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História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Este livro é produto de algumas discussões desenvolvidas nos Simpósios Temáticos sobre História da Família, realizados nos Encontros Estaduais de História da Associação Nacional de História – Seção Rio Grande do Sul (ANPUH-RS), e nas reuniões promovidas pelo Grupo de Trabalho História da Infância, Juventude e Família da ANPUH-RS. Ana Silvia Volpi Scott José Carlos da Silva Cardozo Denize Terezinha Leal Freitas Jonathan Fachini da Silva Organizadores História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas E-book Vol. 2 OI OS EDITORA Estudos Históricos Latino-Americanos 2014 © 2014 – Editora Oikos Ltda. Rua Paraná, 240 – B. Scharlau – Cx. P. 1081 93121-970 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3568.2848 / Fax: 3568.7965 contato@oikoseditora.com.br www.oikoseditora.com.br Coleção Estudos Históricos Latino-Americanos – EHILA – E-book Direção: Paulo Roberto Staudt Moreira (Coordenador do PPGH-Unisinos) Maria Cristina Bohn Martins (Linha de Pesquisa Sociedades Indígenas, Cultura e Memória) Hernán Ramiro Ramírez (Linha de Pesquisa Poder, Ideias e Instituições) Marcos A. Witt (Linha de Pesquisa Migrações, Territórios e Grupos Étnicos) Conselho Editorial: Eduardo Paiva (UFMG) Guilherme Amaral Luz (UFU, Uberlândia, MG) Horácio Gutierrez (USP) Jeffrey Lesser (Emory University, EUA) Karl Heinz Arenz (UFPA, Belém, PA) Luis Alberto Romero (UBA, Buenos Aires, Argentina) Márcia Sueli Amantino (UNIVERSO, Niterói, RJ) Marieta Moraes Ferreira (FGV, Rio de Janeiro, RJ) Marta Bonaudo (UNR) Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG) Roland Spliesgart (Ludwig-Maximilians-Universität München) Editoração: Oikos Revisão: Organizadores Capa: Juliana Nascimento Imagem da capa: Pedro Weingärtner – Procissão interrompida Imagem disponível de domínio público em: commons.wikimedia.org, com direitos de uso para qualquer fim Arte-final: Jair de Oliveira Carlos H673 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas / Organizadores Ana Silvia Volpi Scott et al. – São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2014. v. 2 (360 p.); 14 x 21cm. – (Coleção Estudos Históricos LatinoAmericanos – EHILA). E-book. ISBN 978-85-7843-426-7 1. Família – História. 2. Historiografia. 3. História – Família – Brasil. 4. História – Família – Rio Grande do Sul. I. Scott, Ana Silvia Volpi. II. Cardozo, José Carlos da Silva. III. Freitas, Denize Terezinha Leal. IV. Silva, Jonathan Fachini da. CDU 316.356.2 Catalogação na publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184 Sumário Apresentação ..................................................................... 7 Maria Sílvia C. B. Bassanezi Palavras dos organizadores ................................................. 9 “Descobrindo” as famílias no passado brasileiro: uma reflexão sobre a produção historiográfica recente ....... 13 Ana Silvia Volpi Scott Negro não se casa: um balanço da historiografia sobre família escrava no Rio Grande do Sul ...................... 40 Paulo Roberto Staudt Moreira e Natália Pinto Garcia Lançando aos leões: pensamentos imperfeitos na tentativa de contribuir com a definição de um conceito de família aplicável ao Extremo-sul do Estado do Brasil no século XVIII ...................................... 75 Martha Daisson Hameister Em busca dos Campos de Viamão: trajetórias familiares de pioneiros lagunistas no Continente do Rio Grande (século XVIII) ................................................................ 110 Fábio Kühn Quando os Anjos batem em sua porta: o fenômeno da exposição de crianças na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1810) ........................................... 146 Jonathan Fachini da Silva “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, os de dentro querem sair”. Algumas trajetórias de nubentes que ascenderam ao altar na Paróquia Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1835) ................... 172 Denize Trezinha Leal Freitas Famílias em cativeiro: parentesco e estratégias sociais entre senhores e escravos na fronteira oeste do Rio Grande ...... 196 Silmei de Sant’Ana Petiz Gente de todo lado: deslocamentos populacionais, registros de batismo e reordenação social na fronteira meridional (Alegrete, 1816-1845) .................................... 215 Luís Augusto Farinatti A família escrava e a reprodução endógena nos plantéis pelotenses na segunda metade do século XIX .................. 239 Bruno Stelmach Pessi Enredos da vida: a organização das famílias porto-alegrenses por meio da Justiça (início do século XX) .. 264 José Carlos da Silva Cardozo Considerações sobre a História da Família Imigrante no Rio Grande do Sul ..................................................... 291 Martin Norberto Dreher Família(s) no âmbito da imigração alemã ........................ 317 Marcos Antônio Witt Família italiana no Rio Grande do Sul ............................ 336 Vania Herédia Sobre os autores e as autoras ........................................... 353 6 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Apresentação História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas representa um marco na historiografia ao reunir, pela primeira vez, em um único volume, trabalhos centrados no estudo das famílias que ocuparam e povoaram o Rio Grande do Sul, região de fronteira aberta no passado. Este livro traz uma parcela significativa da produção realizada por historiadores consagrados e também por jovens pesquisadores, demonstrando que essa é uma área do conhecimento já consolidada e com futuro promissor. Embora a questão da família, há muito, apareça em pesquisas sobre o universo peculiar do Rio Grande do Sul – ela é recorrente, por exemplo, em estudos sobre ocupação e povoamento, disputas políticas e territoriais, escravidão, migração, colonização europeia, expansão econômica (latifúndio e pequena propriedade, trocas comerciais, industrialização), neles, a família não é o tema central. É a partir dos anos 1990, principalmente na virada para o século XXI, que pesquisas específicas sobre famílias começam a ser produzidas com maior regularidade e, este livro é fruto desse avanço. História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas revela a complexidade dos sistemas familiares em diversos espaços da região e entre distintos segmentos da sociedade sul riograndense do século XVIII ao início do XX: livres e escravos, nativos e migrantes, etnias variadas. Além disso, o livro traz reflexões e balanços sobre os campos de História da Família e Estudos de População, dialogando com a produção nacional e internacional, tanto a considerada clássica quanto a mais recente, derrubando mitos e destacando as contribuições dos trabalhos meridionais para esses campos mais amplos. Um dos 7 Apresentação capítulos, inclusive, argumenta com veemência, baseado em uma releitura bibliográfica e na realidade do extremo Sul do Brasil, que o conceito de família no passado deve ser redefinido. Dois autores dedicam-se exclusivamente a fazer um panorama historiográfico: um sobre a História da Família no Brasil, outro sobre a História da Família Escrava no Rio Grande do Sul. Dez textos trazem resultados de pesquisas específicas sobre alemães, italianos, escravos, crianças (vida, tutela, exposição), estratégias familiares, redes sociais, valores culturais e deslocamentos populacionais; a maioria desses trabalhos desenvolvese no âmbito teórico-metodológico da Micro-História. A leitura da obra permite estabelecer comparações com trabalhos sobre outras regiões do país. Também revela a potencialidade de fontes como registros paroquiais de batismo e casamento, autos de Justificação Matrimonial, inventários, contos populares, dicionários de época, memórias familiares e coletivas, documentação do Juízo dos Órfãos, entre outras, além de mostrar a riqueza de resultados obtidos com o cruzamento de fontes. Não há como negar a importância cultural e histórica do Rio Grande do Sul – território habitado inicialmente por indígenas foi povoado também por homens e mulheres de origem europeia e africana e por oriundos de outras regiões brasileiras durante os séculos que se seguiram ao início do domínio português, em um processo nem sempre tranquilo, sem conflitos e sacrifícios. Nas terras gaúchas, as famílias trabalharam, lutaram, estabeleceram sociabilidades, mantiveram traços de sua origem, mas também se transformaram. Sua história merece ser estudada com profundidade. Então, boas vindas ao livro História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas! Profª. Drª. Maria Sílvia C. B. Bassanezi Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP 8 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Palavras dos organizadores O livro que ora vem a público é movido pelos “bons ares” que a renovação historiográfica vem tendo nos últimos anos, principalmente com a expansão e descentralização dos programas de pós-graduação em História do país e com os Simpósios Nacionais e Encontros Estaduais de História organizados pela Associação Nacional de História (ANPUH-BRASIL) e suas seções regionais. Neste livro, há mais de uma dezena de historiadores dedicados à História da Família e suas várias “ramificações” (infância, escravidão, imigração, elites etc.) que se dispuseram a participar dessa obra coletiva que tem por finalidade apresentar as histórias das várias famílias que viveram no extremo sul do Brasil. Essa reunião somente foi possível pelo crescente interesse na temática nos últimos anos. Não que não houvesse quem trabalhasse com o tema para o Rio Grande do Sul, mas a família aparecia como “coadjuvante” em estudos voltados para a história agrária, econômica, política e assim por diante. Nos últimos anos, no entanto, a família passou a se destacar no cenário da historiografia meridional, colocando em evidência a complexidade e diversidade das famílias, seja do ponto de vista étnico, jurídico ou socioeconômico. Dessa forma, desde 2008 registra-se um empenho em reunir os pesquisadores ligados à História da Família no Rio Grande do Sul por meio dos Simpósios Temáticos ofertados nos Encontros Estaduais de História e do Grupo de Trabalho (GT) História da Infância, Juventude e Família, ambos organizados em torno da ANPUH-RS. 9 Palavra dos organizadores Esse movimento de trabalho coletivo acerca da História da Família e suas várias possibilidades enriqueceram e enriquecem esse complexo campo de estudo, e instigaram a organização desta coletânea. Nesta obra o leitor encontrará uma variedade de temas e perspectivas sobre a História da Família no Rio Grande do Sul. No texto de abertura, assinado por Ana Scott, nos é apresentado o “estado da “arte” sobre a História da Família no Brasil. Logo em seguida, Paulo Moreira e Natália Garcia recuperam a historiografia sobre a família escrava no Rio Grande do Sul (vale recordar que esse tema custou a estar presente na pauta de pesquisa dos historiadores). Em outro momento, Martha Hameister nos oferece uma valiosa reflexão sobre o conceito de família e sua aplicação no extremo sul da América Lusa, no século XVIII. Para o mesmo período, Fábio Kühn reconstrói a trajetória das famílias dos primeiros lagunistas que vieram para os Campos de Viamão. Por sua vez, Jonathan Silva, recupera e aprofunda o tema da exposição de crianças em Porto Alegre no período que antecede a institucionalização da Roda dos Expostos. Ainda sobre Porto Alegre colonial, Denize Freitas, tratando dos registros paroquias de casamento, reconstitui a trajetória de alguns nubentes que por lá contraíram matrimônio. Silmei Petiz e Bruno Pessi investigam a família escrava em Pelotas e Rio Pardo, revelando as dinâmicas familiares dentro das escravarias. Já Luís Farinatti apresenta a participação de grupos populacionais na formação das áreas localizadas a oeste e sul do Rio Grande. O texto assinado por José Cardozo discute a (re)organização da família porto-alegrense no início do século XX por meio do Juízo dos Órfãos. Para finalizar este conjunto de trabalhos sobre a História da Família no extremo sul, temos as contribuições que voltam seu olhar para as famílias imigrantes. Nessa perspectiva, o capítulo de autoria de Martin Dreher analisa a família imigrante 10 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas pelo viés das crianças, abordagem que não é comum nos estudos sobre a História da Imigração, pelas inúmeras dificuldades em trabalhar com esse grupo. Na sequência, os textos assinados por Marcos Witt e Vania Herédia procuram refletir sobre o papel fundamental da família no processo imigratório, focando respectivamente, a família alemã e a família italiana. Muitos dos autores que assinam os textos desta coletânea apresentaram suas teses de Doutorado em importantes instituições universitárias do país e do exterior. Por outro lado, os organizadores também procuraram abrir espaço para jovens pesquisadores que estão desenvolvendo seus estudos em nível de pós-graduação e que, mesmo em início de carreira, já estão demonstrando a qualidade de suas pesquisas. O leque de temas e perspectivas procura, portanto, dar um panorama sobre o atual estado da questão do estudo da família em perspectiva histórica. Além de reunir trabalhos de síntese, os textos também apontam novas frentes de investigação, que possibilitam a reflexão sobre as dinâmicas das diversas famílias que viveram no Brasil meridional. Os organizadores esperam que esta obra seja um estímulo e, ao mesmo tempo, um convite para novas descobertas sobre esse universo multifacetado das famílias no passado! Ana Silvia Volpi Scott José Carlos da Silva Cardozo Denize Terezinha Leal Freitas Jonathan Fachini da Silva Organizadores 11 12 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro: uma reflexão sobre a produção historiográfica recente* Ana Silvia Volpi Scott O estudo da família tem atraído cada vez mais a atenção de especialistas de diferentes áreas. No campo da história as análises sobre esta instituição têm crescido de maneira espetacular, tanto no Brasil como no exterior, e os inúmeros trabalhos que vêm a público têm contribuído de forma decisiva para o debate. Nas últimas quatro décadas o crescimento do estudo da família entre os historiadores brasileiros veio, em grande parte, dos trabalhos produzidos no âmbito de Demografia Histórica. Contudo, os estudos sobre a família se alargaram de tal maneira, principalmente por conta do diálogo com as Ciências Sociais, que as recentes pesquisas não se limitam apenas ao estudo do aspecto demográfico, embora este continue a fornecer elementos importantes para a compreensão da organização e das dinâmicas familiares. Essa abertura a outras áreas se justifica pela complexidade do tema, pois a compreensão dos sistemas familiares do passado não pode limitar-se ao estudo das variáveis demográficas ou dos critérios de co-residência, por conta das múltiplas * Este texto recupera, em parte, a discussão já realizada no artigo intitulado “As teias que a família tece: uma reflexão sobre o percurso da História da Família no Brasil” História: Questões & Debates, Curitiba, n. 51, p. 13-29, jul./dez. 2009. 13 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro situações de vida que são contempladas pela família, como instituição básica de praticamente todas as sociedades. A ampliação desse universo, para além do núcleo constituído por pais e filhos e/ou co-residentes, englobando a parentela, ganhou cada vez mais atenção dos estudiosos, a partir do diálogo interdisciplinar, sobretudo com a Antropologia e a Sociologia. Também foi fundamental a contribuição teórico-metodológica advinda da micro-história e da proposta da redução da escala de abordagem, que procura fazer sobressair o comportamento social dos atores históricos. A observação possibilitada através dos jogos de escala permitiu avançar nas discussões relativas às estratégias familiares e às redes sociais para as sociedades do passado. Essa perspectiva apresenta-se como um campo rico de investigação, especialmente se admitirmos que toda a ação social é o resultado de escolhas, de decisões do indivíduo e do grupo familiar, por isso mesmo implica numa constante negociação e, porquê não dizer, manipulação, diante de uma realidade normativa que oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdades pessoais. Se estivermos de acordo com esta afirmação, um tema de relevo para o historiador da família passa a ser a análise das escolhas e das estratégias de manobra que são utilizadas pelos indivíduos e famílias para lidar com os sistemas normativos existentes, aproveitando-se de suas brechas e/ ou contradições. Nesse contexto, emerge a questão das redes familiares e sociais que é uma contribuição conceitual fundamental para a análise do universo familiar, especialmente quando se opta pela redução da escala de abordagem. A combinação desses dois elementos é enriquecedora também quando o historiador que se preocupa com os estudos das estratégias familiares e das redes sociais, se vale do cruzamento nominativo de fontes. Desta maneira, estão reunidos os ele- 14 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas mentos fundamentais para o estudo dessas redes, constituídas através dos vínculos de consanguinidade, aliança ou afinidade, bem como a partir de relações de outra natureza, como os vínculos de subordinação e/ ou dependência. Essa é uma vertente que tem recebido a atenção dos historiadores e, na última década, alguns trabalhos que vieram a público ilustram com muita clareza os caminhos mais recentes que a historiografia sobre a família tem percorrido no início do século XXI. Porém, antes de analisar essa produção mais recente é oportuno recuperar a trajetória que teve início há quase cinco décadas, quando a Demografia Histórica entrou definitivamente na pauta de discussão dos historiadores no Brasil. A demografia histórica deu, e continua a dar um aporte fundamental para o desenvolvimento da História da Família no Brasil. A expansão das áreas analisadas e a multiplicação dos estudos que têm vindo a público dão a medida, da riqueza e da variedade das fontes utilizadas, o que é um traço comum dos trabalhos que se dedicam ao tema, não só no caso brasileiro, como também na América Latina1. Entre outras contribuições, os trabalhos produzidos apontaram a extrema variação da organização familiar latino-americana e brasileira, impondo a utilização do termo “família”, no plural, porque são inúmeras as possibilidades de arranjos 1 Uma referência fundamental que sublinha a diversidade e riqueza das fontes mais comumente utilizados nos estudos sobre a família em perspectiva histórica é a obra organizada por Pablo Rodríguez e Annie Molinie-Bertrand (Molinie-Bertrand e Rodríguez, 2000). Especificamente sobre as fontes utilizadas para o estudo da família, como categoria demográfica para América Latina, encontramos dados de interesse publicados em Cuba (Benítez Pérez e Alfonso De Armas, 2003). Referimos também as informações sobre as fontes, disponibilizadas na obra de José Luiz Moreno. Nesta mesma obra encontra-se um ensaio bibliográfico que faz uma útil resenha dos principais trabalhos sobre a história da família na América Latina (MORENO, 2004: 283-313). 15 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro familiares que, por sua vez, também variaram no tempo, no espaço e de acordo com os distintos grupos sociais. Uma avaliação sobre a contribuição dos estudos de caráter demográfico para os avanços dos estudos sobre a família no caso do Brasil foi apresentada em artigo que discutiu os quarenta anos da introdução da Demografia Histórica no país (BACELLAR, SCOTT et al., 2005). O balanço produzido pelos autores, naquele momento, revelou que os estudiosos da família haviam feito uso, preferencialmente, das metodologias provenientes da escola francesa e da escola inglesa2 e, mais recentemente, estavam se valendo das metodologias inspiradas na micro-história italiana, com os seguimentos nominativos. Destacou ainda que muito do que havia sido produzido em termos de história da família estava baseado na exploração de duas séries documentais principais: os registros paroquiais e as listas nominativas de habitantes, também conhecidas como Maços de População. Deve-se sublinhar, além disso, que uma parcela significativa dos estudos sobre a história da família concentrava-se entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do XIX e esse fato está diretamente vinculado a existência das fontes primárias utilizadas, como os maços de população, concentrados, grosso modo, entre 1765 e 1850, e a disponibilidade dos registros paroquiais, fonte que apresenta lacunas e limites de abrangência temporal. No caso da documentação paroquial é fato notório que para os primeiros séculos da colonização poucas séries de assentos vitais sobreviveram até nossos dias. 2 Sobre a contribuição da Escola Inglesa, produndamente atrelada ao Cambridge Group for theHistoryofthe Family and Social Structure, veja-se o artigo previsto para publicação na Revista de Estudos Amazônicos (Dossiê Hstória da População), onde apresento uma discussão sobre a contribuição do Grupo para a história da família no Brasil. Aliás, o Cambridge Group comemora 50 anos de fundação neste ano de 2014. 16 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Esta triste realidade deve-se a diversos fatores que estão interligados. Por um lado deve-se às condições precárias e inadequadas de conservação dos documentos, mas também é resultado direto da marcha da ocupação e integração do espaço americano sob o domínio luso na América, que se caracterizou pelo constante desmembramento territorial e reorganização da administração laica e eclesiástica. A cada nova criação de diocese, remanejavam-se os documentos para a nova sede, acarretando em perda e desorganização dos fundos documentais (COSTA, 1990; MARCÍLIO, 2004). Com relação às listas nominativas de habitantes, sua riqueza é conhecida entre os pesquisadores da família. É uma documentação de caráter seriado, que organizava a população em fogos ou domicílios, isto é, arrolava e sistematizava os todos os indivíduos de uma dada vila segundo critérios de coresidência. A sua utilização pelos historiadores contribuiu para a disseminação dos métodos produzidos pelo Grupo de Cambridge, a partir de uma tipologia de classificação dos domicílios. Além disso, serviu de base para uma adaptação da metodologia francesa de reconstituição de famílias, proposta por Maria Luiza Marcílio e aplicada em dois estudos sobre a Capitania-Província de São Paulo (SCOTT, 1987; 1995 e BACELLAR, 1987; 1997)3. Contudo, se o boom de estudos sobre a família se deu a partir da década de 1980, sobretudo com ênfase nas metodologias da demografia histórica, não devemos esquecer as contribuições fundamentais dadas ao estudo da família no Brasil, que remontam às primeiras décadas do século XX, destacando-se os estudos pioneiros de Gilberto Freyre e Oliveira Viana. 3 Para uma apreciação mais detalhada dos Maços de População ou listas nominativas de habitantes veja-se os trabalhos clássicos de (MARCÍLIO, 1973; 1977; 2000), entre outros. 17 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro Naquela oportunidade a temática da família havia sido tratada de forma diferente, e a preocupação central estava voltada para examinar a família e a sua relação com o Estado, procurando entender o processo de formação da nação no Brasil. Nesse contexto, os estudos de Gilberto Freyre sublinhavam o perfil patriarcal da família brasileira, que se tornaram clássicos da literatura nacional e internacional4. Também inserida nessa vertente está a contribuição de Oliveira Vianna, no livro Populações Meridionais, ao utilizar a noção de clã parental para estudar a família senhorial e a formação da sociedade brasileira (VIANNA, 1973)5. Os ensaios sobre a família produzidos por esses autores não podiam desvincular-se das especificidades de nossa sociedade, marcada pelo escravismo e pelo patriarcalismo. Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, cuja primeira edição é do ano de 1933 (FREYRE, 1981), colocou a família no centro do debate, pois era considerada a base da estruturação da sociedade colonial. Na sua perspectiva era a família e não o indivíduo ou o Estado, o verdadeiro fator colonizador do Brasil, exercendo a justiça, controlando a política, produzindo riquezas, ampliando territórios e imprimindo o ritmo da vida religiosa, como recordou Faria (FARIA, 2000). Caio Prado Júnior também é um nome a ser lembrado, e sua análise insidia sobre a questão da instabilidade, do desregramento e da promiscuidade, que seriam as características marcantes da sociedade colonial, incluindo as famílias das casasgrandes. Algumas de suas reflexões estão contidas no clássico 4 A família de tipo patriarcal pode ser definida como um grupo complexo e numeroso, que congregava o senhor – todo poderoso – e sua esposa, seus filhos, noras, genros e netos, aos quais se adicionavam parentes, afilhados, concubinas, filhos ilegítimos e agregados, acompanhados pela escravaria e circundado pelos vizinhos e amigos (MOTTA, 1999b). Voltaremos a esta questão. 5 Primeiro livro publicado pelo autor, em 1920. 18 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas livro “Formação do Brasil Contemporâneo”, publicado originalmente em 1942 (PRADO JÚNIOR, 1977). Sérgio Buarque de Holanda também deu sua contribuição à discussão, no livro “Raízes do Brasil” (HOLANDA, 1977) apontando a importância do pater-familias na empresa colonial, sublinhando que a família patriarcal e latifundiária, não pretendia formar cidadãos, e sim, parentes, propiciando a invasão do público pelo privado, do Estado pela família (MUAZE, 2006: 12-13). A temática continuou a receber atenção crescente de outros estudiosos nas décadas de 1950 e 1960, através da incorporação de inúmeros intelectuais que escreveram sobre a organização e a estrutura da família brasileira, dando ênfase à questão do poder e das parentelas, buscando as bases patriarcais da sociedade brasileira6. Contudo, foi o avanço da História Social, na década de 1970, que trouxe novo fôlego para o estudo da família, caracterizando-se pela diversificação temática, quando as pesquisas passaram a incorporar análises sobre a condição feminina, a criança, a ilegitimidade, o casamento, o concubinato, a transmissão de fortunas. A destacar ainda, na década de 1980, que o estudo da família negra surgiu com mais força, ligado à reflexão sobre a questão escravista – não podemos esquecer que em 1988 completava-se um século da extinção da escravidão no Brasil. No mesmo contexto, afloraram temas, até então praticamente inexplorados, ou considerados de menor importância nas épocas anteriores. Contudo, nos limites deste capítulo não é possível avançar para a discussão específica sobre o tema da escravidão 6 Destacam-se nomes como Antonio Cândido de Mello e Souza, Emílio Willems, Donald Pierson, Oracy Nogueira, Thales de Azevedo, Charles Wagley, entre outros. 19 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro e da contribuição dos estudos da Demografia Histórica e da História da Família neste campo7. No entanto, é importante lembrar a polêmica gerada na década de 1990, a partir das críticas de Jacob Gorender a este tipo de estudos8, bem como as contribuições mais recentes de Manolo Florentino, Robert Slenes, José Flavio Motta, entre tantos outros, embora não aprofundemos a discussão nesta oportunidade. Especificamente sobre o período colonial e sobre a contribuição da historiografia nos inícios dos anos de 1990, Maria Beatriz Nizza da Silva sublinhava que, ainda naquele momento, as pesquisas concentravam-se na História Social, prolongando-se na História da Família, na História da Mulher, na Demografia Histórica e na área denominada em alguns países como História das Mentalidades. Afirmava ainda que os grupos sociais, enquanto objeto da História Social tinham ocupado relativamente pouco os historiadores brasileiros: a historiografia norte americana (os chamados brazilianistas)9 havia dado sua contribuição em relação ao grupo mercantil, os senhores de engenho teriam merecido a atenção da historiografia (até por encarnar o papel de dominadores na sociedade colonial), enquanto que as camadas mais pobres da população só muito recentemente vinham merecendo a atenção dos pesquisadores. Notava ainda que a temática da escravidão (africana e indíge7 Embora os leitores sejam brindados com importante aporte sobre esa questão da família escrava no capítulo assinado por Paulo Moreira e Natália Garcia, que integram esta coletânea. 8 Veja-se por exemplo (GORENDER, 1991). Mais recentemente alguns balanços sobre os estudos sobre a escravidão podem ser encontrados em (MOTTA, 1999a) e (SCHWARTZ, 2001). 9 Os Brazilianistastiveram um papel fundamental no avanço dos estudos sobre a família no passado brasileiro. Caberia até mesmo uma reflexão específica sobre estes trabalhos, que não pode ser feita aqui. No entanto, devemos lembrar os trabalhos de Donald Ramos, Elizabeth Kuznesof, AlidaMetcalf, Muriel Nazzari, Darryl Levi, Linda Lewin, entre tantos outros. Vale lembrar que nem todos os chamados brazilianistas são pesquisadores norte-americanos, embora constituam um bom número deles... 20 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas na) também vinha sendo abordada pelos estudiosos (SILVA, 1992: 7-12)10. No final da mesma década, e a propósito do V Centenário do Descobrimento, José Flávio Motta chamava a atenção para as questões de fundo que ainda preocupavam os estudiosos: a inexistência de um consenso em torno da definição de família, relacionado tanto ao tema do patriarcalismo como com a questão das dificuldades inerentes às diferentes categorizações utilizadas (MOTTA, 1999b). Outra vertente que se consolidou nos últimos anos, tanto no Brasil, como no âmbito da historiografia latino-americana, aponta a necessidade de se aprofundar o estudo relativo às diferenças e às especificidades das famílias no contexto da América Latina, quando comparada à matriz européia. Os resultados sobre a América Latina sublinham que proliferavam as uniões baseadas no concubinato, que as taxas de ilegitimidade apresentavam altos percentuais e que proporções significativas de domicílios eram chefiados por mulheres. Por isso, a historiografia sobre a família na América Latina, desde inícios da década de 1990, vem reforçando a especificidade da sociedade colonial que se construiu nos territórios americanos dominados pelas coroas ibéricas (GONZALBO AIZPURU, 1991; MCCAA, 1991; MARCÍLIO, 1993). O mundo que se forjou na América sob o domínio ibérico, profundamente heterogêneo e miscigenado, punha em evidência suas diferenças em relação aos padrões familiares propostos com base nos estudos sobre as sociedades do Noroeste Europeu. Além disso, tais padrões instituíram-se como parâmetro analítico para as sociedades americanas e, por isso mes10 Os trabalhos de Maria Beatriz Nizza da Silva são contribuições essenciais para o estudo da família no Brasil há, pelo menos, duas décadas. Entre eles, referimos os mais importantes citamos: (SILVA, 1984; 1989; SILVA, 1993; SILVA, 1995; SILVA, 2001; SILVA, 2002; 2005). 21 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro mo, reforçava a idéia de “originalidade” ou até mesmo a “anormalidade” da família latino-americana no passado colonial (MCCAA, 1991). Nessa mesma linha, e em artigo publicado há dez anos, também procuramos apontar as contribuições da demografia histórica para o estudo da história da família. Procuramos ressaltar a importância de se considerar os avanços dos estudos sobre a família em Portugal, para compreender melhor a influência e as adaptações que a matriz familiar lusitana teria tido nos territórios coloniais americanos (SCOTT, 1998), além de procurar relativizar a “originalidade” da organização familiar americana, pelo menos em comparação com a região noroeste de Portugal11. É urgente que se estimule essa discussão numa dimensão comparativa, como sublinhou Ana Vera Estrada. Para tratar a grande diversidade das formas familiares é necessário recorrer a modelos que facilitem as comparações, que acelerem ou renovem a utilização de recursos técnicos e metodológicos. Isto sem dúvida favorecerá as contínuas descobertas sobre o rico e variado universo familiar da história da América Latina, estimulando o profícuo diálogo que se estabelece entre a história e as ciências sociais (ESTRADA, 2003: 9-10). Contudo, talvez, um dos traços mais importante a ser sublinhado, é a importância que a questão do patriarcalismo continua a ter entre os historiadores que tratam a temática da família, debate que com altos e baixos, se mantêm na pauta das discussões, desde os trabalhos clássicos de Gilberto Freyre. Nesse sentido, a análise da família no passado brasileiro não pode prescindir de uma ponderação sobre essa questão12. 11 Refiro também, nessa mesma senda, o volume da revista População e Família, número 5 (São Paulo: Humanistas, 2003) que teve como tema a família iberoamericana. 12 Novamente remeto a capítulo que integra essa coletânea. Martha Hameister faz uma reflexão instigante sobre questões teóricas ligadas à família. 22 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Ao refletirmos sobre a trajetória dos estudos sobre a família no Brasil, verificamos que entre as décadas de 1980 e 1990 temos um dos momentos de intenso debate sobre o patriarcalismo. Naquela oportunidade houve uma polarização entre a historiografia tradicional, que defendia o predomínio da ‘família patriarcal’ (vinculada aos nomes de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Cândido de Mello e Souza) e aqueles que ressaltavam a obsolescência do modelo patriarcal, enquanto elemento de compreensão do ‘passado familiar’ brasileiro. Nesse sentido são interessantes as considerações de Ronaldo Vainfas (VAINFAS, 1989: 107-113). Para Vainfas a polêmica girou em torno da crítica ao ‘estereótipo’ da família numerosa, composta não só pelo núcleo conjugal e seus filhos, mas integrada por uma vasta gama de criados, parentes, agregados e escravos submetidos ao poder quase absoluto do chefe da casa. Este, a um só tempo, marido, pai e patriarca, verdadeiro dominus da casa-grande (VAINFAS, 1989: 107). A questão que emergia desta polêmica trazida por Vainfas e retomada por outros autores se resumia numa afirmação importante: Se as famílias coloniais eram mais ou menos extensas, se numa dada habitação moravam pouco indivíduos ou dezenas deles, eis um dilema de pouca relevância nos trabalhos de Freyre e Candido. E quer-nos parecer, ainda, que a maior ou menor concentração de indivíduos, fosse em solares, fosse em casebres, em nada ofuscava o patriarcalismo dominante, a menos que se pretenda que, pelo simples fato de não habitarem a casagrande, as assim chamadas ‘famílias alternativas’ viviam alheias ao poder e aos valores patriarcais, o que ninguém seria capaz de afirmar, seguramente (VAINFAS, 1989: 110). A temática continuou na pauta das discussões, nos inícios do século XXI e esse debate continua a estimular a reflexão entre os historiadores e vêm aparecendo em numerosos trabalhos (BARICKMAN, 2003, MACHADO, 2006 e BRÜGGER, 2007). 23 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro Bart J. Barickman, na abertura de um artigo publicado em 2003, retomava a discussão a propósito de Gilberto Freyre, sublinhando que o sociólogo era o saco de pancadas predileto entre os estudiosos interessados na história da família no Brasil colonial e do século XIX, afirmando que (...) a descrição pode, ou não, ser justa e correta. Mas, se é correta, apenas serve para indicar a enorme influência que os argumentos de Freyre têm exercido sobre a historiografia. Efetivamente, Casa Grande & Senzala e outros livros do sociólogo pernambucano são ainda hoje referências fundamentais para as pesquisas, não só sobre a história da família, como também sobre uma ampla variedade de questões históricas no Brasil (BARICKMAN, 2003). Barickman retomava o debate indicando os pontos fracos dessa literatura revisionista. Em primeiro lugar o fato de que a maioria dos estudos concentrou-se numa área geográfica que abrange São Paulo e Minas Gerais, sendo raros os trabalhos que utilizaram a mesma documentação para investigar outras regiões, sobretudo o Nordeste. A conseqüência direta foi o parco conhecimento sobre as estruturas domésticas numa região vasta e variada que, no início XIX, abrigava quase metade da população brasileira. Como resultado, as pesquisas revisionistas poderiam, no máximo, refutar de modo indireto a visão tradicional da casa-grande patriarcal que se associa a Freyre (BARICKMAN, 2003: 83-85). Segundo, e mais importante, na mesma linha defendida por Ronaldo Vainfas, Barickmanchamava a atenção para a confusão conceitual, entre a ‘família patriarcal’ e a ‘família extensa’ que, em muitas oportunidades, havia sido incorporada a essa literatura revisionista, e que tinha como fonte principal os censos nominativos. Porém, como salientam estes autores, o conceito de patriarcalismo pouco ou nada tem a ver com a presença de noras, genros, netos, filhos casados, sobrinhos e outros parentes como moradores da unidade doméstica. Antes, é um conceito que 24 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas remete, sobretudo, ao poder pátrio, à autoridade dada aos pais e aos maridos,como pais e maridos (grifo de Barickmam), sobre seus filhos e esposas (BARICKMAN, 2003: 121). Isso gerou inclusive conclusões contraditórias sobre a família no Brasil, quando uns defendem que a estrutura extensa foi um dos traços mais característicos da ‘família brasileira’ enquanto outros ‘provam’ que a família brasileira é, e sempre foi restrita à unidade nuclear. Essa contradição, segundo Barickman de fato não existe, uma vez que as conclusões conflitantes decorrem, em grande medida, de definições diferentes defamília: por um lado, a família como uma rede de parentesco, ou seja, como parentela; por outro a família como grupo doméstico censitário, isto é conforme o caso, um fogo ou domicílio. As contradições começam a se desfazer assim que se leva em conta a distinção entre as duas definições de família (BARICKMAN, 2003: 121). Conforme a sua argumentação, a raiz deste problema reside no fato de que Freyre não se deu ao trabalho de definir seu conceito de família patriarcal, nem mesmo definiu o que entendia por família, muito embora se possa assumir a identificação entre casa e família. Barickman, contudo, sugere que Freyre poderia ter usado o conceito de patriarcalismo em mais de um sentido, e entendido ‘família’ como um grupo doméstico que compartilhava a mesma habitação e, ao mesmo tempo, como uma rede de parentesco com mais de uma unidade doméstica (BARICKMAN, 2003: 122-130). Eis aí, a nosso ver o ponto central que nos últimos anos vêm animando os estudos sobre a família no Brasil, não só ampliar a abrangência geográfica e temporal, como se valer de um leque de fontes muito mais alargado e, sobretudo, investir no aprofundamento da discussão conceitual, assim como ampliar o arsenal de conceitos utilizados, contribuindo assim para o debate. Alguns trabalhos já estão a percorrer esses caminhos. 25 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro Silvia Brügger, por exemplo, parte da noção de patriarcalismo como um conjunto de valores e práticas que colocam a família no centro da ação social, aplicando-o à sua análise sobre a sociedade mineira (BRÜGGER, 2007). Cacilda Machado, por sua vez, parte do princípio de que a apropriação do patriarcalismo de Freyre, apenas como um conjunto de valores e práticas que colocam a família no centro da ação social, ou como um ideal disciplinador, não é útil para a ampliação do conhecimento. A autora utiliza a noção de família patriarcal de maneira diferente, procurando encontrar o caráter patriarcal das relações estabelecidas entre homens e mulheres livres, fora do contexto da grande propriedade escravista, numa área onde predominava o trabalho familiar (MACHADO, 2006; 2008). Por conta de todo esse debate, entendemos porque as discussões relativas à família não podem limitar-se a uma análise da componente demográfica ou variável relativa à co-residência. Elas não dão conta da complexidade do universo da família que tece teias que vão além dos limites dos vínculos biológicos primários e da convivência sob o mesmo teto. E essa perspectiva renovou o interesse dos historiadores pelo estudo da família apostando na análise das trajetórias individuais e familiares, influenciados pelos estudos micro-analíticos, como também apostando na utilização de conceitos como rede social ou estratégia familiar, como salientamos no início desse artigo. Diversos são os trabalhos publicados que têm investido nessa linha interpretativa, buscando analisar a dinâmica familiar da nossa sociedade tendo a noção de patriarcalismo como aspecto central para a compreensão do tema. O estudo das redes sociais, nesta perspectiva analítica tem enorme utilidade para o pesquisador, e tem aberto caminhos profícuos para a compreensão da sociedade brasileira, tanto época colonial, como ao longo do período imperial. A questão do poder assu- 26 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas me, nesse contexto, papel fundamental em muitos desses trabalhos. Em que pesem as transformações que marcaram a sociedade brasileira, desde o período colonial até o final do século XIX, não é possível deixar de notar que a família continuou a exercer papel central, não só entre os grupos mais privilegiados, como também entre os segmentos menos favorecidos. Estão aí os trabalhos já clássicos de Hebe Maria Mattos que recolocam a questão do conceito de patriarcalismo ao analisar o sudeste brasileiro no século XIX, ou o estudo mais recente de Cacilda Machado (MACHADO, 2008), que mostram a necessidade de se dar respostas às questões suscitadas pelas pesquisas demográficas sobre a história da família livre ou escrava, de se debruçar sobre os significados culturais das “associações familiares” na sociedade escravista e em seu papel central no estabelecimento das hierarquias e relações sociais. Não é possível pensar o patriarcalismo limitado à configuração do domicílio extenso, mas como um pressuposto fundamental para entender a importância dos “laços familiares”, entendidos de uma maneira mais elástica e construídos não só a partir do parentesco biológico, mas através dos laços baseados nas alianças matrimoniais, nas relações de compadrio, e na “economia do dom”, que funciona através da lógica dos atos de dar, receber e retribuir, constituindo relações de “amizade desigual” que as diferentes esferas de poder legitimavam13. Nesta lógica familiar estavam em primeiro lugar os interesses coletivos do grupo, da parentela, dos que faziam parte e estavam integrados no círculo de “amigos” e dependentes. Compreender as diferentes tramas que ligavam indivíduos e famílias de distintas posições sociais, neste universo heterogêneo 13 Para aprofundar essa temática é essencial recorrer a Marcel Mauss, sobretudo no texto “Ensaio sobre a dádiva – forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” in: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac &Naify, 2003. 27 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro que é o Brasil escravista, passou a ser o grande desafio dos historiadores da família14. É relevante ressaltar também que nos trabalhos produzidos nos últimos anos persistem duas características comuns à maioria das pesquisas relativas à história da família. Em primeiro lugar a utilização de um conjunto diversificado de fontes, que vão desde as mais comumente utilizadas, como os registros paroquiais e listas de população, passando pelos testamentos, inventários post-mortem, processos crimes, documentação inquisitorial, cartas, diários, escrituras de dote, de compra e venda de escravos, tutelas, fotografias, entre outras. Do ponto de vista das metodologias, há uma predileção pela micro-análise, pelo cruzamento de fontes, pelos seguimentos nominativos que dão a tônica à maioria desses trabalhos, que analisam as mais diferentes regiões do país, do Pará ao Rio Grande do Sul, assim como os diferentes grupos sociais. De sul a norte, e apenas para citar os estudos mais recentes temos aqueles relativos ao Rio Grande do Sul, a maioria constituída de teses de doutorado e dissertações de mestrado ainda não publicadas como a de Fábio Kühn (KÜHN, 2006), Martha Hameister (HAMEISTER, 2006), Bruna Sirtori (SIRTORI, 2008) e Denize Freitas (FREITAS, 2011), além dos trabalhos de Luis Augusto E. Farinatti (FARINATTI, 2010), Jonas M. Vargas (VARGAS, 2010) e José Carlos S. Cardozo (CARDOZO, 2013), já publicados em livro. Cacilda Machado, por sua vez, apresenta um estudo sobre São José dos Pinhais, no atual estado do Paraná (MACHADO, 2008). Para o Rio de Janeiro, o belo trabalho de Mariana 14 É claro que também essa discussão pode incorporar o universo das famílias de imigrantes, especialmente considerando-se o caso da imigração europeia que teve impactos importantes nas transformações que o Brasil passava nas últimas décadas do século XIX inícios do século XX. Os capítulos que tratam da família imigrante, presentesnesse volume trazem elementos fundamentais para se refletir sobre o que estamos discutindo aqui. 28 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Muaze (MUAZE, 2008). Para Minas Gerais, entre tantos trabalhos temos o estudo de Silvia Maria J. Brügger (BRÜGGER, 2007) e de Renato Pinto Venâncio (VENÂNCIO, SOUSA et al., 2006). Para o nordeste o estudo de Antonio Otaviano Vieira Júnior, sobre o Ceará (VIEIRA JR., 2008) e o de Solange Pereira da Rocha (ROCHA, 2009) que analisa especialmente a população e a família negra. Estes são exemplos bastante ilustrativos dos caminhos trilhados pela história da família no Brasil. Vale notar ainda que apesar da utilização dessa gama variada de fontes de cunho quantitativo e qualitativo, os registros paroquiais continuam ocupando lugar privilegiado para ajudar os historiadores a desvendarem e compreenderem as teias tecidas pelas famílias no universo do Brasil escravista. Um bom número de estudos explora o tema do compadrio, através do estudo dos assentos de batismo, janela privilegiada para chegar ao âmago das redes sociais construídas pelas populações no passado. Como tem sido frisado, o batismo era o sacramento mais difundido entre a nossa população e, a partir daí, os pesquisadores procuram explorar a importância da escolha dos padrinhos e que estratégias e mecanismos estavam por trás da preferência. Quase todos os trabalhos citados analisaram a questão do compadrio, este parentesco ritual que institui alianças sociais não só entre indivíduos do mesmo estatuto, como também abre possibilidade de se escolher indivíduos de condição diferente dos pais da criança. O compadrio tem sido amplamente estudado e as pesquisas abrangem o seguimento livre e escravo da população. Embora o estudo do compadrio esteja muito disseminado, Renato Venâncio, pondera que a análise da escolha dos padrinhos do período colonial quase sempre se restringe à população escrava. As investigações sobre compadrio na população livre são mais raras. 29 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro Procurando contribuir para o debate, através do estudo do compadrio entre a elite mineira colonial parte, como a maioria dos autores, da hipótese que na sociedade da época, a noção de ‘prestígio’ vinculava-se à capacidade de dispor de recursos (fossem eles pessoais ou do aparelho de Estado), gerando assim uma ‘economia de favores’, de dom e contra-dom, em outras palavras, de reciprocidade social envolvendo desiguais. Ao benfeitor cabia conceder e ao beneficiado ser fiel, não sendo esse gesto visto como um desvio da ‘norma’, mas sim como sua corporificação. Nesse sentido, a noção de ‘amizade desigual’, que subordinava a reciprocidade ao respeito e à hierarquia social, tornava-se o elemento legitimador das relações de poder internas ou externas aos grupos sociais. No caso do compadrio, tais vínculos eram ainda intensos, pois geravam laços de parentesco para o resto da vida – tanto na relação padrinho-afilhado quanto na de compadre-compadre. Nesse sentido, é possível afirmar que o compadrio consistia em um dos elementos de estruturação das redes sociais que organizavam a vida cotidiana. Silvia Brügger, em seu livro Minas Patriarcal (BRÜGGER, 2007) dedica todo um capítulo à questão do compadrio, ao analisar o caso de São João Del Rei entre os séculos XVIII e XIX. Afirma que os padrinhos escolhidos para as crianças em sua esmagadora maioria eram de condição igual ou superior à da mãe e que, ao longo de todo o período foram raros os filhos de mães livres que tiveram padrinhos forros ou escravos. Cacilda Machado (MACHADO, 2008), como Brügger, também dedica um capítulo de seu livro para o estudo do compadrio, dando ênfase às alianças sociais entre escravos, negros e pardos livres, e verifica que o parentesco espiritual era utilizado tanto como estratégia para criar laços com pessoas de estatuto sociais superiores para obter proteção, como também poderia funcionar como meio de socialização de modo a formar uma comunidade de escravos e livres pobres. 30 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Fábio Kühn e Martha Hameister também enveredam pelos mesmos caminhos para analisar o compadrio e a redes que se formaram entre os indivíduos e grupos familiares na porção meridional da colônia, no século XVIII. Por outro lado, outras perspectivas são exploradas pelos historiadores da família, aproveitando fontes de outra natureza, mas que se mostraram extremamente fecundas e enriqueceram as leituras possíveis sobre o universo familiar. Destacam-se dois trabalhos que analisam períodos e regiões diferentes, mas que em comum oferecem um olhar instigante sobre a família, através de uma narrativa que flui de maneira muito agradável. O primeiro leva o leitor a perceber as possibilidades de pesquisa para a história da família através da exploração das fontes inquisitoriais (habilitação de familiares do Santo Ofício), denúncias e processos depositados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa) e adentrar na intimidade da trajetória de indivíduos e famílias muito diferentes, de livres e de escravos, de ricos e de pobres, enredados nas teias do Santo Ofício e que viveram no Ceará setecentista (VIEIRA JR., 2008). O segundo, por sua vez, nos leva a região de Vassouras, Rio de Janeiro, no século XIX. Diferentemente da maioria dos trabalhos relativos à história da família no Brasil, sua análise foi construída a partir de documentos privados – cartas, diários, livros de assento, cadernos de anotações e fotografias – revelando ao leitor o mundo das famílias abastadas do Império. O resultado foi uma entrada, sem cerimônia, e com muita habilidade e desenvoltura na intimidade e no cotidiano da nobreza imperial, o universo da família e do poder entre barões, viscondes e viscondessas. A autora conseguiu redesenhar as redes de solidariedade e mecanismos de sobrevivência que permitiram a manutenção de certos grupos entre o restrito círculo dominante na sociedade imperial. 31 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro Em poucas palavras, esses trabalhos indicam alguns dos caminhos mais promissores que os historiadores da família vêm trilhando, apresentando uma perspectiva muito diferente da que predominou ao longo das décadas de 1980 e 1990. Os estudos mais recentes apostam na aplicação de fontes e metodologias variadas, na ampliação e no aprofundamento da análise conceitual, e procuram fugir do eixo temporal e geográfico que havia predominado anteriormente. Estas reflexões podem perfeitamente encerrar-se parafraseando a opinião expressa por Mariana Muaze, que faz uma avaliação interessante sobre as diferentes maneiras que o tema da família foi tratado pela historiografia. Para a autora, seja pensando a sua relação com o Estado, ou articulado ao movimento de busca de novos objetos – intenções que, a princípio, podem ter sido diferentes – estas perspectivas de estudo não são excludentes. É possível que elas possam andar juntas quando se altera a escala de observação histórica. Isto é, o estudo das trajetórias individuais e das estratégias familiares pode oferecer uma outra chave de compreensão sobre esse tema fundamental para a historiografia brasileira, quando procuramos desatar os “nós” das teias que são tecidas pela família. À guisa de conclusão: história da família no Brasil Meridional À primeira vista, poderia parecer que os estudos sobre a região do antigo Rio Grande do Sul, contam com pouca produção na área específica da história da população. Contudo um olhar mais atento revela que a produção historiográfica gaúcha tem sido renovada por uma geração de jovens historiadores que têm analisado a sociedade e a economia da região e vem contribuindo para contestar alguns postulados tradicionalmente aceitos em relação ao seu passado colonial, imperial e 32 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas repúblicano. Estes pesquisadores procuram inovar e mostrar outras facetas da sociedade que se desenvolveu nas fronteiras meridionais, incorporando novas fontes e metodologias ao estudo da região e, nesse contexto, a família conquistou e ocupa lugar central na produção historiográfica recente, sobretudo em relação à população escrava e os grupos da elite. Os resultados destes estudos lançam questionamentos sobre os comportamentos demográficos das populações que vieram a ocupar e povoar esta região, e que se caracterizou por processo peculiar, envolvido não só pelas questões de disputa territorial com os espanhóis, mas que também teve uma experiência de colonização muito particular, através da vinda dos “casais açorianos”, em meados do século XVIII. Além disso, as primeiras décadas do século XIX testemunharam a chegada dos primeiros imigrantes alemães que, em ondas sucessivas, se instalaram na região do Rio Grande do Sul, a partir da segunda década dos anos oitocentos. Portanto, esta experiência histórica diversificada, marcada pelo contato de populações de origem variada (população autóctone, populações luso-brasileiras, população espanhola e hispano-americana), merece uma exploração mais sistemática de fontes seriadas não apenas para dar uma contribuição ao estudo da população e da família no extremo sul da América portuguesa, mas também porque este tipo de investigação lança novos elementos para um melhor conhecimento dos diferentes sistemas ou regimes demográficos que caracterizaram o passado colonial brasileiro. Os estudos que vêm sendo desenvolvidos nos Programas de Pós-Graduação nas instituições gaúchas e fora delas revela a qualidade e a quantidade de pesquisas em andamento, que se não usam com muita desenvoltura os métodos e técnicas da Demografia Histórica, se valem de todo o aparato teórico e metodológico da História Social e da História econômica e política renovada para aprofundar o tema da família. Para mais, 33 SCOTT, A. S. V. • “Descobrindo” as Famílias no passado brasileiro os “ventos da virada cultural” tem soprado de forma decisiva entre os historiadores que passam a ver o estudo da família como um tema transversal, que perpassa as várias dimensões e abordagens que estão na agenda dos historiadores preocupados com a região meridional e suas interfaces mais próximas com o espaço platino. Contudo, a prova incontestável dessa afirmação passa, sem dúvida, pelas contribuições reunidas neste volume, que dão um panorama amplo da quantidade e qualidade da produção sobre o extremo sul do Brasil. Finalizando, a história da família no Brasil vai muito bem... Cada vez mais a produção sobre a história da família vai cobrindo regiões mais alargadas do território, as oportunidades de diálogo com os colegas ibero-americanos vão se avolumando, especificamente em relação a Portugal e ao Cone Sul, a partir de estágios pós-doutorais, bolsas sanduíche, protocolos de cooperação e parceria entre instituições e pesquisadores... Contudo, é necessário estimular aspectos que estão menos contemplados nessa produção mais recente: – Ainda é o período colonial (estendido, 1850) que concentra a maior parte dos trabalhos; a segunda metade do século XIX e a primeira metade do XX ainda se ressentem da escassez de estudos (talvez os estudos que envolvam população escrava e o período do pós-abolição estejam melhor servidos...), mas há muito o que fazer nesse período; – Estudos focados na população e família indígena seriam muito bem-vindos; – Combinar, da forma mais efetiva e produtiva as metodologias que estão mais interessadas nas “curvas” e aquelas que se voltam para os “casos”; – Redes colaborativas de pesquisadores, muitos com bancos de dados nominativos riquíssimos, mas que “conversam pouco entre si”. 34 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Neste último caso, as experiências bem-sucedidas, como as que são desenvolvidas no Grupo de Pesquisa CNPq Demografia & História, poderiam servir de inspiração para que em breve possamos nos reunir para levar adiante o desafio de escrever uma história da população e da família no Brasil, que dê conta dos múltiplos arranjos que se espalharam por todo esse amplo território15. O GP Demografia & História agrega mais de uma dezena de pesquisadores, além de pós-graduandos e bolsistas de iniciação científica de instituições de norte a sul do Brasil. Atualmente existem núcleos de pesquisadores alimentando bancos de dados sobre a região sul, extremo norte e, mais recentemente do nordeste. Começar pelo presente livro parece uma iniciativa muito auspiciosa para, no futuro, se escrever uma História da Família no Brasil. Oxalá o exemplo desta História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas inspire outras latitudes! Referências BACELLAR, C. A. P. Os Senhores da Terra: Família e Sistema Sucessório entre os Senhores de Engenho do Oeste Paulista, 1765-1855. (Mestrado). Universidade de São Paulo, 1987. ______. Senhores da Terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória – UNICAMP. 1997. BACELLAR, C. A. P., SCOTT, A. S. V., et al.Quarenta Anos de Demografia Histórica. 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Esse fenômeno, porém, é recente e coincide com a estruturação dos programas de pósgraduação (especialmente em história e antropologia social). Entretanto, para que tal movimento não se interrompa e que as várias lacunas que ainda persistem possam ser sanadas, um ocasional levantamento historiográfico pode ajudar. Assim, os autores do presente artigo, aceitaram o generoso e melindroso convite para fazerem um balanço historiográfico sobre família escrava no Rio Grande do Sul. Trata-se de uma tarefa delicada. A historiografia – a “reflexão sobre a produção e a escrita da história”1 – demanda um considerável esforço e sempre pa- 1 SILVA & SILVA, 2005. 40 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas rece fadada a incompletude.2 Para diminuirmos os riscos da empreitada, decidimos limitar o levantamento às dissertações e teses defendidas em programas de pós-graduação, até o final de 2012. Como veremos, ainda são poucos os esforços investigativos voltados nitidamente para o estudo da família escrava no Rio Grande do Sul. Claro que já ultrapassamos o tempo em que a existência de arranjos familiares e afetivos entre cativos era negada, como forma de denunciar o sofrimento destas populações. A vitimização daí decorrente, mesmo que tivesse um sentido político preciso, acabou criando a representação de um cativo insólito, composto apenas do desafeto (ao trabalho, a organização de relações comunitárias e familiares) e portador de uma consciência que espelhava unicamente a visão e as necessidades do senhor, além das expectativas políticas dos historiadores.3 Esses não-homens não tinham concepções próprias (sobre a vida, sobre a organização familiar)4 e não agiam, apenas reagiam espasmodicamente aos desmandos senhoriais, das formas possíveis que a sua limita consciência permitia.5 Incons2 Um ótimo levantamento da produção regional sobre a escravidão, pode ser encontrado em XAVIER (2007). 3 Para Cardoso (1977: 125-126), por exemplo, os escravos seriam “testemunhos mudos para uma história para a qual não existem, senão como instrumento passivo [...] neste sentido, a consciência do escravo apenas registrava e espelhava, passivamente, os significados sociais que lhe eram impostos”. Portanto, “no geral, era possível obter a ‘coisificação’ subjetiva do escravo: sua autoconcepção como a negação da própria vontade de libertação; sua autorepresentação como não homem” (CARDOSO, 1977: 143). 4 Em um debate sobre infância escrava, ocorrido no I Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”, em Castro (PR), em 2003, um dos historiadores presentes chegou a sugerir que os abundantes registros de nascimento de cativos no oitocentos, se devia ao estupro sistemático das escravas por seus senhores, em uma tentativa quase desesperada de negar a existência da famílias negras nas senzalas meridionais. 5 A referência à visão espasmódica das ações populares é do historiador (heterodoxo) marxista E. P. Thompson, importante substrato teórico da renovação historiográfica ocorrida nos últimos anos no Brasil. Com essa expressão, Thompson queria “criticar as visões segundo as quais a ação social dos grupos populares tinha 41 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa cientemente concordando com as visões das elites sobre o comportamento dos não-brancos, acabava-se concordando que negro não casa, apenas se junta. O que significa não atribuir sentido e estabilidade às relações familiares consensuais (aos ajuntamentos), ou como se chamava no oitocentos, aos amasiamentos. Nos últimos anos, historiadores profundamente influenciados por fortes conotações empiristas, acorreram aos arquivos garimpando fontes documentais diversas, em cuja busca foram auxiliados por iniciativas dos órgãos que custodiam estes documentos e que trataram de melhorar os instrumentos de pesquisa, procedendo não só uma renovação nos arranjos documentais, mas transformando algumas destas instituições em verdadeiros centros de pesquisa.6 As variadas fontes primárias coletadas por estes historiadores demonstram enfaticamente a abundância de traços de afetividade e organização comunitária presentes na formação escravista meridional. Segundo um dos mais influentes historiadores que trataram desta temática: [...] a família escrava – nuclear, extensa, intergeracional – contribuiu decisivamente para a criação de uma “comunidade” escrava, dividida até certo ponto pela política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição por recursos limitados, mas ainda assim unida em torno de experiências, valores e memórias compartilhadas. Nesse sentido, a família minava constantemente a hegemonia dos senhores, criando condições para a subversão e a rebelião, por mais que parecesse reforçar seu domínio na rotina cotidiana. (SLENES, 1999: 48) como lógica a simples satisfação de demandas estomacais. Rejeitando a ideia de que os sujeitos sociais fossem inertes vetores da fome sofrida, o autor buscou construir abordagens mais complexas do comportamento dos camponeses ingleses do século XVIII, levando em consideração sua cultura, a percepção sobre o que era e o que não era considerado legítimo em termos econômicos; em suma, as maneiras como culturalmente se lidava com a escassez de recursos”. (WEIMER, 2007: 136) 6 Nos referimos, especificamente, ao Projeto Documentos da Escravidão no RS, promovido pelo Arquivo Público do Estado do RS, que produziu catálogos sobre os inventários, testamentos, processos criminais e alforrias, os quais podem ser acessados em seu site: http://www.apers.rs.gov.br 42 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Dividiremos o artigo em quatro partes. Na primeira, trataremos de pesquisas que não se destinavam a tratar do tema da escravidão, mas que acabaram por contribuir decisivamente para tal, com as análises e levantamentos documentais feitos. Na segunda, faremos um balanço das pesquisas que se voltaram para as experiências de cativeiro e liberdade e que acabaram costurando este tema com outros como parentesco, família, etnicidade. Na terceira parte, abordaremos os laudos e relatórios produzidos para as demandas das chamadas comunidades remanescentes de quilombos. Finalmente, no encerramento do artigo, citaremos as investigações explicitamente interessadas no tema-chave deste texto: as famílias escravas. As elites e seus escravos Nesta primeira parte, trataremos de investigações que não pretendiam tratar especificamente de família escrava e nem mesmo da escravidão, mas tangenciaram estes temas de forma crucial. A tese Para dar Calor á Nova População de Martha Hameister, defendida no ano de 2006, no PPG de História Social da UFRJ é um relevante trabalho sobre as estratégias sociais e trajetórias familiares da elite costuradas pelos imigrantes açorianos na então Vila do Rio Grande no período colonial brasileiro. A pesquisa empreendida baseia-se fundamentalmente nos registros de batismos da localidade. No quarto capítulo de sua investigação a autora analisa os compadrios tecidos pelas famílias de Ilhéus no novo território desbravado. Conforme Hameister, na Vila do Rio Grande, “algumas famílias primavam por fazer uma alternância de compadres”, uma ciranda do compadrio, segundo ela, em que a busca por compadres se dava no interior das mesmas famílias ou “nos mesmos grupos de atividades sociais e econômicas”. (HAMEISTER, 2006: 234-235) 43 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa Interessante destacar que nas relações amalgamadas pelo compadrio espiritual, “as madrinhas , quando existem, eram todas cunhadas dos pais das crianças” (HAMEISTER, 2006: 237), fato que indica que as madrinhas eram escolhidas no rol dos laços consanguíneos e nunca externos a eles. Por outro lado, no que tange a eleição dos padrinhos se dava pelos laços familiares (cunhados, sobrinhos) ou pessoas de mesmo status quo social. Assim, percebe-se “a reiteração de alianças e amizades previamente existentes, amalgamadas nos casamentos que inseriam os homens” nas famílias, as quais deveriam ter mulheres “colocadas ao mercado matrimonial”. (HAMEISTER, 2006: 238) Quando a autora esboça o seu entendimento acerca das relações familiares costuradas na Vila do Rio Grande relata que “as relações familiares, religiosas e de negócios estavam todas enredadas”, isto é, era uma sociedade que tinha a família como norte de organização, onde o “menor tipo de associação entre os homens que tem os mesmos elementos da sociedade”. (HAMEISTER, 2006: 239) Outro dado significativo é que os padrões de compadrio dos cativos de algumas famílias de elite, indicam-nos que eles “compartilhavam de comportamentos semelhantes na eleição de padrinhos e mesmo nos prenomes e na aquisição de sobrenomes” (HAMEISTER, 2006: 249). Nesse âmbito, para o bom andamento das relações sociais “as famílias se formavam e existiam na interseção entre escravidão e liberdade, e não em sua secção entre os que são escravos e os que são livres” (HAMEISTER, 2006: 250). Outrossim, destaca que as relações costuradas na pia batismal “uniam as escravarias que eram pertencentes às famílias de elite”, união essa que também se dava “em seus estratos mais baixos, mas prescindiam da presença senhorial para serem tecidas” (HAMESITER: 2006: 432). Assim sendo, pela investigação de Martha nota-se certa preferência por alguns familiares sendo requisitados para o apadrinhamento. Demonstra de maneira profícua como essas famílias costuravam suas relações, ampli- 44 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ando o seu “patrimônio imaterial” com a “ciranda dos batismos”, vínculos que começavam na pia batismal e se estendiam a relacionamentos sociais, políticos, econômicos e familiares na Vila do Rio Grande de São Pedro. Orientado pela historiadora Sheila Faria, especialista no tema da família no Brasil Colônia, Fabio Kühn defendeu em 2006 sua tese de doutoramento na Universidade Federal Fluminense. Suas investigações focaram “as estratégias familiares, políticas e de afirmação social da elite local residente no sul da América Portuguesa, ao longo do século XVIII, em particular na Vila de Laguna e na região dos Campos de Viamão”, pensando as suas “estratégias familiares e as redes de sociabilidades que lhe conferiam sentido” (KÜHN, 2006: RESUMO). Procurando evitar anacronismos, o autor reflete sobre o significado de família no Antigo Regime: “Atualmente, está consolidada a opinião de que a concepção da família na Colônia deve ser bastante elástica, dado que o termo família estrapolava os limites consanguineos, a coabitação e as relações rituais” e, assim, aponta a necessidade de “estudos que articulem as redes sociais, as relações de parentesco, residência e vizinhança; as estratégias matrimoniais e os sistemas de herança; o papel dos vinculos de amizade e solidariedade; enfim, todo o universo de sociabilidades em que se insere o indivíduo” (KÜHN, 2006: 16). Nesta busca, o autor se aproximou, segundo ele mesmo apontou, da antropologia social e da genealogia.7 Não sendo foco da investigação, a família escrava não aparece com destaque (segundo o autor não era seu objetivo “analisar o significado do compadrio para os grupos sociais subalternos (homens livres pobres, forros e escravos)” (KÜHN, 2006: 259), sendo, entretanto, mencionada em vários momentos. Destaque-se que Kühn estabelece que, em 1751, a população dos 7 Sobre o estudo das elites e o seu cruzamento com o escravismo, devemos ainda citar: OSÓRIO (2007). 45 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa Campos de Viamão era composta de mais de 45% de escravos, sendo 42% de origem africana e 3% indígena, comentando, com certa ironia, talvez pensando nos debates sobre a existência de cativos no Brasil Meridional, que estes números evidenciam uma realidade “semelhante ao encontrado nas zonas mineradoras ou de plantations e não muito adequado a uma região voltada ao mercado interno”. (KÜHN, 2006: 110)8 Defendida na UFRJ em 2007 e orientada pelo professor João Fragoso, temos a tese de doutoramento de Luís Augusto Ebling Farinatti – “Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865)”. Trata-se de uma pesquisa voltada ao estudo das elites meridionais, dentro da perspectiva de uma História Social Agrária, assim resumida pelo autor: “A presente pesquisa dedica-se a estudar a composição, a lógica social e as estratégias da elite agrária da Fronteira Meridional do Império do Brasil. O foco do trabalho recai sobre Alegrete, o maior município da Campanha, principal zona pecuária do Rio Grande do Sul, entre 1825 e 1865”.9 No último capítulo, o autor se aproxima, de variadas maneiras, do universo familiar cativo, analisando conquistas destes, como a criação de animais, (que decorriam “de suas próprias reivindicações e da política de domínio senhorial”), o acúmulo de pecúlios e a obtenção de alforrias, e a construção de laços parentais (FARINATTI, 2010: 387), mas chama a atenção: “Não tenho como tratar com profundidade, aqui, da formação de famílias escravas na Campanha”. (FARINATTI, 2010: 387) A interação entre cativos e seus afortunados senhores é destacada pelo autor: 8 Em nota de rodapé, na página 108, o autor, trabalhando com o 1º Livro de Batismos de de Viamão (1747-1759), estabelece um comparativo entre a taxa de legitimidade da população livre (de 93,7%) e da escrava (62,5%). 9 Foi muito grande a contribuição da história agrária ao estudo da sociedade escravista meridional: Ver: ZARTH (2002). 46 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Como lembrou Hebe Mattos, as noções de “clãs parentais” presente na obra de Oliveira Vianna, e a de “família patriarcal”, de Gilberto Freyre, conseguiram conceituar família ultrapassando os limites da co-habitação, mas trazem a ideia da absorção cultural de escravos e dependentes livres pela família senhorial. Como referi no capítulo 5º, não estou entre os que consideram que se deva jogar fora os conceitos de “família patriarcal”, veiculados por aqueles autores. No entanto, esse traço da impossibilidade da existência de dinâmicas, formas de organização e estratégias familiares específicas de escravos e dependentes livres é o ponto daquelas teorias que considero menos aceitável. É claro que eles estavam vinculados às famílias senhoriais, mas tinham lutas e estratégias próprias. Estavam muito longe de se constituírem em meros instrumentos da atuação das famílias de elite. Para ter o atendimento à suas necessidades de mão-de-obra, para angariar uma malha de dependentes, para reproduzir-se como elite daquela sociedade, não bastava ser proprietário de grandes extensões de terra. Esse era um ótimo instrumento para construir dependentes, mas devia estar ao lado de um gerenciamento competente das atividades econômicas e, sobretudo, de uma capacidade de usar seus recursos privilegiados para estabelecer importantes relações sociais horizontais [...] e verticais. (FARINATTI, 2010: 376) Alforria e parentesco Uma das vias de acesso ao entendimento da formação escravista meridional foi o estudo das experiências escravas de liberdade e cativeiro. Muitos historiadores que perscrutaram os acervos documentais em busca de indícios das perspectivas dos escravos sobre suas vivências (e de seus parentes), sentiram-se obrigados a associar a tais investigações o olhar sobre as redes sócio-familiares, as etnicidades e as alianças que enramavam tais indivíduos. No tocante aos trabalhos dedicados aos projetos de liberdades engendrados por famílias escravas temos a análise de Paulo Moreira, em Os Cativos e os Homens de Bem: experiências negras no espaço urbano, Porto Alegre 1850-1888, publicada 47 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa em 2003.10 Em sua investigação Moreira pontua que a maioria das alforrias foram pagas com recursos próprios dos escravos, não oriundos apenas de seus trabalhos e pecúlios, mas “de sua família e comunidade étnica” (MOREIRA, 2003: 259). O autor frisa que das 158 alforrias pagas levantadas com recursos advindos dos familiares, 68,3% se referiam aos pais dos manumitidos, 14% de amásios e 8,9% de padrinhos, “indicando a importância da família escrava nos projetos de obtenção da liberdade” (MOREIRA, 2003: 272). Todavia ele ressalta que a ajuda aos projetos de liberdade “não se limitava a gerações próximas, chegando aos avós, beneficiando os netos” (MOREIRA, 2003: 274). Para o autor a ideia de família extrapolava os laços consanguíneos “e parecia unir indivíduos ligados a um passado comum, como a herança africana” (MOREIRA, 2003: 275), pontuando que “familiaridade e etnicidade encontravam-se bem próximas” (MOREIRA, 2003: 278). Em suma, Moreira destaca que a elaboração dos projetos de liberdade teve como fonte relevante de auxílio à participação de familiares escravos em prol da libertação de filhos, amásios, e parentes étnicos.11 Jovani Scherer, em sua dissertação, Experiências de busca pela liberdade: alforria e comunidade africana em Rio Grande, Séc. XIX, defendida no ano de 2008, no PPGH da UNISINOS, tem como foco de análise de sua investigação as ações capitaneadas pelos cativos para alforriarem-se e o trânsito entre o cativeiro e a liberdade, a partir de estudos de casos de negros forros, utilizando-se da metodologia da micro-história social. O autor analisa a formação de uma comunidade de africanos ocidentais – Minas e Nagôs –, e de como esse grupo étnico reorganizou suas vidas em torno de um parentesco mais extenso, isto é, um 10 O livro publicado é fruto de sua tese de doutoramento defendida no ano de 2001 no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. 11 Chamamos ainda a atenção para: ZUBARAN (1998). 