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Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Direção Editorial Lucas Fontella Margoni Comitê Científico Prof. Dr. Paulo Baptista Caruso MacDonald Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Prof. Dr. Wladimir Barreto Lisboa Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Prof. Dr. Arthur Ferreira Neto Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Prof. Dr. Cristina Foroni Consani Universidade Federal do Paraná (UFPR) Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Da resposta certa à forma correta de responder Wagner Arnold Fensterseifer Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/ O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) FENSTERSEIFER, Wagner Arnold Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin: da resposta certa à forma correta de responder [recurso eletrônico] / Wagner Arnold Fensterseifer -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021. 182 p. ISBN - 978-65-5917-204-7 DOI - 10.22350/9786559172047 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Hart; 2. Dworkin; 3. Metaética; 4. Moral; 5. Justiça; I. Título. CDD: 100 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100 There are these two young fish swimming along, and they happen to meet an older fish swimming the other way, who nods at them and says, “Morning, boys, how's the water?” And the two young fish swim on for a bit, and then eventually one of them looks over at the other and goes, “What the hell is water?” (David Foster Wallace, “This is Water”, discurso de formatura para a turma de graduação no Kenyon College, 2005.) There is a line among the fragments of the Greek poet Archilochus which says: “The fox knows many things, but the hedgehog knows one big thing”. Scholars have differed about the correct interpretation of these dark words, which may mean no more than that the fox, for all his cunning, is defeated by the hedgehog's one defence. But, taken figuratively, the words can be made to yield a sense in which they mark one of the deepest differences which divide writers and thinkers, and, it may be, human beings in general. (Isaiah Berlin, “The Hedgehog and the Fox: An essay on Tolstoy's view of history”. London: Weidenfeld & Nicolson, 1953.) Sumário Prefácio .............................................................................................................................. 11 Paulo Baptista Caruso MacDonald Introdução ......................................................................................................................... 14 1 .......................................................................................................................................... 18 O debate Hart-Dworkin e a questão da objetividade da moral 1.1. Resumo do debate Hart-Dworkin ................................................................................................ 20 1.1.1. The Model of Rules I .................................................................................................................. 21 1.1.2. As respostas positivistas às críticas de Dworkin ............................................................. 32 1.1.2.1. Positivismo Jurídico Exclusivo ....................................................................................... 33 1.1.2.2. Positivismo Jurídico Inclusivo ........................................................................................ 35 1.1.3. O Império do Direito.................................................................................................................. 40 1.2. As principais posições teóricas em metaética ........................................................................ 47 1.2.1. O que é metaética? .................................................................................................................... 48 1.2.2. Realismo e antirrealismo moral ............................................................................................ 51 1.2.3. Cognitivismo e não-cognitivismo moral ........................................................................... 55 1.2.4. Expressivismo moral .................................................................................................................. 59 1.2.5. Construtivismo moral ............................................................................................................... 62 1.2.6. Teoria do erro e ficcionismo moral ...................................................................................... 64 1.2.7. Resumo das posições metaéticas ........................................................................................ 68 2 .......................................................................................................................................... 73 A posição de Hart acerca da objetividade da moral 2.1. A metodologia de Hart ..................................................................................................................... 75 2.1.1. A obra de Hart no contexto do pós-guerra na Universidade de Oxford .............. 79 2.1.2. O ponto de vista moralmente neutro adotado por Hart em O Conceito de Direito: positivismo metodológico, método descritivo-explanatório ou análise conceitual? 85 2.2. A busca pela posição metaética de Hart por meio da interpretação de sua obra ... 94 2.2.1. Positivismo Jurídico e a Separação entre o Direito e a Moral ................................... 95 2.2.2. Obrigação Legal e Obrigação Moral ................................................................................. 100 2.2.3. Direito, Liberdade e Moralidade ......................................................................................... 104 2.2.4. O Conceito de Direito ............................................................................................................. 107 2.2.4.1. Justiça do Direito e justiça na aplicação do Direito. ........................................... 108 2.2.4.2. As relações entre o Direito e a Moral ........................................................................111 2.2.4.3. O conteúdo mínimo do Direito Natural ...................................................................117 2.2.5. Discricionariedade e a distinção entre casos fáceis e casos difíceis ..................... 125 2.3. Hart e o não-cognitivismo moral fraco .................................................................................... 135 3 ........................................................................................................................................ 141 Dworkin e o direito como integridade: da tese da única resposta correta à moral objetiva 3.1. Dworkin e o Conceito de Direito ................................................................................................ 142 3.2. A tese da única resposta correta e o Direito como um romance em cadeia ............ 147 3.2.1. O juiz Hércules e a possibilidade da única resposta correta ................................... 147 3.2.2. A interpretação judicial como um romance em cadeia ............................................ 160 3.3. Em que sentido a moralidade pode ser objetiva? ............................................................... 164 Conclusão ........................................................................................................................ 172 Referências ...................................................................................................................... 176 Prefácio Paulo Baptista Caruso MacDonald Qual é a relação entre a reivindicação da verdade de uma proposição teórica sobre o direito e a reivindicação da verdade de uma proposição sobre o conteúdo de um ordenamento jurídico? A resposta a essa pergunta parece depender daquilo que delimitamos como o objeto próprio da teoria do direito, segundo a finalidade atribuída a tal investigação. Aquele por muitos considerado o maior debate em teoria do direito da segunda metade do século XX, entre H. L. A. Hart e Ronald Dworkin, acabou por revelar-se antes de tudo um embate entre duas visões distintas do objeto da teoria do direito, bem como do tipo de esclarecimento que essa última poderia fornecer à prática jurídica. É possível fazer uma comparação da utilidade do projeto teórico de Hart para a prática jurídica com a de uma gramática em relação à linguagem: a prática antecede e independe da teoria da mesma maneira que o uso da linguagem antecede e independe de sua sistematização em uma gramática, mas tanto a teoria do direito quanto a gramática podem explicitar as condições que tornam suas respectivas práticas possíveis, evitando confusões e perplexidades comuns no exercício de refletir sobre elas. Abre-se assim a possibilidade que se tenha um domínio mais consciente dessas práticas, engendrando, por conseguinte, uma capacidade de discriminar de maneira fundamentada quem dela participa daquele que dela se desvia. A fenomenologia da prática jurídica, no entanto, é permeada pelo desacordo sobre como as regras que constituem o próprio direito devem ser seguidas: trata-se dos desacordos sobre a interpretação e aplicação das 12 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin normas jurídicas. Como o teórico deve lidar com tais desacordos? Para Hart, apenas seria possível ao teórico diferenciar de maneira fundamentada os desacordos internos à prática daqueles em que ao menos uma das partes dela se desvia (ou institui uma nova prática), havendo uma vasta área cinzenta entre essas duas situações. É exatamente com respeito a esse ponto a principal divergência do projeto de Dworkin: para esse último, o papel da teoria consiste em estabelecer a posição que busca se fundamentar como a melhor interpretação da prática. Isso implica reivindicar finalidades aos diversos ramos do direito, determinando o seu papel em uma trama valorativa coerente que cobre todos os domínios da vida humana. Dada a ambição de cada um dos projetos, resulta natural uma diferença de comportamento de ambos os teóricos com respeito a questões metaéticas. Para levar a justificação de suas reivindicações a cabo, Dworkin necessita defender a objetividade dos valores de todos os argumentos metaéticos que pretendem colocá-la em xeque. Hart, por sua vez, encontra-se, em princípio, na posição tranquila de não precisar se posicionar nesse debate para seguir adiante o seu projeto teórico. Isso, entretanto, apenas em princípio, pois, caso sua teoria do direito pretenda substituir um endereçamento “a quem interessar possa” pelo “você deve se interessar por isso” reivindicado por Dworkin, parece inevitável uma defesa do valor objetivo da versão aperfeiçoada do positivismo jurídico que a sua contribuição nos ofereceu. Nas páginas que seguem, o leitor encontrará o exame mais detalhado do contraste entre duas posturas intelectuais que dominaram a teoria do direito anglo-saxã das últimas décadas e suas implicações metaéticas. Aí reside a importância deste trabalho, na medida em que busca analisar o debate Hart-Dworkin a partir de um ângulo distinto daquele como foi mais comumente recebido entre nós no Brasil. Sou grato ao Wagner por ter me Paulo Baptista Caruso MacDonald | 13 escolhido como um de seus interlocutores nessa empreitada e fico feliz que mais pessoas possam agora participar da discussão sobre o tema com a publicação desta obra. Porto Alegre, fevereiro de 2021. Introdução O Direito é capaz de fornecer respostas objetivamente corretas para problemas complexos? Existe alguma relação entre Direito e Moral? Quando o Direito não parece ser capaz de fornecer uma resposta adequada para solução de um caso colocado sob o escrutínio de uma Corte Judicial, qual a solução a ser encaminhada? Pode a moralidade influenciar as decisões de um juiz, e ainda assim se considerar que a sentença por ele proferida reflete a aplicação da lei ao caso em julgamento? Essas são perguntas frequentes para todo aquele que dedica algum tempo para refletir sobre problemas decorrentes do cotidiano de qualquer sociedade complexa que possua um sistema jurídico organizado. Aqueles que enfrentam na prática as consequências das respostas − ou mesmo da falta de respostas − a esses questionamentos, sobretudo, preocupam-se com a forma como tais dificuldades podem ser superadas. A história do desenvolvimento dos sistemas jurídicos, bem como das teorias abstratas sobre o modo como esses sistemas deveriam ser organizados, é repleta de respostas divergentes para cada um dos questionamentos acima reproduzidos. De igual forma, diversas sociedades diferentes, em épocas distintas, experimentaram algumas das soluções propostas pelos teóricos para tentar superar problemas e dificuldades que esses questionamentos evidenciam. É nesse contexto que se insere o tema central da presente obra. As relações entre direito e moral, as avaliações acerca da possibilidade de julgamentos jurídicos e morais serem considerados objetivamente verdadeiros ou falsos, corretos ou incorretos, e as formas como a Wagner Arnold Fensterseifer | 15 racionalidade influencia as tomadas de decisões jurídicas ou morais são algumas das preocupações que ocuparão as próximas páginas deste trabalho. Por limitações temporais e espaciais, as análises e reflexões acerca desses temas terão de ser limitadas a determinadas obras de alguns autores. A escolha pelas obras de Herbert Lionel Adolphus Hart e Ronald Myles Dworkin justifica-se pelo protagonismo desses dois jusfilósofos nos debates sobre os mais variados e relevantes temas em Filosofia Política, Filosofia Moral e Filosofia do Direito, sobretudo nos últimos cinquenta anos. A contenda entre os autores é o principal debate do fim do século XX em teoria do direito, o qual ainda é bastante explorado pela literatura. A delimitação do objeto de pesquisa, portanto, estará limitada à análise das obras de Hart e Dworkin, sob o enfoque das perspectivas dos autores acerca da objetividade da moral, das relações entre Direito e Moral e a forma como essas questões afetam as Teorias do Direito elaboradas por eles, em uma tentativa de analisar o debate Hart-Dworkin a partir de uma perspectiva distinta do que foi usualmente realizado pela filosofia e teoria do direito. Enquanto, para Hart, os casos difíceis no Direito são solucionados pelo exercício da discricionariedade dos juízes, ocasionando um dos momentos em que o autor admite uma confluência entre o Direito e a Moral, Dworkin entende que moralidade e direito são indissociáveis, de modo que todos os casos jurídicos são potencialmente casos difíceis, quando confrontados por argumentos fortes e consistentes baseados em valores morais. Como será demonstrado, as concepções distintas dos autores acerca da objetividade da moral gerarão consequências na forma como desenvolvem suas teorias sobre o direito. Mas mais do que isso, a comparação entre a obra de Hart e Dworkin demanda que se compreendam com clareza as necessárias distinções entre os projetos desenvolvidos. 16 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Enquanto Hart elabora uma teoria descritiva, que busca explicar o modo de funcionamento dos sistemas jurídicos desenvolvidos em qualquer época e localidade, utilizando para tanto um ponto de vista neutro e notadamente afastado das nuances da prática interna de cada sistema, e portanto descritivo, Dworkin elabora sua teoria sob a perspectiva de um intérprete engajado, ou seja, de um teórico que participa ativamente da atividade que está analisando e interage intensamente com o objeto de seu estudo. Sua teoria é, portanto, interpretativa, avaliativa e evolutiva em relação à realidade que está sendo estudada. O problema que a presente pesquisa buscará solucionar, considerando as limitações do objeto, é o seguinte: de que forma as posições distintas de Hart e Dworkin acerca da objetividade da moral e da perspectiva teórica utilizada influenciam suas teorias do direito? A hipótese que será testada é que, por mais que o debate acadêmico entre os autores indique que existam grandiosas divergências entre suas concepções sobre o Direito, os autores em verdade chegam a resultados bastante parecidos, muito embora percorram caminhos bastante diferentes. Desse modo, com o objetivo de analisar a posição dos autores acerca da objetividade da moral, bem como verificar as consequências dessas posições nas teorias do direito elaboradas por Hart e Dworkin, este livro está estruturado da seguinte forma: no primeiro capítulo serão descritas e apresentadas as principais posições metaéticas, de acordo com a literatura contemporânea sobre o tema, para que seja possível, nos dois capítulos subsequentes, analisar as obras de Hart e Dworkin e verificar qual a posição metaética dos autores. No segundo capítulo, a pesquisa volta-se para os escritos de Hart, interpretando sua obra como um todo, com ênfase especial em seu livro mais importante: O Conceito de Direito. Por fim, no terceiro capítulo, será analisada a obra de Dworkin, especialmente em Wagner Arnold Fensterseifer | 17 relação a sua tese da única resposta correta e sobre a objetividade da moral e unidade do valor. Ao final, pretende-se compreender com clareza de que forma as posições distintas de Hart e Dworkin acerca da objetividade da moral e da perspectiva teórica utilizada influenciam suas teorias do direito, bem como verificar se as divergências teóricas são tão díspares quanto a literatura sobre o tema parece indicar. 1 O debate Hart-Dworkin e a questão da objetividade da moral O debate entre Hart e Dworkin assumiu papel central no estudo da Filosofia do Direito nas últimas décadas, sendo considerado o ponto de partida para qualquer pesquisador que queira se inserir nos debates sobre os mais diversos temas em Filosofia do Direito, sobretudo na tradição analítica. As bases do debate podem ser encontradas na obra seminal de Hart, intitulada The Concept of Law, publicada no ano de 1961, em que o autor inglês retoma lições do positivismo jurídico de Austin e Bentham, aprimorando-as por meio da utilização de métodos e conhecimentos influenciados pela filosofia da linguagem ordinária. Dworkin considerou a versão do positivismo jurídico de Hart como a mais elegante e robusta formulação em defesa dessa corrente jusfilosófica1, razão pela qual a elegeu como principal adversária às suas ideias. Surge, em 1967, o artigo The model of Rules I em que Dworkin apresenta sua crítica ao positivismo jurídico de Hart e com isso inaugura o debate entre os autores. Tendo em vista que Dworkin pretendeu objetar boa parte da teoria escrita por Hart em O Conceito de Direito, e considerando-se o grande número de temas abordados por Hart nessa obra, o debate entre os autores também ganhou grandes proporções, passando por quase todos os temas contemporaneamente relevantes em Filosofia do Direito. 1 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 16. Wagner Arnold Fensterseifer | 19 Nesse sentido, pode-se afirmar que o debate Hart-Dworkin trata de questões como: (i) discricionariedade judicial; (ii) o papel das políticas públicas na adjudicação; (iii) a fundação ontológica das regras; (iv) a possibilidade da Filosofia do Direito descritiva; (v) a função do Direito; (vi) a objetividade dos valores; (vii) a vagueza dos conceitos; e (viii) a natureza das inferências jurídicas2. Conforme exposto na introdução, o presente trabalho estará focado na investigação das posições dos autores a respeito da possibilidade de conhecimento moral e a forma como essa concepção produz efeitos nas teorias do direito dos autores, e de que modo isso influencia o debate entre eles. Assim, nas próximas duas subseções, será realizada a reconstrução do debate entre Hart e Dworkin, a fim de estabelecer com clareza o escopo no qual será realizada a análise proposta, e após serão descritas as posições possíveis dentro do espectro teórico da metaética, de modo a se alcançar clareza e precisão terminológica para analisar o pensamento de Hart e Dworkin do ponto de vista de suas concepções acerca da possibilidade de conhecimento moral ou da objetividade dos juízos morais. É relevante esclarecer, todavia, que não se pretende tomar parte no debate teórico entre Hart e Dworkin, tampouco criticar os argumentos de que ambas as partes lançaram mão ou mesmo reconstruí-los de modo a torná-los insuscetíveis (ou menos suscetíveis) às críticas. O objetivo da presente seção é exclusivamente sumariar os principais pontos do debate entre os autores de modo a situar o leitor para a discussão que será desenvolvida nos capítulos subsequentes. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 04. 2 20 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin 1.1. Resumo do debate Hart-Dworkin Como destaca Scott J. Shapiro, o debate entre Hart e Dworkin é bastante complexo, possui fases diferentes, é composto por diversos artigos e livros dos autores e comentadores, e abrange uma grande quantidade de temas relevantes para a Filosofia do Direito3. Contudo, Shapiro identifica a existência de uma importante unidade que perpassa todo o debate entre Hart e Dworkin, que consiste na relação entre legalidade e moralidade. A estratégia de Dworkin, ao longo do debate, foi sustentar, de uma forma ou de outra, que legalidade não é simplesmente uma questão determinada por fatos sociais, mas também por fatos morais4. Ou seja, a questão envolvendo a possível conexão entre o Direito e a Moral é central para o debate Hart-Dworkin. Se para o positivismo jurídico descrito por Hart em O Conceito de Direito a questão da legalidade encontra fundamento na prática social de determinada comunidade, segundo a estrutura de regras primárias e regras secundárias, para a crítica de Dworkin, a existência e o conteúdo do Direito positivo são, em última análise, governados pela existência e conteúdo de regras morais. Ainda que se possa identificar essa unidade no debate Hart-Dworkin, há que se reconhecer que o debate também é marcado por diversos ataques propostos por Dworkin, sob diversas perspectivas diferentes, até mesmo com abandono e substituição de argumentos que ao longo dos anos se mostraram menos consistentes do que desejaria o professor estadunidense. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 05. 3 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. pp. 05-06. 4 Wagner Arnold Fensterseifer | 21 Por esse motivo, a análise do debate Hart-Dworkin que será realizada aqui tomará por base os diferentes textos escritos por Dworkin para criticar a obra de Hart, bem como nos textos que foram escritos em resposta às críticas de Dworkin, como tentativa de acomodar tais críticas em novas versões da teoria do positivismo jurídico. Importa salientar, contudo, que a análise do debate que será realizada não pretende ser exaustiva ou mesmo minuciosa ao verificar todos os argumentos sustentados pelos autores. A análise do debate deverá sempre ter em vista os objetivos estabelecidos para a presente pesquisa, quais sejam, a verificação do papel da objetividade da moral no debate entre os autores. Por isso, serão analisados de forma mais detalhada os textos e argumentos que dêem ênfase a esse ponto específico. Comecemos pelo texto inaugural do debate, publicado por Dworkin em 1967, na forma de artigo intitulado The model of Rules I5, e posteriormente integrado à obra Taking Rigths Seriously, publicada em 19776. 1.1.1. The Model of Rules I Nesse artigo, Dworkin elabora três linhas de argumentação contra o positivismo jurídico de Hart. Dworkin descreve o positivismo jurídico como tendo algumas proposições centrais e organizadoras em seu esqueleto, as quais, embora não sejam necessariamente aceitas por todo filósofo do direito identificado como positivista, são capazes de fornecer uma boa noção geral do que constitui a teoria do positivismo jurídico. Dworkin descreve a tese das fontes sociais do direito, ou “tese do pedigree”, como a primeira das proposições centrais e organizadoras do positivismo jurídico. A tese é assim definida pelo autor: 5 DWORKIN, Ronald. The Model of Rules. The University of Chicago Law Review, v. 35, n. 1, 1967, pp. 14-46. 6 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. 22 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin O Direito de uma comunidade é um arranjo de regras especiais utilizadas por aquela comunidade direta ou indiretamente para o propósito de determinar quais comportamentos deverão ser punidos ou coagidos pelo poder público. Essas regras especiais podem ser identificadas e distinguidas por um critério específico, e por testes que não dizem respeito ao seu conteúdo, mas com seu pedigree ou forma pela qual foram adotadas ou desenvolvidas. Esses testes de pedigree podem ser usados para diferenciar regras jurídicas válidas de regras jurídicas espúrias (regras que advogados e litigantes erroneamente afirmam serem regras jurídicas) e também de outros tipos de regras sociais (geralmente tomadas em conjunto como “regras morais”) que aquela comunidade segue, mas que não podem se fazer cumprir por meio do poder público7. O que Dworkin está descrevendo é a regra de reconhecimento trazida por Hart em O Conceito de Direito. O fundamento de validade das normas reporta-se, ao menos em última instância, a uma questão de fato, que é o reconhecimento dos tribunais, dos funcionários e dos particulares a respeito do que será considerado como regra válida ou inválida8. Nas palavras de Hart: [...] a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de fato9. A validade de uma regra, nesse contexto, é estabelecida em razão de sua relação com outra regra, independentemente de seu conteúdo ou de seu mérito. A regra de reconhecimento funciona como um padrão 7 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 17. 8 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 160. 9 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 110. Wagner Arnold Fensterseifer | 23 unificador e garantidor da identidade jurídica, sendo que ela mesma não é validada por outra norma, mas aceita como um fato social10. A segunda tese descrita por Dworkin para caracterizar o positivismo jurídico é a tese da discricionariedade. Assim formula o autor: O conjunto dessas regras jurídicas válidas compõe exaustivamente 'o direito', de modo que se algum caso não estiver claramente coberto por uma regra (seja porque não há alguma que pareça apropriada, seja porque as que parecem apropriadas são demasiadamente vagas, seja por qualquer outra razão) então o caso não poderá ser resolvido pela 'aplicação do direito'. Deverá ser decidido por alguma autoridade, como um juiz, 'exercendo sua discricionariedade', o que significa buscar além do Direito por algum outro padrão que o guiará na feitura de uma nova regra jurídica ou na suplementação de uma regra antiga11. O exercício da discricionariedade judicial é endossado por Hart, como veremos nos próximos capítulos, que afirma que os chamados “casos difíceis” frequentemente demandam que o juiz crie uma regra para resolver um caso específico, o qual não possuía previsão no sistema normativo e cuja resposta, portanto, não poderia ser encontrada na legislação ou mesmo em precedentes para aplicação de forma dedutiva ou mecânica. A terceira tese é chamada “tese da obrigação”, que afirma a existência de uma obrigação de fazer algo quando existe uma regra jurídica que assim o determine. Entretanto, nas situações em que houver vagueza ou indeterminação, deverá ser utilizada a discricionariedade para decidir o que deve ser feito12. Na descrição de Dworkin, assim pode ser definida a tese: 10 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 160. 11 12 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 17. MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 161. 24 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Dizer que alguém possui uma “obrigação jurídica” é dizer que o seu caso recai sobre uma regra jurídica válida que determina que faça ou proíbe que faça algo. (Dizer que ele possui um direito, ou que possui poder jurídico de algum tipo, privilégio ou imunidade, é afirmar, de forma abreviada, que os outros possuem efetiva ou hipotética obrigação jurídica de agir ou deixar de agir de certas formas em relação a ele.). Na ausência de tal regra jurídica válida, não existe obrigação jurídica; segue-se que quando o juiz decide um caso exercendo sua discricionariedade, ele não está fazendo cumprir uma determinação legal13. Portanto, o positivismo jurídico descrito por Dworkin consiste basicamente, em seu esqueleto, na presença das três teses acima apresentadas, ou seja, (i) na tese do pedigree, (ii) na tese da discricionariedade e (iii) na tese da obrigação. Dworkin reconhece, contudo, que as diferentes versões do positivismo jurídico apresentadas por diversos autores deram preenchimentos de “carne” distintos a esse esqueleto. A versão do positivismo jurídico de John Austin, por exemplo, descrevia uma obrigação jurídica como sendo o cumprimento de uma determinação geral do soberano, sob a ameaça de uma sanção para quem não viesse a obedecê-la. Para Dworkin, o modelo positivista de Austin é belo em sua simplicidade14. Contudo, reconhece que a versão do positivismo jurídico desenvolvida por Hart é mais complexa do que a de Austin em ao menos dois aspectos. Primeiro, por fazer uma distinção entre regras de tipos lógicos diferentes (regras primárias e regras secundárias). Segundo, por reconhecer, diferentemente do que fez Austin, que a regra não 13 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 17. 14 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 18. Wagner Arnold Fensterseifer | 25 é um comando e que a obrigação de seguir o Direito não decorre da ameaça da sanção que será aplicada aos que não lhe obedecerem15. Após descrever minuciosamente o funcionamento do modelo positivista criado por Hart em O Conceito de Direito, Dworkin passa a apresentar suas críticas ao positivismo jurídico, anunciando que sua intenção é atacar de forma geral o positivismo, e que usará a versão de Hart como alvo, sempre que um alvo particular for necessário16. A estratégia utilizada por ele para criticar o modelo positivista de Hart está organizada ao redor do fato de que quando advogados argumentam ou discutem a respeito de direitos e obrigações jurídicas, particularmente nos casos mais difíceis, eles fazem uso de standards que não funcionam como regras, mas operam de forma diferente como princípios, políticas, e outros tipos de standards17. O positivismo, afirma Dworkin, é um modelo de e para um sistema de regras, e sua noção central de um único e fundamental teste para verificar o que é Direito nos força a deixar passar importantes papéis desses standards que não são regras. Em outras palavras, a primeira versão da crítica elaborada por Dworkin ao positivismo jurídico tem como foco principal o fato de que não seria capaz de descrever uma parte especialmente importante da prática e da argumentação jurídica que consiste no uso de standards ou princípios que operam de forma distinta das regras. O ataque de Dworkin ao positivismo jurídico de Hart começa pela crítica à tese da discricionariedade. Ele afirma que a tese é implausível por ignorar um grande número de casos em que juízes se consideram 15 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 19. 16 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 20. 17 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 20. 26 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin vinculados ao Direito mesmo que a situação a ser resolvida não esteja alcançada por uma regra ou por um precedente judicial claramente aplicável18. Dworkin não nega que exista o exercício de discricionariedade na atuação dos juízes. Contudo, o autor distingue entre discricionariedade fraca e discricionariedade forte. Para ele, os juízes e oficiais devem exercer discricionariedade quando deles é requerido que usem seu julgamento no raciocínio de princípios jurídicos para chegar a conclusões19, ou mesmo quando as regras ou ordens que estiverem a sua disposição não forem precisamente detalhadas, carecendo de preenchimento por parte do aplicador. O exemplo trazido por Dworkin é o de um oficial da polícia que recebe uma ordem para levar os cinco membros mais experientes de sua equipe para participar de determinada operação. A ordem não é clara e precisa em relação ao critério que deve ser utilizado para escolher quais são os mais experientes20. O termo “experientes” possui grau elevado de vagueza, de modo que o oficial deverá exercer sua discricionariedade para realizar essa escolha, preenchendo o significado do termo e estabelecendo critérios para definir o que distingue um oficial experiente de um oficial inexperiente. Nessa situação, não há discricionariedade forte, uma vez que a decisão a ser tomada já foi consideravelmente restringida pela ordem recebida. O oficial não poderá escolher de forma totalmente livre os membros de sua equipe que participarão da operação, mas estará restringido pela ordem recebida, ainda que ela não seja totalmente clara, precisa e delimitada. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 10. 18 19 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 31. 20 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 32. Wagner Arnold Fensterseifer | 27 A ordem de escolher os oficiais mais experientes certamente afasta da escolha aqueles policiais que acabaram de ingressar nos quadros profissionais da instituição, ao mesmo tempo que inclui, evidentemente, aqueles mais condecorados e que já participaram com sucesso de diversas operações policiais. A discricionariedade será necessária, todavia, para definir exatamente qual será o grupo que irá participar da operação, uma vez que após terem sido selecionados os experientes e descartados os inexperientes, não haverá regra específica definindo a escolha dos cinco membros mais experientes. Já a discricionariedade em sentido forte, para Dworkin, pode ser vislumbrada na situação em que a decisão a ser tomada não está limitada por qualquer ordem ou regra − ainda que vaga ou imprecisa − a respeito de como deverá ser tomada a decisão. Seria o caso em que a ordem dada ao oficial somente determinasse a escolha de alguns policiais para participar da operação. Ele poderia, então, escolher de forma discricionária (em sentido forte) cabendo apenas a ele decidir quais seriam os policiais selecionados. O critério utilizado para escolha dos policiais poderia ser de qualquer natureza. Poderia ser feito até mesmo um sorteio para que a escolha fosse realizada de modo aleatório. Nesse caso, seria possível inclusive que fossem selecionados aqueles policiais que ingressaram há pouco tempo na instituição, dado que não houve delimitação do grupo de possíveis selecionados. Dworkin adverte, contudo, que mesmo decisões tomadas em situações de discricionariedade forte são passíveis de crítica21. Mesmo uma decisão discricionária deve observar noções de razoabilidade, equidade e eficiência. Caso o oficial escolhesse policiais que não possuíssem condições de participar de forma segura e efetiva da operação, sua decisão poderia 21 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 33. 28 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin ser criticada, muito embora não se possa afirmar que ele desobedeceu à ordem recebida. Para o autor, existem diversos casos em que juízes, ao decidirem um caso, exercem discricionariedade fraca. Eles o fazem quando deles é requerido que realizem seu julgamento por meio do raciocínio que parte de princípios jurídicos e chega a conclusões jurídicas. Dworkin reconhece, também, que em alguns casos os juízes exercem discricionariedade no sentido de que, em determinado caso particular, possuem a última palavra para resolver a questão22. Dworkin nega, entretanto, que juízes exerçam discricionariedade forte, conforme acima definida, o que permitiria olhar além do Direito e aplicar standards extrajurídicos para resolver determinado caso particular. Para ele, uma vez que se reconhece a existência dos princípios jurídicos, percebe-se que os juízes estão sempre vinculados a standards jurídicos, mesmo quando resolvem casos difíceis23. A crítica de Dworkin ao Positivismo Jurídico de Hart, nesse ponto, consiste na negação do uso de discricionariedade admitido por Hart em O Conceito de Direito. Se para Hart os casos difíceis são aqueles casos em que o Direito não irá fornecer a resposta que o juiz precisa para resolver a questão de forma clara e precisa, surgindo a necessidade de exercer sua discricionariedade para criar uma regra capaz de resolver o caso que se apresenta, para Dworkin essa situação nunca existirá − haja vista que o Direito, por meio de princípios jurídicos − sempre irá fornecer ao juiz o substrato necessário para que ele chegue à solução do caso que diante dele se apresenta. Haveria tão somente o exercício da discricionariedade fraca, mas não o da discricionariedade forte. Os princípios jurídicos, dada sua 22 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 11. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 11. 23 Wagner Arnold Fensterseifer | 29 pervasividade, tornariam inválido o argumento de que existiriam casos para os quais o Direito não possuiria resposta, uma vez que pela aplicação dos princípios sempre haveria uma forma de encontrar a solução para um caso particular dentro do sistema jurídico. Após criticar a tese da discricionariedade, Dworkin volta sua crítica à tese das fontes sociais do Direito (ou tese do pedigree, como denominada por ele). Da mesma forma que os princípios jurídicos são capazes de falsear o argumento central da tese da discricionariedade, também invalidam o núcleo da tese das fontes sociais do Direito, segundo Dworkin24. Isso porque os princípios jurídicos, diferentemente do que ocorre com as regras, não necessitariam de um teste de regra de reconhecimento para verificação de sua validade e legalidade dentro do sistema jurídico. Para Dworkin, o que valida ou invalida um princípio jurídico é o seu conteúdo e não a verificação de seu pedigree. Para explicar o modo de funcionamento dos princípios jurídicos e demonstrar que sua validade não está vinculada a alguma forma de regra de reconhecimento, mas tão somente ao seu conteúdo, Dworkin lança mão de dois exemplos. O primeiro é o caso Riggs v. Palmer25 julgado pela Corte de Apelação do Estado de Nova York no ano de 1889, no qual o neto de Francis Palmer, Elmer Palmer, era ao mesmo tempo herdeiro testamentário e assassino. Na ocasião, restou decidido que Elmer Palmer não deveria herdar os bens de seu avô, embora possuísse o direito testamentário a recebê-los26. Os juízes da Suprema Corte sustentaram que existiria, embora não estivesse SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 12. 24 25 26 Riggs v. Palmer, 115 N.Y. 506 (1889). ENGELMANN, Wilson; HOHENDORF, Raquel Von; SANTOS, Paulo Júnior Trindade. O caso Riggs vs. Palmer como um “modelo” adequado para decidir sobre os direitos fundamentais no panorama da constitucionalização do direito no Brasil. Revista Espaço Jurídico, v. 18, p. 321-346, 2017. 30 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin escrito expressamente em nenhum lugar, um princípio jurídico no Direito Norte-Americano segundo o qual nenhuma pessoa deveria se beneficiar de sua própria torpeza (no men may profit from his own wrong). O segundo é o caso Henningsen v. Bloonfield Motors, Inc27 julgado pela Suprema Corte de Nova Jersey em 1960, no qual um cidadão americano chamado Henningsen processou o fabricante do automóvel que havia comprado para sua esposa e que veio a causar um grave acidente em decorrência de peças defeituosas28. A fabricante recusou-se a efetuar os reparos no veículo com base em uma cláusula do contrato de compra e venda que a eximiria de responsabilidade em casos de peças defeituosas do veículo29. O caso sustentado por Henningsen não encontrava fundamento em qualquer regra ou cláusula contratual que justificasse a não aplicação da cláusula do contrato de compra e venda que expressamente excluía a responsabilidade da fabricante do veículo. Contudo, a Corte decidiu que o fabricante deveria ser responsável pelos reparos necessários, uma vez que o comprador não teria condições de negociar as cláusulas do contrato de compra e venda e que não era correto o cumprimento irrestrito de um contrato evidentemente injusto e contrário à razoabilidade que deve reger todas as relações entre particulares30. Dworkin sustenta que esses dois casos paradigmáticos são capazes de demonstrar que a ideia de legalidade baseada unicamente no pedigree das regras não apanha inteiramente o fenômeno que ocorre na prática jurídica das Cortes. Segundo afirma o autor, os standards utilizados nesses casos não funcionam da mesma forma que a aplicação de regras jurídicas. Eles parecem bastante diferentes dos argumentos construídos com base em 27 Henningsen v. Bloomfield Motors, Inc., 32 N.J. 358, 161 A.2d 69 (N.J. 1960). 28 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 23. 