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O Cinema e o Feminino

2021, Educar em Saúde

Neste livro analisamos os seguintes filmes e seriados: Estranho que Nós Amamos (The Beguiled/2017) Conto de Aia (Handmaid’s Tale, 2017) A Garota do Livro (The Girl In The Book, 2015) A Esposa (The Wife, 2018) Inacreditável (Unbelievable, 2019) Big Little Lies – Temporada 1 (2017) Big Little Lies – Temporada 2 (2018) Babadook (2014) Eu, Tonya (I, Tonya, 2017) Orange is the New Black (2013) Malévola (Maleficent, 2014) Prenda-me (Arrêtez-moi, 2012) Albert Noobs (2011) Abraços Partidos (Los abrazos rotos, 2009) 3096 Dias (3096 Tage, 2012) What Happened, Miss Simone? (2015) Seraphine (2008) 81

O Cinema e o Feminino Cinematerapia Autores Dr. Eduardo J. S. Honorato Denise Deschamps 2021 Educar em Saude ISBN: 978-65-994973-3-9 https://doi.org/10.53405/edusau-ccpp.003 Este livro está licenciado sob a Licença a de Atribuição Creative Commons. Atribuição Não-Comercial- 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0). O CINEMA E O FEMININO Cinematerapia Autores Dr. Eduardo J. S. Honorato Denise Deschamps 2021 Educar em Saude ISBN: 978-65-994973-3-9 Sumário Sobre os autores 05 Sobre a coletânea 06 Artigos Estranho que Nós Amamos (The Beguiled, 2017) 07 Conto de Aia (Handmaid’s Tale, 2017) 11 A Garota do Livro (The Girl In The Book, 2015) 16 A Esposa (The Wife, 2018) 22 Inacreditável (Unbelievable, 2019) 26 Big Little Lies – Temporada 1 (2017) 31 Big Little Lies – Temporada 2 (2018) 36 Babadook (2014) 42 Eu, Tonya (I, Tonya, 2017) 45 Orange is the New Black (2013) 49 Malévola (Maleficent, 2014) 54 Prenda-me (Arrêtez-moi, 2012) 58 Albert Noobs (2011) 63 Abraços Partidos (Los abrazos rotos, 2009) 67 3096 Dias (3096 Tage, 2012) 72 What Happened, Miss Simone? (2015) 76 Seraphine (2008) 81 Sobre os autores Eduardo J. S. Honorato Psicólogo, Doutor em Saúde Pública com ênfase em Sexualidade, Reprodução, Gênero e Saúde (FIOCRUZ). Pós-doutorando Medicina Tropical com ênfase em Infecções Sexualmente Transmissíveis e Hepatites virais na Fundação de Medicina Tropical - FMT/AM. Especialista em Saúde da Família (UFSC), Docência Superior (UGF), Produção e Uso de Tecnologias Educacionais (UFSCAR), Epidemiologias e Vigilância em Saúde (Unyleya) e Especialista em Saúde Mental (Unyleya). É concursado como na Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (SEMSA). Concursado como Psicólogo. Professor Adjunto na Escola Superior de Ciências da Saúde - ESA - na Universidade do Estado do Amazonas - UEA. https://linktr.ee/Dr.eduhonorato Denise Deschamps Possui graduação em Psicologia pela Universidade Gama Filho (1984). Completou a formação em psicanálise e socioanálise pelo IBRASI. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicanálise. Desde 1984 é psicóloga e psicoterapeuta com treino em psicanálise clínica individual e psicanálise de grupos. Atuou em ambulatório na Colônia Juliano Moreira e IBRAPSI. Publica artigos acerca de conceitos da prática psicoterápica, psicanálise e cinematerapia - filmes e psicanálise em revista de circulação nacional e sítios especializados na Internet. Participação com trabalhos aceitos em Congressos nacionais e lançamento de livro na Mostra Regional de Práticas em Psicologia CRP/RJ(2009). Ministra aulas e cursos como colaboradora convidada em faculdades brasileiras. Supervisora em clínica psicanalítica. Sobre a coletânea Chegamos ao terceiro volume da nossa série de artigos publicados. O primeiro volume foi sobre Psicanálise. O segundo sobre filmes sobre sexualidade e gênero. Este terceiro vem recheado de filmes e seriados que abordam o “feminino” no seu mais amplo universo e diversidade. Estávamos ansiosos por esse volume. Ao longo de mais de 10 anos produzimos dezenas de artigos para a Revista Psique Ciência e Vida da Editora Escala. Esses artigos, sempre focados na Psicologia e Psicanálise, abordam os seriados e filmes com um olhar chamado de cinematerapia. Filmes podem ser utilizados como facilitadores de insights. Quando orientado esse uso, por profissionais qualificados, e, quando bem analisados, podem levar a construção de reflexões importantes que trazem um processo de modificação, seja para o dia a dia, seja para o processo psicoterápico. Através das produções fílmicas ou de trechos delas, podemos utilizá-los como recursos em sala de aula, promover autorreflexão ou até mesmo utilizar como recurso psicoterapêutico, no que denominamos como uma intervenção apoiada em Cinematerapia. Em 2009 publicamos nosso primeiro livro “Cinematerapia.:Entendendo Conflitos”. Agora, mais de uma década depois, a proposta dessa coletânea é distribuir as obras por temáticas, facilitando ao leitor escolher os filmes e seriados de acordo com o assunto que pretende refletir e trabalhar. Cada artigo foi escrito em um momento diferente, portanto, Não há ordem cronológica neles. É importante ressaltar que esses artigos foram lançados ao longo dos anos concomitantes com as obras e por isso, alguns são mais antigos ou algumas séries tiveram outras temporadas. Mas isso não limita a atualidade deles Boa pipoca, boa leitura, profunda imersão e muitos insights a todos! Eduardo e Denise Cap. 01 O Estranho Que Nós Amamos (2017) Um filme quando é produzido torna-se uma “fala” de sua época, reproduz, mesmo que não seja necessariamente essa sua intenção, as movimentações Cinematerapia da época em que é produzido. Neste remake a diretora Sofia Coppola traz às telas uma leitura arguta e provocativa sob questões que insistem em ascensão desde a época da filmagem anterior que é de 1971, a costura que traz em sua releitura, se comparada com o anterior, torna-se realmente quase que uma ironia bem maldosa. Na versão de 1971, logo em seu início uma sequência chocaria aos padrões da atualidade, uma cena dessas filmada nos dias de hoje com toda certeza provocaria muito mal estar. Nessa versão de 1971 quem vive o cabo McBurney é Clint Eastwood, agora na versão de Coppola vem representado por Colin Farrel , ferido e perdido na floresta, sendo caçado pelos Confederados, O Cinema e o Feminino encontra a menina Amy que o ajuda. No de Sofia Coppola sem a cena do beijo onde McBurney de Eastwood diz à menina que ela aos doze quase treze já tem idade para um beijo, o que faz sem a menor cerimônia trazendo logo de início todo o mote desse roteiro. Eram os revoltosos anos 70 onde Hollywood ainda produzia filmes como “Pretty Baby”(1978), onde alguns dos marcadores das relações com as meninas ainda pesavam para o lado de uma relação de total erotização. Pensamos que só estando atentos a essa diferenciação conseguiremos entender o quão profundo foi o mergulho na produção de Sofia Coppola, sem esquecer que ela é filha desse mundo do glamour hollywoodiano que já abordou ferinamente com o seu “Bling Ring: A Gangue de Hollywood”( The Bling Ring/2013). 07 Vivemos tempos de embate, onde novas formas de pensar encontram forte resistência de todo um modo conservador, e onde a questão do feminino anda mais do que nunca investido de grandes polêmicas em uma férrea disputa entre avanços e retrocessos. Sabemos que a diretora pensa essa questão em um ofício onde a presença masculina dita as regras ainda com forte predominância, o que torna sua ousadia ao decidir por essa refilmagem ainda mais interessante. Encontramos no novo filme, em muitos momentos, um algo que remete ao seu consagrado “As Virgens Suicidas”( The Virgin Suicides/1999), inclusive com novamente a presença da atriz Kirsten Dunst. Um ponto que foi criticado na nova versão de Coppola foi o fato de ter retirado toda menção a questão da escravidão e do racismo que é fortemente representada na versão de 1971, mas segundo declarações da própria diretora houve aí um intencional de não se afastar do tema que escolheu abordar com o seu filme, e que de certa maneira também está apresentado na versão de Don Siegel que dirigiu o anterior, quando logo também no início de seu filme faz com que o cabo McB diga a então escrava Hallie (Mae Mercer),enquanto ela lhe banha, que não importa a cor que no fundo os homens são todos iguais, sendo bem específico em relação ao gênero masculino. Coppola parece então ter ouvido essa fala de forma amplificada e a partir desse ponto assina a história que quer contar e a guerra que quer encarar. Em um mundo masculino onde mulheres se vêm tendo que gerenciar suas vidas Cinematerapia e se proteger de seus possíveis ataques, ouvindo todo o tempo bem próximo a elas as explosões de suas batalhas. A ameaça dos casacos azuis viria na forma do estupro, uma forma de violência que até a atualidade necessita de amplos e profundos debates e medidas protetivas para as mulheres. Aqui no Brasil alcançamos números estatísticos estarrecedores e somos obrigados a discutir temas bizarros, como por exemplo, os assediadores e ejaculadores no transporte público, sem que exista punição mais dura prevista pela nossa legislação. Interessante também é observar ainda na linha de comparação entre as duas produções(Don Siegel e Sofia Coppola) como nesta da diretora, as histórias de cada mulher assumem nuances muito mais ativas, como exemplo a história de Edwina(Kirsten Dunst) que ao invés de ser uma jovem enclausurada por vontade própria desde os 15 anos na escola de Miss Martha O Cinema e o Feminino Farnsworth(Nicole Kidman) é uma jovem que sonha com o fim da guerra e 08 aventuras fora daquelas grades, diferente da personagem no filme de Siegel para a qual o cabo McB pergunta se ela não sonhava com um príncipe encantado que a salvasse com um beijo. São nessas nuances e no próprio protagonismo de cada uma dessas meninas e mulheres que o filme de Coppola se assina e se faz admirável. Atualiza um olhar sobre a feminilidade que poderá até assustar a alguns em um bom suspense repleto de fina ironia. Nikole Kidman é a diretora da escola de moças, Srta. Martha Farnsworth que na versão de 1971 foi interpretada por Geraldine Page. Seu ar enigmático e que convida todo o tempo a pensar em outras intenções ocultas deu a essa personagem uma perspectiva bem assinada por Sofia Coppola, assim dando a esse mundo feminino um protagonismo no que diz respeito à sexualidade e a própria história que o filme narra, é uma nuance que dá o tom da releitura que ela imprimiu também como roteirista desejando se aproximar mais do livro escrito por Thomas Cullinan que deu origem à produção. O tom sombrio que há na escola de moças e que se agita com a entrada do Cabo McBurney é capturado com precisão pelas lentes da diretora, a excitação que se faz presente em tons que mudam pelas roupas e adereços, contrastando com o esfumaçado que invade o ambiente. Assim que melhora o visitante é convidado a sentar-se à mesa de jantar, ocasião em que todas elas se apressarão em arrumar-se com zelo e vaidade. O tom sedutor que parece ser marcante no personagem de Eastwood, ganha o contorno de meio sombrio e até frágil e ingênuo na interpretação de Colin Farrel sob a visão de Sofia Coppola. Um masculino perdido e desorientado que traz em si a capacidade de agressão, mas que se encontra naquela situação coartado disso, totalmente governado pela vontade daquelas mulheres, que poderão determinar o seu futuro. Embora reafirmem que ele será entregue assim que melhore, parece que há pouca disposição em fazer isso. Talvez seja preciso indicar que o espectador (re)veja o filme anterior para entender o mergulho que a diretora empreendeu com seu filme, da visão a partir de uma ótica cultural machista, ela mergulha no universo feminino Cinematerapia dando a ele toda a força da narrativa, o homem que costura a história fica mesmo prisioneiro nessa refilmagem, ele é o centro ao mesmo tempo que não possui força alguma, se torna um mero objeto como se fosse uma caça de um felino que com ela brinca por tempo indeterminado, é mais propício ao jogo de dominação que propriamente ao que seria a meta mais usual. potência desse novo olhar se marca mais profundamente A quando conhecemos a sua versão anterior que construía a imagem daquelas mulheres como mariposas em torno da luz, agora seriam muito mais um grupo de felinas “brincando” com sua caça, até ferindo-a ou amputando-a dada a agressividade contida na e pela brincadeira. Em certa medida alerta para a força que o feminino pode impor ao mundo quando se junta por um mesmo objetivo, embora seja próprio dessa corrente, também manter o singular muito assinado mesmo quando imerso em uma O Cinema e o Feminino força coletiva. Até por isso hoje quando se pensa na luta que se nomeia como feminismo fica impraticável colocar toda ela em uma única leitura, há feminismos que se unem em torno de uma núcleo comum e se separam em lutas paralelas que na verdade mais fortalecem do que enfraquecem a meta. Esse aspecto foi muito bem focado na série The Big Little Lies sobre a qual já escrevemos aqui. Na diferença que há no personagem de Clint Eastwood e o de Colin Ferrel talvez seja onde mais se possa evidenciar a assinatura de Sofia Coppola, já que neste o que vemos é um homem cujo a postura sedutora se perde em uma fragilidade quase pueril, a cena onde ele ingere os cogumelos no jantar fatal por si só vale todo o filme, onde a cumplicidade de Edwina fica muito mais marcada do que na versão anterior quando ao ser supostamente lembrada que não gostava de cogumelos não esboça qualquer intenção de 09 impedir a refeição de McBurney. Pensamos que o genial no filme de Coppola se dá pela mensagem sutil que traz em sua produção, ao escolher reproduzir as sequências tal qual o filme original, coisa da qual poderia ter fugido uma vez que há o livro do qual poderia retirar outras inspirações, deixando evidente como é diferente fazer um filme a partir da ótica masculina e como esse mesmo filme assume características muito diversas quando “fala” a partir da posição feminina. O protagonismo das personagens mulheres é evidente no da diretora, toda a disputa entre elas não é capaz de suplantar a união frente ao que se torna enganoso, cínico ou ameaçador. Se há algo que as mulheres ainda precisam ser lembradas é justamente desse aspecto. Assim como o cabo McBurney parece que o machismo já entendeu essa ameaça e vem respondendo de forma cada vez mais agressiva àquilo que compôs até hoje uma manobra desarticuladora que tornava a fragilidade da mulher mais pronunciada, transformando-a em uma presa mais fácil. Os movimentos que hoje, por exemplo, levam às redes sociais as denúncias de assédio ou abuso, demonstram a força dessa união. Recentemente denúncias de corajosas atrizes de Hollywood levaram a uma torrencial presença de relatos de abusos sofridos por outras por parte de um dos produtores mais influentes do meio. Percebemos então nesta sutil mudança que este filme introduz em Edwina como seu recado mais potente e a leitura mais apropriada para o momento que vivemos. Muito ainda teremos que ver a relação entre os gêneros caminhar e evoluir para que em um promissor futuro esse jantar final seja realmente de Cinematerapia confraternização e perdão, de entendimento e união, paixão e cumplicidade. Fica dado o recado que uma crítica predominantemente masculina se recusou a ver, embora o prêmio de melhor direção em Cannes demonstre que ao menos foi intuído com beleza e reconhecimento. Por mais filmes novos, autorais, refilmagens encabeçados por mulheres diretoras que dão voz ao universo emocional feminino. Que vistam essa pele ainda tão atacada, que sintam esse medo que atravessa o cotidiano da maioria, que saibam o quanto o amor é no final o desejo mais profundo e do quanto a sexualidade, com todos os seus componentes, é também o que as O Cinema e o Feminino move. Sofia Coppola enfim liberta suas “Virgens Suicidas”. 10 Cap. 02 O Conto de Aia (Handmaid’s Tale, 2017) O seriado pode ser classificado como “distopia”, reconhecido gênero de literatura mundial. Distopias refletem sempre tendências de ameaça à liberdade, pelo caminho do assombro, mesmo que sejam apenas Cinematerapia acentuadas. E quanto assombro e angustia teremos ao assistir essa produção. Este seriado segue essa linha. Uma reflexão social bem atual com grandes projeções daquilo que mais tememos nos dias de hoje. A história da série, baseada no livro homônimo publicado pela primeira vez em 1985, mostra um realismo atual impactante que poderíamos pensar que é algo que está saindo de um período de latência, que estava à espreita para surgir em condições favoráveis a isso. Em um futuro não muito distante um grupo conservador e fundamentalista religioso toma o poder nos Estados Unidos da América e diante de um novo fenômeno aparentemente decorrente da poluição e mudanças no meio O Cinema e o Feminino ambiente, o que torna uma grande parcela da humanidade estéril, ameaçando assim a continuidade da espécie. Algumas mulheres ainda são capazes de gerar novas vidas e, por conta dessa capacidade, a nova ordem social política as colocará a serviço das famílias dos grandes chefes em uma espécie de “cerimônia” de fertilização, na verdade um estupro bizarro, onde a mulher desse comissário (assim designados os mandatários do novo sistema) participam segurando os braços das “aias” (as mulheres férteis) enquanto assistem a seus maridos estuprando-as. 11 Nessa nova ordem imposta por todo território americano, as mulheres perderam todos os direitos, não podendo mais trabalhar e tendo seu dinheiro sido entregue aos maridos ou simplesmente apropriado pelo novo Estado. Outras correntes religiosas são extintas e seus seguidores ou sacerdotes perseguidos e punidos com morte. Também são eliminados opositores ao novo modo de vida e pessoas que pertençam ao grupo LGBT considerados como “abominação”. Os presos são enforcados e seus corpos ficam pendurados em um grande muro para exemplo para todos. Todas as formas de saudação são substituídas por louvações religiosas. Nossa protagonista é June (ELizabet Moss), e seus relatos em primeira pessoa alternam entre cenas de presente e futuro. No início da série não se sabe ainda toda a trama que se desenrolará, há um provocar constante de angústia, e a trilha sonora atual, em contraste com as roupas de séculos anteriores, causa certo desconforto, pois é difícil localizar-se no tempo. A autora do livro que deu origem a série, Margareth Atwood, informa que inspirou-se em estudos sobre os hábitos puritanos do século XVII presentes na América. June (Elisabeth Moss) que passará a ser chamada de Offred, em alusão ao fato de pertencer a Fred o personagem O Comandante (Joseph Fiennes). Cada uma das aias leva o nome da casa para a qual foi designada, como também é o caso da Ofglen, interpretada pela atriz Alexis Bledel, que ficou marcada pelo seu papel como Rory das inesquecíveis Gilmore’s Girls, com quem June fará uma ligação de resistência e tentativa de fuga. Interessante notar que todo o movimento de resistir começa pela possibilidade de dizer o nome verdadeiro, aquele que foi mandado que Cinematerapia nunca mais tocassem nele. Perder a identidade e a memória da vida antes da captura é uma condição para manterem-se salvas, ao mesmo tempo que, dão aos seus senhores o tom da opressão que ficará no silêncio de uma aparente normalidade. Sabemos que as ordens opressivas ao longo da história sempre se mantiveram vigilantes no sentido de impor silêncio a tudo que questionasse suas premissas ou sua aparente estabilidade. As ditaduras do último século presentes na América Latina são bons exemplos disso, com histórias de desaparecimento de bebês que até hoje são buscados pelos familiares sobreviventes, um dos movimentos que exemplifica isso é conhecido como “Madres de Plaza de Mayo” na Argentina. Os filhos dessas mulheres, as aias, também lhes são tirados e elas desconhecem o paradeiro, o que também acontece com a protagonista. A opressão não chega de uma hora para outra, e o roteiro faz questão de O Cinema e o Feminino destacar isso, como ela foi sendo imposta pouco a pouco, e que a apatia em combate-la quando isso ainda era possível, deu-se muito pela dificuldade de crer no absurdo que representava. O marido de June, Luke (O-T Fagbenle) , fala sobre isso, como se em algum momento aquilo tudo fosse ser encerrado por alguma força protetora, despotencializando assim a importância da resistência de cada um frente ao inimaginável que se implantava. Sabe-se, há muito, que qualquer nova ordem opressiva não tem o mínimo pudor de apelar para a repressão violenta e militarização da segurança pública, quando quer se impor, e será assim que acontecerá, dando início então ao novo modo de funcionamento que o filme mostrará em cenas que fazem pensar e provocam reflexão frente ao nosso mundo atual, onde se respira um certo ar opressivo ameaçador que se adensa mais a cada dia. 12 June nos alerta que primeiro eles foram ocupando cargos públicos eletivos, se tornando maioria. As mudanças começaram lentamente e as pessoas não percebiam, ou preferiam não acreditar que algo assim estava por vir. Em tempos de BBB(Boi,Bíblia e Bala), cerceamento de direitos, anulação de conquistas trabalhistas e sociais, talvez esse seriado sirva de alerta, principalmente para os brasileiros, que parecem estar tão preocupados com suas vidas, carreiras e metas que não veem as pequenas mudanças ocorrendo lentamente ao nosso redor. Nos Estados Unidos, após a última eleição, essa obra provoca rebuliço e tem sido discutida à luz desses novos fatos e tendência. Somos apresentados a uma nova nação, chamada de Gilead. Após alguns atentados terroristas, os religiosos tomaram o poder nos Estados Unidos da América e impuseram todos os seus dogmas religiosos cristãos. Através do medo, tomaram o poder e tornaram suas crenças obrigatórias, instaurando uma caça as bruxas e período de terror. Nessa nova “civilização”, entre aspas, porque não há qualquer civilidade nela, as pessoas são divididas em castas sociais. Uma sociedade patriarcal, com esposas submissas e totalmente alienadas de toda e qualquer atividade que não seja “sua real função: procriar” e cuidar de seus homens. Os empregados também são divididos em castas, entre as mulheres a mais sob o jugo de todas, dá origem ao grupo conhecido como “Servas” (no Brasil como aias), função que dá nome a obra, e que serão fundamentais na reconstrução dessa sociedade fanática futura. Cinematerapia Sigmund Freud em seu denso texto “O Futuro de Uma Ilusão” já levantava a hipótese de como as crenças religiosas são erguidas frente ao sentimento de desamparo, uma espécie de “delírio coletivo” que visa um sentimento de relativa proteção frente a tudo aquilo que não se compreende ou não se tem controle e que ameaça a sobrevivência. Embora seja necessário saber que existe em todo sujeito um desamparo fundamental(Birman, J.), presente em tudo que origina e anima a vida psíquica, aproximando este da posição feminina, talvez por isso mesmo seja no feminino que as forças de opressão buscam sempre sua maior expressão de violência e sujeição. As informações vão sendo aos poucos dadas nos episódios e fica-se sabendo que em algum momento, no mundo inteiro, as taxas de natalidade caíram drasticamente. Os países entraram em colapso, pois suas populações pararam de crescer. Há uma crise mundial tanto de fecundidade quanto de natalidade. O Cinema e o Feminino Poucas conseguem engravidar e menos ainda conseguem gerar uma criança e 13 ter um parto com sucesso. A infertilidade feminina, e apenas a feminina, é entendida como um castigo de Deus, em decorrência dos avanços tecnológicos da humanidade desde a revolução industrial. As poucas mulheres férteis que restaram passam a ser caçadas, encarceradas, adestradas e usadas como empregadas domésticas e escravas sexuais. Ao dividirem os demais, não superiores e pertencentes a sua casta social, eles o agrupam em funções e tiram os nomes e suas histórias. Existem também outras castas, como as Marthas, mulheres que prestam serviços domésticos como cozinheiras e faxineiras, mas que não são férteis. Há também os motoristas e ainda uma categoria denominada “Olho”(eye) que são os espiões do sistema, sujeitos que como vemos no personagem Nick Blaine (Max Minghella), são cooptados por sua inclinação à violência, para que a ordem seja sempre mantida, através do terror e do medo. Também são apresentadas as “Tias”(Aunties), mulheres mais velhas, não férteis, fanáticas religiosas e responsáveis por todo o adestramento e tortura das Servas, tornando-as obedientes e alienadas de tudo ao redor, cientes de que sua função é apenas servir ao seu dono, reproduzir, entregar a criança e mudar de dono. Nesta sequência os fanáticos por séries verão a atriz que desempenha uma personagem fundamental na irônica “Leftovers” que pode ter muito a ver com Handmaid’s Tale, Ann Dowd, como tia Lydia, figura central na condução das servas. Sua crença na nova ordem e sua disposição em acreditar na bondade e justiça, mesmo frente aos atos de crueldade que ela impõe às moças, são uma chamada e tanto para pensarmos em arcaicas instituições que se mantêm pela extrema ambivalência (amor e ódio, sentimento de proteção e opressão) que são capazes de sustentar. Além de suas roupas antigas e com os corpos todos cobertos, as servas são obrigadas a utilizar um adorno na cabeça, que quase as impedem de olhar para os lados, lembrando os antolhos utilizados em burros e outros animais de carga. Ironicamente esse adereço é chamado de Asas, e somente removido Cinematerapia em ocasiões especiais ou dentro de casa. Todas não passam de animais, ou apenas úteros com pernas que precisam co-existir, desumanizadas, para que os humanos superiores deem continuidade à sua raça suprema. Observa-se que o espectador da série será seduzido a comprar a tese de Gilead, a nova ordem imposta, e crer que a infertilidade é uma questão que tomou a parcela feminina da população. Assim como na vida cotidiana costuma-se pensar primeiramente na da mulher antes de se pesquisar a masculina. Só lá pela metade da série poderá se questionar quanto a esterilidade como presente apenas nas mulheres, em uma ida de Offred ao médico. Esse ponto do roteiro remeterá a uma importante reflexão, que se situa justamente na questão de que o machismo não tem gênero, embora no seu cerne abrigue sempre a questão da misoginia. O Cinema e o Feminino Frente ao crescimento de todo um movimento retrógrado que se instala neste início do século XXI, a série provoca um acalorado debate. O fundamentalismo religioso com suas garras pode vir de qualquer corrente, e já ameaça desde o início do século XX, não somente naquelas que o mundo tem se acostumado a acusar essa tendência, essas que muitas vezes são na verdade fruto de toda uma geopolítica de guerra fervor religioso que nasce como um anteparo para o fundamentar e encorajar o radicalismo. 