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documenta Ω História do livro no Amazonas O voo do tambaqui e das primeiras edições do Amazonas rômulo nascimento1 sse artigo faz parte de uma investigação maior que trata do circuito gráfico amazonense desde 1851, quando a primeira oficina tipográfica começou a imprimir, até o início do século xx. A sinuosa linha que auxilia o desenho desse longo percurso é composta pelas impressões deixadas pelas oficinas tipográficas locais. As Typographias eram um lugar de trabalho duro, mas também de leitura, atividade necessária sobretudo na composição e revisão, mas também na impressão, na encadernação e até na comercialização do produto impresso. A oficina tipográfica era também lugar de variadas trocas sociais, contemplando diversas interações. Um espaço de trabalho dividido entre a composição e a arte negra da impressão, mas também de comércio de serviços e impressos, de troca de informações e ainda um local de formação prática do tipógrafo, dentre outros. Se a história da Imprensa tem uma antiga tradição da qual o exemplo mais destacado é dado por João Baptista de Faria e Souza, atualmente, tem-se os valorosos esforços do Programa de Pós-Graduação em História da Ufam.2 No entanto, a história do livro e dos chamados impressos efêmeros ainda se configuram como territórios pouco explorados no Amazonas. No caso das folhinhas [calendário], cartas de jogar, rótulos, cartazes, entradas de teatro, convites, certificados, menus e outros produtos pertencentes à grande família dos impressos efêmeros ou avulsos, há a dificuldade incontornável de encontrar exemplares destes. Visto que esses impressos eram descartados após o uso, não eram colecionados ou entendidos como documentos de valor, por isso tão poucos sobreviveram. No entanto, a maior parte dos produtos gerados pelas oficinas gráficas eram e são desta natureza. Projetos anônimos, quase sempre populares e que tornam tangíveis uma ampla gama de interações que se realizam no presente e no cotidiano, para depois sumirem do mapa e dos acervos. E — — • 1. Doutorando em Design pela Escola Superior de Desenho Industrial – Esdi/uerj, orientado pela professoraLigia Medeiros. Bolsista Faperj, mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas [2014] e realizador do projeto Escambo – trocas impressas e artes visuais. • 2. Além de diversos pesquisadores como Genesino Braga, José Bessa Freire e Maria Luiza Ugarte Pinheiro.  Revista do igha, n.o 1 { 2020, série Centenário } · 187 Os livros sempre foram considerados objetos de valor, simbólico, mas também monetário, sobretudo no século xix quando a “arte typographica” começou a dar frutos impressos em terras brasileiras. Em 1747 houve a tentativa frustrada do tipógrafo português Antonio Isidoro da Fonseca e sua “segunda officina”, que funcionou por pouco tempo no Rio de Janeiro, sendo remetida de volta a Lisboa. A impressão aportou oficialmente com a corte portuguesa em 1808, quando esta fugia do cerco de Napoleão e, chegando ao Rio de Janeiro, fundou a Impressão Régia. Três anos depois a primeira oficina particular estava em funcionamento na Bahia com a Typ. de Silva Serva [1811] e no Pará em 1820-1821. Foi somente com a elevação da comarca do Amazonas à categoria de província em 1850 que, um ano depois, a primeira oficina tipográfica começou a funcionar. O primeiro jornal foi batizado em homenagem a esse acontecimento – Cinco de Setembro e começou a circular em 3 de maio de 1851. Manuel da Silva Ramos foi o responsável pelo funcionamento da primeira Typographia local. Ele era tenente da Guarda Nacional e também um experiente tipógrafo formado na oficina tipográfica paraense de José Honório dos Santos. A Typographia de Manuel da Silva Ramos produziu o suporte material ao governo provincial ao fornecer-lhe os impressos necessários ao seu funcionamento, assim como também divulgava na sua pequena folha semanal os atos, o expediente e os editais do governo. Com