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Editorial #5 Os editores O dossiê temático, os ensaios e a entrevista O dossiê temático deste novo número da Aniki volta a abordar questões fundamentais da atual discussão académica na área da imagem em movimento. O editor convidado é Paulo Cunha, investigador com uma obra central na renovação dos estudos sobre a cinematografia portuguesa. O conjunto de textos que organizou para este número da Aniki circula à volta da pergunta “O que é o cinema português?”. Esperando que se possam lançar possíveis respostas, o editor apresenta algumas das conclusões em texto autónomo no início da respetiva secção. A secção de Ensaios da Aniki recebe permanentemente submissões fora do tema do dossiê. Neste número, esta secção conta com dois textos. Em “Ética e estética: o papel da indexação na recepção de um filme”, Bertrand de Souza Lira, recorrendo a uma consistente base teórica assinada por Bill Nichols, Noël Carrol, Fernão Pessoa Ramos e Manuela Penafria, propõe-se analisar o já clássico debate conceptual sobre o cinema de não-ficção na fronteira híbrida entre documentário e ficção. O autor pretende destacar algumas das questões éticas levantadas no âmbito da produção de não-ficção, chamando a atenção para o papel que o espectador tem neste campo, principalmente para a leitura que o espectador faz das imagens em movimento. Nessa fronteira híbrida, constata que a teoria cinematográfica tem facilmente caído em deslizes de género, seja porque se considera que todo o filme, de ficção e de não-ficção, é documental, seja pela defesa da tese contrária, de que todo o filme, incluindo o documental, fabuliza e dramatiza uma determinada realidade. A classificação pode ainda estar longe de uma rigorosa demarcação conceptual, mas o debate permanece atual e aceso. Através de uma análise de “A queima”, realizado pelo brasileiro Diego Benevides, o autor pondera os argumentos quer da tese de autonomismo ético, quer de eticismo relativamente ao filme documentário (que, na sua definição genérica, tem um forte compromisso com uma “verdade”). Tal como o autor analisa em pormenor, ao classificar “A queima” como documentário, Benevides intencionalmente joga com as expectativas do espectador. Desse modo, o realizador conduz a “leitura documentarizante” que o espectador fará da obra. Assim, ainda que o modelo de produção seja adequado ao documentário (atores não profissionais, exposição da vida tal qual, precedência das personagens relativamente à narrativa, unidade espácio-temporal, etc.), a Aniki vol.3, n.º 1 (2016): 1-4 | ISSN 2183-1750 doi:10.14591/aniki.v3n1.230 EDITORIAL | 2 obra é o resultado do poder fabulador da imaginação de criar mitos. Deste modo, o autor conclui que a defesa de uma posição ética de autonomismo, segundo a qual uma obra de arte deve ser avaliada unicamente por critérios estéticos, reforça a vulnerabilidade do espectador: ainda que a classificação de um filme possa conduzir a leitura que se faz, o realizador deve sempre a revelação da “verdade” ao seu espectador. Por outro lado, em “De la práctica a la teoria: la escritura de manifiestos y la expresión estética”, Silvana Flores estuda a importância dos manifestos estéticos na prática artística e cinematográfica no contexto da América do Sul. Historiando a função social e contestatária do manifesto desde o final do século XIX, Flores salienta a sua relação com as vanguardas artísticas da América latina para se concentrar depois, especificamente, na “produtividade teórica” do cinema moderno e, em particular, do chamado “novo cinema latinoamericano”. Partindo de análises de textos dos brasileiros Glauber Rocha, Alex Viany, do cubano Julio García Espinosa, e dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino, escritos entre os anos 1950 e 1960, Flores argumenta que estes “teóricos de emergência” procuraram não apenas demonstrar os princípios estéticos que nortearam a sua respetiva produção cinematográfica, mas também avançar propostas concretas de transformação das realidades sociais e políticas circundantes. O cruzamento entre estética e política sugerida por estes manifestos explica, segundo Flores, a predileção de vários realizadores pelo filme-ensaio, que a autora sugere seja entendido como uma extensão cinematográfica daqueles textos escritos. Estes filmes ilustrariam, assim, o desdobramento do realizador nas figuras do pensador teórico e do artista, o que afastaria a prática do cinema moderno do mero entretenimento, radicando-o antes na linhagem dos grandes movimentos artísticos do século XX que questionaram a autonomia do campo artístico. A secção de Entrevistas volta a articular-se com o dossier temático editado por Paulo Cunha, apresentando uma entrevista com o cineasta português José Fonseca e Costa, conduzida pelos investigadores Sofia Sampaio, Filipe Luz e Gonçalo Mota. Esta conversa fixa um encontro, em 2015, com um dos protagonistas do novo cinema português e terá sido uma das suas últimas entrevistas antes da sua morte, em novembro desse ano. O foco deste encontro está centrado em dois filmes feitos por encomenda – ...E era o Mar (1966) e A Cidade (1968) – e que funcionam como um processo de aprendizagem que seria comum a muitos dos novos autores dos anos 60. Durante o seu discurso, Fonseca e Costa desvenda as aventuras e as peripécias do processo criativo e do caldo cultural onde o realizador estava inserido e que parece ser uma das sementes mais importantes do movimento de renovação do cinema português. 