O Cinema e o Feminino
Cinematerapia
Autores
Dr. Eduardo J. S. Honorato
Denise Deschamps
2021
Educar em Saude
ISBN: 978-65-994973-3-9
https://doi.org/10.53405/edusau-ccpp.003
Este livro está licenciado sob a Licença a de Atribuição
Creative Commons. Atribuição Não-Comercial- 4.0
Internacional (CC BY-NC-ND 4.0).
O CINEMA E O FEMININO
Cinematerapia
Autores
Dr. Eduardo J. S. Honorato
Denise Deschamps
2021
Educar em Saude
ISBN: 978-65-994973-3-9
Sumário
Sobre os autores
05
Sobre a coletânea
06
Artigos
Estranho que Nós Amamos (The Beguiled, 2017)
07
Conto de Aia (Handmaid’s Tale, 2017)
11
A Garota do Livro (The Girl In The Book, 2015)
16
A Esposa (The Wife, 2018)
22
Inacreditável (Unbelievable, 2019)
26
Big Little Lies – Temporada 1 (2017)
31
Big Little Lies – Temporada 2 (2018)
36
Babadook (2014)
42
Eu, Tonya (I, Tonya, 2017)
45
Orange is the New Black (2013)
49
Malévola (Maleficent, 2014)
54
Prenda-me (Arrêtez-moi, 2012)
58
Albert Noobs (2011)
63
Abraços Partidos (Los abrazos rotos, 2009)
67
3096 Dias (3096 Tage, 2012)
72
What Happened, Miss Simone? (2015)
76
Seraphine (2008)
81
Sobre os autores
Eduardo J. S. Honorato
Psicólogo, Doutor em Saúde Pública com
ênfase em Sexualidade, Reprodução, Gênero
e Saúde (FIOCRUZ). Pós-doutorando Medicina
Tropical
com
ênfase
em
Infecções
Sexualmente Transmissíveis e Hepatites virais
na Fundação de Medicina Tropical - FMT/AM.
Especialista em Saúde da Família (UFSC),
Docência Superior (UGF), Produção e Uso de
Tecnologias
Educacionais
(UFSCAR),
Epidemiologias e Vigilância em Saúde
(Unyleya) e Especialista em Saúde Mental
(Unyleya). É concursado como na Secretaria
Municipal de Saúde de Manaus (SEMSA).
Concursado como Psicólogo. Professor
Adjunto na Escola Superior de Ciências da
Saúde - ESA - na Universidade do Estado do
Amazonas - UEA.
https://linktr.ee/Dr.eduhonorato
Denise Deschamps
Possui
graduação
em
Psicologia
pela
Universidade Gama Filho (1984). Completou a
formação em psicanálise e socioanálise pelo
IBRASI. Tem experiência na área de Psicologia,
com ênfase em Psicanálise. Desde 1984 é
psicóloga e psicoterapeuta com treino em
psicanálise clínica individual e psicanálise de
grupos. Atuou em ambulatório na Colônia
Juliano Moreira e IBRAPSI. Publica artigos acerca
de
conceitos
da
prática
psicoterápica,
psicanálise e cinematerapia - filmes e
psicanálise em revista de circulação nacional e
sítios especializados na Internet. Participação
com trabalhos aceitos em Congressos nacionais
e lançamento de livro na Mostra Regional de
Práticas em Psicologia CRP/RJ(2009). Ministra
aulas e cursos como colaboradora convidada
em faculdades brasileiras. Supervisora em
clínica psicanalítica.
Sobre a coletânea
Chegamos ao terceiro volume da nossa série de artigos publicados.
O primeiro volume foi sobre Psicanálise. O segundo sobre filmes
sobre sexualidade e gênero. Este terceiro vem recheado de filmes e
seriados que abordam o “feminino” no seu mais amplo universo e
diversidade. Estávamos ansiosos por esse volume.
Ao longo de mais de 10 anos produzimos dezenas de artigos para a
Revista Psique Ciência e Vida da Editora Escala. Esses artigos,
sempre focados na Psicologia e Psicanálise, abordam os seriados e
filmes com um olhar chamado de cinematerapia.
Filmes podem ser utilizados como facilitadores de insights. Quando
orientado esse uso, por profissionais qualificados, e, quando bem
analisados, podem levar a construção de reflexões importantes
que trazem um processo de modificação, seja para o dia a dia, seja
para o processo psicoterápico.
Através das produções fílmicas ou de trechos delas, podemos
utilizá-los como recursos em sala de aula, promover autorreflexão
ou até mesmo utilizar como recurso psicoterapêutico, no que
denominamos como uma intervenção apoiada em Cinematerapia.
Em
2009
publicamos
nosso
primeiro
livro
“Cinematerapia.:Entendendo Conflitos”. Agora, mais de uma década
depois, a proposta dessa coletânea é distribuir as obras por
temáticas, facilitando ao leitor escolher os filmes e seriados de
acordo com o assunto que pretende refletir e trabalhar. Cada artigo
foi escrito em um momento diferente, portanto, Não há ordem
cronológica neles.
É importante ressaltar que esses artigos foram lançados ao longo
dos anos concomitantes com as obras e por isso, alguns são mais
antigos ou algumas séries tiveram outras temporadas. Mas isso não
limita a atualidade deles
Boa pipoca, boa leitura, profunda imersão e muitos insights a
todos!
Eduardo e Denise
Cap. 01
O Estranho Que Nós Amamos
(2017)
Um filme quando é produzido torna-se uma “fala” de
sua época, reproduz, mesmo que não seja
necessariamente essa sua intenção, as movimentações
Cinematerapia
da época em que é produzido.
Neste remake a diretora Sofia Coppola traz às telas uma leitura arguta e
provocativa sob questões que insistem em ascensão desde a época da
filmagem anterior que é de 1971, a costura que traz em sua releitura, se
comparada com o anterior, torna-se realmente quase que uma ironia bem
maldosa.
Na versão de 1971, logo em seu início uma sequência chocaria aos padrões da
atualidade, uma cena dessas filmada nos dias de hoje com toda certeza
provocaria muito mal estar. Nessa versão de 1971 quem vive o cabo McBurney
é Clint Eastwood, agora na versão de Coppola vem representado por Colin
Farrel , ferido e perdido na floresta, sendo caçado pelos Confederados,
O Cinema e o Feminino
encontra a menina Amy que o ajuda. No de Sofia Coppola sem a cena do
beijo onde McBurney de Eastwood diz à menina que ela aos doze quase treze
já tem idade para um beijo, o que faz sem a menor cerimônia trazendo logo
de início todo o mote desse roteiro.
Eram os revoltosos anos 70 onde
Hollywood ainda produzia filmes como “Pretty Baby”(1978), onde alguns dos
marcadores das relações com as meninas ainda pesavam para o lado de uma
relação de total erotização. Pensamos que só estando atentos a essa
diferenciação conseguiremos entender o quão profundo foi o mergulho na
produção de Sofia Coppola, sem esquecer que ela é filha desse mundo do
glamour hollywoodiano que já abordou ferinamente com o seu “Bling Ring:
A Gangue de Hollywood”( The Bling Ring/2013).
07
Vivemos tempos de embate, onde novas formas de pensar encontram forte
resistência de todo um modo conservador, e onde a questão do feminino
anda mais do que nunca investido de grandes polêmicas em uma férrea
disputa entre avanços e retrocessos.
Sabemos que a diretora pensa essa questão em um ofício onde a presença
masculina dita as regras ainda com forte predominância, o que torna sua
ousadia ao decidir por essa refilmagem ainda mais interessante. Encontramos
no novo filme, em muitos momentos, um algo que remete ao seu consagrado
“As Virgens Suicidas”( The Virgin Suicides/1999), inclusive com novamente a
presença da atriz Kirsten Dunst.
Um ponto que foi criticado na nova versão de Coppola foi o fato de ter
retirado toda menção a questão da escravidão e do racismo que é fortemente
representada na versão de 1971, mas segundo declarações da própria diretora
houve aí um intencional de não se afastar do tema que escolheu abordar com
o seu filme, e que de certa maneira também está apresentado na versão de
Don Siegel que dirigiu o anterior, quando logo também no início de seu
filme faz com que o cabo McB diga a então escrava Hallie (Mae
Mercer),enquanto ela lhe banha, que não importa a cor que no fundo os
homens são todos iguais, sendo bem específico em relação ao gênero
masculino.
Coppola parece então ter ouvido essa fala de forma amplificada e a partir
desse ponto assina a história que quer contar e a guerra que quer encarar. Em
um mundo masculino onde mulheres se vêm tendo que gerenciar suas vidas
Cinematerapia
e se proteger de seus possíveis ataques, ouvindo todo o tempo bem próximo
a elas as explosões de suas batalhas. A ameaça dos casacos azuis viria na forma
do estupro, uma forma de violência que até a atualidade necessita de amplos
e profundos debates e medidas protetivas para as mulheres. Aqui no Brasil
alcançamos números estatísticos estarrecedores e somos obrigados a discutir
temas bizarros, como por exemplo, os assediadores e ejaculadores no
transporte público, sem que exista punição mais dura prevista pela nossa
legislação.
Interessante também é observar ainda na linha de comparação entre as duas
produções(Don Siegel e Sofia Coppola) como nesta da diretora, as histórias
de cada mulher assumem nuances muito mais ativas, como exemplo a
história de Edwina(Kirsten Dunst) que ao invés de ser uma jovem
enclausurada por vontade própria desde os 15 anos na escola de Miss Martha
O Cinema e o Feminino
Farnsworth(Nicole Kidman) é uma jovem que sonha com o fim da guerra e
08
aventuras fora daquelas grades, diferente da personagem no filme de Siegel
para a qual o cabo McB pergunta se ela não sonhava com um príncipe
encantado que a salvasse com um beijo. São nessas nuances e no próprio
protagonismo de cada uma dessas meninas e mulheres que o filme de
Coppola se assina e se faz admirável. Atualiza um olhar sobre a feminilidade
que poderá até assustar a alguns em um bom suspense repleto de fina ironia.
Nikole Kidman é a diretora da escola de moças, Srta. Martha Farnsworth que
na versão de 1971 foi interpretada por Geraldine Page. Seu ar enigmático e
que convida todo o tempo a pensar em outras intenções ocultas deu a essa
personagem uma perspectiva bem assinada por Sofia Coppola, assim dando a
esse mundo feminino um protagonismo no que diz respeito à sexualidade e a
própria história que o filme narra, é uma nuance que dá o tom da releitura
que ela imprimiu também como roteirista desejando se aproximar mais do
livro escrito por Thomas Cullinan que deu origem à produção.
O tom sombrio que há na escola de moças e que se agita com a entrada do
Cabo McBurney é capturado com precisão pelas lentes da diretora, a
excitação que se faz presente em tons que mudam pelas roupas e adereços,
contrastando com o esfumaçado que invade o ambiente. Assim que melhora
o visitante é convidado a sentar-se à mesa de jantar, ocasião em que todas
elas se apressarão em arrumar-se com zelo e vaidade. O tom sedutor que
parece ser marcante no personagem de Eastwood, ganha o contorno de meio
sombrio e até frágil e ingênuo na interpretação de Colin Farrel sob a visão de
Sofia Coppola.
Um masculino perdido e desorientado que traz em si a
capacidade de agressão, mas que se encontra naquela situação coartado disso,
totalmente governado pela vontade daquelas mulheres, que poderão
determinar o seu futuro. Embora reafirmem que ele será entregue assim que
melhore, parece que há pouca disposição em fazer isso.
Talvez seja preciso indicar que o espectador (re)veja o filme anterior para
entender o mergulho que a diretora empreendeu com seu filme, da visão a
partir de uma ótica cultural machista, ela mergulha no universo feminino
Cinematerapia
dando a ele toda a força da narrativa, o homem que costura a história fica
mesmo prisioneiro nessa refilmagem, ele é o centro ao mesmo tempo que
não possui força alguma, se torna um mero objeto como se fosse uma caça de
um felino que com ela brinca por tempo indeterminado, é mais propício ao
jogo de dominação que propriamente ao que seria a meta mais usual.
potência
desse
novo
olhar
se
marca
mais
profundamente
A
quando
conhecemos a sua versão anterior que construía a imagem daquelas
mulheres como mariposas em torno da luz, agora seriam muito mais um
grupo de felinas “brincando” com sua caça, até ferindo-a ou amputando-a
dada a agressividade contida na e pela brincadeira.
Em certa medida alerta para a força que o feminino pode impor ao mundo
quando se junta por um mesmo objetivo, embora seja próprio dessa corrente,
também manter o singular muito assinado mesmo quando imerso em uma
O Cinema e o Feminino
força coletiva. Até por isso hoje quando se pensa na luta que se nomeia como
feminismo fica impraticável colocar toda ela em uma única leitura, há
feminismos que se unem em torno de uma núcleo comum e se separam em
lutas paralelas que na verdade mais fortalecem do que enfraquecem a meta.
Esse aspecto foi muito bem focado na série The Big Little Lies sobre a qual já
escrevemos aqui. Na diferença que há no personagem de Clint Eastwood e o
de Colin Ferrel talvez seja onde mais se possa evidenciar a assinatura de Sofia
Coppola, já que neste o que vemos é um homem cujo a postura sedutora se
perde em uma fragilidade quase pueril, a cena onde ele ingere os cogumelos
no jantar fatal por si só vale todo o filme, onde a cumplicidade de Edwina fica
muito mais marcada do que na versão anterior quando ao ser supostamente
lembrada que não gostava de cogumelos não esboça qualquer intenção de
09
impedir a refeição de McBurney.
Pensamos que o genial no filme de Coppola se dá pela mensagem sutil que
traz em sua produção, ao escolher reproduzir as sequências tal qual o filme
original, coisa da qual poderia ter fugido uma vez que há o livro do qual
poderia retirar outras inspirações, deixando evidente como é diferente fazer
um filme a partir da ótica masculina e como esse mesmo filme assume
características muito diversas quando “fala” a partir da posição feminina.
O protagonismo das personagens mulheres é evidente no da diretora, toda a
disputa entre elas não é capaz de suplantar a união frente ao que se torna
enganoso, cínico ou ameaçador. Se há algo que as mulheres ainda precisam
ser lembradas é justamente desse aspecto. Assim como o cabo McBurney
parece que o machismo já entendeu essa ameaça e vem respondendo de
forma cada vez mais agressiva àquilo que compôs até hoje uma manobra
desarticuladora que tornava a fragilidade da mulher mais pronunciada,
transformando-a em uma presa mais fácil.
Os movimentos que hoje, por exemplo, levam às redes sociais as denúncias
de assédio ou abuso, demonstram a força dessa união. Recentemente
denúncias de corajosas atrizes de Hollywood levaram a uma torrencial
presença de relatos de abusos sofridos por outras por parte de um dos
produtores mais influentes do meio. Percebemos então nesta sutil mudança
que este filme introduz em Edwina como seu recado mais potente e a leitura
mais apropriada para o momento que vivemos.
Muito ainda teremos que ver a relação entre os gêneros caminhar e evoluir
para que em um promissor futuro esse jantar final seja realmente de
Cinematerapia
confraternização e perdão, de entendimento e união, paixão e cumplicidade.
Fica dado o recado que uma crítica predominantemente masculina se
recusou a ver, embora o prêmio de melhor direção em Cannes demonstre
que ao menos foi intuído com beleza e reconhecimento.
Por mais filmes novos, autorais, refilmagens encabeçados por mulheres
diretoras que dão voz ao universo emocional feminino. Que vistam essa pele
ainda tão atacada, que sintam esse medo que atravessa o cotidiano da
maioria, que saibam o quanto o amor é no final o desejo mais profundo e do
quanto a sexualidade, com todos os seus componentes, é também o que as
O Cinema e o Feminino
move. Sofia Coppola enfim liberta suas “Virgens Suicidas”.
10
Cap. 02
O Conto de Aia (Handmaid’s
Tale, 2017)
O seriado pode ser classificado como “distopia”,
reconhecido gênero de literatura mundial. Distopias
refletem sempre tendências de ameaça à liberdade,
pelo caminho do assombro, mesmo que sejam apenas
Cinematerapia
acentuadas.
E quanto assombro e angustia teremos ao assistir essa produção. Este seriado
segue essa linha. Uma reflexão social bem atual com grandes projeções
daquilo que mais tememos nos dias de hoje. A história da série, baseada no
livro homônimo publicado pela primeira vez em 1985, mostra um realismo
atual impactante que poderíamos pensar que é algo que está saindo de um
período de latência, que estava à espreita para surgir em condições favoráveis
a isso.
Em um futuro não muito distante um grupo conservador e fundamentalista
religioso toma o poder nos Estados Unidos da América e diante de um novo
fenômeno aparentemente decorrente da poluição e mudanças no meio
O Cinema e o Feminino
ambiente, o que torna uma grande parcela da humanidade estéril,
ameaçando assim a continuidade da espécie. Algumas mulheres ainda são
capazes de gerar novas vidas e, por conta dessa capacidade, a nova ordem
social política as colocará a serviço das famílias dos grandes chefes em uma
espécie de “cerimônia” de fertilização, na verdade um estupro bizarro, onde a
mulher desse comissário (assim designados os mandatários do novo sistema)
participam segurando os braços das “aias” (as mulheres férteis) enquanto
assistem a seus maridos estuprando-as.
11
Nessa nova ordem imposta por todo território americano, as mulheres
perderam todos os direitos, não podendo mais trabalhar e tendo seu dinheiro
sido entregue aos maridos ou simplesmente apropriado pelo novo Estado.
Outras correntes religiosas são extintas e seus seguidores ou sacerdotes
perseguidos e punidos com morte. Também são eliminados opositores ao
novo modo de vida e pessoas que pertençam ao grupo LGBT considerados
como “abominação”. Os presos são enforcados e seus corpos ficam
pendurados em um grande muro para exemplo para todos. Todas as formas
de saudação são substituídas por louvações religiosas.
Nossa protagonista é June (ELizabet Moss), e seus relatos em primeira pessoa
alternam entre cenas de presente e futuro. No início da série não se sabe
ainda toda a trama que se desenrolará, há um provocar constante de angústia,
e a trilha sonora atual, em contraste com as roupas de séculos anteriores,
causa certo desconforto, pois é difícil localizar-se no tempo. A autora do livro
que deu origem a série, Margareth Atwood, informa que inspirou-se em
estudos sobre os hábitos puritanos do século XVII presentes na América. June
(Elisabeth Moss) que passará a ser chamada de Offred, em alusão ao fato de
pertencer a Fred o personagem O Comandante (Joseph Fiennes). Cada uma
das aias leva o nome da casa para a qual foi designada, como também é o
caso da Ofglen, interpretada pela atriz Alexis Bledel, que ficou marcada pelo
seu papel como Rory das inesquecíveis Gilmore’s Girls, com quem June fará
uma ligação de resistência e tentativa de fuga.
Interessante notar que todo o movimento de resistir começa pela
possibilidade de dizer o nome verdadeiro, aquele que foi mandado que
Cinematerapia
nunca mais tocassem nele. Perder a identidade e a memória da vida antes da
captura é uma condição para manterem-se salvas, ao mesmo tempo que, dão
aos seus senhores o tom da opressão que ficará no silêncio de uma aparente
normalidade. Sabemos que as ordens opressivas ao longo da história sempre
se mantiveram
vigilantes no sentido de impor silêncio a tudo que
questionasse suas premissas ou sua aparente estabilidade. As ditaduras do
último século presentes na América Latina são bons exemplos disso, com
histórias de desaparecimento de bebês que até hoje são buscados pelos
familiares sobreviventes, um dos movimentos que exemplifica isso é
conhecido como “Madres de Plaza de Mayo” na Argentina. Os filhos dessas
mulheres, as aias, também lhes são tirados e elas desconhecem o paradeiro, o
que também acontece com a protagonista.
A opressão não chega de uma hora para outra, e o roteiro faz questão de
O Cinema e o Feminino
destacar isso, como ela foi sendo imposta pouco a pouco, e que a apatia em
combate-la quando isso ainda era possível, deu-se muito pela dificuldade de
crer no absurdo que representava. O marido de June, Luke (O-T Fagbenle) ,
fala sobre isso, como se em algum momento aquilo tudo fosse ser encerrado
por alguma força protetora, despotencializando assim a importância da
resistência de cada um frente ao inimaginável que se implantava. Sabe-se, há
muito, que qualquer nova ordem opressiva não tem o mínimo pudor de
apelar para a repressão violenta e militarização da segurança pública, quando
quer se impor, e será assim que acontecerá, dando início então ao novo
modo de funcionamento que o filme mostrará em cenas que fazem pensar e
provocam reflexão frente ao nosso mundo atual, onde se respira um certo ar
opressivo ameaçador que se adensa mais a cada dia.
12
June nos alerta que primeiro eles foram ocupando cargos públicos eletivos,
se tornando maioria. As mudanças começaram lentamente e as pessoas não
percebiam, ou preferiam não acreditar que algo assim estava por vir. Em
tempos de BBB(Boi,Bíblia e Bala), cerceamento de direitos, anulação de
conquistas trabalhistas e sociais, talvez esse seriado sirva de alerta,
principalmente para os brasileiros, que parecem estar tão preocupados com
suas vidas, carreiras e metas que não veem as pequenas mudanças ocorrendo
lentamente ao nosso redor. Nos Estados Unidos, após a última eleição, essa
obra provoca rebuliço e tem sido discutida à luz desses novos fatos e
tendência.
Somos apresentados a uma nova nação, chamada de Gilead. Após alguns
atentados terroristas, os religiosos tomaram o poder nos Estados Unidos da
América e impuseram todos os seus dogmas religiosos cristãos. Através do
medo, tomaram o poder e tornaram suas crenças obrigatórias, instaurando
uma caça as bruxas e período de terror.
Nessa nova “civilização”, entre aspas, porque não há qualquer civilidade nela,
as pessoas são divididas em castas sociais. Uma sociedade patriarcal, com
esposas submissas e totalmente alienadas de toda e qualquer atividade que
não seja “sua real função: procriar” e cuidar de seus homens. Os empregados
também são divididos em castas, entre as mulheres a mais sob o jugo de
todas, dá origem ao grupo conhecido como “Servas” (no Brasil como aias),
função que dá nome a obra, e que serão fundamentais na reconstrução dessa
sociedade fanática futura.
Cinematerapia
Sigmund Freud em seu denso texto “O Futuro de Uma Ilusão” já levantava a
hipótese de como as crenças religiosas são erguidas frente ao sentimento de
desamparo, uma espécie de “delírio coletivo” que visa um sentimento de
relativa proteção frente a tudo aquilo que não se compreende ou não se tem
controle e que ameaça a sobrevivência. Embora seja necessário saber que
existe em todo sujeito um desamparo fundamental(Birman, J.), presente em
tudo que origina e anima a vida psíquica, aproximando este da posição
feminina, talvez por isso mesmo seja no feminino que as forças de opressão
buscam sempre sua maior expressão de violência e sujeição.
As informações vão sendo aos poucos dadas nos episódios e fica-se sabendo
que em algum momento, no mundo inteiro, as taxas de natalidade caíram
drasticamente. Os países entraram em colapso, pois suas populações pararam
de crescer. Há uma crise mundial tanto de fecundidade quanto de natalidade.
O Cinema e o Feminino
Poucas conseguem engravidar e menos ainda conseguem gerar uma criança e
13
ter um parto com sucesso. A infertilidade feminina, e apenas a feminina, é
entendida como um castigo de Deus, em decorrência dos avanços
tecnológicos da humanidade desde a revolução industrial. As poucas
mulheres férteis que restaram passam a ser caçadas, encarceradas, adestradas
e usadas como empregadas domésticas e escravas sexuais.
Ao dividirem os demais, não superiores e pertencentes a sua casta social, eles
o agrupam em funções e tiram os nomes e suas histórias. Existem também
outras castas, como as Marthas, mulheres que prestam serviços domésticos
como cozinheiras e faxineiras, mas que não são férteis. Há também os
motoristas e ainda uma categoria denominada “Olho”(eye) que são os espiões
do sistema, sujeitos que como vemos no personagem Nick Blaine (Max
Minghella), são cooptados por sua inclinação à violência, para que a ordem
seja sempre mantida, através do terror e do medo.
Também são apresentadas as “Tias”(Aunties), mulheres mais velhas, não
férteis, fanáticas religiosas e responsáveis por todo o adestramento e tortura
das Servas, tornando-as obedientes e alienadas de tudo ao redor, cientes de
que sua função é apenas servir ao seu dono, reproduzir, entregar a criança e
mudar de dono. Nesta sequência os fanáticos por séries verão a atriz que
desempenha uma personagem fundamental na irônica “Leftovers” que pode
ter muito a ver com Handmaid’s Tale, Ann Dowd, como tia Lydia, figura
central na condução das servas. Sua crença na nova ordem e sua disposição
em acreditar na bondade e justiça, mesmo frente aos atos de crueldade que
ela impõe às moças, são uma chamada e tanto para pensarmos em arcaicas
instituições que se mantêm pela extrema ambivalência (amor e ódio,
sentimento de proteção e opressão) que são capazes de sustentar.
Além de suas roupas antigas e com os corpos todos cobertos, as servas são
obrigadas a utilizar um adorno na cabeça, que quase as impedem de olhar
para os lados, lembrando os antolhos utilizados em burros e outros animais
de carga. Ironicamente esse adereço é chamado de Asas, e somente removido
Cinematerapia
em ocasiões especiais ou dentro de casa. Todas não passam de animais, ou
apenas úteros com pernas que precisam co-existir, desumanizadas, para que
os humanos superiores deem continuidade à sua raça suprema.
Observa-se que o espectador da série será seduzido a comprar a tese de
Gilead, a nova ordem imposta, e crer que a infertilidade é uma questão que
tomou a parcela feminina da população. Assim como na vida cotidiana
costuma-se pensar primeiramente na da mulher antes de se pesquisar a
masculina. Só lá pela metade da série poderá se questionar quanto a
esterilidade como presente apenas nas mulheres, em uma ida de Offred ao
médico. Esse ponto do roteiro remeterá a uma importante reflexão, que se
situa justamente na questão de que o machismo não tem gênero, embora no
seu cerne abrigue sempre a questão da misoginia.
O Cinema e o Feminino
Frente ao crescimento de todo um movimento retrógrado que se instala
neste início do século XXI, a série provoca um acalorado debate. O
fundamentalismo religioso com suas garras pode vir de qualquer corrente, e
já ameaça desde o início do século XX, não somente naquelas que o mundo
tem se acostumado a acusar essa tendência, essas que muitas vezes são na
verdade fruto de toda uma geopolítica de guerra
fervor religioso que nasce como um anteparo para o fundamentar e
encorajar o radicalismo.
