 40%,58 o crescimento era muito
pequeno. Esse aumento não se efetivou porque o equilíbrio foi uma coisa excepcional.
Evolução da posse de escravos e atividades econômicas
O gráfico 3 indica os resultados do estudo dos movimentos realizados pela posse de escravos
a partir do cruzamento de dois indicadores grosseiros, mas úteis. O primeiro é a mera
quantidade, tornada uma média móvel de três anos, de nomes de proprietários que levaram
a cada ano escravos mortos para serem sepultados. Ele indicia a evolução do número de
proprietários. O outro é o número médio de cativos sepultados por cada senhor a cada ano,
indicador indireto a respeito do movimento realizado pelo tamanho das escravarias.59
As posses de escravos foram substancialmente maiores no século XVIII que no seguinte,
situação vigente até a segunda metade da década de 1810, conforme a linha de tendência da
quantidade média de escravos por senhor. Já a quantidade de proprietários cresceu. Retenhase: cada vez mais senhores, escravarias decrescentes.
Os anos 1770, com quantidade de senhores crescente e posses grandes para padrões
locais, foram marcados pelo reformismo ilustrado e pela difusão da cana no Oeste Paulista.
Esses estímulos vindos de áreas mais ao norte provavelmente afetaram Curitiba através da
migração de escravistas acompanhados de seus escravos.
56 FLORENTINO, op. cit.
57 Avaliando a distribuição por gênero e faixa etária dos escravos de Campo Largo em 1875, Marques (op. cit., p.
23) notou que, por essa época, maiorias femininas tinham voltado a acontecer, devendo-se, certamente, ao fato
de o tráfico interno de cativos levar homens embora. Mas também observou que, nas faixas etárias mais idosas,
o predomínio numérico era dos homens, retratando períodos um pouco anteriores, como efeito retardado do
tráfico ilegal e das populações mais masculinizadas observadas quanto a Curitiba (dados de 1841-1862).
58 GUTIÉRREZ, 1987, op. cit., p. 305.
59 O menor valor possível desse indicador é um, significando que num determinado ano todos os senhores a
aparecerem enterrando escravos fizeram-no apenas uma vez. Isso indica, grosseiramente, um ano de escravarias
pequenas. Valores acima de um apontam para situação de escravarias maiores (1786, por exemplo).
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Gráfico 3 – Aproximação à evolução da posse de escravos - n.o de senhores
enterradores e média de escravos enterrados por senhor (Curitiba, 1765-1862)
Obs.: foram suprimidos os anos de crise forte de mortalidade.
Fontes: vide o gráfico 1.
Assim, o espasmo teve relação com a instauração da lavoura canavieira em São Paulo. É
verdade que, no século XVIII, a montagem do negócio de mulas (e da correlata pecuária local
em fazendas agropastoris) foi comandada pela mineração nas Gerais. Mas esses indícios de
boom nos últimos anos do Setecentos direcionam a atenção para a ligação com a cana paulista
do mercado para mulas vindas do extremo sul e para bovinos em parte criados localmente.60
O boom foi posterior ao declínio da mineração nas Gerais, e coincidiu com a instalação da
agricultura comercial no Oeste Paulista.61 Houve auge do número de senhores nos anos 1780 e
no início da década seguinte, mantendo-se alta a média de cativos possuídos. Em comparação
com outros intervalos, essa foi a época de maior participação dos proprietários entre os chefes
de fogo, e esses proprietários tiveram as maiores posses do período. Depois haveria até mais
senhores de cativos em Curitiba, mas sua participação no total de fogos certamente decresceu.
60 Sobre a criação local de bovinos, ao lado das mulas e de outros bovinos vindos do extremo sul, ver PETRONE,
Maria Thereza S. O Barão de Iguape. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1976. p. 42, 108.
61 LUNA; KLEIN, op. cit., p. 55 et seq. Segundo Renato Leite Marcondes (Formação da rede regional de
abastecimento do Rio de Janeiro: a presença dos negociantes de gado [1801-1811]. Topoi, Rio de Janeiro,
v. 2, n. 2, p. 41-71, jan.-jun. 2001, p. 50), nos anos 1790 e 1800 bovinos saídos do Rio Grande do Sul ou do
Paraná chegavam ao Rio de Janeiro, servindo mais as mulas do sul às atividades da própria capitania de São
Paulo. Segundo S. B. de Holanda (O extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 37-38), a situação já
era mais ou menos essa por volta de 1770.