48 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas parentesco reinventado sobre o jargão das nações citadas acima, demonstrando como o grupo alcançou a liberdade, especificamente através da compra da carta de manumissão e da sociabilidade reinventada sob o parentesco de nação. O autor trabalha com fontes primárias tais como: inventários post-mortem, alforrias cartorárias e testamentárias e processos-crimes para construir sua escrita. A família escrava aparece mais nitidamente no capítulo quatro de sua dissertação, onde explora as afetividades familiares projetadas nos processos de liberdade de aliados étnicos, nas relações tecidas pelo compadrio, nas escolhas de parceiros sexuais e nos arranjos de moradia, todos costurados pelo parentesco étnico dos africanos ocidentais. Conforme o autor, as estratégias em torno do projeto de liberdade e de maior autonomia dentro do cativeiro tiveram em grande êxito devido, “os africanos ocidentais construíram uma comunidade sob o parentesco étnico” (SHERER, 2008: 169).12 A dissertação de Thiago Araújo Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produ- 12 O porto atlântico de Rio Grande também foi o lócus de outra dissertação, que também pretendia analisar, entre outras coisas, as práticas de alforria ali existentes. Defendida em 1993 no PPGH da PUC/RS, a dissertação de mestrado intitulada “Escravidão urbana na cidade de Rio Grande (1850-1888)”, de autoria da historiadora Rita Gattiboni, pretendia “não só traçar um perfil do escravo rio-grandense nesse período, como também rediscutir algumas teses concernentes à escravidão na cidade” (GATTIBONI, 1993: 12) Orientada pelo professor Mário Maestri, Gattiboni usou como documentos cartas de alforria cartoriais, Relatórios dos Presidentes da Província e anúncios de jornal (Diário de Rio Grande e Echo do Sul), sob uma perspectiva historiográfica que se explicita pela citação do historiador Jacob Gorender: “O primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra o senhor à fuga do cativeiro” (GORENDER, apud GATTIBONI, 1993: 68). Quando trabalha com os anúncios de compra de escravos a autora percebe a predileção por escravos novos, mas pondera que os senhores não “apostavam na procriação, porque o que praticamente sustentava o plantel escravista era o tráfico negreiro”. (GATTIBONI, 1993: 107) O tema da família escrava, ou melhor, a sua ausência, fica marcado no primeiro capítulo, quando a autora foca os documentos de liberdade: “Neste trabalho sobre alforrias, não se encontrou nenhuma referência ao casamento” (GATTIBONI, 1993: 31). 49 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa tivo e agropecuário (Vila de Cruz Alta, província do Rio Grande de São Pedro, 1834-1884), defendida em 2008, no PPGH da UFRGS, aborda as estratégias engendradas pelos escravos contra a imposição dos mecanismos de dominação senhorial, destacando as complexidades do viver em liberdade para os cativos em uma região fronteiriça do Rio Grande do Sul. Apesar de o tema da família escrava não ser o cerne de sua investigação, Araújo aborda em seu terceiro capítulo uma análise pertinente sobre os projetos de liberdade engendrados por familiares escravos. Ele discorre que a família escrava “aparece como potencializadora das possibilidades de alguns de seus integrantes virem a ser alforriados” (ARAÚJO, 2008: 207). Ressalta o empenho de alguns familiares escravos na luta por melhores condições de vida, “quiçá alargar pequenas conquistas” (ARAÚJO, 2008: 209), como a alforria, por exemplo. O autor atenta para o fato de que nem sempre era possível conseguir a liberdade para todos os membros de uma mesma família cativa, pois “o que por certo fazia parte de uma política que visava impor condições que mantivéssemos libertos atrelados aos ex-senhores” (ARAÚJO, 2008: 229), fato semelhante apontado pela historiografia nacional. Por fim, Araújo sugere que algumas famílias além de serem beneficiadas com a carta de liberdade recebiam doações e legados, indicando “que a família escrava além de potencializar a manumissão também impulsionava os esforços dos escravos para libertarem a si ou alguns de seus membros” (ARAÚJO, 2008: 264-265), apontando uma política senhorial de alforriar escravos com famílias. A dissertação de Melina Perussatto, defendida no PPGH da UNISINOS em 2010, pretendeu “investigar experiências de cativeiro, parentesco, emancipação e liberdade vivenciadas por trabalhadores escravos (ou que se aproximavam a essa condição), nas últimas décadas da escravidão (c.1860-c.1888)” (RESUMO), e o lócus de seu trabalho foi a cidade de Rio Pardo, região central do Rio Grande do Sul. 50 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas A importância da família escrava, se percebida como reiterativa do sistema escravista, vai de encontro com a necessidade constante de reposição da mão de obra e de se estabelecer a paz no interior das senzalas (FLORENINO & GÓES, 1997). Afinal, o auge produtivo de um escravo, devido às árduas e precárias condições de trabalho, dieta e habitação, raramente ultrapassava os 40 anos de idade, restando como alternativa após o fim do tráfico transatlântico o estímulo à reprodução interna. Não obstante, a percepção estrutural da família não significa, sobremaneira, que a viabilidade e existência ao longo do tempo de famílias nucleares ou matrifocais, legítimas ou ilegítimas, estava condicionada somente à anuência senhorial. Preferimos a hipótese de que a sua formação e estabilidade transcendia a unilateralidade, situando-se num campo de disputas e negociações entre senhores e cativos. Se havia cálculos senhoriais, não podemos subestimar os cálculos dos escravos – e estes podiam, sem duvida, se reportarem às tradições africanas (PERUSSATTO, 2010: 24-25). Para a autora, o reconhecimento dos laços de parentesco da família escrava, leva a valorização de traços inerentes a escravidão nas Américas: a criação de espaços de autonomia e de mobilidade social e jurídica. Robert Slenes (1999: 48) nos ajuda a pensar na dinâmica da família escrava nas relações tecidas com seus senhores, ao dizer que [...] a família escrava – nuclear, extensa, intergeracional – contribuiu decisivamente para a criação de uma “comunidade” escrava, dividida até certo ponto pela política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição por recursos limitados, mas ainda assim unida em torno de experiências, valores e memórias compartilhadas. Nesse sentido, a família minava constantemente a hegemonia dos senhores, criando condições para a subversão e a rebelião, por mais que parecesse reforçar seu domínio na rotina cotidiana. (PERUSSATTO, 2010: 98) A investigação de Melina Perussatto (principalmente por tratar do período final da sociedade escravista brasileira, mas não só por isso, já que era um traço inerente a esta formação social), amplia o leque dos indivíduos que aborda, ou seja, não 51 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa só escravos, mas aqueles “que se aproximavam a essa condição”. Assim, como contingência operacional da pesquisa, Perussatto maneja o conceito de família negra, inspirada na tese de Isabel Cristina Ferreira dos Reis (2007): Nesse sentido, cabe dizer que tanto as escravarias como as famílias encontradas nas fontes não era estritamente escravas, mas sim formadas por membros de diferentes condições – escravos, libertos, libertandos, ingênuos, livres, etc. Dessa maneira, nos obrigamos em alguns momentos a substituir a expressão família escrava por família negra para dar conta dessa vicissitude [...] Além disso, a existência de membros fora do cativeiro ampliava as possibilidades de amealhar recursos para forrar os demais membros e, nesse aspecto, libertar as mulheres figuravam como uma estratégia de reduzir o numero de membros escravos a serem resgatados, ao menos antes da lei de1871 que considerou livre os filhos nascidos de mulheres escravas depois de sua promulgação. (PERUSSATTO, 2010: 266-267) Pesquisando os inventários post-mortem dos senhores escravistas rio-pardenses, entre 1860 e 1887, Perussatto constatou “um significativo percentual de crianças (escravas, libertas ou ingênuas): 37,5% do total” (PERUSSATTO, 2010: 241), sendo que, na década de 1880, 25,7% dos trabalhadores arrolados nestes mesmos documentos eram ingênuos. (PERUSSATO, 2010: 68) A dissertação de Marcelo Matheus, Fronteiras e Liberdades13, também versa sobre as relações familiares que entrelaçavam parentes para a conquista da liberdade. Trata-se de um trabalho significativo baseado na história social da escravidão e apoiado em um acervo documental de relevo. O argumento nodal da sua investigação parte do pressuposto de que “os cativos que conseguiam produzir relações de parentesco mais estáveis tinham maiores chances de acumular recursos e chegar à liberdade” (MATHEUS, 2012: 126). A proposta do autor é bastante inte- 13 Dissertação defendida no PPG de História da UNISINOS no ano de 2012. 52 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ressante, pois inova empiricamente a maneira de comprovar que a família escrava “potencializava a liberdade”, partindo sua análise dos registros de matrimônios e não das cartas de liberdade, como comumentemente é realizado por outros estudos sobre o tema. O autor destaca que das 258 manumissões levantadas até o ano de 1871, “apenas quatro delas consta explicitamente a participação de algum parente” (MATHEUS, 2012: 129) comprando a liberdade de um familiar. Por isso, diante desses resultados inexpressivos propõe esse recurso metodológico na ânsia de “dimensionar se foi representativo” o número de cativos casados que conseguiram de fato a liberdade. Através dessa medida investigativa nos assentos de matrimônios, Matheus encontrou 122 indivíduos em que “a liberdade de nada menos do que 44 pessoas, ou 36% do total dos nubentes” (MATHEUS, 2012: 131) teve a liberdade registrada nos cartórios de Alegrete. Além disso, frisa que a família escrava não apenas potencializava a possível liberdade de um dos cônjuges, “mas também poderia reverter em benefícios para os descendentes ou outros parentes” (MATHEUS, 2012: 134), como por exemplo, os afilhados quando o padrinho ou madrinha da criança compra a liberdade dos mesmos. Por fim, a investigação de Marcelo comprova que aqueles escravos que “constituíram famílias estáveis tiveram mais chances” (MATHEUS, 2012: 135) de serem alforriados.14 14 Destaque-se que tanto Perussatto (2010) como Matheus (2012) usaram uma documentação rara, os livros de classificação de escravos pelos fundos de emancipação municipais. Sendo da alçada das Câmaras Municipais, estes documentos foram encontrados, respectivamente, no Arquivo Histórico Municipal de Rio Pardo e no Centro de Pesquisas e Documentação de Alegrete. O que evidencia sobejamente a necessidade e a importância de existirem arquivos históricos municipais, responsabilidade moral e legal das prefeituras e câmaras municipais. A respeito deste compromisso no quesito de preservação, arranjo e disponibilização das fontes geradas no âmbito municipal, ver: Lei nº 8159, de 8 de janeiro de 1991 (“Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências”) e outras legislações no site do Conselho Nacional de Arquivos/CONARq – http://www.conarq.arquivonacional.gov.br 53 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa Também do mesmo ano da dissertação acima e defendida no mesmo PPGH, temos a pesquisa de Natália Garcia Pinto – “A Bênção meu Compadre: Experiências de parentesco e liberdade em Pelotas, 1830/1850, Século XIX”. Foco da produção charqueadora, local de concentração das maiores fortunas provinciais, Pelotas comportava grande população negra (cativa e liberta). O problema cerne de nossa investigação é analisar as experiências de parentesco e liberdade dos escravos, no período de 1830 a 1850, na cidade de Pelotas, localizada no extremo meridional brasileiro. O objetivo é analisar a formação de famílias escravas na sociedade oitocentista e problematizar a constituição das mesmas, enfatizando a formação de redes sócio-familiares entre os escravos e com os distintos estratos sociais da localidade analisada. Visamos perceber o papel da família escrava para o projeto de obtenção da liberdade por meio da alforria. (PINTO, 2012: 16)15 Alicerçada na microanálise, a autora desenvolveu intensa pesquisa nos arquivos de Pelotas e Porto Alegre, de onde 15 Também versando sobre Pelotas, mas embasada em outra perspectiva historiográfica, temos a dissertação de Ana Regina Falkembach Simão, defendida no PPGH-PUC/RS, Resistência e acomodação: aspectos da vida servil na cidade de Pelotas na primeira metade do século XIX, no ano de 1993. Orientada pelo prof. Dr. Mário Maestri, Simão dedica o quinto capítulo de seu trabalho sobre a família escrava, trabalhando com fontes eclesiásticas de batismos e casamentos e alguns processos criminais. Quando trabalha com os assentos de casamentos a autora frisa sobre a “importância da benevolência do senhor para a realização de um matrimônio” (SIMÃO, 2002: 118), e indica que quase todas as cerimônias de batismos realizadas indicavam a ausência da figura paterna. Ao abordar as relações costuradas pelo compadrio pelos escravos menciona que poderiam indicar “uma solidariedade entre a população cativa, que, conforme já referimos, pode ser entendida como um grupo familiar extenso e semi-estável” (SIMÃO, 2002: 125). Simão pontua que os laços de parentesco tecidos pelos cativos em Pelotas eram um referencial importante, pois trariam “conforto social” aos cativos urbanos. Além disso, tal parentesco era constituído por meio de laços de solidariedade entre forros, crioulos e africanos “que mantinham um relacionamento íntimo, embora vulnerável aos interesses da elite senhorial” (SIMÃO, 2002: p.125-126). Percebemos que para a historiadora Ana Simão, as relações familiares de escravos eram acopladas, sobretudo aos interesses senhoriais. 54 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas coletou fontes eclesiásticas (óbitos, batismos e casamentos), as alforrias cartoriais e concedidas na pia batismal e em testamento, inventários post-mortem e processos criminais. Além da dificuldade de pesquisar na Cúria pelotense, a autora teve ainda que enfrentar outro revés: o livro de casamentos de escravos teve todas as suas páginas arrancadas. Assim, os casamentos legítimos de escravos foram captados apenas nos batismos de filhos legítimos e nas uniões matrimoniais dos forros, registrados entre os livres habitantes da paróquia. Nesta dissertação é difícil separar família de alforria, já que uma temática dialoga com a outra em orgânica conjunção. Pelotas torna-se um cenário adequado para se observar os amalgamentos entre as redes familiares e de parentesco tecidas pelos escravos em suas trajetórias de melhoria da condição ainda em cativeiro e rompimento em direção à liberdade. Segundo os levantamentos demográficos disponíveis (e sempre questionáveis), em 1833, Pelotas possuía uma população constituída por 62,8% de indivíduos negros, sendo 51,5% escravos e 11,3% libertos. Apenas 13,49% dos 215 inventários post-mortem compilados não possuíam cativos, o que configura uma posse escrava extensiva, caracterizada por uma maioria de pequenos e médios proprietários – 68,8% dos senhores tinham plantéis de 1 a 9 escravos.16 16 O historiador Euzébio Assumpção também interessou-se pela presença escrava nas charqueadas pelotenses. Também orientado pelo professor Mário Maestri, ele defendeu em 1995 sua dissertação, no PPGH-PUC/RS, com o titulo: “Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888)”. O autor não trata especificamente sobre as afetividades familiares de escravos e negros libertos, mas tem como preocupação principal a demografia escrava nos plantéis escravistas de charqueadores locais. Ao mencionar a temática das relações familiares, Assumpção toma como base de referencia a autora Ana Simão. Ele argumenta que, apesar do desinteresse das elites “em permitir uniões legítimas de seus escravos, não podemos negar a existência de algumas famílias escravas nas charqueadas” (ASSUMPÇÃO, 1995: 184). O autor frisa que os casamentos entre escravos “foram em número bastante reduzido no Rio Grande do Sul, sendo mais frequentes as relações ‘ilícitas’ entre os cativos e que se davam de maneira furtiva” (ASSUMPÇÃO, 1995: 55 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa Pinto instrumentaliza o uso de histórias de núcleos familiares de cativos e forros, com os quais ilustra criticamente a existência, as dificuldades e a participação dos arranjos familiares nas estratégias de sobrevivência da comunidade negra local. Comunidade esta que, mesmo nas senzalas, organizava-se segundo hierarquias próprias, que podem ser vislumbradas em vários momentos da pesquisa como, por exemplo, na escolha de padrinhos e madrinhas de prestígio (PINTO, 2012: 124) e nas difíceis obtenções de liberdade (desenvolvidas no último capítulo). Comunidades remanescentes de quilombos: família, etnicidade, ancestralidade Fenômeno que ecoou forte na sociedade gaúcha foi a tomada de consciência da existência de dezenas de comunidades remanescentes de quilombos, em solo meridional. Em um estado baseado em um forte apelo identitário calcado na imigração europeia, a movimentação política destas comunidades – urbanas e rurais – impactou não só a auto-concepção do ser gaúcho, como obrigou os cientistas sociais a participar efetivamente deste processo político de reinvindicações por respeito e titularização de territórios ancestrais. O preceito legal que embasa as demandas quilombolas está registrado no artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias, da Carta Magna aprovada em 1988, que diz: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedades definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. No âmbito ainda deste texto cons184-185). Nesse âmbito, nota-se que a família escrava, para este autor, além de estar atrelada ao senhor era marcada por uniões ilícitas e marcadas pela violência sexual imposta pelo sinhô branco às cativas negras das senzalas das charqueadas pelotenses. 56 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas titucional, associa-se esse artigo 68 com os artigos 215 e 216, que tratam do patrimônio cultural brasileiro.17 Entretanto, mesmo que as manifestações quilombolas contemporâneas tenham impactado a sociedade sul-rio-grandense com suas reivindicações de direitos (principalmente fundiários) e reconhecimento da presença afrodescendente, percebemos ainda muito timidamente a incorporação dos laudos e relatórios produzidos como substrato historiográfico. Quer dizer, mesmo que historiadores sejam (co)autores da maioria destes laudos, participando efetivamente das pesquisas de campo (seja em arquivos ou no contato pessoal com estas comunidades), parece-nos pouco expressiva a incorporação destes estudos na bibliografia dos estudos sobre escravidão, feitos na órbita dos PPGHs. A primeira comunidade sul-rio-grandense a ser reconhecida como remanescente de quilombos, foi a de Casca, em Mostardas, município situado entre a Lagos Patos e o Oceano Atlântico. O Laudo Pericial Antropológico sobre a Comunidade de Casca foi entregue a Promotoria Pública da República no Rio Grande do Sul em 16 de novembro de 2000 e coordenado pela antropóloga Ilka Boaventura Leite. Este laudo foi publicado em 2004 com o título “O Legado do Testamento: a comunidade de Casca em perícia”. 17 Diz o § 5° do artigo 216: “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. A falta de adequada regulamentação foi gradualmente sendo sanada. O Decreto 4.887, de 20.11.2003 (governo Lula) regulamentou o processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras das comunidades quilombolas, passando seu gerenciamento da Fundação Palmares (MIC) para o INCRA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), considerando essa questão como simultaneamente étnica e social. Mais recentemente, a Instrução Normativa 49, de 29.09.2008, considerou como fundamental a autodefinição comunitária, “baseada em ‘trajetória histórica própria’, em ‘relações territoriais específicas’ e na ‘presunção de ancestralidade negra relacionadas com a resistência á opressão histórica sofrida’”. (MOREIRA, 2009: 234) 57 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa O grupo de escravos que foram beneficiados com o legado de terras e as cartas de liberdade concedidas por Dona Quitéria Pereira do Nascimento via testamento, “girava em torno de dezoito pessoas mais os filhos destas” (LEITE, 2004: 110). Ilka Leite destaca que este grupo, constituído em comunidade, “permaneceu nas terras e constitui [atualmente] um núcleo de famílias aparentadas” (LEITE, 2004: 115). Esse seleto grupo de famílias escravas, segundo a autora, já cultivava e ocupava roças em terras de sua senhora, criando gado vacum nas pastagens. Além das terras e dos animais destinados a essas famílias escravas, Dona Quitéria legou a eles objetos pessoais. Ponto significativo abordado pela pesquisadora no laudo, foi a transmissão de nomes entre os descendentes das famílias escravas. Conforme ela “alguns dos ex-escravos trazem em seguida ao nome de batismo o nome de um antepassado remoto” (LEITE, 2004: 119), o que implica que, na visão da autora, “certos nomes e sobrenomes são escolhidos para homenagear parentes, o que indica também a proximidade que querem enfatizar com estes”. (LEITE, 2004: 127) Outra comunidade quilombola que possui um alentado laudo histórico-antropológico, derivado das pesquisas de um grupo interdisciplinar composto de historiadores, geógrafos, profissionais do direito e antropólogos, é a de Morro Alto, localizada no litoral norte sul-rio-grandense. Região cortada pela BR-101, atualmente comporta importante comunidade negra remanescente dos antigos habitantes escravizados. Em 2001 foi firmado um convênio entre a Fundação Cultural Palmares e o Estado do Rio Grande do Sul, que comprovou sua situação de comunidade remanescente de quilombos (BARCELOS e outros, 2004).18 18 Nas entrevistas realizadas para a elaboração do laudo histórico-antropológico de seu reconhecimento, entre os anos de 2001 e 2002, a comunidade quilombola de Morro Alto, mencionou como uma de suas etnogêneses um desembarque clandestino de escravos ocorrido naquela região em 1852. Ver OLIVEIRA, 2006. 19 Ver: CHAGAS, 2005; FERNANDES, 2004; MÜLLER, 2006. 58 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Reconstituição história de longa duração (pelo menos nos parâmetros da pesquisa histórica brasileira), o laudo tratou da ocupação territorial daquela região do litoral norte gaúcho, no século XVIII, até a composição de um campesinato negro no pós-abolição e o surgimento das demandas quilombolas contemporâneas. Foram usadas fontes dos mais diversos tipos, como inventários, documentos eclesiásticos (batismos, óbitos, casamentos), concessões, compras e medições de terras, documentos judiciários, cartas de alforria, etc., entrecruzadas com aproximadamente 120 horas de entrevistas com cerca de 50 moradores da comunidade. Principalmente no subitem 1.3 (“Quilombo, quilombos: matos, senzalas e roças na constituição de um território negro”) e no capítulo 2 (“Parentesco e religiosidade”), o laudo de Morro Alto nos apresenta informações sobre as estruturas de parentesco que entramavam esta comunidade negra, desde o tempo do cativeiro. Dados quantitativos foram cruzados com genealogias familiares exemplares, que deram dinamismo a composição e manutenção das parentelas, muitas das quais desrespeitaram os limites das senzalas senhoriais: “as árvores evidenciam a interrelação familiar entre cativos originários de diferentes planteis”. (BARCELLOS e outros, 2004: 105) Os conceitos de etnicidade, territorialidade, memória, religiosidade e parentesco, vistos sob uma ótica interdisciplinar, permitiram a composição de um mosaico da sociedade escravista oitocentista e seus desdobramentos posteriores. A comunidade de Morro Alto se apresentou a nós como um conjunto constituído de pessoas que são todas ‘parentes’. Dizem ‘aqui tudo é parente’, querendo com isto mostrar os vínculos de parentesco e sociais existentes entre eles o que ao longo da pesquisa pode ser desvelado. Há, nesta comunidade, uma construção dos vínculos de parentesco que extrapolam as noções antropológicas de consanguinidade e aliança e estão, também, para além do compadrio (parentesco ritual). Envolve parentesco mítico, paren- 59 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa tesco por adoção e pertencimento ao território. Podemos dizer que há uma lógica presidindo as definições do que é ser parente, ser da ‘gente de alguém’ e, principalmente, ‘ser de Morro Alto’, que articula ancestralidade, patrifocalidade e matricentralidade. ‘Ser de Morro Alto’ funde os vínculos e estes buscam outras formas de expressão mediadas pelo idioma do parentesco: irmandades religiosas, maçambiques, herança da ‘coberta da terra’, ajuda no parto [...] Esse sistema de classificações das parentelas de Morro Alto é expressão de uma lógica que remete aos ex-escravos de antigos proprietários da região. São parentes em relação a sua posição na descendência dos fundadores da comunidade, o que gera formas de classificação também marcadas por nomes e uma espécie de parentesco classificatório que conduz à designação dos adultos da geração dos pais e dos avós como tios e tias. (BARCELLLOS e outros, 2004: 209-210). Esta experiência coletiva de análise teve desdobramentos em dissertações e teses, principalmente na antropologia social.19 No campo da história, mas navegando conscientemente na fronteira com a antropologia, temos a dissertação de mestrado de Rodrigo Weimer (2007: p. 16), que investiga “experiências negras nas duas últimas décadas do século XIX, em um município da serra rio-grandense”, mais especificamente, São Francisco de Paula. Inspirado em E. P. Thompson, Weimer usa a noção de “experiências negras”, “significando a intervenção humana sobre sua situação determinada, a partir do processamento cultural de necessidades, interesses e antagonismos com que se defronta”. (WEIMER, 2007: 18) Mesmo dando ênfase ao pós-abolição, o autor considera essencial um recuo ao universo escravista, percebendo embates por autonomia e liberdade e a conformação de redes complexas, tanto com a comunidade negra local, como com os próprios (ex)senhores. Porém, rejeita-se o entendimento de que a liberdade era um bem, um estatuto legal que contivesse em si uma garantia de 60 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas aplicação ou uma formulação intrínseca dos significados nela contidos. Esses indivíduos não eram sujeitos abstratos em busca de ideais universais de liberdade, pelo contrário, a esta noção eram impressos significados específicos [...] Compreende-se que, uma vez conquistado, o estatuto de livre deveria ser objeto de construção pelos ex-escravos, para imprimir-lhe as características que lhes fossem mais convenientes, fosse em termos de interesses práticos, fossem em termos de relevância simbólica. Basicamente, a investigação dos processos de construção dessas liberdades, é o objetivo central desta obra. (WEIMER, 2007: 18) Weimer critica as visões historiográficas que desmentem e negam a existência de famílias e relações comunitárias entre escravos e ex-escravos, como a Escola Sociológica Paulista. Para ele, tais perspectivas absorveram – mesmo que criticamente – ideologias senhoriais que defendiam a recusa de trabalho e a desestruturação familiar por parte da população negra. (WEIMER, 2007: 20) Talvez uma das maiores contribuições deste trabalho para o estudo das famílias escravas, seja a ênfase que dá para as práticas de nomeação, ou seja, para os nomes escolhidos e que eram manuseados pelos indivíduos – seja no papel ou comunitariamente. Ambicionando etnografar o passado, Weimer se serve de processos criminais, afim de perceber sistemas classificatórios e identidades sociais e étnicas. (WEIMER, 2007: 216) A operação de entendimento dos significados colocados em jogo nas interações sociais, só pode ser feita a contento se procedermos a contextualização, ou seja, a ponderação da situacionalidade e relatividade das nominações – “isto é, de acordo com as situações em que são empregados e as relações existentes entre os sujeitos envolvidos”. (WEIMER, 2007: 213) Dialogando com a historiadora Regina Xavier (2002), que também operacionalizou o nome como chave para o entendimento das auto-definições etno-sociais, Weimer (2007: 214) incorpora o método onomástico de Ginzburg: 61 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa Sendo assim, a proposta de Ginzburg (1991) de rastrear trajetórias e estratégias individuais, familiares ou grupais através de intensos levantamentos documentais em busca do nome próprio, entendido como a mais relevante marca de singularização de um ser humano, certamente não se vê inviabilizada, mas sim muito complexificada diante de nomes que são inconstantes. Isso porque eles não podem mais ser vistos apenas como fios condutores. Neles estão inscritos diversos “significados sociais, políticos e culturais” (Xavier, 2002: 5) que não podem ser ignorados. Famílias escravas Cogitamos que a primeira pesquisa defendida em um PPGH gaúcho tratando especificamente da família escrava, tenha sido a dissertação de mestrado de Marisa Antunes Laureano, orientada pela professora Margaret Marchiori Bakos, no ano de 2000 – “A Última Vontade: um Estudo sobre os Laços de Parentesco entre os Escravos na Capitania do Rio Grande de São Pedro, 1767-1809”. Laureano investigou os “laços de parentesco”, estudando “os escravos com família e seu cotidiano”, tomando como guia “a história de Rosa Maria, uma preta forra que viveu como escrava, teve marido e filhos e manteve seus laços de parentesco mesmo quando livre. A partir dela apresentamos vários outros casos que ilustram as relações familiares, o papel da família, suas permanências e dispersões. Demonstramos ao longo do trabalho a atitude do cativo diante de sua condição de escravo, lutando pela manutenção do seu grupo familiar” (LAUREANO, 2000: 2). A autora examinou principalmente inventários post-mortem e, secundariamente, alguns processos criminais, processos civis anexos aos inventários e testamentos (usados qualitativamente), além de cartas de alforria. Analisando um montante de 962 cativos arrolados nos inventários, Laureano pressupõe que 56% deles estavam “envolvidos em laços de parentesco”, considerando que certamente existiam mais, mas a autora compu- 62 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas tou “apenas os escravos onde ficava definida com clareza, pelo documento, a ligação de parentesco dentro das famílias nucleares e matrifocais” (2000: 65). Quanto a definição de família manejada pela autora, ela diz que “podemos defini-la como um grupo doméstico, limitado á sua área de atividade e girando apenas em torno de núcleo constituído por pai, mãe e filhos, ou, em muitos casos, com ausência de pai”. (LAUREANO, 2000: 13) A composição de família é vista pela autora como uma “afirmação da sua condição de humanidade, que desde sua saída (e de seus ascendentes) da África vinha lhe sendo negada” (LAUREANO, 2000: 4), sendo também um mecanismo de transmissão oral de cultura. Marisa Laureano defende o uso de fontes cartoriais e demográficas e critica a análise histórica feita através do uso acrítico de relatos de viajantes. Ela comenta trabalhos que tocam na questão da família escrava, mas lhe negam continuidade e consistência, como SIMÃO (2002) e ASSUMPÇÃO (1995), citados anteriormente. Apesar de exercitar a redução de escala de observação, Laureano não cita nitidamente a micro-análise, mas encontramos referências a perspectiva biografia de Giovanni Lévi e do “paradigma conjectural” de Ginzburg. (LAUREANO, 2000: 5) De 2005 é a dissertação de Letícia Guterres – “Para além das fontes: (IM)Possibilidades de laços familiares entre, livres, libertos e escravos: Santa Maria – 1842-1884)”, que procurava “analisar as im/possibilidades da formação de laços familiares entre livres, libertos e escravos, em Santa Maria (1844-1882)”. Guterres parte de uma perspectiva multifacetada do que seriam estes vínculos familiares, aí incluindo “relações de amasiamento, casamento religioso e laços, para além da consanguinidade, como os apadrinhamentos, são aqui resgatados e analisados, no sentido de compreender os projetos e encaminhamentos da família afro-brasileira na passagem da mão-deobra cativa à livre”. (GUTERRES, 2005: Resumo). 63 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa As fontes manejadas por Guterres documentos eclesiásticos de batismo e casamento e inventários post-mortem, além de alguns processos criminais. Entre os documentos judiciários compilados, destaca-se o assassinato da parda liberta Engrácia, em 1878, pelo escravo Constantino. Constantino teria praticado o homicídio, por não permitir Engrácia que ele casasse com a sua filha, livre, Maria Liotildes. O uso deste caso serviu para entrelaçar os capítulos e tornar mais agradável a narrativa, mostrando também a sensibilidade etnográfica da autora e a capacidade em mesclar o individual e o social em sua perspectiva analítica. A respeito do período colonial no Rio Grande do Sul, encontramos a tese do historiador Silmei Petiz, Caminhos Cruzados: família e estratégia escrava na Fronteira do oeste do Rio Grande do Sul (1750-1835), defendida em 2009, no PPGH da UNISINOS, que aborda as relações familiares de escravos. Petiz enfatiza em relação aos matrimônios contraídos entre nubentes cativos, “a maioria das cerimônias se referia a escravos de um mesmo proprietário”. (PETIZ, 2009: 175) O autor encontra significativos índices de legitimidade para o período estudado, além de dar ênfase à questão do compadrio. Em relação aos laços urdidos na pia batismal, destaca que as principais alianças foram costuradas entre os escravos, mas também estreitaram laços com o segmento livre e liberto. Diante disso, o autor destaca as relações familiares instituídas tanto pelos laços horizontais quanto verticais na sociedade analisada. Petiz teve a preocupação de reconstituir algumas famílias escravas, com o objetivo de compreender os laços costurados via o parentesco, ou seja, de como essas famílias configuravam suas escolhas ao “escolherem” um parente espiritual ou ao projetarem a futura liberdade de familiar. Sob um emaranhado de fontes (registros paroquiais, inventários post-mortem, alforrias batismais, cartorárias e testamentárias), o autor evidencia que 64 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas a família escrava “foi importante para concretizar projetos de liberdade” (PETIZ, 2009: 287). Além disso, o pesquisador destaca que através do levantamento de dados de registros eclesiásticos “foi possível visualizar uma fração da história dessas famílias, percebendo-se que alguns desses cativos tiveram a oportunidade de casar, gerar filhos, estabelecer relações de compadrio de várias maneiras, fornecendo pistas sobre como a comunidade escrava na região” articulava suas relações familiares (PETIZ, 2009: 296). Em sua dissertação de mestrado, também defendida em 2009 no PPGH-UNISINOS, a historiadora Sherol Santos procurou investigar como, “Apesar do cativeiro, forjou-se uma “comunidade negra (cativa ou não)” no litoral norte sulino, mais especificamente na freguesia de Santo Antônio da Patrulha, no período de 1773 a 1824. Acessando principalmente registros de batismos, Santos não opta pela análise demografia, mas envereda pela história social, levando em conta “os aspectos quantitativos sem descuidar do qualitativo” (SANTOS, 2009: 13), sob a norteadora influencia da micro-história italiana. A ideia de trabalhar com comunidade negra (cativa ou não) se evidencia quando a autora introduz dois personagens a sua narrativa. Um deles, o ex-soldado dragão Inácio José de Mendonça e Silva, que cruzava o continente de São Pedro desde, pelo menos, a década de 1730 e que em 1755 recebeu sesmaria próximo ao Registro da Serra ou Registro de Viamão (criado no ano de 1735), no morro do Púlpito. Inácio de Mendonça “era pardo, filho do Padre Luís de Mendonça e Silva e de sua escrava Joana de Souza, nascido em Santos (SP) em 1705”. (SANTOS, 2009: 77) O outro personagem é o açoriano Manoel de Barros Pereira, “que também recebeu sesmaria nos Campos de Viamão em 1755”, por onde já circulava há mais de 20 anos. O estancieiro e tropeiro Barros tinha uma única filha bastarda, Margarida da Exaltação, parda, “filha deste e de uma escrava sua de nome Tereza Pereira de Jesus”. Em 3 de setembro de 1755 Margarida foi se- 65 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa questrada de casa por Inácio de Mendonça e levada à presença do vigário local, onde confirmou que queria casar-se com seu raptor. Mesmo contra a vontade de seu pai, Margarida desposou Inácio na Igreja Matriz de Viamão, em 19 de setembro daquele mesmo ano. (SANTOS, 2009: 78) Estes personagens são chamados ao texto de Santos com a finalidade de auxiliar no entendimento da “ocupação do extremo-sul da colônia a partir das relações sociais construídas pelos primeiros migrantes”, entendendo este heterogêneo grupo como “composto por brancos e não-brancos que não estavam necessariamente divididos entre livres e escravos”. (SANTOS, 2009: 124) Firmemente ancorada nos registros de batismos, Santos desvela as estratégias de Manoel de Barros, nos seus vários e multifacetados apadrinhamentos, que exteriorizam os seus contatos naquele momento de formação do continente sulino. Barros aparece apadrinhando escravos, libertos e livres, índios, africanos e castelhanos. (SANTOS, 2009: 81) No seu derradeiro capítulo, SANTOS se propõe a compreender a formação das famílias escravas ali gestadas, dando especial atenção às relações de compadrio, aos parentescos simbólicos engendrados: [...] podemos concluir que o compadrio é uma forma de vincular as pessoas entre si e só pode ser entendido “de dentro pra fora”, mesmo que seu sistema emane da Igreja e tenha uma interpretação espiritual, torna-se importante meio de análise das relações sociais das comunidades escravas, no momento que o admitimos como suporte para criação de suas famílias. Os padrões de escolha de padrinhos, sua localidade, legitimidade, sexo, cor e estatuto legal, nos demonstram como as famílias escravas enxergavam suas relações internas. A escolha dos padrinhos e madrinhas não só nos fornecem pistas sobre a formação e constituição das comunidades escravas, como também podem nos auxiliar a mapear suas relações sociais e através delas suas territorialidades. (SANTOS, 2009: 132) Orientada pelo historiador Fabio Kuhn, temos ainda a dissertação de Roberta França Vieira Zettel, defendida no 66 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas PPGH/UFRGS em 2011, com o título: “De Mútuo Consentimento: Os significados das relações familiares cativas para senhores e escravos na freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo (18451865)”. A autora se beneficiou da existência em seu lócus de investigação de um dos raros arquivos históricos municipais do estado, o que fomentou outras pesquisas congêneres, como a de Petiz (2009) e Perussato (2010). Suas fontes principais de análise foram documentos eclesiásticos (batismos, óbitos, casamentos), além de alguns processos criminais. A pesquisa é embasada em ampla bibliografia, como Robert Slenes (1999), Florentino & Goes (1997), Schwartz (1988), Mattos (1998), os quais a autora apresenta e explica as respectivas especificidades, concluindo que [...] convergem na abordagem política da escravidão, enfatizando as estratégias senhoriais e escravas na defesa de seus interesses. O ponto de partida desses trabalhos é o escravo enquanto agente histórico. Isso não significa, contudo, desconsiderar a desproporcionalidade de forças na relação escravista ou negar o papel da violência na manutenção da escravidão. Como escreveu Sheila de Castro Faria, os escravos eram construtores de histórias em situações de conflito. Embora não enfoque o estudo das famílias escravas, Faria também reflete sobre o parentesco desse grupo. Para ela, os cativos possuíam lógicas próprias para suas práticas sociais, sexuais e familiares e compuseram uma identidade social diferenciada dos senhores. Porém, a eles eram impostos limites. (ZETTEL, 2011: 37) Acessando os dados dos inventários post-mortem de Rio Pardo em que foi constatada a presença escrava, catalogados pelo projeto Documentos da Escravidão no RS (Arquivo Público do Estado do RS), a autora demonstra e descreve a consistente presença escrava naquela localidade. Nos inventários da comarca de Rio Pardo, entre 1840 e 1881, estão arrolados 4.154 cativos, sendo 45% concentrados em plantéis de 1 a 9 escravos. (ZETTEL, 2011: 58) 67 MOREIRA, P. R. S.; GARCIA, N. P. • Negro não se casa Partindo para os documentos eclesiásticos, a autora percebe uma discrepância similar a outras realidades escravistas: entre 1845 e 1865, foram batizados 1.825 escravos (com apenas 2% de legitimidade) e registrados apenas 26 casamentos em que pelo menos um dos cônjuges ainda era cativo. (ZETTEL, 2011: 82) Seja ocasionado por restrições senhoriais ou por opções dos escravos, o enlace legítimo não foi frequente naquela Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. A diminuição dos casamentos escravos legítimos no período estudado (1845/1865) em comparação com o analisado por PETIZ (1750-1835), foi explicado pela autora como uma provável ambição dos senhores “de disporem mais livremente de sua escravaria, sem conflitar com as disposições da Igreja da inseparabilidade destes casais”. (ZETTEL, 2011: 92) Isso considerando que no meio do período analisado, temos a proibição do tráfico internacional de escravos (1850). Destaque-se um dado interessante, de que 6 destes 26 casamentos uniram um escravo e uma índia, certamente habitante da Aldeia de São Nicolau. As pesquisas mencionadas até aqui evidenciam que o tema escravidão já tem consistência suficiente no Rio Grande do Sul, mesmo que muitos aspectos ainda careçam de atenção especial. Não se especula mais sobre a existência ou não de relações familiares na senzala, mas se investe na análise dos tipos de arranjos que ali existiam. Manipula-se hoje conceitos mais abrangentes de família, que integrem diferentes relacionamentos e as teias de relações tecidas pelos cativos e seus parentes. Destaca-se que as pesquisas tem cruzado enfoques qualitativos e quantitativos, e que a microanálise italiana tem servido operacionalmente para tal empreitada. Casos antes considerados meras anedotas são pinçados e usados para ilustrar criticamente as análises propostas, além de ajudar no esforço narrativo. O reconhecimento da desigualdade de forças entre senhores e escravos, não impede que se considere o acionamento de 68 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas estratégias por parte dos cativos e seus parentes, conforme os campos de possibilidades situacionais, ou seja, é a percepção de: [...] uma política da vida cotidiana cujo centro é a utilização estratégica das normas sociais [...] nos intervalos entre sistemas normativos estáveis ou em formação, os grupos e as pessoas atuam com uma própria estratégia significativa capaz de deixar marcas duradouras na realidade política que, embora não sejam suficientes para impedir as formas de cominação, conseguem condiciona-las e modifica-las”. (LEVI, 2000: 45) Além disso, cada vez mais se postula o cruzamento de uma variedade de fontes como possibilidade metodológica de chegar ao conhecimento das experiências familiares e afetivas vigentes naquela sociedade escravista. Fontes eclesiásticas, inventários post-mortem, documentos judiciários e policiais, de compra e venda, alforrias, jornais, etc., são vistos como indícios de experiência histórica, sendo a possibilidade de entendimento de seus significados aumentada a partir do dialogo que se consegue entreter entre estas fontes. Ao encerramos este artigo, esperamos que este balanço sobre a historiografia gaúcha produzida sobre a família escrava, tenha demonstrado o crescimento qualitativo e quantitativo das pesquisas sobre o tema, e que siga como um guia que estimule a continuidade das investigações sobre a questão negra no Brasil Meridional. Referências ALADRÉN, Gabriel. Liberdades negras nas paragens do sul: alforria e inserção social de libertos em Porto Alegre (1800-1835). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. ANJOS, José Carlos Gomes dos; Silva, Sérgio Baptista da (Orgs.). São Miguel e Rincão dos Martimianos: ancestralidade negra e direitos territoriais. Porto Alegre, Editora da Universidade / UFRGS. 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O que ocorre é que questões suscitadas pela investigação demandam mais experimentos na tentativa de testar metodologias já conhecidas em um contexto novo, testar novas metodologias em um contexto já conhecido, comprovar algumas hipóteses ou rechaçá-las. Ocorrem novas incursões em documentos já trabalhados ou ainda intocados, mas a feição geral do trabalho quando tornado público, para quem não está tão envolvido nessas pesquisas quanto os autores delas, é a de que nada ou quase nada foi acrescido ou revisado e tem-se novamente mais do mesmo. O tema apresentado não é nenhuma novidade, já que há quase uma década se iniciou a investigação sobre a família e as relações de parentesco consanguíneo, afim ou fictício1 no contexto do Rio 1 Parentesco fictício nesse estudo, a exemplo das explorações em história da família, história social e de outros ramos do conhecimento em ciências humanas, 75 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões Grande no período abrangido desde sua fundação de sua primeira fortaleza até a invasão dos castelhanos ocorrida 1763. Tenta-se retomar algo já esboçado em trabalhos anteriores e fazer uma incursão sobre esse mesmo assunto, refletindo acerca de questões que ficaram em entrelinhas e não receberam a devida atenção, almejando dizer algumas coisas que ainda não ficaram claramente enunciadas e que podem contribuir para reduzir o mais do mesmo em outras investigações sobre família e parentesco, nessa ou em outras localidades, nesse ou em outros períodos. Para tanto, não se fará aqui uma fundamentação imensa calcada nos rumos da produção acadêmica brasileira mais recente sobre a família como já foi feito com maestria em pelo menos dois momentos diferentes de avaliação dessa produção historiográfica brasileira. Remetese a esses trabalhos (SAMARA, 1989: 7-35; SCOTT, 2010: 13-29). A documentação, o tema e suas abordagens Nos estudos anteriormente efetuados por mim sobre a família no século XVIII sul-riograndense, utilizou-se como corpus documental principal os registros paroquiais. Mais especificamente os registros paroquiais de batismo. Os registros paroquiais desde há muito são utilizados por historiadores para recomposição e interpretação de facetas da sociedade vinculados principalmente aos estudos das grandes massas populacio- principalmente a antropologia, não significam parentescos irreais, como se verá na argumentação adiante, na qual se considera toda a forma de parentesco um parentesco construído. Designa isso sim, vários tipos de parentesco com origem ritual, religiosa ou em outros atos que não sejam estritamente vinculados ao parentesco consanguíneo e aos regulados pela lei, ditos aqui parentescos afins ou políticos, tais como laços entre sogro//sogra e genro//nora, cunhados//cunhadas, padrastos//madrastas e enteados//enteadas. 76 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas nais, seus deslocamentos, seus regimes demográficos, padrões matrimoniais, reconstituição de famílias2, etc. Quase tão recorrentes quanto essas abordagens são os estudos que os empregam como documentação auxiliar na busca de alguns agentes sociais em específico, para recompor deslocamentos, sociabilidades ou aspectos outros da vida desses sujeitos já mapeados em outros conjuntos documentais, procedendo o assim chamado cruzamento de registros nominativos em busca dessas informações que são complementares às obtidas em outros corpi documentais. Apenas mais recentemente começaram a ser percebidos como documentos capazes de fornecer informações sobre outras facetas da sociedade, tais como a hierarquização, relações pessoais de reciprocidade e diferentes tipos de relações sociais para além das estritamente familiares ou de pertencimento por condição jurídica, tais como “escravo de”. Percebeu-se então que através dos registros paroquiais, por vezes o corpus documental mais completo e abrangente para boa parte das localidades suli- 2 Essa produção tem vasta história tanto no estrangeiro como no Brasil. Sua difusão está associada ao desenvolvimento e aplicação da metodologia conhecida como método Henry-Fleury, oriunda dos trabalhos de Louis Henry e Michel Fleury (cf. HENRY, Louis. Técnicas de análise em demografia histórica. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1977; HENRY, Louis & FLEURY, Michel. 1965. Nouveau manuel de dépouillement et d’exploitation de l’etat civil ancien. Paris: INED, 1965). Baseia-se na reconstituição de famílias a partir dos registros paroquiais e civis registrando os casamentos, nascimentos e óbito. Nesse método, o ponto de partida é a formação de um casal, acompanhando os nascimentos dos filhos até o momento em que deixam a casa paterna para formar a sua família. Maria Norberta Amorim, pesquisadora portuguesa, avança nessa mesma direção propondo a reconstituição de paróquias a partir dos registros de casamento, nascimento e óbito (cf. AMORIM, Maria Norberta et al. . «Reconstituição de paróquias e formação de uma base de dados central». IV Congresso da Associação de Demografia Histórica: actas v. II, 2001. p. 57–66). Uma aplicação do método de reconstituição de famílias sobre uma população específica e uma crítica a ele podem ser vistos em NADALIN, Sergio Odilon. 2007. «Reconstituir famílias e demarcar diferenças: virtualidades da metodologia para o estudo de grupos étnicos». 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Não se esquece aqui que as monarquias ibéricas eram católicas e estreitamente vinculadas ao poder papal e que os súditos dessas monaqruias eram, em princípio, católicos também. Para o caso específico do extremo-sul da América lusa, o Continente do Rio Grande de São Pedro, os registros paroquiais são a série documental mais completa que registra desde o primeiro nascimento logo após a fundação do primeiro povoado nesse território, persistindo com maior ou menor grau de completude até o final do século e além. É constante durante os períodos de paz, intercalados com períodos de guerra no século XVIII. Nem todas as séries estão completas. Cita-se como exemplo o primeiro livro de registro de matrimônios, há muito desaparecido e os recentes desaparecimentos ou furtos, não se sabe ao certo, dos livros de registros paroquiais abertos especificamente para a parcela escrava da população na maioria dos arquivos paroquiais da região sul do estado do Rio Grande do Sul. Assim, como sempre no ofício de historiador, trabalhase com os materiais e com o instrumental que se alcança. Nesse caso, um conjunto documental relativamente completo a despeito dos desaparecimentos e dos problemas de conserva- 78 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ção dos acervos, com um tanto de metodologia para a abordagem e outro tanto de teoria da história, da antropologia, da história do direito e das ciências humanas como um todo para suporte à construção das explicações às perguntas lançadas aos documentos selecionados. Geralmente os acervos documentais não reúnem as condições ideais, mas são as condições que oferecem e que permitem a consecução do trabalho. Nos estudos que já foram procedidos, os registros paroquiais permitiram mais do que o mergulho profundo nas relações intrafamiliares. Serviram de base documental à tentativa de recompor, ainda que parcialmente, o quadro complexo de relações sociais existentes em uma localidade. Já verificado em outras pesquisas, esse quadro era composto de relações que, não raras vezes, extrapolavam as jurisdições dessas localidades (p. ex. HAMEISTER, 2002; HAMEISTER, 2006; KÜHN, 2006; GIL, 2009; SIRTORI & GIL, 2009). Entretanto, por mais que tenha sido percebido que uma parcela significativa dessas relações sociais se originavam nas relações existentes entre os membros de uma família ou na relações entre famílias, ainda falta muito para se saiba o que é a família ou são o que são as famílias que compunham esse quadro vívido de escolhas e ações do século XVIII sulino. O que se verá adiante é uma discussão que busca inserir essa família apreendida a partir da documentação paroquial no panorama mais geral dos domínios lusos e católicos, por um lado apontando a possibilidade de ampliação e modificação do foco e dos limites análise e por outro restringindo o risco de cair nas armadilhas do anacronismo e de falhas na comunicação entre pesquisadores nessas análises. Sobre o que falamos quando falamos em família? Nessa tentativa de avançar além dos usos mais comuns dessa documentação, o presente texto pretende deixar um pouco de lado a análise sobre a composição das famílias e tentar 79 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões perceber o que torna um conjunto de pessoas uma família. Importante, portanto, tentar definir “família” para que se possa ao menos nessas páginas, concordando ou não com essa definição que se tentará construir, pensar a partir de uma base comum. Toma-se uma definição de Giovanni Levi, para o qual a família de Santena se estende para além dos núcleos co-residentes. Diz Levi: Falaremos de família no sentido de grupos não-co-residentes, mas interligados por vínculos de parentela consanguínea ou por alianças e relações fictícias que aparecem na nebulosa realidade institucional do Antigo Regime, como cunhas estruturadas que serviam de auto-afirmação diante das incertezas do mundo social, mesmo no contexto de uma pequena aldeia (LEVI, 2000: 98-99). Esse é o ponto de partida. Entretanto, não é suficiente para o que se percebeu em estudos anteriores (HAMEISTER, 2006). A definição dada por Levi, de maneira explícita ou implícita é adotada por muitos historiadores: a família como pessoas coresidentes e não co-residentes que estão interligadas. Essa definição representa um grande avanço em relação às concepções que tendem a lançar ao passado um tipo de família que se idealiza no presente, qual seja, casal de marido e mulher e sua prole, quando muito agregando um progenitor – especialmente se co-residente. Ao considerar valores próprios do período sob estudo, supera em boa medida a aplicação do modelo de família e o anacronismo que deforma o olhar lançado sobre o passado. Mesmo considerando os membros não co-residentes como podendo fazer parte de uma família, ainda parece faltar algo. Na citação feita acima, o autor enfatiza, primeiramente, o fato de família ser um grupo cujos membros possuem vínculos específicos e que esses membros podem ou não residir sob um mesmo teto. As relações que interligam essas pessoas estão presentes na definição dada por Levi, mas não recai sobre elas o foco dessa definição, sendo esse foco apontado para o grupo 80 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas que pode conter membros co-residentes ou não co-residentes. Quando examinada mais de perto remete, ainda que em menor medida, a uma família reificada, o grupo, que existe antes que se percebam quais e quão complexas são as teias de relações que estabelecem os critérios de pertença a essa família que é o próprio grupo. Considera-se aqui a existência de um grupo importante, mas não é suficiente para ser família. Tal conjunto de pessoas só pode ser considerada um grupo familiar porque existe algo de específico nas relações tecidas entre elas. Grupos não existem a priori, mas dependem das relações estabelecidas entre as pessoas para que se tornem grupo. Talvez isso ocorra também por tal definição fixar-se nos vínculos de parentela como o elo de ligação por excelência entre os seus membros. Dito de outra maneira, parentesco amiúde é também reificado e aplicado ao passado a partir dos critérios de parentesco que hoje possuímos. Por exemplo, uma vez detectado o parentesco consanguíneo entre dois agentes sociais, assim eles passam a ser vistos: primos, tios, avós, pais, etc. De certo modo, oculta que o elo parental também é relação e que mesmo o parentesco dito sanguíneo, que na maior parte das definições surge como “coisa dada”, natural e biológica – resultado intencional ou não de um intercurso sexual – é relação construída sob critérios sociais mutáveis. Desconsidera então a possibilidade de alguém manter um vínculo de parentesco consanguíneo e mesmo assim não pertencer à família ou sequer ser reconhecido como parente. Divagando acerca de parentesco, parentescos e conceitos jurídicos Sobre o parentesco os antropólogos já produziram centenas de trabalhos e demonstraram repetidas vezes que os critérios para ele são diferentes para lugares diferentes e para dife- 81 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões rentes tempos, podendo inclusive coexistir em um mesmo tempo e lugar conjuntos de critérios diferentes para gente de origem geográfica, étnica, estatuto social, casta ou classe diferentes. Nessas análises ficou demonstrado que nem mesmo o elo biológico do parentesco consanguíneo é suficiente para que alguém seja incluído na família, não sendo, portanto, nos termos atuais do parentesco biológico, o DNA suficiente para estabelecer o tipo de vínculo que buscamos. Mesmo se tomado o vínculo do parentesco biológico como tomam os biólogos, verificam-se até mesmo entre os animais casos de rejeição de um filhote ou de uma ninhada inteira, seja porque não são saudáveis ou qualquer outro motivo vinculado aos seus instintos ou patologias, quando não são os membros jovens do grupo que atacam o “parente” mais velho promovendo sua expulsão ou mesmo morte por disputas de liderança, por território, pela primazia sobre as fêmeas ou outros motivos que não nos cabe discutir aqui. Os humanos, muito além dos seus instintos, usam da sua racionalidade para eleger os “filhotes” que serão criados por eles, quem incluir ou excluir, de quem se aproximar ou a quem afastar do convívio. Suas opções são feitas a partir de uma análise do ambiente social em que estão imersos, sujeitas ao instrumental mental, afetivo e social que alcançam usar, às condicionantes existentes e as possibilidades percebidas. Um bom estudo sobre o quão essas relações são construídas encontra-se na obra de Élisabeth Badinter (1985), a qual causou espanto e incômodos vários nas concepções do senso comum sobre o “mais natural dos instintos”, o amor materno, também presente na composição da família. Demonstrou em sua análise que esse amor também é uma construção histórica e nem por isso menos real e verdadeiro. Sem pretender estender essa discussão, faz-se necessário dizer que o parentesco biológico é mais um dos fatores que podem ser considerados na formação dos 82 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas elos familiares, mas não o único e nem sempre o mais importante, mas certamente um dos visivelmente detectáveis. Ao menos na relação com certas etapas da geração de uma criança na qual o ventre de uma mulher que cresce até o limite do parto, do qual decorreria que mulher que pariu assim como os familiares dessa mulher teriam um parentesco biológico com o ser que acabou de nascer. Todavia, nunca foi dito que é impossível ocultar o crescimento do ventre assim como parir em silêncio, tendo a solidão como parteira. Por mais visível que sejam a maioria das gestações, crianças foram deixadas nas portas das igrejas, nas soleiras das casas, nas rodas dos expostos, sejam lá que motivos tiveram seus pais e mães para fazê-lo. Nos limites territoriais do que foi o Continente do Rio Grande de São Pedro e jurisdições das suas igrejas, não havia roda dos expostos durante todo o século XVIII e parte do XIX, todavia, crianças “apareciam” nos pequenos aglomerados de casas, em seus templos e capelas, nas sedes das fazendas. Algumas dessas crianças traziam um bilhete, dito cédula ou nota em alguns registros feitos pelo pároco, com a informação de já haver ou não um batismo emergencial ministrado ou um nome atribuído. Para o período sob estudo, isso basta para perceber que existiram crianças que não foram reconhecidas pelos pais biológicos, no caso das crianças expostas ou apenas pelo pai biológico quando isso é registrado em forma específica pelos párocos. Nos livros das atas de batismo da Vila do Rio Grande, são muitas as ditas crianças filhas de “pai incógnito”. Isso pode significar mais do que a mãe da criança não saber quem é seu pai. Pode significar também que o nome do pai foi oculto no registro, podendo ser muito bem sabido da mãe, do pároco ou de terceiros. Esses registros dão saber que a consanguinidade não foi suficiente para incluir a criança na família de forma pública. Também não era incomum a omissão de um pai por 83 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões vezes ser reparada, quando ele reconhecia esse parentesco biológico, negado toda uma vida, em momentos que antecediam ou preparavam a sua morte e exigiam a consciência limpa de um bom católico para que, arrependido de seus pecados, pudesse adentrar o céu. Como exemplo, o trecho citado abaixo, extraído da investigação de Márcio de Sousa Soares sobre as alforrias em Campos dos Goitacazes: [...] Joaquim e Francisca com Quitéria filha de Manoel de Oliveira e sua mulher, Vitória. Declaro mais que tenho Amatildes, Augusto e Augusta todos estes são meus filhos e filha de uma escrava que houve nos bens de meu pai de nome Joana de nação angola. Declaro mais que reconheço também por filha a Fabiana filha de Maria Luciana de nação angola, esta se acha cativa. Declaro que por minha morte a dita Maria Luciana seja forra (do testamento de Belchior Rangel de Souza, in SOARES, 2009: 96). Para imaginar o que isso pode significar quando se pensa sobre família, será feita uma digressão aos dicionários de época na tentativa de entender o que poderia ser considerado família na Península Ibérica da Idade Moderna para poder retornar à reflexão feita aqui com um olhar mais claro. Digressão nos léxicos de época e nos estudos de história do Direito Do Vocabulário Portugues e Latino, de Raphael Bluteau, vem uma definição de família para os territórios lusos em finais do século XVII e inícios do XVIII: “FAMILIA: familia. As pessoas de que se compoem huma casa, pays filhos & domesticos”. Nessa mesma página fez-se a exploração do vocábulo familiar, cujas acepções que correspondem ao que aqui se busca são “familiar da casa. Doméstico” e “Ser um dos familiares da casa, ou pessoa de alguém”, nos quais também a forma latina de domus e dominium são invocadas. O que ajuda um tanto a 84 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas entender as relações domésticas a partir do radical latino comum a ambas. O âmbito do lar, daquilo que é doméstico e, pela sinonimia dada nesse léxico, da família, é o que se coloca na abrangência do poderio de um senhor, de um chefe desse domus. Há uma outra acepção que indiretamente se relaciona: “que tem familiaridade com alguem” e como exemplo, coloca Vieira, “criados tão familiares de sua casa” (BLUTEAU, 17121728, v.1: 28). Na busca por casa no léxico de Bluteau encontraram-se, para além do edifício onde se habita, acepções para as quais nos convém lançar um olhar: “casa. Geração. Família.” e “casa. Móveis. Criados. &c.” (BLUTEAU, 1712-1728, v.2: 174). Dessas acepções, as quais encontram correlatos também nos dicionários castelhanos da Idade Moderna, o mais antigo ao qual teve-se acesso foi Tesoro de la lengua castellana o española, de Sebastián Covarrubias Orozco. Deste, transcreve-se abaixo verbete família FAMÍLIA, en comun significacion vale la gente que un señor sustenta dentro de su casa, de donde tomô el nombre de padre de familias: dixose del nombre Latino famelia: y se entendia de solos los siervos, trayendo origen de la diccion Osca, famel, que cerca los Oscos siginficavan siervo, pero ya no solo debaxo deste nombre se comprehenden los hijos, pero tambien los padres, y abuelos, y los demás ascendientes del linage, y dezimos la familia de los Cesares, de los Scipiones: ni mas; ni menos a los vivos, que son de la mesma casa, y decendencia, que por otro nombre dezimos parentela: y debaxo desta palbra familia se enteiende el señor, su muger, y los demás que tiene de su mando, como hijos, criados, esclavos (...) (OROZCO, 1674: 396v-397). Não muito diferente disso também o que é encontrado em duas acepções no Diccionario de Autoridades da Real Academia Espanhola, na edição de 1736: FAMILIA. La gente que vive en una casa debaxo del mando del señor de ella. Es voz puramente Latina. Por esta palabra família se entiende el señor de ella, e su muger, e todos los 85 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões que viven só el, sobre quien há mandamiento, assi como los hijos e los sirvientes e los otros criados. FAMILIA. Se toma mui comunmente por el numero de los criados de alguno, aunque no vivan dentro de su casa (REAL ACADEMIA ESPAÑOLA, 1726-1739). Retornando ao trecho do testamento citado no item anterior, percebe-se que as relações dinâmicas da família do autor do documento foram alteradas sem que a família se alterasse, já que estão contemplados nessas relações não somente os vínculos de parentesco mas também os criados, servos e escravos. Os filhos bastardos e mestiços reconhecidos no testamento citado seguem dentro da família, mas com um tipo de relação diferente. De cousas da casa passam a ser nominados como filhos, percebidos também com condição subalterna à condição do chefe da família. Como escravos, já faziam parte da família, das “cousas da casa”, ou daqueles “sobre quem há mando”, ou seja, no âmbito doméstico, sob o domínio do chefe de família ou pater familias. Pode causar certo espanto tal ideia, mas para o pensamento dos juristas de Espanha e Portugal podia parecer bastante natural, já que a sua formação, assim como as formas de conceber a ordenação da sociedade com um pé fincado nos ditames da moral e da ética cristã cristã e o outro na filosofia grega da antiguidade, eram fortemente influenciados pela obra de Aristóteles, do qual tomam-se duas passagens: Estas dos primeras asociaciones, la del señor y el esclavo, la del esposo y la mujer, son las bases de la familia, y Hesíodo lo ha dicho muy bien en este verso La casa, después la mujer y el buey arador; porque el pobre no tiene otro esclavo que el buey. Así, pues, la asociación natural y permanente es la familia, y Corondas ha podido decir de los miembros que la componen “que comían a la misma mesa”, y Epiménides de Creta “que se calentaban en el mismo hogar”. (ARISTÓTELES, s.d.: 10) e Los elementos de la economía doméstica son precisamente los de la familia misma, que, para ser completa, debe comprender esclavos y hombres libres. Pero como para darse ra- 86 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas zón de las cosas es preciso ante todo someter a examen las partes más sencillas de las mismas, siendo las partes primitivas y simples de la familia el señor y el esclavo, el esposo y la mujer, el padre y los hijos, deberán estudiarse separadamente estos tres órdenes de individuos para ver lo que es cada uno de ellos y lo que debe ser. (ARISTÓTELES, s.d.:11). Os comensais de uma casa eram, portanto o que hoje chamamos de família alargada, sem que houvesse espaço para o entendimento de outro tipo de família que não esse. Essa família composta pelo homem, sua mulher, os filhos e outros subalternos era entendida por Aristóteles contém as relações mínimas essenciais para o seu ordenamento. Ao que tudo indica, também era entendido assim pelos filósofos, juristas e membros da Igreja da zona mediterrânea da Europa (LEVI, 2009) e, por consequência, pelo também pelas pessoas “comuns” que viviam sob tal forma deorganização social. Se assim era entendido pela Igreja de Roma à era Moderna, esse também era o entendimento das Coroas ibéricas, cujas realezas de Castela e Portugal detinham os títulos de Sua Majestade Católica e Sua Majestade Fidelíssima respectivamente, títulos esses outorgados pelo papa. Toda a formulação dos textos dos verbetes dos dicionários de época a utiliza o termo casa, para definir família. Sentiuse então a necessidade de fazer a mesma exploração sobre esse termo, na tentativa de entender os aspectos que definiam os limites da família ibérica na Idade Moderna. A acepção dada pelos dicionários de época se mostra diferente das acepções mais atuais do termo. Nesses dicionários da península, deixa de ser somente lugar físico onde uma família reside, e tal como expresso, incorpora não apenas esse lugar físico, mas também um espaço humano, as pessoas e, incorpora até mesmo a ação do tempo sobre tais espaços, pois a pertença se reitera no tempo, incluindo diferentes gerações associadas à casa. Fazendo o mesmo exercício que foi feito com o termo família, tem-se a 87 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões busca pelo termo casa, complementando o que já foi colocado do léxico de Raphael Bluteau. No Tesoro de la Lengua Castellana o Española, de Sebastián Covarrubias Orozco, encontra-se ao início do verbete casa uma acepção quase que decepcionante para quem faz tal busca. CASA, habitació rustica, humilde, pobre, sin fundamento, ni firmeza, que facilmente se desbarata: y assí algunos quiere que se aya dicho casa, à casu; por que a qualquieré viento amenaza ruina. Otros entendiem averse dicho quasi cana; porque los primeros que habitaron en los campos, se cree haverse metido en las concavidades de los montes, y aý de los arboles, y aver hecho en tierro hoyos y cubierto los de ramas, y chozas pagizas. Virgilio las llamó habitaciones humildes. (OROZCO, 1674: 207). Entretanto, o verbete é longo e, sendo uma das primeiras tentativas de disciplinar e sistematizar por ordem alfabética o vocabulário na península ibérica, a metodologia empregada por Covarrubias Orozco faz com que o autor divague por duas colunas da página impressa, misturando a explicação de ditados populares, trechos de obras eruditas e acepções segundas do mesmo termo. Na segunda coluna, em meio a tantas outras coisas e significados ditos, encontra-se algo que se relaciona à acepção salientada em Bluteau e sobre os significados de casa como estreitamente vinculado à família. Tem-se ali: Agora en l½goa Castellana se toma casa por morada y habitació, fabricada con firmeza y sumptuosidad: y las delos hombres ricos, llamamos en plural, Las casas del señor fulano, o las del Duque, o Conde, etc. y porque las tales son en los proprios solares de dõde traen origen, vinierõ a llamarse los mesmos linages, casas, como la casa de los Mendoças, Manriques, Toledos, Guzmanes, etc. Otras vezes sinifica la familia. Y assi dezimos, fulano ha puesto mui gran casa, quando ha recebido muchos criados. (OROZCO, 1674: 207). Mais adiante, dá o significado das expressões “Apartar de casa, vivir de porsi” e “no tener casa, ni viña, no tener raizes, y ser poco de fiar” (OROZCO, 1674: 207). Ou seja, na 88 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas primeira, separar-se da casa significa não ter do que viver, dependendo de sua própria labuta para prover-se e na segunda, indica claramente que a fiabilidade de um está ligado ao fato de ter uma casa e, portanto, uma família a servir-lhe de referência para a sua posição no mundo social. Não ter casa é estar e mais do que isso, ser isolado, desarraigado. A casa é então, mais do que a morada. Casas, tais como as pessoas têm nome, têm reputação, têm prestígio. Casas são os prédios, as terras e a própria família. Não havendo vínculo com uma casa – morada pobre ou suntuosa – a pessoa não têm existência social. Considerando que casa extrapola o limite da existência física e incorpora também os meios de prover-lhe o sustento, casa tampouco é coisa. Torna-se também conjunto de relações que lhe dão sustento físico, humano e material. Incluem-se aí também as relações de trabalho existentes entre o senhor dessa casa e os seus serviçais e escravos, além dos membros da parentela afetiva, ritual, afim e consaguínea. Casa e família, surgem então, ainda que definidas pelos vocábulos latinos, como uma verdadeira unidade oiconômica, remontando a noção do oikos grego. As referências na antiguidade clássica vêm por um lado da cultura latina que se impôs na península e por outro, nas referências buscadas nos filósofos gregos, tais como Aristóteles já citado acima. Diz-se então que a casa e a família se constituem como unidade oiconômica, frisando aqui o significado holístico desse termo que abrange a um só tempo o ambiente físico e o ambiente humano no qual as trocas e reciprocidades podem ocorrer. Sem poder separar diferentes âmbitos da exisitência, o ambiente humano comporta aspectos religiosos, morais, éticos, econômicos, culturais, etc. A Casa e família são assim, um centro de referência para as relações antidorais que perpassam toda a sociedade e se regem basicamente pelas relações simétricas e assimétricas da reciprocidade, sob forma de economia 89 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões do dom, estabelecidas entre seus membros e comensais segundo Bartolomé Clavero (1991: 157-170). La economía era oiconomía, disciplina doméstica. Es entonces el espacio. Era el universo. No hacía falta otra concepción porque existía, entonces realmente existía, la familia. Es el elemento de base; por su agregación se nos ha dicho que se compone la sociedad. Realmente el ordenamiento sólo conoce como unidades a unos cuerpos familiares; dicho de otra forma, extraña para la época, desconoce como sujeto social al individuo. Cuando un tratado jurídico parece dedicársele, lo que ya resultaba sintomáticamente raro el tratamiento se resuelve en agregaciones y escisiones, hipóstasis y esquizofrenias; tiene que reagrupársele corporativamente o dividírsele interiormente conforme a la representación de los distintos agregados y roles sociales que puedan interesarle. (CLAVERO, 1991: 163) No âmbito da casa e da família, há uma ordenação e um regramento que lhes são próprios e variáveis. Ainda que haja traços comuns a todas, o primeiro deles, talvez, a inexistência de indivíduos ante o corpo social, ou melhor dizendo, os sujeitos são sujeitos múltiplos, não são propriamente membros do grupo em que estão incluídos, mas são portadores das qualidades todas do corpo social no qual existem, são o próprio corpo social. Cada um contém o todo em si, de modo que a definição do lugar de cada um na sociedade é, antes de mais nada, dado com referência no corpo social (ou corpos sociais) no qual (ou nos quais) ocorre sua existência, que não é individual e sim coletiva. Há, em relação às casas e famílias peculiaridades que são inatingíveis por uma única regra geral que possa ser aplicada a todas, já que dentro dos ditames religiosos, éticos, morais, culturais, etc. que condicionavam e limitavam a ação, há uma sempre algum espaço para que se pautem por quesitos de organização própria desde que não ofenda o regramento maior. Conteúdo clássico nos estudos de História Moderna, a concepção corporativa do Estado se estende por toda a sociedade, para a família e para além. O processo de emergência do 90 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas indivíduo na história já havia dado seus primeiros passos, mas a consolidação do indivíduo como agente social por excelência e sujeito de direitos e deveres não estava consolidada nos domínios ibéricos no período sob estudo. Havia corpos sociais para onde quer que se mire: corpo da Igreja, corpos dos praticantes de ofícios manuais, o corpo do exército e das milícias e muitos mais, ora com áreas de interseção entre uns e outros, ora com uns inseridos dentro de outros mais amplos e, no limite, todos inseridos no grande corpo que era o próprio Estado, do qual o rei, também sendo parte, era a cabeça desse corpo (KANTOROWICZ, 1998). No olhar que mira do mais simples ao mais complexo, o Estado e o corpo da Igreja são os mais amplos e abrangentes. Mais difícil fica de determinar o limite da porção menor desses corpos que preservava todas as suas propriedades. Las únicas unidades irreductibles a otras menores, los individuos, no eran sujeto principales de derechos, sino por modo secundario en cuanto integrantes de tal o cual ordo, estamento, corpus o cualquiera otra entidad supra individual. (Tomás y Valiente apud CLAVERO, 1997: 11) Clavero ressalta ainda, poucas linhas adiante, comentando o pensamento de Tomás y Valiente sobre a construção do Estado enquanto ele próprio se preocupa com a construção do indivíduo: Antes de cualquier manifestación institucional, abría otro arranque: el de la concepción de un par de entidades que, por muy naturales que hoy puedan llegar a parecernos y sobretodo una, resultarían históricas ambas y relacionadas además entre sí. Tales serían el Estado como artificio político y el individuo como actor jurídico, también esto. Del primero subrayaba su carácter precisamente artificial como producto constitucional y del segundo, si no resaltaba su entidad natural, era por no perder la constancia de su formación igualmente histórica. (...) Estas otras entidades, y no por sí mismos los individuos, serían entonces unos sujetos sociales. (CLAVERO, 1997: 11-12). 