14
muito mais do que do
Devemos pensar que o que chamamos de radicalização da fé poderá ser visto
em diferentes roupagens e ameaça à humanidade como um todo, porque
proporá sempre, está isso no cerne de sua movimentação, uma segregação e
movimento de destrutividade quanto a tudo que eleger como “diferente” ou
inimigo da fé, o que se quer exatamente é anular qualquer existência de
dualidades ou diversidade. Uma “fé cega e faca amolada”(música). A adesão
irrestrita a um conjunto de crenças caracteriza o fundamentalismo que tem
sua origem, quase sempre, em textos fundadores de diversas religiões. Mas,
podemos pensar também em fundamentalismo quando este se refere a
qualquer conjunto de crenças inquestionáveis, nesse sentido a inserção
ideológica poderá se amalgamar com ele, o que veremos surgir na atualidade
como uma teia difícil de desconstruir e que se apresenta nesse roteiro tão
bem exemplificado.
O fundamentalismo se irmana sempre com o que conhecemos como
totalitarismo, temos ao redor do planeta várias formas diferentes de
existência disso. Parece que chegamos a uma época onde o antagonismo
existente nas anteriores tornou-se explosivo no modelo que se nomeia como
a velha luta entre civilização versus barbárie. Chama a atenção que a autora
do livro, Margaret Atwood, tenha se debruçado sobre a questão central da
trama, ainda na primeira metade da década de 80, época em que o mundo de
uma maneira mais geral, avançava em teses progressistas e passava pela
consolidação de uma revolução de costumes preparada pelas décadas
anteriores. Podemos supor que de certa maneira, como é próprio que a
literatura o faça, a obra intuía que haveria logo adiante um vigoroso levantar
das forças de resistência à mudança, a psicanálise explica muito bem isso
Cinematerapia
quando se trata da leitura dos processos individuais do sujeito em análise.
Tudo fica muito mais claro quando o Comandante (Joseph Fiennes) explica
para June que:
“Nós só queremos fazer um mundo melhor. E melhor não significa para
todos. Para alguns será pior”- (S01E05)
Que o seriado sirva para nos alertar sobre quem são “eles” e quem somos nós,
O Cinema e o Feminino
favorecendo insigths importantes para nossa sociedade!
15
Cap. 03
A Garota do Livro (The Girl In
The Book, 2015)
Escrito e dirigido por Marya Cohn, a protagonista
Alice (Emily VanCamp/Ana Mulvoy Tem) vive uma
experiência de abuso com seu mentor, um escritor
famoso, Milan Daneker(Michael Nykvist), que se
Cinematerapia
oferece para ajuda-la no desenvolvimento de sua
escrita, transformando então sua experiência em um
livro escrito por ele e que faz enorme sucesso, a obra
seguirá perseguindo-a em sua vida adulta.
Sem dúvida o roteiro é certeiro ao deixar o recado do quanto o abuso vai
para muito além do ato sexual concretizado ou da violência física, e o quanto
suas sequelas são mais extensas do que se quer acreditar em um mundo onde
o corpo “ninfeta” é um fetiche sem grandes discussões.
É impossível olhar para Emily VanCamp e não lembrar de Emily
Thorne/Amanda Clarke. A Mocinha-Vilã que entreteve o publico durante
anos no seriado “Revenge”.
Essa ambiguidade de mocinha e vilã ficou
O Cinema e o Feminino
bastante forte na atriz e talvez, por isso, ela seja perfeita para esse papel.
Passamos a conhecer um pouco mais sobre o passado e o presente de Alice.
Uma menina de classe alta americana, moradora do Upper East Side do
Central Park. Crescendo nos anos 2000 como adolescente, enfrentando os
dilemas dos jovens dessa geração.
Não consegue se encaixar numa tribo, seja de góticos, seja de clubbers.
Enquanto Milan se aproxima da solitária jovem Alice, se mostrando
interessado em suas questões adolescentes, você pode se perguntar, onde
estavam os pais dela.
No tempo do filme ela é Alice Harvey, a típica
americana moradora de Nova Iorque, quase com 30 anos de idade, vive na
correria do seu trabalho que paga pouco e a explora.
16
Toma muito café, tem vários parceiros de “one night stand” e curte sua vida
na cidade que nunca dorme, esperando por uma grande oportunidade de
mostrar seu talento, nesse caso, como escritora. Trabalha em uma editora e o
destino lhe prega mais uma peça, nesse caso, na forma de um livro. Fica
encarregada de divulgar Milan Daneker que retorna então para sua vida.
Como um bom predador, Milan Daneker não se contém ao ver sua antiga
presa/vítima e as técnicas de persuasão não mudam. Dessa vez, Alice tem 28
anos, mas frente a ele se comporta com o mesmo desconforto que aos 13,
revivendo assim a cena traumática.Desde o começo é possível perceber o
desconforto de Alice em ouvir o título do livro "O Despertar".
Outro filme que vem polemizando e que abre com precisão cirúrgica uma
questão complexa e envolta em falsos dilemas e crenças desconexas é o
“Elle”(2016), de Paul Verhoeven . Entre o que se tem nomeado como a
“cultura do estupro”, que aponta para as variadas formas de violação que
ocorre em relação ao corpo feminino e a liberação sexual que narra a tomada
da mulher em relação à sua sexualidade e experiência com o seu corpo, há
hoje mais confusão e desinformação do que propriamente uma clara
concepção. Talvez o gato que olha enquanto sua dona sofre o estupro
represente o olhar ausente e indiferente em relação ao feminino que se ergue
a partir de um mundo há muito dominado pelos homens.
Corremos com
tudo isso o risco de voltar a ver aprisionado o discurso sobre o prazer
feminino em um certo retorno de um conceito de moralidade pra lá de
equivocado ou ao contrário, em
uma suposta liberação totalmente
aprisionada pelo poder de submeter do masculino.
Cinematerapia
No já aclamado filme “Aquarius”(2016) do diretor Kleber Mendonça, vemos
logo em sua primeira parte o aniversário da doce tia Lúcia(Thaia Perez) ser
comemorado
enquanto
seus
sobrinhos
netos,
filhos
da
protagonista
Clara(Barbara Colen/Sonia Braga) relembram grandes feitos de sua vida, ela
com um risinho irônico olha para uma cômoda posta na sala e relembra
momentos de muito prazer sexual com seu parceiro. Ao tomar a palavra,
adverte: “Vocês esqueceram...pularam...a revolução sexual”. Isto se passa no
final dos anos 70 e sabemos como as três décadas anteriores foram
revolucionárias para as mulheres.
Toda essa confusão difícil de lidar na atualidade é apresentada no “A Garota
do Livro”, sob o olhar de uma menina descobrindo sua sexualidade e seu
gosto por escrever em um universo dominado pelos homens. Seu pai sendo
um editor que rouba o autor em ascensão, Daneke, de sua própria esposa,
O Cinema e o Feminino
mãe de Alice. Somos apresentados ao seu pai, um sujeito arrogante e
mandão, chegando a ser intrusivo. Dominador e controlador que sequer
permite que "suas mulheres" escolham suas comidas. É capaz de ofender e
atacar sua esposa verbalmente, mesmo na frente da filha e convidados. Tudo
disfarçado no mais clássico modelo de homem simpático e sociável. Esse
casal de pais dentro do enredo demonstrará de uma forma bastante
inequívoca o quanto muitas vezes o abuso passa por um grau de negligência e
um jogo de interesses bastante cruel. Não que isso seja uma regra, mas é certo
que o abusador se aproveita das frestas de vulnerabilidade que enxerga.
Como uma porta que se abre pra deixar entrar o gatinho e entra o
estuprador(cena do filme “Elle”).
Alice só se libertará quando A Garota do Livro deixar de definir quem ela é,
quando puder se afastar no sentido de criar para si outra possibilidade de
ligar-se ao outro, enquanto não faz isso só lhe resta de forma sem controle,
repetir o gesto de se fazer desejada e o sexo anônimo e vazio de afeto. Neste
sentido o filme “Elle” chocou profundamente parte da crítica e dos
movimentos feministas, porque Michèle(Isabelle Huppert), assim como o
Sísifo feliz de Albert Camus, toma pra si seu destino depois de muitos anos
de uma repetição totalmente fora da consciência. Vítima de uma pesada
história de criança, só conhece sobre si mesma o que se tem de pior, não sabe
se é vítima ou algoz, representando dessa maneira, de forma contundente,
muito do que inconscientemente é complexo de lidar para desatar os nós
deixados por qualquer dos tipos de abuso.
As redes sociais têm servido muito para o debate do feminismo, para deixar
sempre em estado aquecido os temas que envolvem as conquistas das
mulheres frente a um modo de organização social que a desqualifica e/ou a
objetifica todo o tempo. Mas, há muito, aprendemos que qualquer
movimento tem sempre seus polos de progresso e retrocesso, ainda mais
quando se amplia a ponto de correr o risco de massificar-se, é preciso que a
atenção se volte também para esse aspecto, e caso não o faça, correr o risco
de ver capturada a narrativa de forma a recoloca-la, agora de outra maneira,
no mesmo lugar de antes, sob a égide de uma moral de controle que disfarça
e restabelece uma relação utilitária glamourizada.
Alice durante todo o filme hesita entre a posição de vítima ou dona de sua
história, para além da sedução o que vemos é sua individualidade ser
Cinematerapia
invadida de forma a deixa-la como espectadora de sua própria experiência.
Isto fica muito bem colocado na cena onde Daneke lê a passagem do livro
para uma plateia onde ela e seus pais estão presentes. O sentimento de
invasão se faz claro e humilhante, ver-se em sua intimidade relatada pelo
fetiche do outro, perdendo assim como uma parte de si, despersonificada ,
algo que representa de forma mais clara o jogo perverso de anulação do
outro.
Ao conhecer Emmett(David Call) ela experimenta pela primeira vez um
vínculo amoroso, uma relação que consegue ultrapassar a questão do sexo
como catarse do trauma. Mas, ao mesmo tempo que parece ser uma
possibilidade libertadora, é também uma porta que abre para que tenha que
lidar com suas lembranças em grande parte confusas e angustiantes.
No
filme essas memórias vão se apresentando em fragmentos alinhavando
O Cinema e o Feminino
presente e passado, talvez em um processo muito semelhante ao que
18
acontece com meninas que sofreram assédio e que só conseguem dar
palavras a isso muito muito tempo após o ocorrido, tendo sempre como
deflagrador do processo algo que no atual mobiliza o núcleo da vivência, uma
excitação que deseja libertar-se. Como se fosse necessário um distanciamento
e algo que enfim produza alguma sensação de proteção e desculpabilização
para que isso possa ser revelado, e com ajuda, superado.
A relação com Emmett começa de maneira inusitada, e talvez por isso, Alice
tenha a oportunidade de não cair nos seus padrões de respostas. Esta
"aterrorizada" porque se envolver com alguém significa se abrir novamente.
Seu relacionamento começa a ganhar. Alice tem um ego frágil e ao menor
sinal de angustia, ativa suas defesas, nesse caso, quase um ataque. Quando seu
pai age como de costume, ignorando-a enquanto sujeito, tem uma crise e a
sexualidade passa a ser uma arma, uma válvula de escape. Uma maneira de
acabar com a angustia forte que sente por não ser vista.
O relacionamento que parecia estar se estabilizando, se desestabiliza com um
simples abalo.
"Eu não deixarei você me enlouquecer como você", diz
Emmett. "Ações têm consequências". Talvez essa seja a maior dificuldade de
Alice em lidar com suas pisadas na bola. Pedir desculpas e achar que tudo se
resolve a partir desse ponto. Emmett é bastante rígido quanto a isso. Alice
havia aprendido até então que abuso não gera qualquer tipo de recriminação.
Além disso, Alice precisa crescer.
E isso significa se desprender de certos comportamentos em relacionamentos
abusivos. Enfrentar seu pai sobre a comida foi um primeiro passo
importante. É um aprendizado doloroso e exige dispêndio de muita energia
psíquica, mas Alice parece estar disposta.
Um outro ponto importante do filme é o abusador ser representado de
forma galanteadora. É quase impossível ficar com raiva de Milan. Ele esta
longe de ser representado de forma psicopática e captando toda a raiva que o
publico deveria ter dele. Isso só mostra questões tão atuais sobre como a
Cinematerapia
sociedade percebe a violência de gênero.
Não tem sido raro o fato de algumas figuras públicas virem revelando abusos
sofridos quando mais jovens, ao fazerem isso, a partir de um lugar de
destaque,
possibilitam
que
meninas
anônimas
nomeiem
enfim
suas
experiências. Recentemente nos comovemos com o discurso de Madona em
uma cerimônia de premiação quando revelou que ela também já foi vítima
de estupro.
Algumas produções recentes anunciam a mudança na forma de pensar a
relação com que antes nomeavam de “ninfeta”, o que obviamente já vinha
carregado de intenções. Vai longe “Pretty Baby”(1978, de Loius Malle),
“Lolita”(1997, de Adrian Lyne) ou mesmo o que tem sido no momento
novamente comentado “O Último Tango em Paris”(Le Dernier Tango à
O Cinema e o Feminino
Paris/1972), de Bernardo Bertolucci, inclusive por estar sendo questionado
por um tipo de abuso cometido durante as filmagens.
Cineastas na atualidade têm decidido colocar o foco e explorar a questão
pelo olhar do pós, ou em psicanálise naquilo que entendemos como o que se
ergue na “posterioridade”, o que teoricamente seria a dinâmica da criança
abusada, será sempre mais adiante que este significado será dado. O que
vemos neste sofrimento posterior acaba com qualquer traço de “glamour”
que possa ainda se querer emprestar para a questão. Para os de estômago
forte, um lancinante é o filme “Miss Violence”(2013) do grego Alexandros
Avranas.
19
O filme em questão vem como mais um bom filme no sentido de revelar as
sequelas do vivido e da forma que a própria vítima tem dificuldade de
perceber, já que se sabe que a lembrança inclui sempre, por inúmeros fatores,
um forte sentimento de culpa pelo ocorrido. A menina que entra na
adolescência experimenta impulsos agora em sua fase genital, aumentarem,
o desejo por aproximação vai se tornando cada vez mais sexual, seus corpos
desejados são ao mesmo tempo algo do que se orgulham e algo que as coloca
em posição de fragilidade. O argumento do abusador sobre o poder de
sedução da vítima é duplamente cruel, porque ignora que o/a adolescente
passa por sua fase mais do que natural de desenvolvimento, sem dúvida
alguma a interdição tem que estar no adulto, que tem plena consciência e
vivência do que envolve o ato sexual.
Conhecemos Alice já uma mulher adulta, que conduz de maneira caótica sua
vida, sempre com a predominância de uma baixa auto estima e lidando com
uma desqualificação que assimila como própria, deixa-se em posições que
confirmam sua menos valia, inclusive no trabalho que faz lendo manuscritos
em busca de novos talentos. Sua escrita encontra-se congelada, incapaz de
dar prosseguimento a sua criatividade ao que parece por excesso de
cobrança, resta sempre a ela ser a espectadora do sucesso, resta repetir
sempre a personagem do livro de Daneker, resta-lhe ser sem que ninguém
saiba disso, ser a garota do livro. Muitas das repetições que acompanham
vítimas de abuso na infância ou adolescência também são replicadas sem que
a pessoa se dê conta do que move suas escolhas, embora não lhe seja
desconhecido a vivência, o que se dá é como se não fosse possível conectar os
pontos entre o atual e o aprisionamento no passado. A produção
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cinematográfica possui inúmeras outras produções que têm uma “pegada”
parecida e podem ser muito úteis para a discussão do que vive a vítima a
longo prazo, algumas delas mais recentes listamos a seguir:
- Wildflower(2016); filme de Nicholas DiBella
- O Quarto de Jack(Room/2015); filme de Lenny Abrahamson
- Estocolmo Pensilvânia(Stockholm, Pennsylvania/2015); filme de Nikole
Beckwith
- 3096 Dias(3096 Tage/2013); filme de Sherry Hormann
- As Vantagens de Ser Invisível(The Perks of Being a Wallflower/2012) – filme
O Cinema e o Feminino
de Stephen Chbosky. Este traz o diferencial de o abuso ter sido cometido
20
contra um menino.
- Tabu (Towelhead/2007); filme de Alan Ball
- Sobre Meninos e Lobos(Mystic River/2003), filme de Clint Eastwood.
Também sobre abuso cometido contra meninos.
Como diria a também cineasta, a pop Madonna: “a coisa mais controversa
que já fiz é permanecer”.
O momento traz delicadas controvérsias, será preciso que o feminino mais
que nunca insista livre, rebelde, solto, desamarrando as velhas armadilhas
que encolhem a potência da mulher. Uma delas a que o nosso filme revela,
quando o lobo quer ensinar a uma menina que sua libido está no mundo para
servir ao outro e não como uma força a qual tem o direito de usar como
desejar, quando e com quem escolher estar. O caminho é longo, mas tem
valido a pena.
Alice luta por Emmett e para romper seu vício circular, ao apaixonar-se pode
enfim libertar-se da personagem de Daneker, ser dona da sua sexualidade e
O Cinema e o Feminino
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dizer que não é mais a garota do livro.
21
Cap. 04
A Esposa (The Wife, 2018)
Dirigido pelo sueco Björn Runge e baseado na obra
homônima de Meg Wolitzer, o filme em tempos de
discussões acaloradas sobre salários equivalentes na
glamourosa Hollywood é uma verdadeira e sutil
bofetada em luvas de pelica.
Cinematerapia
Elegante e sincero, aparentemente despretensioso, como se contasse uma
única história muito pessoal, evidencia, com uma força de emoção, as
batalhas das mulheres para afirmarem seus diferentes talentos em um mundo
comandado pelos homens. Glenn Close mereceu o prêmio Globo de Ouro
por essa atuação que lhe exigiu uma contenção que talvez lhe tenha sido
bastante difícil se pensarmos na trajetória dessa atriz, fez lembrar sua
magnífica interpretação em "Albert Nobbs"(2011) quando assim como por esse
desempenho, foi indicada ao Oscar de Melhor atriz, mereceria o prêmio
pelas duas atuações.
O espectador é apresentado aos pouco a Joan Castleman(Glenn Close) e seu
marido, o escritor Joe Castleman(Jonathan Pryce) que fica sabendo que
ganhou o Nobel de Literatura por seu comovente conjunto de obras que
tocam a humanidade em questões fundamentais, isto dito por seu anfitrião
O Cinema e o Feminino
da cerimônia de entrega do prêmio. O filme acompanhará justamente todo o
período que cobre o comunicado da vitória e a ida à cerimônia de entrega na
Suécia.
Para ajudar a pensar sobre a escolha que Joan Castleman(Glenn Close)
supostamente encaminha para sua vida, talvez seja bom ter em mente que
em 114 premiações do Nobel de Literatura, apenas 14 foram dados para
escritoras. "A necessidade é de ser lida", diz uma outra escritora personagem
do filme, Elaine Mozell, interpretada pela nossa conhecida Lady Crawley de
"Downton Abbey", Elizabeth McGovern.
2
O filme encaminha com muita competência a questão central capturando o
espectador na trama na qual se apoia, bem envolvente mesmo. Para
colaborar ainda mais um pouco para pensar a questão que ele propõe,
poderemos sugerir a busca de dados sobre as inúmeras mulheres escritoras
que para terem suas obras publicadas ou mesmo para que não fossem
declaradas loucas, adotaram nomes masculinos para publicação, porque
praticamente até o início do século vinte
não era bem recebido pela
sociedade que uma mulher desejasse escrever outra coisa que não cartas de
amor e amizade. Há um filme excelente para abordar isso, "Ópio - Diário de
Uma Louca"/Ópium: Egy elmebeteg nö naplója[2007], de János Szász .
Há muitas escritoras que só tiveram seus nomes femininos levados a público
depois de falecidas, como por exemplo, Amantine Dupin que escrevia como
George Sand e foi amiga de muitos escritores influentes de sua época como
Balzac, Flaubert, amante de Chopin e do poeta Alfred de Musset, embora
tivesse apoio de todos permaneceu publicando com o seu pseudônimo
masculino. Muitas outras, como a hoje muito famosa Jane Austen, recorriam
a publicações anônimas, que foi o caso da sua consagrada obra “Orgulho e
Preconceito”, onde na autoria no original lia-se: “Escrito por uma dama”.
Muitas recorreram a esse artifício como temos aqui no Brasil como exemplo
o caso de Maria Firmina dos Reis, autora do romance Úrsula (1859),
considerado por alguns historiadores como o primeiro romance abolicionista
da literatura brasileira onde assina como “uma maranhense”. As irmãs Brontë
que publicaram com nomes masculinos Currer, (Charlote), Ellis (Emily ) e
Acton Bell(Anne). Esses são apenas alguns casos dos mais conhecidos, após
ver o filme resta inevitável pensarmos em quantos casos não conhecidos
Cinematerapia
poderão ainda se ocultar por detrás de autores reconhecidos. Vale a
curiosidade, já há sites e pesquisas publicadas buscando dar sustentação a
descoberta dos nomes de muitas dessas escritoras.
A personagem Joan era uma tímida aluna universitária(Annie Starke) do já
reconhecido professor Joe Castleman, ao escrever um conto para a matéria
dele que frequentava, acabará por lhe chamar a atenção por já ali ele
perceber nela um grande talento natural para a escrita. Aos poucos eles se
aproximarão amorosamente e ele deixará seu casamento para ficar com ela.
Ele finaliza seu primeiro livro e Joan o criticará pedindo para editá-lo, no que
ele após uma crise acabará consentindo. Ele fará muito sucesso a partir dessa
obra e sua carreira brilhará. Joan se apresentando socialmente sempre ao
lado de Joe e fornecendo a ele toda a sustentação funcional que se costuma
exigir de uma boa esposa. Eles têm dois filhos, uma filha grávida prestes a dar
O Cinema e o Feminino
a luz, Susannah(Alix Wilton Regan) e David(Max Irons) que também é
escritor e busca angustiadamente a aprovação de seu pai. Durante a estadia
de Joan e Joe em Estocolmo para a cerimônia do Nobel, o jornalista Nathanial
Bone(Christian Slater) se aproximará de Joan dizendo a ela que está
escrevendo uma biografia sobre Joe Castleman e lhe fala sobre suas
desconfianças sobre a verdadeira autoria da obra dele.
Oficialmente está
posto que Joan deixara de escrever após seu casamento com Joe, sendo ele o
escritor da família. O jornalista tem como pista o único conto assinado por
Joan que fora publicado em um jornal da Universidade.
23
A perspectiva de Joan pode ser abordada de pelo menos duas maneiras, uma
a vitimiza e a outra a coloca como uma mulher que resolveu se adequar
passivamente aos ditames de lugar social tirando disso sua gratificação. O
enredo mostra o quanto a premiação do Nobel pela obra de seu marido
desarrumará um acordo até então vivido como se fosse algo assentado e
tranquilo. Joan viveu até então voltada para a organização de sua família,
enfrentando ao longo das décadas de sua união com Joe inúmeras vivências
de infidelidade do marido que mantinha casos extra conjugais com colegas e
alunas. Em determinado trecho Nathanial Bone dirá a ela que tomava isso
apenas como extravagância muito comum em homens geniais, fica como
ironia diante do que o filme revelará.
O discurso de poder é sempre
abordado a partir de uma ordem falocêntrica, ao comportamento masculino
tudo
ganhará
contornos
de
enaltecimento
e
não
de
crítica
ou
questionamento.
A Joan que Glenn Close construiu é absurdamente convincente, faz pensar
em tantas mulheres cuja inteligência ficou guardada como segredo de
família. Toda a opressão a qual ela é submetida é como uma “doce prisão”
que tantos romances escritos por homens quiseram convencer às mulheres
ser o lugar que lhes cabia, abnegadas e amorosas servindo ao bem maior da
família e em primeiro lugar ao marido. O dote entregue como era até o
século vinte entregue as heranças das filhas para administração e gasto de
seus maridos. Dote aqui assumindo um entendimento amplo e metafórico.
As mulheres não pertencentes à classe operária ganharam o mundo do
trabalho mais fortemente a partir da Segunda Grande Guerra, e de lá em
Cinematerapia
diante não quiseram retornar passivamente ao lugar que lhes era destinado
antes disso. Com a chegada da pílula anticoncepcional a liberdade sexual
marcou bastante da nova subjetividade que ela podia construir, dona de seu
corpo e prazer, trazia como correlato a isso uma exigência em ser mais
amplamente reconhecida. Foram aos poucos deixando de passar adiante a
assinatura por suas obras, descobertas, invenções, produções etc. Na história
do cinema temos a polêmica em torno do nascimento do filme ficcional, não
mais documental fotográfico.
É comum atribuir a Geòrges Méliès o surgimento dessa forma de fazer
filmes, porém hoje sabemos que a diretora francesa Alice Guy Blaché já fazia
filmes dessa maneira ao que se tem notícia em 1896(La Fée aux choux -A
Fada do Repolho) muito antes de Méliès que mereceu até uma belíssima e
merecida homenagem feita por Martin Scorsese em seu “Hugo”(2011),
O Cinema e o Feminino
embora talvez sua posição na história possa ser revisitada.
24
Todos os anos as grandes premiações do cinema voltam a ter que enfrentar o
questionamento não somente sobre equiparação salarial entre atores e
atrizes, mas também pela baixa presença feminina em postos de comando,
assim como no recebimento de prêmios que marcadamente têm sido dados
aos seus colegas homens.
O talento feminino ainda mais incomoda do que é objeto de admiração, a
linguagem propriamente feminilizada ainda é bastante estranha a todo um
entendimento construído a partir de premissas bem condizentes ao poder
másculo predominante, neste sentido a personagem de Joan Castleman em
todo seu vigor discreto e aparentemente bem combinando com o dito de que
“por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher” é um
convite a profundas reflexões, contém um tremendo toque de ironia. Nossa
anti heroína ensina mais que produções de um protótipo de mulher
maravilha. Revela o que se oculta ainda como uma resistência a entender a
igual possibilidade de sujeitos independente da marcação de gênero
produzirem o que há de melhor na humanidade.
