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Editorial nº 5: Revolução e Contrarrevolução 12 Chegamos à Quinta Edição da Revista Fim do Mundo ainda em meio à luta por sobrevivência frente a maior crise social e sanitária da história da humanidade. Os dilemas de um ano e meio de pandemia submeteram os trabalhadores ao fio da navalha da sua capacidade de reprodução social, trazendo à baila, mais do que nunca, a emergência de se organizar uma profunda transformação no modo de vida predominante, a fim de superar o domínio do capital. No Brasil, esta publicação, que almeja aprofundar o debate no campo da contradição Revolução x Contrarrevolução, chega num momento muito oportuno, em meio a um desastre humanitário fruto da gestão necrológica da pandemia no país, custando a vida de mais de 570 mil pessoas, e às voltas com um cenário político de possível aventura golpista da extrema direita, que promete um processo de ruptura com a já parca democracia, chamando o país a reciclar a (In)dependência, 199 anos depois da primeira (o que é evidentemente uma chacota, tendo em vista sua postura intrinsicamente submissa aos interesses imperialistas). A revolução é uma forma histórica inventada pela humanidade para se livrar da opressão, principalmente aquela que emana do cerceamento da liberdade em suas múltiplas dimensões existenciais da vida. Como um ideal emancipador, a revolução também supõe sua prática constante, em que as etapas presentes de consolidação, pavimentam os patamares futuros, mais elevados, do encontro do ser-humano consigo mesmo. Uma revolução cuja raiz só pode ser alcançada com força suficiente para romper os grilhões que bloqueiam as reais demandas humanas de emancipação, como o próprio Marx nos ensina: “uma revolução radical só pode ser a revolução de 2 necessidades reais” . Para cada lance revolucionário, no entanto, as prisões da opressão – se não forem inteiramente destruídas, também se renovam na forma de contrarrevolução, até mesmo preventivamente. Traduzir a essência da temática revolução e contrarrevolução para nosso tempo, tempo do fim do mundo, constitui o objetivo maior deste número da Revista. Diante da catástrofe da existência humana sob o atual 2 Frase escrita de Karl Marx em 1843 na obra: Crítica da filosofia do direito de Hegel. Revista Fim do Mundo, nº 5, mai/ago 2021 modo de produção da vida que nos oprime, nossa luneta do tempo mira, sem tergiversar, em direção à revolução comunista para frear a locomotiva do fim do mundo, que velozmente corre nos trilhos da contrarrevolução. Embora seja extremamente urgente pensar nosso fim do mundo nestes quadrantes, é incrível perceber como cada vez menos o tema da revolução e contrarrevolução constitui um estatuto de pesquisas e investigações do pensamento social, pois quase não participa das preocupações políticas no âmbito teórico e prático de partidos e movimentos sociais considerados de esquerda. É nítido o rebaixamento contemporâneo dos horizontes utópicos e teóricos materialistas, que no passado energizavam o pensamento emancipador para uma posição radical contra o capital. Sem enfrentar a emergência humana de se opor ao modo de produção vigente – isto é o capitalismo histórico, o que observamos é uma miríade de pautas “progressistas” que se organizam competitivamente por gestões mitigadoras da barbárie, em torno de reparações históricas, políticas públicas e melhorismos diversos. Nosso objetivo é, portanto, aquele de ir contra as modas escolásticas e reabilitar este campo radical do saber. Assim, ao transpor tal temática para nossa história contemporânea, sobretudo a da miséria brasileira, fica evidente a sua atualidade. Com a queda da União Soviética e a ascensão dos Estados Unidos como solitária potência capitalista mundial – plataforma estatal de um capital financeiro que apresenta transnacionalmente sua dimensão produtiva renovada com a revolução microeletrônica –, a nova ordem que nasceu no outono do século XX exigiria a destruição sistemática dos fundamentos da ordem anterior – marcada por revoluções e contrarrevoluções; uma verdadeira revolução capitalista no campo produtivo, mas, igualmente, uma contrarrevolução nos planos socioculturais. Espécie de guia mágico do tempo do fim do mundo que nos converte atualmente em seres de expectativas revolucionárias rebaixadas, a ideologia neoliberal tornou-se o mantra das burguesias mundiais, em especial das classes proprietárias do mundo neocolonial, aliadas às do centro imperialista na construção dessa nova ordem. Entretanto, no mundo neocolonial, será a desindustrialização a comandar esse processo, aliado a um ainda mais profundo retrocesso sócio-histórico, com