29 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 23. 30 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 24. Wagner Arnold Fensterseifer | 31 regras que funcionam como “a velocidade máxima permitida na rodovia é de sessenta quilômetros por hora” ou “um testamento é inválido a menos que seja assinado por duas testemunhas”. Dworkin argumenta que são diferentes porque são princípios jurídicos e não regras jurídicas31. E a diferença apontada por Dworkin entre regras e princípios é sobretudo uma diferença de aplicação: enquanto as regras seriam aplicadas segundo uma lógica de tudo-ou-nada, sendo necessariamente válidas ou inválidas, os princípios teriam sua aplicação mais voltada para o fornecimento de razões para decisão, em uma dimensão de peso32. A prática jurídica revelaria que os profissionais do direito, especialmente os juízes, valer-se-iam dos princípios não em razão de sua autoridade, mas sim em razão de sua razoabilidade e justiça33. Enquanto a aplicação de regras jurídicas se daria muito mais em razão de sua força de autoridade, a aplicação dos princípios jurídicos estaria fundada em sua força argumentativa. Como destaca Ronaldo Porto Macedo Junior, a grande relevância da crítica elaborada por Dworkin em The Model of Rules I é explicitar que os princípios evidenciam o “point moral do direito”. Os princípios, de acordo com Dworkin, afirmam razões (jurídico-morais) que justificam uma determinada decisão, atribuindo-lhes um peso diferenciado ante outras possíveis razões com as quais compete34. De acordo com Dworkin, portanto, a tese das fontes sociais do Direito − ou tese do pedigree − deveria ser rejeitada por duas razões. A primeira é que princípios jurídicos são vinculantes para juízes simplesmente em 31 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 24. 32 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. p. 24. 33 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 164. 34 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 163. 32 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin razão de suas propriedades morais intrínsecas e não por conta de seu pedigree. Isto é, a vinculatividade dos princípios não decorreria do fato de existir uma regra de reconhecimento (fato social) que fornece um suporte de autoridade para a regra que está sendo aplicada, mas decorreria, sim, de seu conteúdo jurídico-moral e de sua força argumentativa para servir como razão de decidir. A segunda é que, ainda que a vinculatividade dos princípios estivesse ligada ao seu pedigree, é impossível formular uma regra estável que apreenda um princípio baseada em seu grau de suporte institucional35. O general attack de Dworkin ao positivismo jurídico, que demonstrou que os alicerces da teoria não eram tão robustos quanto aparentavam ser, sobretudo quando habilmente demonstrou fragilidades nas três principais teses que constituem, em linhas gerais, o positivismo jurídico em sua versão contemporânea, fez com que diversos teóricos do direito passassem a formular novas versões do positivismo jurídico, em uma tentativa de acomodar as críticas dworkinianas e ao mesmo tempo criar versões mais robustas da teoria do positivismo jurídico. 1.1.2. As respostas positivistas às críticas de Dworkin As respostas positivistas às críticas de Dworkin fizeram com que o positivismo jurídico tomasse dois caminhos distintos: o positivismo inclusivo e o positivismo exclusivo. Essas duas versões mantêm o núcleo central da proposta positivista, ou seja, a tese das fontes sociais, a tese descritiva e a tese da separação. Mas o que, então, difere uma versão da outra? É o que veremos a seguir. 35 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 14. Wagner Arnold Fensterseifer | 33 1.1.2.1. Positivismo Jurídico Exclusivo A abordagem conhecida como positivismo jurídico exclusivo, anti-incorporacionismo. positivismo radical ou inflexível, cujos principais representantes são Joseph Raz, Andrei Marmor e Scott Shapiro, é aquela que defende a impossibilidade conceitual de haver comunicação entre Direito e Moral num sistema jurídico. Em outras palavras, sustenta que aquilo que o direito obriga, proíbe ou permite não poderá jamais depender de um critério moral36, ou ao menos não poderá depender de um critério moral sem fundamento jurídico. Para eles, testes de legalidade devem sempre distinguir o que é direito do que não é direito com base exclusivamente em sua fonte social e devem ser implementáveis sem recursos à argumentação moral37. Segundo Brian Leiter, positivistas exclusivos interpretam a tese da separação como requerendo uma generalização universal da seguinte formulação: para todas as regras de reconhecimento, e, portanto, para todo sistema jurídico, não é o caso de que a moralidade é um critério de legalidade, a menos que algum critério de conteúdo neutro assim determine38. Mas como respondem os positivistas exclusivos à crítica de Dworkin no sentido de que juízes frequentemente decidem casos compelidos por princípios que não passam no teste de pedigree? Foram fornecidas ao menos duas respostas diferentes para tentar solucionar essa questão. A primeira afirmou que em verdade essas normas possuiriam pedigree, apesar de não aparentarem. Sua validação estaria no fato de que juízes tradicionalmente utilizam esses princípios em suas 36 STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito IMED, v. 14, p. 54-87, 2018. p. 77. 37 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. pp. 19-20. 38 LEITER, Brian. apud TAMANAHA, Brian Z. The Contemporary Relevance of Legal Positivism. St. John's Legal Studies Research Paper No. 07-0065; Australian Journal of Legal Philosophy, Vol. 32, 2007. p. 37. 34 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin decisões por um longo período de tempo, de modo que já haveria um costume jurídico ou mesmo uma tradição de utilização de tais princípios. Desse modo, estaria constituída a aceitação social dessa regra de reconhecimento e, portanto, não haveria qualquer problema para sua utilização em relação à Tese do Pedigree39. Como aponta Scott Shapiro40, entretanto, essa resposta é demasiadamente frágil. Isso porque a própria crítica elaborada por Dworkin já indicava casos específicos em que a aplicação de princípios foi realizada de forma totalmente inovadora, ou seja, a argumentação principiológica utilizada jamais havia sido utilizada anteriormente naquela comunidade jurídica. Ainda assim, a Corte sentiu-se compelida a utilizar um princípio para resolver determinado caso. Foi formulada, então, uma segunda resposta. O positivismo jurídico em sua versão exclusiva admite que em alguns casos juízes estão juridicamente obrigados a aplicar determinados princípios que carecem de pedigree institucional. Mas esse fato não seria suficiente para invalidar a tese das fontes sociais ou tese do pedigree. O que ocorre nesses casos excepcionais é que juízes estão simplesmente obrigados a aplicar padrões extrajurídicos41. Positivistas jurídicos exclusivos alegam, pois, que a tese das fontes sociais do direito deve se focar exclusivamente em fatores que não possuam qualquer relação com o mérito (moral ou de qualquer outra ordem) da norma em questão. Somente dessa forma o Direito poderá servir como autoridade legítima, da qual uma das principais funções é regular e guiar SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 20. 39 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 20. 40 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 21. 41 Wagner Arnold Fensterseifer | 35 condutas de modo que permita que uma comunidade jurídica evite controvérsias de cunho moral e político a todo tempo42. 1.1.2.2. Positivismo Jurídico Inclusivo O positivismo jurídico inclusivo, incorporacionismo ou positivismo moderado, cujos principais representantes são Jules Coleman, Wilfrid Waluchow43 e Herbert Hart, é a abordagem teórica que defende a possibilidade de que, em ao menos algum determinado sistema jurídico, existam julgamentos de direito dependentes de juízos de moralidade. Contudo, isso somente será possível se houver alguma norma de direito positivo neste sistema jurídico que inclua normas morais entre as suas normas jurídicas. Ou, colocando em termos hartianos, se a comunidade jurídica onde aquele sistema funciona tiver adotado uma convenção que assim o determine44. Como aponta Wilfrid Waluchow, aqueles que defendem versões do positivismo jurídico inclusivo apontam que não existiria nada na natureza do direito que impedisse a possibilidade conceitual de que uma regra de reconhecimento − cuja existência e conteúdo são puramente contingentes e dependentes de fatos sociais – possa, em razão de um determinado fato social, incluir a conformidade com uma ou mais normas morais dentre as condições de validade jurídica45. 42 WALUCHOW, Wilfrid. Four concepts of validity: reflections on inclusive and exclusive positivism. In: ADLER, Matthew; HIMMA, Kenneth (eds.). The Rule of Recognition and the United States Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 123. 43 W.J. Waluchow, Inclusive Legal Positivism (Oxford: Oxford University Press, 1994) e Jules L. Coleman, The Practice of Principle: In Defense of a Pragmatism Approach to Legal Theory (Oxford: Oxford University Press: 2001). 44 STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito IMED, v. 14, p. 54-87, 2018. p. 77. 45 WALUCHOW, Wilfrid. Four concepts of validity: reflections on inclusive and exclusive positivism. In: ADLER, Matthew; HIMMA, Kenneth (eds.). The Rule of Recognition and the United States Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 123. 36 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Segundo Brian Leiter, os positivistas inclusivos interpretam a tese da separação como envolvendo apenas uma generalização da seguinte formulação: é conceitualmente possível que exista ao menos uma regra de reconhecimento, e, portanto, um sistema jurídico, no qual a moralidade não seja um critério de validade46. O Direito, nesse sentido, poderia incorporar regras morais, que funcionam de modo diverso das regras jurídicas em sentido estrito, podendo-se identificá-las como princípios. É por essa razão que Leslie Green afirma que Hart deveria ter intitulado seu artigo publicado na Harvard Law Review em 1957 como Positivismo e a separabilidade do Direito e da Moral47 e não como foi de fato intitulado: Positivismo e a separação do Direito e da Moral. Para o positivismo inclusivo, então, é possível que um sistema jurídico crie uma regra segundo a qual todas as demais regras deverão ser analisadas, do ponto de vista de sua validade, pela consideração de determinados critérios morais. A separação entre o Direito e a moral é conceitualmente possível, mas nada impede que determinado sistema jurídico possua uma convenção social impondo levar em consideração a moral para determinar a validade ou para interpretar normas jurídicas. Assim, a tese da separação entre o direito e a moral permanece intocada, pois a moral não será conceitualmente o critério de validação do direito. Apenas de forma contingente será possível que determinado sistema jurídico crie regras que determinem essa validação moral das demais regras do sistema. Em relação à tese das fontes sociais do direito, contudo, as dificuldades são um pouco maiores. Isso porque a regra de reconhecimento 46 LEITER, Brian. apud TAMANAHA, Brian Z. The Contemporary Relevance of Legal Positivism. St. John's Legal Studies Research Paper No. 07-0065; Australian Journal of Legal Philosophy, Vol. 32, 2007. p. 37. 47 GREEN, Leslie. Positivism and the Inseparability of Law and Morals. New York University Law Review, v. 1035, 2008. Wagner Arnold Fensterseifer | 37 concebida por Hart é uma regra cujo fundamento é o consenso social. A formulação opera basicamente da seguinte forma: uma regra social impõe uma obrigação a p se e somente se membros do grupo concordam que p está obrigado48. Desse modo, parece impossível existir controvérsia a respeito dos requerimentos de uma regra social, isso porque ela encontra seu fundamento justamente no consenso49. Ainda assim, em casos difíceis, as autoridades responsáveis por aplicar o direito discordam entre si a respeito de quais princípios serão aplicados para resolver determinado caso. Com isso, se a regra de reconhecimento determinar que os juízes devem aplicar princípios morais, casos difíceis envolveriam controvérsia acerca do conteúdo da regra de reconhecimento. Entretanto, conforme mencionado anteriormente, é conceitualmente impossível existir controvérsia a respeito de uma regra social50. Essa situação evidenciaria um problema conceitual para o positivismo inclusivo, o qual decorre da contradição existente no fato de afirmar, ao mesmo tempo, que pode existir uma regra de reconhecimento que determine a solução de casos difíceis por meio da aplicação de princípios morais e que essa regra de reconhecimento é uma regra social. Foi Jules Coleman51 quem apresentou uma solução para esse problema, defendendo a consistência do positivismo inclusivo e da regra de SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 24. 48 49 Sobre consenso e regras sociais, relevante considerar o primeiro capítulo de Institutions of Law de Neil MacCormick, no qual o autor mostra de forma bastante clara a possibilidade de haver controvérsia com respeito a regras sociais. Ademais, importa destacar que essa formulação do consenso para aplicação da regra de reconhecimento como regra social é uma simplificação, que certamente não leva em consideração que o grau de convergência necessário para a existência da prática não parece implicar acordo com respeito a aplicação das regras reconhecidas como válidas pela prática convergente em todos os casos. O que ocorre não apenas em razão dos casos da zona de penumbra, mas também nas regras cujo conteúdo é aparentemente claro, tendo em vista a derrotabilidade das regras jurídicas (MACCORMICK, Neil. Institutions of law: an essay in legal theory. Oxford: Oxford University Press, 2007). SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 24. 50 51 COLEMAN, Jules. Negative and positive positivism. Journal of Legal Studies, vol. XI, pp. 139-164, 1982. 38 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin reconhecimento como regra social. Em resumo, Coleman sustentou que uma regra de reconhecimento que determine a utilização de princípios morais para resolução de casos difíceis envolverá disputas a respeito de sua aplicação, mas não em relação ao conteúdo dessa regra de reconhecimento. Diferentemente do que sustentou Dworkin, o consenso necessário para que uma regra de reconhecimento seja uma regra social permanece mesmo quando essa regra de reconhecimento faz referência a princípios morais. Quando juízes discordam a respeito da resolução de determinado caso difícil em que a regra de reconhecimento determinou o emprego de princípios morais, eles não estão discordando a respeito do conteúdo dessa regra de reconhecimento, mas sim em relação aos princípios morais que podem ser aplicados na resolução do caso. O consenso sobre a aplicação da regra de reconhecimento estaria perfeitamente verificado. O dissenso existiria somente na aplicação do que determina a regra de reconhecimento, ou seja, na aplicação do critério moral de validade. Essa estratégia para resolução do aparente problema conceitual do positivismo inclusivo foi também referida por Hart, no pós-escrito de O Conceito de Direito, afirmando que juízes podem concordar a respeito da existência de uma regra de reconhecimento que faça referência a princípios morais, ainda que não estejam de acordo em relação a forma como determinado caso concreto deverá ser resolvido por meio dessa aplicação52. Em suma, as críticas elaboradas por Dworkin e destinadas a demonstrar que o positivismo jurídico era uma teoria do direito inconsistente com a prática jurídica verificada cotidianamente nos tribunais, faculdades e escritórios de advocacia foram tão incisivas e certeiras que os teóricos 52 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 258. Wagner Arnold Fensterseifer | 39 identificados com o positivismo jurídico, sobretudo com a versão elaborada por Hart, passaram a elaborar versões que ou tornassem a teoria mais robusta e resistente às críticas dworkinianas, ou mais flexível e capaz de acomodar boa parte das fragilidades e vulnerabilidades apontadas pelo jusfilósofo americano. Contudo, o debate entre as ideias de Hart e Dworkin não terminou após a publicação de Taking Rights Seriously e das respostas dos positivistas inclusivos e exclusivos. O que os positivistas − tanto inclusivos quanto exclusivos − foram capazes de demonstrar foi que o fato de os juízes serem às vezes obrigados a aplicarem princípios morais na resolução de casos difíceis não torna, por si só, o positivismo jurídico falso53. Um novo capítulo foi inaugurado já a partir das discussões surgidas a respeito da crítica de Dworkin à tese convencionalista de Hart que justificaria a regra de reconhecimento e sua fundação em fatos sociais. Essa crítica aparece tanto em The Model Of Rules I quanto em The Model of Rules II e posteriormente, de forma mais elaborada, em Law’s Empire. Nesses dois últimos textos, a crítica de Dworkin ao positivismo jurídico ganha novos contornos. Como aponta Ronaldo Porto Macedo Junior, ao desenvolver e aprofundar a sua teoria da controvérsia e da possibilidade de objetividade mesmo em contextos controvertidos, Dworkin lançará o debate para um delicado terreno filosófico que envolve a definição dos conceitos de objetividade e de verdade e de algumas de suas principais teorias fundamentadoras, notadamente o convencionalismo54. 53 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 26. 54 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 172. 40 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Desse modo, o desenvolvimento do debate passa a frequentar outro campo de discussão filosófica, ganhando maiores contornos metodológicos, e focando-se com grande ênfase na questão atinente à autoridade do Direito e onde ela encontra suas fundações. Ademais, Dworkin dedica suas atenções especialmente para a questão da possibilidade de objetividade em contextos controvertidos, como é notadamente o caso do Direito. 1.1.3. O Império do Direito Dworkin enuncia, já nas primeiras páginas de Law's Empire, que o livro fala sobre desacordos teóricos no Direito55. Apresenta como objetivo principal a compreensão sobre qual é o tipo de desacordo existente no Direito, bem como a construção e defesa de uma teoria específica sobre os fundamentos do Direito56. Como visto no final do tópico anterior, Dworkin estava direcionando novamente suas críticas ao positivismo jurídico, tal como havia feito em Taking Rights Seriously. Contudo, o enfoque de sua crítica ganhava novos contornos, na medida em que as fragilidades por ele apontadas na teoria do positivismo jurídico foram em grande medida refutadas pelas respostas dos autores identificados com essa corrente jusfilosófica. Como aponta Scott Shapiro57, as novas críticas elaboradas por Dworkin ao positivismo jurídico, com enfoque para a dificuldade do positivismo em apanhar certos tipos de desacordos nos quais os atores da prática jurídica frequentemente recaem, foram bastante poderosas e exigiram dos positivistas novas formulações teóricas capazes de absorver o ataque dworkiniano. 55 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 12. 56 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 12. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 27. 57 Wagner Arnold Fensterseifer | 41 No primeiro capítulo de Law's Empire, Dworkin afirma que o Direito é um fenômeno social que possui estrutura de funcionamento própria. A prática jurídica, afirma ele, é uma prática argumentativa, haja vista que consiste em larga medida na apresentação pelos atores do campo jurídico de diversas reivindicações sobre o que o direito demanda e na defesa de tais reivindicações por meio do fornecimento de razões para suportá-las58. Contudo, uma importante distinção deve ser feita quando se trata das afirmações realizadas na prática jurídica: de um lado, é possível apresentar proposições de Direito; de outro, fundamentos de Direito. Enquanto uma posposição de Direito é uma afirmação sobre o conteúdo de uma lei em um determinado sistema jurídico, afirmações sobre os fundamentos do Direito dizem respeito aos requisitos para que uma lei possa ser considerada válida em determinado sistema jurídico59. Quando alguém afirma que para ser Presidente da República no Brasil é necessário, dentre outros critérios, ter ao menos trinta e cinco anos de idade, essa afirmação é uma proposição de Direito, haja vista que fala sobre o conteúdo de uma regra específica no contexto do sistema jurídico brasileiro. Essa proposição pode ser avaliada como verdadeira ou falsa, a depender do que estiver de fato determinado pela legislação que prevê os requisitos mínimos para candidatura à Presidência da República. O critério utilizado para verificar se essa proposição de Direito é verdadeira ou falsa, contudo, dependerá dos fundamentos de Direito envolvidos no caso. Como a regra que determina os requisitos para que um cidadão possa ser eleito Presidente da República está inserida na Constituição da República Federativa do Brasil, que foi promulgada em 1988 por uma Assembleia Nacional Constituinte, pode-se afirmar que é verdadeira a 58 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 13. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. pp. 28-29. 59 42 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin regra que exige idade mínima de trinta e cinco anos para candidatura à Presidência da República. Em razão dessa distinção entre proposições de Direito e fundamentos de Direito, Dworkin afirma que são possíveis dois tipos diferentes de desacordos jurídicos. O primeiro tipo envolve desacordos sobre os fundamentos de determinada regra jurídica e irá envolver uma disputa acerca da verificação da forma como foi constituída a regra que está sendo aplicada ao caso60. No Brasil, por exemplo, para que uma Lei Complementar seja devidamente aprovada é necessária maioria absoluta do Congresso Nacional. Assim, um desacordo que poderá surgir será o de verificar se o procedimento legislativo foi devidamente observado para a aprovação da lei que contém a regra que está em aplicação. A verificação para solucionar esse tipo de desacordo pode ser obtida de forma relativamente simples, por meio de uma análise empírica e histórica relativamente ao processo legislativo que aprovou a lei sob análise. Por isso, Dworkin chama tais desacordos de “desacordos empíricos”. O segundo tipo de desacordo possível não está relacionado à forma como determinada lei foi constituída, mas sim sobre a autoridade que certa instituição legislativa possui para legislar sobre aquele conteúdo de direito61. As partes podem estar de acordo sobre o cumprimento das exigências formais para a criação de determinada Lei Complementar e, contudo, discordar em relação à autoridade que o Congresso Nacional possuía para aprovar certas matérias legislativas. Ou seja, nesse caso a discordância não recai sobre a validade formal da lei, mas sim sobre a validade de seu conteúdo, sobre o que pode ou não ser disposto pelo Direito. 60 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 29. 61 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 30. Wagner Arnold Fensterseifer | 43 De acordo com Dworkin, o desacordo ocorrido nessa situação é um desacordo teórico sobre o Direito, sobre o que deve ocorrer em determinado sistema legal a fim de que uma proposição de direito possa ser avaliada como verdadeira ou falsa62. É nesse ponto que Dworkin endereça sua crítica ao positivismo jurídico, ao afirmar, primeiramente, que a teoria do Direito em geral é incapaz de fornecer uma resposta plausível para os desacordos teóricos no Direito63. E, para o autor, a razão para que essa teoria não tenha sido desenvolvida é que os teóricos estão comprometidos com uma visão do Direito como uma simples questão de fato (plain fact view)64. Para compreender o que Dworkin pretendia ao criticar essa visão do Direito como simples questão de fato, é importante analisar de forma detalhada o excerto a seguir reproduzido: Eles [os teóricos que afirmam o Direito como simples questão de fato] dizem que o desacordo teórico é uma ilusão, que todos os juízes e advogados concordam sobre os fundamentos do Direito. Eu devo chamar essa ideia de visão dos fundamentos do direito como mera questão de fato; e aqui segue uma formulação preliminar de suas principais afirmações. O direito nada mais é do que aquilo que as instituições legislativas decidiram no passado. Se alguma dessas instituições decidiu que os trabalhadores podem ser indenizados por danos causados por seus colegas de trabalho, esse será o direito. Se houvesse decidido de modo diverso, aquele então seria o direito. Portanto, questões de direito podem sempre ser respondidas mediante investigações nos livros e inscrições onde essas decisões foram registradas65. 62 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 30. 63 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 6. 64 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 7. 65 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 7. 44 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Conforme argumenta Dworkin, a visão do direito como mera questão de fato é incapaz de perceber a possibilidade de desacordos do tipo teórico. Os desacordos jurídicos estariam limitados a questões empíricas consistentes na verificação dos registros históricos que contêm o produto das atividades legislativas. Contudo, para Dworkin, a prática jurídica nos apresenta muitos outros desacordos entre atores nela envolvidos do que meros desacordos sobre o que o legislador fez ou deixou de fazer66. E esses desacordos ocorrem justamente em casos nos quais os dois lados em disputa reconhecem um texto como sendo validamente aplicável ao caso e, no entanto, não concordam a respeito do modo como essa lei será aplicada, tampouco de um ou outro resultado que se originará da aplicação dessa lei ao caso em disputa. Dworkin sustenta que os atores jurídicos partidários da visão do direito como mera questão de fato não ignoram que esse tipo de desacordo exista − e inclusive ocorra com alguma frequência na prática jurídica − contudo, eles afirmam que nesses casos por mais que pareça estar havendo um desacordo acerca do que o direito é, em verdade se está discordando a respeito do que o direito deveria ser67. Em outras palavras, o que se está tentando fazer não é aplicar o direito, mas corrigir o direito. Com isso, Dworkin conclui que a visão do direito como mera questão de fato é incapaz de apreender o que de fato ocorre quando desacordos teóricos são gerados na tentativa de solucionar determinado caso. Por esse motivo, essa visão não seria capaz de perceber o caráter argumentativo do Direito e via de consequência deveria ser descartada como explicação plausível do fenômeno jurídico. 66 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 31. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Public Law and Legal Theory, Working Paper n. 77/2007. University of Michigan Law School. p. 33. 67 Wagner Arnold Fensterseifer | 45 Ronaldo Porto Macedo Junior interpreta a crítica de Dworkin nesse ponto específico como evidenciando um fracasso do positivismo jurídico, que malograria em seu projeto teórico justamente por não conseguir explicar um dos elementos centrais da prática jurídica que é a existência de desacordos teóricos relevantes para as práticas jurídicas68. Nesse ponto é importante considerar a crítica elaborada por Dworkin à pressuposição semântica que o positivismo jurídico faz para a correta descrição do conceito de Direito, a qual ele denominará ferrão ou aguilhão semântico (semantic sting)69. Dworkin, nesse sentido, entende que há uma conexão forte entre a incapacidade de algumas teorias do direito de reconhecerem os desacordos teóricos e sua contaminação pelo aguilhão semântico70. Como aponta Kenneth Himma71, o aguilhão semântico, em seu nível mais abstrato, pode assumir a seguinte formulação: duas pessoas com diferentes conceitos de x não podem comunicar-se de fato entre si sobre x e portanto não podem ter desacordos relevantes sobre x. Seria como se duas pessoas estivessem conversando sobre mangas, mas uma delas estivesse se referindo às mangas de uma camisa e a outra estivesse falando de frutas. Nessa linha de argumentação, a única forma de explicar desacordos relevantes sobre algum tópico particular seria supor que todos aceitamos e seguimos o mesmo critério para decidir quando nossas reivindicações são sérias (sound)72. 68 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 184. 69 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 45. 70 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 181. 71 HIMMA, Kenneth Einar. Ambiguously Stung: Dworkin’s Semantic Sting Reconfigured. Legal Theory, v. 8, n. 2, pp. 145-183, 2002. p. 157. 72 HIMMA, Kenneth Einar. Ambiguously Stung: Dworkin’s Semantic Sting Reconfigured. Legal Theory, v. 8, n. 2, pp. 145-183, 2002. p. 157. 46 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Quando aplicado à prática jurídica, o aguilhão semântico exigiria que todas as pessoas envolvidas nessa prática deveriam compartilhar o mesmo conceito de Direito para que pudessem chegar a desacordos teóricos relevantes. Ocorre, entretanto, que os desacordos teóricos em Direito residem justamente no conflito entre duas ou mais visões distintas acerca da própria definição de Direito. Dessa forma, segundo Dworkin, é preciso abandonar a ideia de definir o Direito por meio de uma semântica criterial e fisicalista, admitindo-se o seu caráter argumentativo. São frequentes as situações na prática jurídica em que ocorrem desacordos, os quais não raras vezes referem-se aos próprios critérios do que pode ou não pode ser considerado Direito, não se limitando a desacordos empíricos sobre a mera aplicação dos critérios a casos particulares73. A explicação de Dworkin para os desacordos encontra-se na natureza interpretativa e argumentativa das disputas morais, bem como no fato de que o direito não pode ser compreendido baseando-se exclusivamente em suas fontes sociais, mas também precisa ser analisado com base em sua fonte moral, de natureza argumentativa e enraizada nas disputas políticas e morais74. Portanto, a crítica de Dworkin à obra de Hart nesse ponto específico, consiste em afirmar que é equivocado descrever o Direito como um sistema de regras que encontra seu fundamento em uma regra de segunda ordem − a regra de reconhecimento − que tem como fonte sua aceitação social. E o equívoco apontado por Dworkin reside exatamente na necessidade de que a regra de reconhecimento seja aceita socialmente por meio de consenso. Para o autor, a exigência de consenso a respeito da regra de 73 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 184. 74 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 192. Wagner Arnold Fensterseifer | 47 reconhecimento colidiria com os desacordos teóricos em direito que se verificam de forma muito frequente na prática jurídica. A principal objeção filosófica de Dworkin em relação ao positivismo jurídico está radicada em sua teoria da controvérsia. Para evidenciar os limites do positivismo jurídico, Dworkin procura descrever a genealogia do erro filosófico que está na raiz dessa teoria, notadamente a pressuposição semântica para a correta descrição do conceito de direito que ele denominará de “aguilhão semântico” ou (semantic sting)75. Ainda, a crítica do aguilhão semântico afeta diretamente a construção teórica da regra de reconhecimento, segundo Dworkin, uma vez que somente seria possível alcançar um consenso sobre o que pode servir como fonte do direito se todos os atores envolvidos compartilharem um conceito semântico do que é direito. Tendo visto os principais pontos do debate entre Hart e Dworkin, bem como suas consequências para a Teoria do Direito e seus reflexos no modo como se desenvolveram os debates acadêmicos sobre filosofia do direito nas últimas décadas, passa-se, na próxima seção, a analisar as principais posições teóricas em metaética, tendo como objetivo tornar claras as premissas que suportarão a análise específica da obra de Hart e Dworkin, nos dois próximos capítulos, com enfoque em suas posições acerca da objetividade da moral. 1.2. As principais posições teóricas em metaética Para fins de clareza e precisão terminológica, a seguir será realizada uma investigação acerca das principais teorias contemporâneas sobre metaética, pretendendo-se, com isso, identificar e classificar de forma 75 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 180. 48 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin tecnicamente precisa a concepção de Hart e Dworkin sobre os juízos morais, sua natureza e epistemologia76. Tendo em vista os objetivos da presente pesquisa, será importante compreender quais são os elementos relevantes para constituição de uma posição metaética, bem como estar a par − ainda que de forma resumida − dos debates contemporâneos nessa área da filosofia. Com isso, será possível buscar elementos nas obras de Hart e Dworkin que permitam identificar indícios de que estão filiados a uma ou outra posição metaética. E, ao fazê-lo, também será possível compreender os benefícios e prejuízos decorrentes da adoção de cada posição metaética, bem como suas limitações e as principais críticas a elas formuladas. Após, será possível compreender o modo como essas concepções teóricas sobre metaética produzem efeitos na construção das teorias do direito elaboradas por Hart e Dworkin, bem como seu papel no debate entre os autores. 1.2.1. O que é metaética? Metaética77 é o campo da filosofia que busca compreender o que se faz quando são realizados julgamentos morais/éticos, bem como a forma como isso se relaciona às demais questões filosóficas, como por exemplo, a natureza da realidade, os significados da linguagem, a psicologia da ação, a possibilidade do conhecimento, etc78. 76 Não se ignora a existência das críticas de Dworkin às teorias arquimedianas, dentre as quais se encontraria a própria metaética, contudo, entende-se que é possível analisar a concepção de moralidade tanto de Hart quanto de Dworkin lançando-se mão dos conceitos fundamentais da metaética. 77 Para os propósitos da presente pesquisa, não será necessário adentrar nas especificidades e debates internos em metaética. O que se pretende, aqui, é compreender de forma suficiente os principais conceitos e posições possíveis em metaética, para que seja possível analisar as obras de Hart e Dworkin e verificar em que posição metaética é possível classificar tais autores. Mais do que simples etiquetamento dos autores, o que se pretende é compreender as consequências filosóficas de se adotar certa posição metaética e os reflexos que essas posições produzem nas teorias do direito desenvolvidas por Hart e Dworkin. 78 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. Wagner Arnold Fensterseifer | 49 Segundo a Enciclopédia de Filosofia de Stanford79, metaética é: a tentativa de compreender os pressupostos e compromissos metafísicos, epistemológicos, semânticos e psicológicos do pensamento, fala e prática morais. Como tal, incluem-se em seu domínio uma ampla gama de perguntas e perplexidades, incluindo: A moralidade é mais uma questão de gosto que de verdade? Os padrões morais são culturalmente relativos? Existem fatos morais? Se existem fatos morais, qual é a sua origem? Como é que eles estabelecem um padrão apropriado para o nosso comportamento? Como os fatos morais podem ser relacionados a outros fatos (sobre psicologia, felicidade, convenções humanas ...)? E como aprendemos sobre os fatos morais, se houver algum? Essas questões levam naturalmente a questionamentos sobre o significado das reivindicações morais, bem como sobre a verdade moral e a justificação de nossos compromissos morais. A metaética, nesse sentido, não analisa as possíveis respostas a questionamentos como “devo devolver a carteira que encontrei na rua?” ou “é correto apoiar o combate à fome no mundo?”, mas está preocupada com os pressupostos de tais questionamentos. Segundo Alexander Miller80, a metaética está preocupada em responder a questões envolvendo os seguintes aspectos: (a) Significado: qual é a função semântica do discurso moral? É a função do discurso moral descrever fatos, ou existe algum outro papel que não envolve descrever fatos? (b) Metafísico: existem fatos (ou propriedades) morais? Caso positivo, como eles são? Eles são idênticos ou reduzíveis a algum outro tipo de fatos (ou propriedades) ou são irredutíveis e sui generis? 79 SAYRE-MCCORD, Geoff. “Metaethics”. In: ZALTA, Edward N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/sum2014/entries/metaethics/>. Acesso em: 02 nov. 2018. 80 MILLER, Alexander. An Introduction to Contemporary Metaethics. Cambridge: Polity Press, 2003. p.2. 50 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin (c) Epistemológico e justificativo: é possível falar em conhecimento moral? Como se pode saber se nossos juízos morais são verdadeiros ou falsos? Como podemos justificar nossas alegações de conhecimento moral? (d) Fenomenológico: como qualidades morais são representadas na experiência de um agente realizando julgamentos morais? Elas aparecem estando “aí fora” no mundo? (e) Psicológico Moral: o que podemos dizer sobre o estado motivacional de alguém realizando um juízo moral? Que tipo de conexão existe entre realizar um julgamento moral e estar motivado a agir segundo o que aquele julgamento prescreve? (f) Objetivo: podem julgamentos morais realmente serem corretos ou incorretos? É possível trabalhar com o objetivo de encontrar a verdade moral? Na lição de Andrew Fischer, o prefixo “meta” em metaética, não deve ser entendido como estando “perto de” ou sendo “transformado” ou “mudando”, como o prefixo é algumas vezes utilizado. Deve, sim, ser compreendido como “pensar sobre” ou mesmo “colocar-se à parte de” em relação à ética. Por isso, filósofos costumam chamar a metaética de disciplina de segunda ordem81. Portanto, o campo de atuação da metaética envolve a busca por respostas a questões sobre a ética e a moral, mas não especificamente respostas a questões éticas e morais. Trata da possibilidade de conhecimento da moral, das características da linguagem moral, da existência ou inexistência de fatos morais. Posições, ou etiquetas (labels) podem ser atribuídas aos filósofos em razão das respostas que eles fornecem às perguntas formuladas pelo campo de estudo da metaética. As principais posições metaéticas, nesse sentido, são as seguintes: realismo e antirrealismo, cognitivismo e nãocognitivismo, expressivismo, construtivismo, teoria do erro e ficcionismo. 81 FISCHER, Andrew. Metaethics. Durham: Acumen Publishing, 2011. p. 03. Wagner Arnold Fensterseifer | 51 Nos próximos subcapítulos, veremos de forma mais detalhada no que consiste cada uma das posições metaéticas possíveis dentro de seu espectro teórico. 1.2.2. Realismo e antirrealismo moral Ser realista, do ponto de vista metaético, é estar convencido de que fatos morais são objetivos. Por mais que existam visões controvertidas a respeito do que são esses fatos, ou em que sentido exatamente se pode afirmar que eles são objetivos, todos os filósofos que pensam dessa maneira podem ser descritos como realistas. Realistas acreditam que fatos morais estão “aí fora” como parte da realidade a ser descoberta, mas não como produto de nossas reações subjetivas ou intersubjetivas82. O realismo moral consiste em aceitar como verdadeiro o fato de que propriedades morais são reais e que essas propriedades são de algum modo independentes em relação ao que as pessoas pensam, acreditam e julgam83. O conceito de realismo é utilizado tanto no campo da filosofia da ciência, quanto no campo da filosofia moral84. O realismo (científico), conforme aponta Arthur Ferreira Neto, assume dois pressupostos: (i) que conceitos abstratos possuem existência real (ainda que não corpórea) e podem ser conferidos empiricamente (ainda que em parte); e (ii) que o mundo possui realidade que é independente dos nossos estados mentais85. Já quando se fala em realismo no campo da moral, existem pressupostos 82 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 04. 83 FISCHER, Andrew. Metaethics. Durham: Acumen Publishing, 2011. p. 55. 84 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 182. 85 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 183. 