14 muito mais do que do Devemos pensar que o que chamamos de radicalização da fé poderá ser visto em diferentes roupagens e ameaça à humanidade como um todo, porque proporá sempre, está isso no cerne de sua movimentação, uma segregação e movimento de destrutividade quanto a tudo que eleger como “diferente” ou inimigo da fé, o que se quer exatamente é anular qualquer existência de dualidades ou diversidade. Uma “fé cega e faca amolada”(música). A adesão irrestrita a um conjunto de crenças caracteriza o fundamentalismo que tem sua origem, quase sempre, em textos fundadores de diversas religiões. Mas, podemos pensar também em fundamentalismo quando este se refere a qualquer conjunto de crenças inquestionáveis, nesse sentido a inserção ideológica poderá se amalgamar com ele, o que veremos surgir na atualidade como uma teia difícil de desconstruir e que se apresenta nesse roteiro tão bem exemplificado. O fundamentalismo se irmana sempre com o que conhecemos como totalitarismo, temos ao redor do planeta várias formas diferentes de existência disso. Parece que chegamos a uma época onde o antagonismo existente nas anteriores tornou-se explosivo no modelo que se nomeia como a velha luta entre civilização versus barbárie. Chama a atenção que a autora do livro, Margaret Atwood, tenha se debruçado sobre a questão central da trama, ainda na primeira metade da década de 80, época em que o mundo de uma maneira mais geral, avançava em teses progressistas e passava pela consolidação de uma revolução de costumes preparada pelas décadas anteriores. Podemos supor que de certa maneira, como é próprio que a literatura o faça, a obra intuía que haveria logo adiante um vigoroso levantar das forças de resistência à mudança, a psicanálise explica muito bem isso Cinematerapia quando se trata da leitura dos processos individuais do sujeito em análise. Tudo fica muito mais claro quando o Comandante (Joseph Fiennes) explica para June que: “Nós só queremos fazer um mundo melhor. E melhor não significa para todos. Para alguns será pior”- (S01E05) Que o seriado sirva para nos alertar sobre quem são “eles” e quem somos nós, O Cinema e o Feminino favorecendo insigths importantes para nossa sociedade! 15 Cap. 03 A Garota do Livro (The Girl In The Book, 2015) Escrito e dirigido por Marya Cohn, a protagonista Alice (Emily VanCamp/Ana Mulvoy Tem) vive uma experiência de abuso com seu mentor, um escritor famoso, Milan Daneker(Michael Nykvist), que se Cinematerapia oferece para ajuda-la no desenvolvimento de sua escrita, transformando então sua experiência em um livro escrito por ele e que faz enorme sucesso, a obra seguirá perseguindo-a em sua vida adulta. Sem dúvida o roteiro é certeiro ao deixar o recado do quanto o abuso vai para muito além do ato sexual concretizado ou da violência física, e o quanto suas sequelas são mais extensas do que se quer acreditar em um mundo onde o corpo “ninfeta” é um fetiche sem grandes discussões. É impossível olhar para Emily VanCamp e não lembrar de Emily Thorne/Amanda Clarke. A Mocinha-Vilã que entreteve o publico durante anos no seriado “Revenge”. Essa ambiguidade de mocinha e vilã ficou O Cinema e o Feminino bastante forte na atriz e talvez, por isso, ela seja perfeita para esse papel. Passamos a conhecer um pouco mais sobre o passado e o presente de Alice. Uma menina de classe alta americana, moradora do Upper East Side do Central Park. Crescendo nos anos 2000 como adolescente, enfrentando os dilemas dos jovens dessa geração. Não consegue se encaixar numa tribo, seja de góticos, seja de clubbers. Enquanto Milan se aproxima da solitária jovem Alice, se mostrando interessado em suas questões adolescentes, você pode se perguntar, onde estavam os pais dela. No tempo do filme ela é Alice Harvey, a típica americana moradora de Nova Iorque, quase com 30 anos de idade, vive na correria do seu trabalho que paga pouco e a explora. 16 Toma muito café, tem vários parceiros de “one night stand” e curte sua vida na cidade que nunca dorme, esperando por uma grande oportunidade de mostrar seu talento, nesse caso, como escritora. Trabalha em uma editora e o destino lhe prega mais uma peça, nesse caso, na forma de um livro. Fica encarregada de divulgar Milan Daneker que retorna então para sua vida. Como um bom predador, Milan Daneker não se contém ao ver sua antiga presa/vítima e as técnicas de persuasão não mudam. Dessa vez, Alice tem 28 anos, mas frente a ele se comporta com o mesmo desconforto que aos 13, revivendo assim a cena traumática.Desde o começo é possível perceber o desconforto de Alice em ouvir o título do livro "O Despertar". Outro filme que vem polemizando e que abre com precisão cirúrgica uma questão complexa e envolta em falsos dilemas e crenças desconexas é o “Elle”(2016), de Paul Verhoeven . Entre o que se tem nomeado como a “cultura do estupro”, que aponta para as variadas formas de violação que ocorre em relação ao corpo feminino e a liberação sexual que narra a tomada da mulher em relação à sua sexualidade e experiência com o seu corpo, há hoje mais confusão e desinformação do que propriamente uma clara concepção. Talvez o gato que olha enquanto sua dona sofre o estupro represente o olhar ausente e indiferente em relação ao feminino que se ergue a partir de um mundo há muito dominado pelos homens. Corremos com tudo isso o risco de voltar a ver aprisionado o discurso sobre o prazer feminino em um certo retorno de um conceito de moralidade pra lá de equivocado ou ao contrário, em uma suposta liberação totalmente aprisionada pelo poder de submeter do masculino. Cinematerapia No já aclamado filme “Aquarius”(2016) do diretor Kleber Mendonça, vemos logo em sua primeira parte o aniversário da doce tia Lúcia(Thaia Perez) ser comemorado enquanto seus sobrinhos netos, filhos da protagonista Clara(Barbara Colen/Sonia Braga) relembram grandes feitos de sua vida, ela com um risinho irônico olha para uma cômoda posta na sala e relembra momentos de muito prazer sexual com seu parceiro. Ao tomar a palavra, adverte: “Vocês esqueceram...pularam...a revolução sexual”. Isto se passa no final dos anos 70 e sabemos como as três décadas anteriores foram revolucionárias para as mulheres. Toda essa confusão difícil de lidar na atualidade é apresentada no “A Garota do Livro”, sob o olhar de uma menina descobrindo sua sexualidade e seu gosto por escrever em um universo dominado pelos homens. Seu pai sendo um editor que rouba o autor em ascensão, Daneke, de sua própria esposa, O Cinema e o Feminino mãe de Alice. Somos apresentados ao seu pai, um sujeito arrogante e mandão, chegando a ser intrusivo. Dominador e controlador que sequer permite que "suas mulheres" escolham suas comidas. É capaz de ofender e atacar sua esposa verbalmente, mesmo na frente da filha e convidados. Tudo disfarçado no mais clássico modelo de homem simpático e sociável. Esse casal de pais dentro do enredo demonstrará de uma forma bastante inequívoca o quanto muitas vezes o abuso passa por um grau de negligência e um jogo de interesses bastante cruel. Não que isso seja uma regra, mas é certo que o abusador se aproveita das frestas de vulnerabilidade que enxerga. Como uma porta que se abre pra deixar entrar o gatinho e entra o estuprador(cena do filme “Elle”). Alice só se libertará quando A Garota do Livro deixar de definir quem ela é, quando puder se afastar no sentido de criar para si outra possibilidade de ligar-se ao outro, enquanto não faz isso só lhe resta de forma sem controle, repetir o gesto de se fazer desejada e o sexo anônimo e vazio de afeto. Neste sentido o filme “Elle” chocou profundamente parte da crítica e dos movimentos feministas, porque Michèle(Isabelle Huppert), assim como o Sísifo feliz de Albert Camus, toma pra si seu destino depois de muitos anos de uma repetição totalmente fora da consciência. Vítima de uma pesada história de criança, só conhece sobre si mesma o que se tem de pior, não sabe se é vítima ou algoz, representando dessa maneira, de forma contundente, muito do que inconscientemente é complexo de lidar para desatar os nós deixados por qualquer dos tipos de abuso. As redes sociais têm servido muito para o debate do feminismo, para deixar sempre em estado aquecido os temas que envolvem as conquistas das mulheres frente a um modo de organização social que a desqualifica e/ou a objetifica todo o tempo. Mas, há muito, aprendemos que qualquer movimento tem sempre seus polos de progresso e retrocesso, ainda mais quando se amplia a ponto de correr o risco de massificar-se, é preciso que a atenção se volte também para esse aspecto, e caso não o faça, correr o risco de ver capturada a narrativa de forma a recoloca-la, agora de outra maneira, no mesmo lugar de antes, sob a égide de uma moral de controle que disfarça e restabelece uma relação utilitária glamourizada. Alice durante todo o filme hesita entre a posição de vítima ou dona de sua história, para além da sedução o que vemos é sua individualidade ser Cinematerapia invadida de forma a deixa-la como espectadora de sua própria experiência. Isto fica muito bem colocado na cena onde Daneke lê a passagem do livro para uma plateia onde ela e seus pais estão presentes. O sentimento de invasão se faz claro e humilhante, ver-se em sua intimidade relatada pelo fetiche do outro, perdendo assim como uma parte de si, despersonificada , algo que representa de forma mais clara o jogo perverso de anulação do outro. Ao conhecer Emmett(David Call) ela experimenta pela primeira vez um vínculo amoroso, uma relação que consegue ultrapassar a questão do sexo como catarse do trauma. Mas, ao mesmo tempo que parece ser uma possibilidade libertadora, é também uma porta que abre para que tenha que lidar com suas lembranças em grande parte confusas e angustiantes. No filme essas memórias vão se apresentando em fragmentos alinhavando O Cinema e o Feminino presente e passado, talvez em um processo muito semelhante ao que 18 acontece com meninas que sofreram assédio e que só conseguem dar palavras a isso muito muito tempo após o ocorrido, tendo sempre como deflagrador do processo algo que no atual mobiliza o núcleo da vivência, uma excitação que deseja libertar-se. Como se fosse necessário um distanciamento e algo que enfim produza alguma sensação de proteção e desculpabilização para que isso possa ser revelado, e com ajuda, superado. A relação com Emmett começa de maneira inusitada, e talvez por isso, Alice tenha a oportunidade de não cair nos seus padrões de respostas. Esta "aterrorizada" porque se envolver com alguém significa se abrir novamente. Seu relacionamento começa a ganhar. Alice tem um ego frágil e ao menor sinal de angustia, ativa suas defesas, nesse caso, quase um ataque. Quando seu pai age como de costume, ignorando-a enquanto sujeito, tem uma crise e a sexualidade passa a ser uma arma, uma válvula de escape. Uma maneira de acabar com a angustia forte que sente por não ser vista. O relacionamento que parecia estar se estabilizando, se desestabiliza com um simples abalo. "Eu não deixarei você me enlouquecer como você", diz Emmett. "Ações têm consequências". Talvez essa seja a maior dificuldade de Alice em lidar com suas pisadas na bola. Pedir desculpas e achar que tudo se resolve a partir desse ponto. Emmett é bastante rígido quanto a isso. Alice havia aprendido até então que abuso não gera qualquer tipo de recriminação. Além disso, Alice precisa crescer. E isso significa se desprender de certos comportamentos em relacionamentos abusivos. Enfrentar seu pai sobre a comida foi um primeiro passo importante. É um aprendizado doloroso e exige dispêndio de muita energia psíquica, mas Alice parece estar disposta. Um outro ponto importante do filme é o abusador ser representado de forma galanteadora. É quase impossível ficar com raiva de Milan. Ele esta longe de ser representado de forma psicopática e captando toda a raiva que o publico deveria ter dele. Isso só mostra questões tão atuais sobre como a Cinematerapia sociedade percebe a violência de gênero. Não tem sido raro o fato de algumas figuras públicas virem revelando abusos sofridos quando mais jovens, ao fazerem isso, a partir de um lugar de destaque, possibilitam que meninas anônimas nomeiem enfim suas experiências. Recentemente nos comovemos com o discurso de Madona em uma cerimônia de premiação quando revelou que ela também já foi vítima de estupro. Algumas produções recentes anunciam a mudança na forma de pensar a relação com que antes nomeavam de “ninfeta”, o que obviamente já vinha carregado de intenções. Vai longe “Pretty Baby”(1978, de Loius Malle), “Lolita”(1997, de Adrian Lyne) ou mesmo o que tem sido no momento novamente comentado “O Último Tango em Paris”(Le Dernier Tango à O Cinema e o Feminino Paris/1972), de Bernardo Bertolucci, inclusive por estar sendo questionado por um tipo de abuso cometido durante as filmagens. Cineastas na atualidade têm decidido colocar o foco e explorar a questão pelo olhar do pós, ou em psicanálise naquilo que entendemos como o que se ergue na “posterioridade”, o que teoricamente seria a dinâmica da criança abusada, será sempre mais adiante que este significado será dado. O que vemos neste sofrimento posterior acaba com qualquer traço de “glamour” que possa ainda se querer emprestar para a questão. Para os de estômago forte, um lancinante é o filme “Miss Violence”(2013) do grego Alexandros Avranas. 19 O filme em questão vem como mais um bom filme no sentido de revelar as sequelas do vivido e da forma que a própria vítima tem dificuldade de perceber, já que se sabe que a lembrança inclui sempre, por inúmeros fatores, um forte sentimento de culpa pelo ocorrido. A menina que entra na adolescência experimenta impulsos agora em sua fase genital, aumentarem, o desejo por aproximação vai se tornando cada vez mais sexual, seus corpos desejados são ao mesmo tempo algo do que se orgulham e algo que as coloca em posição de fragilidade. O argumento do abusador sobre o poder de sedução da vítima é duplamente cruel, porque ignora que o/a adolescente passa por sua fase mais do que natural de desenvolvimento, sem dúvida alguma a interdição tem que estar no adulto, que tem plena consciência e vivência do que envolve o ato sexual. Conhecemos Alice já uma mulher adulta, que conduz de maneira caótica sua vida, sempre com a predominância de uma baixa auto estima e lidando com uma desqualificação que assimila como própria, deixa-se em posições que confirmam sua menos valia, inclusive no trabalho que faz lendo manuscritos em busca de novos talentos. Sua escrita encontra-se congelada, incapaz de dar prosseguimento a sua criatividade ao que parece por excesso de cobrança, resta sempre a ela ser a espectadora do sucesso, resta repetir sempre a personagem do livro de Daneker, resta-lhe ser sem que ninguém saiba disso, ser a garota do livro. Muitas das repetições que acompanham vítimas de abuso na infância ou adolescência também são replicadas sem que a pessoa se dê conta do que move suas escolhas, embora não lhe seja desconhecido a vivência, o que se dá é como se não fosse possível conectar os pontos entre o atual e o aprisionamento no passado. A produção Cinematerapia cinematográfica possui inúmeras outras produções que têm uma “pegada” parecida e podem ser muito úteis para a discussão do que vive a vítima a longo prazo, algumas delas mais recentes listamos a seguir: - Wildflower(2016); filme de Nicholas DiBella - O Quarto de Jack(Room/2015); filme de Lenny Abrahamson - Estocolmo Pensilvânia(Stockholm, Pennsylvania/2015); filme de Nikole Beckwith - 3096 Dias(3096 Tage/2013); filme de Sherry Hormann - As Vantagens de Ser Invisível(The Perks of Being a Wallflower/2012) – filme O Cinema e o Feminino de Stephen Chbosky. Este traz o diferencial de o abuso ter sido cometido 20 contra um menino. - Tabu (Towelhead/2007); filme de Alan Ball - Sobre Meninos e Lobos(Mystic River/2003), filme de Clint Eastwood. Também sobre abuso cometido contra meninos. Como diria a também cineasta, a pop Madonna: “a coisa mais controversa que já fiz é permanecer”. O momento traz delicadas controvérsias, será preciso que o feminino mais que nunca insista livre, rebelde, solto, desamarrando as velhas armadilhas que encolhem a potência da mulher. Uma delas a que o nosso filme revela, quando o lobo quer ensinar a uma menina que sua libido está no mundo para servir ao outro e não como uma força a qual tem o direito de usar como desejar, quando e com quem escolher estar. O caminho é longo, mas tem valido a pena. Alice luta por Emmett e para romper seu vício circular, ao apaixonar-se pode enfim libertar-se da personagem de Daneker, ser dona da sua sexualidade e O Cinema e o Feminino Cinematerapia dizer que não é mais a garota do livro. 21 Cap. 04 A Esposa (The Wife, 2018) Dirigido pelo sueco Björn Runge e baseado na obra homônima de Meg Wolitzer, o filme em tempos de discussões acaloradas sobre salários equivalentes na glamourosa Hollywood é uma verdadeira e sutil bofetada em luvas de pelica. Cinematerapia Elegante e sincero, aparentemente despretensioso, como se contasse uma única história muito pessoal, evidencia, com uma força de emoção, as batalhas das mulheres para afirmarem seus diferentes talentos em um mundo comandado pelos homens. Glenn Close mereceu o prêmio Globo de Ouro por essa atuação que lhe exigiu uma contenção que talvez lhe tenha sido bastante difícil se pensarmos na trajetória dessa atriz, fez lembrar sua magnífica interpretação em "Albert Nobbs"(2011) quando assim como por esse desempenho, foi indicada ao Oscar de Melhor atriz, mereceria o prêmio pelas duas atuações. O espectador é apresentado aos pouco a Joan Castleman(Glenn Close) e seu marido, o escritor Joe Castleman(Jonathan Pryce) que fica sabendo que ganhou o Nobel de Literatura por seu comovente conjunto de obras que tocam a humanidade em questões fundamentais, isto dito por seu anfitrião O Cinema e o Feminino da cerimônia de entrega do prêmio. O filme acompanhará justamente todo o período que cobre o comunicado da vitória e a ida à cerimônia de entrega na Suécia. Para ajudar a pensar sobre a escolha que Joan Castleman(Glenn Close) supostamente encaminha para sua vida, talvez seja bom ter em mente que em 114 premiações do Nobel de Literatura, apenas 14 foram dados para escritoras. "A necessidade é de ser lida", diz uma outra escritora personagem do filme, Elaine Mozell, interpretada pela nossa conhecida Lady Crawley de "Downton Abbey", Elizabeth McGovern. 2 O filme encaminha com muita competência a questão central capturando o espectador na trama na qual se apoia, bem envolvente mesmo. Para colaborar ainda mais um pouco para pensar a questão que ele propõe, poderemos sugerir a busca de dados sobre as inúmeras mulheres escritoras que para terem suas obras publicadas ou mesmo para que não fossem declaradas loucas, adotaram nomes masculinos para publicação, porque praticamente até o início do século vinte não era bem recebido pela sociedade que uma mulher desejasse escrever outra coisa que não cartas de amor e amizade. Há um filme excelente para abordar isso, "Ópio - Diário de Uma Louca"/Ópium: Egy elmebeteg nö naplója[2007], de János Szász . Há muitas escritoras que só tiveram seus nomes femininos levados a público depois de falecidas, como por exemplo, Amantine Dupin que escrevia como George Sand e foi amiga de muitos escritores influentes de sua época como Balzac, Flaubert, amante de Chopin e do poeta Alfred de Musset, embora tivesse apoio de todos permaneceu publicando com o seu pseudônimo masculino. Muitas outras, como a hoje muito famosa Jane Austen, recorriam a publicações anônimas, que foi o caso da sua consagrada obra “Orgulho e Preconceito”, onde na autoria no original lia-se: “Escrito por uma dama”. Muitas recorreram a esse artifício como temos aqui no Brasil como exemplo o caso de Maria Firmina dos Reis, autora do romance Úrsula (1859), considerado por alguns historiadores como o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira onde assina como “uma maranhense”. As irmãs Brontë que publicaram com nomes masculinos Currer, (Charlote), Ellis (Emily ) e Acton Bell(Anne). Esses são apenas alguns casos dos mais conhecidos, após ver o filme resta inevitável pensarmos em quantos casos não conhecidos Cinematerapia poderão ainda se ocultar por detrás de autores reconhecidos. Vale a curiosidade, já há sites e pesquisas publicadas buscando dar sustentação a descoberta dos nomes de muitas dessas escritoras. A personagem Joan era uma tímida aluna universitária(Annie Starke) do já reconhecido professor Joe Castleman, ao escrever um conto para a matéria dele que frequentava, acabará por lhe chamar a atenção por já ali ele perceber nela um grande talento natural para a escrita. Aos poucos eles se aproximarão amorosamente e ele deixará seu casamento para ficar com ela. Ele finaliza seu primeiro livro e Joan o criticará pedindo para editá-lo, no que ele após uma crise acabará consentindo. Ele fará muito sucesso a partir dessa obra e sua carreira brilhará. Joan se apresentando socialmente sempre ao lado de Joe e fornecendo a ele toda a sustentação funcional que se costuma exigir de uma boa esposa. Eles têm dois filhos, uma filha grávida prestes a dar O Cinema e o Feminino a luz, Susannah(Alix Wilton Regan) e David(Max Irons) que também é escritor e busca angustiadamente a aprovação de seu pai. Durante a estadia de Joan e Joe em Estocolmo para a cerimônia do Nobel, o jornalista Nathanial Bone(Christian Slater) se aproximará de Joan dizendo a ela que está escrevendo uma biografia sobre Joe Castleman e lhe fala sobre suas desconfianças sobre a verdadeira autoria da obra dele. Oficialmente está posto que Joan deixara de escrever após seu casamento com Joe, sendo ele o escritor da família. O jornalista tem como pista o único conto assinado por Joan que fora publicado em um jornal da Universidade. 23 A perspectiva de Joan pode ser abordada de pelo menos duas maneiras, uma a vitimiza e a outra a coloca como uma mulher que resolveu se adequar passivamente aos ditames de lugar social tirando disso sua gratificação. O enredo mostra o quanto a premiação do Nobel pela obra de seu marido desarrumará um acordo até então vivido como se fosse algo assentado e tranquilo. Joan viveu até então voltada para a organização de sua família, enfrentando ao longo das décadas de sua união com Joe inúmeras vivências de infidelidade do marido que mantinha casos extra conjugais com colegas e alunas. Em determinado trecho Nathanial Bone dirá a ela que tomava isso apenas como extravagância muito comum em homens geniais, fica como ironia diante do que o filme revelará. O discurso de poder é sempre abordado a partir de uma ordem falocêntrica, ao comportamento masculino tudo ganhará contornos de enaltecimento e não de crítica ou questionamento. A Joan que Glenn Close construiu é absurdamente convincente, faz pensar em tantas mulheres cuja inteligência ficou guardada como segredo de família. Toda a opressão a qual ela é submetida é como uma “doce prisão” que tantos romances escritos por homens quiseram convencer às mulheres ser o lugar que lhes cabia, abnegadas e amorosas servindo ao bem maior da família e em primeiro lugar ao marido. O dote entregue como era até o século vinte entregue as heranças das filhas para administração e gasto de seus maridos. Dote aqui assumindo um entendimento amplo e metafórico. As mulheres não pertencentes à classe operária ganharam o mundo do trabalho mais fortemente a partir da Segunda Grande Guerra, e de lá em Cinematerapia diante não quiseram retornar passivamente ao lugar que lhes era destinado antes disso. Com a chegada da pílula anticoncepcional a liberdade sexual marcou bastante da nova subjetividade que ela podia construir, dona de seu corpo e prazer, trazia como correlato a isso uma exigência em ser mais amplamente reconhecida. Foram aos poucos deixando de passar adiante a assinatura por suas obras, descobertas, invenções, produções etc. Na história do cinema temos a polêmica em torno do nascimento do filme ficcional, não mais documental fotográfico. É comum atribuir a Geòrges Méliès o surgimento dessa forma de fazer filmes, porém hoje sabemos que a diretora francesa Alice Guy Blaché já fazia filmes dessa maneira ao que se tem notícia em 1896(La Fée aux choux -A Fada do Repolho) muito antes de Méliès que mereceu até uma belíssima e merecida homenagem feita por Martin Scorsese em seu “Hugo”(2011), O Cinema e o Feminino embora talvez sua posição na história possa ser revisitada. 