incremento exponencial da subordinação nacional desses países. Surpreendentemente, na maioria dos países neocoloniais, estará a burguesia e seus estratos superiores a reivindicarem o status revolucionário de seus propósitos, ao passo que as classes não capitalistas abraçarão uma timidez reformista em tudo Revista Fim do Mundo, nº 5, mai/ago 2021 13 14 conducente ao fracasso das lutas populares e consequente desmanche de suas conquistas socioeconômicas alcançadas em décadas de árdua luta. Esse é o caso específico do Brasil, onde o desmanche caminhou célere e profundo, sem que se oferecesse a ele qualquer séria resposta popular contrária. A saída desse novo fracasso histórico dá um salto dialético e passa, agora, a ser visto pelas principais lideranças da esquerda da ordem como sendo o que eles denominam de revolução social, em substituição à lógica formal do reformismo, cuja proposta de transformação não escapou da lógica formal, incremental. Em certa medida repete-se o dilema do fracasso do ciclo de reformas do pré-1964, ocasião em que a contrarrevolução engatou a sua marcha até hoje não interrompida. O desmanche e a liquidação física das forças da democracia radical pela ação repressora das Forças Armadas – desde então braço policial da ditadura e do imperialismo – abriram caminho para a predominância liberal da assim chamada abertura democrática, que conseguiu fazer viger uma certa democracia política conservadora no corpo do projeto econômico contrarrevolucionário intocado. O grande e maior partido popular da reforma incremental, o PT, em consonância com seu postulado lógico formal, ousou supor reverter por dentro a ordem econômica contrarrevolucionária, sem liquidar os fundamentos da ordem do capital a funcionar para a revolução neoliberal posta em marcha desde 1964. Na prática, serviu como instrumento de continuidade da contrarrevolução que hoje exacerba seu ímpeto antinacional e antipopular. Tal imperativo não se restringe à nossa experiência, mas a todo o espaço periférico que alimenta a reprodução global do capital financeiro. Nós da América Latina, particularmente, estamos novamente às voltas com a questão vital não resolvida da história das revoluções burguesas no mundo ex-colonial, dos capitalismos da miséria, das sociedades condenadas de nascença a serem eternos campos de caça do capital mundial, incialmente das metrópoles ibéricas europeias – Portugal e Espanha – e, depois, sucessivamente a outros países europeus, à medida que o poder econômico e político migrava de uma potência do capital à outra, até cristalizar-se o inconteste predomínio da ainda insuperada potência estadunidense em vias de ser suplantada pela China. Estamos diante do velho tema da revolução democrática, desde sempre e para sempre desdenhadas e preteridas pelas burguesias neocoloniais. Revoluções que Revista Fim do Mundo, nº 5, mai/ago 2021 promovam a real independência socioeconômica das nações neocoloniais, que conquistem e mantenham a plena cidadania do trabalho frente ao capital, revoluções que serão necessariamente anticapitalistas. Contra os capitalismos da miséria e suas revoluções burguesas conservadoras que perpetuam a segregação social e a subordinação nacional e, ao mesmo tempo, contra o capitalismo histórico em sua forma mais avançada e sua sede predadora de nações, biomas, solo e subsolo, dos trabalhadores miserabilizados e abandonados à sua sorte pela falácia do estado mínimo para a massa do povo e máximo para a reprodução exclusiva do capital. É a partir de tais indagações, face a estas pelejas que envolvem a revolução e a contrarrevolução, que apresentamos as contribuições deste número cinco da Revista Fim do Mundo. Assim, na seção Debate do fim do mundo, a revista já abre com um artigo dos seus editores esquadrinhando o tema principal, com o seguinte título: “Revolução e contrarrevolução na vanguarda capitalista da barbárie”. Com isso, os pesquisadores Paulo Alves de Lima Filho, Adilson Marques Gennari e Fábio Antonio de Campos mostram como o Brasil, por ser uma espécie de caso avançado de reprodução das contradições mais profundas do capitalismo da miséria, exprime o sentido da dominação imperialista neocolonial no longo prazo, de modo a bloquear qualquer experiência radical de revolução democrática, visto que se orienta nos dias que correm por um outro tipo de revolução – uma revolução da contrarrevolução, eternizando a subordinação ao imperialismo, à segregação social e ao colonialismo cultural. Na seção Artigos, o trabalho: “A formação do espaço capitalista” dos pesquisadores Marcelo Micke Doti e Sinclair Mallet Guy Guerra” revela por diversos caminhos analíticos a ocupação do espaço