52 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin distintos, ainda que derivados da ideia geral de realismo científico, como aponta Arthur Ferreira Neto: (1) Fatos morais existem, mas possuem uma dimensão existencial diferenciada dos demais fatos naturais; (2) Os fatos morais são independentes de qualquer crença ou estado mental que possamos assumir em relação a eles; e (3) É possível que venhamos a nos equivocar sobre o que é certo e o que é errado em relação aos fatos morais86. Fica clara a existência de duas dimensões distintas em relação ao realismo moral: de um lado, a análise é ontológica (sobre a constituição da moral); de outro lado, a análise é epistemológica (sobre a cognoscibilidade da moral). Seguindo a lista de pressupostos acima reproduzida, em (1) e (2) temse asserções de natureza ontológica, haja vista que se está afirmando algo sobre a existência dos fatos morais e sobre a relação entre o objeto (fato moral) e o sujeito que com ele interage. Já em (3) tem-se uma asserção epistêmica, pois fala sobre a possibilidade de conhecimento moral. Em relação à dimensão ontológica de análise, os realistas podem ser subdivididos em algumas categorias distintas. As mais comuns são naturalismo, sobrenaturalismo e não-naturalismo. Para o naturalismo, fatos morais são fatos como aqueles estudados pelas ciências naturais. Para o sobrenaturalismo, fatos morais são fatos como aqueles estudados pela teologia ou misticismo. Já para o não-naturalismo, fatos morais são fatos que não podem ser classificados como naturais nem sobrenaturais, mas como fatos sui generis87. 86 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 183. 87 BRINK, David Owen. Moral realism and the foundations of ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 22-23. Wagner Arnold Fensterseifer | 53 É por conta dessa assunção de que fatos morais são reais (i.e. possuem dimensão existencial e são independentes de nossas crenças ou estados mentais) e devem ser caracterizados como fatos sui generis (nem como fatos naturais, nem como fatos sobrenaturais) que realistas morais podem afirmar que os fatos morais não são dependentes de qualquer dedução prévia ou comprovação anterior. Como afirma Arthur Ferreira Neto, “são eles, conceitualmente falando, os elementos fundantes que fixam as condições para que outras comprovações e deduções morais sejam promovidas”88. Dessa maneira, evita-se que as justificações morais sejam sempre passíveis de regressão infinita. Para o realista moral, sobretudo aquele que compreende os fatos morais como fatos sui generis, existem verdades morais que funcionam de modo muito semelhante ao das verdades primeiras da lógica, física ou biologia89. Tratam-se de verdades, princípios teóricos, que aqueles que desejam aprofundar seu conhecimento científico assumem como evidentes e acessíveis ao intelecto por indução90. Para os realistas morais, existiriam verdades morais que serviriam como fundamento de validade e justificação, as quais funcionariam da mesma forma que o princípio da não-contradição, na lógica, ou que os princípios elementares da matemática (a reta é a menor distância entre dois pontos em um espaço plano). Dessa forma, torna-se possível a avaliação de enunciados morais em termos de verdadeiro ou falso, de forma objetiva, uma vez que poderão ser reduzidos aos seus fundamentos e então comparados às verdades morais (primeiros princípios do raciocínio moral). 88 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 185. 89 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 187. 90 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 187. 54 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Contudo, em razão da possibilidade de compreender o realismo moral sob a perspectiva ontológica e sob a perspectiva epistemológica, é relevante – para os fins da presente obra – definir que sob o ponto de vista metaético pode-se cunhar dois tipos de realismo moral: o realismo moral de objetos e o realismo moral de razões. O realismo moral de objetos, do ponto de vista ontológico, compreende os fatos morais como fatos naturais ou sobrenaturais. Como decorrência disso, do ponto de vista epistemológico ele será cognitivista, e a sua verificação sobre a veracidade ou falsidade dos enunciados morais será tributária aos fatos morais por ele encontrados no mundo. Já o realismo moral de razões, sob o aspecto ontológico, somente poderá compreender os fatos morais como fatos sui generis ou mesmo suspender seu juízo quanto à natureza de tais fatos. Contudo, em relação ao ponto de vista epistemológico, entenderá que é possível encontrar as razões morais corretas, que conduzirão aos enunciados morais verdadeiros, sendo, portanto, cognitivista. A objetividade da moral, nesse sentido, estará justificada pois existe o realismo das razões morais que fundamentam os enunciados. Por oposição, antirrealismo é a crença de que fatos morais somente poderiam ser tratados como objetivos se fossem capazes de satisfazer determinadas exigências, como: serem irredutíveis a fatos naturais e capazes de produzirem reações de forma independente das pessoas. Considerando-se que, na visão antirrealista, não existem fatos morais que satisfaçam tais condições – ou ao menos até agora isso não foi demonstrado – o realismo deve ser rejeitado. A existência de fatos morais que atendam às exigências dos antirrealistas seria algo muito estranho para se enquadrar em nossa ontologia geral91. 91 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 4. Wagner Arnold Fensterseifer | 55 Antirrealismo moral é a negação da tese segundo a qual fatos morais (propriedades, verdades, eventos, etc.) podem existir de forma independente da mente humana. Essa negação pode envolver (1) a negação mais ampla de que propriedades ou fatos morais existem como um todo, ou (2) a aceitação que existem, mas que essa existência é dependente da mente humana92. 1.2.3. Cognitivismo e não-cognitivismo moral Quando se fala em cognitivismo ou não-cognitivismo moral, trata-se não apenas de metaética, mas também de epistemologia e de filosofia da linguagem. Isso porque, para o cognitivista moral, é possível produzir, conhecer e comunicar − com algum grau de objetividade − juízos de verdade ou falsidade referentes à ação humana, baseados na racionalidade que é comum, em maior ou menor grau, a todos seres humanos93. Assim, para o cognitivista, por meio de argumentos morais é possível descobrir o que são os fatos morais objetivos. Segundo Michael Smith, o cognitivismo moral implica, de certa forma, aceitação do realismo moral, haja vista que o que foi dito acima somente pode ser realizado na prática se existirem, no mundo real, fatos morais objetivos94. Ou seja, se imiscuídos aos variados fatos que existem no mundo não existirem apenas fatos sobre as consequências de nossas ações, por exemplo, sobre o bem-estar de nossos familiares e amigos, mas também fatos distintivamente morais95. Fatos sobre a correção ou incorreção das ações que causam tais consequências. 92 JOYCE, Richard. “Moral Anti-Realism”. In: ZALTA, Edward N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/anti-realism/>. Acesso em: 16 jun. 2019. 93 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 141. 94 SMITH, Michael. The moral problem. Oxford: Blackwell Publishers, 1994. p. 09. 95 SMITH, Michael. The moral problem. Oxford: Blackwell Publishers, 1994. p. 09. 56 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin O não-cognitivismo, por outro lado, pressupõe que emitir um juízo moral requer certo desejo, certo sentimento, e não o reconhecimento de um fato mundano que pode racionalmente compelir seres humanos a desejar fazer uma ação em detrimento de outra. Como exemplifica Smith, quando apoiamos uma campanha de combate à fome, não estamos reconhecendo um fato moral de que é correto combater a fome, mas apenas exprimindo nosso desejo de combater a fome. Contudo, não é possível afirmar que é correto ou incorreto combater a fome, uma vez que o nãocognitivista não vislumbra fatos morais capazes de serem objetivamente descritos em termos de veracidade ou falsidade96. Se houver uma concordância geral em relação à afirmação de que é “correto combater a fome”, isso se dará apenas de forma contingencial, porque as pessoas compartilham o mesmo sentimento e desejo em relação a essa questão97. Para o não-cognitivismo, portanto, sentenças proferidas em juízos morais não carregam significado cognitivo (diferentemente do que ocorre com asserções e descrições), mas apenas são usadas para proferir prescrições. Simon Blackburn trata da distinção entre cognitivismo e não-cognitivismo lançando mão de uma metáfora: de um lado, temos os seguidores de Dioniso, Deus grego ligado às paixões, ao hedonismo; de outro lado, temos os seguidores de Apolo, Deus grego ligado à verdade, à razão98. Os valores morais, para os dionisíacos, são ligados às emoções, aos desejos e às atitudes. Já para os apolíneos, os valores morais decorrem da cognição, do conhecimento e das razões. Mas apenas a distinção entre cognitivismo e não-cognitivismo não é suficiente para apreender todos os matizes dos posicionamentos 96 SMITH, Michael. The moral problem. Oxford: Blackwell Publishers, 1994. p. 10. 97 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 142. 98 BLACKBURN, Simon. Ruling Passions: a theory of practical reasoning. Oxford: Claredon Press, 1998. p.88. Wagner Arnold Fensterseifer | 57 metaéticos. Contemporaneamente, fala-se em cognitivismo forte, cognitivismo fraco, não-cognitivismo forte e não-cognitivismo fraco. Atribui-se uma diferença de grau às posições, marcando-se as diferenças que denotam posicionamento mais próximo ou mais afastado dos extremos da possibilidade de conhecimento de juízos morais. Como visto acima, o cognitivismo moral decorre da crença de que são possíveis juízos objetivos em relação a questões morais, ou seja, há possibilidade de avaliar juízos morais em termos de verdade ou falsidade. Nesse contexto, o cognitivismo forte é a teoria que identifica a possibilidade de avaliar juízos morais em termos de verdade ou falsidade e também sustenta que juízos morais são descobertos pela racionalidade humana, de modo que a diferença entre um juízo moral verdadeiro e um juízo moral falso seria a correspondência entre o fato moral que “está aí fora” no mundo e a forma como a racionalidade humana o compreende99. Para essa concepção metaética, a avaliação de juízos morais em termos de verdadeiro ou falso seria possível de forma imparcial/objetiva, uma vez que – tal como ocorre nas verificações empíricas em ciências naturais – bastaria verificar se o juízo moral está de acordo com o fato moral objetivo100. O cognitivismo fraco, por sua vez, é a teoria que aceita a avaliação moral em termos de verdade e falsidade, mas não admite como possível que essa validação seja realizada de forma totalmente apartada da opinião humana101. Para o cognitivismo fraco, os fatos morais não são totalmente independentes e objetivos, pois dependem e necessitam da opinião humana para serem compreendidos. A prática diária de justificação moral, a reflexão acerca do que é bom para um indivíduo ou para a sociedade, ou mesmo a consideração sobre o que é impositivo para o plano de vida 99 MILLER, Alexander. An Introduction to Contemporary Metaethics. Cambridge: Polity Press, 2003. p. 4. 100 HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press, 1998. p. 6. 101 MILLER, Alexander. An Introduction to Contemporary Metaethics. Cambridge: Polity Press, 2003. p. 4. 58 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin individual ou coletivo, são questões acessíveis por meio da razão. Não são meros reflexos de preferências, emoções ou paixões. Todavia, essa reflexão de cada indivíduo fará surgir concepções do que é bom, do que é justo, e do que é um bom plano de vida fortemente influenciadas pelas relações interpessoais daquele indivíduo e do contexto em que sua vida está inserida. Assim, tais valores deverão ser considerados como alguns, entre tantos outros possíveis, e não como valores objetivos, imparciais e independentes dos contextos individuais e interpessoais102. Em relação ao não-cognitivismo, que é a posição metaética que nega a possibilidade de avaliar juízos morais em termos de verdade ou falsidade, também é possível identificar graus distintos de intensidade das teses. O não-cognitivismo forte é aquela posição que nega qualquer possibilidade de que juízos morais sejam decorrentes do uso da razão. Para essa posição metaética, juízos morais são meramente produto de sensações, emoções ou paixões daquele que os emite, sendo, portanto, subjetivos. Essa concepção afasta qualquer possibilidade de juízos morais objetivos, uma vez que apenas por contingência um grupo de pessoas teria a mesma reação emotiva em relação a determinado fato, que os levaria a emitir juízos morais similares103. O não-cognitivismo fraco é assim denominado pois depende de circunstâncias e especificidades, como a busca pela felicidade104. Difere do não-cognitivismo forte por não considerar os juízos morais totalmente subjetivos e reféns das emoções e paixões individuais. Há um elemento compartilhado entre os indivíduos − como a busca pela felicidade ou a necessidade de sobrevivência da espécie, por exemplo − o qual, contudo, não 102 HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press, 1998. p. 6. 103 HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press, 1998. p. 7. 104 VOLPATO DUTRA, Delamar José; OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Moral Cognitivism and Legal Positivism in Habermas’s and Kant's Philosophy of Law. ethic@-An international Journal for Moral Philosophy, v. 16, n. 3, p. 533-546, 2017. p. 534. Wagner Arnold Fensterseifer | 59 conduzirá às mesmas conclusões do ponto de vista moral. Assim, os juízos morais permanecerão inavaliáveis em termos de verdade ou falsidade, mas poderão ser verificados com base no critério objetivamente definido por aquela comunidade. 1.2.4. Expressivismo moral Expressivismo é a visão de que certos tipos de linguagem possuem a função de expressar estados mentais em vez de representarem fatos. Assim, de acordo com os expressivistas, quando alguém diz “Assassinar é errado!” essa pessoa não está descrevendo um estado de coisas, mas declarando, defendendo ou exibindo uma postura negativa em relação ao assassinato105. De forma mais específica, o que o expressivismo sustenta é que palavras como “deve” ou “errado” convencionalmente funcionam de modo a expressarem posturas não-cognitivas, ou seja, expressam algo diferente de crenças diretas, como emoções ou intenções. Mais do que isso, o expressivismo sustenta que essas posturas não-cognitivas explicam o significado de tais expressões em vez de somente estarem por coincidência frequentemente correlacionadas ao seu uso106. Ao alegar que sentenças morais e os estados mentais que elas expressam não estão empregadas para representar a realidade, o expressivismo metaético pavimenta o caminho para uma visão antirrealista da moral, uma vez que dispensa a necessidade de se comprometer com a realidade dos fatos morais objetivos107. Por outro lado, o expressivismo também não 105 CAMP, Elisabeth. Metaethical Expressivism. In: MCPHERSON, Tristram; PLUNKETT, David (ed.). The Routledge Handbook of Metaethics. New York: Routledge, 2018. p. 87. 106 CAMP, Elisabeth. Metaethical Expressivism. In: MCPHERSON, Tristram; PLUNKETT, David (ed.). The Routledge Handbook of Metaethics. New York: Routledge, 2018. p. 88. 107 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 36. 60 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin precisa estar comprometido com o antirrealismo, uma vez que se trata de uma tese de filosofia da linguagem com implicações não-cognitivistas, cujo funcionamento independe da adoção de um posicionamento realista/antirrealista em relação à moral, embora pareça ter maior afinidade com o último. A versão mais atual e sofisticada do expressivismo moral possui origens no emotivismo108 de Alfred Jules Ayer (A.J. Ayer). A ideia básica de Ayer era que enunciados sobre moral deveriam ser vistos não como tentativas de descrever fatos, mas sim de expressar reações emotivas aos fatos. Para ser mais preciso, Ayer sustentou que enunciados sobre moral possuem ao menos duas funções. A primeira é a de descrever a moral de diferentes comunidades de pessoas e a segunda é a de expressar as próprias opiniões de alguém a respeito do que é certo ou errado, bom ou mau109. De acordo com Ayer, o uso de expressões morais da primeira forma representa muito mais descrições sociológicas do que expressões de julgamentos normativos110. Por exemplo, quando se afirma que “na Arábia Saudita, mulheres muçulmanas aparecerem em público com suas cabeças descobertas é considerado moralmente errado” não se está julgando normativamente que, de fato, é moralmente errado que as mulheres muçulmanas ajam dessa forma, mas apenas se está descrevendo a forma como aquela sociedade, em determinada época, estabelece seus padrões de conduta moral111. É muito mais uma descrição de fatos do que uma avaliação ou julgamento moral. 108 O emotivismo pode ser considerado uma versão menos sofisticada e extrema do expressivismo, mas os teóricos que sucederam Ayer estiveram em grande medida debatendo suas ideias, bem como formulando respostas aos seus críticos. 109 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 36. 110 AYER, A.J. Language, Truth and Logic. London: Penguin Books, 1946. p. 106. 111 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 37. Wagner Arnold Fensterseifer | 61 Por outro lado, quando se usam expressões morais da segunda forma apontada por Ayer − expressando a alguém nossas próprias opiniões sobre questões morais −, não se está descrevendo a moral de determinada comunidade, nem mesmo se está descrevendo nosso próprio estado mental. O que se está fazendo é meramente expressando certos sentimentos morais112. Segundo Ayer, quando uma pessoa fala para a outra que “Você agiu errado ao roubar aquele dinheiro”, ela não está dizendo mais do que se falasse apenas que “Você roubou aquele dinheiro”, ela está apenas evidenciando sua desaprovação do ponto de vista moral, mas o enunciado pelas duas frases em relação aos fatos (descrição da realidade) permanece o mesmo113. Agora, se mudarmos a frase e dissermos que “Roubar dinheiro é errado” estaremos produzindo uma sentença que não possui qualquer significado factual, ou seja, que não poderá ser avaliada em termos de verdadeiro ou falso. Desse modo, se uma pessoa afirma que “Roubar dinheiro é errado” e outra discorda dessa afirmação, não haverá nessa situação uma verdadeira controvérsia, nem mesmo será possível verificar quem está certo e quem está errado, uma vez que tanto afirmar que “Roubar dinheiro é errado” quanto afirmar que “Roubar dinheiro é correto” são enunciados que não possuem conteúdo fático, ou significado factual, de modo que não podem ser avaliadas em termos de verdadeiro ou falso. Para Ayer, o fato de haver duas pessoas que discordam a respeito da correção ou incorreção do roubo de dinheiro deve-se exclusivamente aos sentimentos morais divergentes que as pessoas têm em relação a esses enunciados114. 112 AYER, A.J. Language, Truth and Logic. London: Penguin Books, 1946. p. 110. 113 AYER, A.J. Language, Truth and Logic. London: Penguin Books, 1946. p. 110. 114 AYER, A.J. Language, Truth and Logic. London: Penguin Books, 1946. p. 111. 62 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin O desacordo moral seria possível, para Ayer, quando duas pessoas compartilham uma mesma perspectiva ética, por exemplo, quando ambas pensam que condições econômicas que permitem que algumas pessoas vivam em situação de pobreza extrema são moralmente erradas. Dada essa visão ética compartilhada, poderia haver desacordo genuíno sobre algo como se uma determinada política pública é moralmente ruim115. Entretanto, ao analisar mais detidamente essa situação, percebe-se que o desacordo surgido é muito mais um desacordo sobre fatos do que um desacordo moral. Por mais que seja possível enquadrar esse desacordo como uma questão de moralidade, a verdade é que se está discordando é sobre o fato de determinada política pública levar à pobreza extrema ou não e não sobre a questão moral de que políticas econômicas que geram pobreza extrema são moralmente erradas116. 1.2.5. Construtivismo moral Fatos sobre justiça, como, por exemplo, quais direitos nós temos enquanto membros de uma comunidade política, não são algo que podemos descobrir por meio de alguma forma de investigação empírica, mas sim algo que é construído a partir dos contornos de um tipo particular de desafio prático com o qual nos deparamos ao vivermos em comunidades117. A definição mais conhecida do que é o construtivismo em metaética foi dada por Darwall, Gibbard e Railton, em artigo datado de 1992: o construtivista é um procedimentalista hipotético. Ele endossa algum procedimento hipotético para determinar quais princípios constituem padrões válidos de moralidade. O procedimento pode ser o de chegar a um acordo 115 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 38. 116 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 38. 117 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 109. Wagner Arnold Fensterseifer | 63 sobre um contrato social, ou pode ser, digamos, decidir qual código moral devemos defender para nossa sociedade. Um procedimentalista, então, sustenta que não existem fatos morais independentes da constatação de que um determinado procedimento hipotético conduziria a esse ou aquele resultado118. Essa definição, contudo, como aponta Sharon Street, não é suficiente para compreender o que é de fato a posição metaética intitulada construtivismo, haja vista que dois construtivistas diferentes poderiam alegar que duas reivindicações morais completamente distintas emergiram de procedimentos hipotéticos por eles elaborados, tornando difícil compreender o que diferiria o construtivismo de um mero subjetivismo ou mesmo de um expressivismo moral119. Para Street, o traço distintivo do construtivismo enquanto posição metaética é a utilização de um ponto de vista prático e a construção de algumas verdades normativas que se seguem ou não se seguem desse ponto de vista120. Nesse sentido, a máxima do construtivismo não seria, como apontariam Darwall, Gibbard e Railton, “não há verdade normativa independente de um procedimento”, mas sim que “não há verdade normativa independente de um ponto de vista prático”. Portanto, de acordo com o construtivismo não haveria padrões de correção no domínio normativo exceto a partir de algum lugar − ou seja, a partir do ponto de vista de alguém que já aceita algum tipo de julgamento normativo − o ponto de vista de uma criatura capaz de fazer valorações121. 118 DARWALL, Stephen; GIBBARD, Allan; RAILTON, Peter. Toward Fin de siècle Ethics: Some Trends. Philosophical Review 101, pp. 115-189, 1992. 119 STREET, Sharon. What is Constructivism in Ethics and Metaethics? Philosophy Compass, v. 5, n. 5, pp. 363-384. New Jersey: Blackwell Publishing, 2010. p. 365. 120 STREET, Sharon. What is Constructivism in Ethics and Metaethics? Philosophy Compass, v. 5, n. 5, pp. 363-384. New Jersey: Blackwell Publishing, 2010. p. 366. 121 STREET, Sharon. What is Constructivism in Ethics and Metaethics? Philosophy Compass, v. 5, n. 5, pp. 363-384. New Jersey: Blackwell Publishing, 2010. p. 366. 64 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Desse modo, o construtivismo pode ser identificado como a concepção metaética segundo a qual a realidade moral (a verdade normativa ou a concepção de valor) não é algo que possua existência em um sentido pleno, com propriedades que são anteriores ao intelecto humano e mesmo independentes dele. A realidade moral não seria senão algo que somente pode ter sua existência reconhecida enquanto resultado de uma intervenção intelectual humana, a qual é comumente pensada a partir de um ponto de vista prático e tendo sido exercitada sob condições ideais, ainda que hipotéticas (por exemplo, contrato social, posição original sob véu da ignorância, condições ideais de fala, etc.)122. O construtivismo pode ser visto como uma tentativa de aprimoramento do convencionalismo proposto pelo relativista moral, com a diferença de que o relativista moral está ontologicamente comprometido com a ausência de objetividade no domínio moral, enquanto que o construtivista pode ser um cognitivista fraco (ou, um não-cognitivista fraco), na medida em que reconhece os limites da razão para justificar as premissas morais que toma como ponto de partida. O construtivista propõe a estruturação de um processo de abstração das práticas sociais concretas que seria capaz de idealizar o que seria visto como aceitável ou razoável e a partir disso fixar parâmetros normativos em relação à moralidade123. 1.2.6. Teoria do erro e ficcionismo moral A teoria do erro, que comumente é acompanhada da teoria ficcionista da moral, concorda com a teoria realista no sentido de que existem fatos 122 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 177. 123 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 182. Wagner Arnold Fensterseifer | 65 morais e sua existência independe da mente humana. Contudo, argumentam que essa realidade moral jamais poderia ser acessada pelo ser humano, de modo que o raciocínio e os enunciados morais nunca serão bem-sucedidos em descrever essa realidade moral. Seriam, pois, sempre falsos os juízos morais (ou parte de uma ficção conveniente, para os ficcionistas)124. Teoria do erro sobre alguma área do pensamento ou discurso é comumente definida como a visão de que tal pensamento ou discurso envolve crenças sistematicamente falsas e que, como consequência, todos os juízos envolvendo esse discurso ou pensamento (ou ao menos parte substancial deles) são falsos125. Assim, a teoria do erro aplicada à metaética será a visão de que o pensamento e discurso moral envolvem sistematicamente crenças falsas e que, como consequência, todos os julgamentos morais (ou parte substancial deles) são falsos. O principal representante dessa corrente metaética é o filósofo australiano John Leslie Mackie. Segundo Idia Laura Ferreira, a teoria do erro de Mackie afirma que, em que pese a moralidade possa ser reconhecida como capaz de criar enunciados com condições de verdade, comete-se um erro ao não perceber a falsidade de seus fundamentos, neste caso, não perceber que apoiam suas crenças numa categoria vazia126. Mackie reconhece o acerto dos realistas morais ao afirmarem que enunciados morais são construídos de modo que é razoável pensar que podem ser avaliados em termos de verdade ou falsidade, de sua estrutura 124 CHRISMAN, Matthew. What is this thing called Metaethics. New York: Routledge, 2017. p. 53. 125 OLSON, Jonas. Error Theory in Metaethics. In: MCPHERSON, Tristram; PLUNKETT, David (ed.). The Routledge Handbook of Metaethics. New York: Routledge, 2018. pp. 58-71. 126 FERREIRA, Idia Laura. Metaética: da teoria do erro ao ficcionalismo moral. Ítaca (UFRJ), v. 15, p. 364-370, 2010. 66 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin semântica e a forma como nos relacionamos com tais conceitos permite que se pense dessa forma127. O problema identificado por Mackie, contudo, é que não há nenhuma forma razoável de verificar a veracidade ou falsidade de uma afirmação moral, uma vez que não existem fatos morais no mundo. Mackie apresenta dois tipos de argumentos para explicar a afirmação de que não existem fatos morais ou valores objetivos no mundo: (i) argumento do relativismo; e (ii) argumento da estranheza (argument from queerness). O argumento do relativismo começa com uma constatação empírica: existe muito desacordo moral no mundo, sendo defendidas diversas visões de moralidade diferentes, as quais parece impossível conciliar128. Mackie argumenta que a melhor forma de explicar essa divergência é reconhecer que juízos morais refletem nossa aderência e participação em diferentes modos de viver a vida, que influenciariam nossas concepções sobre o que é moralmente correto ou incorreto, desejável ou indesejável. Para o autor, essa explicação é melhor do que a sua alternativa, que seria reconhecer que existe algo como o verdadeiro conhecimento moral, e que algumas comunidades possuem acesso privilegiado a esse conhecimento, enquanto outras falham ao tentar alcançá-lo129. O exemplo utilizado por Mackie para explicar essa questão é a monogamia. Duas comunidades diferentes enxergam de forma distinta a questão da monogamia do ponto de vista moral. Enquanto em uma comunidade a monogamia é moralmente desejável e a poligamia é reprovável do ponto de vista moral; na outra, não há condenação moral a formas não monogâmicas de relacionamento. É realmente plausível, questiona 127 MACKIE, John Leslie. Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books, 1977. p. 32. 128 MACKIE, John Leslie. Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books, 1977. p. 36. 129 MACKIE, John Leslie. Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books, 1977. p. 36. Wagner Arnold Fensterseifer | 67 Mackie130, afirmar que essa diferença se justifica pelo fato de que uma cultura tem acesso privilegiado a fatos morais sobre arranjos matrimoniais enquanto a outra carece de tal acesso? Para Mackie, seria muito mais simples e racional pensar que a monogamia foi algo que se desenvolveu em uma das comunidades (por quaisquer razões culturais ou antropológicas) e por isso passou a integrar a moralidade daquela sociedade. Já o argumento da estranheza (argument from queerness) possui duas partes, uma metafísica e outra epistemológica. A parte metafísica do argumento consiste em afirmar que se existisse algo como o fato moral ou como valor objetivo, seriam entidades ou qualidades de uma espécie bastante estranha, altamente diferentes de qualquer outra coisa no universo. A parte epistemológica do argumento é decorrente da metafísica. Se fatos morais ou valores objetivos existirem e forem dessa tão estranha e única espécie no universo, também seria necessária uma capacidade cognitiva especial para que pudéssemos compreendê-los131. Para exemplificar o argumento, Mackie fornece duas ilustrações. A primeira é uma referência a Platão e a “forma do bem”. O fato de termos a mera compreensão de que algo participa da forma (ou seja, é bom) de algum modo cria automaticamente a motivação para que busquemos aquele algo. O bem, para Platão, teria algo como uma força magnética que é capaz de criar essa atração132. A estranheza do argumento platônico, segundo Mackie, consiste na afirmação de que há uma relação causal entre o reconhecimento de algo e a motivação para buscá-lo. A segunda ilustração do argumento é uma menção a Samuel Clarke, o qual teria sustentado que existiriam “relações necessárias de adequação 130 MACKIE, John Leslie. Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books, 1977. p. 37. 131 MACKIE, John Leslie. Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books, 1977. p. 39. 132 MACKIE, John Leslie. Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books, 1977. p. 40. 68 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin entre situações e ações, de modo que uma situação teria uma demanda para ação de alguma forma embutida nela”133. O exemplo de Clarke sugere que a estranheza reside em propriedades que exigem ação (e, portanto, motivação). Assim, Mackie conclui que − dada a baixa probabilidade de que exista uma resposta razoável para a questão dos fatos morais ou dos valores objetivos − não se pode afirmar que não há objetividade moral, mas se pode vislumbrar que nossa fundamentação para avaliar juízos morais é muito frágil, ou mesmo inexistente. Por esse motivo, sua teoria do erro em metaética irá afirmar que todos os juízos em metaética são falsos. O ficcionismo moral, como afirma Richard Joyce134, pode ser definido como uma forma de tentar resgatar a moralidade da ameaça da teoria do erro. Mesmo que se assuma correta a Teoria do Erro e que, portanto, todos os enunciados morais são falsos, é possível pensar de forma pragmática e seguir utilizando boa parte das proposições morais que aceitamos ordinariamente. A justificativa para fazê-lo consiste no fato de que elas permanecem sendo úteis em nosso cotidiano, apesar de sua falsidade. O pleito do ficcionismo, nesses termos, é recuperar os benefícios do uso dos conceitos e da linguagem moral (benefícios sociais, psicológicos, culturais), sem precisar se envolver nos debates teóricos do realismo moral ou do não-cognitivismo moral. 1.2.7. Resumo das posições metaéticas Como visto acima, o campo de estudo da metaética desenvolveu-se de modo a identificar diversas posições teóricas distintas a respeito da moralidade, do discurso moral e de suas possibilidades ontológicas e 133 134 MACKIE, John Leslie. Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books, 1977. p. 40. JOYCE, Richard. Fictionalism in Metaethics. In: MCPHERSON, Tristram; PLUNKETT, David (ed.). The Routledge Handbook of Metaethics. New York: Routledge, 2018. p.72. Wagner Arnold Fensterseifer | 69 epistemológicas. Assim, como forma de auxiliar o estudo que será realizado nos dois próximos capítulos, em que se buscará compreender qual a posição metaética adotada por Hart e Dworkin, passa-se a resumir brevemente as posições teóricas possíveis em metaética, bem como o que diferencia substancialmente cada uma delas e a forma como se relacionam. A primeira importante distinção a ser realizada no campo metaético, como visto acima, refere-se ao realismo e antirrealismo moral. O realista moral afirma a dimensão existencial dos fatos morais, na medida em que as propriedades que compõem a realidade moral existem de modo independente das crenças e opiniões individuais acerca delas135. Para o realista moral, portanto, os fatos morais existem independentemente de sua relação com os seres humanos, cabendo ao teórico moral apenas apreender e interpretar os fatos morais que existem objetivamente. Contudo, em razão da possibilidade de compreender o realismo moral sob a perspectiva ontológica e sob a perspectiva epistemológica, é relevante compreender a existência de dois tipos de realismo moral: o realismo moral de objetos e o realismo moral de razões. Já o polo oposto do espectro, que é ocupado pelo antirrealismo, consiste em afirmar que não existe algo como fatos morais e que a realidade moral objetiva não é senão um engodo. O antirrealista afirma que a moral não pode ser objetiva porque apenas poderia sê-lo aquilo que possa ser observado do mesmo modo que fenômenos naturais. Nesse sentido, como o antirrealista moral rejeita qualquer possibilidade de análise do campo moral que tome de empréstimo métodos de análise oriundos das ciências naturais, uma vez que para ele a moral possui natureza totalmente distinta 135 FERREIRA NETO, A. M. Metaética e a Fundamentação do Direito. 1ª ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. p. 192. 70 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin dos fatos naturais (como a gravidade e os fenômenos biológicos), sua conclusão é que a moral não pode ser objetiva, em razão de sua natureza. Para o antirrealista moral não há realidade moral objetiva, de modo que a moralidade somente é observável − se puder ser observada − quando em sua manifestação humana, em contextos sociais e nas práticas realizadas por determinada comunidade. O que o diferencia, nesse contexto, do realista de razões é que o antirrealista nega igualmente a possibilidade de verdades morais que sirvam como princípios primeiros para o raciocínio moral. Para o antirrealista, não haverá uma única resposta certa para problemas morais. A segunda distinção importante diz respeito à possibilidade de conhecimento da moral. Assim, distinguem-se os teóricos cognitivistas morais dos teóricos não-cognitivistas morais. Enquanto para os cognitivistas, a moralidade pode ser apreendida pela razão humana, sendo objeto válido de conhecimento e, portanto, apta a formulações com valor de verdade, para os não-cognitivistas a moralidade não pode ser analisada por meio da razão, podendo ser identificada como uma emoção, um sentimento, ou mesmo uma opinião. Desse modo, para o não-cognitivista, a moral não comporta juízos aos quais podem ser atribuídos valores de verdade ou falsidade. Importante rememorar, contudo, que ambas as posições podem ser graduadas como fortes e fracas. Ao relacionar os dois pares conceituais acima resumidos, é possível compreender também as demais posições metaéticas descritas neste subcapítulo. Um realista moral pode ser, ao mesmo tempo, um não-cognitivista moral? Para os teóricos do ficcionismo moral e da teoria do erro moral, sim. Como visto anteriormente, a teoria do erro, que comumente é acompanhada da teoria ficcionista da moral, adota o ponto de vista realista moral ao admitir que juízos morais representam algo que existe no Wagner Arnold Fensterseifer | 71 mundo. Contudo, sustenta que esses juízos nunca são bem-sucedidos em descrever a realidade moral. Desse modo, afirmam que são sempre falsos os juízos morais (ou parte de uma ficção conveniente, para os ficcionistas). E, por outro lado, um antirrealista moral pode ser, ao mesmo tempo, um cognitivista? Essa é a posição adotada pelo construtivismo, que pode ser identificado como a concepção metaética segundo a qual a realidade moral (a verdade normativa ou a concepção de valor) não é algo que possua existência em um sentido pleno, com propriedades que são anteriores ao intelecto humano e mesmo independentes dele. A realidade moral não seria senão algo que somente pode ter sua existência reconhecida enquanto resultado de uma intervenção intelectual humana, a qual é comumente pensada a partir de um ponto de vista prático e tendo sido exercitada sob condições ideais, ainda que hipotéticas. Já o expressivismo não está vinculado ao realismo, tampouco ao antirrealismo moral. Trata-se de uma tese de filosofia da linguagem com implicações não-cognitivistas, que embora não precise se posicionar no debate realismo/antirrealismo, uma vez que tal debate não traz implicações para a tese, possui maior afinidade com o antirrealismo. A fim de facilitar a compreensão a respeito das posições metaéticas aqui apresentadas, bem como a forma como se interrelacionam, elaborouse a tabela abaixo, que busca posicionar os conceitos de modo a ilustrar suas principais características, sintetizando as concepções das posições no campo de estudo da metaética. 72 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin TABELA 1 – Posições metaéticas e suas relações usuais Fonte: elaborado pelo autor. Após estabelecidas as premissas sobre o debate teórico entre Hart e Dworkin, bem como tendo sido analisadas as principais posições teóricas no campo da metaética, passa-se − nos dois próximos capítulos − a analisar especificamente a obra de Hart e Dworkin, respectivamente, com a finalidade de procurar compreender qual é o papel da objetividade da moral no pensamento jusfilosófico de cada autor, bem como o papel dessa questão no debate teórico entre os dois autores. 2 A posição de Hart acerca da objetividade da moral O objetivo deste capítulo é analisar a obra de H.L.A. Hart, sobretudo seu livro seminal O Conceito de Direito, com a finalidade de identificar ali a posição do autor a respeito da objetividade da moral e a forma como isso afeta – ou deixa de afetar – sua teoria do direito em termos gerais. Para tanto, será necessário compreender, ainda que de forma breve, a metodologia adotada por Hart na elaboração de sua obra, bem como o contexto social e intelectual em que ela foi concebida. A posição de Hart a respeito da possibilidade de avaliar questões morais em termos de verdade ou falsidade, ou seja, se a moral comporta juízos objetivos, não é facilmente conhecida. Isso porque, diferentemente de Dworkin, Hart nunca afirmou expressamente sua posição a esse respeito. Alguns autores entendem que essa é uma neutralidade deliberada, compatível com a metodologia eleita por Hart para desenvolver suas teses de filosofia do direito de modo analítico. É o caso de John Tasioulas, que afirma que Hart, alinhado à política geral adotada em O Conceito de Direito, pretende ser metodologicamente neutro em relação a questões centrais de metaética, tais como o modo como são interpretados juízos morais, se são capazes de alcançar uma forma de verdade independente do raciocínio humano, ou de que maneira somos capazes de adquirir conhecimento dessas verdades morais1. Hart, no pós-escrito de O Conceito de Direito, afirma que a teoria do Direito 1 deve evitar comprometimentos com teorias filosóficas TASIOULAS, John. Hart on Justice and Morality. In: D'ALMEIDA, Luís Duarte; EDWARDS, James; DOLCETTI, Andrea (Ed.). Reading HLA Hart’s The Concept of Law. Oxford and Portland, Oregon: Hart Publishing, 2013. p. 283. 