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Carla Rizzotto Universidade Federal do Paraná Kelly Prudencio Universidade Federal do Paraná TUDO NORMAL: a despolitização no enquadramento multimodal da cobertura do impeachment de Dilma Rousseff Rafael Sampaio Universidade Federal do Paraná NO BIG DEAL: the depoliticization in the multimodal framework of Dilma Rousseff’s impeachment coverage C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 111 ReSUmo: Defendemos neste artigo a utilização da análise de enquadramento multimodal para a compreensão da cobertura jornalística, pois somente uma análise sistemática dos diferentes modos comunicativos da notícia – imagem, narrativa e frame - pode aproximar o pesquisador da imagem geral construída pelo noticiário. este artigo traz um primeiro exercício analítico sobre parte de um corpus de uma pesquisa em andamento sobre o impeachment de Dilma Rousseff, composto por 187 notícias do jornal o Globo e 131 da Folha de S. Paulo. Foi possível perceber que a cobertura dos dois jornais privilegiou um enquadramento do processo de impeachment como um fato ordinário da política nacional, como mera disputa política entre grupos rivais, sem oferecer interpretações para além do protocolo básico da redação da notícia. Palavras-Chave: enquadramento. Análise de enquadramento multimodal. Impeachment. ReSUmen: Defendemos en este artículo la utilización del análisis de encuadramiento multimodal para la comprensión de la cobertura periodística, pues sólo un análisis sistemático de los diferentes modos comunicativos de la noticia - imagen, narrativa y cuadros - puede aproximar al investigador de la imagen general construida por el periodismo. este artículo trae un primer ejercicio analítico sobre parte de un corpus de una investigación en marcha sobre el impedimento de Dilma Rousseff, compuesto por 187 noticias del diario o Globo y 131 de la Folha de S. Paulo. es posible percibir que la cobertura de los dos periódicos privilegió un encuadramiento del proceso de impeachment como un hecho ordinario de la política nacional, como mera disputa política entre grupos rivales, sin ofrecer interpretaciones más allá del protocolo básico de la redacción de las noticias. Palabras-Clave: encuadramiento. Análisis de encuadramiento multimodal. Impeachment. ABStRACt: In this paper we defend the use of multimodal framing analysis to understand news coverage. We believe only a systematic analysis of the different communicative modes - image, narrative and frame - can bring the researcher closer to the general image constructed by the news. this article presents a first analytical exercise on part of a corpus of an ongoing research on the impeachment of Dilma Rousseff, composed of 187 news articles from o Globo and 131 from Folha de S. Paulo. It was possible to perceive that the coverage of the two newspapers privileged a framing of the impeachment process as an ordinary fact of national politics, as a mere political dispute between rival groups, without offering interpretations beyond the basic protocol of news writing. Keywords: news Frame. multimodal framing analysis. Impeachment. Submissão: 22-10-2014 Decisão editorial: 15-08-2017 112 C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 1. Introdução Tira de André Dahmer, 22 set. 2016 No dia 02 de dezembro de 2016, o então presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Eduardo Cunha, aceitou pedido de abertura de processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. O pedido acusava a presidenta de ter cometido as chamadas “pedaladas fiscais1”, o que foi interpretado como crime de responsabilidade. A votação ocorreu no dia 17 de abril (um domingo), quando os deputados aprovaram o pedido pelo placar de 367 a 137 votos, numa sessão que foi transmitida ao vivo por quase todos os canais de televisão, rádio e internet. No Senado, a admissibilidade do pedido foi votada no dia 12 de maio, com 55 votos a favor e 22 contra. Dilma foi afastada por 180 dias e o vice-presidente Michel Temer assumiu interinamente a presidência da República. Na votação final do impeachment, que ocorreu na tarde do dia 31 de agosto, Dilma foi definitivamente afastada, com 59 votos a favor e 21 contra. Durante esse período o comportamento da imprensa foi questionado tanto por quem se posicionava favorável quanto contrariamente ao impeachment. Os vieses da cobertura jornalística foram exaustivamente acusados de medidas para direcionar a interpretação dos acontecimentos para um lado ou para outro. No caso brasileiro, desde as eleições de 1989 pesquisadores da área de Comunicação Política vem analisando a cobertura noticiosa do campo político. Em especial, há um conjunto de pesquisas que apontam uma cobertura mais negativa contra o Partido dos Trabalhadores (PT) e seus candidatos (AZEVEDO, 2009; MIGUEL, COUTINHO, 2007; FERES JUNIOR e SASSARA, 2016). 