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Filosofia Unisinos Unisinos Journal of Philosophy 20(2):175-183, may/aug 2019 Unisinos – doi: 10.4013/fsu.2019.202.07 DOSSIER Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana* Nihilism and the ascetic ideal: on the value of asceticism in Nietzschean genealogy Clademir Araldi1 RESUMO Investigo neste artigo o vínculo do niilismo com o ideal ascético na terceira dissertação da Genealogia da moral. Nessa dissertação, Nietzsche contrapõe o Filósofo genuíno ao sacerdote ascético, no intuito de abrir espaço para suas pretensões filosófico-artísticas afirmativas. Enquanto o sacerdote ascético radicaliza o niilismo moral, o Filósofo autêntico desenvolve formas ascéticas de vida para propiciar as condições para sua obra criativa. Questiono, por fim, se o “Filósofo” reúne as condições para superar a crise niilista dos valores e a decadência fisiológica do homem. Palavras-chave: niilismo, ideal ascético, valor, Filósofo. ABSTRACT I investigate in this article the connection of nihilism with the ascetic ideal in the third essay of the Genealogy of Morals. In this essay, Nietzsche contrasts the genuine Philosopher with the ascetic priest, in order to open space for his affirmative philosophical-artistic intentions. While the ascetic priest radicalizes moral nihilism, the authentic Philosopher develops ascetic forms of life to provide the conditions for his creative work. I ask, finally, whether the “Philosopher” is able to overcome the nihilistic crisis of values and the physiological decadence of man. Keywords: nihilism, ascetic ideal, value, Philosopher. * Este artigo teve apoio do CNPq. 1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. Rua Alberto Rosa, 154, 96010-770, Pelotas, RS, Brasil. Email: clademir. araldi@gmail.com. This is an open access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution 4.0 International (CC BY 4.0), which permits reproduction, adaptation, and distribution provided the original author and source are credited. Clademir Araldi No ano de 1887, Nietzsche avança de modo significativo em suas análises críticas da moral, ao vincular o niilismo com o ideal ascético. É na terceira dissertação da Genealogia da moral (GM)2 que esse vínculo é fortemente estabelecido, com a pergunta acerca do significado dos ideais ascéticos. Os diferentes sentidos do ideal ascético – nos artistas, nas mulheres, nos filósofos, nos santos e nos sacerdotes – remetem a uma questão básica: que valor possui o ascetismo na história da moral humana? O vínculo do ascetismo com a moral cristã marcou decisivamente o caráter da humanidade ocidental, de modo a radicalizar o movimento niilista no mundo moderno. Entretanto, formas de ascetismo antigas, medievais e modernas poderiam servir para criar condições propícias para o advento do tipo de filósofo criador e afirmador da existência. Para compreender melhor esse movimento, é preciso retomar o escrito de Lenzer-Heide. 1. No horizonte do niilismo O escrito de Lenzer-Heide3, de 10 de junho de 1887, extrai a mesma conclusão que a GM III, no que se refere ao imenso poder da moral ascética cristã. A diferença é que na GM Nietzsche atribui ao ideal ascético o imenso poder de evitar que o homem se precipite no nada, no vazio de sentido. Assim Nietzsche formula a eficácia da moral cristã: Que vantagens oferecia a hipótese moral cristã? 1) Ela conferiu ao homem um valor absoluto, em oposição à sua pequenez e casualidade na corrente do devir e do perecer. 2) Ela servia aos advogados de Deus, na medida em que deixava ao mundo, apesar do sofrimento e do mal, o caráter de perfeição – incluindo essa “liberdade” – o mal aparecia pleno de sentido. 