Joe Castleman surge como a própria denúncia do ilusionismo alimentado
sobre a superioridade masculina, mais aparência que essência, mais jogo de
cena do que visceralidade, mais virtualidade do que honesta exposição, o
rasgar-se que toda boa escrita necessariamente inclui. Toda pena é feminina,
não importa o gênero que a sustenta. Desnudar-se nas letras que compõem o
que nos forma nas palavras ou como diria Dider Anzieu em sua obra “O Eu
Pele”:
“A palavra do outro, se oportuna, viva e verdadeira, permite ao
destinatário reconstitui seu envelope psíquico(...)Isto assim funciona na
amizade, na cura psicanalítica, na leitura literária”. O que Joan introduz nas
histórias criadas por Joe é essa coisa viva e verdadeira. Um casamento que
poderia ser perfeito, mas que se perde justamente na capacidade masculina
de oprimir e se apropriar de tudo que lhe confere poder. O ouro da pena.
Os filhos do casal talvez representem a tensão que sustenta essa trama
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familiar, filhos que foram afastados do convívio da mãe que passava horas
trancada no escritório produzindo as joias da família, Joan a certa altura,
quando enfim explode o não dito desse grupo, falará sobre isso com muita
dor. O filho David, estupefato, perguntará ao pai como pôde fazer isso à sua
mãe, dilapida-la de tal forma. Joe sofre quando tem que enfrentar a provável
ausência de sua sustentação, da farsa que seria enfim denunciada, seu coração
não resiste e assina o derradeiro acordo. O espectador atento poderá se
perguntar ao final se Joan será capaz de silenciar-se já que entende que quem
escreve o faz como necessidade quase igual a alimentar-se, ter algo a dizer ao
mundo não é uma coisa da qual se possa abrir mão.
A continuação da
história se dará pós os créditos na imaginação de cada um que for tocado por
O Cinema e o Feminino
essa bela e potente produção.
25
Cap. 05
Inacreditável (Unbelievable, 2019)
“Mesmo com boas pessoas, mesmo com pessoas que
você pode confiar, se a verdade é inconveniente, se a
verdade não faz sentido, elas não acreditam.”(Marie
Adler)
Cinematerapia
A Rede de Streaming Netflix tem se consolidado não somente na reprodução
de filmes e seriados, mas também como uma forte concorrente na produção
de conteúdo. A cada mês tem lançado títulos próprios e surpreendido seus
consumidores. Inclusive depois de levantar muita discussão, suas produções
têm sido aceitas como concorrentes em grande festivais de cinema, caso mais
notável fica pelo Oscar 2019 dado a “Roma” de Alfonso Cuarón como Melhor
Filme Estrangeiro, concorreu pelo México, mas também havia sido indicado
na categoria de Melhor Filme, e ganhou também o Oscar de Melhor Direção
e Melhor Fotografia. Também tem a streaming honrosas passagens por
festivais como Veneza e em Mostra paralela em Cannes 2019 o que incensou
a discussão existente por lá quanto às produções da plataforma no festival
que passou a exigir que tenham sido exibidas em salas de cinema na França, o
que a Netflix se recusa a acatar.
O Cinema e o Feminino
Inacreditável chegou bem devagar, sem muito alarde. Causou um
desconforto muito grande por onde passava e aos poucos os internautas
começavam a falar mais e mais sobre ele, ganhou seu espaço de debate pela
própria força da produção. É denso, intenso, desconfortável, mas altamente
necessário nos dias de hoje. Depois de levar os primeiros socos no estômago,
o espectador começa a ser apresentado a uma teia de sofrimento psíquico
inimaginável e que, infelizmente, não está muito longe do real quanto a
denúncia da mulher em relação a abusos sofridos. Seu primeiro episódio é
tensão máxima e o espectador desavisado é lançado com intensidade na
vivência absurda de uma pessoa estuprada, todo o calvário que muitas ainda
têm que enfrentar quando resolvem denunciar.
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A obra se baseia em um artigo investigativo que ganhou o premio Pulitzer de
jornalismo, An Unbelievable Story about Rape, Ken Armstrong e T. Christian
Miller. Isso a torna mais desconfortável, não somente por ter acontecido, mas
por sabermos o quão comum ainda é hoje, especialmente se pensarmos em
um país machista, misógino e violento com as mulheres, como o nosso Brasil
atual tem se revelado em sua face mais sombria. Embora sua dureza, conta
Ken Armstrong que o que mais lhe chamou a atenção foi como a jovem
repetia incansavelmente que faria tudo novamente, a denúncia quanto aos
abusos sofridos por parte dos primeiros investigadores que cuidaram de seu
caso.
Nosso seriado é centrado inicialmente em Marie Adler(Kaitlyn Dever), jovem
adulta, negligenciada de afeto desde sua pequena infância e uma de tantas
crianças que rodaram pelo sistema americano de “foster parents”. Desde que
se lembra, sua infância fora marcada por mudanças de lares, alguns com
afetos, outros nem tanto. Resgatada aos 11 anos de uma casa onde sua mãe
fabricava drogas com seu novo parceiro, jogada de casa em casa, a
adolescente desenvolve toda uma estratégia para sobreviver psiquicamente a
um afeto faltante e as constantes mudanças de ambiente em sua vida.
Conheceremos a personagem quando ela está com dezessete para dezoito
anos, fazendo sua transição para a maioridade.
A série começa em 2008, com Marie fazendo parte de um programa de
transição, onde ao completar a maioridade, e legalmente saindo do sistema
de cuidados do governo, os jovens adultos passam a morar sozinhos, mas
ainda orientados e supervisionados dentro da comunidade residencial. São
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mantidos sob supervisão para que possam transitar e serem adaptados a uma
vida autônoma. Marie ainda tem contato com duas famílias que a acolheram
recentemente e são essas poucas pessoas que farão parte de seu drama,
juntamente com seu amigo e ex namorado.
A série é composta por oito episódios que causam muito desconforto em um
círculo sufocante, especialmente os primeiros. Acompanhar o sofrimento de
Marie não é para todos. Fica aqui o alerta de gatilhos emocionais, pois foram
vários os relatos virtuais de pessoas que não aguentaram o peso emocional
que a série desperta, em muitos momentos ela se torna extremamente
aversiva, porque joga no sofá do espectador algo muito real e inacreditável
em sua existência, coisas que, via de regra, se prefere não pensar sobre. Para
quem sofreu alguma espécie de trauma relativo à questão, ver a série pode
ser ainda mais difícil ou mesmo insuportável, embora ela premie o esforço
O Cinema e o Feminino
com um final redentor.
O drama de Marie começa quando seu apartamento é invadido e ela sofre
violência sexual, a característica do ataque é formulada para ser mesmo
inacreditável, uma vez que o estuprador não deixa qualquer sinal de seu
crime. Isso por si só já seria uma quantia de sofrimento psicológico
imaginável, mas o que se segue coloca a nossa personagem em um oceano de
negligências e abusos. Os policiais despreparados que perguntam por
diversas vezes a mesma coisa, algumas delas com ironia e agressividade,
fazendo a pobre menina reviver seu abuso dezenas de vezes.
27
Não há qualquer empatia ou acolhimento a ela, nem mesmo pela enfermeira
que faz a coleta de material para análise. É possível ver um mecanicismo total
despreparado e sem humanização no atendimento. Sua única rede de apoio é
composta por suas duas ex-foster mães e poucos amigos do condomínio
onde mora. Começam aqui as negligências policiais, com as entrevistas e
interrogatórios que deixam qualquer espectador tonto e irritado. A cada
entrevista e interrogatório, um novo reviver de seu trauma, sem qualquer
tato ou amparo emocional.
Vale ressaltar aqui que pessoas lidam de maneira diferente com situações de
conflitos e abuso, indo desde o processo de negação até somatização ou
apatia e depressão. Marie, já acostumada com negligências emocionais e com
ausência de afeto, lida de maneira singular com o abuso e isso desperta
desconforto naquelas duas únicas fontes de afeto que tem até então: suas
mães, sua aparente indiferença traz a dúvida a quem não quer mesmo pensar
em suas possíveis omissões. Ao avisar a polícia sobre suas suspeitas, suas mães
desencadeiam uma série de situações que levarão nossa personagem a
sofrimentos inimagináveis. Todos ao seu redor, até mesmo por comodismo,
preferem por em dúvida sua denúncia.
Nos episódios sucessivos o trauma será ainda mais cruel e Marie será
desacreditada pelos policiais envolvidos, por seus amigos e até pelos seus
orientadores no programa de casa que participa, programa do qual acaba
sendo expulsa por conta da punição que sofre pela denúncia feita. Seu
sofrimento escalona e não tem mais qualquer suporte ou apoio, ela se verá
desacreditada e absolutamente só. Não tem família e os poucos amigos
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começam a se virar contra ela. Aqui começamos a trama paralela em um
corte temporal e três anos depois, a policial Karen Duvall(Merritt Wever)
começa a investigar denúncia de casos semelhantes e conversando com seu
marido
ele
sugere
que
ela
fale
com
outra
investigadora,
Grace
Rasmussem(Toni Collette). Aqui temos um novo olhar, de uma policial
empática, cuidadosa e que foca sempre nas vítimas. Tem-se a impressão de
que estamos lidando com universos distintos, uma vez que as maneiras de
lidar são tão distintas. Karen é um exemplo de policial e dá todo o suporte a
nova vítima. Enquanto Karen investiga no futuro, Marie é massacrada no
passado. É um ponto ainda maior pra alavancar a série a presença de Toni
Collette que faz sempre ser uma delícia ver personagem interpretada por ela,
mas diga-se que Merritt Wever marca com maestria sua personagem que faz
par com Collette, elas que farão toda a diferença ao investigarem um crime
O Cinema e o Feminino
dessa natureza.
Para contrapor com a doçura da policial Karen, aqui conheceremos a policial
Grace (Toni Collette), mais durona, com maior experiência e mais séria na
luta pela verdade das vítimas. Mais experiente e já um pouco enrijecida pelo
sistema e pela experiência, mas sem perder seu lado humano. Grace e Karen
começam uma relação de trabalho meio complexa, de parceria e amizade,
que será crucial para o desenvolvimento da série, Duvall guarda em si uma
antiga admiração em relação a Grace. Enquanto isso, no passado, Marie
encontra a princípio, acalento e amparo no ex-namorado, diferente do que
acontece com a vítima atual que Karen Duvall investiga com todo cuidado, a
jovem Amber Stenvenson(Danielle Mcdonald) que será peça fundamental em
toda investigação pelas informações precisas que fornecerá quanto ao
28
ocorrido.
Esse tipo de produção é fundamental
para o que chamamos de
cinematerapia acadêmica, pois tem uma função social muito importante.
Esse seriado deveria ser visto e trabalhado no processo de formação dos
profissionais que irão lidar com vítimas de violência, abusos, tentativas de
feminicídio, tendo em foco e guardadas as peculiaridades e indicações legais
de cada recanto. Seja nas delegacias, seja nos fóruns ou nos locais de
atendimento médico, psicológico e social, todos precisam saber como é esse
sofrimento e como jamais devem agir nesses casos duvidando ou
culpabilizando a vítima, colocar em dúvida ou relativizar uma vivência tão
traumática é com certeza aumentar em muito sua malignidade, é se por ao
lado do abusador.
Se há algo que Karen e Grace sublinham com seu impecável trabalho é essa
questão do cuidado, é bastante emocionante quando ao fim das investigações
Karen recebe um telefonema de Marie agradecendo por se sentir cuidada
mesmo sem nunca tê-las conhecido. Com certeza isso é um impulso para
um profissional em formação querer se espelhar nesse tipo de seriedade e
empatia.
Outro momento que a nós muito interessa se passa no sétimo episódio
quando Marie é obrigada a ir a uma terapeuta para não ser processada por
“falsa denúncia”(sic), fato que como uma de suas mães dirá e Marie
reconhecerá posteriormente, leva a pensar, com ironia, que em tudo se pode
salvar algo de bom.
Nessa sequência veremos um momento carinho para quem aprecia a
Cinematerapia
psicanálise(e psicoterapias com modelo próximo). Uma condução técnica
delicada e empática, realmente interessada, "escuta" para além do que se
pensa estar sendo dito(escuta analítica), realizada pela psicoterapeuta Dara
Kaplan(Brooke Smith).
Claro que na realidade quase nunca as coisas se darão tão cadenciadas como
vemos naquela sessão, mas é didático o momento, marca a diferença entre
realmente acolher ou intervir por demais. Sublinha, inclusive, o que tratamos
aqui do quanto um filme pode ter em seu relato agregado conteúdos do
narrador, sequência então especial para os estudiosos da utilização na
modalidade cinematerapia e apreciadores da psicanálise bem conduzida.
Quantas e quantas Maries não existem aqui no Brasil, onde a sociedade esta
cada vez mais machista, com aumento de mais de 70% nos casos de
O Cinema e o Feminino
feminicídio nos primeiros meses de 2019.
29
Um país que contabiliza 180
Maries POR DIA necessita com urgência desse tabefe que essa série(e fato
real) traz à tela. O momento no último episódio em que Grace Rasmussem
liga para o primeiro investigador do caso, detetive Robert Parker(Eric Lange)
libera um grito da garganta do espectador, sua feição de espanto e desolação
é sem palavras para descrever, como ele mesmo irá reconhecer, teve que se
ver na face de tudo aquilo que sempre criticou, o policial negligente.
Ao final o criminoso quer falar e tem que ser com investigador homem, não
quer falar com Karen e Grace, como uma ironia ele diz que fica
“desconfortável frente às mulheres”, ponto que passa sutil, mas que deve ser
sublinhado como mote de todo ataque ao feminino, como esse ser incomoda
ao ponto de precisar ser agredido e apagado, essa mulher que remete às
próprias armaduras que a masculinidade quis erguer pra si e que hoje
desesperadamente luta para manter, isso quando a transformação já se
encontra em curso e inevitável. Veremos, mas não sem antes disso termos
que lidar com a intensificação dos ataques, como por aqui em nosso país
temos sido alertados neste ano de 2019, triste ano onde esse machismo de
O Cinema e o Feminino
Cinematerapia
forma totalmente violenta tenta consagrar seu fake.
30
Cap. 06
Big Little Lies – Temporada 1
(2017)
Dirigido por Jean-Marc Vallée(Clube de Compras
Dallas/2013) e trazendo no elenco principal Nicole
Kidman, Laura Dern, Reese Witherspoon, Shailene
Woodley, Alexander Skarsgard, James Tupper, Zoé
Kravitz e Adam Scott. Baseado no livro homônimo de
Cinematerapia
Liane Moriarty, que sofreu pequenas alterações para
adaptação a televisão.
Uma série que mergulha com um bom suspense em histórias femininas que
abordam problemáticas dolorosas e complexas. Narra a história de cinco
mulheres que entrelaçarão suas trajetórias em determinado momento de
suas vidas. O filme começa apresentando essas personagens que lidarão com
a chegada de Jane Chapman(Shailene Woodley) que é uma nova moradora da
comunidade de Monterey, na Califórnia, que para lá se muda com seu filho,
Ziggy(Iain Armitage). Esta não é a cidade da trama original, mas traz um novo
olhar para o roteiro. Monterey esta localizada na costa Oeste americana e tem
se tornado local de referencia de qualidade de vida para pessoas com filhos.
Próxima de grandes centros urbanos mas com aspectos de interior, atraí
anualmente migrantes de vários locais buscando paz e tranquilidade, assim
O Cinema e o Feminino
como Jane. Grande ironia do destino.
Jane logo conhecerá a prestativa e super popular Madeline Martha Machenzie
(Reese Witherspoon) que também a apresentará a sua grande amiga Celeste
Wright(Nicole Kidman). Jane terá sua primeira impressão na escola de seu
filho como bastante hostil via Renata Klein(Laura Dern) que é na localidade
conhecida por ser a única mãe que trabalha fora, vista como uma figura meio
arrogante e agressiva, mãe de Annabela Klein(Ivy George) e
primeiro dia de aula acusa Ziggy de tê-la machucado.
31
que logo no
Essa personagem deixa a boa chamada para o debate do mundo feroz que a
mulher que trabalha tem que enfrentar, inclusive com o olhar de reprovação
de outras mulheres, como se sua maternidade valesse menos. Por conta da
acusação de agressividade entre as duas crianças a trama se desenrolará
surpreendendo a cada episódio.
A postura diante do fato demonstra a
tendência a lidar com o estranho como algo ameaçador na tentativa de não
enxergar o que se oculta por detrás de uma aparente ordem.
Acompanhando a vida dessas cinco mulheres o espectador é convidado a
pensar em questões muito atuais que giram em torno do cotidiano feminino.
O suspense da série é muito bom e constrói de maneira crescente uma tensão
que, ao mesmo tempo, vai fornecendo com parcimônia elementos para o
desvendar da trama. A série é uma criação de David E. Kelley e produção
HBO, consta de sete episódios, foi inspirada no livro homônimo de Liane
Moriarty.
Sabemos que grupos se movimentam quando da entrada de um novo
membro, a reconfiguração que isso pode trazer muitas vezes mexerá em
segredos até então muito bem protegidos e acomodados. A chegada de Jane à
idílica Monterey se transformará nesse elemento transformador. Ela é uma
mãe jovem e solteira que pouco ou nada revela sobre seu passado, há uma
tensão com seu filho Ziggy justamente por ela se recusar a revelar qualquer
informação sobre seu pai. Logo em seus primeiros dias ela conhecerá
Madeline Martha Machenzie, socorrendo-a quando ela torce seu pé a
caminho do primeiro dia de aula ao sair do carro para dar bronca em jovens
Cinematerapia
que seguiam falando no celular no carro à sua frente.
Madeline é uma mãe já em seu segundo casamento, tendo duas filhas uma do
primeiro, Abgail(Katryn Newton) e outra já do casamento atual, Chloe(Darby
Camp) que será colega de Ziggy. Embora bem casada com uma figura muito
acolhedora e simpática que é seu marido Ed Mackenzie(Adam Scott),
mantém uma certa obsessão por Nathan(James Tupper) seu ex. Voltada
totalmente ao seu papel de mãe, viverá a dor de ver sua filha adolescente ir se
afastando e pedindo para morar com o pai, longe de seu imenso amor e
superproteção. O vazio de ver sua meta de vida, sua função mais primordial
ser diminuída.
Madeline apresentará Jane à Celeste Wright(Nicole Kidman) que com o seu
marido Perry Wright(Alexander Skarsgard) forma o casal modelo dentro da
pequena comunidade, mãe de gêmeos que deixou sua carreira de advogada
O Cinema e o Feminino
com a chegada da maternidade. Monterey é uma pequena cidade habitada
por uma classe média alta em busca de boas escolas particulares para seus
pequenos, instituições famosas por seus preços moderados e bom ensino. As
três formarão um grupo coeso e que enfrentará questões que se colocarão à
medida que suas vidas vão sendo mais conhecidas umas pelas outras.
Completa margeando o grupo a atual mulher de Nathan, Bonnie Carlson(Zoé
Kravitz) mãe da outra filha dele. A tensão no grupo será sempre trazida por
Renata(Laura Dern) que lida com sua culpa pela ausência em uma defensiva
acusação contínua em relação às outras mães, agora centrada na acusação
contra Ziggy. Há também presente no grupo a tensão que existe de Madeline
em relação a Bonnie.
32
A série começa mostrando um assassinato, não se sabe quem morreu e muito
menos quem é o culpado, os depoimentos de outros moradores da
comunidade vão revelando que nem tudo ali é um paraíso de paz e boa
convivência, nossas personagens vão sendo descritas de maneira um tanto
cruel e acusatória. Então na verdade a série será toda como um flashback que
tentará mostrar quem são os personagens envolvidos na trama até o
momento do crime.
O espectador conhecerá a intimidade dessas jovens
mulheres e seus parceiros, aos poucos será confrontado com temas como:
mães solteiras, superproteção, violência doméstica, segredos familiares,
relações tóxicas, ciclo da violência, bullying, intervenção terapêutica de casal
etc
Nicole Kidman na pele da deslumbrante Celeste roubará o protagonismo, e
na verdade será a história de sua personagem que amarrará toda a trama. Em
determinado momento ela e o marido em busca de ajuda para que possam
entender sua violenta e estranha relação, procuram uma terapia. É
interessante ver o vínculo que se vai formando com a terapeuta. Dr Amanda
Reisman(RobinWeigert), e de como frente a determinadas circunstâncias de
grave perigo, ela utiliza uma orientação que consta também aqui na
orientação ética dos psicólogos, proteger a vítima em primeiro lugar e da
possibilidade de quebra de sigilo quando há uma ameaça real quanto a
integridade física do próprio paciente ou de terceiros. O personagem Perry
Wright(Alexander Skarsgard) virá trazendo a discussão em torno do típico
homem abusivo, machista e misógino.
Podemos supor que a misoginia nasça daquele núcleo existente no homem
Cinematerapia
onde sua parte de identificação com a figura feminina impulsionou grande
quantidade de ódio na ambivalência que chega à consciência como aversão.
Por outro lado a impossibilidade de lidar com investimentos homoeróticos
presentes no complexo completo faz com que se sinta impelido a atacar a
mulher com grande intensidade. Algumas vezes isso se manifesta travestido
de um agressivo romantismo onde o desejo da mulher é o alvo do ódio, no
sentido de anulá-lo.
Alguns desses ataques são diretos e violentos(ou ainda sutis) e outros sofrem
uma espécie de identificação projetiva e levam a que o homem necessite
implantar uma relação(narcisista) onde preserve a questão sublinhada por
Freud em seu texto “Um Tipo Especial de Escolha de Objeto”(1910),
dividindo-se entre a mulher que é especial, objeto de sua dominação e todas
as outras que servirão para uma sexualidade agressiva e desqualificadora, e
O Cinema e o Feminino
logo após descartadas também como meros objetos. A trama que envolve o
casal Wright ficará bastante centrada nessa perspectiva. A história de Jane
entrará aí para elucidar esses aspectos, não deixando margem para dúvidas.
A série acaba por sublinhar, via a conclusão que leva como finalização, no
quanto os vínculos afetivos formados na infância serão bem mais
determinantes que qualquer tendência inata. A criança percebe para além do
que o mundo adulto pensa comunicar, a tensão do ambiente é sentida e
significada conforme os indicadores que deslizam para além da aparência.
3
Uma agressividade mais predominante poderá ser vista, maioria das vezes,
como uma representação da própria vivência, como uma denúncia e um
pedido de ajuda. No sentido oposto, os laços de cumplicidade, acolhimento e
afeto possibilitam que vivências que poderiam trazer em si muito de
explosivo, encontrem a possibilidade de comunicação e busca de alternativas
de uma composição mais saudável, mesmo diante de enfrentamentos que
incluem dor e frustração, Ziggy representará essa conclusão de forma doce,
corajosa e terna.
A série acaba por se constituir em uma possibilidade bastante rica de pensar
“empoderamento feminino” e as questões que se circunscrevem no que
atualmente se nomeia como “sororidade”, um grupo de mulheres que frente
as suas diferentes dificuldades possibilita entre si uma busca por saídas de
suas opressões, seja essa da ordem de uma própria e interna ressignificação,
seja pelo enfrentamento de situações de violência. Ao mesmo tempo, a série
passeia sobre diferentes posicionamentos do mundo masculino, apresenta
figuras de homens que se posicionam de forma absolutamente diferente
frente aos fatos da vida e as relações de parceria. Os pares apresentados
acabam por possibilitar uma reflexão bastante interessante, não perdendo,
entretanto, o foco na questão do feminino.
A história apresentada e a forma como é conduzida produz um bom
suspense, um entretenimento interessante, ao mesmo tempo convida ao
olhar para questões complexas do universo afetivo. Explicita que nada é
assim tão facilmente compreensível por dados aparentemente tão evidentes,
que há nos fatos uma leitura que se oculta até mesmo em informações que
Cinematerapia
levariam a conclusões opostas, como o clímax deixará bem claro. A força da
mulher no enfrentamento das questões obscuras que a submetem, estão em
grande parte inscritas nas suas possibilidades de vencer a rivalidade a qual o
machismo e a misoginia a convidam todo o tempo a operar, e comporem
laços de ajuda mútua e enfrentamento.
Na vida real sabemos que essa não é uma tarefa assim tão fácil, já que a
rivalidade feminina é praticamente um traço cultural muito bem arquitetado
e habilmente conduzido por um machismo que não deseja arredar pé de sua
gozosa fragmentação. A belíssima produção da HBO deixa rasgado e claro o
recado do quanto as mulheres têm a ganhar com sua união, a conclusão é
direta e sem rodeios, crua mesmo, a metáfora fica por conta do ainda
impossível, a escolha de jogar pra longe e dar fim a violência que é imposta a
uma grande parcela de mulheres, seja ela emocional ou física, nas relações
O Cinema e o Feminino
pessoais ou profissionais.
A belíssima produção HBO deu com clareza seu recado, falou bem e fundo
sobre questões que invadem o cotidiano da mesma forma maledicente,
insidiosa, pestilenta e violenta que vemos aos poucos a história do roteiro
tomar a tela. Conduziu um espectador, atordoado, entre a beleza, o riso e a
feiura que pode haver oculta sob a aparente harmonia. Nas ultimas semanas
surgiram boatos sobre uma possível segunda temporada. Esta poderia ser
desenvolvida a partir de explicações e cenas cortadas do livro, que dão um
pouco mais de densidade e psicodinâmicas as personagens. Entretanto, a
autora da obra já declarou que pode considerar ampliar o escopo de relações
para dar uma continuidade, não em livro, mas apenas na produção da tv.
34
Finalizando com um devaneio que expressa obviamente seu desejo,
não
seria assim lindo a bela cena final na voz de Elza Soares com sua “A Mulher
do Fim do Mundo”?
“A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei
Do resto dessa vida,
Na avenida, dura até o fim
Mulher do fim do mundo
O Cinema e o Feminino
Cinematerapia
Eu sou e vou até o fim cantar”.
35
Cap. 07
Big Little Lies – Temporada 2
(2018)
Na texto anterios falamos dessa então minissérie e de
como ele estava mobilizando as pessoas, especialmente
da força das mulheres e de seus cotidianos que as
exigiam de maneiras bem distintas
Não foi surpresa que a série foi altamente indicada e premiada e então, se
cogitou uma segunda temporada. Mesmo a história original, do livro, ter se
Cinematerapia
encerrado com a minissérie. Essa passou então para a categoria de seriado,
com continuações possíveis.
A princípio, para os fãs do livro e que se encantaram com a produção, essa
continuação talvez não fosse possível manter o mesmo nível, mas, nada que
uma boa equipe de roteiro, supervisionados pela autora e com uma adição ao
elenco não tornassem isso possível.
A série retorna em sua segunda temporada mantendo o fôlego e um bom
enlace com o espectador. As “cinco de Monterey” continuam capturando a
atenção e compondo boas tramas. Sem se afastar da história da primeira
temporada, o enredo segue bem alinhavado e em um fio lógico que se
sustenta com maestria.