1 Atrasar de forma proposital o repasse de dinheiro para bancos (públicos e também privados) e autarquias. C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 113 Carla rizzotto; Kelly PrudenCio; rafael SamPaio Em particular, este artigo busca fazer a verificação da cobertura noticiosa da política através da análise de enquadramento da notícia (news frames). Como sabemos, os agentes midiáticos “escolhem quem ganha acesso ou se torna ‘fonte’ de suas emissões; eles editam e conferem proeminência diferenciada às vozes dos atores sociais, hierarquizam discursos em seus textos e, assim, enquadram sentidos” (MAIA, 2009, p. 304). Os estudos de enquadramentos noticiosos buscam exatamente evidenciar de que maneira alguns elementos ganham saliência na notícia em detrimento de outros, produzindo esse efeito de sentido (ENTMAN, 1993; GAMSON, 1995; VIMIEIRO, MAIA, 2011; MENDONÇA, SIMÕES, 2012; PRUDENCIO, RIZZOTTO, SILVA, 2016). Para Entman, “o enquadramento oferece um caminho para descrever o poder do texto comunicacional e sua influência sobre a consciência humana, exercida pela transferência da informação [...] através de uma declaração, expressão ou reportagem” (ENTMAN, 1993, p.51-52, tradução nossa). Segundo o autor, muitas vezes há uma homogeneização no tratamento das notícias, porque abordá-las de uma forma diferente que o demais veículo poderia significar perda de credibilidade ou uma indisposição com as elites. Portanto, enquadramentos midiáticos ou noticiosos podem ser vistos como padrões persistentes de apresentação, seleção, ênfase e exclusão de organização do discurso verbal ou visual, que permitem aos jornalistas e profissionais dos media processar altos níveis de informação de maneira rápida e rotineira para suas audiências (CAMPOS, 2014; PORTO, 2007; VIMIEIRO, DANTAS, 2009). Na pesquisa brasileira, o arcabouço teórico-metodológico do enquadramento já foi aplicado para uma série de temas políticos, como, por exemplo, o debate antitabagismo e o referendo das armas de fogo no país (MAIA, 2009); a controvérsia das ações afirmativas raciais na imprensa (CAMPOS, 2014); a trajetória dos enquadramentos sobre a temática da deficiência (VIMIEIRO, MAIA, 2011); o posicionamento midiático em relação a mobilizações políticas, como a Marcha das Vadias (PRUDENCIO, RIZZOTTO, SILVA, 2016); além de discussões conceituais (MAIA, 2009; MENDONÇA, SIMÕES, 2012; VIMIEIRO, DANTAS, 2009) e metodológicas (RIZZOTTO, ANTONELLI, FERRACIOLI, 2016; VIMEIRO, MAIA, 2011), entre outros. Especificamente no caso do impeachment, Becker, César, Gallas e Weber (2016) analisam o enquadramento das capas dos jornais em quatro episódios desse período. As autoras identificam uma polarização entre PT/Lula e judiciário, e ainda o enaltecimento dos atos pró impeachment e redução das manifestações de apoio ao governo de Dilma. Rizzotto, Antonelli e Ferracioli (2016) observaram que a Folha de S. Paulo tratou o tema como disputa político-partidária, apresentando o acontecimento de maneira episódica, ou seja, como uma série de conflitos sem contextualização. Nossa preocupação, neste momento, é de aprimorar a abordagem metodológica sobre o enquadramento da notícia. A perspectiva clássica fica restrita à análise do texto. A cobertura do impeachment, com essa abordagem, correria o risco de, ao evidenciar apenas um dos vários processos de construção da notícia, oferecer mais uma interpretação que poderia pender para este ou aquele lado. Em especial, como sabemos, o modelo de jornalismo brasileiro foi fortemente baseado no modelo norte-americano de “jornalismo independente”, portanto as matérias jornalísticas, geralmente, buscam ser informativas e objetivas, dando pouca margem para interpretação e/ou posicionamentos mais fortes dos jornalistas, algo que geralmente é reservado para colunas e editoriais. Assim, entende-se que é necessária uma análise que considere também os elementos visual e narrativo. Daí que recorremos à análise de enquadramento multimodal, desenvolvida por Wosniak et al (2014). 114 C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 tudo normal: a deSPolitização no enquadramento multimodal da Cobertura do imPeaChment de dilma rouSSeff Este artigo traz um primeiro exercício analítico sobre parte de um corpus de uma pesquisa em andamento. Tal pesquisa aplica a análise de enquadramento multimodal em três níveis – visual, narrativo e enquadramento – nas notícias publicadas pelo O Globo, Folha de S. Paulo (FSP) e O Estado de S. Paulo, entre 2 de dezembro de 2015, dia em que o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acatou o pedido de impeachment, e 13 de maio de 2016, um dia após a votação no Senado que autorizou o processo de instauração do impeachment e consequente afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Inicialmente foi realizada coleta automática nos acervos dos jornais a partir da palavra-chave “impeachment”. A coleta foi restrita à editoria de política ou equivalente (e.g. “Poder”). Em um segundo momento foi realizada filtragem manual que excluiu do corpus artigos de opinião e entrevistas, bem como notícias ou matérias que não contivessem nenhuma imagem. O corpus final foi então composto de 597 