Revista Mídia e Cotidiano
Artigo Seção Temática
Volume 12, Número 3, dezembro de 2018
Submetido em: 15/10/2018
Aprovado em: 19/12/2018
TEORIAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, JACQUES RANCIÈRE E A
“SUBJETIVAÇÃO POLÍTICA”: NOÇÕES DE AGÊNCIA, SUJEITO E
POLÍTICA SOB A PERSPECTIVA ESTÉTICA DA “CENA DE DISSENSO”
SOCIAL MOVEMENT THEORIES, JACQUES RANCIÈRE, AND “POLITICAL
SUBJECTIVAIZATION”: THE NOTIONS OF AGENCY, SUBJECT, AND
POLITICS UNDER THE AESTHETIC PERSPECTIVE OF THE “SCENE OF
DISSENT”
Frederico da Cruz Vieira de SOUZA1; Lucas Henrique Nigri VELOSO2
Resumo: O presente artigo procura apresentar uma crítica às noções de agência, sujeito
e política que edificam algumas teorias sociológicas de movimentos sociais a partir do
conceito de “subjetivação política” de Jacques Rancière. Para tanto, a primeira parte do
artigo apresenta uma revisão de importantes conceitos que norteiam algumas das teorias
dos movimentos sociais de forma a identificar, em contraste com o pensamento de
Jacques Rancière, pressupostos e modelos de sujeito que são tomados como dados ou
necessários para a própria operacionalização das teorias supracitadas. Na segunda e
última parte do artigo, apresentamos a descrição de uma “cena de dissenso”, tal como
promovida pela luta antimanicomial de Minas Gerais. A partir desta cena, almejamos
corporificar tanto a problematização teórica anteriormente realizada sobre movimentos
sociais quanto os próprios conceitos de “dano”, “desentendimento” e “desidentificação”
que sustentam o processo de “subjetivação política” de Rancière.
Palavras-chave: Política; Subjetivação; Estética; Cena de Dissenso; Movimentos
Sociais.
Abstract: This article seeks to present a critique of the notions of agency, subject and
politics that build some sociological theories of social movements from the concept of
"political subjectivation" by Jacques Rancière. To that end, the first part of the article
presents a review of important concepts that guide some of the theories of social
movements in order to identify, in contrast to Jacques Rancière's thinking, assumptions
and models of subject that are taken for granted or necessary for the own
operationalization of the aforementioned theories. In the second and last part of the
article, we present the description of a "scene of dissent", as promoted by the anti-asylum
struggle of Minas Gerais. From this scene, we aim to embody both the theoretical
problematization previously carried out on social movements and the very concepts of
"damage", "disagreement" and "disidentification" that underpin the process of
Rancière's "political subjectivation".
Keywords: Politics; Subjectivation; Aesthetics; Scene of Dissent; Social Movements.
1
Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em
Comunicação Social e Graduado em Jornalismo e em Relações Públicas pela mesma instituição.
2 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e Mestrando em Comunicação
Social pelo PPGCOM da mesma instituição.
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Introdução
As vulnerabilidades, precariedades e violências que atravessam as vidas e mortes
de sujeitas e sujeitos estigmatizados como “loucos” ou “deficientes mentais” ainda se
encontram aquém de ser enfrentadas como um grave problema social e político. O
estigma discriminatório atrelado às pessoas que experienciam algum tipo de sofrimento
mental é considerado como um dos maiores obstáculos sociais à promoção de igualdade
para estes sujeitos. Este atestado apresenta-se como especialmente problemático pois,
para além dos sofrimentos e danos de ordem pessoal, emotiva e psicológica reiterados
pelo estigma da “loucura”, uma intensa desigualdade funcional, material e jurídica é
produzida no sentido de dificultar que os sujeitos e sujeitas em sofrimento mental possam
exercitar sua condição cidadã com paridade de participação em múltiplos campos e
territórios da vida social (STUART, 2005; WORLD HEALTH ORGANIZATION,
2001). Assim sendo, por estes e outros motivos, os movimentos de luta antimanicomial
vêm questionando os regimes de poder e conhecimento que reiteradamente negam aos
sujeitos e sujeitas em situação de sofrimento mental a igualdade social e política que
suspostamente deveriam ser a estes pressuposta e garantida numa democracia.
A partir de revisão bibliográfica realizada acerca da história do movimento de luta
antimanicomial, ainda que tenhamos atestado grande qualidade de reflexão e pesquisa
sobre esta questão, verificamos uma certa tendência na produção acadêmica em realizar
análises histórico-genealógicas sobre este fenômeno político (AMARANTE, 1995;
BARBOSA et al., 2012; DE MESQUITA et al., 2012; GOULART & DURÃES, 2010;
STUART, 2005, VENANCIO, 2012). Este modo de refletir a partir e sobre o movimento
social antimanicomial, pelo menos do ponto de vista interacional que compõe o campo
acadêmico da Comunicação Social, pouco nos revela sobre as práticas e enfrentamentos
que os sujeitos e sujeitas em situação de sofrimento mental vivenciam em seu cotidiano.