74 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin controversas, como é o caso das teorias acerca do status geral dos juízos morais, e deve deixar em aberto a questão sobre se eles possuem ou não existência objetiva2. Como afirma Hart, seja qual for a resposta a essa questão, o dever do juiz será o mesmo: produzir o melhor julgamento moral que ele puder, acerca de qualquer questão moral sobre a qual ele deva decidir3. Entretanto, sabe-se que essa questão certamente povoava as reflexões filosóficas de Hart, como fica claro pelo seguinte excerto, extraído de O Conceito de Direito: São eles [os princípios morais] princípios imutáveis que constituem parte do tecido do universo, não criados pelo homem, mas aguardando serem descobertos pelo intelecto humano? Ou eles são expressões das mutáveis inclinações, escolhas, demandas e sentimentos humanos? Essas são formulações brutas de dois extremos na filosofia moral... no que segue, devemos procurar evitar essas dificuldades4. Stephen Perry, em artigo que integra a obra organizada por Jules Coleman sobre o pós-escrito de O Conceito de Direito, reconhece a dificuldade de discernir as posições metaéticas de Hart em sua obra seminal5. Para Perry, é o pós-escrito que torna mais explícitas as posições de Hart a esse respeito, muito em razão da necessidade de responder aos desafios de Dworkin. O objetivo teórico de Hart, em O Conceito de Direito, conforme interpreta Perry, seria o de formular uma teoria geral e descritiva. Geral porque não pretende analisar nenhum sistema jurídico em particular, mas o que há de comum entre todos eles, explorando e clarificando o Direito como 2 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. Post-script. pp. 253-254. 3 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. Post-script. pp. 253-254. 4 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 168. 5 PERRY, Stephen R. Hart's Methodological Positivism. In: COLEMAN, Jules (ed.). Hart's Postscript: essays in the postscript to The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 312. Wagner Arnold Fensterseifer | 75 instituição social e política complexa cuja principal característica é ser guiada por regras. Descritiva no sentido de que é moralmente neutra e não possui objetivos justificatórios, ou seja, não pretende justificar por que certos sistemas jurídicos possuem determinadas regras, mas apenas descrever seu funcionamento da forma mais clara possível6. Na próxima seção, dividida em duas subseções, a questão da metodologia utilizada por Hart − bem como de sua posição a respeito da objetividade moral − será abordada de duas formas diferentes. Primeiro, do ponto de vista das influências intelectuais de Hart com ênfase nos filósofos da linguagem ordinária que foram seus contemporâneos em Oxford e que foram especificamente citados por Hart nas notas de fim de O Conceito de Direito. Após, sob a perspectiva do método empregado por Hart em sua obra seminal, a fim de que se possa compreender de forma satisfatória os motivos que levaram o autor a não tomar posição de forma expressa em relação à questão metaética. 2.1. A metodologia de Hart Ainda que a posição oficial de Hart seja de neutralidade em relação à objetividade dos juízos morais, existem autores que sustentam interpretações da obra de Hart no sentido de que a filosofia do direito do autor somente seria compatível com uma forma de ceticismo a respeito da objetividade da moral. É nesse sentido que Brian Leiter escreve que a teoria do direito de Hart reflete a influência metodológica dos filósofos da linguagem ordinária e a influência substantiva do contexto pós-Segunda Guerra e do não- 6 PERRY, Stephen R. Hart's Methodological Positivism. In: COLEMAN, Jules (ed.). Hart's Postscript: essays in the postscript to The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 312. 76 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin cognitivismo que marcava o meio acadêmico de Oxford no período7. Ainda segundo Leiter, é possível aproximar a posição de Hart com os primeiros escritos de Kelsen, ambos possuindo (ou ao menos aparentemente pressupondo) uma posição metaética amplamente antirrealista e nãocognitivista8. Como se percebe, Leiter não acolhe o posicionamento oficial e expressamente manifestado por Hart no pós-escrito de O Conceito de Direito, mas por meio da leitura de sua obra, identifica elementos que o permitem concluir que a posição metaética de Hart é semelhante à de Kelsen, ou seja, antirrealista e não-cognitivista. Em outro trecho do mesmo artigo, Leiter volta a afirmar que o posicionamento metaético de Hart é semelhante ao de Kelsen9, conforme se verifica do excerto abaixo: Kelsen e Hart, como é consabido, são ambos do ponto de vista metafísico antirrealistas em relação às normas morais: isto é, eles negaram que tais normas tenham qualquer existência objetiva, eles negaram que o melhor relato metafísico do que o mundo contém deveria incluir fatos sobre o que é moralmente certo ou errado10. Kevin Toh afirma que mesmo filósofos familiarizados com a leitura de O Conceito de Direito não perceberam que Hart apresenta uma análise 7 LEITER, Brian. The demarcation problem in jurisprudence: a new case for scepticism. Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 31, No. 4 (2011), pp. 663-677. p. 666. 8 LEITER, Brian. The demarcation problem in jurisprudence: a new case for scepticism. Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 31, No. 4 (2011), pp. 663-677. p. 666. 9 A respeito dessa aproximação que Leiter faz entre Hart e Kelsen, possivelmente decorre de uma generalização das obras dos autores, ambos identificados com o positivismo jurídico. Em uma análise mais aprofundada, percebe-se que há muitas diferenças significativas entre os empreendimentos de Hart e Kelsen. No capítulo XIV da obra Essays in Jurisprudence and Philosophy, intitulado “Kelsen Visited”, Hart analisa a obra de Kelsen e comenta uma passagem em que Kelsen afirma categoricamente a separação entre Direito e Moral, ressaltando que há divergência entre os autores quanto à possibilidade de crítica moral do Direito, bem como quanto à possibilidade de existir algum ponto de contato entre o Direito e a Moral. Do ponto de vista metaético, talvez a aproximação entre os autores seja aceitável, mas esse ponto deverá ser melhor analisado posteriormente ao longo do desenvolvimento dessa obra, sobretudo com enfoque na concepção metaética presente na obra de Hart. 10 LEITER, Brian. The demarcation problem in jurisprudence: a new case for scepticism. Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 31, No. 4 (2011), pp. 663-677. p. 671.Tradução nossa. Wagner Arnold Fensterseifer | 77 expressivista ou não-cognitivista em relação às declarações jurídicas do ponto de vista interno11-12. Para Toh, a melhor forma de interpretar O Conceito de Direito é compreender que Hart faz uma análise descritiva em relação ao ponto de vista externo, mas expressivista em relação ao ponto de vista interno. Para justificar sua afirmação, Toh recupera a definição de Hart sobre o que é uma afirmação jurídica do ponto de vista interno, assim a descrevendo: ao proferir uma declaração jurídica do ponto de vista interno, um falante manifesta sua aceitação das normas que compõem o sistema legal13. Assim, o autor conclui que Hart oferece uma análise expressivista ou não-cognitivista de declarações jurídicas do ponto de vista interno14. 11 TOH, Kevin. Hart's Expressivism and his Benthamite Project. Legal Theory, vol. 11, issue 02, pp. 75-123, jun. 2005. 12 Conforme leciona André Coelho, a distinção conceitual feita por Hart entre ponto de vista interno e ponto de vista externo é um recurso que permite analisar regras e diferenciá-las de hábitos sociais. Ponto de vista externo é uma apreensão da manifestação exterior das regras, ou seja, da forma como as pessoas agem, sem atentar para o sentido que as regras possuem para os agentes nem para as razões que eles têm para segui-las. O ponto de vista interno, por sua vez, considera a manifestação exterior das regras e também os sentidos e razões associadas às regras sob a perspectiva dos próprios agentes. É o ponto de vista de quem adere a um sistema jurídico. De um lado, observa-se como um espectador externo e totalmente desinteressado, que verificará apenas os comportamentos repetidos e daí retirará determinadas conclusões. De outro, observa-se como um espectador que além de verificar as condutas uniformes e previsíveis, estará preocupado em compreender as razões que levam àquele comportamento e os objetivos almejados ao praticá-lo (COELHO, André. Ponto de Vista Interno e Externo. Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2008/04/ponto-de-vista-externo-e-interno.html>. Acesso em: 15.jun. 2019). Uma passagem do romance de Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver, referida por Neil MacCormick em Legal Reasoning and Legal Theory ilustra bem o ponto: os comissários do Rei de Lilliput encontram Lemuel Gulliver e ficam intrigados com a peça metálica amarrada ao seu pulso por uma corrente também de metal. Descrevem o estranho objeto referindo que é composto metade de prata e metade de um desconhecido metal transparente, através do qual é possível ver estranhas figuras. O objeto faz um barulho incessante, tal como um moinho d’água. Os comissários conjecturam se aquilo seria um animal ou um Deus adorado por Gulliver. Acabam inclinados a concluir que se trata de um Deus, uma vez que Gulliver relata que raramente faz algo sem consultar o objeto, e que ele aponta o tempo para cada ação em sua vida. No exemplo, nota-se que o objeto, quando observado sob o ponto de vista externo, pode ser compreendido apenas em razão de suas características físicas e da manifestação exterior do uso que Gulliver faz dele. Somente uma observação sob o ponto de vista interno permitirá compreender que aquele estranho objeto é na verdade um relógio que tem como função primordial mostrar as horas quando seu proprietário o consulta (MACCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Claredon Press, 1978. p. 275). 13 TOH, Kevin. Hart's Expressivism and his Benthamite Project. Legal Theory, vol. 11, issue 02, pp. 75-123, jun. 2005. pp. 76-77. 14 Importante atentar, contudo, que Kevin Toh estava preocupado em analisar a posição de Hart quanto às declarações jurídicas, afirmando que sua posição seria classificada em um expressivismo e não-cognitivismo. Como será observado na sequência do trabalho, contudo, é possível que essa posição seja diferente quando se analisam as declarações sobre ética e moral. 78 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Outros autores, todavia, identificam a posição de Hart, do ponto de vista metaético, como um cognitivismo fraco, uma vez que reconhece o problema da indeterminação da moral, mas ao mesmo tempo pretende estabelecer critérios de justificação das decisões, ainda que não somente baseadas em moralidade, mas também em outros elementos externos ao Direito. Em razão dos limites da linguagem, decorrentes de sua textura aberta, vagueza e indeterminação, Hart afirma que sempre existirão casos que não estarão abarcados pelo significado comum de determinado termo utilizado na constituição da regra15. Para a resolução de tais casos, ante a insuficiência do raciocínio silogístico, Hart admite de forma limitada o exercício de discricionariedade, embora não admita a arbitrariedade16. O juiz decidiria, nesse caso, criando uma regra para solucionar o caso com o qual se deparou, de forma discricionária. Essa discricionariedade, contudo, não é ilimitada, mas constrangida pelos significados possíveis que podem ser atribuídos às expressões que compõem a regra sob análise17. Em razão desse mecanismo de solução de casos difíceis, em que o juiz poderia buscar elementos fora do sistema jurídico para resolver o caso concreto, até mesmo na Moral, alguns autores identificam a posição metaética de Hart como cognitivista fraca18. Antes de se prosseguir na análise da relevância da questão da moralidade para a teoria do direito de Hart, é importante compreender alguns 15 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. pp. 138-142. 16 VOLPATO DUTRA, Delamar José; OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Moral Cognitivism and Legal Positivism in Habermas’s and Kant's Philosophy of Law. ethic@-An international Journal for Moral Philosophy, v. 16, n. 3, p. 533-546, 2017. 17 Uma análise mais detalhada do funcionamento da discricionariedade na obra de Hart será realizada nas próximas seções, sendo suficiente para o momento compreender que nos casos difíceis (hard cases) Hart admite o uso de discricionariedade. 18 VOLPATO DUTRA, Delamar José; OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Moral Cognitivism and Legal Positivism in Habermas’s and Kant's Philosophy of Law. ethic@-An international Journal for Moral Philosophy, v. 16, n. 3, p. 533-546, 2017. Wagner Arnold Fensterseifer | 79 dos conceitos e contextos que foram apresentados nos parágrafos anteriores. A seguir, serão analisadas de forma mais aprofundada as seguintes questões: (i) o background social e intelectual em que a obra de Hart está inserida, bem como as influências causadas no pensamento do autor; e (ii) o ponto de vista metodológico moralmente neutro adotado por Hart em O Conceito de Direito. Após, a partir da leitura de textos selecionados da obra de Hart, buscar-se-ão elementos que permitam identificar a posição do autor a respeito da objetividade da moral. 2.1.1. A obra de Hart no contexto do pós-guerra na Universidade de Oxford Como narram Nicola Lacey19 e Neil MacCormick20, Hart estudou filosofia no New College Oxford, dedicando-se principalmente aos estudos dos clássicos e da história e filosofia antigas, tendo obtido sua graduação em 1929, sob orientação de H.W.B. Joseph21. Após atuar por um período como advogado na Inglaterra, Hart se tornou um civil prestando serviços para o seu país, a Inglaterra, na Segunda Guerra Mundial, atuando na inteligência militar inglesa. Mesmo tendo passado algum tempo afastado da academia, Hart nunca abandonou seu apreço e interesse pela filosofia22, tendo encontrado na inteligência militar os acadêmicos Stuart Hampshire e Gilbert Ryle com quem pode debater e dialogar sobre temas filosóficos23. Nesse período, Hart já havia sido apresentado às novas teorias filosóficas que estavam propondo um afastamento das questões metafísicas, às quais Hart havia se dedicado intensamente em seu período de graduação, para dar lugar a uma forma de análise voltada à linguística e ao uso 19 LACEY, Nicola. A life of H.L.A. Hart: The nightmare and the noble dream. Oxford: Oxford University Press, 2004. 20 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. 21 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p. 5. 22 LACEY, Nicola. A life of H.L.A. Hart: The nightmare and the noble dream. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 113. 23 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p. 5. 80 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin corrente das palavras24. As perspectivas de análise filosófica de seus antigos mentores, A.H. Smith e Joseph H.W.B., estavam agora sob ataque por parte da “nova” filosofia da linguagem, proposta por Gilbert Ryle e J.L. Austin, inspirada no trabalho de Ludwig Wittgenstein e Friedrich Waismann25. Com o fim da Segunda-Guerra, Hart aceitou o convite para lecionar filosofia em Oxford26. MacCormick narra que o ambiente encontrado por Hart no seu retorno para Oxford era de efervescência filosófica, com especial ênfase para a “revolução filosófica” que estava em curso pela liderança de figuras como Gilbert Ryle e J. L. Austin. Mas eles não eram os únicos acadêmicos que lideravam a nova filosofia em Oxford nos anos posteriores à Segunda-Guerra, outros filósofos eminentes dos quais Hart se aproximou e com os quais moldou seu pensamento filosófico em seu retorno à Academia foram Friedrich Waismann e G.A. Paul, o qual foi responsável por apresentar a Hart o “Blue Book” de Wittgenstein27. Em seu retorno a Oxford, Hart passou a frequentar encontros de discussão filosófica promovidos por J.L. Austin, cujos membros passaram a ser identificados como a escola de filosofia da linguagem ordinária. Logo ao assumir a Chair of Jurisprudence em Oxford, Hart passou a aplicar os conceitos aos quais havia sido introduzido pelos colegas da escola de filosofia da linguagem ordinária aos problemas e controvérsias mais relevantes para o Direito. Em sua inaugural lecture, Hart apresentou conferência intitulada Definition and Theory in Jurisprudence. A 24 LACEY, Nicola. A life of H.L.A. Hart: The nightmare and the noble dream. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 114. 25 LACEY, Nicola. A life of H.L.A. Hart: The nightmare and the noble dream. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 112. 26 LACEY, Nicola. A life of H.L.A. Hart: The nightmare and the noble dream. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 112. 27 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p. 6. Wagner Arnold Fensterseifer | 81 influência da escola da filosofia da linguagem ordinária é bastante evidente, como demonstra o excerto a seguir reproduzido: Perguntas como a que mencionei, “O que é um Estado?”, “O que é o direito?”, “O que é um direito?” carregam grande ambiguidade. As mesmas palavras podem ser usadas para interrogar sobre a definição ou a causa ou o propósito ou a justificativa ou a origem de uma instituição jurídica ou política. No entanto, se, em um esforço para libertá-las desse risco de serem confundidas por outras perguntas, reformularmos esses pedidos de definição e os apresentarmos como “Qual é o significado da palavra ‘Estado’?”, “Qual é o significado da palavra ‘direito’?”...28 A inspiração de Hart na filosofia da linguagem ordinária é amplamente reconhecida pelos estudiosos de sua obra, igualmente são conhecidas as consequências que tal inspiração trouxe às teses hartianas em filosofia do direito29. Para os fins da presente pesquisa, importa verificar as influências da escola da filosofia da linguagem ordinária sobre as concepções de Hart acerca da objetividade e da moral. Para isso, é relevante compreender o que os filósofos da linguagem ordinária pensavam sobre o tema, como destacou Cláudio Fortunato Michelon Jr30. A objetividade, na concepção da filosofia da linguagem ordinária, depende dos indivíduos e de suas convenções ou formas de vida − o que não significa afirmar, como fazem os idealistas, que o objeto depende do sujeito. Assim, não se identifica a verdade ou falsidade de determinada sentença por comparação a “fatos brutos” cuja existência independe da 28 HART, H.L.A. Definição e Teoria na Teoria do Direito. In: HART, H.L.A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 24. 29 Nesse sentido, e.g., BAKER, G.P. Defeasibility and meaning in RAZ, Joseph; HACKER, Peter Michael Stephen (Ed.). Law, morality and society: essays in honour of HLA Hart. Clarendon Press, 1979, p. 29. 30 MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 134. 82 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin experiência humana, mas sim por meio da sua verificação mediante regras que aceitamos31. O pensamento de Hart também foi influenciado por filósofos políticos de tradição liberal que foram seus contemporâneos em Oxford. Uma dessas influências foi Isaiah Berlin, o qual escreveu em diversas ocasiões a respeito da noção de que existe uma pluralidade de ideais, que não há um valor único na sociedade, e que as divergências de pensamentos não decorrem unicamente de erros de procedimento ou falhas de raciocínio de uma das partes disputantes. Em um ensaio autobiográfico intitulado My Intellectual Path, Berlin fala sobre o conceito de Pluralismo, distinguindo-o da ideia de relativismo, e justificando as razões pelas quais pessoas racionais e razoáveis podem discordar sobre tópicos altamente relevantes em política e moral. Assim elabora Berlin: Cheguei à conclusão de que há uma pluralidade de ideais, pois há uma pluralidade de culturas e de temperamentos. Eu não sou relativista; eu não digo: “Eu gosto do meu café com leite e você gosta dele puro; eu sou a favor da bondade e você prefere campos de concentração” - cada um de nós com seus próprios valores, que não podem ser superados ou integrados. Isso eu acredito que seja falso. Mas eu acredito que existe uma pluralidade de valores que os homens podem e devem buscar, e que esses valores diferem. Não há uma infinidade deles: o número de valores humanos, de valores que eu posso perseguir enquanto mantenho minha humanidade, meu caráter humano, é finito − digamos 74, ou talvez 122, ou 26, mas finito, seja qual for. E a diferença que isso faz é que, se um homem persegue um desses valores, eu, que não o persigo, sou capaz de entender por que ele o persegue ou como seria, em suas 31 MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 137. Wagner Arnold Fensterseifer | 83 circunstâncias, para mim ser induzido a perseguí-lo. Daí a possibilidade de compreensão humana32. Hart, como se pode perceber sobretudo nos textos produzidos por ele no contexto do debate com Lord Devlin, foi bastante influenciado por essa noção de pluralismo de valores, muito embora fosse adepto da teoria de que existe um mínimo de Direito natural sem o qual uma sociedade não poderia sobreviver de forma perene e harmônica33. Essa ideia, contudo, não pode ser confundida com uma defesa da necessidade de conteúdo moral para os sistemas jurídicos, como bem alertado por Cláudio Fortunato Michelon Jr34. O ambiente filosófico que Hart encontrou em Oxford no pós-guerra foi bastante importante para que o autor identificasse com precisão os problemas filosóficos em relação aos quais passaria a dedicar sua produção acadêmica. As influências, contudo, não ficaram restritas ao conteúdo das teses pesquisadas e defendidas por Hart, mas também modificaram e pautaram a forma como o autor abordava problemas filosóficos. Nesse contexto, certamente uma das maiores influências de Hart, que está refletida diretamente no modo como os argumentos em O Conceito de Direito se desenvolvem, é a de John Langshaw Austin35. Em O Conceito de Direito, Hart retoma as lições do positivismo jurídico de Austin e Bentham, mas de forma inovadora do ponto de vista filosófico, combina seus métodos com aqueles criados pelos filósofos da 32 BERLIN, Isaiah. The Power of Ideas. 2nd edition. Princeton: Princeton University Press, 2013. p. 14. 33 A ideia de conteúdo mínimo do Direito Natural será analisada de forma mais aprofundada na seção 2.2.2 deste trabalho, sendo desnecessário explaná-la com maiores detalhes neste momento. 34 MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 146. 35 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p. 26. 84 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin linguagem ordinária, representados pelo trabalho de Friedrich Waismann e Ludwig Wittgenstein36. A influência, sobretudo de J. L. Austin, na obra de Hart é reconhecida por diversos comentadores e críticos de sua obra. Nicos Stavropoulos afirma que Hart acreditava que a forma correta de explicar qualquer conceito, no caso o conceito de “Direito”, é pelo exame da forma como a palavra representada por aquele conceito é usada na linguagem ordinária37. A aproximação entre Hart e J. L. Austin foi incentivada desde a chegada de Hart a Oxford por seu amigo Isaiah Berlin, que sugeriu insistentemente que Hart deveria procurá-lo, pois em sua concepção Austin era dotado de habilidade única para despertar nos outros a plena capacidade de reflexão filosófica38. O grande contato entre Hart e Austin se deu nos encontros de estudos ocorridos em Oxford entre os anos de 1947 e 1952, denominados Saturday morning sessions. Nesses encontros semanais, como narra Nicola Lacey, um grupo de estudantes, liderados por Austin, analisava textos filosóficos diversos, de autores como Aristóteles, Noam Chomsky, Gottlob Frege e Merleau-Ponty. Contudo, as análises dificilmente avançavam mais do que uma página do texto estudado. Isso porque o método de análise conceitual de Austin demandava uma abordagem minuciosa de cada palavra do texto, buscando em detalhes o que o autor havia escrito no contexto de cada frase. Buscavase analisar o significado de cada palavra e conceito39. 36 LACEY, Nicola. A life of H.L.A. Hart: The nightmare and the noble dream. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 05. 37 STAVROPOULOS, Nicos. Hart's Semantics. In: COLEMAN, Jules (ed.). Hart's Postscript: essays in the postscript to The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 70. 38 LACEY, Nicola. A life of H.L.A. Hart: The nightmare and the noble dream. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 133. 39 LACEY, Nicola. A life of H.L.A. Hart: The nightmare and the noble dream. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 135. Wagner Arnold Fensterseifer | 85 Em suma, Hart chegou à Universidade de Oxford em um momento de efervescência intelectual, notadamente no período pós-guerra, e engajou-se no estudo da filosofia da linguagem ordinária40, liderado por Gilbert Ryle41 e John Langshaw Austin, o que teve grande influência em sua obra, bem como no método adotado por Hart para fazer filosofia. Além da influência da filosofia da linguagem ordinária, o liberalismo político que dominava o pensamento da época em Oxford também foi abraçado por Hart, e pode ser considerado uma das marcas de sua concepção filosófica. Na próxima subseção, será analisada de forma mais detalhada a metodologia utilizada por Hart em O Conceito de Direito, o que poderá auxiliar na busca pelo posicionamento metaético do autor, ou ao menos explicar o porquê de não ter sido adotada uma posição declarada a esse respeito em sua obra seminal. 2.1.2. O ponto de vista moralmente neutro adotado por Hart em O Conceito de Direito: positivismo metodológico, método descritivo-explanatório ou análise conceitual? Essa subseção pretende analisar o que justifica o ponto de vista moralmente neutro adotado por Hart em O Conceito de Direito. Há duas hipóteses do ponto de vista metodológico que podem explicar o porquê da adoção desse posicionamento. Segundo afirma Stephen Perry42, a metodologia de Hart em O Conceito de Direito pode ser identificada, a princípio, pela utilização de duas abordagens diferentes, quais sejam, método descritivo-explanatório e 40 Nesse sentido, o artigo de Morris Weitz intitulado Oxford Philosophy, publicado em The Philosophical Review, Duke University Press, Vol. 62, n. 02, pp. 187-233, 1953. 41 A influência de Gilbert Ryle, autor de “The Concept of Mind (1949)”, pode ser percebida até mesmo no título da obra seminal de Hart “The Concept of Law (1961)”. 42 PERRY, Stephen R. Hart's Methodological Positivism. In: COLEMAN, Jules (ed.). Hart's Postscript: essays in the postscript to The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 312. 86 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin método de análise conceitual. De um lado, há indícios de que Hart utiliza o método de análise conceitual − certamente em razão da forte influência de seus contemporâneos de Oxford, sobretudo J. L. Austin, como visto anteriormente. De outro lado, Hart também afirma utilizar o método descritivo-explanatório, por meio do qual poderia observar o funcionamento das práticas sociais, sem participar, e identificar ali os elementos fundamentais para a constituição de um sistema jurídico. Relevante rememorar aqui a distinção conceitual utilizada por Hart entre o ponto de vista externo e o ponto de vista interno de análise de um sistema jurídico. Segundo Kevin Toh, afirmações do ponto de vista interno são declarações normativas feitas por um indivíduo que adere a um sistema jurídico. Já afirmações do ponto de vista externo são declarações descritivas feitas sob a perspectiva de um observador desvinculado ao sistema jurídico em questão43. Hart afirma, no prefácio de O Conceito de Direito, que o jurista considerará o livro como um ensaio sobre teoria jurídica analítica, porque diz respeito à clarificação do quadro geral do pensamento jurídico, em vez de respeitar à crítica do direito ou da política legislativa. Além disso, em muitos pontos, suscitei questões que, bem pode dizer-se, se referem aos significados de palavras44. A perspectiva de análise da obra, nesse sentido, é analítica. Quando Hart revela que tem como objetivo em sua obra fazer ao mesmo tempo jurisprudência analítica e sociologia descritiva, o faz porque entende que a única forma possível de acesso da teoria do direito às práticas sociais em que são empregados conceitos jurídicos se dá por meio da análise 43 TOH, Kevin. Hart's Expressivism and his Benthamite Project. Legal Theory, vol. 11, issue 02, pp. 75-123, jun. 2005. p. 76. 44 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. Preface. Wagner Arnold Fensterseifer | 87 conceitual. E essa análise recairá sobre o modo como tais conceitos são utilizados na prática dos indivíduos, considerando-se, inclusive, que a prática desses indivíduos deixa rastros e marcas nos próprios conceitos que se está analisando45. Para Stephen Perry, existem alguns indícios, tanto na obra original O Conceito de Direito, quanto no pós-escrito, de que Hart pretendeu utilizar o método descritivo-explanatório. Por exemplo, quando Hart afirma no prefácio que o livro pode ser considerado como um exercício de sociologia descritiva. No pós-escrito, Hart afirma que sua obra realiza “teoria do direito descritiva” na qual um observador externo leva em consideração ou descreve o ponto de vista interno de um participante, sem adotar ou compartilhar o seu ponto de vista. Ao mesmo tempo, Perry também reconhece que Hart utiliza o método de análise conceitual − como o próprio título da obra sugere − e como pode ser visto no trecho do prefácio que foi acima reproduzido, em que Hart anuncia sua obra como um ensaio sobre teoria jurídica analítica. Por isso, um dos objetivos de Hart é clarificar ou elucidar o conceito de Direito, bem como a moldura em que o pensamento jurídico se desenvolve46. Para Veronica Rodriguez-Blanco, essa dupla metodologia pode ser explicada pelo projeto que ela denomina “non ambitious conceptual analysis”. Esse método de análise conceitual não-ambicioso pode ser assim descrito: Hart utiliza o método de análise conceitual, na medida em que busca esclarecer conceitos, partindo da análise do uso desses conceitos pelos falantes de determinada comunidade. Hart, contudo, não afirma que 45 Como será visto posteriormente, nesse ponto pode-se identificar a influência dos filósofos da linguagem ordinária de Oxford, tais como Gilbert Ryle, Peter F. Strawson e John L. Austin, na obra de Hart. 46 PERRY, Stephen R. Hart's Methodological Positivism. In: COLEMAN, Jules (ed.). Hart's Postscript: essays in the postscript to The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 353. 88 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin essa análise do uso de conceitos “a priori”47 é capaz de apreender a totalidade do fenômeno estudado. O teórico deve analisar o uso dos conceitos, mas deve também aceitar as limitações do método de análise conceitual, utilizando-se de conhecimento empírico e argumentos substantivos para explicar, refinar ou mesmo refutar os insights iniciais providos pelas intuições do uso da análise conceitual48. Um exemplo de tal situação pode ser encontrado no Capítulo X de O Conceito de Direito. Hart responde a visões céticas que afirmam que as sanções são uma condição necessária dos sistemas jurídicos – e a fortiori também são uma condição necessária do Direito Internacional – afirmando que existem argumentos substantivos para defender a ideia de que as sanções não desempenham um papel central na caracterização do Direito Internacional. Portanto, Hart afirma que não se pode chegar às características centrais do Direito Internacional por deduções simples a partir do conceito de Direito relacionado à lei local49. Desse modo, fica claro que o método conceitual é extremamente útil e inegavelmente pode ser utilizado para produzir conhecimento filosófico; contudo, é insuficiente para analisar determinadas realidades. Assim, quando Hart busca compreender o conceito de “Direito” os conhecimentos sobre a linguagem não são irrelevantes, uma vez que a consideração acerca do modo como o conceito costuma ser utilizado pode Nesse caso, o uso do termo “a priori” refere-se às conclusões que podem ser alcançadas dispensando-se conhecimento empírico, mas apenas por meio da análise do uso dos conceitos. Por oposição, conhecer um conceito “a posteriori” demanda verificar sua utilização de forma empírica, no mundo de forma concreta, comparando-se as características do conceito com os objetos reais. Pode-se, por exemplo, concluir “a priori” que o caminho mais curto entre dois pontos forma uma reta. Não se pode, entretanto, concluir “a priori” que uma rosa possui aroma agradável ao olfato. 47 48 RODRIGUEZ-BLANCO, Veronica. A defense of Hart's semantics as nonambitious conceptual analysis. Cambridge Legal Theory, Vol. 09, pp. 99-124, 2003. 49 RODRIGUEZ-BLANCO, Veronica. A defense of Hart's semantics as nonambitious conceptual analysis. Cambridge Legal Theory, Vol. 09, 2003, p. 122. Wagner Arnold Fensterseifer | 89 auxiliar o investigador a ter acesso às nossas intuições sobre o conceito50. Mas a análise conceitual realizada por Hart não almeja apreender todas as propriedades de um conceito apenas por meio da investigação de seu uso como linguagem. Essa análise deve ser conjugada com conhecimentos empíricos, os quais são acessados por meio do método descritivoexplanatório51. O exemplo acima apresentado, sobre o caso do Direito Internacional, deixa clara essa divisão de tarefas: o método de análise conceitual é capaz de identificar a moldura geral sobre quais características de uso algo deve ter para ser considerado no conceito de “direito”. Contudo, o método descritivo-explanatório mostra que existem situações atípicas que poderão estar fora da moldura desenhada pela análise conceitual. A principal influência para a metodologia utilizada por Hart em O Conceito de Direito, como afirma Tony Cole52, certamente é J.L. Austin. Segundo Cole, são ao menos três grandes linhas do pensamento do autor que podem ser encontradas na obra de Hart. São elas: (1) que a linguagem deve ser compreendida de acordo com o seu uso ordinário, contudo esse uso ordinário pode ser corrigido; (2) que a inerente conexão entre qualquer linguagem e as regras sociais que governam seu uso faz com que a correta compreensão de qualquer linguagem, inclusive tipos específicos de linguagem, como a linguagem jurídica, seja simplesmente indisponível para aqueles que não possuem a compreensão e aceitação das regras sociais daquela comunidade; 50 RODRIGUEZ-BLANCO, Veronica. A defense of Hart's semantics as nonambitious conceptual analysis. Cambridge Legal Theory, Vol. 09, 2003, p. 103. 51 RODRIGUEZ-BLANCO, Veronica. A defense of Hart's semantics as nonambitious conceptual analysis. Cambridge Legal Theory, Vol. 09, 2003, p. 123. 52 COLE, Tony. Doing Jurisprudence Historically: interpreting Hart throught J.L. Austin. Warwik School of Law, Paper n. 28/2010. 90 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin (3) que o estudo empírico do uso da linguagem é central para a elucidação de qualquer conceito53. A filosofia da linguagem ordinária desenvolvida por Austin parte da identificação da “falácia descritiva”, segundo a qual toda a linguagem deveria ser analisada como se fosse puramente descritiva. Austin apontou o equívoco dessa afirmação ao demonstrar que, enquanto uma afirmação como “O cachorro está debaixo da cama” é claramente descritiva, uma sentença do tipo “Eu prometo devolver o dinheiro a você” evidentemente não está descrevendo determinada situação ocorrida no mundo54. Quando alguém fala “Eu prometo devolver o dinheiro a você”, embora se possa pensar que a frase é a descrição de uma promessa, não reside aí a verdadeira natureza desse tipo de sentença. Ao fazer tal afirmação não se está meramente descrevendo uma promessa, mas se está criando uma promessa. Há, portanto, uma ênfase no aspecto performativo do uso da linguagem. Palavras são ferramentas55, tal como um martelo, uma caneta ou uma tesoura. É possível fazer coisas com palavras56, e o reconhecimento dessa natureza da linguagem é algo definitivo para a virada linguística promovida pelos filósofos da linguagem ordinária. Como aponta Cláudio Fortunato Michelon Jr., é possível identificar claramente dois momentos do pensamento de Hart sobre o conteúdo cognitivo dos enunciados jurídicos: em um primeiro momento, Hart nega que esses enunciados tenham qualquer valor descritivo; a partir do final da 53 COLE, Tony. Doing Jurisprudence Historically: interpreting Hart throught J.L. Austin. Warwik School of Law, Paper n. 28/2010. p. 05. 54 COLE, Tony. Doing Jurisprudence Historically: interpreting Hart throught J.L. Austin. Warwik School of Law, Paper n. 28/2010. p. 17. 55 AUSTIN, John L. A plea for excuses. Philosophy and linguistics, pp. 79-101. Palgrave, London, 1971. 56 AUSTIN, John L. How to do things with words. Oxford: Claredon Press, 1962. Wagner Arnold Fensterseifer | 91 década de 50, culminando com O Conceito de Direito, passa a atribuir aos enunciados jurídicos conteúdo cognitivo57. Em relação ao primeiro momento do pensamento de Hart identificado por Michelon Jr., é possível notar a influência do pensamento de J.L. Austin. De forma específica, Hart buscou identificar e denunciar que a tese austiniana da “falácia descritiva” também era aplicável à linguagem jurídica. Hart afirmou, em The Ascription of Responsibility and Rights58, que as sentenças proferidas por um juiz ao reconhecer um direito, ou ao julgar que determinado contrato é válido ou inválido, não são enunciados descritivos. Não haveria qualquer conteúdo cognitivo nesses enunciados, de modo que os juízos sobre o Direito não poderiam ser nem verdadeiros, nem falsos. Assim conclui Hart: [...] dado que o juiz está literalmente decidindo com base nos fatos diante dele se um contrato existe ou não existe, e ao fazê-lo não está nem descrevendo os fatos, nem fazendo inferências dedutivas ou indutivas a partir dos fatos, o que ele faz pode ser uma decisão certa ou errada, um julgamento bom ou ruim, uma sentença de confirmação ou reversão. O que não pode ser dito é que sua decisão é verdadeira ou falsa, logicamente necessária ou absurda59-60. 57 MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. pp. 139-140. 58 HART, H.L.A. The ascription of responsibility and rights. Proceedings of the Aristotelian Society New Series, Vol. 49 (1948-1949), pp. 171-194. 59 HART, H.L.A. The ascription of responsibility and rights. Proceedings of the Aristotelian Society New Series, Vol. 49 (1948-1949), p. 182. Tradução do autor. 60 A negação de que os enunciados jurídicos tenham conteúdo cognitivo aproximou a obra de Hart, ao menos nesse primeiro momento de seu pensamento, com a concepção de Direito do Realismo Escandinavo (MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 141). 92 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Com a publicação de O Conceito de Direito, em 1961, pode-se reconhecer uma mudança importante no pensamento de Hart, que marca o que Michelon Jr. nominou como segundo momento do pensamento de Hart. Abandona-se a concepção de que enunciados jurídicos não podem ser descritivos, reconhecendo-se a possibilidade de que a linguagem jurídica descreva algo e, portanto, tenha conteúdo cognitivo. O problema que Hart precisará resolver, a partir de então, consiste na seguinte questão: como será possível justificar filosoficamente a possibilidade de descrever, por meio de enunciados linguísticos, algo que não pode ser verificado no mundo físico?61 A resposta a esse questionamento, passa pelo entendimento do que pode ser compreendido por objetividade no campo da filosofia da linguagem. Ronaldo Porto Macedo Junior afirma que na visão de Hart/Wittgenstein, a exigência fisicalista para a objetividade é um nonsense62. Exigir que um enunciado possua correspondentes fáticos no mundo para que se possa afirmar sua objetividade, e consequentemente seu conteúdo cognitivo, é um equívoco filosófico. As condições de verdade, quando se está tratando de uso da linguagem na forma jurídica, estão baseadas na existência de uma prática social, e não na existência de um estado de coisas do mundo físico63. Há que se atentar, contudo, para os dois tipos diferentes de enunciados jurídicos: o tipo de enunciado que é produzido por quem observa o Direito do ponto de vista interno (envolvido diretamente com a prática das regras) é distinto do tipo de enunciado que produz quem descreve o 61 MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 142. 62 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 136. 