notícias do jornal O Globo, 476 notícias do jornal FSP e 396 notícias do jornal O Estado de S. Paulo, totalizando 1.469 matérias. O extrato codificado e analisado aqui compreende as notícias publicadas pelos jornais O Globo e FSP em dezembro de 2015, quando da aceitação da denúncia contra a presidenta, e em maio de 2016, período em que ocorre o seu afastamento, após a primeira votação no senado. São 318 notícias, 187 do jornal O Globo e 131 da FSP. A seguir apresentamos os elementos da análise de enquadramento multimodal para então explicitar seus procedimentos metodológicos e discutir os resultados alcançados. Frisamos que nesse primeiro esforço de análise, a intenção principal é aprimorar o dispositivo metodológico mais do que extrair inferências do conteúdo (embora isso também seja feito). 2. Enquadramento multimodal Wozniak et al (2014) defendem que somente uma análise sistemática dos três diferentes modos comunicativos pode aproximar o pesquisador da imagem geral construída pelo noticiário e, ainda, da experiência de recepção multimodal do público. Apesar do reconhecimento de que uma tentativa de padronizar a análise narrativa e visual resulta em alguma perda interpretativa, os autores insistem na padronização por reconhecerem no procedimento a possibilidade de estudar as inter-relações entre quadros, histórias e imagens de um maior número de objetos. Padronizar a análise possibilita também uma análise comparativa entre diferentes veículos. Por fim, abandonar procedimentos subjetivos aumenta a confiabilidade de pesquisas de representações midiáticas de temas de grande circulação (WOZNIAK et al, 2014). A análise multimodal abrange, assim, as representações visuais e textuais da informação, bem como as duas possíveis construções comunicativas da notícia, quais sejam, o enquadramento e a narrativa, conforme ilustra a Figura 1. C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 115 Carla rizzotto; Kelly PrudenCio; rafael SamPaio FIGURA 1 – Análise Multimodal FONTE – RIZZOTTO e PRUDENCIO, 2016. A análise da imagem é realizada a partir de quatro níveis: denotativo, semiótico-estilístico, conotativo e ideológico. Os níveis conotativo e ideológico buscam responder, respectivamente, quais são os significados sociais inseridos nos símbolos e como as imagens são construídas de maneira a moldar a percepção da audiência, porém, tais níveis não são codificados, pois só podem ser respondidos interpretativamente. A análise narrativa se pauta no grau de narratividade, no gênero narrativo e nos papeis associados aos sujeitos presentes na notícia, “características como dramatização e o uso de expressões emocionais definem o grau de narratividade geral em um artigo; indícios de gênero podem nos dizer a que tipo de gênero narrativo um artigo corresponde; e os atores podem ser identificados como cumprindo papéis narrativos particulares [...]” (WOZNIAK et al, 2014, p. 7, tradução nossa). A análise de enquadramento parte da conceituação de Robert Entman (1997), que explica que os quadros da mídia são compostos pela definição do problema, diagnóstico das causas do problema, julgamentos morais e indicação de soluções 2. 3. Resultados A seguir apresentamos a discussão dos resultados alcançados, num primeiro momento os achados de cada nível de análise são interpretados separadamente, em seguida, são feitas as conexões entre eles. 2 O corpus foi codificado seguindo livro de códigos elaborado pelo Grupo de Pesquisa Comunicação e Participação Política (COMPA) da Universidade Federal do Paraná, estando disponível em: http://www.inf.ufpr. br/carla/Livro_de_codigos_impeachment.pdf. Acesso 29 set. 2017. Os testes de confiabilidade foram realizados após o treinamento de nove codificadores, utilizando os índices alpha de Krippendorff e kappa livre de Brennan e Prediger. Optamos por utilizar este índice nas categorias de aparições mais raras uma vez que o Krippendorff’s alpha é bastante sensível à discordância nesses casos, que são frequentes principalmente na análise narrativa e de enquadramento. 116 C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 tudo normal: a deSPolitização no enquadramento multimodal da Cobertura do imPeaChment de dilma rouSSeff 3.1 Análise da imagem A análise do enquadramento visual está baseada na proposta de Rodriguez e Dimitrova (2011). Segundo as autoras, os elementos visuais são bons dispositivos de enquadramento porque as imagens abrem canais para possibilidades discursivas que legitimam e facilitam os fundamentos sobre os quais algumas interpretações são favorecidas e outras são dificultadas. Daí que identificar esses enquadramentos é um trabalho desafiador, pois os métodos são muito diversos e conflitantes. (RODRIGUEZ; DIMITROVA, 2011, p.51). As autoras propõem quatro níveis de análise para os media frames. O primeiro é o nível denotativo, em que os enquadramentos são identificados a partir do levantamento dos personagens, objetos e demais elementos presentes na cena. A tarefa do analista neste momento é responder quem e/ou o quê está