a posse de João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha como primeiro presidente da província em 1852, o periódico foi renomeado para A Estrella do Amazonas. Em julho de 1856 aconteceram duas significativas mudanças, o Estrella do Amazonas começou a ser publicado duas vezes por semana. E a oficina tipográfica passou à propriedade de Francisco da Silva Ramos, irmão de Manoel, e se manteve em funcionamento até 1866.3 Nesse período a Typ. dos Silva Ramos sobreviveu com grandes dificuldades e foi objeto de constantes críticas de seu principal cliente, o governo do Amazonas. Seus produtos impressos, tanto o jornal Estrella como as edições e folhetos, são modestos graficamente e possuem, quase sempre, uma impressão irregular. No início da década de 1860 circulavam outros jornais, como o Catechista, de 1862 e as edições oficiais passaram a ser publicadas em oficinas tipográficas de outras províncias, no Pará, Maranhão e, sobretudo em Pernambuco. Outras Typographias surgiram, como a do jornal Amazonas, de Antonio Cunha Mendes. E essa narrativa histórica prossegue com a formação e estabelecimento de diversos agentes profissionais com seus saberes e produtos na cidade de Manáos. Ao se buscar o estudo desse caminho gráfico reforça-se a crença de que “ter uma História significa existir” e que é preciso insistir nessa escrita e “olhar de frente as nossas verdades, as nossas opções ou a falta delas” de acordo com — — • 3. Segundo Faria e Souza (1908, p. 10) a oficina continuou funcionando após a morte de Francisco José em 26 de outubro de 1865. O jornal Estrella do Amazonas circulou pela última vez em 30 de junho de 1866 e sua oficina tipográfica foi arrematada por Antonio da Cunha Mendes. · 188 Márcio Souza (2009, p. 15).4 Uma posição reforçada com a contribuição de Chartier (2009, p. 14-15) que, se referindo a Michel de Certeau (1975), fala do paradoxo que a historiografia traz inscrita em seu nome ao relacionar “dois termos antinômicos: o real e o discurso”. Na mesma passagem o eminente pesquisador dor francês diz que: “A história como escritura desdobrada tem, então, a tripla tarefa de convocar o passado, que já não está num discurso no presente; mostrar as competências do historiador, dono das fontes; e convencer o leitor”. Essa também é a motivação do designer amazonense e pesquisador: encontrar e registrar os produtos impressos no passado e estudá-los, não como simples mercadoria ou neutro suporte. Eles são veículos para a difusão de ideias e parte integrante da cultura material e visual local, portanto, carregado de intenções, representações e de disputas. Dessa forma, pode-se ler neles a complexidade da comunidade humana para a qual tantos objetos impressos foram produzidos, inclusive observando criticamente os discursos neles impressos, quase sempre feito pelas elites locais. Embora, nas suas margens e notas, se possa ter relances do cotidiano indígena da cidade e saber de outras vidas e histórias. A narrativa dos agentes e profissionais gráficos nesses anos inicias seguiu com muitas dificuldades, tanto técnicas e materiais, quanto de constante falta de pessoal qualificado. Essa situação cheia de limitações se refletia nos erros de composição, improvisos e na qualidade irregular de impressão que se notou ao pesquisar os periódicos, folhetos e edições oficiais do Amazonas desse período. Para realizar essa pesquisa foram consultadas bibliotecas e coleções em Manaus e no Rio de Janeiro, dentre elas, os acervos da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – ihgb. Nesse último, foi onde se encontrou um livro de poesia com o curioso título de Vôos do Tambaqui, de autoria do “eximio poeta” Ricardo José Correa de Miranda de 1869, sendo assim uma das primeiras edições particulares e poéticas impressas no Amazonas. No mesmo acervo foi identificada outra obra de grande interesse que, assim como a edição de poesia, parece ter sido completamente ignorada até agora – o