e sua formação, antes do capitalismo plenamente constituído, ressaltando a fenomenologia das estruturas econômicas singulares. Nesse sentido, o artigo mostra no processo histórico a constituição do conceito de fetichismo do espaço, que distante de permitir a sua “humanização”, impôs uma estrutura de classes funcional à reprodução do modo de produção capitalista. Além do espaço subsumido pelo capital, no artigo “O neoliberalismo de Hayek como momento da contrarrevolução”, de autoria de Henrique Cunha Viana, é possível entender o neoliberalismo de Hayek como sendo um projeto contrarrevolucionário para o século XX. De modo a fazer uma diferenciação com o liberalismo clássico, o autor mostra como Hayek construiu seu discurso a partir do confronto com a experiência da Revolução Russa, a ser instrumentalizado como projeto político de intervenção a partir do final da Revista Fim do Mundo, nº 5, mai/ago 2021 15 16 década de 1960, e, assim, servir de prevenção às aspirações de transformação social. No que tange à realidade latino-americana, o artigo “Desenvolvimento como farsa e a saída decolonial”, de Nathan Santos e Marcela Darido, expressa uma crítica às noções de desenvolvimento. Ao transitarem para independências nacionais que não romperam no essencial com o passado colonial, os países latino-americanos assumiram o status do desenvolvimento como forma de aprofundar a dependência ao imperialismo. Assim, a noção de desenvolvimento é analisada por Nathan e Marcela como uma farsa, que revela a decadência da civilização burguesa, bloqueando o pensamento econômico e social na América Latina. Superar tal condição, passa segundo os pesquisadores, pela decolonização do saber por meio de uma práxis revolucionária. Ainda nesta seção, temos uma contribuição de Bernardo R. Carvalho: “O impasse dos Estados Unidos diante da China”. O artigo em tela traz uma questão atual sobre a “segunda Guerra Fria” no acirramento do conflito econômico entre os EUA e a China. O pesquisador mostra a semelhança do deslocamento do eixo geopolítico dos EUA para o Pacífico com as políticas externas de contenção utilizadas contra o bloco soviético. Diferente dos russos, contudo, nesta nova estratégia estadunidense, seu adversário apresenta uma política externa continuamente inovadora. Outra região que perturba as agendas externas dos EUA é a caribenha, notadamente a realidade socialista cubana que, como mostra o artigo: “Acercamiento a la transformación del socialismo en Cuba”, de Alexandra Arabadzhyan, também está sofrendo mutações. Ao investigar os últimos Congressos do Partido Comunista Cubano, além de fazer um estudo comparativo das Constituições (1976, 2019 e o projeto da última), o artigo avalia o alcance dessas mudanças e como elas podem alterar a essência dos compromissos revolucionários concebidos a partir do pensamento de Ernesto Che Guevara. Na América do Sul, o foco se desloca para o problema do extrativismo, com o trabalho: “Apontamentos sobre o Equador do petróleo” de Elaine Cristina Santos. Mesmo diante das estimativas de esgotamento das reservas de petróleo, seu impacto negativo para o meio ambiente e para as questões sociais, ele continua sendo a principal fonte de energia como apresenta a autora. E mesmo em governos de esquerda como os já ocorridos no Equador, esta matriz foi considerada como estratégica para redução de desigualdades sociais via distribuição de renda. No entanto, o passado equatoriano de subdesenvolvimento persiste, e é isso que, em essência, o artigo aborda. Revista Fim do Mundo, nº 5, mai/ago 2021 Chegando mais ao sul, novamente no Brasil novamente, o enfrentamento secular do subdesenvolvimento também passa pela relação entre o problema da educação popular e o da questão agrária. Dessa forma, o artigo: “Coletivo Universidade Popular: práxis em disputa junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”, de Ana Paula Ferreira de Melo, tem como objetivo investigar dois grupos do coletivo Universidade Popular (UP), entre 2007 e 2015 no estado de São Paulo. Como bem mostra a pesquisadora, as divergências teóricas e práticas que encerram o método de ensino destes grupos estão associadas ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT) e às formas de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na seção Texto para discussão, a contribuição de Adrián López: “Conjecturas en torno a Marx” procura se contrapor ao trabalho de Marcelo Doti “Grau zero da civilização não é ainda barbárie: é pior” (RFM n. 3), que anuncia o afastamento do autor do que ele denomina de materialismo histórico. A partir de um novo campo reflexivo inaugurado por Karl Heinrich Mordejái Marx Levy, o trabalho