63 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 136. Wagner Arnold Fensterseifer | 93 Direito do ponto de vista externo64. Enquanto os enunciados internos levam em conta as regras sociais de determinada comunidade onde aquelas regras existem, os enunciados externos somente levam em conta as regularidades de comportamento de um grupo social65. No modo como Hart apresenta a questão em O Conceito de Direito, o que o ponto de vista externo que se limita às regularidades observáveis do comportamento não pode reproduzir é a maneira pela qual as regras funcionam como regras nas vidas daqueles que normalmente são a maioria da sociedade. Estes são os funcionários, advogados ou pessoas privadas que as usam, em diversas situações, como guias para a conduta de sua vida social, como base para reivindicações, demandas, admissões, críticas, ou punições66. Assim, relembrando o exemplo trazido por Kelsen, é possível analisar de formas distintas − considerando o ponto de vista interno ou o ponto de vista externo − a cena na qual um grupo de pessoas está reunido em uma sala e alguns deles erguem sua mão enquanto outros não. Do ponto de vista externo, essa cena pode não ter qualquer significado, mas do ponto de vista interno, considerando-se as regras jurídicas e sociais vigentes naquela comunidade, uma lei acaba de ser votada67. Desse modo, o que se considera como condição de verdade de uma proposição sobre o mundo físico é algo diferente do que se exige para avaliar uma proposição jurídica. 64 MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 154. 65 MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 155. 66 67 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 90. MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 11. 94 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Para verificar se é verdadeira ou falsa a afirmação de que a Torre Eiffel está localizada em Paris, França, é necessário verificar se existe esse estado de coisas no mundo, ou seja, é preciso verificar se no País França, na cidade Paris, existe algo chamado Torre Eiffel. Situação diferente ocorre quando se trata de avaliar a afirmação de que João é herdeiro de Mário, em razão de um testamento. A verificação da veracidade ou falsidade dessa afirmação dependerá não apenas de fatos brutos do mundo físico, mas sim de fatos institucionais que estipulam o que é válido como testamento dentro das regras estabelecidas por aquela comunidade. Para além das considerações possíveis sobre a posição metaética de Hart decorrentes da análise da metodologia empregada por Hart em O Conceito de Direito, será necessário verificar os argumentos do autor sobre questões envolvendo decisões éticas, questões políticas e morais e a forma como o Direito e a Moral se relacionam dentro da prática jurídica. Na próxima seção serão analisados textos, artigos e livros de autoria de Hart com o objetivo de encontrar na exegese dos textos indícios mais fortes das convicções metaéticas do autor. 2.2. A busca pela posição metaética de Hart por meio da interpretação de sua obra Tendo analisado o contexto social e acadêmico encontrado por Hart em seu retorno à Oxford após o término da Segunda-Guerra Mundial e a descrição metodológica presente em O Conceito de Direito, em que Hart esclarece sua posição a respeito da neutralidade moral, é possível passar a analisar de forma mais pormenorizada a produção acadêmica do filósofo, a fim de verificar se é possível identificar sua posição a respeito da objetividade da moral. É importante destacar que Hart, seguindo a tradição filosófica dos autores do positivismo jurídico, sobretudo Bentham, distingue dois tipos Wagner Arnold Fensterseifer | 95 de filosofia do direito: expositiva e censória, que dizem respeito, respectivamente, à descrição do direito como ele é e à prescrição do direito como ele deve ser. Como visto, em O Conceito de Direito, Hart adota posição expositiva, limitando-se a descrever e identificar o modo como funciona o Direito, bem como o que é necessário para que determinada prática social possa ser compreendida como Direito. Já em outros textos de Hart, como alguns dos que serão vistos a seguir, o autor faz análise normativa e crítica do direito vigente, posicionando-se de forma favorável ou desfavorável a determinadas regras jurídicas e precedentes judiciais. Nas próximas cinco subseções, serão analisados textos escritos por Hart em que será possível verificar as compreensões do autor acerca de pontos importantes na busca por sua posição metaética. 2.2.1. Positivismo Jurídico e a Separação entre o Direito e a Moral Em 1958, Hart publicou o artigo Positivismo e a Separação entre o Direito e a Moral, que reproduzia o teor de uma conferência por ele ministrada em Harvard no ano anterior. Nesse artigo, identificam-se algumas das grandes questões que seriam posteriormente desenvolvidas em O Conceito de Direito, publicado originalmente em 1961, dentre as quais está a ideia de que o Direito pode ser conceitualmente separável da moral. Todavia, para fins da investigação aqui proposta, interessa analisar um trecho específico desse artigo, em que Hart cria uma “fantasia filosófica” para demonstrar que não existem regras universalmente necessárias em um sistema jurídico, como fora defendido por tantos teóricos que afirmavam a existência de regras com conteúdo moral forte cuja presença seria condição necessária para a existência e identificação de qualquer sistema jurídico. 96 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Hart assim constrói o argumento hipotético utilizado para demonstrar o ponto: O mundo em que vivemos, e nós, que nele vivemos, podemos mudar, qualquer dia, de modos muito diferentes; e se essa mudança fosse radical o suficiente, não apenas certas declarações de fato, ora verdadeiras, se tornariam falsas, e vice-versa, mas modos inteiros de pensar ou de falar, que constituem nosso atual aparato conceitual, por meio do qual vemos o mundo e os outros, desapareceriam. Só precisamos considerar quanto toda nossa vida social, moral e jurídica, como as entendemos hoje, dependem do fato contingente de que, embora nossos corpos mudem em sua forma, tamanho e em outras de suas propriedades físicas, isto não se dá de forma tão drástica, nem com uma rapidez e irregularidade tão instantâneas que não possamos nos identificar uns aos outros como o mesmo persistente indivíduo ao longo do tempo. Embora este não seja mais que um fato contingente que pode um dia ser diferente, nele, neste momento, repousam enormes estruturas de nosso pensamento e princípios de ação e de vida social68. A interpretação do excerto acima permite identificar algumas características importantes do pensamento de Hart, sobretudo no que diz respeito à objetividade do direito e à objetividade da moral. O contexto em que determinado indivíduo está inserido, o lugar, o tempo, os costumes, para Hart, são contingências que influenciam de forma direta os conceitos que esse indivíduo compreenderá, bem como sua veracidade ou falsidade. O arcabouço conceitual de que uma pessoa dispõe e com base no qual vive e toma decisões é produto de diversas contingências. Hart afirma, então, que nossa vida social, moral e jurídica na forma como se dá hoje é produto do fato − contingente − de que vivemos do início ao fim de nossas vidas ocupando corpos que permanecem os 68 HART, H.L.A. O Positivismo e a Separação entre o Direito e a Moral. In: HART, H.L.A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. pp. 8687. Wagner Arnold Fensterseifer | 97 mesmos ao longo dos anos, ainda que passem por singelas modificações. Mas caso houvesse alguma modificação nessa realidade, haveria a necessidade de manutenção das concepções morais e jurídicas que temos hoje? Caso se conceba o direito e a moral como artefatos humanos a resposta será que as mudanças fáticas farão surgir novas demandas para a moral e para o direito, bem como tornarão alguns conceitos morais e jurídicos obsoletos ou mesmo ininteligíveis. Na continuação do argumento, Hart extrapola o exemplo para um caso extremo, buscando tornar ainda mais clara a relação de dependência entre as concepções jurídicas e morais e as características contingentes do mundo em que vivemos e até mesmo de nossa própria compleição. Assim argumenta Hart: De forma semelhante, considere a seguinte possibilidade (não porque seja mais do que uma possibilidade, mas porque revela o porquê acreditarmos que certas coisas são necessárias em um sistema jurídico e o que queremos dizer com isso): suponha que os homens se tornassem invulneráveis a ataques uns pelos outros, revestidos talvez, como imensos caranguejos, de uma carapaça impenetrável, e que pudessem retirar o alimento que necessitassem do ar por meio de algum processo químico interno. Em tais circunstâncias (cujos detalhes podem ser deixados para a ficção científica), regras que proibissem o livre uso da violência e regras que constituíssem a forma mínima de propriedade − com direitos e deveres suficientes para permitir que alimento seja cultivado e mantido até ser consumido − não teriam o necessário status não arbitrário que têm hoje para nós, constituídos como somos em um mundo como o nosso. Atualmente, e até que ocorram tais mudanças radicais, tais regras são tão fundamentais que, se um sistema jurídico não as contém, faria muito pouco sentido que contivesse quaisquer outras regras que fossem. Tais regras superpõem-se a princípios morais básicos que proíbem o assassinato, a violência e o roubo; e assim podemos acrescentar à declaração factual de que todos os 98 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin sistemas jurídicos coincidem, de fato, com a moral em pontos tão vitais, a declaração de que, nesse ponto, isto é necessariamente assim69. Pode-se reconhecer, nesse ponto, a ideia de necessidade hipotética cunhada por Aristóteles, segundo a qual em vista da finalidade a que se almeja, serão necessárias algumas medidas que permitirão atingir esse fim determinado. O exemplo trazido no Livro II da Física de Aristóteles é a produção de uma serra. Dado que se pretende fazer uma serra, e considerando-se que a finalidade da serra é serrar madeira, há uma necessidade de que a serra seja produzida por algum material muito resistente, como ferro ou bronze70. Nesse caso, a necessidade hipotética é de que o material que constituirá a serra deverá ser resistente de modo que a finalidade do objeto possa ser atingida. Não há, contudo, qualquer objeção para que a serra seja produzida utilizando-se alguma outra liga metálica que ainda não conhecemos, ou mesmo por outro tipo de material extremamente resistente que o futuro virá a nos revelar. Ainda, não se pode descartar que algumas pessoas poderão passar toda sua vida sem nunca pretender alcançar a finalidade de “serrar madeira”. Pode-se falar, nesse contexto, que existe algum grau de objetividade para definir o meio adequado para atingir determinada finalidade, contudo, podem existir meios mais adequados em relação aos quais não se tem conhecimento, e também é possível que existam desacordos quanto aos fins buscados, o que demonstra a dificuldade de encontrar respostas objetivamente corretas. 69 HART, H.L.A. O Positivismo e a Separação entre o Direito e a Moral. In: HART, H.L.A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 87. 70 ARISTOTLE. Physics. Trad. William Charlton. Oxford: Claredon Press, 2006. pp. 40-44. Wagner Arnold Fensterseifer | 99 Em relação à moralidade, o excerto acima reproduzido, em que Hart fala sobre os homens caranguejos, parece revelar o caráter não-cognitivista do pensamento de Hart em relação à moral, haja vista que o exemplo escancara a falibilidade das regras morais vigentes em determinado tempo, tornando insustentável a tese de que é possível avaliar juízos morais em termos de verdadeiro ou falso. Há que se atentar, todavia, para o conceito de necessidade hipotética, que – como visto – aponta para os meios corretos ou incorretos para atingir determinada finalidade. Veremos posteriormente que Hart reconhece o conteúdo mínimo do Direito Natural como aquelas regras jurídicas e morais que estão voltadas para a preservação da vida humana, em relação às quais é possível encontrar algum tipo de objetividade. No caso do sistema jurídico, há que se compreender qual a finalidade para a qual ele é instituído, de modo a criar as regras necessárias para atingir essa finalidade. Se a criação de um sistema jurídico tem como finalidade a convivência social harmoniosa, digna e pacífica entre os seres humanos − e, dado o fato contingente de que os seres humanos possuem determinadas limitações e necessidades físicas −, faz sentido que se afirmem algumas regras mínimas do ponto de vista jurídico e moral para que seja possível alcançar essa finalidade. Caso ocorra, como no exemplo de ficção científica criado por Hart, uma mudança drástica no modo como os seres humanos interagem entre si e com o mundo onde estamos inseridos, ainda assim é possível que a finalidade do sistema jurídico seja a convivência social harmoniosa, digna e pacífica entre os seres humanos, sendo, contudo, necessário adaptar as regras mínimas do ponto de vista jurídico e moral para essa nova realidade contingente, visando alcançar a finalidade estabelecida. Esse não-cognitivismo, contudo, como visto anteriormente, pode ser graduado. E a forma correta de fazê-lo parece ser a atenuação dessa 100 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin posição metaética, classificando-a como um não-cognitivismo fraco. As razões para fazê-lo decorrem do fato de que Hart não afirmaria que questões morais não podem ser racionalmente formuladas e respondidas, mas sim que tais questões não decorrem apenas da razão pura. Ou seja, é possível conhecer o verdadeiro e o falso moral, mas apenas de forma contingente, em dado tempo, em dado local e em dada comunidade. Essa avaliação, todavia, sempre dependerá de argumentos em favor ou contra uma interpretação, não sendo possível demonstrar de forma cabal que a afirmação moral “A” é objetivamente verdadeira. 2.2.2. Obrigação Legal e Obrigação Moral Para os fins da presente pesquisa, o principal ponto na análise do artigo escrito por Hart em 1958, intitulado Legal and Moral obligation71, é a diferenciação analítica que Hart faz entre obrigações do legais e obrigações morais. Para tanto, Hart analisa o uso que se faz das expressões dever e obrigação destacando que utilizá-las de modo indistinto para se referir a todos os tipos de julgamentos morais que fazemos é enganoso e equivocado72. Segundo Hart, as expressões dever e obrigação são sempre apropriadas quando utilizadas no campo do Direito. Já no campo da Moral, são algumas vezes adequadas, mas frequentemente inadequadas para descrever a forma como a moralidade opera no cotidiano das pessoas. Obrigações morais surgem, por exemplo, de promessas ou de determinadas posições parentais. Da mesma forma, os deveres morais surgem 71 HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. 72 HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. p. 01. Wagner Arnold Fensterseifer | 101 de posições reconhecidas ou papéis em um grupo social, como o de ser um anfitrião ou um vizinho, um marido ou um pai73. Contudo, alerta Hart, é equivocado fazer o mesmo uso das expressões dever e obrigação para descrever uma situação em que alguém se sente obrigado a cumprir suas promessas e para uma situação em que alguém se sente obrigado a impedir que crianças sejam torturadas, bem como na crítica moral a essas ofensas, quando cometidas74. Isso porque, segundo o autor, existem tipos distintos de julgamento moral, que devem ser tratados de forma diferente, porque operam de modo diverso75. Como refere Neil MacCormick, Hart trabalha com a ideia central de que em Moral, no Direito e talvez em outras esferas trabalha-se com determinados “requisitos” para a conduta correta, que ajudam a distinguir entre o que é certo e o que é errado, bem como o que é ao menos aceitável76. Por exemplo, quando alguém promete cuidar e proteger o filho do vizinho, essa pessoa cria para si uma obrigação moral em virtude dessa promessa. Mas a ideia de que é moralmente correto proteger e cuidar do filho do vizinho não precisa decorrer exclusivamente da promessa realizada, pois também pode ser inconsistente com os princípios morais daquela pessoa permitir o sofrimento desnecessário desta ou de qualquer outra criança77. Há que se perceber, contudo, que enquanto a promessa cria uma obrigação; as concepções morais individuais, não. 73 HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. p. 03. 74 HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. p. 03. 75 HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. p. 14. 76 77 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p. 79. HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. p. 14. 102 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Outro tipo de obrigação moral é aquele que surge em decorrência do papel social que determinado indivíduo ocupa em uma sociedade. Por exemplo, a obrigação moral que um pai ou uma mãe possui de cuidar de seu filho. Diferentemente da promessa, essa obrigação não surge de uma escolha deliberada do indivíduo, mas é concebida enquanto assumida pelo desempenho de um papel particular. Assim, aquele que desempenha esse papel está especialmente comprometido em desempenhar esses deveres78. Entretanto, Hart alerta que esse tipo de princípio que cria obrigações morais não possui aplicação universal para todas as sociedades do mesmo modo, mas são concebidos como algo que pode variar de sociedade para sociedade, bem como em razão do conjunto de suas instituições associadas79. Novamente, Hart ressalta que, ainda que possam existir princípios morais mais amplos que requeiram que se auxilie toda criança que necessite de cuidado, o dever de um pai de fazê-lo advém somente do fato de que a sociedade em particular na qual ele está inserido atribui importância moral ao fato de que pessoas que ocupem tal posição devem realizar tais tarefas80. O que parece ficar evidenciado nesse artigo é que a concepção de moralidade de Hart é bastante compatível com a qualificação que foi feita no primeiro capítulo deste livro acerca da posição metaética do não-cognitivismo moral. Ao elaborar a distinção analítica entre obrigação moral e obrigação legal, Hart escreve que seu enfoque está voltado para a área da moralidade em que os princípios perderiam sua força moral se não fossem amplamente aceitos num grupo social particular. Daí ser possível concluir 78 HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. p. 16. 79 HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. p. 17. 80 HART, H.L.A. Legal and Moral Obligation. In: MELDEN, A. I. (ed.). Essays in Moral Philosophy. Washington: University of Washington Press, 1958. pp. 17-18. Wagner Arnold Fensterseifer | 103 que o autor não acreditaria na existência de princípios morais universais e independentes das contingentes concepções humanas do que é certo e errado em dado tempo e em dado lugar. Há que se ponderar, contudo, se é possível concluir que, diante do fato de Hart apontar que diversos princípios morais estão sujeitos a essa dependência da aceitação do grupo social, isso ocorreria de forma geral com todos os princípios morais. Considere-se, por exemplo, uma sociedade em que o cuidado das crianças é uma responsabilidade atribuída aos pais, e outra em que tal responsabilidade recai sobre os avós ou tutores nomeados pela comunidade. Sem dúvida, tais alterações farão grande diferença na atribuição de deveres. Contudo, o mesmo ocorreria com o dever de socorrer uma criança que estiver em apuros e a pessoa for a única a ter condições de prestar socorro no momento? Ou com respeito à proposição "é moralmente errado torturar bebês por pura diversão"? Seria possível também em relação a esses princípios morais afirmar que não são universais e independentes? Como será visto nas seções subsequentes, existem determinados princípios que serão identificados por Hart como integrantes da noção de “conteúdo mínimo do direito natural” e em relação aos quais não haverá dependência tão forte da aceitação social da comunidade observada. Tais princípios, contudo, não são capazes de dar respostas aos problemas postos no parágrafo anterior, uma vez que tratam apenas de estabelecer as condições necessárias à sobrevivência de uma sociedade81. 81 Há um texto escrito por Hart em 1955 intitulado “Are There Any Natural Rigths?” no qual o autor estabelece os direitos gerais que todos os indivíduos possuem e as condições em que direitos específicos poderão ser criados. Embora seja uma tese que veio a ser abandonada posteriormente por Hart, esse artigo é relevante pelo modo como o autor constrói a ideia de que o direito à liberdade individual decorreria de um direito moral “que é o direito igual de todos os homens de serem livres” (p. 175). Desse modo, Hart afirma que esse direito, existente sob determinadas condições, estipula que seres humanos capazes de escolha têm (i) o direito de tolerância por parte de terceiros ao se utilizar de coação ou contenção a seu favor, salvo para evitar coação ou contenção de outrem; e (ii) a liberdade de praticar qualquer ato que não coaja, restrinja ou pretenda lesionar outras pessoas (p. 176). Em relação aos direitos específicos, Hart afirma que são aqueles decorrentes do exercício da liberdade dos indivíduos, que transacionam ou acordam entre si. Poderão ser originados de promessas (p. 183-184), de consentimento e/ou autorização (p. 184) e 104 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Ainda assim, é possível afirmar que Hart afasta-se de uma posição metaética que acredita na objetividade moral e na independência entre a moral e as ações humanas. Os trechos acima analisados denotam uma concepção não-realista da moral, na medida em que compreendem a moral como produto das ações realizadas por um grupo social particular, em determinada época, sujeito a determinadas contingencias. 2.2.3. Direito, Liberdade e Moralidade A preocupação principal de Hart em Law, Liberty and Morality, obra de sua autoria publicada originalmente em 1963, é com a seguinte questão: o fato de certas condutas serem consideradas imorais por padrões comuns é suficiente para justificar que essas condutas sejam puníveis pelo Direito? É possível utilizar o Direito para fazer cumprir a Moral dessa forma?82 Nessa obra, Hart novamente dá destaque à distinção entre moralidade positiva e moralidade crítica, a qual retoma das lições de utilitaristas que o precederam, sobretudo John Austin, e que já havia aparecido de forma menos clara na conclusão do artigo Legal and Moral obligation. A moralidade positiva, nesse contexto, pode ser assim definida: é a moral efetivamente aceita e compartilhada por um determinado grupo social. Já a moralidade crítica pode ser compreendida como os princípios gerais da moral que são usados para criticar as instituições sociais, inclusive a própria moralidade positiva83. do estabelecimento de contenções mútuas (p. 185). Por fim, Hart refere a existência de uma fonte distinta para direitos, que seriam as relações especiais naturais, tal como aquela havida entre pais e filhos (p. 186-187), o que poderia indicar alguma formulação para responder aos problemas colocados no parágrafo anterior. Contudo, no funcionamento estabelecido por Hart no referido artigo, esse direito surgido das relações especiais naturais funciona apenas em relação às partes envolvidas (pai/mãe e filho/filha), de modo que resolveria apenas parcialmente a questão. De todo modo, as formulações de Hart em “Are There Any Natural Rigths?” sobre a questão das obrigações políticas e morais, bem como sobre a obediência ao direito foram abandonadas, tendo sido reformuladas posteriormente, de modo que não serão analisadas com maior aprofundamento na presente pesquisa (HART, H.L.A. Are there any natural rights?. The Philosophical Review, v. 64, n. 2, p. 175-191, 1955). 82 HART, H.L.A. Law, Liberty and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1963. p. 04. 83 HART, H.L.A. Law, Liberty and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1963. p. 20. Wagner Arnold Fensterseifer | 105 Racionalidade, aparentemente, relaciona-se com ideais e valores. Valores e desvalores, de acordo com Hart nas páginas finais de Law, Liberty and Morality, não são sujeitos à prova. Seja a afirmação de que repressão, crueldade e superstição são males (negações de valor), seja a afirmação de que esclarecimento e liberdade são bens (afirmações de valor) − essas não são questões que podemos provar84. Segundo MacCormick, o que mais preocupava Hart no texto em análise era destacar que questões envolvendo valores não podem nem ser demonstradas de forma puramente racional como as proposições matemáticas, mas também não derivam de vontades arbitrárias ou escolhas individuais85. O que teria, então, a racionalidade a ver com tais valores? Segundo MacCormick, a resposta que Hart daria a esse questionamento seria que humanos como seres pensantes e racionais não podem evitar senão empregar suas mentes para esclarecer, tornar explícito e formar uma visão coerente do que de outra forma seria simplesmente um arranjo inarticulado de ideias sobre o que é o bem86. Em outras palavras, seres humanos empregam racionalidade para refletir e tornar explícitas as assunções de valor inicialmente inarticuladas e que estão inevitavelmente implícitas nas ações que tomamos enquanto seres ativamente sociais87. A racionalidade dos valores, nesse sentido, deve levar em consideração além de suas propriedades formais de universalidade e generalidade algum esquema coerente de valores, ou uma concepção abrangente de valores. Outro ponto relevante de análise ao qual Hart dedicou diversas páginas de Law, Liberty and Morality é a questão envolvendo as posições de 84 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p.64. 85 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p. 65. 86 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p. 65. 87 MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. 2nd Ed. Stanford: Stanford University Press, 2008. p. 65. 106 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Lord Devlin e James Fitzjames Stephen acerca do papel social desempenhado pela moralidade positiva. Hart descreve o argumento de Devlin como representando uma tese moderada do papel da moralidade positiva na sociedade, enquanto à Stephen é imputada uma tese extrema88. De acordo com a tese moderada, a moralidade positiva constituiria o cimento de uma sociedade, sem a qual existiria apenas um agregado de indivíduos, mas não uma sociedade. Nas palavras de Lord Devlin, a moralidade reconhecida seria tão necessária para uma sociedade quanto a existência de um governo reconhecido89. Dessa tese, Devlin retira a conclusão de que um ato individual que seja contrário à moralidade positiva consiste em um dano causado para a sociedade como um todo, colocando em xeque esse amálgama que une os indivíduos. Estaria assim justificado o uso do Direito para a imposição da moralidade positiva. Já a tese extrema, que Hart atribui a James Fitzjames Stephen, não vê a moral positiva como uma instituição análoga ao governo organizado, tampouco entende necessário o uso do Direito para fazer valer essa moralidade e com isso evitar o colapso social90. Para a tese extrema, a preservação da moralidade é um valor em si, não dependendo de qualquer justificativa prática para que se possa forçar o seu cumprimento. Contudo, para os fins relevantes à presente pesquisa, um trecho da análise que Hart faz dos argumentos de Devlin e Stephen parece ser revelador de uma posição do autor acerca da objetividade da moral. Contra a posição de Devlin, que sustenta ser a alteração da moralidade positiva equivalente à destruição da sociedade, justificando com isso o conservadorismo moral e a utilização do direito para punir comportamentos divergentes, Hart escreve que: 88 HART, H.L.A. Law, Liberty and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1963. p. 48. 89 HART, H.L.A. Law, Liberty and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1963. p. 48. 90 HART, H.L.A. Law, Liberty and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1963. p. 49. Wagner Arnold Fensterseifer | 107 mesmo que a moralidade convencional acabe sendo modificada, a sociedade em questão não teria sido destruída ou “subvertida”. Nós devemos comparar tal desenvolvimento da moralidade não a uma tomada violenta do governo, mas sim a uma mudança constitucional pacífica, não apenas consistente com a preservação da sociedade, mas com seu avanço social91. Do excerto acima pode-se concluir que, para Hart, a moralidade não é apenas um valor universal e objetivo, tal como as leis da física ou as regras da matemática, mas sim uma construção social que, como tal, estará sujeita a mudanças, alterações, evoluções e retrocessos. Essa posição, quando comparada com as posições metaéticas descritas no primeiro capítulo desta obra, parece ser bastante compatível com um nãocognitivismo fraco. Isso porque Hart deixa claro que é possível reconhecer e identificar a moralidade positiva de uma determinada sociedade, e até mesmo criticála com base em uma moralidade crítica. Contudo, essa moralidade será diferente em razão da época, da sociedade, dos costumes e da forma como uma determinada comunidade se organiza e desenvolve. 2.2.4. O Conceito de Direito Em O Conceito de Direito, sobretudo nos capítulos VIII e IX, Hart analisa diversas maneiras distintas em que o Direito se relaciona com a moralidade e com a ideia de justiça. Nesses dois capítulos, o autor debruçase sobre a questão distinção entre obrigação moral e obrigação jurídica, tal como em Law, Liberty and Morality, mas analisa também uma forma de conteúdo mínimo da moral que deve existir em todo sistema jurídico. 91 HART, H.L.A. Law, Liberty and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1963. p. 52. 108 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Ainda, ganha relevância a ideia de que o direito positivo poderá ser criticado em termos morais, por meio de críticas morais, sociais e políticas. Para os fins da presente pesquisa, tais temas são de suma relevância, uma vez que poderão fornecer novos indícios a respeito da posição de Hart sobre a objetividade da moral e a forma como isso afeta o desenvolvimento de sua teoria do Direito. Assim, nas próximas subseções, serão analisados alguns pontos específicos dos capítulos VII e IX de O Conceito de Direito, com o objetivo de buscar compreender com clareza as distinções analíticas feitas por Hart sobre o uso dos conceitos de justiça, moral, equidade, certo e errado. 2.2.4.1. Justiça do Direito e justiça na aplicação do Direito. No Capítulo VIII, Hart apresenta uma relevante distinção entre justiça no direito e justiça na aplicação do direito. De um lado, há o princípio elementar de justiça que consiste em tratar os casos iguais de forma igual e os casos diferentes de forma diferente; de outro, a necessidade de definir o que deve ser considerado para avaliar se um caso é igual ou diferente92. Nesse sentido, exemplifica Hart, uma regra que proíba a entrada de pessoas negras em um parque será injusta na medida em que se utiliza, de um critério de diferenciação entre pessoas que é considerado indevido93. Essa regra discrimina pessoas que, para todos os aspectos relevantes, são iguais. Contudo, mesmo essa regra injusta pode ser aplicada de forma justa, desde que todas as pessoas negras sejam igualmente impedidas de adentrar no parque e que todas aquelas que o fizerem sejam devidamente punidas, após passarem pelo devido processo legal94. 92 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. pp. 158-159. 93 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 159. 94 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 161. Wagner Arnold Fensterseifer | 109 Fica claro, com isso, que existe uma análise distinta a ser feita em relação ao conteúdo do direito em si e em relação à aplicação do direito. Uma regra justa pode ser aplicada de forma injusta, da mesma forma que uma regra injusta pode ser justamente aplicada, quando respeitada a ideia de tratar de forma igual os casos iguais. O critério para definir se um caso é semelhante ou diferente do outro, afirma Hart, será cambiante ou variável95. Quando se diz, e.g., que uma criança é alta essa característica precisará ser avaliada em comparação com algo. A criança pode ser alta quando comparada com outras crianças da mesma idade, ou então pode-se estar afirmando que a criança é alta mesmo quando comparada a um adulto de estatura média. A justiça, tal como às noções sobre o que é ser autêntico, alto, sincero, cordial, contém uma referência implícita a um padrão que varia conforme a classificação do objeto ao qual se aplica96. A dificuldade aqui, será decorrente do fato de que – havendo dúvida sobre o critério a ser utilizado para verificar se um caso é semelhante ou distinto (em relação à própria legislação que cria tratamento igualitário ou discriminatório) – esse critério não poderá ser encontrado no próprio direito. Portanto, reconhece Hart, haverá campo fértil para desacordos e concepções diferentes acerca do que pode ou não pode ser utilizado como critério legal para definir o que são discriminações válidas. E esses desacordos terão fundamentalmente natureza moral e política97. Voltando ao exemplo anterior, da regra que proíbe o ingresso de pessoas negras no parque, Hart irá afirmar que ao criticarmos essa regra como injusta estaremos o fazendo porque consideramos que as diferenças de cor de pele das pessoas são irrelevantes para o que está sendo definido 95 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 160. 96 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 160. 97 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 161. 110 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin por essa regra98. E essa conclusão decorre da concepção, que em grande medida é compartilhada pelas sociedades modernas, de que seres humanos (sem distinção de cor) são considerados igualmente capazes de reflexão, sentimento, ação e autocontrole. Por consequência, na maioria dos países atualmente há ampla concordância no sentido de que tanto o direito penal quanto o direito civil seriam injustos se discriminassem pessoas em razão da cor de sua pele ou de sua crença religiosa quando fossem criar suas regras que realizam a distribuição de encargos e benefícios na sociedade99. E parece bastante adequado que esse seja o funcionamento do Direito. Basta ampliar esse exemplo para situações igualmente inadequadas como utilizar altura, beleza ou peso como critério para diferenciar aqueles aos quais determinada regra deve ou não ser aplicada. Se homicidas de determinada religião fossem imunes às regras do Direito Penal, ou se somente membros da nobreza tivessem capacidade postulatória para mover processos por calúnia, o Direito seria evidentemente injusto e até mesmo risível100. Contudo, existem diversas situações em que distinções serão feitas e não haverá tamanha certeza sobre sua adequação ou inadequação. E, nesse caso, parece ser bastante clara a influência de certas concepções morais, ou perspectivas morais básicas, de determinado indivíduo ou sociedade101. Nesses casos, as avaliações sobre a justiça ou injustiça do direito poderão encontrar argumentos e contra-argumentos inspirados em concepções morais diferentes102. 98 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 161. 99 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 162. 100 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 162. 101 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 163. 102 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 163. Wagner Arnold Fensterseifer | 111 Note-se que Hart identifica, aqui, dois pontos cuja relevância merece maior reflexão. O primeiro é a influência das concepções morais na definição dos objetivos do Direito. Ou seja, quando as regras são criadas e por meio delas se estabelecem determinadas distribuições de encargos e benefícios em dada sociedade, há em alguma medida uma influência de concepções políticas e morais na definição dos objetivos de tais regras. A regra que institui tributação sobre a renda de forma progressiva, com a finalidade de arrecadar mais impostos daqueles que possuem maior renda e patrimônio, desonerando aqueles menos abastados é claramente influenciada por uma determinada visão de justiça social (política) e de equidade. O segundo é a possibilidade de variadas perspectivas morais básicas entrarem em conflito, gerando desacordos a respeito da forma e do objetivo que devem ser perseguidos por determinada regra. A ideia de que Hart poderia ter suas concepções morais associadas a alguma forma de não-cognitivismo fraco parece ganhar maior sustentação, na medida em que novamente reconhece as possibilidades de desacordos no direito estarem em seu âmago alimentados por desacordos morais. Destarte, não sendo o caso de existirem respostas claras do ponto de vista moral, é evidente que os desacordos sobre moralidade refletirão em desacordos no Direito, sobretudo nos pontos de maior contado entre os dois campos. 2.2.4.2. As relações entre o Direito e a Moral No Capítulo IX de O Conceito de Direito, Hart ocupa-se das relações possíveis entre Direito e Moral, referindo que existem diversas relações possíveis e que é inadequado apontar alguma dessas relações como sendo a mais importante ou relevante103. 103 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 185. 112 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Hart reconhece que o desenvolvimento do direito sofre influência, em todos tempos e lugares, da moral e dos ideais convencionais de grupos sociais específicos, bem como de formas esclarecidas de crítica moral oferecidas por indivíduos cujos horizontes morais transcenderam a moralidade comumente aceita104. Contudo, o autor alerta que essa verdade – que o direito é influenciado pela moral – pode ser compreendida de forma equivocada, qual seja, como autorização para que se afirme que um sistema jurídico deve necessariamente estar em conformidade com a moral ou a justiça, ou basear-se obrigatoriamente em uma convicção amplamente difundida de que existe a obrigação moral de obedecer à lei105. Embora uma afirmação desse tipo possa ser até mesmo verdadeira em algum sentido, daí não se pode depreender que os critérios de validade jurídica das leis devam necessariamente incluir, expressa ou tacitamente, referências à moral ou à justiça. Hart apresenta, então, seis relações possíveis entre o Direito e a Moral e examina a forma como se relacionam e as consequências dessa relação106. A primeira forma de relação entre o Direito e a Moral é (i) poder e autoridade. Aqui, Hart desmistifica a noção de que as pessoas respeitam e agem de acordo com as regras jurídicas de um sistema por entenderem que estão moralmente obrigadas a fazê-lo, ou então porque compreendem as regras desse sistema como moralmente corretas. Para que uma norma seja reconhecida como juridicamente vinculante, não há necessidade de que seja aceita como moralmente obrigatória107. As pessoas podem ser leais ao sistema jurídico em razão de diversas razões distintas, tais como: cálculos de interesse de longo prazo; atitude irreflexiva herdada ou 104 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 185. 105 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 185. 106 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 202. 107 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 203. Wagner Arnold Fensterseifer | 113 tradicional; consideração desinteressada pelo bem alheio; ou mesmo o simples desejo de agir como os demais108. A segunda forma de relação entre Direito e Moral é (ii) a influência da moral sobre o direito. Segundo Hart, o direito de todos os Estados modernos demonstra a influência tanto da moral social aceita quanto de ideais morais mais abrangentes. O modo como essas influências ingressam no direito pode se dar de forma explícita pela legislação e, também, de forma mais paulatina por meio do judiciário109. Em alguns sistemas, inclusive, os critérios últimos de validação das regras jurídicas podem incorporar princípios de justiça ou valores morais subjetivos. Hart aceita que essa influência da moral no direito é um fato e que a estabilidade dos sistemas jurídicos depende em parte dessas correspondências entre as regras jurídicas e a moral. A terceira forma de relação entre o Direito e a Moral é a (iii) interpretação. Como afirma Hart, as regras precisam ser interpretadas para que possam ser devidamente aplicadas a casos concretos110. A característica da textura aberta do direito permite que, em determinados casos, exista uma grande abertura para atividade criadora de significados pelo julgador, o que alguns convencionaram chamar atividade “legislativa” exercida pelo Poder Judiciário. Na concepção de Hart, os julgadores ao decidirem determinado caso não têm à sua disposição apenas a alternativa da decisão arbitrária ou da decisão mecânica. Frequentemente decidem com base em raciocínios que consideram como pressuposto a ideia de que o objetivo das normas interpretadas é razoável – no sentido de que não se destinam a perpetrar injustiças ou ofender princípios morais estabelecidos. 108 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 203. 