sendo representado na imagem. O segundo nível refere-se à identificação dos elementos estilísticos e técnicos, em que são descritos o plano e o ângulo da câmera, uma imagem em close, por exemplo, significa intimidade, enquanto o plano aberto possibilita a visualização do contexto. O nível conotativo (aquele que busca compreender as ideias e conceitos inseridos nas imagens) e o nível ideológico (que responde a quais interesses estão sendo representados) não serão analisados neste artigo. De todas as imagens possíveis nas notícias, apenas fotografias e fotomontagens foram codificadas, sendo, portanto, eliminados os infográficos, desenhos e caricaturas, totalizando 256 imagens. As variáveis que constroem os enquadramentos visuais no nível descritivo são aquelas que identificam as pessoas representadas na foto, a ação que desempenham na imagem e o cenário. Verificou-se que Cunha, Temer e aliados foram representados em 35,5% do corpus e Dilma, Lula e aliados em 30,4%. Comparando os dois veículos, a FSP apresentou uma margem maior entre os dois grupos na pessoa representada, com 29 (27,8%) para Dilma e aliados e 39 (37,5%) para Temer e aliados. No jornal O Globo, essa diferença é de 2% apenas (34,2% a 32,2%) (Gráfico 1). GRÁFICO 1 – Pessoa representada FONTE – COMPA/UFPR C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 117 Carla rizzotto; Kelly PrudenCio; rafael SamPaio Não foi identificado o cenário em 58,59% das fotos e em 25% são de pessoas em ambientes internos. Na variável ação desempenhada o que é mais recorrente são pessoas em estado passivo, quando não realizam qualquer atividade (32%), e em atividades cotidianas flagradas (22%), seguida de apresentação ou discurso (13,28%). Nesse primeiro nível, os índices demonstram que os dois jornais mostraram o impeachment como um acontecimento político ordinário, restrito aos ocupantes dos cargos públicos dos dois grupos, que permanecem em estado passivo ou realizando atividades rotineiras, o que pode ser associado a uma visão de política de gabinete restrita a uma disputa entre os dois grupos, com visibilidade ligeiram ente superior para o grupo pró-impeachment. Para Rodriguez e Dimitrova (2011, p. 54-5), o nível semiótico-estilístico leva em conta as convenções de estilo envolvidas na representação, o que implica em saber como as convenções adquirem significados sociais – como um close significa intimidade, um plano médio significa relação pessoal e um plano aberto significa contexto. As variáveis ângulo e plano mostram que as imagens em sua maioria foram feitas em ângulo normal (81,25%) e plano médio (47,26%). Isso indica ausência de proximidade física, na medida em que o observador não está face a face com os sujeitos. Para Kress & van Leeuwen (1996), as ações e poses retratadas nos enquadramentos criam interação entre o observador e os retratados, o que eles chamam de “atos de imagem”, que se referem aos modos nos quais a imagem solicita “ofertas” ou demandas” de quem as vê. Nesse sentido, as fotos mostram que a interação que se criou se deu entre os personagens dos dois grupos políticos, com pouca visibilidade aos outros atores, indicando distância da política em relação à sociedade. Apesar do plano médio colocar o retratado no mesmo nível do olhar, isso não desperta empatia, mas, pelo contrário, antipatia pelos políticos, na medida em que o aspecto dominante ou ponto focal não está no observador, mas no ambiente político ao redor. Assim, embora as fotografias pareçam protocolares e meramente ilustrativas, nesse nível já é possível perceber o efeito de sentido que provocam os enquadramentos visuais. A imagem abaixo (Figura 2) mostra o padrão da cobertura: personagens dos dois grupos em disputa, retratados em ângulo normal e plano médio, em cenário não identificado, em estado passivo ou atividades cotidianas. 3.2 Análise da narrativa Segundo Wozniak et al (2014), mesmo uma notícia construída seguindo a ordem hierárquica de importância (pirâmide invertida) pode apresentar elementos narrativos. A partir disso, a análise da narrativa jornalística foi sistematizada nesta pesquisa em dois grupos principais de elementos: grau de narratividade e atribuição de papeis. O grau de narratividade é medido com base na dramatização, emoção, personalização, e ornamentação estilística. A dramatização foi codificada como presente nos casos em que, em vez de apresentar a informação no formato de pirâmide invertida, a notícia apresentava uma história contada em ordem sequencial, com início, meio e fim. A emoção, por sua vez, relaciona-se aos sujeitos presentes na notícia. Uma vez que o estado emocional de um ou mais sujeitos tenha sido descrito, ela foi considerada existente. A personalização apresenta histórias contadas com foco nos sujeitos e em suas ações. Por último, a ornamentação estilística aparece quando o estilo literário ou poético é utilizado pelo jornalista, indo além da simples descrição dos acontecimentos. Em 29,2% dos casos analisados a dramatização se fez presente. O seguinte trecho da notícia