Editorial nº 5: Revolução e Contrarrevolução
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Chegamos à Quinta Edição da Revista Fim do Mundo ainda em meio
à luta por sobrevivência frente a maior crise social e sanitária da história da
humanidade. Os dilemas de um ano e meio de pandemia submeteram os
trabalhadores ao fio da navalha da sua capacidade de reprodução social,
trazendo à baila, mais do que nunca, a emergência de se organizar uma
profunda transformação no modo de vida predominante, a fim de superar o
domínio do capital. No Brasil, esta publicação, que almeja aprofundar o
debate no campo da contradição Revolução x Contrarrevolução, chega num
momento muito oportuno, em meio a um desastre humanitário fruto da
gestão necrológica da pandemia no país, custando a vida de mais de 570 mil
pessoas, e às voltas com um cenário político de possível aventura golpista da
extrema direita, que promete um processo de ruptura com a já parca
democracia, chamando o país a reciclar a (In)dependência, 199 anos depois
da primeira (o que é evidentemente uma chacota, tendo em vista sua
postura intrinsicamente submissa aos interesses imperialistas).
A revolução é uma forma histórica inventada pela humanidade para
se livrar da opressão, principalmente aquela que emana do cerceamento da
liberdade em suas múltiplas dimensões existenciais da vida. Como um ideal
emancipador, a revolução também supõe sua prática constante, em que as
etapas presentes de consolidação, pavimentam os patamares futuros, mais
elevados, do encontro do ser-humano consigo mesmo. Uma revolução cuja
raiz só pode ser alcançada com força suficiente para romper os grilhões que
bloqueiam as reais demandas humanas de emancipação, como o próprio
Marx nos ensina: “uma revolução radical só pode ser a revolução de
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necessidades reais” . Para cada lance revolucionário, no entanto, as prisões
da opressão – se não forem inteiramente destruídas, também se renovam na
forma de contrarrevolução, até mesmo preventivamente.
Traduzir a essência da temática revolução e contrarrevolução para
nosso tempo, tempo do fim do mundo, constitui o objetivo maior deste
número da Revista. Diante da catástrofe da existência humana sob o atual
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Frase escrita de Karl Marx em 1843 na obra: Crítica da filosofia do direito de Hegel.
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modo de produção da vida que nos oprime, nossa luneta do tempo mira,
sem tergiversar, em direção à revolução comunista para frear a locomotiva
do fim do mundo, que velozmente corre nos trilhos da contrarrevolução.
Embora seja extremamente urgente pensar nosso fim do mundo
nestes quadrantes, é incrível perceber como cada vez menos o tema da
revolução e contrarrevolução constitui um estatuto de pesquisas e
investigações do pensamento social, pois quase não participa das
preocupações políticas no âmbito teórico e prático de partidos e
movimentos sociais considerados de esquerda. É nítido o rebaixamento
contemporâneo dos horizontes utópicos e teóricos materialistas, que no
passado energizavam o pensamento emancipador para uma posição radical
contra o capital. Sem enfrentar a emergência humana de se opor ao modo
de produção vigente – isto é o capitalismo histórico, o que observamos é
uma miríade de pautas “progressistas” que se organizam competitivamente
por gestões mitigadoras da barbárie, em torno de reparações históricas,
políticas públicas e melhorismos diversos.
Nosso objetivo é, portanto, aquele de ir contra as modas escolásticas
e reabilitar este campo radical do saber. Assim, ao transpor tal temática para
nossa história contemporânea, sobretudo a da miséria brasileira, fica
evidente a sua atualidade. Com a queda da União Soviética e a ascensão dos
Estados Unidos como solitária potência capitalista mundial – plataforma
estatal de um capital financeiro que apresenta transnacionalmente sua
dimensão produtiva renovada com a revolução microeletrônica –, a nova
ordem que nasceu no outono do século XX exigiria a destruição sistemática
dos fundamentos da ordem anterior – marcada por revoluções e
contrarrevoluções; uma verdadeira revolução capitalista no campo
produtivo, mas, igualmente, uma contrarrevolução nos planos socioculturais.