propõe criticar Doti, diferenciando o que Marx escreveu do que Engels disse sobre ele, e com isso mostrar uma outra perspectiva do materialismo histórico. Na seção Ensaios críticos, o texto: “A Face da revolução” de Lincoln Secco, apresenta alguns elementos de ordem metodológica sobre o papel de Auguste Blanqui na invasão da Assembleia Francesa por uma multidão desarmada em 15 de maio de 1848 e as implicações teóricas daí derivadas para o entendimento da revolução. Ainda neste espaço da Revista, temos a contribuição do intelectual e intérprete do processo de transformação venezuelano, Modesto E. Guerrero: “Venezuela: las Comunas como consigna de transición contra la regresión conservadora”, em que ele debate as perspectivas de regressão das políticas anticapitalistas na Venezuela a partir do complexo espectro de disputa pelo poder sobre as Comunas, dado estas cumprirem função central no processo de construção de uma nova República pensada sob a liderança de Hugo Chávez, para a Revolução Bolivariana. Os ensaios ainda abordam outro país da América do Sul, na perspectiva de Carlos A. Torres, em “Chile: el derrumbe del oasis neoliberal”, em que o autor se debruça sobre os recentes movimentos populares que colocaram em xeque a legitimidade do grande exemplo chileno de neoliberalismo, supostamente bem sucedido. Complementa esta seção o texto do intelectual francês Jean Sève, traduzido pelo Pesquisador Paulo Alves de Lima Filho, “Revolução e contrarrevolução: Revista Fim do Mundo, nº 5, mai/ago 2021 17 18 dois conceitos a serem reformulados”, propondo uma nova abordadem sobre a organização social necessária para superar o capitalismo. Anexo ao texto, consta o manifesto de sua organização política Capitalexit, proposta fundada nas ideias do seu livro, de mesmo nome. Na seção Resenhas, Felipe Cotrim trata da obra: “Friedrich Engels and the Dialectics of Nature (Marx, Engels, and Marxisms)” de Kaan Kangal de 2020, em que mostra a virtude do autor de reexaminar com erudição os manuscritos originais que deram origem à dialética da natureza de Engels, assim como recriar debates entre Engels, Aristóteles, Kant e Hegel. Na seção Entrevistas, de modo a manter o fio condutor da edição, entrevistamos dois grandes intelectuais que atuam em questões centrais para a crítica da economia política. A primeira entrevista é de João Quartim de Moraes, professor e ex-diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, que tratará de diversos assuntos, tais como: a formação teórica e política, seu exílio francês após o endurecimento da ditadura no Brasil, a questão militar, a revolução brasileira e a reconfiguração geopolítica mundial atual devido à ascensão econômica chinesa. A segunda entrevista é de Luiz Marques, também professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, cujo livro recentemente editado: “Capitalismo e colapso ambiental” tem tido grande visibilidade. Para nossa Revista, Luiz tratou do problema da existência humana diante do avanço dos problemas ambientais que o capitalismo promove, assim como da questão da educação ambiental, da proliferação do ecofascismo, da relação entre Marx e dos impasses ambientais, da crise estrutural do capital, da economia ecológica, dos limites do nacionalismo para a luta ambiental e das consequências mediatas e imediatas da destruição em curso da Floresta Amazônica e do Cerrado. Encerramos a edição com um texto Memorial que homenageia a cartunista Cahú, que através de sua arte contruibui com diversas lutas sociais que almejavam a revolução, destacando-se o cartaz comemorativo pela volta de Luis Carlos Prestes do exílio na época da ditadura. E, em meio a estes profundos debates, as fotos da Artista Convidada Thallita Oshiro contribuem para ilustrar as reflexões que porventura emergirem a partir das leituras, da capa ao encerramento da edição, trazendo registros de distintos momentos da mobilização social brasileira e uma foto bastante provocativa de um grafitti da famosa fotografia do revolucionário Ernesto Che Guevara, presente em uma ocupação popular, parcialmente coberta por um cartaz escrito à mão: “precisa-se de funcionário, tratar aqui”. Revista Fim do Mundo, nº 5, mai/ago 2021 Desse modo, acreditamos que foi possível cumprir a missão de recolocar o tema da revolução e contrarrevolução no campo de discussão do fim do mundo, que cada vez mais se evidencia ser uma realidade tangível para aqueles que não são cínicos ou ingênuos em relação ao capital. Boa leitura a todos. Agosto de 2021. Coordenação do Dossiê Temático Paulo Alves de Lima Filho | Adilson M. Gennari | Fábio A. de Campos E os Editores. 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