pequeno [10 x 14 cm] Almanack Administrativo e Commercial do Correio de Manáos da Província do Amazonas para o Anno de 1870. Também publicado pela Typ. do Correio de Manáos. Esse foi o primeiro almanaque produzido localmente e possui 240 páginas e, no ano seguinte teve a companhia do almanaque de 1871.5 Não se encontrou referências ao livro Vôo do Tambaqui em nenhum trabalho consultado. Genesino Braga (1987, p. 77-81) informa que em 1871 funcionava um — — • 4. Com essa perspectiva foi composto o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira de 2019 – “Histórias para ninar gente grande”, que assim cantaram sua/nossa história: “[...] Brasil, meu dengo / A Mangueira chegou / Com versos que o livro apagou / Desde 1500 / Tem mais invasão do que descobrimento / Tem sangue retinto pisado / Atrás do herói emoldurado / Mulheres, tamoios, mulatos / Eu quero um país que não está no retrato”. A escola foi campeã com esse enredo. • 5. Ver o artigo Almanaques do Amazonas (1870 a 1927): impressões de um tempo, que registra nessa década o almanaque de 1874 e, recentemente, identificamos outro no acervo da Biblioteca do Museu Imperial de Petrópolis [rj], publicado em 1875. · 189 gabinete de leitura no Lyceu e que dois anos depois havia duas livrarias funcionando em Manaus. Registrou ainda a publicação de Nuvens Medrosas, livro de poeias de Torquato Tapajoz impresso no Rio de Janeiro em 1873. No ano seguinte Genesino informa que a Typographia do Amazonas publicou o livro Pai Domingos, ou o auctor de um crime nefando, sem indicar a autoria.6 Na pesquisa realizada registrou-se outras obras publicadas pela Typ. do Commercio do Amazonas: Nevoeiros [1871], de Torquato Tapajoz; Corveta Diana [1873], de A. von Hoonholtz e a Grammatica da Lingua Brazilica Geral, Fallada pelos Aborigenes das Provincias do Pará e Amazonas escrita por Pedro Luiz Sympson em 1877. Essa edição tem um retrato do autor, provavelmente impresso em litogravura, processo de impressão que não estava em uso em Manaus na época.7 Todas as edições e referências encontradas eram portanto, posteriores ao Vôo do Tambaqui de 1869. Buscou-se o auxílio de pesquisadores locais e um deles, o doutor Allison Leão, que era então editor da Universidade do Estado do Amazonas, se interessou e viabilizou a digitalização da obra junto ao ihgb. A intenção era estudar e reeditar a obra que, segundo informações recentes, está próximo de acontecer. Assim, depois de 151 anos, a obra voltará a circular pela cidade, agora neste estranho século xxi. O estudo aqui apresentando se propõe a fazer uma leitura gráfica e editorial de Vôos do Tambaqui. Destacando-o como um marco da diversificação e desenvolvimento do circuito gráfico amazonense. Diferença notada ainda no funcionamento de cinco oficinas tipográficas em 1869,8 a publicação de diversas edições, de quatro almanaques, das primeiras revistas e de jornais no interior do Amazonas.9 Além do funcionamento de livrarias e gabinetes de leitura em Manaus. Um conjunto de agentes, profissionais e instituições estava se formando, e esse desenho que se busca descrever com a tese que se está concluindo. · O PRIMEIRO VOO Além das edições oficiais, folhetos, incluindo algumas orações, e raras referências a livros que observamos nos jornais de 1851 a 1869, ainda não tinha sido avistada uma edição particular produzida em terras amazonenses. Identificou-se apenas algumas breves notícias sobre a circulação de livros pela leitura de alguns anúncios de lojas que, dentre outros produtos, ofereciam almanaques, compêndios e outros. Ou na reclamação de um leitor que queria a devolução de seus livros. As — — • 6. Esta obra causou escândalo quando foi publicada e tem uma interessante história que descrevemos em nossa tese, ainda que não tenhamos encontrado nenhum exemplar dela. • 7. Talvez o retrato tenha sido impresso em Belém, onde funcionava, desde 1871, a oficina litográfica de Hans-Carl Wiegandt. • 8. As Typographias registradas