publicada pela FSP exemplifica esta variável, mostrando que não é incomum a utili- 118 C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 tudo normal: a deSPolitização no enquadramento multimodal da Cobertura do imPeaChment de dilma rouSSeff FIGURA 2 – Cobertura padrão I FONTE - O Globo, 13/12/2015. zação do storytelling pelos jornalistas, inclusive com a inserção de elementos ficcionais que aproximam o discurso jornalístico do literário. O telefone de Michel Temer (PMDB) tocou por volta das 7h30 da manhã. Era o aviso de que havia uma decisão no STF (Supremo Tribunal Federal) para afastar o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), do mandato. […]Temer montou quase de imediato uma equação problemática: se Cunha não era mais o presidente da Câmara, então, quem era? O substituto lhe traria complicações? Seria preciso intermediar uma nova eleição para o comando da casa?3 3 Equipe de Temer reage com alívio e cautela. FSP, 6/5/2016. C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 119 Carla rizzotto; Kelly PrudenCio; rafael SamPaio A emoção, identificada geralmente na descrição especulativa do estado de espírito dos personagens, aparece com ainda mais frequência (36,7%). Ainda sobre o afastamento de Eduardo Cunha, a FSP utilizou fontes em off para descrever as razões que fizeram com que o ministro Teori Zavascki decidisse por afastá-lo: “‘Ele se sentiu desprezado, desrespeitado’, afirma um ministro, explicando os motivos que teriam levado o magistrado a decidir sozinho pelo afastamento de Cunha4.” Quase metade (47,4%) das matérias analisadas apresentava personalização, o que caracteriza um jornalismo mais focado em personagens que em fatos. Nessa direção, a matéria publicada pelo jornal O Globo na ocasião da posse de Waldir Maranhão na presidência da Câmara dos Deputados não abordou as consequências do fato no cenário político, mas tão somente descreveu a história, o currículo e até mesmo os hábitos do político: “De atuação pouco expressiva, Maranhão, depois que a situação de Cunha se agravou, chegou até a mudar de hábitos. Passou a frequentar o cafezinho do plenário [...]5.” O último nível que compõem a análise do grau de narratividade, a ornamentação estilística, foi o que apareceu com menor frequência (18,23%). O número aparentemente baixo de matérias que apresentam trechos cujo objetivo foge do propósito jornalístico - pois entretêm, mas não informam -, porém, é significativo quando observado como característica de um fazer jornalístico que assume a objetividade como valor central (RIBEIRO, 2002; BIROLI, 2007), inclusive adotando procedimentos padronizados conforme apontou Tuchman (1972) no seu clássico estudo sobre os rituais da objetividade jornalística. Em 4 de maio de 2016, O Globo tratou da formação do possível governo interino do então vice-presidente Michel Temer, e no trecho abaixo utilizou recursos poéticos para humanizar o personagem: Um Temer de olhos avermelhados (dormiu às três da madrugada de segunda-feira para terça-feira) os recebia em seu gabinete tendo, à sua esquerda, o quadro com foto oficial de Dilma Rousseff, e, pousadas na mesa de reunião, à sua frente, um exemplar da Bíblia e outro da Constituição 6. Para além dos números significativos nos quatro níveis de análise, chama atenção ainda a diferença considerável entre o grau de narratividade dos dois jornais componentes do corpus da pesquisa, conforme demonstra o Gráfico 3. Com exceção da variável personalização, que apresenta resultados semelhantes para os dois jornais, nas demais a diferença chega a ultrapassar 15 pontos percentuais. O jornal carioca pode então ser caracterizado como dotado de um estilo mais narrativo do que o paulista. Essa conclusão, entretanto, demanda confirmação posterior quando da análise do corpus total desta pesquisa. Os papeis que foram codificados são os de vítima, vilão e herói, mais frequentes em narrativas que possuem o conflito como ponto central da história. Os personagens só foram assim codificados quando possuíam papel preponderante na narrativa. Cada unidade de análise poderia apresentar somente um personagem de cada tipo, e um mesmo personagem não poderia ser codificado em mais de um papel ao mesmo tempo7. Em 38,3% das notícias 4 5 Ministro antecipou voto porque se sentiu “atropelado”. FSP, 6 /5/2016. Presidente interino surgiu no baixo clero, com atuação inexpressiva. Até ontem. O Globo, 10/5/2016. 6 ‘Cortarei no máximo uns três ministérios’. O Globo, 4/5/2016. 7 Isso não significa cristalizar as posições, logo um mesmo personagem pode ser o herói em uma matéria para, logo na próxima matéria, ser retratado como vilão, algo comum em narrativas similares. 