Ganha a grande presença de Meryl Streep que é
introduzida nessa temporada como a mãe(Mary Louise Wright) do falecido
O Cinema e o Feminino
Perry Wright(Alexander Skarsgård), além da sempre prazerosa possibilidade
de ver a atuação da atriz, a personagem vem acrescentar ao roteiro um maior
aprofundamento e consistência, dando um passado a violência que gerou
toda a trama. Acreditem ou não, é possível odiar Meryl pela sua personagem.
O que torna toda a temporada muito ambígua porque somos sempre
inclinados a idolatrar tudo que ela faz. E como o faz tão bem, sua
personagem se torna tão rejeitada quanto seu filho da temporada anterior.
Muitos são os pontos que a nova temporada sublinha, os mais evidentes
seriam: a violência como fruto de uma história de agressões,
como as
famosas teias e raízes familiares que carregamos ao longo da vida. O quanto
nossas histórias estão entrelaçadas com nossas vivencias mais infantis.
36
Outro seria o de homens que entram no casamento ocupando lugar de
filho(o marido Gordon de Renata Klein interpretada por Laura Dern). Outro
é o comportamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em
vítimas de estupro (Jane Chapman interpretada por Shailene Woodley), a
violência do abandono e a emocional(relacionamento mãe e filha de Bonnie
Carlson,
interpretada
por
Zoë
Gravitz),
a
dificuldade
da
parceria
isonômica(relacionamento de Madeline Mackenzie, interpretada por Reese
Whiterspoon com o marido Ed Mackenzie interpretado por Adam Scott) e
alguns outros, a série realmente capricha nas sutilezas.
A amizade e cumplicidade feminina, aspecto difícil até mesmo pelo como a
cultura insere entre as mulheres um aspecto permanente de disputa, toma o
roteiro como a costura que amarra tudo. No início dessa segunda temporada
parece estar por um fio, há muitos não ditos desconstruindo os laços, o
espectador chega a ficar preocupado em ver desintegrar-se um dos aspectos
mais interessantes da história, mas como tudo que verdadeiramente existe na
vida, será justamente o enfrentamento das duras verdades que irá reforçar
esse poderoso enlace ente essas cinco mulheres.
A produtora de Reese Whiterspoon, a Pacific Standard, tem sido descrita
como uma produtora primordialmente feminista e que busca contar
histórias de mulheres que não costumam aparecer muito como mote de
produções, já foi responsável pelos filmes “Garota Exemplar”( Gone
Girl/2014) e Livre(Wild/2014), despontando ainda mais com o grande sucesso
de Big Little Lies primeira e segunda temporada que já angariou prêmios
importantes como os quatro dos seis troféus que disputava no Globo de
Cinematerapia
Ouro. A HBO apostou na produção e parece que acertou nessa aposta, tem
sido reverenciada por isso.
A história da segunda temporada segue a da primeira, após a morte suspeita
de Perry Wright e a investigação sobre ela que envolverá as quatro mulheres.
A vida segue, tentando voltar ao normal após a tragédia. Celeste(Nicole
Kidman) é surpreendida pela chegada da sogra Mary Louise que pretende
morar em Monterey para ficar próxima aos netos. O que em um primeiro
momento parecerá até um alento, se transformará em um conflito com a
espionagem e o julgamento da sogra em relação ao comportamento da nora,
da revolta dela em relação às histórias narradas sobre seu filho e mais adiante
na disputa pela guarda dos gêmeos que inciará, esta atitude por parte dela
fará surgir uma Celeste que poucos conheciam e novos padrões de
comportamento que assumirá agora longe do jugo do violento marido.
O Cinema e o Feminino
Veremos uma mulher altiva surgir por detrás dos escombros da antiga, é
bonito ver como isso vai se construindo, o roteiro é delicado, nada
sentimentalóide ou ilusório, vai com esmero e com altas doses de realismo,
fazendo surgir uma mulher muito diferente, uma nova personagem nessa
trama estranha, dona da sua voz e do seu lugar de fala, quando, por exemplo,
resolve advogar em sua defesa na audiência de custódia de seus filhos. Faz
ver a muitas mulheres que é possível recuperar-se de uma relação violenta e
abusiva, há sempre uma reserva de energia que poderá fazer surgir novos
dias brilhantes.
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O luto existente na saída de um péssimo relacionamento não precisará
jamais ser a sentença final de uma disposição de viver bem, de amar e de ser
sujeito livre no mundo. Celeste é a síntese das questões femininas e uma seta
apontada para o alvo no sentido de que é preciso se afastar da opressão como
único caminho onde os pés das mulheres podem tocar. Não é preciso se
machucar porque se tem energia sexual , desejos , fantasias e fetiches.
A
sexualidade feminina é tão autoral, autônoma e inventiva quanto a masculina
costuma se vangloriar de ser.
Foi muitíssimo comentado pela crítica especializada e nas redes sociais o
quanto Laura Dern teria arrebatado o público nesta segunda temporada, o
que parece ser bastante crível, ela realmente dá um show de interpretação e
seu enredo na temporada foi valioso.
Aliás, Renata é a personagem que
rouba a cena nessa temporada. Laura Dern tem sido apontada como
principal destaque e suas cenas são as melhores. Há quem diga que conseguiu
desbancar Meryl em uma das cenas finais da temporada. Veremos quando
saírem as indicações dos prêmios brevemente.
Poderemos pensar no quanto sua personagem Renata Klein, a típica mulher
executiva e bem sucedida, costuma muitas vezes alimentar um casamento
onde o parceiro acaba se acomodando em uma posição de “filho mimado”,
Gordon e seu passatempo com maquetes de ferrovias é o próprio meninão
irresponsável brincando com a vida e desobedecendo a autoridade materna
agora colocada na parceira. Ele faz um péssimo investimento, acaba preso
por fraude e é decretada falência o que leva seus bens, economias e todos os
investimentos de Renata que surta completamente com a destruição da nova
Cinematerapia
história que construíra para si com a certeza de dar a filha uma perspectiva
bem diferente de sua infância pobre.
O quanto de alguma forma o masculino está ali posto para brincar e destruir
todo o poder erguido por uma forte mulher, na disputa entre os gêneros a
parceria muitas vezes não salva, não prepondera. Tem uma tremenda força
essa personagem dentro da trama, traz à tona uma armadilha que o feminino
deve estar atento, de não se colocar a partir de um lugar de poder, sob a
alienação de um centro masculino, de não identificar-se com um modelo que
rouba tudo aquilo que se reconhece como características da feminilidade.
Jane Chapman terá que enfrentar seus traumas ao iniciar uma amizade com
seu colega de trabalho que a envolve amorosamente. Cada toque físico a joga
na vivência do estupro, a angústia e a ansiedade tomam conta impedindo o
O Cinema e o Feminino
estabelecimento de novos laços e de um envolvimento sexual.
Para
completar o momento delicado, Mary Louise descobre que também é avó de
Ziggy(Iain Armitage) e iniciará um verdadeiro assédio tentando se aproximar,
ao mesmo tempo questionando a veracidade quanto ao fato de seu filho ser
um estuprador e culpabilizando a fragilizada Jane. É muito sensível essa parte
na temporada, mas não incorre no erro de exagerar nas cores e nem de
vitimizar por demais Jane que luta para, assim como Celeste faz, retomar sua
vida, seu afeto e sua sexualidade, rompendo o isolamento ao qual havia se
lançado e ao seu filho, isolamento este que já havia sofrido uma abertura na
temporada anterior quando sua história é revelada. Monterey para ela foi e é
o susto e a libertação.
38
Madeline a grande líder do grupo também atravessa um momento delicado,
seu marido Ed a escuta discutindo com a filha que fala sobre sua traição, isso
lançará o casamento em uma possibilidade de dissolução. Vemos nesse casal
o terreno instável que uma parceria mais condizente com a atualidade traz
pra cena principal, onde a isonomia entre os gêneros está mais presente e por
isso mesmo mais explosiva e delicada. Em um momento onde tudo ainda se
inscreve em uma espécie de ensaio e erro, a delicada construção de uma
parceria igualitária é complexa e cheia de momentos de compreensão e
perdão ou de derrota e afastamento.
Há inúmeros casais nos dias de hoje que diariamente empreendem um
enorme esforço, maioria das vezes às cegas, para compor laços mais
condizentes com o que se idealiza com um encontro amoroso entre gêneros.
Quem pensa que isso seja “natural”, desconhece a mão pesada dos costumes
que lançam em estratificados papéis de gênero desde muito cedo. A
delicadeza com a qual Madeline espera o tempo do parceiro, a coragem do
olhar de Ed para Madeline, a generosidade que amarra a união que refaz os
votos, é muito bonita e lança esperança aos desesperançados no amor
contemporâneo.
Bonnie de certa maneira completa essa história com a insistência do quanto é
preciso revelar para que haja uma liberdade verdadeira.
Não há amarras
mais poderosas do que as áreas de silêncio e os não ditos tão traumáticos,
formadores da ira e da hipocrisia. Ao revelar sua própria história que dá lugar
à defesa agressiva cerne da trama, sua relação complicada, reveladora da
extrema ambivalência que costuma estar presente nas relação mãe e filha, a
Cinematerapia
história se comporá ainda com mais veracidade, o gesto impensado revela
em si uma longa trajetória de dor e agressividade contida, o acaso é na
verdade um desfiar de um longo fio histórico onde várias formas de opressão
se reuniram em uma cena.
Meryl Streep e sua atuação sempre impecável fecha a história dando-lhe
sentido, não há violência que não traga histórias ocultas e repetições de
traumas. Ela traz ao espectador com maestria a senhora contida, recatada,
aparentemente dedicada à família que oculta uma insatisfação explosiva e de
certa
forma
violenta.
A
típica
mulher
conservadora,
adaptada
ao
convencional papel social reservado à mulher, mas que destila descontrole,
injúria e uma crítica que parte de um lugar ilusoriamente construído.
A
história da mulher revelada nessa personagem que não se sustenta em seus
contidos gestos de aparente dedicação e bondade e que na verdade revelam
O Cinema e o Feminino
mesquinharia e impaciência, dor e solidão.
A forma como a série resolve abordar essas histórias femininas toca questões
dolorosas e fundamentais, faz isso tudo com cuidado, generosidade,
competência e carinho. Mas, com certeza não é uma história somente para
mulheres, muito ao contrário, os homens retratados por ela, aparentemente
propositalmente personagens coadjuvantes,
alimentam também reflexões
muito necessárias se não quisermos ter que fechar opinião nos teóricos que
querem lançar essa época como tempos da solidão e desencontro amoroso.
Big Little Lies, apesar do título, lança esperança de que o amor, a amizade, a
fraternidade e a paixão, sejam igualmente acessíveis ao feminino e ao
masculino.
39
Cap. 08
Babadook (2014)
“Partimos da grande oposição entre os instintos de
vida e de morte. Ora, o próprio amor objetal nos
apresenta um segundo exemplo de polaridade
semelhante: a existente entre o amor (ou afeição) e o
ódio (ou agressividade). Se pudéssemos conseguir
Cinematerapia
relacionar mutuamente essas duas polaridades e
derivar uma da outra! .” FREUD, S. - Além do
Princípio de Prazer/1920
Antes de ler essa coluna é preciso darmos DOIS alertas. Escrever sobre essa
produção não será possível sem entregá-la em partes importantes, então é
recomendada a leitura para quem já a assistiu e quer pensar sobre seus
aspectos ou quem não se importa em com spoiler antes de assistir a um
filme.. E dois, esse é um filme que requer companhia para assistir pois vai
testar suas unhas, seu pulmão e especialmente seu coração, pois é uma
espécie de filme de terror diferente.
Primeiro longa da diretora australiana Jenifer Kent,
escrito e dirigido
por ela, ampliado a partir de seu curta “Monster”(2005). A diretora tem longa
O Cinema e o Feminino
trajetória como atriz e professora de artes cênicas em grandes escolas na
Austrália. Quando quis iniciar na direção pediu para trabalhar com Lars Von
Trier que seria em sua concepção sua escola de cinema, o diretor trouxe-a
para trabalhar como assistente em “Dogville”(2003). Ela é conhecida por ser
defensora de que mais mulheres se insiram na direção de filmes de terror.
Este filme esteve aqui no Brasil no Festival de Terror de Porto Alegre(
FANTASPOA) e comercialmente foi trazido apenas pela streaming Netflix. A
verba para execução do filme foi em grande parte dada pelo governo
australiano e outra parte por campanha que a diretora empreendeu para sua
arrecadação. O filme foi muito bem recebido e já faturou uma quantia
considerável. Bem vinda, então, Jenifer Kent, ao cinema de terror!
40
O bom ponto desse filme é gerar uma dúvida que não é resolvida com sua
finalização, deixando para a consciência do espectador decidir entre as duas
possibilidades mais evidentes, o mundo do fantástico espiritual ou o mundo
do fantástico da mente humana. O clima de tensão psicológica é sem dúvida
o marcante neste filme. Faz Eva(Tilda Swinton) mãe de Kevin(Ezra Miller) do
"Precisamos Falar Sobre Kevin"(We Need to Talk About Kevin/2011), parecer a
mãe mais saudável do mundo, uma comparação para se ter noção do
impacto dos personagens muito bem apresentados por Essie Davies(a mãe,
Amelia) e o encantador menino Noah Wiseman(o filho, Samuel).
Sabe aquele título de artigo tipo “Tudo que não te contaram sobre a
maternidade”? É este filme apresentado de forma assustadora, transformando
em terror o que o alemão “O Estranho Em Mim(”Das Fremde in mir/2008) já
havia abordado também com algum suspense, mas puramente psicológico.
Ou ainda como passou a ideia a personagem Joe, do Ninfomaníaca
(Nymphomaniac/2013) de Lars Von Trier ao viver a maternidade e sua
sexualidade indomável.
O filme inicia com lembranças do acidente que Amelia sofreu a caminho do
hospital já em trabalho de parto, acidente que resultou fatal para seu marido
e pai de Samuel, Oskar(Benjamin Winspear). Em meio ao sonho escuta a voz
de seu filho que a chama insistentemente e diz que voltou a ter aquele
pesadelo, ela se levanta e vai com o filho verificar que não há nenhum
monstro. Ao que parece esse episódio se repete por muitas noites e já aí
Amelia parece muito esgotada, tem dificuldade em levantar-se para a rotina
de levar Samuel a escola e ir para o seu trabalho logo em seguida. Ela trabalha
Cinematerapia
como cuidadora em um lar de idosos, parece atenciosa e carinhosa em suas
tarefas. É chamada ao telefone pela escola do filho e lá chegando lhe
mostram uma arma artesanal de atirar dardos que ele havia levado e lhe
informam que contratarão um monitor para acompanhá-lo todo o tempo e
alegam que ele tem graves problemas de conduta. O filme assim já nos
apresenta a uma criança de comportamento bem agitado e uma mãe
evidentemente esgotada e deprimida. O aniversário de Samuel está próximo,
data que deixa Amelia sensível pela lembrança de seu luto, o acidente que
matou seu amor.
Logo de início a tensão existente na relação mãe e filho vai se evidenciando
de uma maneira bastante incisiva, não deixando margem para dúvidas em
relação a existência de uma problemática subjacente bastante intensa. Neste
trecho podemos sugerir um livro infantil com o título de “Quando Mamãe
O Cinema e o Feminino
Virou Um Monstro”, da autora Joana Harrison, onde uma mãe estressada vai
aos poucos se transformando literalmente em um monstro verde. Amelia ou
Babadook, de quem Sam na verdade está falando é a questão que o filme
deixará para o espectador acompanhar. Em determinado trecho Sam se
queixa de sua mãe para o colega de trabalho dela que vai visitá-los,
Robbie(Daniel Henshall) e lhe diz: “Ela não quer me dar uma festa de
aniversário e não quer que eu tenha um pai.”
Babadook se faz a cada
momento mais presente na vida dessa angustiada dupla que vive algo que
poderíamos pensar muito próximo a uma “folie à deux” e a essa altura a três
porque inclui o espectador. Em outro trecho mais adiante Amelia pedirá
desculpas por vir sendo uma péssima mãe desde que o pai de Sam morreu, o
que significa então a totalidade dos sete anos de vida dele.
41
Sabemos via dados estatísticos que a violência cometida contra mulheres,
crianças e vulneráveis é em sua grande maioria proveniente de laços afetivos
próximos, quanto mais se estuda essas questões mais isso vem se
confirmando. Um ambiente familiar tóxico deixa marcas profundas em
personalidades em desenvolvimento, compõem uma infância turbulenta e
que grita ameaçada, como o pequeno Sam, em sintomas que expressam
verdades que não encontram outra forma de se mostrarem.
O ciclo que se cria em uma relação que está dinamicamente alterada é muito
bem apresentada neste filme. Sam sofre um colapso após a festa de
aniversário de sua prima e no hospital o médico sentencia: “Toda criança vê
monstros”. Amelia tenta explicar que é mais do que isso e descreve a
crescente agressividade de Sam, na verdade talvez denunciando a sua própria
que também vai em um crescente. Tudo que se quer é calar o sintoma, o
médico indica a avaliação com um psiquiatra e receita tranquilizante a
pedido da mãe que se declara incapaz de lidar por mais tempo com a
situação. Um pedido explícito de socorro que não é devidamente entendido
pelo médico.
“Eu prometo proteger você se você prometer me proteger. Então não falarei
dele(Babadook)”, diz Sam para Amélia enquanto ela lhe entrega o calmante
para que durma. A partir daí o “clima” do filme se intensificará de forma
vertiginosa, o espectador se defrontará com Babadook, agitado em um
sentimento de medo e desamparo. O livro rasgado por Amelia reaparece em
sua porta prometendo a ela “O Babadook crescendo bem sob a sua pele”.
Veremos que de seu jeito já completamente confusional Amelia pede ajuda
Cinematerapia
ao médico, a sua irmã e até à polícia, embora todos a tratem com
desconfiança, como uma mulher perturbada, nenhuma ajuda efetiva lhe é
oferecida. A vizinha, Mrs Roach(Barbara West), diz sobre Sam: “Ele vê as
coisas como elas são”, ao responder a mãe que não se incomodava com a
franqueza dele sobre sua doença(Mal de Parkinson).
Assistentes sociais batem à porta de Sam e Amélia por ele não estar mais
inscrito na escola, isso após ela supostamente ter achado uma infestação de
baratas em sua cozinha e estar no meio de uma faxina. O espectador tem aí
uma esperança de auxílio para ela e compreensão racional da narrativa, mas
eles estranhando toda a situação prometem voltar em uma semana, mais
uma vez não virá auxílio. Sam dorme todo o tempo por conta da medicação,
a madrugada cai acordando monstros que agora perseguem somente
Amelia envolvida em seus medos e ambivalências não compreendidos. Para
O Cinema e o Feminino
ilustrar isso de maneira muito original vemos na tv que ela assiste algumas
42
cenas de Georges Méliès, os monstros nos assustam desde sempre, para
combatê-los criamos toda a espécie de amuletos e crenças, exteriorizamos os
fortes sentimentos que falam de um desamparo primordial, como esclarece
de forma contundente Sigmund Freud em seu texto “O Futuro de Uma
Ilusão”.
O dia amanhece com Amelia em frente ao aparelho de televisão, a luz insiste
nas cortinas, despertando-a de seu torpor. Agora é a agressividade dela que
começa a ser desenhada passo a passo, deixando Sam ainda mais assustado.
Agora sua mãe o deixa inclusive sem suas necessidades básicas atendidas,
como a fome que reclama enquanto ela o responde com mais agressividade.
Logo depois se culpa e dá a ele o que quiser como compensação. Estamos aí
a um pouco mais da metade do filme e agora Babadook dominará a cena.
Amelia interrompe a relação com o mundo exterior(e a realidade) cortando
os fios do telefone e cerrando janelas e portas quando Sam pede para dormir
na casa da vizinha porque algo havia “invadido sua casa”. Diz ela que não
deixará que nada entre na casa, aqui agora já tomada por Babadook. Uma
longa jornada noite adentro fará com que mãe e filho enfrentem os
fantasmas de sua relação atravessada pela morte de Oskar, marido e pai.
Amelia enfrenta Babadook e o tranca no porão, visitada dias depois pelos
assistentes sociais pode agora contar a história da morte de seu marido no dia
que seu filho nasceu, poderão enfim comemorar seu aniversário de sete anos
no dia certo. Babadook seguirá trancado no porão representando toda sua
dor e angústia.
Um filme que de uma maneira bastante aterrorizante nos faz pensar em
quantas Amélias e Samuels estão agora por aí gritando por socorro,
necessitando de uma ajuda para romper com o ciclo do medo e da violência.
Toda mãe pode ter seu momento Babadook quando é exigida para além de
suas possibilidades, como nos faz pensar o livro infantil citado no início deste
texto. Porém, há que se buscar ajuda(sejam as efetivas, sejam as emocionais)
Cinematerapia
para que o monstro não invada a casa e termine em duras manchetes de
jornais ou dados estatísticos aterrorizantes. Em um mundo onde cada vez
mais um número maior de mulheres são lançadas à difícil tarefa de dar conta
de tudo sozinhas, precisamos e muito falar de Babadook. O luto pelo
abandono do parceiro por morte ou por opção seguirá muitas vezes
contaminando a relação com o(s) filho(s) sem que isso seja muito claro, pode
muitas vezes aparecer até no que conhecemos e tratamos hoje como
“alienação parental”. A ambivalência funda todos os nossos laços, nossa luz e
nossas sombra precisam compor um cenário equilibrado, como nos mostra
muito bem Amelia lutando com sua escuridão. Este é um dado que alcança
em muito maior proporção às mulheres, mas tudo visto aqui não exclui o
caso onde o pai, o parceiro, é que for deixado sozinho para cuidar de seu(s)
filho(s), embora saibamos que culturalmente somos mais compassivos com
O Cinema e o Feminino
esses casos.
Há um ponto importante do filme, se pensarmos num thriller psicológico,
sobre o chamado "sintoma psicótico" ou as clássicas alucinações que tanto
vemos nos livros de psicopatologia. Muitas vezes é dífícil explicar em sala de
aula, quando alunos ainda não tem a vivência da clínica, a possibilidade de
termos quadros de humor com sintomas psicóticos. Se entendermos o
"inconsciente aberto" veremos que as mais temidas e angustiantes fantasias e
desejos partem nada menos do que de Amélia. Aí conseguiremos entender o
sofrimento psicológico que estes sujeitos passam ao se depararem com seu
mundo interior, desprotegido pelas instâncias e aparelho psíquico, sendo
expostos e retornando na forma persecutória. Babadook como um sintoma,
que vazou de seu inconsciente e a perseguiu, mas que conseguiu no final das
43
contas, voltar ao mundo subterrâneo mais "infernal", mas "caldeirão", talvez
sendo controlado pelo amor maternal.
O final em aberto ainda pode trazer um debate sobre a questão da "cura" nos
quadros emocionais. Aprendemos a lidar com nossos sentimentos e
frustrações, mas eles jamais "nos deixam", afinal, you can’t get rid of the
Babadook.
Controlamos
eles,
seja
empurrando
para
o
nosso
porão
doméstico-emocional, seja exercendo o poder de alimentarmos eles de uma
maneira de controle. Escolhemos assim qausi "vermes" podem ou não ser
dados para que eles permanecam sempre no local onde foram alocados. Aqui
caberiam análises e interpretações que por sí só renderiam uma palestra ou
evento mais prolongado, dada a complexidade e perfeição com que as cenas
são representadas.
O que nos faz humanos é essa complexidade que inúmeros teóricos se
debruçaram e se debruçam no momento para tentar decodificar. Somos
sempre antíteses, antagônicos, paradoxais. Se um estudo se estendeu com
profundidade sobre tudo isso, sem a pretensão de agir como um tribunal, foi
o que empreendeu Freud. Assim como o que cada psicanalista, via o método,
faz hoje em seu setting e com sua escrita. Perfumar por demais a psicanálise
tem sido um erro perigoso que certas tendências vêm empreendendo. Há
que se deixar lugar para que o contraditório, para que as sombras e angústias
possam falar, possam não se sentir apenas como monstros que precisam ser
evitados como Babadook até que já não se tenha mais o que fazer. Neste
sentido indicamos que se assista ao seriado “Psi”, do psicanalista Contardo
O Cinema e o Feminino
Cinematerapia
Calligaris.
44
Cap. 09
Eu, Tonya (I, Tonya, 2017)
“Baseado em entrevistas livres de ironia,
extremamente contraditórias e totalmente verídicas
com Tonya Harding e Jeff Gilloly.”(abertura do filme)
Dirigido por Craig Gillespie, apresentando como Tonya Harding a atriz
Margot Robbie e Allison Janey como sua mãe, premiada com o Globo de
Ouro e Oscar pelo papel. Baseado em fatos reais que ganharam os noticiários
Cinematerapia
no início dos anos 90. O filme toma o aspecto de um documental como se
fosse um daqueles programas televisivos narrando um crime. Tonya Harding,
já após muitos anos do “incidente”(como os envolvidos se referirão ao
atentado), contando sua versão. Ela, então mais velha, casada e mãe de um
filho de sete anos, vendo já com distanciamento o episódio que marcou para
sempre sua vida encerrando de maneira incontornável sua carreira como
patinadora. O roteiro é assinado por Steven Rogers que baseou a história em
entrevistas feitas com Tonya Harding e seu ex marido Jeff Gillooly, no filme
interpretado pelo ator Sebastian Stan.
A história narrada pela versão do filme aponta para uma menina que desde
cedo se mostrou possuidora de um grande talento para a patinação, e que
então é levada,
antes dos seus quatro anos, a essa treinamento por sua
obstinada mãe, uma garçonete sobrecarregada por dois empregos e a criação
O Cinema e o Feminino
da filha sem a presença de seu pai, quarto marido, que abandona as duas
quando Tonya tinha por volta dos seus sete anos de idade. Lavona Harding,
mãe de Tonya, é uma alcoolista, mulher frustrada e muito agressivamente
exigente no trato com sua quinta filha. Veremos todo um ciclo de abandono
e maus tratos desde sua origem acompanhando essa produção. O elo afetivo
de dependência que amarra esse tipo de relação é muito bem abordado pelo
roteiro que não carrega em qualquer tendência, mas também não deixa de
demonstrar toda sua contundência.