24 Todos os anos as grandes premiações do cinema voltam a ter que enfrentar o questionamento não somente sobre equiparação salarial entre atores e atrizes, mas também pela baixa presença feminina em postos de comando, assim como no recebimento de prêmios que marcadamente têm sido dados aos seus colegas homens. O talento feminino ainda mais incomoda do que é objeto de admiração, a linguagem propriamente feminilizada ainda é bastante estranha a todo um entendimento construído a partir de premissas bem condizentes ao poder másculo predominante, neste sentido a personagem de Joan Castleman em todo seu vigor discreto e aparentemente bem combinando com o dito de que “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher” é um convite a profundas reflexões, contém um tremendo toque de ironia. Nossa anti heroína ensina mais que produções de um protótipo de mulher maravilha. Revela o que se oculta ainda como uma resistência a entender a igual possibilidade de sujeitos independente da marcação de gênero produzirem o que há de melhor na humanidade. Joe Castleman surge como a própria denúncia do ilusionismo alimentado sobre a superioridade masculina, mais aparência que essência, mais jogo de cena do que visceralidade, mais virtualidade do que honesta exposição, o rasgar-se que toda boa escrita necessariamente inclui. Toda pena é feminina, não importa o gênero que a sustenta. Desnudar-se nas letras que compõem o que nos forma nas palavras ou como diria Dider Anzieu em sua obra “O Eu Pele”: “A palavra do outro, se oportuna, viva e verdadeira, permite ao destinatário reconstitui seu envelope psíquico(...)Isto assim funciona na amizade, na cura psicanalítica, na leitura literária”. O que Joan introduz nas histórias criadas por Joe é essa coisa viva e verdadeira. Um casamento que poderia ser perfeito, mas que se perde justamente na capacidade masculina de oprimir e se apropriar de tudo que lhe confere poder. O ouro da pena. Os filhos do casal talvez representem a tensão que sustenta essa trama Cinematerapia familiar, filhos que foram afastados do convívio da mãe que passava horas trancada no escritório produzindo as joias da família, Joan a certa altura, quando enfim explode o não dito desse grupo, falará sobre isso com muita dor. O filho David, estupefato, perguntará ao pai como pôde fazer isso à sua mãe, dilapida-la de tal forma. Joe sofre quando tem que enfrentar a provável ausência de sua sustentação, da farsa que seria enfim denunciada, seu coração não resiste e assina o derradeiro acordo. O espectador atento poderá se perguntar ao final se Joan será capaz de silenciar-se já que entende que quem escreve o faz como necessidade quase igual a alimentar-se, ter algo a dizer ao mundo não é uma coisa da qual se possa abrir mão. A continuação da história se dará pós os créditos na imaginação de cada um que for tocado por O Cinema e o Feminino essa bela e potente produção. 25 Cap. 05 Inacreditável (Unbelievable, 2019) “Mesmo com boas pessoas, mesmo com pessoas que você pode confiar, se a verdade é inconveniente, se a verdade não faz sentido, elas não acreditam.”(Marie Adler) Cinematerapia A Rede de Streaming Netflix tem se consolidado não somente na reprodução de filmes e seriados, mas também como uma forte concorrente na produção de conteúdo. A cada mês tem lançado títulos próprios e surpreendido seus consumidores. Inclusive depois de levantar muita discussão, suas produções têm sido aceitas como concorrentes em grande festivais de cinema, caso mais notável fica pelo Oscar 2019 dado a “Roma” de Alfonso Cuarón como Melhor Filme Estrangeiro, concorreu pelo México, mas também havia sido indicado na categoria de Melhor Filme, e ganhou também o Oscar de Melhor Direção e Melhor Fotografia. Também tem a streaming honrosas passagens por festivais como Veneza e em Mostra paralela em Cannes 2019 o que incensou a discussão existente por lá quanto às produções da plataforma no festival que passou a exigir que tenham sido exibidas em salas de cinema na França, o que a Netflix se recusa a acatar. O Cinema e o Feminino Inacreditável chegou bem devagar, sem muito alarde. Causou um desconforto muito grande por onde passava e aos poucos os internautas começavam a falar mais e mais sobre ele, ganhou seu espaço de debate pela própria força da produção. É denso, intenso, desconfortável, mas altamente necessário nos dias de hoje. Depois de levar os primeiros socos no estômago, o espectador começa a ser apresentado a uma teia de sofrimento psíquico inimaginável e que, infelizmente, não está muito longe do real quanto a denúncia da mulher em relação a abusos sofridos. Seu primeiro episódio é tensão máxima e o espectador desavisado é lançado com intensidade na vivência absurda de uma pessoa estuprada, todo o calvário que muitas ainda têm que enfrentar quando resolvem denunciar. 26 A obra se baseia em um artigo investigativo que ganhou o premio Pulitzer de jornalismo, An Unbelievable Story about Rape, Ken Armstrong e T. Christian Miller. Isso a torna mais desconfortável, não somente por ter acontecido, mas por sabermos o quão comum ainda é hoje, especialmente se pensarmos em um país machista, misógino e violento com as mulheres, como o nosso Brasil atual tem se revelado em sua face mais sombria. Embora sua dureza, conta Ken Armstrong que o que mais lhe chamou a atenção foi como a jovem repetia incansavelmente que faria tudo novamente, a denúncia quanto aos abusos sofridos por parte dos primeiros investigadores que cuidaram de seu caso. Nosso seriado é centrado inicialmente em Marie Adler(Kaitlyn Dever), jovem adulta, negligenciada de afeto desde sua pequena infância e uma de tantas crianças que rodaram pelo sistema americano de “foster parents”. Desde que se lembra, sua infância fora marcada por mudanças de lares, alguns com afetos, outros nem tanto. Resgatada aos 11 anos de uma casa onde sua mãe fabricava drogas com seu novo parceiro, jogada de casa em casa, a adolescente desenvolve toda uma estratégia para sobreviver psiquicamente a um afeto faltante e as constantes mudanças de ambiente em sua vida. Conheceremos a personagem quando ela está com dezessete para dezoito anos, fazendo sua transição para a maioridade. A série começa em 2008, com Marie fazendo parte de um programa de transição, onde ao completar a maioridade, e legalmente saindo do sistema de cuidados do governo, os jovens adultos passam a morar sozinhos, mas ainda orientados e supervisionados dentro da comunidade residencial. São Cinematerapia mantidos sob supervisão para que possam transitar e serem adaptados a uma vida autônoma. Marie ainda tem contato com duas famílias que a acolheram recentemente e são essas poucas pessoas que farão parte de seu drama, juntamente com seu amigo e ex namorado. A série é composta por oito episódios que causam muito desconforto em um círculo sufocante, especialmente os primeiros. Acompanhar o sofrimento de Marie não é para todos. Fica aqui o alerta de gatilhos emocionais, pois foram vários os relatos virtuais de pessoas que não aguentaram o peso emocional que a série desperta, em muitos momentos ela se torna extremamente aversiva, porque joga no sofá do espectador algo muito real e inacreditável em sua existência, coisas que, via de regra, se prefere não pensar sobre. Para quem sofreu alguma espécie de trauma relativo à questão, ver a série pode ser ainda mais difícil ou mesmo insuportável, embora ela premie o esforço O Cinema e o Feminino com um final redentor. O drama de Marie começa quando seu apartamento é invadido e ela sofre violência sexual, a característica do ataque é formulada para ser mesmo inacreditável, uma vez que o estuprador não deixa qualquer sinal de seu crime. Isso por si só já seria uma quantia de sofrimento psicológico imaginável, mas o que se segue coloca a nossa personagem em um oceano de negligências e abusos. Os policiais despreparados que perguntam por diversas vezes a mesma coisa, algumas delas com ironia e agressividade, fazendo a pobre menina reviver seu abuso dezenas de vezes. 27 Não há qualquer empatia ou acolhimento a ela, nem mesmo pela enfermeira que faz a coleta de material para análise. É possível ver um mecanicismo total despreparado e sem humanização no atendimento. Sua única rede de apoio é composta por suas duas ex-foster mães e poucos amigos do condomínio onde mora. Começam aqui as negligências policiais, com as entrevistas e interrogatórios que deixam qualquer espectador tonto e irritado. A cada entrevista e interrogatório, um novo reviver de seu trauma, sem qualquer tato ou amparo emocional. Vale ressaltar aqui que pessoas lidam de maneira diferente com situações de conflitos e abuso, indo desde o processo de negação até somatização ou apatia e depressão. Marie, já acostumada com negligências emocionais e com ausência de afeto, lida de maneira singular com o abuso e isso desperta desconforto naquelas duas únicas fontes de afeto que tem até então: suas mães, sua aparente indiferença traz a dúvida a quem não quer mesmo pensar em suas possíveis omissões. Ao avisar a polícia sobre suas suspeitas, suas mães desencadeiam uma série de situações que levarão nossa personagem a sofrimentos inimagináveis. Todos ao seu redor, até mesmo por comodismo, preferem por em dúvida sua denúncia. Nos episódios sucessivos o trauma será ainda mais cruel e Marie será desacreditada pelos policiais envolvidos, por seus amigos e até pelos seus orientadores no programa de casa que participa, programa do qual acaba sendo expulsa por conta da punição que sofre pela denúncia feita. Seu sofrimento escalona e não tem mais qualquer suporte ou apoio, ela se verá desacreditada e absolutamente só. Não tem família e os poucos amigos Cinematerapia começam a se virar contra ela. Aqui começamos a trama paralela em um corte temporal e três anos depois, a policial Karen Duvall(Merritt Wever) começa a investigar denúncia de casos semelhantes e conversando com seu marido ele sugere que ela fale com outra investigadora, Grace Rasmussem(Toni Collette). Aqui temos um novo olhar, de uma policial empática, cuidadosa e que foca sempre nas vítimas. Tem-se a impressão de que estamos lidando com universos distintos, uma vez que as maneiras de lidar são tão distintas. Karen é um exemplo de policial e dá todo o suporte a nova vítima. Enquanto Karen investiga no futuro, Marie é massacrada no passado. É um ponto ainda maior pra alavancar a série a presença de Toni Collette que faz sempre ser uma delícia ver personagem interpretada por ela, mas diga-se que Merritt Wever marca com maestria sua personagem que faz par com Collette, elas que farão toda a diferença ao investigarem um crime O Cinema e o Feminino dessa natureza. Para contrapor com a doçura da policial Karen, aqui conheceremos a policial Grace (Toni Collette), mais durona, com maior experiência e mais séria na luta pela verdade das vítimas. Mais experiente e já um pouco enrijecida pelo sistema e pela experiência, mas sem perder seu lado humano. Grace e Karen começam uma relação de trabalho meio complexa, de parceria e amizade, que será crucial para o desenvolvimento da série, Duvall guarda em si uma antiga admiração em relação a Grace. Enquanto isso, no passado, Marie encontra a princípio, acalento e amparo no ex-namorado, diferente do que acontece com a vítima atual que Karen Duvall investiga com todo cuidado, a jovem Amber Stenvenson(Danielle Mcdonald) que será peça fundamental em toda investigação pelas informações precisas que fornecerá quanto ao 28 ocorrido. Esse tipo de produção é fundamental para o que chamamos de cinematerapia acadêmica, pois tem uma função social muito importante. Esse seriado deveria ser visto e trabalhado no processo de formação dos profissionais que irão lidar com vítimas de violência, abusos, tentativas de feminicídio, tendo em foco e guardadas as peculiaridades e indicações legais de cada recanto. Seja nas delegacias, seja nos fóruns ou nos locais de atendimento médico, psicológico e social, todos precisam saber como é esse sofrimento e como jamais devem agir nesses casos duvidando ou culpabilizando a vítima, colocar em dúvida ou relativizar uma vivência tão traumática é com certeza aumentar em muito sua malignidade, é se por ao lado do abusador. Se há algo que Karen e Grace sublinham com seu impecável trabalho é essa questão do cuidado, é bastante emocionante quando ao fim das investigações Karen recebe um telefonema de Marie agradecendo por se sentir cuidada mesmo sem nunca tê-las conhecido. Com certeza isso é um impulso para um profissional em formação querer se espelhar nesse tipo de seriedade e empatia. Outro momento que a nós muito interessa se passa no sétimo episódio quando Marie é obrigada a ir a uma terapeuta para não ser processada por “falsa denúncia”(sic), fato que como uma de suas mães dirá e Marie reconhecerá posteriormente, leva a pensar, com ironia, que em tudo se pode salvar algo de bom. Nessa sequência veremos um momento carinho para quem aprecia a Cinematerapia psicanálise(e psicoterapias com modelo próximo). Uma condução técnica delicada e empática, realmente interessada, "escuta" para além do que se pensa estar sendo dito(escuta analítica), realizada pela psicoterapeuta Dara Kaplan(Brooke Smith). Claro que na realidade quase nunca as coisas se darão tão cadenciadas como vemos naquela sessão, mas é didático o momento, marca a diferença entre realmente acolher ou intervir por demais. Sublinha, inclusive, o que tratamos aqui do quanto um filme pode ter em seu relato agregado conteúdos do narrador, sequência então especial para os estudiosos da utilização na modalidade cinematerapia e apreciadores da psicanálise bem conduzida. Quantas e quantas Maries não existem aqui no Brasil, onde a sociedade esta cada vez mais machista, com aumento de mais de 70% nos casos de O Cinema e o Feminino feminicídio nos primeiros meses de 2019. 29 Um país que contabiliza 180 Maries POR DIA necessita com urgência desse tabefe que essa série(e fato real) traz à tela. O momento no último episódio em que Grace Rasmussem liga para o primeiro investigador do caso, detetive Robert Parker(Eric Lange) libera um grito da garganta do espectador, sua feição de espanto e desolação é sem palavras para descrever, como ele mesmo irá reconhecer, teve que se ver na face de tudo aquilo que sempre criticou, o policial negligente. Ao final o criminoso quer falar e tem que ser com investigador homem, não quer falar com Karen e Grace, como uma ironia ele diz que fica “desconfortável frente às mulheres”, ponto que passa sutil, mas que deve ser sublinhado como mote de todo ataque ao feminino, como esse ser incomoda ao ponto de precisar ser agredido e apagado, essa mulher que remete às próprias armaduras que a masculinidade quis erguer pra si e que hoje desesperadamente luta para manter, isso quando a transformação já se encontra em curso e inevitável. Veremos, mas não sem antes disso termos que lidar com a intensificação dos ataques, como por aqui em nosso país temos sido alertados neste ano de 2019, triste ano onde esse machismo de O Cinema e o Feminino Cinematerapia forma totalmente violenta tenta consagrar seu fake. 30 Cap. 06 Big Little Lies – Temporada 1 (2017) Dirigido por Jean-Marc Vallée(Clube de Compras Dallas/2013) e trazendo no elenco principal Nicole Kidman, Laura Dern, Reese Witherspoon, Shailene Woodley, Alexander Skarsgard, James Tupper, Zoé Kravitz e Adam Scott. Baseado no livro homônimo de Cinematerapia Liane Moriarty, que sofreu pequenas alterações para adaptação a televisão. Uma série que mergulha com um bom suspense em histórias femininas que abordam problemáticas dolorosas e complexas. Narra a história de cinco mulheres que entrelaçarão suas trajetórias em determinado momento de suas vidas. O filme começa apresentando essas personagens que lidarão com a chegada de Jane Chapman(Shailene Woodley) que é uma nova moradora da comunidade de Monterey, na Califórnia, que para lá se muda com seu filho, Ziggy(Iain Armitage). Esta não é a cidade da trama original, mas traz um novo olhar para o roteiro. Monterey esta localizada na costa Oeste americana e tem se tornado local de referencia de qualidade de vida para pessoas com filhos. Próxima de grandes centros urbanos mas com aspectos de interior, atraí anualmente migrantes de vários locais buscando paz e tranquilidade, assim O Cinema e o Feminino como Jane. Grande ironia do destino. Jane logo conhecerá a prestativa e super popular Madeline Martha Machenzie (Reese Witherspoon) que também a apresentará a sua grande amiga Celeste Wright(Nicole Kidman). Jane terá sua primeira impressão na escola de seu filho como bastante hostil via Renata Klein(Laura Dern) que é na localidade conhecida por ser a única mãe que trabalha fora, vista como uma figura meio arrogante e agressiva, mãe de Annabela Klein(Ivy George) e primeiro dia de aula acusa Ziggy de tê-la machucado. 31 que logo no Essa personagem deixa a boa chamada para o debate do mundo feroz que a mulher que trabalha tem que enfrentar, inclusive com o olhar de reprovação de outras mulheres, como se sua maternidade valesse menos. Por conta da acusação de agressividade entre as duas crianças a trama se desenrolará surpreendendo a cada episódio. A postura diante do fato demonstra a tendência a lidar com o estranho como algo ameaçador na tentativa de não enxergar o que se oculta por detrás de uma aparente ordem. Acompanhando a vida dessas cinco mulheres o espectador é convidado a pensar em questões muito atuais que giram em torno do cotidiano feminino. O suspense da série é muito bom e constrói de maneira crescente uma tensão que, ao mesmo tempo, vai fornecendo com parcimônia elementos para o desvendar da trama. A série é uma criação de David E. Kelley e produção HBO, consta de sete episódios, foi inspirada no livro homônimo de Liane Moriarty. Sabemos que grupos se movimentam quando da entrada de um novo membro, a reconfiguração que isso pode trazer muitas vezes mexerá em segredos até então muito bem protegidos e acomodados. A chegada de Jane à idílica Monterey se transformará nesse elemento transformador. Ela é uma mãe jovem e solteira que pouco ou nada revela sobre seu passado, há uma tensão com seu filho Ziggy justamente por ela se recusar a revelar qualquer informação sobre seu pai. Logo em seus primeiros dias ela conhecerá Madeline Martha Machenzie, socorrendo-a quando ela torce seu pé a caminho do primeiro dia de aula ao sair do carro para dar bronca em jovens Cinematerapia que seguiam falando no celular no carro à sua frente. Madeline é uma mãe já em seu segundo casamento, tendo duas filhas uma do primeiro, Abgail(Katryn Newton) e outra já do casamento atual, Chloe(Darby Camp) que será colega de Ziggy. Embora bem casada com uma figura muito acolhedora e simpática que é seu marido Ed Mackenzie(Adam Scott), mantém uma certa obsessão por Nathan(James Tupper) seu ex. Voltada totalmente ao seu papel de mãe, viverá a dor de ver sua filha adolescente ir se afastando e pedindo para morar com o pai, longe de seu imenso amor e superproteção. O vazio de ver sua meta de vida, sua função mais primordial ser diminuída. Madeline apresentará Jane à Celeste Wright(Nicole Kidman) que com o seu marido Perry Wright(Alexander Skarsgard) forma o casal modelo dentro da pequena comunidade, mãe de gêmeos que deixou sua carreira de advogada O Cinema e o Feminino com a chegada da maternidade. Monterey é uma pequena cidade habitada por uma classe média alta em busca de boas escolas particulares para seus pequenos, instituições famosas por seus preços moderados e bom ensino. As três formarão um grupo coeso e que enfrentará questões que se colocarão à medida que suas vidas vão sendo mais conhecidas umas pelas outras. Completa margeando o grupo a atual mulher de Nathan, Bonnie Carlson(Zoé Kravitz) mãe da outra filha dele. A tensão no grupo será sempre trazida por Renata(Laura Dern) que lida com sua culpa pela ausência em uma defensiva acusação contínua em relação às outras mães, agora centrada na acusação contra Ziggy. Há também presente no grupo a tensão que existe de Madeline em relação a Bonnie. 32 A série começa mostrando um assassinato, não se sabe quem morreu e muito menos quem é o culpado, os depoimentos de outros moradores da comunidade vão revelando que nem tudo ali é um paraíso de paz e boa convivência, nossas personagens vão sendo descritas de maneira um tanto cruel e acusatória. Então na verdade a série será toda como um flashback que tentará mostrar quem são os personagens envolvidos na trama até o momento do crime. O espectador conhecerá a intimidade dessas jovens mulheres e seus parceiros, aos poucos será confrontado com temas como: mães solteiras, superproteção, violência doméstica, segredos familiares, relações tóxicas, ciclo da violência, bullying, intervenção terapêutica de casal etc Nicole Kidman na pele da deslumbrante Celeste roubará o protagonismo, e na verdade será a história de sua personagem que amarrará toda a trama. Em determinado momento ela e o marido em busca de ajuda para que possam entender sua violenta e estranha relação, procuram uma terapia. É interessante ver o vínculo que se vai formando com a terapeuta. Dr Amanda Reisman(RobinWeigert), e de como frente a determinadas circunstâncias de grave perigo, ela utiliza uma orientação que consta também aqui na orientação ética dos psicólogos, proteger a vítima em primeiro lugar e da possibilidade de quebra de sigilo quando há uma ameaça real quanto a integridade física do próprio paciente ou de terceiros. O personagem Perry Wright(Alexander Skarsgard) virá trazendo a discussão em torno do típico homem abusivo, machista e misógino. Podemos supor que a misoginia nasça daquele núcleo existente no homem Cinematerapia onde sua parte de identificação com a figura feminina impulsionou grande quantidade de ódio na ambivalência que chega à consciência como aversão. Por outro lado a impossibilidade de lidar com investimentos homoeróticos presentes no complexo completo faz com que se sinta impelido a atacar a mulher com grande intensidade. Algumas vezes isso se manifesta travestido de um agressivo romantismo onde o desejo da mulher é o alvo do ódio, no sentido de anulá-lo. Alguns desses ataques são diretos e violentos(ou ainda sutis) e outros sofrem uma espécie de identificação projetiva e levam a que o homem necessite implantar uma relação(narcisista) onde preserve a questão sublinhada por Freud em seu texto “Um Tipo Especial de Escolha de Objeto”(1910), dividindo-se entre a mulher que é especial, objeto de sua dominação e todas as outras que servirão para uma sexualidade agressiva e desqualificadora, e O Cinema e o Feminino logo após descartadas também como meros objetos. A trama que envolve o casal Wright ficará bastante centrada nessa perspectiva. A história de Jane entrará aí para elucidar esses aspectos, não deixando margem para dúvidas. A série acaba por sublinhar, via a conclusão que leva como finalização, no quanto os vínculos afetivos formados na infância serão bem mais determinantes que qualquer tendência inata. A criança percebe para além do que o mundo adulto pensa comunicar, a tensão do ambiente é sentida e significada conforme os indicadores que deslizam para além da aparência. 3 Uma agressividade mais predominante poderá ser vista, maioria das vezes, como uma representação da própria vivência, como uma denúncia e um pedido de ajuda. No sentido oposto, os laços de cumplicidade, acolhimento e afeto possibilitam que vivências que poderiam trazer em si muito de explosivo, encontrem a possibilidade de comunicação e busca de alternativas de uma composição mais saudável, mesmo diante de enfrentamentos que incluem dor e frustração, Ziggy representará essa conclusão de forma doce, corajosa e terna. A série acaba por se constituir em uma possibilidade bastante rica de pensar “empoderamento feminino” e as questões que se circunscrevem no que atualmente se nomeia como “sororidade”, um grupo de mulheres que frente as suas diferentes dificuldades possibilita entre si uma busca por saídas de suas opressões, seja essa da ordem de uma própria e interna ressignificação, seja pelo enfrentamento de situações de violência. Ao mesmo tempo, a série passeia sobre diferentes posicionamentos do mundo masculino, apresenta figuras de homens que se posicionam de forma absolutamente diferente frente aos fatos da vida e as relações de parceria. Os pares apresentados acabam por possibilitar uma reflexão bastante interessante, não perdendo, entretanto, o foco na questão do feminino. A história apresentada e a forma como é conduzida produz um bom suspense, um entretenimento interessante, ao mesmo tempo convida ao olhar para questões complexas do universo afetivo. Explicita que nada é assim tão facilmente compreensível por dados aparentemente tão evidentes, que há nos fatos uma leitura que se oculta até mesmo em informações que Cinematerapia levariam a conclusões opostas, como o clímax deixará bem claro. A força da mulher no enfrentamento das questões obscuras que a submetem, estão em grande parte inscritas nas suas possibilidades de vencer a rivalidade a qual o machismo e a misoginia a convidam todo o tempo a operar, e comporem laços de ajuda mútua e enfrentamento. Na vida real sabemos que essa não é uma tarefa assim tão fácil, já que a rivalidade feminina é praticamente um traço cultural muito bem arquitetado e habilmente conduzido por um machismo que não deseja arredar pé de sua gozosa fragmentação. A belíssima produção da HBO deixa rasgado e claro o recado do quanto as mulheres têm a ganhar com sua união, a conclusão é direta e sem rodeios, crua mesmo, a metáfora fica por conta do ainda impossível, a escolha de jogar pra longe e dar fim a violência que é imposta a uma grande parcela de mulheres, seja ela emocional ou física, nas relações O Cinema e o Feminino pessoais ou profissionais. A belíssima produção HBO deu com clareza seu recado, falou bem e fundo sobre questões que invadem o cotidiano da mesma forma maledicente, insidiosa, pestilenta e violenta que vemos aos poucos a história do roteiro tomar a tela. Conduziu um espectador, atordoado, entre a beleza, o riso e a feiura que pode haver oculta sob a aparente harmonia. Nas ultimas semanas surgiram boatos sobre uma possível segunda temporada. Esta poderia ser desenvolvida a partir de explicações e cenas cortadas do livro, que dão um pouco mais de densidade e psicodinâmicas as personagens. Entretanto, a autora da obra já declarou que pode considerar ampliar o escopo de relações para dar uma continuidade, não em livro, mas apenas na produção da tv. 34 Finalizando com um devaneio que expressa obviamente seu desejo, não seria assim lindo a bela cena final na voz de Elza Soares com sua “A Mulher do Fim do Mundo”? “A minha casa, minha solidão Joguei do alto do terceiro andar Quebrei a cara e me livrei Do resto dessa vida, Na avenida, dura até o fim Mulher do fim do mundo O Cinema e o Feminino Cinematerapia Eu sou e vou até o fim cantar”. 