A perspectiva teórica acima referida é motivo para que um dos autores do presente artigo
tenha se dedicado a mapear e cartografar, a partir de observação participante realizada
desde meados do ano de 2015 junto aos sujeitos que se agregam enquanto Associação dos
Usuários do Sistema da Saúde Mental de Minas Gerais (ASSUSAM-MG) e Fórum
Mineiro de Saúde Mental do mesmo estado, como os sujeitos e sujeitas protagonistas do
movimento de luta antimanicomial, a partir de suas próprias redes e práticas interacionais,
significam, experienciam e resistem às várias vulnerabilidades, violências e danos que a
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reiteração do estigma da “loucura” produz sobre suas vivências, experiências,
corporeidades e, principalmente, como estas dimensões da existência são moduladas
como resistência e contestação política (VELOSO & MARQUES, 2018).
Com o processo de investigação empírica supracitado, estamos verificando que,
em cenas interacionais das mais cotidianas, mesmo atravessados pelas mais distintas
vulnerabilidades, violências e danos que socialmente investem sob suas corporeidades,
as sujeitas e sujeitos em situação de sofrimento mental promovem deslocamento, tensão
e conflito ao ordenamento social que reitera a distribuição e alocação de espaços, tempos
e funções que oprimem e violentam existências identificadas como “loucas”. Mas o que
agenciamentos, interações e estética destas cenas polêmicas poderiam nos revelar sobre
o sujeito em sofrimento mental e a própria luta antimanicomial? Seriam inferiores ou pelo
menos importantes do ponto de vista teórico, tendo em vista as escalas e dimensões em
que se produzem, do que outras ações promovidas por este movimento social? Caso as
perguntas acima possam ser respondidas negativamente, os conceitos de agência, sujeito
e política que edificam algumas teorias dos movimentos sociais deveriam ser revistos?
O presente artigo procura apresentar, a partir da exposição e articulação empíricoanalítica de algumas das noções que fundamentam o processo de “subjetivação política”
tal como elaboradas por Jacques Rancière (1995, 1996, 2000, 2004, 2010), uma crítica às
noções de agência, sujeito e política que edificam algumas das teorias sociológicas que
abordam sobre movimentos sociais. Para alcançar os resultados almejados,
primeiramente procuraremos colocar em contraste algumas das mais importantes noções
e contribuições teóricas que as teorias dos movimentos sociais trouxeram ao longo do
tempo para o arcabouço teórico das ciências sociais, identificando assim alguns de seus
fundamentos e potencialidades epistêmicas e analíticas. Posteriormente, colocaremos o
trabalho de revisão anteriormente realizado em perspectiva com a teoria de “subjetivação
política” de Jacques Rancière
que, como pretendemos demonstrar, nos permite
problematizar às noções de agência, sujeito e política que sustentam as teorias dos
movimentos sociais apresentadas em conjunto com a própria posição metodológica do
pesquisador que almeja compreender estes fenômenos como processos que podem
emergir a partir de espaços, tempos e arranjos interacionais estéticos dos mais distintos.
Por fim, na segunda e última parte do artigo procuraremos apresentar uma forma de
utilização teórico-analítica do pensamento de Jacques Rancière a partir da descrição e
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exposição de uma “cena de dissenso” promovida pela luta antimanicomial, num espaçotempo às margens dos repertórios e localidades que geralmente se entende como locus
privilegiados da ação política. Com esta descrição, almejamos tanto corporificar a
problematização teórica anteriormente realizada sobre movimentos sociais quanto os
próprios conceitos de “dano”, “desentendimento” e “desidentificação” que sustentam o
processo de “subjetivação política” definidos pelo autor.
Teorias Dos Movimentos Sociais: Uma Crítica A Partir Do Conceito De
Subjetivação Política De Jacques Rancière
Perspectivas sociológicas de enquadramento do conceito de movimentos sociais
e de sua ação política
De acordo com o arcabouço teórico das ciências políticas, a gênese do conceito de
“movimento social” remontaria ao século XIX, sendo sobretudo mobilizada para
caracterizar a ação coletiva dos operários e trabalhadores europeus que se apresentaram
em oposição às assimetrias – principalmente de classe - que se estabeleceram
principalmente como efeito das revoluções industriais na Europa e seus consequentes
ordenamentos sociais e econômicos (ALEXANDER, 1998). Entrementes, a partir da
segunda metade do século XX, a emergência de lutas sociais de gênero(s), raciais,
ambientalistas, antimanicomiais, entre outras, alargaram o espectro das agendas de
reivindicação política nas sociedades ocidentais, apresentando também um desafio
àqueles que se dedicam a compreender estas novas formas complexas e plurais de ação
coletiva (ALONSO, 2009; GIDDENS,1992; CASTELLS, 2013;).
Para Tourraine e Khosrokhavar (2004), por exemplo, a emergência de novas agendas
e formas de luta política que se expressaram publicamente com maior intensidade a
partir dos anos 1960, sobretudo aquelas adjetivadas como “identitárias”, produziram um
deslocamento dos conflitos coletivos do plano econômico para o cultural ou simbólico,
exigindo assim que o próprio conceito de movimento social fosse revisto. No que tange
a esta revisão conceitual, Tourraine e Khosrokhavar definem movimentos sociais como
formas de ação coletiva que almejam buscar o reconhecimento de práticas, estilos de
vida; valores e identidades que, muitas vezes, são marginalizadas e/ou violentados num
dado contexto, sendo assim melhor compreendidos como uma modalidade de desafio
político-simbólico à padrões culturais dominantes.