45
O ciclo de violência iniciado em sua infância, tomará aspectos ainda mais
presentes com seu casamento com Jeff Gillolay(Sebastian Stan) que
posteriormente será mentor e figura central
no escândalo que se verá
envolvida, quando sua adversária Nancy Kerrigan(Caitlin Carver) é agredida e
tem o joelho quebrado para impedir sua participação na Olímpiada de
Inverno de 1994, competia pela vaga com Tonya. A participação ou anuência
de Tonya em relação ao episódio é até hoje uma polêmica e o mote da
produção que encaminha a questão, deixa que cada espectador decida sobre
ela, foi mesmo a intenção de Steven Rogers(P.S. Eu Te Amo) que ao buscar
elementos para o roteiro se viu confuso com as dessemelhanças das
narrativas.
Tonya Harding veio a ficar muito conhecida por sua ousadia ao introduzir em
uma competição americana o salto conhecido como “triple axel”, só
novamente reproduzido por outra norte americana, Kimmie Meissner, em
2005 e este ano por
Mirai Nagasu na Olimpíada de Inverno em
Pyeongchang, na Coreia do Sul.
Antes de Tonya Harding, apenas outra
mulher havia dado o salto em uma competição internacional. Nascida em
Portland, Oregon, 12 de novembro de 1970, hoje com 47 anos, foi desde
sempre uma patinadora que quebrava as convenções estabelecidas, como por
exemplo, ao preferir para suas apresentações músicas populares ao invés das
clássicas preferencialmente escolhidas para as competições até então, hoje
esses padrões foram modificados e há uma escolha muito mais variada nas
apresentações.
Ao ser impedida de continuar competindo pela acusação
sobre a qual o filme se debruça, a intrigante Tonya se tornará boxeadora
ganhando algumas competições. De alguma forma poderemos pensar que,
Cinematerapia
enfim, assim ela encontrará um “lugar”(fisicamente e psiquicamente) para a
violência que sempre marcou suas relações com o mundo, enquanto vítima
ou agressora.
É pelo fato de se debruçar sobre o ciclo do comportamento violento sem
tomar partido ou mesmo introduzir conclusões, que esse filme se torna
muito interessante para quem estuda ou acompanha com curiosidade as
reflexões em psicologia/psicanálise.
“Que impressão as pessoas têm de mim? Que sou uma pessoa de verdade”.
Dessa forma a Tonya do filme começará sua narrativa. Contrapõe a
intolerância em relação a ela o fato de que, segundo ela, não como
justificativa, mas como constatação, de: “Num esporte onde juízes frígidos
querem que você seja essa versão ultrapassada do que uma mulher deveria
O Cinema e o Feminino
ser...”. Aos quatro anos ganha sua primeira competição, levada por sua mãe
que não sabia mais como lidar com sua insistente fala sobre patinação para a
treinadora Diane Rawling (interpretada por Julianne Nicholson). Aos quinze
anos quando então passava mais de quinze horas patinando, conhece no
rinque Jeff Gillooly com quem começará um namoro e depois se casará. Sua
escolaridade é abandonada em nome de seu treinamento, sua mãe uma
figura sempre presente que tem uma maneira muito peculiar de “incentivar”
Tonya, sua exigência é todo tempo uma crítica demolidora e apela muitas
vezes para crueldade e castigos físicos.
46
Vemos aí a atuação premiada de Allison Janey que dá um toque aversivo ao
mesmo tempo hilário à sua personagem, apresentando ao espectador uma
mãe de causar arrepios de horror, ao mesmo tempo que uma catártica risada.
Aparece nos supostos depoimentos com um pássaro ao seu ombro, que nos
faz pensar em sua relação com Tonya, vale dizer que bem humoradamente a
atriz levou ao vestido na cerimônia do Globo de Ouro uma réplica dele
tirando risadas da plateia.
Tonya é cobrada todo o tempo por uma delicadeza que não pôde aprender
via modelos, possuidora de um porte muito atlético, mal pode contar com
leveza corporal, o que dirá em comportamento se for espelhar-se nas figuras
femininas que a cercam.
Sendo tratada por colegas de escola como “lixo
branco” devido a sua pobreza e modo de vida. No mundo elitizado da
patinação artística, se vê todo o tempo confrontada, questionada e injustiçada
em muitas competições, falta-lhe a “classe” exigida. Sabemos que mesmo
depois das três décadas revolucionárias que antecederam os anos 90, a
questão
da
feminilidade
ainda
se
encontrava
bastante
exigida
em
determinados padrões. Ainda hoje podemos colocar discussões em torno
disso, do quanto é complexa a tentativa de tomar um novo lugar que se
liberte das exigências quanto ao que seria uma postura aceitável para um
menina/mulher.
Tonya em seu modo combativo fica mesmo distante dos padrões de
feminilidade ditados como ideais, e talvez essa combatividade sem limites
precisos, até por caminhar em um terreno desconhecido, tenha alimentado
qualquer forma de inclusão dela no episódio em relação a sua oponente. Ela
Cinematerapia
nega qualquer participação ou conhecimento prévio sobre as intenções de
seu marido e o amigo Shawn Eckhardt, muito bem apresentado pelo ator
Paul Walter Hauser. Este personagem Shawn é uma aula completa sobre
Transtorno Delirante, com toques hilários, sua assustadora leitura da
realidade dá um toque original à narrativa.
O que se acompanha então via essa produção é todo um desenrolar de um
ciclo de abuso, maus tratos e violência, onde veremos uma sobrevivente que
insiste na entrevista que seja dito no filme que ela é uma excelente mãe na
atualidade, contrapondo-se assim ao modelo de mãe perversa e sádica que
traz de sua relação enquanto da posição de filha.
Ao narrar o começo de sua relação com o primeiro marido, fala de sua
doçura inicial e que depois de alguns meses já começou a agredi-la, porém
O Cinema e o Feminino
prometia que não voltaria a acontecer, ela pensou que sua mãe a amava e
batia nela, então estava tudo bem. Fato é que sua escolha de relação repete
com agravantes os maus tratos maternos. Em uma discussão sobre como
patinou, Lavona atira-lhe uma faca que crava em seu ombro, isto
determinará sua decisão precipitada de casar-se com Jeff dando início a um
novo e ainda mais grave ciclo de abusos e maus tratos.
casamento sua mãe tão delicadamente lhe diz: “- Sua estúpida. Não se casa
com estúpidos”.
47
No dia de seu
Vivendo seu auge da fama após o “triple axel” a violência invejosa, tão
característica da misoginia e machismo, começa a ser apresentada por Jeff em
relação a ela. Isso a levará a deixa-lo após inúmeras agressões, mas passado
um tempo onde ele insistentemente a pede pra voltar ela cede, dizendo: “Eu
queria ser amada”. Tonya passa a ter um desempenho sofrível nas
competições muito influenciadas por uma vida desregrada que passa a ter, e
em 1992 nos Jogos de Inverno na França tenta o “triple axel” e se
desequilibra, ficando em quarto lugar.
Vive mais um ciclo de violência
doméstica até se divorciar de Jeff.
Em relação ao seu péssimo desempenho esportivo, como em tudo mais na
sua vida, sua atitude aprendida de estar sempre na defensiva, faz com que
jamais possa localizar sua responsabilidade nos fatos, apela sempre para a
frase: “Não foi minha culpa”.
Assumir responsabilidades pelos acontecimentos e experiências requer uma
vivência de alteridade onde o outro não seja uma constante ameaça, onde o
sentido de querer preservar o vínculo seja uma necessidade de laço, coisa que
foi impossibilitada como matriz afetiva para Tonya, esse desenvolvimento é
muito marcado pelos vínculos iniciais da criança, onde a relação com a
mãe(ou cuidadorx) deverá fornecer segurança e serenidade.
“Eu fui amada por um minuto...e então fui odiada. No fim, eu era o fim de
uma piada. Era como estar sofrendo abuso, tudo de novo. Só que dessa vez
era por vocês. Todos vocês. Todos são meus agressores também”.
Assim
Tonya descreve sua despedida do mundo da patinação, onde na verdade,
Cinematerapia
apesar do seu inquestionável talento, jamais foi aceita, tendo isso sendo dito a
ela por um dos juízes que lhe confidenciou que precisavam de uma imagem
apropriada para representar o país, o de uma “família feliz”, coisa que a
menina jamais teve acesso. Talvez, Tonya que queria ser amada e aceita, que
insiste enfrentando as adversidades, que fracassa, que se levanta e
luta(literalmente),
seja
afinal
o
exemplo
que
ela
mais
teria
a
dar
publicamente.
Hoje, mãe e casada, trabalhando com paisagismo e construindo decks, ainda
perseguida pela história da qual foi vítima e talvez, também, partícipe, nunca
se terá a verdade como ela mesmo diz ao final, mas o que se tem óbvio após o
fim do filme, é que houve muita luta e também muita beleza em meio a um
caos de uma vida de verdade, triste, mas que reproduz a história de tantas
O Cinema e o Feminino
meninas e meninos, que esperam uma chance e que vão brigar por ela.
48
Cap. 10
Orange is the New Black (2013)
Série norte americana, criada por Jenji Kohan,
produzida pela Tilted Productions e Lionsgate
Television. Apresentada pelo Netiflix, e conhecida nas
redes sociais pela sua sigla OITNB.
Dirigida até a sua segunda temporada por onze diretores, fazendo a
Cinematerapia
alternância como tem sido um modelo adotado por muitas séries atuais,
alcançando grande sucesso junto ao público brasileiro em suas duas
temporadas apresentadas até agora, a previsão para uma terceira é para o ano
de 2015. Até lá fãs aguardarão ansiosamente. Mas ela está ainda com a tarefa
de conquistar 44% dos assinantes do Netflix (pesquisa Centris) que não a
assistiram. Seu diferencial esta tanto na temática quando no formato, seja de
direção quanto de veiculação. A tendência é que mais seriados sejam
produzidos por empresas como o Netflix, já direcionado. As redes sociais hoje
são o melhor canal de divulgação dessa nova modalidade e talvez por isso
OITNB tenha ganhado tantos "fiéis seguidores".
O enredo traz algumas reflexões muito importantes: E se já em sua jovem
maturidade você viesse a ser cobrado legalmente por algum dos desvarios da
tenra juventude? Muitos de nós sabemos o quanto é correto afirmar que
O Cinema e o Feminino
somos sobreviventes das loucuras juvenis, que passeiam, muitas vezes, pelo
limite do correto, do moral e algumas vezes do próprio legal. E será isso que
nossa protagonista viverá, uma jovem mulher às vésperas de casar com Larry
Bloom (Jason Biggs),
será chamada a cumprir sentença por desvios
cometidos
de
no
início
sua
juventude,
quando
então
colaborou
transportando dinheiro para sua namorada Alex Vause (Laura Prepon) que
trabalhava com o tráfico internacional de entorpecentes. Nossa protagonista,
Piper Chapman (Taylor Schilling), é uma moça classe média, bem instruída,
branca, um tanto quanto ingênua, vê-se diante da complexa tarefa de
conviver por um pouco mais de um ano, tempo da sua pena, entre detentas
dos mais variados graus de periculosidade e loucura.
49
Dito dessa maneira será visto como algo muito grave, mas sob o olhar de
Piper Chapman, a questão ficará bastante relativizada, remetendo a cada um
de nós aos nossos próprios desvios juvenis, grande maioria pode lembrar-se
de pelo menos um comportamento que, caso fosse descoberto, poderia
acarretar grave punição com repercussões inimagináveis. Como em
determinado episódio a compreensiva e novata carcereira, Susan (Lauren
Lapkus), diz a Piper, que não a via como diferente dela, o que emocionou a
personagem dando-lhe algum alento.
A série coloca o espectador em contato com o mundo feminino visto pela
óptica do encarceramento, cada personagem apresenta uma variação
divertida, sofrida e peculiar. Em uma reclusão forçada e administrada em sua
grande maioria pelo masculino, cada uma irá revelar-se com alguma mais
forte qualidade e um mais complexo desvio. Ao chegar à prisão, Chapman
convive de perto com o que representará sua mais recente jornada, vê-se
envolvida, literalmente, por “Crazy Eyes” (Uzu Aduba), uma divertida e
transtornada personagem que imprime a chegada de Chapman uma
característica insólita e ao mesmo tempo assustadora. A história de Crazy
Eyes é contada por lembranças dela na segunda temporada, bonita e
emocionante, coloca pontos para reflexão muito importantes e que não
atendem necessariamente ao que costumamos pensar como ideal ao falar de
inclusão, de adoção e de enfrentamento social. Ao mesmo tempo que
perdemos o "medo" de crazy eyes, seus posicionamentos, especialmente
sobre relacionamentos e amor, nos fazem refletir sobre a chamada "loucura" e
quem realmente poderia ser assim chamados. Seus diálogos - muitas vezes
monólogos consigo ou com uma vassoura - nos mostram grandes
Cinematerapia
possibilidades de insights.
Aos poucos Piper irá conhecendo as relações de poder que atravessam cada
segmento, como ovelha desgarrada passeará acolhida e ao mesmo tempo
desprezada por cada grupo. Logo de início tem que enfrentar uma das
conseqüências disso, quando de dentro de sua ingenuidade, falará mal da
comida justamente para a detenta que é a chefe da cozinha, a autoritária e
hilária Red- Galina Reznikov (Kate Mulgrew), ficará sem receber alimentação
até que encontre uma maneira de se desculpar com ela pela gafe. Quando sai
do primeiro dormitório de acolhida, designada para o box que irá ocupar,
descobre que o compartilhará com a enigmática e temida Miss Claudette
(Michelle Hurst) sobre quem correm algumas histórias sobre seus crimes.
Receberá inicialmente uma certa proteção e acolhimento de seu Conselheiro,
O Cinema e o Feminino
o homofóbico Sam Healy (Michael Harney), uma figura meio paterna que
desperta uma ambivalência, em alguns momentos uma aversão e outras uma
certa compaixão. De alguma forma ele pontua o que sublinha todos os
personagens, tirando a temível Vee – Yvonne Vee Parker (Lorraine Toussaint),
que ainda assim dá algo de valor ao dizer para Crazy Eyes: “Você não é louca,
é única”, resgatando sua auto-estima, de que há em cada um deles, lados
simpáticos, bondosos e outros bastantes terríveis, passeiam todos entre a
extrema maldade e um toque de afeto e carinho. Humanos, demasiado
humanos.
50
O Sr Healy de certa forma a protegerá até a chegada de Alex Vause, a ex
namorada responsável por sua prisão. A princípio as duas se evitam, Piper a
odeia por tê-la colocado naquela situação, até que por conta de uma mentira
contada por seu enciumado noivo ela se convence que Alex não teve nada a
ver com sua prisão. Após ser colocada na solitária por conta de Healy supor
que as duas estão tendo um caso, ela sairá decidida a consolar-se com sua ex
parceira. A personagem a partir daí sofrerá significativas mudanças,
colocando o espectador em uma montanha russa de emoções, já que Piper
passeia entre o eticamente correto e o limite do crime. Veremos isso mais
nitidamente quando de seu embate com a “Caipira”, Tiffany "Pennsatucky"
Doggett (Taryn Manning), uma prisioneira que hiper religiosa que pensa falar
por deus, que finaliza a primeira temporada e aquece a tensão do início da
segunda, quando então o desfecho desse embate sublinha ainda mais a noção
de dois lados do mesmo objeto, duas leituras para o mesmo fato.
Uma montanha russa de sentimentos e expectativa em relação ao seriado.
Uma característica típica deste série. Esperar a proxima temporada, por
meses e meses, faz com que o interesse em relação as personagens aumente
cada vez mais. Por acompanhar a vida e o dia a dia das detentas o
telespectador se torna parte dessa história, fragmentada e apresentada
parciallmente. Ao mesmo tempo que elas não sabem dos passados de suas
colegas detentas, nós também não sabemos e somos apresentados em doses
homeopáticas. Algumas são surpresas muito boas, quando percebemos que
alguém esta ali porque defendeu os filhos, outras nem tanto, quando alguma
personagem mais doce e angelical apresenta seu passado de violência.
Cinematerapia
Assim, o espectador também é apresentado às famílias e vidas das
personagens em flashbacks, a de Piper Chapman sem dúvida é muito, como
diríamos, talvez, peculiar? Aparentemente uma simpática família tradicional,
mas ao vermos os fatos e conversas verificaremos que são muito
interessantes, mas nada mesmo um modelo. Uma mãe que vive a negar a
realidade interpretando os fatos como for melhor para ela, Piper irá lembrarse da vez quando criança que em vendo seu pai com uma amante, contou à
mãe (Deborah Rush) que a colocou de castigo sem sequer comentar o que a
menina havia visto. Seu pai(Bill Hoag) uma figura que também nega
evidências de qualquer irregularidade na vida dos filhos, ouve apenas o que
se encaixa no que quer ver e recomenda sempre que ela tome cuidado. O
irmão(Michael Chernus) com uma vida completamente alternativa parece ser
o mais lúcido, por mais que isso possa parecer contraditório frente à vida que
leva em um trailer no meio da mata com sua original parceira, casam-se
O Cinema e o Feminino
aproveitando o velório da avó(Mary Looram), quando então Piper recebeu
uma licença especial para sair, o que custou-lhe a inveja e hostilidade das
companheiras de prisão.
Na prisão as mulheres proibidas do acesso a itens como batom, delineador,
sombras etc podem contar com o contrabando de Red inicialmente pela
cozinha e depois pela estufa de jardinagem, o que lhe confere poder frente a
todas, e com os cuidados de Sophie (Laverne Cox), a transsexual que mantém
um salão dentro da prisão e que apresenta a questão da transformação de
uma forma muito rica ao lado dos personagens de sua família(ex esposa e
filho).
51
Os pagamentos são os mais diversos itens, e pitorescamente Piper ao chegar
e tendo sofrido a represália de Red quanto ao comentário sobre a comida,
negociou um produto com Sophie pagando com uma mecha de seu cabelo
loiro que foi parar na cabeça de Tasha (Danielle Brooks) para fazer um creme
anti dores e presentear Red como pedido de desculpas.
Dois pontos importantes, entre inúmeros outros, podemos discutir vendo a
vida que muitas ali levam, parecendo em muitos momentos um internato
colegial,
aspectos
sobre
o
lugar
afetivo
e
de
segurança
que
a
institucionalização pode ocupar e que acaba sendo todo o mundo que a
maioria ali conhece, como acontece com Tasha que, ao conseguir sua
liberdade condicional, se vê inapta a viver no mundo e acaba retornando à
prisão. Outro aspecto que pode interessar deter o olhar é a respeito do tênue
limite, nem sempre identificado, entre uma patologia e o crime, como
veremos muito bem representada na stalker Lorna Morello(Yael Stone) que é
presa por conta de uma erotomania, que mantém como pensamento
delirante dentro da prisão, falando sempre do suposto casamento que
realizaria ao sair de lá, ficamos sabendo no decorrer dos episódios que foi
justamente o suposto noivo, na verdade o homem que foi obsessivamente
perseguido, que a colocou entre as grades, embora também tenha praticado
em larga escala o conhecido como “golpe dos Correios”, comprando
mercadorias e suspendendo pagamento com a alegação de não recebimento.
Vaidosa e coquete é uma personagem que cativa.
Não podemos deixar de mencionar o impacto que a presença de Laverne
Cox causou no seriado. Não tão conhecida do público internacional, essa atriz
Cinematerapia
chama a atenção pelo seu tamanho e características masculinas.
A atriz
ganhou notoriedade recentemente quando fora indicada para Emmy. Além
de atrizela também é advogada a ativista nos direitos dos transex. Na série
quem faz sua personagem quando ainda era homem é seuirmão gêmeo.
Interessante ver os momentos, na segunda temporada, onde é ela quem
ensina sobre anatomia feminina para as detentas, pois afirma que durante
muitos anos estudou para desenhar seu próprio órgão genital.
É um vasto caleidoscópio de aspectos humanos que vemos nas inúmeras
personagens dessa série que toca através delas em variados aspectos do que
compõe o universo humano. Sempre com um toque de humor, na medida
certa, rimos da fragilidade que atravessa a todos nós. No ambiente da prisão
também se ama, e veremos inúmeras relações se formarem com todas as
ondulações que acontecem nos vínculos. Há inclusive o enamoramento de
O Cinema e o Feminino
um carcereiro, John (MattMcGorry), por uma detenta, Daya (Dascha
Polanco), com repercussões transversais que abalarão a estrutura de poder da
instituição.
A dupla que disputa o comando é muito interessante também, o chefe Joe
Caputo (Nick Sandow), nas horas vagas guitarrista em uma banda de rock e a
corrupta assessora do diretor do presídio, Natalie Figueroa(Alysia Reiner),
esposa de um político candidato em campanha. Ao final da segunda
temporada o bonachão Caputo passará a assumir a direção, fazendo de tudo
para “mostrar serviço”, o que implicou em fazer “vista grossa” a alguns
interessantes acontecimentos, aguardaremos então as repercussões de tudo
isso na a terceira temporada que já está sendo filmada.
52
São muitos os personagens, e todos, sem exceção, contêm aspectos que
chamam a atenção, impossível esgotar essa produção em um texto, só
mesmo se permitindo ao prazer que se tem ao acompanhar os episódios. E
talvez por eles, os personagens, é que a série toma para nós um lugar que
merece um olhar, remete a constatação de que no mapa humano o
maniqueísmo não se faz algo possível, com raríssimas exceções, obviamente.
Essa exceção, na série, ficará como dissemos antes, para a Vee que terá seu
desfecho em uma cena catártica para o público indignado com seu poder de
manipulação e o mal mais descarado.
Talvez seja essa a principal característica que chama o espectador, por trás das
histórias contadas, a curiosidade de acompanhar dramas cotidianos, impasses
humanos banais, a linha de desenvolvimento emocional dos personagens. A
protagonista apresenta a todos de forma pontual, passeia pela dinâmica do
que é se relacionar com cada uma, ao final da segunda temporada
pitorescamente com Brook Soso(Kimiko Glenn), uma ativista presa que
chega junto com Chapman quando retorna do julgamento ao qual foi
chamada como testemunha e que deixa o gancho, supomos, para a trama da
terceira temporada.
A bissexualidade de Piper Chapman provavelmente deixará a muitos
confusos, porque dentro do espaço do preconceito essa orientação
desarruma apaziguantes rótulos, confortáveis posições com as quais, maioria
prefere pensar o mundo do afeto. Piper mantém uma relação de
apaixonamento muito intensa com Alex, mesmo que esta esteja sempre por
trás de suas desventuras. Essa relação marcará, inclusive seu rompimento
Cinematerapia
com Larry Bloom que encontrará o amor com a melhor amiga e sócia de
Piper, a divertida Polly Harper(Maria Dizzia).
A questão da orientação sexual nessa série apresenta-nos a diversa paleta de
nuances e matizes que atravessa o desejo humano, o quanto o afeto se
direciona por questões que não podemos determinar exatamente onde
nascem. Faz ver, como a canção, que é fato que “qualquer maneira de amor
valerá” e que às vezes, ele será o caminho mais rápido para a dor e os
tropeços, como cegos que andam à beira de um precipício, mas que, também
poderá ser, aquilo que abre o caminho para mudanças positivamente
significativas.
Piper
não
amadureceu
muito
neste
tempo
que
a
acompanhamos, permanece girando em torno da dinâmica que a conduziu
ao caos que vive no momento abordado. Resta acompanhar para vermos de
O Cinema e o Feminino
quantas repetições ela precisará para abrir uma nova perspectiva em sua vida.
53
Cap. 11
Malévola (Maleficent, 2014)
O amor, a confiança e a traição roubou-lhe as asas.
Assim começaremos a conhecer a nova versão de Malévola que por conta de
seu apaixonamento desde menina pelo mais adiante rei Stefan, se vê sem suas
asas retiradas dela no sono da confiança e pela ambição e sede de poder dele.
Da fada cheia de alegria e amor surge uma sombria figura, sem asas pra voar e
que navega pela via do ressentimento. A suposta maldade de Malévola é assim
contextualizada no roteiro elaborado por Linda Woolverton. Uma versão
Cinematerapia
muito produzida e bastante aguardanda pelos internautas, com um intenso
marketing de apelo virtual. A cada "teaser" ou novo trailer as redes sociais
"clamavam" por Angelina Jolie e sua personificação da maldade sedutora,
ganhando até uma marca de batons sensuais como apelo de mercado.
Essa nova versão lança a questão: existiria o amor verdadeiro? Malévola é uma
personagem que essa nova produção resgata, apresentada nas produções mais
antigas como uma bruxa muito bela e estilosa, mas muito má, sendo a própria
personificação do mal em sua face da inveja e rancor, nessa nova obra trará
elementos
amorosos
e
hostis,
em
uma
complexa
apresentação
dos
sentimentos que nos movem, a todos, equilibrando-nos pelo fio da ética e da
capacidade de formarmos laços comuns. A capacidade de se ver comovido,
afetado, por outro ser.
O Cinema e o Feminino
A novo conto que nos é apresentado não traz em si nenhuma conclusão clara,
abrindo frentes múltiplas de conclusão. Sua riqueza de imagens encanta tanto
o público infantil quanto o adulto, não bastasse ver a enigmática e sempre
muito encantadora Angelina Jolie levando a história como se todos os outros
personagens fossem fundo e ela a figura, que salta aos olhos hipnotizando em
todas as cenas, desde as mais elaboradas até as que ela solta apenas um
suspiro: “ops”. Ela captura o espectador com a força da paixão que em
entrevistas ela confessou nutrir pela personagem, fascínio que não nasceu
nessa produção, mas que a acompanhava desde criança. Ao falar sobre isso foi
como se libertasse as inúmeras admiradoras da fada bruxa que se
encontravam antes silenciadas, por várias gerações de cinéfilas. Como se toda
menina já se perguntasse o que mesmo seria uma bruxa, como era antes
54
representada. E se deixasse curiosa pelo enigma que Malévola sempre trouxe
em si.
A forma como a princesa Aurora (Elle Fanning) vai conquistando o
machucado coração da fada bruxa madrinha, despertando nela o mais
intenso sentimento de proteção próprio à maternidade é cativante de ser
acompanhado, vemos isto pela forma, desde o início já carinhosa, que
apelidou a pequerrucha: praguinha. O corvo (Sam Riley), seu fiel amigo, que
nasce de sua ira contra os homens, ele brinca com a feiúra da forma humana
e com os sentimentos estranhos que compõem as relações entre os
semelhantes e dessemelhantes. Não há como não se emocionar com a forma
como o amor de uma criança consegue penetrar até mesmo no coração mais
"malvado" das fábulas infantis. De perto, nem mesmo esse "mal" é tão
malvado assim.