91 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões Tanto Tomás y Valiente como Clavero colocam Thomas Hobbes como momento generativo, momento de “arrancada” para uma nova concepção na qual Estado e indivíduo formariam um par indissociável e da relação entre Estado e indivíduo se dariam as bases do ordenamento jurídico e social desse novo tipo de Estado, dando à Inglaterra como o local de surgimento dessa nova concepção. Entretanto, no período, no local e na temática que nos tocou estudar a partir dos registros paroquais, essa noção de indivíduo mal parece existir, ficando claramente situada dentro dos marcos do Antigo Regime e, portanto, do predomínio dos corpos políticos ou dito de outro modo, desses sujeitos sociais coletivos. Trata-se de uma outra realidade nessa bifurcação dos caminhos traçados pela península Ibérica e pelas Ilhas da Grã-bretanha. A Ilha seguiu seu rumo na construção do que Clavero chama de concepção constitucional do Estado e a Península no seu caminho de consolidar expandir monarquia sob concepção corporativa do Estado para além dos limites do grande mar Oceano. Nessa concepção, de sociedade, onde a analogia ao corpo humano dá a tônica para as relações, também o era corpo familiar, o mais elementar. A base para esse pensamento provém de Aristóteles, para quem a família era o menor corpo que contém em si as relações básicas da sociedade. A trajetória dessa noção aristotélica, até chegar a Idade Moderna, passou por muitas interpretações e mediações. Embora não seja objeto desse estudo, faz-se notar quando há uma ordenação da sociedade que atribui valores diferentes aos agentes sociais e suas ações em função dos corpos sociais em que estão inseridos (LEVI, 2009). Disso decorre que o seu estatuto social é ponto importante para a medida da administração da justiça, justiça essa que não busca a igualdade, mas que tem como parâmetro a justa desigualdade para estabelecer seus alicerces. 92 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Basta, de momento, perceber que a principal linha de sua difusão e reinterpretação entre os juristas e clérigos ibéricos passa por Tomás de Aquino e os letrados da Segunda Escolástica, os quais foram hegemônicos nas univerisdades da Península. Tanto os discursos dos juristas como os dos clérigos foram transportados, não sem mais mediações, para as áreas coloniais, a tal ponto que podem ser vistas nas margens das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia as notas relativas às referências a estudiosos e juristas tais como Luís de Molina. Tiago Luís Gil percebeu, em um dos seus estudos sobre os condutores de tropas de animais do extremo-sul para o sudeste, que havia em registros documentais protagonizados algumas pessoas muito simplórias e sem educação formal, a demonstração de um conhecimento nada simplório acerca das regras morais da Igreja que diziam o que é certo e errado, do que é justo e do que é injusto. Passo seguinte em sua investigação foi tentar traçar alguns possíveis caminhos para que essas informações e conhecimentos chegassem até os mais remotos rincões das possessões lusas, até os homens mais simples nessas colônias. O autor aponta os religiosos ordenados como seus possíveis divulgadores (GIL, 2005). Nas Constituições Primeiras também há títulos específicos que tratam de colocar como parte das funções de um clérigo prover a boa educação religiosa dos súditos de Sua Majestade Fidelíssima, instruindo-os nos mistérios da fé e do que que aquilo se esperava de um bom cristão (DA VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Livro I, Título III §§ 6-8). Eram, portanto os párocos e os curas sem paróquia que circulavam pelos territórios, possíveis vetores de disseminação das ideias e normas de conduta e organização social vigentes à época em locais nos quais os tratado jurídicos e canônicos eram mais raros e caros do que a propriedade sobre homens e mulheres tidos como escravos. Também eram eles, os clérigos, mediadores entre essas normas e a popu- 93 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões lação que não tinha contato com os tratados teológicos e jurídicos. Essa mediação fazia-se a partir das interpretações dos religiosos sobre os dispostos jurídicos e eclesiásticos lidos ou ouvidos que, por sua vez, eram reinterpretados pelos destinatários finais de sua mensagem, os habitantes da colônia. Havia especial recomendação para que atentassem à educação dos escravos e os meninos (DA VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Livro I, Título III §§ 6 e 8), ou seja, tais interpretações e destinatários podiam surgir em mentes inocentes, pagãs ou infantis. Essas múltiplas mediações e reinterpretações deram espaço às práticas populares, por vezes acusadas de heréticas. Ainda que não se saibam como e se os indígenas, africanos e afro-descendentes em contato com as populações lusas e mesmo essas, nos territórios meridionais no século, mantinham suas práticas ocultas dos olhares hostis ou se criavam novos significados para as práticas católicas, tem-se os antropólogos e historiadores a produzirem muitos estudos para outras áreas ou outros períodos sobre os ritos de iniciação e de nominação para de populações diversas, tais como ritos caseiros de batismo (Fonseca & Brites, 1988) e cultos que fundiam num mesmo cadinho elementos das religiões africanas, indígenas e o catolicismo (SCHWARTZ, 1988: 54-56; MOTT, 1993; VAINFAS, 1995; METCALF, 1999; SCHWARTZ, 2002). Mas acredita-se aqui que essa eram exceções e que na maior parte do tempo os curas zelavam pelo bom cumprimento das normas do catolicismo, ainda que eles próprios pudessem incorrer em faltas em sua vida pessoal (ANDREAZZA, 2011: 215-229) Na analogia que dá origem à concepção corporativa de sociedade é explicito que a noção de corpo exige a desigualdade entre suas partes. Não se compõe um corpo somente de cabeça ou somente de braços. Não funcionaria se assim fosse: o caos se daria, a ordenação não se cumpriria e havia o risco de que a igualdade entre tais membros pusesse a perder toda a 94 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas harmonia de um corpo. Para que funcione de modo organizado e orgânico, a cabeça lhe confere ordem e dá ordens, sendo que o restante, com diferentes graus de importância para esse todo executava aquilo que lhe competia. Alguns membros eram amputáveis por fazer mal ao corpo e na extirpação do degredo a cura desse vívido organismo social. Outros eram substituíveis por não terem funções vitais. Tinham cada um as atividades, funções, responsabilidades, deveres e direitos que lhes competiam por ser parte do corpo e por não existirem distante dele. Essa não era nenhuma novidade ou criação recente. Remonta a Aristóteles a idéia: No puede ponerse en duda que el Estado está naturalmente sobre la familia y sobre cada individuo, porque el todo es necesariamente superior a la parte, puesto que una vez destruido el todo, ya no hay partes, no hay pies, no hay manos, a no ser que por una pura analogía de palabras se diga una mano de piedra, porque la mano separada del cuerpo no es ya una mano real.(ARISTOTELES, sd.: 11). Como um espelho em que se miram – sempre com imperfeições em seu reflexo – os agentes sociais tomaram-na como modelo para todas as suas organizações, ficando evidente que uma cabeça sempre se faz necessária para que o caos não se instaure. Por essa ordem de justiça e de trocas desiguais que o modelo estabelece, a “cabeça” é credora da gratidão de todos e autoridade quase sempre incontestável. O mando e a autoridade se fazem necessárias para que o todo funcione como harmonicamente, como deve funcionar um corpo. Não é um modelo fácil e não era perfeito em sua concretização. Nem sempre a realidade condizia com essa aspiração de harmonia e alívio das tensões dados pelo compartilhamento da pertença a um corpo. A bem da verdade, se aliviava algumas tensões, podia agudizar outras, dada a necessária interdependência das partes. Todavia essa é uma representação que a sociedade fazia de si mesma e é uma idealização de como se concretizavam as suas práticas. 95 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões A questão da autoridade também no corpo da família como algo imprescindível é, então, naturalizada, pois esse corpo é um microcosmo na sociedade que desconhece ou quer desconhecer outras formas de organização. Na dicionarização dos vocábulos que buscamos anteriormente, isso aparece de modo claro: gente que vive em uma casa, debaixo da autoridade de um senhor. Y familia era más que familia; familias eran tanto los grupos domésticos como otros cuerpos sociales, las corporaciones religiosas sin ir tampoco más lejos. (...) Conforme a religión, a la religión cristiana, la teología lo regía y el padre de familia lo gobernaba (CLAVERO, 1994: 69). O modo com que os dicionários definiram família, ou seja, o modo com que puseram por escrito com uma ou mais de uma, todavia não todas as suas definições, eram representações que essa sociedade fazia de família. Não deixam muitas dúvidas: todos aqueles que se colocam sob o mando do senhor dessa casa são membros da família. Todavia, senhor esse que não está definido como sendo o pai – talvez nem precise, pois rege-se por patria potestas, o poder do pai, sem que isso signifique o poder tal como hoje se concebe, mas um misto de direitos, deveres e poder propriamente dito. Nesse corpo social, menor porção da sociedade na qual compete ao homem, por diferentes argumentos que concorrem ao mesmo ponto, dirigir e ordenar. O que talvez necessite ser dito é que o papel do pai, a persona3 do pai, não necessariamente, ainda que majoritaria- 3 Evita-se aqui o uso do termo “pessoa”, quando assume o significado das segunda e terceira acepções do vocábulo persona encontrado no dicionário Houaiss da língua portuguesa: “personagem literário em que o autor se encarna” e “imagem com que uma pessoa se apresenta em público”, cuja etmologia remonta o vocábulo latino persona, nominativo de personae: máscara ou figura, papel representado por um ator. Nesse escrito doravante será usado persona quando a referência for a acima e “pessoa” para distinguir as outras suas possíveis sinonimias, tais como: “ser humano”. 96 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas mente, era exercido por ele. Outro poderia vestir essa personagem, alguém que representasse na cena doméstica esse papel ou melhor dito, que se investisse dessa persona. Persona venía desde antiguo técnicamente significando la facultad social o legitimidad procesal para actuar en el mundo del derecho en nombre de intereses proprios, de ajenos mediante mandato o de unos colectivos o comunes el los casos y en la medida en que éstos también fueran objecto de representación De una u otra forma, con aterioridad se dice que el individuo tiene persona u que puede por ello actuar jurídicamente, operar como actor social. Persona es tradicionalmente algo que se posee, no que se sea. Desde tiempos antiguos, el sintagma jurídico se formulaba como abere personam, no como essere persona. El hombre, por tenerla, no lo era. Y la tenencia era dependencia. La personalidad, esta personalidad que no es individualidad, era cosa determinada por el status, por el estado o condición social, política y familiar. Son expresiones que vienen de antiguo. (CLAVERO, 1997: 13). Ainda que concorressem para o exercício desse papel, para inverstirem-se dessa persona os homens que detivessem a posse de um dominium, os chefes de família, os varões, deter essa persona não era sua exclusividade. Podia excepcionalmente ser exercido por outra pessoa que, com isso, estabeleceria também excepcionalmente uma relação de mando, que ocuparia o lugar da cabeça em relação ao corpo familiar, fosse esse papel exercido por homem ou mulher; por pai, mãe, irmão, irmã ou quem tivesse condições de exercê-lo. São muitas exceções para fazer crer que um costume tão arraigado como esse pudesse dar lugar a alguém que não detinha as qualidades esperadas. Mas os domínios lusos e certamente a parcela americana desses domínios era repleta de exceções a todo o tipo de regramento a ponto de imaginar-se que uma situação que seguia a norma social dos costumes ou mesmo as normas escritas sob formas de leis era a verdadeira exceção. Considerando a significativa presença de lares chefiados por mulheres de diferentes condições sociais no Brasil coloni- 97 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões al, já presentes na historiografia desde os estudos que se iniciaram a partir da década de 1970 (p. ex. MARCÍLIO, 1974; SAMARA, 1989), o papel “senhor”, a persona do pater familias, bem pode ser exercido por uma senhora, desde que a relação de mando se verificasse, assim como as responsabilidades, direitos e deveres necessários ao “cabeça do fogo”, ou seja, ao chefe do domicílio. O corpo não poderia nem deveria ficar acéfalo. Na ausência dos seus maridos por viuvez, por abandono, por viagens prolongadas, por guerras ou pelo simples fato de ter constituído uma família sem um cônjuge, a mulher poderia ser a portadora de tal persona. Frisa-se aqui, o papel não está definido pelo sexo ou pela idade, ainda que usualmente recaísse ou sobre alguém de idade mais avançada e geralmente do sexo masculino. Definia-se por quem exerce o mando. Por aquele ou aquela que na circunstâncias dadas tivesse envergadura suficiente – ainda que não preenchesse todos os quesitos – para possuir tal persona, para investir-se nesse papel. Mando e poder, do mesmo modo, não se tratam de coisas que se tem ou não, mas de relações estabelecidas entre os partícipes do jogo social, no qual o mando e o poder podem ser conquistado, recebido por delegação ou por costume. Não são infinitos. Não são eternos. Deveria o portador da persona reiterar suas qualidades sempre que isso lhe fosse permitido ou exigido, pois tratando-se de relação, mover uma peça no jogo social altera toda a configuração do tabuleiro. Tentando dar vazão à torrente de de ideias que surgem ao se “desmontar” a noção de família que construída a partir de concepções atuais, passa-se um pouco à discussão de exemplos apanhados da documentação estudada, para perceber o que mais pode ser percebido como sendo relação em vez de papéis e lugares sociais dados e estáticos em diferentes situações. Dos registros da Vila do Rio Grande (p. ex. Registro de Batismo de Antônia filha de Pais incógnitos ADPRG, 3º LBat-RG 98 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas fl. 21v, 25/06/1757), vê-se que exposição de crianças as exclui da parentela de suas mães e pais. Não existem irmãos, tios, tias firmados no parentesco consanguíneo ou biológico. Tais crianças poderiam vir a compor um outro vínculo de parentesco com uma família que lhe acolheu e a relação que pode estabelecer com ela também pode se dar de modo variável, exemplificado nos ditos “filhos de criação” ou “filhos adotivos” mesmo que não compareça junto a esse grau de parentesco a partícula que estabelece diferença entre os não nascidos de um dos membros do casal e os filhos biológicos. Do mesmo modo, filhos de um mesmo pai e mães diferentes ou vice-versa podem se considerar meio-irmãos ou simplesmente irmãos. Meio-irmãos, se provêm de relação adulterina que afetou a vida da família, não serem considerados como parentes de modo algum, ainda que haja classificações legais para cada um desses casos. Um filho ou filha que se porta contrário às regras estabelecidas e obedecidas pelo conjunto da parentela, seja ela consanguínea ou com outro tipo de laço, pode ser expulso da família, renegado, deserdado. Assim, guardando um vínculo de consanguinidade conhecido por toda a sociedade, havendo uma classificação legal para cada tipo de vínculo parental, o renegado deixa de fazer parte da família. Não falta a consaguinidade, mas falta a inclusão. Falta o laço que a consanguinidade possibilita, mas não impõe. Família, portanto, não pode ser pensada como dada a partir da existência de um grupo que cohabita ou não um lugar. Tampouco o parentesco como coisa dada a priori é suficiente, pois o parentesco não existe a priori. Ele é construído por regras sociais, religiosas, morais, e eleito por escolhas estratégicas, sejam elas afetivas, econômicas ou de qualquer outro tipo. Não sendo esses elos que os vincula algo físico, material, tampouco necessitam de um espaço físico para ocorrer. No contexto da Vila do Rio Grande do século XVIII, percebem-se fa- 99 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões mílias que estavam ainda unidas mesmo com o oceano a separar fisicamente seus integrantes. Por exemplo, tem-se progenitores que permaneceram em alguma ilha do arquipélago dos Açores e que são mencionados na documentação como avós maternos ou paternos de uma criança. Tem-se relações de apadrinhamento e compadrio procedidas por procuração entre moradores da Vila e do Reino (p. ex. Registro de Batismo de Eugênia filha legítima de Tomé Machado Ourique, ADPRG, 3º LBat-RG fl. 64v, 26/02/1758). Foi visto também homens com um laço consanguíneo muito distante e tênue, para além dos critérios do Direito ou da Igreja para a inclusão no parentesco, sendo referidos como primos por eles próprios4. Tais parentescos e pertencimentos até hoje se firmam na memória sobre a ancestralidade de algumas famílias, que referem-se a si próprias como descendentes de alguém que está separado por séculos no tempo e por vezes, com milhares de quilômetros a promover a separação física, quando um brasileiro nascido no século XX ou XXI se reivindica de uma origem açoriana que perdeu-se nas brumas do deslocamento dos casais das ilhas para o Continente do Rio Grande de São Pedro. Buscam-se parentes jamais vistos e sequer imaginados nas redes sociais virtuais e nos sites de genealogia. Criamse memórias de família que até então não eram possíveis. Ainda que os avanços da tecnologia de informática e comunicação tenham expandido essas possibilidades, elas não são privilégio dos usuários dos computadores. Exemplo disso são algumas tantas solicitações de mercês que podem ser vistas nos 4 Impossível de reproduzir aqui a genealogia das famílias Pinto Bandeira e Marques de Souza, recomenda-se dar vistas à ilustração constante à p. 283 de Hameister & Gil 2007, na qual se percebe a distância da consaguinidade entre Rafael Pinto Bandeira e Manuel Marques de Souza, o qual o primeiro se refere ao segundo como primo em documentos analisados por Tiago Luís Gil na elaboração de sua dissertação de mestrado (GIL, 2003). 100 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas documentos do Arquivo Ultramarino em que o solicitante no século XVIII inclui como argumento importante para receber a dádiva, descender de um dos guerreiros que acompanharam Dom Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, ocorrida em agosto de 1578. Esses usos e construções de memórias familiares e coletivas fazem refletir sobre o que é ou pode ser a família e contribuir para um refinamento de sua definição. Assim, descarta-se como supérflua na definição de Levi a menção à co-residência ou não co-residência, tal como se descartam aqui os graus de parentesco definidos pelos códices jurídicos ou canônicos como necessários para a inclusão em uma família. Foi dito que a definição de família dada por Levi era o ponto de partida. Não é o intuito aqui “remendá-la” nem tampouco acrescer ou retirar trechos ou elementos componentes da definição. O problema não reside aí. O problema que aqui se percebe é meramente uma questão de foco. O foco da definição dada por Levi a partir de seu estudo sobre a Vila de Santena recai sobre a materialização de coisas que são imateriais. Recai sobre um lugar físico, sobre as pessoas que compõe um grupo, sobre os parentescos que não são discutidos como mutáveis. Tentando escapar das armadilhas da reificação, acaba por cair na mesma armadilha e reificar tantas outras relações que são usadas como definidores do seu conceito de família. É necessário, portanto, repensá-la, usá-la como um modelo que não comporta todos as famílias encontrados na documentação paroquial de Rio Grande e outras tantas localidades sulinas mais. Considera-se necessário que seja pensada a família de um outro modo. Não basta, portanto, pressupor um parentesco real, político ou fictício, pensando aqui o batismo como principal ato religioso dos católicos a gerar parentescos fictícios, como suficiente para vincular as pessoas. É importante perceber esses parentescos e com eles a existência ou formação de um grupo de 101 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões pessoas, mas a definição que se busca tem que contemplar a escolha, seja ela positiva ou negativa à inclusão de membros na família. É necessário também que contemple as diferentes configurações que uma mesma família possa apresentar ao longo do tempo, assim como as alterações em seus critérios de inclusão e exclusão. Junto, também se faz necessário que os papéis dos seus membros não sejam estáticos ou pré-determinados, que se percebam esses papéis como personas que devem acontecer no âmbito de uma família mas que nem sempre o mesmo ator veste a mesma personagem ou nem sempre a personagem que o ator veste é aquela que lhe foi designada ao início de sua vida. Além disso, é preciso que se perceba que pode haver mais de um vínculo entre esses partícipes, tais como, por exemplo, ser ao mesmo tempo avô//irmão//tio//primo e padrinho, sobrepondo-se um vínculo ao outro sem que nenhum seja anulado pelo ato de acrescentar mais um elo. Dito de outro modo, cada um dos atores no cenário de um domicílio, de uma casa pode representar diferentes papéis simultaneamente. É assim, por exemplo, com os casamentos entre primos. O fato de tornarem-se marido e mulher não cancela o vínculo anterior ao matrimônio, o de primos. Tendo-se claro que os impedimentos matrimoniais estabelecidos pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia podiam ser relevados, também ficam superpostos as posições de primos, tios, sobrinhos e cônjuges, cunhados, genros, etc., por exemplo, como são com frequência percebidos pelos genealogistas e muitas vezes são complicadores da tentativa de atribuir uma classificação a essas relações vistas ao recompor as descendêcias familiares. A definição que se busca deve, portanto ser flexível a ponto de permitir a sobreposição de laços sem que uma anule a outro e, havendo hierarquia entre tais laços, sejam eles percebidos através da documentação e das preferências entre os participantes dessas relações em vez de estabelecidos a priori pelo 102 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas pesquisador que os investiga. Se isso for feito, o trabalho de investigação deverá trazer em sua discussão teórica e metodológica, quais os procedimentos adotados para eleger uma dessas relações como prioritária em detrimento de tantas outras que possam haver. Mas frisa-se novamente: a questão que aqui é enfatizada é relativa ao foco das conceituações já vistas. Um primeiro esboço para uma nova definição de família produziu-se nos diálogos de orientação para a dissertação de mestrado de Rachel dos Santos Marques, da qual resultou a seguinte aproximação: (...) a existência de família, se entendida como um conjunto de relações que tem o parentesco consangüíneo, afim ou fictício como principal elo, já pressupõe uma série de relações – entre marido e mulher, pais e filhos, avós e netos, tios e sobrinhos, sogros e genros/noras etc. O mesmo se dá com o parentesco espiritual (pais e filhos, batizando e padrinho, compadres) (...). (MARQUES, 2012: 47) A principal mudança, ainda incipiente já está desenhada nesse pequeno trecho. Na proposta que aqui se faz na tentativa de encontrar uma formulação do conceito de família adequada a realidade que se tem estudado e que é mediada pela documentação que se analisa é uma mudança de foco. Opta-se por deslocar o foco das “coisas” e “pessoas” que podem compor uma família para as relações que podem aglutinar diferentes agentes sociais em um algo que pode ser dito família. Define-se, então, a família como sendo um conjunto de relações recíprocas, tanto simétrica como assimétricas, estabelecidas e normatizadas socialmente, das quais as mais visíveis e recorrentes são as relações de parentesco consanguíneo, afim e fictício. Tais relações são mutáveis, vinculam e estabelecem “lugares sociais” também mutáveis às pessoas que nelas são incluídas por critérios próprios, mas condicionados por valores e regras sociais, morais, religiosos, econômicos, políticos e afetivos próprios da época e do lugar em que ocorrem. 103 HAMEISTER, M. D. • Lançando aos leões Ainda que tal definição tenha sido moldada com referência nos estudos específicos com os registros paroquiais do século XVIII no extremo-sul, acredita-se que possa comportar também situações mais avançadas no tempo e em outras áreas geográficas. Dito isso, o que aqui ficou definido – mesmo que temporariamente – como família é lançado aos leões. Aguarda-se ansiosamente a contribuição crítica e aguda dos colegas – os leões – investigadores da história da família no contexto meridional do Estado do Brasil para que a dilacerem, triturem, mastiguem, digiram ou regurgitem, mas que desse conjunto de pensamentos imperfeitos e por vezes confusos possa surgir algo realmente diferente daquele “mais do mesmo” que ameaça os nossos estudos. Que o produto final conte com a contribuição de todos para que um conceito de família venha a emergir e que sirva a todos, possibilitando que “se fale a mesma língua” quando se fala de família. Não se espera a concordância, mas os comentários doces ou ácidos, que fomentem a discussão e o debate e que concorram para a construção de um léxico comum. Talvez com isso se reduza também o risco de problemas de interpretação e de comunicação entre os pesquisadores desse filão tão rico da história a ser estudada e em histórias a serem escritas. 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No caso das famílias oriundas de Laguna, situada na capitania de Santa Catarina, não foi diferente a atração pelas terras da fronteira e durante décadas algumas centenas de pessoas trocaram a vila litorânea pelos campos sulinos. O que motivou a migração de uns e a permanência de outros? Que tipo de contato se mantinha entre os migrantes e aqueles que ficavam? Quais as relações entre as famílias viamonenses, lagunenses e paulistas? Essas e outras perguntas podem ser elucidadas através da análise de algumas trajetórias familiares, em particular de algumas das famílias pioneiras mais representativas do povoamento dos Campos de Viamão (os Gonçalves Ribeiro, os Guterres e os Magalhães). Durante o primeiro terço do século XVIII, o Continente foi desbravado pelos pioneiros lagunenses. Mas, até então, as incursões visavam apenas ao reconhecimento, ao contato com o indígena e ao arrebanhamento de gado. A partir de um determinando momento, situado em meados da década de 1730, 110 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas teve início um movimento migratório que chegou a transladar cerca de um terço dos habitantes lagunenses em direção aos Campos de Viamão, em um movimento de fluxo e refluxo entre os campos sulinos e a vila de Laguna. A vinda definitiva para o Sul iniciou-se na década de 1730, mas durante muito tempo, talvez uns vinte ou trinta anos ainda, ocorreu um movimento de sentido pendular, que tornava comum as idas e vindas dos primeiros moradores de Viamão.1 Até a criação da freguesia, em 1747, era normal que os habitantes das estâncias viamonenses fossem seguidamente até Laguna. Afinal, era lá que se celebravam os matrimônios e os batizados. Mais tarde, apesar da maior autonomia da paróquia, os vínculos familiares e econômicos persistiam, fazendo com que se tenham muitos dos pioneiros assinalados como “ausentes” nos róis de confessados. Algumas famílias se transferiram em peso para o Sul; outras, no entanto, mantiveram um pé em Viamão e outro em Laguna. De toda forma, o que se constata é que a região dos Campos de Viamão apresentou, nas décadas iniciais de sua ocupação, uma expressiva presença de povoadores oriundos da vila de Laguna. Não dispomos dos livros paroquiais de Laguna anteriores a 1790, pois suas indicações toponímicas talvez nos permitissem reconstituir – ao menos parcialmente – o ritmo e a intensidade da migração para os campos sulinos. Os primeiros registros de sesmaria dão conta da presença de povoadores lagunenses requerendo terras a partir de 1732. Nos anos vindouros, não se tratava mais de “povoar” as estâncias somente com gado, mas também com as famílias que vinham para o Sul. No “Mapa das Fazendas povoadas de gado 1 GALVÃO, Manuel do Nascimento da Fonseca. Notas geographicas e históricas sobre a Laguna, desde sua fundação até 1750. Desterro, Typographia de J. J. Lopes, 1884, p. 53. “Porém, a proporção que se foram erigindo a Capela de Viamão e a freguesia de São Pedro, o movimento da campanha para ela [Laguna] foi diminuindo”. 111 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão no Rio Grande de São Pedro”, realizado em 1741, constavam 32 estâncias na parte setentrional do Continente, grosso modo correspondente aos Campos de Viamão. Exatamente a metade delas (16) pertencia a indivíduos naturais da Laguna ou ligados por laços familiares e econômicos à vila.2 Quando os documentos paroquiais começam a iluminar a história da ocupação dos Campos de Viamão, a presença lagunense já se fazia sentir há pelo menos quinze anos. Assim, quando a freguesia de Viamão é criada, em 1747, a realidade evidenciada pelos registros já nos apresenta uma presença consolidada dos povoadores lagunenses. Os registros do primeiro livro de batismos de Viamão na meia década inicial da sua existência tornam evidente a influência da corrente povoadora oriunda de Laguna. No período compreendido entre dezembro de 1747 (início dos registros) e novembro de 1752, temos 115 registros de batizados, entre livres e escravos. Foi possível recompor a presença de 51 famílias formadas por casais livres e que tiveram filhos legítimos. Dessas famílias legitimamente constituídas, formadas por casais livres brancos, mestiços e índios, nada menos do que 34 (2/3 do total) tinham ao menos um cônjuge natural de Laguna. Acrescentando mais cinco casais3 que sabidamente viveram em Laguna antes de mudaremse para “o Viamão”, temos que mais de três quartos da população tem origem na vila catarinense. É certo que os números são distintos, se diferenciamos a população masculina da feminina: em um universo de 50 homens com naturalidade conhe- 2 AHU-RS, Caixa 1, doc. 41. Nesse mesmo ano de 1741 foi ereta a Capela de Viamão, sujeita à Laguna. Cf. RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul: época colonial. Porto Alegre: Edipucrs, 1994., p. 71. 3 São aqueles casais encabeçados por João de Magalhães, Francisco Rodrigues Machado, Francisco Xavier de Azambuja, José Leite de Oliveira e Manuel Gonçalves Meireles. Os três últimos, por exemplo, são genros de Jerônimo de Ornelas, um dos primeiros sesmeiros dos Campos de Viamão. 112 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas cida, 14 eram lagunenses e outros tantos portugueses continentais. Somados perfaziam 56% do contingente masculino. Já quanto às mulheres, das quais 49 tiveram sua naturalidade explicitada, a maioria lagunense (51%), havendo ainda expressiva presença de cônjuges paulistas (28%). Esses números não deixam margem à dúvida. A corrente de povoamento lagunense foi a mais importante na formação dos Campos de Viamão, suplantando na fase inicial qualquer outra contribuição populacional. Se a migração era uma estratégia recorrente entre os lagunenses – que herdaram a prática dos seus precursores paulistas –, resta tentar entender por que apenas alguns poucos puderam reproduzir seu status social ao virem para Viamão. Não procede, portanto, caracterizar esse grupo como membros de uma elite, salvo raras exceções. As evidências patrimoniais e políticas embasam essa opinião, já que pouquíssimos lagunenses apresentaram grandes cabedais por ocasião dos seus inventários, além de praticamente não ocuparem cargos na república, seja como oficiais régios ou camarários. Até o momento, as informações colhidas nos inventários e testamentos de lagunenses não sugerem que os emigrantes lagunenses tenham se tornado uma nova elite política, social ou econômica no Continente. Pelo contrário, parece que a maioria não passou de uma trajetória mediana (do ponto de vista patrimonial), conforme os dados disponíveis nos inventários e testamentos que foram consultados nos arquivos de Laguna e Porto Alegre. A amostra reúne membros das principais famílias (Brito Peixoto, Pinto Bandeira, Gonçalves Ribeiro, Brás Lopes e Guterres) e indica que pouco mais de um terço dos povoadores com origem lagunense tiveram patrimônios superiores a um conto de réis, o que seria um nível de fortuna considerado razoável naquela sociedade, nem muito empobrecido, mas também não muito abastado. 113 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão Quadro 1: Patrimônios dos primeiros povoadores de Viamão, originários de Laguna Nome Data de falecimento Monte-mor ou patrimônio estimado Agostinho Guterres 1763 727$0004 Andreza Veloso Maciel 1786 272$760 Bernardo Pinto Bandeira 1795 3:844$920 Cláudio Guterres 1785 2:846$590 Domingos Leite Peixoto 1758 590$0005 Francisco de Magalhães 1803 630$400 Francisco Pinto Bandeira 1771 12:997$040 João Brás Lopes 1756 480$0006 João de Azevedo 1769 481$240 João de Magalhães 1771 297$200 João Roiz Prates 1766 8:399$141 José Brás Lopes 1769 552$120 José da Fonseca Peixoto 1793 1:798$300 Lucas de Magalhães 1788 537$960 Manuel Brás Lopes 1779 512$000 Manuel de Silva Reis 1748 1:410$280 Manuel Gonçalves Ribeiro 1757 865$0807 Miguel Brás Lopes 1785 2:059$430 Fontes: AHCMPA, APML & APRS. Inventários e testamentos. 4 O cálculo foi feito a partir das informações constantes do seu testamento. Os animais e as terras foram avaliados conforme os valores constantes dos inventários da época (década de 1760). 5 No seu testamento, ele declarou ter somente três escravos, 270 cabeças de gado e uma morada de casas. A avaliação foi feita a partir dos valores constantes em inventários lagunenses da década de 1750. 6 Ele era o dono da “Fazenda do Brazes”, também conhecida como o “Sítio do Dilúvio”, que foi dividida pelos quatro herdeiros. No inventário do seu filho Manuel, datado de 1779, as terras possuídas (1/4 da fazenda) valiam 120$000 réis. 7 Valor obtido a partir do somatório dos bens da sua segunda mulher, falecida em 1788. 114 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas É verdade que existem algumas notáveis exceções à regra, como nos casos de João Roiz Prates (que todavia não chegou a residir em Viamão) e Francisco Pinto Bandeira, mas o que se percebe é uma tendência para um certo apoucamento das posses da maior parte dos lagunenses emigrados. Poder-seia refutar os dados dessa amostra, afirmando que numa sociedade de Antigo Regime não somente a pujança patrimonial era levada em conta na definição da importância de um indivíduo, porém cabe lembrar que a verdadeira elite detinha, ademais da autoridade política, o controle dos bens econômicos principais, fonte de rendimentos que possibilitava sustentar sua supremacia. Vejamos agora alguns casos. A família Gonçalves Ribeiro Este núcleo familiar é bastante citado pela historiografia tradicional, principalmente pelo fato de que o seu fundador, Manuel Gonçalves Ribeiro, teria sido um dos primeiros sesmeiros a receber terras no Continente do Rio Grande. Quero chamar aqui atenção para o desenvolvimento dessa família, que parece ter tido sua importância atrofiada ao se transferir para os Campos de Viamão. Pelo contrário, o ramo que permaneceu na vila de Laguna manteve sua posição social ao longo da segunda metade do século XVIII. O conhecido Manuel Gonçalves Ribeiro (c.1686-1757), natural da freguesia de São Mateus do Bunheiro, comarca do Aveiro, foi homem de projeção na pequena vila de Laguna. Veio, na sua mocidade, originalmente para o Rio de Janeiro e já vimos que, no início de sua vida pública na vila catarinense (no começo da década de 1720), ele esteve envolvido em denúncias de contrabando e chegou a antagonizar com o capitão-mor Francisco de Brito Peixoto. Sossegados os ânimos, Ribeiro depôs a favor do antigo desafeto em 1726, quando foi nomeado como “das principais pessoas desta Vila”. No início da sua carreira em Laguna, Ribeiro fora 115 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão mestre da lancha do sargento-mor Manuel Gonçalves de Aguiar, mas depois se estabeleceu na terra, passando a viver das suas “fazendas, gados e roças”. Em 1732, ele obteve sua primeira concessão de terras nos Campos de Tramandaí, que ao que parece não foi devidamente aproveitada, pois em 1741 ele receberia outra sesmaria, situada na localidade de “Lombas”, nas imediações de Viamão. Neste local, instalou uma estância, embora nunca tenha trazido sua família, provavelmente devido ao fato do padrão de sucessão matrilinear que foi seguido, o que implicou que as filhas casadas permanecessem em Laguna. No registro de óbito de Manuel, o padre anotou que “tem assistido nesta freguesia vai para dois anos”. Ou seja, somente no final da sua vida, por volta de 1755, ele teria se mudado para Viamão. Nos róis de confessados da década de 1750, ele sempre constava como “ausente”.8 Quadro 2: Patrimônio dos descendentes de Manuel Gonçalves Ribeiro Inventariado e ano do Inventário Monte-mor 1.2) Maria Rodrigues Moreira 865$080 (somente o somatório – 1788 (2.ª esposa de Ribeiro) dos bens arrolados em Viamão; não inclui os bens na vila de Laguna, tampouco os escravos) 2.1) Anselmo Gonçalves Ribeiro – 1784 (filho do 1.º casamento) 1:629$135 2.2) Páscoa Gonçalves Ribeiro 708$640 – 1783 (filha do 2.º casamento) 8 % N.º de Dívidas escravos – 08 0,5 – 3,5 07 ACMRJ. HABILITAÇÃO de genere de Francisco Rodrigues Prates, caixa 395, 1751; AHU-SC. Caixa 1, doc. 2. Ribeiro declarou ter quarenta anos em 1726; NEIS, Ruben. Guarda Velha de Viamão. Porto Alegre: EST/Sulina, 1975. pp.28 e 37; AHCMPA. RÓIS de confessados de Viamão: 1751, 1756 e 1757. 116 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas 2.3) Antônio Quaresma Gomes –1791 (genro, marido de Páscoa Gonçalves Ribeiro) 240$720 – – 2.4) Bartolomeu Fernandes Souto Maior – 1812 (genro, marido de Maria Gonçalves Ribeiro) 1:582$680 08 08 2.5) Lauriana Gonçalves Ribeiro – 1830 (filha do 2.º casamento) 1:142$260 9,1 04 3.1) Manuel de Freitas 7:916$474 Noronha – 1781 (marido da neta Maria Quaresma Gomes) 88,7 08 – 05 3.2) Maria Quaresma Gomes 835$240 Fonte: APML. Inventários e testamentos. Deste modo, não pode ser cogitada a existência de dois indivíduos com este nome, contemporâneos entre si. Na verdade, existiu somente um Manuel Gonçalves Ribeiro, que teve, no entanto, duas esposas.9 Somente com sua morte, ocorrida em 1757, os seus filhos mais novos assumiriam a fazenda de Viamão, que seria objeto de prolongado litígio familiar. Segundo os dados biográficos de que disponho, Ribeiro se casou duas vezes. Do primeiro matrimônio, com Maria dos Passos Duarte, teve pelo menos um filho e uma filha, respectivamente o capitão Anselmo Gonçalves Ribeiro (c.1712-1784) e Isabel Gonçalves Ribeiro, que mais tarde se casaria com o capitãomor de Laguna, João Rodrigues Prates. Este filho mais velho do primeiro casamento, Anselmo, jamais se mudaria para Viamão. De fato, toda a sua vida está ligada à vila catarinense, pois desde cedo se envolveu na sua atribulada história: com somente 14 anos ele depôs – favoravelmente – como testemu9 A hipótese de que seriam dois Manuéis foi desenvolvida por DUARTE, Manuel. “Os Gonçalves Ribeiro”. In: RIHGRGS, n.º 97, 1.º trimestre de 1945. pp. 147-156. 117 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão nha no auto de residência do capitão-mor Brito Peixoto. Em 1748 era proprietário de uma loja na vila, onde se casou com uma filha de Gabriel Rodrigues, oficial da Câmara e homem de relativas posses no vilarejo, quando teve acesso então a um pequeno dote (dois escravos e uma casa) que lhe permitiu manter o seu nível social. A ascensão dele foi contínua, pois foi nomeado capitão de ordenanças por Gomes Freire em 1752 e, a partir da década de 1760, o seu nome também aparecia como oficial da Câmara lagunense. Quando Anselmo morreu, em 1784, deixou um patrimônio bastante razoável, consideradas as circunstâncias locais, de 1:629$315 réis, a ser repartido, no entanto, entre nove herdeiros.10 Após ter enviuvado, provavelmente no ano de 172011, Ribeiro se casou pela segunda vez com Maria Rodrigues Moreira, da qual teve outros sete herdeiros, quatro mulheres e três homens. Esse ramo de sua descendência seguiu o típico padrão sucessório da elite colonial, com os filhos homens migrando para a fronteira (no caso, Viamão), ao passo que as mulheres casaram-se com figuras destacadas da sociedade lagunense. A tendência predominante aqui foi matrilinear, pois as filhas mantiveram sua posição social, ao passo que os filhos homens, emigrados para Viamão, tiveram uma trajetória descendente. Nem sempre migrar para a fronteira era a melhor opção, pelo menos no caso desta família. 10 AHU-SC. Caixa 1, doc. 2. doc. cit.; APML, caixa 40, s/n.º: inventário e testamento de Manuel da Silva Reis, 1748; caixa 47, n.º 23: inventário e testamento de Gabriel Rodrigues, 1776; caixa 8, n.º 49: inventário de Anselmo Gonçalves Ribeiro, 1784; RAPM, v. XXIII, 1929. pp. 438-439: nomeação para capitão de ordenanças; CABRAL, A Organização das Justiças na Colônia e no Império e a História da Comarca de Laguna. Porto Alegre: Estabelecimento Gráfico Santa Teresinha Ltda., 1955. pp.211-214. 11 O primeiro livro de óbitos de Laguna está desaparecido, mas foi possível descobrir que em 1720 foi processado o inventário de Maria dos Passos, que suponho seja a primeira mulher de Manuel Gonçalves Ribeiro. AESP. Lata 257, maço 25, pasta 4, 25.4.6. 118 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas As filhas do segundo casamento de Manuel Gonçalves Ribeiro casaram-se com homens detentores de prestígio e boa colocação na sociedade daquela época. A maior parte deles tinha patentes militares, especialmente de ordenanças. Embora não tivessem sido muito ricos, certamente faziam parte da elite possível na modesta vila meridional. Esse é o caso do capitão Antônio Quaresma Gomes, que foi casado com Páscoa, a filha mais velha do segundo casamento de Ribeiro. Ele chegou a estabelecer-se em Viamão (povoou com animais umas terras), no início da década de 1750, tendo inclusive recebido sesmaria, que se limitava ao norte com as terras do seu sogro. No entanto, vendeu a concessão que recebera e permaneceu ligado à vila de Laguna, onde faleceu somente em 1791. Não foi detentor de grande patrimônio, pois quando sua mulher morreu, em 1783, deixou como herança somente um rancho de pau a pique, um sítio e sete escravos, o que totalizou pouco mais de 700 mil réis. Mas, apesar da sua pouca fortuna, o capitão Quaresma conseguiu manter seu status diferenciado, pois realizou bons arranjos matrimoniais para algumas das suas filhas, que se mantiveram no ápice daquela sociedade.12 Outro genro importante de Manuel Gonçalves Ribeiro, que, da mesma forma, permaneceu em Laguna, foi Bartolomeu Fernandes de Souto Mayor. Descendente de importante família paulista, ele começou como tenente, chegando a capitão-mor de ordenanças na vila, o que mostra uma trajetória de sucesso. Em 12 RAPM, v. XXIV, 1933. pp. 247-248: carta de sesmaria; APML. Caixa 123, n.º 42: inventário de Páscoa Gonçalves Ribeiro, 1783. Ver também, caixa 15, n.º 84: inventário de Antônio Quaresma Gomes, 1791, onde consta um pequeno patrimônio de somente 240$720 réis. Todavia, a sua filha Brites da Conceição – neta de Manuel Gonçalves Ribeiro – se casaria com um comerciante de certo vulto, o ajudante Manuel de Freitas Noronha, detentor de sortida loja na vila e relacionado com importantes homens de negócio no Rio de Janeiro. APML. Caixa 93, n.º 40, 41 e 58: inventário do Manuel de Freitas Noronha, 1781-1786. 119 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão termos patrimoniais, também foi relativamente bem-sucedido, pois deixou como herança dois sítios, mais algumas pequenas propriedades, além de oito escravos.13 Em contrapartida, os herdeiros que migraram para os Campos de Viamão não terminaram muito bem, conforme os dados disponíveis. Pelo menos isso é o que se depreende da leitura do inventário de Maria Rodrigues Moreira, a viúva (e segunda mulher) do finado Manuel Gonçalves Ribeiro. Nesse processo, os herdeiros residentes em Laguna pediam que os três irmãos residentes no Continente prestassem contas da fazenda que administravam em Viamão já fazia cerca de trinta anos. Realizado o inventário dos bens da “Fazenda da Boa Vista”, verificou-se que ela era composta por uma légua de campos (400$000 réis) e pouco mais de 500 animais vacuns e cavalares (464$000 réis). Ou seja, nada demais para os padrões sulrio-grandenses, onde as grandes estâncias tinham três ou mais léguas e milhares de cabeças, inclusive gado muar. Diante desses números, os herdeiros lagunenses solicitaram um “arbitramento das produções dos animais vacuns e cavalares”, o qual foi realizado pelo capitão João Antunes Pinto e por Antônio José de Alencastro, ambos moradores em Viamão. Os arbitradores concluíram que “desde o ano de 1762, em que se fez a última marcação [...] até o ano de 1788, devem haver de produções dos ditos animais vacuns 3.500 reses, e que dos animais cavalares não julgam haver produção alguma...”.14. A partir desse arbitramento, a situação se tornou complicada para os herdeiros moradores no Continente (na freguesia de Santo Antônio), filhos do segundo casamento de Manuel 13 APML. Caixa 19, n.º 207: inventário do capitão-mor Bartolomeu Fernandes de Souto Mayor, 1812. O monte-mor do capitão-mor alcançou a quantia de 1:582$680 réis. 14 APML. Caixa 116, n.º 74: inventário de Maria Rodrigues Moreira, 1788, fls. 17-18v e 26-26v. 120 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Gonçalves Ribeiro. Os três irmãos tiveram seus bens seqüestrados em observância de uma precatória vinda do Juízo de órfãos de Laguna, o que revelou a precariedade material em que viviam. Assim foi que “nas casas de morada do alferes Manuel Gonçalves Ribeiro [filho]” foram apreendidos “um catre, uma mesa já usada, um banco velho, uma canastra velha, uma caixa de quatro palmos já usada”, além de dois escravos e pouco mais de trinta animais. Quanto aos bens de raiz, foram tomados pelo alcaide “oitenta braças de terras com uma morada de casas coberta de capim, já usadas”. O irmão mais novo, Júlio Gonçalves Ribeiro, tinha bens ainda mais modestos, constituídos também por uma “morada de casas cobertas de capim”, alguns poucos móveis, 46 animais e um crioulinho de cinco anos. O único que se safou do seqüestro dos seus bens principais foi Francisco Jorge Ribeiro, que teve somente seus bens móveis apreendidos (entre eles um oratório e um tear), pois “não tinha mais bens que dar a esta penhora, por ter vendido o seu sítio onde mora e uma morada de casas que tem na freguesia, assim [como]também todos os seus animais de criar”.15 O que fica evidente nessas apreensões é o baixo nível material dos herdeiros que haviam migrado para a fronteira, embora deva ser considerada a precariedade da cultura material, mesmo entre os fazendeiros mais ricos. Diferentemente dos cunhados que permaneceram em Laguna, nenhum dos três irmãos parece ter tido maior destaque ou projeção social na nova terra. Pelo contrário, parece que eles sofreram um rebaixamento na escala social. Veja-se o caso de Manuel Gonçalves Ribeiro [filho], por exemplo, que não herdou nem a riqueza nem tampouco o prestígio do seu pai. Quando ele se casou, no ano de 1784, sua habilitação matrimonial registrou uma relação de concubinato bastante longa, da qual já tinha sete filhos. Deta- 15 APML.doc. cit., fls. 29-32. 121 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão lhe importante: a sua mulher, Antônia Inácia de Mendonça, era neta de um grande fazendeiro local com uma escrava africana, o que lhe conferia o estatuto de “parda forra”, que não era certamente dos mais valorizados naquela sociedade. Não fosse a pressão exercida pelo visitador eclesiástico, talvez esse casamento não tivesse ocorrido, conforme consta do processo de casamento. Nele também constava que “o orador [Manuel] é pobre, porque de seu não tem mais do que dois escravos, e um destes já muito velho, vinte vacas e dezesseis éguas, sem terra de qualidade alguma”. Porém, ele era “trabalhador, tem indústria, e com seu braço pode muito bem adquirir com que a trate [...] e quando não, lhe será dificultoso achar outra pessoa que com ela [Antônia] queira tomar estado, a não ser o orador, e que o faz com os olhos em Deus, e sem atender à inferior condição dela oradora, que é mulher parda”.16 Portanto, como já foi afirmado, nem sempre era o melhor negócio migrar para a fronteira. Como ponderou Bacellar, para o caso de São Paulo colonial, devido às estratégias familiares da elite agrária, a fronteira era vista como uma “válvula de escape”, pois os excluídos da herança (no caso, os engenhos de açúcar) vendiam a sua parte e migravam para outras terras. Esse mesmo autor chamou a atenção para o fato de que os que migravam em geral eram bem-sucedidos, e não necessariamente era o que se dava com quem ficava com o engenho paterno. Ora, isso parece não ter ocorrido da mesma forma nesta fronteira, ao menos nos casos dessas famílias da elite lagunense que estou analisando. Os casos estudados a seguir parecem confirmar ao menos parcialmente essa tendência. 16 AHCMPA.Autos de Justificação de premissas de Manuel Gonçalves Ribeiro & Antônia Ignácia Pereira de Mendonça, 1783. In: NEIS, op. cit., pp. 139-140. 122 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas A família Guterres Entre os precursores do povoamento dos Campos de Viamão estava o valenciano Agostinho Guterrez, aportuguesado como Guterres. Ele foi casado com Maria de Brito Peixoto, que era filha do capitão-mor Francisco de Brito Peixoto com uma índia administrada. Apesar de sua origem hispânica (era natural do reino de Valência), Guterres teria sido vereador na Câmara de Laguna em 1723, o que não deve surpreender, levando-se em conta a falta de homens minimamente esclarecidos na vila. Vários anos mais tarde ele se mudaria para os Campos de Viamão, provavelmente por influência do seu filho mais velho, Cláudio. De acordo com o que indica a documentação paroquial, Guterres somente teria se instalado definitivamente em Viamão em torno de 1752. Antes disso, teria auxiliado os desbravadores dos caminhos sulinos, pois, como testemunha do processo de justificação de Manuel de Barros Pereira (1759), Guterres afirmou que “o conhece[ia] há perto de trinta anos, quando foram pelo sertão com Cristóvão Pereira abrindo o caminho”. O referido caminho era a “estrada dos tropeiros”, o caminho de Viamão, que passava pela Guarda Velha (Santo Antônio da Patrulha) e subia a serra.17 Em 1736, durante o cerco espanhol à Colônia de Sacramento, foi um dos fazendeiros lagunenses que mais contribuiu com o auxílio à vila sitiada, tendo vendido 100 cabeças do seu rebanho à Fazenda Real.18 17 Sobre a abertura do caminho das tropas e a atuação de Cristóvão Pereira de Abreu, ver HAMEISTER, Martha D. O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e mercadorias semoventes (c.1727-c.1763). Rio de Janeiro: PPG-História/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 2002. pp. 109-132. 18 Cf. CABRAL, Osvaldo R. “Notas históricas sobre a fundação da póvoa de Santo Antônio dos Anjos da Laguna”Santo Antônio dos Anjos da Laguna – seus valores históricos e humanos. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 1976. p. 60; NEIS, op. cit., pp. 67 e 79 e GALVÃO, op. cit.,p. 38. 123 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão O seu nome vem citado na carta de sesmaria de João de Magalhães (outro dos pioneiros de Viamão), sendo Guterres o confrontante pelo lado Sudoeste. Possuía uma pequena propriedade, para os padrões locais, de cerca de meia légua quadrada, que ocupava com lavouras e criação de gado. Faleceu em Viamão no ano de 1763, com testamento redigido no final do ano anterior. Nessa sua última vontade, pediu que seu genro Domingos de Araújo fosse seu testamenteiro e determinou que seu sepultamento fosse acompanhado das irmandades do Santíssimo e das Almas, das quais era irmão. Deixou alguns pequenos legados para afilhados e seus netos, mandando que “se houver remanescentes da dita minha terça, cumpridos todos os legados e esmolas nomeadas, deixo à minha filha Luzia”, que naquele ano (1763) se casaria com seu primo, o capitão José da Fonseca Peixoto. Declarou ainda as doações que fez às filhas que tinha casado até então e também ao filho Sebastião, que foi para o “Sertão”. Definitivamente, não era rico, considerados os parâmetros existentes em Viamão, pois declarou possuir somente 250 reses de gado [vacum] xucro, 100 cabeças de gado [vacum] manso, 10 cavalos mansos e 6 éguas mansas, além de juntas de bois, provavelmente usadas nas plantações que cultivava. As terras não são citadas, talvez pelo fato de ele ter apenas a posse delas.19 Em termos de estratégia matrimonial, as opções da família Guterres não foram as melhores, consideradas as condições de reprodução social vigentes. Consegui identificar nove descendentes de Agostinho Guterres, cinco mulheres e quatro homens. Ao contrário dos Gonçalves Ribeiro (que se mantiveram fortemente vinculados à vila de Laguna), aqui há um caso de migração de todos os ramos familiares. Ou seja, tanto os 19 AHCMPA. Livro de registro de róis e testamentos (1758-1763): Testamento de Agostinho Guterres. Viamão, 20.12.1762. 124 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas filhos homens migraram para a fronteira quanto seus cunhados e irmãs. No caso dos Guterres, o precursor parece ter sido o filho mais velho de Agostinho, o já citado Cláudio. Como condutor de tropas, parece ter sido o primogênito o primeiro a vir para os Campos de Viamão, ainda na década de 1740. Agostinho, no entanto, só viria a se instalar definitivamente depois de 1752, casando a maior parte das suas filhas na nova freguesia da Capela. Apenas sua filha mais velha, Quitéria (n.1722), teria se casado em Laguna, sendo que as demais teriam contraído matrimônio na fronteira. Talvez por não ter ficado na vila, Agostinho Guterres não obteve o ingresso no seu núcleo familiar de genros muito “qualificados”. A filha mais velha casou (ainda na vila) com o mascate Domingos de Araújo, que longe estava de ser um poderoso “homem de negócio”. Em 1753, Agostinho casou a primeira filha em Viamão, quando aconteceu o matrimônio de Ana Guterres (Aninha) com Manuel Soares Pinto, que na sua origem fora marinheiro, “vindo e voltando nas frotas”. O emigrado valenciano casou ainda outras três filhas: Ana, com o açoriano Antônio Cardoso da Silva (1757); Luzia, com o seu primo José da Fonseca Peixoto (1763); e Catarina, da qual não sei nem a data do matrimônio nem o nome do cônjuge. Todas essas filhas são citadas no testamento e receberam como dotes ou doações algumas cabeças de gado (variando de vinte a oitenta reses). Desses quatro genros de que temos informação, o único que teria uma posição de maior destaque seria o capitão José da Fonseca Peixoto, filho de Diogo da Fonseca (um dos “homens principais” da vila de Laguna) e Ana da Guerra, outra filha do capitão-mor Brito Peixoto. Não por acaso, ele teria um monte-mor relativamente apreciável. De toda forma, as evidências patrimoniais não são alvissareiras: em um censo paroquial de 1778, por exemplo, os genros de Agostinho aparecem como médios proprietários de escravos, possuindo de seis a sete cativos somente. Também não encon- 125 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão tramos os seus nomes nos cargos da república, seja como oficiais da Câmara local ou mesmo como ordenanças.20 Quanto aos filhos homens, apenas o primogênito parece ter seguido uma estratégia mais apropriada, na medida em que estabeleceu uma aliança matrimonial com a família Robalo, oriunda de Sorocaba. Essas ligações já foram evidenciadas no trabalho de Hameister21, embora deva ser ressalvado que Cláudio Guterres e outros lagunenses aparentemente casaram-se com ramos empobrecidos das famílias sorocabanas. As habilitações matrimoniais são todas claras quanto a isso, salvo se os depoimentos tiverem sido falsos, visando alcançar as dispensas necessárias. No processo de casamento de Antônio de Santos Robalo (cunhado de Cláudio), uma testemunha afirmou que o justificante (noivo) era “muito pobre” e que sua família “o não poderá tratar e para haver de fazer alguma roupa com que cubra as carnes é necessário andar trabalhando de jornal”. Trabalhar como jornaleiro não era propriamente uma atividade indicada para um filho das “melhores famílias da terra”, o que indica – se acreditamos no documento – a falta de meios dessa família. Também no casamento de Benta dos Santos Robalo (também cunhada de Cláudio), a pobreza da noiva foi mencionada por uma testemunha, que afirmou “que a dita depoente [Benta] é órfã de pai e vivia pobre e padecia alguma infâmia por entrar em comunicação em casa dela o depoente [o noivo]”.22 O que se quer deixar claro é que as famílias lagunenses (entre elas 20 AHCMPA. AUTOS de justificação e matrimônio de Manuel Soares & Ana Guterres: 1753/21, Antônio Cardoso da Silva & Maria de Brito: 1757/19 e José da Fonseca Peixoto & Luísa de Brito Peixoto:1763/15 (inclui autos de dispensa de impedimento); ROL de confessados de Viamão, 1778. 21 HAMEISTER,2002, pp. 139-140. 22 AHCMPA. AUTOS de justificação e matrimônio de Antônio dos Santos Robalo & Luzia Moreira: 1755/13 (inclui autos de dispensa) e Jerônimo Pais de Barros & Benta dos Santos Robalo: 1757/18 (inclui autos de dispensa de impedimento). Antônio e Benta eram filhos do casal formado por Manuel dos Santos Robalo e Maria Moreira Maciel. Esta última era filha do coronel Antônio 126 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas os Guterres) não seriam as opções preferenciais das famílias da elite sorocabana, muito embora possam ter ocorrido algumas alianças matrimoniais no período em que o comércio ganadeiro esteve em alta. Conforme apontou Bacellar, “as primeiras gerações [da elite de Sorocaba], entre as décadas de 1730 e 1790, fortaleceram-se na atividade comercial, fosse com gado, fosse com fazenda seca”. Depois de 1790, as alianças matrimoniais seriam feitas preferentemente com as ricas famílias de Itu.23 Até onde sei,Manuel dos Santos Robalo, o sogro de Cláudio, não era membro destacado da elite local, daí a suposta opção pelas alianças com a elite lagunense. O fato é que Cláudio casou-se (provavelmente entre 1745 e 1746) com Gertrudes dos Santos, uma das filhas de Robalo, que provavelmente conheceu em suas atividades de condutor de tropas. O filho de Agostinho Guterres foi homem de certo destaque na vila de Laguna, onde exerceu a função de escrivão do juízo eclesiástico (1743 a 1745), o que nos indica, pelo menos, um certo luzimento. Segundo Ruben Neis, ele teria vindo para Viamão, residindo na região das Lombas, em 1746. Manteve, contudo, os contatos com a vila, empregando os recursos que amealhou com os negócios de gado na aquisição de escravos, como nos indica uma arrematação feita em Laguna, em 1748. Nesse ano, ele adquiriu o escravo Francisco pela quantia de 55$000 réis. Instalado em Viamão, começou a batizar seus filhos em 1749, se tornando na nova freguesia um dos grandes proprietários de cativos, considerados os padrões locais. Embora tenhamos uma série bastante significativa de róis de confessados da freguesia de Viamão, o tenente Cláudio Guterres Antunes Maciel, que comandou uma companhia de ordenanças de Sorocaba, tendo sido ainda um dos descobridores das minas de Cuiabá. Cf. LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana. Livro 1. pp.268-269 (edição eletrônica). 23 BACELLAR, Carlos A. P. Viver e sobreviver em uma vila colonial – Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São Paulo:Annablume/Fapesp, 2001. p. 109. 127 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão pouco aparece neles. Em 1751, poucos anos após ter se mudado, vivia com a mulher e mais uma filha, sendo que o restante do registro está corroído, o que impede saber o seu número de escravos. Recebeu sua carta de sesmaria em 1755, concessão que o seu pai, Agostinho, não obtivera (ou sequer solicitara). Muito anos depois, já no fim da sua vida, em 1780, Cláudio mantinha na sua fazenda das Lombas quinze escravos, além de cinco agregados.24 Não consta que tenha sido oficial da Câmara em Viamão, tampouco em Porto Alegre. Em termos de postos militares, o máximo que alcançou foi a posição de capitão de cavalaria das ordenanças de Viamão – posição importante, sem dúvida, mas bastante circunscrita. Sua trajetória não deve ser subestimada, no entanto, pois em comparação com seu pai, Cláudio Guterres, foi muito bem-sucedido, não tanto quanto os Pinto Bandeira, mas ainda assim digno de nota. Toda a diferença residiria na natureza das alianças matrimoniais efetuadas, como pretendo deixar claro ao longo deste trabalho. De todo modo, quando faleceu, em 1785, esse neto do capitão-mor Brito Peixoto, se não fazia parte da elite política de Viamão, ao menos compunha sua elite econômica, tendo atingido um patrimônio próximo a três contos de réis. Nada estupendo, considerandose que as grandes fortunas locais ultrapassavam freqüentemente os dez ou vinte contos de réis no século XVIII, mas o suficiente para posicioná-lo nos estratos inferiores da elite local (em termos patrimoniais). Os elementos encontrados em seu inventário nos dão indicações de que procurava destacar-se naquela sociedade, particularmente através da vestimenta. Daí que fosse dono de botões de ouro e fivelas e esporas de prata, além de 24 NEIS, Ruben. Guarda Velha de Viamão. Porto Alegre: Sulina, 1975. pp. 25-30 e 109; APML. Caixa 40, s/n.º: inventário de Manuel da Silva Reis, 1748, fl. 25v; AHCMPA. 1.º Livro de Batismos de Viamão (1747-1759) e róis de confessados de Viamão, 1751 e 1780; RAPM, v.XXIV, 1933. pp. 206-207. 128 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas roupas como “uma farda nova de pano azul fino, forrado de encarnado com cabos encarnados, véstia e calção azul com botões amarelos com dragona de ouro e a véstia espiguilhada”. Possuía ainda uma cabeleira nova, talvez para disfarçar uma eventual calvície, resultante do avanço dos anos (ele morreu com cerca de 64 anos). O capitão Cláudio tinha uma estância relativamente grande (1,5 X 0,5 léguas), povoada com cerca de 1500 animais, sendo principalmente criador de gado vacum, embora também criasse mulas e ovelhas. Em contraste com o cuidado que dispensava à aparência, as suas condições de residência eram precárias, pois constava somente de “uma casa na dita fazenda em que mora de pau-apique, cobertas de capim”, que foram avaliadas em somente 38$400 réis. Nada de casas na vila de Porto Alegre ou no arraial de Viamão, muito embora no passado ele tivesse uma casa sita em terreno de dez braças foreiro à Irmandade de Nossa Senhora de Conceição de Viamão. É provável que, devido à decadência em que entrou o núcleo urbano de Viamão depois de 1773, Cláudio tenha vendido ou simplesmente abandonado essa morada. Os bens de Cláudio Guterres acabariam sendo disputados judicialmente, já que ele deixou nada menos do que treze filhos herdeiros, sendo sete do primeiro casamento com Gertrudes dos Santos Robalo e seis do segundo matrimônio (ocorrido em 1774), com Catarina Maria da Anunciação. Como típico representante do Antigo Regime demográfico, Cláudio foi pai de vinte crianças, das quais dois terços sobreviviam no momento da partilha.25 25 APRS. 1.º Cartório de Órfãos de Porto Alegre, maço 4, n.º 38: inventário de Cláudio Guterres, 1785; AHCMPA. Livro de aforamentos da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Viamão e 1.º Livro de óbitos de Viamão (174811777), fl. 37v; LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana.V. 10. p. 1134. O denominado “antigo regime demográfico” era caracterizado pelas altas taxas de fecundidade e natalidade, assim como pelos elevados índices de mortalidade da população infantil. Para maiores detalhes, ver FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Lisboa: Editorial Estampa, 1992. pp. 187-222. 129 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão Quadro 3: Patrimônio de Agostinho Guterres e seus descendentes Inventariado e ano do Inventário Monte-mor 1.1) Agostinho Guterres26 –1763 727$000 (somatório dos bens constantes no seu testamento) 2.1) Cláudio Guterres – 1785 (filho de Agostinho) % N.º de Dívidas escravos - 02 2:846$590 11 13 2.2) José da Fonseca Peixoto – 1793 (genro, casado com Luzia Guterres) 1:798$300 2,7 05 2.3) Ana Maria Guterres –1807 (filha de Agostinho) 1:714$320 - 09 3.1) Thomas Luiz Guterres – 1811 (neto, filho de Cláudio Guterres) 4:467$064 6,7 10 3.2) Salvador dos Santos Guterres – 1816 (neto, filho de Cláudio Guterres) 821$280 - 04 3.3) Sargento-mor Francisco dos Santos Guterres – 1833 (neto, filho de Cláudio Guterres) 12:977$440 0,8 13 Fontes: AHCMPA. Livro de registro de testamentos; APRS. 1.º Cartório de Órfãos de Porto Alegre: Inventários e testamentos. Quanto aos demais filhos homens de Agostinho Guterres, diferentemente das filhas, mantiveram-se, ao que parece, na mesma posição social do seu progenitor, até mesmo numa situação um pouco inferiorizada, se levarmos em conta os in- 26 No testamento de Agostinho não há referência a escravos. No entanto, como o documento está muito danificado, pode ter havido alguma perda de informação. Em um dos róis de Viamão da década de 1750, viviam no seu fogo duas indígenas “administradas”. Como a escravidão indígena estava proibida na altura do seu falecimento, talvez essas cativas tenham sido mesmo omitidas. Cf. AHCMPA. Rol de confessados de Viamão, 1756. 130 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas dícios patrimoniais disponíveis. Na Relação de Moradores de Viamão de 1785, dois desses filhos, Felipe e Francisco, juntamente com mais dois cunhados seus, possuíam um “Campo que teria uma légua por ½ légua, que lhes ficara por falecimento de seus pais [...] que foram dos primeiros povoadores de Viamão”. Constava ainda que viviam de lavouras e criação e teriam, entre todos, 690 reses, 10 bois, 20 cavalos, 150 éguas, 18 potros e 3 burras. Portanto, eram somente pequenos criadores de gado e agricultores que fizeram casamentos provavelmente modestos. Em 1778, por exemplo, Felipe tinha somente três escravos; dois anos depois (1780), o seu irmão Francisco era registrado como “agregado” do seu cunhado, o capitão José da Fonseca Peixoto, o que denotava sua condição inferior na escala social. Ainda havia o filho Sebastião, que aparece no testamento de Agostinho (1762) como tendo ganho do seu pai “vinte e duas reses, que levou para o Sertão”. Parece não ter se casado, embora os registros paroquiais assinalem a existência de uma filha bastarda, havida com uma indígena missioneira.27 No entanto, aprofundando a análise geracional dessa família, vemos que os netos de Agostinho, descendentes de Cláudio, mantém uma posição de certo destaque naquela sociedade (particularmente na freguesia de Viamão). Seriam os casos de Tomás Luiz Guterres e Francisco dos Santos Guterres. Tomás aparecia na relação de moradores de 1797, morando em “um quarto de campo herdado de seus pais” e tinha cinco escravos, além de um rebanho próximo a mil cabeças de gado, incluindo trinta bestas muares, o que mostra seu envolvimento no lucrativo negócio de criação de mulas. Quatorze anos mais tarde, por ocasião do seu inventário, seu plantel de escravos tinha dobra- 27 AHRS. Relação de moradores de Viamão, 1785; AHCMPA. Róis de confessados de Viamão, 1778 e 1780 e AUTOSde justificação e matrimônio de Félix Rodrigues Fernandes & Cristina Guterres: 1759/7. 131 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão do, sendo ele ainda proprietário de duas moradas de casas e uma estância. Tornara-se um próspero fazendeiro, com certeza. Já o seu irmão mais moço, Francisco, teve uma trajetória ainda mais bem-sucedida. Se, no final do século XVIII, ele constava como proprietário de somente dois escravos e tinha pouco mais de trezentos animais (entre eles, o que é significativo, três burros echores), quando faleceu em 1833, em pleno período regencial, ele ocupava o posto de sargento-mor, sendo dono de treze cativos, quase seiscentas cabeças de gado, além de duas casas, uma olaria e dois campos (um no Passo do Feijó e outro no Passo do Vigário). Ou seja, apesar dos pesares, no caso da família Guterres, houve a permanência de pelo menos alguns dos seus membros nas camadas superiores daquela sociedade, o que não ocorreu com outras famílias originárias de Laguna.28 A família Magalhães Não poderia encerrar esta descrição das famílias que migraram para os Campos de Viamão sem incluir a história de João de Magalhães, ele que encarnaria o protótipo do desbravador ou conquistador à perfeição. Resta agora compreender quais foram asestratégias matrimoniais desse pioneiro, que da mesma forma que seu cunhado Agostinho Guterres transferiuse com toda a sua família para os Campos de Viamão. Com o falecimento de Francisco Brito Peixoto em 1735, João de Magalhães deve ter sido tentado a migrar para os Campos de Viamão. Todavia, manteve-se bastante vinculado à vila de Laguna, onde manteve posição de certo destaque, constando como juiz ordinário ainda em 1750. Parece que somente na 28 APRS. 1.º Cartório de Órfãos de Porto Alegre, maço 20, n.º 432: inventário de Tomás Luiz Guterres, 1811 e maço 52, n.º 1120: inventário de Francisco dos Santos Guterres, 1833; AHRS. Relação de moradores de Viamão, 1797. 132 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas segunda metade do século XVIII ele se fixou definitivamente na nova freguesia, desligando-se do pequeno núcleo urbano catarinense. Quando veio residir em Viamão, o minhoto João de Magalhães já estava casado pela segunda vez, agora com Maria Moreira Maciel, também viúva. Portanto, podemos dividir a sua trajetória em duas fases bem distintas: a primeira delas estreitamente vinculada à vila de Laguna, onde desposou uma filha natural do capitão-mor Brito Peixoto. Ana de Brito, que foi a sua primeira mulher, faleceu em torno de 1738, o que provavelmente levou Magalhães a estabelecer novas relações, particularmente com a família Maciel, residente em Sorocaba. Na verdade, os vínculos que ligaram ambas as famílias remontam pelo menos ao ano de 1741, quando o seu filho mais velho (João de Magalhães, o moço) casou-se com Joana Garcia Maciel, irmã da sua segunda mulher. Em 1745, por seu turno, Maria Moreira Maciel enviuvou do seu primeiro marido, o capitão Manuel dos Santos Robalo, o que abriu a possibilidade do recasamento para ambos.29 Antes de analisar o resultado desse matrimônio, no entanto, é necessário esclarecer alguns pontos referentes à origem social de Maria Moreira Maciel. A historiografia recente ao que parece vem incorrendo em um erro ao afirmar que Maria Maciel seria filha e neta de capitães-mores de Sorocaba ou ainda que o próprio Manuel dos Santos Robalo, seu primeiro marido, fosse capitão-mor.30 Segundo as evidências de que disponho, isso não seria verdadeiro, pois de fato Maria provinha de 29 CABRAL, op. cit. p. 211; LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana.v. 1. pp. 269-270 (edição eletrônica); GUIMARÃES, João Pinto. “João de Magalhães e sua descendência”. In: RIHGRGS, n.º 117-120, 1950. pp. 243-264. 30 SCHNOOR, Eduardo. “Os Senhores dos Caminhos: a elite na transição para o século XIX”. In: DEL PRIORE, Mary (org.) Revisão do Paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro:Campus, 2000. p. 192 e HAMEISTER, 2002,p. 138. 133 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão famílias importantes, embora seus progenitores e ascendentes diretos não tenham exercido o referido cargo. Ela era sim sobrinha de um capitão-mor, Gabriel Antunes Maciel, irmão do seu pai, o coronel Antônio Antunes Maciel. Quanto a Manuel dos Santos Robalo, não era sequer “paulista”, mas natural de Braga, coincidentemente a mesma cidade de origem de João de Magalhães. Sua patente mais elevada parece ter sido a de capitão de ordenanças. Pelo lado materno, Maria era neta do capitão-mor Brás Mendes Pais, que, entretanto, não parece ter sido capitão-mor da vila, mas sim somente de uma bandeira que esteve nos campos da Vacaria. Tratava-se, até evidência em contrário, de um ramo empobrecido da elite sorocabana que se enlaçou com diversas famílias residentes em Laguna. Não somente com os Magalhães, mas também com os Guterres (como já foi apontado) e os Brás. Portanto, tratava-se de alianças matrimoniais que envolveram esse ramo decadente da elite sorocabana com as supostamente “melhores famílias da terra” da vila de Laguna. O motivo dessa associação fora originalmente uma decorrência natural das atividades envolvendo o tropeirismo, bastante praticadas pelo lagunenses, que acabou os levando até Sorocaba para a realização dos seus negócios com gado.31 Voltando ao caso específico de João de Magalhães, o velho, cabe lembrar que ele se casou com a própria Maria Moreira Maciel, certamente após 1745, quando esta veio para Lagu- 31 LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana.v. 1. pp. 259 e 264 e v. 8. pp. 224-226 (edição eletrônica); AHCMPA. AUTOS de Justificação e Matrimôniode Antônio Alves Paiva & Andreza Veloso Maciel: 1762/ 2 (inclui autos de dispensa). Para uma análise dos procedimentos envolvendo o recrutamento de cônjuges das famílias paulistas coloniais, ver CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2003. pp. 90-159. Segundo essa autora, existiriam três critérios seletivos básicos: a seleção biológica, onde eram levados em conta aspectos tais como a idade, a aparência física e a etnia; a seleção econômica, centrada na prática do dote visando à “capitalização” do matrimônio; e a seleção social, norteada pela busca de alianças como fonte de prestígio e poder. 