Filosofia Unisinos
Unisinos Journal of Philosophy
20(2):175-183, may/aug 2019
Unisinos – doi: 10.4013/fsu.2019.202.07
DOSSIER
Niilismo e ideal ascético: acerca
do valor do ascetismo na
genealogia nietzschiana*
Nihilism and the ascetic ideal: on the value of
asceticism in Nietzschean genealogy
Clademir Araldi1
RESUMO
Investigo neste artigo o vínculo do niilismo com o ideal ascético na terceira dissertação
da Genealogia da moral. Nessa dissertação, Nietzsche contrapõe o Filósofo genuíno ao
sacerdote ascético, no intuito de abrir espaço para suas pretensões filosófico-artísticas afirmativas. Enquanto o sacerdote ascético radicaliza o niilismo moral, o Filósofo autêntico
desenvolve formas ascéticas de vida para propiciar as condições para sua obra criativa.
Questiono, por fim, se o “Filósofo” reúne as condições para superar a crise niilista dos valores e a decadência fisiológica do homem.
Palavras-chave: niilismo, ideal ascético, valor, Filósofo.
ABSTRACT
I investigate in this article the connection of nihilism with the ascetic ideal in the third essay
of the Genealogy of Morals. In this essay, Nietzsche contrasts the genuine Philosopher with
the ascetic priest, in order to open space for his affirmative philosophical-artistic intentions.
While the ascetic priest radicalizes moral nihilism, the authentic Philosopher develops ascetic forms of life to provide the conditions for his creative work. I ask, finally, whether the
“Philosopher” is able to overcome the nihilistic crisis of values and the physiological decadence of man.
Keywords: nihilism, ascetic ideal, value, Philosopher.
* Este artigo teve apoio do CNPq.
1
Professor do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal de Pelotas.
Rua Alberto Rosa, 154, 96010-770,
Pelotas, RS, Brasil. Email: clademir.
araldi@gmail.com.
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BY 4.0), which permits reproduction, adaptation, and distribution provided the original author and source are credited.
Clademir Araldi
No ano de 1887, Nietzsche avança de modo significativo em suas análises críticas da moral, ao vincular o niilismo
com o ideal ascético. É na terceira dissertação da Genealogia
da moral (GM)2 que esse vínculo é fortemente estabelecido,
com a pergunta acerca do significado dos ideais ascéticos. Os
diferentes sentidos do ideal ascético – nos artistas, nas mulheres, nos filósofos, nos santos e nos sacerdotes – remetem a
uma questão básica: que valor possui o ascetismo na história
da moral humana? O vínculo do ascetismo com a moral cristã
marcou decisivamente o caráter da humanidade ocidental, de
modo a radicalizar o movimento niilista no mundo moderno. Entretanto, formas de ascetismo antigas, medievais e modernas poderiam servir para criar condições propícias para o
advento do tipo de filósofo criador e afirmador da existência.
Para compreender melhor esse movimento, é preciso retomar
o escrito de Lenzer-Heide.
1. No horizonte do niilismo
O escrito de Lenzer-Heide3, de 10 de junho de 1887,
extrai a mesma conclusão que a GM III, no que se refere ao
imenso poder da moral ascética cristã. A diferença é que na
GM Nietzsche atribui ao ideal ascético o imenso poder de
evitar que o homem se precipite no nada, no vazio de sentido.
Assim Nietzsche formula a eficácia da moral cristã:
Que vantagens oferecia a hipótese moral
cristã? 1) Ela conferiu ao homem um valor
absoluto, em oposição à sua pequenez e
casualidade na corrente do devir e do perecer. 2) Ela servia aos advogados de Deus,
na medida em que deixava ao mundo, apesar do sofrimento e do mal, o caráter de
perfeição – incluindo essa “liberdade” – o
mal aparecia pleno de sentido. 3) Ela estabeleceu no homem um saber sobre valores
absolutos e concedeu-lhe assim um conhecimento adequado para o mais importante.
Ela impediu que o homem se desprezasse
enquanto homem, que ele tomasse parti-
do contra a vida, que ele desesperasse ao
conhecer: ela era um meio de conservação
– in summa: a moral era o grande antídoto
contra o niilismo prático e teórico (Nietzsche, 2012. FP 5[71,] 10 de junho de 1887,
KSA 12.211).
Ao conferir um “valor absoluto” ao ser humano, a moral
cristã se impôs como a única interpretação válida para a
vida, como única instância normativa e valorativa. Esse
modo ascético e antinatural de valorar e julgar teve êxito
por quase dois milênios, mas trouxe consequências nocivas
para a vida humana. É esse longo processo de moralização
e desmoralização do homem ocidental que Nietzsche investiga na genealogia da moral. Na terceira dissertação da
Genealogia da moral Nietzsche pretende chegar ao cerne do
niilismo, através da pergunta pelo sentido do ideal ascético. Isso porque o ideal ascético, que triunfou por meio do
sacerdote ascético, foi o motor da forma cristã de avaliar e
de desprezar a natureza dos instintos.
Entretanto, cada dissertação da Genealogia da moral
revelaria, ao final, “uma nova verdade”: a primeira dissertação expressa a “psicologia do cristianismo, o nascimento do
cristianismo a partir do espírito do ressentimento”; a segunda dissertação oferece a “psicologia da consciência moral”, do
“instinto de crueldade que se volta para trás”. E a terceira dissertação “dá resposta à questão de onde procede o tremendo
poder do ideal ascético [...]” (EH, Por que escrevo livros tão
bons, Genealogia da moral).
Essas três abordagens genealógicas, com ênfase psicológica e crítica, seriam preparativos para a grande tarefa da transvaloração, na perspectiva do autor de Ecce homo. Entendemos,
contudo, que Nietzsche fornece mais do que a “primeira psicologia do sacerdote” na GM III. Nessa dissertação, a tarefa do “Filósofo” não está bem definida em relação ao futuro
criador, e está mais articulada com a Fisiologia4 do que com a
Psicologia. Mesmo assim, o genealogista da moral é coerente
em compreender o ressentimento, a má consciência e o ideal
ascético como três formas de niilismo5. Se o ideal ascético foi
o que conferiu autoridade e poder à moral cristã, é preciso,
2
Serão utilizadas as seguintes abreviaturas para citar as obras de Nietzsche: HH (Humano, demasiado humano), A (Aurora), GC (A gaia
ciência), BM (Além do bem e do mal), GM (Genealogia da moral), CW (O caso Wagner), EH (Ecce homo) e FP, para os fragmentos póstumos por nós traduzidos da Kritische Studienausgabe (KSA).