109 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 204. 110 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 204. 114 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Nesse tipo de processo de tomada de decisão judicial algumas virtudes são relevantes para conferir maior racionalidade ao procedimento. São elas: imparcialidade e neutralidade ao analisar as soluções alternativas; a consideração pelo interesse de todos os possíveis afetados pela decisão e a preocupação em apresentar algum princípio geral aceitável como fundamento racional para a decisão111. Sem dúvidas, assevera Hart, considerando-se a pluralidade de princípios morais, é sempre possível que não se consiga demonstrar que a decisão tomada é a única correta. Mas ela pode se tornar aceitável como o produto racional de uma escolha imparcial informada. Em tudo isso temos a “ponderação” e o “sopesamento” como características do esforço para tomar decisões justas em um contexto de interesses concorrentes112. O excerto abaixo é bastante esclarecedor sobre a concepção de Hart sobre o papel da Moral nas decisões jurídicas: A decisão judicial, especialmente em questões de alta relevância constitucional, freqüentemente envolve uma escolha entre valores morais, e não meramente a aplicação de algum princípio moral excepcional; pois é loucura acreditar que, onde o significado da lei está em dúvida, a moralidade sempre tem uma resposta clara para oferecer113. A quarta forma de relacionar Direito e Moral é a (iv) crítica do direito. Aqui, Hart analisa a afirmação de que há uma ligação necessária entre o direito e a moral quando seu significado equivale à afirmação de que qualquer sistema jurídico para ser considerado bom deverá se adaptar a certas exigências da justiça e da moral114. 111 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 205. 112 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 205. 113 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 204. 114 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 205. Wagner Arnold Fensterseifer | 115 O que é questionável, segundo Hart, é saber de que moral se está falando: se, de um lado, por moral se deve entender a moralidade aceita do grupo cujo direito está em questão, ainda que possa estar baseada em superstições ou mesmo que possa negar seus benefícios e sua proteção a determinados grupos minoritários como negros e mulheres, ou se, por outro lado, moral significa seguir padrões que repousam em crenças racionais sobre questões de fato e que aceitam que todos os seres humanos têm direito à igual consideração e respeito115. É inegável o fato que existiram (e talvez ainda existam) diversos sistemas jurídicos, com sua estrutura característica de normas primárias e secundárias, que tiveram longa duração muito embora desprezassem princípios de justiça como o direito de todos seres humanos à igual consideração e respeito. Esses sistemas podem ser criticados pela moral, embora não possam deixar de serem considerados como sistemas jurídicos válidos. A quinta forma de reação entre o Direito e a Moral são (v) princípios de legalidade e justiça. Hart afirma, nesse ponto da análise, que é possível a existência de sistemas jurídicos justos e injustos. E justifica tal afirmação no fato de que um mínimo de justiça é necessariamente concretizado sempre que o comportamento humano é controlado por normas gerais, publicamente anunciadas e judicialmente aplicadas, deixando claro, contudo, que o tratamento igual garantido pela aplicação das regras não garante tratamento justo116. Conforme já visto anteriormente, a justiça na aplicação do direito consiste simplesmente em aplicar da mesma forma a norma para uma classe de pessoas, independentemente de preconceitos, caprichos, 115 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 205. 116 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 206. 116 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin preferências ou interesses. A imparcialidade na aplicação da regra geral aos casos particulares, bem como a ideia de que casos iguais devem ser tratados de modo igual consistem em um embrião de justiça, muito embora leis altamente detestáveis possam ser igualmente aplicadas segundo esses princípios. Hart relembra que houve críticos do positivismo que afirmaram ser essa forma de aplicar o direito uma espécie de “moral interna do direito” e por isso reconheceram uma necessária conexão entre o direito e a moral. Para o autor, se o que se quer dizer quando se afirma que há uma necessária conexão entre direito e moral, é possível aceitar tal afirmação. Contudo, Hart faz a ressalva de que esse vínculo é compatível com grandes iniquidades117. Por fim, a sexta forma de relação entre Direito e Moral é (vi) a validade jurídica e a resistência à lei. No último tópico de análise das relações entre direito e moral, Hart preocupa-se em deixar claros os motivos que levaram os positivistas como Austin a asseverarem que “A existência do direito é uma coisa; seu mérito ou demérito, outra” ou então como Kelsen que “As normas jurídicas podem ter qualquer conteúdo” ou também como John Gray, que afirmou “O direito de um Estado não é um ideal, mas algo que existe de fato... não é aquilo que deveria ser, mas aquilo que é”118. Isso porque Hart afirma que dificilmente um teórico do direito considerado positivista negaria as relações entre direito e moral vistas nos cinco pontos anteriores. Entretanto, o que esses autores positivistas estavam preocupados em fazer era analisar com clareza e honestidade a formulação de problemas teóricos e morais decorrentes do fato de existirem leis específicas que eram moralmente injustas ou condenáveis, muito 117 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 207. 118 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 207. Wagner Arnold Fensterseifer | 117 embora fossem leis criadas de modo formalmente adequado, dotadas de clareza de sentido e que preenchiam todos os critérios determinados pela regra de reconhecimento do sistema jurídico onde estavam inseridas119. O ganho teórico que esses autores identificaram decorria do fato de que qualquer pessoa (fosse ela um cidadão, uma autoridade, um julgador), quando deparada com uma lei patentemente injusta, pudesse ainda assim reconhecê-la como uma lei. Nesse sentido, os positivistas defendiam que fosse emitido o seguinte juízo: “Isto é uma lei; mas é sobremaneira injusta, de modo que não deve ser aplicada ou obedecida”120. 2.2.4.3. O conteúdo mínimo do Direito Natural Além dessa análise sobre as relações entre Direito e Moral, Hart também dedica sua atenção no Capítulo IX de O Conceito de Direito à controvérsia entre o Direito Natural e o Positivismo Jurídico. Para o autor, Positivismo Jurídico nada mais é do que a afirmação simples de que não é necessariamente verdade que as leis reproduzem ou satisfazem determinadas demandas da moralidade121. Já em relação ao Direito Natural, Hart esclarece que a versão que será por ele analisada é aquela doutrina em que cada espécie nomeável de coisa existente, humana, animada e inanimada, é concebida como algo que tende não só a continuar existindo, mas a avançar em direção a um estado ótimo final que consiste no bem ou fim (télos, finis) específico que lhe é apropriado122. Para o autor, essa forma mais simples de conceber as ideias do Direito Natural, sem lançar mão de uma terminologia e uma metafísica que 119 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. pp. 207-208. 120 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 208. 121 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. pp. 185-186. 122 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. pp. 188-189. 118 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin poucos considerariam aceitáveis nos dias de hoje (como algum fundamento divino ou decorrente de alguma forma de revelação), e baseandose em verdades elementares sobre a condição humana são importantes para a compreensão tanto da moral quanto do direito. Assim, Hart constata que a teleologia está presente quando se identificam determinadas coisas como necessidades humanas cuja satisfação é considerada boa, bem como na identificação de coisas feitas ou sofridas por humanos que são consideradas como danos ou injustiças123. Nesse sentido, ao observar a forma como vivem os humanos, pode-se constatar que questões como alimentação e descanso são elementares para a sobrevivência da espécie. E dado que sobreviver é, ao fim e ao cabo, um dos – se não o – principais objetivos de todos os seres humanos, pode-se afirmar não apenas que comer e descansar é algo natural, mas também que é naturalmente bom fazer essas coisas. É importante apontar que, nesse tipo de juízo sobre o comportamento humano o uso da palavra “naturalmente” visa diferenciar determinados comportamentos tanto das opiniões que refletem simples convenções ou prescrições humanas (como “você deve tirar o chapéu ao entrar na igreja”), cujo conteúdo não é descoberto ou encontrado pelo uso da razão ou da reflexão, quanto dos julgamentos que servem para indicar meramente o que é requerido para alcançar determinado objetivo específico124. Dessa forma, as ações que Hart identifica como aquelas que podem ser caracterizadas como naturalmente boas são as exigidas para a sobrevivência da espécie humana125. Entretanto, ao reduzir dessa forma a doutrina do Direito Natural, Hart entende que se chega apenas a uma 123 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 190. 124 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. pp. 190-191. 125 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 191. Wagner Arnold Fensterseifer | 119 versão muito diluída do que a teoria efetivamente defendida por seus representantes clássicos126, haja vista que eles enxergavam na sobrevivência uma camada mais baixa, sobre a qual deveriam ser consideradas afirmações muito mais complexas – e também muito mais contestáveis – acerca da finalidade humana ou do que constitui o bem para a humanidade. Explorando com mais detalhe, portanto, essa noção de Direito Natural, a qual Hart passará a denominar conteúdo mínimo do Direito Natural, o autor identifica cinco truísmos que configuram o mínimo que qualquer sistema de normas – jurídicas ou morais – deve conter para poder ser considerado como um sistema aceitável do ponto de vista racional. O primeiro desses truísmos apontados por Hart é a vulnerabilidade humana. Segundo afirma o autor, as exigências comuns do direito e da moral consistem, em sua grande maioria, em abstenções – geralmente formuladas em termos negativos como proibições – voltadas para a restrição do uso da violência que causa morte ou inflige lesões127. Hart adverte, todavia, conforme visto anteriormente, que não é necessário que seja assim. Se os seres humanos perdessem sua vulnerabilidade mútua, deixaria de existir uma das razões óbvias para a prescrição mais característica do direito e da moral, que é a regra que determina não matarás128. O segundo truísmo é o da igualdade aproximada. Segundo Hart, nenhum indivíduo é mais poderoso que os outros a ponto de ser capaz, sem algum tipo de cooperação, de subjugar ou dominar a todos os outros, exceto por um curto período de tempo. Em decorrência dessa igualdade aproximada, é necessária a criação de um sistema de regras de abstenções 126 Hart refere, como exemplos, a teoria de Aristóteles, para quem a finalidade humana seria o cultivo desinteressado do intelecto humano e o posicionamento de São Tomás de Aquino, para quem a finalidade humana seria alcançar o conhecimento de Deus. Ainda, Hart refere as teorias de Hume e Hobbes, como representantes do pensamento de que a sobrevivência seria o elemento central e indisputado que daria sentido empírico à terminologia do Direito Natural. 127 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 194. 128 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. pp. 194-195. 120 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin e acordos recíprocos que constituem a base tanto das obrigações jurídicas quanto dos deveres morais129. Também nesse caso, como ocorrera no primeiro truísmo, Hart afirma que as coisas poderiam ser diferentes. Se, ao invés de os seres humanos serem tão aproximadamente iguais, alguns indivíduos fossem imensamente mais fortes que outros, ou muito mais capazes de subjugar a todos os demais, para esses mais fortes não existiria qualquer vantagem em estabelecer regras de tolerância mútua130. O terceiro truísmo que dá fundamento para o conteúdo mínimo do Direito Natural, segundo Hart, é o altruísmo limitado. Seres humanos não são anjos nem demônios. Fossem anjos, a existência de normas exigindo o autocontrole seria desnecessária, uma vez que nunca se sentiriam tentados a causar prejuízos a outras pessoas. Fossem demônios, pouco importaria a existência de normas exigindo o autocontrole. Os seres humanos são dotados de altruísmo intermitente e com alcance limitado, e possuem com alguma frequência tendências à agressão que podem ser fatais à vida em sociedade, caso não sejam controladas131. O quarto truísmo consiste no fato dos recursos limitados. Segundo Hart, é em razão do fato contingente de que os seres humanos necessitam de alimentos, roupas e abrigos e de que esses recursos não estão disponíveis de forma ilimitada, mas são escassos e têm de ser retirados da natureza, ou cultivados, ou construídos mediante esforço humano, que são necessárias normas que minimamente instituam a propriedade e o respeito a essa propriedade132. É também em razão dos recursos limitados que surge a necessidade de criar regras disciplinando a criação de deveres 129 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 195. 130 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 195. 131 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 196. 132 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 196. Wagner Arnold Fensterseifer | 121 e obrigações entre indivíduos, de modo que se viabilize a cooperação e as trocas entre indivíduos133. Por fim, Hart aponta o truísmo da compreensão e força de vontade limitadas. O autor afirma que os fatos que tornam necessárias as normas que dizem respeito à pessoa, à propriedade e aos deveres e obrigações são relativamente simples e seus benefícios mútuos para os indivíduos em sociedade são óbvios134. As pessoas obedecem a essas regras por uma série de motivos diversos tais como: cálculo prudencial de que os benefícios compensam os sacrifícios, preocupação desinteressada com o bem alheio ou por considerarem as normas dignas de respeito nelas mesmas e vislumbrarem uma realização de seus ideais ao cumpri-las135. Entretanto, nem todos os membros de uma sociedade organizada são capazes de compreender essas vantagens e se sentem tentados a preferir seus próprios interesses imediatos e violar as normas instituídas para manter a convivência pacífica e harmônica da comunidade. Por isso, Hart afirma que seria uma insanidade a submissão a um sistema de normas restritivas se não houvesse uma organização destinada à coerção daqueles que tentariam obter as vantagens do sistema, sem, contudo, submeteremse às suas obrigações136. Nesse contexto, as sanções são necessárias – não como uma forma convencional de fazer as regras serem obedecidas – mas como garantia de que quem as obedecer de forma voluntária não será prejudicado por aqueles que não o fizerem. Por isso, Hart afirma que a razão requer que exista uma colaboração voluntária em um sistema coercitivo137. 133 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 197. 134 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 197. 135 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 197. 136 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 198. 137 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 198. 122 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Hart afirma que os truísmos elementares analisados no Capítulo IX de O Conceito de Direito não se limitam a demonstrar o núcleo de bom senso da doutrina do Direito Natural, mas são de vital importância para a compreensão do direito e da moral, uma vez que explicam por que a definição de suas formas básicas em termos puramente formais, sem referência a qualquer conteúdo específico ou às necessidades sociais, se provou tão inadequada138. Tendo apresentado os cinco truísmos que dão forma ao conteúdo mínimo do Direito Natural, Hart irá afirmar que para responder à afirmação positivista de que “o direito pode ter qualquer conteúdo”, é necessário compreender que [...] deve-se reservar um lugar, além das definições e afirmações comuns sobre fatos, para uma terceira categoria de afirmações: aquelas cuja verdade é contingente e depende de que os seres humanos e o mundo no qual vivem conserve suas características mais evidentes139. Assim, o que fica claro ao analisar as teses de Hart sobre o conteúdo mínimo do Direito Natural é que existe, sim, alguma objetividade quando se está avaliando determinadas regras – sejam elas jurídicas ou morais. Entretanto, essa objetividade será sempre dependente das circunstâncias ou mesmo das condições de natureza dos seres humanos e do mundo no qual estejam vivendo. Não há, nesse sentido, a pretensão de universalidade nessa avaliação de verdade ou falsidade do conteúdo mínimo do Direito Natural. Como visto na seção 2.2.2. é possível identificar aqui um paralelo importante com a ideia de necessidade hipotética de Aristóteles. Toda a 138 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 199. 139 HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 200. Wagner Arnold Fensterseifer | 123 construção teórica feita por Hart no Capítulo IX de O Conceito de Direito para demonstrar os truísmos elementares que dão fundamento ao conteúdo mínimo do Direito Natural parte da premissa nuclear de que o fim almejado pelos seres humanos é a sua sobrevivência. Havendo consenso em relação a essa finalidade, podem-se estabelecer as normas – jurídicas e morais – que serão necessárias para a persecução desse objetivo. Nesse contexto, a leitura do Capítulo IX de O Conceito de Direito aponta novamente para uma posição metaética vinculada às teses do nãocognitivismo fraco, haja vista que Hart identifica a possibilidade de avaliar juízos morais em termos de verdadeiro ou falso, mas apenas de forma contingente, considerando-se certas premissas e condições fáticas que, caso modificadas, poderiam também implicar mudanças quanto às conclusões desses juízos140. O que se percebe aqui é que o posicionamento de Hart está certamente afastado de um não-cognitivismo forte, que se aproximaria do emotivismo, mas também está distante de um cognitivismo forte, que afirmaria possíveis os juízos objetivos sobre a moralidade. Em uma posição mediana dentro desse espectro, Hart poderia ser identificado tanto como um cognitivista fraco quando como um não-cognitivista fraco. Entende-se que a teoria de Hart é mais compatível com um não-cognitivismo fraco. Justifica-se tal asserção em razão da identificação, nos excertos acima analisados, que a teoria de Hart está bastante vinculada a ideia de que as normas – jurídicas ou morais – possuem como fundamento um elemento compartilhado entre os indivíduos (no caso, a sobrevivência dos seres humanos em sociedade) a partir do qual são possíveis as verificações sobre a veracidade ou falsidade dos juízos. 140 FINNIS, John. On Hart's ways: law as reason and fact. In: KRAMER, Matthew et al (ed.). The Legacy of HLA Hart: Legal, Political and Moral Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2008, pp. 03-28. 124 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin De certa forma, essa constatação também permite uma aproximação da posição metaética de Hart com o construtivismo moral. Como visto no primeiro capítulo deste livro, o construtivismo é a teoria metaética que endossa algum procedimento hipotético para determinar quais princípios constituem padrões válidos de moralidade, sendo que tal procedimento pode ser a produção de um consenso sobre um contrato social, ou a definição de um código moral que será seguido e defendido em determinada comunidade. O traço distintivo do construtivismo enquanto posição metaética é a utilização de um ponto de vista prático141 e a construção de algumas verdades normativas que se seguem ou não se seguem desse ponto de vista. Como visto acima, a ideia de encontrar um conteúdo mínimo do direito natural parece estar bastante vinculada à utilização de um ponto de vista prático, bem como à construção de algumas verdades normativas que se seguem desse ponto de vista, de modo que é razoável afirmar que de certa forma o não-cognitivismo fraco de Hart sofre influências do construtivismo moral142. Ademais, Hart admite a possibilidade de que existam discordâncias quanto à forma adequada de atingir a finalidade que fora consensualizada entre os membros da comunidade, razão pela qual – à exceção de um conteúdo mínimo – não será possível encontrar respostas objetivamente corretas para solucionar os dissensos sobre o conteúdo das regras, muito menos recorrendo à moralidade. 141 142 Conforme visto na seção 1.2.5 do Capítulo 1 deste trabalho (pp. 46-47). Nesse sentido, alguns autores reconhecem em Hart influências de Thomas Hobbes, o que confirmaria de certa forma essa aproximação de sua posição metaética com o construtivismo moral. E.g. SHINER, Roger A. Hart and Hobbes. William. & Mary Law Review, v. 22, p. 201, 1980. e BOYLE, James. Thomas Hobbes and the Invented Tradition of Positivism: Reflections on Language, Power, and Essentialism. University of Pennsylvania Law Review, v. 135, n. 2, p. 383-426, 1987. Por outro lado, também existem diversas referências que encontram influência de Hart na obra de John Rawls, sobretudo em Uma Teoria da Justiça, e.g., LISTER, Matthew. Four Entries for the Rawls Lexicon: Charles Beitz, HLA Hart, Citizen, Sovereignty. In: MANDLE, Jon; REIDY, David (eds.). The Cambridge Rawls Lexicon. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. Wagner Arnold Fensterseifer | 125 2.2.5. Discricionariedade e a distinção entre casos fáceis e casos difíceis É relevante analisar, ainda, na busca pela posição de Hart acerca da objetividade da moral por meio da interpretação de sua obra, a distinção realizada pelo autor entre casos fáceis e casos difíceis no Direito. A relevância de tal distinção, sobretudo para os objetivos da presente pesquisa, reside no fato de que Hart irá afirmar que casos difíceis deverão ser resolvidos por meio de discricionariedade e admitirá que o exercício dessa discricionariedade poderá dar abertura à utilização de critérios morais para encontrar as soluções jurídicas mais adequadas ao caso. Como será visto adiante, essa forma específica de solucionar casos difíceis evidenciará a posição de Hart que nega a possibilidade de verdades morais objetivas, na medida em que reconhecerá a possibilidade de que casos difíceis sejam resolvidos de formas distintas sem que alguma das soluções alternativas deva ser necessariamente considerada produto de um equívoco. Para compreender com clareza o uso que Hart admite para a discricionariedade, é preciso primeiro entender a distinção entre casos fáceis e casos difíceis. Nem todos os casos em um sistema judicial podem ser resolvidos por meio de uma aplicação mecânica da regra prevista pela legislação. Há situações em que a ignorância relativa quanto aos fatos, ou seja, a ignorância de quem cria a regra sobre os casos que podem vir a se enquadrar no seu suporte fático, torna incerta a aplicação da regra, ao passo que em outros momentos a relativa indeterminação dos objetivos do direito conduzirá a dificuldades de aplicação de uma regra a determinado caso em julgamento. Hart identificou que as regras jurídicas possuem um núcleo de sentido claro, em que os aplicadores da lei conseguirão ver claramente os 126 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin casos em que a lei deve ser aplicada e aqueles em que não deve, a esses casos costuma-se atribuir a alcunha de “casos fáceis”. Entretanto, regras jurídicas também possuem zonas de penumbra, nas quais haverá ao menos duas soluções igualmente possíveis para o mesmo caso concreto. O caso apresentará algumas características em comum com o caso padrão; e não apresentará outras, ou será acompanhado por outras características não presentes no caso padrão, de modo que será necessária a utilização de algo além da regra jurídica para determinar qual a solução a ser adotada − tais casos são chamados de “casos difíceis”. Os juízes, ao decidirem casos na zona de penumbra, deveriam legislar para criar uma regra e solucionar o caso, utilizando-se de discricionariedade. O famoso exemplo utilizado por Hart para introduzir a noção de casos fáceis e casos difíceis no direito trata de uma regra que determina ser proibida a entrada de veículos em um parque. Hart afirma que se temos que nos comunicar minimamente uns com os outros e se, na forma mais elementar de direito, temos que expressar nossas intenções de que um certo tipo de regulamento seja regulado por regras, então as palavras gerais que utilizamos − como “veículo” no caso que estou analisando − devem ter algum caso padrão no qual não há dúvidas quanto à sua aplicação143. Ou seja, como pressuposto básico da linguagem é preciso que as palavras possuam sentidos mínimos compartilhados por uma comunidade de falantes e que possam exercer sua função comunicativa, seja descrevendo objetos e ações, seja determinando condutas e exercendo autoridade. Assim, um automóvel convencional deverá sempre ser enquadrado na regra que proíbe veículos no parque, uma vez que se encontra no âmbito de sentido claro do vocábulo “veículo”. 143 HART, H.L.A. O positivismo e a separação entre o direito e a moral. In: HART, H.L.A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. pp. 68 69. Wagner Arnold Fensterseifer | 127 Contudo, existirão casos que se afastarão desse núcleo de sentido claro das palavras que constituem as regras. Nesse caso, Hart afirma que cada um desses casos apresentará algumas características em comum com o caso padrão; e não apresentará outras, ou será acompanhado por outras características não presentes no caso padrão144. Os casos situados na zona de penumbra apresentarão desafios aos aplicadores das regras, uma vez que não poderão ser irrefletidamente inseridos no comando previsto pela regra, por não estarem claramente amoldados ao caso padrão. É o que ocorre, no exemplo da proibição de veículos no parque, com um carro motorizado de brinquedo para crianças. Ele possui diversas características em comum com o caso padrão, mas também é dotado de outras, que o distinguem daquele standard. Hart alerta, diante dessa identificação de casos fáceis e casos difíceis, que a atitude do julgador ao se deparar com cada uma das situações deve ser necessariamente diferente. Enquanto é possível, nos casos fáceis, aplicar regras gerais a casos específicos por meio de processos epistemológicos que em muito se assemelham às deduções lógicas, nos casos difíceis é improvável que a dedução lógica conduza a bons resultados − ou sequer a algum resultado − de tal sorte que o aplicador da regra deverá utilizar-se de argumentação jurídica para empregar racionalidade ao processo epistemológico de tomada de decisão. Aqui entra em cena o fundamental papel do exercício da discricionariedade, que deverá ser, como bem apontado por Hart, necessariamente diferente do exercício de mera escolha, uma vez que acompanhado por justificações e fundamentos que buscam 144 HART, H.L.A. O positivismo e a separação entre o direito e a moral. In: HART, H.L.A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rev. tec. Ronaldo Porto Macedo Junior e Leonardo Gomes Penteado Rosa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 69. 128 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin demonstrar que a decisão tomada é a mais acertada, considerando-se os objetivos almejados pelo sistema jurídico145. Não basta, contudo, para bem compreender o que distingue casos fáceis de casos difíceis apenas a sua identificação. É necessário também investigar os fatores que levam à existência de casos fáceis e casos difíceis no Direito, os quais podem ser decorrentes da própria linguagem em que o direito é construído e das limitações cognitivas humanas, que tornam complexa a tarefa de criar regras gerais para regular casos específicos. Quanto à linguagem, há que se atentar para sua textura aberta, que, segundo Noel Struchiner, pode ser entendida como a característica da linguagem que faz com que os conceitos empíricos não apresentem uma definição exaustiva, podendo surgir espaços para dúvida sobre o seu significado146. Citando Waismann, Struchiner afirma que a textura aberta da maioria dos conceitos empíricos ocorre por causa da “incompletude essencial” das descrições empíricas, que impossibilita a descrição do conjunto total de situações em que uma palavra se aplica ou não147. Por isso, os aplicadores do Direito em sistemas jurídicos complexos, que são constituídos por regras vertidas em linguagem, frequentemente deparam-se com situações em que os termos e expressões das regras dificilmente são aplicáveis aos casos em julgamento de forma imediata e irrefletida, mediante processos de dedução lógica. Assim, percebe-se que a característica de textura aberta da linguagem é um dos principais fatores para a existência da distinção entre casos fáceis e casos difíceis. Enquanto os casos fáceis situam-se nos núcleos de sentido claro das palavras e expressões, os casos difíceis encontram-se nas zonas 145 HART, H.L.A. Discretion. Harvard Law Review, vol. 127, n. 02, 2013. p. 663. 146 STRUCHINER, Noel. Uma análise da textura aberta da linguagem e sua aplicação ao Direito. Revista CEJ, América do Norte, v. 6, n. 17, 2008. p. 02. 147 STRUCHINER, Noel. Uma análise da textura aberta da linguagem e sua aplicação ao Direito. Revista CEJ, América do Norte, v. 6, n. 17, 2008. p. 03. Wagner Arnold Fensterseifer | 129 de penumbra, onde a confluência entre as palavras e o objeto empiricamente analisado é de difícil verificação. Hart alerta para a tentação de evitar os casos difíceis por meio da objeção às regras gerais, substituindo-as por regras tão detalhadas quanto possível, de modo que todos os casos futuros estivessem previamente solucionados, não exigindo do intérprete uma escolha entre alternativas abertas148. Essa solução, contudo, não é viável. Primeiro, porque a impossibilidade de antever todas as aplicações de uma determinada regra é decorrência da própria natureza humana. Segundo, porque a realidade é bastante mais complexa do que poderiam imaginar os legisladores ao criarem determinada regra com pretensões de exaurir todas as aplicações possíveis e antever os problemas que surgirão em sua aplicação. Mas a existência de casos fáceis e casos difíceis no Direito não se limita às características da linguagem. Há outros dois fatores relevantes para a existência de casos difíceis que são decorrentes das próprias limitações humanas e da forma como as regras são constituídas na maior parte dos sistemas jurídicos modernos. Segundo Hart, considerando-se que seres humanos não são deuses149, frequentemente nos depararemos com situações em que será preciso tomar decisões lidando com as limitações de nossa natureza. Em determinados casos, nos depararemos com dificuldades decorrentes de nossa relativa ignorância sobre fatos e de nossa relativa ignorância sobre objetivos. No primeiro caso, como o mundo em que vivemos e no qual estabelecemos regras não consiste em um número finito de possibilidades e características150, bem como o modo de combinar tais 148 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. p. 19. 149 150 HART, H.L.A. Discretion. Harvard Law Review, vol. 127, n. 02, 2013. p. 661. A filosofia do Direito de Hart trabalha com esse paradigma de visão do mundo, conforme bem explicitado por Cláudio Michelon Fortunato Jr. em Aceitação e Objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo 130 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin possibilidades e características é igualmente infinito, não temos como saber todas as características e possibilidades, tampouco suas combinações, de modo que não podemos antever – quando pensamos na criação de uma regra e sua aplicação no mundo – todas as possíveis situações em que tal regra poderá ser aplicada. Já no segundo caso, há indeterminação quanto aos objetivos de determinada regra, uma vez que diferentes aplicadores podem compreender de forma diferente o objetivo de determinada regra, sobretudo em razão de suas diferentes vivências, experiências e visões de mundo. Esse tipo de indeterminação frequentemente surge apenas quando os aplicadores da regra se deparam com casos concretos, sendo possível que duas pessoas concordem com o objetivo da regra em abstrato, mas discordem dele em relação a um caso concreto. Para exemplificar, consideremos novamente o exemplo clássico de Hart da proibição de veículos no parque. Pode-se compreender que a regra foi criada para preservar a segurança e a tranquilidade no parque, permitindo que as pessoas passeiem sem a preocupação de serem perturbadas por um veículo. Com esse objetivo em mente, devemos analisar se um carrinho de brinquedo motorizado deve ser admitido ou não dentro do parque. Pode-se afirmar que o carrinho não é veículo para fins da regra, haja vista que serve como um brinquedo e sua função é a diversão das crianças – que é exatamente o que se pretende alcançar quando se constrói um parque. Por outro lado, pode-se considerar que, mesmo sendo um brinquedo, o carrinho tem potencial de machucar um idoso ou uma precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. A visão de mundo alternativa, seria aquela denominada “concepção absoluta do mundo” segundo a qual tudo o que faz parte do mundo existe independentemente de nossa forma de perceber ou conceber o mundo. O mundo objetivamente considerado é aquele que não sofreria qualquer interferência das imperfeições que frequentemente estão presentes nas tentativas subjetivas de descrever algo. Wagner Arnold Fensterseifer | 131 criança pequena que estejam passeando despreocupados dentro do parque e, portanto, deve ser considerado um veículo para os fins da regra151. O que se percebe, portanto, é que a distinção entre casos fáceis e difíceis existe por conta de características da própria linguagem em que o Direito é constituído e, também, em razão das limitações humanas do ponto de vista cognitivo em relação a fatos e em relação aos objetivos das regras. Para resumir, pode-se lançar mão do seguinte esquema argumentativo para compreender a existência de casos fáceis e difíceis no Direito152: (1) O Direito153 consiste em regras formuladas em termos gerais; (2) Todos os termos gerais possuem “textura aberta”: possuem um núcleo de sentido claro e uma zona de penumbra onde os significados não são determinados; (3) Existirão, portanto, casos fáceis – dentro do núcleo claro de sentido – e casos difíceis – na zona de penumbra. Sempre poderão surgir novos casos que não estejam acobertados pelo núcleo claro de sentido de alguma regra jurídica; (4) Portanto, haverá casos legalmente indeterminados; (5) Portanto, os julgadores não poderão decidir tais casos com base na legislação; (6) Portanto, tendo em vista que alguma decisão sempre deve ser proferida, os julgadores terão que basear suas decisões em fundamentos não legais (por exemplo: moral e política). Significa dizer que os julgadores deverão exercer discricionariedade judicial e criar, em vez de aplicar, regras jurídicas. Assim, tendo compreendido o que são casos fáceis e difíceis, bem como os principais fatores que os fazem surgir, passa-se a analisar a forma como deve ser exercida a discricionariedade para solução de casos difíceis. Para começar a investigar o exercício da discricionariedade na resolução de casos difíceis no Direito devemos iniciar tomando a definição do 151 Esse exemplo, aqui adaptado, foi apresentado por Hart em Discretion. Harvard Law Review, vol. 127, n. 02, 2013. 152 BRINK, David. Legal Theory, Legal Interpretation, and Judicial Review. Philosophy & Public Affairs, vol. 17, n. 2, pp. 105-148, spring-1988. 153 O direito que foi criado por meio de legislação, haja vista que o funcionamento das regras oriundas de precedentes ou de costumes é distinto. Tais regras não se encontram de início formuladas, são apenas formuláveis. 132 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin que é discricionariedade dada por Hart. Para o autor, discricionariedade não deve ser confundida com a noção de escolha. Discrição, ressalta Hart, é o nome de uma virtude intelectual que é praticamente um sinônimo de sabedoria, sagacidade ou prudência154. É o poder de discernir ou distinguir o que, em vários campos do conhecimento, é apropriado fazer. Também é etimologicamente conectado com a noção de discernimento. Uma pessoa discreta, salienta Hart, não é apenas alguém que permanece em silêncio, mas aquele que escolhe silenciar quando o momento demanda que se quede silente155. Portanto, deve-se ter claro que exercer a discricionariedade não é decidir com base em simples escolhas arbitrárias. É o exercício de uma faculdade intelectual que demanda o fornecimento de razões que fundamentem determinada decisão, em detrimento de outras, por ser aquela a decisão mais adequada para a resolução de determinado caso. A discricionariedade ocupa lugar intermediário entre escolhas tomadas puramente por gostos ou opiniões pessoais e momentâneas e escolhas guiadas por métodos claros ou regras cuja aplicação ao caso é óbvia156. Hart destaca, ainda, que existem diferentes tipos de discricionariedade, os quais são utilizados em diferentes situações157. Há hipóteses de emprego da discricionariedade de forma expressa, ou seja, quando o funcionamento do sistema pressupõe o uso da discricionariedade para determinada tomada de decisão. Isso ocorre, por exemplo, na indicação de pessoas para determinados cargos nos poderes executivo, legislativo e judiciário. Outro exemplo é a alocação de recursos à disposição de 154 HART, H.L.A. Discretion. Harvard Law Review, vol. 127, n. 02, 2013. p. 656. 155 HART, H.L.A. Discretion. Harvard Law Review, vol. 127, n. 02, 2013. p. 656. 156 HART, H.L.A. Discretion. Harvard Law Review, vol. 127, n. 02, 2013. p. 658. 157 HART, H.L.A. Discretion. Harvard Law Review, vol. 127, n. 02, 2013. p. 655. Wagner Arnold Fensterseifer | 133 determinado órgão da administração, que poderão ser empregados para diversas finalidades distintas, desde que legalmente permitidas. Também existe exercício de discricionariedade de forma tácita ou oculta, que é o que ocorre nos casos de interpretação judicial e do uso de precedentes. Quando o aplicador de uma regra se depara com um caso concreto em que não há solução possível por meio do emprego de métodos lógico-dedutivos, é necessário o uso da discricionariedade para criar uma regra para o caso, escolhendo entre as soluções possíveis e oferecendo razões para fundamentar essa escolha. O bom exercício da discricionariedade, nesse sentido, demanda que sejam apresentados os fundamentos e as razões para que uma escolha tenha sido feita em detrimento de outras. O desafio que se apresenta, portanto, é o seguinte: como se podem resolver casos difíceis de forma racional e compatível com os elementos essenciais do Estado de Direito se não possuímos critérios para afirmar qual das soluções possíveis é a única resposta correta? A resposta de Hart a esse desafio é que podemos aprender muito olhando para as decisões discricionárias tomadas no passado e que são tipicamente reconhecidas como boas decisões tomadas de forma satisfatória entre diferentes valores aceitos por uma comunidade jurídica158. Assim, o julgamento da pluralidade de espectadores neutros poderá nos indicar de que forma a discricionariedade poderá ser exercida com excelência. Por mais que exista um ponto no qual não haverá forma de chegar a conclusões unívocas por meio da razão, o exercício da discricionariedade, somado ao recurso das decisões historicamente tomadas no âmbito daquela comunidade jurídica, quando realizado comprometidamente e com acesso a todas as informações disponíveis sobre o caso e sobre as possíveis 158 HART, H.L.A. Discretion. Harvard Law Review, vol. 127, n. 02, 2013. p. 665. 