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No que tange a forma de atuação dos movimentos sociais, Melucci (2001) propõe
que não os consideremos como uma entidade dada a priori na realidade, mas como uma
construção coletiva que implica investimentos contínuos, negociações e acordos entre
seus membros tendo em vista que estes, ainda que se definam por uma identidade coletiva
comum, são um agregado instável de sujeitos políticos que também almejam afirmar sua
própria autonomia individual. Por estes motivo, Melluci propõe que os movimentos
sociais podem ser melhor compreendidos a partir das relações que atravessam estes
coletivos: tanto pelas “redes de solidariedade” que encontram-se inseridos como em
relação aos obstáculos e oportunidades que o Estado e outros grupos sociais a estes lhes
apresentam para agir (MELUCCI, 2001, p.52).
Corroborando com a perspectiva acima apresentada, Sidney Tarrow (2009) dá
especial ênfase na necessidade de analisar as variáveis que um contexto político apresenta
como oportunidades e restrições para a formação e atuação de movimentos sociais.
Considerando a categoria sociológica movimentos sociais como uma modalidade de ação
coletiva, o autor entende que esta seria melhor definida como um desafio coletivo que é
responsivo a incentivos contextuais selecionados como relevantes para o processo de
estruturação da ação de seus membros:
“ (...) o melhor modo de definir os movimentos (sociais) é como desafios
coletivos articulados por pessoas que compartilham objetivos comuns e
solidariedade, numa interação mantida com as elites, os oponentes e as
autoridades (...) os movimentos articulam seus desafios através de uma ação
direta e disruptiva contra as elites, as autoridades, outros grupos ou códigos
culturais (...) o desafio coletivo não é uma única classe de ação, (...) estes vão
desde uma mobilização de incentivos seletivos dos membros (..) formação de
grupos de pressão, negociação com autoridades, questionamento de novos
códigos culturais e através de novas práticas religiosas culturais” (TARROW,
2009, p.21).
Nesse sentido, do ponto de vista de Sidney Tarrow, movimentos sociais não
devem ser caracterizados como entidades cuja existência se encontra dada numa realidade
dissociada de um contexto social e político. Sendo responsivos a oportunidades políticas,
suas próprias redes, recursos e formas de atuação variam segundo alianças e estratégias
de coerção que os grupos desafiados pelos primeiros apresentam num dado contexto.
Sobretudo, cada ação ou decisão tomada por estes grupos em oposição, assim como cada
evento social e político que um contexto apresenta de forma menos ou mais produtiva
para cada um destes, pode criar ou alterar o leque de oportunidades que processualmente
reconfiguram um movimento social em questão (TARROW, 2009, p.27).
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De forma sintética, as perspectivas acima apresentadas nos propõem que: a)
movimentos sociais devem ser encarados como “redes de solidariedade” que visam
questionar opressões e disparidades tanto econômicas quanto simbólicas que são menos
ou mais compartilhadas pelos seus membros; b) são responsivos a incentivos e
oportunidades que outros grupos aliados, opositores e o próprio contexto socio-histórico
apresenta; c) se agregam não apenas a partir de uma identidade social compartilhada a
priori, mas operam segundo um constante processo interacional de negociação de valores,
agendas e objetivos comuns.
Apesar das importantes conceituações e ferramentas analíticas apresentadas
anteriormente, sobretudo quando refletimos acerca da história e nossa própria experiência
interacional com os agentes protagonistas do movimento de luta antimanicomial de Minas
Gerais, verificamos alguns pontos de tensão que poderiam nos apontar a necessidade de
problematizar não apenas a noção de movimento social, mas também alguns dos
fundamentos que sustentam as teorias apresentadas que abordam sobre tal fenômeno. A
partir da argumentação exposta, almejamos marcar que algumas das noções das teorias
dos movimentos sociais são sustentadas por um imaginário de que vulnerabilidades,
violências e danos que necessariamente atravessam as corporeidades que compõem os
movimentos sociais, como explicitamente no caso dos antimanicomiais, parecem ser
consideradas como um impedimento a ser contornado, atenuado ou eliminado para uma
posterior possibilidade de “vitória” destes coletivos em relação aos seus grupos opositores
(BUTLER, 2004, 2015a, 2015b)
Conforme o próprio Sidney Tarrow afirma, os desafios coletivos apresentados por
movimentos sociais como forma de expressão de suas demandas são um resultado da
seleção e construção de “repertórios” de ações políticas que, menos ou mais, foram
eficazes num dado contexto histórico e que, de forma análoga, são reproduzidos como
forma de contestação ao contexto político que visa ser desafiado. Sobre o conceito de
“repertório” tal como mobilizado por Tarrow, este deriva de uma investigação histórico
processual realizada pelo autor Charles Tilly (1995) que atesta certos padrões e estruturas
que recorrentemente se apresentam, por exemplo, em protestos políticos exercidos por
grupos diversos nas sociedades ocidentais. A partir da pesquisa supracitada, Tilly define
“repertório” como um conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e
postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha por parte
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dos integrantes de um movimento social em questão. Ainda que ambos os autores
considerem que estes “repertórios” não sejam simplesmente incorporados pelos
movimentos sociais em seus arcabouços de ação política de forma passiva, é proposto
que, em qualquer ponto particular da história, grupos aprendem apenas um pequeno
número de maneiras de agir coletivamente para expressar seu descontentamento social e
político a fim de que suas pautas e demandas sejam reconhecidas como válidas do ponto
de vista de seus grupos opositores (TILLY, 1995 apud TARROW, 2009, p.26).