134 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas na. Em seguida, o novo núcleo familiar teria vindo para Viamão,32 sendo que, juntamente com o casal, vieram para a nova freguesia todos os filhos de Maria Moreira Maciel com seu primeiro marido, além das suas irmãs Joana (casada com João de Magalhães, o moço) e Ana (casada com Francisco Rodrigues Machado). Para completar a migração em massa desse novo núcleo familiar, também vieram para Viamão a maioria dos filhos do primeiro matrimônio do comandante da “frota” de 1725. Ou seja, somente no caso desta família lagunense-sorocabana, vieram para Viamão nas décadas de 1740 e 1750 mais de vinte pessoas adultas (muitas já casadas), todas aparentadas entre si, sem contar os filhos menores desses casais, os netos descendentes de Maria Moreira Maciel e João de Magalhães. No que tange às estratégias matrimoniais empreendidas pela família Magalhães, o que ficou clara foi uma certa diminuição da sua posição social quando da migração da vila de Laguna para o arraial de Viamão. Se, na vila catarinense, Magalhães era o conhecido genro do capitão-mor Francisco de Brito Peixoto, o intrépido desbravador do Continente, no acanhado arraial ele se tornaria um modesto fazendeiro, com uma história familiar pautada por um certo escândalo e pelo evidente desprestígio. Porém, antes de avançar em direção aos Campos de Viamão, vamos analisar quais foram os genros que João de Magalhães conseguiu obter para suas filhas, ainda quando residia na vila catarinense. Nesse sentido, ao que parece, somente sua filha Francisca fez um matrimônio que possibilitou a manutenção do status de “elite”. Uma elite modestíssima 32 No depoimento que deu no seu processo de casamento, Benta Robalo afirmou que “veio em companhia de sua mãe [Maria Moreira Maciel] por falecimento de seu pai [Manuel dos Santos Robalo] para a vila de Laguna, aonde esteve pouco tempo, pouco mais ou menos seis meses, e da dita vila viera para estes campos [de Viamão] em companhia da sua mãe, aonde está vivendo”. AHCMPA. AUTOS de Justificação e Matrimônio de Jerônimo Pais de Barros & Benta dos Santos Robalo, 1757/18. 135 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão por certo, mas ainda assim a elite possível naquele contexto. O casamento de Francisca Velosa de Magalhães com Manuel da Silva Reis, ocorrido em 1738, mostrava o prestígio ainda relativamente intacto do seu pai àquela altura, na medida em que seu novo genro com certeza fazia figura entre os principais da sua terra. Segundo os dados do seu testamento (redigido em 1747), era proprietário de sete escravos, divididos entre as duas moradas de casas cobertas de telha, sitas na vila, e um sítio nas imediações, onde tinha canaviais e plantas de mantimentos. Possuía ainda quatro canoas, redes e fábrica de pescados. Apesar de residente em Laguna, era também dono de “uma fazenda nos Campos de Viamão com trezentas vacas e quatrocentas éguas”, que eram cuidadas por um escravo, “o moleque Antônio”. Ele próprio declarou que possuía um patrimônio de cerca de 3.000 cruzados, quantia significativa em meados do século XVIII. Sendo homem distinto naquela sociedade, Manuel da Silva Reis também era membro da Ordem Terceira local. Com a sua morte em 1748, a viúva Francisca contraiu segundas núpcias com Antônio José Viegas, que havia sido nomeado tutor do órfão resultante daquela primeira união.33 Com a mudança para os Campos de Viamão, começaria uma nova etapa na história familiar de João de Magalhães. Em 1747 seria criada a freguesia de Viamão, o que possibilitaria a produção dos diversos tipos de registro paroquial (termos de eventos vitais, habilitações matrimoniais e processos do juízo eclesiástico) que nos contam a trajetória de decadência do “último bandeirante”. A saída de Laguna fora acompanhada por seus genros Antônio José Viegas e João de Azevedo, ambos moradores da vila, que vieram para Viamão na virada da primeira para a segunda metade do século XVIII. No caso de Vie33 APML. Caixa 40, s/n.º: inventário e testamento de Manuel da Silva Reis, 1748. Conforme os dados da partilha, o monte-moratingiu 1:410$280 réis. 34 APML.Doc. cit., fl. 25v. 136 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas gas, era um homem de alguma posição em Laguna, pois ainda em 1748 aparecia arrematando uma escrava do espólio de Manuel da Silva Reis.34 O que interessa é que Viegas se tornaria genro de Magalhães e um dos primeiros povoadores de Viamão. Tinha o típico perfil dos lagunenses: embora fosse português (natural de Guimarães), era casado em família tradicional da vila, com uma neta de um capitão-mor. Completando a caracterização, ele também estava imbuído do espírito migratório, típico dessa “gente da fronteira” da parte meridional da América Portuguesa. Tinha meia dúzia de escravos, alguns deles “administrados”, e criava gado na região de Boa Vista, distrito de Viamão. A posse das terras que ocupava gerou uma certa animosidade entre Viegas e seu sogro, que em 1755 tiveram que acertar as coisas através de uma “escritura de composição”, onde rezava que: Pelo dito João de Magalhães e sua mulher [foi dito] que eles haviam tirado uma carta de sesmaria pelo Il.mo e Ex.mo Mestre-de-Campo e General Gomes Freire de Andrada das terras da Estância chamada Campos da Boa Vista e morro de São Pedro, a cuja carta de sesmaria se opunha o dito Antônio José Viegas por si e como cabeça da dita sua mulher, por dizerem lhes pertenciam os tais campos por se acharem neles situados e moradores e lhe terem sido dados em folha de partilha e que por evitarem contendas e pleitos de justiça e ficar a dita carta de sesmaria em seu vigor e poder ser confirmada para título das ditas terras, tanto das que por esta escritura ficam pertencendo da parte do dito Antônio José Viegas e sua mulher, como as que ficam tocando ao dito João de Magalhães e sua mulher...35 Portanto, a própria transferência para Viamão seria, em parte, litigiosa. É verdade que foi feita essa “composição” que resguardou os supostos direitos do genro de João de Magalhães, mas a própria necessidade deste registro revela o grau de ten35 APRS. 1.º Notariado, livro 2 (1766-1769), fl. 130v-133; APRS. 1.º Cartório de Órfãos de Porto Alegre, maço 5, n.º 45: inventário de João de Magalhães, 1771, fl. 40v-44v. 137 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão são que poderia haver nas relações intrafamiliares. Aliás, o problema da falta de terra era essencial para esses primeiros povoadores, pois significava a possibilidade de instalação de uma fazenda ou estância de gado. No que tange ao outro genro mencionado, João de Azevedo,parece que não possuía terras próprias ou ao menos não as menciona no seu inventário, que era composto em dois terços do seu valor por três escravos e uma casa de pedra no arraial de Viamão, alugadas como casa de residência do governador. Outro que não teria terras próprias era o genro Salvador Pinto Bandeira, que havia recebido as que ocupava através de uma “esmola” do cunhado Antônio José Viegas.36 Deve ser ressaltado, nessa altura, que, considerando as trajetórias dos genros de João de Magalhães em Viamão, muito dificilmente eles poderiam ser enquadrados na elite local, seja quanto ao patrimônio ou no que tange ao seu prestígio social. O próprio Magalhães era homem de reduzida importância naquela sociedade, quer consideremos sua fortuna ou sua projeção política ou social. O fato é que os indícios disponíveis apontam para uma perda de status, que levaria o nome da família às raias da infâmia. O decréscimo da fortuna familiar foi evidente entre todos os descendentes, pois nenhum dos filhos ou filhas e genros conseguiu ter um patrimônio avaliado em mais de um conto de réis (exceto Manuel da Silva Reis, mas este era morador em Laguna, nunca tendo residido em Viamão). Tampouco foram grandes proprietários de escravos. Se os genros de Magalhães não reproduziram o status que a família supostamente gozava em Laguna, essa tarefa também não foi alcançada pelos seus filhos homens, que não passaram 36 APRS. 1.º Cartório de Órfãos de Porto Alegre, maço 2, n.º 11: inventário de João de Azevedo, 1767 e maço 5, n.º 45: inventário de João de Magalhães, 1771, fl. 39v. 138 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas de pequenos proprietários de terras e escravos. Assim sucedeu com os filhos Francisco (dono de um escravo, 66 cabeças de gado e uma chácara) e Lucas (três escravos, 362 animais e um pedaço de campo comprado), que tiveram que se mudar para a freguesia de Rio Pardo, juntamente com a madrasta e a meiairmã Andreza. A menor sorte do filho Francisco poderia ser creditada a uma aliança matrimonial equivocada, que acabou levando a um casamento com cônjuge de menor condição social. Pelo menos é isso que se depreende da sua habilitação matrimonial, onde constava que “os parentes do contraente [Francisco] fazem grandes diligências para impedir-lhe o matrimônio com o pretexto de desigualdade das pessoas”. Talvez ainda ciosos da sua posição social, o casal Magalhães procurou evitar que Francisco casasse com Rita Maria da Conceição, uma filha natural que vivia amancebada com seu futuro marido, fato que havia gerado um “impedimento de afinidade de cópula ilícita”, que foi prontamente dispensado pelo vigário de Viamão. No caso de Lucas, a aliança matrimonial certamente foi bem mais agradável à família, na medida em que ele se casou com Maria Pires, filha de Joana Garcia Maciel, uma irmã de Maria Moreira Maciel que se casou com o filho primogênito homônimo do velho Magalhães.37 37 APRS. 1.º Cartório de Órfãos de Rio Pardo. Maço 2, n.º 35: inventário de Lucas de Magalhães, 1788 e maço 4, n.º 81, inventário de Francisco de Magalhães, 1803; AHCMPA. AUTOS de justificação e matrimônio de Francisco de Magalhães e Rita Maria da Conceição, 1753/13 (inclui autos de dispensa). 139 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão Quadro 4: Patrimônio de João de Magalhães e seus descendentes Inventariado e ano do Inventário Monte-mor 1.1) João de Magalhães – 1771 297$200 – 03 1.2) Maria Moreira Maciel – 1788 (2.ª esposa) 121$600 29,5 01 2.1) Manuel da Silva Reis – 1748 (genro, 1.º marido da filha Francisca Velosa de Magalhães) 1:410$280 12,5 08 2.2) João de Azevedo –1767 (genro, casado com a filha Maria de Magalhães) 507$840 6,0 03 2.3) Manuel Alves – 1779 (genro, casado com a filha Teodósia de Magalhães) 432$000 2,5 07 2.4) Lucas de Magalhães – 1788 (filho do 1.º casamento) 537$960 6,3 03 2.5) Francisco de Magalhães – 1803 (filho do 1.º casamento) 630$400 10 01 272$760 (somatório dos bens arrolados) – 02 2.6) Andreza Veloso Maciel –1786 (filha do 2.º casamento) % N.º de Dívidas escravos Fontes: APML e APRS. Inventários e testamentos. Um dos incidentes da história familiar que mais teria contribuído para o decréscimo da importância da família Magalhães em Viamão (e que de certa forma explica a migração de muitos dos seus herdeiros para Rio Pardo) foi o rumoroso caso envolvendo o filho mais velho de João de Magalhães, que por ter o mesmo nome do pai era conhecido como o “moço”. Fora ele o primeiro a estabelecer a aliança da família Magalhães com a família Maciel, pois consta que teria casado por volta de 1741 com a referida Joana Garcia Maciel. Esta também era viúva, assim como sua irmã Maria, que se casaria com “o velho” Magalhães poucos anos depois. Instalados em Viamão, esse 140 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas casal (“o moço” e Joana) seria protagonista de um escândalo que deve ter abalado o arraial. O entrevero, ocorrido em 1757, foi tão grande, que o Reverendo Vigário foi obrigado a fazer um “auto de denúncia” contra Joana, devido ao “escândalo público com que vive e desonesto procedimento”. Naquele ano, seu marido, “o moço”, encontrava-se ausente da freguesia, talvez conduzindo tropas, o que deve ter facilitado o procedimento pouco usual de Joana, supostamente oriunda de “boa família”. A lista de acusações feitas pelo pároco era bastante extensa: Seria “mulher de má língua e infamadora”; Seria “mulher de mau procedimento” (vive com escândalo e concubinada); Teria enviado seu filho do primeiro casamento, Manuel grosso, juntamente com um comparsa, para violentarem a mulher de Salvador Pinto (sua cunhada); Havia mandado “forçar e desonestar” as suas cunhadas, a mulher de João de Azevedo e a mulher de Antônio José Viegas; Tratava mal de uma índia “administrada” de sua propriedade, que obrigava a “usar mal de si” para lhe trazer dinheiro e aguardentes; Teria mantido cópula ilícita com seu filho Manuel Pires, “o grosso, por alcunha”; Seria suspeita de feitiçaria. Desse rol de acusações, interessam-nos aqui principalmente as que envolvem diretamente o núcleo familiar, revelando o nível de tensão que devia existir entre a parentela de João de Magalhães. Não queremos com isso minimizar as outras acusações, também bastante sérias, como a exploração abusiva da mão-de-obra indígena ou a prática do incesto e da feitiçaria. Mas, por questão de enfoque, prefiro me deter nas implicações familiares do processo. Feita essa ressalva, vale registrar que uma das testemunhas afirmou “que era notório que na vila de Sorocaba, donde ela [Joana] é natural, fora sempre escandalosa e de mau procedimento”. Portanto, ela teria seus antecedentes agravados com a mudança para Viamão, à medida que a migração familiar acentuou a convivência entre os membros 141 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão da parentela. O que importa é que esse incidente deve ter repercutido muito desfavoravelmente na trajetória da família, levando a uma nova migração para a fronteira, dessa vez em direção a Rio Pardo. O movimento certamente foi iniciado por Joana, que foi condenada pelo padre José Carlos da Silva à expulsão “desta freguesia, com pena de não retornar a ela”. Ao que parece, não retornou mesmo, pois faleceu em 1766 no presídio do Rio Pardo.38 A decadência da família Magalhães, ou pelo menos de seu patriarca, se tornaria evidente nos anos seguintes ao escândalo. No inventário de João de Magalhães, os bens descritos são muito modestos para alguém que supostamente fazia parte da elite. Tinha somente três escravos, sendo que um deles, de tão velho, sequer foi avaliado. Além disso tinha pouco mais de sessenta cabeças de gado, uma quantidade ínfima para os padrões locais, pelos quais os grandes fazendeiros tinham milhares de animais. Da sesmaria original que possuía, vimos que fizera doação de parte dela em 1755 ao seu genro Antônio José Viegas. Em 1768 fizera nova doação, agora ao genro Antônio Alves Paiva, casado com uma filha sua do segundo matrimônio. Assim, quando faleceu, somente detinha um campo de uma légua por um quarto de légua, onde tinha casas. Podia parecer muita coisa, mas cabe lembrar que Magalhães morreu ainda durante a conjuntura de guerra (1763-1776), quando as terras ainda valiam muito pouco no Continente. Daí que essa propriedade tivesse sido avaliada em somente duzentos mil réis. Nem mesmo os seus bens “urbanos” valiam muita coisa, pois os 38 AHCMPA. Processos de Juízo Eclesiástico. 1757, n.º 7. Para as punições, nos casos de crimes de feitiçaria, incesto e adultério, ver ORDENAÇÕES Filipinas, volume V, títulos 3, 17 e 25. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. pp. 6367, 99-102 e 117-122. Considerando o previsto no principal código legal português, a punição de Joana foi muito branda. 142 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas “quartos de casas muito velhas” que tinha no arraial de Viamão foram avaliados em somente 6$400 réis. Talvez o único resquício dos antigos tempos de grandeza fosse o pertencimento às confrarias existentes em Viamão, como as irmandades do Santíssimo e das Almas, além da Ordem Terceira de São Francisco. Ele pediu para ser sepultado no hábito franciscano e na capela da Venerável Ordem Terceira, em um último lampejo de busca de distinção. Mas isso é muito pouco para considerar que Magalhães tivesse reproduzido para si e para sua família o status que gozava na vila de Laguna. Na verdade, ele não detinha nenhum dos atributos essenciais da elite: riqueza, prestígio e poder. Seu patrimônio nunca fora avultado, seu renome deve ter ficado maculado com os escândalos envolvendo a família e, por fim, o acesso ao poder local, fosse na forma dos cargos nas ordenanças ou na Câmara, não foi exercido por nenhum membro dessa família em Viamão. Não se trata aqui de sina, nem de destino, mas sim de uma estratégia familiar que se mostrou inapropriada, com alianças matrimoniais que não possibilitaram a manutenção ou ampliação da posição social da família. Os casos analisados, mais do que serem modelares, sugerem uma certa tendência no padrão migratório dos lagunistas. Conforme foi dito acima, algumas famílias originárias da vila catarinense chegaram a atingir grande prosperidade e projeção social no Continente do Rio Grande (como os descendentes de Pinto Bandeira, por exemplo). Mas a maioria não pode manter o seu status social após a transferência para os Campos de Viamão, resultado de estratégias familiares que não foram plenamente bem sucedidas. A nova elite que se formava na capitania sulina no século XVIII teria uma configuração relativamente distinta, onde além de portugueses adventícios, se destacariam ramos de famílias oriundas da Colônia do Sacramento. 143 KÜHN, F. • Em busca dos Campos de Viamão Referências BACELLAR, Carlos A. P. Viver e sobreviver em uma vila colonial – Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São Paulo:Annablume/Fapesp, 2001. p. 109. CABRAL, A. Organização das Justiças na Colônia e no Império e a História da Comarca de Laguna. Porto Alegre: Estabelecimento Gráfico Santa Teresinha Ltda., 1955. pp.211-214. CABRAL, Osvaldo R. “Notas históricas sobre a fundação da póvoa de Santo Antônio dos Anjos da Laguna”Santo Antônio dos Anjos da Laguna – seus valores históricos e humanos. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 1976. CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2003. DUARTE, Manuel. “Os Gonçalves Ribeiro”. 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(Machado de Assis, in “Crisálidas”) Introdução Abandonar o próprio filho, deixar o bebê nas mãos do acaso, na porta de uma casa alheia ou em uma instituição que o abrigue. Parece-nos, com os olhos de hoje, um ato de tamanha crueldade. O que acontece é que atitudes como essas sempre estiveram presentes em nosso passado, tanto brasileiro, quanto em nosso mundo ocidental. Apenas variou nas suas formas e nas suas circunstâncias, famílias sempre abandonaram sua prole ao longo da história por diferentes motivos. E, ao condenarmos nossos antepassados, por vezes, não nos damos conta, de que não é raro nos depararmos com casos de abandono de bebês em nossos jornais diários. 146 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Se hoje usamos a expressão criança abandonada, dois séculos atrás se empregava os termos enjeitado ou exposto. Consultando o Diccionário da Língua Portugueza, organizado pelo filólogo Antônio de Morais Silva (1755-1824), a palavra Exposto aparece como uma derivação do verbo latino Exponére, que significa, dentre as várias acepções, “expor uma criança, engeital-a; Expor a vida, arriscal-a, pol-a em perigo”.1 O termo enjeitado aparece também como sinônimo, conforme o verbete do Vocabulario portuguez e latino de Raphael Bluteau: “Refutado. Não admitido. Egcitada criança (...) Engeitamento da criança”.2 No tomo dos adágios o termo enjeitado significa: Menino engeitado, he o que desamparado de seus pays, e exposto no adro de huma Igreja, ou deixado no lumiar de um Convento, ou de pessoa particular, ou depositado no campo a Deos, e à ventura...3 Ao final da Idade Média, a exposição ou o enjeitamento de bebês era um fenômeno tão abrangente que surgiram instituições de abrigo a essas crianças, conventos e hospitais que instalaram em suas estruturas a famosa roda dos expostos.4 Em Portugal, as Santas Casas de Misericórdia, constituídas pelas irmandades religiosas ou confrarias formadas por homens de grande poder aquisitivo e prestígio na sociedade portuguesa do Antigo Regime, ganhavam força, tornando-se a principal rede de assistência às crianças abandonadas. 1 MORAIS SILVA, A. Diccionário da Língua Portugueza. Lisboa: Empreza Litteraria Fluminense, 1798. v. 1, p. 877. 2 BLUTEAU, Rafael, Vocabulario portuguez e latino... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1721. 8 v. 3 Ibidem. 4 O nome Roda – dado por extensão à casa dos expostos – provém do dispositivo de madeira onde se depositava o bebê. De forma cilíndrica e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criancinha que enjeitava, girava a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira – que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido. (MARCÍLIO, 1998:56). 147 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta Essa realidade portuguesa cruza o atlântico, e no Brasil colonial o fenômeno do abandono era também amplamente praticado, assumindo proporções alarmantes entre os séculos XVII e XVIII. Entretanto, foram poucas as instituições que surgiram para acolher os pequeninos expostos. As Rodas de expostos ficavam restritas aos grandes centros urbanos da colônia, em outras áreas, o atendimento dos expostos ficava ao encargo do Senado da Câmara (mesmo as Câmaras ultramarinas), com o compromisso de financiar a criação e o sustento destas crianças enjeitadas, o que nem sempre ocorria, conforme índica a historiografia que analisa o tema. Uma alternativa encontrada e amplamente praticada para enjeitar crianças, no período colonial, foi o abandono domiciliar, ou seja, as famílias optavam por abandonar seus filhos na porta dos fogos.5 Esta forma de abandono se tornou muito característica das terras brasileiras e, de norte a sul, este fenômeno do abandono se fez presente na colônia. Entretanto, por mais que o abandono domiciliar tivesse tido predominância referente ao fenômeno da exposição, os estudos que abordaram a temática, sempre privilegiaram o abandono institucional, ou seja, aquele que encaminhava as crianças para as Rodas de expostos. A mesma realidade cabe para a Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre, fundada em 1772, e que se tornou, em seguida, a capital do continente pela sua posição estratégica. Tal fato ocorreu antes mesmo de tornar-se oficialmente Vila, em 1810. Neste período ainda essa freguesia não dispunha de uma roda de expostos. Assim mesmo, a roda seria oficializada so5 Assim eram tradicionalmente denominados os domicílios em Portugal e nas colônias portuguesas. Raphael Bluteau considera como sinônimo de “Família”, muito embora seja bastante ambíguo este conceito, para o século XVIII. Este dicionarista exemplifica, por exemplo, a utilização do termo: “Villa, que tem cem, ou dezentos fogos” [1712], o que reforça a ideia de família enquanto domicílio. Cf. BLUTEAU, R. op. cit.;. NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia: elementos para um diálogo. Campinas: ABEP, 2004: 170. 148 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas mente no ano de 1837. São esses quase quarenta anos de existência, compreendendo o período de sua fundação, 1772 a 1810, que me propus analisar nessa oportunidade. Nesse momento, Porto Alegre estava no início de um crescimento urbano rápido e, consequentemente, um desenvolvimento demográfico muito significativo, com a chegada dos açorianos, e de outras famílias provenientes de outras regiões da América portuguesa, de Portugal continental e de outros estrangeiros (sobretudo espanhóis e hispano-americanos), além da constante presença de militares na região, entre uma numerosa população escrava e indígena. O aporte teórico-metodológico vem tanto da Demografia Histórica quanto da História da Família e da História Social. O primeiro refere-se a aplicação do método da Demografia Histórica através do levantamento de fontes, alimentação do banco de dados, e o cruzamento desses registros. Vale destacar que este estudo dos registros paroquiais em Porto Alegre organizou-se em duas etapas. Logo de início foi realizada a leitura paleográfica de cada registro e, posteriormente, foram extraídas informações, inseridas num software denominado NACAOB6. Esse primeiro passo, permitiu a construção de um banco de dados, no qual foram preservadas todas as informações contidas nos livros de registros paroquiais (batismo, casamento, e óbito) possibilitando o aproveitamento das características quantitativas e qualitativas dessas fontes. Num segundo momento, fizemos o cruzamento nominativo cotejando as informações de alguns assentos paroquiais com outras fontes de cunho eclesiástico (Róis de confessados e habilitações matrimoniais) e administrativo (termos de vereança). 6 O programa informatizado foi desenvolvido, pelo analista de sistema Dario Scott que integra o grupo de pesquisa “Demografia & História”. Este programa constantemente vem recebendo atualizações importantes que permitem ao pesquisador ter em mãos uma cópia fiel do documento manuscrito original. 149 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta A exposição na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre 1772-1810 A freguesia Madre de Deus antes denominada “Porto dos Casais”, foi um porto de desembarque de casais açorianos para a colonização dessas terras no extremo sul da América portuguesa. A partir do princípio do uti-possidetis7 a coroa portuguesa asseguraria essas terras por meio de uma população que desembarcava da metrópole e de outras regiões da colônia, em meio a uma numerosa população escrava e indígena. Sua importância nesse contexto fronteiriço se deu com a invasão da Vila de Rio Grande, a mais antiga do continente do Rio Grande de São Pedro. A Câmara de Rio Grande foi transferida para freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Viamão (no ano de 1766) e, posteriormente foi deslocada, novamente, para então criada Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre (1773). Embora haja um debate entre os especialistas, podemos aceitar que entre os motivos que justificam essa segunda transferência da Câmara da Vila de Rio Grande, estaria a existência de um porto de fácil acesso para contato fluvial com a antiga sede, assim como sua localização estratégica, fixada no centro da capitania. Por conta disso, fica mais claro entender o processo que leva a freguesia recentemente instalada (1772) a ser elevada à condição de sede da capitania antes mesmo de tornar-se oficialmente vila em 1810, tornando-se a porta de entrada do continente do Rio Grande de São Pedro. Essa rápida ascensão da freguesia Madre de Deus teve como desdobramento o seu desenvolvimento urbano e um crescimento populacional acelerado. Segundo levantamentos da época, a freguesia contava com um contingente populacional de 1.512 habitantes em 1780, números que serão duplicados 7 Tratava-se da política Portuguesa para assegurar o território frente aos espanhóis, quem ocupava as terras detinha sua posse. 150 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas para 3.268 em 1798, passando para cerca de 6.000 em 1810.8 Aliás, deve-se enfatizar que não apenas Porto Alegre, mas o continente do Rio Grande de São Pedro apresentou um crescimento acelerado. Em 1780 a população total do continente fora estimada em 18 mil pessoas, e que no decorrer de dezoito anos (em 1798), havia se verificado um aumento de populacional de 18%, com uma taxa anual de crescimento da ordem de 3.2%. Para se ter uma ideia São Paulo, Bahia, Pernambuco e Alagoas neste período cresceram a uma taxa máxima de crescimento de apenas 2.3%. Na virada do século, entre 1798-1814, o ritmo de crescimento foi ainda maior, de 111% na população total.9 A exposição e ilegitimidade em Porto Alegre Esse contexto populacional, de uma localidade portuária, onde o fluxo de pessoas é uma constante revela que a Madre de Deus era um lugar de passagem, caracterizado pela intensa mobilidade, principalmente masculina, dado que já nos permite estabelecer uma primeira reflexão a respeito dos índices de ilegitimidade e exposição. Para termos uma ideia sobre essa questão, logo na primeira reunião da câmara de vereadores, em 1773, o assunto do enjeitamento entrou na pauta, possivelmente porque este fenômeno estava presente no horizonte dos vereadores e homens bons na freguesia de Viamão. Foi acordado entre os camaristas que iriam tomar medidas para criação e sustentos dos pequenos abandonados. 8 Dados extraídos de: SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e Sociedade do Rio Grande do Sul: Século XVIII. São Paulo: Editora Nacional, 1984. 9 Cf. OSÓRIO, Helen. Expansão Territorial e população: a capitania do Rio Grande no primeiro quartel do século XIX. In: SCOTT, Ana S. V.; FLECK, Eliane C. D. (orgs.). A Corte no Brasil: População e Sociedade no Brasil e em Portugal no início do século XIX. São Leopoldo: Oikos; UNISINOS, 2008. 151 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta (...) iam entregar [os expostos] ao procurador do Conselho para que à custa deste as mandasse criar, e porque se não podia nem vinha no conhecimento de quem as enjeitava, determinaram todos que o procurador do Conselho procurasse amas e as custeasse para criar os ditos enjeitados expostos, dandolhe algum vestuário para se embrulhar as mesmas crianças e reparar a desnudez das carnes com que as expuseram, e porque na forma da lei e costume da vila do Rio Grande assim o deviam fazer, mandaram fazer este acordo e nele formar os assentos dos mesmos enjeitados seus nomes, e de quem os cria e o quanto se lhe dava por mês. (AHPAMV, Termos de vereança da freguesia de Viamão e Porto Alegre, Livro I) Não é por menos a preocupação da câmara apresentada no documento, visto sua responsabilidade legal frente ao fenômeno. Como podemos ver nos dados abaixo, os percentuais de exposição crescem paralelamente ao desenvolvimento da freguesia, o mesmo vale para os percentuais de ilegitimidade, apenas a legitimidade vem despencando a partir dos registros de batismos. Quadro 1: Freguesia Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, População Livre: Frequência de Batismos de crianças legítimas, naturais e expostas, 1772-1810. Anos 1772-1780 Batismos de Total de crianças legítimas batismos N.A % 376 343 89,8% Batismos de Batismos de crianças naturais crianças expostas N.A % N.A % 25 6,6% 8 2,1% 1781-1790 763 658 86,2% 77 10,1% 28 3,6% 1791-1800 1351 1099 81,3% 200 14,8% 52 3,8% 1801-1810 1761 1352 76,7% 292 16,5% 117 6,6% Total 4251 3477 81,8% 594 13,9% 205 4,8% Fonte: Livro I e II de Batismo da população livre da paróquia Madre de Deus de Porto Alegre. 152 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas De 1772 a 1810, 205 bebês foram abandonados por suas mães e/ou famílias. Como colocado, o crescimento da exposição segue o desenvolvimento da freguesia, se apenas 8 crianças (2,1%) foram abandonadas nos primeiros anos, entre 1772 e 1780, 117 (6,6%) foram entre 1801-1810. No total, temos 205 crianças (103 meninos e 102 meninas) expostas batizadas, num percentual total, de 4,8% frente à crianças legítimas e naturais. Entretanto, se compararmos com outras áreas mais urbanizadas do Brasil, percebemos que esses índices são modestos. Para a Vila de São Paulo, por exemplo, que constituía o núcleo urbano principal e a capital administrativa da Capitania de mesmo nome, os índices de abandono chegaram aos patamares de 21.9% na segunda metade do século XIX. Na Freguesia da Sé, da cidade de São Paulo média foi de 15% entre 1741 e 1755, e de 18%, entre 1780 e 1796.10 Já em áreas mais pobres de economia de subsistência como Ubatuba, litoral paulista, a proporção de expostos era de somente 0.6%. Em Sorocaba, outra localidade paulista, houve anos em que absolutamente nenhuma criança exposta fora registrada, embora a média tenha sido 4.1% nos anos de 1679 e 1845.11 Esses percentuais parecem se repetir, nas freguesias urbanas da cidade do Rio de Janeiro, Sé e São José, a proporção de expostos batizados entre a população geral foi de 21.3%. Já nas áreas rurais como Guaratiba, Irajá, Jacarepaguá e Inhaúma a proporção decresce para 3.3%.12 Na região de 10 Cf. VENÂNCIO, Renato Pinto. Infância sem destino: o abandono de criança no Rio de Janeiro do século XVIII. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 1990. 11 Cf. MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara. Terra e população. São Paulo: Paulinas/CEDHAL,1986; BACELLAR, Carlos Almeida Prado. Abandonadas nas soleiras portas: a exposição de crianças nos domicílios de Sorocaba, séculos XVIII e XIX. In: Cativeiro e Liberdade, nº 4, Rio de Janeiro: UFRJ/UFF, 1996. 12 Cf. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano cultural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 153 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta Minas Gerais, especificamente em São João del Rei, também uma área sem roda de expostos, a média percentual é de 8%.13 Na vila de Curitiba, também sem misericórdia de amparo aos enjeitados, entre os anos de 1751 e 1800 a média foi de 9,1%.14 Estes dados registrados para São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais indicam que nas áreas urbanas a prática do abandono se intensificava, com índices muito maiores do que aqueles registrados em localidades rurais ou sem a Roda dos expostos. Explicar esta situação tem sido um desafio para os historiadores. Algumas hipóteses são lançadas como a de Sheila de Castro Faria, que concorda que o abandono de crianças foi majoritariamente um fenômeno de caráter urbano. Contudo, isso não significa dizer que as gestações e o parto dessas crianças eram originadas, necessariamente, nas zonas urbanas, mas sim que a opção mais frequente era abandonar a criança em moradias de áreas mais urbanizadas. Isso se dava porque a “maior parte dos que se desfaziam dos bebês preferiam o anonimato, muito mais fácil de ser alcançado em áreas mais povoadas do que em domicílios rurais, onde todos se conheciam”. (FARIA,1998: 69). 13 Cf. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Crianças Expostas: um estudo da prática do enjeitamento em São João del Rei, séculos XVIII e XIX. In: TOPOI, v. 7, n. 12, jan.-jun. 2006. pp. 116-146. 14 Cf. CAVAZZANI, André Luiz M. Um estudo sobre a exposição e os expostos na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba (Segunda metade do século XVIII). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. 154 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Gráfico 1: Evolução dos batismos (%) freguesia Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1810) Fonte: Livro I e II de Batismo da população livre da paróquia Madre de Deus de Porto Alegre. Dado importante que foi revelado pela análise das séries de batismo é o declínio da legitimidade em ambas. Esse declínio vem acompanhado pelo aumento nas curvas de ilegitimidade. Para alguns especialistas o abandono infantil estaria ligado a ilegitimidade, seria uma forma de ocultar as fraquezas da carne. Entretanto, na freguesia Madre de Deus os índices de ilegitimidade foram continuamente superiores aos de exposição e, em nenhum momento, a exposição superou a ilegitimidade. Em Viamão este fenômeno acontece, porém temos de levar em conta o contingente de batismos não declarados que podem ter levado a esse dado. Neste caso o que poderia estar por trás da queda da legitimidade é a ocupação do território que resultou num constante fluxo populacional de diversas regiões. Esses dados podem nos fazer refletir sobre as condições de vida dessas populações, 155 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta bastando lembrar que a Madre de Deus, e antes a freguesia de Viamão, são localidades portuárias de intenso fluxo de militares, marinheiros e comerciantes. Não é de se duvidar que essa conjuntura possa ter deixado seu primeiro impacto na vida familiar daquelas comunidades. Notas sobre a exposição versus ilegitimidade A questão a ser ponderada é a levantada por Faria (1998), quanto ao anonimato da exposição. Podemos pensar que muitas das crianças de Porto Alegre eram deixadas em localidades vizinhas, e mesmo as que eram expostas em domicílios locais poderiam ser filhos de moradores vizinhos. Inclusive a própria Câmara Municipal fazia essas crianças circularem, muitas eram entregues pelo senado para famílias criadeiras de freguesias próximas no intuito de tirar a criança do alcance de suas famílias. Na racionalidade da ação, fazer a criança circular em lares de outras localidades fazia com que mães perdessem o rastro da criança e não abandonassem os pequerruchos, ou forjassem um abandono, na intenção de sobreviver com o pecúlio camarário. A administração pública deixa claro, o quanto era custoso a criação dos expostos, inclusive promoveram uma loteria na intenção de angariar fundos para este fim.15 Para alguns historiadores a ilegitimidade estaria ligada ao fenômeno da exposição. Muitos autores que investigam a temática do abandono ressaltam a existência de um sistema de honra herdado do Antigo Regime, no que tange à mulher na América portuguesa. 15 Inclusive em algumas localidades a Câmara se utilizou de alcaides para fiscalizar e denunciar caso descobrissem as mães dos enjeitados, é caso dos trabalhos de: ARAÚJO, Cíntia Ferreira. A caminho do céu: a infância desvalida em Mariana (1800-1850). Dissertação de Mestrado. UNESP, 2005; e FRANCO, Renato Júnio. Desassistidas Minas – a exposição de crianças em Vila Rica, século XVIII. Niterói, Dissertação de Mestrado, UFF, 2006. 156 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Tal sistema não permitia a violação dos padrões de virgindade das mulheres solteiras, de fidelidade aos maridos, no caso das mulheres casadas, e de castidade das viúvas, sobretudo no seio da elite que via na honra o ethos que racionalizava a existência da hierarquia colonial. (CAVAZZANI, 2005:76) Por este mesmo caminho, Maria Beatriz Nizza da Silva (1998) alega que o abandono de crianças ao longo do período colonial teria maior relação com a honra das mães solteiras do que com as dificuldades enfrentadas por um casal pobre para criar os filhos. Em Porto Alegre o número de filhos ilegítimos (ou naturais) como pudemos ver duplicou, o que pode ser explicado pela constante mobilidade masculina16 na colônia, e Porto Alegre como se sabe consiste num centro urbano rodeado por uma área rural, por aqui havia uma intensa circulação de pessoas como militares, marinheiros, negociantes e viajantes através do porto. A mobilidade geográfica masculina do período colonial trouxe como consequência uma vida conjugal intermitente e uma estrutura familiar caracterizada pela dispersão. Entretanto se a dispersão masculina e sua movimentação em Porto Alegre pode ser uma justificativa para o crescente aumento de filhos ilegítimos, fruto de relações ilícitas, isso não parece justificar o crescente número de filhos expostos. Conforme o modelo de análise sugerido por Isabel dos Guimarães Sá,17 16 Nadalin alega, que para o homem, em especial, havia sempre a possibilidade de “sair de casa”, de buscar recursos ou riquezas, mais além, abandonando o seu domicílio. São aqueles homens duros e determinados a encontrar no interior rude e perigoso o objetivo de sua vida – seja dizimando os indígenas que encontravam, seja aprisionando os que restavam, seja procurando ouro e pedras preciosas, levando o gado, buscando drogas nas florestas, seja, simplesmente, fazendo tudo isso e sumindo, haja vista a presença, entre os homens “livres” dos sertões, de desertores, escravos fugidos e outros marginalizados; seja, finalmente, se “estabelecendo”. Cf. NADALIN, S. O. A população no passado colonial brasileiro: mobilidade versus estabilidade. Topoi, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 222-275, jul.-dez. 2003, p. 229. 17 Historiadores portugueses têm verificado que em algumas paróquias minhotas a descida das percentagens de ilegítimos é muitas vezes acompanhada de uma subida da percentagem de expostos. Esse movimento numérico evidenciaria, a priori, uma ligação entre abandono e nascimento ilegítimos. Cf. SÁ, Isabel dos 157 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta quando há uma redução no número de batismo de crianças ilegítimas, contrastando com um aumento do número de crianças batizadas como expostas, isto poderia indicar que filhos naturais estariam sendo rejeitados por seus progenitores, para salvar a honra feminina. Gráfico 2: Curvas do crescimento de batismos de ilegítimos e expostos (1772-1810) Fonte: Livro I e II de Batismo da população livre da paróquia Madre de Deus de Porto Alegre. A hipótese de Sá pode ser mais bem compreendida, a partir da análise do gráfico acima, e que, de fato, não equivale para a realidade de Porto Alegre, pois em nenhum momento Guimarães. Abandono de crianças, Ilegitimidade e concepções pré-nupciais em Portugal: estudos recentes e perspectivas. In: MOREDA, Vicente Perez (coord.). Expostos e Ilegítimos na realidade Ibérica do século XVI ao presente: actas do III congresso da Associação Ibérica de Demografia Histórica. Porto: Afrontamento, 1993. v. 3, p.39. 158 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas as curvas de batismos de expostos superou a de ilegítimos. Na Freguesia Madre de Deus os índices de ilegitimidade sempre estiveram à frente dos índices de exposição, e os dois crescem em paralelo, de maneira diferente do que aponta Sá. Entretanto por mais que abandonar filhos ilegítimos fosse uma prática que estivesse atrelada às famílias pertencentes à elite colonial, como vem sendo defendido por alguns historiadores, essa realidade não cabe para o caso estudado, e as condições de famílias carentes, ou mesmo mulheres solteiras pobres deve-se levar em consideração. E mesmo para essa população marginalizada a criança serviria de mão-de-obra, abandonar um filho poderia ser, abandonar braços para compor o quadro econômico da família. Em áreas de economia mais sedimentadas a exposição de crianças do sexo feminino poderia superar as do sexo masculino. Esses fatores parecem não fazer referência a nosso caso, visto que há certa igualdade de sexos dos enjeitados. Dos 205 bebês que foram abandonados por suas famílias sendo que 104 (51%) eram meninas e 101 (49%) eram meninos. Entre o abandono selvagem e o civilizado: os lares receptores Havia duas formas de abandonar a criança no passado. É o que nos diz Renato Pinto Venâncio (1999: 22). Segundo o autor, “toda mulher que, no meio da noite, deixasse o filho recémnascido em um terreno baldio estava expondo-o à morte, ao passo que os familiares, ao procurarem hospitais, conventos e domicílios dispostos a aceitar o pequerrucho, estavam tentando protegê-lo”. Dessa forma, Venâncio classifica o abandono civilizado como aquele em que intenção é salvar a criança, deixando o pequenino em uma instituição que o abrigue ou na soleira de uma porta e abandono selvagem em que intenção é o infanticídio, deixando a criança em lugar ermo. 159 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta Cabe a questão, dos 205 bebês enjeitados entre 1722 e 1810 em Porto Alegre, quais as formas de abandono? Ao analisar esta questão constatei que a grande predominância do abandono dito civilizado. As famílias porto alegrenses do período colonial optaram em sua grande maioria por abandonar seus pequeninos nas portas dos domicílios, é o que chamamos de abandono domiciliar. Entretanto alguns escassos casos fogem a esta regra e merecem destaque. O primeiro deles é assento de batismo da menina Catarina que recebeu os santos óleos no dia seis de janeiro de 1791, o padre acrescenta a informação que ela foi exposta no dia 27 de dezembro daquele ano na Câmara da Vila.18 Este caso pode ser um indicativo no papel da Câmara na criação dos expostos, pois a criança foi exposta justamente em sua porta. Como mencionado anteriormente cabia a ela o compromisso com os expostos e ter uma criança enjeitada em sua porta não é mero acaso. Com toda certeza o expositor da criança sabia o que estava fazendo. Outro caso semelhante é o assento de batismo do menino Leonardo, exposto no dia 6 de julho também do ano de 1791. Neste assento o padre acrescenta que o bebê foi exposto na casa do procurador da Câmara Antonio Jose da Costa no dia 30 de junho do mesmo ano.19 Desta vez o menino foi exposto direto na casa do procurador, os pais que abandonaram estas crianças estavam preocupados com o futuro do bebê e um meio de garantir que fossem criados e alimentados foi enjeitá-los direto para a instituição responsável, no caso aqui a Câmara municipal, pois a roda surgiria apenas algumas décadas mais tarde. 18 ARQUIVO HISTÓRICO DA CÚRIA METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE: Livro I de Batismo da população livre da paróquia Madre de Deus de Porto Alegre. 19 Ibidem. 160 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Se, a partir destes dois casos, posso entender que havia uma preocupação com o futuro da criança, o mesmo não posso dizer dos dois casos de abandono selvagem que me deparo nos assentos de batismo de Porto Alegre. O primeiro assento é referente ao dia vinte de abril de 1804 quando o menino Lucio foi batizado depois de achado no caminho d’ Aldeia no dia quinze do mesmo mês e ano, por Philipe de S. Thiago.20 O menino Lucio, abandonado no caminho que leva a Aldeia dos Anjos (Gravataí), era, segundo Sergio da Costa Franco, um caminho que nasceu espontaneamente como uma das saídas da Freguesia desde sua fundação21, encontrando-se fora do fluxo mais urbanizado pelo comércio e a circulação de pessoas. Isso, com certeza, faria diminuir a chance, do pequeno enjeitado, ser encontrado. O segundo caso, com o qual me deparei, como uma possível tentativa de infanticídio, foi constatada no assento de batismo do dia vinte e quatro de março de 1785, quando foi batizada in extremis pelo Pe. Antonio Soares Gil a menina Ana, ao final de seu assento o padre informa que a criança foi exposta no Rio do Sino da freguesia Nova.22 Neste caso citado a criança foi batizada in extremis, ou seja, com urgência pelo estado em que a criança se encontrava, correndo risco de morte. Dado esse contexto da freguesia Madre de Deus de Porto Alegre podemos afirmar um ponto com toda certeza a respeito da exposição. As famílias que abandonaram sua prole, assim o fizeram com a preocupação de salvaguardar a vida da criança. 20 Ibidem. FRANCO, 1988: 218. 22 Ibidem. 21 161 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta Quadro 2: Distribuição dos expostos conforme os domicílios receptores 1772-1810 Receptor Masculino Receptor Feminino % % S/ qualitativos 58.6% 19.9% Capitão Mor 2.8% – Capitão 5.8% – Cirurgião Mor RECEPTORES 0.7% – Viúvos/as – 2.9% Dona – 2.2% Ajudante 1.4% – Alferes 0.7% – – 4.3 % Escravo – 0.7% TOTAL 70% 30% Preta Forra Fonte: Livro I e II de Batismo da população livre da paróquia Madre de Deus de Porto Alegre. Como podemos perceber pelos dados contidos nos assentos de batismo, a predominância dos domicílios receptores era aqueles chefiados por homens livres (70%), sendo todos casados e que, apenas cerca de 10 % destes dispunham de algum atributo social distintivo como capitão, capitão mor, Dona. Neste viés a porta dos domicílios mais abastados não foi a escolha predominante das famílias porto alegrenses que enjeitaram seus filhos. A escolha predominante de homens livres e casados vai por esse intento, por serem lares estáveis para a criação do pequenino, o mesmo vale para as viúvas (2,9%) que poderiam disponibilizar de tempo para com a criança. A presença de pretas forras (4,3%) diz respeito a amas de leite, ou mesmo de criação, algumas dessas receberam o exposto do próprio procurador da câmara responsável pela manutenção da criação dos 162 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas expostos. Cabe ressaltar que muitos desses lares receptores receberam mais de uma criança, apenas para ilustrar o caso, a viúva, Dona Maria Joaquina França que recebeu três crianças. Casos ainda, como a de Christina Maria, crioula forra que recebeu quatro expostos, e se tornou um bom negócio para mesma, recebia regularmente da Câmara municipal seu pecúlio para criação e vestuário dos seus quatro expostos: Joaquim, Anna, Joze e Florencia. Poderia ser um bom negócio para a população forra, entretanto membros de um elevado estatuto social também se aproveitavam desse recurso. Basta apenas prestarmos atenção, nos próprios membros que constituíam o concelho municipal. É o caso do Capitão de ordenanças Manuel Bento da Rocha que ocupou o cargo de juiz ordinário durante os anos de 17711781.23 A questão é que Manuel Bento da Rocha recebeu o pecúlio pela criação da enjeitada Izabel e mais tarde de outros dois expostos, todos deixados a sua porta.24 Entretanto, muitos dos expostos batizados na freguesia Madre de Deus de Porto Alegre, foram depositados em domicílios que não recorreram ao pecúlio camarário. O lócus da questão é a inserção ou não deste sujeito na hierarquia familiar e na sociedade de convívio. O estigma social da exposição Muito se tem discutido acerca de uma infância marcada pelo abandono, o sujeito abandonado, recebe o estatuto de exposto, um estigma social que pode desqualificar o sujeito. Se a 23 A respeito do personagem Manuel Bento da Rocha, suas redes de relações e composição no cenário político foi objeto de estudo de COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Niterói, Dissertação de mestrado, PPG em História da Universidade Federal Fluminense, 2006. 24 Esse fato acontece em 18/12/1773, Manuel Bento Rocha é dos primeiros a receber tal pagamento por criação de um exposto. 163 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta priori a procedência familiar é base do nivelador social do Antigo Regime, o exposto é o sujeito sem família e sem procedência. De qualquer forma, a sorte de uns, não pode ser igualada a sorte de outros. A princípio, o primeiro desafio que tinham de encarar era sobreviver às altas taxas de mortalidade infantil que ceifavam estas vidas.25 Não por menos que Renato Pinto Venâncio (1998: 33) declarou que a história do abandono infantil é uma “historia da morte e uma historia secreta da dor”. Para os que sobreviviam, o lar de destino poderia determinar sua vida, levando em conta que a mobilidade social no Antigo Regime era muito rara e de pendia de uma série de fatores e relações estabelecidas.26 Sendo assim, uma multiplicidade de possibilidades nos surgem, pois estes sujeitos abandonados podem vir a ser de agregados em casas de famílias a meros serviçais errantes; ou uma moeda de troca, na oportunidade de estabelecer alianças não tão favoráveis através do matrimônio, poupando nesse caso, um filho legitimo; ou em circunstancias piores substituir o recrutamento de um filho legitimo por um exposto, um hábito surgido no seio do utilitarismo.27 25 Estudos anteriores mostraram esses elevados percentuais de mortalidade infantil de expostos na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre, bem como as principais moléstias que os acometia. Cf. SILVA, Jonathan Fachini da. Destinos incertos: Um olhar sobre a exposição e a mortalidade infantil em Porto Alegre (1772-1810). In: Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 7, n.° 1, junho de 2012. http://www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/article/view/256. 26 Conforme HESPANHA (2006) ilustra a questão da mobilidade social no Antigo Regime, dependia de graças e mercês alcançadas que desprendiam de estratégias para esse fim. As hierarquias sociais eram naturalizadas na sociedade e qualquer indicativo de mudança poderia ser entendido como desordem ou conflito com essas rígidas hierarquias. Cf. HESPANHA, António Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. In: Tempo, Jun 2006, vol.11, no. 21, p.121-143. 27 Conforme Marcílio (1998:72) as teorias ilustradas julgavam que os expostos deveriam tornar-se bons soldados (substitutos ideais para os filhos de família sorteados para o serviço da milícia). A pátria os nutriria, pois os expostos pertencem a ela, são os filhos do Estado; em compensação, esses filhos da pátria deveriam prestar serviços a ela, serem “úteis a si e à nação”. 164 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Dos mais diversos futuros possíveis, grande probabilidade aponta para a marginalização.28 Entretanto, em Porto Alegre, antes da roda, as fontes me permitiram visualizar a incorporação de muitos enjeitados nas famílias. Nos Róis de confessados do ano de 1779, 1780 e 1781, no fogo de Antonio dos Santos Maciel, casado com Francisca da Trindade, foi registrado sucessivamente abaixo de seus nomes o exposto Justo. A partir do ano de 1782 o termo “exposto” foi substituído por “filho”, e assim sucessivamente, registrado nos róis posteriores. Levando em consideração todo o cuidado pertinente que essa fonte exige, a mudança do termo “exposto” para “filho” pode significar a interpretação de quem fez o documento ou a inserção do menino a família. Cabe ressaltar que em 1782, o exposto Justo contava com a idade de dez anos, e passado dos sete anos de idade, a Câmara isentava-se de qualquer responsabilidade passando essa, para as famílias. Neste caso a inserção do menino Justo pode ser provável, tornando-se filho do casal. Ainda outra trajetória que pode ilustrar a inserção do exposto na família e ainda no âmbito social é a da exposta Anna, batizada no dia 23 de agosto de 1809. A menina Anna fora exposta no dia 18 de agosto de 1809, em casa de Manoel Rangel de Moraes, um militar que ocupava o cargo de porta bandeira passando depois para tenente.29 A menina Anna que também passou a ser registrada como filha, permaneceu em Porto Ale28 Pode-se referir aqui grande parte dos trabalhos realizados sobre a Casa dos Expostos, onde mostraram que os destinos prováveis daquelas crianças deixadas na Roda era a morte ou a miséria. Cf. MARCÍLIO (1998), VENÂNCIO (1999). No caso da Roda de Porto Alegre criada em 1838 as condições pareciam um pouco melhores, havendo inclusive a concessão (através de sorteio) de dotes para as meninas quando atingiam a idade de casar e inserção dos meninos no Arsenal de guerra, conforme explora o trabalho de GERTZE (1990). Entretanto, ainda carece um estudo mais aprofundado para o caso de Porto Alegre, para a inserção do exposto deixado na roda no âmbito da família. 29 ARQUIVO HISTÓRICO DA CÚRIA METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE. Livro II de Batismo da população livre da paróquia Madre de Deus de Porto Alegre. 165 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta gre e aqui constitui família casando-se legitimamente perante a Igreja, como podemos ver em seu registro de casamento: Em primeiro dia do mez de junho de mil oitocentos vinte sette annos nesta Matriz de Nosa Senhora da Madre de Deos de Porto Alegre pelas cinco horas da tarde depois de feitas as diligencias do estilo e não haver impedimento na forma do Sagrado Concilio Tridentino e Constituição por Portaria do Reverendissimo Vigario Geral Interino João Baptista Leite d’ Oliveira Salgado perante mim se receberão em Matrimonio com palavras de prezente em que expresarão seu mutuo consentimento Augusto Guilherme Schröder natural do Reino da Dinamarca, transitado da seita Luterana para a Nossa Religião Catholica Romana, filho de Francisco Joaquim Schröder, e de Anna Schröder com Anna Joaquina Rangel de Azevedo natural e baptizada nesta freguesia exposta em caza de Manuel Rangel de Morais Azevedo, já falecido. Receberão Bençãos sendo de tudo testemunhas as abaixo asignados. E para constar mandei fazer este asento e asignei. (AHCMP, Livro III de registros de casamento da Paróquia Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre) [grifos meus]. A menina Anna permaneceu na família em que fora exposta e sua integração a ela é evidente no instante em que ela assume o nome desta família que a acolheu, como ficou claro no assento. Nesse caso, a exposta reproduziu o estatuto social da família que a recebeu e a acolheu. A exposta além de acolhida foi educada com as primeiras letras, pelo fato de ter assinado seu registro, o que não era nada convencional para época. Temos de levar em conta que não apenas aos casos de crianças que foram deixadas em famílias de elite como elucidado acima, mas também expostos que foram criados por famílias que não dispunham de alto prestigio social ascenderam ao casamento. Como exemplo destes casos, é o casamento de Paulina Maria de Jesus, uma exposta que foi educada pela Câmara Municipal. Casa-se com Joze da Silva Maia declarado como legítimo. Maria Beatriz Nizza da Silva (1993:185) acredita que casos como este podem se tratar dos “falsos expostos”, frutos 166 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas de uniões consensuais ainda não legitimadas pelo sagrado matrimonio. Ou seja: os recém-nascidos eram colocados à porta de parentes ou compadres daquela que os dera à luz. A mãe salvaguardava assim sua honra e ao mesmo tempo conhecia o destino da criança, pronta a legitimá-la quando a ocasião fosse para isso propicia. As “falsas exposições” poderiam salvaguardar a honra não apenas de famílias que estabeleciam uniões consensuais, como vimos anteriormente, mas poderia também, ocultar as fraquezas da carne, imorais e condenáveis aos olhos do controle normativo, quando essa criança era fruto de um concubinato. Assim essas crianças poderiam fazer parte do universo da “ilegitimidade mascarada”. Alguns registros de batismos deixam esta pista, pois além de definir o batizando como exposto adverte que a criança é filha de pais incógnitos. Nem todo o registro de criança exposta tem essa alegação e nem mesmo acredito que seja inocente. Podemos ter uma luz para essa questão a partir das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, o código legislador da Igreja no Brasil. Essas orientam os párocos a não registrar os pais do batizando, mesmo que saibam sua precedência, a fim de evitar escândalos, caso isso pudesse ocorrer na freguesia, evitando constrangimentos. E quando o baptizado não for havido de legitimo matrimonio, tambem se declarará no mesmo assento do livro o nome de seus pais, se for cousa notoria, e sabida, e não houver escandalo; porém havendo escandalo em se declarar o nome do pai, só se declarará o nome da mãi, se também não houver escandalo, nem perigo de o haver. E havendo algum engeitado, que se haja de baptizar, a que se não saiba pai, ou mãi, tambem se fará no assento a dita declaração, e do lugar, e dia, e por quem foi achado (CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS, Título XX, 1853:30). [grifos meus] Segundo Linda Lewin (1995:123) os “filhos de pais incógnitos” eram considerados “espúrios”, ou seja, de cópula proibida. No âmbito jurídico é usado o termo “quoesito” que vêm do 167 SILVA, J. F. da • Quando os Anjos batem em sua porta interrogativo latino “Quaesitus?” (De quem é ele/ela?). No caso os “filhos de pais incógnitos” eram filhos de ninguém, sem pai e herança. Não se pode afirmar que todo o filho de “pais incógnitos” era fruto de um concubinato e sua exposição seria para encobrir tal ato. Muitos desses filhos podem ser simplesmente filhos naturais de casais que vivem em uniões estáveis. Neste sentido, um futuro reconhecimento da prole poderia ser justamente para deixar uma herança a criança. Considerações finais O fenômeno da exposição no extremo sul do Brasil ganhou formas diversas, se torna impossível, explicações reducionistas para explicar tal fenômeno em sua total dimensão. Assumindo contornos muito mais elevados que no noroeste português, a exposição se dava por múltiplos contextos. A prática do abandono pode ter servido de estratégias para famílias livres dos mais diversos níveis sociais. Assim cada ação carregava seu pano de fundo, seja para ocultar um filho espúrio, seja por falta de condições para sua criação. E da mesma forma que abandonar poderia ser uma saída, criar um exposto também pressupõem a mesma diversidade. Como vimos os destinos possíveis e prováveis destes expostos são variados, para os que superavam o desafio de sobreviver a infância, e se assim fosse, estavam a mercê dos braços que o acolheu. Se a moral familiar colocava a honra feminina numa posição tão valorizada, especialmente entre famílias abastadas, como salientam alguns especialistas, podemos pensar, nesse sentido, até que ponto as mulheres de estatutos inferiores também sofreriam com a reprovação social advinda de comportamentos que se desviam da norma. Por este viés, a exposição pode também, nesses casos, configurar um universo de crise familiar: embora pertencentes a grupos sociais menos privilegiados, 168 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ao romper com o modelo familiar proposto pelo Estado português e pela Igreja, elas se viam também na contingência de abdicar de sua prole. Mas aqui, eventualmente, menos que o escândalo moral e o comprometimento da honra, era mais o estado de miséria em que se encontravam essas famílias que impunham a abandono. Nesta lógica, abandonar uma criança, poderia ser, dar a oportunidade de um destino melhor para o pequenino ser. Referencias BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “Achados ao primeiro cantar dos galos”: os subterfúgios do abandono de crianças na vila de Itu, capitania de São Paulo, 1698-1798. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 16., 2008, Caxambu. Anais eletrônicos... Campinas: ABEP, 2008. Disponível em: http:// w w w. a b e p. n e p o. u n i c a m p. b r / e n c o n t r o 2 0 0 8 / d o c s P D F / ABEP2008_1178.pdf. Acesso em: 26 set. 2010. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: Família e Sociedade (São João Del Rei – séculos XVIII e XIX). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002. CAVAZZANI, André Luiz M. Um estudo sobre a exposição e os expostos na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba (Segunda metade do século XVIII). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. GERTZE, Jurema M. 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Algumas trajetórias de nubentes que ascenderam ao altar na Paróquia Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1835) Denize Terezinha Leal Freitas Introdução Muitos são os fatores que podem levar ao sucesso ou ao fracasso de um projeto de casamento, sobretudo, quando nos referimos aos nubentes de Porto Alegre que vivenciaram esta situação entre o final do século XVIII e primórdios do XIX. Todavia, citam-se três que, geralmente, influenciavam nas escolhas e na validade do casamento: as diferenças entre as famílias envolvidas, a aceitação da Igreja Católica e a vontade dos nubentes. Obviamente que, no topo de desse triângulo, dependendo de cada situação, os vértices alternavam-se. Portanto, na maioria dos casos, normalmente, os sentimentos dos nubentes ficavam em segundo plano, podendo, ainda, ser protelados ou mesmo ignorados, em favorecimento do projeto familiar, como refere o ditado popular: “Quem casa por amores, sempre vive com dores” (MELLO, 1986:98). Almeida (2004) lembra que o peso da família era significativamente maior, no momento da viabilização – ou não – dos 172 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas casamentos, isto porque “um desvio do padrão social aceito poderia inviabilizar o projeto de uma família inteira” (ALMEIDA, 2004: 226). Para muitos, o capital econômico sobrepunha-se ao capital emocional dos noivos envolvidos. Em alguns casos, como o do casamento de Margarida da Exaltação da Cruz com Inácio de Mendonça, em Santo Antonio da Guarda Velha, as questões de cunho emocional e econômico, por vezes, positivamente combinavam-se, na promoção de alianças (SANTOS, 2009). Contudo, as estratégias matrimoniais variavam, de acordo com a posição social dos noivos. Para Machado (2006), em seus estudos referentes à Freguesia de São José dos Pinhais, no Paraná, os casamentos e as alianças concebidas entre as camadas inferiores socialmente, visavam à melhoria de seu status social e econômico e/ou de sua geração. Conforme a autora: Destaco que, para os escravos e livres de cor, o casamento era uma das estratégias socialmente disponíveis para conquistar a liberdade para si e para a sua geração, ainda que nesse empenho eles se tornassem partícipes do processo de produção e reiteração das hierarquias sociais (MACHADO, 2006:489). Logicamente, as questões econômicas não podem servir como elemento central para a análise do desfecho de um casamento. Entretanto, é fundamental ressaltar que, por trás das posses, estavam as posições sociais que, numa sociedade nos moldes do Antigo Regime, tinham uma influência direta no comportamento e, em especial, nas escolhas de parceria, sejam elas movidas por interesses sentimentais ou econômicos. Neste sentido, abordar o casamento neste contexto torna-se fundamental para compreendermos quais os indivíduos que compõe o cenário de formação e desenvolvimento de Porto Alegre neste período. Portanto, objetiva-se através de algumas trajetórias traçar o perfil desta população que procurou contrair núpcias no antigo Porto dos Casais. Tendo como eixos condutores o cruzamento nominativo dos registros paroquiais de casamento e os Autos de Justificação Matrimoniais. 173 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” Os nubentes ilícitos da Madre de Deus de Porto Alegre Através de alguns Autos de Justificações Matrimoniais, evidencia-se como se aplicavam as normativas, definidas através das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e examinadas a partir de alguns casos, selecionados para a Freguesia em estudo. O foco do estudo estará concentrado na análise das circunstâncias que levavam os indivíduos a entrarem com esse tipo de processo, que constituía um instrumento para se adequar e se adaptar às normas vigentes e aos interesses individuais e familiares. Como será oportunizado observar, nos casos selecionados, esses processos levantam o véu que encobre muitas das idiossincrasias de cada trajetória pré-nupcial. Inicialmente, discutem-se a importância e os procedimentos que estavam atrelados a esses Autos de Justificações Matrimoniais. A finalidade dessas Justificações era confirmar a viabilidade – ou não – dos matrimônios, averiguando possíveis condições de impedimentos e solucioná-las, a fim de adequar os nubentes ao sacramento, quando isso fosse possível, ou impedir sua consumação. Segundo Goldschmidt (1982), os depoimentos possibilitam conhecer várias características dos nubentes, que pouco aparecem, se consultados os registros paroquiais de casamento, como: a idade, o estado civil, a naturalidade, a situação jurídica, a moradia, as redes sociais, enfim, uma série de informações acerca da trajetória dos contraentes. Com isso, devido à quantidade, à extensão, ao volume e ao estado de conservação dos processos, optou-se por selecionar alguns casos que possibilitassem identificar a complexidade e a riqueza de informações e de dados encontrados nos caminhos e trajetórias que levavam os indivíduos para o altar da Igreja da Madre de Deus de Porto Alegre. É fundamental ressaltar que todos os casos apresentados foram escolhidos a partir do cruzamento nominativo dos registros paroquiais de casa174 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas mento com os Autos matrimoniais. Tal técnica foi empregada, pois, de acordo com Scott (2002b): O cruzamento nominativo de fontes (nominal record linkage), como foi assinalado na clássica obra Identifying People in the Past (Wrigley 1973), ‘é o processo pelo qual diferentes itens de informação sobre um indivíduo nomeado são associados uns com os outros em um todo coerente, de acordo com certas regras’. Esse, foi um ideal incansavelmente perseguido ao longo de nosso estudo: procurar, através das inúmeras fontes nominativas compulsadas, conjugar e reunir o maior número de informações sobre cada um, e todos, os indivíduos da ‘nossa comunidade (SCOTT, 2002b: 4). O nome dos noivos foi o fio condutor para a investigação acerca de algumas trajetórias desses nubentes, antes do matrimônio (GINZBURG, 1989). Primeiramente, selecionaram-se os casamentos em que havia presença de impedimentos; posteriormente, pesquisou-se, no Arquivo da Cúria, quais, dentre os casais selecionados, havia disponível o processo de Autos de Justificativa. Sendo assim, partindo do método onomástico, foi possível adentrar na esfera particular dos contraentes. Segundo Hameister (2006b): O nome adquire, assim, significados que ultrapassam a mera utilidade na identificação dos agentes históricos. Incorpora propriedades, famílias, inimizades, mercês, localidades, direitos, deveres, responsabilidades; incorpora a história pessoal e, em muitos casos, a história familiar. O nome adquire uma função social para além da desinência de uma pessoa. O nome passa a ser um bem a ser legado e, às vezes, negado (HAMEISTER, 2006b:115). Os processos selecionados resultaram de uma amostra escolhida entre os milhares de processos, depositados no acervo do Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Os casos selecionados concentraram-se nas primeiras décadas do século XIX, porque foram encontrados a partir das atas de casamento. Observou-se que os processos apresentavam características distintas, com o passar do tempo. Nos primeiros anos 175 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” do século XIX, viam-se processos sucintos que, invariavelmente, apresentavam a mesma estruturação, independentemente da mudança do escrivão eclesiástico. Em síntese, os autos continham: uma apresentação; as informações do nubente por ele relatadas; depoimentos de, no máximo, três testemunhas; o veredito do pároco e o arrolamento dos custos. Ainda nesse primeiro conjunto, as causas identificadas correspondiam, muitas vezes, aos casos de justificantes viúvos(as) e/ou daqueles indivíduos (homens ou mulheres) que não eram naturais da Freguesia, além dos casos relativos aos escravos. Figura 1: Exemplo de um Auto de Justificativa Matrimonial Fonte: Paróquia Nossa Senhora Madre de Deus Porto Alegre (1820). 