Dois reinos separados pelo ódio, duas formas opostas de pensar e ocupar o
mundo. O humano com suas relações de privilégio e grupos sociais e o verde
e encantado dos seres místicos que vivem em harmonia ocultando tesouros
cobiçados pelo reino do pai de Aurora, agora rei (Sharlto Copley), antes o
amigável menino Stefan, mas que cresce cheio de desejo de poder. O roteiro
apresenta uma rede de personagens que abrem mergulhos em crenças que
organizamos desde crianças, ou desde tempos ancestrais e que os contos
infantis fazem como a nos lembrar das muitas passagens que a ontogênese
sintetiza e repete atualizando todo o desenvolvimento da humanidade.
E talvez seja isso que Malévola possa nos trazer, atualizar velhas questões que
ganham no mundo contemporâneo uma tentativa de transformação. Nunca
antes, o feminino em sua ambiguidade e sua ambivalência esteve em foco
como podemos pensar que hoje se apresenta. É mais do que pensar em
Cinematerapia
gênero, mas sim pensar na possibilidade de uma harmonia com as forças
pulsionais não negadas ou banidas como dano daquilo que entendemos
como pilares da civilização, o feminino e o desamparo negado.
Neste
aspecto, Malévola funciona como uma fotografia, mais do que como um
dispositivo de provocação.
Ela lê um tempo não esquecido na memória, mas um tempo que se
representa com forças construtivas e destrutivas no aqui e agora. Não está
abandonada em um passado místico ou lendário, mas se remodela e se
reorganiza com muito ímpeto no presente.
Pensando por esse prisma queremos trazer aqui para uma provocação outra
bela produção espanhola ganhadora de muitos prêmios, a “Blancanieves”
(2012) de Pablo Berger. Nas duas obras, postas lado a lado, o que seria a vilã se
O Cinema e o Feminino
torna como opostos, sendo que em Malévola ela protagoniza algo
ambivalente, e nesse outro, a vilã atende a todos os critérios que costumamos
ver, belíssima e muito má, a madrasta mais cruel, mas há nos dois filmes algo
que os aproxima, talvez pela leitura do feminino na atualidade e a ironia e
quebra de um romantismo que hoje é mais um ladrão de asas da mulher do
que um arrebatamento libertador como outrora possa ter sido. Sugerimos
que se visite essa outra obra belíssima, filmada em preto e branco, com uma
fotografia admirável e um final surpreendente.
55
Mas por que lembrarmo-nos dela ao acompanhar Malévola? Talvez porque
pensamos o cinema como, não somente, mas também, um grande revelador
das questões de cada época. E hoje, mais do que nunca, a pergunta que Freud
lançou sobre o “continente negro”, a mulher, precisa ser respondida, mas
muito menos restrita a uma leitura de mulher gênero e mais no sentido de
entender o feminino, os impulsos que partem dessa corrente, libertar dos
ferros o que gera dor, violência e agressão, levando a um isolamento cada vez
mais evidente entre os sujeitos.
O rei que alcança sua majestade ao trair a confiança da mulher amada
representa com força de figura uma misoginia que atravessa tempos
históricos e que hoje ainda lança garras de ferro em índices alarmantes, em
estatísticas aterradoras, em algo que remete ainda a uma barbárie não
totalmente ultrapassada apesar de todos os laços sociais que construímos na
modernidade. Afinal, todos queremos amar e sermos amados, mas o rei abre
mão em nome do desejo de poder, em busca daquilo que costumamos
pensar como masculino, a dominação, e acaba infeliz, isolado, incapaz de
usufruir do que conquistou e todo tempo vivendo sob o forte sentimento de
ameaça e perseguição. Um pai que não é capaz de lançar amor e sim temor e
afastamento. Que caia de vez um laço paterno que não constrói mais nada de
edificante para a humanidade, Elisabeth Roudinesco questiona isso de forma
profunda em algumas de suas leituras sobre o declínio da lei paterna e as
novas configurações familiares.
A Disney já havia adaptado antes a obra na qual se baseia o filme, “A Bela
Adormecida”, na década de 50, podemos pensar nas profundas modificações
Cinematerapia
que de lá pra cá o mundo sofreu. Com toda certeza a mulher deste início do
século XXI está em muitos aspectos bem distanciada da que vivia naquela
época. A história em sua fonte original poderá ser localizada nos meados dos
anos 1600, o que já nos dá a mostra da força que contém, tocando, supomos,
em elementos que precisam ser trazidos à luz até os dias atuais. Existe nela,
como dissemos, muito do antigo, do recalcado, mas há ainda uma outra força
poderosa que pede passagem, pede palavra. Robert Stromberg captura essa
força com sua direção, e hipnotiza, propositalmente, o espectador de todas as
faixas etárias. Existe uma obra musical escrita pelo compositor Tchaikovsky,
também monumental, e inspirada nesta história.
É no mínimo libertador, pensar que as meninas agora, ainda crianças,
poderão identificar-se com a Malévola sem culpas, sem desconfiar de algo
errado em sua natureza. Recentemente na série inspirada na vida e obra dos
O Cinema e o Feminino
pesquisadores em sexualidade Masters&Johnson, vimos um diálogo(temp.2,
56
ep.11) que tomaremos emprestado para animar essa questão. A mulher de
Master falou sobre como ela no papel feminino que sempre lhe foi esperado,
a fez ir perdendo a noção de quem ela era de verdade.
A boa moça, cordata, servil e obediente, descobre em sua vida adulta que não
sabe do que gosta, quem é, o que sente e outras tantas coisas básicas a
qualquer sujeito. Faz essa revelação antes de entregar-se ao amante que ela
diz que pela primeira vez teria sido uma pessoa que a desaprovou,
quebrando assim, de vez, esse medo nela, há entre eles a diferença de cor que
naquela época era algo ainda mais marcante. Ao falar disso tocamos a
proximidade com o que chamamos de minorias, muito maior do que muitas
vezes se quer acreditar. Série que vale também muito acompanhar e que de
certa maneira poderá também remeter a uma leitura que hoje insiste em ser
feita, um novo olhar para os lugares antes tão bem demarcados pelo gênero
do sujeito e outros indicadores de segregação e menos valia.
Ser despertada do sono eterno apenas por “o amor mais verdadeiro”, essa é a
maldição do desencontro que lançará Malévola sobre a princesa Aurora e que
prepara o redentor final da película. Dentro desta perspectiva, poderemos
pensar no mergulho mais individual que esse filme traz ao tocar na questão
materna. Na ambivalência que atravessa os variados vetores que compõem o
vínculo mais elementar de qualquer sujeito sobre a face da Terra, dos dois
lados das transferências e contratransferências deste laço emocional que
trazem, como toda relação humana, um tanto de cada força, amor e ódio,
acolhimento e banimento. Talvez seja tudo isso matriz, também, de tudo
aquilo que conhecemos como culpa, vergonha, auto acusação. Nos laços mais
saudáveis somos brindados com a força dessa sentença, o amor mais
verdadeiro, mais incondicional, mas mesmo ele, atravessado, vez ou outra,
por hostilidades e rejeição, conteúdo que traz uma das maiores dificuldades
de acessar à consciência, porque corre subterrâneo, por trás dos muros tão
Cinematerapia
bem erguidos que separam nossos reinos internos, cada um com seu senhor,
embora, como já dissera Freud, um deles por mais que se pense assim, não é
senhor em sua própria casa. Toda mãe ama muito e carrega em si muito de
culpa, todo filho ama e necessita e carrega em si um tanto de desprezo(tão
necessário na fase de aquisição de autonomia).
A mãe rainha, mãe biológica, sublinha a questão que muitas vezes está
presente na questão do filho adotado, do abandono da mãe que o concebeu
como último recurso do amor. Em uma terapia bem conduzida não será
possível não trabalhar esse conceito em algum momento da libertação do
paciente, incluindo uma transferência nada fácil de suportar, exige maestria.
E Malévola ao conduzir o príncipe até a sala onde Aurora está mergulhada
em seu sono eterno até que o amor a acorde, faz o espectador tocar com
O Cinema e o Feminino
emoção nestes aspectos, uma passagem de catarse em lágrimas.
Confessa a vilã a Aurora: “Você roubou a parte que restou do meu coração”.
Em uma história, como ela narra ao final, sem vilões e sem heróis, como toda
a história demasiadamente humana. Finalizaremos assim o texto com uma
historinha de criança: era uma vez uma menina preparando sua festa de
aniversário de cinco anos tendo como tema “princesas”, ela, muito séria, pede
à sua mãe: “Mas eu quero ir vestida de bruxa, de Malévola”. Isto aconteceu
muito antes do filme existir.
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Cap. 12
Prenda-me (Arrêtez-moi, 2012)
Filme dirigido por Jean-Paul Lilienfeld e inspirado
no livro LesLois de laGravité, de Jean Teulé, a obra
Prenda-me (Arrêtez-moi), de 2012, apresenta um
modelo diferente de filmagem, com memórias
traumáticas em primeira pessoa.
A personagem nos presenteia com a possibilidade de vivenciar as mesmas
violências físicas e emocionais de sua história. Todo o roteiro deste filme,
Cinematerapia
desenvolvido, também, pelo diretor, se sustentará, basicamente, em duas
personagens, nossa protagonista, que fica sem nome até o fim, a culpada
(Sophie Marceau) e a tenente Pontoise (Miou-Miou). Uma produção diferente,
que visita temas duros e difíceis, com um toque muito original. Entre a crítica
ao sistema prisional, a noção de delito e culpa, colocará em destaque uma
incisão em tudo que fabrica a violência contra a mulher. Sem deixar de tocar
em aspectos espinhosos, essa produção o faz de maneira que se torna possível
olhar para a complexidade do abordado, sem o distanciamento protetor, que
tudo isso costuma causar, como uma armadura, a quem se vê às voltas com o
tema.
Toda sua argumentação já traz, em si mesma, um toque de ironia, uma
mulher que deseja confessar o assassinato de seu marido Jimmy (Marc Barbé),
ocorrido há quase dez anos, e que foi dado, à época pela polícia, como
O Cinema e o Feminino
suicídio. Ela necessita confessar naquela noite, antes que o crime prescreva, ao
completar o que na França seria o prazo para abertura de processo. Dirige-se a
uma delegacia, na intenção de fazer isso, e encontra a cansada tenente
Pontoise. A partir disso, começará um verdadeiro duelo entre as duas, a
culpada querendo ser presa e a tenente tentando obrigar-lhe a desistir dessa
ideia e retornar à sua vida. Esse embate é acompanhado de rápidos flashbacks,
onde conheceremos, um pouco, dos acontecimentos em torno da vida dessa
mulher, casada com um homem abusivo e violento, mãe de um rapaz que já
se encaminha para a continuidade do ciclo de violência, como sabemos ser
usual neste verdadeiro ciclo.
58
Recentemente, a ONU divulgou dados alarmantes de uma vergonhosa média
mundial, uma em cada sete mulheres já sofreu ou sofrerá algum tipo de
violência. No Brasil, a cada uma hora, uma mulher será morta em um
feminicídio “naturalizado”. O dia 25 de novembro, no Brasil, é um dia
escolhido para dizer “Não à violência contra a mulher”, uma mensagem, que
deveria
ser
reproduzida
diariamente,
dados
os
números
alarmantes
divulgados pela mídia. Levando em conta que, pelos dados da ONU, 70% das
mulheres sofrem ou já sofreram violência física ou sexual, ou ainda sofrerão,
caso a situação não mude. Muitos ainda entendem que isso é uma questão
“familiar” e não de domínio público. Este mesmo pensamento poderemos
ver em nossa personagem, que tem muitas dificuldades em descrever seu
marido abusador. Ainda carrega parte de uma culpa, tão comum e presente
nesses casos.
Diante desses dados, o filme toma uma importância, em termos de debate, de
forma marcante, até mesmo, pela forma que resolve assumir para lançar luz
ao tema, luz que, no filme, vai sendo aumentada aos poucos. Em
determinado momento, despencará do teto uma luminária habitada por
baratas, uma boa metáfora para um tema, que tem sido negligenciado há
tempos, ganhando contorno de algo a ser enfrentado muito recentemente.
Enquanto o fato cotidiano continua silencioso, a ceifar vidas, seja,
efetivamente, assim como, ceifando o belo da vida, de todos que acabam
aprisionados pela grande teia, que representa tudo isso, como veremos com o
filho da culpada, Cédric (Vadim Goudsmits/Arthur Buyssens), referência
importante no fechamento desta instigante produção.
Cinematerapia
O filme, de forma muito sutil, aborda todo o silenciar, que construímos em
torno da questão, do quanto, em qualquer parte do mundo, naturalizamos
uma culpabilização da vítima, como veremos na única cena que é
apresentada, relatando alguma denúncia, que ela teria tentado fazer. Ao ser
ouvida por uma delegada, veremos, de forma pujante, o fato de que
misoginia e machismo precisam ser vistos como algo que atravessa todos os
sujeitos e instituições, não importando gênero ou função precípua. Também
é apresentado o resultado de todo esse silêncio, com a cumplicidade da
vítima, a culpada relata sobre seu apelido, Gaston Lagaffe, inspirado em um
personagem trapalhão popular na França, por ter desenvolvido a técnica de
se bater, acidentalmente, em portas e quinas de mesas, para justificar seus
aparentes machucados, da vergonha de que seus colegas de trabalho
descobrissem o que acontecia em sua vida íntima.
O Cinema e o Feminino
De certa forma, o filme deixará claro o quanto todos, sem exceção, somos
cúmplices nos frios dados noticiados diariamente. Um estudo realizado pela
OMS e Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres revelou que, em
média, 35% dos assassinatos de mulheres são cometidos por parceiro íntimo.
No Brasil, o balanço, fechado em 2013, pela Central de Atendimento à
Mulher – Disque 180, relatou que 81% dos casos de agressão foram cometidos
por parceiros ou ex-parceiros. A agressão mais completa, que veremos no
filme, acontecerá dentro de um elevador, cercada de portas de vizinhos por
todos os lados.
59
Logo no início do filme, é possível perceber reações ambíguas da tenente
Pontoise. Como se estivesse, caso estivesse na posição do analista,
literalmente, atuando pelas suas contratransferências ou, ainda mais, via seus
“pontos cegos”. Vemos um atendimento, totalmente, mecânico e sem
humanização alguma, que, aos poucos, ganha contorno pessoal e atuante, até
que começa a se colocar e contar, também, sua própria história. A princípio,
pode parecer, apenas, preguiça, ou má vontade de trabalhar, mas, com o
passar do filme, percebemos o quanto de energia ela esta gastando, tentando
evitar o sofrimento maior da mulher, ao ser presa e, ao mesmo tempo,
revisitando sua própria infância. Um duelo forte e constante, com grandes
cenas.
Para as cenas de violência, o diretor instalou, na atriz Sophie Marceau, um
capacete, contendo um dispositivo para a filmagem digital e, com isso, quis
trazer ao espectador, não somente em seu enfoque subjetivo, a visão da
vítima. A cena, que sustenta toda a argumentação do filme, também se dá
nesta perspectiva, tornando quem assiste como parte da cena, algoz e vítima.
O grito de basta vem em forma de “você manchou meu uniforme, e, agora, o
que os meus colegas vão pensar?”, a borra denuncia todo um ciclo e leva ao
limite do que ela foi capaz de suportar por anos. Segundo dados relatados
pela OMS, apenas 5% de homens são assassinados por suas parceiras. Não
traz, entretanto, o estudo do número correlacionado aos parceiros agressores.
A mão treme e ela, em desespero, empurra o marido, que cai para a morte.
Os diálogos, entre as duas mulheres, trazem aspectos interessantes, fazem
pensar sobre delitos, culpa, punição, impunidade e cumplicidade, remetem
Cinematerapia
ao que, em determinado momento, a tenente falará sobre o sistema legal, “É
um arranjo, entre o que é legal e o possível”. O fato é que sabemos que, em
relação à violência contra a mulher, muitos mecanismos institucionais ainda
precisam de implantação, desenvolvimento e ajustamento. Ao declarar essa
modalidade de agressão, como dados dos Direitos Humanos, a ONU deu um
fundamental
passo
para
problematizar
comportamentos
até
agora
assimilados pela sociedade.
Pausa momentânea para se pensar no modelo de rede de atenção psicossocial
mostrado no filme, no qual ela vai para um clínica de saúde mental pública,
onde pode dormir e ter acesso a terapias ocupacionais ou psicoterápicas.
Mesmo sem qualquer diagnóstico, é dito que “ela está apenas triste”. É a
SAÚDE mental como foco e não a DOENÇA mental. Este modelo se
assemelha, “vagamente”, ao que seria proposto pela Reforma Psiquiátrica
O Cinema e o Feminino
Brasileira, na modalidade CAPS 3. “Vagamente” porque sabemos que temos
60
um longo, longo, longo e muito longo caminho para que essa reforma
aconteça em todo o Brasil.
As redes sociais e os coletivos feministas têm sido uma voz importante na
atualidade, para colaborar na necessária inserção de um estranhamento,
quanto a episódios que, antes, passariam sem muitos comentários. Para
exemplificar, temos o fato recente, aqui no Brasil, de uma camiseta, que seria
vendida por uma grande rede de lojas. Na estampa, uma forca, com uma
mulher pendurada, escrito abaixo, namorada. Após manifestações virtuais, a
loja retirou a mercadoria e lançou um pedido de desculpas. O fato demonstra
como o combate a esse tipo de violência tão naturalizada é algo que faz parte
do cotidiano, de problematizar aspectos, que são vistos como, apenas, uma
ironia ou brincadeira, sem muita importância.
Outro fato foi a TV, que produziu uma reportagem de uma mulher vestida
com jeans e camiseta, passeando pelas ruas de uma grande cidade, sendo
assediada, incontáveis vezes, coisa que faz parte do cotidiano de muitas
mulheres, talvez maioria, e que contém uma carga de agressão, que passa
como algo usual, como se não merecesse uma reflexão e processo de
mudança. Ao ser divulgado, o vídeo provocou debate e reflexão, mesmo para
aqueles que querem justificar o atual modo das relações.
Ao tomar para si seu corpo, sua sexualidade e sua escolha de amar, o mundo
feminino se viu frente a um masculino não educado a respeitar o outro
gênero, acostumado, por séculos, a submeter e não compartilhar. Talvez, as
novas formas de opressão incluam uma pretensa sedução (vide 50 Tons de
Cinza), alimentando a fantasia de que, hoje, a mulher tem mais liberdade, o
que podemos pensar se seria mesmo assim ou se desenvolvemos, apenas,
formas mais sutis de opressão. A mulher é, antes de qualquer outra
Cinematerapia
modalidade, presa de sua própria ilusão e armadilha, como as cenas de início
de namoro da culpada com o marido demonstram. A dança, a ilusão da
escolha, o alerta negado, dado a ela pela mãe dele, talvez vítima, também, de
sua violência, demonstram, de forma envolvente, toda uma teia a que
estamos aprisionados, seus fios invisíveis alimentam uma perpétua função.
A mulher ainda empreende grandes esforços, parte deles em relação a si
mesma, com o institucional internalizado, para elevar-se de uma posição, a
qual tem sido destinada ao longo da história humana, falocêntrica desde seus
primórdios. Uma cultura que traz, em si, a necessidade intrínseca de
dominação, que vai das guerras entre nações à guerra particular entre os
gêneros, organizando um modo de funcionar, onde a figura patriarcal toma o
lugar da lei e da ordem, onde o feminino é sempre colocado como uma
figura secundária, polo básico e estático do modelo opressivo. Neste aspecto,
O Cinema e o Feminino
a atriz Emma Watson apontou uma reflexão necessária, quando discursando
61
na ONU, para o programa He For She e defendendo o ponto de vista de que
o combate ao machismo e à misoginia é uma questão, também, para os
homens, que disso, também, sairiam beneficiados. Disse ela, destacamos essa
parte: “É tempo de todos nós percebermos o sexo como um espectro, não
como dois conjuntos opostos de ideais”. E lançou a pergunta: “Se não agora,
quando?”.
Entenderemos todo o esforço de nossa protagonista como uma necessidade
de sair da posição de vítima, como ela própria diz para o filho, o de trazer
para si um empoderamento, uma destituição do poder exercido pelo seu
marido, por meio da violência. Ela entendia que, só assim, conseguiria deter
o ciclo inevitável. Assistimos, ao longo da película, em algumas de suas
recordações, toda a agressão, que inclui um jogo psíquico, que modela o
lugar do oprimido, um jogo, antes de tudo, emocional. Quando perguntada
se havia sido estuprada, não sabia responder a essa questão, embora tenha
consciência que não queria a relação sexual, que era forçada. Não pode evitar
se ver aprisionada, pelo fato de que o corpo respondia ao sexual.
Temos a consciência de que o jogo de opressão, que o masculino empreende
contra o feminino, é, antes de qualquer outra coisa, de cunho sexual. Como
se a sexualidade feminina, na verdade, fosse a grande ameaça, aquilo que
força o homem ao jogo de tentar submetê-la via agressão ou a sedução
ilusória. Talvez, possamos, então, supor, em uma tese bastante hipotética, que
esse jogo nasça, justamente, do recalque da posição feminina (de desamparo),
a que todo homem, culturalmente, é chamado a fazer, desde muito cedo. Seu
repúdio ao interno se externa na aversão, que desenvolve em relação a
qualquer fagulha de libertação do feminino. Grandes parceiros, na
atualidade, são os que levam para a cama e, consequentemente, para suas
vidas, o entendimento que o jogo amoroso é um jogo sem vencedor ou
vencido, é o prazer da aliança em nome de Eros, é um embate de tensões, de
cada um que se agiganta no outro.
A trilha sonora, com um pesado heavy metal, que remete ao filho, dá um
Cinematerapia
toque a mais no recado. O filme inicia com ela presa, dizendo ao filho: “Você
precisava saber. Saber quem eu sou e quem eu não sou”. Encerra com a
sentença: “Agora, você não poderá me ignorar”. A nossa protagonista,
realmente, abre as portas de sua vida e, infelizmente, da vida de muitas
mulheres mundo afora, escancara algo, do qual precisamos falar com mais
vigor, restituindo o lugar do agressor, como o lugar a ser investido de
vergonha e repúdio, retirando a mulher do lugar de vítima, o lugar da
mácula.
A tenente Pontoise ganhará, ao final do filme, um entendimento quanto ao
seu bizarro comportamento, levando o espectador a pensar, ainda mais
aprofundadamente, sobre o comum das cenas de violência doméstica. As
cenas de criança, que aparecem nos flashbacks, finalmente, são esclarecidas a
quem pertencem, a Pontoise, que se dopa com substâncias, que consegue via
O Cinema e o Feminino
caminhos escusos, com um líquido que guarda em uma garrafinha, com a
imagem da Virgem Maria, que deverá ficar rosa, anunciando um dia de sol.
Entenderemos que muitas das lembranças de criança, que vimos, eram, na
verdade, da tenente. O que só acontecerá no redentor final, quando, pelos
estranhos caminhos escolhidos pela protagonista, a vítima sai deste lugar,
tomando, para si, mesmo que encarcerada, seu destino, suas escolhas, suas
possibilidades de interromper o laço com o ciclo de agressão. A imagem,
finalmente, se colore de rosa, depositada no túmulo da mãe de Pontoise.
Quando a confidente parte, enfim, presa, a tenente diz ao doce policial
Joliveau (Yann Ebonge), que funcionou como mediador do embate, ao longo
do filme, enquanto se despede de nossa personagem que termina sem nome,
62
ou ainda, pensando em seu alcance com muitos nomes em várias línguas em
torno do planeta: “Não se vê isso todos os dias”
Cap. 13
Albert Noobs (2011)
“Vida sem decência é insuportável”(frase que marca a
narrativa de Albert Noobs sobre sua verdadeira
história)
Dirigido por Rodrigo Garcia, o filme Albert Nobbs baseado num conto do
romancista irlandês George Moore, traz no papel principal a sempre brilhante
Cinematerapia
atriz Glenn Close, que indicada para o Oscar 2012, perdeu para a consagrada
Meryl Streep, e talvez para um filme que seja apenas supostamente mais
histórico (Dama de Ferro), e com certeza bem menos pertinente às questões
femininas que a personagem ficcional de Albert Nobbs que Glenn Close já
havia interpretado no teatro e lutou para levá-lo às telas, inclusive
colaborando na produção e roteiro. A história que nos é apresentada narra
com sua trajetória a sutileza das dificuldades enfrentadas pelas mulheres em
busca de sua autonomia. Em tempos difíceis, a questão feminina como sendo
um obstáculo a mais a ser superado em busca da dignidade e cidadania. Luta
essa que apenas em meados do século XX ganhará um contorno mais
evidenciado em direção a um relativo amadurecimento e evolução quanto a
direitos.
A personagem de Albert Nobbs nos é apresentado por um trabalho digno da
O Cinema e o Feminino
estatueta tão cobiçada, Glenn Close está magnífica. Ela constrói Albert com
uma sutileza impecável que comove o espectador e faz-nos próximos, ainda
mais se pensarmos no público feminino que mesmo que não se dê conta
disso, entenderá as agruras atravessadas por Nobbs. Nota à parte para a
atuação de seu parceiro de reflexão a personagem perfeita de Mr Hubert Page
(Janet McTeer). As duas atrizes foram também indicadas para os prêmios
Globos de Ouro e o Screen Actors Guild Award. O filme também foi indicado
para o Oscar de Melhor Maquilagem, perdendo novamente para o longa
Dama de Ferro.
63
Em foco muito mais que pensar identidade de gênero ou orientação sexual,
essa obra remete à própria construção que determinará os papéis sociais,
esses que trazem junto a si toda a visibilidade com a qual cada sujeito se lança
ao mundo em busca de amor e trabalho. Ao longo do filme cada um dos
principais personagens contará sua história, de maneira breve e bem cuidada.
A narrativa de cada um deles nos alcançará com a força da emoção, a história
dos anônimos sociais tocada com uma visibilidade gigantesca. Fragmentos
que contam não apenas de sua época, mas de subjetividades que formam o
grande tecido social com suas demandas. Maioria dessas personagens
poderia ser transportada para a atualidade e ainda nos confidenciariam
importantes reflexões. A desigualdade social que se apresenta com a mão
mais pesada no feminino ainda não é uma marca cultural que possa ser
pensada como ultrapassada. Pelo planeta afora, a história da mulher em
busca de sua liberdade, igualdade e fraternidade ainda traz delicadas e tensas
questões, e sobre as quais o falocentrismo ainda hoje lança contra sua
artilharia de maneira sutil e cotidiana.