35 Cap. 07 Big Little Lies – Temporada 2 (2018) Na texto anterios falamos dessa então minissérie e de como ele estava mobilizando as pessoas, especialmente da força das mulheres e de seus cotidianos que as exigiam de maneiras bem distintas Não foi surpresa que a série foi altamente indicada e premiada e então, se cogitou uma segunda temporada. Mesmo a história original, do livro, ter se Cinematerapia encerrado com a minissérie. Essa passou então para a categoria de seriado, com continuações possíveis. A princípio, para os fãs do livro e que se encantaram com a produção, essa continuação talvez não fosse possível manter o mesmo nível, mas, nada que uma boa equipe de roteiro, supervisionados pela autora e com uma adição ao elenco não tornassem isso possível. A série retorna em sua segunda temporada mantendo o fôlego e um bom enlace com o espectador. As “cinco de Monterey” continuam capturando a atenção e compondo boas tramas. Sem se afastar da história da primeira temporada, o enredo segue bem alinhavado e em um fio lógico que se sustenta com maestria. Ganha a grande presença de Meryl Streep que é introduzida nessa temporada como a mãe(Mary Louise Wright) do falecido O Cinema e o Feminino Perry Wright(Alexander Skarsgård), além da sempre prazerosa possibilidade de ver a atuação da atriz, a personagem vem acrescentar ao roteiro um maior aprofundamento e consistência, dando um passado a violência que gerou toda a trama. Acreditem ou não, é possível odiar Meryl pela sua personagem. O que torna toda a temporada muito ambígua porque somos sempre inclinados a idolatrar tudo que ela faz. E como o faz tão bem, sua personagem se torna tão rejeitada quanto seu filho da temporada anterior. Muitos são os pontos que a nova temporada sublinha, os mais evidentes seriam: a violência como fruto de uma história de agressões, como as famosas teias e raízes familiares que carregamos ao longo da vida. O quanto nossas histórias estão entrelaçadas com nossas vivencias mais infantis. 36 Outro seria o de homens que entram no casamento ocupando lugar de filho(o marido Gordon de Renata Klein interpretada por Laura Dern). Outro é o comportamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em vítimas de estupro (Jane Chapman interpretada por Shailene Woodley), a violência do abandono e a emocional(relacionamento mãe e filha de Bonnie Carlson, interpretada por Zoë Gravitz), a dificuldade da parceria isonômica(relacionamento de Madeline Mackenzie, interpretada por Reese Whiterspoon com o marido Ed Mackenzie interpretado por Adam Scott) e alguns outros, a série realmente capricha nas sutilezas. A amizade e cumplicidade feminina, aspecto difícil até mesmo pelo como a cultura insere entre as mulheres um aspecto permanente de disputa, toma o roteiro como a costura que amarra tudo. No início dessa segunda temporada parece estar por um fio, há muitos não ditos desconstruindo os laços, o espectador chega a ficar preocupado em ver desintegrar-se um dos aspectos mais interessantes da história, mas como tudo que verdadeiramente existe na vida, será justamente o enfrentamento das duras verdades que irá reforçar esse poderoso enlace ente essas cinco mulheres. A produtora de Reese Whiterspoon, a Pacific Standard, tem sido descrita como uma produtora primordialmente feminista e que busca contar histórias de mulheres que não costumam aparecer muito como mote de produções, já foi responsável pelos filmes “Garota Exemplar”( Gone Girl/2014) e Livre(Wild/2014), despontando ainda mais com o grande sucesso de Big Little Lies primeira e segunda temporada que já angariou prêmios importantes como os quatro dos seis troféus que disputava no Globo de Cinematerapia Ouro. A HBO apostou na produção e parece que acertou nessa aposta, tem sido reverenciada por isso. A história da segunda temporada segue a da primeira, após a morte suspeita de Perry Wright e a investigação sobre ela que envolverá as quatro mulheres. A vida segue, tentando voltar ao normal após a tragédia. Celeste(Nicole Kidman) é surpreendida pela chegada da sogra Mary Louise que pretende morar em Monterey para ficar próxima aos netos. O que em um primeiro momento parecerá até um alento, se transformará em um conflito com a espionagem e o julgamento da sogra em relação ao comportamento da nora, da revolta dela em relação às histórias narradas sobre seu filho e mais adiante na disputa pela guarda dos gêmeos que inciará, esta atitude por parte dela fará surgir uma Celeste que poucos conheciam e novos padrões de comportamento que assumirá agora longe do jugo do violento marido. O Cinema e o Feminino Veremos uma mulher altiva surgir por detrás dos escombros da antiga, é bonito ver como isso vai se construindo, o roteiro é delicado, nada sentimentalóide ou ilusório, vai com esmero e com altas doses de realismo, fazendo surgir uma mulher muito diferente, uma nova personagem nessa trama estranha, dona da sua voz e do seu lugar de fala, quando, por exemplo, resolve advogar em sua defesa na audiência de custódia de seus filhos. Faz ver a muitas mulheres que é possível recuperar-se de uma relação violenta e abusiva, há sempre uma reserva de energia que poderá fazer surgir novos dias brilhantes. 37 O luto existente na saída de um péssimo relacionamento não precisará jamais ser a sentença final de uma disposição de viver bem, de amar e de ser sujeito livre no mundo. Celeste é a síntese das questões femininas e uma seta apontada para o alvo no sentido de que é preciso se afastar da opressão como único caminho onde os pés das mulheres podem tocar. Não é preciso se machucar porque se tem energia sexual , desejos , fantasias e fetiches. A sexualidade feminina é tão autoral, autônoma e inventiva quanto a masculina costuma se vangloriar de ser. Foi muitíssimo comentado pela crítica especializada e nas redes sociais o quanto Laura Dern teria arrebatado o público nesta segunda temporada, o que parece ser bastante crível, ela realmente dá um show de interpretação e seu enredo na temporada foi valioso. Aliás, Renata é a personagem que rouba a cena nessa temporada. Laura Dern tem sido apontada como principal destaque e suas cenas são as melhores. Há quem diga que conseguiu desbancar Meryl em uma das cenas finais da temporada. Veremos quando saírem as indicações dos prêmios brevemente. Poderemos pensar no quanto sua personagem Renata Klein, a típica mulher executiva e bem sucedida, costuma muitas vezes alimentar um casamento onde o parceiro acaba se acomodando em uma posição de “filho mimado”, Gordon e seu passatempo com maquetes de ferrovias é o próprio meninão irresponsável brincando com a vida e desobedecendo a autoridade materna agora colocada na parceira. Ele faz um péssimo investimento, acaba preso por fraude e é decretada falência o que leva seus bens, economias e todos os investimentos de Renata que surta completamente com a destruição da nova Cinematerapia história que construíra para si com a certeza de dar a filha uma perspectiva bem diferente de sua infância pobre. O quanto de alguma forma o masculino está ali posto para brincar e destruir todo o poder erguido por uma forte mulher, na disputa entre os gêneros a parceria muitas vezes não salva, não prepondera. Tem uma tremenda força essa personagem dentro da trama, traz à tona uma armadilha que o feminino deve estar atento, de não se colocar a partir de um lugar de poder, sob a alienação de um centro masculino, de não identificar-se com um modelo que rouba tudo aquilo que se reconhece como características da feminilidade. Jane Chapman terá que enfrentar seus traumas ao iniciar uma amizade com seu colega de trabalho que a envolve amorosamente. Cada toque físico a joga na vivência do estupro, a angústia e a ansiedade tomam conta impedindo o O Cinema e o Feminino estabelecimento de novos laços e de um envolvimento sexual. Para completar o momento delicado, Mary Louise descobre que também é avó de Ziggy(Iain Armitage) e iniciará um verdadeiro assédio tentando se aproximar, ao mesmo tempo questionando a veracidade quanto ao fato de seu filho ser um estuprador e culpabilizando a fragilizada Jane. É muito sensível essa parte na temporada, mas não incorre no erro de exagerar nas cores e nem de vitimizar por demais Jane que luta para, assim como Celeste faz, retomar sua vida, seu afeto e sua sexualidade, rompendo o isolamento ao qual havia se lançado e ao seu filho, isolamento este que já havia sofrido uma abertura na temporada anterior quando sua história é revelada. Monterey para ela foi e é o susto e a libertação. 38 Madeline a grande líder do grupo também atravessa um momento delicado, seu marido Ed a escuta discutindo com a filha que fala sobre sua traição, isso lançará o casamento em uma possibilidade de dissolução. Vemos nesse casal o terreno instável que uma parceria mais condizente com a atualidade traz pra cena principal, onde a isonomia entre os gêneros está mais presente e por isso mesmo mais explosiva e delicada. Em um momento onde tudo ainda se inscreve em uma espécie de ensaio e erro, a delicada construção de uma parceria igualitária é complexa e cheia de momentos de compreensão e perdão ou de derrota e afastamento. Há inúmeros casais nos dias de hoje que diariamente empreendem um enorme esforço, maioria das vezes às cegas, para compor laços mais condizentes com o que se idealiza com um encontro amoroso entre gêneros. Quem pensa que isso seja “natural”, desconhece a mão pesada dos costumes que lançam em estratificados papéis de gênero desde muito cedo. A delicadeza com a qual Madeline espera o tempo do parceiro, a coragem do olhar de Ed para Madeline, a generosidade que amarra a união que refaz os votos, é muito bonita e lança esperança aos desesperançados no amor contemporâneo. Bonnie de certa maneira completa essa história com a insistência do quanto é preciso revelar para que haja uma liberdade verdadeira. Não há amarras mais poderosas do que as áreas de silêncio e os não ditos tão traumáticos, formadores da ira e da hipocrisia. Ao revelar sua própria história que dá lugar à defesa agressiva cerne da trama, sua relação complicada, reveladora da extrema ambivalência que costuma estar presente nas relação mãe e filha, a Cinematerapia história se comporá ainda com mais veracidade, o gesto impensado revela em si uma longa trajetória de dor e agressividade contida, o acaso é na verdade um desfiar de um longo fio histórico onde várias formas de opressão se reuniram em uma cena. Meryl Streep e sua atuação sempre impecável fecha a história dando-lhe sentido, não há violência que não traga histórias ocultas e repetições de traumas. Ela traz ao espectador com maestria a senhora contida, recatada, aparentemente dedicada à família que oculta uma insatisfação explosiva e de certa forma violenta. A típica mulher conservadora, adaptada ao convencional papel social reservado à mulher, mas que destila descontrole, injúria e uma crítica que parte de um lugar ilusoriamente construído. A história da mulher revelada nessa personagem que não se sustenta em seus contidos gestos de aparente dedicação e bondade e que na verdade revelam O Cinema e o Feminino mesquinharia e impaciência, dor e solidão. A forma como a série resolve abordar essas histórias femininas toca questões dolorosas e fundamentais, faz isso tudo com cuidado, generosidade, competência e carinho. Mas, com certeza não é uma história somente para mulheres, muito ao contrário, os homens retratados por ela, aparentemente propositalmente personagens coadjuvantes, alimentam também reflexões muito necessárias se não quisermos ter que fechar opinião nos teóricos que querem lançar essa época como tempos da solidão e desencontro amoroso. Big Little Lies, apesar do título, lança esperança de que o amor, a amizade, a fraternidade e a paixão, sejam igualmente acessíveis ao feminino e ao masculino. 39 Cap. 08 Babadook (2014) “Partimos da grande oposição entre os instintos de vida e de morte. Ora, o próprio amor objetal nos apresenta um segundo exemplo de polaridade semelhante: a existente entre o amor (ou afeição) e o ódio (ou agressividade). Se pudéssemos conseguir Cinematerapia relacionar mutuamente essas duas polaridades e derivar uma da outra! .” FREUD, S. - Além do Princípio de Prazer/1920 Antes de ler essa coluna é preciso darmos DOIS alertas. Escrever sobre essa produção não será possível sem entregá-la em partes importantes, então é recomendada a leitura para quem já a assistiu e quer pensar sobre seus aspectos ou quem não se importa em com spoiler antes de assistir a um filme.. E dois, esse é um filme que requer companhia para assistir pois vai testar suas unhas, seu pulmão e especialmente seu coração, pois é uma espécie de filme de terror diferente. Primeiro longa da diretora australiana Jenifer Kent, escrito e dirigido por ela, ampliado a partir de seu curta “Monster”(2005). A diretora tem longa O Cinema e o Feminino trajetória como atriz e professora de artes cênicas em grandes escolas na Austrália. Quando quis iniciar na direção pediu para trabalhar com Lars Von Trier que seria em sua concepção sua escola de cinema, o diretor trouxe-a para trabalhar como assistente em “Dogville”(2003). Ela é conhecida por ser defensora de que mais mulheres se insiram na direção de filmes de terror. Este filme esteve aqui no Brasil no Festival de Terror de Porto Alegre( FANTASPOA) e comercialmente foi trazido apenas pela streaming Netflix. A verba para execução do filme foi em grande parte dada pelo governo australiano e outra parte por campanha que a diretora empreendeu para sua arrecadação. O filme foi muito bem recebido e já faturou uma quantia considerável. Bem vinda, então, Jenifer Kent, ao cinema de terror! 40 O bom ponto desse filme é gerar uma dúvida que não é resolvida com sua finalização, deixando para a consciência do espectador decidir entre as duas possibilidades mais evidentes, o mundo do fantástico espiritual ou o mundo do fantástico da mente humana. O clima de tensão psicológica é sem dúvida o marcante neste filme. Faz Eva(Tilda Swinton) mãe de Kevin(Ezra Miller) do "Precisamos Falar Sobre Kevin"(We Need to Talk About Kevin/2011), parecer a mãe mais saudável do mundo, uma comparação para se ter noção do impacto dos personagens muito bem apresentados por Essie Davies(a mãe, Amelia) e o encantador menino Noah Wiseman(o filho, Samuel). Sabe aquele título de artigo tipo “Tudo que não te contaram sobre a maternidade”? É este filme apresentado de forma assustadora, transformando em terror o que o alemão “O Estranho Em Mim(”Das Fremde in mir/2008) já havia abordado também com algum suspense, mas puramente psicológico. Ou ainda como passou a ideia a personagem Joe, do Ninfomaníaca (Nymphomaniac/2013) de Lars Von Trier ao viver a maternidade e sua sexualidade indomável. O filme inicia com lembranças do acidente que Amelia sofreu a caminho do hospital já em trabalho de parto, acidente que resultou fatal para seu marido e pai de Samuel, Oskar(Benjamin Winspear). Em meio ao sonho escuta a voz de seu filho que a chama insistentemente e diz que voltou a ter aquele pesadelo, ela se levanta e vai com o filho verificar que não há nenhum monstro. Ao que parece esse episódio se repete por muitas noites e já aí Amelia parece muito esgotada, tem dificuldade em levantar-se para a rotina de levar Samuel a escola e ir para o seu trabalho logo em seguida. Ela trabalha Cinematerapia como cuidadora em um lar de idosos, parece atenciosa e carinhosa em suas tarefas. É chamada ao telefone pela escola do filho e lá chegando lhe mostram uma arma artesanal de atirar dardos que ele havia levado e lhe informam que contratarão um monitor para acompanhá-lo todo o tempo e alegam que ele tem graves problemas de conduta. O filme assim já nos apresenta a uma criança de comportamento bem agitado e uma mãe evidentemente esgotada e deprimida. O aniversário de Samuel está próximo, data que deixa Amelia sensível pela lembrança de seu luto, o acidente que matou seu amor. Logo de início a tensão existente na relação mãe e filho vai se evidenciando de uma maneira bastante incisiva, não deixando margem para dúvidas em relação a existência de uma problemática subjacente bastante intensa. Neste trecho podemos sugerir um livro infantil com o título de “Quando Mamãe O Cinema e o Feminino Virou Um Monstro”, da autora Joana Harrison, onde uma mãe estressada vai aos poucos se transformando literalmente em um monstro verde. Amelia ou Babadook, de quem Sam na verdade está falando é a questão que o filme deixará para o espectador acompanhar. Em determinado trecho Sam se queixa de sua mãe para o colega de trabalho dela que vai visitá-los, Robbie(Daniel Henshall) e lhe diz: “Ela não quer me dar uma festa de aniversário e não quer que eu tenha um pai.” Babadook se faz a cada momento mais presente na vida dessa angustiada dupla que vive algo que poderíamos pensar muito próximo a uma “folie à deux” e a essa altura a três porque inclui o espectador. Em outro trecho mais adiante Amelia pedirá desculpas por vir sendo uma péssima mãe desde que o pai de Sam morreu, o que significa então a totalidade dos sete anos de vida dele. 41 Sabemos via dados estatísticos que a violência cometida contra mulheres, crianças e vulneráveis é em sua grande maioria proveniente de laços afetivos próximos, quanto mais se estuda essas questões mais isso vem se confirmando. Um ambiente familiar tóxico deixa marcas profundas em personalidades em desenvolvimento, compõem uma infância turbulenta e que grita ameaçada, como o pequeno Sam, em sintomas que expressam verdades que não encontram outra forma de se mostrarem. O ciclo que se cria em uma relação que está dinamicamente alterada é muito bem apresentada neste filme. Sam sofre um colapso após a festa de aniversário de sua prima e no hospital o médico sentencia: “Toda criança vê monstros”. Amelia tenta explicar que é mais do que isso e descreve a crescente agressividade de Sam, na verdade talvez denunciando a sua própria que também vai em um crescente. Tudo que se quer é calar o sintoma, o médico indica a avaliação com um psiquiatra e receita tranquilizante a pedido da mãe que se declara incapaz de lidar por mais tempo com a situação. Um pedido explícito de socorro que não é devidamente entendido pelo médico. “Eu prometo proteger você se você prometer me proteger. Então não falarei dele(Babadook)”, diz Sam para Amélia enquanto ela lhe entrega o calmante para que durma. A partir daí o “clima” do filme se intensificará de forma vertiginosa, o espectador se defrontará com Babadook, agitado em um sentimento de medo e desamparo. O livro rasgado por Amelia reaparece em sua porta prometendo a ela “O Babadook crescendo bem sob a sua pele”. Veremos que de seu jeito já completamente confusional Amelia pede ajuda Cinematerapia ao médico, a sua irmã e até à polícia, embora todos a tratem com desconfiança, como uma mulher perturbada, nenhuma ajuda efetiva lhe é oferecida. A vizinha, Mrs Roach(Barbara West), diz sobre Sam: “Ele vê as coisas como elas são”, ao responder a mãe que não se incomodava com a franqueza dele sobre sua doença(Mal de Parkinson). Assistentes sociais batem à porta de Sam e Amélia por ele não estar mais inscrito na escola, isso após ela supostamente ter achado uma infestação de baratas em sua cozinha e estar no meio de uma faxina. O espectador tem aí uma esperança de auxílio para ela e compreensão racional da narrativa, mas eles estranhando toda a situação prometem voltar em uma semana, mais uma vez não virá auxílio. Sam dorme todo o tempo por conta da medicação, a madrugada cai acordando monstros que agora perseguem somente Amelia envolvida em seus medos e ambivalências não compreendidos. Para O Cinema e o Feminino ilustrar isso de maneira muito original vemos na tv que ela assiste algumas 42 cenas de Georges Méliès, os monstros nos assustam desde sempre, para combatê-los criamos toda a espécie de amuletos e crenças, exteriorizamos os fortes sentimentos que falam de um desamparo primordial, como esclarece de forma contundente Sigmund Freud em seu texto “O Futuro de Uma Ilusão”. O dia amanhece com Amelia em frente ao aparelho de televisão, a luz insiste nas cortinas, despertando-a de seu torpor. Agora é a agressividade dela que começa a ser desenhada passo a passo, deixando Sam ainda mais assustado. Agora sua mãe o deixa inclusive sem suas necessidades básicas atendidas, como a fome que reclama enquanto ela o responde com mais agressividade. Logo depois se culpa e dá a ele o que quiser como compensação. Estamos aí a um pouco mais da metade do filme e agora Babadook dominará a cena. Amelia interrompe a relação com o mundo exterior(e a realidade) cortando os fios do telefone e cerrando janelas e portas quando Sam pede para dormir na casa da vizinha porque algo havia “invadido sua casa”. Diz ela que não deixará que nada entre na casa, aqui agora já tomada por Babadook. Uma longa jornada noite adentro fará com que mãe e filho enfrentem os fantasmas de sua relação atravessada pela morte de Oskar, marido e pai. Amelia enfrenta Babadook e o tranca no porão, visitada dias depois pelos assistentes sociais pode agora contar a história da morte de seu marido no dia que seu filho nasceu, poderão enfim comemorar seu aniversário de sete anos no dia certo. Babadook seguirá trancado no porão representando toda sua dor e angústia. Um filme que de uma maneira bastante aterrorizante nos faz pensar em quantas Amélias e Samuels estão agora por aí gritando por socorro, necessitando de uma ajuda para romper com o ciclo do medo e da violência. Toda mãe pode ter seu momento Babadook quando é exigida para além de suas possibilidades, como nos faz pensar o livro infantil citado no início deste texto. Porém, há que se buscar ajuda(sejam as efetivas, sejam as emocionais) Cinematerapia para que o monstro não invada a casa e termine em duras manchetes de jornais ou dados estatísticos aterrorizantes. Em um mundo onde cada vez mais um número maior de mulheres são lançadas à difícil tarefa de dar conta de tudo sozinhas, precisamos e muito falar de Babadook. O luto pelo abandono do parceiro por morte ou por opção seguirá muitas vezes contaminando a relação com o(s) filho(s) sem que isso seja muito claro, pode muitas vezes aparecer até no que conhecemos e tratamos hoje como “alienação parental”. A ambivalência funda todos os nossos laços, nossa luz e nossas sombra precisam compor um cenário equilibrado, como nos mostra muito bem Amelia lutando com sua escuridão. Este é um dado que alcança em muito maior proporção às mulheres, mas tudo visto aqui não exclui o caso onde o pai, o parceiro, é que for deixado sozinho para cuidar de seu(s) filho(s), embora saibamos que culturalmente somos mais compassivos com O Cinema e o Feminino esses casos. Há um ponto importante do filme, se pensarmos num thriller psicológico, sobre o chamado "sintoma psicótico" ou as clássicas alucinações que tanto vemos nos livros de psicopatologia. Muitas vezes é dífícil explicar em sala de aula, quando alunos ainda não tem a vivência da clínica, a possibilidade de termos quadros de humor com sintomas psicóticos. Se entendermos o "inconsciente aberto" veremos que as mais temidas e angustiantes fantasias e desejos partem nada menos do que de Amélia. Aí conseguiremos entender o sofrimento psicológico que estes sujeitos passam ao se depararem com seu mundo interior, desprotegido pelas instâncias e aparelho psíquico, sendo expostos e retornando na forma persecutória. Babadook como um sintoma, que vazou de seu inconsciente e a perseguiu, mas que conseguiu no final das 43 contas, voltar ao mundo subterrâneo mais "infernal", mas "caldeirão", talvez sendo controlado pelo amor maternal. O final em aberto ainda pode trazer um debate sobre a questão da "cura" nos quadros emocionais. Aprendemos a lidar com nossos sentimentos e frustrações, mas eles jamais "nos deixam", afinal, you can’t get rid of the Babadook. Controlamos eles, seja empurrando para o nosso porão doméstico-emocional, seja exercendo o poder de alimentarmos eles de uma maneira de controle. Escolhemos assim qausi "vermes" podem ou não ser dados para que eles permanecam sempre no local onde foram alocados. Aqui caberiam análises e interpretações que por sí só renderiam uma palestra ou evento mais prolongado, dada a complexidade e perfeição com que as cenas são representadas. O que nos faz humanos é essa complexidade que inúmeros teóricos se debruçaram e se debruçam no momento para tentar decodificar. Somos sempre antíteses, antagônicos, paradoxais. Se um estudo se estendeu com profundidade sobre tudo isso, sem a pretensão de agir como um tribunal, foi o que empreendeu Freud. Assim como o que cada psicanalista, via o método, faz hoje em seu setting e com sua escrita. Perfumar por demais a psicanálise tem sido um erro perigoso que certas tendências vêm empreendendo. Há que se deixar lugar para que o contraditório, para que as sombras e angústias possam falar, possam não se sentir apenas como monstros que precisam ser evitados como Babadook até que já não se tenha mais o que fazer. Neste sentido indicamos que se assista ao seriado “Psi”, do psicanalista Contardo O Cinema e o Feminino Cinematerapia Calligaris. 44 Cap. 09 Eu, Tonya (I, Tonya, 2017) “Baseado em entrevistas livres de ironia, extremamente contraditórias e totalmente verídicas com Tonya Harding e Jeff Gilloly.”(abertura do filme) Dirigido por Craig Gillespie, apresentando como Tonya Harding a atriz Margot Robbie e Allison Janey como sua mãe, premiada com o Globo de Ouro e Oscar pelo papel. Baseado em fatos reais que ganharam os noticiários Cinematerapia no início dos anos 90. O filme toma o aspecto de um documental como se fosse um daqueles programas televisivos narrando um crime. Tonya Harding, já após muitos anos do “incidente”(como os envolvidos se referirão ao atentado), contando sua versão. Ela, então mais velha, casada e mãe de um filho de sete anos, vendo já com distanciamento o episódio que marcou para sempre sua vida encerrando de maneira incontornável sua carreira como patinadora. O roteiro é assinado por Steven Rogers que baseou a história em entrevistas feitas com Tonya Harding e seu ex marido Jeff Gillooly, no filme interpretado pelo ator Sebastian Stan. A história narrada pela versão do filme aponta para uma menina que desde cedo se mostrou possuidora de um grande talento para a patinação, e que então é levada, antes dos seus quatro anos, a essa treinamento por sua obstinada mãe, uma garçonete sobrecarregada por dois empregos e a criação O Cinema e o Feminino da filha sem a presença de seu pai, quarto marido, que abandona as duas quando Tonya tinha por volta dos seus sete anos de idade. Lavona Harding, mãe de Tonya, é uma alcoolista, mulher frustrada e muito agressivamente exigente no trato com sua quinta filha. Veremos todo um ciclo de abandono e maus tratos desde sua origem acompanhando essa produção. O elo afetivo de dependência que amarra esse tipo de relação é muito bem abordado pelo roteiro que não carrega em qualquer tendência, mas também não deixa de demonstrar toda sua contundência. 