Ainda que proponham que movimentos sociais não são formados por indivíduos
que compartilham uma coesa identidade social, nos parece que as teorias que revisamos,
menos ou mais, se sustentam a partir de um modelo de agência e sujeito político que é
tomada como dada ou pelo menos necessária para a teorização da ação coletiva de um
movimento social. Em outras palavras, nos parece que nestas teorias é menos ou mais
tomado como dado que a “epistême” política dos movimentos sociais é idealmente
racional calculista; proposição que corrobora para classificar os sujeitos que se agregam
enquanto movimentos sociais como voltados prioritariamente para processar e analisar
complexas oportunidades de ação que um contexto apresenta a fim de construir “redes de
solidariedade” e “repertórios” de ação coletiva que promovam, estrategicamente e
deliberadamente, menores custos e maior eficiência na ação dos envolvidos. Também,
que os territórios onde ocorrem uma ação coletiva de contestação política são menos ou
mais previsíveis, tendo em vista a busca pela melhor eficácia para a conquista de agendas
e pautas de reivindicação; pressuposto que não apenas desconsidera os conflitos e
relações de poder que atravessam tanto espaços públicos como privados, mas a própria
potência “estética”3. que o criativo, inesperado e o vulnerável possui no sentido de
promover política.
Sob ponto de vista do pensamento teórico e metodológico de Jacques Rancière
(1995, 1996, 2004, 2010), a política produzida não apenas por um movimento social, mas
por grupos e indivíduos dos mais variados, não possuem uma correlação necessária com
a existência prévia de sujeitos racional-calculistas que processam oportunidades de um
contexto para construir receitas ou estratégias de ação coletiva eficazes para a contestação
3 É importante ressaltar que, para Rancière, o termo estética se refere “(...) as condições materiais, lugares
de performance e exposição, formas de circulação e de reprodução, mas também os modos de percepção
dos regimes de emoção, das categorias que as identificam, enfim, dos esquemas de pensamento que as
classificam e as interpretam.” (RANCIÈRE, 2000, p.12)
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de um regime social. Nos parece que, segundo Rancière, é exatamente quando aqueles
entendidos como escravos, aberrações, monstros ou “loucos” emergem numa cena
interacional, expondo as vulnerabilidades, violências e danos a que são socialmente
submetidos, contrariando os regimes estéticos que os alocam em determinados espaços,
tempos e funções sociais, assim colocando em xeque a pretensa igualdade que deveria ser
a todos garantida numa democracia, que a política teria condições de emergir com maior
potência. Por consequência, nestas cenas polêmicas, é a própria exposição do “dano”4
fundamental ao princípio da igualdade, que é encenado a partir de agenciamentos e
performances que desorganizam os regimes estéticos entendidos como dados numa
sociedade, que não apenas uma fratura, ainda que infinitesimal, é promovida nos regimes
de poder que, por exemplo, identificam o “louco” como uma existência que não deve ser
contabilizada pela igualdade democrática. Também, seriam nestas cenas polêmicas que a
própria condição de sujeito pode ou não “vir-a-ser” uma existência política. Assim sendo,
caso consideremos as proposições de Jacques Rancière como válidas, noções sociológicas
e perspectivas metodológicas caras à algumas teorias dos movimentos sociais – como
agência, sujeito e política – necessitariam de importantes problematizações, tanto no
sentido de alargar seu escopo heurístico, quanto no sentido de se revisar a própria posição
do pesquisador diante destes fenômenos.
Jacques Rancière: agência, subjetivação e política como processos a serem
cartografados no seu “vir-a-ser” estético
Conceber as práticas daqueles que não se encaixam e que muitas vezes não querem
ser encaixados num dado ordenamento social vigente como atos com potência de
questionamento das lógicas de justiça, partilha e distribuição que sustentam as mesmas
exclusões, silenciamentos e ininteligibilidades, ainda que tais ações de contestação
ocorram a partir de agenciamentos, corporeidades e performatividades das mais
previamente inimagináveis, nos leva a um duplo compromisso teórico, metodológico e
estético. Ao considerarmos a proposição de Rancière (1995, 2010) de que a “política” é
um tipo de performance, proferimento ou mesmo gesto que desestabiliza um certo regime
de distribuição de papéis sociais, corporeidades e materialidades ( “partilha do sensível”
4 "O conceito de dano (tort) não está ligado a nenhuma dramaturgia de vitimização. Ele pertence à estrutura
original de toda a política. O dano é simplesmente o modo de subjetivação no qual a verificação da
igualdade adquire figura política" (RANCIÈRE, 1995, p.63).
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e ordem “policial”5), a emergência do sujeito que produz a “política”, pode ocorrer e
operar em múltiplas escalas como um processo de agenciamento, uma “subjetivação
política” que, para ser compreendido pelos teóricos, deve ser por estes experienciado para
serem cartografados em sua singularidade:
A política é assunto de sujeitos, ou melhor, de modos de subjetivação. Por
subjetivação vamos entender a produção, por uma série de atos, de uma
instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis num
campo de experiência dado, cuja identificação, portanto, caminha a par com a
reconfiguração do campo da experiência. (..) A subjetivação política produz
um múltiplo que não era dado na constituição policial da comunidade, um cuja
contagem que não era dado na constituição policial da comunidade, um
múltiplo cuja contagem se põe como contraditória com a lógica policial.