Albert Nobbs resiste e vive, trilha um caminho onde projeta sonhos sobre as
duras pedras do passado, apartada da construção do afeto materno, segue
femininamente investida de esperança. De certa forma reflete a luta da
mulher durante séculos para ocupar um lugar com direitos, o que no filme
fica representado pelo sonho maior de Albert, sua loja, sua cobiçada
propriedade, a felicidade está condicionada a essa aquisição, sua noção de ser
livre atravessa a construção de uma possibilidade de garantia de patrimônio,
o olhar de admiração do outro que construiria uma legitimidade e um existir.
Cinematerapia
Poderemos abordar isso pelo seu simbolismo, e pensarmos que durante a
longa história da humanidade que conhecemos o patriarcado tem dado a
tônica, retirando da mulher até bem menos de um século, seus direitos,
como voto, patrimônio, escolha de parceiro, construção da vida profissional,
o direito ao próprio corpo, entre outros.
Albert não deseja isso e conta sua trajetória, confidencia a Mr Page que foi
submetida inclusive sexualmente, e que a partir disso, construiu sua
identidade Albert, para proteger-se da humilhação via o masculino que ergue
para si. Não é capaz sequer de lembrar quem foi antes, não tem outro nome
que não o que assume no masculino, o que constrói uma dignidade mínima
como “garçon”. Embora trabalhador subserviente e explorado, mesmo assim,
isso ainda o dignifica mais que ser mulher em um mundo de domínio dos
O Cinema e o Feminino
homens.
O homem que se torna e que então buscará sua parceria em um
apaixonamento sutil por uma mulher, sem corpo, que fala de sua necessidade
de marcar um lugar no coletivo, não é a mulher que o interessa de fato,
interessa sim toda construção que viria com o papel de casado, um certo
reconhecimento que o faz sonhar. Conhecer Mr Page e sua doce Cathleen
marcará uma nova etapa em sua vida, um novo olhar e desejar para si o
reconhecimento de sua assinatura.
64
Mr Page entrará na vida de Albert Nobbs de maneira inesperada, contratado
para pintar o hotel onde Albert trabalha e reside, terá que dormir com ele no
mesmo quarto por uma noite, o que o deixa a ele, Albert, em pânico. Com
isso acabará tendo seu segredo descoberto e passará a perseguir Mr Page com
pequenos agrados e tentando obter deste a promessa de seu silêncio em
relação a sua empregadora.
É interessante notar como a atriz imprime a sua personagem nesta sequência
do filme, uma feminilidade via a submissão e desamparo, tocante intensidade
que deixa demonstrada a precisão de sua construção. Cena deliciosamente
sutil a revelação de Mr Page, gargalhada inevitável para a delicadeza do
trabalho que Glenn Close nos apresenta particularmente nesta cena. Este
encontro traça o caminho escolhido por essa película, que abordará a tese do
quanto o feminino busca em suas lutas a possibilidade da autonomia, do
poder que a escolha do trabalho e meios de subsistência representa para o
sujeito psíquico. O toque de Cathleen nos dá inclusive a dimensão do quanto
algumas mulheres na atualidade, equivocadas por pressões antagônicas na
construção de suas identidades, derrapam ao contrapor as conquistas
femininas à possibilidade de escolher o tradicional papel ao qual antes
estavam confinadas. A questão atual, seu ganho, reside justamente na
possibilidade que ainda poucas, por questões outras, terão para escolherem
seu lugar e desempenho de papéis, inclusive mantendo apenas o lugar
conservador caso assim o deseje.
Entra em cena a jovem Helen Dawes (Mia Wasikowska) que se constituirá
como um fio que amarra toda a narrativa. Ela intensifica e sublinha a questão
Cinematerapia
da mulher, a força que lhe é amputada e que remeterá, ao final, à própria
história de Albert com sua desconhecida mãe. A mulher que busca em sua
sexualidade a vivência de um tomar posse de seu corpo e que lhe é roubada
frente a demanda masculina, trazendo na fecundidade o fator de ascensão
ou queda frente a suas possibilidades de inserção de classe, sempre amarrada
ao pedido determinante do par. O jovem Joe Mackins (Aaron Johnson) chega
ao hotel por acaso e é contratado para consertar a velha caldeira, o que
consegue por um golpe de sorte, sendo então contratado e passando a
dormir no quarto do sótão. Joe e Helen darão início a um envolvimento
amoroso que determinará o desfecho da história de Albert Nobbs. Ao contar
sua vida, Joe nos apresenta a questões que nos emocionam até mesmo por
sua possibilidade de existir no corte de tempo atual, e em qualquer camada
social.
O Cinema e o Feminino
Nos remete à reflexão do quanto repetimos ao nos lançarmos desesperados
para a negativa, como o tal destino demoníaco que Freud nos apresentou, a
mão da “compulsão à repetição” que nos toma pelos cantos mais inesperados,
por tudo aquilo que jurávamos ser, seu oposto. Do quanto a questão paterna
marca o encontro dos gêneros, no que isso tem de melhor ou pior. É
reducionista pensar nos modelos de identificação paterna como importantes
apenas para os homens, mesmo na questão que os identifica, fora do
investimento que restará à menina fazer, essa marca determinará a forma
como esse futuro homem buscará e investirá em suas parcerias, a base do
encontro ou do desencontro que marcará, subterraneamente, o traçado do
afeto em sua junção de imagem ou fragmentação, no olhar que fará da
mulher escolhida: a santa ou a prostituta.
65
Joe sonha em fugir para a América, sua meta é sempre uma corrida para
longe, e será o que fará em relação a Helen, grávida, a quem Albert desejará
proteger e incluir em seu sonho de legitimar sua identidade frente ao
mundo. Ao final ficará a questão se Mr Page trouxe para si os cuidados com o
novo Albert, nascido do encontro entre Helen e Joe, para que o pequeno não
seja lançado à mesma história daquele a quem seu nome homenageia. Helen
sabe do destino que está a ela e seu filho reservado, a partir de um lugar
imposto por sua condição de gênero, maternidade e sexo(Langer, M.).
As Helens de hoje seguem no Brasil fazendo uma nova história, levadas ao
mesmo destino de criarem, sozinhas, seus filhos, realidade estatística que
chama nossa atenção e formula a pergunta: por onde caminha a paternidade?
Se antes o poder do pai omitia o afeto via o medo e a distância proximal,
alimentada por uma alienação parental exercida em plena mesa de jantar,
hoje uma parcela considerável ausenta-se até mesmo enquanto presença
física e financeira. Se já não consta da certidão de nascimento o estigma do
“bastardo”, segue na vida este filho apartado do colo e proteção paterna.
Seguem, também, bravas mulheres, lutando cotidianamente por um
equilíbrio familiar, trazendo ao debate a própria presença autônoma em um
mundo cada vez mais falante, e que ao mesmo tempo vem se tornando mais
esvaziado, assim como o silêncio de Albert Nobbs, que diz poucas palavras,
presença quase invisível. Sujeito que diante do seu segredo precisará, para
sua sobrevivência, guardar à chaves aquilo que explica sua contenção. Ao
final, como a música de Chico Buarque, e sem “deus lhe pague”, agonizará,
sozinho, rebatizado onde nunca existiu, mais uma Mary sem sobrenome,
Cinematerapia
sem eira nem beira, salvando com seu trabalho, a hospedagem dos patrões.
Freud não conseguiu de todo desvendar seus mecanismos, lançando a
pergunta do que “afinal deseja essa mulher”. As leituras que temos ainda hoje
sobre universo da feminilidade ainda não romperam os paradigmas do
masculino como o caminho do ideal. De certa forma, teremos que pensar, se
toda mulher ao caminhar por sua autonomia não o fará um pouco como
Albert Nobbs e Mr Hubert Page. Mas fato é que desmentindo a crença do
masculino, a mulher existe, mesmo que por algum instante tenha que se
O Cinema e o Feminino
disfarçar em vestes de homem.
66
Cap. 14
Abraços Partidos (Los abrazos
rotos, 2009)
E estréia mais um filme do consagrado diretor Pedro
Almodóvar trazendo em seu elenco principal sua atriz
mais querida, segundo relatam fontes da imprensa
internacional, Penélope Cruz(Lena).
Veremos também
o ator Lluís Homar (Mateo Blanco / Harry Caine), que
ganha pela segunda vez, papel relevante num filme desse diretor, José Luis
Cinematerapia
Gómez(empresário
Ernesto),
Blanca
Portillo(Judit
García),
Tamar
Novas(Diego) e Rubén Ochandiano(Ray X).
Almodóvar contou à imprensa em entrevista(a uma revista de cinema italiana)
que o roteiro desse filme foi elaborado em sua quase totalidade durante uma
crise de enxaqueca e fotofobia, conta-nos o diretor em seu tom brincalhão
que descobriu que a dor não impede o processo criativo, podemos atestar isso
vendo essa intrigante trama que nos apresenta em “Los Abrazos Rotos”.
Sentimos no decorrer do filme o traçado bem característico desse diretor que
vai enredando os personagens como quem constrói um belo traçado de tricot,
vamos entendendo suas ligações e vínculos conforme a história vai sendo
contada, um entrelaçado de amores, dores, obsessões, culpa, dominação,
abnegação, lutos, mágoas, resiliência e esperança. Mais uma vez, nos veremos
O Cinema e o Feminino
às voltas com os densos e muito humanos personagens construídos por
Almodóvar, repletos de passionalidade, tanto quando amam como quando
odeiam, tanto em sua dedicação como em sua capacidade dominação.
Podemos de duas formas diferentes reconhecer a dominação presente de
maneiras totalmente opostas, uma pela força e domínio, representada no
empresário Ernesto e outra por uma total dedicação e abnegação representada
na personagem Judit. Ares de resiliência e esperança nos chegam na voz da
juventude do personagem Diego. O tom da paixão fica representado pelos
personagens de Penélope Cruz e Lluís Homar.
67
As sempre presente cores fortes e escuras que Almodóvar imprime em suas
películas transporta-nos e convida para a imersão em um estado próximo ao
devaneio ou mesmo de um sonho, como no sono vamos aprofundando as
sensações conforme o desenrolar do filme,
até por isso, sugerimos salas
confortáveis para ver esse filme, telas grandes que ajudarão nesse
desligamento do que está em torno, possibilitando dessa maneira entrar na
verdadeira construção, que faz lembrar muito a onírica, que esse filme acaba
por representar, inclusive em sua sucessão dos eventos em termos de
temporalidade.
A sensação que imprime é a de um motor que vai aquecendo até estar em sua
máxima potência, impossível despregar os olhos da tela a partir de um
determinado momento do filme, o diretor não nos dá tempo sequer de
pensarmos em nosso respirar, mas cuida dele com o carinho de sempre,
fazendo-nos rir de vez em quando e dessa forma ampliando nossa respiração
que segue no compasso dos personagens e suas densas revelações.
O universo feminino mais uma vez muito presente no toque desse diretor,
começa
apresentando
uma personagem sem importância maior na
construção do filme representada por Kira Miró que, por isso mesmo,
sublinhará o aspecto que Almodóvar dará a ela, o sexo casual sem maiores
conseqüências, personagem que não nos deixa na lembrança seu nome,
aspecto esse divertidamente presente no filme em falas de Harry Cayne, mas
o par abre esse filme representando de certa maneira uma mudança no
comportamento feminino que mereceria um longo debate, alguns dirão
conquista(que também é, sem dúvida) e outros diriam que seria a mulher
Cinematerapia
aceitando toda uma questão posta pelo machismo e misoginia.
Como sempre, o diretor não nos dará respostas, mas planta com muita
habilidade importantes perguntas. Abre-se a porta do apartamento de Harry
Cayne e vemos entrar aquela que, de certa maneira, nos contará o filme, a
personagem Judit, ali na cena a própria imagem da devoção feminina, ao
mesmo tempo que representa a ausência de sexualidade ou mesmo de
sensualidade. Almodóvar nos joga frente a uma divisão relatada por Freud
em seu texto que faz parte das “Contribuições à Psicologia do Amor”, sexo e
afeto, mulher sexual e mulher mãe(cuidadora) e toda a dificuldade que
dentro da nossa cultura temos para unir esses aspectos em nossos objetos de
investimento(podemos supor que se dá tanto no masculino, quanto no
feminino).
O Cinema e o Feminino
Então, logo adiante, seremos apresentados a essa mulher esplendorosa que é
68
Penélope Cruz, que fica ainda mais radiante quando capturada pelas
apaixonadas câmeras de Almodóvar, sua personagem Lena vem resgatar para
as mulheres toda a possibilidade de viver e representar de forma inteira todo
o caleidoscópio do ser feminino, mas também nos levará com intensidade, a
pensar em tudo que ainda pagará a mulher ao escolher fazer isso.
A cena da prova das perucas nos transporta com uma beleza deslumbrante
para as várias mulheres que cada uma pode ser, nesse universo feminino que
teóricos ainda afirmam como o tal “continente negro” que Freud se referiu.
Um encantamento vemos nessa fase do filme, o diretor nos aproximará de
maneira irresistível a toda a paixão que o olhar de Matteo(Lluís Homar) lança
para Lena, paixão que é a liga de Eros nessa trama. Nos deixa a pergunta da
quantidade que separa paixão da obsessão, no filme apresentada através do
personagem do empresário Ernesto. Há uma passagem um tanto divertida
no filme onde Harry Cayne elabora junto a Diego um roteiro que deveria ser
divertido e cômico, remete muito a um filme que recentemente foi a febre de
muitos, o discutido “Crepúsculo”, com sua continuação o “Lua Nova”.
Almodóvar nos faz refletir no quanto estaremos nos remetendo ao amor que
perde a noção de quantidade e que traz sublinhado os traços da destruição do
objeto, do risco, como escrevemos em nosso recente artigo sobre esse outro
filme.
O filme “Abraços Partidos” nos lança ao universo tão humano que nos vemos
inseridos em nosso cotidiano, onde se há um tom novelístico, há também
uma impossibilidade de apreender de forma totalmente linear o que seja o
vilão e o mocinho, nos vemos entendendo o que cada um ali nos traz de bem
e mal, bom e mau, amor ou destruição, como é tudo que marca os vínculos
que constroem a vida de cada um de nós. Reduzir qualquer um dos
personagens que nos são apresentados ao bem ou ao mal não nos dará a
completa dimensão do que Almodóvar nos apresenta com eles, o drama
humano nas duas tarefas que Freud descreveu como nossas maiores fontes
Cinematerapia
de investimento(e sofrimento): amor e trabalho.
“Imagens são a base do trabalho dele” — nos diz o assistente sobre o cineasta
Mateo (Lluís Homar), que é nesse tempo do filme o cego Harry Caine,
homem personagem que Matteo assumirá desde o acidente. Aos poucos e de
forma onde o tempo é traçado mais pela importância dos fatos dentro do
olhar de cada personagem, vamos conhecendo a sucessão da história de cada
um e que é atravessada por cada uma dos outros, esses fragmentos se juntam
todos na história de Lena e Matteo, sob o olhar atento do filho de Ernesto,
Ray(Rubén Ochandiano), que os segue a pedido do pai com uma câmera
filmando cada detalhe da construção do filme onde Lena é a protagonista e
Matteo o diretor, com a desculpa de um make-off, a necessidade de Ray
quanto a uma aceitação paterna também traçará o fio que conduz essa trama
e seu desfecho. Ray o filho do empresário que cresce distante do pai e
O Cinema e o Feminino
alimentado em mágoas por sua mãe, uma mulher ressentida pelo abandono
sofrido, e que em sua postura, nos leva a pensar em algo que hoje se nomeia
de “alienação parental”, onde via acusações se torna praticamente inviável a
relação filho e pai. Ray vai ao encontro dessa possibilidade de resgate
atendendo ao louco pedido de seu pai, que faz dele o olhar perseguidor em
relação a Lena, de certa forma Ray atende a sua curiosidade em relação a
mulher que roubou o coração paterno, seguindo-a obsessivamente como
modelo a ser imitado e atacado ao mesmo tempo.
69
Dentro dessa tentativa de aproximação com o pai, vai-se evidenciando para
nós a forte ambivalência que atravessa o olhar de Ray para Ernesto, tanto que
o desfecho do filme nos será dado pelas lentes de Ray em sua filmagem
obsessiva, gravando assim, os momentos finais de Lena e Matteo. Não deixará
de ser uma bela vingança contra seu pai, um Édipo que fura não os seus
próprios olhos, mas os do pai traidor. Que seu olhar queime no amor de
Lena por Matteo, será a maldição de Ernesto.
As cenas onde Ernesto contrata uma leitora de lábios para ver o que falam
Lena e Matteo nos provoca um riso angustiado, pensamos que remete um
pouco aos momentos onde cada sujeito um dia já se viu tomado pelo
monstro do ciúme fora do controle, esse cômico da posse do objeto que
quase todo sujeito se depara um dia e escolhe o que fazer com isso, adoecer
como Ernesto ou voltar seus conteúdos de luto para uma elaboração e
vivência de alteridade. Relações que podem ser tocadas mais por Eros que
pela destruição de Thanatos. Porém, no filme, Lena e Ernesto nos
apresentarão à realidade tão conhecida por muitas mulheres em todo
planeta, a violência, a posse do outro como um objeto total.
Sabemos que o fim de todo organismo vivo é a morte, mesmo que Eros
impere, e o filme nos colocará frente a isso, Judit nos contará tudo que vai
construir o fio lógico dessa trama, aquilo que vemos nos caminhos analíticos
como o “isso” que precisa ser dito, ser representado, ser nomeado de alguma
maneira. E dentro dessa perspectiva descobrimos um pai e um filho, unidos
antes de tudo pelos laços da afinidade, pelas identificações construídas pela
Cinematerapia
proximidade mais importante que os laços sanguíneos.
A forma leve que Almodóvar imprime a essa descoberta é bela e comovente,
o resgate das imagens tão importantes de um filme retratado pelas câmeras
de Matteo, construído pela paixão antes de qualquer outra coisa, desfigurada
essa filmagem pelas mãos de Ernesto que edita o filme dando-lhe uma linha
grotesca com a intenção de trazer Lena e Matteo de volta.
Ao final do filme, recuperadas as filmagens originais, filho e pai finalmente
revelados um para o outro por Judit, resgatam e completam a obra,
recuperam imagens, falas, risos e segredos. A vida nesse filme brinda em seu
encerramento, “viver é bom...nas curvas da estrada...”. A dor também move a
potência da criação e devolve vida à vida, sangue nas veias, imagens aos olhos
e corações em abraços inteiros.(sugerimos aqui a foto dos retratos rasgados
O Cinema e o Feminino
de cena do filme)
Almodóvar diz em entrevista concedida em Cannes: “Acredito plenamente
que o cinema pode tornar a vida mais perfeita”. Através do olhar de Matteo,
Almodóvar traz dentro do filme a sua noção sobre o fazer cinematográfico e
em sua coletiva em Cannes também irá deixar claro que:
“A frase mais importante do filme é: há que se terminar o filme, ainda que às
cegas. Acho isso mesmo. Primeiro porque é preciso terminar custe ao que
custar. E também porque a integridade do filme pertence ao autor. Os filmes
precisam ser respeitados tais quais concebidos.”
70
E assim os filmes prontos ganham o mundo, o olhar do espectador, nossas
emoções, nos modificando um pouco após àquelas horas mágicas que nos
transportam ao caleidoscópio que cada um contém dentro de si em suas
emoções. Mestre Almodóvar nos dá isso como poucos outros, e com certeza
esse novo filme é mais uma grande oportunidade para fazermos isso, de
pensarmos o mundo pelo olhar do cinema que atravessa nossa singular
O Cinema e o Feminino
Cinematerapia
percepção.
71
Cap. 15
3096 Dias (3096 Tage, 2012)
Filme realizado por Sherry Hormann, mesma
diretora de“Flor do Deserto”, baseado na chocante
história da austríaca Natascha Kampusch.
Obra que traz um relato de “3096 Dias” onde não resta nada de lúdico no
desejo de dominação. Forte e de grande impacto, merece atenção. Atores com
Cinematerapia
desempenho excelente, Antonia Campbell-Hughes e Thure Lindhardt,
conduzem a difícil narrativa. A história real de uma menina raptada aos dez
anos na Áustria e mantida em cárcere privado até seus 18 anos quando
consegue escapar. Ao longo de todos esses anos sofreu toda a espécie de
agressões físicas e psicológicas, sendo mais constante a privação de alimentos.
Começamos a acompanhar a história de Natascha(Amélia Pidgeon e Antonia
Campbel-Hughes) um pouco antes do seu sequestro, entendemos um pouco
de sua tumultuada relação com seus pais recentemente separados. Fica clara a
dinâmica que aponta do quando um casal deposita suas mágoas em uma
disputa pela predileção da criança, e ao mesmo tempo, cada um deles, investe
de desprezo o afeto que a menina sente em relação ao outro. Pouco antes de
sair
para
a
escola,
uma
das
primeiras
vezes
que
fará
o
trajeto
desacompanhada, acontece uma briga com sua mãe justamente por conta
O Cinema e o Feminino
desse ataque que esta faz a seu pai. A menina recebe uma bofetada e sai
correndo para um destino que será a trama do filme. Toda a história que nos é
relatada foi baseada no livro que a própria Natascha Kampusch escreveu para,
como diz ela em entrevista, tentar elaborar e seguir adiante sem vitimizar-se.
A garotinha caminha distraída pela rua e do nada, de dentro de uma
caminhonete, salta um homem e a coloca dentro dela a força. O veículo chega
à uma casa, aparentemente de classe média, e em seguida começaremos a
acompanhar o aprisionamento da menina em uma saleta que depois
entenderemos estar localizada abaixo da casa, e vemos aos poucos o
sequestrador ir colocando itens para uso da menina, primeiro um colchão
onde ela deve dormir.
72
Vemos ser desenhada uma relação onde a submissão é o principal ponto
desejado, a meta a ser alcançada por Wolfgang Priklopil(Thure Lindhardt)
que repete colérico ao longo dos anos: “-Obedeça, obedeça, obedeça!”. A
princesa que ele deseja precisa ser moldada por suas próprias necessidades,
segundo suas próprias expectativas, dois em um, apenas a circular em torno
de um só eixo, perverso.
O filme muito bem produzido, faz com que toda a violência seja assistida de
forma sutil, mas nem por isso menos carregada e repleta de impacto
emocional, torna-se sufocante e produz no espectador um estranhamento e
uma certa asfixia.
Natasha começará ainda muito pequena a depender de seu raptor Wolfang
para todas as suas necessidades, até mesmo a de contato humano, vínculo,
que como é sabido se trata de algo que é muito caro para todos os sujeitos.
Aqui poderemos lembrar de uma das melhores sacadas do cinema
holywoodyano quando no filme “Náufrago” colocou em cena o Sr Wilson.
Para quem não se lembra, tratava-se de uma bola de vôlei que o personagem
interpretado por Tom Hanks, náufrago isolado em uma ilha, pintou com seu
sangue um rosto para que tivesse com “quem” falar. No caso aqui do nosso
filme veremos Natasha tentar isso com suas roupas colocadas como se fossem
outras crianças e no pedido que acaba por fazer de conversar com Wolfang. A
relação de dependência que era a meta dele se estabelece porque dentro das
necessidades básicas de um sujeito podemos incluir a alteridade, a relação
necessária com um outro que nos organiza. Jean Paul Sartre já nos apontava a
delicada questão em sua conhecida peça “Entre Quatro Paredes”, esse olhar
Cinematerapia
do outro como algo que atravessa o entendimento de cada um sobre si,
dando conta que se os outros são o inferno, são também aquilo que constitui
o psiquismo. A fala humana nasce da necessidade de comunicação que visa o
contato, o investimento do afeto para fora do próprio sujeito, indo buscar em
outro ser as identificações e investimentos que o formam desde sempre.
A criança nasce e lança o olhar para sua mãe, isso o acalma, busca contato,
mama, está dado o ser do vínculo. O isolamento não é uma alternativa viável
a não ser em graves quadros de sofrimento. Aqui poderemos também ilustrar
com o belo filme “Black”, que faz parte do que conhecemos como Bollywood
e que de uma forma muito própria nos remete ao esforço de entrar em
contato, e do quanto isso pode ser também organizador. J. D. Nasio já nos
dizia em seu livro “A Dor de Amar” do quanto a retirada do amor leva o
indivíduo
ao
caos
pulsional
organizado
por
esse
objeto
amoroso.
O Cinema e o Feminino
Entendemos então a partir dessas considerações o complexo caminho que
veremos nossa protagonista atravessar, e, incrédulos, acompanharemos o
grau de submissão que ela desenvolve e das poucas tentativas de fuga que
empreende. Onde há ódio reside também um afeto amoroso, por longos oito
anos seu raptor foi toda sua referência, objeto ameaçador e ao mesmo tempo
salvador, como vemos no controle de alimentos que ele opera em relação a
ela, assistimos a cena de Natascha criança(Amélia Pidgeon) pedindo comida
ao seu raptor, sequência dolorosamente inesquecível, aplausos para a
pequena atriz!
73
Interessante sabermos pela diretora do filme, que Natasha Kampusch apenas
se
recusa
a
falar
sobre
os
acontecimentos
diretamente
sexuais,
e
observarmos, acompanhando a obra, que com uma precisão sutil e
admirável, Sherry Hormann abordará uma das delicadas questões que
envolve o estupro e a vítima, no caso de Natasha acrescida por toda a
dinâmica que descrevemos aqui como resultado dos longos anos de cativeiro
e dependência. Assistiremos ao ato sexual já ela mocinha, aos quatorze anos,
não sabemos ao certo se ali começa essa modalidade de agressão à
subjetividade dela ou se antes haveria acontecido algo não relatado. Mais do
que ver em sua vítima a princesa, fica claro na sequência que parece que
Wolfang precisa, via a esse jogo, identificar-se com o príncipe que necessita se
pensar como sendo ele. Um traço narcisista que mais do que seduzir o outro
quer sentir-se um sedutor admirado, não importando o que tenha que
dilacerar neste outro em nome de seu intento, leva seu “don juanismo” ao
máximo das conseqüências.
Wolfang é apresentado ao espectador aos poucos, da mesma maneira do
como se faz conhecer à Natasha, ficamos sabendo que é um ex funcionário
demitido da Siemens, possui uma inteligência que parece grande e ainda
funcional apesar da distorção de leitura que já apresenta em relação ao
mundo externo e a realidade, o que provavelmente ocasionou sua demissão.