45 O ciclo de violência iniciado em sua infância, tomará aspectos ainda mais presentes com seu casamento com Jeff Gillolay(Sebastian Stan) que posteriormente será mentor e figura central no escândalo que se verá envolvida, quando sua adversária Nancy Kerrigan(Caitlin Carver) é agredida e tem o joelho quebrado para impedir sua participação na Olímpiada de Inverno de 1994, competia pela vaga com Tonya. A participação ou anuência de Tonya em relação ao episódio é até hoje uma polêmica e o mote da produção que encaminha a questão, deixa que cada espectador decida sobre ela, foi mesmo a intenção de Steven Rogers(P.S. Eu Te Amo) que ao buscar elementos para o roteiro se viu confuso com as dessemelhanças das narrativas. Tonya Harding veio a ficar muito conhecida por sua ousadia ao introduzir em uma competição americana o salto conhecido como “triple axel”, só novamente reproduzido por outra norte americana, Kimmie Meissner, em 2005 e este ano por Mirai Nagasu na Olimpíada de Inverno em Pyeongchang, na Coreia do Sul. Antes de Tonya Harding, apenas outra mulher havia dado o salto em uma competição internacional. Nascida em Portland, Oregon, 12 de novembro de 1970, hoje com 47 anos, foi desde sempre uma patinadora que quebrava as convenções estabelecidas, como por exemplo, ao preferir para suas apresentações músicas populares ao invés das clássicas preferencialmente escolhidas para as competições até então, hoje esses padrões foram modificados e há uma escolha muito mais variada nas apresentações. Ao ser impedida de continuar competindo pela acusação sobre a qual o filme se debruça, a intrigante Tonya se tornará boxeadora ganhando algumas competições. De alguma forma poderemos pensar que, Cinematerapia enfim, assim ela encontrará um “lugar”(fisicamente e psiquicamente) para a violência que sempre marcou suas relações com o mundo, enquanto vítima ou agressora. É pelo fato de se debruçar sobre o ciclo do comportamento violento sem tomar partido ou mesmo introduzir conclusões, que esse filme se torna muito interessante para quem estuda ou acompanha com curiosidade as reflexões em psicologia/psicanálise. “Que impressão as pessoas têm de mim? Que sou uma pessoa de verdade”. Dessa forma a Tonya do filme começará sua narrativa. Contrapõe a intolerância em relação a ela o fato de que, segundo ela, não como justificativa, mas como constatação, de: “Num esporte onde juízes frígidos querem que você seja essa versão ultrapassada do que uma mulher deveria O Cinema e o Feminino ser...”. Aos quatro anos ganha sua primeira competição, levada por sua mãe que não sabia mais como lidar com sua insistente fala sobre patinação para a treinadora Diane Rawling (interpretada por Julianne Nicholson). Aos quinze anos quando então passava mais de quinze horas patinando, conhece no rinque Jeff Gillooly com quem começará um namoro e depois se casará. Sua escolaridade é abandonada em nome de seu treinamento, sua mãe uma figura sempre presente que tem uma maneira muito peculiar de “incentivar” Tonya, sua exigência é todo tempo uma crítica demolidora e apela muitas vezes para crueldade e castigos físicos. 46 Vemos aí a atuação premiada de Allison Janey que dá um toque aversivo ao mesmo tempo hilário à sua personagem, apresentando ao espectador uma mãe de causar arrepios de horror, ao mesmo tempo que uma catártica risada. Aparece nos supostos depoimentos com um pássaro ao seu ombro, que nos faz pensar em sua relação com Tonya, vale dizer que bem humoradamente a atriz levou ao vestido na cerimônia do Globo de Ouro uma réplica dele tirando risadas da plateia. Tonya é cobrada todo o tempo por uma delicadeza que não pôde aprender via modelos, possuidora de um porte muito atlético, mal pode contar com leveza corporal, o que dirá em comportamento se for espelhar-se nas figuras femininas que a cercam. Sendo tratada por colegas de escola como “lixo branco” devido a sua pobreza e modo de vida. No mundo elitizado da patinação artística, se vê todo o tempo confrontada, questionada e injustiçada em muitas competições, falta-lhe a “classe” exigida. Sabemos que mesmo depois das três décadas revolucionárias que antecederam os anos 90, a questão da feminilidade ainda se encontrava bastante exigida em determinados padrões. Ainda hoje podemos colocar discussões em torno disso, do quanto é complexa a tentativa de tomar um novo lugar que se liberte das exigências quanto ao que seria uma postura aceitável para um menina/mulher. Tonya em seu modo combativo fica mesmo distante dos padrões de feminilidade ditados como ideais, e talvez essa combatividade sem limites precisos, até por caminhar em um terreno desconhecido, tenha alimentado qualquer forma de inclusão dela no episódio em relação a sua oponente. Ela Cinematerapia nega qualquer participação ou conhecimento prévio sobre as intenções de seu marido e o amigo Shawn Eckhardt, muito bem apresentado pelo ator Paul Walter Hauser. Este personagem Shawn é uma aula completa sobre Transtorno Delirante, com toques hilários, sua assustadora leitura da realidade dá um toque original à narrativa. O que se acompanha então via essa produção é todo um desenrolar de um ciclo de abuso, maus tratos e violência, onde veremos uma sobrevivente que insiste na entrevista que seja dito no filme que ela é uma excelente mãe na atualidade, contrapondo-se assim ao modelo de mãe perversa e sádica que traz de sua relação enquanto da posição de filha. Ao narrar o começo de sua relação com o primeiro marido, fala de sua doçura inicial e que depois de alguns meses já começou a agredi-la, porém O Cinema e o Feminino prometia que não voltaria a acontecer, ela pensou que sua mãe a amava e batia nela, então estava tudo bem. Fato é que sua escolha de relação repete com agravantes os maus tratos maternos. Em uma discussão sobre como patinou, Lavona atira-lhe uma faca que crava em seu ombro, isto determinará sua decisão precipitada de casar-se com Jeff dando início a um novo e ainda mais grave ciclo de abusos e maus tratos. casamento sua mãe tão delicadamente lhe diz: “- Sua estúpida. Não se casa com estúpidos”. 47 No dia de seu Vivendo seu auge da fama após o “triple axel” a violência invejosa, tão característica da misoginia e machismo, começa a ser apresentada por Jeff em relação a ela. Isso a levará a deixa-lo após inúmeras agressões, mas passado um tempo onde ele insistentemente a pede pra voltar ela cede, dizendo: “Eu queria ser amada”. Tonya passa a ter um desempenho sofrível nas competições muito influenciadas por uma vida desregrada que passa a ter, e em 1992 nos Jogos de Inverno na França tenta o “triple axel” e se desequilibra, ficando em quarto lugar. Vive mais um ciclo de violência doméstica até se divorciar de Jeff. Em relação ao seu péssimo desempenho esportivo, como em tudo mais na sua vida, sua atitude aprendida de estar sempre na defensiva, faz com que jamais possa localizar sua responsabilidade nos fatos, apela sempre para a frase: “Não foi minha culpa”. Assumir responsabilidades pelos acontecimentos e experiências requer uma vivência de alteridade onde o outro não seja uma constante ameaça, onde o sentido de querer preservar o vínculo seja uma necessidade de laço, coisa que foi impossibilitada como matriz afetiva para Tonya, esse desenvolvimento é muito marcado pelos vínculos iniciais da criança, onde a relação com a mãe(ou cuidadorx) deverá fornecer segurança e serenidade. “Eu fui amada por um minuto...e então fui odiada. No fim, eu era o fim de uma piada. Era como estar sofrendo abuso, tudo de novo. Só que dessa vez era por vocês. Todos vocês. Todos são meus agressores também”. Assim Tonya descreve sua despedida do mundo da patinação, onde na verdade, Cinematerapia apesar do seu inquestionável talento, jamais foi aceita, tendo isso sendo dito a ela por um dos juízes que lhe confidenciou que precisavam de uma imagem apropriada para representar o país, o de uma “família feliz”, coisa que a menina jamais teve acesso. Talvez, Tonya que queria ser amada e aceita, que insiste enfrentando as adversidades, que fracassa, que se levanta e luta(literalmente), seja afinal o exemplo que ela mais teria a dar publicamente. Hoje, mãe e casada, trabalhando com paisagismo e construindo decks, ainda perseguida pela história da qual foi vítima e talvez, também, partícipe, nunca se terá a verdade como ela mesmo diz ao final, mas o que se tem óbvio após o fim do filme, é que houve muita luta e também muita beleza em meio a um caos de uma vida de verdade, triste, mas que reproduz a história de tantas O Cinema e o Feminino meninas e meninos, que esperam uma chance e que vão brigar por ela. 48 Cap. 10 Orange is the New Black (2013) Série norte americana, criada por Jenji Kohan, produzida pela Tilted Productions e Lionsgate Television. Apresentada pelo Netiflix, e conhecida nas redes sociais pela sua sigla OITNB. Dirigida até a sua segunda temporada por onze diretores, fazendo a Cinematerapia alternância como tem sido um modelo adotado por muitas séries atuais, alcançando grande sucesso junto ao público brasileiro em suas duas temporadas apresentadas até agora, a previsão para uma terceira é para o ano de 2015. Até lá fãs aguardarão ansiosamente. Mas ela está ainda com a tarefa de conquistar 44% dos assinantes do Netflix (pesquisa Centris) que não a assistiram. Seu diferencial esta tanto na temática quando no formato, seja de direção quanto de veiculação. A tendência é que mais seriados sejam produzidos por empresas como o Netflix, já direcionado. As redes sociais hoje são o melhor canal de divulgação dessa nova modalidade e talvez por isso OITNB tenha ganhado tantos "fiéis seguidores". O enredo traz algumas reflexões muito importantes: E se já em sua jovem maturidade você viesse a ser cobrado legalmente por algum dos desvarios da tenra juventude? Muitos de nós sabemos o quanto é correto afirmar que O Cinema e o Feminino somos sobreviventes das loucuras juvenis, que passeiam, muitas vezes, pelo limite do correto, do moral e algumas vezes do próprio legal. E será isso que nossa protagonista viverá, uma jovem mulher às vésperas de casar com Larry Bloom (Jason Biggs), será chamada a cumprir sentença por desvios cometidos de no início sua juventude, quando então colaborou transportando dinheiro para sua namorada Alex Vause (Laura Prepon) que trabalhava com o tráfico internacional de entorpecentes. Nossa protagonista, Piper Chapman (Taylor Schilling), é uma moça classe média, bem instruída, branca, um tanto quanto ingênua, vê-se diante da complexa tarefa de conviver por um pouco mais de um ano, tempo da sua pena, entre detentas dos mais variados graus de periculosidade e loucura. 49 Dito dessa maneira será visto como algo muito grave, mas sob o olhar de Piper Chapman, a questão ficará bastante relativizada, remetendo a cada um de nós aos nossos próprios desvios juvenis, grande maioria pode lembrar-se de pelo menos um comportamento que, caso fosse descoberto, poderia acarretar grave punição com repercussões inimagináveis. Como em determinado episódio a compreensiva e novata carcereira, Susan (Lauren Lapkus), diz a Piper, que não a via como diferente dela, o que emocionou a personagem dando-lhe algum alento. A série coloca o espectador em contato com o mundo feminino visto pela óptica do encarceramento, cada personagem apresenta uma variação divertida, sofrida e peculiar. Em uma reclusão forçada e administrada em sua grande maioria pelo masculino, cada uma irá revelar-se com alguma mais forte qualidade e um mais complexo desvio. Ao chegar à prisão, Chapman convive de perto com o que representará sua mais recente jornada, vê-se envolvida, literalmente, por “Crazy Eyes” (Uzu Aduba), uma divertida e transtornada personagem que imprime a chegada de Chapman uma característica insólita e ao mesmo tempo assustadora. A história de Crazy Eyes é contada por lembranças dela na segunda temporada, bonita e emocionante, coloca pontos para reflexão muito importantes e que não atendem necessariamente ao que costumamos pensar como ideal ao falar de inclusão, de adoção e de enfrentamento social. Ao mesmo tempo que perdemos o "medo" de crazy eyes, seus posicionamentos, especialmente sobre relacionamentos e amor, nos fazem refletir sobre a chamada "loucura" e quem realmente poderia ser assim chamados. Seus diálogos - muitas vezes monólogos consigo ou com uma vassoura - nos mostram grandes Cinematerapia possibilidades de insights. Aos poucos Piper irá conhecendo as relações de poder que atravessam cada segmento, como ovelha desgarrada passeará acolhida e ao mesmo tempo desprezada por cada grupo. Logo de início tem que enfrentar uma das conseqüências disso, quando de dentro de sua ingenuidade, falará mal da comida justamente para a detenta que é a chefe da cozinha, a autoritária e hilária Red- Galina Reznikov (Kate Mulgrew), ficará sem receber alimentação até que encontre uma maneira de se desculpar com ela pela gafe. Quando sai do primeiro dormitório de acolhida, designada para o box que irá ocupar, descobre que o compartilhará com a enigmática e temida Miss Claudette (Michelle Hurst) sobre quem correm algumas histórias sobre seus crimes. Receberá inicialmente uma certa proteção e acolhimento de seu Conselheiro, O Cinema e o Feminino o homofóbico Sam Healy (Michael Harney), uma figura meio paterna que desperta uma ambivalência, em alguns momentos uma aversão e outras uma certa compaixão. De alguma forma ele pontua o que sublinha todos os personagens, tirando a temível Vee – Yvonne Vee Parker (Lorraine Toussaint), que ainda assim dá algo de valor ao dizer para Crazy Eyes: “Você não é louca, é única”, resgatando sua auto-estima, de que há em cada um deles, lados simpáticos, bondosos e outros bastantes terríveis, passeiam todos entre a extrema maldade e um toque de afeto e carinho. Humanos, demasiado humanos. 50 O Sr Healy de certa forma a protegerá até a chegada de Alex Vause, a ex namorada responsável por sua prisão. A princípio as duas se evitam, Piper a odeia por tê-la colocado naquela situação, até que por conta de uma mentira contada por seu enciumado noivo ela se convence que Alex não teve nada a ver com sua prisão. Após ser colocada na solitária por conta de Healy supor que as duas estão tendo um caso, ela sairá decidida a consolar-se com sua ex parceira. A personagem a partir daí sofrerá significativas mudanças, colocando o espectador em uma montanha russa de emoções, já que Piper passeia entre o eticamente correto e o limite do crime. Veremos isso mais nitidamente quando de seu embate com a “Caipira”, Tiffany "Pennsatucky" Doggett (Taryn Manning), uma prisioneira que hiper religiosa que pensa falar por deus, que finaliza a primeira temporada e aquece a tensão do início da segunda, quando então o desfecho desse embate sublinha ainda mais a noção de dois lados do mesmo objeto, duas leituras para o mesmo fato. Uma montanha russa de sentimentos e expectativa em relação ao seriado. Uma característica típica deste série. Esperar a proxima temporada, por meses e meses, faz com que o interesse em relação as personagens aumente cada vez mais. Por acompanhar a vida e o dia a dia das detentas o telespectador se torna parte dessa história, fragmentada e apresentada parciallmente. Ao mesmo tempo que elas não sabem dos passados de suas colegas detentas, nós também não sabemos e somos apresentados em doses homeopáticas. Algumas são surpresas muito boas, quando percebemos que alguém esta ali porque defendeu os filhos, outras nem tanto, quando alguma personagem mais doce e angelical apresenta seu passado de violência. Cinematerapia Assim, o espectador também é apresentado às famílias e vidas das personagens em flashbacks, a de Piper Chapman sem dúvida é muito, como diríamos, talvez, peculiar? Aparentemente uma simpática família tradicional, mas ao vermos os fatos e conversas verificaremos que são muito interessantes, mas nada mesmo um modelo. Uma mãe que vive a negar a realidade interpretando os fatos como for melhor para ela, Piper irá lembrarse da vez quando criança que em vendo seu pai com uma amante, contou à mãe (Deborah Rush) que a colocou de castigo sem sequer comentar o que a menina havia visto. Seu pai(Bill Hoag) uma figura que também nega evidências de qualquer irregularidade na vida dos filhos, ouve apenas o que se encaixa no que quer ver e recomenda sempre que ela tome cuidado. O irmão(Michael Chernus) com uma vida completamente alternativa parece ser o mais lúcido, por mais que isso possa parecer contraditório frente à vida que leva em um trailer no meio da mata com sua original parceira, casam-se O Cinema e o Feminino aproveitando o velório da avó(Mary Looram), quando então Piper recebeu uma licença especial para sair, o que custou-lhe a inveja e hostilidade das companheiras de prisão. Na prisão as mulheres proibidas do acesso a itens como batom, delineador, sombras etc podem contar com o contrabando de Red inicialmente pela cozinha e depois pela estufa de jardinagem, o que lhe confere poder frente a todas, e com os cuidados de Sophie (Laverne Cox), a transsexual que mantém um salão dentro da prisão e que apresenta a questão da transformação de uma forma muito rica ao lado dos personagens de sua família(ex esposa e filho). 51 Os pagamentos são os mais diversos itens, e pitorescamente Piper ao chegar e tendo sofrido a represália de Red quanto ao comentário sobre a comida, negociou um produto com Sophie pagando com uma mecha de seu cabelo loiro que foi parar na cabeça de Tasha (Danielle Brooks) para fazer um creme anti dores e presentear Red como pedido de desculpas. Dois pontos importantes, entre inúmeros outros, podemos discutir vendo a vida que muitas ali levam, parecendo em muitos momentos um internato colegial, aspectos sobre o lugar afetivo e de segurança que a institucionalização pode ocupar e que acaba sendo todo o mundo que a maioria ali conhece, como acontece com Tasha que, ao conseguir sua liberdade condicional, se vê inapta a viver no mundo e acaba retornando à prisão. Outro aspecto que pode interessar deter o olhar é a respeito do tênue limite, nem sempre identificado, entre uma patologia e o crime, como veremos muito bem representada na stalker Lorna Morello(Yael Stone) que é presa por conta de uma erotomania, que mantém como pensamento delirante dentro da prisão, falando sempre do suposto casamento que realizaria ao sair de lá, ficamos sabendo no decorrer dos episódios que foi justamente o suposto noivo, na verdade o homem que foi obsessivamente perseguido, que a colocou entre as grades, embora também tenha praticado em larga escala o conhecido como “golpe dos Correios”, comprando mercadorias e suspendendo pagamento com a alegação de não recebimento. Vaidosa e coquete é uma personagem que cativa. Não podemos deixar de mencionar o impacto que a presença de Laverne Cox causou no seriado. Não tão conhecida do público internacional, essa atriz Cinematerapia chama a atenção pelo seu tamanho e características masculinas. A atriz ganhou notoriedade recentemente quando fora indicada para Emmy. Além de atrizela também é advogada a ativista nos direitos dos transex. Na série quem faz sua personagem quando ainda era homem é seuirmão gêmeo. Interessante ver os momentos, na segunda temporada, onde é ela quem ensina sobre anatomia feminina para as detentas, pois afirma que durante muitos anos estudou para desenhar seu próprio órgão genital. É um vasto caleidoscópio de aspectos humanos que vemos nas inúmeras personagens dessa série que toca através delas em variados aspectos do que compõe o universo humano. Sempre com um toque de humor, na medida certa, rimos da fragilidade que atravessa a todos nós. No ambiente da prisão também se ama, e veremos inúmeras relações se formarem com todas as ondulações que acontecem nos vínculos. Há inclusive o enamoramento de O Cinema e o Feminino um carcereiro, John (MattMcGorry), por uma detenta, Daya (Dascha Polanco), com repercussões transversais que abalarão a estrutura de poder da instituição. A dupla que disputa o comando é muito interessante também, o chefe Joe Caputo (Nick Sandow), nas horas vagas guitarrista em uma banda de rock e a corrupta assessora do diretor do presídio, Natalie Figueroa(Alysia Reiner), esposa de um político candidato em campanha. Ao final da segunda temporada o bonachão Caputo passará a assumir a direção, fazendo de tudo para “mostrar serviço”, o que implicou em fazer “vista grossa” a alguns interessantes acontecimentos, aguardaremos então as repercussões de tudo isso na a terceira temporada que já está sendo filmada. 52 São muitos os personagens, e todos, sem exceção, contêm aspectos que chamam a atenção, impossível esgotar essa produção em um texto, só mesmo se permitindo ao prazer que se tem ao acompanhar os episódios. E talvez por eles, os personagens, é que a série toma para nós um lugar que merece um olhar, remete a constatação de que no mapa humano o maniqueísmo não se faz algo possível, com raríssimas exceções, obviamente. Essa exceção, na série, ficará como dissemos antes, para a Vee que terá seu desfecho em uma cena catártica para o público indignado com seu poder de manipulação e o mal mais descarado. Talvez seja essa a principal característica que chama o espectador, por trás das histórias contadas, a curiosidade de acompanhar dramas cotidianos, impasses humanos banais, a linha de desenvolvimento emocional dos personagens. A protagonista apresenta a todos de forma pontual, passeia pela dinâmica do que é se relacionar com cada uma, ao final da segunda temporada pitorescamente com Brook Soso(Kimiko Glenn), uma ativista presa que chega junto com Chapman quando retorna do julgamento ao qual foi chamada como testemunha e que deixa o gancho, supomos, para a trama da terceira temporada. A bissexualidade de Piper Chapman provavelmente deixará a muitos confusos, porque dentro do espaço do preconceito essa orientação desarruma apaziguantes rótulos, confortáveis posições com as quais, maioria prefere pensar o mundo do afeto. Piper mantém uma relação de apaixonamento muito intensa com Alex, mesmo que esta esteja sempre por trás de suas desventuras. Essa relação marcará, inclusive seu rompimento Cinematerapia com Larry Bloom que encontrará o amor com a melhor amiga e sócia de Piper, a divertida Polly Harper(Maria Dizzia). A questão da orientação sexual nessa série apresenta-nos a diversa paleta de nuances e matizes que atravessa o desejo humano, o quanto o afeto se direciona por questões que não podemos determinar exatamente onde nascem. Faz ver, como a canção, que é fato que “qualquer maneira de amor valerá” e que às vezes, ele será o caminho mais rápido para a dor e os tropeços, como cegos que andam à beira de um precipício, mas que, também poderá ser, aquilo que abre o caminho para mudanças positivamente significativas. Piper não amadureceu muito neste tempo que a acompanhamos, permanece girando em torno da dinâmica que a conduziu ao caos que vive no momento abordado. Resta acompanhar para vermos de O Cinema e o Feminino quantas repetições ela precisará para abrir uma nova perspectiva em sua vida. 53 Cap. 11 Malévola (Maleficent, 2014) O amor, a confiança e a traição roubou-lhe as asas. Assim começaremos a conhecer a nova versão de Malévola que por conta de seu apaixonamento desde menina pelo mais adiante rei Stefan, se vê sem suas asas retiradas dela no sono da confiança e pela ambição e sede de poder dele. Da fada cheia de alegria e amor surge uma sombria figura, sem asas pra voar e que navega pela via do ressentimento. A suposta maldade de Malévola é assim contextualizada no roteiro elaborado por Linda Woolverton. Uma versão Cinematerapia muito produzida e bastante aguardanda pelos internautas, com um intenso marketing de apelo virtual. A cada "teaser" ou novo trailer as redes sociais "clamavam" por Angelina Jolie e sua personificação da maldade sedutora, ganhando até uma marca de batons sensuais como apelo de mercado. Essa nova versão lança a questão: existiria o amor verdadeiro? Malévola é uma personagem que essa nova produção resgata, apresentada nas produções mais antigas como uma bruxa muito bela e estilosa, mas muito má, sendo a própria personificação do mal em sua face da inveja e rancor, nessa nova obra trará elementos amorosos e hostis, em uma complexa apresentação dos sentimentos que nos movem, a todos, equilibrando-nos pelo fio da ética e da capacidade de formarmos laços comuns. A capacidade de se ver comovido, afetado, por outro ser. O Cinema e o Feminino A novo conto que nos é apresentado não traz em si nenhuma conclusão clara, abrindo frentes múltiplas de conclusão. Sua riqueza de imagens encanta tanto o público infantil quanto o adulto, não bastasse ver a enigmática e sempre muito encantadora Angelina Jolie levando a história como se todos os outros personagens fossem fundo e ela a figura, que salta aos olhos hipnotizando em todas as cenas, desde as mais elaboradas até as que ela solta apenas um suspiro: “ops”. Ela captura o espectador com a força da paixão que em entrevistas ela confessou nutrir pela personagem, fascínio que não nasceu nessa produção, mas que a acompanhava desde criança. Ao falar sobre isso foi como se libertasse as inúmeras admiradoras da fada bruxa que se encontravam antes silenciadas, por várias gerações de cinéfilas. Como se toda menina já se perguntasse o que mesmo seria uma bruxa, como era antes 54 representada. E se deixasse curiosa pelo enigma que Malévola sempre trouxe em si. A forma como a princesa Aurora (Elle Fanning) vai conquistando o machucado coração da fada bruxa madrinha, despertando nela o mais intenso sentimento de proteção próprio à maternidade é cativante de ser acompanhado, vemos isto pela forma, desde o início já carinhosa, que apelidou a pequerrucha: praguinha. O corvo (Sam Riley), seu fiel amigo, que nasce de sua ira contra os homens, ele brinca com a feiúra da forma humana e com os sentimentos estranhos que compõem as relações entre os semelhantes e dessemelhantes. Não há como não se emocionar com a forma como o amor de uma criança consegue penetrar até mesmo no coração mais "malvado" das fábulas infantis. De perto, nem mesmo esse "mal" é tão malvado assim. Dois reinos separados pelo ódio, duas formas opostas de pensar e ocupar o mundo. O humano com suas relações de privilégio e grupos sociais e o verde e encantado dos seres místicos que vivem em harmonia ocultando tesouros cobiçados pelo reino do pai de Aurora, agora rei (Sharlto Copley), antes o amigável menino Stefan, mas que cresce cheio de desejo de poder. O roteiro apresenta uma rede de personagens que abrem mergulhos em crenças que organizamos desde crianças, ou desde tempos ancestrais e que os contos infantis fazem como a nos lembrar das muitas passagens que a ontogênese sintetiza e repete atualizando todo o desenvolvimento da humanidade. E talvez seja isso que Malévola possa nos trazer, atualizar velhas questões que ganham no mundo contemporâneo uma tentativa de transformação. Nunca antes, o feminino em sua ambiguidade e sua ambivalência esteve em foco como podemos pensar que hoje se apresenta. É mais do que pensar em Cinematerapia gênero, mas sim pensar na possibilidade de uma harmonia com as forças pulsionais não negadas ou banidas como dano daquilo que entendemos como pilares da civilização, o feminino e o desamparo negado. Neste aspecto, Malévola funciona como uma fotografia, mais do que como um dispositivo de provocação. Ela lê um tempo não esquecido na memória, mas um tempo que se representa com forças construtivas e destrutivas no aqui e agora. Não está abandonada em um passado místico ou lendário, mas se remodela e se reorganiza com muito ímpeto no presente. Pensando por esse prisma queremos trazer aqui para uma provocação outra bela produção espanhola ganhadora de muitos prêmios, a “Blancanieves” (2012) de Pablo Berger. Nas duas obras, postas lado a lado, o que seria a vilã se O Cinema e o Feminino torna como opostos, sendo que em Malévola ela protagoniza algo ambivalente, e nesse outro, a vilã atende a todos os critérios que costumamos ver, belíssima e muito má, a madrasta mais cruel, mas há nos dois filmes algo que os aproxima, talvez pela leitura do feminino na atualidade e a ironia e quebra de um romantismo que hoje é mais um ladrão de asas da mulher do que um arrebatamento libertador como outrora possa ter sido. Sugerimos que se visite essa outra obra belíssima, filmada em preto e branco, com uma fotografia admirável e um final surpreendente. 