3
Também conhecido como Fragmento de Lenzer-Heide, esse texto não publicado de poucas páginas é decisivo para compreender o
niilismo como processo de desvalorização dos valores morais. Cf. Nietzsche, 2012. Esse texto, que foi escrito poucas semanas antes
da Genealogia da moral, é fundamental para compreender o projeto de crítica da moral e transvaloração dos valores, assim como a
articulação entre niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Cf. Araldi, 2012.
4
Trata-se da Fisiologia da segunda metade do século XIX, no sentido em que Nietzsche a compreendia, principalmente a partir das
leituras de W. Roux e de E. Haeckel, nas discussões travadas pelos darwinistas e neolamarckistas. O projeto filosófico do Nietzsche
maduro consistia em unir a psicologia empírica nascente (de Wundt e de Ribot, principalmente) com a Fisiologia, por meio da Fisiopsicologia. Acerca dos conceitos de Fisiologia e de Fisiopsicologia na obra de Nietzsche, cf. Marton, 2014, p. 236 s. Sem dúvida, Nietzsche
procurava distinguir sua Fisiopsicologia em relação às correntes de Fisiologia vigentes na época, através da vontade de poder. Entretanto, sua concepção de vontade de poder é devedora das fontes científicas supramencionadas. Nos limites deste artigo, apontamos
que o naturalismo próprio de Nietzsche está fortemente vinculado ao seu projeto da vontade de poder, no qual ele concentrou muitos
esforços teóricos nos últimos anos de produção filosófica.
5
Acerca dessa compreensão do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético como formas de niilismo na GM, confira Araldi,
2004.
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Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana
então, investigar o contexto de seu surgimento. É no mundo
antigo que o abismo da falta de sentido se tornou ameaçador.
Nietzsche entende que o homem não tinha onde se agarrar,
quando foi acometido por uma terrível doença da vontade,
que fez com que os valores nobres ruíssem.
O início e o final da terceira dissertação apresentam o
mesmo diagnóstico. O significado enorme do ideal ascético para a existência humana está no dado fundamental da
vontade humana, seu horror vacui (GM III 1). Nietzsche
está tão convencido disso que afirma de modo enfático que
o homem prefere querer o nada (sejam valores antinaturais
que deem algum sentido à sua vida, ou mesmo o desejo
de destruição ou de autodestruição) a não querer. O ser
humano não consegue viver no caos, na ausência de sentido. Isso explicaria o triunfo de um sentido forte para o
sofrimento e o triunfo de valores estabelecidos numa autoridade divina, reconhecida pelo rebanho. A moral cristã foi
a tábua de salvação para esse homem adoecido, impedindo
que ele se lançasse no niilismo prático ou suicida. Sem querer discutir aqui se essa constatação de Nietzsche é exagerada ou insustentável, até do ponto de vista da genealogia,
pretendo situar essa compreensão do niilismo para o estabelecimento do poder do ideal ascético na GM III.
O ideal ascético foi a única posição de sentido que teve
êxito duradouro na história do homem ocidental, que é a história do homem moral e das doenças advindas do processo de
moralização. Justamente por ser o traço fundamental da vontade humana, a “invenção” de valores morais superiores teria
sido uma necessidade humana premente, que, como veremos
adiante, brota do “instinto fundamental da vida”:
Se desconsiderarmos o ideal ascético, o homem, o animal homem, não teve até agora
sentido algum. Sua existência sobre a terra não possuía finalidade; “para que o homem?” – era uma pergunta sem resposta;
faltava a vontade de homem e terra; por
trás de cada grande destino humano soava,
como um refrão, um ainda maior “Em vão!”.
O ideal ascético significa precisamente isto:
que algo faltava, que uma monstruosa lacuna circundava o homem – ele não sabia
justificar, explicar, afirmar a si mesmo, ele
sofria do problema de seu sentido. [...] O
ideal ascético foi até agora o único sentido;
qualquer sentido é melhor que nenhum: o
ideal ascético foi até o momento, de toda
maneira, o “faute de mieux” par excellence
(GM III 28).
O horizonte do niilismo se torna bem nítido quando esse
sentido e esses valores se desvalorizam. Por pretender ser a única interpretação válida, o ideal ascético acaba por radicalizar o
6
niilismo, com a percepção de que não há mais nenhuma interpretação, nenhum sentido ou valores válidos. É contra esse sistema de interpretação que Nietzsche se volta, procurando criar
condições para novas experiências criativas e afirmativas. Para
isso, ele precisa consumar a crítica ao ideal ascético.
2. Que significam os
ideais ascéticos para o
Filósofo autêntico?
O ideal ascético possui sentidos distintos e difusos nos
artistas, nas mulheres, nos filósofos, sacerdotes e santos. Entre
os parágrafos 3 e 5 da terceira dissertação, Nietzsche analisa
com vagar o significado do ideal ascético nos artistas, sobretudo na arte e no tipo6 de Wagner. A conclusão a que chega
o genealogista é que o ideal ascético para o artista não significa “nada absolutamente!... Ou tantas coisas, que resultam em
nada!...” (GM III 5)7. Basta apontar aqui as limitações dos artistas, sua subserviência aos poderes políticos, à moral e à religião. No âmbito da genealogia, importa a coragem do artista
Richard Wagner para o ideal ascético, quando este se apoia no
filósofo Schopenhauer. Com isso, Nietzsche afirma a seriedade de sua questão, que se volta primeiramente aos filósofos e
depois aos sacerdotes.