no almanaque de 1870, todas em Manaus, tinham o nome dos jornais que então publicavam: do Correio de Manaos, do Amazonas, do Commercio do Amazonas, do Catechista e da Reforma Liberal. • 9. Em 1876 foram publicados seis números da Revista do Amazonas e em 1878 a revista Echo Militar. Também nesse período, em Itacoatiara, foram publicados os jornais: Itacoatiara [1874] e o Foz Madeira [1876]. · 190 Figura 1 – Capa, folha de rosto e poema de abertura da edição Vôos do Tambaqui [1869]. edições que aqui circulavam eram provenientes de outras províncias e países, onde também foram impressas as obras de autores residentes ou nascidos no Amazonas. Passados dezoitos anos da instalação da primeira oficina a cidade de Manaus a Typographia do Correio de Manáos compôs e imprimiu esse incomum produto impresso no Amazonas – um livro de poesia. O proprietário da oficina tipográfica era o bacharel Alfredo Sergio Ferreira, funcionou por apenas dois anos e ficava na Rua da Independencia, 12. O título da edição – Vôos do Tambaqui, é uma provocação, e uma defesa do humor e da poesia como forma de recriação da realidade, nem que seja pelo breve momento de espanto ou sorriso ao se deparar com um amazônico peixe voador. Um poeta era um estranho ser na fauna local desse período, alguns foram registrados de forma acanhada nas páginas dos jornais locais. Muitas vezes ocultando a autoria de seus poemas em abreviações e pseudônimos. Muito diferente do papel assumido por um autor que precisa organizar e editar sua produção poética em um volume, onde se faz necessário fazer ajustes, cortes e correções necessárias para que os textos, ou no caso os poemas, pudessem ser compostos e impressos pela oficina tipográfica. A edição se configura como um produto impresso construído a várias mãos e tem exigências gráficas e cuidados diferentes do jornal. Ricardo José Correa de Miranda, o autor, era paraense e é provável que tenha vindo para Manaus junto com o primeiro presidente da província, pois seu nome aparece, junto com diversas outras testemunhas, ao final da ata da posse do primeiro governo. Assim, em 1852 já estava residindo em Manaus, seu nome aparece · 191 numa relação de empregados da Secretaria da Província como amanuense, e teve diversas ocupações antes e depois. Na folha de rosto do Vôos do Tambaqui ele se apresentou como oficial da Secretaria do Governo da província e que, dentre outras ocupações, foi escrivão do vapor Pará, e escrevente do arsenal da marinha da corte, da corveta União, da fragata Principe Imperial e de outros “navios d’alto bordo”. Também foi secretário da Instrução Pública do Amazonas por volta de 1868 e se aposentou como amanuense em 5 de outubro de 1872. O livro tem 58 páginas e seu formato é de 13 x 19,6 cm. Editorialmente é composto por uma parte pré-textual contendo apenas folha de rosto, um poema de abertura e uma breve apresentação. Seu conteúdo foi organizado em três partes: 1. “Miscelanea”; 2. “Ao Racionalismo” e 3. “Vaporosa e enigmática”. Antes de se apresentar ou de iniciar a leitura do livro, o poeta se apressou dizer, no poema de abertura, que: O Tambaqui é peixe bom Comida de delicias bôa, Assado, frito ou cosido, leve-se a boca, Que pelas guelas abaixo vôa (*)10 Amados leitores, Dizei-me senhores? O Tambaqui, então, Si vôa ou não? Na apresentação do livro intitulada “Ao leitor”, o autor diz que a publicação de suas “producções, evacuações da minha inteligência” só foi possível com o incentivo dos amigos. Dentre os quais agradece a “benevola potecção do ilm. sr. dr. Alfredo Sergio Ferreira”, proprietário da oficina tipográfica que publicou seu trabalho. Quando se folheou a obra pela primeira vez ficou claro que era uma edição graficamente incomum. Suas páginas, para o leitor de hoje, parecem desordenadas e confusas dada a quantidade de elementos gráficos utilizados. Embora essa variação confira diferentes tons e contrastes à página. Depois, com maior estudo e detalhamento foi