3 | OS EDITORES As recensões de livros e conferências A abrir a secção dedicada a recensões de livros e conferências temos, nesta edição, um texto assinado por Miguel Mesquita Duarte relativo a Jean-Luc Godard, Cinema Historian (2013) de Michael Witt. Duarte considera que a abordagem de Witt à prática godardiana não tem o arrojo conceptual de autores como Didi-Huberman, Jacques Aumont, ou Raymond Bellour, mas que este se trata de um trabalho cuidadoso que logra alcançar os dois objetivos principais delineados pelo autor. Tanto demonstra que as Histoire(s) du Cinéma integram contaminações importantes com o trabalho cinematográfico produzido por Godard no período da conceção do projeto como ilumina o sentido de algumas das mais importantes proposições contidas nas Histoire(s) através de uma análise sistematizada dos seus temas, influências e genealogias. João Luís J. Fernandes leu Cinema Beyond Territory. Inflight Entertainment and Atmospheres of Globalisation (2014), de Stephen Groening, o qual aborda a relação entre o cinema e a aviação mostrando que a omnipresença do ecrã se estende também ao espaço aéreo e à cabine dos aviões. Considera o autor que o estudo de Groening aborda temas pertinentes para desenvolvimento futuro além de constituir-se como um exercício relevante de discussão das múltiplas faces da globalização e mais especificamente sobre a presença dos ecrãs e a experiência do cinema a bordo como “espaço digital de escolhas pessoais” cujos conteúdos “balançam entre a valorização das culturas, da língua e das paisagens nacionais, e a promoção da cultura transnacional na qual assenta o atual sistema económico liberal”. Carlos Natálio fecha a parte dedicada às recensões assinando a sua leitura de O Espectador (In) Visível – Reflexividade da óptica do espectador em Inland Empire de David Lynch (2013), livro que atualiza a tese de mestrado em Ciências da Comunicação, da autoria de Fátima Chinita. Natálio sublinha que, além da reflexão sobre o uso do digital por David Lynch, parte das virtudes deste “competente” estudo lynchiano resulta da recuperação de alguns instrumentos conceptuais do estruturalismo metziano e da análise linguística, caídos num certo desuso em termos de estudos fílmicos. Lucas Tavares Neves recenseou o colóquio internacional “António Reis e Margarida Cordeiro, cineastas excêntricos”, que se realizou em Paris a 3 e 4 de junho de 2015, desdobrando-se entre o Centre Georges Pompidou, que projetou a longa-metragem Trás-osMontes (1976) e a Fundação Calouste Gulbenkian, a qual acolheu as comunicações de vários especialistas portugueses e franceses sobre a obra do casal de cineastas. Este colóquio assumiu o propósito de contribuir para a redescoberta da cinematografia de Reis/Cordeiro tendo os seus organizadores fixado a obra numa genealogia e perspetivado as suas reverberações. A recensão de Raquel Schefer ao painel “(R)evoluções e Transições Revisitadas – O Fim do Império Colonial Português em EDITORIAL | 4 Representações Cinematográficas da Lusofonia (1974-2014)”, no âmbito do “XI Congresso da Associação Alemã de Lusitanistas”, que aconteceu na Universidade Técnica de Aachen, na Alemanha, a 17 e 18 de setembro de 2015, encerra esta secção. Com o propósito de analisar as “representações cinematográficas de acontecimentos relacionados com o fim do colonialismo nos países de língua portuguesa” (Pinheiro e Stock 2015) e de examinar “novas interpretações do passado suscetíveis de fazer sentido no presente” (Ibid.), o painel reuniu nove apresentações de especialistas internacionais que refletiram sobre o processo de descolonização e suas representações audiovisuais. As exposições e festivais A secção Exposições e festivais conta, neste número, com duas contribuições, assinadas pelos investigadores brasileiro Wagner Morales e americano Noah Teichner. O primeiro passa em revista a exposição em torno do trabalho da artista e teórica alemã Hito Steyerl, decorrida no Artists Space de Nova Iorque entre março e maio de 2015; o segundo reflete sobre a forma como a retrospetiva Buster Keaton, organizada pela Cinémathèque Française entre abril e junho do mesmo ano, nos permite repensar as narrativas dominantes em torno da sua carreira. Autora de diversos ensaios fílmicos e de vários textos incontornáveis – entre os quais o já célebre “Em defesa da imagem pobre” –, Hito Steyerl apresentou em Nova Iorque oito trabalhos existentes, bem como uma instalação especialmente pensada para a galeria do Soho. Wagner Morales discute não só os trabalhos apresentados, mas a própria montagem da exposição (mais tarde apresentada em Paris num contexto bastante diferente) e a forma como esta explora a questão da fluidez e dos fluxos. Por seu lado, Noah Teichner recorda a forma como Buster Keaton é ainda sistematicamente pensado como um humorista mudo, apesar da sua prolífica obra sonora. Apoiandose sobre a parca e datada literatura crítica sobre esta fase mais tardia da carreira de Keaton (e ignorando os apelos que os Cahiers haviam já formulado nos anos 60), a retrospectiva realizada na Cinémathèque française relegou também para uma pequena secção uma amostra reduzida dos trabalhos sonoros de Keaton, projetados uma única vez e quase sempre a partir de suportes videográficos. Apesar do esforço feito para mostrar os filmes que Keaton realizou nos anos 1930 para a MGM, os filmes e curtas-metragens produzidos para a Educational Pictures (1934-1937) e para a Columbia (1939-1941) não foram exibidas, o que Teichner deplora, uma vez que, devidamente contextualizados, estes trabalhos permitem repensar radicalmente a trajetória singular de Keaton.