Que significa um filósofo como Schopenhauer render
homenagem ao ideal ascético? Com essa pergunta Nietzsche não está preocupado ainda em tratar de uma questão
estética (a centralidade da experiência do criador) para seu
projeto de transvaloração dos valores, mas seu foco está em
apreender um sentido profundo e afirmativo no ascetismo
dos filósofos. A indicação inicial é que, com essa homenagem, o Filósofo “quer livrar-se de uma tortura” (GM III
6). A veemência com que Schopenhauer quer se livrar das
paixões por meio da contemplação estética o aproxima da
ataraxia de Epicuro, do efeito calmante sobre a vontade.
Ao contrapor a compreensão do belo de Stendhal, como
promessa de felicidade, à concepção estética quietista de
Schopenhauer, o autor da Genealogia indica que ele pretende desenvolver esses temas na fisiologia da estética (cf. GM
III 8). São temas que serão desenvolvidos no ano seguinte
(1888), mas que ficam em segundo plano na Genealogia da
moral. Os aspectos afirmativos da arte, em contraposição
ao ideal ascético, portanto, não são tratados com profundidade na obra de 1887, que tem como pretensão maior a
crítica da moral do rebanho.
A afeição dos filósofos pelo ideal ascético, como expressa
essa breve genealogia do espírito filosófico, mostra que a filosofia só pôde surgir a partir do ascetismo, usando a máscara e
usurpando o hábito dos ascetas:
Acerca da construção dos tipos de homens, ascendentes e decadentes, incluindo Wagner, confira Marton, 2016, p. 395 s.
7
Em O caso Wagner Nietzsche retoma a questão do ascetismo em Wagner, aprofundando a decadência fisiológica de sua arte, e como
Wagner resume o que há de doentio e neurótico na modernidade. Cf. CW § 1-4.
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Clademir Araldi
Todo animal, portanto também la bête philosophe, busca instintivamente um optimum
de condições favoráveis em que possa expandir inteiramente a sua força e alcançar o
seu máximo de sentimento de poder; todo
animal, também instintivamente e com uma
finura dos sentidos [...] tem horror a toda
espécie de intrusões e obstáculos que se
colocam ou poderiam colocar-se em seu caminho para o optimum (GM III 7).
Assim, para o Filósofo, o ideal ascético é seu caminho
próprio para o poder, para o domínio e constituição de si,
por reunir as condições para a “mais alta espiritualidade”8.
É surpreendente que Nietzsche valorize as três palavras
pomposas do ideal ascético: a pobreza, a humildade e a
castidade como condições para engendrar espíritos fortes
e livres. O elogio da solidão é seguido por uma recomendação viva para que os filósofos não se casem. Heráclito
é ainda o grande modelo de filósofo solitário, e o casamento de Sócrates é visto como uma exceção, permitida a
esse grande irônico. Mas o que mais surpreende é quando
Nietzsche julga encontrar apoio nos Fisiólogos para certos saberes “intuitivos”, como o dos efeitos nocivos do coito
para os atletas (cf. GM III 8). Esse ódio dos filósofos em
relação à sensualidade, seu retiro para o “deserto” sem paixões e ilusões de seu tempo, são condições para chegar à
mais elevada espiritualidade. Essa é a questão que importa
a Nietzsche, pois ela resume o sentido positivo do ascetismo nos Filósofos (verdadeiros). Quando esses exercícios
ascético-espirituais se tornam instinto dominante surge o
tipo do Filósofo livre e independente, tão valorizado por
ele. Em GM III 8, Nietzsche ousa se colocar entre os Filósofos (“Nós, Filósofos”), entre os espíritos fortes, seguros
de si que valorizam, acima de tudo, a independência e a
liberdade de espírito.
Até agora, o Filósofo só pôde existir com a máscara do
ascetismo. Mas o ânimo de Nietzsche logo arrefece, quando
constata que foi outra conformação de ascetismo que triunfou no Ocidente. A criação de novas artes de transfiguração
(até mesmo do que há de mais horrível e penoso) é relegada
aos Filósofos do futuro. Mas quem são os Filósofos do futuro?
Temos de retornar ao final da primeira dissertação, para compreendermos bem as esperanças e tarefas que o genealogista
atribui a tais Filósofos:
A questão: que vale esta ou aquela tábua
de valores, esta ou aquela “moral”? deve
ser colocada das mais diversas perspectivas; pois “vale para quê?” jamais pode ser
analisado de maneira suficientemente sutil.
[...] O bem da maioria e o bem dos raros são
considerações de valor opostas: tomar o
primeiro como de valor mais elevado em si,
eis algo que deixamos para a ingenuidade
dos biólogos ingleses... Todas as ciências
devem doravante preparar o caminho para
a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa
assim compreendida: o filósofo deve resolver o problema do valor, deve determinar a
hierarquia dos valores (GM I 17).
Ao final da primeira dissertação, ele convoca fisiólogos e médicos como colaboradores para a tarefa superior
e afirmativa, própria do Filósofo (do futuro). Entretanto,
esse tão valorizado Filósofo fica em segundo plano na segunda dissertação. Nietzsche evoca, em tom afirmativo, “o
homem do futuro”, que salvará os homens da vontade de
nada, do niilismo, do grande nojo (GM II 24). Na terceira
dissertação, o Filósofo retorna, mas de modo muito mais
contido, no contexto das considerações fisiológicas sobre
o valor. Em contraposição aos atores no palco do espírito,
os Filósofos amam o ocultamento, o livramento de tudo
aquilo que “aprisiona” (fama, mulheres, príncipes), ou seja,
a renúncia ascética, dura e serena, daquilo que as pessoas
comuns mais estimam. Esse vínculo tão forte dos Filósofos
com o ideal ascético permitiu a formação das principais
virtudes e impulsos filosóficos (como o de investigar, de
negar) que marcaram a história do pensamento. Esse ascetismo afirmativo dos Filósofos e espíritos fortes é ainda
mais necessário no tempo moderno do niilismo, quando a
crise dos valores assume dimensões pavorosas. De modo
circunspecto, o genealogista questiona quando o Filósofo
será realmente possível:
Isso mudou realmente? O colorido e perigoso bicho alado, o “espírito” que essa lagarta abrigava, foi afinal despido de seu hábito e solto à luz, graças a um mundo mais
ensolarado, mais cálido e luminoso? Existe
hoje suficiente coragem, ousadia, confiança, vontade do espírito, vontade de responsabilidade, liberdade de vontade, para que
de ora em diante o filósofo seja realmente
– possível?... (GM III 10).