Espécie de guia mágico do tempo do fim do mundo que nos converte
atualmente em seres de expectativas revolucionárias rebaixadas, a ideologia
neoliberal tornou-se o mantra das burguesias mundiais, em especial das
classes proprietárias do mundo neocolonial, aliadas às do centro imperialista
na construção dessa nova ordem. Entretanto, no mundo neocolonial, será a
desindustrialização a comandar esse processo, aliado a um ainda mais
profundo retrocesso sócio-histórico, com incremento exponencial da
subordinação nacional desses países. Surpreendentemente, na maioria dos
países neocoloniais, estará a burguesia e seus estratos superiores a
reivindicarem o status revolucionário de seus propósitos, ao passo que as
classes não capitalistas abraçarão uma timidez reformista em tudo
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conducente ao fracasso das lutas populares e consequente desmanche de
suas conquistas socioeconômicas alcançadas em décadas de árdua luta. Esse
é o caso específico do Brasil, onde o desmanche caminhou célere e
profundo, sem que se oferecesse a ele qualquer séria resposta popular
contrária.
A saída desse novo fracasso histórico dá um salto dialético e passa,
agora, a ser visto pelas principais lideranças da esquerda da ordem como
sendo o que eles denominam de revolução social, em substituição à lógica
formal do reformismo, cuja proposta de transformação não escapou da
lógica formal, incremental. Em certa medida repete-se o dilema do fracasso
do ciclo de reformas do pré-1964, ocasião em que a contrarrevolução
engatou a sua marcha até hoje não interrompida.
O desmanche e a liquidação física das forças da democracia radical
pela ação repressora das Forças Armadas – desde então braço policial da
ditadura e do imperialismo – abriram caminho para a predominância liberal
da assim chamada abertura democrática, que conseguiu fazer viger uma
certa democracia política conservadora no corpo do projeto econômico
contrarrevolucionário intocado.
O grande e maior partido popular da reforma incremental, o PT, em
consonância com seu postulado lógico formal, ousou supor reverter por
dentro a ordem econômica contrarrevolucionária, sem liquidar os
fundamentos da ordem do capital a funcionar para a revolução neoliberal
posta em marcha desde 1964. Na prática, serviu como instrumento de
continuidade da contrarrevolução que hoje exacerba seu ímpeto
antinacional e antipopular. Tal imperativo não se restringe à nossa
experiência, mas a todo o espaço periférico que alimenta a reprodução
global do capital financeiro.
Nós da América Latina, particularmente, estamos novamente às voltas
com a questão vital não resolvida da história das revoluções burguesas no
mundo ex-colonial, dos capitalismos da miséria, das sociedades condenadas
de nascença a serem eternos campos de caça do capital mundial,
incialmente das metrópoles ibéricas europeias – Portugal e Espanha – e,
depois, sucessivamente a outros países europeus, à medida que o poder
econômico e político migrava de uma potência do capital à outra, até
cristalizar-se o inconteste predomínio da ainda insuperada potência
estadunidense em vias de ser suplantada pela China. Estamos diante do
velho tema da revolução democrática, desde sempre e para sempre
desdenhadas e preteridas pelas burguesias neocoloniais. Revoluções que
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promovam a real independência socioeconômica das nações neocoloniais,
que conquistem e mantenham a plena cidadania do trabalho frente ao
capital, revoluções que serão necessariamente anticapitalistas. Contra os
capitalismos da miséria e suas revoluções burguesas conservadoras que
perpetuam a segregação social e a subordinação nacional e, ao mesmo
tempo, contra o capitalismo histórico em sua forma mais avançada e sua
sede predadora de nações, biomas, solo e subsolo, dos trabalhadores
miserabilizados e abandonados à sua sorte pela falácia do estado mínimo
para a massa do povo e máximo para a reprodução exclusiva do capital.
É a partir de tais indagações, face a estas pelejas que envolvem a
revolução e a contrarrevolução, que apresentamos as contribuições deste
número cinco da Revista Fim do Mundo. Assim, na seção Debate do fim
do mundo, a revista já abre com um artigo dos seus editores
esquadrinhando o tema principal, com o seguinte título: “Revolução e
contrarrevolução na vanguarda capitalista da barbárie”. Com isso, os
pesquisadores Paulo Alves de Lima Filho, Adilson Marques Gennari e Fábio
Antonio de Campos mostram como o Brasil, por ser uma espécie de caso
avançado de reprodução das contradições mais profundas do capitalismo da
miséria, exprime o sentido da dominação imperialista neocolonial no longo
prazo, de modo a bloquear qualquer experiência radical de revolução
democrática, visto que se orienta nos dias que correm por um outro tipo de
revolução – uma revolução da contrarrevolução, eternizando a subordinação
ao imperialismo, à segregação social e ao colonialismo cultural.