possível fazer uma leitura mais atenta da composição gráfica, encontrando as linhas, margens e algumas proporções que orientaram a sua paginação [Fig. 2]. Antes, os prelos e equipamentos gráficos locais tinham produzido apenas edições e folhetos oficiais compostos, quase sempre de maneira muito modesta: uma simples coluna de texto justificado e pouca variação gráfica. — — • 10. “(*) N’este canto mostra o poeta no sentido figurado, que os zoilos e os parasitas litterarios tem querido lançar sobre esta denominação, que só serve de emolação aos irmãos predilectos do canto da Piaga”. Essa é a primeira de muitas notas que o livro possui, incluindo o uso de versalete e itálicos, nela há referência ao “Canto da Piaga”, título de um poema de Gonçalves Dias. · 192 A capa do livro foi impressa em um papel de cor esverdeada, com uma cercadura ornamentada tendo a composição levemente assimétrica [Fig.1]. O título da obra foi composto de forma eclética, pois cada uma das três partes de Vôos do Tambaqui utilizou famílias tipográficas diferentes, incluindo tipos toscanos em “tambaqui”, todas em caixa alta. Há ainda a presença de alguns improvisos na composição da capa, talvez pela falta dos tipos de título. A folha de rosto [Fig.1] tem uma composição gráfica que difere das edições oficiais que se observou, pois quando esta possuía uma capa, sua composição, geralmente, era também repetida na folha de rosto. Nesta edição tem-se os dados biográficos do autor compostos em um bloco de texto com suas margens em diagonal, formando um desenho triangular [Fig.1]. A aparente desordem das páginas reflete a incomum fala do poeta, que conjugou, com alguma liberdade os elementos editoriais e gráficos do livro. A começar pelo uso de comentários, citações, notas alusivas e diversos recursos gráficos. As páginas do livro organizam esses elementos dentro da mancha gráfica, de acordo com algumas linhas de força [Fig. 2] que orientam, mas não impõem uma ordem rígida, como se pode observar nas variações de composição das páginas e no uso generoso de recursos. O principal deles é a utilização de várias fontes de tipos móveis, incluindo tipos fantasia e manuscritos, além do emprego e mistura de estilos, capitulares, fios, algumas vinhetas e ornamentos [Figs. 3 e 4]. Outro recurso é a composição mais livre dos elementos da página, apenas a numeração na margem superior e as notas de rodapé no pé da página mantem suas posições. Figura 2 – Diagrama de composição de uma página de Vôos de Tambaqui. · 193 Figura 3 – Páginas de Vôos de Tambaqui. Os poemas se organizam a partir de seu alinhamento à esquerda, com uso de diferentes e há uma composição de um acróstico, com as iniciais dos versos compostas em outra direção formando a frase “viva o nosso bispo” [Fig. 4]. Já os títulos e subtítulos dos poemas estão, na maioria dos casos, centralizados e com a presença de um parágrafo que antecede vários poemas e apresenta uma maior variação no seu arranjo gráfico. Em poucos casos, ainda há o uso de ornamento e vinhetas tipográficas, como a mão indicativa e outros na sua paginação. Essa multiplicidade de composições, tipos e recursos reflete as falas e entonações que o autor exercitou, sendo o poema quase uma desculpa para ele fazer, com gaiatice, algum comentário, um agradecimento ou homenagem. Nas muitas notas de rodapé presentes o autor também fala de si na terceira pessoa, em que o “poeta” faz diversas alusões e também conta histórias, defende seus valores e alfineta desafetos. Apesar de ter uma boa composição e da paginação mais livre, o livro não foi bem impresso, apresentando um aspecto irregular em suas páginas. Ao se examinar o exemplar percebeu-se que os tipos móveis foram pressionados com muita força para fazer a impressão sobre o papel, deixando além da tinta um relevo [cravação]. Esse efeito indesejado da impressão não garantiu que a tinta apresentasse um aspecto homogêneo ao longo do livro, indicando dificuldades no processo