(RANCIÈRE, 1995, p.78)
A lógica da subjetivação política não é jamais a simples afirmação de uma
identidade, ela é sempre, ao mesmo tempo, a negação de uma identidade
imposta por um outro, fixada pela lógica policial. A polícia deseja nomes
exatos, que marquem para as pessoas o lugar que ocupam e o trabalho que
devem desempenhar. A política, por sua vez, diz de nomes <<impróprios>>
que apontam uma falha e manifestam um dano. (RANCIERE, 2004, p.121)
Assim exposto, o compromisso teórico metodológico que encontra-se em jogo na
teoria da “subjetivação política” de Rancière é que a emergência da agência, sujeito e da
própria política, conforme exposto anteriormente, se dá quando o pressuposto da
igualdade, este que deveria ser tomado como dado numa sociedade democrática, é
colocado a prova, em questão, pela própria ação. Em outras palavras, da perspectiva de
Rancière, poderíamos compreender a “política” que produz os agentes de um movimento
social não simplesmente porque sua ação visa a promoção da igualdade, mas pela própria
exposição performativa que os mesmos fazem de sua condição existencial, esta que nos
leva a verificar que os mesmos não estão sendo tratados como iguais; exposição, portanto,
de um “dano” social que não deveria existir num contexto verdadeiramente democrático
e que, por este motivo, produz uma “cena de dissenso”:
Segundo Rancière, a subjetivação produz e é fruto de cenas polêmicas, nas
quais não há mais uma correspondência exata entre nomes, ações,
temporalidades e espacialidades. Tais cenas são criadas para tratar um dano
associado ao não cumprimento de um pressuposto de igualdade que
pretensamente deveria fazer com que todos os indivíduos fossem capazes de
5 “Eu defini a polícia como uma forma de partilha da sensível, caracterizada pela adequação imaginária dos
lugares, das funções e das maneiras de ser, pela ausência de vazios e suplementos. (...) Polícia, para mim,
não define uma instituição de poder, mas um princípio de partilha do sensível no interior da qual podem
ser definidas as estratégias e as técnicas do poder.” (RANCIÈRE, 2010, p.78).
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participar de ações e atividades políticas. (MARQUES & PRADO, 2018,
p.137)
A “cena polêmica” pode ser percebida como uma forma de experimentar o tempo:
uma possibilidade de ligar diretamente o tempo da experiência vivida, ao tempo como
estrutura simbólica, permitindo que um indivíduo sobrecarregado por um excesso de
ocupações participar em outras atividades. Esse é o desafio que a igualdade nos coloca.
Paralelamente, como indicado acima, uma cena precisa redefinir os modos de
disponibilização e circulaçao das palavras e dos discursos: ela se configura pelo excesso,
pelo suplemento, por aquilo que deborda os lugares e tempos fixados pela ordem policial.
Esse excesso é o que vai caracterizar também a emergência dos “sem-parte” e o processo
de “desidentificação” que os define. Assim, consideramos necessário enfatizar o quanto
a noção de “cena dissensual” está vinculada ao trabalho criativo e resistente dos “semparte”, assim como assinala Rancière (p.125):
Os sem-parte têm que construir uma cena polêmica para que os barulhos que
saem de suas bocas possam contar como proferimentos argumentativos. Essa
situação extrema nos lembra o que constitui a base da ação política: certos
sujeitos que não contam criam uma cena polêmica comum onde colocam em
discussão o status objetivo do que é dado e impõem um exame e discussão
dessas coisas que não eram visíveis ou consideradas anteriormente.
Uma segunda dimensão da cena de dissenso, esta que também possui um traço
metodológico, é sua associação ao que Rancière define em “Os nomes da história”, como
poética do conhecimento, ou seja, invenções de formas de linguagem - similares a todas
as outras – através das quais se pode “inventar a cena na qual palavras ditas se tornam
audíveis, objetos se tornam visíveis e indivíduos podem ser reconhecidos”. Essa é a
poética da política: o trabalho de invenção, fabulação das cenas dissensuais pelos “semparte”. Nesse sentido, a cena de dissenso em Rancière é composta pelo entrelaçamento
de três gestos políticos específicos: tratameno do dano (status objetivo de verdades
naturalizadas, desigualdades e assimetrias); partilha dissensual do sensível (redefinição
do que poder ser visível, enunciável e pensável) e desidentificação (afastamento das
identidades sociais impostas e das temporalidades rígidas que definem quem pode ou não
participar da comunidade sensível da política).
Conforme procuramos expor até aqui, o pensamento de Jacques Rancière não
apenas nos convoca a estudar processos políticos em seu “vir-a-ser”, ou seja,
desnaturalizando termos como agência, sujeito e política como noções apriorísticas que
universalmente categorizam ou explicam racionaldiades, corporeidades, agenciamentos,
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práticas e territórios que se relacionam agonísticamente numa luta por justiça. Ainda e
principalmente, a radicalidade do pensamento de Rancière nos demanda um movimento
metodológico de procurar cartografar, descrever e compreender como “cenas de
dissenso” promovidas pela ação política de certos sujeitos colocam não apenas o
pressuposto da igualdade democrática em xeque, mas o próprio lugar daqueles que se
propõem a pesquisar sobre a emergência da política e sua relação com ordenamentos
“policiais”. Movidos por esta proposição, procuraremos verificar, a partir da descrição de
uma possível “cena de dissenso”, promovida às margens do próprio movimento de luta
antimanicomial, em que sentido as proposições que acima apresentamos podem ser
mobilizadas no sentido de compreender os próprios desafios e potencialidades dos
próprios sujeitos e sujeitas em situação de sofrimento mental.