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Espasmo e estagnação
Entre 1795 e o início dos anos 1820, a quantidade de senhores permaneceu baixa, e
de modo estável. Nos anos 1810, as posses ainda eram como as do século anterior, sendo
baixa a quantidade de senhores. Após isso, o volume de escravistas cresceu abruptamente,
ao passo que a média de cativos possuídos diminuiu muito. É possível que o período exato
da Independência tenha demarcado com muita nitidez essa passagem para a multiplicação
de senhores com posses menores. Menos que o processo político da autonomização,
a suspensão da concessão de sesmarias em 1822 (em junho de 1822, ou seja, antes do
7 de setembro) certamente suprimiu mecanismos de arbitragem estatal da expansão agrária,62
e os fortes deslocamentos ligados a esta expansão, agora ainda mais liberta de amarras,
seguramente explicam as mudanças nos padrões de posse de escravos detectados aqui.
Apesar de o tamanho médio das escravarias da década de 1790 ter sido menor que o
verificado nos anos 1780, o índice de Gini calculado para a propriedade de escravos segundo
o censo de 1797 alcançou valor bem alto, de 0,872, bastante alinhado com os da capitania de
São Paulo de 1804.63 Isso é importante. Mesmo passado o boom, a desigualdade era parecida
com a de regiões exportadoras. A ordem social reproduzia desigualdades, não importando
muito as circunstâncias.
O índice de Gini elevado, ao denunciar enorme desigualdade, qualificava esta última:
ela era inclusiva, servindo este doce adjetivo para indicar o funesto congraçamento de livres
ao redor da barbaridade escravocrata. Apesar de concentrada, a posse de escravizados
também era possível para uma massa de pequenos proprietários cuja presença denunciava a
vigência de formas de mobilidade social. Apesar de os maiores proprietários açambarcarem a
maior parte dos escravos, a maioria dos senhores tinha posses pequenas. Levando em conta
ainda o recenseamento de 1797 (excluindo São José dos Pinhais), 815 domicílios (81%) não
tinham escravos; 78 deles tinham um ou dois (8%); 34 (3%) abrigavam três ou quatro; 45
(5%) possuíam entre 5 e 9; 24 (2%) detinham 10 a 19 e apenas 12 (1%) controlavam vinte
ou mais cativos. Os fogos com um ou dois cativos concentravam um décimo dos escravos;
aqueles com 3 ou 4 controlavam outro décimo deles; os com 5 a 9, 26%; aqueles detentores
de 10 a 19 tinham 27% e as pouquíssimas grandes posses (vinte ou mais escravos) eram
detentoras de outros 27% dos cativos existentes. Mais de metade dos domicílios escravistas
controlava menos que cinco cativos; as maiores posses – 10 ou mais escravos – detinham
mais da metade deles.
É como o que Gutiérrez acentuou quanto à terra ao referir-se à “disseminação da
pequena propriedade [...] dominada pelo latifúndio escravista” no Paraná do início do
século XIX.64 A expansão da fronteira agrária reiterava as desigualdades constitutivas da
62 LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Comunidade e tensão na fronteira agrária paulista (Limeira, década de 1840).
Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 225-257, dez. 2016.
63 LUNA; KLEIN, op. cit., p. 161.
64 GUTIÉRREZ, Horacio. A pequena propriedade no Paraná antes da imigração. In: IV CONGRESSO BRASILEIRO
DE HISTÓRIA ECONÔMICA E 5ª CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE EMPRESAS, 2001,
São Paulo/SP. Anais [...]. São Paulo: ABPHE, 2001, p. 1-17. Disponível em: http://www.abphe.org.br/arquivos/
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vida social, ao garantir a reprodução das relações hierárquicas na sociedade mais ampla
e ao estabelecer forte hierarquização nas áreas recém-ocupadas. Garantia a reprodução
de desigualdades de alcance suprarregional através da reiteração do domínio mercantil;
sustentava-as no nível regional por fazer proliferarem unidades agrícolas depauperadas
sujeitas ao predomínio dos negociantes, exercido no âmbito da conjugação dos negócios
com as iniciativas agrárias nas fazendas.65
Entre 1830 e 1850, o contingente de senhores decresceu, juntamente com a provável
posse média, enquanto uma última onda estava em construção durante os anos 1850,
provável efeito retardado do contrabando de africanos, assim como dos limitados avanços do
mate, da retomada do tropeirismo e da agricultura de abastecimento, o que leva a retomar o
paralelismo entre população escrava e atividades econômicas.