Como é comum em funcionamentos psíquicos dessa natureza, traz traços de
manipulação e parasitismo bastante significativos. Vive na casa cedida a ele
por sua família após a morte de sua avó, veremos como sua dominadora mãe
comparece regularmente para organizá-la para ele, inclusive no tocante a
alimentação. Um sujeito que no momento do ato do sequestro não apresenta
Cinematerapia
mais nenhuma interação com o jogo social, mantendo em relação à
sociedade uma leitura de aversão e desprezo. Parece apresentar uma
proximidade com a psicose o que para muitos teóricos seria compreendido
no sentido de abordar o manejo perverso como tentativa de conter a psicose.
“O objeto é tomado nessa dinâmica perversa como descaracterizado de qualquer
característica, vontade ou existência de um desejo ou subjetividade. É como se o
perverso olhasse sempre para um espelho, percebe uma presença e empresta a ela todas
as suas características e peculiaridades, serve apenas a um fim, sua gratificação, e
dentro dessa estará sempre inclusa a questão do controle sobre o objeto”, como já
pudemos falar em estudo publicado sobre esses quadros.
Uma das características marcantes também reside no fato de que o perverso
O Cinema e o Feminino
quer da vítima que ela quebre o que ele não é capaz de construir, seus
parâmetros de generosidade e de ética. Ao manipular Natasha pela comida, o
que Wolfang pretende é justamente reduzi-la à posição de romper com seu
sistema moral em troca da sua necessidade premente. Veremos mais para o
final da película uma tentativa de resposta a pergunta que até hoje persegue a
real Natascha Kampusch, a de “por quê eu?”. Na cena da livraria, onde ela
comia alguma guloseima escondida de sua mãe, e ele a viu, ela faz sinal de
silêncio e cumplicidade e assim, ao que parece, determinará seu destino, pela
atenção que por segundos, dirigiu ao estranho rapaz, pelo sorriso generoso
que lançou em sua direção. Sabemos que falar de alteridade em perversão
não se constitui em uma possibilidade conceitualmente sustentável, o que o
jogo perverso visa é anular o outro enquanto desejo.
74
Natascha torna-se vítima e cúmplice, em uma dinâmica que se sustenta em
suas características anteriores, da complicada relação que tinha com seus
pais, onde, de alguma maneira, talvez também fosse vítima de um jogo de
manipulação e opressão, característicos em pais que não enxergam o filho
enquanto sujeito transformando-o em objeto de agressão ao parceiro, seja
pela disputa pela posse, seja pelo empurrar a criança como obrigação do
outro.
No filme vemos sua mãe(Trine Dyrholm) durante os anos de
desaparecimento da filha, em um estado de melancolia e auto acusação,
entrando em contato com um afeto que antes ficava meio que oculto pela
certeza do cotidiano e disputas com o ex marido, pai da menina(Roeland
Wiesnekker).
Nossa protagonista atravessará anos de maus tratos, atenção mórbida,
permanente ameaça à sua integridade física e emocional, a privação de
alimentos, assédio sexual, isolamento, ao mesmo tempo que, merecerá
atenção, algum cuidado, um “torto” laço amoroso, tudo isso acontecendo em
um importante período de formação e solidificação dos laços com o mundo,
onde a perda da infância instaura um momento marcado por busca de
autonomia e confusão emocional, inclusive com a entrada de alterações
físicas e hormonais. Ao vermos Natascha em recentes entrevistas
provavelmente seremos assaltados pela pergunta do que será que realmente
se passa em seu íntimo, o que será que tudo isso resultou em suas relações
com o mundo.
Ela nos conta que ainda sai muito pouco, não pensa em namorar e tenta levar
uma vida como de outra pessoa qualquer, estudando e saindo. Escreveu o
Cinematerapia
livro sobre sua vivência na clara tentativa de elaborar e encontrar saídas.
Talvez o filme venha nesta mesma direção, um recado que mesmo diante dos
piores acontecimentos, teremos capacidade de sobreviver, abrir portões e
encontrar a vida, lidar com ela com “resiliência”, sendo capaz de superar
mesmo a mais desfragmentadora experiência, acreditar que exista no sujeito
um lugar onde nada é capaz de alcançá-lo, seu refúgio para ultrapassar as
angústias e golpes no caminho sem identificar-se com o agressor, sem perder
O Cinema e o Feminino
a ternura, a generosidade e a capacidade de acreditar na vida.
75
Cap. 16
What Happened, Miss Simone?
Como sabemos Sigmund Freud não era assim um fã
absoluto da música em sua capacidade maior de
exaltar os sentidos, coisa que equiparava de certa
maneira a busca pelo tal “sentimento oceânico”
explorado pelas religiões.
Mas, se tivesse ouvido essa diva que este documentário visita, talvez pudesse
Cinematerapia
abrir uma exceção. Com este chiste iniciamos essa aventura que será falar
desse documentário que impacta de maneira irreversível a quem o assiste.
Fica o aviso!
“Mas o que aconteceu, Sra. Simone”, pergunta de Maya Angelou.
Assim abre esse documentário produzido pela Netflix e dirigido por Liz
Garbus , que falará a respeito da vida e carreira da cantora Nina Simone que,
com seu piano mágico, suas canções intensas e sua voz poderosa, encantou o
mundo. Com seu ativismo em prol dos direitos civis para a população negra,
ganhou destaque enquanto figura de peso em seu tempo. Despertou
admiração e aversão, conviveu com os dois movimentos desde sempre, e se
pensarmos sua vida a partir das informações desse filme, entenderemos que
tudo que acidentou sua vida está inscrito em certo tipo daquele fio
que
O Cinema e o Feminino
conhecemos como repetição. A busca da dor conhecida que se dá
paradoxalmente ao mesmo tempo que com a procura de uma saída do
labirinto que é o sofrimento, e que se inscrevem, via de regra, irmanadas nos
quadros clínicos que acometem o sujeito.
Em determinado ponto do doc, respondendo a uma entrevista, ela lança a
pergunta: “Como ser artista e não refletir a época?”. Com sua trajetória de vida
responde de forma bem complexa a essa questão. “Às vezes soo como um
cascalho, outras vezes, como café com creme”.
O filme visitará nossa
personagem com uma delicadeza que não permitirá julgamentos frente a
fatos e comportamentos controversos que Liz Garbus vai buscar via o relato
da filha, Lisa Simone Kelly, das anotações da própria Nina Simone,
76
depoimentos do ex marido, de amigos e bela utilização de imagens da época
narrada.
Abre a cena, Nina Simone já no auge de seu reconhecimento, após uma
ausência dos palcos de festivais, entra imponentemente(Montreux/1976),
inunda o ambiente com sua presença, a máscara indecifrável que traz como
rosto, o imobilismo aguardando até que todo barulho cesse para que possa
doar sua música, cria com sua mise-en-scène uma atmosfera alquímica.
Alguém grita da plateia: “Ei, estamos prontos pra você”, arrancando daquele
rosto, até então impenetrável, um sorriso quase que de menina. E assim
começamos a penetrar no mundo de sombras e luz dessa mulher.
“Ei, garota, sente-se”. É preciso fazer o silêncio interno que ela costuma pedir
ao público na sala de espetáculo, para começar a tocar, é preciso saber que
nada será fácil, que não conseguiremos manter um pensamento linear e nem
formar análises superficiais sobre o mundo que passaremos a conhecer um
pouco. Para alguns, a loucura que destruiu sua carreira, para outros, muitos,
diga-se, uma complexa resposta às questões de sua existência e que renderam
ao mundo canções que para sempre atingirão nossa alma, bem como queria
ela, como uma sacudida: “Quero abalar tanto as pessoas, que quando saírem
da boate em que me apresentei, estejam em pedaços”. Ah e como Nina
Simone ainda faz isso, basta ouvi-la cantar, acalma bebês ou sacode emoções
inescrutáveis.
Eunice Kathleen Waymon, a sexta de oito filhos em uma família negra da
Carolina do Norte e que passou a se chamar Nina Simone para cantar em
casas noturnas sem que sua mãe, uma pregadora, e sua família, muito
religiosa, ficassem sabendo. Niña de pequena como a chamava um namorado
Cinematerapia
e Simone em homenagem a atriz Simone Signoret.
Nina Simone passa a cantar para ganhar sua subsistência e de sua família e
após ser rejeitada pelo Instituto Curtis de Música, na Filadélfia. Ferida em sua
autoestima, somente muito tempo depois entenderá que foi rejeitada pela
cor de sua pele, já que era uma exímia pianista a essa altura e já havia
estudado por um ano na Escola Julliard em Nova Iorque mantendo-se com
recursos que havia poupado tocando nos anos de estudo em concertos para
piano clássico.
Ela canta: “Quem dera você soubesse, o que significa ser eu...”, estamos ainda
no início do documentário, cenas de arquivo e a bela canção, assim talvez a
diretora convide ao espectador para aventurar-se no mundo de Nina Simone,
o que, segundo sua filha, ela não era somente no palco, mas sim todo o
tempo e que acabou por se constituir em problema para a convivência com
O Cinema e o Feminino
todos. De temperamento explosivo, dada a altos e baixos, diagnosticada na
década de 80 como portadora de Transtorno Bipolar, vítima de violência
doméstica, violência da segregação racial, nascida e criada que foi na Carolina
do Nortem aspectos que podem dar uma ideia de sua estrutura instável. Mais
adiante isso explodirá em sua luta junto ao movimento negro. Há em sua
vida um amálgama que nos faz pensar em tudo aquilo que produz sintoma,
em sua forma de exprimir um sofrimento indizível e muitas vezes
insuperável.
77
“Liberdade para mim é isto: Não ter medo.” E confessa ter experimentado o
sentimento de ser livre algumas vezes no palco. Nina Simone conhece no
início de sua carreira Andrew Stroud e se casa com ele, saberemos através do
relato da filha e de suas anotações, de todo o sofrimento que enfrentou com
surras e abusos físicos e emocionais por parte de Stroud que se torna
também seu empresário, administrando muito bem sua carreira, mas ao
mesmo tempo, tornando-a escrava de seu talento, coisa da qual ela se
queixava constantemente.
Conheceremos mais a respeito de como Nina Simone se sentia quanto a tudo
isso, via o músico guitarrista e diretor musical que a acompanhou desde de
sempre, Al Shackman, que se tornou um grande amigo e em determinada
altura seu acolhedor. Ele descreve as surras a ele, o sofrimento e sua
incapacidade de sair daquela prisão emocional. Há um ponto onde se lê algo
escrito por ela que dá conta do quanto se sente completamente destituída de
si a cada surra, “elas destroem tudo dentro de mim”. As conhecidas promessas
do dia seguinte, os pedidos de desculpas, fatores que se conhece tão bem em
relações abusivas. Para também perceber isso de dentro de uma intimidade
tem o filme sobre a vida de Tina Turner, “Tina”(1993) que muito semelhante
à Simone, sofreu de exploração financeira e de violência sexual, emocional e
física impostas pelo marido.
Al Shackman descreve o talento de Nina Simone dizendo que ela operava
uma verdadeira metamorfose nas peças musicais, transformando-as em sua
própria experiência e descreve sua relação com ela como se fosse quase
telepática. Nina Simone ao interpretar não segue as regras musicais e Al
Cinematerapia
Shackman é capaz de acompanha-la sem maiores dificuldades, ela o descreve
como possuidor de um “ouvido absoluto”. Podemos supor aí uma relação de
confiança e cumplicidade que chega a eles via a música que fazem juntos,
mas que vai além, evidenciando uma relação de escuta e acolhimento que
caracteriza muito as falas dele nesse documentário. Ele entende suas
mudanças de tom(de música, de vida, de humor) e a acompanha, sem critério
de julgamento ou correção, assim como na música, estende essa capacidade
para conviver com uma pessoa intrigante e ao que ela mesma dá a entender,
de difícil convivência. Shackman lança sobre ela um olhar de admiração e
talvez tenha sido, entre seus afetos mais próximos, um dos poucos a ser capaz
de dar-lhe o suporte que sua angústia denunciava a necessidade de receber.
Cantar: “Transmitir uma mensagem emotiva, o que significa usar tudo que se
tem dentro de si, para, às vezes, mal tocar uma nota ou se tiver a força para
O Cinema e o Feminino
cantar, você canta”. Sabemos que viver assim nas pontas extremas das
emoções pode ser, e quase sempre é, uma tarefa para além da possibilidade
do que a estrutura psíquica suporta. O ex marido narra um aspecto que gira
em torno da hiperssexualidade em algumas fases que costumam se
apresentar no ciclo hipomaníaco. Mais adiante em sua vida, prejudicada pelo
curso da doença, ela será medicada o que possibilitará seu retorno à carreira
em determinado momento deixada pra trás. Retorna Niña a cantar em bares
agora em Paris onde o público não comparece por não poder acreditar que se
trate realmente dela, aos poucos é levada de volta aos grandes palcos por seus
amigos e admiradores. Mas chegamos nesse ponto ao cerne do que procura,
acreditamos nós, a diretora ao voltar o interesse de suas lentes para essa
pessoa e sua vida mais íntima.
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Quantas experiências viveu até chegar aí onde se diagnostica o quadro e onde
ela desapareceu para o mundo? E que mundo era esse que deu a essa mulher
um complexo enigma para decifrar ou ser devorada por ele.
Nina Simone encontra um jeito de dar caminho a sua dor, a angústia
traduzida em medo como o que sentia quando criança e atravessava a linha
do trem que separava os mundos dos brancos e dos negros em sua terra
natal, para ir estudar piano desejando desde os três, quatro anos ser a
primeira concertista negra de seu país, que como canta em uma de suas
músicas, “...meu país é cheio de mentiras”. No auge de sua trajetória, une-se e
conhece as grandes lideranças do movimento negro norte americano,
desenvolve relações próximas de quase parentesco com nomes expoentes das
conquistas do movimento e canta Why? (The King of Love is Dead) no
enterro de Martin Luther King de quem, assim atesta o documentário,
discordava sobre a tese da não violência. Com seu crescente ativismo vê sua
carreira sofrer um grande freio, porque suas músicas de protesto obviamente
não eram amadas por uma parcela da população que guardava os valores
mais segregacionistas. Em um momento do doc, um dos militantes da época,
conta do prazer que foi ver Nina Simone cantar o que todos eles queriam um
dia poder dizer, na canção “Mississippi Goddamn” onde em um refrão
introduz um palavrão, coisa impensável para a época, mais ainda se vindo de
uma mulher negra: “Todos sabem do Mississipi, puta que pariu”, a música foi
composta após o assassinato de quatro meninas negras em uma igreja de
Birmingham, no Alabama(1963). Falando de sua infância diz saber que
quebrar o silêncio enquanto atravessava a linha do trem significava confronto
Cinematerapia
com os brancos daquela cidade.
Com sua música e de cima de palcos por todos os lugares do mundo, ela
finalmente solta sua ira, diz a filha que ela cantou com tanta raiva que
explodiu a voz, nunca mais conseguindo voltar a um determinado tom. Uma
dor que grita em catarse de muitas vozes, que abriga seu profundo
desamparo e medo que a acompanhou na infância.
Nina Simone foi importante personagem da história que se escreveu nos
Estados Unidos da América, refletida, como sempre, no comportamento de
todo o mundo, da luta pelos direitos civis da população negra mais
fortemente ocorrida entre 1954 e 1968. Se torna impossível fazer uma leitura
da vida da intérprete sem entender sua inserção nesse mundo conturbado
que a fez estrangeira em seu próprio país, do qual guardou grande mágoa até
o fim dos seus dias. Sua voz ergueu-se bela e imponente, cantando as dores,
O Cinema e o Feminino
lutas e anseios de irmãos brancos e negros que sonhavam com igualdade e
fraternidade. Nina Simone tornou-se muito amiga da autora do espetáculo
que é um marco histórico e conhecido como “To Be Young, Gifted and
Black”, Lorraine Hansberry, com quem ela diz no doc ter aprendido sobre
autores fundamentais para se pensar política.
A vida de Nina Simone foi de uma intensidade que o documentário aborda
de maneira brilhante, o espectador queda entre fascinado e consumido,
confuso com tantas vivências tão diferentes, tão opostas em seus pontos mais
altos, em seus vieses mais esgarçados.
79
De certa maneira vivemos um pouco do que sua filha descreve sem disfarçar
a dor, a de ter uma mãe sempre imprevisível, horas ausente, tanto pela
ausência física pelas viagens constantes, quanto pelo alheamento a que
muitas vezes ela se entregava ou em explosão de fúria ou alegria. Quando
enfim ela se viu cansada dos maus tratos sofridos pelo marido e pela
segregação racial, talvez em sua mente uma só coisa, possivelmente ali
naquele limite que mulheres ameaçadas conhecem, ela foge para a África,
mais especificamente para a Libéria, onde se sente finalmente em paz e com
alegria. Tempos depois sua filha vai ter com ela e é triste nesse momento,
vermos seu relato de que sua mãe, antes vítima dos maus tratos, passa a
exercer sobre ela o mesmo domínio sádico aplicando-lhe com frequência
duros castigos físicos e de humilhação pública, evidenciando de maneira
muito lancinante o poder que conhecemos ter o ciclo da violência que passa
através de gerações, repetindo ativamente o que sofreu passivamente, sem
possibilidade de elaboração e saída.
“Quando uma pessoa adota seu próprio tempo, espírito, ritmo, se vivêssemos
em um ambiente que permite sermos exatamente quem somos, sempre
estaríamos em acordo conosco”, assim sentencia a filha mais velha de
Shabazz(Malcolm X) sobre o desafio da vida de Nina Simone. Lança a
pergunta se ela pode ser quem era plenamente? Entendemos que sempre
experimentou um incontornável sentimento de solidão, isso salta da tela
nessa obra.
O
documentário
deixa-nos
com
questões
bastantes
contundentes,
informados sobre os revezes e a dura e sofrida vida de nossa estrela, ficamos
Cinematerapia
com a dúvida do quanto seu adoecimento foi em consequência de ter que
lidar com uma carga maior do que podia suportar, de se tratar, talvez, de
alguém que mergulhou profundamente em seus sentidos e nas questões de
sua época, tragada então pela angústia. Há feridas que por mais que se grite,
não saram. Há em todo adoecimento um grito de denúncia e uma mão na
porta de saída.
“I got life, I've got lives
I've got headaches, and toothaches,
And bad times too like you...”
Sabemos todos que no final, para podermos permanecer inteiros, precisamos
fazer ligações tentaculares que unam e não apenas se esgotem em si mesmas.
“My baby just cares for me”. Será? Lembram da nossa “Estamira”? Em algum
O Cinema e o Feminino
ponto esse potente documentário nos fez lembrar-nos dela. “Eu sou a beira
80
do mundo, estou em todo lugar”.
Dois dias antes de morrer Nina Simone recebeu o diploma honorário do
Instituto Curtis. Reconhecimento ou ironia?
Cap. 17
Seraphine (2018)
Filme ganhador do César 2009. Direção de Martin
Provost, trazendo no elenco Geneviève Mnich,
Yolande Moreau (Séraphine), Anne Bennent, Ulrich
Tukur(Wilhelm Uhde), como principais personagens.
Narra a vida da francesa Séraphine de Senlis (1864-1942), que trabalhava como
faxineira para sobreviver e comprar material para pintar suas telas. O filme
Cinematerapia
passa contemporâneo ao sucesso de Picasso e nos leva a quem teria sido um
dos seus primeiros compradores, o Marchand, colecionador e crítico de arte
Wilhelm
Uhde,
apaixonado
por
artistas
com
novas
potencialidades.
Colecionador dos quadros de cubistas como Picasso e Braque, refugia-se em
um momento de crise em uma casa de campo, onde Séraphine trabalha
fazendo faxina e ao acaso vem a conhecer uma pintura que ela havia feito e
deixado com sua patroa e locadora de Uhde nessa casa. Essa obra que o levará
ao encantamento e curiosidade em relação àquela estranha criada que pintava
flores, frutas e a natureza, em um estilo que foi considerado arte naif, mas que
o personagem de Wilhelm Uhde nos diz no filme preferir chamar de pintura
primitiva.
Informações mostram-nos que em 1928, o colecionador e teórico alemão
Wilhelm Uhde (1874 - 1947), co-protagonista nesse filme, organizou uma
O Cinema e o Feminino
exposição de arte naïf em Paris, reunindo obras de Rousseau, Luis Vivin (1861
- 1936), Séraphine de Senlis (1864 - 1942), André Bauchant (1837 - 1938) e
Camille Bombois (1883 - 1910).
Séraphine é uma personagem dona de uma personalidade entre servil e
absolutamente indomável que convida-nos à caminhar com ela, explodindo
finalmente nossas sensações com a visão de suas telas. Nos leva a
questionamentos sobre a arte não somente como talento, mas como algo
artesanal, trabalhoso, exigindo dedicação desde o seu preparo.
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Mas vamos deter-nos um pouco em aspectos que poderiam interessar-nos a
partir do humano, não diremos somente da psicologia, porque aqui até
nossas noções do campo psi precisarão ser desmontadas para que possamos
acessar nossa personagem. Fácil seria fazer a conhecida ponte entre loucura e
genialidade, mas diante de Séraphie isso resultaria no mínimo em
mediocridade e mesquinharia. Essa mulher que conquistou o mundo sem
sair do seu “lugar”, que amplia espaço e conhece a liberdade do pensar sem
arredar pé do seu lugarejo, apenas enfeitará seu modo de vida, igualmente a
como a amplidão que suas telas ganharão no correr dos anos. Dois metros,
ela pede que tenham suas telas, ao retomar seus contatos com Wilhelm Uhde
no pós Primeira Grande Guerra, onde até então, seus contatos com Uhde
haviam sido interrompidos. A arte é liberdade, existe um pensamento que se
solta e é livre, essencialmente livre. Sua arte é livre como os pensamentos
oriundos de um inconsciente sem barreiras. Vem à tona de maneira direta,
sem entraves.
Séraphie busca a saída do desamparo pela apreciação da sua produção, pede
que digam se gostam ou não de seus quadros, esse detalhe, pensamos que
seja importante sublinhar, ela em nenhum momento pergunta se a arte dela
é boa, pergunta se o outro gosta e nós aqui do outro lado da tela,
espectadores da sua arte que invade-nos despertando uma forte e vívida
emoção, avassaladora mesmo, entendemos de alguma maneira essa pergunta
que ecoa em todos nós, nossas marcas pelo mundo. Quando Wilhelm tem
que partir rapidamente por conta dos avanços da guerra que chegariam em
breve ali naquela região, tudo que Séraphie pode pensar ao sentir o
abandono é dito: “-Você não gosta mais das minhas pinturas?”. Esse caminho
Cinematerapia
da arte como o caminho da comunicação das almas, um encontro que
transcende os indicadores sociais, culturais, de classe ou até de línguas. A arte
como o caminho para o encontro com algo da possibilidade humana que
cada um de nós “encerra” dentro de si mesmo. Caminho esquecido e que são
tocados quando nos impactamos frente a uma grande obra de arte.
Séraphie tem essa capacidade de “chave”, e o filme que Martin Provost
apresenta-nos, traz em si esse encantamento, essa possibilidade de suspender
por um bom tempo nossa racionalidade e remeter-nos à emoções profundas,
misturadas, belas e potentes. O roteiro desse filme é também assinado por
Marc Abdelnour, além de Provost. Teremos poucas informações sobre nossa
personagem antes daquele período, ela apenas repete que não tem ninguém,
e conta que quando trabalhava em um convento “um anjo da guarda lhe
apareceu e a mandou pôr-se a pintar”, hábito que desenvolve sem saber o
O Cinema e o Feminino
porquê, nessa necessidade quase visceral de representar algo ali em suas telas
repletas de cores e formas, orgânicas até pela maneira como prepara suas
tintas, detalhe que o filme nos mostra com sutileza e beleza. Abate-se sobre a
tela seu caldeirão pulsional. Há uma cena no filme onde isso se faz
representar em imagem, linda passagem, ela adormece em torno da obra
que completa, exausta e plena.
E vem a Depressão, no filme atravessa dois sentidos, a loucura de Séraphie
que evolui em uma bela metáfora, espera realizar sua arte, torná-la pública,
representa
esse
desejo
pelo
prometeram-lhe comparecer.
82
ritualístico
do
casamento,
onde
anjos
A crise econômica impede que essa exposição onde seus quadros seriam
apresentados possa logo realizar-se, e impedida de assinar-se ao mundo, não
resta à Séraphie outro caminho que não seja o intenso retorno pulsional, o
enlouquecimento que a joga, mansamente, em um manicômio onde viverá
até a sua morte. Sua voz calada transforma-se em seu sofrimento, seu choro,
sua raiva que podemos remeter a uma passagem onde quando soube da
primeira partida de Uhde e que enfurecida fala a ele e este ordena que ela
não utilize aquele tom com ele, ao que ela responde: “-Em que tom julga que
me falam desde que nasci?”. A mulher, órfã, pobre, louca, esse era seu lugar
do qual irrompe com sua arte.
Mais do que uma obra biográfica o filme encaminha-nos a pensar sobre a
vida, suspensa mesmo do tempo cronológico e inscrita no devir que marca a
todos nós. Existiu uma mulher que durante vinte anos se relacionou com o
colecionador Wilhelm Uhde e pintou telas da chamada arte Naif de um valor
reconhecido ainda na atualidade. De outra forma podemos também dizer
que existiu um ser, mulher, no início do século passado, marcada pela
opressão, abandono e pobreza, que elevou-se, acima de sua insígnia social
invadindo o mundo com cores e formas impossíveis de não serem vistas,
como se passasse o marcador por cima do texto da vida mostrando o quanto
deixamos de ver ao não vê-la, a retornar a vida para tão somente o que é
consciência, praticidade e cartão social.
Sua loucura, nossa loucura, dores quando não podemos representá-las, isso
marcará o desaparecimento de Séraphie que não entendeu que sua
linguagem estava no devir, que ali para sempre haverá um lugar para ela, não
Cinematerapia
mais invisível, não mais apenas vivendo da marca do seu desamparo. Talvez
possamos pensar que em todo enlouquecimento há essa escolha, essa
possibilidade que Séraphie chegou a tocar, a inundar com alegria nossas
vidas, que cegos a ela, a deixamos em seu desamparo, em sua dor e angústia,
em seu abandono e silenciar. É preciso que tudo seja dito, é preciso
representar. Escutar as vozes dos anjos.
Belíssimo filme, não precisa ser útil ou indicado para nada, assim como a
poesia, a pintura, a escultura etc não devem ser a princípio útil para coisa
O Cinema e o Feminino
alguma, assim é esse filme, arte, representação. Encantamento!
83
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