120 C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 tudo normal: a deSPolitização no enquadramento multimodal da Cobertura do imPeaChment de dilma rouSSeff GRÁFICO 3 – Grau de narratividade por veículo FONTE – COMPA/UFPR analisadas foram atribuídos papeis aos personagens. A vítima apareceu 13,8% das vezes; o vilão 22,6%; e o herói, 10,6%. O Globo coloca Dilma Rousseff como vítima e Eduardo Cunha como vilão na notícia em que trata da participação de Rousseff em solenidade onde fez discurso em defesa de seu mandato: “A presidente repetiu o que tinha dito no pronunciamento de quarta-feira: não tem conta na Suíça, não cometeu atos ilícitos e, em sua biografia, não há ‘nenhum ato de uso indivíduo de dinheiro público’8.” O mesmo jornal, na mesma data, inverteu os papeis e apresentou Dilma como vilã e integrantes dos partidos PSDB e PMDB como heróis, ao tratar da possível participação dos partidos em um governo de transição: “Aécio repetiu o discurso que vem se firmando no partido [...]: agora a prioridade é tirar o Brasil da crise.”9 O que mais surpreende nos dados coletados é justamente o fato de que Dilma Rousseff é apresentada tanto como vítima quanto como vilã, tendo aparecido como heroína somente uma vez. Na FSP, Dilma foi apresentada como vítima 15 vezes, e outras 04 como vilã; no O Globo apareceu 17 vezes como vítima e 11 como vilã. Vilões frequentes também foram Eduardo Cunha, com sete aparições na FSP e 15 no O Globo, e Michel Temer, quatro vezes na FSP e seis no O Globo. No papel de herói, a frequência maior foi a de grupos anti-Dilma, como o MBL e outros manifestantes, tendo sido citados quatro vezes pela FSP, e Michel Temer, 8 9 Dilma: ‘temos que defender nossa democracia contra o golpe’. O Globo, 5/12/2015. Oposição afina discurso para eventual governo de transição. O Globo, 5/12/2015. C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 121 Carla rizzotto; Kelly PrudenCio; rafael SamPaio visto como herói em três diferentes momentos pelo O Globo, como p.ex. quando tratou da formação de um eventual governo Temer e destacou os elogios que deputados fizeram à postura de Temer, segundo eles, um “lorde”, “gentil” e “agradável”10. 3.3 Enquadramento noticioso A última parte da análise de enquadramento multimodal é análise de enquadramento nos moldes sugeridos por Entman (1993). A primeira variável que verificamos foi o elemento que prepondera no enquadramento. Imaginávamos que nem sempre este componente se relacionaria, explicitamente, ao impeachment, mas que trataria de objetos a ele relacionados, como se evidencia no Gráfico 4. GRÁFICO 4 – Componente enquadrado FONTE – COMPA/UFPR Diante da maneira que se deu a nossa busca, naturalmente a maior parte das matérias (71,7%) se debruçou explicitamente sobre o impeachment, porém nos chama a atenção que outros temas correlacionados, como corrupção, crise econômica e a movimentação dos partidos, foram pouco visitados, estando inclusive abaixo de “Cassação de Cunha”, evidenciando como a disputa “Cunha X Dilma” foi eminente na cobertura. Pelos motivos já elencados, acreditávamos que o ex-presidente Lula poderia ser um tópico por si, o que não se comprovou. Depois, conforme sugerido por Entman (1993), elencam-se os atores que tem maior espaço de fala na notícia (Gráfico 5). 10 122 Ao pé do ouvido. O Globo. 13/12/2015. C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 tudo normal: a deSPolitização no enquadramento multimodal da Cobertura do imPeaChment de dilma rouSSeff GRÁFICO 5 – Atores FONTE – COMPA/UFPR O campo político11 é o principal ator da contenda, ocupando o protagonismo em mais de 60% das matérias, seguido pela sociedade civil (14,4%) 12 e o campo judiciário (20,6%)13. Apesar dos possíveis argumentos econômicos para a saída da Presidenta Dilma, o campo econômico 14 foi quase ausente da cobertura (1,8%)15. Ademais, apesar da pequena diferença, reforça-se que os atores de oposição (34,9%) tiveram mais espaço que os atores em defesa do governo (29,2%). Também desejávamos verificar qual era o sub-tópico ou tema apresentado com mais relevância na notícia analisada (Gráfico 6). 11 Optamos por considerar o campo político de forma mais reduzida, compreendendo-se apenas agentes políticos inseridos no sistema político formal, como partidos, bancadas, parlamentares e políticos. 12 “Sociedade civil” incluiu todo tipo de associação cívica, como movimentos sociais, ONGs, coletivos, sindicatos, grupos de ativismo, grupos ou organizações culturais e religiosos etc. 13 Consideramos diversas instâncias relacionadas ao campo do judiciário, incluindo falas de representantes do Ministério Público, Procuradoria-geral, de ministros do Supremo Tribunal Federal e mesmo falas de juízes de outros tribunais de maneira geral. 14 Por sua vez, o campo econômico era voltado especialmente para vozes de instituições financeiras, industriarias (e.g. FIESP), bancárias, assim como falas de empresários e agentes ou especialistas do mercado financeiro. 