55 Mas por que lembrarmo-nos dela ao acompanhar Malévola? Talvez porque pensamos o cinema como, não somente, mas também, um grande revelador das questões de cada época. E hoje, mais do que nunca, a pergunta que Freud lançou sobre o “continente negro”, a mulher, precisa ser respondida, mas muito menos restrita a uma leitura de mulher gênero e mais no sentido de entender o feminino, os impulsos que partem dessa corrente, libertar dos ferros o que gera dor, violência e agressão, levando a um isolamento cada vez mais evidente entre os sujeitos. O rei que alcança sua majestade ao trair a confiança da mulher amada representa com força de figura uma misoginia que atravessa tempos históricos e que hoje ainda lança garras de ferro em índices alarmantes, em estatísticas aterradoras, em algo que remete ainda a uma barbárie não totalmente ultrapassada apesar de todos os laços sociais que construímos na modernidade. Afinal, todos queremos amar e sermos amados, mas o rei abre mão em nome do desejo de poder, em busca daquilo que costumamos pensar como masculino, a dominação, e acaba infeliz, isolado, incapaz de usufruir do que conquistou e todo tempo vivendo sob o forte sentimento de ameaça e perseguição. Um pai que não é capaz de lançar amor e sim temor e afastamento. Que caia de vez um laço paterno que não constrói mais nada de edificante para a humanidade, Elisabeth Roudinesco questiona isso de forma profunda em algumas de suas leituras sobre o declínio da lei paterna e as novas configurações familiares. A Disney já havia adaptado antes a obra na qual se baseia o filme, “A Bela Adormecida”, na década de 50, podemos pensar nas profundas modificações Cinematerapia que de lá pra cá o mundo sofreu. Com toda certeza a mulher deste início do século XXI está em muitos aspectos bem distanciada da que vivia naquela época. A história em sua fonte original poderá ser localizada nos meados dos anos 1600, o que já nos dá a mostra da força que contém, tocando, supomos, em elementos que precisam ser trazidos à luz até os dias atuais. Existe nela, como dissemos, muito do antigo, do recalcado, mas há ainda uma outra força poderosa que pede passagem, pede palavra. Robert Stromberg captura essa força com sua direção, e hipnotiza, propositalmente, o espectador de todas as faixas etárias. Existe uma obra musical escrita pelo compositor Tchaikovsky, também monumental, e inspirada nesta história. É no mínimo libertador, pensar que as meninas agora, ainda crianças, poderão identificar-se com a Malévola sem culpas, sem desconfiar de algo errado em sua natureza. Recentemente na série inspirada na vida e obra dos O Cinema e o Feminino pesquisadores em sexualidade Masters&Johnson, vimos um diálogo(temp.2, 56 ep.11) que tomaremos emprestado para animar essa questão. A mulher de Master falou sobre como ela no papel feminino que sempre lhe foi esperado, a fez ir perdendo a noção de quem ela era de verdade. A boa moça, cordata, servil e obediente, descobre em sua vida adulta que não sabe do que gosta, quem é, o que sente e outras tantas coisas básicas a qualquer sujeito. Faz essa revelação antes de entregar-se ao amante que ela diz que pela primeira vez teria sido uma pessoa que a desaprovou, quebrando assim, de vez, esse medo nela, há entre eles a diferença de cor que naquela época era algo ainda mais marcante. Ao falar disso tocamos a proximidade com o que chamamos de minorias, muito maior do que muitas vezes se quer acreditar. Série que vale também muito acompanhar e que de certa maneira poderá também remeter a uma leitura que hoje insiste em ser feita, um novo olhar para os lugares antes tão bem demarcados pelo gênero do sujeito e outros indicadores de segregação e menos valia. Ser despertada do sono eterno apenas por “o amor mais verdadeiro”, essa é a maldição do desencontro que lançará Malévola sobre a princesa Aurora e que prepara o redentor final da película. Dentro desta perspectiva, poderemos pensar no mergulho mais individual que esse filme traz ao tocar na questão materna. Na ambivalência que atravessa os variados vetores que compõem o vínculo mais elementar de qualquer sujeito sobre a face da Terra, dos dois lados das transferências e contratransferências deste laço emocional que trazem, como toda relação humana, um tanto de cada força, amor e ódio, acolhimento e banimento. Talvez seja tudo isso matriz, também, de tudo aquilo que conhecemos como culpa, vergonha, auto acusação. Nos laços mais saudáveis somos brindados com a força dessa sentença, o amor mais verdadeiro, mais incondicional, mas mesmo ele, atravessado, vez ou outra, por hostilidades e rejeição, conteúdo que traz uma das maiores dificuldades de acessar à consciência, porque corre subterrâneo, por trás dos muros tão Cinematerapia bem erguidos que separam nossos reinos internos, cada um com seu senhor, embora, como já dissera Freud, um deles por mais que se pense assim, não é senhor em sua própria casa. Toda mãe ama muito e carrega em si muito de culpa, todo filho ama e necessita e carrega em si um tanto de desprezo(tão necessário na fase de aquisição de autonomia). A mãe rainha, mãe biológica, sublinha a questão que muitas vezes está presente na questão do filho adotado, do abandono da mãe que o concebeu como último recurso do amor. Em uma terapia bem conduzida não será possível não trabalhar esse conceito em algum momento da libertação do paciente, incluindo uma transferência nada fácil de suportar, exige maestria. E Malévola ao conduzir o príncipe até a sala onde Aurora está mergulhada em seu sono eterno até que o amor a acorde, faz o espectador tocar com O Cinema e o Feminino emoção nestes aspectos, uma passagem de catarse em lágrimas. Confessa a vilã a Aurora: “Você roubou a parte que restou do meu coração”. Em uma história, como ela narra ao final, sem vilões e sem heróis, como toda a história demasiadamente humana. Finalizaremos assim o texto com uma historinha de criança: era uma vez uma menina preparando sua festa de aniversário de cinco anos tendo como tema “princesas”, ela, muito séria, pede à sua mãe: “Mas eu quero ir vestida de bruxa, de Malévola”. Isto aconteceu muito antes do filme existir. 57 Cap. 12 Prenda-me (Arrêtez-moi, 2012) Filme dirigido por Jean-Paul Lilienfeld e inspirado no livro LesLois de laGravité, de Jean Teulé, a obra Prenda-me (Arrêtez-moi), de 2012, apresenta um modelo diferente de filmagem, com memórias traumáticas em primeira pessoa. A personagem nos presenteia com a possibilidade de vivenciar as mesmas violências físicas e emocionais de sua história. Todo o roteiro deste filme, Cinematerapia desenvolvido, também, pelo diretor, se sustentará, basicamente, em duas personagens, nossa protagonista, que fica sem nome até o fim, a culpada (Sophie Marceau) e a tenente Pontoise (Miou-Miou). Uma produção diferente, que visita temas duros e difíceis, com um toque muito original. Entre a crítica ao sistema prisional, a noção de delito e culpa, colocará em destaque uma incisão em tudo que fabrica a violência contra a mulher. Sem deixar de tocar em aspectos espinhosos, essa produção o faz de maneira que se torna possível olhar para a complexidade do abordado, sem o distanciamento protetor, que tudo isso costuma causar, como uma armadura, a quem se vê às voltas com o tema. Toda sua argumentação já traz, em si mesma, um toque de ironia, uma mulher que deseja confessar o assassinato de seu marido Jimmy (Marc Barbé), ocorrido há quase dez anos, e que foi dado, à época pela polícia, como O Cinema e o Feminino suicídio. Ela necessita confessar naquela noite, antes que o crime prescreva, ao completar o que na França seria o prazo para abertura de processo. Dirige-se a uma delegacia, na intenção de fazer isso, e encontra a cansada tenente Pontoise. A partir disso, começará um verdadeiro duelo entre as duas, a culpada querendo ser presa e a tenente tentando obrigar-lhe a desistir dessa ideia e retornar à sua vida. Esse embate é acompanhado de rápidos flashbacks, onde conheceremos, um pouco, dos acontecimentos em torno da vida dessa mulher, casada com um homem abusivo e violento, mãe de um rapaz que já se encaminha para a continuidade do ciclo de violência, como sabemos ser usual neste verdadeiro ciclo. 58 Recentemente, a ONU divulgou dados alarmantes de uma vergonhosa média mundial, uma em cada sete mulheres já sofreu ou sofrerá algum tipo de violência. No Brasil, a cada uma hora, uma mulher será morta em um feminicídio “naturalizado”. O dia 25 de novembro, no Brasil, é um dia escolhido para dizer “Não à violência contra a mulher”, uma mensagem, que deveria ser reproduzida diariamente, dados os números alarmantes divulgados pela mídia. Levando em conta que, pelos dados da ONU, 70% das mulheres sofrem ou já sofreram violência física ou sexual, ou ainda sofrerão, caso a situação não mude. Muitos ainda entendem que isso é uma questão “familiar” e não de domínio público. Este mesmo pensamento poderemos ver em nossa personagem, que tem muitas dificuldades em descrever seu marido abusador. Ainda carrega parte de uma culpa, tão comum e presente nesses casos. Diante desses dados, o filme toma uma importância, em termos de debate, de forma marcante, até mesmo, pela forma que resolve assumir para lançar luz ao tema, luz que, no filme, vai sendo aumentada aos poucos. Em determinado momento, despencará do teto uma luminária habitada por baratas, uma boa metáfora para um tema, que tem sido negligenciado há tempos, ganhando contorno de algo a ser enfrentado muito recentemente. Enquanto o fato cotidiano continua silencioso, a ceifar vidas, seja, efetivamente, assim como, ceifando o belo da vida, de todos que acabam aprisionados pela grande teia, que representa tudo isso, como veremos com o filho da culpada, Cédric (Vadim Goudsmits/Arthur Buyssens), referência importante no fechamento desta instigante produção. Cinematerapia O filme, de forma muito sutil, aborda todo o silenciar, que construímos em torno da questão, do quanto, em qualquer parte do mundo, naturalizamos uma culpabilização da vítima, como veremos na única cena que é apresentada, relatando alguma denúncia, que ela teria tentado fazer. Ao ser ouvida por uma delegada, veremos, de forma pujante, o fato de que misoginia e machismo precisam ser vistos como algo que atravessa todos os sujeitos e instituições, não importando gênero ou função precípua. Também é apresentado o resultado de todo esse silêncio, com a cumplicidade da vítima, a culpada relata sobre seu apelido, Gaston Lagaffe, inspirado em um personagem trapalhão popular na França, por ter desenvolvido a técnica de se bater, acidentalmente, em portas e quinas de mesas, para justificar seus aparentes machucados, da vergonha de que seus colegas de trabalho descobrissem o que acontecia em sua vida íntima. O Cinema e o Feminino De certa forma, o filme deixará claro o quanto todos, sem exceção, somos cúmplices nos frios dados noticiados diariamente. Um estudo realizado pela OMS e Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres revelou que, em média, 35% dos assassinatos de mulheres são cometidos por parceiro íntimo. No Brasil, o balanço, fechado em 2013, pela Central de Atendimento à Mulher – Disque 180, relatou que 81% dos casos de agressão foram cometidos por parceiros ou ex-parceiros. A agressão mais completa, que veremos no filme, acontecerá dentro de um elevador, cercada de portas de vizinhos por todos os lados. 59 Logo no início do filme, é possível perceber reações ambíguas da tenente Pontoise. Como se estivesse, caso estivesse na posição do analista, literalmente, atuando pelas suas contratransferências ou, ainda mais, via seus “pontos cegos”. Vemos um atendimento, totalmente, mecânico e sem humanização alguma, que, aos poucos, ganha contorno pessoal e atuante, até que começa a se colocar e contar, também, sua própria história. A princípio, pode parecer, apenas, preguiça, ou má vontade de trabalhar, mas, com o passar do filme, percebemos o quanto de energia ela esta gastando, tentando evitar o sofrimento maior da mulher, ao ser presa e, ao mesmo tempo, revisitando sua própria infância. Um duelo forte e constante, com grandes cenas. Para as cenas de violência, o diretor instalou, na atriz Sophie Marceau, um capacete, contendo um dispositivo para a filmagem digital e, com isso, quis trazer ao espectador, não somente em seu enfoque subjetivo, a visão da vítima. A cena, que sustenta toda a argumentação do filme, também se dá nesta perspectiva, tornando quem assiste como parte da cena, algoz e vítima. O grito de basta vem em forma de “você manchou meu uniforme, e, agora, o que os meus colegas vão pensar?”, a borra denuncia todo um ciclo e leva ao limite do que ela foi capaz de suportar por anos. Segundo dados relatados pela OMS, apenas 5% de homens são assassinados por suas parceiras. Não traz, entretanto, o estudo do número correlacionado aos parceiros agressores. A mão treme e ela, em desespero, empurra o marido, que cai para a morte. Os diálogos, entre as duas mulheres, trazem aspectos interessantes, fazem pensar sobre delitos, culpa, punição, impunidade e cumplicidade, remetem Cinematerapia ao que, em determinado momento, a tenente falará sobre o sistema legal, “É um arranjo, entre o que é legal e o possível”. O fato é que sabemos que, em relação à violência contra a mulher, muitos mecanismos institucionais ainda precisam de implantação, desenvolvimento e ajustamento. Ao declarar essa modalidade de agressão, como dados dos Direitos Humanos, a ONU deu um fundamental passo para problematizar comportamentos até agora assimilados pela sociedade. Pausa momentânea para se pensar no modelo de rede de atenção psicossocial mostrado no filme, no qual ela vai para um clínica de saúde mental pública, onde pode dormir e ter acesso a terapias ocupacionais ou psicoterápicas. Mesmo sem qualquer diagnóstico, é dito que “ela está apenas triste”. É a SAÚDE mental como foco e não a DOENÇA mental. Este modelo se assemelha, “vagamente”, ao que seria proposto pela Reforma Psiquiátrica O Cinema e o Feminino Brasileira, na modalidade CAPS 3. “Vagamente” porque sabemos que temos 60 um longo, longo, longo e muito longo caminho para que essa reforma aconteça em todo o Brasil. As redes sociais e os coletivos feministas têm sido uma voz importante na atualidade, para colaborar na necessária inserção de um estranhamento, quanto a episódios que, antes, passariam sem muitos comentários. Para exemplificar, temos o fato recente, aqui no Brasil, de uma camiseta, que seria vendida por uma grande rede de lojas. Na estampa, uma forca, com uma mulher pendurada, escrito abaixo, namorada. Após manifestações virtuais, a loja retirou a mercadoria e lançou um pedido de desculpas. O fato demonstra como o combate a esse tipo de violência tão naturalizada é algo que faz parte do cotidiano, de problematizar aspectos, que são vistos como, apenas, uma ironia ou brincadeira, sem muita importância. Outro fato foi a TV, que produziu uma reportagem de uma mulher vestida com jeans e camiseta, passeando pelas ruas de uma grande cidade, sendo assediada, incontáveis vezes, coisa que faz parte do cotidiano de muitas mulheres, talvez maioria, e que contém uma carga de agressão, que passa como algo usual, como se não merecesse uma reflexão e processo de mudança. Ao ser divulgado, o vídeo provocou debate e reflexão, mesmo para aqueles que querem justificar o atual modo das relações. Ao tomar para si seu corpo, sua sexualidade e sua escolha de amar, o mundo feminino se viu frente a um masculino não educado a respeitar o outro gênero, acostumado, por séculos, a submeter e não compartilhar. Talvez, as novas formas de opressão incluam uma pretensa sedução (vide 50 Tons de Cinza), alimentando a fantasia de que, hoje, a mulher tem mais liberdade, o que podemos pensar se seria mesmo assim ou se desenvolvemos, apenas, formas mais sutis de opressão. A mulher é, antes de qualquer outra Cinematerapia modalidade, presa de sua própria ilusão e armadilha, como as cenas de início de namoro da culpada com o marido demonstram. A dança, a ilusão da escolha, o alerta negado, dado a ela pela mãe dele, talvez vítima, também, de sua violência, demonstram, de forma envolvente, toda uma teia a que estamos aprisionados, seus fios invisíveis alimentam uma perpétua função. A mulher ainda empreende grandes esforços, parte deles em relação a si mesma, com o institucional internalizado, para elevar-se de uma posição, a qual tem sido destinada ao longo da história humana, falocêntrica desde seus primórdios. Uma cultura que traz, em si, a necessidade intrínseca de dominação, que vai das guerras entre nações à guerra particular entre os gêneros, organizando um modo de funcionar, onde a figura patriarcal toma o lugar da lei e da ordem, onde o feminino é sempre colocado como uma figura secundária, polo básico e estático do modelo opressivo. Neste aspecto, O Cinema e o Feminino a atriz Emma Watson apontou uma reflexão necessária, quando discursando 61 na ONU, para o programa He For She e defendendo o ponto de vista de que o combate ao machismo e à misoginia é uma questão, também, para os homens, que disso, também, sairiam beneficiados. Disse ela, destacamos essa parte: “É tempo de todos nós percebermos o sexo como um espectro, não como dois conjuntos opostos de ideais”. E lançou a pergunta: “Se não agora, quando?”. Entenderemos todo o esforço de nossa protagonista como uma necessidade de sair da posição de vítima, como ela própria diz para o filho, o de trazer para si um empoderamento, uma destituição do poder exercido pelo seu marido, por meio da violência. Ela entendia que, só assim, conseguiria deter o ciclo inevitável. Assistimos, ao longo da película, em algumas de suas recordações, toda a agressão, que inclui um jogo psíquico, que modela o lugar do oprimido, um jogo, antes de tudo, emocional. Quando perguntada se havia sido estuprada, não sabia responder a essa questão, embora tenha consciência que não queria a relação sexual, que era forçada. Não pode evitar se ver aprisionada, pelo fato de que o corpo respondia ao sexual. Temos a consciência de que o jogo de opressão, que o masculino empreende contra o feminino, é, antes de qualquer outra coisa, de cunho sexual. Como se a sexualidade feminina, na verdade, fosse a grande ameaça, aquilo que força o homem ao jogo de tentar submetê-la via agressão ou a sedução ilusória. Talvez, possamos, então, supor, em uma tese bastante hipotética, que esse jogo nasça, justamente, do recalque da posição feminina (de desamparo), a que todo homem, culturalmente, é chamado a fazer, desde muito cedo. Seu repúdio ao interno se externa na aversão, que desenvolve em relação a qualquer fagulha de libertação do feminino. Grandes parceiros, na atualidade, são os que levam para a cama e, consequentemente, para suas vidas, o entendimento que o jogo amoroso é um jogo sem vencedor ou vencido, é o prazer da aliança em nome de Eros, é um embate de tensões, de cada um que se agiganta no outro. A trilha sonora, com um pesado heavy metal, que remete ao filho, dá um Cinematerapia toque a mais no recado. O filme inicia com ela presa, dizendo ao filho: “Você precisava saber. Saber quem eu sou e quem eu não sou”. Encerra com a sentença: “Agora, você não poderá me ignorar”. A nossa protagonista, realmente, abre as portas de sua vida e, infelizmente, da vida de muitas mulheres mundo afora, escancara algo, do qual precisamos falar com mais vigor, restituindo o lugar do agressor, como o lugar a ser investido de vergonha e repúdio, retirando a mulher do lugar de vítima, o lugar da mácula. A tenente Pontoise ganhará, ao final do filme, um entendimento quanto ao seu bizarro comportamento, levando o espectador a pensar, ainda mais aprofundadamente, sobre o comum das cenas de violência doméstica. As cenas de criança, que aparecem nos flashbacks, finalmente, são esclarecidas a quem pertencem, a Pontoise, que se dopa com substâncias, que consegue via O Cinema e o Feminino caminhos escusos, com um líquido que guarda em uma garrafinha, com a imagem da Virgem Maria, que deverá ficar rosa, anunciando um dia de sol. Entenderemos que muitas das lembranças de criança, que vimos, eram, na verdade, da tenente. O que só acontecerá no redentor final, quando, pelos estranhos caminhos escolhidos pela protagonista, a vítima sai deste lugar, tomando, para si, mesmo que encarcerada, seu destino, suas escolhas, suas possibilidades de interromper o laço com o ciclo de agressão. A imagem, finalmente, se colore de rosa, depositada no túmulo da mãe de Pontoise. Quando a confidente parte, enfim, presa, a tenente diz ao doce policial Joliveau (Yann Ebonge), que funcionou como mediador do embate, ao longo do filme, enquanto se despede de nossa personagem que termina sem nome, 62 ou ainda, pensando em seu alcance com muitos nomes em várias línguas em torno do planeta: “Não se vê isso todos os dias” Cap. 13 Albert Noobs (2011) “Vida sem decência é insuportável”(frase que marca a narrativa de Albert Noobs sobre sua verdadeira história) Dirigido por Rodrigo Garcia, o filme Albert Nobbs baseado num conto do romancista irlandês George Moore, traz no papel principal a sempre brilhante Cinematerapia atriz Glenn Close, que indicada para o Oscar 2012, perdeu para a consagrada Meryl Streep, e talvez para um filme que seja apenas supostamente mais histórico (Dama de Ferro), e com certeza bem menos pertinente às questões femininas que a personagem ficcional de Albert Nobbs que Glenn Close já havia interpretado no teatro e lutou para levá-lo às telas, inclusive colaborando na produção e roteiro. A história que nos é apresentada narra com sua trajetória a sutileza das dificuldades enfrentadas pelas mulheres em busca de sua autonomia. Em tempos difíceis, a questão feminina como sendo um obstáculo a mais a ser superado em busca da dignidade e cidadania. Luta essa que apenas em meados do século XX ganhará um contorno mais evidenciado em direção a um relativo amadurecimento e evolução quanto a direitos. A personagem de Albert Nobbs nos é apresentado por um trabalho digno da O Cinema e o Feminino estatueta tão cobiçada, Glenn Close está magnífica. Ela constrói Albert com uma sutileza impecável que comove o espectador e faz-nos próximos, ainda mais se pensarmos no público feminino que mesmo que não se dê conta disso, entenderá as agruras atravessadas por Nobbs. Nota à parte para a atuação de seu parceiro de reflexão a personagem perfeita de Mr Hubert Page (Janet McTeer). As duas atrizes foram também indicadas para os prêmios Globos de Ouro e o Screen Actors Guild Award. O filme também foi indicado para o Oscar de Melhor Maquilagem, perdendo novamente para o longa Dama de Ferro. 