A ligação preferencial da escravidão com as fazendas ligadas ao comércio de tropas
também fica bem caracterizada no gráfico 3. Isso se evidencia, primeiramente, com a
observação da movimentação dos dados no longo prazo. As escravarias eram grandes para
os padrões locais e os senhores tinham grande participação entre os livres na época de
tropeirismo crescente (último quarto do século XVIII). No século XIX, quando as atividades das
fazendas de gado passaram a flutuar em Curitiba (novas migrações no início do século; impacto
da Revolução Farroupilha; recessão do segundo quarto do século), as posses diminuíram e
os escravistas se tornaram mais raros, proporcionalmente, apesar do crescimento de seu
número. Mas aquela ligação se mostra, igualmente, nos movimentos mais curtos. A baixa
do número de proprietários e do tamanho das posses (1837-1850) deu-se em paralelo com
a “barriga” no negócio de tropas (Guerra dos Farrapos e efeitos no Brasil, em 1830-1850, da
recessão atlântica).66
Embora a ilegalidade do tráfico de africanos de 1831 não tenha extinguido o comércio,
ela ainda assim desorganizou a oferta. Apesar de o acesso a escravizados do Velho Mundo
ter crescido em Curitiba, como se viu, nota-se no gráfico 3 que isso regrediu após a primeira
proibição do tráfico, crescendo, embora, a população total e a quantidade de fogos. A soma
disso tudo aponta para um grande aumento da concentração da posse de escravos. O recurso
aos contrabandos foi incapaz de aumentar decididamente a população cativa (gráfico 1).
As partilhas certamente tiveram relação com o declínio das escravarias. De fato,
pela altura do início do século XIX, os senhores não eram mais os migrantes internos do
espasmo, mas sim seus descendentes. Ademais, a capacidade das partilhas para desfazerem
grandes patrimônios deve ter aumentado em virtude da legislação inibindo ou mesmo
proibindo vínculos,67 e também contribuíram as iniciativas para a consolidação estatal no
horacio-gutierrez_1.pdf. Acesso em: 12 ago. 2020. p. 5.
65 FRAGOSO; FLORENTINO, op. cit., cap. 1.
66 KLEIN, op. cit., p. 356-357; SUPRINYAK, Carlos E. O mercado de animais de carga no Centro-Sul do Brasil
Imperial: novas evidências. Estudos econômicos, S. Paulo, v. 38, n. 2, p. 319-347, abr.-jun. 2008, p. 324.
67 Lei de 6 de dezembro de 1835; cf. DAUMARD, A.; BALHANA, Altiva P.; WESTPHALEN, Cecília M.; GRAF,
Marcia E. de C. História Social do Brasil: teoria e metodologia. Curitiba: Ed. da UFPR, 1984. p. 181.
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pós-Independência, conducentes ao desestímulo aos vínculos informais, como os dotes.68
Isso foi importante, pois, conforme demonstrado por Gutiérrez em relação às fazendas
agropastoris, “A herança de patrimônios era, nesses fazendeiros, um traço marcante. Foram
poucos os que no século XIX apareceram começando do nada”.69 Na passagem do século
XVIII para o seguinte, as heranças reproduziam grandes fortunas. Depois passaram a
derrubá-las, em vista da decrescente possibilidade de estabelecer vínculos.70 Os movimentos
da população escrava, de sua composição, do tamanho das posses e do avanço contínuo da
fronteira agrária tiveram efeitos sobre a família escrava.
Família
Estudar a família escrava é uma finalidade em si, por apontar para iniciativas escravas
de combate ao desenraizamento intrínseco ao cativeiro.71 Mas esclarece igualmente sobre
o impacto da fronteira agrária, pois as migrações compulsórias ligadas ao seu avanço
acrescentavam traumas de deslocamento àquela tendência constitutiva à dessocialização.72
Há uma razão adicional também ligada às iniciativas cativas: rompidas relações familiares,
conflito intenso podia decorrer disso. Tendo em vista a própria Curitiba, já foram estudadas
em diversas fontes do período também abordado aqui informações narrativas sobre cativos
fugidos. Chamou a atenção o fato de o travejamento de trajetos de saída do desenraizamento
– a negação da formação de laços ou a agressão a estes – poder ser tratado como um
motivador de escapadas tão poderoso, ou mais até, do que a frustração das expectativas
derivadas da reunião de um cabedal profissional, a piora das condições de vida, o aumento
do ritmo e da intensidade do trabalho nas unidades escravistas ou as falhas na negociação
das condições do cativeiro.73
Usam-se habitualmente registros de batismo para observar a ilegitimidade. Aqui, dadas
as migrações, o foco está nos óbitos de crianças (gráfico 4), com resultados eventualmente
confrontados com os obtidos com registros de batismo.