176 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Observando-se a fonte, verifica-se que esses processos estavam organizados de maneira variável e continham um volume de informações considerável, tendo em média de trinta a sessenta páginas. Sublinha-se, também, que fica visível uma preocupação mais acentuada com o arrolamento de provas documentais, indicando, talvez, que se começava a dar mais importância aos papéis do que às provas testemunhais, provenientes dos depoimentos arrolados. De acordo com Comissoli (2008b): Os processos de habilitação matrimonial consistiam em um inquérito sobre a vida dos homens e mulheres que intentavam contrair matrimônio. O objetivo deste exame era verificar se os pretendentes não possuíam qualquer impedimento ao casamento, isto é, deveriam ser solteiros ou viúvos, sem impedimento por voto de ordem religiosa ou estarem contratados para casar com outras pessoas, nem possuir parentesco de consangüinidade (sic) em grau próximo. Deveriam igualmente ser regularmente batizados na Igreja Católica e iniciados em seus sacramentos. Para atestar estas inúmeras condições solicitava-se a comprovação documental, uma vez que a mesma havia sido produzida pela própria instituição eclesiástica. Contudo, a realidade distanciava-se em muito da regulamentação tridentina, demonstrando que o comportamento dos sujeitos se configura por sua ação concreta e não pelas regras de uma sociedade (COMISSOLI, 2008b:3). De qualquer forma, diferentemente dos registros paroquiais, os Autos de Justificação são documentos eclesiásticos de cunho qualitativo e extremamente variáveis, normalmente, ao sabor da escrita de cada escrivão eclesiástico que se ocupa dos processos. Segundo a análise de Comissoli (2008), o conteúdo dos Autos varia, conforme a posição social dos envolvidos, isto é, “a marca de enunciação variava não somente pelo conhecimento de ‘ver’ e ‘ouvir’, mas igualmente pela posição social de quem a proferia” (COMISSOLI, 2008b:12). Grosso modo, os processos encontravam-se incompletos, com palavras ilegíveis e/ou escritos por vários punhos. As informações fornecidas não eram constantes e uniformizadas e 177 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” diferiam, uma vez que procuravam adequar-se a cada caso em particular, o que lhes deu uma natureza totalmente diferente daquela que define os assentos paroquiais de casamento, que mantêm certa regularidade, quanto ao seu conteúdo. Para citar algumas peculiaridades, destacam-se alguns exemplos: quando seguem, em anexo, cópias dos assentos de batismo dos nubentes, pode-se inferir seu nascimento, o que ocorre, frequentemente, em casos nos quais um dos justificantes pertence à outra localidade. Também, identificou-se a mobilidade geográfica dos indivíduos, em se tratando de viúvos e/ou através do relato das testemunhas, o que possibilita verificar as trajetórias de vida dos noivos. No caso dos nubentes viúvos, revela-se, pela certidão de óbito e, no caso, das testemunhas, pelo relato. Contudo, nos casos envolvendo algum tipo de impedimento de consanguinidade, no qual os nubentes são moradores da região, não há necessidade das confirmações batismais e, portanto, não se registravam as idades, caso o escrivão não verificasse a necessidade de mencioná-las nos Autos. Segue, então, na etapa a seguir, o estudo dos casos selecionados na amostra, que pretendem ilustrar a riqueza e as potencialidades dessa fonte. Caso: José da Silva Lima e Clara Luísa de Menezes Aos dezoito dias do mês de maio de 1820, inauguram-se os Autos de Justificação Matrimoniais do noivo José da Silva Lima, vinte e sete anos, natural da Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre e de sua noiva Luísa de Menezes, trinta e um anos, natural da Freguesia do Senhor Bom Jesus de Triunfo. Ele é filho legítimo do Capitão João da Silva Ribeiro Lima, já falecido, e de sua mulher, Ursula Clara da Silva. Por sua vez, a noiva é filha legítima do Tenente Felisberto Francisco de Abreu e de Margarida Engracia de Menezes. As causas que levaram à abertura desse processo de justificação matrimonial devem-se 178 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas à ausência da cópia de certidão de batismo da noiva e, sobretudo, ao impedimento de quarto e terceiro grau de consanguinidade entre os nubentes. Apesar da ausência do registro de batismo da noiva, consta nos Autos que foi batizada no mês de fevereiro de 1789, sendo padrinhos o Capitão Evaristo Pinto Bandeira e Dona Cristina, sua mulher. Além disso, pelo fato de os padrinhos serem já falecidos, a noiva alega não possuir testemunhas na Vila de Porto Alegre, a fim de comprovar a legitimidade de seu batismo, mas sim, diz possuir testemunhas na Freguesia de Triunfo. Este processo, também, apresenta uma série de características peculiares; dentre elas, destacam-se o volume de anexos e de correspondências entre os padres das Paróquias de Porto Alegre e de Triunfo e a solicitação do noivo para a alteração das penitências resultantes dos impedimentos. Também, a justificativa, dada pela nubente, quanto à importância e à necessidade da efetivação do casamento. Segundo relato o escrivão: O Orador [o noivo] vive de algum negocio e do seu Emprego na Junta da Real Fazenda donde tira suficiente subsistência para tratar a Oradora [noiva] a que hé pobre e não tem esperanza de Erdar de seos pais poses e igualmente pobres e ademas disto a mesma oradora conta trinta e hum annos e não tem athé o prezente tido pesoa que com ella queira Cazar e diz ser Ocazião não achar outrem [...] (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1820:7). O relato da noiva permite constatar duas características importantes, quanto às práticas sociais, relativas ao matrimônio. Primeiramente, verifica-se uma atenção da nubente em enfatizar a sua idade de acesso ao casamento e as condições econômicas do respectivo noivo e a sua própria. Importa, também, o fato de a noiva ter contraído as núpcias aos trinta anos, isto é, “Quem aos vinte não vier e aos vinte cinco não tiver, aos trinta venha quem vier” (MELLO, 1986:98), o que pode ser um indicativo de que, talvez, a mesma não tenha encontrado, 179 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” anteriormente, um pretendente da sua equivalência à disposição, ou por ter uma diferença de idade maior, em relação aos noivos. Logicamente, as possibilidades de esse casamento representar um enlace tardio para a noiva, podem ser devido a uma série de razões, pelas quais os Autos não podem responder; talvez, conforme o ditado “o marido e o linho não é escolhido” (MELLO, 1986: 97), esse casamento possa revelar uma importante estratégia familiar. Diversos indícios apontam para isso, tais como: a relação de compadrio e o fato de os pais dos noivos pertencerem a um grupo social abastado, constituído de militares, provavelmente, contribuíram para a formação dessa aliança. Segundo Muaze (2008): O casamento dividia o curso dos anos de uma vida em duas etapas distintas. Esse acontecimento social fundava a continuidade social e familiar da elite oitocentista e originava um novo núcleo que uniria dois troncos anteriores distintos. Essa união era intencionalmente calculada no sentido de proporcionar a manutenção dessas famílias como parte de um grupo seleto e privilegiado. Contudo, era preciso ir além e gerar novos elementos de poder e prestígio que as distinguisse socialmente, atualizando as disputas sociais intra e extragrupo. As exigências minuciosas feitas durante os processos de arranjos matrimoniais revelam o esforço de consolidação de novas alianças políticas, econômicas e sociais que objetivaram estruturar uma rede familiar complementar que, em última instância, ia dar continuidade às casas envolvidas. Dessa forma, ao final, acabava-se reproduzindo a dinâmica hierarquizante fundadora da composição social do Império (MUAZE, 2008:54-55). Os laços de consanguinidade entre os noivos não impediram que se enfatizasse a necessidade de não ter encontrado outro noivo adequado, seja de acordo pelo nível social e/ou econômico ou, até mesmo, sentimental. Quanto ao impedimento de quarto grau misto com terceiro grau de consanguinidade (isto é, os noivos eram primos segundos, filhos dos primos di- 180 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas retos) e primos terceiros (filhos dos primos segundos), ficou a solicitação aos noivos que “oução trinta Missas e rezem trinta rozarios” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1820:10), como penitências impostas em medidas saudáveis, segundo o pároco. Destarte, ressalta-se que o orador suplica ao vigário outro tipo de penitência, visto sua impossibilidade de cumpri-la, em razão de suas atividades profissionais (militares) Como paliativo, o vigário aceita a solicitação do nubente, com a condição de que o mesmo pague a “quantia de oitenta mil Reis para obras Pias” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1820:13), acrescida aos custos dos Autos e sob necessidade de constar o recibo de pagamento no processo. Por fim, entre muitas correspondências de solicitação e a procura do assento de batismo da noiva, o pároco de Triunfo remete cópia e o escrivão dá validade aos cumprimentos das penitências, por parte dos noivos. Sendo assim, aos dezessete de julho de 1820, concluem-se os Autos, com a permissão do casamento, sob o aval assinado pelo pároco, tendo os custos gerais a somatória de 4$860 mil réis, que correspondem às despesas com as correspondências, com a documentação, com a punição pelo impedimento de consanguinidade e com o pagamento do escrivão eclesiástico. O casamento ocorreu exatamente um mês após o encerramento dos Autos, com testemunhas que assinam, ao final do registro, como Joze Francisco de Abreu e Amaro Araújo Ribeiro. Além disso, após o caso concluído pelo pároco, que afirma que ambos cumpriram “nesta Freguesia os preceitos quaresmais”, sendo dispensados dos impedimentos, tornaram-se, assim, aptos para o casamento, que ocorreu no mesmo dia. 181 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” Caso: Manuel Gonçalves dos Santos e Felicidade Antonia de Jesus Aos trinta dias do mês de agosto de 1825, iniciou o levantamento dos Autos de Justificação dos nubentes Manuel Gonçalves dos Santos, viúvo, morador da Freguesia d’ Aldea (Gravataí) e Felicidade Antonia de Jesus, moradora da Freguesia Madre de Deus; ocorre devido ao impedimento de primeiro grau de afinidade lítica, ou seja, a noiva é irmã da primeira esposa de Manuel Gonçalves dos Santos. Todavia, este Auto se destaca pelo tipo de justificativa dada pelos nubentes para poderem contrair matrimônio. No relato que segue, pode-se observar que a noiva procura justificar o enlace matrimonial, dando ênfase às condições econômicas dos envolvidos. Segundo consta na documentação produzida pelo escrivão, a oradora justifica o casamento: Porque o orador não ser rico possui dois escravos e hum pequeno aranchamento. Nese vive de suas lavouras e pode muito bem sustentar a Oradora com [palavra ilegível] aquela Justifica (que) seos pais são pobres tem trez escravos e tão bem vivem de lavouras mays tem sete filhos, quatro machos, e trezfemeas e as não tem cazado pois não tem como lhes fazer dotes (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1825:3). O noivo, por sua vez, justifica dizendo que: (...) vive de suas lavouras e pode muito bem sustentar a Oradora […] a qual nada possui são seos pais pobres tem trez escravos e tão bem vivem de Lavouras, maiz tem sette filhos quatro maxos e trezfemeas e as quais as não tem cazado por não ter com que lhes fazer dote” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1825: 3). Entretanto, a partir do relato do noivo, evidencia-se que possa atribuir esse arranjo matrimonial a uma mera estratégia de cunho econômico para as famílias. O envolvimento sentimental dos noivos e dos laços precedentes destas famílias foi 182 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas indispensável para motivar a aliança. Destaca-se, sobretudo, o caráter de combinação entre os depoimentos da noiva e do noivo; a primeira, considera o casamento muito positivo, do ponto de vista econômico, porque, ao casar, poderia desafogar uma família que somava sete filhos. Além disso, o noivo reitera que pode “muito bem sustentar a Oradora”. Cada qual elabora a sua versão, a fim de convencer o pároco da necessidade do casamento, mesmo que os ditos “pais pobres” e noivo “não rico”, terem respectivamente, dois e três escravos. No mesmo relato, ambos alegam para o fato de os pais “não ter com lhes fazer dote” – alegação de que pobreza seria um obstáculo para que noiva conseguisse outro arranjo matrimonial, ou para os pais da noiva, principalmente: “Filhos casados, cuidados dobrados” (MELLO, 1986:96). Franzen (2004), ao estudar a mulher luso-açoriana, fala que a falta de dote e os custos para efetuar o matrimônio, muitas vezes, constituíram um empecilho para que noivas de origem luso-açoriana contraíssem núpcias. É possível conjecturar que isso, também, afetasse outras noivas em potencial, como é o caso de Felicidade de Jesus que, embora não seja de origem açoriana, alegava pobreza. As taxas cobradas pela Igreja, também, ocasionavam problemas para os noivos que quisessem casar. A pobreza em que viviam impossibilitava o cumprimento dessas obrigações. Por vezes, a noiva, sozinha na terra desconhecida, abrigava-se junto ao noivo, passando a viver de forma ‘infame’. A solução para o fato é observada no número muito grande de pedidos de isenção de taxas para a celebração do casamento, justificados pela extrema pobreza dos noivos e pelo desejo do homem de ‘salvar a mulher’ daquela condição que a impediria de conseguir algum casamento se não fosse com ele. Em alguns documentos, observa-se que o pagamento das taxas era substituído por trabalho que os noivos deveriam prestar para a Igreja (FRANZEN, 2004:5). 183 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” Através da ênfase e da repetição dada em favor do benefício para ambos – para o noivo, pela criação dos filhos e pelo pai, pelo fato de casar a filha – se observa uma troca de interesses. Sendo assim, um novo núcleo familiar desprende-se, no intuito de desafogar a carga dos ditos sete filhos, por parte dos sogros, em troca de a nova esposa se tornar responsável pelos três sobrinhos que já viviam na casa de seus pais (pais da noiva). Segundo Silva (1984), eram recorrentes as práticas de dispensas para determinados casos, tipicamente encontrados na realidade do Brasil Colonial, dentre elas, a permissão de casamentos entre familiares, o que envolvia a necessidade de subsistência e/ou de manutenção patrimonial dos cônjuges envolvidos e, sobretudo de suas famílias. Contudo, outras motivações, de ordens emocionais, foram encontradas como, por exemplo, a preocupação do noivo em enfatizar que o “cazamento esta publico pela vizinhança” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1825:4). O noivo procura deixar claro que a noiva mora com os pais, mas, que a intenção de casamento é pública e que não há coabitação entre ambos. No caso paulistano, Samara (1988) constata uma valorização, no que diz respeito à vontade dos noivos: Curioso, entretanto, foi observar, que embora os arranjos matrimoniais fossem feitos por interferência das famílias, evidências encontradas para a segunda metade do século XIX, apontam que a não aquiescência das partes envolvidas podia significar um rompimento de compromisso, o que indica uma evolução dos costumes, com uma participação mais ativa dos noivos na escolha do cônjuge (SAMARA, 1988: 99). Notou-se, durante o desenrolar do caso, a presença, no canto superior direito de cada página, os custos do processo, bem como a data e a quantia paga durante o desenvolvimento dos Autos. Desta forma, conclui-se que, em determinadas situa- 184 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ções e dependendo do poder aquisitivo dos nubentes, os custos contabilizados poderiam ser quitados durante o próprio desenvolvimento do processo. Quanto ao valor a ser pago pelos requerentes, variavam de acordo com as situações que se adequavam às demandas. Nos casos mais simples, poderiam agilizar os procedimentos, mas, em determinados casos, os custos adicionais poderiam se elevar ainda mais, dependendo do andamento dos casos e do tipo de impedimento que envolvia os candidatos ao altar. Além disso, a velocidade com que se desenrolavam os Autos dependia de dois fatores fundamentais para o andamento do processo: a eficiência na realização dos depoimentos das testemunhas e o êxito nas correspondências entre os párocos. Quanto às testemunhas, o escrivão procurava inquirir apenas três testemunhas, normalmente homens, preferencialmente casados e moradores da Freguesia na qual residia o nubente. As questões apresentadas às testemunhas buscavam identificar a veracidade das informações pessoais apresentadas pelo requerente e confirmar a sua condição de livre e desimpedido para contrair núpcias. No que confere às correspondências entre os párocos, estão presentes em todos os Autos, nos quais algum dos cônjuges e/ou ambos eram moradores e/ou naturais de outra localidade. Isto se deve à necessidade de cópias dos assentos de batismos, casamentos e/ou óbitos, que diziam respeito aos futuros esposos. Sendo assim, o objetivo dos testemunhos e das cartas emitidas e trocadas entre os vigários era dar credibilidade e legitimidade ao processo e à investigação promovida nos Autos. No termo de juramento de Manuel consta, ao final do requerimento, a confirmação do Pároco da Aldeia dos Anjos, que enfatiza a solicitação, dizendo: “recebido asimo prometi fazer e conferir. Recebido mesmo Reverendo Comissário mesmo Juramento” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO 185 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” ALEGRE, 1825:9). Diante dessa citação, é contundente a importância dada pelo vigário à confirmação do recebimento do pedido do pároco da Paróquia Madre de Deus de Porto Alegre e do seu comprometimento em emitir resposta. As testemunhas que aparecem nos Autos permitem confirmar as ideias de Faria (1998) e de muitos outros autores, no que se refere à mobilidade geográfica identificada em variados estudos e que é apontada como uma característica marcante na formação social brasileira, durante o período colonial. Na mesma linha de pensamento, os estudos de Nadalin (2003) apontam, por exemplo, que, mesmo com chegada da Corte e a abertura dos Portos, por um longo tempo durante o século XIX, o Brasil continuou comportando-se como colônia, sobretudo, nos aspectos institucionais e estruturais. Pode-se acrescentar a essas questões o próprio dinamismo territorial brasileiro e o processo tardio de povoamento em algumas localidades. Além disso, o autor afirma que: Tudo isso somado levou à adoção, neste artigo, de algumas estratégias, para evitar, inclusive, que se caia na vala comum das explicações e generalizações fáceis ligadas à transição demográfica. Porque parece-nos um lugar comum dizer que o regime demográfico da época colonial caracterizava-se por altas taxas de fecundidade e por altas taxas de mortalidade permitindo, no saldo final, um certo crescimento natural combinado com alguma imigração – mesmo que se complexifique o modelo, articulando este comportamento populacional com uma mobilidade interna bastante importante. (NADALIN, 2003: 224). No caso de Porto Alegre, que teve seu processo de formação e desenvolvimento já durante o período que se estende para a fase Imperial da História do Brasil, identifica-se que a localidade torna-se o centro da circulação de ideias, negociações, comércio, enfim, um espaço de constante transição de mercadorias e de pessoas de todas as partes do Império e do mundo. Segundo Ramos (2006): 186 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Uma cidade tem muitas formas de se deixar ver e também de ser lida. Muitos são os sentidos da cidade. Percebê-los, através da sua sociabilidade, é uma das formas de vê-la e lê-la. Considerando que a sociabilidade está imbricada nas condições econômicas e políticas dos habitantes, é mister ter em conta que ela vem no bojo dessas condições, mas é acrescida de distintas bagagens culturais e de costumes que poderiam ser inscritos na história de longa duração, que também acompanha os diferentes atores sociais urbanos. Em cada vila ou cidade do Rio Grande do Sul, no século XIX, é possível perceber esse processo de integração/segregação. Portanto, é possível, também, pensarmos que as relações sociais sul riograndenses estão inscritas nesse mesmo contexto (RAMOS, 2006: 444). Ao observar as características das testemunhas que fizeram parte dos Autos de Manuel e Felicidade, o primeiro a depor foi o Alferes Manoel Antonio Pais, natural de Minas Gerais, da Vila de São João d’ El Rei, casado, de idade de setenta e quatro anos, que diz viver de “agricultura” e que confirma conhecer os nubentes, bem como o impedimento de afinidade lícita, em primeiro grau. Segundo relata o escrivão, a testemunha: Dise que sabia que a Oradora Felicidade Antonia de Jesus era Irma legitima de Ignacia Antonia de Jesus molher que foi do lavrador Manoel Gonçalves dos Santos. Que elle sabia do ditto Orador lhe ficarão trez filhos do tempo [palavra ilegível] vivendo na caza dos Pais da Oradora [palavra ilegível] (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1825:10). As declarações das testemunhas podem ser consideradas a principal fonte de informações referentes à trajetória dos nubentes. É através desses relatos e, sobretudo, das questões propostas pelo escrivão eclesiástico, que aparecem: a idade, a naturalidade, a profissão, a condição social, o status social da família, etc.. As testemunhas, também, possibilitam inferir acerca dos tipos de relações estabelecidas – amizade, companheirismo, parentesco, enfim, inúmeras – conforme encontrado no relato da segunda testemunha, cujo nome encontra-se corroí- 187 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” do, mas, sabe-se que é natural de São Luiz de Mostardas, vive de negócios e tem quarenta anos. O depoente diz saber que os filhos do primeiro casamento do noivo “vivem na caza de seus pais (pais da noiva) aonde por elles são educados com todo amor e zello” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1825:10), bem como, procura enfatizar que “o Orador nunca raptou a Oradora nem a tem em seo poder a qual vive em Compania de seos pais (pais da noiva)” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1825:10). Destaca-se que, entre os impedimentos, em todos os Autos há menção de que a noiva não foi raptada pelo noivo. Não é possível precisar se haveria esta preocupação para com o rapto por uma questão de mero costume dos Autos e/ou porque em tal localidade se predispunha tal prática. Entretanto, comparando-se com a América Espanhola, neste caso, a Argentina, Garavaglia (2000) verificou que, durante o período colonial, a prática do rapto fazia-se recorrente: Lógicamente, muchos de estos bailes terminaban en amores. Amores frecuentemente violentos (lãs violaciones no eran raras y suelen ser, junto com lãs cuchilladas em riña, uma de lãs causas de delitos violentos que alcaldes y jueces enfrentan com cierta regularidad); también el ‘robô’ de la mujer – real o consentido por la querida – podia ser una de las consecuencias de esos amores. Entonces, el juez solía intervinir, como em San Nicolás, em 1832, cuando Damián Coria fue preso ‘por haver llevado de este partido uma muchacha robada y tenerla largo tempo consigo...’: pero, poco más tarde se caso ‘[...] com la Joven y em su virtud fue em livertad’ (GARAVAGLIA, 2000: 72). Todavia, os Autos não podem ser compreendidos como um processo linear e objetivo; pelo contrário, são repletos de lacunas e repetições. Observam-se idas e vindas, no caso da terceira testemunha, e encontra-se a confirmação das informações referentes aos nubentes. Entretanto, nesse caso, foi omitida pelo escrivão a caracterização da testemunha. Esses fatos ilustram 188 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas algumas das dificuldades de se trabalhar com essas fontes, além daquelas de cunho prático, como o estado de conservação e a dificuldade acarretada pela necessidade de leitura paleográfica. Tais situações apresentam desafios de ordem interpretativa, devido às peculiaridades linguísticas e de redação de cada escrivão eclesiástico, que serve de interlocutor com esse passado. Por fim, deste segundo caso apresentado, foram arrolados os custos desse processo, no valor de 1$596 réis. Constam ainda, a assinatura do termo de pagamento por parte do escrivão e o termo de penitência do pároco imposto aos noivos para que, assim, pudessem tornar-se aptos a contrair matrimônio, sem nenhum impedimento. A conclusão do Auto deu-se no dia vinte e nove de novembro de 1825 e o casamento realizouse no dia nove de janeiro de 1826, tendo por testemunhas de casamento, que assinaram: Constantino da Silveira Vargas e Antonio Alvares Pereira. Caso: Francisco Angelo Ther e Margarida Julia de Lima Em dez de janeiro de 1826, foram duas as causas que levaram Francisco Angelo Ther e Margarida Julia de Lima a entrarem com Autos de Justificação Matrimonial. Primeiramente, por conta de o nubente ser natural da França e, em segundo lugar, porque a noiva era exposta. Neste processo, também, consta, em anexo, carta de Pedro Felipe Ther, pai do noivo, que confirma estar consciente do casamento e ser o mesmo livre e desimpedido. As três testemunhas fornecem pistas da trajetória deste nubente até Porto Alegre, e o anexo da cópia de batismo da noiva informa sua condição de exposta. Na carta anexada nos Autos, o pai confirma ser o noivo batizado, o que, pela data referida do batismo, indica que o nubente tinha vinte e oito anos quando se casou. No entanto, não se verificam, nos Autos, nenhuma testemunha ou indicações do próprio Justificante a respeito de sua profissão e/ou de seu pai e irmãos. 189 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” Figura 2: Ilustração da Carta do pai do noivo em anexo nos Autos Fonte: Paróquia Nossa Senhora Madre de Deus Porto Alegre (1826). A primeira testemunha que aparece nos Autos deste caso foi Antonio Gondrét, homem branco, solteiro, morador da Cidade de Porto Alegre, natural do Reino da França, de idade de trinta e três anos. Segundo consta nos Autos, disse que o noivo “veio para esta terra a traz de seo pai, […] com seos dois Irmaos e hé o mesmo solteiro, livre e desempedido, emais não dise” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1826: 4). Já a segunda testemunha, Guilherme Boulliech, mereceu maior destaque do escrivão, talvez, por 190 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas demonstrar ter maior conhecimento do nubente, pois, segundo as informações do referido escrivão, Guilherme era homem branco, solteiro, morador da cidade de Porto Alegre, natural da Moufille. Ele vivia “de seo negocio” e tinha trinta e oito anos de idade: Dise que conhece perfeitamente o Justificante Francisco Angelo Ther, a sua familia por ser na sua terra vizinho da mesma, o qual hé o próprio na sua petição nomeada e partio de nove annossolteiro para a sua terra a traz de seo pai e sabe por ver, que hé solteiro athé o prezente (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1826:5). A última testemunha, Paulo Marrot, “homem branco, cazado, morador nesta cidade natural da Cidade de Vinott, que vive de seu negocio e tem a idade de quarenta e um anos: Dise que conhece o Justificante Francisco Angelo Ther e a seo pai e [palavra ilegível] parte de trezannos nesta Cidade o que a todos vierão da França e sabe por lhe constar com verdade ser o mesmo justificante o próprio, é solteiro, livre e dezempedido (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1826: 6). Todas as testemunhas assinaram seus depoimentos. Além disso, consta em anexo a carta do pai do nubente, autorizando o matrimônio, na qual diz: “Eu abaixo assinannado pedro Felipe Ther concedo licença a meu filho Francisco angelo de ligar-se com os Sagrados laços do homem” (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1826:4). Quanto à noiva, consta em anexo uma cópia de seu registro de batismo, no qual refere-se à Margarida como exposta em casa do Tenente Felisberto Francisco de Abreu e sua esposa, Margarida Engracia de Menezes. Neste auto, foram confirmados os relatos das testemunhas e pagos os custos, inclusive do selo correspondente à carta do pai do nubente, emitida da França. 191 FREITAS D. T. L. • “Matrimônio, praça sitiada: os de fora querem entrar, ...” Os Autos encerram-se em quatorze de janeiro de 1826 e o casamento ocorreu em quinze de janeiro de 1826. Destaca-se o fato de, nos Autos, constarem apenas testemunhas estrangeiras; entretanto, no registro de casamento, as testemunhas modificam-se, isto é, assinam Maria Amalia Candida Ladislau Gulart e Candido Ladislau Japi-Afré. Percebe-se, com isso, que o grupo social do noivo tende a expandir para além de seu círculo de relacionamento com imigrantes franceses. Outro dado que chama a atenção, nesta trajetória, é a notória agilidade pela qual se concluem os Autos e realiza-se a cerimônia, neste caso, um dia após o encerramento dos Autos. “Falem agora ou calem-se para sempre”: alguns apontamentos finais De modo geral, procurou-se, através destes três casos, adentrar no mundo dos casamentos. Todavia privilegiamos um novo olhar para o leitor, isto é, verificando os bastidores das núpcias. Ao alterarmos o foco de análise, buscamos evidenciar mais do que quem casou em Porto Alegre, mas sim, demonstrar as estratégias de quem contraiu matrimônio nesta localidade. A partir das trajetórias apresentadas pretendemos problematizar o casamento, mostrando-o como uma importante etapa no ciclo de vida daqueles que optaram pelo matrimônio. Procuramos evidenciar as dificuldades e possíveis embaraços que poderiam complicar as escolhas dos nubentes, bem como, dar nuances do complicado jogo de estratégias matrimoniais dispostos no mercado matrimonial colocado nesta freguesia durante a transição do século XVIII para o XIX. Para tanto, foi necessário uma alteração de escala, isto é, partir-se do macro para o micro, saindo do perfil demográfico de quem casa para procurar entender o porquê casam esses 192 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas indivíduos dessa Freguesia. Desta forma, através das trajetórias dos nubentes, identificadas pelo cruzamento dos registros de casamento com os Autos de Matrimônio, buscou-se realizar uma análise geral sobre os fragmentos de quem casou na Paróquia Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre. Referências ALMEIDA, Suely Cordeiro de. Noivas de Adão e noivas de Cristo: sedução, casamento e dotação feminina no Pernambuco Colonial. 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A mãe e o pai da cria (como aparece nas fontes) viam reafirmando o propósito comum de juntarem suas forças de modo a melhor viver a vida possível. Ambos arrumavam um compadre e, muitas vezes, uma comadre. E, talvez, cunhados, sogros e sogras. E se a criança, o que não era fácil, sobreviver até a idade de procriar, muito mais alargada ainda seria essa rede de laços de solidariedade e aliança. Parece óbvio que a criação de laços parentais fosse desejo de todos os escravos. [...] (FLORENTINO e GÓES, 1997: 173-4). No dia 8 de novembro de 1803, às nove horas da manhã, era celebrado na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário em Rio Pardo o matrimônio de Antônio e Maria, escravos de Antônio de Souza Nunes. Consta no registro de casamento deste casal, além de seus prenomes e a referência do proprietário, o nome das duas testemunhas: Manoel Muniz Simões e Antônio da Silveira, ambos livres. Antônio era natural da África, procedente de Moçambique e Maria era crioula, “cria da casa”, ou seja, havia nascido 196 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas na freguesia em que estava realizando seu casamento e era, portanto, natural de Rio Pardo. Antônio tinha 18 anos quando se casou e Maria 21 anos. Certamente trabalhavam no cultivo de gêneros alimentícios e Antônio também lidava com o gado, uma vez que tinha o ofício de campeiro. A união desse casal cativo foi relativamente longa, estável e profícua, pois Maria e Antônio batizaram seis filhos entre setembro de 1806 e outubro de 1817. Em 1835, ano em que foi aberto o inventário de Antônio de Souza Nunes, pelo menos três filhos permaneciam na propriedade: Narciso de 19 anos, Firmino de 20 anos e Lauriana de 22 anos. A morte não deixou intocada a família de Maria crioula e Antônio Moçambique. Na primavera de 1820, no dia 18 de maio, na tentativa de novo parto, Maria veio a falecer juntamente com o filho, tinha então 48 anos de idade, tendo vivido pelo menos 21 anos na companhia do esposo e dos filhos. Foi enterrada, assim como o inocente Pedro, no Adro da Matriz de Rio Pardo. De acordo com o inventário de Antônio de Souza Nunes, em 1835 a posse de escravos desse proprietário era de 67 escravos, dos quais 28 foram listados com relações familiares de primeiro grau. Ou seja, cerca de 40% dos cativos desse plantel viviam entre familiares. E essa participação pode ter sido ainda mais significativa uma vez que não consta dessa relação as esposas e esposos já falecidos e, igualmente, parte de suas proles. A reconstituição dessa família e de outras mais que viveram nas Freguesias da Fronteira Oeste do Rio Grande, demonstra que pelo menos em alguns casos houve condições delas serem bem-sucedidas, com relativa estabilidade e duração longa da união, prole numerosa e, baixo número de óbitos no período. O que poderia até surpreender em uma região que pouco se assemelhava economicamente às plantations do sudeste brasi- 197 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro leiro, áreas de reconhecida estabilidade da família escrava (FLORENTINO e GÓES, 1997; SLENES, 1999). Mesmo que a trajetória familiar de Antônio e Maria possa não ter sido a regra entre os escravos da região analisada, pode-se dizer que a família escrava garantiu espaço para se efetivar em uma área onde os plantéis de escravos eram em geral pequenos, mesmo quando se tratava de grandes posses, como no caso do senhor Antônio de Souza Nunes, que tinha seus escravos espalhados por quatro estâncias. Alguns documentos da época são claros em mencionar o quanto os escravos deveriam ser incentivados pelos senhores a uma prática religiosa católica. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) possuíram um título inteiro dedicado a alertar aos senhores o fato de eles serem obrigados, como bons cristãos, a ensinar ou fazer ensinar a doutrina cristã aos filhos, discípulos, criados e escravos: [...] mandamos a todas as pessoas, assim eclesiásticas, como seculares, ensinarem ou façam ensinar a Doutrina Cristã à sua família e especialmente a seus escravos que são os mais necessitados desta instituição pela sua rudeza. Mandando-os para a igreja, para que o pároco lhes ensine os Artigos da Fé, para saberem bem crer: o Pai Nosso, e Ave Maria, para saberem bem pedir: Os Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja, os pecados mortais. Para saberem bem obrar: as virtudes para que os sigam e os sete sacramentos, para que dignamente os recebam, e com eles, a graça que dão, e as mais orações da graça cristã. Para que seja em tudo o que importa para a sua salvação. E encarregamos gravemente às consciências das sobreditas pessoas, para que assim o façam, atendendo conta, que tudo darão a Nosso Senhor1. 1 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de sua majestade: propostas e aceitas em Sínodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707. Primeira edição, Lisboa 1719 e Coimbra. São Paulo: Typografia 2 de dezembro de Antônio Louzada Nunes, 1853, Título 2, parágrafo 4. 198 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Nesse caso, Antônio de Souza Nunes provavelmente se enquadre naquele perfil de homem misericordioso e devoto. Pesquisando em outras fontes, descobriu-se que esse proprietário levou ao altar outros 9 casais entre 1779 e 1830 e à pia batismal um total de 28 escravos, tendo sido todos eles inocentes recém-nascidos. Vejamos um pouco mais sobre a sua história e a de seus escravos. Escravos de Antônio de Souza Nunes O estancieiro Antônio de Souza Nunes era senhor de muitos escravos. Seu inventário é datado de 1835. Através dos bens arrolados pelos avaliadores encontra-se o orçamento demonstrativo dos bens da herança, entre os quais é possível observar a avaliação das terras, benfeitorias, casas, lavouras, animais e escravos. Antônio era detentor de uma morada de casas, com arvoredo, na vila de Rio Pardo (700$000), um rincão de campos com seus bens de capões e matos (2:500$000), um rincão de campos na Guardinha (2:500$000), pedaço de campo na Guardinha de São Sebastião (500$000), uma chácara no arroio das pedras com casas e telhas (1:600$000), uma parte de campos na beira do rio Jacuí (800$000) e uma morada de casas na tapera do arroio das pedras (60$000). Possuía, ainda, 2221 reses (9:358$000) e 230 cavalos e potros (386$400). Entre as ferramentas descritas em seu inventário consta 1 forno de fazer farinha, 8 machados de carpintaria, travadeiras, martelos grandes e pequenos, serra braçal de mão, foices de colher trigo, 4 arados de ferro, 9 enxadas e 4 pás. Entre as propriedades foram avaliados 67 escravos dos quais 28 possuíam parentesco evidente e encontravam-se divididos em dez famílias. No inventário de Antônio de Souza Nunes, os avaliadores mencionaram os casais e seus filhos menores de 10 anos, assim como mães solteiras ou viúvas com seus filhos menores. 199 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro Os jovens com mais de 10 anos foram indicados apenas como “solteiros”, mesmo quando possuíam os pais presentes. Essa constatação dá a entender que algumas vezes os inventariantes deixavam de declarar o parentesco, provavelmente por esquecimento ou pouco interesse, fazendo com que o número de pessoas sem parentesco se apresentasse superestimado nos inventários. Em 1835, entre as propriedades de Antônio de Souza Nunes viviam quatro (5,97%) crianças com 9 ou menos anos de idade. Todas elas pertenciam a famílias com ao menos um dos genitores presentes. 28 integrantes do plantel (41,79%) compunham as dez famílias por identificadas no estudo (Quadro 1). Do total de famílias, sete eram compostas por casais escravos, duas eram chefiadas por mães solteiras e outra por uma viúva. Analisando-se os valores das idades médias, bem como o número de filhos, os dados apontam para vínculos familiares que se haviam estabelecido já há vários anos, e cuja duração denota a estabilidade daquelas relações. De fato, dentre os dez filhos pertencentes àquelas dez famílias, presentes e identificadas através do inventário (e do cruzamento com outras fontes) o mais novo tinha 4 anos e o mais velho 40 anos de idade. A maioria desses 28 cativos integrantes das dez famílias foi identificada no inventário de 1835, sendo seus integrantes partilhados entre os herdeiros de Antônio de Souza Nunes ou sendo por ele legados em seu testamento; outros, também por disposição testamentária, sendo beneficiados com a concessão de alforrias. 200 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Quadro 1: Casamentos entre cativos de Antônio de Souza Nunes Data do Casamento Marido Condição Mulher do Marido Condição da Mulher 11/9/1779 José Angola escravo Roza Angola escrava 31/1/1795 Pedro Congo escravo Izabel Banguela escrava 8/1/1803 Antônio da Costa escravo Maria Crioula escrava 23/12/1813 Domingos Guiné escravo Maria Guiné escrava 20/1/1824 Manoel Mina escravo Ignácia Mina escrava 7/1/1828 José Crioulo escravo Catarina Crioula escrava 29/9/1828 Raimundo Guiné escravo Damázia Guiné escrava 30/4/1830 Vicente Congo escravo Luiza Conga escrava 22/7/1830 Daniel Crioulo escravo Rita Crioula escrava 22/7/1830 Joaquim Mina escravo Silvéria Crioula escrava Fonte: Inventário post-mortem, APERS. Através do levantamento realizado dos registros paroquiais de casamentos obteve-se a confirmação da estabilidade vivenciada pelas famílias escravas. Dessa forma conheceu-se a família de Vicente e Luiza, cujo matrimônio foi confirmado em 30/4/1830. Na avaliação de 1835, eles são descritos como casados e possuem 43 e 45 anos de idade respectivamente. Dos dez agrupamentos familiares chefiados por casais, foi possível identificar os assentos de casamentos para nove casos. Os enlaces pertinentes ocorreram entre setembro de 1779 e julho de 1830 (por exemplo, em 20 de janeiro de 1824, a escrava Ignácia Mina casava-se com Manoel Mina). Segundo a historiografia, era bastante comum que as escravas se cassassem após a concepção do primeiro filho. No estudo sobre a cidade de Lorena, Schwartz, Slenes e Costa2, anali2 COSTA, I Del Nero da, SLENES, R. W; SCHWARTZ, S. B. A família escrava em Lorena (1801). Estudos Econômicos, v. 17, n. 2, p. 245-95, maio/ago. 1987. 201 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro sando a distribuição das famílias com um ou mais filhos sobreviventes presentes no censo de 1801, chamaram a atenção para o fato de que as famílias chefiadas por mães solteiras predominavam na faixa de um filho. Através do exame dos assentos de batismos dos escravos de Antônio de Souza Nunes, encontrouse a escrava Ignácia que teve a pequena Lourença anteriormente à legitimação de sua união com o escravo Manoel. Para se chegar a essa conclusão, foram separados os registros de batismo compostos por mães e filhos e, em seguida, comparados com aquelas que haviam chegado ao altar. Pôde-se então constatar que Ignácia aparecia nos assentos de batismos como mãe solteira e que havia contraído matrimônio posteriormente, sendo arrolada no inventário juntamente com seu marido e filhos. Quadro 2: Batismos dos cativos de Antônio de Souza Nunes Data Inocente Pai Mãe Padrinho Joana Tereza preta Miguel escravo 26/2/1797 Maria 4/7/1818 Manoel 28/5/1820 Hilário N/C Madrinha Tereza escrava Pedro Banguela Izabel Banguela Antônio forro Maria Índia N/C Joana Preta Antônio forro Maria Índia Domingos Banguela Maria Crioula José escravo Florinda escrava Márcia Manoel escravo Bernarda escrava 28/2/1826 Mauricia Mariano 16/7/1826 Mateus Africano 14 anos Bernardo escravo 16/7/1816 Miguel Africano 12 anos Bernardo escravo 17/11/1829 Bernarda Da Costa 14 anos José escravo Benedita escrava Gaspar Da Costa 10 anos José escravo Catarina escrava Miguel Africano 12 anos Bernardo escravo 14/10/1821 Sebastião Maurício Rebolo Mariana Guiné Manoel escravo 15/6/1821 Lourença N/C Ignácia Felipa escrava Domingos escravo Juliana escrava 6/11/1822 Felisbino N/C Joana preta N/C N/C 21/3/1824 Narciso Roza Rebolo N/C N/C 202 Tomás Benguela História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas 1/11/1825 Josefa Manoel Ignácia João escravo 15/1/1826 Tomé N/C Florinda preta Garcia escravo Josefa escrava Delfina escrava 11/09/1814 Perpétua Maurício Rebolo Mariana Guiné Francisco escravo Josefa escrava 21/1/1816 Narciso Antônio Maria José preto forro Maria Índia 21/1/1816 Matias Antônio Francisca Antônio forro 21/10/1816 Silvéria Maurício Rebolo Mariana Guiné Manoel escravo Ana escrava 23/4/1817 Generoso Antônio Maria escrava Francisca Antônio escravo Maria escrava Maria Guiné Jacinto Albuquerque Maria forra 29/10/1817 Firmino Antônio Maria Antônio escravo Benedita escrava 12/4/1819 Delfina Mariana Guiné Manoel escravo Leduvina Domingos Banguela Mauricio Rebolo 17/9/1827 Januário Preto da Costa N/C 17/10/1829 Adriana 1/5/1809 Raimundo Joaquim José preto José escravo Silvéria escrava Joaquina escrava Damázia Custódio Matilde Pereira Maria Preta Joaquim escravo Gertrudes escrava José escravo Maria escrava 30/7/1820 Prudenciana N/C Joana Preta 2/9/1781 Maria N/C Joana Preta Antônio escravo Roza escrava 7/3/1810 Daniel Mauricio Rebolo Mariana Crioula Antônio escravo Josefa escrava Antônio Maria Gaspar escravo Maria Índia 28/6/1812 Salvador Mauricio Rebolo 19/1/1812 João Mariana Crioula Antônio escravo Joaquina escrava 29/8/1813 Lauriana Antônio Maria Francisco escravo Ana escrava 2/1/1814 Fidelis N/C Antônia Pedro Gonçalves Izabel Maria forra 8/9/1806 Felicidade José Maria Paulo escravo Francisca escrava Domingos Banguela Maria Crioula João escravo Maria escrava Florinda Pedro escravo Roza escrava 8/10/1815 Izabel 12/3/1831 Firmino N/C Fonte: ACMPOA. Assentos de batismos da paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. 203 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro Tamanho dos planteis e legitimidade da família escrava Como era de se esperar, a correspondência da região marcadamente voltada para uma base econômica interna, onde predominavam pequenos e médios plantéis de escravos, foram raros os casos de proprietários como Antônio de Souza Nunes que levaram mais de 4 casais de escravos ao altar. Com efeito, ao se tomar os 10 proprietários da região com maior número de uniões entre seus cativos no período de 1762 a 1809, observa-se que eles absorvem 26,31% de todos os casamentos. Na Fronteira Oeste do Rio Grande mais da metade dos escravos vivia em propriedades cujas posses variavam entre 1 a 10 cativos, entre 1764 e 1835. Nesse contexto de senhores de poucos escravos é evidente que cativos das pequenas escravarias enfrentavam maiores dificuldades para formar uma família e mantê-la ao longo do tempo que aqueles mais aquinhoados que tinham médias e grandes posses de escravos. Cruzando seus nomes com outros documentos, a exemplo dos inventários, confirma-se a proposição de que nas propriedades maiores os escravos encontravam melhores oportunidades para formar famílias estáveis (METCALF, 1987: 237). Entre 1755 e 1809 foram, nesse caso, os comerciantes como Manoel José Machado e Matheus Simões Pires, além dos estancieiros, donos de grandes rebanhos, como Antônio de Souza Nunes, aqueles que conseguiram reunir melhores as condições que propiciaram a formação das famílias legitimadas pela Igreja, conforme Quadro 4 a seguir. 204 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Quadro 3: Lista dos proprietários que mais levaram escravos ao altar na Fronteira Oeste do Rio Grande, 1764-1809 Proprietário Ocupação Freguesia Casa- Total % sobre mentos total 1. Manoel José Machado Comerciante Rio Pardo 9 9 2. Manoel Bento da Rocha N/C 3,94 Rio Pardo 8 17 7,46 3. Felisberto Pinto Bandeira Comerciante Rio Pardo 8 25 10,97 4. Francisco Velozo Rabelo Comerciante Rio Pardo 7 32 14,04 5. Mateus Simões Pires Comerciante Rio Pardo 7 39 17,11 6. Luiz Severino José de Carvalho N/C Rio Pardo 5 44 19,30 7. José da Roza Garcia N/C Rio Pardo 4 48 21,06 8. João Pereira Fortes Comerciante Rio Pardo 4 52 22,80 9. Antônio de Souza Nunes Criador Rio Pardo 4 56 24,56 10. Antônio Gonçalves da Cunha Rio Pardo 4 60 26,31 228 100 Criador Total de casamentos na região Fonte: Inventários post-mortem, APERS/Livros de Casamentos das freguesias de Caçapava, Encruzilhada, Cachoeira e Rio Pardo. Não por um acaso no período seguinte, observado entre os anos de 1810 a 1835, apareceram entre os proprietários que mais levaram escravos ao altar, os charqueadores, ainda que se tenha mantido o destaque reservado aos proprietários comerciantes. Nesse período, como já demonstrado através da análise da estrutura das posses, houve maior concentração das grandes escravarias. Em correspondência a essa característica, observa-se que os 10 proprietários que mais levaram escravos ao altar passaram a absorver quase 40% dos 134 matrimônios onde ambos os nubentes eram escravos. No topo da lista aparecem as figuras de Bibiano José Carneiro da Fonseca e Manoel José Machado (filho), ricos estancieiros e charqueadores, o primeiro também era militar e mantinha negócios em outras localidades, tendo sido um dos maiores proprietários também em Porto Alegre, cidade onde 205 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro batizou e levou ao altar mais algumas dúzias de escravos e onde viveu seus últimos dias. O segundo era filho homônimo de um dos mais prósperos comerciantes locais, que já encabeçava a lista dos principais escravistas no período anterior. Como se pode ver, o tamanho da escravaria determina maiores ou menores chances do escravo encontrar um parceiro, pois como já verificou Slenes, havia maior número de escravos casados e viúvos em médias e grandes posses, ou seja, com 10 ou mais escravos (SLENES, 1999: 71-2). Característica que confirma-se também para a economia de abastecimento interno referente à Fronteira Oeste do Rio Grande, onde se percebeu através das fontes já citadas que quanto maior o tamanho da escravaria maiores eram as chances de o(a) escravo(a) encontrar um parceiro(a), especialmente as mulheres dada a razão de sexo ser mais elevada entre cativos adultos (aproximadamente 180). Quadro 4: Lista dos proprietários que mais levaram escravos ao altar na Fronteira Oeste do Rio Grande, 1810-1835 Proprietário Ocupação Freguesia Bibiano José Carneiro Fonseca Comerciante Rio Pardo 11 11 8,20 Manoel José Machado Charqueador Rio Pardo 7 18 13,43 Antônio de Souza Nunes Comerciante Rio Pardo 7 25 18,65 José de Freitas Teixeira N/C Encruzilhada 6 31 23,14 Manoel de Macedo Brun Comerciante Rio Pardo 4 35 26,11 Antônio Simões Pires Militar/Estanc. Rio Pardo 4 39 29,10 Fortunato Luiz Barreto N/C Encruzilhada 4 43 32,09 João Batista Simões N/C Rio Pardo 3 46 34,32 Felisberto Pinto Bandeira Comerciante Rio Pardo 3 49 36,57 Antônio Machado Bittencourt Encruzilhada 3 52 38,81 349 100 Comerciante Casa- Total % sobre mentos total Total de casamentos na região Fonte: Inventários post-mortem, APERS/Livros de Casamentos das freguesias de Caçapava, Encruzilhada, Cachoeira e Rio Pardo. 206 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Sérgio Nadalin (2003), refletindo sobre os regimes demográficos do passado colonial brasileiro, analisa, dentre outros, o sistema demográfico da plantation. Nele, o autor alerta para a necessidade de se distinguir dois “regimes demográficos restritos”: o das camadas senhoriais e a dos escravos. Neste último, a flutuação da produção e exportação do açúcar, o volume, a continuidade e custo do tráfico e, por fim, o reforço da cultura africana, as razões de sexo e a estrutura etária dessa população, são elementos que devem ser levados em conta. Na região em foco, conforme se verificou, o montante dos plantéis e o tipo de atividade desenvolvida pelos proprietários refletiam em disparidades entre o peso de homens e mulheres. Em outras palavras, isso significa dizer que para uma parcela dos escravos tornava-se, por conseguinte, praticamente impossível obter companheira estável. Por exemplo, se considerar-se que entre a população escrava da região havia uma razão de sexo de 180 homens para cada 100 mulheres então pode-se dizer que havia para cada grupo de 180 homens, apenas 100 que poderiam encontrar parceiras. Lembrando-se sempre que, no caso dos escravos, as uniões ocorriam, via de regra, dentro dos plantéis (COSTA et al., 1987: 254; SLENES, 1987: 223; METCALF, 1983) o que dificultava ainda mais, pois neste caso tornava-se necessário o equilíbrio entre sexos em nível de propriedades. Sendo assim, o efeito inibidor provocado pela preferência nas uniões dentro dos plantéis, constitui um importante entrave redutor da proporção de escravos que conseguiam uma relação conjugal estável, comparativamente ao número potencial máximo calculado, quando se considera a população escrava como um todo. Outro ajuste também indicado como inibidor das possibilidades de casamentos, diz respeito à correspondência entre as faixas etárias, em nível das propriedades entre os indivíduos dos dois sexos. Por exemplo, em um plantel com 207 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro um homem de 15 anos e uma mulher de 49 anos, para efeito de cálculos, foi considerado como representando um casal potencial. Outro, entretanto, em que havia 3 homens com idades entre 15 e 49 anos e 1 mulher de 60 anos não foi considerado. Dentro dessas hipóteses, tomando o conjunto dos inventários como um todo, o potencial máximo de escravos possível de casamento alcançava 61,07% da população escrava existente em Rio Pardo e Caçapava entre 1764 e 1835. Quadro 5: Faixa Etária dos escravos, inventariados na Fronteira Oeste do Rio Grande, 1764-1835 Freguesia Caçapava Total % 882 21 903 29,45 15 a 49 anos 1.823 50 1.873 61,07 50 anos ou + 285 6 291 9,48 2.990 77 3.067 100 0 a 14 anos Total Rio Pardo Fonte: Inventários post-mortem. APERS. Essas também são questões que se somam às já referidas reforçando a tese de que, plantéis com maior número de cativos facilitariam a localização de possíveis cônjuges. Dado encontrado, por exemplo, para Lorena e Cruzeiro, áreas caracterizadas por produção de alimentos, de café, de cana-de-açúcar e início de uma atividade comercial, em 1874. Dos cativos de propriedades com até 4 escravos, 16,7% estavam envolvidos em uniões legítimas, contra 71,6% de escravos das propriedades com 40 ou mais cativos (MOTTA e MARCONDES, 2000: 111). Em Bananal, nos anos de 1801, antes da difusão do café na localidade, em 1817, no momento de introdução do cultivo, e em 1829, quando a região caminhava para a plantations, as frequências de casados e de viúvos aumentaram com a elevação do número de cativos por propriedades (MOTTA, 1999: 307). 208 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Nota-se que o maior número de casamentos nas maiores propriedades ocorria mesmo tendo essas elevadas razões de sexo entre os escravos. Dentre outros, Luna (1992: 458), em estudo sobre 25 localidades de São Paulo nos anos de 1777, de 1804 e de 1829, afirmou que: “nos maiores plantéis, apesar da alta razão de masculinidade, a influência do tamanho do plantel na determinação da proporção de casamentos mostrava-se suficientemente forte para provocar maior proporção de casamentos”. O mesmo foi encontrado por Costa e Nozoe (1989: 342), em Lorena, no ano de 1801, onde os percentuais de escravos casados e de viúvos, calculados sobre a população escrava acima de 14 anos, e o número de homens escravos, tenderam a aumentar com a faixa de tamanho dos plantéis. Quadro 6: Tamanho do plantel e participação de casados e viúvos na Fronteira Oeste do Rio Grande, 1764-1835 Número de escravos possuídos 1764-1809 1 a 3 escravos 1810-1835 Total # % # % # % 10 17,5 5 2,2 15 5,2 4 a 9 escravos 19 33,3 40 17,3 59 20,4 10 a 20 escravos 28 49,1 74 31,8 95 32,9 > de 20 escravos — — 113 48,7 120 41,5 Total 57 100 232 100 289 100 Fonte: Inventários post-mortem, APERS. Conforme se pode observar através do Quadro 4, na Fronteira Oeste do Rio Grande, entre os proprietários inventariados, aqueles que possuíam pequenos e médios plantéis somavam, respectivamente, 5,2 e 20,4% dos casados, já os senhores detentores das maiores escravarias contabilizavam entre 32,9 e 41,5%. Esses resultados ocorreram apesar da elevada desproporção entre os sexos a favor dos homens existentes nos plantéis acima de 20 cativos. E não podem explicar-se pela diferen- 209 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro ça nas estruturas etárias dos escravos possuídos por grandes e pequenos proprietários. Os dois apresentaram perfil similar quanto às idades, com cerca de 30% de crianças, 65% de indivíduos de 15 a 49 anos e cerca de 5% de pessoas com 50 anos ou mais. A causa provavelmente relaciona-se com a própria composição dos plantéis. Confirma-se, com isso, a hipótese já referida de que havia uma tendência maior às relações conjugais frente aos maiores plantéis, nos pequenos era reduzida a probabilidade de existir um homem e uma mulher, com faixas etárias compatíveis, apesar de mostrarem no conjunto a eles atribuído, maior equilíbrio entre os sexos. Analisando as características das famílias formadas entre 1750 e 1835, na Fronteira Oeste da Capitania (depois província) do Rio Grande de São Pedro observou-se também de que forma as ditas características foram alteradas em decorrência da transformação econômica e demográfica verificadas na região entre os dois períodos anteriormente descritos. Observando-se que as famílias legitimadas pelo matrimônio não foram predominantes na região, correspondendo a 33,8% entre 1755 e 1809 e a 24,6% entre 1810 e 1835. As constituídas por mães solteiras e seus filhos, representaram 66,2 e 75,4%, respectivamente. As últimas resultaram, quer de uniões estáveis, quer de encontros acidentais. A representatividade de mães solteiras e filhos, já marcante entre 1755 a 1809, tornou-se mais frequente após 1810, num momento de transformação econômica e demográfica. Unindo os dados dos casamentos, foram encontrados 572 matrimônios entre 1762 e 1809, o que representa 58,6% dos matrimônios e, 41,4% entre 1810 e 1835 apesar do importante crescimento populacional verificado nesse período. Esse perfil pode ser resultado de um crescente desinteresse senhorial na oficialização da união dos cativos, evitando, 210 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas assim, a intervenção da Igreja em sua relação com os escravos e, particularmente, quando houvesse necessidade de vender separadamente um dos cônjuges. No caso de senhores que apoiassem ou tolerassem o casamento de seus escravos, os últimos deveriam buscar cônjuges nos limites das propriedades em que viviam e trabalhavam3. Entretanto, entre 1810 e 1835 a região vivenciou o aumento de trabalhadores de muitos plantéis e, consequentemente, maior oferta de possíveis noivos. Já o processo de “crioulização” daqueles que continuaram em cativeiro promoveu a formação de escravarias que dispunham de laços parentais4. Os dois movimentos talvez possam ter gerado uma dificuldade a mais na localização de parceiros nos limites das propriedades. Alguns cativos conseguiram casar. Entretanto, a maior parte, provavelmente, buscou seus companheiros, quando escravos, nas propriedades vizinhas, inviabilizando a oficialização da união. Outros se associaram aos forros e, os demais, aos livres. A partir desse período, em um momento de maior demanda pelo trabalho escravo, também mudavam as atitudes senhoriais com relação a seus cativos. Enquanto a reposição passou a ser mais facilmente garantida, a intervenção da Igreja nas relações senhor-escravo tornava-se mais amenizada. Sheila Faria explica esse contexto de aumento da ilegitimidade e de diminuição de casamentos entre escravos como “uma cristalização do processo de interferência direta dos senhores na vida particular dos negros cativos” (FARIA, 1998: 339). Ao lado disso, a autora levantou também a hipótese do aumento de práticas africanas, que passaram a ditar as vidas e as formas de organização familiar, em decorrência do grande desembarque de cativos africanos na primeira metade do século XIX. Florentino e Góes (1997: 3 4 Como visto, os casamentos ocorriam entre escravos de um mesmo senhor. A crioulização resultou da reprodução natural e/ou da compra via tráfico interno. 211 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro 141-4) também observaram a diminuição de famílias legítimas no agrofluminense, na primeira metade do século XIX. Segundo eles, o aumento do número de africanos, correspondendo à chegada de estrangeiros, de não aparentados, gerou uma urgência na criação de laços, fazendo com que eles se unissem, sem necessariamente passar pelo sacramento do matrimônio. A partir da comparação dos números de escravos casados, viúvos e filhos legítimos e os de mães solteiras e filhos naturais encontrados em Lorena, em 1801, e em Lorena e Cruzeiro, em 1874, Motta e Marcondes (2000: 109) verificaram a diminuição percentual de escravos envolvidos em famílias legítimas e o aumento de cativos ligados às formadas por mães solteiras. Os percentuais de escravos que participaram das famílias legitimadas foram de 38%, no ano de 1801, e de 27%, na década de 1870 (MOTTA e MARCONDES, 2000: 109-10). Como decorrência da alta representatividade de famílias matrifocais e seu percentual ao longo dos anos, a principal referência dos escravos foi à ilegitimidade. Com efeito, dos cativos com laços parentais, cerca de 70% viviam em famílias encabeçadas por mulheres solteiras. Enquanto isso, 30% dos trabalhadores compulsórios participavam de famílias nucleares, ou seja, compostas por casais com seus filhos. Analisando a composição dessas famílias entre um período e outro, nota-se que no avançar para o século XIX ocorre a redução dessas famílias nucleares, mas, no geral, aumenta a presença de escravos envolvidos em outros tipos de famílias5: entre 1755 e 1809, 2.247 crianças foram batizadas estando inseridas em famílias nucleares; já nos anos de 1810 até 1835, a 5 Trata-se dos laços consanguíneos e matrimoniais. No caso deles, sim, observamos uma diminuição dos escravos envoltos naqueles vínculos. No entanto, como já foi dito no início do estudo, consideramos como famílias escravas não apenas as matrifocais e nucleares, mas também o apadrinhamento e as famílias extensas. Nos próximos capítulos, estudaremos o batismo e as famílias formadas por três ou mais gerações. 212 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas participação passou para 4.151, representando um aumento de quase 100% no número de nascimentos. Nos inventários, os indivíduos casados passaram de 57 entre 1764 e 1809 para 232 entre 1810 e 1835. Ao incluírem-se os escravos unidos por laços de parentesco, constatou-se que, ao contrário de uma redução, houve um aumento da participação de cativos em família, correspondendo a 40,9% até 1809, e 41,2% entre 1810 e 1835. Esses percentuais foram encontrados após o cruzamento de registros paroquiais com os inventários. Por esses dados parece bastante claro que mesmo diante das dificuldades encontradas pelos escravos, não deixa de ser significativo que em torno de 30% dos cativos anotados em assentos de batismos estavam com seus familiares6. Portanto, será que a realidade escravista estimulava a promiscuidade? Os cativos eram simples “marionetes” nas mãos de seus senhores? Será que não era importante para os escravos, e para alguns senhores, a socialização parental? A vida dos escravos não se baseava na promiscuidade, e muito menos os cativos eram apenas “mercadorias”. Pelo contrário, tanto os senhores quanto seus escravos estavam em constante negociação. Uns, procurando manter o trabalho e a autoridade sobre suas “peças” e outros, formas de melhor sobreviver. Nesse jogo de “interesses”, a família apareceu como um meio de garantir a permanência do cativo na propriedade, já que possivelmente evitaria fugir e deixar seus parentes, assim como ofereceu aos escravizados, humanidade, solidariedade e sociabilidade. Referências COSTA, I. del Nero da, SLENES, R. W.; SCHWARTZ, S. B. A família escrava em Lorena (1801). Estudos Econômicos, v. 17, n. 2, p. 245295, maio/ago. 1987. 6 Esse percentual, com certeza, seria maior se fossem incluídos os padrinhos, as madrinhas, os tios e as avós. 213 PETIZ, S. de S. • Famílias em cativeiro FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FLORENTINO, Manolo Garcia; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790, c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. LUNA, Francisco Vidal. Características demográficas dos escravos em São Paulo (1777-1829). Estudos Econômicos, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 443-483, METCALF, A. C. Vida familiar dos escravos em São Paulo no século XVIII: o caso de Santana de Parnaíba. Estudos Econômicos, São Paulo, n. 17, p. 205-12, 1987. MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: Posse de Cativos e Família Escrava Em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 1999. MOTTA, José Flávio; MARCONDES, Renato Leite. 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Sebastião Monteiro da Vide em 12 de junho de 1707. São Paulo, 1853. 214 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Gente de todo lado: deslocamentos populacionais, registros de batismo e reordenação social na fronteira meridional (Alegrete, 1816-1845) Luís Augusto Farinatti Nas primeiras décadas do século XIX, os luso-brasileiros promoveram a conquista das áreas disputadas com o Império colonial espanhol, localizadas a oeste e sul do Rio Grande de São Pedro. Esses movimentos tiveram grande importância na apropriação de territórios da margem esquerda do rio Uruguai, dantes pertencentes aos povoados missioneiros guaranis. Tratavam-se de zonas ricas em animais vacuns e cavalares. Ali, os luso-brasileiros estabeleceram unidades produtivas dedicadas à pecuária e, em menor escala, à agricultura. Eles levaram suas famílias e adquiriram escravos africanos e crioulos. A região era disputada pelas diversas forças em luta no processo das guerras de independência no sul da América. Ao mesmo tempo, a colonização hispânica também avançava para o norte, a partir do Prata. Dentro desse contexto, grupos de guaranis missioneiros tomavam posições diversas: aliavam-se a algum dos lados em guerra, migravam, buscavam se recolocar em suas antigas possessões, agora sob novas e instáveis ordenações políticas (NEUMANN, 2004). Além de tudo, remanescentes dos grupos charrua e minuano também procuravam sobreviver e manter sua autonomia. Naquele território, foi construída uma capela pelos lusobrasileiros, em 1812, às margens de um dos afluentes do Rio 215 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado Ibicuí. O primeiro edifício da capela foi queimado, quatro anos depois, pelas forças artiguistas. Reconstruída, em 1817, nas proximidades do Rio Ibirapuitã, a capela passou a servir de referencial para o governo imperial português e também para a população que ali se instalava, sob o nome de Nossa Senhora da Conceição Aparecida de Alegrete. Este artigo aborda a participação de diferentes grupos populacionais livres e libertos na constituição daquela sociedade, através do estudo dos registros de batismo da capela de Alegrete. Fica de lado, aqui, o estudo dos escravos, não porque não tivessem importância e sim pela exigência de um estudo específico, impossível de realizar nos limites deste texto. Antes de prosseguir, é preciso fazer uma advertência. Não tenho, aqui, a pretensão de realizar um rigoroso estudo demográfico dessa capela. Em primeiro lugar, porque a própria situação do objeto de estudo torna difícil esse tipo de procedimento. Trata-se de uma capela de fronteira, com jurisdição imprecisa e que, além de tudo, dever ter sido mutável. Por exemplo, é provável que, durante parte do período em estudo, ela tenha englobado as terras entre os rios Quaraí e Arapehy. Essa região, após 1828, ficaria pertencendo à República do Uruguai, ainda que sua formalização por tratado somente ocorresse em 1851 (SANTOS, 2011). No mesmo sentido, pode-se dizer que, sem um estudo mais refinado, não é possível afirmar sobre a permanência de determinados setores da população, especialmente os egressos das Missões, dentro do espaço da capela. Os deslocamentos destes grupos durante o período de transformações da antiga ordem missioneira ainda precisam ser tema de estudos específicos. Contudo, mesmo assumindo a fragilidade das conclusões a que possa chegar, considero que o estudo dos locais de naturalidade dos pais e mães presentes nos registros de batismo ajuda a reconstruir características importantes do povoamento e 216 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas da população presente naquela fronteira. Tanto mais se tivermos em conta a falta de fontes mais precisas como listas nominativas ou rol de confessados (no momento em que escrevo, ainda não encontrados para esta capela). Enfim, trata-se de uma pesquisa em andamento e o que trago neste artigo são apenas os primeiros resultados, tomados a partir de uma das abordagens possíveis. Aqui, são investigadas as origens das mães e pais livres e libertos presentes naqueles assentos, entre 1816 e 1845. Através desse procedimento, pode-se reconstruir, ainda que parcialmente, alguns dos movimentos migratórios que influenciaram na composição daquela sociedade de fronteira. Registros de batismo, população e migrações O Império do Brasil reiterou as práticas do Império Português no que se refere ao batismo, dotando-o de múltiplas dimensões. Como ocorre até hoje, considerava-se que ele promovia a entrada do batizando no universo dos cristãos, abrindolhe as possibilidades da salvação da alma. Porém, além disso, tal ato também inseria o batizando em uma comunidade política: a dos súditos daquele que era por obra e graça de Deus o Imperador de Portugal, Brasil e Algarve e, depois, do Império do Brasil. Assim, o estabelecimento de uma capela na terra conquistada tinha por fim propiciar, além do atendimento espiritual dos cristãos, também a instauração de um elemento do Estado conquistador no coração das novas terras. Os registros de batismo têm sido amplamente utilizados pelos historiadores que se dedicam a estudar os séculos XVII a XIX. Tais fontes permitem investigar temáticas diversas, como os aspectos demográficos de determinada paróquia, as características das unidades familiares, as alianças estabelecidas via compadrio, as estratégias sociais de escravos e livres, o prestí- 217 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado gio social de determinados sujeitos (SANTILLI, 2003, HAMEISTER, 2006; HAMEISTER e GIL, 2007). Em nossa pesquisa, trabalhos ligados às alianças sociais via compadrio e às redes formadas por elas e outras relações estão sendo realizados e parte de suas conclusões já foram publicadas ou encontram-se em vias de publicação (FARINATTI, 2010b). No caso de Alegrete, nas primeiras décadas do Oitocentos, o estudo das relações de aliança e reciprocidade são especialmente importantes. A economia era estruturada por práticas mercantis, mas também por relações fora do mercado, como o acesso à terra sob permissão de um proprietário, a utilização da terra por vários membros da família e, no início do período, a distribuição de gado (arreado ou tomado a inimigos), couros e mercadorias diversas pelos comandantes milicianos a seus subordinados (WILDE, 2009). De fato, a análise dos inventários post mortem mostrou que nada menos do que 2/3 daqueles que criavam menos de 500 reses praticavam a pecuária como agregados em campos alheios, entre 1831 e 1850 (FARINATTI, 2010a). A importância dessas relações também se sobressaía na política, onde práticas mais institucionalizadas conviviam com a influência de laços pessoais e familiares, assim como do prestígio de lideranças locais. Ainda que as motivações pelas quais se convidava alguém a apadrinhar fossem variadas, o cruzamento dos registros de batismo com outras fontes tem mostrado que eles permitem, sim, reconstruir parte da cartografia dessas relações sociais. E isso tanto para a notabilidade regional como também para os subalternos, como era o caso dos escravos. Neste artigo, porém, o objetivo é mais modesto, buscando, como já foi dito, caracterizar alguns traços da população que levava seus filhos a batizar na capela de Alegrete, em especial seus locais de nascimento. Entre outros aspectos, há um que interessa particularmente a este trabalho. A maioria dos registros trabalhados traz informações bastante completas so- 218 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas bre os pais do batizando: seus nomes, condição jurídica, sua naturalidade, o que permite uma análise da constituição de uma sociedade naquela zona de fronteira entre diferentes projetos de soberanias, em um tempo de marcantes reordenações políticas, econômicas e sociais na região. Ainda que a instalação da capela de Alegrete somente tenha se dado em 1817, o primeiro assento registrado é de dezembro de 1816. É nessa data que inicio a análise, ainda que deva ressalvar que os registros efetuados entre esse ano e o de 1820 não apresentam regularidade, somando, no total, apenas 30 assentos. Encerro a análise em 1845, ano do final da Revolução Farroupilha e do início de uma reordenação política e econômica naquela Fronteira. O total de registros trabalhados foi de 5.227 assentos, entre batismos de livres, libertos e escravos, como mostra a tabela “1”. Tabela 1: Condição Jurídica dos Batizandos – Alegrete (1816-1845) Condição Jurídica Livres Batizandos % de batizandos 4.181 80% Libertos 34 1% Escravos 1.012 19% TOTAL 5.227 100% Fonte: Arquivo Diocesano de Uruguaiana. Registros de Batismo. Capela de Alegrete. Livros 1 a 3. Ordenei o intervalo de tempo analisado em três sub-períodos. O primeiro vai de janeiro 1821 até janeiro 1827, quando a igreja de Nossa Sra. da Conceição de Alegrete foi fechada, em razão da grave situação trazida pela Guerra da Cisplatina. A igreja apenas foi reaberta após o final do conflito, em dezembro de 1828. Trata-se de uma época dividida entre anos de paz relativa (1821-1824) e de guerra aberta (1825-1827). Refiro-me 219 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado à “paz relativa” porque, ainda que a ameaça artiguista estivesse desfeita, a região ainda era disputada entre as soberanias nascentes e, também, porque a situação da Banda Oriental, anexada pelos portugueses, depois brasileiros, como Província Cisplatina, nunca deixou de ser contestada pela maioria dos habitantes de fala espanhola dos dois lados do Rio Uruguai. O segundo sub-período principia com a re-abertura da igreja de Alegrete, já finda a guerra, em dezembro de 1828. Trata-se de um interregno de paz que se estende até o início da Revolução Farroupilha (1835). Novamente, há que se relativizar a estabilidade da região. Apesar da emergência da República Oriental do Uruguai ter colocado um freio às pretensões expansionistas brasileiras, a fronteira entre o novo país e o Império ainda era um local de incerteza e irregularidade institucional. Além disso, os conflitos se reiteraram no país vizinho, onde muitos riograndenses tinham bens, negócios, aliados e parentes. Por sua vez, o terceiro sub-período é de guerra aberta, pois está todo inserido dentro da vigência do conflito farroupilha. Considerando essa divisão, a evolução dos batismos de livres e libertos apresenta uma contínua elevação, o que, provavelmente, se deve tanto a um crescimento vegetativo como à reiterada chegada de migrantes na Fronteira. Porém, esse crescimento não foi uniforme. Tabela 2: Evolução do número de batismos – Alegrete (1816-1845) Batismos Meses Média mensal de registros 1816-27 1.024 121 8 1828-35 1.604 80 20 1836-45 2.599 119 22 Geral 5.227 320 16 Fonte: Arquivo Diocesano de Uruguaiana. Registros de Batismo. Capela de Alegrete. Livros 1 a 3. 220 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Os números apresentados na tabela “2” referem-se às médias mensais de batismo, em cada período. Elas tiveram um crescimento de cerca de 150% do primeiro para o segundo período e um acréscimo bem menor (10%), do segundo para o terceiro período. Se tomarmos, para o primeiro período, apenas os batismos de 1821 a 1827, a média mensal sobe para 14 assentos, o que implica em uma ampliação, seguramente mais realista, de pouco mais de 40% na média mensal de batismos no segundo espaço de tempo. A subida menor no terceiro período seguramente se deve aos efeitos da Revolução Farroupilha que, além das agruras da guerra para a população, também foi uma época de desorganização administrativa. Tanto é verdade, que não houve abertura de inventários post mortem na vila de Alegrete entre 1840 e 1844. Não é possível determinar o quanto desse crescimento se deu em razão de um aumento populacional e o quanto se deve atribuir a uma maior procura do batismo por parte da população local. Porém, não há dúvidas que o fato de ter sido uma época de paz influenciou no grande aumento de batismos no segundo período. Ainda assim, não é demasiado sugerir que aquela foi uma época atrativa para que migrantes se instalassem em Alegrete. Embora não se trate aqui, especificamente, dos escravos, cabe apontar que aquele também foi o período de maior crescimento da população escravizada e, especialmente, dos batismos de africanos, o que aponta para um investimento em trabalhadores adquiridos a partir do mercado atlântico, sob mediação dos diversos portos brasileiros. Vamos nos deter, a partir de agora, nos registros de batizandos livres ou libertos. Para tanto, investigamos as naturalidades dos pais e mães que aparecem naqueles registros, decompostos em relação aos períodos em análise. 221 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado Naturalidade de mães e pais dos batizandos livres e libertos Vejamos os dados do gráfico “1”: Gráfico 1: Naturalidade das mães de batizandos (Capela de Alegrete – 1816-1845)1 Fonte: Arquivo Diocesano de Uruguaiana. Registros de Batismo. Capela de Alegrete. Livros 1 a 3. Segundo os dados apresentados no gráfico “1”, a maior parte das mães presentes nos registros de batismo, como era de se esperar, eram naturais dos povos missioneiros e das zonas 1 Trabalho, aqui, com o total de pais e mães presentes nos registros e não o total de assentos. Assim, realizei procedimentos de desambiguação, excluindo as vezes que em um sujeito aparecia novamente, no caso de batizados de mais de um filho. Assim, para o primeiro período, foram 734 mães, com 6% sem referência de naturalidade, restando um total de 680 mães. Para o segundo, foram 972 mães, com 41% sem referência, restando um universo de 572 mães. No terceiro período, foram 1.519 mães, com 20% sem referência, restando 1.217. 222 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas de colonização luso-brasileira do Rio Grande de São Pedro. Há, porém, uma clara inversão da preponderância entre esses dois espaços. Entre 1821 e 1827, 59% das mães de filhos batizados em Alegrete era natural das Missões Guaraníticas2, contra 30% de naturais do Rio Grande de São Pedro. No período seguinte (1828-1835), a preponderância das mães missioneiras prossegue, mas em um nível menor (45% contra 33% das naturais do RS). Por fim, no terceiro período, todo contido dentro da Revolução Farroupilha (1836-1845) a proporção de mães missioneiras despencou para apenas 17%, enquanto que as mães rio-grandenses alcançaram 44%. Ao mesmo tempo, surge com importância um segmento que não existia no primeiro período e era pouco relevante no segundo: as nascidas em Alegrete, que alcançam aqui 27% do total de mães de batizandos para as quais pude encontrar informação sobre a naturalidade. Desnecessário dizer que isso se deve ao fato de que a Capela de Alegrete, reconstruída em 1817, já passava a ter tempo suficiente de existência para que as primeiras meninas ali batizadas alcançassem a idade adulta. Há, por fim, um conjunto minoritário de mães naturais de outros locais: região platina, Europa, outras províncias brasileiras e África. Individualmente, são pouco expressivas, mas, somadas, atingem 9% e 14% ao longo dos períodos estudados, percentuais que não são desprezíveis e apontam para uma relativa heterogeneidade na população feminina que migrou para aquela fronteira nas primeiras décadas do século XIX. 2 Considerei “Missões” todas as localidades dos 30 Povos das Missões, em todo o período, mesmo aqueles que já haviam se transformado em povoações brasileiras quando do registro. Isso fez com que entrassem na análise, no terceiro período, algumas poucas mães e pais que, provavelmente, eram de origem lusobrasileira e haviam nascido nos municípios que surgiram onde havia Povos missioneiros, como foi o caso de São Borja e São Luiz. 223 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado Gráfico 2: Naturalidade dos pais de batizandos (Paróquia de Alegrete – 1816-1845) Fonte: Arquivo Diocesano de Uruguaiana. Registros de Batismo. Capela de Alegrete. Livros 1 a 3. Como mostram dos dados do gráfico “3”, no que se refere aos pais dos batizados em Alegrete, a tendência geral é semelhante ao caso das mães, ainda que com algumas diferenças. No primeiro período, o predomínio dos missioneiros em relação aos nativos do Rio Grande (46% a 29%, respectivamente) é menor do que no caso das mães, mas ainda é marcante. Por sua vez, estes últimos ultrapassam os primeiros já no segundo período, ainda que haja, aí, uma tendência para o equilíbrio. De qualquer modo, no conjunto de batismos, ambas as categorias mantém-se como majoritárias nesses dois primeiros recortes temporais. No período da Guerra dos Farrapos, a tendência acentua-se fortemente, com os nativos do Rio Grande 224 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas alcançando 49% e os missioneiros apenas 10%.3 Assim como no caso das mães de batizandos, é também nesse período que a presença de pais naturais de Alegrete se torna mais relevante (12%). Do Rio Grande de São Pedro Entre as mães naturais do Rio Grande de São Pedro, a grande maioria havia nascido na região de Rio Pardo (70% a 81%), seguidas pelas naturais da região do Jacuí (entre 6% e 10%).4 No caso dos pais, o predomínio era também da região de Rio Pardo, ainda que não fosse tão grande (52% a 55%) e as regiões de Porto Alegre e do Jacuí (ambas entre 5% a 10%) alcançam índices um pouco mais expressivos. Assim, pode-se notar uma presença majoritária de naturais das zonas limítrofes daquela Fronteira de Rio Pardo. Por dois motivos, esse resultado é o que se esperava. De um lado, aquela região era a principal base para aqueles que iam se infiltrando no território das estâncias missioneiras, arreando gado e fazendo estabelecimentos pecuários, desde fins do 3 Se tomamos as médias de batismos por meses em cada período, observamos a mesma tendência. As mães missioneiras estavam presentes, em média, em 6 batismos por mês entre 1821 e 1827, no segundo período em 2,8 e no terceiro a média é de apenas 1,3. No caso dos pais, acompanha-se a mesma tendência: 2,8 no primeiro período, 1,2 e 0,6 nos seguintes. O fato de haver uma queda maior do primeiro para o segundo período deve ser minorado, em razão de haver uma distorção nos números: no segundo período, há um aumento muito pronunciado de registros sem referência à naturalidade dos genitores. No caso dos naturais do Rio Grande, há uma queda do primeiro para o segundo período (em parte, ao menos, também devida ao grande número de registros sem referência à naturalidade dos genitores) e uma marcante recuperação na vigência do conflito farroupilha (mães: 3,9; 2,7; 5,8; pais: 2,0; 1,6; 4,1). 