63 Em foco muito mais que pensar identidade de gênero ou orientação sexual, essa obra remete à própria construção que determinará os papéis sociais, esses que trazem junto a si toda a visibilidade com a qual cada sujeito se lança ao mundo em busca de amor e trabalho. Ao longo do filme cada um dos principais personagens contará sua história, de maneira breve e bem cuidada. A narrativa de cada um deles nos alcançará com a força da emoção, a história dos anônimos sociais tocada com uma visibilidade gigantesca. Fragmentos que contam não apenas de sua época, mas de subjetividades que formam o grande tecido social com suas demandas. Maioria dessas personagens poderia ser transportada para a atualidade e ainda nos confidenciariam importantes reflexões. A desigualdade social que se apresenta com a mão mais pesada no feminino ainda não é uma marca cultural que possa ser pensada como ultrapassada. Pelo planeta afora, a história da mulher em busca de sua liberdade, igualdade e fraternidade ainda traz delicadas e tensas questões, e sobre as quais o falocentrismo ainda hoje lança contra sua artilharia de maneira sutil e cotidiana. Albert Nobbs resiste e vive, trilha um caminho onde projeta sonhos sobre as duras pedras do passado, apartada da construção do afeto materno, segue femininamente investida de esperança. De certa forma reflete a luta da mulher durante séculos para ocupar um lugar com direitos, o que no filme fica representado pelo sonho maior de Albert, sua loja, sua cobiçada propriedade, a felicidade está condicionada a essa aquisição, sua noção de ser livre atravessa a construção de uma possibilidade de garantia de patrimônio, o olhar de admiração do outro que construiria uma legitimidade e um existir. Cinematerapia Poderemos abordar isso pelo seu simbolismo, e pensarmos que durante a longa história da humanidade que conhecemos o patriarcado tem dado a tônica, retirando da mulher até bem menos de um século, seus direitos, como voto, patrimônio, escolha de parceiro, construção da vida profissional, o direito ao próprio corpo, entre outros. Albert não deseja isso e conta sua trajetória, confidencia a Mr Page que foi submetida inclusive sexualmente, e que a partir disso, construiu sua identidade Albert, para proteger-se da humilhação via o masculino que ergue para si. Não é capaz sequer de lembrar quem foi antes, não tem outro nome que não o que assume no masculino, o que constrói uma dignidade mínima como “garçon”. Embora trabalhador subserviente e explorado, mesmo assim, isso ainda o dignifica mais que ser mulher em um mundo de domínio dos O Cinema e o Feminino homens. O homem que se torna e que então buscará sua parceria em um apaixonamento sutil por uma mulher, sem corpo, que fala de sua necessidade de marcar um lugar no coletivo, não é a mulher que o interessa de fato, interessa sim toda construção que viria com o papel de casado, um certo reconhecimento que o faz sonhar. Conhecer Mr Page e sua doce Cathleen marcará uma nova etapa em sua vida, um novo olhar e desejar para si o reconhecimento de sua assinatura. 64 Mr Page entrará na vida de Albert Nobbs de maneira inesperada, contratado para pintar o hotel onde Albert trabalha e reside, terá que dormir com ele no mesmo quarto por uma noite, o que o deixa a ele, Albert, em pânico. Com isso acabará tendo seu segredo descoberto e passará a perseguir Mr Page com pequenos agrados e tentando obter deste a promessa de seu silêncio em relação a sua empregadora. É interessante notar como a atriz imprime a sua personagem nesta sequência do filme, uma feminilidade via a submissão e desamparo, tocante intensidade que deixa demonstrada a precisão de sua construção. Cena deliciosamente sutil a revelação de Mr Page, gargalhada inevitável para a delicadeza do trabalho que Glenn Close nos apresenta particularmente nesta cena. Este encontro traça o caminho escolhido por essa película, que abordará a tese do quanto o feminino busca em suas lutas a possibilidade da autonomia, do poder que a escolha do trabalho e meios de subsistência representa para o sujeito psíquico. O toque de Cathleen nos dá inclusive a dimensão do quanto algumas mulheres na atualidade, equivocadas por pressões antagônicas na construção de suas identidades, derrapam ao contrapor as conquistas femininas à possibilidade de escolher o tradicional papel ao qual antes estavam confinadas. A questão atual, seu ganho, reside justamente na possibilidade que ainda poucas, por questões outras, terão para escolherem seu lugar e desempenho de papéis, inclusive mantendo apenas o lugar conservador caso assim o deseje. Entra em cena a jovem Helen Dawes (Mia Wasikowska) que se constituirá como um fio que amarra toda a narrativa. Ela intensifica e sublinha a questão Cinematerapia da mulher, a força que lhe é amputada e que remeterá, ao final, à própria história de Albert com sua desconhecida mãe. A mulher que busca em sua sexualidade a vivência de um tomar posse de seu corpo e que lhe é roubada frente a demanda masculina, trazendo na fecundidade o fator de ascensão ou queda frente a suas possibilidades de inserção de classe, sempre amarrada ao pedido determinante do par. O jovem Joe Mackins (Aaron Johnson) chega ao hotel por acaso e é contratado para consertar a velha caldeira, o que consegue por um golpe de sorte, sendo então contratado e passando a dormir no quarto do sótão. Joe e Helen darão início a um envolvimento amoroso que determinará o desfecho da história de Albert Nobbs. Ao contar sua vida, Joe nos apresenta a questões que nos emocionam até mesmo por sua possibilidade de existir no corte de tempo atual, e em qualquer camada social. O Cinema e o Feminino Nos remete à reflexão do quanto repetimos ao nos lançarmos desesperados para a negativa, como o tal destino demoníaco que Freud nos apresentou, a mão da “compulsão à repetição” que nos toma pelos cantos mais inesperados, por tudo aquilo que jurávamos ser, seu oposto. Do quanto a questão paterna marca o encontro dos gêneros, no que isso tem de melhor ou pior. É reducionista pensar nos modelos de identificação paterna como importantes apenas para os homens, mesmo na questão que os identifica, fora do investimento que restará à menina fazer, essa marca determinará a forma como esse futuro homem buscará e investirá em suas parcerias, a base do encontro ou do desencontro que marcará, subterraneamente, o traçado do afeto em sua junção de imagem ou fragmentação, no olhar que fará da mulher escolhida: a santa ou a prostituta. 65 Joe sonha em fugir para a América, sua meta é sempre uma corrida para longe, e será o que fará em relação a Helen, grávida, a quem Albert desejará proteger e incluir em seu sonho de legitimar sua identidade frente ao mundo. Ao final ficará a questão se Mr Page trouxe para si os cuidados com o novo Albert, nascido do encontro entre Helen e Joe, para que o pequeno não seja lançado à mesma história daquele a quem seu nome homenageia. Helen sabe do destino que está a ela e seu filho reservado, a partir de um lugar imposto por sua condição de gênero, maternidade e sexo(Langer, M.). As Helens de hoje seguem no Brasil fazendo uma nova história, levadas ao mesmo destino de criarem, sozinhas, seus filhos, realidade estatística que chama nossa atenção e formula a pergunta: por onde caminha a paternidade? Se antes o poder do pai omitia o afeto via o medo e a distância proximal, alimentada por uma alienação parental exercida em plena mesa de jantar, hoje uma parcela considerável ausenta-se até mesmo enquanto presença física e financeira. Se já não consta da certidão de nascimento o estigma do “bastardo”, segue na vida este filho apartado do colo e proteção paterna. Seguem, também, bravas mulheres, lutando cotidianamente por um equilíbrio familiar, trazendo ao debate a própria presença autônoma em um mundo cada vez mais falante, e que ao mesmo tempo vem se tornando mais esvaziado, assim como o silêncio de Albert Nobbs, que diz poucas palavras, presença quase invisível. Sujeito que diante do seu segredo precisará, para sua sobrevivência, guardar à chaves aquilo que explica sua contenção. Ao final, como a música de Chico Buarque, e sem “deus lhe pague”, agonizará, sozinho, rebatizado onde nunca existiu, mais uma Mary sem sobrenome, Cinematerapia sem eira nem beira, salvando com seu trabalho, a hospedagem dos patrões. Freud não conseguiu de todo desvendar seus mecanismos, lançando a pergunta do que “afinal deseja essa mulher”. As leituras que temos ainda hoje sobre universo da feminilidade ainda não romperam os paradigmas do masculino como o caminho do ideal. De certa forma, teremos que pensar, se toda mulher ao caminhar por sua autonomia não o fará um pouco como Albert Nobbs e Mr Hubert Page. Mas fato é que desmentindo a crença do masculino, a mulher existe, mesmo que por algum instante tenha que se O Cinema e o Feminino disfarçar em vestes de homem. 66 Cap. 14 Abraços Partidos (Los abrazos rotos, 2009) E estréia mais um filme do consagrado diretor Pedro Almodóvar trazendo em seu elenco principal sua atriz mais querida, segundo relatam fontes da imprensa internacional, Penélope Cruz(Lena). Veremos também o ator Lluís Homar (Mateo Blanco / Harry Caine), que ganha pela segunda vez, papel relevante num filme desse diretor, José Luis Cinematerapia Gómez(empresário Ernesto), Blanca Portillo(Judit García), Tamar Novas(Diego) e Rubén Ochandiano(Ray X). Almodóvar contou à imprensa em entrevista(a uma revista de cinema italiana) que o roteiro desse filme foi elaborado em sua quase totalidade durante uma crise de enxaqueca e fotofobia, conta-nos o diretor em seu tom brincalhão que descobriu que a dor não impede o processo criativo, podemos atestar isso vendo essa intrigante trama que nos apresenta em “Los Abrazos Rotos”. Sentimos no decorrer do filme o traçado bem característico desse diretor que vai enredando os personagens como quem constrói um belo traçado de tricot, vamos entendendo suas ligações e vínculos conforme a história vai sendo contada, um entrelaçado de amores, dores, obsessões, culpa, dominação, abnegação, lutos, mágoas, resiliência e esperança. Mais uma vez, nos veremos O Cinema e o Feminino às voltas com os densos e muito humanos personagens construídos por Almodóvar, repletos de passionalidade, tanto quando amam como quando odeiam, tanto em sua dedicação como em sua capacidade dominação. Podemos de duas formas diferentes reconhecer a dominação presente de maneiras totalmente opostas, uma pela força e domínio, representada no empresário Ernesto e outra por uma total dedicação e abnegação representada na personagem Judit. Ares de resiliência e esperança nos chegam na voz da juventude do personagem Diego. O tom da paixão fica representado pelos personagens de Penélope Cruz e Lluís Homar. 67 As sempre presente cores fortes e escuras que Almodóvar imprime em suas películas transporta-nos e convida para a imersão em um estado próximo ao devaneio ou mesmo de um sonho, como no sono vamos aprofundando as sensações conforme o desenrolar do filme, até por isso, sugerimos salas confortáveis para ver esse filme, telas grandes que ajudarão nesse desligamento do que está em torno, possibilitando dessa maneira entrar na verdadeira construção, que faz lembrar muito a onírica, que esse filme acaba por representar, inclusive em sua sucessão dos eventos em termos de temporalidade. A sensação que imprime é a de um motor que vai aquecendo até estar em sua máxima potência, impossível despregar os olhos da tela a partir de um determinado momento do filme, o diretor não nos dá tempo sequer de pensarmos em nosso respirar, mas cuida dele com o carinho de sempre, fazendo-nos rir de vez em quando e dessa forma ampliando nossa respiração que segue no compasso dos personagens e suas densas revelações. O universo feminino mais uma vez muito presente no toque desse diretor, começa apresentando uma personagem sem importância maior na construção do filme representada por Kira Miró que, por isso mesmo, sublinhará o aspecto que Almodóvar dará a ela, o sexo casual sem maiores conseqüências, personagem que não nos deixa na lembrança seu nome, aspecto esse divertidamente presente no filme em falas de Harry Cayne, mas o par abre esse filme representando de certa maneira uma mudança no comportamento feminino que mereceria um longo debate, alguns dirão conquista(que também é, sem dúvida) e outros diriam que seria a mulher Cinematerapia aceitando toda uma questão posta pelo machismo e misoginia. Como sempre, o diretor não nos dará respostas, mas planta com muita habilidade importantes perguntas. Abre-se a porta do apartamento de Harry Cayne e vemos entrar aquela que, de certa maneira, nos contará o filme, a personagem Judit, ali na cena a própria imagem da devoção feminina, ao mesmo tempo que representa a ausência de sexualidade ou mesmo de sensualidade. Almodóvar nos joga frente a uma divisão relatada por Freud em seu texto que faz parte das “Contribuições à Psicologia do Amor”, sexo e afeto, mulher sexual e mulher mãe(cuidadora) e toda a dificuldade que dentro da nossa cultura temos para unir esses aspectos em nossos objetos de investimento(podemos supor que se dá tanto no masculino, quanto no feminino). O Cinema e o Feminino Então, logo adiante, seremos apresentados a essa mulher esplendorosa que é 68 Penélope Cruz, que fica ainda mais radiante quando capturada pelas apaixonadas câmeras de Almodóvar, sua personagem Lena vem resgatar para as mulheres toda a possibilidade de viver e representar de forma inteira todo o caleidoscópio do ser feminino, mas também nos levará com intensidade, a pensar em tudo que ainda pagará a mulher ao escolher fazer isso. A cena da prova das perucas nos transporta com uma beleza deslumbrante para as várias mulheres que cada uma pode ser, nesse universo feminino que teóricos ainda afirmam como o tal “continente negro” que Freud se referiu. Um encantamento vemos nessa fase do filme, o diretor nos aproximará de maneira irresistível a toda a paixão que o olhar de Matteo(Lluís Homar) lança para Lena, paixão que é a liga de Eros nessa trama. Nos deixa a pergunta da quantidade que separa paixão da obsessão, no filme apresentada através do personagem do empresário Ernesto. Há uma passagem um tanto divertida no filme onde Harry Cayne elabora junto a Diego um roteiro que deveria ser divertido e cômico, remete muito a um filme que recentemente foi a febre de muitos, o discutido “Crepúsculo”, com sua continuação o “Lua Nova”. Almodóvar nos faz refletir no quanto estaremos nos remetendo ao amor que perde a noção de quantidade e que traz sublinhado os traços da destruição do objeto, do risco, como escrevemos em nosso recente artigo sobre esse outro filme. O filme “Abraços Partidos” nos lança ao universo tão humano que nos vemos inseridos em nosso cotidiano, onde se há um tom novelístico, há também uma impossibilidade de apreender de forma totalmente linear o que seja o vilão e o mocinho, nos vemos entendendo o que cada um ali nos traz de bem e mal, bom e mau, amor ou destruição, como é tudo que marca os vínculos que constroem a vida de cada um de nós. Reduzir qualquer um dos personagens que nos são apresentados ao bem ou ao mal não nos dará a completa dimensão do que Almodóvar nos apresenta com eles, o drama humano nas duas tarefas que Freud descreveu como nossas maiores fontes Cinematerapia de investimento(e sofrimento): amor e trabalho. “Imagens são a base do trabalho dele” — nos diz o assistente sobre o cineasta Mateo (Lluís Homar), que é nesse tempo do filme o cego Harry Caine, homem personagem que Matteo assumirá desde o acidente. Aos poucos e de forma onde o tempo é traçado mais pela importância dos fatos dentro do olhar de cada personagem, vamos conhecendo a sucessão da história de cada um e que é atravessada por cada uma dos outros, esses fragmentos se juntam todos na história de Lena e Matteo, sob o olhar atento do filho de Ernesto, Ray(Rubén Ochandiano), que os segue a pedido do pai com uma câmera filmando cada detalhe da construção do filme onde Lena é a protagonista e Matteo o diretor, com a desculpa de um make-off, a necessidade de Ray quanto a uma aceitação paterna também traçará o fio que conduz essa trama e seu desfecho. Ray o filho do empresário que cresce distante do pai e O Cinema e o Feminino alimentado em mágoas por sua mãe, uma mulher ressentida pelo abandono sofrido, e que em sua postura, nos leva a pensar em algo que hoje se nomeia de “alienação parental”, onde via acusações se torna praticamente inviável a relação filho e pai. Ray vai ao encontro dessa possibilidade de resgate atendendo ao louco pedido de seu pai, que faz dele o olhar perseguidor em relação a Lena, de certa forma Ray atende a sua curiosidade em relação a mulher que roubou o coração paterno, seguindo-a obsessivamente como modelo a ser imitado e atacado ao mesmo tempo. 69 Dentro dessa tentativa de aproximação com o pai, vai-se evidenciando para nós a forte ambivalência que atravessa o olhar de Ray para Ernesto, tanto que o desfecho do filme nos será dado pelas lentes de Ray em sua filmagem obsessiva, gravando assim, os momentos finais de Lena e Matteo. Não deixará de ser uma bela vingança contra seu pai, um Édipo que fura não os seus próprios olhos, mas os do pai traidor. Que seu olhar queime no amor de Lena por Matteo, será a maldição de Ernesto. As cenas onde Ernesto contrata uma leitora de lábios para ver o que falam Lena e Matteo nos provoca um riso angustiado, pensamos que remete um pouco aos momentos onde cada sujeito um dia já se viu tomado pelo monstro do ciúme fora do controle, esse cômico da posse do objeto que quase todo sujeito se depara um dia e escolhe o que fazer com isso, adoecer como Ernesto ou voltar seus conteúdos de luto para uma elaboração e vivência de alteridade. Relações que podem ser tocadas mais por Eros que pela destruição de Thanatos. Porém, no filme, Lena e Ernesto nos apresentarão à realidade tão conhecida por muitas mulheres em todo planeta, a violência, a posse do outro como um objeto total. Sabemos que o fim de todo organismo vivo é a morte, mesmo que Eros impere, e o filme nos colocará frente a isso, Judit nos contará tudo que vai construir o fio lógico dessa trama, aquilo que vemos nos caminhos analíticos como o “isso” que precisa ser dito, ser representado, ser nomeado de alguma maneira. E dentro dessa perspectiva descobrimos um pai e um filho, unidos antes de tudo pelos laços da afinidade, pelas identificações construídas pela Cinematerapia proximidade mais importante que os laços sanguíneos. A forma leve que Almodóvar imprime a essa descoberta é bela e comovente, o resgate das imagens tão importantes de um filme retratado pelas câmeras de Matteo, construído pela paixão antes de qualquer outra coisa, desfigurada essa filmagem pelas mãos de Ernesto que edita o filme dando-lhe uma linha grotesca com a intenção de trazer Lena e Matteo de volta. Ao final do filme, recuperadas as filmagens originais, filho e pai finalmente revelados um para o outro por Judit, resgatam e completam a obra, recuperam imagens, falas, risos e segredos. A vida nesse filme brinda em seu encerramento, “viver é bom...nas curvas da estrada...”. A dor também move a potência da criação e devolve vida à vida, sangue nas veias, imagens aos olhos e corações em abraços inteiros.(sugerimos aqui a foto dos retratos rasgados O Cinema e o Feminino de cena do filme) Almodóvar diz em entrevista concedida em Cannes: “Acredito plenamente que o cinema pode tornar a vida mais perfeita”. Através do olhar de Matteo, Almodóvar traz dentro do filme a sua noção sobre o fazer cinematográfico e em sua coletiva em Cannes também irá deixar claro que: “A frase mais importante do filme é: há que se terminar o filme, ainda que às cegas. Acho isso mesmo. Primeiro porque é preciso terminar custe ao que custar. E também porque a integridade do filme pertence ao autor. Os filmes precisam ser respeitados tais quais concebidos.” 70 E assim os filmes prontos ganham o mundo, o olhar do espectador, nossas emoções, nos modificando um pouco após àquelas horas mágicas que nos transportam ao caleidoscópio que cada um contém dentro de si em suas emoções. Mestre Almodóvar nos dá isso como poucos outros, e com certeza esse novo filme é mais uma grande oportunidade para fazermos isso, de pensarmos o mundo pelo olhar do cinema que atravessa nossa singular O Cinema e o Feminino Cinematerapia percepção. 71 Cap. 15 3096 Dias (3096 Tage, 2012) Filme realizado por Sherry Hormann, mesma diretora de“Flor do Deserto”, baseado na chocante história da austríaca Natascha Kampusch. Obra que traz um relato de “3096 Dias” onde não resta nada de lúdico no desejo de dominação. Forte e de grande impacto, merece atenção. Atores com Cinematerapia desempenho excelente, Antonia Campbell-Hughes e Thure Lindhardt, conduzem a difícil narrativa. A história real de uma menina raptada aos dez anos na Áustria e mantida em cárcere privado até seus 18 anos quando consegue escapar. Ao longo de todos esses anos sofreu toda a espécie de agressões físicas e psicológicas, sendo mais constante a privação de alimentos. Começamos a acompanhar a história de Natascha(Amélia Pidgeon e Antonia Campbel-Hughes) um pouco antes do seu sequestro, entendemos um pouco de sua tumultuada relação com seus pais recentemente separados. Fica clara a dinâmica que aponta do quando um casal deposita suas mágoas em uma disputa pela predileção da criança, e ao mesmo tempo, cada um deles, investe de desprezo o afeto que a menina sente em relação ao outro. Pouco antes de sair para a escola, uma das primeiras vezes que fará o trajeto desacompanhada, acontece uma briga com sua mãe justamente por conta O Cinema e o Feminino desse ataque que esta faz a seu pai. A menina recebe uma bofetada e sai correndo para um destino que será a trama do filme. Toda a história que nos é relatada foi baseada no livro que a própria Natascha Kampusch escreveu para, como diz ela em entrevista, tentar elaborar e seguir adiante sem vitimizar-se. A garotinha caminha distraída pela rua e do nada, de dentro de uma caminhonete, salta um homem e a coloca dentro dela a força. O veículo chega à uma casa, aparentemente de classe média, e em seguida começaremos a acompanhar o aprisionamento da menina em uma saleta que depois entenderemos estar localizada abaixo da casa, e vemos aos poucos o sequestrador ir colocando itens para uso da menina, primeiro um colchão onde ela deve dormir. 72 Vemos ser desenhada uma relação onde a submissão é o principal ponto desejado, a meta a ser alcançada por Wolfgang Priklopil(Thure Lindhardt) que repete colérico ao longo dos anos: “-Obedeça, obedeça, obedeça!”. A princesa que ele deseja precisa ser moldada por suas próprias necessidades, segundo suas próprias expectativas, dois em um, apenas a circular em torno de um só eixo, perverso. O filme muito bem produzido, faz com que toda a violência seja assistida de forma sutil, mas nem por isso menos carregada e repleta de impacto emocional, torna-se sufocante e produz no espectador um estranhamento e uma certa asfixia. Natasha começará ainda muito pequena a depender de seu raptor Wolfang para todas as suas necessidades, até mesmo a de contato humano, vínculo, que como é sabido se trata de algo que é muito caro para todos os sujeitos. Aqui poderemos lembrar de uma das melhores sacadas do cinema holywoodyano quando no filme “Náufrago” colocou em cena o Sr Wilson. Para quem não se lembra, tratava-se de uma bola de vôlei que o personagem interpretado por Tom Hanks, náufrago isolado em uma ilha, pintou com seu sangue um rosto para que tivesse com “quem” falar. No caso aqui do nosso filme veremos Natasha tentar isso com suas roupas colocadas como se fossem outras crianças e no pedido que acaba por fazer de conversar com Wolfang. A relação de dependência que era a meta dele se estabelece porque dentro das necessidades básicas de um sujeito podemos incluir a alteridade, a relação necessária com um outro que nos organiza. Jean Paul Sartre já nos apontava a delicada questão em sua conhecida peça “Entre Quatro Paredes”, esse olhar Cinematerapia do outro como algo que atravessa o entendimento de cada um sobre si, dando conta que se os outros são o inferno, são também aquilo que constitui o psiquismo. A fala humana nasce da necessidade de comunicação que visa o contato, o investimento do afeto para fora do próprio sujeito, indo buscar em outro ser as identificações e investimentos que o formam desde sempre. A criança nasce e lança o olhar para sua mãe, isso o acalma, busca contato, mama, está dado o ser do vínculo. O isolamento não é uma alternativa viável a não ser em graves quadros de sofrimento. Aqui poderemos também ilustrar com o belo filme “Black”, que faz parte do que conhecemos como Bollywood e que de uma forma muito própria nos remete ao esforço de entrar em contato, e do quanto isso pode ser também organizador. J. D. Nasio já nos dizia em seu livro “A Dor de Amar” do quanto a retirada do amor leva o indivíduo ao caos pulsional organizado por esse objeto amoroso. O Cinema e o Feminino Entendemos então a partir dessas considerações o complexo caminho que veremos nossa protagonista atravessar, e, incrédulos, acompanharemos o grau de submissão que ela desenvolve e das poucas tentativas de fuga que empreende. Onde há ódio reside também um afeto amoroso, por longos oito anos seu raptor foi toda sua referência, objeto ameaçador e ao mesmo tempo salvador, como vemos no controle de alimentos que ele opera em relação a ela, assistimos a cena de Natascha criança(Amélia Pidgeon) pedindo comida ao seu raptor, sequência dolorosamente inesquecível, aplausos para a pequena atriz! 