Política às margens da luta antimanicomial? Uma tentativa de operacionalização do
método da igualdade a partir da cartografia de uma “cena de dissenso”
Fora dos holofotes midiáticos e de algumas teorias das ciências políticas, os
múltiplos processos e territórios interacionais que constituem as dinâmicas de um
movimento social, ainda que atravessados por distintas vulnerabilidades, violências e
danos, ainda que contando com precárias “redes de solidariedade” e “repertórios” de ação,
tendem a ser desconsiderados como fenômenos menores. O processo de construção do
dia de luta antimanicomial em Belo Horizonte, por exemplo, fora iniciado no dia 19 de
janeiro do ano de 2018 para que, no dia 18 de maio, pudesse ter sido performado como
um protesto político de grande escala. Mas o que este processo de construção do dia de
luta antimanicomial poderia nos revelar sobre a própria “subjetivação política” das
sujeitas e sujeitos que se agregam enquanto movimento social?
Movidos pela questão acima levantada, um dos autores do presente artigo pôde
experienciar um evento fundamental para o próprio processo de estruturação da
performatividade que viria a se atualizar como protesto de luta antimanicomial. A partir
da presença nas reuniões mensais do Fórum Mineiro de Saúde Mental, fomos convidados
para, no dia 14 de Abril de 2018, no Centro De Referência em Saúde Mental do bairro
São Paulo (CERSAM-Nordeste), acompanhar um evento no qual agentes trabalhadores
do setor de saúde pública do Estado, em conjunto com usuários e usuárias da rede de
atendimento à saúde mental do SUS, viriam realizar a seleção do “samba enredo”,
“mestre-sala” e “porta-bandeira” do protesto de luta antimanicomial. Graças a
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oportunidade de acompanhar tal evento, foi possível experienciar e mapear essa
“marginal” etapa do processo de construção do dia de luta antimanicomial, atentos para
compreender como redes, agentes e modalidades corpóreo-expressivas que lá se
encontrariam poderiam se relacionar com o processo de “subjetivação política” tal como
proposto por Jacques Rancière e que anteriormente apresentamos. Como forma de
expressar os componentes e vetores interacionais que no contexto anteriormente referido
se agenciaram, procuramos tentar produzir uma descrição de uma “cena polêmica” que
constituiu tal evento de forma a colocar o “método da igualdade” proposto por Rancière
em operação prática.
O evento que aqui narramos no CERSAM da região Nordeste do município de
Belo Horizonte, instituição que integra a rede de atendimento de saúde pública da
prefeitura da cidade e SUS, iniciou-se na entrada de uma quadra de esportes interna a
própria instituição quando foi possível encontrar com as várias pessoas que já se
encontravam presentes para o evento. Cada um dos usuários e usuárias de pelo menos 7
Centros de Referência de Atendimento à Saúde Mental (CERSAM) presentes, pudemos
descobrir, viria a participar de um concurso onde se definiria o “samba-enredo”, “rainha
de bateria”, “mestre-sala” e “porta-bandeira” do protesto do dia de luta antimanicomial.
Por esta expectativa compartilhada da agenda do evento, os usuários do sistema de saúde
mental presentes se dividiam em pelo menos dois blocos: aqueles que participariam
diretamente destes concursos e por isso estavam preparando seus repertórios expressivos
(letras de música, passos de dança, fantasias de carnaval) e aqueles que se encontravam
nas arquibancadas da quadra de esportes tanto para acompanhar o concurso como torcer
para os concorrentes segundo seus próprios critérios de afinidade.
Em paralelo as atividades acima descritas, pudemos notar que quem organizava a
distribuição de elementos do espaço e a agenda do evento eram sobretudo os
trabalhadores do setor de saúde pública do Estado que se encontravam presentes não
apenas na organização do evento, mas na fabricação de fantasias de carnaval, pinturas e
camisetas, fornecimento de transporte e inclusive alimentação para os usuários e usuárias
do sistema de saúde mental presentes. Tal organização, tal divisão de corpos e funções,
parece já anunciar uma “partilha dissensual da sensível” em relação ao contexto social
mais amplo. Ao deslocar o papel do sujeito de sofrimento mental da identidade do “louco”
que deve se submeter as instituições manicomiais, aos suplícios farmacológicos e
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corpóreos, estes que historicamente foram reiterados por agentes do conhecimento
médico respaldados pelo próprio Estado.
A sequência de eventos que marcariam os preparativos finais e as comemorações
do processo de construção do dia de luta antimanicomial de Belo Horizonte no contexto
CERSAM-Nordeste se deram da seguinte forma. Primeiramente, dois funcionários do
sistema de saúde do SUS, devidamente caracterizados em trajes carnavalescos,
assumiram a tarefa de organizar os acontecimentos vindouros. Em sua performance
interacional, estes agentes se comportaram tanto como “apresentadores” dos
acontecimentos que ocorreriam como “animadores” dos públicos que estavam presentes,
principalmente no sentido de convidar a nós que estávamos na plateia a bater palmas,
cantar músicas e dançar junto aos protagonistas das atrações performadas no centro do
palco. Assim, seguindo a estruturação proposta destes “apresentadores-animadores”, o
concurso de seleção da rainha de bateria, mestre-sala, porta bandeira e samba enredo que
viriam a compor os protestos vindouros do dia de luta antimanicomial se iniciara6.