A ilegitimidade progrediu consistentemente (gráfico 4). Sua diminuição repentina
e passageira em 1807-1812 deveu-se a acidentes na feitura dos registros; mostra-o o
crescimento, também passageiro, da proporção dos assentos sem informação. Isso, aliás,
deixa a sugestão de colocar os óbitos sem informação na mesma conta que os ilegítimos.
68 NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
69 GUTIÉRREZ, 2004, op. cit., p. 106.
70 Ver LOPES, José Carlos V. Esboço histórico da fazenda Santa Rita. Boletim do Instituto Histórico,
Geográfico e Etnográfico Paranaense, Curitiba, v. XX, p. 55-144, 1974; HARTUNG, op. cit., p. 153.
71 FLORENTINO, Manolo; GÓES, José R. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997;
PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social. São Paulo: Edusp, 2008.
72 Isso foi muito enfatizado nos estudos sobre o impacto do tráfico interno de escravos do final do século XIX; cf.
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 121-122.
73 LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Escravidão, fuga e rebeldia escrava no Brasil. In: DIAS, Lucimar Rosa;
FERREIRA, Valeria Milena Rohrich (org.). O tempo muda: estudos étnico-raciais diacrônicos e sincrônicos.
Curitiba: NEAB-UFPR, 2016 (“Coleção Cadernos NEAB-UFPR”, v. III), p. 42-81, p. 43-51.
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A família escrava sangrou ao longo desse século, devendo-se isso ao avanço contínuo
da fronteira agrária. É verdade ter sido alta a participação de crianças na população em 18001830,74 indicando uma proliferação de uniões cativas. Também é real que estas quase nunca
demandavam sanção pela igreja. Cacilda Machado anotou com razão “as dificuldades dos
cativos em constituir e manter relações parentais” nesse “ambiente de predomínio quase
absoluto de pequenos escravistas”. Nessas circunstâncias, “poucos escravos legitimavam
uniões matrimoniais”,75 embora se deva notar que, durante o boom, quase metade das crianças
mortas eram filhas de uniões reconhecidas na feitura dos registros. Ainda assim, a crescente
ilegitimidade indicia dificuldades crescentes para formar até uniões estáveis não legitimadas.
Gráfico 4 – Sobre o avanço da ilegitimidade escrava - participação (%) nos óbitos de
crianças dos registros com o nome só da mãe, com os nomes de ambos os pais e
sem informação (Curitiba, 1778-1862)
Fontes: vide o gráfico 1.
A proxy utilizada para avaliar a evolução da ilegitimidade escrava passou de cerca de 45%
nos anos 1780 para 80% ao redor de 1860. No final do período, nenhum sepultamento de
criança, de fato, fazia referência ao pai dela. Pouco importava que a parcela feminina da
população fosse proporcionalmente maior no século XIX que no XVIII (apesar das já abordadas
flutuações oitocentistas). A família escrava, tão logo começou o Oitocentos, passou a mostrarse algo em vias de desaparecer.76 Resulta que a desestruturação era inexorável, uma variável
independente. Falava muito grosso, por assim dizer, a lógica de desarticulação de relações
da fronteira agrária. Os batismos de crianças escravas em Curitiba, Palmeira e Campo Largo
74 GUTIÉRREZ, 1987, op. cit.
75 MACHADO, A trama, 2008, op. cit., p. 49.
76 Franco Netto (op. cit., p. 69, 218, 300) percebeu algo parecido em Guarapuava, embora a localidade, povoada
por imperiais no início do século XIX, tenha partido de patamares de ilegitimidade alta. Em todo caso, a razão
de sexo dos escravizados adultos tendeu a decrescer ao longo do século, enquanto aumentava fortemente a
ilegitimidade cativa.