3) Ela estabeleceu no homem um saber sobre valores absolutos e concedeu-lhe assim um conhecimento adequado para o mais importante. Ela impediu que o homem se desprezasse enquanto homem, que ele tomasse parti- do contra a vida, que ele desesperasse ao conhecer: ela era um meio de conservação – in summa: a moral era o grande antídoto contra o niilismo prático e teórico (Nietzsche, 2012. FP 5[71,] 10 de junho de 1887, KSA 12.211). Ao conferir um “valor absoluto” ao ser humano, a moral cristã se impôs como a única interpretação válida para a vida, como única instância normativa e valorativa. Esse modo ascético e antinatural de valorar e julgar teve êxito por quase dois milênios, mas trouxe consequências nocivas para a vida humana. É esse longo processo de moralização e desmoralização do homem ocidental que Nietzsche investiga na genealogia da moral. Na terceira dissertação da Genealogia da moral Nietzsche pretende chegar ao cerne do niilismo, através da pergunta pelo sentido do ideal ascético. Isso porque o ideal ascético, que triunfou por meio do sacerdote ascético, foi o motor da forma cristã de avaliar e de desprezar a natureza dos instintos. Entretanto, cada dissertação da Genealogia da moral revelaria, ao final, “uma nova verdade”: a primeira dissertação expressa a “psicologia do cristianismo, o nascimento do cristianismo a partir do espírito do ressentimento”; a segunda dissertação oferece a “psicologia da consciência moral”, do “instinto de crueldade que se volta para trás”. E a terceira dissertação “dá resposta à questão de onde procede o tremendo poder do ideal ascético [...]” (EH, Por que escrevo livros tão bons, Genealogia da moral). Essas três abordagens genealógicas, com ênfase psicológica e crítica, seriam preparativos para a grande tarefa da transvaloração, na perspectiva do autor de Ecce homo. Entendemos, contudo, que Nietzsche fornece mais do que a “primeira psicologia do sacerdote” na GM III. Nessa dissertação, a tarefa do “Filósofo” não está bem definida em relação ao futuro criador, e está mais articulada com a Fisiologia4 do que com a Psicologia. Mesmo assim, o genealogista da moral é coerente em compreender o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético como três formas de niilismo5. Se o ideal ascético foi o que conferiu autoridade e poder à moral cristã, é preciso, 2 Serão utilizadas as seguintes abreviaturas para citar as obras de Nietzsche: HH (Humano, demasiado humano), A (Aurora), GC (A gaia ciência), BM (Além do bem e do mal), GM (Genealogia da moral), CW (O caso Wagner), EH (Ecce homo) e FP, para os fragmentos póstumos por nós traduzidos da Kritische Studienausgabe (KSA). 3 Também conhecido como Fragmento de Lenzer-Heide, esse texto não publicado de poucas páginas é decisivo para compreender o niilismo como processo de desvalorização dos valores morais. Cf. Nietzsche, 2012. Esse texto, que foi escrito poucas semanas antes da Genealogia da moral, é fundamental para compreender o projeto de crítica da moral e transvaloração dos valores, assim como a articulação entre niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Cf. Araldi, 2012. 4 Trata-se da Fisiologia da segunda metade do século XIX, no sentido em que Nietzsche a compreendia, principalmente a partir das leituras de W. Roux e de E. Haeckel, nas discussões travadas pelos darwinistas e neolamarckistas. O projeto filosófico do Nietzsche maduro consistia em unir a psicologia empírica nascente (de Wundt e de Ribot, principalmente) com a Fisiologia, por meio da Fisiopsicologia. Acerca dos conceitos de Fisiologia e de Fisiopsicologia na obra de Nietzsche, cf. Marton, 2014, p. 236 s. Sem dúvida, Nietzsche procurava distinguir sua Fisiopsicologia em relação às correntes de Fisiologia vigentes na época, através da vontade de poder. Entretanto, sua concepção de vontade de poder é devedora das fontes científicas supramencionadas. Nos limites deste artigo, apontamos que o naturalismo próprio de Nietzsche está fortemente vinculado ao seu projeto da vontade de poder, no qual ele concentrou muitos esforços teóricos nos últimos anos de produção filosófica. 5 Acerca dessa compreensão do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético como formas de niilismo na GM, confira Araldi, 2004. Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019 176 Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana então, investigar o contexto de seu surgimento. É no mundo antigo que o abismo da falta de sentido se tornou ameaçador. Nietzsche entende que o homem não tinha onde se agarrar, quando foi acometido por uma terrível doença da vontade, que fez com que os valores nobres ruíssem. O início e o final da terceira dissertação apresentam o mesmo diagnóstico. O significado enorme do ideal ascético para a existência humana está no dado fundamental da vontade humana, seu horror vacui (GM III 1). Nietzsche está tão convencido disso que afirma de modo enfático que o homem prefere querer o nada (sejam valores antinaturais