Imagem 1 evento de seleção do “samba-enredo”, “mestre-sala” e “porta-bandeira” do protesto de luta
antimanicomial de 2018 – – imagem fotográfica produzida por um dos autores
6
Cabe ressaltar que este processo de seleção se deu a partir de uma “banca de jurados”, esta que atribuiria
notas diferenciadas aos participantes segundo parâmetros previamente acordados de avaliação. Como não
pude acompanhar os processos interacionais que permitiram a construção desta banca, atenho-me aqui a
analisar as performances que testemunhei a partir dos efeitos que estas despertaram tanto em mim quanto
no público presente. Entrementes, uma das regras claras do concurso era que somente usuários e usuárias
dos centros de saúde poderiam competir no evento.
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No processo de seleção da rainha de bateria, mestre-sala e porta bandeira, pelo
menos um representante de cada um dos CERSAMs presentes poderia realizar uma
performance de dança, acompanhada por uma trilha musical, para concorrer aos papéis
supractiados. Nesta performance, corpos e corporeidades marcadas pelo gênero (maior
parte mulheres), raça (maior parte negros), classe (roupas e adereços que, em referência
a um certo sistema simbólico, poderiam ser classificadas como precários), encontraram
contexto para figurar como protagonistas do palco da quadra de esportes, em primeiro
plano, sobre os holofotes. Em contrapartida, nesta distribuição estética de corpos, tempos
e espaços, os demais atores desta cena, agentes do Estado, familiares, e inclusive
pesquisadores, ficaram na plateia, sendo afetados pela performatividade dos usuários e
usuárias protagonistas do contexto e afetando, por sua vez, a partir de gestos, aplausos,
sorrisos e lágrimas.
Mesmo que em escala infinitesimal, as performances dos usuários e usuárias do
sistema de saúde mental certamente contestaram com os papeis e rotulações sociais que
desconsideram a singularidade de suas capacidades de afetar e serem afetados, de falar e
serem ouvidos, produzindo de certa forma o momento da “política” descrito por Rancière.
Não era a técnica ou a capacidade de reproduzir modelos ideais de “rainhas de bateria”,
tal como reiterado pelas mídias nas coberturas do carnaval brasileiro, que estava sobre
avaliação. Pelos efeitos interacionais, o que pudemos inferir como parâmetro de
atribuição de reconhecimento englobante neste contexto era a capacidade das usuárias e
usuários do sistema de saúde mental se expor perante o público presente e remodelar
aquilo que antes eram corporeidades e signos estigmatizados como vetores de produção
de afecções potencializadoras das outras corporeidades presentes.
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Imagem 2: seleção da “rainha de bateria” do protesto de luta antimanicomial de 2018 – – imagem
fotográfica produzida por um dos autores
Entretanto, neste contexto em que diversos agenciamentos corpóreos, simbólicos
e afetivos pareciam produzir uma “partilha dissensual da sensível”, esta que reorganizava
os espaços, tempos e funções que cotidianamente são reiteradas como menos ou mais
legítimos para os “loucos”, agentes do serviço de saúde pública do Estado e outros corpos
presentes ocuparem, uma cena polêmica irrompe. Entre a seleção de “mestre-sala”,
“porta-bandeira”, “rainha de bateria” e a grande festa de comemoração da escolha do
“samba-enredo” do dia de luta antimanicomial, os “apresentadores-animadores” do
evento propuseram a seguinte dinâmica: um microfone, aberto a todos os presentes,
poderia ser utilizado para dar recados, declamar poesias ou cantar músicas. A partir deste
convite a performances estética inesperadas, foi possível notar que diversos usuários e
usuárias do sistema de saúde, principalmente aqueles que estavam na plateia, começaram
a formar uma extensa fila para mobilizar o microfone disponibilizado segundo seu próprio
desejo.
A cada apresentação de depoimentos, poesias e músicas, estas que infelizmente
não teremos espaço para compartilhar nesta ocasião, mais e mais pessoas se mobilizaram
para acessar ao microfone. O ápice de tal desejo de se expressar, de se fazer ouvir, foi
quando um dos usuários começou a cantar uma música “funk” no microfone, sem ceder
sua vez, até que sua performance fosse realizada por completo. Neste momento, uma
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intensificação de movimentos de danças e cantos, cada vez mais acelerados pelo ritmo do
“funk”, iniciou um processo de completa “desorganização” da fila de acesso ao
microfone. Não interessados mais no ordenamento do evento e nas próximas etapas de
seleção, grande parte da plateia de usuários e usuárias tomou o palco. Corporeidades
dançantes, das mais irreverentes, distintas e inesperadas, formaram a cena. Uma disputa
pelo microfone, a fim de cantar outras músicas “funk”, “sertanejas” e de “rap” se iniciou.
Como este processo se intensificava cada vez mais, os “apresentadores-animadores” do
evento, trabalhadores dos serviços de saúde mental do Estado, atrelados às suas funções
e agendas, interromperam o “caos” que parecia se formar.