15 Reconhecemos que se tratam de visões simplificadoras dos diferentes campos. Frequentemente, diferentes atores podem, inclusive, apresentar visões antagônicas em um mesmo campo ou mesmo disputar o protagonismo em um processo político. Nosso objetivo era criar variáveis simples o suficiente para serem codificadas com confiabilidade e que pudessem nos dar uma visão, ainda que reduzida, do protagonismo dos agentes dos diferentes campos no processo de impeachment. C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 123 Carla rizzotto; Kelly PrudenCio; rafael SamPaio GRÁFICO 6 – Sub-tópico FONTE – COMPA/UFPR A disputa política foi certamente o tema de maior destaque nos noticiários (28,3%), que se ocuparam em relatar as inúmeras disputas de governo e opositores por votos, disputas no judiciário e ações diversas dentro do jogo político. Diretamente dentro do tema, temos matérias com os detalhes do processo de impeachment (20,7%), preocupadas em apresentar o funcionamento e explicitar as regras procedimentais e, logo em seguida, notícias sobre um possível futuro pós-impeachment (18,2%), que incluíam tanto posicionamentos de Temer e aliados com conjunturas sobre um possível futuro governo quanto avaliações de Dilma e aliados sobre um futuro mais apocalíptico para o caso do processo ser aprovado. Apesar de termos algumas matérias repercutindo o impeachment na população e/ou com foco nas manifestações pró e contra impeachment, este não foi um dos temas mais acionados (9,75%). Os três últimos componentes do enquadramento eram os mais complexos para serem apreendidos em notícia pela própria forma do jornalismo brasileiro, que se apresenta mais informativo, menos opinativo e supostamente objetivo. O treinamento buscou justamente averiguar apenas aquilo que estivesse mais explícito no texto, porém consideramos que a seleção de fontes e o espaço dado a estas fontes seriam considerados como critérios de análise. Em primeiro lugar, as causas do problema (Gráfico 7) são indicações dadas pelo jornalista a respeito das razões que originaram o problema em questão. 124 C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 tudo normal: a deSPolitização no enquadramento multimodal da Cobertura do imPeaChment de dilma rouSSeff GRÁFICO 7 – Causas do problema FONTE – COMPA/UFPR A principal causa foram as próprias disputas políticas ou ideológicas do processo de impeachment (44,9%). Logo em seguida, uma parte das matérias tende a identificar que o problema é a própria questão da Legalidade/legitimidade do processo de impeachment (14,4%) e da excessiva interferência do Judiciário (13,5%), mostrando que os questionamentos ao processo em si e das disputas entre os poderes foram noticiados. Em segundo lugar, o enquadramento geralmente envolve algum tipo de julgamento moral (Gráfico 8). Conforme o padrão do jornalismo informativo impresso brasileiro, esperávamos que este código fosse pouco presente e, como dito, avaliamos que este julgamento ocorreu também pela seleção de fontes e citações. GRÁFICO 8 – Julgamentos morais FONTE – COMPA/UFPR Os resultados, dentro do esperado, mostram que a maior parte das matérias não apresentou qualquer tipo de julgamento moral (66%). De fato, boa parte das matérias era des- C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 125 Carla rizzotto; Kelly PrudenCio; rafael SamPaio critiva ou relatava um evento ou acontecimento em específico e não dava voz a opiniões em tom de julgamento. Por outro lado, dentre as matérias que exibiram julgamento, quase 15% do total fez um julgamento que culpava Dilma e aliados. Em seguida, novamente referências a um julgamento moral sobre as disputas e brigas políticas (8.1%), seguido de questionamentos/julgamentos sobre como o impeachment se deu como um instrumento de vingança (7,5%). O julgamento sobre a legalidade e a forma do impeachment foi, por sua vez, pouco presente (3,7%). Por último, Entman define que enquadramentos muitas vezes também apontam algum tipo de recomendação de tratamento ou solução (Gráfico 9). Nosso objetivo era ver se, no conjunto, o impeachment foi ou não apresentado como uma solução. Os resultados indicam que não houve quaisquer recomendações em quase 70% do corpus. Não obstante, em cerca de 20% do total, as matérias indicavam que o impeachment é (foi ou seria) a melhor solução para o problema enquadrado enquanto cerca de metade disso indicava que o impeachment não seria a melhor solução. 4. Discussão e Conclusão A análise multimodal evidencia a sua capacidade de iluminar detalhes e meandros da cobertura política, algo que poderia ficar obscurecido em uma análise mais clássica de enquadramento. Por exemplo, um olhar exclusivo sobre a seção do enquadramento noticioso nos revela apenas uma leve inclinação da cobertura para o lado pró-impeachment (algo reforçado pelo maior número de imagens de oposicionistas), sendo a diferença tão pequena na questão do peso dado aos atores envolvidos que ela poderia ser facilmente atribuída ao maior protagonismo nos acontecimentos gerados por este grupo. Porém, esta situação se altera quando vemos que a narrativa jornalística não deu a chance da presidenta Dilma 126 C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 tudo normal: a deSPolitização no enquadramento multimodal da Cobertura do imPeaChment de dilma rouSSeff GRÁFICO 9 – Recomendação de tratamento FONTE – COMPA/UFPR ser considerada uma heroína que resiste às forças contrárias, mas sim como vilã responsável pela crise