73 Interessante sabermos pela diretora do filme, que Natasha Kampusch apenas se recusa a falar sobre os acontecimentos diretamente sexuais, e observarmos, acompanhando a obra, que com uma precisão sutil e admirável, Sherry Hormann abordará uma das delicadas questões que envolve o estupro e a vítima, no caso de Natasha acrescida por toda a dinâmica que descrevemos aqui como resultado dos longos anos de cativeiro e dependência. Assistiremos ao ato sexual já ela mocinha, aos quatorze anos, não sabemos ao certo se ali começa essa modalidade de agressão à subjetividade dela ou se antes haveria acontecido algo não relatado. Mais do que ver em sua vítima a princesa, fica claro na sequência que parece que Wolfang precisa, via a esse jogo, identificar-se com o príncipe que necessita se pensar como sendo ele. Um traço narcisista que mais do que seduzir o outro quer sentir-se um sedutor admirado, não importando o que tenha que dilacerar neste outro em nome de seu intento, leva seu “don juanismo” ao máximo das conseqüências. Wolfang é apresentado ao espectador aos poucos, da mesma maneira do como se faz conhecer à Natasha, ficamos sabendo que é um ex funcionário demitido da Siemens, possui uma inteligência que parece grande e ainda funcional apesar da distorção de leitura que já apresenta em relação ao mundo externo e a realidade, o que provavelmente ocasionou sua demissão. Como é comum em funcionamentos psíquicos dessa natureza, traz traços de manipulação e parasitismo bastante significativos. Vive na casa cedida a ele por sua família após a morte de sua avó, veremos como sua dominadora mãe comparece regularmente para organizá-la para ele, inclusive no tocante a alimentação. Um sujeito que no momento do ato do sequestro não apresenta Cinematerapia mais nenhuma interação com o jogo social, mantendo em relação à sociedade uma leitura de aversão e desprezo. Parece apresentar uma proximidade com a psicose o que para muitos teóricos seria compreendido no sentido de abordar o manejo perverso como tentativa de conter a psicose. “O objeto é tomado nessa dinâmica perversa como descaracterizado de qualquer característica, vontade ou existência de um desejo ou subjetividade. É como se o perverso olhasse sempre para um espelho, percebe uma presença e empresta a ela todas as suas características e peculiaridades, serve apenas a um fim, sua gratificação, e dentro dessa estará sempre inclusa a questão do controle sobre o objeto”, como já pudemos falar em estudo publicado sobre esses quadros. Uma das características marcantes também reside no fato de que o perverso O Cinema e o Feminino quer da vítima que ela quebre o que ele não é capaz de construir, seus parâmetros de generosidade e de ética. Ao manipular Natasha pela comida, o que Wolfang pretende é justamente reduzi-la à posição de romper com seu sistema moral em troca da sua necessidade premente. Veremos mais para o final da película uma tentativa de resposta a pergunta que até hoje persegue a real Natascha Kampusch, a de “por quê eu?”. Na cena da livraria, onde ela comia alguma guloseima escondida de sua mãe, e ele a viu, ela faz sinal de silêncio e cumplicidade e assim, ao que parece, determinará seu destino, pela atenção que por segundos, dirigiu ao estranho rapaz, pelo sorriso generoso que lançou em sua direção. Sabemos que falar de alteridade em perversão não se constitui em uma possibilidade conceitualmente sustentável, o que o jogo perverso visa é anular o outro enquanto desejo. 74 Natascha torna-se vítima e cúmplice, em uma dinâmica que se sustenta em suas características anteriores, da complicada relação que tinha com seus pais, onde, de alguma maneira, talvez também fosse vítima de um jogo de manipulação e opressão, característicos em pais que não enxergam o filho enquanto sujeito transformando-o em objeto de agressão ao parceiro, seja pela disputa pela posse, seja pelo empurrar a criança como obrigação do outro. No filme vemos sua mãe(Trine Dyrholm) durante os anos de desaparecimento da filha, em um estado de melancolia e auto acusação, entrando em contato com um afeto que antes ficava meio que oculto pela certeza do cotidiano e disputas com o ex marido, pai da menina(Roeland Wiesnekker). Nossa protagonista atravessará anos de maus tratos, atenção mórbida, permanente ameaça à sua integridade física e emocional, a privação de alimentos, assédio sexual, isolamento, ao mesmo tempo que, merecerá atenção, algum cuidado, um “torto” laço amoroso, tudo isso acontecendo em um importante período de formação e solidificação dos laços com o mundo, onde a perda da infância instaura um momento marcado por busca de autonomia e confusão emocional, inclusive com a entrada de alterações físicas e hormonais. Ao vermos Natascha em recentes entrevistas provavelmente seremos assaltados pela pergunta do que será que realmente se passa em seu íntimo, o que será que tudo isso resultou em suas relações com o mundo. Ela nos conta que ainda sai muito pouco, não pensa em namorar e tenta levar uma vida como de outra pessoa qualquer, estudando e saindo. Escreveu o Cinematerapia livro sobre sua vivência na clara tentativa de elaborar e encontrar saídas. Talvez o filme venha nesta mesma direção, um recado que mesmo diante dos piores acontecimentos, teremos capacidade de sobreviver, abrir portões e encontrar a vida, lidar com ela com “resiliência”, sendo capaz de superar mesmo a mais desfragmentadora experiência, acreditar que exista no sujeito um lugar onde nada é capaz de alcançá-lo, seu refúgio para ultrapassar as angústias e golpes no caminho sem identificar-se com o agressor, sem perder O Cinema e o Feminino a ternura, a generosidade e a capacidade de acreditar na vida. 75 Cap. 16 What Happened, Miss Simone? Como sabemos Sigmund Freud não era assim um fã absoluto da música em sua capacidade maior de exaltar os sentidos, coisa que equiparava de certa maneira a busca pelo tal “sentimento oceânico” explorado pelas religiões. Mas, se tivesse ouvido essa diva que este documentário visita, talvez pudesse Cinematerapia abrir uma exceção. Com este chiste iniciamos essa aventura que será falar desse documentário que impacta de maneira irreversível a quem o assiste. Fica o aviso! “Mas o que aconteceu, Sra. Simone”, pergunta de Maya Angelou. Assim abre esse documentário produzido pela Netflix e dirigido por Liz Garbus , que falará a respeito da vida e carreira da cantora Nina Simone que, com seu piano mágico, suas canções intensas e sua voz poderosa, encantou o mundo. Com seu ativismo em prol dos direitos civis para a população negra, ganhou destaque enquanto figura de peso em seu tempo. Despertou admiração e aversão, conviveu com os dois movimentos desde sempre, e se pensarmos sua vida a partir das informações desse filme, entenderemos que tudo que acidentou sua vida está inscrito em certo tipo daquele fio que O Cinema e o Feminino conhecemos como repetição. A busca da dor conhecida que se dá paradoxalmente ao mesmo tempo que com a procura de uma saída do labirinto que é o sofrimento, e que se inscrevem, via de regra, irmanadas nos quadros clínicos que acometem o sujeito. Em determinado ponto do doc, respondendo a uma entrevista, ela lança a pergunta: “Como ser artista e não refletir a época?”. Com sua trajetória de vida responde de forma bem complexa a essa questão. “Às vezes soo como um cascalho, outras vezes, como café com creme”. O filme visitará nossa personagem com uma delicadeza que não permitirá julgamentos frente a fatos e comportamentos controversos que Liz Garbus vai buscar via o relato da filha, Lisa Simone Kelly, das anotações da própria Nina Simone, 76 depoimentos do ex marido, de amigos e bela utilização de imagens da época narrada. Abre a cena, Nina Simone já no auge de seu reconhecimento, após uma ausência dos palcos de festivais, entra imponentemente(Montreux/1976), inunda o ambiente com sua presença, a máscara indecifrável que traz como rosto, o imobilismo aguardando até que todo barulho cesse para que possa doar sua música, cria com sua mise-en-scène uma atmosfera alquímica. Alguém grita da plateia: “Ei, estamos prontos pra você”, arrancando daquele rosto, até então impenetrável, um sorriso quase que de menina. E assim começamos a penetrar no mundo de sombras e luz dessa mulher. “Ei, garota, sente-se”. É preciso fazer o silêncio interno que ela costuma pedir ao público na sala de espetáculo, para começar a tocar, é preciso saber que nada será fácil, que não conseguiremos manter um pensamento linear e nem formar análises superficiais sobre o mundo que passaremos a conhecer um pouco. Para alguns, a loucura que destruiu sua carreira, para outros, muitos, diga-se, uma complexa resposta às questões de sua existência e que renderam ao mundo canções que para sempre atingirão nossa alma, bem como queria ela, como uma sacudida: “Quero abalar tanto as pessoas, que quando saírem da boate em que me apresentei, estejam em pedaços”. Ah e como Nina Simone ainda faz isso, basta ouvi-la cantar, acalma bebês ou sacode emoções inescrutáveis. Eunice Kathleen Waymon, a sexta de oito filhos em uma família negra da Carolina do Norte e que passou a se chamar Nina Simone para cantar em casas noturnas sem que sua mãe, uma pregadora, e sua família, muito religiosa, ficassem sabendo. Niña de pequena como a chamava um namorado Cinematerapia e Simone em homenagem a atriz Simone Signoret. Nina Simone passa a cantar para ganhar sua subsistência e de sua família e após ser rejeitada pelo Instituto Curtis de Música, na Filadélfia. Ferida em sua autoestima, somente muito tempo depois entenderá que foi rejeitada pela cor de sua pele, já que era uma exímia pianista a essa altura e já havia estudado por um ano na Escola Julliard em Nova Iorque mantendo-se com recursos que havia poupado tocando nos anos de estudo em concertos para piano clássico. Ela canta: “Quem dera você soubesse, o que significa ser eu...”, estamos ainda no início do documentário, cenas de arquivo e a bela canção, assim talvez a diretora convide ao espectador para aventurar-se no mundo de Nina Simone, o que, segundo sua filha, ela não era somente no palco, mas sim todo o tempo e que acabou por se constituir em problema para a convivência com O Cinema e o Feminino todos. De temperamento explosivo, dada a altos e baixos, diagnosticada na década de 80 como portadora de Transtorno Bipolar, vítima de violência doméstica, violência da segregação racial, nascida e criada que foi na Carolina do Nortem aspectos que podem dar uma ideia de sua estrutura instável. Mais adiante isso explodirá em sua luta junto ao movimento negro. Há em sua vida um amálgama que nos faz pensar em tudo aquilo que produz sintoma, em sua forma de exprimir um sofrimento indizível e muitas vezes insuperável. 77 “Liberdade para mim é isto: Não ter medo.” E confessa ter experimentado o sentimento de ser livre algumas vezes no palco. Nina Simone conhece no início de sua carreira Andrew Stroud e se casa com ele, saberemos através do relato da filha e de suas anotações, de todo o sofrimento que enfrentou com surras e abusos físicos e emocionais por parte de Stroud que se torna também seu empresário, administrando muito bem sua carreira, mas ao mesmo tempo, tornando-a escrava de seu talento, coisa da qual ela se queixava constantemente. Conheceremos mais a respeito de como Nina Simone se sentia quanto a tudo isso, via o músico guitarrista e diretor musical que a acompanhou desde de sempre, Al Shackman, que se tornou um grande amigo e em determinada altura seu acolhedor. Ele descreve as surras a ele, o sofrimento e sua incapacidade de sair daquela prisão emocional. Há um ponto onde se lê algo escrito por ela que dá conta do quanto se sente completamente destituída de si a cada surra, “elas destroem tudo dentro de mim”. As conhecidas promessas do dia seguinte, os pedidos de desculpas, fatores que se conhece tão bem em relações abusivas. Para também perceber isso de dentro de uma intimidade tem o filme sobre a vida de Tina Turner, “Tina”(1993) que muito semelhante à Simone, sofreu de exploração financeira e de violência sexual, emocional e física impostas pelo marido. Al Shackman descreve o talento de Nina Simone dizendo que ela operava uma verdadeira metamorfose nas peças musicais, transformando-as em sua própria experiência e descreve sua relação com ela como se fosse quase telepática. Nina Simone ao interpretar não segue as regras musicais e Al Cinematerapia Shackman é capaz de acompanha-la sem maiores dificuldades, ela o descreve como possuidor de um “ouvido absoluto”. Podemos supor aí uma relação de confiança e cumplicidade que chega a eles via a música que fazem juntos, mas que vai além, evidenciando uma relação de escuta e acolhimento que caracteriza muito as falas dele nesse documentário. Ele entende suas mudanças de tom(de música, de vida, de humor) e a acompanha, sem critério de julgamento ou correção, assim como na música, estende essa capacidade para conviver com uma pessoa intrigante e ao que ela mesma dá a entender, de difícil convivência. Shackman lança sobre ela um olhar de admiração e talvez tenha sido, entre seus afetos mais próximos, um dos poucos a ser capaz de dar-lhe o suporte que sua angústia denunciava a necessidade de receber. Cantar: “Transmitir uma mensagem emotiva, o que significa usar tudo que se tem dentro de si, para, às vezes, mal tocar uma nota ou se tiver a força para O Cinema e o Feminino cantar, você canta”. Sabemos que viver assim nas pontas extremas das emoções pode ser, e quase sempre é, uma tarefa para além da possibilidade do que a estrutura psíquica suporta. O ex marido narra um aspecto que gira em torno da hiperssexualidade em algumas fases que costumam se apresentar no ciclo hipomaníaco. Mais adiante em sua vida, prejudicada pelo curso da doença, ela será medicada o que possibilitará seu retorno à carreira em determinado momento deixada pra trás. Retorna Niña a cantar em bares agora em Paris onde o público não comparece por não poder acreditar que se trate realmente dela, aos poucos é levada de volta aos grandes palcos por seus amigos e admiradores. Mas chegamos nesse ponto ao cerne do que procura, acreditamos nós, a diretora ao voltar o interesse de suas lentes para essa pessoa e sua vida mais íntima. 78 Quantas experiências viveu até chegar aí onde se diagnostica o quadro e onde ela desapareceu para o mundo? E que mundo era esse que deu a essa mulher um complexo enigma para decifrar ou ser devorada por ele. Nina Simone encontra um jeito de dar caminho a sua dor, a angústia traduzida em medo como o que sentia quando criança e atravessava a linha do trem que separava os mundos dos brancos e dos negros em sua terra natal, para ir estudar piano desejando desde os três, quatro anos ser a primeira concertista negra de seu país, que como canta em uma de suas músicas, “...meu país é cheio de mentiras”. No auge de sua trajetória, une-se e conhece as grandes lideranças do movimento negro norte americano, desenvolve relações próximas de quase parentesco com nomes expoentes das conquistas do movimento e canta Why? (The King of Love is Dead) no enterro de Martin Luther King de quem, assim atesta o documentário, discordava sobre a tese da não violência. Com seu crescente ativismo vê sua carreira sofrer um grande freio, porque suas músicas de protesto obviamente não eram amadas por uma parcela da população que guardava os valores mais segregacionistas. Em um momento do doc, um dos militantes da época, conta do prazer que foi ver Nina Simone cantar o que todos eles queriam um dia poder dizer, na canção “Mississippi Goddamn” onde em um refrão introduz um palavrão, coisa impensável para a época, mais ainda se vindo de uma mulher negra: “Todos sabem do Mississipi, puta que pariu”, a música foi composta após o assassinato de quatro meninas negras em uma igreja de Birmingham, no Alabama(1963). Falando de sua infância diz saber que quebrar o silêncio enquanto atravessava a linha do trem significava confronto Cinematerapia com os brancos daquela cidade. Com sua música e de cima de palcos por todos os lugares do mundo, ela finalmente solta sua ira, diz a filha que ela cantou com tanta raiva que explodiu a voz, nunca mais conseguindo voltar a um determinado tom. Uma dor que grita em catarse de muitas vozes, que abriga seu profundo desamparo e medo que a acompanhou na infância. Nina Simone foi importante personagem da história que se escreveu nos Estados Unidos da América, refletida, como sempre, no comportamento de todo o mundo, da luta pelos direitos civis da população negra mais fortemente ocorrida entre 1954 e 1968. Se torna impossível fazer uma leitura da vida da intérprete sem entender sua inserção nesse mundo conturbado que a fez estrangeira em seu próprio país, do qual guardou grande mágoa até o fim dos seus dias. Sua voz ergueu-se bela e imponente, cantando as dores, O Cinema e o Feminino lutas e anseios de irmãos brancos e negros que sonhavam com igualdade e fraternidade. Nina Simone tornou-se muito amiga da autora do espetáculo que é um marco histórico e conhecido como “To Be Young, Gifted and Black”, Lorraine Hansberry, com quem ela diz no doc ter aprendido sobre autores fundamentais para se pensar política. A vida de Nina Simone foi de uma intensidade que o documentário aborda de maneira brilhante, o espectador queda entre fascinado e consumido, confuso com tantas vivências tão diferentes, tão opostas em seus pontos mais altos, em seus vieses mais esgarçados. 79 De certa maneira vivemos um pouco do que sua filha descreve sem disfarçar a dor, a de ter uma mãe sempre imprevisível, horas ausente, tanto pela ausência física pelas viagens constantes, quanto pelo alheamento a que muitas vezes ela se entregava ou em explosão de fúria ou alegria. Quando enfim ela se viu cansada dos maus tratos sofridos pelo marido e pela segregação racial, talvez em sua mente uma só coisa, possivelmente ali naquele limite que mulheres ameaçadas conhecem, ela foge para a África, mais especificamente para a Libéria, onde se sente finalmente em paz e com alegria. Tempos depois sua filha vai ter com ela e é triste nesse momento, vermos seu relato de que sua mãe, antes vítima dos maus tratos, passa a exercer sobre ela o mesmo domínio sádico aplicando-lhe com frequência duros castigos físicos e de humilhação pública, evidenciando de maneira muito lancinante o poder que conhecemos ter o ciclo da violência que passa através de gerações, repetindo ativamente o que sofreu passivamente, sem possibilidade de elaboração e saída. “Quando uma pessoa adota seu próprio tempo, espírito, ritmo, se vivêssemos em um ambiente que permite sermos exatamente quem somos, sempre estaríamos em acordo conosco”, assim sentencia a filha mais velha de Shabazz(Malcolm X) sobre o desafio da vida de Nina Simone. Lança a pergunta se ela pode ser quem era plenamente? Entendemos que sempre experimentou um incontornável sentimento de solidão, isso salta da tela nessa obra. O documentário deixa-nos com questões bastantes contundentes, informados sobre os revezes e a dura e sofrida vida de nossa estrela, ficamos Cinematerapia com a dúvida do quanto seu adoecimento foi em consequência de ter que lidar com uma carga maior do que podia suportar, de se tratar, talvez, de alguém que mergulhou profundamente em seus sentidos e nas questões de sua época, tragada então pela angústia. Há feridas que por mais que se grite, não saram. Há em todo adoecimento um grito de denúncia e uma mão na porta de saída. “I got life, I've got lives I've got headaches, and toothaches, And bad times too like you...” Sabemos todos que no final, para podermos permanecer inteiros, precisamos fazer ligações tentaculares que unam e não apenas se esgotem em si mesmas. “My baby just cares for me”. Será? Lembram da nossa “Estamira”? Em algum O Cinema e o Feminino ponto esse potente documentário nos fez lembrar-nos dela. “Eu sou a beira 80 do mundo, estou em todo lugar”. Dois dias antes de morrer Nina Simone recebeu o diploma honorário do Instituto Curtis. Reconhecimento ou ironia? Cap. 17 Seraphine (2018) Filme ganhador do César 2009. Direção de Martin Provost, trazendo no elenco Geneviève Mnich, Yolande Moreau (Séraphine), Anne Bennent, Ulrich Tukur(Wilhelm Uhde), como principais personagens. Narra a vida da francesa Séraphine de Senlis (1864-1942), que trabalhava como faxineira para sobreviver e comprar material para pintar suas telas. O filme Cinematerapia passa contemporâneo ao sucesso de Picasso e nos leva a quem teria sido um dos seus primeiros compradores, o Marchand, colecionador e crítico de arte Wilhelm Uhde, apaixonado por artistas com novas potencialidades. Colecionador dos quadros de cubistas como Picasso e Braque, refugia-se em um momento de crise em uma casa de campo, onde Séraphine trabalha fazendo faxina e ao acaso vem a conhecer uma pintura que ela havia feito e deixado com sua patroa e locadora de Uhde nessa casa. Essa obra que o levará ao encantamento e curiosidade em relação àquela estranha criada que pintava flores, frutas e a natureza, em um estilo que foi considerado arte naif, mas que o personagem de Wilhelm Uhde nos diz no filme preferir chamar de pintura primitiva. Informações mostram-nos que em 1928, o colecionador e teórico alemão Wilhelm Uhde (1874 - 1947), co-protagonista nesse filme, organizou uma O Cinema e o Feminino exposição de arte naïf em Paris, reunindo obras de Rousseau, Luis Vivin (1861 - 1936), Séraphine de Senlis (1864 - 1942), André Bauchant (1837 - 1938) e Camille Bombois (1883 - 1910). Séraphine é uma personagem dona de uma personalidade entre servil e absolutamente indomável que convida-nos à caminhar com ela, explodindo finalmente nossas sensações com a visão de suas telas. Nos leva a questionamentos sobre a arte não somente como talento, mas como algo artesanal, trabalhoso, exigindo dedicação desde o seu preparo. 81 Mas vamos deter-nos um pouco em aspectos que poderiam interessar-nos a partir do humano, não diremos somente da psicologia, porque aqui até nossas noções do campo psi precisarão ser desmontadas para que possamos acessar nossa personagem. Fácil seria fazer a conhecida ponte entre loucura e genialidade, mas diante de Séraphie isso resultaria no mínimo em mediocridade e mesquinharia. Essa mulher que conquistou o mundo sem sair do seu “lugar”, que amplia espaço e conhece a liberdade do pensar sem arredar pé do seu lugarejo, apenas enfeitará seu modo de vida, igualmente a como a amplidão que suas telas ganharão no correr dos anos. Dois metros, ela pede que tenham suas telas, ao retomar seus contatos com Wilhelm Uhde no pós Primeira Grande Guerra, onde até então, seus contatos com Uhde haviam sido interrompidos. A arte é liberdade, existe um pensamento que se solta e é livre, essencialmente livre. Sua arte é livre como os pensamentos oriundos de um inconsciente sem barreiras. Vem à tona de maneira direta, sem entraves. Séraphie busca a saída do desamparo pela apreciação da sua produção, pede que digam se gostam ou não de seus quadros, esse detalhe, pensamos que seja importante sublinhar, ela em nenhum momento pergunta se a arte dela é boa, pergunta se o outro gosta e nós aqui do outro lado da tela, espectadores da sua arte que invade-nos despertando uma forte e vívida emoção, avassaladora mesmo, entendemos de alguma maneira essa pergunta que ecoa em todos nós, nossas marcas pelo mundo. Quando Wilhelm tem que partir rapidamente por conta dos avanços da guerra que chegariam em breve ali naquela região, tudo que Séraphie pode pensar ao sentir o abandono é dito: “-Você não gosta mais das minhas pinturas?”. Esse caminho Cinematerapia da arte como o caminho da comunicação das almas, um encontro que transcende os indicadores sociais, culturais, de classe ou até de línguas. A arte como o caminho para o encontro com algo da possibilidade humana que cada um de nós “encerra” dentro de si mesmo. Caminho esquecido e que são tocados quando nos impactamos frente a uma grande obra de arte. Séraphie tem essa capacidade de “chave”, e o filme que Martin Provost apresenta-nos, traz em si esse encantamento, essa possibilidade de suspender por um bom tempo nossa racionalidade e remeter-nos à emoções profundas, misturadas, belas e potentes. O roteiro desse filme é também assinado por Marc Abdelnour, além de Provost. Teremos poucas informações sobre nossa personagem antes daquele período, ela apenas repete que não tem ninguém, e conta que quando trabalhava em um convento “um anjo da guarda lhe apareceu e a mandou pôr-se a pintar”, hábito que desenvolve sem saber o O Cinema e o Feminino porquê, nessa necessidade quase visceral de representar algo ali em suas telas repletas de cores e formas, orgânicas até pela maneira como prepara suas tintas, detalhe que o filme nos mostra com sutileza e beleza. Abate-se sobre a tela seu caldeirão pulsional. Há uma cena no filme onde isso se faz representar em imagem, linda passagem, ela adormece em torno da obra que completa, exausta e plena. E vem a Depressão, no filme atravessa dois sentidos, a loucura de Séraphie que evolui em uma bela metáfora, espera realizar sua arte, torná-la pública, representa esse desejo pelo prometeram-lhe comparecer. 82 ritualístico do casamento, onde anjos A crise econômica impede que essa exposição onde seus quadros seriam apresentados possa logo realizar-se, e impedida de assinar-se ao mundo, não resta à Séraphie outro caminho que não seja o intenso retorno pulsional, o enlouquecimento que a joga, mansamente, em um manicômio onde viverá até a sua morte. Sua voz calada transforma-se em seu sofrimento, seu choro, sua raiva que podemos remeter a uma passagem onde quando soube da primeira partida de Uhde e que enfurecida fala a ele e este ordena que ela não utilize aquele tom com ele, ao que ela responde: “-Em que tom julga que me falam desde que nasci?”. A mulher, órfã, pobre, louca, esse era seu lugar do qual irrompe com sua arte. Mais do que uma obra biográfica o filme encaminha-nos a pensar sobre a vida, suspensa mesmo do tempo cronológico e inscrita no devir que marca a todos nós. Existiu uma mulher que durante vinte anos se relacionou com o colecionador Wilhelm Uhde e pintou telas da chamada arte Naif de um valor reconhecido ainda na atualidade. De outra forma podemos também dizer que existiu um ser, mulher, no início do século passado, marcada pela opressão, abandono e pobreza, que elevou-se, acima de sua insígnia social invadindo o mundo com cores e formas impossíveis de não serem vistas, como se passasse o marcador por cima do texto da vida mostrando o quanto deixamos de ver ao não vê-la, a retornar a vida para tão somente o que é consciência, praticidade e cartão social. Sua loucura, nossa loucura, dores quando não podemos representá-las, isso marcará o desaparecimento de Séraphie que não entendeu que sua linguagem estava no devir, que ali para sempre haverá um lugar para ela, não Cinematerapia mais invisível, não mais apenas vivendo da marca do seu desamparo. Talvez possamos pensar que em todo enlouquecimento há essa escolha, essa possibilidade que Séraphie chegou a tocar, a inundar com alegria nossas vidas, que cegos a ela, a deixamos em seu desamparo, em sua dor e angústia, em seu abandono e silenciar. É preciso que tudo seja dito, é preciso representar. Escutar as vozes dos anjos. Belíssimo filme, não precisa ser útil ou indicado para nada, assim como a poesia, a pintura, a escultura etc não devem ser a princípio útil para coisa O Cinema e o Feminino alguma, assim é esse filme, arte, representação. Encantamento! 83 ****************************