Por um lado, a “cena dissensual” acima descrita parecia tornar indiscerníveis não
apenas as identidades dos presentes, mas também suas funções e papéis sociais,
promovendo assim um intenso “desentendimento” e “desidentificação”. Ao
demonstrarem a múltipla possibilidade de performances que podem vir a emergir num
contexto em que a igualdade parecia ser um pressuposto compartilhado, no sentido de
que não havia nenhuma ação ou “repertório” menos ou mais legítimo a ser produzido no
palco interacional supracitado, foi expressada a própria radicalidade da igualdade por
aqueles que emergiram como os “sem-parte” do próprio evento. Por outro lado, o discurso
a favor do ordenamento, da estabilidade, de um certo regime estético e espaço-temporal,
exigira o fim do microfone aberto e posterior retorno as atividades que eram esperadas a
ser exercidas por todos os presentes. Nesse sentido, outra “partilha da sensível” fora
instaurada, ainda que um “dano” àquelas performatividades radicais tenha que ter sido
realizado no sentido de definir os limites da igualdade de participação supostos naquela
ocasião. Porém, ainda que o ordenamento das múltiplas corporeidades e papéis sociais
sejam de certa forma inescapáveis em qualquer sociedade, como afirma o próprio
Rancière, existem “policias” melhores que outras, como as que certamente emergiram no
evento que brevemente narramos.
Reflexões finais
O presente artigo procurou produzir, a partir do agenciamento de alguns dos
conceitos teóricos e metodológicos que compõem o pensamento de Jacques Rancière,
uma problematização das noções de agência, sujeito e política que se encontram
pressupostas em teorias sociológicas que abordam sobre movimentos sociais. No
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primeiro momento do artigo, a partir de uma breve revisão bibliográfica, verificamos que,
ainda que movimentos sociais tenham sido considerados por muitos autores como
processos interacionais formados por agentes que não possuem uma identidade social
compartilhada de forma coesa e homogênea, que operam a partir de “redes de
solidariedade” e processam oportunidades políticas de um contexto para assim produzir
“repertórios” de ação de contestação com menores custos e maior eficácia, nos parece
que um modelo de sujeito e de epistême política é simultaneamente reiterado por estes.
Por este motivo, num segundo momento do artigo, procuramos a partir da reflexão
do processo de “subjetivação política” tal como proposto por Rancière, tanto alargar o
conceito de sujeito e agência política como também aumentar nossa sensibilidade de
mapear os momentos em que a própria política emerge. Por um lado, verificamos que,
para Rancière, a política pode vir a se manifestar tanto a partir de um protesto,
performance ou mesmo um gesto interacional de acordo com sua potência de
desestabilizar os regimes e hierarquias que ordenam a distribuição de espaços, tempos,
corporeidades e funções; situação que propicia então a emergência de uma “cena
dissensual”. Ainda, que a potência da política numa democracia é colocar em xeque a
incapacidade de certos regimes que partilham o sensível de promover a igualdade que
necessariamente deveria ser pressupostas a todos numa democracia. Nesta perspectiva, a
ação política e o sujeito político emergem, sem estar descolados de sua historicidade e
corporeidade, a partir da exposição do “dano” que foi promovido pela negação de
igualdade a uma dada forma de existência. Não obstante, ao mesmo tempo que alargamos
o espectro do que pode vir a ser considerado como política, também somos implicados,
como pesquisadores, a mapear a política em ato, não tomando esta como diretamente
relacionada a certas ações promovidas a priori por alguns grupos e subjetividades em
detrimento de outras.
Assim sendo, levamos as considerações acima expostas e outras para o plano
empírico, visando verificar como o pensamento de Jacques Rancière nos auxilia na
cartografia da política da luta antimanicomial, a partir da descrição de uma “cena de
dissenso”, experienciada num evento às margens dos territórios que geralmente
acreditamos atuar um movimento social. Nesta ocasião, verificamos como agenciamentos
corpóreos e estéticos, produzidos entre usuárias e usuários do sistema de saúde mental
em relação com agentes e instituições do próprio Estado, puderam anunciar outras formas
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de distribuição de espaços, tempos e funções sociais de forma a contestar os regimes de
percepção e inteligibilidade que condena as pessoas violentadas pelo estigma da loucura
a existências “sem-parte” no contexto social mais amplo. Não obstante, apesar dos
deslocamentos, tensões e fraturas à ordem social mais ampla, verificamos que a
intensificação do desejo de alguns dos presentes de produzirem uma performatividade de
grande intensidade, que não responde a “repertórios” de ação normatizados, a
expectativas compartilhadas de comportamento, produziu um certo momento de “caos”
estético. Talvez, nesta cena polêmica, onde a “desidentificação” e o “dissenso”
emergiram para posteriormente serem contidos por uma ordem “policial”, tenha sido
possível concluir que uma das potências políticas de uma performatividade “esquizo”
produz momentos em que, de forma inesperada, o pressuposto da igualdade é
radicalmente colocado em questão.
Para o filósofo Peter Pál Pelbart, as “subjetividades esquizas” dos supostos
“loucos” ocupam um território ao mesmo tempo em que o desmancham. Nesse sentido,
dificilmente elas entram em confronto direto com aquilo que recusam, não aceitam a
dialética da oposição - sabem estar submetidas de antemão ao campo do adversário. Por
isso, elas “deslizam, escorregam, recusam o jogo ou subvertem-lhe o sentido, corroem o
próprio campo e, assim, resistem às injunções dominantes.” (PELBART, 2002, p.34).
Dessa maneira, os “esquizos” nos convidam a aprender sobre igualdade e política a partir
de cenas-experimentações onde categorias, pressupostos e normatividades “policiais” são
colocadas em sério questionamento. Com isso, não queremos afirmar que o ordenamento
e normatividade do social são um problema em si. Mas que, conforme os diversos agentes
da luta antimanicomial constantemente nos lembram, existem “polícias” melhores que as
outras, assim como “comuns” mais igualitários que outros.
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