de impressão da oficina que o produziu. Ainda assim, assistiu-se com prazer a essa conversa informal entre dois velhos conhecidos: a forma gráfica e o conteúdo. Ou melhor, entre as diversas composições tipográficas e os variados textos e subtextos presentes no livro. Essa multiplicidade foi necessária para sustentar o canto do poeta cheio de camadas, escamas nas · 194 quais refletiam as suas muitas figuras de linguagem, comentários e histórias desse peixe regional que ousou voar pelas ruas, igarapés e “goelas” de Manaus. · POUSO E RÁPIDO DESENHO Na apresentação de seu livro, Ricardo José Correa de Miranda se despedia de seus versos “pois vão correr o mundo eilos... / Meus versos adeos, saudoso serei contente se fordes ‘bem recebidos. Adeos e elles se vão...” Eles logo chegaram ao Pará na forma de anúncio, onde foram apresentados como uma “colecção de poesais escriptas pelo ilustrado e distincto poeta o sr. Ricardo José Corrêa de Miranda, residente em Manáos. Recommenda se aos homens scienticos a leitura de tão aproveitavel folheto. Preço de cada folheto 2$000”. O livro foi além, chegou ao Rio de Janeiro e pousou no periódico humorístico Semana Illustrada. Essa publicação era bastante ilustrada e havia sido fundada em 1860 por Henrique Fleiuss. Em seu número 755, de 30 de maio de 1875, a Semana Illustrada deu destaque ao “talentoso poeta amazonense Ricardo José Correa de Miranda, autor dos Vôos do tambaqui”. E, logo na sua primeira seção, “Badaladas”, reproduziu um soneto de 1875 que foi dedicado ao “Sr. Doutor Semana”.11 Este agradeceu pelo poema e também pelo retrato do autor que teria recebido, dizendo que em breve iria “estampar” em suas colunas para que os “fluminenses conheçam as feições energicas, a fronte inspirada, o olhar superior do Sr. Corrêa de Miranda”. Infelizmente, a promessa do Dr. Semana parece não ter sido cumprida e assim não se pode ver a face do autor amazônico no semanário. O soneto publicado trouxe a já conhecida nota de rodapé em que “alude o poeta” a algo. O Dr. Semana comentou na mesma moeda e, sem economizar na modéstia, afirmava que o exímio poeta teria “Talento de primeira ordem, potente, rabido, excelso e ductil, nada lhe é desconhecido, nenhuma corda ha na lyra moderna que elle não saiba tocar com sublimidade”. E finalizou dando um conselho sobre seus críticos ferozes: “Deixe-os ladrar”. No acervo do ihgb foi encontrada outra edição do mesmo autor, só que o exemplar se encontrava mutilado, sem as páginas iniciais e encadernado junto com outras publicações. Como fazia referência ao Vôos do Tambaqui deve ter sido publicado em 1870 ou pouco depois e, aparentemente, trazia poemas e a biografia “do grande Poeta Ricardo José Correia de Miranda” [sic]. Pelo que se conseguiu levantar, depois de sua aposentadoria pela província do Amazonas em 1872, o poeta regressou a Belém, onde aparecem registros seus na imprensa paraense em 1876. Assinando algumas notas n’O liberal do Pará na seção “Ineditoriaes” em 1878, além e outras contribuições já na década de 1880. — — • 11. Esse personagem assinava algumas seções da Semana Illustrada e sob essa rubrica escreveram diversos colaboradores, dentre eles Machado de Assis. · 195 Figura 4 – Detalhes gráficos das páginas de Vôos de Tambaqui. Seu peixe impresso parece não ter sido bem digerido, pois a Semana Illustrada de 20 de junho de 1875 diz que Ricardo J. de Correa de Miranda havia requerido à Assembleia Provincial do Amazonas uma “verba destinada para imprimir os seus versos”. No entanto, seu pedido havia sido rejeitado e o autor parece ter pedido auxílio ao periódico fluminense, que então fazia um apelo: O vate paraense, cantor das plagas amazonenses e dos – vôos do tambaquy – Ricardo José Corrêa de Miranda – honra da patria e gloria do espirito humano – dirige-se às pessoas mais imminentes desta cidade afim de o auxiliarem com seus obulos, para a impressão de seus trabalhos litterarios e scientificos e compra de papel, para