134 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin regras a serem aplicadas ao caso, permite que se tomem decisões em casos difíceis de forma racional e compatível com as exigências do Estado de Direito. O exercício da discricionariedade, contudo, não deve ser confundido com o uso de arbitrariedade, tampouco com voluntarismo do julgador. Ao revés, a discricionariedade é uma faculdade da razão que opera de modo diverso da lógica dedutiva, uma vez que não conduz a um resultado correto e unívoco. Raciocinar por meio de discricionariedade é considerar as razões envolvidas, os fundamentos que sustentam a tomada de uma ou de outra decisão, verificar os objetivos pretendidos quando da criação da regra para então decidir o caso apresentando de forma racional o processo epistemológico que sustenta aquela decisão. Em relação à posição de Hart a respeito da objetividade da moral, a descrição do modo de funcionamento da discricionariedade para solucionar casos difíceis em Direito parece ser mais um indício de que o autor não acreditava em uma posição metaética vinculada ao realismo moral ou ao cognitivismo forte. Quando deparado com um caso difícil e tendo o juiz que buscar elementos fora das regras positivadas no sistema jurídico em que aquele caso está sendo julgado, há espaço para intersecção entre o Direito e a Moral. Contudo, o resultado dessa interação não é um fechamento ao sistema, auxiliando o julgador a encontrar a resposta moralmente correta e com isso solucionar o caso. Pelo contrário, como resultado da intersecção entre Direito e Moral surgem diversas respostas possíveis para solução do caso difícil que se apresenta, tendo o julgador que exercer sua discricionariedade para optar por uma solução possível em detrimento de outras. Dessa forma, Hart admite que, quando julgadores deparam-se com casos difíceis e são levados a utilizar discricionariedade para apresentar uma solução ao caso, eles são obrigados a considerar pelo menos duas Wagner Arnold Fensterseifer | 135 soluções juridicamente possíveis. O papel da discricionariedade será justamente auxiliar na escolha por uma solução em detrimento da outra. Entretanto, isso não significará que a solução abandonada é uma solução errada159. Pelo contrário, ela permanecerá como uma solução juridicamente correta, mas que em razão da necessidade prática de se tomar uma decisão, foi preterida à solução alternativa, pois o exercício de discricionariedade realizado pelo julgador o conduziu a esse resultado. Se houvesse, dentro da teoria do Direito de Hart, algo como uma resposta moralmente correta e única para qualquer problema complexo, não haveria qualquer necessidade de se apresentar uma teoria sobre o uso da discricionariedade. O julgador, quando deparado com um caso difícil, percorreria o caminho de interpretação jurídica convencional e, ao verificar que existe mais de uma solução juridicamente correta para o caso em análise, simplesmente buscaria na moralidade a única resposta correta e com isso encaminharia a solução do caso, chegando a conclusão que as soluções alternativas eram, em verdade, apenas aparentemente corretas. 2.3. Hart e o não-cognitivismo moral fraco Como visto, Hart em O Conceito de Direito assume expressamente postura neutra em relação às questões metaéticas. Essa posição de neutralidade é justificada em razão dos objetivos de Hart com a obra, haja vista que o autor pretendia demonstrar uma teoria aplicável de forma geral e abstrata a qualquer sistema jurídico que existiu, existe ou existirá, buscando apresentar o modo de funcionamento do Direito sob a perspectiva 159 O que não significa dizer que não existam respostas erradas. O procedimento para chegar à decisão judicial permite que o julgador encontre as possíveis respostas corretas, descartando todas as demais respostas, em razão de sua incorreção. O papel da discricionariedade será o de auxiliar a tomada de decisão justamente quando o juiz chegar a mais de uma resposta aparentemente correta e viável para a solução do caso. 136 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin de um observador externo, preocupado em compreender o ponto de vista interno dos indivíduos que convivem com aquele sistema. Ademais, Hart afirmou que a teoria do Direito não deve se comprometer com teorias filosóficas controvertidas, tais como aquelas acerca do status geral dos juízos morais, bem como que deve deixar em aberto a questão sobre sua existência objetiva. A razão para afirmar isso decorre novamente da opção metodológica feita por Hart. Ao evitar a confusão da teoria do Direito com outras teorias filosóficas cujas conclusões (e talvez até mesmo as premissas) são controvertidas, o professor de Oxford buscava dar mais força e aceitação a seus argumentos gerais e abstratos sobre o modo como o Direito funciona. Contudo, é possível inferir a concepção do autor a respeito da objetividade da moral da forma como sua teoria do direito foi construída na obra. Como fora analisado na primeira seção deste capítulo, existem diversos indícios de que Hart estava bastante vinculado a algumas teses filosóficas defendidas por seus contemporâneos de Oxford, sobretudo no campo da filosofia da linguagem e da filosofia moral. A influência de autores como Isaiah Berlin, Gilbert Ryle e John Langshaw Austin na obra de Hart é reconhecida por diversos intérpretes. Ademais, é notável essa influência na forma como Hart constrói os principais argumentos em O Conceito de Direito. De Gilbert Ryle, Hart recebeu a influência da análise conceitual e da metodologia filosófica consistente em conhecer determinado termo em razão do uso que as pessoas fazem dele, construindo desse modo o que é constitutivo de um conceito e o que o difere de outros. As teses de filosofia da linguagem ordinária presentes na teoria do direito de Hart são em grande medida devidas à influência de J.L. Austin, cujo grupo de estudos contou com a presença notável de Hart, e de quem Hart tomou inspiração para afirmar que a objetividade depende dos Wagner Arnold Fensterseifer | 137 indivíduos e de suas convenções ou formas de vida, rechaçando as teses que sustentam ser possível identificar a verdade ou falsidade de determinados tipos sentença160 por comparação a “fatos brutos” cuja existência independe da experiência humana. Com Isaiah Berlin, Hart comungava os ideais do liberalismo político que marcou Oxford no período pós-guerra. O pluralismo de valores berliniano − que consiste basicamente na ideia de que não existe um ordenamento estático que classifica os valores e coloca alguns deles sobre os demais, ou de que não existe um ranqueamento possível de valores, mas sim que há pluralidade de valores que os seres humanos podem optar por perseguir e satisfazer − foi certamente uma influência ao pensamento de Hart, que escreveu diversos artigos criticando posições de filósofos morais associados ao conservadorismo moral, à limitação das liberdades individuais e à vinculação forte entre o Direito e a Moral. Em O Conceito de Direito, ainda que não exista um posicionamento declarado de Hart a respeito de suas concepções sobre metaética − o que revela tão somente uma decisão metodológica do autor, mas não sua indiferença em relação ao tema −, é possível perceber que Hart não poderia estar vinculado a posições que compreendem a moral objetiva, universal ou mesmo independente das interações humanas. Isso porque Hart reconhece em diversos momentos distintos a possibilidade de desacordos morais, de concepções distintas de moralidade, bem como de alterações substantivas nos códigos morais de determinadas sociedades. Notoriamente, a descrição que Hart fez da forma como casos difíceis devem ser solucionados evidencia tal posicionamento. A necessidade apontada por Hart do uso de discricionariedade para resolver casos difíceis O que não se aplica a enunciados do tipo “essa folha é verde” ou “a água está fria”, mas possivelmente se aplica a enunciados do tipo “é errado não dar esmolas” ou “é certo utilizar violência para pedagogia infantil”. 160 138 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin indica que para o autor não há uma moral objetiva à qual seja possível recorrer para buscar a solução dos casos em que o direito apresenta indeterminação, ambiguidade ou mesmo vagueza. Caso Hart entendesse que há objetividade na moral, não haveria motivo para fazer uso do recurso da discricionariedade, haja vista que o autor admite que na resolução de casos difíceis o direito possui abertura para a realização de juízos morais. Outra hipótese é que Hart consideraria a existência dessa objetividade irrelevante diante do desacordo moral presente na sociedade e a falta de cogência (ao menos demonstrativa) dos argumentos morais. Dessa forma, o modo de solucionar casos difíceis deve evitar o desacordo moral, evitando justificar as decisões tomadas com base em argumentos morais, mas sim pelo recurso da discricionariedade do julgador. De qualquer forma, pode-se compreender a partir da análise feita sobre a discricionariedade judicial na obra de Hart que a posição metaética do autor é não-cognitivista, haja vista que ele não admite que crenças morais possuam fundamentos racionais, como também não admite que juízos morais possam ser analisados em termos de verdadeiro ou falso − ao menos em termos absolutos. Isso porque determinado enunciado moral pode ser considerado verdadeiro ou falso quando considerado em determinadas circunstâncias tais como comunidade, grupo social, época, cultura. Contudo, a posição do autor não pode ser classificada como não-cognitivista forte, haja vista que o autor reconhece alguma forma de conhecimento da moralidade. Para Hart, é possível identificar a moralidade vigente em determinada sociedade − a qual é por ele intitulada de moralidade positiva. É também possível criticar essa moralidade, com base em critérios abstratos e teóricos (como consistência e coerência) para definir o que é certo ou errado. Ainda, em relação à posição metaética de Hart, deve-se afirmar que o autor se filia à corrente não-realista da moralidade, uma vez que discorda Wagner Arnold Fensterseifer | 139 das teses que afirmam existir uma moralidade objetiva e independente das ações e interações humanas. Para ele, a moralidade somente existe em contextos sociais de interação entre seres humanos e é verificável com base nas ações e expressões que os indivíduos de cada comunidade praticam. Por isso, não seria possível falar em uma moralidade objetiva e universal, uma vez que a moral será sempre contingente e variável em razão da comunidade que está sendo observada, de sua cultura, tradição e época. Não se pode confundir, contudo, essa posição com um subjetivismo ou relativismo moral. Tampouco é possível associar o pensamento de Hart com um ceticismo absoluto em relação à moralidade. Deve-se compreender a posição metaética de Hart como um não-cognitivismo fraco, nãorealista e bastante influenciado pelo construtivismo e pelo expressivismo moral. Como visto, a influência do construtivismo moral no pensamento de Hart pode ser percebida sobretudo em suas construções teóricas sobre o conteúdo mínimo do direito natural. Ali é possível identificar um processo de abstração das práticas sociais concretas que seria capaz de idealizar o que seria visto como o mínimo de ordenação necessário para subsistência humana em sociedade e a partir disso fixar parâmetros normativos. Já o expressivismo moral está presente sobretudo na forma como Hart identifica os conteúdos dos enunciados sobre direito e moral, reconhecendo sua dupla função: descrever a moral de diferentes comunidades de pessoas e expressar as próprias opiniões de alguém a respeito do que é certo ou errado161. 161 O que remete à distinção utilizada por Hart entre o ponto de vista externo e o ponto de vista interno. Diante disso, é possível questionar até que ponto, para Hart, alguém que reivindica algo do ponto de vista interno, fazendo uso de padrões normativos jurídicos ou morais, não estaria reivindicando a sua opinião como verdadeira, e não apenas expressando-a. Como visto anteriormente, o expressivismo moral não está comprometido com o realismo ou com o antirrealismo moral, e parece mais inclinado a concordar com o não-cognitivismo moral. Assim, em relação à pretensão de verdade da opinião daquele que reivindica algo do ponto de vista interno não parece ser mais do que um convencimento pessoal, que não se pretende objetivo muito menos universalizável, no sentido de que se aceita que 140 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Classificar o pensamento de autores complexos como foi Hart por meio de etiquetas desse tipo é sempre arriscado e pode levar a compreensões equivocadas da classificação que se deseja realizar. Nesse sentido, há que se admitir que também seria totalmente viável identificar o posicionamento de Hart com uma visão cognitivista fraca da moralidade. Como afirmado anteriormente, embora Hart não coadunasse com a ideia de que existem valores morais que podem ser objetivamente verificados e avaliados em termos de verdadeiro ou falso – em qualquer tempo ou lugar – ele não ignorava a possibilidade de se alcançar racionalmente determinados limites e conteúdos mínimos do que poderia ser moralmente aceito. De todo modo, como visto no primeiro capítulo dessa obra, a posição do não-cognitivista fraco e do cognitivista fraco são bastante aproximadas, diferenciando-se unicamente no que diz respeito a forma de vinculação da racionalidade e da moralidade, que é mais evidenciada para a posição cognitivista do que para a posição não-cognitivista. Tendo analisado a obra de Hart e, a partir das verificações do contexto histórico em que o autor escreveu seus principais trabalhos, bem como com base na exegese de seus escritos, chegado à conclusão de que a posição metaética de Hart é o não-cognitivismo fraco, passar-se-á ao estudo da obra de Dworkin a fim de que se possa entender o pensamento do autor e sua posição acerca da objetividade da moral. outra pessoa, em outro contexto social/cultural/econômico, possua reivindicações distintas e igualmente creia em sua veracidade. 3 Dworkin e o direito como integridade: da tese da única resposta correta à moral objetiva Diferentemente de Hart, Dworkin posiciona-se expressamente acerca da questão da objetividade da moral. Sua resposta é ao mesmo tempo clara e obscura. É clara no sentido de que afirma existirem respostas objetivamente corretas para problemas jurídicos e morais, tendo inclusive escrito artigo intitulado “Objetividade e Verdade: é melhor você acreditar!”1, entretanto é obscura ao explicitar de que modo essa objetividade pode ser verificada. Compreender a posição de Dworkin a respeito da objetividade da moral demanda que se compreenda de forma mais ampla sua teoria da unidade do valor, bem como sua teoria do direito. Isso ocorre porque a construção teórica de Dworkin interrelaciona todas essas questões, criando uma unidade teórica com pretensões de coerência e integridade. Assim, para que se possa comparar a posição de Hart em relação à objetividade da moral e forma como essa posição afeta sua Teoria do Direito com a construção teórica de Dworkin, sua unidade do valor e sua teoria da única resposta certa para problemas jurídicos e morais, será necessário passar por diversos pontos da extensa obra do jusfilósofo americano. Nesse capítulo, portanto, serão analisados os principais elementos da obra de Dworkin, com ênfase para aqueles que permitem compreender a 1 DWORKIN, Ronald. Objectivity and truth: You'd better believe it. Philosophy & Public Affairs, v. 25, n. 2, p. 87139, 1996. 142 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin posição do autor a respeito da objetividade da moral, bem como de que forma essa posição afeta sua teoria do direito. 3.1. Dworkin e o Conceito de Direito Para Dworkin, o Direito é uma prática interpretativa. Essa afirmação se justifica porque o significado do Direito depende das condições de verdade das práticas argumentativas que o constituem, enquanto prática social2. As práticas de argumentação jurídica seriam exemplos da forma como o conceito de Direito é um conceito controvertido e disputado3. Ainda, essas práticas jurídicas aconteceriam dentro de um contexto e ao mesmo tempo impactariam esse contexto, sendo que tal impacto contextual poderia ser medido e avaliado em termos morais4. Dworkin discorda do positivismo jurídico ao afirmar que o Direito não pode ser reduzido a um conjunto de regras estabelecidas no passado, por convenção, a serem reproduzidas no presente por um juiz. Também discorda do realismo jurídico ao refutar que o Direito possa ser caracterizado meramente em termos de diretrizes políticas ou meras convicções pessoais do juiz a serem legitimadas em razão de sua eficácia ótima5. Assim, o papel do juiz não seria nem descobrir a decisão jurídica a ser aplicada para solucionar o caso, tampouco criar a decisão capaz de resolver a situação posta, mas sim o de realizar interpretação construtiva do direito e com isso constituir a melhor justificação do conjunto das práticas 2 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 210. 3 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 210. 4 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 211. 5 DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura? Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, jan/jun 2009, pp. 91-118. p. 92. Wagner Arnold Fensterseifer | 143 jurídicas, elaborando a narrativa que faz de tais práticas as melhores possíveis6. Em O Império do Direito, Dworkin apresenta três concepções possíveis para explicar o que é o Direito, três interpretações abstratas e rivais da prática jurídica. São elas (i) convencionalismo, (ii) pragmatismo jurídico e (iii) direito como integridade7. Segundo o autor, a primeira delas − embora inicialmente pareça refletir o entendimento do cidadão ordinário sobre o direito, é a concepção mais frágil. A segunda é mais robusta e somente pode ser refutada quando a arena do combate argumentativo se expande para o campo da filosofia política. Por fim, a terceira concepção é a melhor interpretação, considerados todos os aspectos, do que advogados, professores de Direito e juízes efetivamente fazem e falam8. Vejamos de forma mais detalhada no que consiste cada uma dessas interpretações sobre o que é o Direito. O convencionalismo, na definição dada por Dworkin, entende que a vinculação ao direito, bem como a razão para exigir que a força seja usada para fazê-lo valer, somente está justificada quando for consistente com as decisões políticas tomadas anteriormente. Ademais, está limitado pela previsibilidade e pela a equidade processual proporcionadas pela restrição posta pelas decisões políticas tomadas no passado9. Um direito ou um dever somente decorre das decisões anteriores se estiver explícito em tais decisões, ou ao menos possa ser explicitado mediante utilização de técnicas convencionalmente aceitas pela comunidade jurídica10. Por fim, o convencionalismo entende que nos casos em que a força da convenção se esgota, 6 DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura? Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, jan/jun 2009, pp. 91-118. p. 92. 7 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 94. 8 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 94. 9 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 95. 10 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 95. 144 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin os juízes devem encontrar fundamentos prospectivos para tomar suas decisões, uma vez que a moral política que será utilizada nesses casos não exige respeito pelo passado11. A interpretação do que é o Direito fornecida pelo pragmatismo jurídico é bastante diferente daquela apresentada pelo convencionalismo. É uma posição cética a respeito do Direito, na medida em que nega que exista segurança ou qualquer outro benefício genuíno em se requerer que decisões tomadas por juízes estejam limitadas pela exigência de consistência com as decisões políticas tomadas no passado. Para o pragmatismo jurídico, juízes devem decidir com base no que lhes parece ser melhor para o futuro da comunidade, não sendo relevante a consistência dessa decisão com aquilo que foi deliberado no passado12. Entretanto, os pragmáticos entendem que os juízes em alguns casos devem agir como se as pessoas possuíssem algum tipo de direito decorrente das decisões políticas do passado13. Por fim, a visão denominada direito como integridade é caracterizada por Dworkin como a interpretação que, tal como o convencionalismo, aceita que existe algo denominado direito e que as pessoas possuem pretensões juridicamente asseguradas. Todavia, supõe que a vinculação ao direito beneficia a sociedade não somente por oferecer previsibilidade ou equidade processual, mas sobretudo porque assegura, entre os cidadãos, uma forma de igualdade que torna a comunidade mais genuína e aperfeiçoa a justificativa moral para exercer o poder político que é exercido pelo direito. A visão do direito como integridade reconhece que direitos e obrigações são originados de decisões anteriores e justamente por isso possuem valor jurídico, não estando limitados aos casos em que 11 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 95. 12 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 95. 13 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 95. Wagner Arnold Fensterseifer | 145 reconhecidos explicitamente por essas decisões, mas se estendendo ao que foi pressuposto por essas decisões, como fundamentos morais e políticos14. A integridade política, nesse contexto, é a exigência de que o governo tenha uma só voz e aja de modo coerente e fundamentado em princípios para com qualquer cidadão15. É uma virtude política e uma exigência específica da moralidade política de um Estado que deve tratar seus cidadãos com igual consideração e respeito16. Desse modo, as decisões políticas e as ações estatais serão compatíveis com a ideia de autogoverno, uma vez que um cidadão não poderá se considerar autor de um conjunto de leis incoerentes em princípio entre si17. É com base nessa argumentação que se conectam a integridade e a legitimidade do uso da força e coerção estatais. Ronaldo Porto Macedo Junior assim sintetiza a concepção de Direito defendida por Dworkin: O caráter argumentativo e discursivo do direito, aliado ao fato de que em seu interior são produzidas disputas e controvérsias sobre a melhor forma de conceptualizar conceitos, confere ao direito uma natureza essencialmente interpretativa. Em outras palavras, a gramática lógica do jogo jurídico, além de envolver uma prática social normativa, implica também que esta seja interpretativa, e não meramente convencional18. Em Justice for Hedgehogs Dworkin afirma que nas primeiras concepções de sua teoria do direito, sobretudo na ideia de que o Direito é um conceito interpretativo e que quando um advogado está afirmando que a 14 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 96. 15 STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito IMED, v. 14, p. 54-87, 2018. p. 72. 16 STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito IMED, v. 14, p. 54-87, 2018. p. 72. 17 STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito IMED, v. 14, p. 54-87, 2018. p. 72. 18 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 212-213. 146 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin parte possui um direito ele está apresentando um argumento interpretativo, ele assumia como verdadeira a tese de que existem dois sistemas distintos, o sistema jurídico e o sistema moral19. Todavia, o autor reconhece que havia uma falha nessa premissa dos dois sistemas, razão pela qual revisa a tese e passa a afirmar que existe um único sistema, que é o da moralidade política, do qual o Direito é um departamento ou ramificação20. Assim, nota-se que existem divergências importantes entre o que Dworkin considera como sendo a melhor descrição e compreensão do que é o Direito e o conceito de Direito apresentado por Hart, conforme visto no primeiro capítulo deste trabalho. O que é importante compreender aqui é a forma como Dworkin sustenta que o Direito é eminentemente argumentativo e discursivo, bem como possui natureza interpretativa, sendo, portanto, um campo bastante fértil para embates argumentativos e interpretações rivais. Contudo, Dworkin também compreende que o Direito é compatível com a ideia de que todos os casos, mesmo os hard cases com os quais Hart estava especialmente preocupado, possuem uma única resposta correta, que pode ser encontrada pelos operadores do direito, com base na teoria do Direito como integridade, na metodologia de decisão judicial que vê o direito como um romance em cadeira e fundada em última instância na moralidade objetiva. Na próxima seção, portanto, veremos como Dworkin sustenta a possibilidade de interpretar o direito como um romance em cadeia e como será possível com isso chegar à única resposta correta para cada caso em julgamento. 19 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. p. 402. 20 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. pp. 404-406. Wagner Arnold Fensterseifer | 147 3.2. A tese da única resposta correta e o Direito como um romance em cadeia A tese de Dworkin de que existe uma única resposta correta para cada caso jurídico, por mais difícil e complexo que pareça, por mais ambíguas ou polissêmicas que as regras aplicáveis se apresentem, pressupõe alguns pontos que merecem alguma reflexão. Primeiro, pressupõe que os princípios fazem parte do Direito21. Segundo, que um “juiz Hércules” seria capaz de encontrar a resposta correta22. Nas próximas subseções serão analisadas de forma detalhada a tese de Dworkin sobre a função do juiz Hércules, bem como a forma pela qual o autor sustenta ser possível alcançar a única resposta correta para cada caso difícil em julgamento. 3.2.1. O juiz Hércules e a possibilidade da única resposta correta Para apresentar a tese da única resposta correta, Dworkin cria inicialmente um juiz imaginário, o juiz Hércules, dotado de habilidade e paciência sobre-humanas capazes de conhecer e processar principiologicamente toda a história institucional do Direito, de modo a considerar da forma mais adequada as pretensões jurídicas envolvidas em cada caso concreto que é submetido à apreciação23. A escolha de Dworkin ao batizar seu juiz ideal com o nome de Hércules não é em vão. Na mitologia grega, Hércules é filho de Zeus e Alcmena, um semideus que compartilha características mortais e divinas. Segundo 21 Esse ponto não será analisado aqui, uma vez que foi contemplado no primeiro capítulo deste livro, sendo desnecessária tautologia a seu respeito. 22 ATIENZA, Manuel. Sobre la única respuesta correcta. In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid-México: Fundación Coloquio Jurídico Europeo. Editorial Fontamara. 2013. p. 48. 23 DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura? Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, jan/jun 2009, pp. 91-118. p. 94. 148 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin afirma Bernard Evslin, Zeus pretendia que Hércules se tornasse um deus, passando a viver no Olimpo, mas isso somente ocorreria após Hércules passar sua vida junto aos mortais, servindo-os e aprendendo com eles as particularidades da condição humana. Desse modo, quando Hércules finalmente fosse ao Olimpo, poderia trazer com ele conhecimentos do mundo humano e assim auxiliar as decisões dos deuses atuando como seu conselheiro24. Além disso, Hércules demonstrou sua capacidade e resiliência ao cumprir os Doze Trabalhos que a ele foram solicitados pelo Rei Euristeu. Tal como a figura mitológica, o juiz Hércules de Dworkin possui capacidade, paciência, dedicação e disponibilidade inumanas. O Hércules idealizado por Dworkin, à semelhança do mito, compreende o funcionamento das instituições humanas, sobretudo o Direito, e decide os casos que são a ele atribuídos tendo sempre como objetivo a reconstrução interpretativa do Direito como uma teoria em sua melhor luz. O juiz Hércules busca solucionar os casos encontrando o perfeito ponto de equilíbrio entre justiça, equidade e devido processo legal, não podendo abrir mão da integridade principiológica. A coerência da atuação estatal deve sempre nortear a atuação de Hércules, haja vista ser uma condição do Direito como integridade. A primeira aparição do juiz Hércules ocorre em 1975 em artigo intitulado Hard Cases, o qual foi publicado na Harvard Law Review25. Nesse artigo, Dworkin apresenta um dos pontos fundamentais de sua teoria do direito, que consiste na diferença entre argumentos de princípio (principle) e argumentos de política (policy). Em síntese, argumentos de política justificam uma decisão de cunho político demonstrando que essa decisão 24 EVLSIN, Bernard. Gods, Demigods and Demons: An Encyclopedia of Greek Mythology. New York: Open Road Integrated Media, 1988. 25 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. Wagner Arnold Fensterseifer | 149 aprimora ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo26. Já argumentos de princípios justificam uma decisão política demonstrando que aquela decisão respeita ou assegura o direito de algum indivíduo ou de algum grupo específico daquela comunidade27. Dworkin destaca, então, que os chamados casos difíceis (hard cases) podem ser decididos com base em argumentos de política ou de princípios. Contudo, o autor entende que a forma como esses casos são − e deveriam ser − resolvidos é por meio de argumentos de princípios28, isso porque uma comunidade deve ser governada por pessoas que foram eleitas pela maioria e não por juízes que não foram eleitos pela comunidade para decidir questões que afetem de forma direta a coletividade. Além disso, se um juiz ao resolver um caso difícil resolver criar uma regra para ser aplicada àquele caso, ele estará realizando uma aplicação retroativa dessa regra para fatos que já ocorreram, o que viola um dos pilares da democracia que é a legalidade ou o devido processo legal29. Ao decidir um caso com base em argumentos de princípios, sustenta Dworkin, tais problemas são superados. Como visto, argumentos de princípios não se justificam pelo aprimoramento ou proteção de algum objetivo coletivo, mas sim pela proteção do direito de um indivíduo ou grupo de indivíduos, de modo que o juiz, ao tomar uma decisão com base em princípios não estará sobrepondo a função dos legisladores eleitos, mas atuando dentro de sua competência. Ainda, ao resolver determinado caso difícil com base em princípios, o juiz não criará uma regra para solucionar o caso e a aplicará de forma retroativa, mas sim verificará que o direito da 26 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1059. 27 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1059. 28 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1060. 29 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1061. 150 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin parte sempre esteve assegurado por um princípio do sistema jurídico, que apenas precisou ser aplicado ao caso para resolvê-lo de forma coerente. Ainda em Hard Cases, Dworkin volta sua atenção para a forma como é interpretada a legislação quando se está buscando a solução de um caso difícil. Os argumentos jurídicos, nesse caso, recaem sobre conceitos cuja natureza e função são bastante semelhantes ao que define as características de um jogo30. Dentre esses conceitos, estão diversas conceituações subjetivas sobre o que está disposto na lei, como os conceitos de contrato ou propriedade31. Mas esses argumentos também incluem dois conceitos de outra natureza e que são bastante importantes para a interpretação da legislação na busca por soluções aos casos difíceis32. O primeiro deles é a ideia de “intenção” ou “propósito” de um dispositivo normativo em específico. Esse conceito fornece uma ponte entre a justificação política que criou determinado direito de forma genérica e o caso difícil em que se questiona qual é o direito criado por um dispositivo normativo específico33. O segundo é o conceito de princípios que “estão por trás” ou estão “embutidos” nas regras positivadas pela lei. Esse conceito é uma ponte entre a justificação política de que casos semelhantes devem ser tratados de forma similar e os casos difíceis em que não está claro o que a doutrina geral requer para solução jurídica específica34. É nesse momento, em Hard Cases, que Dworkin introduz a figura do juiz Hércules, como modo de demonstrar a forma correta de resolver casos difíceis utilizando-se dos conceitos antes apresentados, bem como 30 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1082. 31 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1082. 32 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1082. 33 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1082. 34 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1083. Wagner Arnold Fensterseifer | 151 respeitando os ideais de coerência e legalidade que formam a teoria do Direito como Integridade. Assim nos é apresentado Hércules por Dworkin: Eu inventei, para esse propósito, um jurista com habilidades sobre-humanas, aprendizado, paciência e perspicácia, a quem devo chamar de Hércules. Eu suponho que Hércules seja um juiz em alguma jurisdição americana e assumo que ele aceita as principais regras incontroversas constitutivas e reguladoras do Direito em sua jurisdição. Ele aceita, isto é, que dispositivos normativos possuem o poder geral para criar e extinguir direitos, e que os juízes possuem o dever geral de seguir decisões anteriores de sua corte ou de cortes superiores, cujo racional − como dizem os advogados − estende-se ao caso em julgamento35. Aulis Aarnio aponta que o juiz Hércules criado por Dworkin é o conceito do juiz ideal. Esse juiz, quando comparado a um juiz humano/convencional, é onisciente, dispõe de tempo ilimitado, seu conhecimento acerca do caso e dos argumentos a ele aplicáveis é ilimitada, é alguém capaz de aplicar mesmo as decisões mais difíceis (onipontente) e também é imparcial36. Outra importante característica de Hércules consiste em seu desinteresse completo, bem como na capacidade de se colocar na posição dos demais envolvidos no caso. Hércules é uma pessoa ideal, uma metáfora ou ilustração que exemplifica a situação ideal do discurso. E é por isso que Hércules poderá adotar sempre as melhores decisões jurídicas. A figura de Hércules é necessária para que a tese da única resposta correta sustentada por Dworkin não esbarre em questões contingentes e que decorrem da própria natureza humana, tal como a falta de 35 36 DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, vol. 88, n. 06, 1975. p. 1083. AARNIO, Aulis. ¿Una única respuesta correcta? In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid-México: Fundácion Coloquio Jurídico Europeo. Editorial Fontamara. 2013. p. 15. 152 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin disponibilidade de tempo que os juízes têm para julgar casos, a potencial parcialidade dos julgadores, as limitações de acesso aos fatos e aos argumentos possíveis para cada caso em julgamento, etc. O modelo abstrato do juiz Hércules supera todas essas objeções de cunho prático, construindo um ideal de julgador que − caso existisse − poderia sempre encontrar a resposta correta para solucionar os casos difíceis que a ele fossem disponibilizados. Com isso, Dworkin pretendeu demonstrar que, ao menos em teoria, o Direito como Integridade é capaz de fornecer objetividade ao Direito e evitar o uso da discricionariedade judicial. Como aponta Manuel Atienza, é preciso distinguir a resposta final da resposta correta. Enquanto a resposta final é uma necessidade prática de qualquer sistema jurídico organizado, porque é preciso colocar um ponto final no processo decisório e interpretativo do direito, mas essa resposta final não precisa ser correta, nem mesmo ser a única37. A tese da única resposta correta, segundo Atienza, é uma tese ambígua. Em sua versão forte, significa dizer que existe uma resposta “escondida” no ordenamento jurídico, a qual pode ser deduzida de premissas evidentes e axiomáticas. Já sua versão fraca consiste em afirmar que o juiz ou teórico do Direito deve buscar a resposta correta como um guia para sua atuação. Contudo, a versão fraca da tese da resposta correta traz consigo alguns problemas de ordem procedimental (como chegar à resposta correta?), do ponto de vista epistemológico (como saber que se 37 ATIENZA, Manuel. Sobre la única respuesta correcta. In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid-México: Fundácion Coloquio Jurídico Europeo. Editorial Fontamara. 2013. p. 47. Wagner Arnold Fensterseifer | 153 encontrou a resposta correta?), bem como de uma perspectiva ontológica (existe uma resposta correta?)38. Para melhor compreender o que Dworkin entende como sendo a forma de atuação do juiz Hércules e a aplicação do Direito como integridade, é relevante analisar alguns dos hard cases enfrentados por ele em Law's Empire39. São eles: (i) McLoughlin v O'Brian; (ii) Tennessee Valley Authority v. Hill (snail darter case) e (iii) Brown v. Board of Education of Topeka, nos quais Hércules aplicará o método do Direito como Integridade de modos distintos para aplicar precedentes judiciais, para interpretar estatutos legais, para interpretar textos constitucionais e para resolver conflitos entre princípios. O caso McLoughlin v O'Brian, julgado pela Câmara dos Lordes em 1983, pode ser assim resumido. A Sra. McLoughlin, casada e mãe de três filhos, foi surpreendida em sua casa quando um amigo noticiou o trágico acidente de automóveis em que seus filhos e marido haviam se envolvido. Chegando ao hospital, a Sra. McLoughlin viu um de seus filhos morto, seus os outros dois filhos e marido gravemente feridos. A cena causou profundo abalo emocional na Sra. McLoughlin que sofreu colapso nervoso em razão da surpresa e da cena trágica que presenciou. Em decorrência desse fato, ela decidiu processar o responsável pelo acidente, não apenas pelos danos causados à sua família, mas também pelo abalo sofrido por ela em razão do acidente40. O juiz Hércules, para chegar a uma decisão nesse caso, aplicará o seu método de modo a encontrar a única resposta correta para resolver a 38 ATIENZA, Manuel. Sobre la única respuesta correcta. In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid-México: Fundácion Coloquio Jurídico Europeo. Editorial Fontamara. 2013. p. 48. 39 COELHO, André. Ronald Dworkin: Como Interpretar À Maneira de Hércules? Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2012/06/ronald-dworkin-como-interpretar-maneira.html>. Acesso em: 20 fev. 2019. 40 FERRAZ, Carlos Adriano. Observações acerca de um modelo pós-positivista de fundamentação do Direito: Dworkin e a ideia de interpretação construtiva. Filosofia Unisinos, v. 12, p. 148-160, 2011. 154 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin questão. Basicamente, o procedimento utilizado por Hércules consistirá em realizar quatro etapas que levarão à decisão do caso. A primeira etapa é realizada por meio da reunião dos atos políticos do passado (textos jurídicos, decisões judiciais, atos legislativos, etc.) e que possuem relação com o caso em julgamento. Após, na segunda etapa, Hércules elencará um conjunto de possíveis princípios que poderiam − em tese − explicar tais atos políticos como um todo. A terceira etapa do processo de decisão de Hércules consiste em verificar quais dos princípios elencados na etapa anterior possuem maior ajuste institucional, ou seja, qual deles é capaz de explicar mais atos políticos do passado. Por fim, na quarta etapa Hércules deverá analisar qual dos princípios aplicáveis possui maior apelo moral, ou seja, qual deles é capaz de representar decisões políticas mais justas e atraentes de um ponto de vista moral. Após realizar essas quatro etapas, Hércules chegará à resposta correta para o caso aplicando aquele princípio que, ao mesmo tempo, possuir maior ajuste institucional e maior força/apelo moral na comunidade política em que a decisão está sendo tomada41. Dessa forma, Hércules resolve o caso McLoughlin v O'Brian realizando uma análise detalhada de todos os outros casos que os juízes que o antecederam decidiram a respeito de pedidos de indenização de pessoas que testemunharam in loco acidentes com automóveis. Hércules pretende verificar se tais pessoas receberam indenização e, caso tenham recebido, e caso não exista nenhuma distinção com base em princípios que possa ser feita para diferenciar esses casos passados da situação vivenciada pela Sra. McLoughlin, então, ela terá direito à indenização que pleiteou. Após realizar as quatro etapas de seu método, Hércules decide o caso contra a autora, 41 A descrição do método utilizado por Hércules foi assim sintetizada por COELHO, André. Ronald Dworkin: Como Interpretar À Maneira de Hércules? Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2012/06/ronalddworkin-como-interpretar-maneira.html>. Acesso em: 20 fev. 2019. Wagner Arnold Fensterseifer | 155 uma vez que Hércules identificou uma distinção de princípio relevante entre os casos anteriores em que foram pagas indenizações para pessoas que testemunharam acidentes in loco e o caso da Sra. McLoughlin. Hércules entende que seria injusto fazer alguém responder por danos que, a despeito de serem decorrências diretas de suas ações, não poderiam ou deveriam ter sido previstos42. A decisão de Hércules no caso McLoughlin v O'Brian chegou ao mesmo resultado que a Corte que julgou a situação originalmente. Contudo, o fundamento apontado por Hércules é distinto daquele apresentado no julgamento real do caso. A Câmara dos Lordes, quando julgou o caso, afirmou que existia o direito à indenização, mas que não seria determinado seu pagamento, porque isso criaria um precedente que criaria prejuízos para a sociedade, por tornar o mercado de automóveis e seguros automotivos mais incerto e custoso para todos. Esse argumento, segundo Hércules, não poderia ser utilizado, por se tratar de argumento de política e não de princípio. O próximo caso a ser julgado por Hércules é Tennessee Valley Authority v. Hill, julgado originalmente pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1978, trata de um conflito entre grupos ambientalistas que processaram a Tennessee Valley Authority (TVA) com o objetivo de impedir a construção de uma represa destinada à produção de energia elétrica. O projeto envolvia investimento superior a cem milhões de dólares e já se encontrava em estágio avançado. Contudo, a construção da represa poderia levar à extinção uma espécie de peixe que vivia na região, chamada snail darter, e que era protegida pela Lei de Espécies Ameaçadas de 1973, 42 COELHO, André. Ronald Dworkin: Como Interpretar À Maneira de Hércules? Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2012/06/ronald-dworkin-como-interpretar-maneira.html>. Acesso em: 20 fev. 2019. 156 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin muito embora não representasse especial interesse do ponto de vista científico, estético, turístico ou alimentar43. Hércules, nesse caso, possui um desafio diferente, haja vista que precisará lidar com a interpretação da legislação positivada, em que está prevista expressamente o que − de forma abstrata − deveria ser feito no caso. Existia um dispositivo da Lei das Espécies Ameaçadas que era claro ao proteger a espécie de peixe snail darter, de modo que a solução para o caso poderia ser a interdição da construção da represa, ainda que isso fosse causar um prejuízo milionário aos cofres públicos. Entretanto, Hércules aplica sua metodologia para solução de casos difíceis e reúne todas as decisões políticas que poderiam ser aplicáveis ao caso sob julgamento. Com isso, identifica que nos debates legislativos que deram origem à criação da Lei das Espécies Ameaçadas diversos congressistas manifestaram sua opinião no sentido de que essa lei não poderia ser absoluta, mas deveria ser utilizada com prioridade para as espécies cujo desaparecimento causaria graves danos ambientais, bem como deveria ser realizado um balanço entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental44. Por isso, Hércules analisa os princípios utilizáveis no caso e identifica que não haveria ajuste institucional em relação a um princípio que pretendesse proteger de forma absoluta qualquer espécie ameaçada, considerando-se os debates realizados na aprovação da Lei de Espécies Ameaçadas. Em razão disso, Hércules opta por empregar ao caso um princípio que condiciona a proteção das espécies ameaçadas à relevância da 43 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 193. 44 COELHO, André. Ronald Dworkin: Como Interpretar À Maneira de Hércules? Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2012/06/ronald-dworkin-como-interpretar-maneira.html>. Acesso em: 20 fev. 2019. Wagner Arnold Fensterseifer | 157 espécie em questão e que analisa o equilíbrio entre a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento econômico. Por mais que se trate de princípio de política, não foi um princípio utilizado de forma arbitrária por Hércules, mas sim pelos próprios criadores da Lei, nos debates que conduziram à sua aprovação. Desse modo, Hércules decide o caso determinando prosseguimento da construção da represa, ainda que possa vir a ser extinta a espécie snail darter. O caso Brown v. Board of Education of Topeka, julgado em 1954 pela Suprema Corte dos Estados Unidos, julgou a questão da separação racial nas escolas públicas dos Estados Unidos superando o precedente anterior da Suprema Corte, caso Plessy v. Fergusson (julgado em 1896) que havia criado a doutrina que ficou conhecida como “separados, porém iguais”, ao decidir sobre a separação nos trens entre vagões que poderia ser utilizados por brancos e por negros, determinando que se as condições dos vagões oferecidos para brancos e negros fossem iguais, não haveria ofensa ao princípio do igual tratamento, ainda que os grupos estivessem segregados. Nesse caso, Hércules terá de enfrentar um novo desafio que é a interpretação de textos constitucionais. No caso Brown v. Board of Education of Topeka será necessário interpretar a 14ª Emenda à Constituição NorteAmericana, que trata da igualdade entre os cidadãos dos Estados Unidos. Seguindo seu método de tomada de decisão, Hércules depara-se com um princípio que determina que todo o tipo de distinção (racial, econômica, por gênero, etc.) feita com base em critério resultante de preconceito e tendente a rebaixar o valor de certos indivíduos ou classe de indivíduos é incompatível com a cláusula de igual tratamento que está no fundamento de todo o sistema jurídico45. 45 COELHO, André. Ronald Dworkin: Como Interpretar À Maneira de Hércules? Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2012/06/ronald-dworkin-como-interpretar-maneira.html>. Acesso em: 20 fev. 2019. 158 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Por isso, ainda que o princípio que autorizou a doutrina “separados, porém iguais” possua ajuste institucional com os atos dos congressistas da época da 14ª Emenda, tal como fora afirmado no caso Plessy v. Fergusson, ele careceria de ajuste institucional em relação à cláusula de igual tratamento, bem como em relação a diversos atos políticos realizados nas décadas que sucederam a criação da 14ª Emenda e o precedente firmado em Plessy v. Fergusson. O princípio empregado por Hércules, além de possuir ajuste institucional, possui maior apelo moral, uma vez que é capaz de anular quaisquer atos tendentes a violar a cláusula de igual tratamento46. Dessa forma, o juiz Hércules com suas habilidades sobre-humanas representa a figura ideal do agente envolvido na prática jurídica que é capaz de realizar todos os procedimentos necessários para chegar à única resposta correta, mesmo diante de casos difíceis. Esses procedimentos, como visto acima, serão distintos em razão das variações decorrentes dos atos políticos (normas jurídicas, decisões judiciais etc.) do passado que obrigatoriamente devem ser observados pelo julgador ao proferir uma nova decisão. A criação da figura do juiz Hércules por Dworkin foi objeto de críticas. Criticou-se, por exemplo, a centralização e protagonismos exacerbados do Juiz no processo de tomada de decisão, bem como a ausência de diálogo entre as partes envolvidas e o julgador, ou mesmo a falta de previsão de decisões colegiadas que o modelo de Hércules pressuporia47. Também é digna de nota a crítica elaborada por François Ost, em artigo no qual compara o juiz Júpiter (juiz positivista), o juiz Hércules (juiz interpretativista) 46 COELHO, André. Ronald Dworkin: Como Interpretar À Maneira de Hércules? Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2012/06/ronald-dworkin-como-interpretar-maneira.html>. Acesso em: 20 fev. 2019. 47 DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura? Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, jan/jun 2009, pp. 91-118. pp. 94-95. Wagner Arnold Fensterseifer | 159 e o juiz Hermes (sua proposta de modelo de juiz, pós-moderno-sistêmico). Segundo Ost: É exatamente por essa via que caminha o juiz Hércules de Dworkin, este juiz racional, que leva os direitos a sério, que domina o império do Direito, que é capaz em qualquer ocasião, e particularmente nos casos difíceis, de encontrar a resposta correta que se impõe. Sua religião é a unidade do Direito, a qual ele deve fortalecer em cada uma de suas decisões; unidade essa que possui sentido duplo, de coerência narrativa que melhor compatibiliza o estado passado e presente do Direito e de superioridade hierárquica dos princípios de moral política compartilhados pela comunidade em cada momento de sua história48. Ost em sua crítica afirma que o modelo utilizado por Dworkin para apresentar o procedimento de tomada de decisão do juiz Hércules estaria sustentado na figura desse juiz, que seria a única fonte do direito válido. Por mais que Ost afirme não equiparar essa teoria ao realismo jurídico ou ao pragmatismo, termina por associar o juiz Hércules de Dworkin aos defeitos que caracterizariam o juiz “monopolizador de jurisdição” em um modelo de Estado Social, no qual o direito reduzir-se-ia a questões de fato e à materialidade da decisão, ou ao que dizem os juízes49. Assim, a crítica de Ost afirma que o juiz Hércules de Dworkin propiciaria um decisionismo, a partir da proliferação de decisões particulares50. A partir das críticas apresentadas, Dworkin tratou de aprimorar a teoria do juiz Hércules, elaborando-a de modo a acomodar boa parte das críticas, sem, contudo, perder a essência de apresentar um modelo de 48 OST, François. Jupiter, Hercules, Hermes: tres modelos de juez. Doxa, Cuadernos de Filosofia del Derecho, n. 14, Alicante, 1993. p. 180. 49 STRECK, Lenio. O (pós-)positivismo e os propalados modelos de juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) - dois decálogos necessários. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 7, pp. 15-45, ja./jun. 2010. p. 22. 50 STRECK, Lenio. O (pós-)positivismo e os propalados modelos de juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) - dois decálogos necessários. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 7, pp. 15-45, ja./jun. 2010. p. 23. 160 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin decisão que tenha como norte a unidade do Direito e como finalidade a única resposta correta. 3.2.2. A interpretação judicial como um romance em cadeia Como aponta Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, a tese da única resposta correta e a criação do hipotético juiz Hércules que demonstra como é possível chegar a essa resposta passam, em razão das críticas recebidas, por uma sofisticação teórica51. Essa sofisticação consiste na chamada metáfora do romance em cadeia (chain novel), que ilustra todo um processo de aprendizado social subjacente ao Direito compreendido como prática social interpretativa e argumentativa, um processo capaz de corrigir a si mesmo e que se dá ao longo de uma história institucional, reconstruída de forma reflexiva à luz dos princípios jurídicos de moralidade política, que dão sentido a essa história52. Seguindo a metáfora proposta por Dworkin, o juiz ao decidir um caso deveria adotar a perspectiva de um autor de um romance escrito de forma coletiva. Nesse sentido, ele deverá conhecer tudo o que fora escrito antes dele, bem como compreender a forma adequada de dar continuidade a esse romance, mantendo a coerência e respeitando as decisões que foram tomadas pelos autores que o precederam. A autoridade da decisão proferida emanaria justamente dessa cadeia de capítulos anteriormente escritos e aceitos pela comunidade como um todo. O julgador deverá ler o que os outros juízes escreveram no passado, não somente para descobrir o que aqueles juízes disseram, ou o seu estado mental quando o fizeram, mas para encontrar uma opinião acerca do que 51 DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura? Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, jan/jun 2009, pp. 91-118. p. 95. 52 DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura? Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, jan/jun 2009, pp. 91-118. p. 95. Wagner Arnold Fensterseifer | 161 esses juízes fizeram de forma coletiva, no mesmo sentido que um escritor de um romance coletivo faria53. A interpretação, portanto, poderia ser metaforizada como a produção de um romance em cadeia, onde cada valor somente poderia se justificar em outro valor pertencente a essa unidade, até que encontrasse a si mesmo. Como o sistema jurídico concebido por Dworkin é desenhado como uma rede de valores, inevitavelmente em algum momento o argumento será circular, ou seja, uma premissa estará fundamentada por outra, que ao mesmo tempo dela servirá como fundamento. A unidade de valor possui tamanha relevância justamente por isso, e a necessidade de consideração das respostas alternativas é exatamente o que dá suporte à ampliação da rede de valores, que não pode ser restrita a ponto de tornar tautológico o raciocínio circular. Em suma, o projeto de Dworkin pode ser imaginado enquanto o ideal de um sistema valorativo (moral) eminentemente holístico, do qual o direito, como a política, seria um ramo, que pudesse se fundamentar em si e a si mesmo54. Qualquer juiz com a tarefa de decidir um caso jurídico encontrará, se procurar nos livros corretos, registros de muitos casos similares decididos em décadas ou séculos passados por muitos outros juízes, com estilos diferentes e posicionamentos jurídicos e políticos distintos, que trabalharam em épocas diferentes nas quais eram vigentes outras regras procedimentais55. Cada juiz, consoante determina a teoria do romance em cadeia, deve ver a si mesmo − quando decidindo um caso novo − como um sócio em um complexo empreendimento em cadeia representado pelas inúmeras 53 DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985. p. 159. 54 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. pp. 54-55. 55 DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985. p. 159. 162 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin decisões proferidas pelos juízes que o antecederam. Essas decisões formam a história institucional e o trabalho do juiz é continuar essa história e levá-la ao futuro por meio do que ele faz no presente. Assim, ele deverá interpretar o que foi feito no passado, porque ele possui a responsabilidade de avançar o empreendimento de forma alinhada e não em qualquer nova direção que entenda correta56. Segundo Ronaldo Porto Macedo Junior, essa é a síntese da tese da interpretação judicial como um romance em cadeia: Dworkin afirma que a interpretação jurídica pode ser compreendida como um caso particular do empreendimento interpretativo em geral. Ela se assemelha de forma muito particular à interpretação literária, visto que em ambas o intérprete orienta sua ação na busca de uma intencionalidade contida no empreendimento a ser interpretado, seja na literatura, seja no direito57. Desse modo, ao aproximar a interpretação jurídica da interpretação literária Dworkin está fazendo muito mais do que buscando uma analogia entre métodos interpretativos. Essa aproximação deixa clara a visão de Dworkin de que a interpretação jurídica envolve uma atitude interpretativa, ou seja, a imposição de um propósito a uma prática ou a um objeto58. Do intérprete, tanto no direito como na literatura, é exigido um engajamento na tarefa construtiva de descobrir, encontrar, descrever e atribuir intencionalidade à prática59. Para Dworkin, não é possível interpretar o direito sem que se faça parte da prática jurídica da comunidade, sem que o intérprete esteja 56 DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985. p. 159. 57 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 215. 58 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 215. 59 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 216. Wagner Arnold Fensterseifer | 163 engajado no empreendimento interpretativo que constitui o direito de determinada localidade, uma vez que é essa postura de interpretação engajada que permite alcançar as respostas corretas para os problemas jurídicos. Não há espaço, desse ponto de vista, para um intérprete neutro, seja do ponto de vista jurídico seja do ponto de vista moral. Nota-se aqui, mais uma vez, a força do argumento de Dworkin contra as teorias arquimedianas. É com esse conceito que o autor pretende atacar todas as formas desengajadas, com aspirações não avaliativas e metodologicamente neutras que são encontradas em inúmeras variantes das teorias sobre o direito60. Nesse contexto, Dworkin afirma que não se pode compreender o Direito como dissociado da Moral, mas sim como um departamento da moralidade61. Desse modo, a tese da única resposta correta para solucionar casos em Direito é tributária a uma objetividade moral que servirá como fundamento para que se possa encontrar a resposta correta. Do contrário, seria inviável utilizar o método do juiz Hércules, do Direito como Integridade e do romance em cadeia para chegar à única resposta correta para casos difíceis. Como visto, parte do procedimento utilizado para tomada de decisão envolve identificar qual o princípio jurídico possui maior mérito moral, de sorte que é necessário contar com um critério moral minimamente objetivo para que se possa realizar tal avaliação. Na próxima seção, portanto, será necessário avaliar as teses de Dworkin acerca da objetividade da moral, resgatando-se os conceitos analisados no primeiro capítulo do livro para verificar com qual teoria metaética se assemelham as posições de Dworkin. Após, será possível afirmar quais as 60 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 198. 61 DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: Belknap Press, 2006. p. 34. 164 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin consequências e decorrências dessa posição metaética para a teoria do direito do autor. 3.3. Em que sentido a moralidade pode ser objetiva? A posição de Dworkin acerca da objetividade da moral passou por esclarecimentos ao longo do tempo, à medida em que o autor desenvolveu sua obra, estando mais obscura em seus primeiros escritos e passado a aparecer de forma clara e expressa em suas últimas grandes publicações. Se, quando Dworkin escreveu o primeiro ataque ao positivismo jurídico de Hart, sua posição sobre a objetividade da moral não estava exatamente explícita, nos escritos do século XXI essa posição passa a ser clara, ganhando forma e relevância no pensamento do autor. Em uma passagem de A Matter of Principle, publicado originalmente em 1985, Dworkin argumenta que fatos morais existem, mas refuta a ideia de que sejam fatos físicos ou meros fatos sobre pensamentos e atitudes das pessoas. Mas Dworkin afirma que existem instituições sociais em particular que são injustas, não porque as pessoas pensam que são injustas, mas porque são simplesmente injustas. Veja-se o trecho em que Dworkin elabora a ideia de que existem fatos morais: Suponha, por exemplo, que existem fatos morais, os quais não são simplesmente fatos físicos ou fatos sobre os pensamentos e atitudes das pessoas. Eu não quero supor que existem o que às vezes se denominam fatos morais “transcendentes” ou “platônicos”; em verdade, não sei o que seriam. Pretendo apenas supor que uma instituição social particular como escravidão pode ser injusta, não porque as pessoas pensam que é injusta, ou porque existem convenções segundo as quais ela é injusta, ou qualquer coisa do tipo, mas apenas porque a escravidão é injusta. Se existem tais fatos morais, então pode-se supor racionalmente que uma proposição de direito é verdadeira mesmo que os juristas permaneçam discordando dessa proposição após conhecerem ou Wagner Arnold Fensterseifer | 165 estipularem todos os fatos concretos. E ela pode ser verdadeira em virtude de um fato moral que não é nem conhecido nem estipulado62. Para bem compreender o que Dworkin afirma sobre a objetividade da moral é preciso entender que o autor não prega a existência de uma ordem moral real e imutável, a ser encontrada em algum ponto do universo63. O que, de fato, Dworkin afirma é que existe uma independência do sistema moral, de tal sorte que um valor moral apenas pode se justificar por referência a outro valor moral64. Os valores, nessa linha de raciocínio, são necessariamente interdependentes e constituem uma totalidade unitária e integrada, que é a moral65. É essa a interpretação de André Portugal, que assim sintetiza a visão de Dworkin: Dworkin efetivamente nega a existência de fatos morais platônicos, ou, para ficar com a expressão do autor, “mórons” (partículas de moral). Todavia, em um outro sentido, reconhece a objetividade do valor. Alega ser possível afirmar a verdade em sentido moral. Daí é que, para ele, alguns valores existiriam sem depender da sua defesa por quem quer que fosse. Ele defende a existência de fatos morais − por isso, a escravidão, independentemente de qualquer argumento, seria invariavelmente injusta. Por outro lado, a pretensão da existência da verdade na interpretação decorre, em boa medida, da ideia de coerência, cujos traços devem ser, obviamente, construídos historicamente66. 62 DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985. p. 138. 63 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. p. 35. 64 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. p. 35. 65 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. p. 36. 66 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. p. 57. 166 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin Com a publicação, em 1997, do artigo intitulado Objectivity and Truth: You’d Better Believe It, Dworkin posiciona-se de forma explícita e declarada em relação à objetividade da moral. Nos argumentos ali apresentados, o autor rejeita de forma efusiva o que nomina de ceticismo externo, que consistiria nas posições céticas a respeito da possibilidade de verdades morais que buscam analisar o campo de estudo de forma afastada do objeto, em uma visão suportada por um ponto arquimedeano, para colocar a questão nos termos dworkinianos. Os primeiros parágrafos do artigo são elucidativos a respeito do tom que Dworkin adotará no desenvolvimento dos argumentos apresentados: Será que existe alguma verdade objetiva? Ou devemos finalmente aceitar que no fundo, no fim das contas, filosoficamente falando, não existe verdade “real”, ou “objetiva”, ou “absoluta”, ou “fundacional”, ou “questão verdadeira”, ou “resposta certa” sobre nada; que mesmo nossas convicções mais confiáveis sobre o que ocorreu no passado, ou do que o universo é feito, ou sobre quem somos, ou sobre o que é bonito, ou quem é mal, são somente nossas convicções, somente convenções, somente ideologia, somente insígnias de poder, somente regras de jogos de linguagem que decidimos jogar, somente o produto de nossa disposição irrefreável de nos enganarmos de que seja possível descobrir lá fora, em algum mundo objetivo, atemporal, independente da mente, que nós mesmos tenhamos de fato inventado, por instinto, imaginação e cultura?67 Nesse artigo, Dworkin analisa também o recorrente argumento utilizado por aqueles que defendem a impossibilidade de juízos morais objetivos que é o da diversidade moral. O argumento da diversidade moral, segundo o autor, se desenvolve do seguinte modo: o fato de pessoas discordarem tanto sobre a moralidade, de tempo em tempo, e de lugar para 67 DWORKIN, Ronald. Objetividade e Verdade: melhor você acreditar. Trad. Roberto Freitas Filho e Ana Cláudia Lago Costa. Univesitas Jus, vol. 24, n. 3, UNICEUB, 2013. p. 01. Wagner Arnold Fensterseifer | 167 lugar, e mesmo dentro de culturas específicas, mostra que a perspectiva do valor-de-face tem que estar errada e que nenhuma afirmação moral poderia ser verdadeira68. Uma vez que as pessoas discordam sobre questões fundamentais, como aborto e justiça social, mesmo no âmbito de culturas específicas e não apenas quando comparadas culturas diametralmente opostas, esse fato permite que elas encontrem razões para reexaminar suas próprias convicções69. As convicções pessoais tornam-se menos convictas quando reparamos que existem outros, tão inteligentes e sensíveis quanto nós, que discordam profundamente do que pensamos e acreditamos ser a verdade70. Entretanto, Dworkin entende que essa forma de argumentação não é válida. Para ele, se a popularidade de nossas opiniões morais não é evidência de sua veracidade, também não pode ser uma evidência contra a verdade das afirmações morais o fato de existirem opiniões controversas a seu respeito71. No campo da moralidade, o fato de existirem divergências acerca de avaliações morais não permite que se conclua por sua falsidade, ou mesmo por uma posição de suspensão de juízo. Diferentemente do que ocorre, por exemplo, no campo científico. O exemplo trazido por Dworkin é bastante elucidativo: Suponha que milhões de pessoas tenham afirmado que viram unicórnios, mas tenham discordado ferozmente sobre seus tamanhos e formas. Nós desconsideraríamos suas evidências: se houvesse unicórnios e as pessoas os tivessem 68 DWORKIN, Ronald. Objetividade e Verdade: melhor você acreditar. Trad. Roberto Freitas Filho e Ana Cláudia Lago Costa. Univesitas Jus, vol. 24, n. 3, UNICEUB, 2013. p. 16. 69 DWORKIN, Ronald. Objetividade e Verdade: melhor você acreditar. Trad. Roberto Freitas Filho e Ana Cláudia Lago Costa. Univesitas Jus, vol. 24, n. 3, UNICEUB, 2013. p. 16. 70 DWORKIN, Ronald. Objetividade e Verdade: melhor você acreditar. Trad. Roberto Freitas Filho e Ana Cláudia Lago Costa. Univesitas Jus, vol. 24, n. 3, UNICEUB, 2013. p. 16. 71 DWORKIN, Ronald. Objetividade e Verdade: melhor você acreditar. Trad. Roberto Freitas Filho e Ana Cláudia Lago Costa. Univesitas Jus, vol. 24, n. 3, UNICEUB, 2013. p. 16. 168 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin visto, as reais propriedades do animal dariam ensejo a relatos mais uniformes. Mas quando não possuímos tal explicação sobre esse campo específico do porque uma diversidade de opiniões inviabiliza qualquer opinião, não conseguimos extrair nenhuma conclusão cética dessa diversidade72. Por isso, o autor entende que o fato de existir diversidade de opiniões a respeito da moral não permite que se conclua pelo ceticismo moral, ou mesmo pela impossibilidade de encontrar verdades morais objetivas. Mas como, então, Dworkin explica a forma como ele concebe a objetividade da moral? Em Justice for Hedgehogs, a construção do argumento sobre a objetividade da moral inicia pela diferenciação entre a forma como algo pode ser objetivamente verificado no campo das ciências naturais e a forma como questões morais podem ser objetivas. Assim é elaborado o argumento por Dworkin: Você não pensa que considerar errado torturar bebês ou terroristas seja apenas uma questão de descoberta científica. Você não supõe que poderia provar que sua opinião é consistente, ou mesmo apresentar evidências para ela por meio da realização de algum experimento ou observação. Você poderia, é claro, demonstrar por meio de experimento ou observação as consequências de torturar bebês − os danos físicos e psicológicos que isso inflige, por exemplo. Mas você não tem como demonstrar dessa maneira que é errado produzir tais consequências. Você precisa de um argumento moral de algum tipo para fazer isso, e argumentos morais não são uma questão de demonstração científica ou empírica73. O autor sustenta que a visão ordinária das pessoas acerca da moralidade não corrobora as teses de que não existem juízos morais verdadeiros ou falsos, ou mesmo as teses expressivistas que afirmam que juízos morais 72 DWORKIN, Ronald. Objetividade e Verdade: melhor você acreditar. Trad. Roberto Freitas Filho e Ana Cláudia Lago Costa. Univesitas Jus, vol. 24, n. 3, UNICEUB, 2013. p. 17. 73 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. p. 27. Wagner Arnold Fensterseifer | 169 são simplesmente sensações e atitudes em relação a alguma questão moral. Contudo, Dworkin reconhece que, ao analisar a questão de um ponto de vista filosófico, os questionamentos levantados pelos céticos morais são, sim, capazes de criar preocupações para aqueles que acreditam na possibilidade de avaliar questões morais em termos de verdadeiro ou falso74. Isso porque, diferentemente, por exemplo, de afirmações acerca da forma como um objeto do mundo é constituído, que podem ser comprovadas como verdadeiras por meio de experimentos e observação de partículas físicas que existem de fato no mundo, afirmações acerca de questões morais não podem ser avaliadas por experimentos com mórons75 (forma como Dworkin se refere às partículas de moral que existiriam como fatos no mundo, para aqueles que acreditam em sua existência). Para Dworkin, é possível avaliar afirmações morais em termos de verdadeiro ou falso, ou, para colocar em outros termos, existe objetividade moral. Contudo, a objetividade e verificabilidade das afirmações morais é diferente daquela utilizada para as ciências naturais em geral, haja vista a impossibilidade de realização de experimentos e observações empíricas que permitam concluir pela veracidade de determinada afirmação moral. A resposta de Dworkin para o questionamento “Quando estamos justificados a acreditar que um julgamento moral é verdadeiro?” é a seguinte: quando estamos justificados em pensar que os argumentos que sustentam sua veracidade são argumentos adequados. Isto é, quando possuímos as razões exatas para pensar que estamos certos em nossas convicções76. O autor reconhece que esse truísmo pode parecer de pouco valor, sobretudo porque carece de verificação independente. É como o leitor de jornal referido por Wittgenstein, que duvidou do que estava lendo e 74 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. p. 29. 75 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. pp. 29-30. 76 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. p. 37. 170 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin resolveu comprar outra cópia do jornal para verificar se a informação estava correta77. Em que pese o raciocínio seja de certo modo circular, ao afirmar que a verificação para uma afirmação moral encontra-se dentro do próprio sistema da moralidade, Dworkin afirma que o mesmo modo de funcionamento é empregado para o método científico em geral para verificar se os avanços científicos são verdadeiros78. Em uma passagem de Justice for Hedgehogs essa questão fica bastante evidente: Somos sempre culpados de alguma forma de circularidade. Não há nenhuma maneira que eu possa testar a precisão das minhas convicções morais, exceto pela implantação de novas convicções morais. Minhas razões para pensar que sonegação fiscal é errado são boas razões se os argumentos nos quais me sustento são bons. Isso é um relato muito grosseiro da dificuldade que enfrentamos: esperamos que o círculo de nossas opiniões tenha um raio maior do que esse. Mas se eu me deparo com alguém que sustenta opiniões morais radicalmente diferentes das minhas, e não posso contar que vá encontrar algo em meu grupo de razões e argumentos com o que essa pessoa seria irracional se não concordasse. Eu não posso demonstrar para ela que minhas opiniões são verdadeiras e as dela falsas79. Desse modo, Dworkin entende que a moral não existe como uma ordem real e imutável, a ser encontrada em algum ponto do universo80. O que o autor sustenta é que existe uma independência do sistema moral, haja vista que − conforme visto anteriormente − um valor moral somente poderia ser justificado por outro valor moral, o que torna os valores independentes, integrados e não-autônomos, uma vez que cada um depende 77 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. p. 37. 78 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. p. 38. 79 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. p. 100. 80 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. p. 35. Wagner Arnold Fensterseifer | 171 do outro, de uma contribuição que ele dá a algum outro tipo de valor independentemente especificável81. É nesse contexto que o autor apresenta uma metafórica estrutura de árvore para organização da unidade do valor. A moral pessoal pode ser compreendida como fluindo da ética, e a moralidade política, por sua vez, pode ser entendida como fluindo da moralidade pessoal. Sua teoria tem como objetivo integrar aquilo que frequentemente é considerado como diferentes departamentos de avaliação. Dessa mesma forma, o direito, segundo Dworkin, pode ser facilmente colocado nessa estrutura de árvore: o direito é um galho, uma subdivisão, da moralidade política82. Considerando-se os conceitos sobre metaética descritos no primeiro capítulo do livro, pode-se considerar que a posição de Dworkin é bastante próxima do cognitivismo, uma vez que entende ser possível chegar à única resposta certa para problemas morais. Em relação à questão ontológica da moralidade, a posição de Dworkin aproxima-se do que cunhamos como realismo de razões, haja vista que o autor realiza grande esforço para fundamentar a objetividade da moral sem recorrer à existência de fatos morais brutos ou mórons, elaborando seu argumento para sustentar ser possível racionalmente conhecer a verdade ou falsidade de afirmações morais, com base na ideia de que a moral pode ser objetiva porque existe um realismo de razões. Pelas razões verdadeiras chega-se à única resposta certa para problemas morais, bem como avalia-se enunciados morais em termos objetivos de verdadeiro ou falso. 81 PORTUGAL, André. Decisão e Racionalidade: crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2017. p. 36. 82 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Belknap Press, 2011. p. 405. Conclusão O excerto referido na epígrafe deste trabalho, de David Foster Wallace, permite utilizar a situação dos peixes no oceano para ilustrar como, muitas vezes, as questões em relação às quais estamos mais profundamente envolvidos são aquelas que nos causam maior dificuldade de percepção e reflexão. Da mesma forma que os jovens peixes desconheciam o que era a água, grande parte dos juristas e das pessoas em geral que lidam com o Direito de forma cotidiana parecem não se dar conta dos problemas mais elementares da prática jurídica. O Direito é, em muitos casos, indeterminado, obscuro, vago, ambíguo, contraditório, injusto. Não raras vezes, as decisões judiciais proferidas por juízes dotados de autoridade padecem de vícios e falhas lógicas gritantes. Ainda assim, são providas de autoridade e produzem seus resultados no mundo, nos momentos em que o “direito morde a vida” e trazem consequências reais na vida e no cotidiano das pessoas. Ainda assim, o Direito também possui o grande mérito de servir como instrumento para coordenação de ações, práticas e persecução de objetivos comuns. Não é preciso muita reflexão para imaginar o caos que seria a vida nas sociedades modernas sem a figura de autoridade do Direito. As pessoas em geral pautam suas condutas com base no que determina o Direito e confiam que tais condutas serão protegidas, recompensadas e respeitadas em razão do fundamento jurídico que as justifica. Mesmo quando reconhecidas essas duas características distintas desse produto da racionalidade humana que chamamos Direito, é possível encontrar diversas teorias diferentes para explicar os motivos pelos quais Wagner Arnold Fensterseifer | 173 o Direito funciona da forma que funciona e, também, para tentar corrigir as situações em que sua funcionalidade é deficiente. É nesse contexto que se inserem as obras dos autores que foram analisadas neste livro. Herbert Lionel Adolphus Hart e Ronald Myles Dworkin dedicaram décadas de suas vidas produtivas na busca por explicações e formas de aprimorar nossa compreensão sobre o fenômeno social que é o Direito. Como não poderia deixar de ser, os autores também precisaram compreender e refletir sobre questões de política e moralidade, em razão das interrelações que o Direito possui ou pode possuir com essas áreas do conhecimento. Como visto, as divergências de opinião entre Hart e Dworkin não se limitam à teoria do Direito. Os autores divergem, talvez até mesmo de modo mais efusivo, em relação a questões morais e políticas. Mas a principal e elementar diferença no pensamento dos jusfilósofos certamente é em relação ao modo como Direito, Política e Moral se interrelacionam. Enquanto para Dworkin o Direito e a Política são ramos de uma árvore maior que é a moralidade, sendo necessariamente influenciados de forma direta pelos princípios morais que fundam as sociedades contemporâneas; para Hart, o Direito deve funcionar como um sistema independente, possuindo seu papel dentro da organização da sociedade. O mesmo ocorre com a Política e a Moral, que devem ser independentes, embora possam relacionar-se entre si de forma contingente. Dworkin sustenta que a moral é objetiva, podendo ser encontrada a resposta moral correta por meio da utilização do sistema de unidade do valor, que inter-relaciona diversas concepções morais que se justificam umas às outras, em uma teia de razões morais que permitem chegar a um sistema íntegro e coerente, fundado nas ideias de liberdade, igual respeito e consideração. Por esse motivo, o autor afirma que todos os problemas jurídicos possuirão uma única resposta certa, a qual será encontrada por 174 | Uma análise metaética do debate entre Hart e Dworkin um julgador que seja capaz de compreender a história institucional da comunidade onde o caso está sendo julgado, bem como que seja capaz de conhecer e interpretar das decisões políticas e judiciais que o precederam, agindo tal como o autor de um romance coletivo em cadeia. Ademais, Dworkin entende que não é possível elaborar uma teoria do direito sem que o teórico se coloque no ponto de vista de um intérprete engajado, que toma posição perante o objeto de estudo, e com ele interage, tendo objetivos e buscando resultados em sua interpretação. Sua crítica às teorias que adotam posturas meramente descritivas, colocando-se em pontos arquimedeanos para dali apresentarem suas conclusões obtidas pela observação neutra e afastada do objeto de pesquisa é bastante incisiva e, de certa forma, também direciona o ataque ao positivismo jurídico como um todo. Do ponto de vista metaético, pode-se entender que Dworkin adota postura que se afasta de um realismo moral de objetos e se aproxima de um realismo moral de razões, conforme definições apresentadas no primeiro capítulo, haja vista que rejeita os argumentos em favor de uma realidade moral que possa ser empiricamente testada ou verificada (com base no método das ciências naturais), mas entende que a única resposta moral correta pode ser encontrada, sendo decorrência do uso das corretas razões. Ademais, Dworkin compreende como possível a avaliação de juízos morais em termos objetivos de verdadeiro ou falso, razão pela qual se pode afirmar que Dworkin é cognitivista forte em relação à moral. Para Hart, entretanto, os casos jurídicos podem ser classificados entre casos fáceis e casos difíceis. Os casos fáceis são aqueles que estão enquadrados no núcleo de sentido claro das expressões utilizadas na elaboração das regras, ao passo que os casos difíceis são aqueles que se encontram nas zonas de penumbra dos sentidos das expressões jurídicas. Wagner Arnold Fensterseifer | 175 Para os casos difíceis, Hart entende que o juiz deverá decidir utilizando-se da discricionariedade, criando uma regra para resolver o caso. Nessa situação, Hart admite que a moralidade poderá influenciar a decisão do juiz, haja vista que o Direito não foi capaz de fornecer uma única resposta para aquele determinado caso. Contudo, diferentemente de Dworkin, Hart não afirma que poderá ser encontrada uma única resposta correta, mas reconhece que casos difíceis possuem um número limitado de soluções possíveis e que caberá ao juiz, pelo uso da discricionariedade, escolher justificadamente uma solução em detrimento das outras, o que certamente não implicará na afirmação de que as soluções alternativas eram falsas. No que diz respeito à objetividade da moral, Hart em sua obra não apresentou expressamente um posicionamento a esse respeito. Contudo, como visto, pela interpretação de seus principais textos é possível chegar à conclusão de que o autor assumia posição metaética identificada com o não-cognitivismo fraco, uma vez que admite ser possível conhecer o verdadeiro e o falso moral, mas apenas de forma contingente, em dado tempo, em dado local e em dada comunidade. Essa avaliação, todavia, sempre dependerá de argumentos a favor ou contra uma interpretação, não sendo possível demonstrar de forma cabal que a afirmação moral “A” é objetivamente verdadeira, ou mesmo verdadeira de forma universal. Referências AARNIO, Aulis. ¿Una única respuesta correcta? In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. MadridMéxico: Fundácion Coloquio Jurídico Europeo. Editorial Fontamara. 2013, pp. 0946. ARISTOTLE. Physics. Trad. William Charlton. Oxford: Claredon Press, 2006. ATIENZA, Manuel. Sobre la única respuesta correcta. In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid-México: Fundácion Coloquio Jurídico Europeo. Editorial Fontamara. 2013, pp.47-80. AUSTIN, John L. A plea for excuses. Philosophy and linguistics, pp. 79-101. Palgrave, London, 1971. AUSTIN, John L. How to do things with words. Oxford: Claredon Press, 1962. AYER, A.J. 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