Considero decisiva essa modéstia do pensador Nietzsche,
que recua de seus propósitos afirmativos, para pedir ajuda aos
Fisiólogos, Historiadores e Psicólogos, no intuito de investigar
como esse vínculo estreito entre Filosofia e ascetismo pode contribuir para resolver o problema dos valores humanos.
O genealogista Nietzsche, que se considerava “o mais moderno entre os modernos”, também assume uma forma de querer
o nada, que ele nomeia de “a hybris de nosso ser moderno”:
8
Nietzsche entende que “espiritualidade” (Geistigkeit) e “espiritualização” (Vergeistigung) são movimentos próprios da natureza instintiva humana, como poder do próprio ser humano de interiorizar e controlar seus impulsos, como um sentido positivo de “moralização
dos impulsos”. É assim que o ser humano desenvolve as formas mais “espirituais” da vontade de poder. Acerca do sentido próprio de
“espiritualização” em Nietzsche, confira Araldi, 2014 e Marton, 2016, p. 203.
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Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana
Ainda que medido com o metro dos antigos
gregos, todo o nosso ser moderno [...] apresenta-se como pura hybris e impiedade. [...]
Hybris é hoje nossa atitude para com a natureza, nossa violentação da natureza com
a ajuda das máquinas e da tão irrefletida
inventividade dos engenheiros e técnicos;
[...] hybris é nossa atitude para conosco
mesmos, pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer com
nenhum outro animal (GM III 8).
Assim como todas as coisas “boas” de hoje, também o
ascetismo dos Filósofos foi visto como “ruim” no passado, e
foi visto com desconfiança, principalmente no período mais
antigo da moral, a pré-história da moral, que era baseado na
obediência aos costumes e à autoridade das tradições. Essa
tendência ao excesso, à violentação da natureza exterior e interior seria uma forma bem diferente de crueldade consigo
mesmo do que foi a contemplatividade nos ascetas antigos.
Os “velhos brâmanes” e outros seres religiosos e contemplativos da Antiguidade, como Buda, estão na gênese do espírito
filosófico (cf. GM III 9). Como dissemos acima, os Filósofos
necessitaram imitar tipos ascéticos já existentes, para terem
autonomia e liberdade de espírito. Mas somente os Filósofos
do futuro poderiam assumir a tarefa de fornecer outra valoração da vida humana, diferente da do sacerdote ascético.
Entretanto, o sacerdote ascético foi a “única forma sob a qual
a filosofia podia viver e rastejar...” (GM III 10). O problema é
que na História do homem ocidental o modo de valorar do
sacerdote ascético preponderou sobre o modo de vida dos
Filósofos e espíritos fortes. Com essa constatação, Nietzsche
precisa atacar novamente seu problema – do significado do
ideal ascético – a partir do sacerdote ascético. Provisoriamente, ele precisa se despedir das tarefas criativas do Filósofo do
futuro, para concentrar-se no imenso poder e significado do
ideal ascético nesse tipo tão hostil à vida.
rece-me, é que Nietzsche está provocando, na terceira dissertação da Genealogia, os fisiólogos a testarem suas hipóteses de
investigação acerca do valor do ascetismo. A que resultados
chegaríamos se aplicássemos métodos fisiológicos para analisar a doença da vontade no sacerdote ascético e no rebanho
por ele dominado? É constatável que o próprio Nietzsche
desenvolveu explicações fisiológicas acerca da narcose e do
hipnotismo9. O importante, para o genealogista Nietzsche,
é a investigação da “causação fisiológica efetiva” (die wirkliche
physiologische Ursächlichkeit), da “verdadeira causa fisiológica”
(die wahre Ursache, die physiologische) do mal-estar dos doentes e sofredores (a atingir também o sacerdote ascético), que
pode residir: “numa enfermidade do nervus sympathicus, numa
anormal secreção de bílis, numa pobreza de sulfato e fosfato
de potássio no sangue, em estados de tensão do baixo ventre
[...] etc.” (GM III 15).
Ao investigar os processos fisiológicos dessa espécie ascética curiosa de vida, Nietzsche crê detectar a causação fisiológica do niilismo: a diminuição da vitalidade fisiológica (cf. GM
III 11). Entretanto, com seu “monstruoso modo de valorar”, o
sacerdote ascético efetiva suas pretensões de dominação e de
poder: “O sacerdote ascético tem nesse ideal não apenas a sua
fé, mas também sua vontade, seu poder, seu interesse” (GM III
11). Fica evidente aqui que o genealogista opera no registro da
vontade de poder, ao pressupor que a vontade de poder é de fato
a essência da vida e do mundo, tal como ele havia exposto na
segunda dissertação (cf. GM II 12). Mas é na compreensão da
“vitalidade fisiológica” no campo da vontade de poder que sua
análise ganha mais força. Mas é uma resposta pouco satisfatória, quando analisamos de modo crítico e imanente a terceira
dissertação da Genealogia! Nietzsche recorre ao “instinto profundo da vida” para explicar como esse tipo ascético (aparentemente hostil à vida) pode prosperar e dominar:
[...] deve ser interesse da vida mesma que
um tipo tão contraditório não se extinga.
[...] Aqui domina um ressentimento ímpar,
aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja assenhorear-se,
não de algo da vida, mas da vida mesma,
de suas condições maiores, mais profundas
e fundamentais, aqui se faz a tentativa de
usar a força para estancar a fonte da força;
aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido,
contra o florescimento fisiológico mesmo
[...]; enquanto se experimenta e se busca
satisfação no malogro, na desventura, no
fenecimento, no feio, na perda voluntária,
na negação de si, autoflagelação e autossacrifício (GM III 11).
3. Que significa o ideal ascético
para o sacerdote ascético?