4 Considerei região de Rio Pardo: Rio Pardo, Cachoeira, Caçapava e Encruzilhada; região do Jacuí: Triunfo, Santo Amaro e Taquari; a terceira região envolve Porto Alegre e Viamão. Ainda houve ocorrências minoritária de naturais de várias outras localidades, como Santo Antônio da Patrulha, Vacaria, Rio Grande, Bagé, Santa Maria e Canguçu. 225 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado século XVIII.5 De outro, foi um dos pontos de lançamento para as expedições de 1811 e 1816, que garantiram o domínio dos luso-brasileiros sobre a região. Esses homens podiam vir sós ou, talvez mais comumente, migravam com mulheres e, por vezes, filhos. Os mais aquinhoados traziam seus escravos para estabelecer estâncias na fronteira recém-conquistada. Muitos deles participaram das campanhas contra Artigas, na década de 1810, arrearam gado e arrancharam-se, sendo que os mais privilegiados dentre eles conseguiu sesmarias concedidas pela Coroa portuguesa. Há que se notar que, entre os homens, apesar das principais tendências serem as mesmas do que entre as mulheres, existe uma maior heterogeneidade dos locais de nascimento. Como está expresso nos gráficos “1” e “2”, a diferença entre os percentuais ocupados pelas duas principais categorias (naturais do Rio Grande de São Pedro e das Missões) e as demais é menor. Destaque-se a presença de naturais de outras províncias brasileiras, que não o Rio Grande do Sul, com percentuais entre 13% e 19%, com marcante presença de paulistas.6 Como vimos, mesmo dentre os naturais do Rio Grande, a presença de pais nascidos em outras regiões que não a de Rio Pardo é maior do que a de mães. Uma mobilidade maior de homens, em relação às mulheres, já era esperada. Por sua vez, a presença de paulistas insere-se em uma tradição de migração desses povoados rumo ao sul, desde o XVII, nos caminhos das tropas e, depois, formando importante frente de povoamento luso no Continente de São Pedro (HEMEISTER e GIL, 2007). Além 5 É possível mesmo que alguns dos genitores que compareceram à pia batismal dizendo-se naturais de Rio Pardo fossem nascidos nas terras recém-conquistadas, onde ainda não havia capela, e tivessem sido batizados em Rio Pardo. 6 São Paulo inclui, aqui, os territórios que, depois, viriam a fazer parte da província do Paraná. É o caso dos pais naturais da vila de Castro, que tem o maior índice entre os nascidos em paróquias paulistas. 226 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas disso, ainda resta por estudar a participação diferenciada de rio-grandenses e de egressos de outras regiões da América Portuguesa nas tropas que participaram das lutas contra missioneiros e platinos nas décadas de 1810 e 1820. Assim, pode-se arriscar uma hipótese para os deslocamentos da população luso-brasileira que participou da conquista e ocupação daquela parcela dos antigos territórios missioneiros que foi transformada em paróquia de Alegrete, nas primeiras décadas do século XIX. Essa onda populacional foi composta, majoritariamente, por homens e mulheres nascidos no Rio Grande de São Pedro, especialmente na região de Rio Pardo, limítrofe às áreas recém conquistadas. Mais do que entre as mulheres, era importante entre os homens também a presença de naturais de outras áreas do Rio Grande e de outras províncias brasileiras. Esses, em parte, casaram-se com mulheres rio-grandenses, especialmente as naturais da região de Rio Pardo. É possível que parte desses homens tenha migrado, primeiro, para aquela vila e suas imediações, estabelecido relações e, a partir dali, participado da invasão luso-brasileira, seja nas colunas militares, seja fundando posses nas novas áreas. A maior presença de mulheres naturais da região de Rio Pardo ratifica, então, o papel da região como importante entreposto na conquista da Fronteira. O local foi palco não apenas de aprovisionamento e organização de tropas, mas também de relações e estratégias sociais decisivas no processo de avanço para oeste. Isso se fez sentir mais fortemente na fase da conquista, nas primeiras décadas do Oitocentos, mas provavelmente também, de forma menos decisiva, até o final do período estudado neste artigo. O que foi apontado aqui pode servir como hipótese a ser testada por estudos que tomem esses processos como tema específico de pesquisa. Afinal, restam muitas perguntas, que não têm como ser respondidas neste espaço. Quem migrava para a Fronteira e quem permanecia nas áreas antigas? Qual o 227 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado papel das alianças e estratégias familiares nesses processos? Qual a importância efetiva dos combatentes engajados nas expedições e guerras de 1811 e 1816-20 e como se pode avaliar, por outro lado, a presença de pessoas e famílias “civis”, que iam avançando pela Fronteira e estabelecendo moradia e estabelecimentos agrários? Qual o papel concreto da efetiva ocupação produtiva de terras e, de outra parte, da especulação na apropriação fundiária das terras conquistadas?7 Missioneiros As invasões portuguesas do início do Oitocentos encontraram os pueblosmissioneiros em crise, em um processo iniciado com a expulsão dos jesuítas, em 1767. Além disso, as guerras de independência no Prata e o assentamento dos conquistadores portugueses causaram o rompimento da já combalida estrutura missioneira. Os guaranis dos Povos Orientais do rio Uruguai viram seus povoados e suas estâncias serem desmantelados, sofrendo com saques e com um processo brutal de espoliação. Muitos juntaram-se a Artigas, outros aos portugueses e outros ainda empreenderam um processo migratório tanto dentro de seus antigos domínios quanto para fora deles. No início da década seguinte, quando Artigas foi finalmente vencido e exilou-se no Paraguai, novos movimentos daqueles grupos tiveram lugar. Parte desses guaranis deve ter mesmo se instalado na recém criada capela de Alegrete, ou naquele local, já antes da criação daquela jurisdição eclesiástica. Porém, há como supor que a própria criação da capela tinha como um de seus objetivos a atração dessa população por parte dos portugueses. 7 Após o estudo pioneiro de Helen Osório (1990), Maximiliano Menz (2002)e Edson Paniágua (2003) também se dedicaram a esse ponto. 228 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Em janeiro de 1821, o viajante francês August de SaintHilaire passou pelo campo de Belém, na região localizada entre os rios Quarai e Arapey, e notou grande presença de guaranis. Afirmou que, depois da derrota de Artigas, esse povo sofria com as perseguições em Entre-Rios. Disseram-lhe que cerca de 3.000 guaranis tinham passado o rio Uruguai e haviam vindo buscar refúgio no lado oriental, então sob domínio dos portugueses. Estes, apesar de haverem sido seus inimigos na guerra, tinham por instrução acolhê-los, já que eles podiam ser muito úteis como trabalhadores, soldados e povoadores daquela Fronteira. Saint-Hilaire anotou em seu diário: Com a maior parte dos homens mortos durante a guerra, as mulheres e as crianças, principalmente, vieram refugiar-se junto aos portugueses. A maioria desses índios foram encaminhados para a Capela de Alegrete, onde, parece, ganharão terras.” (SAINT-HILAIRE, 1997: 223). Essa informação encontra eco em um requerimento enviado ao governador da Capitania, o Marquês de Alegrete, em 1817, no qual alguns moradores luso-brasileiros da região entre os rios Ibicuí e Quaraí pediam autorização para a reconstrução da capela de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que fora queimada por tropas inimigas. A autorização foi concedida e a capela foi acrescida do nome de Alegrete. Dentre outros motivos, os autores do requerimento pediam a reconstrução da capela ...ainda mesmo para serem aldeados os Naturaes que se acham presente em serviço de campanha com suas famílias, estas fazendo peso ao exército, por não haver um lugar certo onde as depositem, e no fim da dita campanha ficando dispersos serão muito prejudicados... (Araújo Filho apud PANIÁGUA: 82-83). Assim, na década de 1820, muitas famílias egressas das Missões estavam instaladas em Alegrete. Tanto as fontes qualitativas quando os dados obtidos através da quantificação dos registros de batismo demonstram, concretamente, a importân- 229 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado cia que esses contingentes ganhavam ante aos olhos do Império português, depois brasileiro. Como já mostrou Elisa Garcia, as autoridades luso-brasileiras haviam construído uma política de atração dessas populações (GARCIA, 2007). Porém, há muito ainda por perguntar, principalmente se passamos a olhar o processo tendo em vista as motivações dos missioneiros. Uma investigação dos Povos onde nasceram essas mães e pais missioneiros pode ajudar a buscar mais informações sobre eles. Olhemos para o primeiro período em estudo, aquele mais próximo das palavras de Saint-Hilaire e da correspondência dos moradores da região. Tabela 3: Naturalidade das mães e pais missioneiros nos registros de batismo (Alegrete, 1821-27) Mães Pais São Borja 107 27% 49 24% Japejú 108 27% 64 32% São Luis 37 9% 19 9% La Cruz 28 7% 13 6% São Nicolau 24 6% 5 2% Santo Tomé 17 4% 8 4% Outros 82 20% 44 22% TOTAL 403 100% 202 100% Fonte: Arquivo Diocesano de Uruguaiana. Registros de Batismo. Capela de Alegrete. Livros 1 a 3. Como se pode observar nos dados da tabela “3”, há uma predominância dos Povos de São Borja e Japejú, entre os pais e mães missioneiros que compareceram à pia batismal da capela de Alegrete. Bem distante deles, há uma presença razoável de naturais de outros quatro povos. Por fim, a categoria “outros” 230 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas implica em quase 20 povos representados por umas poucas mães solteiras e/ou casais.8 Tanto no caso destes missioneiros como dos naturais de qualquer outro Povo, as migrações devem ser explicadas a partir de uma conjunção de fatores externos e internos. Alguns deslocamentos podem ter se dado através de uma atuação dirigida das autoridades portuguesas, que propiciaram a criação de aldeias em seus novos domínios, onde poderiam abrigar parcialidades de guaranis-missioneiros, como foi o caso da capela de Santa Maria (RIBEIRO, 2012). Da mesma forma, a administração portuguesa pode ter sido diferenciada com relação a cada Povo, o que pode ter incentivado um êxodo maior em alguns do que em outros. Seja como for, esses fatores que são vistos a partir da ação dos portugueses devem encontrar sua contrapartida na relação que tiveram com as estratégias dos próprios guaranis-missioneiros. Dentre os povos que caíram sob domínio português em 1801, destaca-se a presença do Povo de São Borja e há, também, um contingente razoável dos povos de São Luiz e São Nicolau. Os outros Povos orientais têm uma representação pequena, semelhante à dos distantes Povos localizados mais ao norte. Tanto o relato de Saint-Hilaire, quanto a correspondência dos moradores, analisados anteriormente, dão conta de eventos políticos que contribuíram para moldar os movimentos dos guaranis missioneiros nessa fase de desagregação de sua antiga unidade. Parte da população que batizou seus filhos em Alegrete era formada por aqueles que firmaram alianças políticas com os portugueses, ou pelos que buscavam refúgio contra as perseguições de Francisco Ramírez, após o ciclo artiguista. Destaque-se que, dos 30 batizados realizados entre 1816 e 1820, 8 Entre outros: Corpus, Concepción, Candelaria, Apóstoles, Jesus, Loreto, San Lorenzo, SanMiguel, San Juan, San José, San Carlos, San Inácio Mini. 231 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado nenhum contém a naturalidade das mães, mas apenas três são apontados pelo padre como “índios”. Ou seja, é a partir de 1821 que ocorre uma avalanche de população missioneira na capela, o que indica, para além da própria estabilização dos serviços eclesiásticos, o arrefecimento dos combates e o final do período de Artigas e Andresito. Esses argumentos podem ser reforçados ao percebermos que os povos de Japejú e São Borja aparecem com grande destaque. Se os somamos aos de La Cruz e Santo Tomé, notamos uma presença significativa dos naturais do antigo departamento de Japejú, onde a adesão às forças artiguistas foi marcante. Porém, conforme avançava a década de 1810 e as derrotas se sucediam, há registros de várias deserções e pedido de acolhimento para as autoridades portuguesas (GARCIA, 2007; WILDE, 2009) Porém, há um aspecto ligado à antiga espacialidade missioneira que deve ser levado em conta ao se analisar aqueles números. Seguimos colocando atenção sobre o a presença majoritária dos naturais dos Povos meridionais do antigo departamento de Japejú. Sabe-se que as más administrações após a expulsão dos jesuítas, o período de guerras e o avanço da busca de couro por diversos personagens sociais da fronteira desarticularam a antiga economia missioneira. Porém, pode-se imaginar que os movimentos que faziam esses guaranis, em meio àqueles tempos tormentosos orientavam-se, também, por uma territorialidade ligada à experiência econômica e social das décadas anteriores. Ao longo de todo o século XVIII, o Povo de Japejú consistiu em um polo pecuário dentro do complexo missioneiro e promoveu a expansão de suas estâncias sobre as duas margens do rio Uruguai (PANIÁGUA, 2003; MORAES, 2008; GARAVAGLIA apud WILDE, 2009). Através de um largo espaço, a partir da margem oriental do Uruguai e ao sul do Ibicuí, aquele Povo havia espalhado estabelecimentos para reunião, aman- 232 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas samento e criação de gado. Assim, por longo tempo, aquele foi um território percorrido, habitado e utilizado economicamente por aquele Povo e talvez também pelos outros de seu departamento. Ainda que essa estrutura produtiva não tenha sobrevivido ao início do século XIX, não é descabido imaginar que sua antiga organização tenha influenciado na expressiva presença de naturais Japejú e São Borja, principalmente, mas também de La Cruz e Santo Tomé entre os batizados na capela de Alegrete. Por fim, há um tópico que não pode ser analisado em detalhe aqui, mas que indica um caminho frutífero para novas pesquisas. Os filhos de mães missioneiras batizados em Alegrete, entre 1816 e 1827, apresentam um índice de legitimidade de 55%, bem mais baixo que os filhos de mães luso-brasileiras (87%). Porém, é significativo que nada menos do que 83% dessas mães missioneiras estivessem casadas com homens naturais de seus próprios Povos. Esse é um padrão majoritário não apenas entre os naturais de São Borja e Japejú, mas também na maioria dos outros casais de missioneiros. Em estudo de largo fôlego sobre as populações missioneiras, Guillermo Wilde vem demonstrando a heterogeneidade de sua composição, bem como a fluidez, a mobilidade espacial e os contatos constantes que esses grupos mantinham com moradores de outras reduções e, também, com grupos de fora delas, inclusive “índios infiéis”. Wilde ressalta manutenção de uma variedade de cacicados como unidade agregada mínima dentro das reduções, organizada por redes de reciprocidade e lealdade em torno dos caciques e formando uma base política dual com as instituições coloniais de cada Povo, como o cabildo. Os cacicados mobilizavam redes de parentesco e aliança constitutivas de uma malha social que, ao invés de ser derrogada pelo sistema reducional, reiterou-se nele, ajudando a dotar os Povos de uma forma muito heterogênea e podendo, inclusive, envolver pessoas e laços para além de uma única redução. 233 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado Se foram importantes mesmo durante a experiência reducional, os cacicados parecem também ter ajudado a viabilizar e orientar os deslocamentos e alianças políticas dos guaranis missioneiros nessa fase de desagregação e guerra. Guillermo Wilde aponta que há indícios dessa reiteração nos acordos e alianças constituídas por lideranças missioneiras autônomas com os diferentes grupos em luta. Analisando o êxodo dos cerca de 6.000 missioneiros dos “7 Povos Orientais” que acompanharam Fructuoso Rivera para fundar um povoado ao sul do rio Quaraí (Santa Rosa, depois BellaUnión), em 1828, Wilde (2009: 373) destaca que as descrições dão conta de que “cada redução ou tribo” marchava como em uma procissão, conduzida por seus anciões e com seus próprios santos, insígneas e música. O autor aponta que isso indica que “cada cacicazgo se identificaba com suspropios símbolos sonoros y visuales, ló que constituye uma notablepersistencia de laidentidadsocioreligiosamisional.”9 Essas reiterações dos cacicados, suas formas identitárias e sua malha parental tem sido percebida, também, no estudo que Max Ribeiro (2012) vem desenvolvendo sobre os guaranis missioneiros que se deslocaram para a capela luso-brasileira de Santa Maria, no região central do Rio Grande do Sul, nas décadas de 1810 e 1820. No caso daqueles que levaram seus filhos a batizar em Alegrete, até 1827, o padrão majoritário de casamentos com pessoas do mesmo Povo parece um importante indício da presença de malhas parentais e grupos de aliança que se mantiveram relativamente coesos mesmo em meio às conjunturas de desagregação e instabilidade das primeiras décadas do século XIX. Por ora, a reiteração dos cacicados parece uma boa hipótese para seguir a investigação dessas questões. 9 Ver também PADRON-FAVRE, 1996. 234 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Por outro lado, é o próprio Wilde que propõe que a reiteração dos cacicados e de sua relativa autonomia convivia com uma contraparte dada pelos complexos processos de mestiçagem. Enquanto os primeiros prolongavam no tempo formas tradicionais de organização, os outros apontavam para mudanças. Esse é um tema complexo e exige um estudo específico. Para os propósitos deste artigo, é preciso lembrar que a mestiçagem era um processo existente durante todo o período reducional, mas não há dúvidas que foram adquirindo outras formas e outros sentidos durante a primeira metade do século XIX, no contexto da desarticulação do espaço missioneiro e da construção de projetos nacionais diversos. A mestiçagem, provavelmente, é um dos fatores que ajuda a explicar o declínio progressivo de mães e pais guaranis dos primeiro para o segundo período estudado aqui (1828-35) e deve ter composto também a diminuição muito maior, ocorrida durante a Revolução Farroupilha. Fatores outros, como a mobilidade e novas migrações dessas populações, o estancamento de sua chegada em massa, além de sua participação nas guerras, certamente também estavam presentes nesses momentos. Para o segundo período, é possível acompanhar o declínio dos naturais de Japejú, cujos percentuais caem pela metade. Apenas São Borja mantém percentuais elevados de participação na população natural das Missões que batizaram seus filhos em Alegrete. Por hora, fica apenas a indicação de que esse processo de evasão ou “integração” dessa população naquela fronteira e o papel aí desempenhado pela “mestiçagem” compõe todo um tema de pesquisa que, para aquele local, apenas começamos a sugerir. Considerações finais Os registros de batismo ajudam a perceber ângulos diferenciados da realidade econômica e social de uma região de fronteira entre territórios missioneiros, luso-brasileiros e hispa235 FARINATTI, L. A. • Gente de todo lado no-platinos, na primeira metade do século XIX. O que resta, ao final deste exercício, são diversas questões e possíveis caminhos que pesquisa deve tomar a partir de agora. Nesse sentido, um estudo com base em categorias construídas a partir de grupos sócio-econômicos, realizado anteriormente (FARINATTI, 2010a), ainda precisa se integrar de modo mais orgânico às novas percepções, trazidas pelo estudo dos registros de batismo. É preciso perceber como os diversos fatores ajudavam a compor modos complexos de estratificação social e produção de desigualdade. Talvez então se possa entender como, ainda na década de 1850, o Brigadeiro Olivério Ortiz anotava em suas contas de estância que ali havia trabalhado por três meses o “capataz índio Maneco” e também o “Preto forro Manoel” (FARINATTI, 2010a). Da mesma forma, se compreenderá melhor a posição social e os espaços de mobilidade de alguém como o pedreiro Estulano, escravo do Marechal Bento Manoel Ribeiro, casado com a índia Joana Maria, padrinho de crianças livres. Ou, então, analisar com propriedade as relações que o Tenente-Coronel João Machado de Bittencourt mantinha com os diversos guaranis naturais do Povo de São Luiz que aparecem em batizados no Oratório Privado da estância pertencente àquele oficial, em Alegrete. Anote-se que João Machado havia sido administrador daquele Povo sob domínio português, fora acusado de apropriar-se de diversos bens e que o nome de sua estância e seu oratório era, significativamente, “São Luiz”. Enfim, trata-se das bases sociais da construção de uma economia pecuária que foi a mais importante da província, de relações de trabalho e da conflitiva sedimentação de noções específicas quanto à propriedade privada. Processos esses que surgem a partir de tradições econômicas preexistentes e que precisam ser levadas em conta (GARAVAGLIA, 1983, 1984b; MORAES, 2006, 2008). Ao mesmo tempo, trata-se das mes- 236 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas mas bases sociais de processos políticos e formas de legitimidade que geraram conflitos entre diversos projetos de soberania e autonomia concorrentes. Este pequeno artigo tentou ser apenas a apresentação de algumas dessas questões. Espero haver demonstrado que a zona de fronteira, aqui analisada, é um laboratório pertinente para esses estudos. Referências CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987. FARINATTI, Luís Augusto. 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O texto apresentado aqui é um esforço de verificar quais foram as características da reprodução escrava e observar possíveis relações com a família cativa em Pelotas. Ao longo do estudo da estrutura de posse escrava em Pelotas, Rio Grande do Sul, após o encerramento do tráfico internacional de escravos, observei que a reprodução endógena foi de extrema importância para a composição e manutenção dos plantéis pelotenses após o final da importação de cativos africanos. Sua importância estrutural foi maior nos plantéis pequenos e médios (com até 50 escravos) do que entre aqueles classificados como plantéis grandes. Isso porque os menores escravistas teriam um acesso mais restrito ao mercado de escravos enquanto que os grandes proprietários tinham recur- 239 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... sos econômicos que lhes davam condições de buscar no tráfico interno por escravos adultos e do sexo masculino para o trabalho no campo e na charqueada, principalmente. Porém, mesmo nos plantéis com mais de 50 escravos pelo menos 20% da escravaria era fruto da reprodução interna dos escravos. A partir de dados extraídos das matrículas de escravos, pude verificar que aproximadamente 63% dos plantéis pelotenses em 1872 continham pelo menos um escravo “cria da casa”, ou seja, nascido no interior da senzala. Além do tamanho do plantel, outro fator importante para a presença da família escrava nas escravarias pelotenses estava ligado ao ciclo de vida do proprietário. Os proprietários com mais de 50 anos contavam com maior participação da reprodução na composição de seus plantéis. Essa relação seria resultado de uma maior estabilidade do plantel após o momento de acumulação de escravos no início da montagem dos plantéis. A ampla disseminação da reprodução endógena da população escrava nas senzalas pelotenses torna irrefutável a existência de laços familiares entre os escravos. Para enxergar esses laços, é necessário que se faça alguns esclarecimentos sobre a família escrava e seu estudo no Brasil. Para tanto, é preciso ressaltar que a concepção de família escrava teve um desenvolvimento histórico que culminou em uma compreensão bastante ampla de família e relações familiares através de estudos surgidos no Brasil a partir do final da década de 1970. Esses estudos, baseados em análise empírica (tendo como principal corpo documental os inventários e os registros paroquiais) com a utilização de técnicas quantitativas e da demografia histórica, foram os responsáveis pela constatação da existência da família escrava monogâmica e estável no Brasil. Por outro lado, as relações familiares passaram também a ser percebidas não só como frutos de enlaces religiosos, mas também estariam presentes em relacionamentos consensuais que não dependiam 240 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas necessariamente do ato religioso, nos laços de consangüinidade e na extensão da concepção de família aos laços espirituais do compadrio. A partir desses estudos, então, a família escrava surge como um problema a ser estudado mesmo sem a existência do sacramento católico do casamento. Deixo claro, entretanto, que a análise deste capítulo não pretende estudar as formas de constituição da família escrava, os seus significados para os escravos ou a extensão dos laços espirituais. O objetivo aqui é verificar a importância demográfica da família escrava para a escravidão em pelotas, ou seja, as possibilidades desta instituição se caracterizar como uma forma de acumulação de cativos para os proprietários. Assim, a família passa a ser analisada através da perspectiva dos escravistas em manter e/ou ampliar suas senzalas. Nesse sentido, não é o caráter político da família que está em questão, mas o estrutural e econômico. Com isso não quero, evidentemente, ignorar a importância das análises políticas e sociais da família escrava, apenas deixar claro que esses não serão aspectos privilegiados neste texto. Para a compreensão das possibilidades de reprodução endógena como fator de acumulação de escravos entre os proprietários pelotenses, utilizei as descrições dos escravos presentes nas listas de matrículas que tive acesso através dos inventários post-mortem. Através dessas descrições foi possível remontar núcleos familiares dentro dos plantéis. Lembro que a filiação dos escravos, sempre que se soubesse, era uma das informações constantes nas listas de matrículas. Assim, é possível obter um panorama da constituição familiar entre os escravos em Pelotas no ano de 1872. Dos 1523 escravos arrolados nas matrículas localizadas, 51% deles foram descritos como possuidores de alguma relação familiar. O número de escravos declarados casados nas matrículas foi muito baixo. Apenas duas mulheres e dois homens arro- 241 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... lados eram casados. Acrescenta-se outros quatro escravos, novamente dois homens e duas mulheres, viúvos. Ao todo, eram oito cativos algum dia casados, apenas 0,5% de todos os escravos listados nas matrículas as quais tive acesso. Dos escravos casados, é possível observar um casal: Maria Manoela, crioula de 40 anos e Manoel, africano de 50 anos. Ambos foram recebidos em herança por Sérvolo Soares da Porciuncula1, por quem foram matriculados. Nesta propriedade, Maria Manoela teve três filhos, o primeiro, Angélica, com 12 anos! Nenhum dos seus filhos foi descrito como filho de Manoel, entretanto. O casamento religioso foi de difícil acesso para os escravos em Pelotas, mas mesmo assim não foi tão raro como demonstram os registros presentes nas matrículas analisadas. O censo imperial de 1872 contabilizou a população cativa pelotense em 2391 indivíduos, sendo a grande maioria, solteiros. Ainda assim, ao menos 123 desses cativos tiveram acesso ao casamento religioso, representando pouco mais de 5% da população, sendo que entre as mulheres o acesso ao casamento foi sensivelmente mais fácil que entre os homens – 6,8% das mulheres eram casadas ou viúvas no momento do censo enquanto que apenas 3,6% dos homens o eram2. Essas taxas, se comparadas com as identificadas pela bibliografia para outras regiões do Brasil, mostram que em Pelotas houve fortes restrições ao casamento escravo. 1 APERS. Comarca de Pelotas, Caixa 006.0021, Processo n. 101, Inventário de Sérvolo Soares da Porciúncula, 1878. 2 É importante ressaltar que, conforme afirma Robert Slenes, esses dados não incluem as uniões consensuais. Fazendo a ligação entre os dados das matrículas e os assentos de batismo e casamento das paróquias, o autor conclui que os escravos listados como “casados” ou “viúvos” nesses censos fora, de fato, casados pela Igreja Católica. (Slenes, 1999, pp. 74-75). 242 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Tabela 1: População escrava segundo o estado conjugal. Pelotas, 1872 Homens Mulheres Total Quantidade % Quantidade % Quantidade % Solteiros* 914 95,2 788 91,1 1702 93,2 Casados 28 2,9 70 8,1 98 5,4 Viúvos 18 1,9 7 0,8 25 1,4 Total 960 100,0 865 100,0 1825 100,0 * Para efeitos comparativos, excluí as crianças do total de solteiros. Como a fonte utilizada não especificava faixas etárias, mas unicamente o somatório total de indivíduos segundo seu estado conjugal, descontei 25% equivalentes à participação das crianças na população escrava dos 1.218 homens e das 1.050 mulheres calculadas pelo recenseamento de 1872. Fonte: RECENSEAMENTO GERAL DO BRASIL, 1872. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br . Último acesso em 09/02/2011. Analisando a percentagem de escravos alguma vez casados em Campinas entre 1801 e 1872, Robert Slenes (SLENES, 1999: 74) aponta que a proporção de homens adultos nessa condição variou entre 23% e 30%. A proporção de casadas e viúvas entre as mulheres adultas era bem maior no município, variando entre 55% e 62% nos três anos estudados. Através do estudo dos inventários de escravistas de Vassouras entre 1821 e 1880, Ricardo Salles, alertando para a baixa ocorrência dos registros de casamentos nestes documentos, encontrou uma taxa de cerca de 9% de escravos casados ou viúvos entre os cativos com mais de 13 anos. Ainda, o autor observou uma tendência, principalmente a partir da década de 1860, de uma ampliação da presença de casais nos inventários, impulsionada pelo maior equilíbrio entre os sexos e na maior estabilidade dos plantéis (SALLES, 2008: 219-223). Por outro lado, José Flávio Motta observou que a participação de indivíduos alguma vez casados na população escrava bananalense sofreu uma destacada queda entre 1801 e 1829, impulsionada pela diluição da família escrava em meio ao inten243 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... so afluxo de africanos ao longo do processo de formação e ampliação dos plantéis, intimamente ligado ao estímulo econômico representado pela disseminação da cafeicultura. Se, em 1801, cerca de 30% dos escravos eram casados ou viúvos em Bananal, esta taxa declinou para 23% em 1817 e para 18% em 1829. O impacto do afluxo de escravos via tráfico transatlântico pode ser observado, segundo o autor, no fato de que, entre as mulheres, o declínio percentual das casadas e viúvas foi muito menor do que entre os homens. Ou seja, se em 1801, muitos escravos do sexo masculino encontravam dificuldades em estabelecer relações estáveis pela “escassez” de cônjuges em potencial, a ampliação do desequilíbrio entre os sexos provocado pela entrada massiva de homens africanos, esse problema tornou-se cada vez mais intenso (MOTTA, 1999: 300 et. seq.). Já em Porto Feliz, entre 1798 e 1843, cerca de um terço dos escravos com mais de 13 anos eram casados, taxa que sofreu uma queda no período de 1815 a 1824 devido à incorporação de egressos do tráfico, voltando a subir a partir de 1829, com a socialização dos africanos chegados no período anterior (GUEDES, 2008: 145-151). A partir desses dados, fica evidente a maior dificuldade de acesso ao casamento legal aos escravos pelotenses frente às populações escravas das outras regiões do Brasil. Juntamente com esses indicativos, um mapa estatístico do final da década de 1850 mostra que o número de casamentos entre escravos em Pelotas representava uma parcela muito pequena do total desse tipo de sacramento da Província do Rio Grande do Sul. Dos 94 casamentos de escravos realizados entre o segundo semestre de 1858 e os dois semestres de 1859, apenas três tiveram lugar nas freguesias pelotenses3. O que teria levado tão poucos escravos a acessarem o matrimônio católico em Pelotas? 3 Cf. Mapa Estatístico dos Casamentos, Nascimentos e Óbitos da Província do Rio Grande do Sul desde o 1º de Julho de 1858 por Semestre. In: De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS, 1803-1950, p. 67. 244 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Uma das hipóteses leva em conta as incertezas quanto à estabilidade da instituição escravista, principalmente após o encerramento do tráfico transatlântico. Como argumenta Ricardo Salles (SALLES, 2008: 223), É possível que, diante desse quadro [pressões pela abolição e a posterior cessação do tráfico internacional de escravos] e da intensificação do comércio interno de escravos que se seguiu, os senhores tenham passado a ver na estabilidade das famílias escravas um obstáculo importante à administração de seus negócios. A impossibilidade ou ao menos as dificuldades de separar cônjuges gerariam problemas de mobilidade de mão-de-obra. É imprescindível ter em conta que a mobilidade e possibilidade de dispor livremente da mão-de-obra eram características de extrema importância, principalmente em regiões com economias mais frágeis e instáveis. A mobilidade atendia a um grande número de demandas, desde a abertura de novas terras à exploração e compra de novas propriedades à formação de dotes, partilha de bens e à necessidade de venda de cativos. Assim, a opção dos escravistas por dificultar o acesso ao casamento de seus cativos pode corresponder a uma mentalidade de minimizar os conflitos que poderiam surgir em futuras separações. A baixa incidência de casamentos legais entre escravos não revela, entretanto, ausência de relações familiares entre a população cativa pelotense. Os frutos dessas relações podem ser observados na grande quantidade de famílias compostas por mãe e seus filhos. Ao todo, 664 escravos estavam relacionados com pelo menos outro familiar no mesmo plantel. Eram famílias com diversas configurações: mães com filhos; mães, avós e filhos; mãe, filhos, tios, tias, sobrinhos, primos; irmãos sem mãe no mesmo plantel, etc. Houve um núcleo familiar que envolvia um homem juntamente com seu filho. É o caso do viúvo Cândido, crioulo de trinta e cinco anos, listado juntamente com o 245 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... seu filho legítimo Ponciano, de quatro, na matrícula do seu senhor Salvador Aleixo Duarte4. Ambos foram listados como comprados. Possivelmente Leonor, a mãe de Ponciano, tenha sido comprada junto com o marido e o filho. Ainda, poderia haver falecido antes da transferência de Cândido e Ponciano para a posse de Salvador Aleixo Duarte. Foram 60 núcleos familiares que contavam apenas com irmãos, sem a presença da mãe nos plantéis. Em cada um desses núcleos havia, em média, três irmãos, mas chegou a ser composto por até nove. A grande maioria dos núcleos familiares, entretanto, foi composta por mães e seus filhos. Foram 157 mães com 370 filhos sendo 125 dessas mães nascidas no Brasil. Esse total é bastante representativo, se considerarmos que das 355 escravas com mais de 15 anos matriculadas, 44,2% delas constituíam família com pelo menos um filho na senzala de seu senhor. Heloísa Teixeira, ao estudar a composição das famílias em Mariana na segunda metade do século XIX aponta que, através dos dados de inventários e matrículas, 36,1% das mulheres adultas constituíram família através do casamento ou da maternidade (TEIXEIRA, 2001:108). Tal diferença pode dar-se pelas características da fonte analisada por Teixeira. Segundo a mesma, os inventários não são fonte ideal para analisar o parentesco. Quando os dados das matrículas passam a ser incluídas, a partir do início da década de 1870, a taxa encontrada pela pesquisadora foi acima de 48%. Na Província de Espírito Santo foi observado um decréscimo da participação de mulheres em famílias através da maternidade ao longo do século XIX. Estudando a região de Vitória entre 1790 e 1819 e 1850 e 1871 a partir de inventários, Adriana Pereira Campos observou que a proporção de mulheres envolvidas com a maternidade caiu 4 APERS. Comarca de Pelotas, Caixa 006.0104, Processo n. 87, Inventário de Salvador Aleixo Duarte, 1875. 246 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas de 33,8% no começo do século para 20,6% no período entre o fim do tráfico transatlântico e a promulgação da lei de libertação do ventre escravo. Mesmo com taxas bastante inferiores, se comparadas com as obtidas para Pelotas e Mariana, Campos afirma que “os dados apresentados tornam evidente a capacidade reprodutora das escravarias capixabas ao longo do Oitocentos” (CAMPOS, 2001:92). Nos dados das matrículas pelotenses, apenas 15 mulheres com filhos nos plantéis eram africanas (10,7% das mães com origem identificadas). Em geral, as mulheres crioulas foram mães mais freqüentemente do que as africanas, não só em números absolutos. Enquanto pouco mais de um terço das mulheres africanas com mais de 15 anos relacionadas nas matrículas analisadas eram mães, 44,8% das crioulas o eram. Entre as africanas, a média de filhos foi maior do que entre as crioulas: 3,1 e 2,3, respectivamente. Talvez isso se devesse à maior média etária das mulheres africanas. As mães africanas tinham em média 48 anos na época da matrícula enquanto que as crioulas, apenas 32. Gráfico 1: Distribuição das mães escravas de acordo com o número de filhos presentes nas matrículas. Pelotas, 1872 Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas, 1850-1884 247 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... A maioria de mães foi relacionada nas matrículas com apenas um filho, como demonstra o gráfico abaixo. Ainda assim, trinta e nove mães tiveram quatro ou mais filhos, chegando ao máximo de 10 filhos no mesmo plantel. É preciso ressaltar, entretanto, que o número de filhos identificados nas matrículas representa apenas um valor mínimo. Isso porque é possível que alguns filhos não tenham sobrevivido desde seu nascimento até o recenseamento feito com a matrícula. Além do mais, pode ter ocorrido que mãe e filhos tenham seguido caminhos diferentes, separados por venda, herança ou doação. Os dados apresentados por Heloísa Teixeira para Mariana mostram que no município mineiro também houve predomínio de famílias com poucos filhos. Ao longo da segunda metade do século XIX, 37,2% das famílias nucleares e 51,6% das famílias matrifocais tinham somente um filho, sendo o número máximo observado de sete filhos (TEIXEIRA, 2001: 116). Através das idades das mães e de seus filhos é possível verificar a idade da primeira concepção das mães cativas. Diminuindo a idade do filho mais velho da idade das mães, podese observar que a maioria das mulheres teve o seu primeiro filho entre os 17 e 22 anos. Novamente, é importante fazer algumas ressalvas em relação com a presença dos filhos mais velhos nos mesmos plantéis das mães. Robert Slenes se deparou com esse problema ao estudar as famílias escravas em Campinas a partir das listas de matrícula de escravos. Segundo ele, apenas 50% dos primeiros rebentos de cativos registrados na matrícula daquele ano seriam primogênitos (SLENES, 1987: 220). Dessa forma, concordo com Stuart Schwartz, quando afirma que “a partir dos arrolamentos, é impossível determinar a idade em que as mulheres começavam a ter filhos. O que podemos fazer é examinar a idade com que as mulheres deram à luz seu filho mais velho sobrevivente e presente na propriedade” (SCHWARTZ, 1988: 324). Feita essa ressalva, as informa- 248 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ções das matrículas indicam que muitas escravas (44,8% daquelas entre as quais foi possível identificar a idade da primeira concepção) tiveram seus primeiros filhos entre 17 e 22 anos. Houve algumas que tiveram seus primeiros filhos muito mais jovens. Leopoldina, com 18 anos em 1872 já tinha dois filhos quando fora matriculada: Ana, de sete anos, e Otávio, de quatro5. Além de Leopoldina, uma outra escrava teve seu primeiro filho com 12 anos e duas, com 13. A partir dos 14 anos já foram mais freqüentes as concepções: seis escravas conceberam pela primeira vez aos 14 anos; oito aos 15; e nove aos 16. Gráfico 2: Idade das primeiras concepções das mães escravas. Pelotas, 1872 Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas, 1850-1884 As mulheres crioulas tiveram seus primeiros filhos, em média, mais jovem do que as africanas. A primeira concepção 5 APERS. Comarca de Pelotas, Caixa 006.0513, Processo n. 48, Inventário de Rafael Vieira da Cunha, 1875. 249 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... das crioulas ocorreu, em média, aos 21 anos enquanto que entre as africanas se deu entre os 28 e 29 anos. Manolo Florentino e José Roberto Góes, analisando os inventários do Rio de Janeiro, calculam, a partir da idade do filho mais velho, que as escravas crioulas começavam a conceber por volta dos 20 anos e que as africanas, pelos 22. Ainda assim, os autores (FLORENTINO; GÓES, 1997: 134) assinalam que esta era a maior idade possível: se cruzássemos estes dados com os provenientes de registros de batismos chegaríamos a um número um pouco menor – e mais próximo da realidade – posto que os inventários capturam somente os filhos que permaneceram vivos e junto às mães. A conclusão que os autores chegam é a de que provavelmente as escravas do agro fluminense se tornassem mães entre os 14 e 17 anos de idade, no caso de serem crioulas. Entre as africanas, é provável que as primeiras concepções se dessem entre os 16 e 19 anos, isso porque poucas africanas chegavam ao Brasil com menos de 15 anos. A idade da primeira concepção das mães escravas encontradas para a região agrária fluminense, se comparada com os padrões das populações livres do Brasil e da Europa, indicam a prematuridade da vida materna cativa. Mesmo assim, a idade da primeira concepção encontrada para as escravas foi bastante “similar àquelas vigentes então para a África onde, ao contrário da Europa Moderna, a mulher casava e paria logo após a puberdade” (FLORENTINO; GÓES, 1997: 134), situada em torno dos 15 anos de idade. A partir desses dados, os autores creditam a precocidade da maternidade entre as escravas a uma transposição e adequação de um padrão cultural africano, que foi capaz de se manter autônomo à cultura familiar branca. Outra característica da família escrava relacionada com a precocidade da maternidade seria a própria precocidade da montagem da família escrava, independente desta ser sancionada ou não pela Igreja (FLORENTINO; GÓES, 1997: 134 et. seq.). 250 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas A geração de filhos ia, muitas vezes, até o limite das condições reprodutivas das mulheres escravas em Pelotas. A partir da reprodução de um método utilizado por Florentino e Góes, procurei averiguar a idade onde as escravas dariam à luz pela última vez6. As 47 mães com mais de 40 anos onde foi possível identificar a idade da última concepção tiveram seus últimos filhos, em média, com 35 anos. Acrescentando três e seis anos a esse valor, os limites encontrados entre as escravas pelotenses para o nascimento dos seus últimos filhos foi entre 38 e 41 anos. Observa-se que, assim como no Rio de Janeiro onde os dados apontaram para o encerramento da vida reprodutiva feminina próxima aos 40 anos (FLORENTINO; GÓES, 1997: 137), as escravas pelotenses tinham filhos em idades bastante avançadas, chegando muito perto dos limites biológicos para a procriação. Segundo Florentino e Góes, há um sentido sociológico no prolongamento da idade de procriação do último filho: devido aos longos intervalos intergenésicos – de cerca de três anos entre um filho e outro – a capacidade de reprodução da mulher escrava seria muito limitada, forçando o incremento da fecundidade em idades mais avançadas. Tal incremento estaria ligado ao eventual desaparecimento da população escrava, marcada por uma elevada desproporção sexual. Conforme os autores (FLORENTINO; GÓES, 1997: 139-140): talvez a situação em que se encontrassem os escravos fosse análoga à de certas comunidades primitivas cujo risco de desaparecimento, em conseqüência da exigüidade demográfi6 Para estabelecer a idade da última concepção das escravas do agro fluminense, os autores adotaram como critério, a idade do filho mais novo das mães com idade igual ou superior a quarenta anos. Assim, subtraíram esse valor à idade da mãe e calcularam a média da idade da última concepção entre essas mulheres. Ainda, os autores consideraram que, pelas fragilidades da fonte, é possível que os últimos filhos possam não ter sido capturados, se acaso tiverem falecidos. Assim, acrescentou-se de 3 a 6 anos à essa média, para se obter um quadro mais fiel de quando, de fato, houve a última concepção das escravas. FLORENTINO; GÓES, 1997: 137. 251 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... ca, as induzia à institucionalização de normas direcionadas à maximização das possibilidades reprodutivas do grupo. Não há motivos aceitáveis para menosprezar a idéia de que a comunidade escrava, também ela, constituísse variados mecanismos pelos quais se reiterasse, no tempo, como tal. A procriação era um objeto de investimento desta espécie de obsessão sociológica e a sua maximização dependeu do exercício de certos padrões forjados pela vivência escrava. As características das práticas reprodutivas em Pelotas indicam para uma grande extensão ao longo da idade reprodutiva da mulher, iniciando logo após a puberdade e encerrando com a proximidade do fim das capacidades biológicas de reprodução feminina. No entanto, por mais que nas matrículas houvesse, em geral, a preocupação em descrever a filiação dos escravos, é impossível ter a compreensão exata da quantidade de filhos gerados pelas mulheres cativas ao longo de suas vidas. As matrículas mostram uma média de 2,4 filhos para cada mãe arrolada. Essa média, entretanto, está sujeita a possibilidade de que nem todos os filhos das escravas estivessem no mesmo plantel que suas mães, que tenham falecido em algum momento entre a concepção e a execução da matrícula, etc. A análise da tabela 2, abaixo, mostra quão subestimada é a média obtida a partir dos registros das matrículas. Nesta tabela, elenquei as mães com quatro ou mais filhos identificados. Chama atenção o fato que 16 das 38 mães com quatro filhos ou mais7 terem até 36 anos (a idade média da última concepção entre as escravas pelotenses), o que sugere a existência de capacidade biológica entre essas mulheres para a geração de mais filhos. De fato, entre essas 16 mães, pelo menos dez não parecem ter interrompido as atividades reprodutoras no momento dos inventários de seus senhores. As idades dos 7 Houve um caso de uma escrava com dez filhos que, por não haver sido incluída a sua idade, não foi possível averiguar idade de primeira e última concepção. Por esse motivo a mesma não foi incluída na tabela que segue. 252 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas seus filhos mais novos – de até três anos – podem sugerir que essas escravas se encontravam em um intervalo genésico. A média dos intervalos entre os filhos das escravas pelotenses foi de 3,6 anos (sendo que o valor modal foi de 2 anos), oscilando principalmente entre 1 e 6 anos entre a concepção de cada filho. Assim, é plausível que algumas dessas escravas que já tinham pelo menos quatro filhos ainda dessem a luz após 1872. Tabela 2: Mães com quatro ou mais filho. Pelotas, 1850-1884 Nome da mãe Idade Número de filhos (A) (B) (C) Ana 30 4 22 29 1 Angélica 28 4 18 26 2 Antônia 56 4 26 47 9 Benedita 40 4 26 38 2 Catarina 39 4 29 32 7 Catarina 24 4 18 22 2 Delfina 34 4 17 30 4 Eva 32 4 15 29 3 Januária 35 4 24 29 6 Joaquina 50 4 25 38 12 Juliana 44 4 27 39 5 Laurentina 40 4 13 36 4 Leocádia 35 4 21 31 4 Lina 45 4 25 34 11 Luísa 38 4 26 37 1 Marciana 27 4 19 26 1 Marcolina 30 4 21 27 3 Maria 40 4 28 38 2 Mariana 46 4 23 38 8 Martinha 39 4 32 37 2 Rita 30 4 17 24 6 253 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... Rita 39 4 19 35 4 Rufina 24 4 17 22 2 Sabina 25 4 14 23 2 Brisida 33 5 18 29 4 Florenciana 28 5 20 27 1 Januária 38 5 28 36 2 Margarida 40 5 17 35 5 Maria 37 5 19 33 4 Maria 65 5 25 45 20 Maria Rosa 38 5 16 32 6 Sofia 56 5 21 40 16 Francisca 50 6 29 44 6 Júlia César 32 6 14 26 6 Leopoldina 27 6 14 26 1 Teresa 50 6 28 44 6 Feliciana 40 7 22 36 4 Maria Manoela 40 7 12 37 3 (A): Idade da primeira concepção;(B): Idade da última concepção;(C): Idade do filho mais novo. Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas, 1850 – 1884 Atentando à distribuição social dos grupos familiares matrifocais em Pelotas, é interessante a observação de que a maioria desses núcleos encontrava-se nos menores plantéis, aqueles com até 10 escravos. Apesar de possuírem apenas 43,1% do total de escravos – segundo as matrículas – os pequenos proprietários concentravam 55,4% das famílias matrifocais identificadas. Esse dado exibe uma importante especificidade de Pelotas em relação às outras regiões do Brasil. Heloísa Teixeira, por exemplo, mostra que as relações de parentesco entre escravos na segunda metade do século XIX em Mariana cresciam de acordo com o tamanho dos plantéis. Assim, a autora corrobora os resultados 254 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas de diversos estudos sobre a família escrava que afirmam que nos maiores plantéis existiam condições mais propícias para o estabelecimento de relações familiares entre os cativos. Por outro lado, nos menores plantéis, o menor número de escravos, a maior desproporção entre homens e mulheres e a maior dificuldade de legitimação das uniões pode justificar a menor incidência de vínculos familiares (TEIXEIRA, 2001: 111). Enquanto a bibliografia costuma creditar a maior presença da família escrava nos maiores plantéis, em Pelotas era nas menores escravarias que as relações consangüíneas que uniam escravos em família foram mais importantes. Talvez por que em Pelotas, diferentemente de outras regiões, os menores plantéis tinham uma composição sexual bastante equilibrada, tenham ocorrido condições mais propícias para a estabilização de famílias cativas no seu interior. Corrobora essa afirmação o fato de que, entre os plantéis com até dez escravos, os indivíduos envolvidos em famílias matrifocais representavam 38,9% dos cativos destas senzalas; naquelas compostas por 11 a 50 escravos, eram 36,9%; e, finalmente, nas escravarias com mais de 50 cativos, apenas 18,8% deles eram mães ou filhos de escravas do mesmo plantel. Pode-se observar, porém, que a média do número de filhos era crescente de acordo com o tamanho do plantel, sendo inferior a dois nos menores e 3,5 nos maiores. Tabela 3: Presença de laços de maternidade por tamanho de plantel. Pelotas, 1850-1884 Tamanho de plantel Mães # % Filhos # Média de filhos Irmãos sem por mãe mãe no plantel % % 78 43,1 0 – 10 87 55,4 168 45,4 11 – 50 59 37,6 163 44,1 2,8 81 44,8 + 50 11 39 10,5 3,5 22 12,2 Total 157 100,0 370 100,0 2,4 181 100,1 7,0 1,9 # Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas, 1850-1884 255 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... Ressalto também a importância dos filhos de escravos nos plantéis de tamanho médio. Apesar de, nesta categoria, a compra ter sido uma importante forma de aquisição de escravos, quase 42% dos escravos possuídos pelos escravistas com 11 a 50 cativos foram adquiridos através da reprodução de suas escravas. Isso leva a pensar na própria importância desses escravos “cria da casa” na expansão dos plantéis, fazendo com que, inclusive, seus senhores passem de pequenos a médios proprietários (segundo a categoria aqui utilizada). Como problematizam José Flávio Mota e Renato Marcondes (MARCONDES; MOTTA, 2000), nas situações em que as famílias fossem constituídas, a eventual prole resultante poderia implicara a mudança na própria faixa de tamanho. É interessante pensar, nesse sentido, que além do fato do tamanho do plantel haver sido fundamental para o estabelecimento de famílias escravas, pode-se observar o inverso: a família sendo fundamental para a manutenção dos plantéis, inclusive causando efeitos sobre o tamanho da posse a ponto de elevá-la a outro patamar. De fato, não foram poucos os casos como o do plantel de Joaquim Pereira Gomes8. Em 1872, Joaquim tinha 13 escravos. Maria, a matriarca, tinha 65 anos e, segundo a matrícula havia nascido na Província do Rio Grande do Sul – embora sua mãe fosse desconhecida – e fora herdade por Joaquim Pereira Gomes. Já na senzala de Joaquim, Maria teve cinco filhos (três mulheres e dois homens), concebendo o primeiro com 25 anos e o último com 45. Todas as filhas de Maria foram mães: Marcolina, de 30 anos, teve quatro filhos; Maurícia, com 25 anos na época da matrícula, teve dois; e Rita, com 20, também dois. Maria, seus filhos e netos compunham todo o plantel em questão, sendo somente a matriarca adquirida por outra forma 8 APERS. Comarca de Pelotas, Caixa 006.0516, Processo n. 104, Inventário de Joaquim Pereira Gomes e Maria Joaquina da Conceição, 1879. 256 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas que não a reprodução interna. É interessante que na listagem de escravos, não havia nenhum escravo que possa ser o pai tanto dos filhos de Maria quanto de seus netos. Haviam falecido? Sido alforriados? Vendidos? Poderiam ainda ser livres, libertos ou mesmo escravos de outros senhores. Caso fossem escravos de outro senhor, talvez o nascimento da prole gerasse uma situação de conflito pela sua posse, sustento, etc. Talvez o relacionamento de escravas com homens libertos ou livres possa explicar esse caso. A historiografia aponta para um importante ganho para o senhor ao permitir tais relacionamentos. Poderia haver um interesse na ampliação do poder pessoal do senhor pela anexação de mais dependentes e na transferência da responsabilidade de subsistência do cativo e de sua prole ao cônjuge livre ou liberto (FARIA, 1998: 316-317). Na senzala de Vicência Gomes da Silva Tavares9, todos os seus quatro escravos eram “crias da casa”, filhos de Joaquina. Apesar de ter pertencido ao plantel – haja vista que seus filhos foram crias daquela casa – Joaquina não estava presente na matrícula. Não consta o motivo de sua ausência. Assim como o caso dos filhos de Joaquina, que tinham sua mãe ausente no momento da matrícula encontrou-se um total de 59 grupos familiares envolvendo irmãos com a mãe ausente, envolvendo ao total 181 indivíduos. Como a tabela acima mostra, foram mais freqüentes em médias e pequenas propriedades. Eram grupos normalmente de dois a quatro irmãos, mas podendo se estender até nove. Em sua maioria, eram homens e mulheres adultos (63% frente a 19,3% de jovens entre 10 e 14 anos e 17,1% de infantes até nove anos), havendo um pequeno predomínio masculino, representando 53%. Em média, esses indivíduos tinham aproximadamente 17 anos e eram, quase que exclusivamente, 9 APERS. Comarca de Pelotas, Caixa 006.0426, Proceso n. 782, Inventário de Julião José Tavares, 1873. 257 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... crias da casa ou herdado (77,3% e 21,5%, respectivamente). Apenas dois haviam sido comprados, os quais eram irmãos de escravos herdados ou crias da casa. O que teria acontecido com as mães desses cativos? As matrículas ajudam a especular sobre seus destinos. Apesar de haver algumas evidências sobre os motivos de ausência dessas mães dos plantéis onde estavam seus filhos, para apenas 37 das 59 mães ausente (62,7%) foi anotada na matrícula algum motivo para o seu afastamento da convivência com os filhos. Praticamente metade das mães as quais foi anotada alguma informação havia sido alforriada e a outra metade, falecido até o momento da matrícula – 48,6% e 45,9%, respectivamente. Apenas duas (5,4%) haviam sido vendidas. Esses números indicam que não houve uma tendência por parte dos senhores em separar as famílias escravas a não ser por forças maiores, o falecimento, ou pela alforria, que não impedia o convívio de mães e filhos. Talvez a libertação das mães poderia se configurar em uma estratégia de promover a liberdade das escravas, mas mantendo-as próximas das senzalas habitadas pelos seus filhos. De qualquer forma, como a maioria (63%) dos indivíduos com irmãos, mas mães ausentes no plantel estavam em idade adulta no momento da matrícula, as separações de mães e filhos não envolvia a dissolução dos laços de dependência que unia mães e seus filhos mais jovens. A bibliografia sobre o tema mostra que a dissolução de famílias escravas mesmo antes do Decreto de 15 de setembro de 1869, que no seu artigo segundo proibiu a separação de marido e mulher ou filho com até quinze anos do pai ou da mãe10. Estudando as partilhas de escravos em Campinas ao longo do século XIX, Cristiany Miranda Rocha (ROCHA, 2004) afirma que 10 Texto disponível em www6.senado.gov.br/legislacao/ ListaPublicacoes.action?id=73932&tipoDocumento=DEC&tipoTexto=PUB. Acesso em fevereiro de 2012. 258 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas [ ...] muito antes da lei de 1871 proibir a separação de casais e de pais e filhos menores de 12 anos (em qualquer tipo de transmissão de propriedade) [Lei de 15 de setembro de 1869], a prática entre os senhores de escravos de Campinas já era a de preservar esses núcleos familiares nas partilhas, sobretudo os casais. Assim, podemos considerar que aquela lei veio formalizar uma prática já existente desde a primeira metade dos Oitocentos Juliana Garavazo, ao comparar a manutenção das famílias escravas após o falecimento de seus senhores em dois períodos distintos – de 1851 a 1869 e de 1871 a 1887 – atentando às leis que proibiam a divisão de famílias, seja por venda ou herança, observou que as unidades familiares haviam sido menos prejudicadas no primeiro período estudado. Enquanto que nas décadas de 1870 e 1880, 67,1% das famílias permaneceram total ou parcialmente unidas, nas décadas anteriores essa proporção foi de 72%. Nas palavras da autora, “tal resultado não deveria ser esperado, uma vez que a nova legislação imposta ao sistema escravista após 1869 tinha como objetivo final evitar a separação de famílias” (GARAVAZO, 2006: 240). Efetivamente, o momento de maior instabilidade para as famílias escravas era representado pela morte do senhor e divisão de seus bens. Como afirma Sidney Chalhoub, esse fato marcava o início de um período de incertezas onde não só a separação das famílias afligia os escravos, mas a própria incerteza quanto ao convívio sob o jugo de um novo senhor (CHALHOUB, 1990:111). A partir dos dados das matrículas para Pelotas é impossível compreender a estabilidade das famílias escravas com precisão. É certo que muitas famílias permaneceram unidas mesmo após a morte de seus senhores. Como visto anteriormente, mesmo considerando a falta de informações para 36,3%, os principais motivos para ausência das mães foram a alforria ou o óbito. De qualquer forma, a separação não parece ter tendido a distanciar mães de seus filhos mais jovens, visto que a maioria dos irmãos separados de suas mães (63%) tinha mais de 15 anos. 259 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... O estudo sobre a capacidade reprodutora e a família escrava nos plantéis pelotenses ajuda a compreender melhor a sua importância para a composição da escravaria local e, inclusive, da manutenção da escravidão após o fim do tráfico transatlântico. Apesar da pouca incidência de relações institucionalizadas pelo casamento católico, foram encontrados importantes indícios de uniões consensuais envolvendo laços consanguíneos entre mães e filhos e irmãos. Uma boa parte das mulheres com mais de 15 anos no momento da matrícula haviam gerado pelo menos um filho – em média, cada mãe teve 2,4 filhos. Ainda assim, 39 mulheres – quase um quarto das mães – tiveram entre quatro e dez filhos. Essas famílias maiores se explicam pelas características da vida reprodutiva das mulheres escravas em Pelotas. Elas iniciavam seu ciclo reprodutivo bastante cedo, normalmente logo após a entrada na puberdade. Ao mesmo tempo, o ciclo se encerrava também próximo dos limites biológicos femininos. Muitas mães tiveram seus últimos filhos com idades próximas a 40 anos. Aliados a intervalos genésicos que iam, na sua maioria, de um a seis anos (com uma média de 3,6 anos), esses limites extensos do ciclo reprodutivo feminino mostram a capacidade de geração de um elevado número de filhos. Talvez para os senhores dessas escravas houvesse interesse em incentivar a gravidez, visto o importante retorno, que nesse momento o acesso ao comércio de escravos era muito mais restrito, em termos de acumulação de cativos. Pôde-se ver que foi inclusive nos plantéis com menores condições de acessar o comércio de escravos que a reprodução endógena foi mais importante, chegando a envolver, entre mães e filhos, mais de um terço dos escravos listados nos plantéis com até dez cativos. Ainda assim, os plantéis de tamanho médio também tiveram uma importante participação da família escrava na sua composição. É possível que o fruto dessas famílias tenha proporciona- 260 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas do até mesmo a mudança na faixa de propriedade de diversos médios proprietários. Essas famílias surgidas no interior das senzalas pelotenses em geral se mantiveram unidas, mesmo que sem a presença das mães, como foi o caso de 60 grupos de irmãos com as mães ausentes. Esses irmãos que, na maior parte, eram maiores de 15 anos foram separados de suas mães somente pela alforria ou falecimento da mesma. Como a historiografia aponta, não era costume entre os escravistas a divisão de famílias escravas pela herança ou venda, mesmo antes das leis específicas sobre a separação das famílias cativas. Em Pelotas, mesmo com poucas informações, observou-se que tanto a venda quanto a herança não parecem ter alterado a estabilidade desses núcleos familiares. Acredito que esses dados podem indicar realmente um projeto por parte dos escravistas em investir na reprodução dos cativos como forma de manutenção da escravidão, em especial entre aqueles proprietários que enfrentavam maiores restrições de acesso ao tráfico interno, pelo menos até 1871. Fontes utilizadas Arquivo Público do Estado Do Rio Grande do Sul Inventários, Pelotas, I Vara Cível, caixas 006.0101-006.0105, 1850-1884; Inventários, Pelotas, II Vara Cível, caixas 006.0018-006.0021, 1850-1884; Inventários, Pelotas, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, caixas 006.0398-006.0440; 006.0482, 1850-1884; Inventários, Pelotas, II Vara de Família, caixas 006.0510-006.0518, 1850-1884. Fontes impressas e online DE PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO A ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CENSOS DO RS, 1803-1950. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística/Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, 1981, 261 PESSI, B. S. • A família escrava e a reprodução endógena... RECENSEAMENTO DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1872, disponível em http://biblioteca.ibge.gov.br/ . Último acesso em 09/02/2011. Referências CAMPOS, Adriana Pereira. Escravidão, reprodução endógena e crioulização: o caso do Espírito Santo no Oitocentos. Topoi. 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Em poucas horas, o homem poderia estar informado sobre fatos que estavam ocorrendo em outro local através do rádio e do telefone; havia o automóvel, o navio a vapor, o avião para limitar as distâncias entre os homens e seus negócios. Quanto ao trabalho, a produção manual foi gradativamente sendo substituída por equipamentos mais técnicos e precisos que possibilitavam a geração de produtos melhores em menor tempo e a custos reduzidos. O homem passou a receber atenção do Estado, com o objetivo de “cuidar” de sua saúde, educação, hábitos, moradia, na ambição de formar novos cidadãos aptos para o viver dos novos tempos. Todas essas modificações, realizadas em um curto período de tempo, marcaram uma época, posteriormente conhecida como a Belle Époque (Bela Época). Antes desse período, não se 264 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas tinha vivido de forma tão intensa a expectativa de um futuro melhor, facilitado pela ciência. Não se conheciam marcas históricas para o que estava acontecendo: aumentou-se o otimismo na medida em que se acreditava que os progressos alcançados estavam impulsionando a humanidade para um futuro grandioso. Era uma época de sonhos e utopias. O Brasil, assim como outros países, também compartilhava o objetivo da civilização e modernização da sociedade e o Estado do Rio Grande do Sul, tradicionalmente voltado aos negócios ligados ao campo, igualmente percebeu as potencialidades que a Bela Época estava a trazer e desejou ser moderno como outros Estados e nações. Para tanto, escolheu sua capital como “sala de visitas” para apresentar quão grande e semelhante poderia ser a cidade em relação ao exemplo maior – Paris. Dessa forma, a França era a grande inspiração, a matriz do conhecimento científico, o exemplo da renovação urbanística, o modelo a ser seguido. Obras francesas eram mandadas traduzir por conta da municipalidade para que informassem, ilustrassem e induzissem ao uso dos modelos franceses. Paris era invocada a todo o momento, em comparações sucessivas com Porto Alegre, com vantagens evidentes para a cidade-luz (PESAVENTO, 1996: 382). Impulsionada pelo espírito da República, a cidade de Porto Alegre uniu-se, através de sua liderança, aos ideais positivistas, aspirando a se igualar a outras cidades e a alcançar a meta da modernização urbana e da organização disciplinar da sociedade. Assim, o modelo europeu, modernizar e civilizar, foi “importado” para Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, juntamente com os novos ideais, permitindo que a Belle Époque se instalasse na cidade. Porém, nem tudo funcionava como se propunha. A cidade apresentava suas contradições do progresso, assim, para o povo “era mais um pesadelo do que um sonho 265 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida realizado. As condições de trabalho nas fábricas, a falta de saneamento básico e o acirramento da luta de classes revelava o ‘lado escuro da lua’” (CORREA, 1994: 22). Esse modelo não estava exclusivamente restrito aos aspectos urbanísticos ou sanitários. A sociedade porto-alegrense, principalmente suas elites, buscava, por meio de procedimentos normativos e disciplinares, regularizar os hábitos e costumes da população, principalmente daqueles pertencentes aos grupos populares1. No centro de toda essa (re)organização da sociedade, estava a família e, principalmente, seu pequeno integrante, a criança. Regrando o núcleo fundamental de qualquer sociedade, a família, se estaria regrando a sociedade por completo. Dessa forma, com a atenção direcionada para a estrutura familiar, as elites buscavam (re)organizar os hábitos e os costumes da população porto-alegrense, e uma das instituições que contribuiu para que isso ocorresse foi o Juizado Distrital da Vara de Órfãos2 de Porto Alegre, ou simplesmente, Juízo dos Órfãos, que direcionou suas atenções para os menores de idade que passavam por algum tipo de desestruturação familiar e que necessitavam de um amparo legal para suas necessidades. Os menores de idade Quando fazemos referência ao termo “menor de idade”, nos referirmos à criança, adolescente e jovem até a idade de 21 anos (idade limite para se tornar adulto e assim responsável 1 A categoria populares, atribuída aos grupos sociais que compõem a maior parte dos sujeitos arrolados neste texto e no Juízo dos Órfãos de Porto Alegre, é usada justamente por sua heterogeneidade (MOREIRA, 2009), correspondendo desde “vagabundos”, “desordeiros” e “gatunos” até o proletariado de forma geral (MAUCH, 2004). 2 O termo órfão não deve ser entendido estritamente, pois pode representar menores órfãos de pai e mãe como também os “órfãos de pais vivos”, ou seja, representava igualmente aqueles que tinham seus progenitores vivos. 266 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas legal por seus próprios atos). Ora por que utilizar um termo que vem carregado de sentido pejorativo para descreve esse público? Por ser este o termo utilizado pelo Juízo dos Órfãos. Como bem reportou a antropóloga Patrice Schuch (2010), o termo menor é sempre acompanhado por “uma ampla gama de substantivos e adjetivos diversos, como crianças ‘desvalidas’, ‘miniatura facínoras’” (SCHUCH, 2010: 156). Dessa forma, temos que discordar, em parte, do historiador Fernando Torres Londoño quando este afirma que “até o século XIX, a palavra menor como sinônimo de criança, adolescente ou jovem, era usada para assinalar os limites etários, que impediam as pessoas de ter direito à emancipação paterna ou assumir responsabilidades civis ou canônicas” (LONDOÑO, 1991: 130). Ainda segundo o autor, no transcorrer do século XX, mas precisamente na década de 20 até nossos dias, “a palavra passou a referir e indicar a criança em relação à situação de abandono e marginalidade” (LONDOÑO, 1991:129). A transição do peso simbólico para Fernando Londoño se deu “no fim do século XIX, [quando,] olhando para seu próprio país, os juristas brasileiros descobrem o ‘menor’ nas crianças e adolescentes pobres das cidades, que por não estarem sob a autoridade dos seus pais e tutores são chamados pelos juristas de abandonadas” (LONDOÑO, 1991: 134-135). Mas o que há de errado nessas afirmações? A naturalização. Já a antropóloga Adriana Vianna (1999), realizando um estudo de antropologia histórica em período semelhante, utiliza o termo em sua pesquisa sempre o adjetivando ao constatar que “menor” “só seria aplicado a uma camada específica da população e não a todos os que se encontrassem em determinada faixa etária” (VIANNA, 1999: 20), o termo, para a autora, produziria identidades que “mais do que apontar uma determinada condição legal do indivíduo detido, o termo menor pode ser visto como uma espécie de status principal de sua iden- 267 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida tidade social” (VIANNA, 1999: 26). Mas, o que há, novamente, de incerto nestas afirmações? Novamente respondemos: a naturalização do termo. O equívoco que muitos pesquisadores acabam se enredando é transpor um termo que tem sentido variado ao longo do tempo e nas instituições. O termo “menor” é decorrente das Ordenações Filipinas que eram o código jurídico do Império português e que perdurou no Brasil, como código jurídico, até 1890 quando vem à luz o Código Civil Brasileiro, já no período republicano; contudo, no que compete a todos os menores de idade, ele serviu de legislação base até 1927, quando ocorre a implantação do Código de Menores. Nas Ordenações Filipinas não havia os termos criança, adolescente ou jovem, mas sim “menor de idade”, “exposto” ou “enjeitado”. E o Juízo dos Órfãos, como instituição de origem lusa, aplicava o termo “menor de idade” única e exclusivamente para todos os que tivessem até 25 anos de idade (limite etário até 1831) e, para a maior parte do século XIX e XX, 21 anos (limite etário até 1990). Ou seja, não havia essa carga pejorativa ou a adjetivação do termo; sendo na maior parte das vezes empregue o termo órfão para definir o público alvo do Juízo dos Órfãos, que também não só atuava sobre os órfãos strictu sensu, mas aplicava esse termo em consonância com o nome da instituição; termo órfão que foi sendo abandonado ao longo do tempo por menor de idade, muito em decorrência da criação do Juizado de Menores, que na cidade de Porto Alegre ocorreu em 1933 (ZANELLA, 2003). Mas como surgiu essa generalização em entender o termo “menor de idade” como pejorativo, já para o início do século XX? Para responder a esta questão, faz-se necessário refletir sobre as fontes utilizadas pelos autores Fernando Londoño (1991) e Adrianna Vianna (1999); o primeiro faz um “levantamento bibliográfico” sobre os códigos legais relacionados aos “menores”. Sobre este ponto é importante referendar que os 268 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas juristas brasileiros estavam discutindo sobre a imputabilidade criminal ou não dos “menores de idade”, como o trabalho de João Bonumá (1913) intitulado “Menores abandonados e criminosos” em que o eminente Curador Geral de Órfãos (Promotor Público do Juízo dos Órfãos) e futuro Procurador Geral do Rio Grande do Sul conjetura sobre a condição social em que muitos “menores” se encontravam, questionando a forma com a polícia atendia os “menores infratores”, bem como discutindo se os “menores de idade” deveriam ser presos como qualquer criminou, tese que repudiava. O termo “menor” era algo que estava na pauta do dia na jurisprudência da jovem república brasileira para saber se deveriam ser ou não presos ou culpabilizados por crimes, dessa forma o termo “menor” sempre estava adjetivado com a palavra “infrator”, “delinqüente” ou “criminoso”. Na segunda pesquisa, Adriana Vianna utilizou documentos do Ministério da Justiça relativos à polícia e a prisões de menores de idade, processo que tinham já um formato pejorativo para com a figura dos menores de idade em virtude da lógica da fonte. Lógica documental que Keila Grinberg (2012) aponta como fator principal para se compreender a razão das ações e das afirmações das instituições e pessoas envolvidas nos processos. Os tipos de documentos estudados por Vianna (1999) tinham por objetivo culpabilizar e responsabilizar alguém por seus atos, como os processos eram sobre crianças, adolescentes e jovens “delinqüentes” ou “infratores”, os autos os caracterizavam de forma pejorativa. Mas a lógica da documentação que pesquisamos é distinta. Os autos de tutela não tinham por objetivo culpabilizar ou responsabilizar um “menor de idade”, dessa forma, tanto a jurisprudência orfanológica quanto os autos revelam as disputas entre os adultos, seus valores sócio-culturais, as formas de organização familiar e as negociações dos agentes. Fatos que não faziam o termo “menor” ser visto como depreciador de 269 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida crianças, adolescentes e jovens, representando tanto os provenientes de famílias de elite quanto os de família de origem popular. Dessa forma, não podemos naturalizar o termo “menor de idade”, pois, para a lógica do Juízo dos Órfãos ele não representava mais do que a idade do indivíduo. Contudo, também não podemos naturalizar o termo “idade”. Ela é uma categoria distintiva que delimita a fronteira entre maior e menor, ou seja, responsável pelos seus atos ou não. Assim, o marco etário também não é natural, pois revela uma forma de governo (autoridade) e regulação social atrelada a justificativa de buscar um responsável – tutor – para aquela criança, adolescente ou jovem que não atingiu a “idade” adulta. Dessa forma, mantivemos o termo “menor de idade” por ser o utilizado pelo Juízo dos Órfãos para representar seu público alvo. Juízo dos Órfãos O Juizado de Órfãos é uma instituição que teve sua origem em Portugal, remontando às Ordenações Manuelinas, mas ganhando importância com as Ordenações Filipinas, que formam o código jurídico a partir de 1580. Até o século XVIII, esse cargo era exercido pelo Juiz Ordinário, que não tinha formação em Direito. Com o crescimento da população colonial, em maio de 1731, foi regulamentado o cargo de Juiz de Órfãos no Brasil e, assim, a partir dessa data, as questões relacionadas aos menores passaram a ser de sua responsabilidade (AZEVEDO, 2007). Em Porto Alegre já havia Juiz de Órfãos, desde 1806, criado pela Real Resolução, transpôs o período Imperial chegando até a República, quando houve a criação em 1927 e a substituição em definitivo deste Juízo pelo Juizado de Menores3 em 1933. 3 Sobre o Juizado de Menores em Porto Alegre, ver o artigo de Ana ZANELLA (2003) intitulado “A administração do Juizado de Menores do Rio Grande do Sul nos seus primórdios (1933 a 1945)”. 