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apontam em direção semelhante (ilegitimidade de 57% em 1790-1794; de 58% em 18001804; de 75% em 1810-1814; de 74% em 1820-1824 e de 80% em 1830-1834).77
É importante a particularidade do boom inicial. O intervalo de menor ilegitimidade escrava
em Curitiba foi precisamente aquele da chegada mais forte de migrantes. Posteriormente, a
partir da virada do século, as novas expansões na direção de baldios ficaram ligadas a uma
ilegitimidade crescente. São conhecidos casos semelhantes ao da primeira fase (população
migrante com ilegitimidade baixa). Tendo em vista as populações cativas do Vale do Paraíba
cafeeiro e do Oeste Paulista – área de fronteira agrária –, foi notado ter sido a ilegitimidade
muito baixa precisamente no Oeste, área nova, em acelerado processo de ocupação por
senhores e escravos migrantes. Aliás, foi baixíssima, tendo em vista qualquer outro caso
conhecido.78 Possivelmente, a baixa ilegitimidade no momento dos booms curitibano e do
Oeste Paulista refletia uma tentativa senhorial de ter algum controle sobre alguma coisa em
meio à proverbial violência dos sertões. Depois, possivelmente, desenvolvia-se a família dos
escravos, sem muita necessidade de sanção eclesiástica, oficial ou senhorial,79 algo passível
de ser atestado com a alta proporção de crianças na população.80 Mais tarde ainda, tudo
desabava com o avanço da fronteira agrária, com seus efeitos de desestruturação.
Recorde-se o modelo processual elaborado por Gutman para o caso norte-americano.
O estabelecimento de unidades agrárias ou regiões novas impunha grande desagregação
às relações escravas. A fase subsequente era de formação de laços comunitários – muito
autônomos, segundo Gutman –, ajudando a entender o porquê de tais famílias se formarem
e aprofundarem à margem da sanção oficial. Posteriormente, o falecimento do proprietário
voltava a desagregar essas comunidades.81 O diferencial paulista residiria no fato de o momento
inicial da ocupação escravista comportar migrações senhoriais levando famílias montadas. A
futilidade dessa tentativa de controle resultava em seguida na formação de laços autônomos
entre os escravos. Um pouco à frente, eram realmente partilhas e novas migrações que
tinham essa capacidade desagregadora. A lógica de desenraizamento da fronteira expansiva
desdobrava-se por fora dessa passagem da família incentivada ou imposta desde cima para
a família criada pelos cativos. Tendencialmente, prevalecia a lógica de dessocialização e
violência da fronteira.
Uma hipótese diferente, mas não contraditória, postula ter sido o declínio do tamanho das
escravarias o elemento a fazer contrair-se a família cativa. Como indicou Slenes, o tamanho
do plantel importava mais para a possibilidade de estabelecimento de uniões escravas que
77 ÁVILA Jr., Dejalma Esteves de. Compadrio escravo em Curitiba. 2003. Monografia (Graduação em História).
Curso de História – Bacharelado com Licenciatura, UFPR, Curitiba, 2003; Paróquia de Campo Largo, Batismos,
livro 1; Paróquia de Palmeira, Batismos, livro 1. Robert Slenes já tinha notado o aumento da ilegitimidade
escrava no Oeste Paulista do século XIX. Ver SLENES, Robert W. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999. p. 75.
78 LIMA, 2016, Comunidade e tensão, op. cit., p. 248-249.
79 MACHADO, 2008, op. cit., p. 49.
80 GUTIÉRREZ, 1987, op. cit.
81 GUTMAN, H. The Black family in slavery and freedom, 1750-1925. New York: Vintage Books, 1976. p. 138.
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a composição por sexo das escravarias.82 Mas as duas hipóteses – o avanço da fronteira e
a redução do tamanho das posses – não são contraditórias, pois uma das fontes da redução
das escravarias foi precisamente a tendência ao deslocamento para os sertões, passando
Curitiba de polo de atração a boca de sertão.
Considerações finais
Em um terreno metodológico de discussão, percebe-se ser útil, apesar de grosseira,
a imagem dos grandes traços da evolução de populações escravas fornecida por séries
construídas com assentos de óbitos. Não se faz referência aqui à longa duração braudeliana,
centrada na reiteração, pois o alongamento da curva chamou a atenção para descontinuidades
muito fortes. No caso de Curitiba, isso foi útil para ampliar o período observado, abrindo
brechas para enxergar certos elementos de outra forma menos visíveis. Aliás, é notável o fato
de diversos resultados alcançados usando os óbitos terem sido congruentes com os obtidos
com documentação mais segura, mas de prazo curto.