Para responder a essa pergunta decisiva, Nietzsche retoma a divisão de trabalho necessária entre filósofos, fisiologistas
e psicólogos, no modo como ele a havia proposto no final da
primeira dissertação. O genealogista, com pretensões de tornar
o Filósofo novamente possível, não consegue ainda sintetizar
todos esses investigadores implicados na questão do valor do
ideal ascético. Nos limites deste artigo, enfatizo a importância
crescente da fisiologia na terceira dissertação da Genealogia.
Quando Nietzsche ataca decididamente o problema do
ideal ascético, ele começa por colocar perguntas aos “fisiólogos”, cujos nomes não são mencionados. Mais importante, pa-
Esses exercícios ascéticos operam em nível inconsciente e instintivo. Mas trata-se de um processo complexo, que
9
Acerca da importância das leituras de Nietzsche do médico inglês James Braid, confira Brusotti, 2000. Nietzsche concordava com
Braid no modo como este explicava de modo fisiológico o hipnotismo e os fenômenos extáticos.
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oculta muitas discussões, leituras científicas e elucubrações de
Nietzsche, de modo que a expressão “usar a força para estancar a fonte da força” mais encobre do que revela esse processo
e causação fisiológicos10. Parece-me que Nietzsche quer mascarar os compromissos ontológicos tão fortes de sua concepção vitalista-antropomórfica de vontade de poder quando ele
simplesmente deriva a “vontade encarnada de contradição e
antinatureza” do “autêntico instinto da vida”, quando afirma
que existe apenas uma “visão perspectiva”, um “conhecer perspectivo” (GM III 12). O perspectivismo de Nietzsche fica em
segundo plano quando ele se prende de modo pouco crítico ao
“instinto da vida”, sem perceber devidamente que a vida instintiva humana é um processo que não está separado da cultura, dos costumes e da história. Assim, o “interesse da vida” não
se sustenta na moldura perspectivista e experimentalista da
filosofia nietzschiana. Seria mais um capítulo do livro “Nietzsche contra Nietzsche”. Mas o que nos importa aqui é investigar aonde Nietzsche quer chegar com seu “interesse da vida”. É
importante também notar que não há ainda uma definição de
qual tipo de homem (o filósofo ou homem do futuro, o artista
criador ou o nobre do futuro) teria condições para superar o
niilismo, em contraposição ao tipo ascético.
Fisiologicamente considerada, a autocontradição do sacerdote ascético (vida contra vida) não faz sentido; é aparente, pois não expressa o processo efetivo das vontades de poder
a operar no instinto da vida. A medicação dos sacerdotes ascéticos, desse modo, não é nenhuma cura efetiva dos doentes,
em sentido fisiológico. Os valores gerados pelo sacerdote ascético, com seu olhar rancoroso e ressentido, são antinaturais;
ele trata a vida como um “caminho errado”, volta a vida contra
si mesma (cf. GM III 11). Entramos, assim, nos paradoxos e
(auto)contradições da vida sacerdotal. Essa “vontade encarnada de contradição e antinatureza” buscará instintivamente
o erro que a seduz a viver. O sacerdote ascético opera com
uma psicologia falsa e com ignorância dos processos fisiológicos efetivos. A essa falsificação psicológica Nietzsche contrapõe a realidade dos fatos (Tatbestand). Sem mascarar seus
comprometimentos ontológicos, Nietzsche contrapõe o “erro”
que move a investigação ascética à busca da verdade do “autêntico instinto da vida” (der eigentliche Lebens-Instinkt):
O ideal ascético nasce do instinto de cura
e proteção de uma vida que degenera,
que busca manter-se por todos os meios,
e luta por sua existência; indica uma parcial
inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente combatem
com novos meios e invenções (GM III 13).
Agora o ideal ascético é “um artifício para a preservação da vida”, faz parte das “grandes potências conservadoras e
afirmadoras da vida”. Entretanto, não temos indicações mais
precisas, com um mínimo de sustentação na “realidade dos
fatos”, acerca dos “instintos profundos da vida”: como eles
podem permanecer “intactos”, se estão imersos em processos fisiológicos, culturais, históricos e sociais incessantes?
Continuamos no paradoxo, pois é preciso buscar as causas
efetivas dessa doença, sem compromissos ontológicos que
comprometam a investigação naturalista do ascetismo. O
genealogista Nietzsche não abandona suas pretensões naturalistas quando diagnostica que o homem tornou-se um
animal doente, sob a influência do ideal vitorioso do sacerdote ascético. O problema é quando Nietzsche se detém
em uma ambiguidade que lhe é muito inquietante: o ser
humano, o “animal mais corajoso” e inventivo também está
exposto à mais longa e terrível enfermidade, sob a influência dos valores antinaturais oriundos do ideal ascético. Mas
o homem é também “o grande experimentador de si” (GM
III 13), prenhe de futuro, inquieto, insaciado, lutando pelo
domínio com os outros animais, com a natureza e com
“deus”. São ressonâncias do projeto de transvaloração, tal
como foi anunciado em Além do bem e do mal (cf. BM 203)
e retomado no final da segunda dissertação da Genealogia
(cf. GM II 24). Nietzsche presume que o ser humano esteja ainda inesgotado para grandes experimentos consigo
mesmo e com o mundo. Mas teme que a influência nociva
do sacerdote ascético possa tornar a Terra um grande hospício, um planeta ascético.
Contra esse perigo, o genealogista procura articular suas
análises fisiológicas do ideal ascético e do niilismo com considerações históricas. Ele mostra a ação das epidemias da saciedade de viver, como a dança da morte de 1348, o pessimismo
parisiense a partir de 1850, o alcoolismo, a dança de São João
e de São Vito na Idade Média, a depressão e a onda de suicídios na Alemanha depois da Guerra dos Trinta Anos (16181648) (cf. III 13, 17). Acrescentem-se a essa lista de desgraças
“epidemias epilépticas, sistema nervoso arruinado, paralisias
terríveis, depressões prolongadas, histerias das bruxas, sonambulismo, delírios coletivos sedentos de morte” (GM III 21).