Na seção Artigos, o trabalho: “A formação do espaço capitalista” dos
pesquisadores Marcelo Micke Doti e Sinclair Mallet Guy Guerra” revela por
diversos caminhos analíticos a ocupação do espaço e sua formação, antes do
capitalismo plenamente constituído, ressaltando a fenomenologia das
estruturas econômicas singulares. Nesse sentido, o artigo mostra no
processo histórico a constituição do conceito de fetichismo do espaço, que
distante de permitir a sua “humanização”, impôs uma estrutura de classes
funcional à reprodução do modo de produção capitalista. Além do espaço
subsumido pelo capital, no artigo “O neoliberalismo de Hayek como
momento da contrarrevolução”, de autoria de Henrique Cunha Viana, é
possível entender o neoliberalismo de Hayek como sendo um projeto
contrarrevolucionário para o século XX. De modo a fazer uma diferenciação
com o liberalismo clássico, o autor mostra como Hayek construiu seu
discurso a partir do confronto com a experiência da Revolução Russa, a ser
instrumentalizado como projeto político de intervenção a partir do final da
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década de 1960, e, assim, servir de prevenção às aspirações de
transformação social. No que tange à realidade latino-americana, o artigo
“Desenvolvimento como farsa e a saída decolonial”, de Nathan Santos e
Marcela Darido, expressa uma crítica às noções de desenvolvimento. Ao
transitarem para independências nacionais que não romperam no essencial
com o passado colonial, os países latino-americanos assumiram o status do
desenvolvimento como forma de aprofundar a dependência ao
imperialismo. Assim, a noção de desenvolvimento é analisada por Nathan e
Marcela como uma farsa, que revela a decadência da civilização burguesa,
bloqueando o pensamento econômico e social na América Latina. Superar
tal condição, passa segundo os pesquisadores, pela decolonização do saber
por meio de uma práxis revolucionária.
Ainda nesta seção, temos uma contribuição de Bernardo R. Carvalho:
“O impasse dos Estados Unidos diante da China”. O artigo em tela traz uma
questão atual sobre a “segunda Guerra Fria” no acirramento do conflito
econômico entre os EUA e a China. O pesquisador mostra a semelhança do
deslocamento do eixo geopolítico dos EUA para o Pacífico com as políticas
externas de contenção utilizadas contra o bloco soviético. Diferente dos
russos, contudo, nesta nova estratégia estadunidense, seu adversário
apresenta uma política externa continuamente inovadora. Outra região que
perturba as agendas externas dos EUA é a caribenha, notadamente a
realidade socialista cubana que, como mostra o artigo: “Acercamiento a la
transformación del socialismo en Cuba”, de Alexandra Arabadzhyan, também
está sofrendo mutações. Ao investigar os últimos Congressos do Partido
Comunista Cubano, além de fazer um estudo comparativo das Constituições
(1976, 2019 e o projeto da última), o artigo avalia o alcance dessas mudanças
e como elas podem alterar a essência dos compromissos revolucionários
concebidos a partir do pensamento de Ernesto Che Guevara.
Na América do Sul, o foco se desloca para o problema do
extrativismo, com o trabalho: “Apontamentos sobre o Equador do petróleo”
de Elaine Cristina Santos. Mesmo diante das estimativas de esgotamento das
reservas de petróleo, seu impacto negativo para o meio ambiente e para as
questões sociais, ele continua sendo a principal fonte de energia como
apresenta a autora. E mesmo em governos de esquerda como os já
ocorridos no Equador, esta matriz foi considerada como estratégica para
redução de desigualdades sociais via distribuição de renda. No entanto, o
passado equatoriano de subdesenvolvimento persiste, e é isso que, em
essência, o artigo aborda.
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Chegando mais ao sul, novamente no Brasil novamente, o
enfrentamento secular do subdesenvolvimento também passa pela relação
entre o problema da educação popular e o da questão agrária. Dessa forma,
o artigo: “Coletivo Universidade Popular: práxis em disputa junto ao
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”, de Ana Paula Ferreira de
Melo, tem como objetivo investigar dois grupos do coletivo Universidade
Popular (UP), entre 2007 e 2015 no estado de São Paulo. Como bem mostra
a pesquisadora, as divergências teóricas e práticas que encerram o método
de ensino destes grupos estão associadas ao governo do Partido dos
Trabalhadores (PT) e às formas de luta do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST).
Na seção Texto para discussão, a contribuição de Adrián López:
“Conjecturas en torno a Marx” procura se contrapor ao trabalho de Marcelo
Doti “Grau zero da civilização não é ainda barbárie: é pior” (RFM n. 3), que
anuncia o afastamento do autor do que ele denomina de materialismo
histórico. A partir de um novo campo reflexivo inaugurado por Karl Heinrich
Mordejái Marx Levy, o trabalho propõe criticar Doti, diferenciando o que
Marx escreveu do que Engels disse sobre ele, e com isso mostrar uma outra
perspectiva do materialismo histórico.