270 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Dessa forma, o Juizado de Órfãos foi, desde período o Colonial até o início da República, uma das instituições mais importantes para a regularização das questões relativas à família e à criança, desempenhando, ao longo do tempo, atividades de proteção ao menor. Conforme Gislane Azevedo (1995) e Sonia Rodriguez (2010), essa instituição cuidava, num primeiro momento, dos menores das elites, na resolução não só de questões envolvendo suas heranças, da relação entre os menores e seus familiares ou tutores, como também de outras que diziam respeito à sua renda e a seus bens. Após, com a formação de novas relações sociais, o Juízo dos Órfãos passou a direcionar atenção especial para o cuidado (abandono, saúde, moradia, roupas e educação) da criança popular (CARDOZO, 2010a; 2012). Isso ocorreu porque as instituições públicas tornaram esses indivíduos as figuras centrais no espaço familiar, pois as crianças seriam os futuros cidadãos e cidadãs da república brasileira. O Juizado de Órfãos, dessa forma, foi um órgão essencial para o encaminhamento de questões quanto à desagregação familiar envolvendo crianças. Preocupado com o universo infantil, o Juízo dos Órfãos mediou ações praticadas pela família, pois essa era considerada o espaço gestor dos padrões e regras de comportamento social (CARDOZO, 2011a). Os processos selecionados desse órgão do Judiciário são os Autos de Tutela que, em muitos casos, são sumários, contendo duas ou três folhas, na qual um interessado em tutelar uma criança solicita ao Juiz de Órfãos esse encargo, ao conhecer algum menor que necessitasse de cuidados. Essa situação era, geralmente, gerada pelas condições insuficientes dos pais, seja financeira ou moral e as solicitações, normalmente, demoravam poucos dias para serem deferidas a favor do solicitante. Porém, nem todos os processos eram rápidos, alguns levavam muito tempo; esses envolviam disputas entres os “candidatos” à tutela, como entre os pais ou parentes do jovem ou mesmo 271 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida entre terceiros interessados na tutela desse menor. Alguns desses autos estão incompletos4, outros são grandes, volumosos, apresentando vários atores ao longo da disputa. Assim, a tutela era um encargo conferido pelo Juízo dos Órfãos a uma pessoa para que gerenciasse os bens e cuidasse da integridade física do menor, representando-o tanto em juízo como fora deste. Nesta sociedade que desejava ser moderna como as europeias, a instituição da tutela foi um dos instrumentos empregados por este órgão jurídico para regulamentar a família, pois havia nessa época [...] toda uma ideia de adestramento dos instintos naturais e de moldagem de corpos e mentes a uma nova ordem que se impõe. Este princípio converte, sob certo aspecto, todo ‘homem novo’ a uma situação de criança: ele é alguém que se intenta conformar as habilidades, inculcar valores, coibir comportamentos e treinar segundo um parâmetro desejado. Nesse raciocínio, quanto mais cedo este processo se iniciasse, maior a probabilidade de êxito teria na obtenção de um ‘tipo ideal’. Não é de espantar, pois, que esta estratégia formativa se voltasse para a infância (PESAVENTO, 1995: 191). Portanto, a família recebeu atenção, principalmente seus membros mais jovens, os quais possuíam um Juizado específico para tratar das questões relacionadas a estes. Enredos da vida O processo da menor Alice5, de 14 anos de idade, filha natural de Marcolina da Silva, é um caso que podemos tomar como exemplo de atitude por parte do Juizado de Órfãos na indicação de um tutor. 4 Apresentam apenas a petição inicial não tendo uma continuidade, porém algumas dessas petições apresentam um valioso quadro dessa família e da sociedade. 5 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara. Tutela. Processo n° 630 de 1916. [manuscrito]. Porto Alegre, 1916. Localização: APERS. 272 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Essa ação de tutela foi encaminhada ao Juízo de Órfãos por Balbina Brühl de Albuquerque, viúva, que denunciava a mãe da menor Alice, pois não tinha condições “necessárias e imprescindíveis6” para cuidar da referida menina. A senhora Balbina pede que a mãe da menor seja ouvida, pois ela pode confirmar suas declarações. Quando a mulher em questão foi intimada, afirmou não se opor à possibilidade de sua filha ser tutelada por essa senhora. Entretanto, o Juiz João Soares não deu o cargo de tutor à Balbina Brühl e indicou o senhor Alfredo Melo. Através da leitura dos autos, tomamos conhecimento que a mãe de Alice não concordava que o tal sujeito fosse tutor de sua filha, apresentando, inclusive, uma reclamação. Mas o Juiz, no mesmo dia, respondia que, “independente da carta acima” (pedido de destituição de tutor feito pela mãe), determinava que se intimasse o tutor nomeado, “para prestar o compromisso7”. Os resultados apresentados no gráfico 1 apontam, justamente, que casos como o da menor Alice, em que um terceiro, que não tinha qualquer relação com o menor recebia a tutela. Esses casos, antes de ser uma exceção, constituíam a maioria dos casos analisados para Porto Alegre, pois dos 823 autos de tutela abertos no município de Porto Alegre8, entre 1900 e 1927, 55%, ou 468 casos, os menores não possuíam qualquer tipo de relação com o tutor. Apenas 40% dos casos, 345 processos, os tutores possuíam qualquer vínculo consanguíneo (pai, mãe, avós, tios, irmãos etc.), de afinidade (padrasto, madrasta, cu- 6 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara. Tutela. Processo n° 630 de 1916. [manuscrito]. Porto Alegre, 1916. Localização: APERS. f. 2. 7 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara. Tutela. Processo n° 630 de 1916. [manuscrito]. Porto Alegre, 1916. Localização: APERS. f. 7. 8 Na cidade de Porto Alegre havia três Juízos Distritais da Vara de Órfãos e o número de processos representa a totalidade dos mesmos depositados no APERS. 273 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida nhado, cunhada etc.), de ofício (patrão) ou mesmo espiritual (padrinho ou madrinha) com o seu tutelado. Gráfico 1: Relação do menor com o tutor, baseado nos 823 processos de tutela de 1900 a 1927 depositados no APERS Conforme as Ordenações Filipinas (liv. 4º, tit. 102 §7), somente na falta de tutor testamentário ou legítimo era que seria atribuída a tutoria a uma pessoa indicada pelo Juizado. Porém, podemos ver que a práxis9 utilizada por essa Instituição Jurídica, no período selecionado, era divergente daquilo que estava regulamentado pela legislação base. Assim, mesmo que a mãe possuísse uma pessoa de confiança para cuidar de sua filha, como no último caso, o Juizado atribuía o cargo de tutor a um terceiro, mesmo que este não pertencesse ao círculo familiar ou de convivência da referida menor. O Juízo dos Órfãos avaliava as condições em que se encontrava a pessoa que reali- 9 Sobre a práxis dos Juízes de Órfãos em Porto Alegre, no período em foco, ver o texto de José CARDOZO (2010b) intitulado “Na fronteira da família: entre a lei e a moral”. 274 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas zava a petição. No caso da mãe da jovem Alice, alegava-se que ela não tinha condições “necessárias e imprescindíveis”, levando que o Juiz não considerasse a sua vontade no momento de deferir a tutela de sua filha. A indicação de um tutor, por parte de uma pessoa envolvida no processo, não significava muito para um Juiz ou mesmo para o Curador Geral de Órfãos10. Contudo, isso poderia acontecer, como ocorreu no processo da menor Ernestina de Azambuja Moré11. Esse caso exemplifica a exceção entre muitos outros desse período. Nessa ação, sua mãe Arabella Bittencourt de Azambuja, viúva do Alferes Ernesto Emmanuel Moré, pede ao Juiz Hugo Teixeira que dê um tutor para sua filha, pois ela, Arabella, havia contraído segundas núpcias. Essa era a determinação da lei e, segundo a legislação, perderiam o direito da Tutela as mães e avós que se casassem novamente ou que deixassem de viver “honestamente”. Nesses casos, essas mulheres não poderiam reaver a tutela ainda que enviuvassem novamente (Ord. Fil. liv. 4º, tit. 102 §4º). Ao se casar em segundas núpcias, portanto, Arabella, perdia o pátrio poder sobre a filha. Nessa contingência, ela, como mãe da menor, indicou um familiar para desempenhar o papel de tutor e, quem sabe, dessa forma, ela não perderia contato com a menor e nem esta perderia a referência familiar. Assim, indicou seu irmão, casado, Octavio Bittencourt de Azambuja. Uma estratégia legal encontrada por ela para não perder sua filha para outra pessoa, fora do circulo familiar. O caso da menor Ernestina, em que houve a indicação do tutor e este, de fato, recebeu a tutoria não era a regra. Isso é 10 Promotor Público do Juízo dos Órfãos. Era a pessoa legalmente constituída como representante dos interesses dos órfãos no Juízo; sem seu parecer o auto não poderia ser julgado, dessa forma, era o advogado dos órfãos. 11 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo n° 611 de 1915. [manuscrito]. Porto Alegre, 1915. Localização: APERS. 275 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida o que indica o gráfico 2, mostrando que um desfecho desses era justamente a exceção. Dos dados que coletamos, somente em 74 processos (9%), os tutores que receberam a guarda de um menor foram indicados pelos suplicantes; por sua vez, na grande maioria dos casos, em 747 processos (87%), não foi registrada qualquer indicação. Gráfico 2: Tutor Indicado, baseado nos 823 processos de tutela de 1900 a 1927 depositados no APERS Isso significa que a maioria dos aspirantes ao cargo de tutor ou entrou pessoalmente com a solicitação da tutela para si, ou o Juiz, com a autoridade que o revestia, cumpriu a função de indicar o tutor. De toda a forma, o Juiz tinha total autonomia para investir uma pessoa do cargo de tutor, mesmo que isso viesse a romper com os laços familiares do menor, como ocorreu no processo referido anteriormente, relativo à menor Alice. Parece-nos que o Juizado de Órfãos valorizava mais a autonomia do futuro tutor em requerer pessoalmente a guarda do menor, apresentando seus motivos e, mais importante do que isso, sua própria pessoa para o Escrivão poder “avaliá-lo”; 276 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas do que o tutor ser indicado por outra pessoa dificultando a avaliação desse funcionário do Juizado. Não podemos nos esquecer de que o Escrivão tinha por responsabilidade, além de redigir os trâmites do Juízo, fiscalizar o procedimento dos tutores12. Se pudesse realizar essa “avaliação” previamente, poderia evitar problemas posteriores com o tutor. Porém, se o indicado a tutor fosse uma pessoa alegadamente “honesta”, de “respeito” na sociedade não haveria a necessidade de o interessado dar início ao processo no Juízo dos Órfãos, pois poderia ser feita a indicação de seu nome, sem maiores problemas, ou apuradas investigações. Isso ocorrera no caso dos menores Geny, Cecy, Epiphanea, João e Olindina13, respectivamente de 18, 16, 14, 12 e 10 anos de idade, em que o delegado de polícia major Hércules Gomes Silveira encaminhou as crianças para o Juizado de Órfãos. O delegado inicia o processo informando que devido a ter sido assassinado Amaro da Silva [o pai] e estar sua mulher Merencia Pinto Bandeira [a mãe], recolhida a Casa de Correção por ser acusada [do] assassinato acima, ficaram os filhos desse casal [...] sem terem que[m] os proteja, pelo que peço-vos nomeies tutor para os [menores] (grifo nosso). Assim, solicita do Juiz “que providencies no sentido de arrecadar as existências do negócio de secos e molhados da rua Dr. Bordini nº 54, onde era Amaro estabelecido14” . Esse processo é interessante pelo fato de a mãe dos menores ter sido “acusada” de matar seu marido e se encontrar reclusa na cadeia, ficando o negócio da família abandonado. 12 Sobre as funções dos membros do Juízo dos Órfãos, ver CARDOZO; FLECK; SCOTT, 2012. 13 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo n° 394 de 1913. [manuscrito]. Porto Alegre, 1913. Localização: APERS. 14 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo n° 394 de 1913. [manuscrito]. Porto Alegre, 1913. Localização: APERS. f. 2. 277 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida O delegado que encaminhou o processo ao Juiz de Órfãos é nomeado tutor das crianças, 5 dias após o início desse pleito. É notável o interesse do major Hércules na tutela dessas crianças, o mesmo não se podendo dizer quanto à investigação do caso da morte do pai dessas, pois afirma que a mãe é “acusada” desse assassinato, sendo esta mantida presa, sem haver provas e confirmações dos fatos. Mesmo não tendo sido concluído o inquérito policial15, o delegado solicita ao Juiz de Órfãos um tutor para os menores e estes não retornaram mais à Justiça. É interessante notar que, além de a tutela das crianças ser atribuída em apenas 5 dias, o major solicita ao Juiz que se arrecadem “as existências” do negócio da família para o sustento dos menores, fazendo-nos acreditar que o delegado possuía também grande interesse nesse negócio. Gráfico 3: Tempo de Duração, baseado nos 823 processos de tutela de 1900 a 1927 depositados no APERS16 15 16 Não foi encontrado o Processo-crime do assassinato de Amaro Silva no APERS. Em se tratando de tempo de duração, não fazem parte dessa quantificação os autos que não tiveram decisão final (74 processos), os que não apresentam data inicial (2 processos) e o que não apresentou o dia da decisão final (1 processo). 278 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Outra característica recorrentemente observada nos processos do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre refere-se à rapidez com que se decidia o destino das crianças e jovens. Em 81% dos casos, a duração do processo não excede uma semana. Isto é, 607 processos do total analisado foram decididos no prazo máximo de sete dias. Somente 19% deles (139 casos) se estenderam para além desse prazo (gráfico 3). Gráfico 4: Tempo de duração por Vara, baseado nos 823 processos de tutela de 1900 a 1927 depositados no APERS Com as informações reunidas nesse gráfico 4, percebemos que, muitas vezes, com uma “simples assinatura”, de forma rápida e sumária, o futuro de uma criança ou jovem era decidido. O destino desses seres tanto poderia ser a sua permanência com algum familiar como a destinação a uma nova fa- 279 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida mília, ou, em última hipótese, encaminhados para alguma instituição filantrópica. Não havia uma apuração da veracidade das afirmações ou uma pormenorizada investigação sobre o comportamento do futuro tutor. Não são muitos os casos em que o Juizado de Órfãos de Porto Alegre intima testemunhas, ou mesmo o menor, para analisar as afirmações de um suplicante a tutor. Os Juízes e Curadores Gerais, baseados na legislação (Ord. Fil. liv. 4º, tit. 102 §7), deveriam dar um tutor para um menor em até 30 dias. Podemos conjecturar que, como eram muitas as atividades desempenhadas por esses juristas – desde Inventários até mesmo a verificação de maus-tratos –, demoravam pouco tempo a analisar cada caso, não dispensando, em princípio, muita atenção aos processos que lhes chegavam às mãos. O Juízo dos Órfãos foi um órgão eficiente, pois cumpriu seu objetivo de não deixar uma criança sozinha ou em “má companhia”, mas verificamos, pela documentação processual, que se houvesse um pouco mais de cautela por parte dos juristas, em decidir o responsável por um menor, muitos problemas, entre adultos e crianças, poderiam ter sido evitados. Assim, não era incomum acontecer o que ficou registrado no caso da menor Norina17, de apenas 5 anos. No mesmo dia em que foi expedida a ordem, foi lavrado o Termo de Tutela e Compromisso para João Carlos Moreira Röhrig. O mesmo ocorreu também no caso dos irmãos Adão Maria, de 12 anos, e Valentina18, de 6 anos: a tutela de ambos foi entregue no dia seguinte, mediante a ordem do Juiz, ao senhor Antônio Pires Pereira. 17 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara. Tutela. Processo n° 507 de 1904. [manuscrito]. Porto Alegre, 1903. Localização: APERS. 18 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara. Tutela. Processo n° 314 de 1927. [manuscrito]. Porto Alegre, 1927. Localização: APERS. 280 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Para a sociedade, era importante dar um novo lar a uma criança em situação de vulnerabilidade social, submersa no abandono ou na orfandade. E o Juízo de Órfãos atuava rapidamente para amparar o menor que estivesse nessa situação. Contudo, não seria de se estranhar que essa rapidez trouxesse problemas. Na documentação estudada, encontramos o processo de tutela “Ex-offício19” envolvendo a menor Petrolina de Bem20, de idade incerta, que deveria estar entre 10 ou 11 anos. Petrolina era órfã. Sua mãe havia morrido em 1916, em Cachoeira do Sul, e seu pai falecera em agosto de 1918, em situação de extrema pobreza, como foi declarado nos autos. Desde então, a menina permaneceu na casa de sua tia materna Maria Athanazia d’Araújo. Logo após o falecimento do pai da menina, o Juizado de Órfãos deu a tutela dessa criança ao seu tio paterno Albino de Bem, ilustrando, assim, o fato de esse processo já iniciar com a ordem do Juiz. O tio, recebendo a tutela da menor Petrolina, pediu ao Juiz de Órfãos a entrega de Petrolina, que se encontrava na casa da tia materna Maria Athanazia. Porém, passados quatro dias, foi juntado ao processo o pedido de Maria Athanazia d’Araújo para que o Juízo dos Órfãos concedesse a tutela de sua sobrinha ao senhor Pedro Alexandrino de Mattos, homem casado e comerciante de fazendas por atacado. A tia alegava não possuir recursos suficientes nem para o seu sustento e nem para o da menina. Além disso, afirmava que sua profissão exigia que ela passasse o dia longe de casa, impossibilitando-a de instruir e cuidar de sua sobrinha. 19 20 Denominação atribuída aos processos sumários. RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo n° 479 de 1918. [manuscrito]. Porto Alegre, 1918. Localização: APERS. 281 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida Uma semana depois, a tia anexava outro documento ao processo. Maria Athanazia informava ao Juiz que somente “agora” – duas semanas após o início do processo de tutela – é que ela ficara sabendo da ação de Albino de Bem, tentando argumentar com o Juiz que não deveria proceder a entrega da menina a seu tio. Os argumentos de Maria Athanazia sobre o tio eram que, embora ele fosse casado, não residia com sua família, vivendo nessa cidade “ilegitimamente” com uma mulher “desonesta” e que seu interesse pela menina devia-se ao fato de que este pretendia “reduzi-la a uma escravidão disfarçada” na casa de sua “amásia”. Alegava ainda que a menor já estivera em posse desse tio, desejando não voltar mais por estar “receosa de maus-tratos”. A tia “implora21” que o Juiz destitua Albino de Bem da tutoria e reconsidere sua petição, pois o tio não pode dar educação moral nem honesta à menina. O tio que possuía a tutela da menor solicita para o Juiz de Órfãos que seja “dispensado22” do cargo de tutor, pois necessitava ausentar-se da cidade. Passados 5 dias dessa informação, é redigido o Termo de Tutela e Compromisso a Pedro Alexandrino de Mattos, a quem Maria havia indicado inicialmente. Nesse processo, é interessante notar que a documentação anexada pela parte de Maria Athanazia d’Araújo é redigida à máquina, situação não muito comum na grande maioria dos processos, nesse Juízo e nesse período, por ser um serviço de alto custo e ela referir, no processo, não possuir condições para arcar com esses gastos. Curioso também é que em todas as vezes em que fora solicitada sua assinatura, ela fora feita por 21 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo n° 479 de 1918. [manuscrito]. Porto Alegre, 1918. Localização: APERS. f. 8. 22 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo n° 479 de 1918. [manuscrito]. Porto Alegre, 1918. Localização: APERS. f. 10. 282 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas outras pessoas, “a rogo de Maria Athanazia d’Araújo por não saber assinar23". Podemos supor, a partir dessas informações, que Pedro de Mattos, comerciante, estava muito interessado e, acreditamos, participando ativamente na disputa entre os familiares. Podemos perceber também os interesses que rodeiam esse processo: o do tio, que, conforme a tia, vivia uma relação ilícita e possuía intenções de “escravizar” a menor, e o do comerciante, que receberia a tutela da criança e que estava diretamente interessado no pleito, para a provável utilização da menor em serviços de seu comércio. Quanto ao comerciante, apenas podemos realizar suposições quanto a sua atitude e intenções; já quanto ao tio, podemos apurar que as informações a seu respeito têm grande probabilidade de serem reais, pois esse não questiona nem contradiz as afirmações em nenhuma parte do processo, ausentando-se da cidade, logo após a tia ter relatado informações sobre a sua conduta e interesses. Esse processo demonstra que a intenção do Juiz de abreviar a decisão sobre a tutela de uma criança poderia causar grandes problemas para as famílias envolvidas. Em outro processo de tutela, que iniciou na cidade de Rio Grande, mas que teve seu desfecho na cidade de Porto Alegre, Francisco Gonçalves de Castro tutelou os menores Australina, Sylvia, Washington, Newton e Alfredo Ayres de Castro24, este último, com 14 anos, entretanto não desejava continuar com o compromisso de cuidar de Alfredo Castro, por este lhe causar muitos problemas. Residindo em Porto Alegre, Francisco Castro solicita ao Juiz de Órfãos que tome “providências sobre a péssima conduta do 23 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo n° 479 de 1918. [manuscrito]. Porto Alegre, 1918. Localização: APERS. f. 6; 8. 24 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo nº 588 de 1923. [manuscrito]. Porto Alegre, 1923. Localização: APERS. 283 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida último tutelado Alfredo”. O tutor afirma que fazia dois anos que esse menor vivia em sua casa, havendo em “todo esse período frequentes desgostos e atribulações para toda a família25”. Após realizar essas considerações sobre o menor, Francisco refere todos os problemas causados por Alfredo. Em junho de 1922, iludindo a vigilância de um caixeiro de um pequeno armazém, tentou subtrair dinheiro da gaveta, sendo fichado em flagrante. Em julho do mesmo ano, como aprendiz de alfaiate furtou alguns carretéis de linha que vendeu. Em novembro como empregado de um bazar – A Misselania – furtou durante 3 meses miudezas que vendeu, [deixando] um prejuízo de seiscentos e tantos mil réis. Três meses depois empregando-se na Companhia Telephonica Riograndense, desta também foi despedido por ter dado um prejuízo de sessenta e sete mil réis de recibos furtados26. O senhor Francisco Castro, após listar esses fatos, acrescentou que muitos outros haviam sido praticados em Rio Grande, dentre estes, o furto “de uma carteira com quinhentos e tantos mil réis”. Afirma que o menor já possuía passagem pela polícia, que o delegado Dr. Petto Pinheiro havia ordenado que se realizassem exames no menino, e, após a realização desses, o delegado declarou que não se tratava de um “doente”, mas sim de um “viciado”. Francisco Castro afirmava ao Juiz que lhe era “impossível27” continuar como tutor do menor pelos problemas já causados e, por essa razão, ele lhe solicitava providências para “desviar do caminho desonroso e perverso o aludido menor Alfredo Castro”, acrescentando que o menor acha-se “foragido de 25 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo nº 588 de 1923. [manuscrito]. Porto Alegre, 1923. Localização: APERS. f. 2. 26 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo nº 588 de 1923. [manuscrito]. Porto Alegre, 1923. Localização: APERS. f. 2; 2v. 27 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo nº 588 de 1923. [manuscrito]. Porto Alegre, 1923. Localização: APERS. f. 2v. 284 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas casa a um mês tendo, porém, ontem sendo visto na rua por minha esposa28”. Com essas informações, pode-se verificar que o tutor estava descontente com o seu tutelado, pelas dificuldades que este causava em seus empregos. Assim, preferiu abandonar o compromisso com esse menor. Os outros menores, possivelmente, não lhe causavam perturbações, pois não foi realizada nenhuma menção sobre seu comportamento. É significativo que esse menor, com 14 anos (no início do processo), já havia passado, durante o ano anterior, por quatro locais de trabalho, sendo causador de desperdícios e danos morais, conforme afirmava seu tutor, pois acabava envolvido em todos os casos, por ser o representante legal do menor. Cansado disso, Francisco Castro, resolveu pedir a Dispensa de Tutela. Nesse último processo, podemos perceber que Francisco Castro queria obter vantagens com a tutela de um menor, porém, como apresentado nesse caso, o tutelado poderia não exercer plenamente a vontade de seu tutor. Assim, o tutor decidiu pedir a exoneração do cargo, pois seu tutelado não lhe proporcionava nenhuma vantagem, ao contrário, trazia-lhe gastos e danos morais. Contudo, mesmo que o tutor pudesse ganhar vantagens com uma criança, por exemplo, colocando-a em atividades produtivas, ele era responsável legalmente por ela e por suas ações, perante a sociedade e a Justiça. A decisão proferida pelo Juiz era soberana, mesmo que essa viesse a atingir o relacionamento dos menores com seus familiares ou conhecidos. Como já foi visto, em mais da metade dos processos analisados, as crianças não possuíam qualquer relação com seus tutores. Se o tutor se desgostasse do com- 28 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara. Tutela. Processo nº 588 de 1923. [manuscrito]. Porto Alegre, 1923. Localização: APERS. f. 3. 285 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida portamento do menor ou se alegasse outro motivo qualquer, mesmo que isso não fosse declarado nos autos, poderia requerer a exoneração do cargo; assim, o menor, novamente, era levado ao Juizado de Órfãos e entrava em circulação por outro lar. A circulação de crianças não era fato raro no Juizado dos Órfãos de Porto Alegre no período, pois, em mais de 80% dos casos, eles eram resolvidos em até uma semana, ou seja, em até 7 dias, de forma rápida, sem muita investigação, o futuro de um menor era decidido: uma criança, adolescente ou jovem – o “futuro do país”. Esse era o risco que o Juízo dos Órfãos corria frente à escolha, quase que preponderante, pela Tutela Dativa, em que o poder de decisão sobre o futuro responsável pelo menor era absolutamente imprescindível, diferentemente da Tutela Testamentária ou Legítima, em que já havia uma seleção prévia do responsável pela criança. Assim, podemos verificar que a Justiça não estava preocupada com possíveis traumas que o menor pudesse desenvolver ou com os sentimentos de afeto que poderiam ser rompidos numa decisão: apenas, com base em valores sociais, muitas vezes, alguém poderia supor, que “em uma canetada”, acreditavam fazer o “melhor” para a vida de uma criança. Algumas vezes, obtinham “sucesso”, já que o caso não retornava; em outras, nem tanto, pois o processo voltava e, com ele, todas as fragilidades que esse modelo rápido de decisão tinha, devido a não investigação dos fatos alegados para a tutela do menor. Considerações finais Compreendemos que o Juízo dos Órfãos estava preocupado em dar um novo lar para os pequenos membros da sociedade brasileira; sua preocupação era que esses menores não viessem a ser “arruaceiros”, “bandidos”, “viciados”, “vagabundos”, “maus pais de família”, enfim, que não viessem a ser um 286 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas “perigo” para a ordem social ou mesmo que ficassem sem um responsável legal que pudesse cuidar deles. Mas esse zelo para com os menores não atravessava a barreira burocrática da atividade dos juristas, pois o Juizado de Órfãos administrava muitos tipos de ações judiciais; assim sendo, não conseguia dar a devida atenção a um tema tão sério como o da tutela e mesmo que resolvesse promover uma investigação mais detalhada, a legislação o obrigava a atribuir a tutela em até 30 dias, a partir do momento em que o menor ficasse sem responsável, a uma pessoa, de preferência do sexo masculino. O Juizado, como apresentado, não requeria, na maioria das vezes, a devida verificação das afirmações constantes nos autos, colocando em risco os menores que a ele eram apresentados. Além dessa ânsia por organizar a sociedade, seus hábitos e costumes, verificamos que essa sociedade, apesar das dificuldades, preocupava-se com seus pequenos membros, principalmente em não deixá-los sem um responsável, mesmo que de forma informal, já que, em alguns processos, o motivo apresentado para receber a tutela era que o indivíduo já cuidava do menor e, assim, desejava regularizar a guarda. Mas se os adultos estavam interessados no bem-estar dos menores, porque não os adotavam? Os adultos que tutelavam menores optavam pela tutela ao invés da adoção, por conta, talvez, da partilha dos bens, pois esses menores adotados teriam todos os direitos legais de um filho biológico29 (CARDOZO, 2011b). Além disso, acreditamos que, ao escolher a tutela, poderiam ser evitados maiores julgamentos morais e, ao mesmo tempo, seriam concedidos maiores benefícios para os adultos do que, propriamente, para os menores, pois vale recordar que 29 Diferentemente daqueles filhos reconhecidos em testamento, essas crianças adotadas, muito antes da hora da morte de um adulto, se tornavam membros dessa família e assim herdeiros de um nome e de bens. 287 CARDOZO, J. C. da S. • Enredos da vida o tutor poderia “se desfazer” da guarda do menor no momento que achasse mais oportuno e por motivos variados, como ter que se retirar da cidade, ou mesmo, evitar que o patrimônio familiar fosse dilapidado. Referências ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal, recompiladas por mandado do rei D. Philippe I. 14. ed. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Philomathico, 1870. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/ filipinas/>. Acesso em: 22 fev. 2011. 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Observo que, inicialmente, ao ser confrontada com novo tipo de família, a população rio-grandense não considerou a criança imigrante de forma distinta daquela que considerava a criança gaúcha anterior à imigração: ela era “cria”, que tanto poderia dar certo, “vingar”, quanto se perder. Ela participava da sina de migrante que tudo arrisca, sabendo que a aventura pode dar certo ou não. Inicialmente, algumas questões de ordem teórico-metodológica se impõem. Ocupamo-nos de criança enquanto ser histórico no contexto de famílias de imigração. Vamos tentar reconstruir história social da criança, valendo-nos dos pressupostos da História Social e da História das Mentalidades, daí 291 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS que, não raro, vamos incursionar também por áreas que extrapolam as fontes de que dispomos: memórias, material didático, jornais. Enquanto as exposições sobre a História da Imigração têm privilegiado o varão e, mais recentemente, em decorrência da discussão das questões de gênero também a mulher, nosso texto pretende dedicar-se à criança, deixando de considerá-la como mera fase de transição ou de aprendizado e vendo nela sujeito histórico, inserido em família, na qual convivem pais, irmãos, avós, tios. Na historiografia sobre a imigração na América Latina tem sido privilegiada, desde sempre, a figura do varão imigrante. Basta lembrar aqui os estudos clássicos de A. Porto até Jean Roche. Mais recentemente começaram a surgir, motivados pela discussão feminista, estudos centrados na figura feminina. Mencione-se, no caso brasileiro, os estudos de Maria Luiza Renaux, de Cleia Schiavo Weyrauch e de Loraine Slomp Giron. No tocante à criança e seu mundo, porém, o silêncio é quase que absoluto. Mesmo o longo capítulo de Luiz Felipe de Alencastro e de Maria Luiza Renaux, Caras e modos dos migrantes e imigrantes, na História da Vida Privada no Brasil. Vol II, praticamente silencia sobre a questão. No entanto, o mais tardar desde a publicação da obra de Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família, cuja primeira edição francesa data de 1960 (a primeira edição brasileira, baseada na edição francesa reduzida de 1973, é de 1978), e da publicação de Natalie Zemon Davis, The Reasons of Misrule: Youth Groups and Charivaris on Sixteenth Century France, a criança deveria ter merecido a atenção dos pesquisadores da história da imigração e da colonização, ainda mais que contamos com o excelente livro de Maria Luíza Marcílio. História Social da Criança Abandonada, na qual autores nacionais poder-se-iam mirar em suas pesquisas. Excelente é a publicação organizada por Mary Del Priore, História das Crianças no Brasil, em 2004. Verdade é que Emílio 292 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas WILLEMS, A aculturação dos alemães no Brasil, fez algumas considerações sobre a família do imigrante alemão, mas no todo o tema da criança não foi trabalhado. Na política portuguesa em relação ao Brasil, a questão da família e, mais especialmente da criança, desconsiderandose os esforços iniciais de Nóbrega e dos jesuítas, só vai aparecer quando o horizonte se transferir da exploração econômica na lavoura movida pelo braço escravo para a questão do “povoamento”, na maioria das vezes motivada por razões de ordem militar. A constante instabilidade político-militar do Rio da Prata, com as linhas de socorro e abastecimento situadas em Laguna/SC (1.500 quilômetros de distância) ou em São Paulo (2.500 quilômetros de distância) motivou o povoamento do espaço intermediário. Aqui a mera concessão de sesmarias, que propiciavam o surgimento de latifúndios, pouco povoados e fracamente explorados, tampouco a introdução de escravos solucionavam o problema. Fazia-se necessária a introdução de pessoas que, enraizadas na terra, estivessem dispostas a defendê-las frente aos “castelhanos”. Fazia-se necessária a introdução de casais que se multiplicassem em filhos, dentre os quais seriam recrutadas as tropas das linhas de defesa da fronteira sul e de onde saíssem lavradores, capazes de produzir, sobretudo, para o mercado interno, prioritariamente, porém, para o abastecimento das tropas. Esta a razão das provisões régias de D. João V para levar “casais” das Ilhas para a fronteira sul. Os candidatos à imigração deveriam ser católicos, não poderiam emigrar individualmente, mas como “famílias”. Além disso, inverteu-se a tradição do Brasil colonial: os que viessem a possuir terras trabalhá-las-iam com as próprias mãos, em pequenas propriedades de 1/4 de légua em quadro (262,25 ha). Não cabe aqui descrever a desastrosa transferência dos Açores para Santa Catarina, com mulheres e crianças praticamente enjauladas, para mantê-las a salvo da marujada. Esse primeiro pro- 293 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS jeto imigratório com famílias, que foram assentadas em grupos de 60 em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul para formar novas freguesias, não deu os resultados esperados, principalmente em decorrência da lógica escravista, que abafava os espaços alternativos do trabalho “livre”. A proposta de colonização com pequenos proprietários ressurgiu, porém, nas primeiras décadas do século XIX. Buscou-se criar ampla classe de cidadãos livres, baseada na pequena propriedade da terra, no regime do trabalho familiar e na policultura, privilegiando o mercado interno. O projeto era também racista, pois descartava o trabalhador livre negro para criar um país branco, contra o indígena, o negro e o mestiço. O projeto só avançou penosamente, introduzindo entre 1819 e 1850 (fim do tráfico) 18.760 pessoas. No mesmo tempo, 800.000 escravos entraram no país. O impulso para a imigração só viria, quando o braço escravo teve que ser substituído pelo braço imigrante para manter a grande propriedade como lavoura de exportação. Tanto o novo país dos pequenos proprietários quanto o velho país que trabalharia com braços livres “parceiros” necessitou da família do imigrante europeu. A preferência por “famílias” é evidente no caso da pequena propriedade, inserida em áreas, nas quais se estava preocupado com o “povoamento”. Menos evidente é a preferência por famílias nas áreas de grandes propriedades que buscavam “braços” para o trabalho agrícola. Ela, no entanto, é perfeitamente explicável: a família impedia a constante troca de fazenda ou a fuga da mesma para escapar às impressionantes dívidas contraídas com o fazendeiro. A criança pequena impedirá a fuga dos pais e auxiliará na fixação da mão-de-obra para a fazenda de café. Chegada ao Brasil, a dinâmica do sistema familiar vai ser combinação da tradição anterior com as novas tradições encontradas no Brasil. Três situações parecem marcar o siste- 294 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ma familiar dos imigrantes do século XIX no Brasil: a) a instalação no campo b) a instalação na cidade c) quando instalados no campo há que se distinguir entre colônias de pequenos proprietários e os trabalhadores sem terra que atuavam como “parceiros” nas fazendas de café, mas aqui já teríamos que apresentar estudo sobre a realidade de São Paulo. Luís A. De BONI e Rovílio COSTA em textos próprios e na edição de textos resultantes de encontros de estudos sobre a imigração italiana já apresentaram estudos sobre a família dos imigrantes italianos. Emílio WILLEMS fez na década de 1940 uma caracterização das famílias de imigrantes alemães, dedicando-se, contudo, exclusivamente às áreas rurais. Poucas são, porém, as referências à criança. Mesmo que a imigração alemã no Rio Grande do Sul tenha iniciado em 1824 (a italiana e polonesa se intensificam a partir de 1875), as informações sobre crianças e jovens só começam a se avolumar a partir da década de 1860, quando sacerdotes jesuítas, pastores luteranos, professores saídos das fileiras dos legionários de 1851, os Brummer, e viajantes como Avé Lallement e von Tschudi começam a elaborar relatórios, nos quais vão descrever as crianças em relação às quais pretendem dar o melhor de si para inverter a situação, segundo eles “assustadora” com a qual se viram confrontados. Mesmo que seus “sustos” pudessem ser utilizados para descrever a situação pregressa, ela ficaria por demais fragmentária. Mais ricas e abundantes se tornam as fontes a partir dos relatórios e das fontes impressas produzidas pelos autores acima mencionados. A validade e a relevância social do estudo da família imigrante, observada a partir da criança, está dada pela área em que foram instalados imigrantes alemães a partir de 1824, dos quais se originou considerável população, cujos descendentes se espalharam pelo Brasil Meridional, e na qual se ensaiou com grande sucesso o modelo da pequena propriedade rural nas 295 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS picadas, das quais se originaram, majoritariamente, os municípios da metade Norte do Rio Grande do Sul. Nessa área, o trabalho infantil sempre esteve presente, sendo ele provavelmente a causa do provérbio difundido de que ‘o filho é o escravo do imigrante’. Desde a mais tenra idade, a criança foi inserida nas atividades da casa e da pequena propriedade. As cartilhas elaboradas por professores das escolas dos imigrantes mostram, em sua iconografia, a menina recolhendo ovos no galinheiro, o menino participando da lida agrícola. Cabe perguntar, se tal envolvimento da criança com o trabalho já desde a mais tenra idade é herança trazida da Europa, devendo ser colocada na tradição do aprendizado do ofício ou se faz parte de nova ética do trabalho que não pode ser explicada a partir de Max Weber, mas de Abdelmelek Sayad, para quem a única razão de ser do imigrante é o trabalho. O fato de a escola ser possível veiculadora de ideologia de trabalho para a criança, filha de imigrante, nos leva a sugerir esse aspecto em particular. Por outro lado, o mesmo material didático é fonte para se verificar o corretivo que os idealizadores deste mesmo material didático procuraram oferecer ao trabalho infantil, perguntado pelas sugestões de lazer e folguedos apresentadas à criança. Como o período de abrangência das fontes é época em que o Idealismo e o Nacionalismo Alemão estão presentes nas áreas de imigração, necessário se faz perguntar pelas tentativas de ideologização da criança. – De forma mais explícita que o material didático, o jornal Deutsche Post, publicado por Wilhelm Rotermund e sucessores, aqui considerado pars pro totum, nos permite perguntar pelos conceitos emitidos e privilegiados em relação à criança como um todo. O jornal tinha um suplemento intitulado Für Herz und Haus (Para o coração e o lar), no qual há uma Der Kinder Leseecke (Cantinho de leitura das crianças), especialmente destinado à criança. A riqueza das fontes permite-nos apontar para outros possíveis aspectos que estão à espera de 296 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas estudos monográficos: Puericultura e eugenia; trabalho infantil; ócio e lazer; escola; criança e cidadania; a literatura infantil; a criança e a ideologia da germanidade, etc. Assim, o que fazemos aqui é uma primeira leitura histórica da infância nas áreas de colonização e imigração alemãs, um mundo marcado pelo trabalho, no qual há pouco espaço para o lazer, mas muita busca por cidadania, discussões religiosas e ideológicas e construção de novo mundo. Mesmo sabendo que há grandes discussões no tocante ao que seja História Social ou o que seja História das Mentalidades, é necessário que o pesquisador se valha das mesmas como enfoque metodológico, sabendo que podem ser destacados diversos significados básicos. Em primeiro lugar, a História Social e a História das Mentalidades são entendidas como subdisciplinas da Ciência Histórica, dedicando-se, muitas vezes em associação com a História Econômica, ao estudo das estruturas, processos e ações econômicas e sociais em sua relação de época e verificando as influências de outros setores, tais como práticas sociais, disposições afetivas, tensões e rupturas, situações específicas em grupos sociais, religiosos, étnicos ou de gênero. Por outro lado, História Social e História das Mentalidades podem ser entendidas como leituras particulares da História Geral, na qual todos os âmbitos da realidade podem ser abordados a partir da “sociedade”. Nesse sentido, a História Social e a História das Mentalidades também estudam movimentos religiosos ou processos políticos sob uma perspectiva sócio-econômica ou estrutural. É nesse sentido que John Breuilly vai dizer que “História Social não é um tipo especial de História, mas é uma dimensão que deveria estar presente em todo o tipo de História” (Evans, 1998, p. 166-167). Lucien Febvre (1990, p. 13) já dizia em sua aula inaugural de 1933, no Collège de France, a respeito do complicado alvo da História das Mentalidades: “... descrever o que se vê, ainda vai; ver o que se deve 297 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS descrever, aí reside o problema”. Estamos perguntando pelo significado social de uma fase da vida humana: a infância e sua família, da qual também fazem parte aspectos sociais importantes como a doença, a morte, a religião, o lazer, o trabalho, a escola, as relações afetivas; mas, também, perguntamos pelas mentalidades que nos descreveram e que nos deixaram impressões sobre a criança e sua família em determinada época. Por outro lado, vamos ter que ter o cuidado de fugir às macro-teorias estrutural-funcionalistas que fazem dos atores históricos meros marionetes de estruturas e perguntar se, apesar de todas as macro-estruturas, não há espaços em que se pode fugir a elas, vivenciando realidades distintas. Aqui as teorias de Anthony Giddens e o conceito do “habitus” de Pierre Bourdieu nos podem auxiliar. Sempre é bom lembrar o dito por Philippe Ariès na segunda edição de seu clássico História Social da Criança e da Família: “Costuma-se dizer que a árvore impede a visão da floresta, mas o tempo maravilhoso da pesquisa é sempre aquele em que o historiador mal começa a imaginar a visão de conjunto, enquanto a bruma que encobre os horizontes longínquos ainda não se dissipou totalmente, enquanto ele ainda não tomou muita distância do detalhe dos documentos brutos, e estes ainda conservam todo o seu frescor. Seu maior mérito talvez seja menos defender uma tese do que comunicar aos leitores a alegria de sua descoberta, torná-los sensíveis – como ele próprio o foi – às cores e aos odores das coisas desconhecidas.” (p. IX). O até aqui observado nos evidencia a riqueza e as possibilidades do estudo da temática da família imigrante vista a partir da criança. É óbvio que no espaço possível para o presente texto não podemos explorar o todo das possibilidades que nos estão dadas. Contentamo-nos com dois exemplos. No primeiro deles, exploramos os contos dos irmãos Grimm para verificar a situação da família emigrante, aquela que vai se diri- 298 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas gir ao Brasil Meridional: as famílias e suas crianças que estão chegando ao Rio Grande do Sul a partir de 1824 não vão se constituir apenas aqui; trazem heranças e tradições que são parte integrante de sua condição social na Europa. No segundo exemplo, inserimos as famílias e suas crianças na sociedade que construirão no mundo rural do Rio Grande do Sul, o mundo das picadas. Qual era a situação da família e de suas crianças às vésperas da emigração ao Brasil? O que sentiam essas populações? É possível recuperar sua memória? Poderíamos pensar que não. Elas não faziam parte das populações de ilustrados; eram gente comum. Robert Darnton ensinou-nos, porém, que há importante fonte, através da qual os miseráveis dos séculos XVIII e XIX que vieram ao Brasil expressaram seus sentimentos. Essa fonte sempre de novo foi repetida nos núcleos de imigrantes alemães no Brasil e eu próprio a ouvi a cada noite, antes de dormir, da boca de minha mãe ou de meu pai. Minhas avós as haviam transmitido aos meus pais e os irmãos Grimm as haviam colecionado. Estou falando dos contos narrados ao redor do fogão, nas cabanas camponesas, nas casas de miseráveis. Num dos prefácios a uma coletânea de contos alemães (BORCHERS, 1979: 1), deparei com o seguinte conto introdutório: No período do inverno, quando certa vez houve neve profunda, um pobre garoto teve que sair e buscar lenha sobre um trenó. Quando a havia juntado e carregado, não quis seguir logo para casa, pois estava congelado, e pretendeu fazer fogo para se aquecer um pouco. Aí afastou a neve e enquanto limpava a terra, encontrou pequena chave dourada. Pensou que onde estava a chave também deveria estar a fechadura correspondente e cavou a terra e encontrou caixinha de ferro. “Tomara que a chave sirva!” pensou, “certamente há coisas preciosas na caixinha.”. Procurou, mas não havia buraco para a chave; finalmente encontrou um, mas tão pequeno, que mal o podia ver. Experimentou, e a chave serviu perfeitamente. Deu uma volta, e agora temos que aguardar, até que ele tenha 299 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS terminado e aberto a tampa: aí experimentaremos que coisas maravilhosas se encontravam na caixinha. As palavras introdutórias dos irmãos Grimm, com as quais apontam para os inúmeros recursos e informações contidos nos contos populares, dizem-nos da possibilidade do uso de tais contos como fonte não só para a mentalidade camponesa alemã, mas também para a situação de miserabilidade em que se encontrava a população autora dos contos. Há a pobreza do garoto, a necessidade da lenha e do fogo, o menino congelado. Essa população também sonha, com chaves douradas, com saídas que podem ser encontradas com seu auxílio. Foram sonhos que ofereciam saída da situação de miserabilidade que impulsionaram miseráveis para o Brasil. Durante muito tempo, os contos ficaram relegados às crianças e aos psicanalistas, como Bruno Bettelheim e Erich Fromm. Eles, porém, não viram neles qualquer dimensão histórica. Esses contos não foram relatados no divã do psicanalista. Foram contados para divertir adultos ou para assustar crianças. Para os adultos tinham versões mais picantes. Para as crianças havia versões domesticadas. Ouvimos de guerras, epidemias, fome, de camponeses relativamente livres, em vias de se tornarem trabalhadores sem terra, servos. Na terra, o agricultor trabalhava da manhã à noite a terra com arados primitivos. Pequenas foices eram utilizadas para realizar a colheita. O casamento era bastante postergado. Muitas mulheres só casavam aos vinte e cinco ou vinte e sete anos de idade. Com isso teriam cinco filhos, dos quais sobreviveriam três. Mesmo assim, era muito filho para pouco rendimento, resultando daí fome, quase que crônica. Papas e batatas, algumas verduras cultivadas em volta da casa, repolho salgado para que houvesse verdura no inverno, pão escasso era o que perfazia a alimentação. Carne só havia em dia de festa ou quando era indispensável matar gado, pois não havia silagem 300 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas para o inverno. Esse é também o pano de fundo para se entender as sugestões e os planos de Malthus. No mundo rural praticamente não havia condições de sair desta situação. Sem terra, não se podia ter animais, sem os animais não havia adubo, sem adubo não havia produção. O que sobrava era o galinheiro e os ovos das galinhas. Não deve, pois, causar espécie que no início da primavera a única coisa que ainda se tinha para comer e para pagar impostos eram ovos de galinha. Tingidos e escondidos na relva, quando os coelhos saíam de suas tocas após a hibernação, seriam a eles associados pelas crianças. No ninho da páscoa esconde-se todo o clamor da miséria da população da Modernidade alemã. Do esterco das galinhas saía o adubo para a horta, da qual provinha a salvação alimentar da família, pois a colheita do campo era em boa medida utilizada para pagar impostos e dívidas. Tais dívidas não faziam da vida na aldeia uma comunidade. A aldeia podia ser, antes, centro no qual se acumulavam iras e ressentimentos, âmbito de luta por sobrevivência ou, quando muito, espaço no qual se buscava não ser parte dos indigentes. Quando se chegava à indigência, para muitos começava a errância, o vagar pelas estradas, tornar-se assaltante, prostituta. Quando muito, havia a oportunidade de ser trabalhador sazonal. Não bastassem todas essas misérias, a morte rondava a todos. Estima-se que 45% dos nascidos morressem antes de atingir dez anos. Poucos eram aqueles que ao se tornarem adultos ainda tinham ambos os pais. Muitos eram os que morriam antes do final de sua vida fértil. Madrastas e padrastos fazem parte do cotidiano. Não que os pais se divorciassem. A morte não permitia que casamentos durassem mais do que quinze anos. Daí é fácil compreender que muitos filhos postiços não tenham tido vida fácil e que a convivência com os filhos do padrasto ou da madrasta não tenha sido fácil. 301 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS Como controlar a natalidade era algo difícil, impunha-se a necessidade do casamento tardio, com período de fertilidade limitado. A morte era, não raro, o limitador da natalidade. Não raro, também, podia acontecer que pais e ou irmãos sufocassem bebês ou irmãos na cama, pois o pequeno espaço no qual viviam forçava a que leito único fosse compartilhado por pai, mãe e filhos, tornado as crianças participantes das relações sexuais dos pais. Não há criança inocente, nem criança dispensada do trabalho infantil. Desde cedo ela participava da lavoura ou era criada ou criado ou, ainda, aprendiz de artesão. O menino pobre que sai à procura de lenha em seu trenó, que congela e sonha encontrar a chave dourada não é lenda, mas realidade na história. De realidade histórica em situação de miserabilidade nos fala outro dos contos de Grimm, Hänsel und Gretel, traduzido para o português com os títulos de Hansel e Gretel ou Joãozinho e Mariazinha. “Frente a grande floresta morava um pobre lenhador com sua mulher e suas duas crianças. O menino chamava-se Hänsel e a menina Gretel. A família tinha pouco o que roer e morder, e quando certa vez sobreveio grande carestia no país, o pai não deu mais conta do pão de cada dia”. À noite na cama, o pai lamenta-se com a madrasta das crianças, dizendo não saber o que fazer. Ela sugere: “Amanhã, bem cedo, levaremos as crianças para a floresta, onde é mais densa. Ali faremos um fogo e daremos ainda a cada uma um pedacinho de pão; depois iremos trabalhar, deixando-as sós. Não encontrarão o caminho de volta para casa e aí nos livramos delas”. O pai recusa-se a aceitar tal possibilidade: animais ferozes matariam as crianças. A madrasta reage: “Tolo, então morreremos todos os quatro de fome e podes começar a aplainar as tábuas para os caixões”. A madrasta não dá descanso ao pai até que concorde. O tom quase casual da fala da mulher sugere ser comum a morte de crianças no período do surgimento do conto. 302 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Em todos os tempos e com todas as idades se expôs crianças. Os pais de Hänsel e Gretel expõem seus filhos em época de desastre econômico e social. Relatos do final do século XVIII e do início do século XIX nos dão conta dessa situação econômico social. Outros pais optaram por outras formas de infanticídio ou de maus tratos a crianças. Não raro, pais lançaram filhos na estrada para que fossem mendigar ou praticar furtos. Outros optaram por deixar eles próprios a casa, abandonando os filhos. O relato para nós nada ilustrado de que ao nascer nova criança o pai a vende para o diabo em troca de alimentos nos diz da brutal realidade da fome que só é aumentada com o nascimento de nova criança. Comer ou não comer equivale ao “ser ou não ser” de Shakespeare. Na sequência do conto, ficamos sabendo que as crianças, que “não conseguem dormir por causa da fome”, ouvem tudo. Levadas à floresta, e abandonadas conseguem retornar, pois Hänsel vai colocando no caminho seixos que sinalizam o caminho da volta. A madrasta, contudo, insiste, e as crianças são novamente levadas à floresta. Desta vez, porém, não encontram o caminho de volta. Ao invés de seixos, Hänsel sinalizara o caminho da volta com farelos de pão que foram comidos pelos pássaros. Errantes, chegam à casa “construída com pão e coberta com bolo” e são acolhidos por “steinalte Frau”, mulher muito velha, da idade da pedra, apoiada em muleta, que os introduz na casa, lhes dá de comer à vontade e, finalmente, lhes prepara duas caminhas. Elas “pensam estar no céu”. De fato, a mulher velha era uma bruxa que atraía crianças para matá-las e devorá-las. Hänsel é preso em chiqueiro para a engorda, enquanto Gretel passa a ser explorada como doméstica. Hänsel recebe comida abundante, Gretel só poucos bocados. O imaginário camponês está cheio de bruxas que devoram crianças ou que buscam matá-las, de florestas, nas quais habitam duendes, bons e maus, a exemplo do que também acontece no 303 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS conto de Schneewittchen, a Branca de Neve. Quando a bruxa resolve assar Hänsel, Gretel consegue empurrá-la para o interior do forno. A bruxa morre, as crianças descobrem pérolas e pedras preciosas no interior de sua casa. Conseguem voltar para casa. A madrasta entrementes também morrera. Com sua morte, mais as pérolas e pedras preciosas “todas as preocupações chegaram ao fim e, desde então, viveram na mais pura alegria”. O conto surgido e relatado em situação de miséria vai ser recontado para que se possa continuar a sonhar, mesmo que justifique assassinato e apropriação indébita de bem de outrem e contenha visão nada romântica em relação ao idoso. Para muitos o rumo do sonho foi o Brasil. Na Colônia Alemã de São Leopoldo, iniciada a 25 de julho de 1824, ensaiou-se modelo econômico que seria, posteriormente, reproduzido em boa porção do território norte do Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Paraná e no Espírito Santo. Este modelo encontra correspondentes na Argentina, no Uruguai e Paraguai e, parcialmente, no Chile. Quanto ao território do Rio Grande do Sul, é interessante seu mapa físico atual. Se compararmos a parte norte com a parte sul do estado, verificaremos que ao norte correspondem municípios com pequena área territorial. Eles são originários da região da pequena propriedade rural, hoje com grande densidade populacional. Ao sul correspondem municípios com grande extensão territorial, originários da região do latifúndio. Os pequenos municípios do Rio Grande do Sul, e dos demais estados mencionados, têm sua origem numa forma de organização social denominada de Picada. A designação também pode ser substituída, regionalmente, por Linha, Lajeado, Travessa ou Travessão. Na literatura podemos encontrar, ainda, a designação alemã Schneise ou a forma alemanizada Pikade. A Picada é forma básica de penetração na floresta subtropical, na qual se busca abrir com os instrumentos disponíveis vias, ao 304 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas longo das quais vão sendo instalados imigrantes, em lotes que lhes são designados. A demarcação dos lotes, obedece critérios de natureza topográfica. Numa das extremidades, o rio ou seu afluente servia de limite. O lote estendia-se enconsta acima até encontrar-se com outro que subia de outro vale. Nos topes dos morros ficava localizada a linha, picada ou travessa. A geografia determinava, assim, o tamanho de cada uma das comunidades humanas que se estabeleciam. Nos lotes assim demarcados, ao longo das trilhas abertas, os proprietários abriam sozinhos ou em mutirão, uma clareira, na qual era instalada a moradia e uma série de instalações complementares à sobrevivência do agricultor e de sua família: estrebaria, pocilga, paiol. A picada que, inicialmente, nada mais era que trilha de acesso a uma propriedade, passou a ser, em pouco tempo, orientadora e organizadora de vida comunal, geograficamente identificável. Era unidade humana, na qual se encontrava templo (católico ou luterano, as confissões religiosas às quais pertenciam imigrantes alemães), a escola (tradição trazida pelos imigrantes e que teria importância fundamental para o desenvolvimento do Brasil meridional), o cemitério (espaço de reverência a mortos e de preservação de memória comunal), a residência do professor ou do padre/pastor, o salão de festas comunitárias (também designado de sociedade ou clube). Cada picada abrigava uma casa comercial, entreposto para o qual eram vendidos os excedentes de produção e através do qual se adquiriam bens não produzidos na comunidade. A casa comercial, muitas vezes conhecida por “venda”, era a porta de comunicação da picada com o mundo exterior. Este o esquema geral da picada. Sua estrutura institucional, seguindo a forma de sua instalação, buscou autonomia, auto-suficiência, auto-administração e auto-gerenciamento, pois o quotidiano girava em torno de quatro eixos fundamentais: 305 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS religião, escola, agricultura, arte e diversões. a) Em todas as picadas foram reservadas áreas de terra para a construção de capela, de cemitério, moradia de pastor ou vigário. Cada capela tinha sua diretoria, que envolvia todos os moradores em torno da capela. Construção e manutenção das mesmas era atribuição das diretorias que envolviam os moradores da picada. Não se contratavam serviços externos. b) Fato semelhante aconteceu com a escola, que também tinha sua área de terras e sua diretoria escolar, a quem competia contratar professor, acompanhar seus trabalhos, garantir sua remuneração. Assim como a igreja, a escola fazia parte da atividade comunal. c) Característica particular da picada é a atividade econômica de produção e de consumo. Toda família era proprietária de uma “colônia”, na qual se ensaiava autossuficiência. A propriedade era policultora; nela eram produzidos milho, feijão, batata, arroz, mandioca e aipim, frutas e hortaliças. Entre os animais encontramos gado vacum, porcos, galinhas, ovelhas, gansos. A produção permitia a mesa farta para a família e gerava excedentes, encaminhados à venda. Na propriedade rural era produzido o açúcar, graças ao cultivo da cana; era produzido o amido tirado da mandioca, feita farinha. Ao lado da residência havia, invariavelmente, a horta, na qual se cultivavam as hortaliças e verduras necessárias para a mesa da família, e o jardim. Os animais produziam o leite, o queijo, a manteiga. Da suinocultura era tirada a carne para o consumo diário e a banha, usada na cozinha e na conservação de carnes e embutidos. Das galinhas provinham os ovos, usados na alimentação da família; o excedente era encaminhado à venda em troca de gêneros necessários à cozinha. Também o excedente da produção de suínos era encaminhado à venda. Os gansos forneciam as penas para os cobertores; as ovelhas a lã, que depois de fiada era tricotada. Para o bom funcionamento da picada fizeram-se necessários serviços complementares à atividade rural. 306 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas a) Muitas vezes apresentada como centro de exploração do pequeno produtor, a casa comercial, “venda”, era de importância fundamental para seu desenvolvimento. Dependendo de seu tamanho, cada picada podia abrigar mais de uma dessas vendas. Nelas eram adquiridos os excedentes da produção: feijão, batata, milho, ovos, galinhas, banha, couros, queijos, manteiga. Era na venda que o agricultor adquiria os bens não produzidos na picada: sal, temperos, louças, chapéus, utensílios para a cozinha. As casas comerciais polarizavam na prática toda a vida e toda a atividade econômico-financeira das comunidades rurais. Elas se encarregavam de levar os produtos coloniais, colocálos nos centros maiores e fornecer os manufaturados e utilidades diversas, pondo-as à disposição dos clientes do interior. Os colonos, portanto, não tinham necessidade de se ausentarem de suas “picadas” ou de suas “linhas” para adquirirem os bens destinados ao atendimento das necessidades quotidianas. (RAMBO, 1988: 21) b) A produção agrícola exigiu o surgimento da ferraria. Nela eram produzidos os implementos agrícolas necessários para as lides diárias: facões, facas, foices, machados, enxadas, pás. A picada praticamente não adquiria implementos agrícolas de fora de sua área de instalação. Era o ferreiro quem os produzia. Nas ferrarias também eram ferrados os cavalos e as mulas. c) Em razão da prática alimentar que exigia a presença de farinhas, surgiram os moinhos para os quais era levado o milho a ser moído, o arroz a ser descascado, o amendoim a ser prensado para produzir o azeite e, eventualmente, o trigo e a cevada a serem moídos. d) Nas matas, nas quais foram instaladas as picadas, havia madeiras em quantidade suficiente para propiciar a instalação de serrarias. De sua produção eram tomadas as tábuas para a construção de casas, mas também das estrebarias e dos galpões. 307 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS Complementarmente às serrarias puderam surgir, depois, as marcenarias e as carpintarias, onde eram produzidos os móveis. e) O transporte de pessoas e de produtos, feito com o concurso de cavalos e de mulas, requereu a produção de selas e de arreios, donde surgiriam as selarias. Elas já estão a indicar todo um ramo de atividade ligado ao couro, que é a produção de calçados: botas, chinelas, tamancos, sapatos. Principalmente este tipo de produção teve incremento considerável em razão das guerras na região do prata: nas picadas seriam produzidos os calçados para os soldados. As sapatarias não surgiram do acaso. O transporte também propiciou o surgimento de profissões específicas: marinheiro e carroceiro. f) Era nas funilarias das picadas que eram produzidos os utensílios necessários à casa e à atividade do agricultor, latas para o leite, para conservas, canecas, baldes, bacias, formas para o pão, as calhas e dutos para coletar a água da cisterna. g) Cada picada tinha seu alambique, destilaria, na qual era produzida a aguardente. Diversos agricultores tinham sua própria produção de vinho e de cerveja h) Na medida em que a população foi crescendo, desenvolveu-se produção de vestuário. Esta produção também pôde orientar-se, em breve, na cidade de Porto Alegre, cidade para a qual, não raro, profissionais alfaiates foram se transferindo. É evidente que em razão da atividade desses profissionais surgisse também incremento para a atividade de tecelões. A produção dos alfaiates, por vezes, permitiu também integração de regiões. O alfaiate Friedrich Schreiner vendia o vestuário, produzido no vale do Sinos, no Uruguai Nas lides agrícolas e na produção complementar a elas, a família era a célula básica da produção. O bem estar da picada dependia do bem estar das famílias. Por isso, desenvolveuse nela o sistema da vizinhança, unidade formada por grupo de moradores da picada que se auxiliavam mutuamente na colhei- 308 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ta, nas festividades e no luto, mas também em época de doença, quando era assumido inclusive o plantio da terra do vizinho doente. A partir desta organização é possível entender o restante da organização da picada: ela é comunitária, cooperativa. A sociedade criada no Rio Grande do Sul com a Picada, cujos primórdios se encontram na Colônia Alemã de São Leopoldo, não ficou restrita à área de colonização alemã. Ela serviria de referência para as áreas em que seriam instalados, desde 1875, italianos, poloneses e as demais etnias que compuseram o contingente de imigrantes. É dentro desta situação geral da picada que devemos colocar a criança imigrante e sua família no Rio Grande do Sul. Ela vai acompanhando o desenvolvimento da vida social e cultural nas picadas. Aqui é importante não se assumir postura romântica e idealista. Muitas vezes se louvou nos imigrantes sua persistência, sua dedicação ao trabalho, a transformação realizada nas áreas antes cobertas por matas. Com seu esforço surgiram áreas cultivadas, indústria, estradas, movimentação em vias fluviais e terrestres. Do artesanato, aliado ao capital acumulado na venda, surgiram indústria e comércio. Foi nestas picadas que se organizou vida familiar. A cada 300 metros foi edificada casa de família, na qual conviviam, não raro, três gerações. Assim que as condições o permitissem era edificada moradia que substituía as primeiras residências precárias: ramadas e construções de pau a pique. A moradia definitiva era edificada na forma do enxaimel ou com tijolos e cimento. Era simples. O ambiente era dividido por paredes em duas metades quase idênticas. Destas, a maior servia de sala de estar; a menor, novamente dividida, fornecia quartos de dormir. O mobiliário era parco. Na sala, cadeiras de madeira, mesa de refeições com dois bancos, mesa menor junto à parede, um relógio de parede, fotografias e cama de casal forrada com co- 309 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS berta feita de sobras de tecido, destinada a eventuais visitantes. A cozinha estava instalada em prédio próprio, separado da casa. Como, inicialmente se valessem de trempe e depois do fogão de chapa havia o perigo de a cozinha ser consumida pelo fogo. Caso isso acontecesse, a residência não seria destruída. Nos quartos, camas serviam de local de repouso. Nas paredes, pregos faziam as vezes de roupeiro. Poucas eram as casas que possuíam tal móvel. No quarto dos pais havia ainda um berço. Caso a família fosse numerosa, o que não era raro, os meninos passavam a dormir no sótão. A construção de fogões por metalúrgicas, como a Wallig transformou a estrutura da casa, passando a cozinha a ser incorporada à mesma. A cozinha era o local mais utilizado pela família. A formação de um casal era propiciada por diversas possibilidades de sociabilidade. Ela podia ter início na escola, em geral frequentada até os treze ou quatorze anos de idade, ser continuada no período do ensino confirmatório, no caso dos luteranos, e ser aprofundada nos bailes. O baile foi a prática de sociabilidade mais difundida entre os imigrantes e seus descendentes. Podia ocorrer tanto em clubes sociais, como em vendas e casas de família. Era possibilidade de encontros e de reencontroa e de compromissos que podiam resultar em casamento. Na copa, junto ao salão, consumindo cerveja, vinho, limonada ou gasosa havia a possibilidade de namoro, não muito distante dos olhares da mãe ou da avó que também zelavam quanto à confissão religiosa. Em caso de culto dispare, a dança terminava após a primeira marca. Além dos bailes havia possibilidade de encontro nos cultos e missas dominicais e nas festas do calendário religioso, nas quais se destacavam Natal, Páscoa e Pentecostes. Significativas eram as festividades em torno da sagração do templo ou do padroeiro, designadas de Kerb. Aí havia a possibilidade do encontro com visitantes provenientes de outras localidades, dos quais podiam resultar matrimônios, 310 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas evitando-se a endogamia. É óbvio que havia as visitas aos vizinhos, em geral nos finais de semana, o que proporcionava encontros entre jovens. O controle ao namoro dos jovens variava de acordo com a cultura regional de origem dos jovens. A colônia italiana e polonesa relatam experiências de maior controle; entre os alemães havia maior aposta na responsabilidade dos namorados e noivos. Em casos extremos poderia acontecer, após determinado tempo de namoro, a prática da “fenestração” (Fenstern), a relação sexual entre os futuros esposos. Os pais faziam “vistas grossas”, pois o êxito de uma família dependia da fertilidade. Casais sem filhos teriam vida muito penosa na lavoura que dependia dos braços familiares. Em caso de gravidez, o matrimônio logo era realizado. O ser criança da criança terminava bastante cedo nas áreas de imigração, aos treze ou catorze anos. Não raro, a menina era então considerada apta para o casamento. Lembro que na Europa, o matrimônio era postergado muitas vezes até os 26 ou 27 anos. O matrimônio precoce também fez aumentar a mortalidade materna. Os meninos passavam a ser trabalhadores rurais. No mundo urbano, os meninos passavam a aprender ofício com “mestre”; as meninas preparavam-se para ser “do lar”. Na realidade, a iniciação ao mundo do trabalho começava bastante cedo. Cada criança teve sua caixinha, também designada de “chiqueirinho”. Ficava na caixinha quando estava na cozinha. Na caixinha acompanhava os pais na lavoura ou na oficina. No caso das meninas, o mundo imigrante destoou do mundo rural de tradição lusitana. Nele, a mulher era fundamentalmente do lar, de prendas domésticas. No mundo imigrante, a mulher jamais ficou presa ao lar. Lidou com animais, manejou arado, participou da capinha. Sempre teve tripla jornada. A ela cabia arrumar a casa e fazer as camas, vestir as crianças, encaminhá-las para a escola, preparar café da manhã e merendas, encaminhar o almoço, lavar roupa, participar das 311 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS atividades na lavoura. Terminada a atividade matinal na lavoura, cabia-lhe terminar o almoço e limpar a cozinha finda a refeição. Concluída mais essa tarefa voltava a acompanhar o marido na lavoura. À noite, quando terminara de lavar a louça e colocar as crianças na cama, passava e remendava roupas. Essas tarefas eram amenizadas, quando três gerações conviviam abaixo do mesmo teto. Via de regra, contudo, a distribuição de tarefas era desigual. No mundo da criança algumas imagens marcaram-nas para o futuro. A criança de origem católica lembra da reza do terço em família; a criança de origem luterana lembra a hora da leitura de histórias infantis ao deitar, tarefa que ficava ao encargo dos pais ou dos avós de ambos os sexos. A simples menção da leitura lembra famílias alfabetizadas, nas quais as informações eram tiradas de muitas leituras, propiciadas por livros de leitura, literatura infantil, jornais, livros e almanaques. Além das rezas e da leitura de contos, o mundo da criança ficou marcado por brincadeiras, recreação, escola, festas e trabalho. Pais e avós são lembrados na leitura de histórias, Nas brincadeiras estão presentes cavalinhos de pau, bonecas de pano, bois feitos de sabugo de milho, carretas e carrinhos. Na recreação não faltam canções infantis e cantigas de roda. Da escola é lembrado o longo trajeto a ser vencido, as amoreiras e bergamoteiras ao longo do caminho, a água congelada na vala, as pastas esquecidas sob alguma árvore, as merendas trocadas com colegas. Páscoa e Natal são as festas mais lembradas por crianças. Ninhos enfeitados com barba de pau e marcela, contendo ovos cozidos e tingidos com beterraba, casca de cebola ou marcela, ou cascas de ovos também tingidas e preenchidas com amendoins açucarados. A festa de Natal era oportunidade para apresentação de peças natalinas e era festa comunitária de todas as famílias da picada no salão comunitário. 312 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas A vida da família também era marcada por ritos de passagem. Majoritariamente, os imigrantes da Europa Central que se estabeleceram no Rio Grande do Sul eram cristãos, mas houve entre eles também judeus e agnósticos. Comunidades judaicas, no entanto, só puderam ser constituídas no século XX. Nas comunidades cristãs, as crianças recém-nascidas eram levadas por seus familiares ao templo religioso para receberem o batismo. Como a mortalidade infantil fosse elevada, era prática comum o batismo de emergência, mas as crianças eram levadas à igreja na primeira oportunidade para que seu batismo fosse confirmado perante a comunidade. Tanto no caso de católicos quanto de luteranos, era comum acontecer festividade na casa dos pais da criança, acompanhada de almoço e de café da tarde. Em algumas comunidades, os padrinhos entregavam à criança um Patenzettel, cartão votivo, muitas vezes acompanhado de sementes, simbolizando votos de bênção. Nas comunidades católicas, seguia-se a crisma das crianças. Esta dependia da época em que o bispo tinha disponibilidade para visita à comunidade. A puberdade era marcada por período mais intenso de catequese, seguida de rito, no qual os jovens eram admitidos pela primeira vez à eucaristia ou santa ceia, após exame na presença da comunidade. Nas comunidades católicas, muitas vezes, a admissão à eucaristia acontecia em idade mais tenra, mas na puberdade era realizada a comunhão solene. Tanto numa como em outra comunidade, o dia era marcado por festividades familiares com almoço e café da tarde. O rito seguinte a marcar a vida das pessoas era o casamento. No Brasil, as jovens imigrantes já estavam casando aos 16 ou 17 anos. Com período fértil mais longo do que aquele admitido na Europa, o número de filhos por família aumentou consideravelmente, não sendo raras as famílias com até 17 filhos em regiões de colonização católico-romana. No tocante ao casamento propriamente dito e à festa que o acompanhava 313 DREHER, M. N. • Considerações sobre a História da Família Imigrante no RS foram preservados ritos trazidos da Europa, os quais foram se perdendo em consequência da urbanização. Antes de ser marcada a data do casamento, um representante do rapaz, ele próprio ou seus pais, pedia licença para que o casamento acontecesse. Marcada a datado casamento, era estabelecido contato com o pastor ou padre, contratada cozinheira e banda de música. Pomeranos, poloneses e westfalianos conheciam a figura do Hochzeitsbitter, figura encarregada de fazer os convites para o casamento. Com versos e rimas dirigia-se à casa dos convidandos a cavalo. Onde esta tradição inexistia, os próprios noivos faziam os convites, convidando também padrinhos e madrinhas. Na prática toda a picada acabava convidada, do que decorria a necessidade de se contratar cozinheira. No dia do casamento, os noivos se dirigiam pela manhã à igreja. Quando a cerimônia podia ser realizada na picada, havia o acompanhamento da família; quando o deslocamento era maior, somente as testemunhas acompanhavam os noivos. Todos usavam roupas festivas. O noivo vestia terno e gravata, a noiva veste de gala preta e grinalda branca. A roupa de ambos continuaria a ser vestida em todas as ocasiões solenes futuras, das quais participassem. O branco, hábito burguês, passou a ser utilizado nos centros urbanos ao longo do século XIX e só se popularizaria no século XX. A ceia de casamento consistia de sopa com massa fina, assado de gado e de porco com chucrute e batatas, leitão, assado de galinha e de peru e, finalmente, ensopado de galinha com massa e pêssego. À tarde servia-se café e cucas. Casamento não era apenas evento social, era também momento de lazer. Sexualidade podia ser parte do anedotário, mas não era algo de importância na educação das gerações. A prática gerou sofrimento. Ocasionalmente, parteiras podiam ser conselheiras. As esposas de professores e de pastores também desempenharam importante papel no aconselhamento. Nas regiões de 314 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas colonização católico-romana o controle da sexualidade era feito através do confessionário. Em seu todo, pode ser afirmado que imperava o patriarcalismo nas relações familiares. Nas regiões de colonização alemã, contudo, mesmo que a administração das finanças estivesse a cargo do homem, nenhuma transação podia ser feita sem consulta prévia e concordância da mulher. Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de; RENAUX, Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e imigrantes, in: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da Vida Privada no Brasil. Vol II. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 202-335. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1981. BÖHM, Josef. Armenfürsorge in Simmern zu Beginn der preußischen Verwaltung 1815-1821. In: Rhein-Hunsrück-Kalender. Ano 46, 1998. Simmern: Böhmer Betriebs-GmbH, 1998., p. 47-53. BORCHERS, Elisabeth e KOEPPEN, Wolfgang. Deutsche Märchen. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1979. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa e Rio de Janeiro: DIFEL e Betrand Brasil, 1989. Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul. 1824-1924. 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Ainda, o uso do verbo “ser” tem significado especial, pois indica que a premissa maior está vinculada a uma questão intrinsecamente existencial, isto é, a família é a condição para a existência do indivíduo. Nesse sentido, o presente texto tem como objetivo investigar a formação e o cotidiano das famílias que derivaram do processo de imigração alemã ao longo do século XIX e XX. Em função de recortes que se colocam imperiosos, a cronologia estará mais para o XIX e o espaço se restringirá à província do Rio Grande do Sul.2 1 Franz Becker, 1842. In: AMADO, Janaína. A revolta dos Mucker. 2.ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2002, p. 45. 2 As considerações abordadas neste texto têm como referência a Tese de Doutorado defendida em 2008. Com tamanha abrangência, a presente análise não 317 WITT, M. A. • Família(s) no âmbito da imigração alemã Desde o primeiro contato com a frase proferida por Franz Becker, venho me perguntando sobre o contexto no qual ela teria sido verbalizada. Ao trabalhar com famílias de imigrantes alemães que chegaram ao Brasil ao longo do século XIX, penso que inúmeras situações do cotidiano poderiam ter proporcionado tal exclamação. Doença e morte, atividade laboral, problemas com a justiça, envolvimento com guerras, desespero frente à pobreza e/ou à sobrevivência, necessidade de mudar para outra Colônia e começar vida nova, entre outras razões, podem ter motivado uma pessoa do século XIX a sentenciar que a família é a base de sua existência. Conforme Janaína Amado, Franz Becker escreveu uma carta a sua família, em 23 de agosto de 1842 e, nela, teria registrado a frase que escolhi para a abertura deste texto. É possível que a saudade tenha colaborado para que tal sentimento ficasse eternizado naquelas palavras e demonstrasse que o indivíduo, sozinho e sem apoio dos seus, teria dificuldade em se estruturar no Novo Mundo. Já faz alguns anos que venho trabalhando com uma figura “exponencial”3 que reuniu em torno de si algumas características que são capazes de demonstrar como funcionava o mundo colonial do século XIX. Trata-se do pastor Carlos Leopoldo Voges, chegado ao Brasil em 11 de fevereiro de 1825. tem a pretensão de encerrar o assunto ou de apresentar conclusões fortemente estabelecidas. As linhas que compõem este texto vêm carregadas de recortes – temas, agentes históricos, grupos étnicos, espaço, tempo – e mais provocam do que resolvem as questões aqui colocadas. Para maiores detalhes, ver: WITT, Marcos Antônio. Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas. São Leopoldo: Oikos, 2008. 3 O conceito de “exponencial” foi cunhado em minha Dissertação para designar os colonos alemães que se destacaram no plano sócio-econômico-político. Como não faziam parte da elite que se originou da imigração e colonização açoriana e portuguesa, optou-se por conceituá-los dessa forma. Ver: WITT, Marcos Antônio. Política no Litoral Norte do Rio Grande do Sul: a participação de nacionais e de colonos alemães – 1840-1889. São Leopoldo, 2001. Dissertação [Mestrado]. História da América Latina. Programa de Pós-Graduação em História – UNISINOS, 2001. 318 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Além de líder espiritual, foi também professor, vendeiro (comerciante), agricultor e escravocrata. Sua história vinculada ao Rio Grande do Sul começou com um naufrágio e teve continuidade na recém-criada Colônia alemã de São Leopoldo, onde atuou como pastor e casou com Elisabeth Diefenthäler em 24 de março de 1828. Foi o casamento que lhe abriu as portas do mundo comercial e permitiu que administrasse vários negócios a partir de sua base na Colônia alemã de Três Forquilhas. A fim de mapear a capacidade de circulação destes agentes históricos, elaborou-se um mapa, que foi intitulado de “mega-espaço São Leopoldo – Litoral Norte do Rio Grande do Sul (SL-LNRS)”. Um dos pontos centrais a ser discutido após a análise desse mapa é o fato de que o casamento era sinal de mobilidade, tanto espacial, quanto social. Ter parentes e conhecidos em várias Colônias significava pouso e acolhida, mas, também, saber das novidades e dos negócios já tratados e dos que estavam por se firmar. Voges, a partir de Três Forquilhas, mantinha relações de parentesco com pessoas que moravam na Colônia-Mãe (São Leopoldo e Costa da Serra – Novo Hamburgo, Campo Bom, Ivoti, Dois Irmãos), na capital da província, Porto Alegre, e em Taquari, junto ao rio Taquari. No mundo colonial do século XIX, família numerosa era sinal de maiores possibilidades de contato e negócio. Ao estudar os casamentos da família Diefenthäler, constatou-se que, dos seis cunhados de Voges que contraíram matrimônio, cinco foram casados por ele. Os enlaces encontram-se documentados no CD-ROM do Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiro – NETB4, sendo que o primeiro foi o de Peter Friederich Peter- 4 DREHER, Martin Norberto (Org.). Livros de registro da comunidade evangélica de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil (século XIX). 2.ed. São Leopoldo: Unisinos, 2004. (CD-ROM). Martin Dreher foi coordenador do Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros (NETB), responsável pela transcrição e elaboração do referido CD-ROM. 319 WITT, M. A. • Família(s) no âmbito da imigração alemã Mapa do mega-espaço São Leopoldo-Litoral Norte do Rio Grande do Sul (SL-LNRS) 320 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas sen com Catharina Diefentheller, no dia 28 de fevereiro de 1826. As anotações descritas no registro são extremamente resumidas, indicando apenas os nomes dos nubentes e dos padrinhos, bem como a data do evento. Talvez a hipótese levantada por Hunsche, o qual afirma que os noivos casaram “um dia depois da chegada a São Leopoldo”5, explique a forma com que Voges redigiu o documento. Por exemplo, as testemunhas foram descritas como “Metz. Jacob Metz. Heichert”, dificultando para o pesquisador reconhecer quem eram as pessoas que participaram daquele momento. Por ordem cronológica, o segundo casamento foi o de Johann Heinrich Hartmann e Anna Maria Diefenthäler, celebrado em 1834. O noivo, residente na Costa da Serra, portanto, devia ser vizinho da futura esposa, era “curtidor”. Às vezes, a proximidade geográfica facilitava o contato entre futuros casais; no entanto, o arranjo do matrimônio pode ter se dado pela profissão do noivo, de cunho artesanal, possivelmente com uma rentabilidade superior às demais atividades, como a agricultura. O terceiro casamento ocorreu em 1837 entre Peter Diefenthäler e Margaretha Schmidt. Ele foi descrito como agricultor na Costa da Serra. Quanto à noiva, não consta o local de sua residência nem o nome de sua mãe. Pelo registro de óbito encontrado, fica-se sabendo que Margaretha faleceu em março de 1845, oportunizando ao viúvo uma nova união com Louisa Carolina Reichardt, em 1846, o qual continuava residindo na Costa da Serra; quanto à residência de Louisa, nada consta no registro. 5 HUNSCHE, Carlos Henrique. O ano 1826 da imigração e colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Metrópole, 1977, p. 428-429. Hunsche é autor de duas obras clássicas sobre imigração alemã no Rio Grande do Sul. Sua genealogia é perpassada por outras fontes documentais, as quais permitiram que o autor complementasse as informações buscadas nos registros de entrada dos imigrantes. Além do 1826, ver, também: HUNSCHE, Carlos Henrique. O biênio 1824/1825 da imigração e colonização alemã no Rio Grande do Sul (Província de São Pedro). Porto Alegre: A Nação, 1975. 321 WITT, M. A. • Família(s) no âmbito da imigração alemã O quarto casamento, celebrado em 1839, é o de Philipp Diefenthäler com Maria Catharina Knierim, “nascida Müller”. O noivo é apresentado como “marceneiro e negociante” e “residente no Bom Jardim.” Nesses apontamentos, afora a identificação da profissão do noivo, destaca-se a idade dos nubentes: ele com 21 anos, solteiro, enquanto ela, com 29 anos, “viúva de Adam Knierim e [filha] de Jacob Müller”, cujos óbitos não foram localizados no CD-ROM do NETB. O registro de casamento de Adam Knierim, 28 anos, morador no Bom Jardim, marceneiro, com Maria Catharina Müller, 19 anos, casados a 28 de junho de 1829, confirma a união anterior dela, enquanto o de batismo de Maria Magdalena, realizado pelo pastor Ehlers em 1830, cujos pais eram Adam Knieriem e Maria Catharina, sinaliza que ela tinha uma filha de nove anos quando contraiu novas núpcias. Hunsche e Tramontini trazem a informação de que “Adão Knieriem” foi assassinado pelos farrapos em 26.6.1836. (Cf. HUNSCHE, 1977: 429 e TRAMONTINI, 2000: 255). O quinto casamento, firmado em 1843, é o de Friedrich Wilhelm Panitz, “curtidor em São Leopoldo”, e Jeannette Diefenthäler. Em 1865, esse casal celebrou o casamento da filha Johanna Panitz com Georg Lamb, residente no Bom Jardim. Talvez o fato de a família estar direcionada para a Costa da Serra e para o Bom Jardim tenha colaborado para que os jovens se encontrassem e formassem uma nova família. O documento não informa a profissão do noivo. Ainda, acrescenta-se um sexto casamento que, embora não seja de nenhum dos cunhados de Voges, traz informações relevantes sobre o tema em questão. A união foi contraída entre Wilhelm Christian Matte, “residente em São Leopoldo” e “sapateiro”, com Caroline Bohrer, filha da sobrinha e afilhada de Voges, Elisabeth Petersen, casada com Carl Bohrer. A cerimônia aconteceu em 1869, em São Leopoldo. É lícito pensar que os arranjos via casamento ultrapassassem as gerações e 322 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas dessem continuidade ao jogo de interesses presentes em cada família, pois, de acordo com Woortmann, “o compadrio opera no sentido de cimentar relações de parentesco”. (WOORTMANN, 1995: 213). Como o pai da noiva era seleiro, talvez tenha havido a necessidade de agregar novos elementos profissionais ao empreendimento. Assim, um genro cuja profissão se assemelhava à do sogro poderia ser bem vindo para dar continuidade aos negócios. Caso semelhante é descrito por Dreher, o qual localizou o casamento de “Karl Foges” com “Margarethe Lautert”, de Taquari, realizado em 3 de abril de 1862, ele filho do pastor Carlos Leopoldo Voges, sendo que os padrinhos do casal foram Jacob Diehl e Peter Diefenthäler.6 Tanto pelo apadrinhamento quanto pela profissão do sogro de Karl, que era sapateiro, percebe-se a manutenção de laços de afetividade, pois Jacob era genro de Voges enquanto Peter era cunhado (ou sobrinho), e o interesse em associar as famílias às profissões mais promissoras da época. Contudo, a experiência de usar a confecção de redes via matrimônio com o objetivo de alavancagem social não foi exclusividade dos Diefenthäler-Voges. O imigrante João Pedro Schmitt7, chegado, juntamente com sua mãe e irmãos, à Colônia de São Leopoldo em dezembro de 1825, instalou-se inicialmente na sede da Colônia, de onde, por volta de 1830, partiu para a região de Hamburger Berg (atual bairro de Hamburgo 6 O casamento de Karl Foges com Margerethe Lautert encontra-se no CD-ROM do NETB, sendo que o autor utilizou esta mesma fonte para produzir o seu texto. DREHER, Martin Norberto. São Leopoldo e Três Forquilhas – relações humanas. In: ELY, Nilza Huyer e BARROSO, Véra Lucia Maciel (Orgs.). Raízes de Terra de Areia. Porto Alegre: EST, 1999, p. 235-242, p. 237. 7 A trajetória familiar e profissional de João Pedro Schmitt está sendo investigada por meus dois bolsistas de Iniciação Científica, Ícaro Estivalet Raymundo e Rodrigo Luís dos Santos, através do projeto de pesquisa intitulado “A formação de redes a partir da política e do comércio (Imigração alemã – Rio Grande do Sul – século XIX)”, desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS. 323 WITT, M. A. • Família(s) no âmbito da imigração alemã Velho, no município de Novo Hamburgo). Nesse período (1827), Schmitt contraiu núpcias com Anna Bárbara Blauth, assim como iniciou trabalho relacionado com a navegação e transporte de mercadorias em lanchões de São Leopoldo para Porto Alegre. A família Blauth, à qual Schmitt se ligou por meio dos laços matrimoniais com uma de suas filhas, também se destacou na navegação fluvial na então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Portanto, nesse caso, a união configurou-se como estra8 tégia que, adotada por João Pedro (assim como também por outros imigrantes) fez do matrimônio uma forma de ascensão social aliada à multiplicidade de ações comerciais. Vejamos, como exemplo, a estrutura arquitetada pelas famílias Schmitt e Blauth: João Pedro casou-se com Anna Barbara Blauth; seu irmão Henrique Guilherme, com a irmã de Anna Barbara, Anna Maria; e, além disso, a irmã de João e Henrique, Elisabeth, casou-se com o irmão de Anna Maria e Anna Bárbara, João Jacob. Assim, foram deixadas de lado eventuais questões sentimentais, que podem ter estado presentes nos enlaces matrimoniais referidos. Portanto, podemos ver que houve um estreitamento significativo de laços parentais (e também econômicos, sociais e políticos) entre duas famílias que, com o decorrer do tempo, tiveram destaque no ambiente social, econômico e político colonial e até regional, o que reforça a tese da formação de redes sociais como meio de alavancagem e consolidação de interesses. Assim, se torna perceptível que a inserção de João Pedro Schmitt na navegação foi acentuada com a vinculação a uma 8 Sobre o conceito de estratégia, Zúñiga nos aponta que se trata de “um conjunto de práticas e comportamentos que permitem alcançar ou chegar a uma posição de privilégio como resultado de um esforço realizado. São habilidades postas em prática seja de forma individual, seja através de um grupo familiar para alcançar ou manter um status social, político e também econômico” (ZÚÑIGA Apud VIVÓ, 2009:. 265-266). 324 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas família que também estava ligada ao mesmo ramo, o que poderia abrir portas para um processo de expansão e de interação com outros elementos sociais. Esse fato também acabou ampliando o campo de possibilidades, formando redes que colaborariam de forma muita aguda no projeto pessoal de elevação e atuação dentro do sistema social brasileiro. Desse emaranhado de nomes, sobrenomes, datas e informações, às vezes dispersas e carregadas de incontáveis pontos de interrogação, é possível estabelecer algumas considerações. A primeira delas está relacionada aos casamentos realizados às pressas, como foi o caso de Peter Friederich Petersen com Catharina Diefentheller. Gravidez antecipada, doenças várias ou mesmo a necessidade de começar uma nova vida a dois – para erguer uma choupana, derrubar a mata e iniciar os plantios –, são motivos plausíveis que justificam o anseio dos noivos em contrair núpcias o mais rápido possível. A segunda consideração está relacionada a uma categoria fundamental para a vida rural do século XIX, isto é, o espaço. No entanto, deve-se observar que proximidade geográfica não significava morar ao lado do vizinho; era algo maior, que possibilitava contatos que estão diretamente ligados à vida cotidiana, sobretudo do trabalho e do lazer. Assim, um vizinho poderia socorrer o outro em momentos de necessidade, como na época das colheitas e, o que era esperado pelos mais jovens, as famílias poderiam se encontrar em momentos de sociabilidades, como as festas. A terceira consideração que se extrai dos registros de casamento realizados pelo pastor Voges é a profissão dos envolvidos. Percebe-se muito nitidamente que unir agricultura com outra atividade especializada, como curtidor, era algo muito desejado por algumas famílias. Muitas vezes, isso significava aproximar os espaços rural e urbano, o que dava certo impulso ao desenvolvimento econômico da família. Afora isso, garantir a continuidade do trabalho executado pelo artesão mais velho 325 WITT, M. A. • Família(s) no âmbito da imigração alemã era uma questão não só de sobrevivência, mas de permanência no meio social a partir do capital simbólico que a família havia conquistado. Por vezes, o sobrenome e/ou a figura de determinado profissional estavam diretamente relacionados à especialização do trabalho oferecido à comunidade. No caso de João Pedro Schmitt, o imigrante uniu interesses comerciais – compra e venda e transporte de mercadorias – através de enlaces matrimoniais ao selar a união de três irmãos Schmitt com três membros da família de navegadores Blauth. A quarta consideração diz respeito à viuvez que assombrava a vida dos cônjuges em diferentes momentos, como as guerras, determinadas doenças e o parto. É comum encontrar homens e mulheres casando pela segunda ou até mesmo pela terceira vez, pois viver sozinho ou administrar uma propriedade com vários filhos sem a companhia e o auxílio de um cônjuge poderia se transformar em tarefa quase impossível. Além disso, havia uma certa pressão social para que os viúvos contraíssem novas núpcias.9 A quinta observação está relacionada à elaboração dos registros paroquiais de nascimento, batismo, confirmação (para os protestantes), casamento e óbito. Via de regra, as informações estão incompletas, ilegíveis, com aparência de terem sido anotadas às pressas e/ou passadas a limpo tempos depois. Ao que parece, as inúmeras incumbências atribuídas aos padres e 9 Em relação aos dramas pessoais e/ou familiares, a situação vivenciada pelo casal Peter F. Petersen e Catharina Diefenthäler, concunhado e cunhada de Voges que, após residirem alguns anos na Colônia de Três Forquilhas, retornaram para São Leopoldo, reflete os medos e as angústias que moldavam a realidade camponesa. Catharina faleceu em abril de 1839, “de parto”, sendo que seu marido, Peter, deve ter contraído segundas núpcias nos próximos meses. Depois de casar pela segunda vez, cometeu suicídio em julho de 1840. Na documentação, Peter foi descrito como “marinheiro em S. Leopoldo, casado com Catharina, nasc. Diefenteller e depois com Barbara, nasc. Schweitzer”. O laudo apontou “suicídio voluntário por afogamento no Rio dos Sinos, na região dos Três Portos e, como seu corpo não foi encontrado, não foi sepultado”. Para maiores detalhes, ver: WITT, 2008: 85-86. 326 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas pastores se colocaram como empecilho para que desenvolvessem a elaboração dos registros de forma mais cuidadosa e detalhada. A falta de dados e a dificuldade de se compreender o que foi escrito constituem-se uma das principais reclamações dos genealogistas, pesquisadores especializados na montagem de árvores genealógicas. Com isso, quer-se observar que é preciso muita cautela e cuidado ao se trabalhar com os registros paroquiais, pois inúmeros interesses e situações podem ter desencadeado uma anotação mais cuidadosa ou menos verossímil. Após algumas breves considerações sobre os casamentos dos cunhados de Voges e de outros agentes históricos que apostaram no casamento como via de acesso a novas posições sociais, pode-se, ainda, abordar mais um aspecto que não foi contemplado. É de conhecimento dos estudiosos da imigração que a religião protestante era apenas tolerada e que os seus casamentos não eram válidos. Daí poderia surgir a convicção de que católicos e protestantes mantiveram-se distantes a ponto de não realizarem casamento entre si. Um estudo de caso, mesmo que aborde colonos “exponenciais”, relativizou a falsa ideia de que o contato social estaria prejudicado pelas diferenças no campo religioso. As núpcias em questão envolvem a filha do pastor Voges, Catharina Friederike Voges, e um jovem católico da Colônia de São Leopoldo, Jacob Sebastian Diehl, casados em 20 de julho de 1851. A investigação minuciosa dessa união permitiu que se agigantasse a importância da geografia para o mapeamento da circulação das famílias e se descortinasse a presença dos interesses comerciais na formação de uma nova célula familiar. O primeiro aspecto a considerar é que o fato de a noiva ser protestante e o noivo católico não se constituiu como empecilho para que contraíssem núpcias. Da mesma forma, a localização geográfica dos núcleos familiares – o de Catharina em Três Forquilhas e o de Jacob em São Leopoldo –, não representou isolamento nem dificultou o contato dos noivos. A 327 WITT, M. A. • Família(s) no âmbito da imigração alemã grande questão que envolve este matrimônio é a sociedade de navegação constituída pelas famílias Voges, Diehl e Dreher (esta última sediada em Porto Alegre), as quais selaram seus acordos com casamentos e apadrinhamentos entre os seus. Não é de todo exagerado afirmar que os interesses comerciais subjugaram a diferença religiosa e espacial que havia entre os noivos. No que tange à religião dos nubentes, outro casamento merece ser destacado. Neste caso, os noivos não são “exponenciais”, ao contrário, são colonos que não têm a mesma expressão político-econômico-social do grupo representado, por exemplo, pelo pastor Voges. A união de Johann Carl Witt e Maria Feldner foi investigada por Caroline von Mühlen em sua Dissertação de Mestrado, a qual tinha como propósito maior analisar a imigração que teve origem nas casas de correção da atual Alemanha. Segundo von Mühlen, entre os 102 apenados da casa de correção e das prisões de Dömitz embarcados no navio Wilhelmine, no dia 12 de dezembro de 1824, estava o casal Johann Carl Witt e Maria Feldner. A imigrante viajou sob a condição de criada do futuro marido, pois ela já era casada na região de onde partiu. O novo – ou segundo matrimônio para ela – foi realizado em Porto Alegre, por um padre católico, em 21 de junho de 1825, pois ambos professavam religião protestante. De acordo com a interpretação de von Mühlen, o padre entendeu que Maria Luiza não era casada, já que havia sido abençoada por um pastor protestante, o qual representava uma religião apenas tolerada no Brasil. Desta forma, o casal viveria em concubinato. Sobre o casal, as informações dão conta de que Johann Carl Witt tinha 36 anos de idade, era solteiro e foi acusado de furtar um cavalo. Condenado a seis anos de reclusão, seu sustento se dava através do caixa da instituição. Maria Luiza, condenada a quatro anos de reclusão por furto, também era mantida pelo caixa da mesma casa de correção. Quanto à religião, von Mühlen constatou que somente o casamento de Johann Carl 328 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Witt com Maria Luiza Feldner e o batismo dos filhos desta primeira união foram realizados perante a Igreja Católica. Os demais casamentos, batismos, óbitos da família foram mantidos na tradição protestante. Os dados recolhidos pela autora informam que Witt contraiu segundas núpcias com Elisabeth Geb, porém, não foi possível localizar a data de falecimento de Maria Luiza Feldner e a data da segunda união de Johann Carl Witt. Como estudo de caso, o casamento do imigrante Johann Carl Witt permite algumas observações. Se, de um modo geral, a historiografia que trabalha com os temas imigração, família, rede, parentesco e compadrio tem realizado a pesquisa e os estudos baseados na ideia de estratégia, esta forma de aproximar e casar ao longo do século XIX não foi exclusiva dos “exponenciais”. O alcance dos atos de Johann Carl Witt e Maria Luiza Feldner, agentes históricos empobrecidos, marginalizados e excluídos, dá conta de que eles souberam driblar os impasses para concretizar o matrimônio que vinham articulando, no mínimo, desde a travessia do Atlântico. Se Maria Luiza era casada na religião protestante – e isso impossibilitaria o casamento com Johann Carl Witt –, a solução encontrada foi mudar de religião e submeter-se à instituição que realizaria a união dos pretendentes. Ao que parece, o apego à religião católica foi momentâneo, uma vez que Witt e sua descendência retornaram aos ensinamentos da fé protestante. Considerando o tempo que levou da chegada ao Brasil até a realização do casamento, em 21 de junho de 1825, os pretendentes logo perceberam quais as atitudes que deveriam ser tomadas para a concretude dos seus planos. Portanto, o imigrante foi capaz de captar, muito rapidamente, quais eram as regras do novo meio social onde estava se inserindo. Língua e outros hábitos culturais que faziam distinção entre os grupos étnicos instalados no Brasil não se colocaram como real impedimento para a busca de inserção social. 329 WITT, M. A. • Família(s) no âmbito da imigração alemã Assim como a língua e outros hábitos culturais não se constituíram em empecilho para a formação de novas famílias, as diferenças econômico-sociais entre pessoas que habitavam microrregiões dentro de uma mesma Colônia não impediram que jovens se unissem em matrimônio. Partindo-se de um estudo de caso, observou-se que uma Colônia poderia estar dividida em microrregiões, as quais representavam mais do que aspectos geográficos. No âmbito social, refletiam diferentes padrões de hierarquia entre famílias que compunham aquele cenário rural e agrícola. No caso da Colônia alemã de Três Forquilhas, o espaço vivenciado pelos descendentes dos imigrantes viu-se dividido em duas partes – os “ovalena” e os “unalena”. A tradução das expressões retiradas do dialeto alemão indica que a geografia do lugar inspirou aqueles que rotularam os “ovalena” de inferiores e os “unalena” de superiores. A tradição oral ainda hoje faz menção à divisão da Colônia nessas duas partes. Como os primeiros estavam mais distantes da sede da Colônia, onde havia igreja e escola, portanto, com maiores dificuldades para acessar a cultura da época, e os segundos geograficamente mais próximos dessas instituições, formaram-se dois grupos distintos entre os colonos: os que tiveram maior acesso à formação/informação e os que se sentiram alijados. Dada à geografia da Colônia, uma simples chuva poderia dificultar a ida à escola ou ao culto. Conforme depoimento de uma colona do século XX, “unalena”, houve críticas sobre o seu casamento com um “ovalena”. Ressalte-se que há um paradoxo no uso dos termos “ovalena” e “unalena”. Os que moravam em cima – ovalena –, tinham menos acesso à cultura, enquanto os que moravam embaixo – unalena –, assistiam às aulas e frequentavam o culto com maior facilidade.10 10 Depoimento informal de Elma Strassburg Witt e de Nilza Huyer Ely ao autor. No alemão gramatical, no plural, Oberländer e Unterländer. Ellen Woortmann e Roberto Radünz também encontraram Colônias divididas. No primeiro caso, 330 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas A título de fechamento, entende-se oportuno retomar o que foi discutido nessas breves linhas. É relevante observar que a noção de pertencimento à família integrava o cotidiano dos imigrantes. A frase de Franz Becker – sem minha família eu não sou ninguém – não soou como a voz de um único indivíduo, mas ecoou como o pronunciamento de uma comunidade que via e tinha a família como núcleo aglutinador. As estratégias, de todos os tipos, visavam alavancagem social. Aproximar um herdeiro de um pretendente que desse continuidade aos negócios iniciados e gerenciados pela família poderia significar a perpetuação dos negócios e a manutenção do status em um determinado espaço social. Nem mesmo a diferença religiosa e a desigualdade econômico-social ocasionada por residir em determinada microrregião serviram de empecilho para a união de “exponenciais” e/ou de colonos que se mantiveram no padrão econômico-social da maioria agricultora. Neste sentido, torna-se mais plausível o uso do termo plural – famílias – para a compreensão e análise do universo colonial que se originou com a imigração alemã. Referências AMADO, Janaína. A revolta dos Mucker. 2.ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2002. Bugerberg (Morro dos Bugres) foi seccionada em duas partes: “montanha” – parte alta – e “Rio Loch” (Buraco do Rio) – parte baixa. Para a autora, “o que antes era pensado como uma unidade passa a operar como duas unidades”. Nos estudos de Radünz, é mencionada a Colônia de Rio Pardinho, igualmente fracionada entre “os do Alto Rio Pardinho”, “um grupo forte”, os quais ficaram com a posse da escola e da casa pastoral, e “os do Baixo Rio Pardinho”, situados um pouco mais distantes do local onde esses serviços eram oferecidos. Ver: WOORTMANN, 1995, p. 188-189 e RADÜNZ, Roberto. “A terra da liberdade”: o protestantismo luterano em Santa Cruz do Sul no século XIX. Porto Alegre, 2003. Tese [Doutorado]. Programa de Pós-Graduação em História – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2003: 235. 331 WITT, M. A. • Família(s) no âmbito da imigração alemã BERTRAND, Michel. Los modos relacionais de las elites hispanoamericanas coloniales: enfoques y posturas. Anuario IEHS. Argentina: Tandil, n.º 15. 2000. CANÊDO, Letícia Bicalho. Caminhos da memória: parentesco e poder. Revista de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, n.3, v.2, p. 85-122, 1994. CANDIDO, Antonio. 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O estudo trata da família italiana que vive no Rio Grande do Sul após enfrentar o processo migratório e destaca algumas características que esse grupo carregou consigo e que refletem práticas sociais de sua cultura de origem e da adaptação a algumas normas que foi obrigado a assimilar diante das circunstâncias impostas pelo processo migratório. O estudo evidencia algumas características que marcam a família italiana que se instala nas comunidades rurais no Sul do Brasil. Os limites dessa análise encontram-se na amplitude do tema e na necessidade de reduzir a família italiana aos estudos migratórios e de ver como os mesmos a tratavam para poder explicitar suas dinâmicas, seus valores e suas relações no nosso país. O processo imigratório italiano Para examinar a família italiana, é necessário lembrar que a Itália como nação se unifica apenas na metade do século XIX, o que significa que a integração de diversas regiões políti- 336 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas co-econômicas não é tão antiga e tem reflexos culturais peculiares dependendo da localização. A Itália, após o Congresso de Viena, estava dividida em diversos reinos, dominados por estrangeiros, sendo o mais importante o Reino do Piemonte-Sardenha, sob o comando da casa de Savoia. A Itália sofreu, sob a tutela do Império Austríaco, várias tentativas de unificação desde 1848, mas a unificação do reino ocorreu apenas em 1861 quando os deputados de todos os estados reconheceram a autoridade de Vitor Emanuel II como rei da Itália. Na época da Unificação, a Itália era um país tipicamente agrícola, e uma grande parte da população vivia dessa atividade. Muitos problemas assolavam essa nação tais como: a ruptura das antigas relações feudais e o desenvolvimento dos meios de transporte pelos investimentos nas estradas e mais tarde nas ferrovias, o que fazia com que ocorresse uma aproximação do modo de vida dos habitantes do interior, do campo, aos mercados urbanos e provocava transformações profundas na economia rural. Esses aspectos, associados a fatores econômicos de modernização de outros países, fizeram com que a economia enfrentasse uma série crise no modo produtivo. O crescimento da concorrência internacional afetou os preços dos produtos no mercado, e a crise que envolveu a agricultura europeia se refletiu na expansão desse mercado. À medida que a crise agrária se agudizava, a população italiana não conseguia resolver as questões básicas de sobrevivência para enfrentar a miséria e a fome. Dessa forma, a emigração transoceânica apareceu como solução para uma parcela considerável da população. A emigração permanente vem precedida da emigração temporária da qual os italianos já tinham experiência em busca de trabalho fora da pátria. Conforme dados estatísticos da Direção-Geral de Estatística do Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio da 337 HERÉDIA, V. • Família italiana no RS Itália, em 1876, a maior parte da população emigrante provinha do campo. A região mais atingida pela crise econômica foi o Norte da Itália que acabou fornecendo o maior contingente de emigrantes naquela época. Os dados citados por Trento (1989: 39) sobre a emigração italiana para o Brasil, no período entre 1876 e 1886, mostram que 71.802 italianos saíram do Reino sendo 21.264 do Vêneto e de Friuli. A experiência positiva estimulou que o fluxo emigratório continuasse e, na década seguinte, o número de emigrantes italianos aumentou de forma gradativa. No período de 1887-1895, 492.261 italianos partiram da Itália para o Brasil sendo 353.445 da Itália do Norte em confronto com 107.649 italianos do Sul e das ilhas. No período sucessivo, de 1896-1902, 372.913 italianos deixaram a Itália sendo que 112.255 eram do Norte, e 198.040, do Sul. A grande emigração representou a solução de muitos problemas para os que viviam na Itália, entre eles, a solução do excesso demográfico camponês, proveniente de áreas de pequena produção agrícola independente do Norte da Itália. Franzina (2006: 34) salienta que a emigração “precisa ser analisada no contexto da transição de um país agrícola e pré-industrial a um estágio de relativa e totalmente específica, maturidade capitalista”. Os fatores de expulsão e os de atração facilitaram e estimularam a grande emigração. Para o Brasil, era importante a instalação do trabalho livre, pela mão de obra especializada, branca e para os italianos, o Brasil lhes oferecia a possibilidade de acesso à terra que era um sonho para os imigrantes e suas famílias. A emigração europeia para o Brasil foi estimulada pelo Governo Imperial a partir da Lei Geral de 1848, quando o governo cedeu a cada uma de suas províncias 36 léguas quadradas de terras devolutas com o fim exclusivo de colonização. Em 1850, a Lei de Terras estabelece os critérios referentes à formação das colônias agrícolas e das sesmarias, e, em 1854, a 338 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas orientação do governo é alterada e definida: a colonização se faria à base de venda da terra e da indenização das despesas nos cinco anos subsequentes ao estabelecimento das colônias, cabendo à Repartição Geral das Terras Públicas a delimitação das mesmas. (HERÉDIA, 1992: 25). Após essas iniciativas, o governo da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul solicitou ao governo imperial mais terras para ocupação em 1870. Recebeu a concessão pelo Ministério da Agricultura de dois territórios de 16 léguas quadradas cada um, situados nas terras livres que se estendiam entre o rio Caí e os Campos de Cima da Serra e o município de Triunfo. (MANFROI, 1975: 59). Tem-se, então, a ocupação da Encosta Superior do Nordeste do estado. Essa iniciativa não correspondeu ao esperado, e esse projeto foi devolvido ao Governo Imperial entre 1875 e 1876. A retomada da colonização pelo império fez com que as colônias criadas fossem ocupadas, e o resultado dessa investida foi o povoamento das colônias Conde d’Eu, Dona Isabel, a fundação da colônia “Fundos de Nova Palmira” que logo depois se tornou Colônia Caxias, e por último, a formação da Colônia Silveira Martins. Essas colônias se tornaram os quatro centros principais de colonização italiana no Rio Grande do Sul. A família italiana no Rio Grande do Sul Os imigrantes que vieram para o Rio Grande do Sul foram estimulados pela política do governo imperial que tinha como finalidade formar colônias agrícolas que abastecessem o mercado interno. Não havia intenção de competir com o latifúndio. Dessa forma, o governo estabeleceu uma série de regras que constituíam a Política de Colonização da Província do Estado do Rio Grande do Sul, a fim de evitar esse confronto e garantir o sucesso da instalação da pequena propriedade. Essas regras as- 339 HERÉDIA, V. • Família italiana no RS seguraram a instalação da pequena propriedade, do trabalho familiar e da inexistência de escravos nos lotes coloniais. Essas regras também diferenciavam as famílias italianas que viviam no centro do País. Os imigrantes italianos que se localizaram em São Paulo, haviam sido atraídos para a grande lavoura do café, ameaçada pelo movimento abolicionista na metade do século XIX. “A grande diferença entre as políticas do processo de imigração e colonização era que o primeiro alterava o regime de trabalho, e o segundo o regime de propriedade.” (HERÉDIA, 1997: 35). A imigração italiana que ocorreu no centro do País, especificamente em São Paulo, se deu sob o regime de colonato, regime que regulava as relações entre os fazendeiros de café e os imigrantes, devido à necessidade de mão de obra nas lavouras de café. A vida na fazenda limitava algumas das práticas que os mesmos tinham na terra de origem principalmente porque ficavam restritos aos limites da fazenda e às exigências impostas por seus patrões. Já a família italiana que se instalou no Sul no Brasil teve condições sociais distintas, baseada na pequena propriedade, na livre iniciativa e no trabalho familiar. Ambas as experiências, seja a de São Paulo, nos cafezais, seja a do Sul, nas colônias italianas, a família era tida como elemento de sustentação, cuja união entre os membros garantia a subsistência do grupo, o que a tornava um módulo produtivo. Manfroi afirma em seu estudo sobre a colonização italiana no Rio Grande do Sul que o “fato mais impressionante e original das colônias italianas do Rio Grande do Sul foi a reconstrução cultural em terras gaúchas, dos vilarejos italianos.” (MANFROI, 1975: 202). Essa observação permite transportar esse raciocínio às famílias italianas, que, ao migrarem, trouxeram consigo valores da cultura de origem que mantiveram por meio de algumas práticas sociais. Esse autor diz que não foi a italianidade que gerou a consciência de grupo, mas a 340 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas catolicidade que o grupo possuía e que manteve a identidade do grupo por meio dos valores presentes na religião, no trabalho, na família e nas relações de parentesco e de vizinhança. Essa tese não é corroborada por diversos autores, mas serve para mostrar relações que se estabeleceram entre as famílias italianas que se reproduziram no Brasil. A função institucional da família, qual seja a de garantir a conservação do grupo e de reproduzir a prole fez com que a mesma assumisse um lugar privilegiado na comunidade. Ela se tornou a instituição que organizava economicamente o grupo e, ao mesmo tempo, se responsabilizava pelos vínculos afetivos que o grupo possuía para se manter como grupo. Tornou-se o sistema cultural de referência do grupo. A família italiana era marcada por um forte espírito de solidariedade que se manifestava nas relações entre os membros da família, no parentesco, na vizinhança e no compadrio. Desde o casamento, quando a família se constituía oficialmente, suas regras eram respeitadas com o intuito de assegurar a estrutura familiar. O casamento monogâmico era visto como uma instituição impossível de ser dissolvida já que estava sustentada em princípios religiosos que não aceitavam a dissolução dos laços estabelecidos pelo matrimônio. Havia muita influência religiosa na constituição da família, uma vez que os italianos, na sua maioria, eram católicos e acreditavam nos princípios do ideário religioso. Isso significava que o casamento era uma instituição que devia durar por toda a vida, e os preceitos religiosos reforçavam os papéis masculinos como representantes da autoridade, o que dava mais legitimidade à família patriarcal. As práticas exercidas pelo pai eram mantidas pelo respeito que a família delegava ao chefe do grupo social pelo qual era responsável. Não havia dúvidas ante a autoridade paterna. A autoridade familiar sempre esteve centrada no pai. Autoridade sagrada e merecedora de respeito. Um relativo afastamento indicava a importância da presença paterna. [...] As 341 HERÉDIA, V. • Família italiana no RS decisões administrativas cabiam ao pai, que podia vender, comprar, trocar... Consultava a esposa e os filhos mas sempre lhe cabia a palavra decisiva. O manejo das plantações, a determinação das roçadas, a quantidade de cereais a plantar dependiam das suas decisões. (COSTA, 1974: 43). A família era numerosa, o que representava muitos braços para o trabalho. A grande família era uma característica da família patriarcal, posto que todos colaboravam para a produção familiar, pela divisão de trabalho estabelecida pelo grupo. Segundo Dom José Barea (1995: 16), “uma família com 12 filhos é coisa muito comum; e não são nem raras e nem poucas aquelas que contam 18, 20 e 22”. O pai exercia o papel principal de chefe de família, e a produção familiar lhes dava autonomia para a subsistência e envolvia todos os membros do grupo, incluindo as crianças e os mais velhos. A produção familiar pelo controle do pai dava à família vantagens econômicas pela concentração de trabalho realizado em casa, pelos membros do grupo, sem encargos, administrados pela própria estrutura familiar. A mulher exercia diversas funções que abrangiam desde o trabalho na casa até o trabalho na roça. Cabia a ela uma longa jornada de trabalho que se sobrepunha aos demais pelos trabalhos interno e externo pelos quais ficava responsável. As funções domésticas envolviam desde a criação dos filhos, o cuidado da saúde e do bem-estar de todos os componentes do grupo, a preparação da comida, a limpeza da casa e das roupas, a busca da água e da lenha e a preparação do fogo para fazer a comida e outros cuidados. Em algumas estações, eram preparadas conservas de frutas e de alimentos que serviam para as refeições ao longo do ano. A mulher acumulava uma série de papéis auxiliada pelos filhos e pelos parentes que viviam na mesma casa Tedesco (2001: 27) chama a atenção que, na constituição da família do colono italiano, havia uma “profunda diferenciação de gênero” que se fazia presente nas diversas esferas do 342 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas trabalho doméstico. Essas regras se mantiveram mesmo com a modernização pela qual a sociedade passou e refletem a importância da mulher na estrutura produtiva e, ao mesmo tempo, sua condição de subordinação nas relações familiares. O imigrante italiano reconhece o status de ser proprietário, e essa condição lhe coloca em uma posição econômica na hierarquia social distinta do lugar de origem, em que a propriedade era restrita aos estratos mais elevados. O acesso à terra modifica sua condição socialm e esse valor afeta consequentemente a vida familiar. Ser proprietário dá à família um lugar de liberdade, de proteção e de estabilidade social. Quanto à sucessão, os filhos (homens) sempre foram preferidos, e as mulheres, até algumas décadas atrás, não participavam da possibilidade de dirigir a propriedade familiar. Essa decisão cabia ao pai que habitualmente escolhia o filho mais velho pela experiência que o mesmo havia adquirido no convívio familiar. Segundo Azevedo, a terra de que o agricultor tira o sustento de sua família é um patrimônio inalienável da sua linhagem ou de sua famíliatronco, devendo persistir indivisa e com a mesma função econômica e social em poder do descendente capaz de o suceder naquele papel. (1975: 267). Ainda nessa direção, fica evidente o que já havia sido colocado anteriormente acerca das acentuadas diferenças de gênero nas relações de família. A mulher ficava restrita a certas atividades, não exercendo na sucessão a possibilidade de mando, de controle da propriedade e de participação administrativa. Para Azevedo (1975: 267), “esse papel e o correspondente status são tradicionalmente masculinos como partes dos atributos de chefe de família e cabeça de casal”. Outro detalhe na sucessão da propriedade, comentado por esse autor, é que a mesma permaneça apenas com um proprietário com o objetivo de que a propriedade não perca seu valor de módulo familiar. Nas heranças, as mulheres partilha343 HERÉDIA, V. • Família italiana no RS vam de bens móveis, roupas e até dinheiro. O dote ficava restrito a certos objetos, mas jamais o acesso à terra. Nas colônias italianas, já no século XX, os filhos (homens), quando casavam e formavam família, recebiam uma parte da terra, o que fomentou com o tempo o fracionamento das propriedades e modificou a tradição da concentração da terra na figura do pai. Segundo Costa, “os filhos homens, ao casarem, deviam ter sua terra. Muitas vezes era difícil comprála, dando sequência ao retalhamento que se transformou no minifúndio” ( 1976: 43). O trabalho e a religião eram valores fundamentais para a família italiana. Eram elementos de identidade cultural que transformavam os imigrantes. O trabalho fazia parte da vida familiar e, desde crianças, apreendiam as tarefas domésticas no trabalho da roça, no cuidado com os animais, no trabalho na horta, nas relações de troca, nas obrigações religiosas, nos cuidados com os próprios irmãos. Quando cresciam, substituíam os mais velhos e davam continuidade à vida familiar que envolvia uma complexidade de ações solidárias, baseadas na cooperação natural. O fato de viverem na mesma habitação estabelecia laços de cooperação, solidariedade, obediência e resignação. Muitas famílias, dependendo do tamanho do lote colonial em que viviam, reuniam até três gerações. O trabalho foi um dos elementos fundamentais na construção identitária do imigrante italiano. Pelo trabalho, o imigrante superou diversas barreiras e modificou o estigma que trazia de sua terra, marcado pela ideia de pobreza e miséria. Todos trabalhavam na família italiana, e, em muitas circunstâncias, as crianças deixavam de ir à escola para auxiliar os pais no trabalho do campo, na colheita e nas diversas atividades que faziam parte da manutenção da propriedade. Outro valor importante foi a religião que integrou e estimulou o espírito de solidariedade entre as famílias italianas. 344 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Por meio das práticas litúrgicas, eram alimentados e preservados os valores religiosos que traziam da Itália. A capela tornou-se um símbolo do grupo, parte fundamental da organização comunitária das colônias, onde as famílias revigoravam seus sentimentos de espiritualidade. As relações de vizinhança eram muito consideradas pela família italiana. Muitas vezes, adquiria maior prestígio do que as relações de parentesco. A proximidade entre os grupos estabelecia laços de solidariedade, marcados pela amizade. Nas necessidades, os vizinhos auxiliavam a família e se tornavam quase parte dela. Havia uma convivência entre essas famílias nas áreas rurais que tornaram as relações de vizinhança um fator importante no suprimento das necessidades básicas, já que minimizava muitas vezes os problemas decorrentes do isolamento. A passagem da família patriarcal para a família nuclear alterou os papéis sociais que a mantinham integrada. A família nuclear representou a dissolução do grande grupo mesmo que esse tipo de família continuasse ainda a ser numeroso. Vale lembrar que a família nuclear assumiu uma presença de destaque na sociedade italiana apenas no fim da Primeira Guerra Mundial decorrente do processo de urbanização e do empobrecimento dos trabalhadores agrícolas. Barbagli (2000) chama a atenção que houve um processo inverso no período entre as duas Guerras Mundiais. Justifica que o crescimento das cidades tornou-se mais lento, e o do campo se alargou devido à ampliação dos estratos “dos camponeses proprietários e dos que alugavam a terra mesmo que tenha diminuído aquele dos trabalhadores”. Fávaro justifica essa forma de nucleação devido às mudanças sociais que ocorrem a partir da Primeira Guerra Mundial. Coloca que, enquanto os homens eram recrutados pelos exércitos nacionais para defender os interesses de suas nações, as mulheres eram requisitadas para o mercado de trabalho. Diz 345 HERÉDIA, V. • Família italiana no RS então que “a unidade rural, cujo epicentro era a mulher mais velha, constituía-se, ainda, na grande força de agregação social dos indivíduos” (FÁVARO, 2002: 105.) No fim das guerras, a família não retomou o modelo tradicional e com isso sofreu alterações que antes haviam sido impostas pela necessidade maior e que essa condição não devolveu a mulher para o interno da sociedade rural. No Rio Grande do Sul, a família italiana rural manteve por muitas décadas os costumes que havia trazido da antiga pátria. A passagem da família extensa para a família nuclear ocorreu à medida que houve a migração do campo para a cidade, estimulada pelo processo de industrialização já na metade do século XX. A família extensa teve um papel fundamental na reprodução de hábitos e práticas culturais nas áreas rurais como se pode verificar em estudos sobre comunidades rurais. Dessa maneira, por meio de pesquisas sobre a história de famílias italianas que viviam em áreas rurais na Itália, observase que as mesmas possuíam características semelhantes das que viviam em áreas rurais no Brasil. Essa comparação pode ser elucidada em depoimentos como: Facevamo tutto noi. Gli uomini non vedevano nemmeno l’acqua da lavarsi gli occhi. La ragazza [la sorella nom sposata del marito] teneva pulita la camera di sua mamma, quella dei suoi fratelli. La suocera, quando si andava in campagna, che se iniciava próprio il lavoro grosso, allora lei faceva anche la mia camera, faceva tutto. E io la mattina, quando lei si alzava per iniziare a fare i lavori, io stavo dietro lei, cominciavo a spazzare dalla prima camera fino all’ultima e poi davo la polvere e quando era ora di andare in campagna lei aveva giá fato tutto. Alla mattina io l’aiutavo molto. C’era tutto il mangiare per i figli, i polli, i maiali, tutta quella roba lì. Si lavorava in campagna fino quando c’era luce. Nonc’erano ore. E cosi tutti. La sera avevo già lavorato abbastanza di giorno, erro stanca e andovo a letto. I piatti la sera non si lavavano, perché la mattina, mentre si scaldava la roba per i maiaili, li 346 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas lavavano anche i piatti. La sera in inverno filavamo. Prima si facevano tutte le robe, poi i bucato, si accomodavano tutte le calze e poi cominciava a filare, perché se volevi farti dele lenzuola la vecchia ti dava dieci chili di canapa e se uma li filava se faceva la tela, se non li filava la tela non la faceva. E allora per fare la tela bisognava filare. D’inverno filavamo fino alle 10,30, le 11. Gli uomini andavano fuori, in paese, o a letto. (BARBAGLI, 2000: 415). As características que aparecem em ambas são evidenciadas nos seguintes traços: na forma de constituir a família, na dimensão da família pela sua extensão, no elevado número de filhos, nas relações estabelecidas pelos papéis sociais, na organização do ciclo familiar, na vida associativa, na habitação, na forma de tratar o patrimônio, na herança da família e na questão da sucessão das relações de poder. É necessário ao tratar da família italiana, situar o papel da mamma com vistas a examinar a ambiguidade que esse papel assumia na estrutura familiar italiana, fazendo com que mesmo que a família se estruturasse de forma patriarcal, tinha nela a figura de uma mulher que desempenhava uma série de atributos na manutenção do grupo, nas relações de poder, de vizinhança e de parentesco. As dinâmicas familiares controladas pela figura da mamma mostram o poder que a mesma ocupava no grupo, legitimada pelas ações de proteção que assumia ocultamente, dividida entre as diversas representações que a caracterizavam. Na figura da mamma, encontra-se a presença da feminilidade, escondida na mulher obediente, trabalhadora, que respeita as regras e defende, a qualquer custo, sua prole; de empreendedora na reprodução das condições materiais no circuito doméstico e no cuidado dos bens familiares, e de dominadora, que supera sua fragilidade pela ação da racionalidade imposta pelas necessidades da luta pela sobrevivência. A crença de que a mulher era um sexo mais frágil, gerou uma condição de subordinação ao espaço interno na família, 347 HERÉDIA, V. • Família italiana no RS mantido por algumas gerações como campo de exercício de poder. Essa condição, marcada pela sua capacidade de reprodução, dá à mulher, pela maternidade um status social carregado de contradições. Ao mesmo tempo que exerce esse poder sobre os membros do seu grupo, aceita o código de posturas da sociedade que a coloca num papel de subordinação social, marcado pelos valores da época, cujas relações não eram igualitárias entre os sexos, e a mulher só poderia desempenhar papéis subalternos. A maternidade legitimava o poder exercido pela mamma. Ela conhecia os segredos do grupo e adquiria um espaço de controle sobre os membros da família. Segundo Fávaro (2002, p. 120), os papéis que exercia lhe davam domínio sobre aqueles pelos quais era responsável. “Ser mãe e num segundo momento ser sogra, viabilizava o exercício de um domínio muito mais denso e direto do que o poder do pai, porque efetivo desde o nascimento do primogênito”. Dessa forma, a autoridade materna se estrutura pela capacidade de reprodução. O poder de reprodução dá à mulher um status de cuidadora, mas também daquela que planeja o sustento do grupo, das economias domésticas, das compras e trocas. Exerce, ao longo de sua vida, uma autoridade sobre os filhos e por meio deles também da família pela condição de mãe. Considerações finais A formação e a transmissão de valores, que são a base dos comportamentos que ocorrem na vida da colônia italiana, provêm da existência de uma série de instituições que foram trazidas na bagagem cultural dos imigrantes e que pela sua importância foram mantidas vivas nas estruturas que se originaram na nova terra. A família é uma dessas instituições que sobreviveram aos períodos históricos e que foi a base da trans- 348 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas missão dos valores humanistas, como: a religião, a educação, a preservação da propriedade, o amor ao trabalho. A família italiana utilizou como modelo a família patriarcal cujo chefe exercia o papel principal do grupo, decidindo o destino de todos os seus membros. A mulher, mesmo sendo responsável pela reprodução da prole, exercia um papel secundário, muitas vezes escondido nas jornadas contínuas de trabalho que lhe cabiam. As atividades domésticas que envolviam a preparação do alimento, o cuidado com os filhos, o trabalho na roça, no campo e na horta lhe eram atribuídas. A família numerosa tornava o grupo mais forte, uma vez que mais braços eram colocados no trabalho. A família, seja a da cidade, seja a que vivia no campo possuía certa estabilidade. Isso significa que seguiam as regras de seus antecessores e respeitavam o código cultural estabelecido anteriormente. Observou-se que as normas de sucessão eram mantidas, deixando a mulher fora da herança da propriedade, tendo como dote apenas objetos que lhe garantissem a vida em família, voltada para o casamento. A religião foi um fator importante para a sustentação da família italiana pela força que o Catolicismo representava na vida coletiva dos imigrantes. Influenciava o comportamento da família e seu poder imperativo presente nos discursos religiosos, agia como poder de coerção na educação dos filhos e nas regras entre os cônjuges. Exercia um papel de controle. Os ritos e as liturgias religiosas eram observados pela família que seguia os preceitos religiosos com muita fé, crença e fervor. A religião foi um dos elementos que uniu os italianos e garantiu a devoção à medida que seguiam as orientações dos religiosos. Por meio da religião, a vida coletiva das comunidades se integrava e era motivação para um forte espírito associativo. A família, como instituição, contribuiu para a manutenção do sistema social. Vista pelos italianos como uma instituição sagrada, teve papel fundamental na reprodução da cultura, 349 HERÉDIA, V. • Família italiana no RS dos valores e das relações sociais. Foi sempre o grupo de apoio, de proteção pela crença que tinha na transmissão das regras o fim de integrar o indivíduo à sociedade pelos ensinamentos básicos de convívio coletivo. A formação da consciência coletiva começava na família, no aprendizado do modo de ser coletivo, nas ações dos pais e avós, nas regras impostas e nas negociadas, na reprodução dos hábitos e dos costumes. A família se colocava como elemento de conservação social à medida que assumia o papel de sustento econômico do grupo pela interdependência que estabelecia entre seus membros. Sob o comando do pai, a divisão do trabalho expressava os diversos papéis que os membros do grupo desempenhavam, e essa integração se repercutia na comunidade como forma definida de controle social, de estratificação, de proteção e da própria reprodução. Ao homem, o poder, à mulher, a subalternidade. Os papéis sociais definiam o grau de subordinação e de obediência. Referências AZEVEDO, Thales de. Italianos e gaúchos: os anos pioneiros da colonização italiana no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação; Instituto Estadual do Livro, 1975. BARBAGLI, Marzio. Sotto lo stesso teto: mutamenti dela famiglia in Italia dal XV al XX secolo. Bologna: Mulino, 2000. BAREA, José Dom. A vida espiritual nas colônias italianas do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST, 1995. COSTA, Rovílio. Antropologia visual da imigração italiana. Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: EDUCS, 1976. COSTA, Rovílio et al. Imigração italiana no Rio Grande do Sul: vida, costumes e tradições. Porto Alegre: EST, Sulina, 1974. FÁVARO, Cleci Eulália. Imagens femininas: contradições, ambivalências, violências. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2002. 350 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas FRANZINA, Emílio. A grande emigração: o êxodo dos italianos do Vêneto para o Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. HERÉDIA, Vania Beatriz Merlotti. L’industria tessile nella zona coloniale italiana nel Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado), Università degli Studi di Genova. Genova, Itália, 1992. ______.Processo de industrialização da zona colonial italiana. Caxias do Sul: Educs, 1997. ______. A família na contemporaneidade: novos arranjos familiares. In: KUIAVA, E.; STEFANI, Jaqueline (Org.). Identidade e diferença: filosofia e suas interfaces. Caxias do Sul: Educs, 2010, p. 295-316. LUZZATTO, Gino. L’economia italiana dal 1861 al 1914. Studi Economiche in richerche di storia economica italiana nell’etá del risorgimento. Milano: Banca Comerciale Italiana, 1963. MANFROI, Olívio. A colonização italiana no Rio Grande do Sul: implicações Econômicas, Políticas e Culturais. Porto Alegre: Grafosul; IEL,DAC/SEC, 1975. SERENI, Emilio. La questione agraria nella rinascità nazionale italiana. 2. ed. Torino: Einaudi, 1975. TEDESCO, João Carlos. Um pequeno grande mundo: a família italiana no meio rural. Passo Fundo: Editora da UPF, 2001. TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989. 351 352 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas Sobre os autores e as autoras Ana Silvia Volpi Scott: Professora Adjunta II do Programa de Pós Graduação em História da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos/ RS), atua na linha de pesquisa “Migrações, Territórios e Grupos Étnicos”, e está na Coordenação do mesmo Programa. Atualmente é Secretaria Geral da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (biênio 20132014) e integra o Panel on Historical Demography (2014-2017) da International Union for the Scientific Study of Population (IUSSP). Foi Coordenadora-adjunta do Comitê de Ciências Humanas e Sociais da FAPERGS. É Graduada e Mestre em História pela USP, e Doutora em História & Civilização, pelo Istituto Universitario Europeo – Florença/ Itália. Em Portugal foi ProfessoraConvidada na Universidade do Minho. Naquela instituição esteve integrada à Graduação em História e aos Mestrados em “História da População” e em “História da Colonização e das Migrações Portugal – Brasil”. Também foi pesquisadora, do NEPS (Núcleo de Estudos de População e Sociedade), na mesma instituição. De volta ao Brasil, atuou no Programa Associado de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá e da Universidade Estadual de Londrina, como Professora-Visitante, na linha de pesquisa “Fronteiras e Populações”. Posteriormente, foi pesquisadora do NEPO (Núcleo de Estudos de População/Unicamp) e colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Demografia também da Unicamp. Publicou livros, capítulos de livros e artigos no Brasil e no Exterior, sobre a história da família, história da população, demografia histórica e imigração portuguesa. Foi Coordenadora e Vice-Coordenadora do GT População e História da ABEP (Associação Brasileira de Estudos Populacionais). É integrante do 353 Sobre os autores e as autoras Grupo de Pesquisa CNPq Demografia & História e Pesquisadora 1D do CNPq. É membro da ABEP, ANPUH, ALAP e IUSSP. Bruno Stelmach Pessi: Possui graduação em História pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), onde defendeu o Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “O impacto do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses (c.1850-c. 1874)”. Coordenou o “Projeto Documentos da Escravidão no Rio Grande do Sul”, uma parceria da Associação dos Amigos do Arquivo Público e o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, o qual resultou na publicação de três catálogos seletivos: “O escravo deixado como herança: Inventários”, “O escravo deixado como herança: Testamentos” e “O escravo como réu ou vítima: Processos-crime”. É Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo entre 2010 e 2012. Desde 2012 é professor de História nas Séries Finais do Ensino Fundamental da rede municipal de ensino de Guaíba, Rio Grande do Sul. Denize Terezinha Leal Freitas: Possui Licenciatura em História pela UNISINOS e incompleta em Engenharia Ambiental na mesma instituição. Mestre em História Latino-Americana pela UNISINOS e Doutoranda em História pela UFRGS. Especialista em “O ensino da Geografia e da História: saberes e fazeres na contemporaneidade” pela UFRGS. Vice-Coordenadora do Grupo de Trabalho da ANPUH/RS História da Infância, Juventude e Família (2012-2014). Co-editora e Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Últimas publicações: SILVA, J. F.; FREITAS, D. T. L. O nascer e o casar através da trajetória de Anna Rangel: uma possibilidade de estudo das sensibilidades a partir da demografia histórica. Revista Latino-Americana de História, v. 1, p. 74-88, 2012. SILVA, J. F.; FREITAS, D. T. L. O marido e o 354 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas ninho não é escolhido: estratégias matrimoniais dos expostos – o cruzamento de fontes paroquiais da Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre 1772-1837. Revista Latino-Americana de História, v. 1, p. 143-156, 2012. REITAS, D. T. L. A maternidade: um desejo ou um propósito? Reflexões a partir do papel maternal das mulheres durante o período colonial. In: RAMOS, E. H. C. da L; ARENDT, I. C; WITT, M. A. (Org.). A história da imigração e sua (s) escrita (s). São Leopoldo: Oikos, 2012. Fábio Kühn: Possui Licenciatura e Mestrado em História pela UFRGS. Doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Publicações relevantes: Gente da Fronteira: sociedade e família no sul da América Portuguesa – século XVIII. In: GRIJÓ, L. A; KÜHN, F.; GUAZZELLI, C. A. B; NEUMANN, E. (Org.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. KÜHN, F. As redes da distinção: familiares da Inquisição na América Portuguesa do século XVIII. Varia História (UFMG), v. 26, p. 177-195, 2010. KÜHN, F. Os interesses do governador: Luiz Garcia de Bivar e os negociantes da Colônia do Sacramento (1749-1760). Topoi (Rio de Janeiro), v. 13, p. 29-42, 2012. Jonathan Fachini da Silva: Possui graduação em História pela UNISINOS e graduação incompleta de Filosofia na UNISINOS. Atualmente é mestrando em História pela UNISINOS. Atua nas áreas da Demografia Histórica, História da Família e da População. Secretário do Grupo de Trabalho da ANPUH/RS História da Infância, Juventude e Família (20122014). Tendo como principais temáticas: demografia histórica, criança exposta, população porto-alegrense durante o período Colonial e Imperial. Co-editor da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Últimas publicações: SILVA, J. F.; FREITAS, D.T.L. O nascer e o casar através da trajetória de Anna Rangel: uma possibilidade de estudo das sensibilidades a partir 355 Sobre os autores e as autoras da demografia histórica. Revista Latino-Americana de História, v. 1, p. 74-88, 2012. SILVA, J. F.; FREITAS, D. T. L. O marido e o ninho não é escolhido: estratégias matrimoniais dos expostos – o cruzamento de fontes paroquiais da Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre 1772-1837. Revista Latino-Americana de História, v. 1, p. 143-156, 2012. SILVA, J. F. Destinos Incertos: Um olhar sobre a exposição e a mortalidade infantil em Porto Alegre (1772-1810). In: RAMOS, E. H. C. da L; ARENDT, I. C; WITT, M. A. (Org.). A história da imigração e sua(s) escrita(s). São Leopoldo: Oikos, 2012. José Carlos da Silva Cardozo: Historiador, Sociólogo e Professor. Licenciado em História pela UNISINOS, Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS e Mestre em História LatinoAmericana pela UNISINOS. Atualmente está terminando a Licenciatura em Ciências Sociais na UFRGS e Doutorado em História Latino-Americana na UNISINOS. Integra como pesquisador, o Grupo de Pesquisa-CNPq: História, Cultura e Imaginário e, como técnico, o Grupo de Pesquisa-CNPq: Demografia e História. Secretário da ANPUH/RS (2012-2014) e Coordenador do Grupo de Trabalho da ANPUH/RS História da Infância, Juventude e Família (2012-2014). Editor e membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais e Ex-editor da Revista Latino-Americana de História. Bolsista CAPES/MEC. Últimas publicações: CARDOZO, J. C. S. Orfani italiani no Juízo dos Órfãos (final do século XIX). Anos 90 (UFRGS), v. 20, p. 273-293, 2013; CARDOZO, J. C. S. O gênero no Juízo dos Órfãos de Porto Alegre. Esboços (UFSC), v. 20, p. 121-139, 2013; CARDOZO, J. C. S. A Sociedade Alemã de Beneficência e a proteção aos filhos órfãos no final do século XIX. Métis (UCS), v. 11, p. 67-80, 2012. Luís Augusto Farinatti: Possui graduação em História e Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestrado em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Doutorado em His356 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas tória Social pela UFRJ (Univesidade Federal do Rio de Janeiro). Professor do Departamento e Pós-Graduação em História na UFSM. Desenvolve pesquisas sobre a História do Brasil do século XIX, atuando principalmente nos seguintes temas: história agrária, hierarquias sociais, história da família, fronteira e construção do estado no Brasil. Últimas publicações: FARINATTI, L. A. E. A espada e a capela: relações de compadrio dos oficiais de milícia na fronteira meridional do Brasil (18161835). História Unisinos, v. 16, p. 294-306, 2012. FARINATTI, L. A. E. Os escravos do Marechal e seus compadres: hierarquia social, família e compadrio no sul do Brasil (c. 1820-c.1855). In: XAVIER, R. C. L. (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo: Alameda, 2012, p. 143177. RIBEIRO, J. I.; FARINATTI, L. A. E. Interesses em disputa: a criação da Guarda Nacional numa localidade de fronteira (Alegrete, Rio Grande do Sul). In: COMISSOLI, A.; MUGGE, M. H. (Org.). Homens e armas. Recrutamento militar no Brasil – Século XIX. São Leopoldo (RS): Oikos, 2011, p. 95-112. Marcos Antônio Witt: Possui Licenciatura e Mestrado em História pela UNISINOS e Doutorado em História pela PUCRS; Professor-pesquisador no Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS; professor no Curso de Graduação em História e no Curso de Especialização em História do Rio Grande do Sul nesta mesma universidade; associado ao Instituto Histórico de São Leopoldo. Autor de: Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas. São Leopoldo: Oikos, 2008; Política no Litoral Norte do Rio Grande do Sul: a participação de nacionais e de colonos alemães – 1840-1889. São Leopoldo, 2001. Dissertação [Mestrado]. História da América Latina. Programa de Pós-Graduação em História – UNISINOS, 2001; e De Mecklenburg-Schwerin para o mundo ou de “ladrão de cavalo” à condição de colono: imigração alemã. In: DREHER, M. N. (Org.). Migrações: mobilidade social e espacial. São Leopoldo: Oikos, 2010, p. 215-221 [CD-ROM]. 357 Sobre os autores e as autoras Martha Daisson Hameister: Possui Licenciatura em História pela UFRGS, Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ (Univesidade Federal do Rio de Janeiro). Atualmente é professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Últimas publicações: HAMEISTER, M. D. Metodologia da Pesquisa com Registros Paroquiais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas, v. 7, p. n, 2012. HAMEISTER, M. D.; GIL, T. L. Nem tudo é destruição: as guerras, as famílias e formação das hierarquias sociais no extremosul do Estado do Brasil. In: POSSAMAI, P. (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: estudos de história militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 345358. HAMEISTER, M. D. O uso dos registros batismais para o estudo de hierarquias sociais no período de vigência da escravidão. In: XAVIER, R. C. L. (Org.). Escravidão e Liberdade: Temas, Problemas e Perspectivas de análise. São Paulo: Alameda, 2012, p. 97-122. Martin Norberto Dreher: Possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST), São Leopoldo/RS (19661970), e doutorado em História da Igreja pela Universidade de München Alemanha (1972-1975). É professor emérito, tendo atuado na Escola Superior de Teologia (1979-1994) e na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1995-2011) nos níveis de graduação e pós-graduação em Teologia e História. Sua produção está ligada à História da Igreja na América Latina e à História da Imigração e Colonização na América Latina. Entre suas publicações destacam-se: Igreja e Germanidade (1984); Coleção História da Igreja. 4 vls (1993-1999); Degredados de Mecklenburg-Schwerin e os primórdios da Imigração Alemã no Brasil (2010). Natália Pinto Garcia: Possui bacharelado em História pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Especialização em História do Rio Grande do Sul pela UNISINOS 358 História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas e Mestrado em História pela UNISINOS. Doutoranda em História pela UFRGS. Publicações mais relevantes: “Entre os Laços das senzalas: o parentesco simbólico entre os escravos em Pelotas (1830/1850)”. In: V Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre, 2011, pp. 1-20; “Parentes, Aliados, Inimigos: o parentesco simbólico entre os escravos na cidade de Pelotas, Séc. XIX”. In: XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo, 2011, pp. 1-16; “Bênçãos, laços e alianças sociais: a família escrava em Pelotas, 1830/1850”. In: IX Mostra de Pesquisa APERS. Porto Alegre, 2011, pp. 227-244. Paulo Roberto Staudt Moreira: Possui Licenciatura em História pela UNISINOS, Mestrado e Doutorado em História pela UFRGS e Pós-Doutorado pela UFF (supervisão da professora Dra. Sheila Faria). Bolsista produtividade CNPq e excoordenador do PPGH-UNISINOS, principais publicações: MOREIRA, P. R. S., ELMIR, C. Odiosos Crimes: O Processo 5616 e os crimes da Rua do Arvoredo. São Leopoldo: Oikos Editora / Editora UNISINOS, 2010, p. 325; MOREIRA, P. R. S. Entre o deboche e a rapina: Os cenários sociais da criminalidade popular (Porto Alegre – século XIX). Porto Alegre: Armazém Digital, 2009 p.325; MOREIRA, P. R. S., TASSONI, T. Que com seu Trabalho nos Sustenta: As Cartas de Alforria de Porto Alegre (1748 / 1888). Porto Alegre: EST, 2007, p. 800; MOREIRA, P. R. S. (e outros). Comunidade Negra de Morro Alto. Historicidade, Identidade e Territorialidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p.484; MOREIRA, P. R. S. Os Cativos e os Homens de Bem – Experiências Negras no Espaço urbano. Porto Alegre: Edições EST, 2003, p.356. Silmei de Sant’Ana Petiz: Possui graduação em História pela UNISINOS, Mestrado em História pela UFRGS, Doutorado em História pela UNISINOS. Parecerista do Comitê de Análise dos resumos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – São Paulo. Principais publicações: SOARES. M. 359 Sobre os autores e as autoras de C; PETIZ, S. de S. Enfermidades de escravos no sul do Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 15, p. 8-28, 2008. PETIZ, S. de S. Buscando a Liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: Editora UPF, 2006. PETIZ, S. de S. A reconstituição de famílias escravas: parentesco e famílias escravas no interior de propriedades de Matheus Simões Pires. Margens (ABEP. Online), v. 1, p. 86-102, 2008. Vania Herédia: Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais pela PUCRS. Mestrado em Filosofia pela PUCRS e Doutorado em História pela Universidade de Gênova (Unige) – Sede Descentralizada em Turim, Itália e Pós-Doutorado em História Econômica pela Universidade de Padova (Unipd). Professora titular da UCS, atuando na graduação e na pós-graduação dessa Universidade. Tem experiências de pesquisa na área de Sociologia e de História. Possui diversas publicações nas áreas de história econômica, história social, mundo do trabalho e estudos demográficos, incluindo o tema migrações e envelhecimento populacional. Faz parte do Instituto Histórico de São Leopoldo desde 2006 e participa do Núcleo de Estudos de História, Patrimônio e Região da Universidade de Caxias do Sul. Autora de vários livros tais como: O Mito do padre entre descendentes de imigrantes italianos (1978); Processo de industrialização na zona colonial italiana (1997) e Memória e Identidade (2007), entre outros. 360 9 788 578 43 426 7