Essa vontade de (auto)destruição surge do instinto de
espiritualidade, de caráter ascético, que quer negar a natureza
e tem como consequência o taedium vitae, a saciedade de viver, o niilismo. O que importa nesse momento é mostrar que
a potência da negação própria do ideal ascético é ambígua:
“A negação que ele lança à vida traz à luz, como por milagre,
uma quantidade de afirmações mais delicadas; sim, mesmo
quando ele se fere, esse mestre destruidor, destruidor de si
mesmo, - é ainda a ferida que o obriga a viver” (GM III 13).
A expressão “como por milagre” traz dificuldades para compreender como a negação ascético-sacerdotal engendra novas
afirmações. A descrição da ambiguidade da luta da vida ascética contra a morte é problemática, pois não fica claro em que
sentido o sacerdote ascético é uma “potência conservadora e
afirmadora” da vida. Fica bem claro, contudo, que o modo de
10
Expresso minha dívida a Angelo Marinucci, por ter apontado nessa passagem da GM a importância da teoria das forças de Nietzsche
para a compreensão e efetivação de sua “fisiologia”.
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Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana
valorar do sacerdote ascético torna o homem doente ainda
mais doente. E que essas valorações desencadeiam a vontade de nada, como vontade de destruição e de autodestruição.
Assim, o fascínio de Nietzsche pelos aspectos potencialmente
afirmativos do ascetismo impede que ele distinga claramente
o ascetismo do sacerdote ascético do ascetismo dos Filósofos,
Espíritos fortes e livres. Detenhamo-nos nos aspectos niilistas
dos ideais e valores do sacerdote ascético e de seu séquito de
malogrados e ressentidos.
No mundo moderno, o niilismo se torna uma condição normal, na medida em que é incontestável que “é normal a condição doentia do homem” (GM III 14). Os fortes
e saudáveis são exceções, “acasos felizes”. Mas devem ser
fomentados e isolados do contágio dos fracos e adoentados. Por isso, os doentes são o maior perigo para os sadios e
para o futuro do homem. E Nietzsche não tem ilusões em
relação a eles: “Eles monopolizaram inteiramente a virtude, esses fracos e doentes sem cura, quanto a isso não há
dúvida” (GM III 14). Esses doentes incuráveis, no entanto,
autoglorificam-se como bons e justos, de modo que forçam
os nobres a voltarem-se contra si mesmos, engendrando a
doença da má consciência, da crueldade interiorizada. Não
podemos ocultar as consequências sociais e culturais dessa afirmação de que os fracos são incuráveis. Até porque
eles tiveram êxito em tiranizar os mais sadios, impondo sua
forma singular de vontade de poder: “A vontade dos enfermos de representar uma forma qualquer de superioridade,
seu instinto para vias esquivas que conduzam a uma tirania
sobre os sãos – onde não seria encontrada, essa vontade de
poder precisamente dos mais fracos!” (GM III 14). A força
dos fracos está justamente em seu instinto gregário. Mas
é no rebanho que a doença niilista se prolifera. Por isso,
Nietzsche conclui que o sentido do sacerdote ascético está
na dominação sobre os que sofrem, partindo do fato de que
o próprio salvador e pastor do rebanho é um doente. Mas o
sacerdote ascético, apesar de doente, é forte o bastante para
dominar: esse estranho médico e enfermeiro doente sabe
que “remédios” prescrever para dominar o rebanho doente.
E a solução está em propor um sentido a seu sofrimento.
Nietzsche não poupa elogios a esse tipo de asceta: ele é
“a primeira forma do animal mais delicado”, evolui para um
“novo tipo de animal de rapina”, travando guerras “de espírito”, representa novos tipos de ferocidade animal (GM III
15). Por isso, o sacerdote ascético é um inimigo de peso, que
ameaça tornar doentes os poucos sadios que ainda restam. O
defensor dos ideais nobres suplica por ar puro, por apartar os
doentes dos sadios, para precaver os Filósofos do futuro das
duas mais terríveis pragas “o grande nojo do homem e a grande
compaixão pelo homem!...” (GM III 14). Se o grande nojo e a
grande compaixão pelo homem um dia se casarem, darão à
luz o que há de mais monstruoso no mundo: “a última vontade do homem, sua vontade de nada, o niilismo” (GM III
14). Parece que isso ainda não ocorreu; nem é desejável que
ocorra. Contra isso, o Filósofo quer reabrir o caminho ao
futuro criador do homem.
4. O instinto da vida e a
vontade de nada
Apesar de tornar o rebanho doente ainda mais doente,
esse estranho pastor consegue dar um sentido à dor, aos afetos
dos sofredores. Após colocar de vários modos a pergunta pelo
sentido do ideal ascético no sacerdote, Nietzsche busca respostas que apontem para saídas efetivas ao problema. E uma
resposta decisiva é: “O sacerdote ascético é aquele que muda
a direção do ressentimento” (GM III 15). É bem elucidativa a
interpretação de Antônio E. Paschoal a essa passagem da terceira dissertação:
Na terceira dissertação, na qual o ressentimento é associado ao sofrimento interior
do homem e esse causado por fatores “fisiológicos” (GM III 15) e o sacerdote ascético é apresentado como aquele que altera
a “direção do ressentimento” (GM III 15),
tem-se justamente a exposição do modo
como aquela concepção de que o sofrimento do homem seria uma espécie de punição
é utilizada para conter o rebanho e mantê-lo apaziguado. O ideal ascético aparece,
então, como parte do modus operandi da
moral do ressentimento, que apresenta
o próprio sofredor como o culpado pelo
seu sofrimento e, por conseguinte, como o
alvo da própria sede de vingança (Paschoal,
2015, p. 27).
Com isso, Nietzsche mostra a verdadeira causação fisiológica do ressentimento: é o “entorpecimento da dor através do
afeto”, que caracteriza fisiologicamente a vida desses doentes.
O sofredor busca instintivamente causas (agentes culpados)
para seu sofrimento, para descarregar, para obter alívio, entorpecimento (Betäubung) e narcóticos para seus males. Mas
como opera essa mudança de direção do ressentimento?