Mostrou-se importante evitar a imagem de que os cativos locais experimentavam um
mundo integrado, de sólidos laços comunitários. O “lado não exportador” da história, capaz,
sim, de criar essas tendências integradoras, precisava conviver com o “lado fronteira agrária”,
sempre apto a solapá-las; a impressão de esgarçamento deve sobrepor-se a uma percepção
supersocializada de suas vidas.
A estrutura etário-sexual da população escrava paranaense faria esperar uma
decolagem,83 mas esta não aconteceu. Para além das novas migrações para fronteiras, há
o fato de a situação de 1800-1830 ter sido antecedida por circunstâncias muito diferentes e
sucedida por estruturação um tanto diversa.
Relações entre os cativos, no entanto, terminavam por ser criadas. Elas ocasionalmente
podem ter representado estratégia de controle por parte dos senhores, mudando de natureza
na sequência. Isso traz à baila os achados das concepções processuais da escravidão,
lembrando a urgência por construir laços comunitários, escapando ao desenraizamento.84
A questão, novamente, estava no avanço por sobre essas questões de uma outra forma de
desenraizamento – dada, dessa vez, pelos efeitos de desestruturação da fronteira agrária.
O fato de o espasmo escravista ter ocorrido exatamente na época da escravidão marcada
por migrações forçadas, de certa forma impôs uma marca ou uma definição de destino aos
eventos subsequentes.
Bruscas como foram as oscilações na composição da população cativa, não vale para
ela a imagem de restrição e imobilidade das populações europeias formulada por Braudel e
82 SLENES, op. cit., p. 102-104.
83 No século XX, uma proporção de crianças na população da ordem dos 40% era considerada sinal de “explosão
demográfica”. SIMÕES, Celso C. S. Breve histórico do processo demográfico. In: FIGUEIREDO, A. H. de (org.).
Brasil: uma visão geográfica e ambiental no início do século XXI. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. p.39-73, p. 62.
84 FLORENTINO; GÓES, op. cit.; PATTERSON, op. cit.
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Ladurie.85 É mais elucidativa a percepção que se infere das análises sobre a mesma realizadas
por Florentino e Alencastro: era uma espécie de população conjuntural.
Foi possível vê-lo pelo fato de se usarem informações que, embora sejam grosseiras
e indiretas, têm perfil mais alongado. O auge da barbárie escravocrata – as maiores posses, a
maior importância relativa no interior da população – ocorreu no momento no qual quase todo
mundo era migrante, tanto senhores quanto escravizados. As novas migrações na direção
oeste, durante os primeiros anos do século XIX, tiveram grande importância na reestruturação
da população. A redução do tamanho das escravarias derivada das partilhas deve ter
constituído estímulo a essas migrações.86
O acesso mais franco a africanos contrabandeados mudou pouco as condições.
Coincidiu com redução importante dos negócios de tropas e introduziu majoritariamente
homens na sociedade local, sendo-lhes impossível, claro, criar qualquer tendência ao
crescimento demográfico. Sobretudo, e como no conjunto do Império, a ilegalidade foi um
momento de relativa desarticulação da oferta de escravos e, assim, os indícios aqui reunidos
se somam aos já obtidos para corrigir um pouco a imagem corrente de a proibição do comércio
de almas africanas não ter tido efeitos. Não teve a consequência de eliminar as migrações
forçadas da África para o Brasil, mas fez o nível da oferta oscilar como nunca antes, os
preços se tornarem instáveis e grupos sociais menos abastados perderem a capacidade de
se manterem como escravistas. Assim, no caso de Curitiba, essa época de mais africanos foi
também de população escrava decrescente, posses menores e mais reduzida participação
dos proprietários na população livre.
A princípio, é estranho que Curitiba e o planalto paranaense se posicionassem como
fronteira agrária mais de cem anos após a fundação da vila. Mas, no fundo, isso não
surpreende muito, se for lembrado o caso da própria cidade de São Paulo, município muito
precoce e expansivo. A movimentação de seus habitantes abarcou um arco verdadeiramente
continental, mas, passado isso, no início do século XIX, Campinas, por exemplo, ainda era
fronteira agrária, apesar da proximidade. Curitiba foi semelhante.
Recebido em: 12/08/2020
Aprovado em: 21/12/2020
85 LADURIE, Emmanuel Le Roy. História dos camponeses franceses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007, v. II, p. 327-328.
86 NAZZARI, op. cit., p. 89-90 indica para São Paulo colonial a articulação entre os deslocamentos para a
fronteira agrária e as estratégias para lidar com as partilhas igualitárias.
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