política e/ou vítima sendo agredida pelos grupos opositores 16. Em outros casos, a análise multimodal nos dá mais indicativos de como certos acontecimentos foram retratados. Por exemplo, boa parte das matérias considerou a disputa política como causa (44,97%) e como o próprio problema a ser analisado (28,3%). Paralelamente, a análise da narrativa mostrou que quase metade das matérias apresentou alguma forma de personalização, cerca de um terço apresentou traços de emoção (36,7%) e dramatização (29,2%). O cruzamento dos dois níveis mostra que a narrativa jornalística se centrou na briga entre Dilma e seus oposicionistas, que em certas matérias assumiu um caráter mais epopeico, com vilões, vítimas, dramas e emoção, mas que no geral não ia além do jogo político padrão. Análises sobre as repercussões políticas, econômicas e sociais do impeachment, assim como questionamentos de sua legitimidade passaram longe do centro de interesse. Ao pensarmos no cruzamento entre enquadramento e análise visual, temos a impressão de uma cobertura mais morna. Apesar de termos algumas imagens mais chamativas ou mesmo dramáticas, no geral temos imagens mais duras, mostrando políticos em atividades banais e cotidianas (22%). Com a exceção de um pequeno número de imagens representativas de manifestações pró e contra o impeachment, as imagens pouco chamam a aten16 Reconhecemos que, estrategicamente, os atores políticos podem preferir assumir diferentes papéis em diferentes contextos. Por exemplo, nosso código tende a identificar o vilão como um papel, geralmente, negativo, mas, a depender da situação, um personagem ser visto como vilão pode ser vantajoso para sua imagem pública. C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, p. 111-130, set./dez. 2017 127 Carla rizzotto; Kelly PrudenCio; rafael SamPaio ção, valorizando o ângulo normal (81,25%) e plano médio (47,26%). Na prática, elas não se diferem das imagens que usualmente vemos na cobertura cotidiana da política. Dados os diferentes interesses em vista e os inúmeros protestos relacionados ao impeachment, seria fácil apresentar matérias mais impactantes ou até sensacionalistas. Ao considerarmos os três níveis, esta parece ser a primeira conclusão que salta aos olhos. Mesmo se tratando de momento político ímpar, mesmo sob fortes alegações de ter um amparo jurídico fraco, de ser conduzido por um deputado réu no STF e mesmo sendo considerado por vários setores da sociedade como um golpe de estado ou “golpe parlamentar” (e aí, inclusive, a existência de uma forte disputa semântica sobre tal processo poder ser considerado um golpe ou não), a narrativa jornalística do impeachment foi, simplesmente, politics as usual. Foi perceptível que a cobertura dos dois jornais, em nosso corpus, privilegiou um enquadramento do processo de impeachment como um fato ordinário da política nacional, mera disputa política entre grupos rivais. Consideramos que foi uma cobertura “despolitizada”, centrada em grande medida apenas nos atores e disputas episódicas ocorridas ao longo de todo o processo, algo fortemente marcado pela ausência de “julgamentos” ou “soluções”, ou seja, uma ausência de discussão de causas e consequências de um evento de tamanha magnitude. Segundo Vimieiro e Maia (2017, p. 16), dois exemplos apontados pela literatura de despolitização ocorrem, quando há “a retirada ou o apagamento de uma importante questão política do ciclo noticioso da mídia” e/ou quando há um “enquadramento sistemático de uma opção política específica como “senso comum” (como a noção de austeridade fiscal frequentemente aparece em momentos de crise do capitalismo)”. A cobertura do impeachment parece se encaixar bem nesses exemplos de despolitização. Em suma, tratou-se de uma cobertura pouco interessada em verificar as polêmicas e os interesses envolvidos em semelhante ato, assim como pouco afeita a destacar o fato de ser um evento político disruptivo, questionável e com sérios impactos nas instituições brasileiras e na vida dos cidadãos. Como já reconhecido pela literatura de enquadramento, a não cobertura e/ou cobertura não política pode, de fato, privilegiar certos atores, quando não dá suficiente espaço para certas pautas, fatos, análises e, consequentemente, enquadramentos concorrentes. Em suma, o apagamento das disputas, das polêmicas e das grandes questões envolvidas no impeachment, em conjunto com os indicativos de que esses jornais se posicionaram favoravelmente ao impeachment em seus editoriais (GUAZINA et al, 2017; MARQUES et al, 2017), nos permite mostrar que se trata, de fato, de uma cobertura que legitimou o processo. Em outras palavras, uma cobertura “normal” de tal acontecimento político-midiático pode ser, em si, uma estratégia para tornar legítimo e normal esse processo. Referências AZEVEDO, F.A. A imprensa brasileira e o PT: um balanço das coberturas das eleições presidenciais (1989-2006). Revista Eco-Pós, v. 12, p. 41-58, 2009. BECKER, C.; CÉSAR, C.M.; GALLAS, D.; WEBER, M.H. 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