Novamente, Nietzsche recorre ao instinto da vida (der
Instinkt des Lebens) para mostrar que a medicação desse estranho pastor não fornece uma verdadeira cura, no sentido
fisiológico. Não temos maiores explicações do modo como o
instinto profilático da vida tentou através do ascético sacerdote. Parece-me que Nietzsche sobrecarrega o sacerdote ascético com dois impulsos inconciliáveis: o instinto da vida e o
instinto ou vontade de nada. O sacerdote ascético, enquanto
animal doente e “domador de animais de rapina”, somente de
modo temporário expressa o instinto profilático da vida. No
fundo, é a vontade de nada que move seu agir e valorar. Infelizmente, Nietzsche pouco desenvolve na terceira dissertação
os rumos da vontade de nada no sacerdote ascético e no rebanho doente. Mas fornece uma indicação importante, no sentido de que essa vontade de nada ocorre como uma exaustão,
que se alastra de forma epidêmica.
“Culpa, pecado” são apenas interpretação de um fato (Interpretation eines Thatbestandes), de uma indisposição fisioló-
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Clademir Araldi
gica (GM III 16): essa é a clarificação fisiológica de Nietzsche
às falsificações do sacerdote ascético cristão. Esse falso médico
é no fundo um pastor que quer mitigar o sofrimento, a profunda depressão por meio de narcóticos, calmantes e de afetos
estimulantes. Nesse ponto, Nietzsche se detém nos meios de
cura engendrados pelas grandes religiões para combater essa
epidemia da saciedade de viver (cf. GM III 21).
O sacerdote ascético não possui um saber fisiológico
correto para tratar desse sentimento de obstrução fisiológica
e suas erupções na História. Atuando nas grandes religiões,
o sacerdote ascético construiria, segundo Nietzsche, tentativas psicológico-morais ruins de cura e de combate a esse
cansaço niilista.
Nietzsche busca a chave por ora na fisiologia, seguro
de possuir um saber fisiológico correto. O pessimismo, nesse
sentido, é apenas uma consequência dessa obstrução fisiológica. Apesar de em alguns momentos propor um reducionismo fisiológico, o genealogista propõe uma relação complexa entre fisiologia e psicologia. Os exercícios ascéticos do
sacerdote ascético11, vistos pelo ângulo moral-psicológico
errôneo, seriam “a renúncia de si”, a “salvação”. Expressos fisiologicamente, eles são formas de hipnotização, utilizadas
pelos sportsmen do ascetismo.
Há na genealogia nietzschiana aplicações do saber fisiológico adquirido para analisar os rigorosos treinamentos
do sacerdote ascético para combater a depressão fisiológica. O sentimento de obstrução fisiológica (physiologisches
Hemmungsgefühl) que surge de tempos em tempos nas grandes religiões ou no pessimismo europeu pode ter origem no
cruzamento de raças, em uma dieta errada, na degeneração
do sangue, etc. (cf. GM III 17). Aquilo que os místicos ou os
crentes do budismo, do cristianismo e do bramanismo julgavam ser um mistério: a redenção, o sono profundo, o descanso
eterno, a unio mystica com Deus pode ser reduzido em termos
fisiológicos à hipnotização. Epicuro, sofredor, de modo mais
lúcido e frio, expressou esse sentimento do nada hipnótico
(das hypnotische Nichts-Gefühl), esse amortecimento hipnótico
da sensibilidade, como o valor mais elevado para sofredores
fatigados (cf. GM III 17).
Para além da atividade maquinal (um training mais fácil
para os sofredores), o sacerdote ascético propõe para os fisiologicamente travados, com doses homeopáticas, a estimulação da vontade de poder, do “impulso mais forte e afirmativo
da vida”. Não há que censurá-los, pois os fracos buscam instintivamente se organizar em rebanho, para encontrar um
sentido para seu sofrimento. E esse sentido é produzido pelo
sacerdote por meio de atividades que conduzem ao excesso
de sentimento (die Ausschweifung des Gefühls). O poder do entusiasmo contido nos afetos fortes partilhados alivia a dor do
indivíduo. Assim, o excesso de sentimento é obtido no seio da
comunidade, da organização gregária (cf. GM III 18 e 19). O
doente, pecador, é culpado por seu sofrimento. Com seu olhar
hipnótico, o pecador busca em toda parte uma “culpa” como
causa de seu sofrer. O mago, o salvador ascético triunfou. Buscava-se sempre mais dor, êxtases, mistérios oriundos do excesso de sentimento, um inferno de dores a afastar qualquer
taedium vitae. Assim, Nietzsche conclui que o ideal ascético
propiciou o excesso de sentimento, como fármaco com certo
prazo de validade para combater a depressão e o mal-estar das
massas (cf. GM III 20).
Temos uma transição importante: Nietzsche se assume
agora (cf. GM III 20) como psicólogo (Wir Psychologen), para
diagnosticar que o doente se tornou ainda mais doente, devido às “revanches fisiológicas veementes de tais excessos”. As
tentativas de unir a fisiologia com a psicologia do sacerdote
ascético são muito limitadas. Nietzsche retoma suas análises
da má consciência da segunda dissertação (cf. GM II 16-23),
para mostrar como a psicologia da consciência moral liga-se
ao sofrimento do homem consigo mesmo, à violenta separação do passado animal. O que há de novo na terceira dissertação são os novos trainings, os exercícios ascéticos do tipo sacerdotal, como novas formas de crueldade para consigo mesmo,
que acabam por mudar a direção do ressentimento.
O sacerdote ascético, desse modo, é um “verdadeiro
artista em sentimentos de culpa” (GM III 20). Mas trata-se de uma espécie de magia negra, pois com sua interpretação religiosa do sentimento de culpa ele torna ainda mais
doente o paciente:
Apenas na mão do sacerdote, [...] ele (o
sentimento de culpa) veio a tomar forma –
e que forma! O “pecado” – pois assim se
chama a reinterpretação sacerdotal da “má
consciência” animal (da crueldade voltada
para trás) foi até agora o maior acontecimento na história da alma enferma: nele
temos o mais perigoso e fatal artifício da
interpretação religiosa (GM III 20).