Na seção Ensaios críticos, o texto: “A Face da revolução” de Lincoln
Secco, apresenta alguns elementos de ordem metodológica sobre o papel
de Auguste Blanqui na invasão da Assembleia Francesa por uma multidão
desarmada em 15 de maio de 1848 e as implicações teóricas daí derivadas
para o entendimento da revolução.
Ainda neste espaço da Revista, temos a contribuição do intelectual e
intérprete do processo de transformação venezuelano, Modesto E. Guerrero:
“Venezuela: las Comunas como consigna de transición contra la regresión
conservadora”, em que ele debate as perspectivas de regressão das políticas
anticapitalistas na Venezuela a partir do complexo espectro de disputa pelo
poder sobre as Comunas, dado estas cumprirem função central no processo
de construção de uma nova República pensada sob a liderança de Hugo
Chávez, para a Revolução Bolivariana. Os ensaios ainda abordam outro país
da América do Sul, na perspectiva de Carlos A. Torres, em “Chile: el
derrumbe del oasis neoliberal”, em que o autor se debruça sobre os recentes
movimentos populares que colocaram em xeque a legitimidade do grande
exemplo chileno de neoliberalismo, supostamente bem sucedido.
Complementa esta seção o texto do intelectual francês Jean Sève, traduzido
pelo Pesquisador Paulo Alves de Lima Filho, “Revolução e contrarrevolução:
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dois conceitos a serem reformulados”, propondo uma nova abordadem
sobre a organização social necessária para superar o capitalismo. Anexo ao
texto, consta o manifesto de sua organização política Capitalexit, proposta
fundada nas ideias do seu livro, de mesmo nome.
Na seção Resenhas, Felipe Cotrim trata da obra: “Friedrich Engels and
the Dialectics of Nature (Marx, Engels, and Marxisms)” de Kaan Kangal de
2020, em que mostra a virtude do autor de reexaminar com erudição os
manuscritos originais que deram origem à dialética da natureza de Engels,
assim como recriar debates entre Engels, Aristóteles, Kant e Hegel.
Na seção Entrevistas, de modo a manter o fio condutor da edição,
entrevistamos dois grandes intelectuais que atuam em questões centrais
para a crítica da economia política. A primeira entrevista é de João Quartim
de Moraes, professor e ex-diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp, que tratará de diversos assuntos, tais como: a
formação teórica e política, seu exílio francês após o endurecimento da
ditadura no Brasil, a questão militar, a revolução brasileira e a reconfiguração
geopolítica mundial atual devido à ascensão econômica chinesa. A segunda
entrevista é de Luiz Marques, também professor do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, cujo livro recentemente editado:
“Capitalismo e colapso ambiental” tem tido grande visibilidade. Para nossa
Revista, Luiz tratou do problema da existência humana diante do avanço dos
problemas ambientais que o capitalismo promove, assim como da questão
da educação ambiental, da proliferação do ecofascismo, da relação entre
Marx e dos impasses ambientais, da crise estrutural do capital, da economia
ecológica, dos limites do nacionalismo para a luta ambiental e das
consequências mediatas e imediatas da destruição em curso da Floresta
Amazônica e do Cerrado.
Encerramos a edição com um texto Memorial que homenageia a
cartunista Cahú, que através de sua arte contruibui com diversas lutas sociais
que almejavam a revolução, destacando-se o cartaz comemorativo pela volta
de Luis Carlos Prestes do exílio na época da ditadura. E, em meio a estes
profundos debates, as fotos da Artista Convidada Thallita Oshiro
contribuem para ilustrar as reflexões que porventura emergirem a partir das
leituras, da capa ao encerramento da edição, trazendo registros de distintos
momentos da mobilização social brasileira e uma foto bastante provocativa
de um grafitti da famosa fotografia do revolucionário Ernesto Che Guevara,
presente em uma ocupação popular, parcialmente coberta por um cartaz
escrito à mão: “precisa-se de funcionário, tratar aqui”.
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Desse modo, acreditamos que foi possível cumprir a missão de
recolocar o tema da revolução e contrarrevolução no campo de discussão do
fim do mundo, que cada vez mais se evidencia ser uma realidade tangível
para aqueles que não são cínicos ou ingênuos em relação ao capital. Boa
leitura a todos.
Agosto de 2021.
Coordenação do Dossiê Temático
Paulo Alves de Lima Filho | Adilson M. Gennari | Fábio A. de Campos
E os Editores.
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