os mesmos. Os custos para a publicação de um livro eram altos o suficiente para afastar os aspirantes a autor com as grandes despesas com papel, a composição, revisão, impressão, acabamento e transporte. A produção de edições particulares no Amazonas começou continuou no ainda acanhado mercado local que, no entanto, mostrava uma ampliação de oficinas tipográficas em funcionamento em 1870. Embora oscilasse bastante, pois o almanaque de 1875 registrou em suas páginas apenas três Typographias. E na década seguinte a pesquisa realizada identificou 18 Typographias em funcionamento no Amazonas de 1880 a 1889. A impressão, ou melhor, a produção de artefatos impressos não era um negócio muito lucrativo, mas os jornais, seus produtos impressos mais representativos e dos quais encontramos maiores registros, eram. Os cerca de 23 jornais que circularam até 1870, geravam um capital político e social pelo qual diversos grupos da elite local marcavam suas posições e participavam do jogo político · 196 e econômico. Seus proprietários e redatores eram também funcionários públicos, militares, comerciantes ou profissionais liberais. Ainda assim, nas oficinas os jornais começaram a dividir suas atenções com a edição comercial, com o almanaque e em breve com as revistas. Além do destaque maior dado ao anúncio e à informação comercial. Esse começo de diversificação do artefato impresso já permite notar que a tecnologia gráfica, mesmo com dificuldades e limitações, estava conseguindo fixar suas raízes e tipos para começar a se desenvolver e oferecer melhores produtos impressos. Nesse período, que vai do funcionamento da primeira oficina tipográfica em 1851 até 1870 se conseguiu registrar 36 profissionais do circuito gráfico local, entre deles fotógrafos [8], dois encadernadores formados no Estabelecimento dos Educandos. Diversos impressores [8] e tipógrafos [18], desses pelo menos dois eram os proprietários da oficina, dois foram administradores e um também atuou como editor de jornal. Além das oficinas tipográficas, outro importante agente foi os Educandos Artifices, que oferecia a formação de encadernador, quase sempre com poucos alunos. Até 1869, a cidade de Manaus contou ainda com o funcionamento de alguns estabelecimentos fotográficos e o comercio de publicações feito nas oficinas tipográficas e em algumas lojas da cidade. De acordo com o levantamento de Faria e Souza (1908), foram publicados 3 jornais até 1860 e pouco mais de 20 jornais até 1870. Nos jornais que foram consultados se percebeu a manutenção de padrão gráfico simples, de poucos recursos gráficos, apesar de alguns terem uma composição mais leve que os outros. Nos anúncios houve uma melhora no seu padrão gráfico, com o uso de recursos para conferir ênfase e destaque a eles. A publicação de uma edição poética pode ser entendida como uma exceção e também um marco da diversificação da produção de artefatos impressos, que começou a se tornar também mais exigente no seu planejamento. Ainda que em escala reduzida, esse processo vai ter maior continuidade nos próximos anos, quando novos produtos impressos entram em circulação, fazendo uso de novos tipos, ornamentos e de uma composição gráfica mais complexa. Apesar de ainda se configurar em um conjunto restrito de atividades, foi o suficiente para dar condições mínimas de sustentação para a “arte typographica” e para a circulação da comunicação impressa na terra das amazonas. · REFERÊNCIAS braga, Genesino. Chão e Graça de Manaus. 2. ed. Manaus: Imprensa Oficial do Estado, 1987. buchanan, Richard. Thinkink about design: an historical perspective. In: Philosophy of Technology and Engineering Sciences, vol. 9. Elsevier, 2009. · 197 caliri, Jordana Coutinho. Folhas da Província: a imprensa amazonense durante o período imperial (1851-1889). 2014. 151 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Amazonas. Manaus, 2014. cardoso, Rafael (org.). 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