O sacerdote ascético conseguiu triunfar como artista do
sofrimento, pois soube utilizar meios efetivos para anestesiar
os doentes, com a intenção de propiciar o excesso de sentimento.
O problema é que Nietzsche não articula de modo satisfatório seus saberes fisiológicos com a psicologia da consciência
moral na terceira dissertação, de modo a investigar o modo de
ação e o imenso poder do sacerdote ascético. Ele não chegou
a uma crítica interventora ao ideal ascético, para permitir que
os Filósofos possam construir novas formas de ascetismo, para
reunir condições favoráveis à afirmação da vida e à criação de
11
Em GM III Nietzsche se concentra nos aspectos negativos do ideal ascético ligados à vida gregária. Mas o próprio Nietzsche desenvolveu análises positivas do ascetismo em Humano, demasiado humano, no capítulo “A vida religiosa”, e em Além do bem e do mal,
no capítulo “A natureza religiosa”. Nesta última obra, o ascetismo pode significar também uma forma elevada (espiritual) de vontade
de poder, que seria atributo dos novos espíritos livres. O fascínio de Nietzsche pela vida ascética dos eremitas e dos filósofos solitários
do passado está relacionado a essa elevação do tipo homem.
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Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana
novos valores naturalistas. O genealogista Nietzsche apenas
aponta para “espíritos livres”, para “homens do conhecimento”,
para ateístas desiludidos, que teriam a tarefa de auxiliar na
tarefa de combater a pretensão do sacerdote ascético de estabelecer sua interpretação como a única interpretação. Com
a ruína da interpretação moral do mundo, não surge por geração espontânea o ascetismo dos fortes, mas o que prospera
é o niilismo enquanto vontade de nada (cf. GM III 23 e 24).
Com isso, em sua genealogia do espírito filosófico, desde os
velhos brâmanes, passando por todos os disfarces ascéticos da
Filosofia – até ele próprio, Nietzsche se depara com o deserto
dos valores arruinados do mundo moderno. É dali que terá de
vir um dia sua Filosofia do futuro e o que ele chamará posteriormente de “o ascetismo dos fortes”.
Por fim, Nietzsche se pergunta acerca do antagonista
natural do ideal ascético. Esse antagonista não é a ciência, pois
ela não é um “poder criador de valores”. Além disso, a ciência
é aliada ao ideal ascético, pois ambos superestimam a verdade
(cf. GM III 25). É então que Nietzsche abre um longo parêntesis, para insinuar que a arte é uma antagonista mais radical
ao ideal ascético do que a ciência. Terá a arte poder suficiente
para se contrapor ao ideal ascético e vencê-lo?12 E que tipo de
arte está qualificada para essa tarefa gigantesca? Eis a resposta
de Nietzsche:
A arte, para antecipá-lo, pois ainda tornarei
mais demoradamente ao assunto – a arte,
na qual precisamente a mentira se santifica,
a vontade de ilusão tem a boa consciência
a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético: assim
percebeu o instinto de Platão, esse grande
inimigo da arte, o maior que a Europa jamais produziu. [...] (GM III 25).
O projeto da “fisiologia da arte” será mais desenvolvido
no ano de 1888, no ano em que Nietzsche esboçará também
“o ascetismo dos fortes”, que valerá como apoio a esse projeto. A solidão e o recolhimento são condições para as tarefas
criativas dos Filósofos do futuro e do próprio Nietzsche, que
avança bastante no ano de 1887, com sua Genealogia da moral, na confluência do ascetismo com o niilismo. A ciência e a
historiografia modernas são avaliadas como niilistas, em grau
elevado, expressões oitocentistas do triunfo do ideal ascético.
A arte, como glorificação das mentiras e das ilusões, será um
dos esforços derradeiros mais significativos de Nietzsche para
se contrapor ao niilismo radical que foi nutrido pelos ideais
ascéticos.
Referências
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e a filosofia dos extremos. São Paulo/Ijuí, Discurso Editorial/Editoria UNIJUÍ, 475 p.
ARALDI, C.L. 2012. Os extremos do niilismo europeu. Estudos
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ARALDI, C.L. 2014. Die Vergeistigung der Passion : Nietzsches
einzigartige “Moralisierung” der Triebe. In: C. DENAT; P.
WOTLING, Les heterodoxies de Nietzsche: Lectures du
Crépuscule des idoles. Reims, EPURE, 402 p., p. 225-240.
BRUSOTTI, M. 2000. Ressentimento e vontade de nada. Cadernos Nietzsche, 8:3-34.
JANAWAY, Ch. 2007. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. New York, Oxford University Press, 284 p.
MARTON, S (ed. reponsável). 2016. Dicionário Nietzsche. São
Paulo, Edições Loyola, 466 p. (Col. Sendas & Veredas).
NIETZSCHE, F.W. 1988. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe (KSA). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari. Berlin, de Gruyter, 15 vols.
NIETZSCHE, F.W. 1998. A genealogia da moral. Trad. de Paulo
C. de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 180 p.
NIETZSCHE, F.W. 2012. O niilismo europeu. Tradução de Clademir Araldi. Revista Estudos Nietzsche, 3(2):249-255.
PASCHOAL, A.E. 2015. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo, Editora Humanitas, 226 p.
Submetido em 09 de janeiro de 2019.
Aceito em 08 de maio de 2019.
12
Christopher Janaway (2007) afirma que na terceira dissertação da Genealogia Nietzsche esboça duas contraposições ao ideal ascético: a afirmação estética de si mesmo e a satisfação estética consigo mesmo. Essas duas contraposições tenderiam para direções
diferentes, na medida em que se vinculam a obras anteriores de Nietzsche, como A gaia ciência e Assim falou Zaratustra, às temáticas
do eterno retorno, do amor fati e da estilização do caráter. Entendo que essa contraposição não se sustenta na terceira dissertação,
pois ali Nietzsche não vincula a afirmação artística ao eterno retorno e se distancia também da arte de viver do espírito livre, como ele
desenvolveu nos quatro primeiros livros de A gaia ciência.
Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019
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