que deem algum sentido à sua vida, ou mesmo o desejo de destruição ou de autodestruição) a não querer. O ser humano não consegue viver no caos, na ausência de sentido. Isso explicaria o triunfo de um sentido forte para o sofrimento e o triunfo de valores estabelecidos numa autoridade divina, reconhecida pelo rebanho. A moral cristã foi a tábua de salvação para esse homem adoecido, impedindo que ele se lançasse no niilismo prático ou suicida. Sem querer discutir aqui se essa constatação de Nietzsche é exagerada ou insustentável, até do ponto de vista da genealogia, pretendo situar essa compreensão do niilismo para o estabelecimento do poder do ideal ascético na GM III. O ideal ascético foi a única posição de sentido que teve êxito duradouro na história do homem ocidental, que é a história do homem moral e das doenças advindas do processo de moralização. Justamente por ser o traço fundamental da vontade humana, a “invenção” de valores morais superiores teria sido uma necessidade humana premente, que, como veremos adiante, brota do “instinto fundamental da vida”: Se desconsiderarmos o ideal ascético, o homem, o animal homem, não teve até agora sentido algum. Sua existência sobre a terra não possuía finalidade; “para que o homem?” – era uma pergunta sem resposta; faltava a vontade de homem e terra; por trás de cada grande destino humano soava, como um refrão, um ainda maior “Em vão!”. O ideal ascético significa precisamente isto: que algo faltava, que uma monstruosa lacuna circundava o homem – ele não sabia justificar, explicar, afirmar a si mesmo, ele sofria do problema de seu sentido. [...] O ideal ascético foi até agora o único sentido; qualquer sentido é melhor que nenhum: o ideal ascético foi até o momento, de toda maneira, o “faute de mieux” par excellence (GM III 28). O horizonte do niilismo se torna bem nítido quando esse sentido e esses valores se desvalorizam. Por pretender ser a única interpretação válida, o ideal ascético acaba por radicalizar o 6 niilismo, com a percepção de que não há mais nenhuma interpretação, nenhum sentido ou valores válidos. É contra esse sistema de interpretação que Nietzsche se volta, procurando criar condições para novas experiências criativas e afirmativas. Para isso, ele precisa consumar a crítica ao ideal ascético. 2. Que significam os ideais ascéticos para o Filósofo autêntico? O ideal ascético possui sentidos distintos e difusos nos artistas, nas mulheres, nos filósofos, sacerdotes e santos. Entre os parágrafos 3 e 5 da terceira dissertação, Nietzsche analisa com vagar o significado do ideal ascético nos artistas, sobretudo na arte e no tipo6 de Wagner. A conclusão a que chega o genealogista é que o ideal ascético para o artista não significa “nada absolutamente!... Ou tantas coisas, que resultam em nada!...” (GM III 5)7. Basta apontar aqui as limitações dos artistas, sua subserviência aos poderes políticos, à moral e à religião. No âmbito da genealogia, importa a coragem do artista Richard Wagner para o ideal ascético, quando este se apoia no filósofo Schopenhauer. Com isso, Nietzsche afirma a seriedade de sua questão, que se volta primeiramente aos filósofos e depois aos sacerdotes. Que significa um filósofo como Schopenhauer render homenagem ao ideal ascético? Com essa pergunta Nietzsche não está preocupado ainda em tratar de uma questão estética (a centralidade da experiência do criador) para seu projeto de transvaloração dos valores, mas seu foco está em apreender um sentido profundo e afirmativo no ascetismo dos filósofos. A indicação inicial é que, com essa homenagem, o Filósofo “quer livrar-se de uma tortura” (GM III 6). A veemência com que Schopenhauer quer se livrar das paixões por meio da contemplação estética o aproxima da ataraxia de Epicuro, do efeito calmante sobre a vontade. Ao contrapor a compreensão do belo de Stendhal, como promessa de felicidade, à concepção estética quietista de Schopenhauer, o autor da Genealogia indica que ele pretende desenvolver esses temas na fisiologia da estética (cf. GM III 8). São temas que serão desenvolvidos no ano seguinte (1888), mas que ficam em segundo plano na Genealogia da moral. Os aspectos afirmativos da arte, em contraposição ao ideal ascético, portanto, não são tratados com profundidade na obra de 1887, que tem como pretensão maior a crítica da moral do rebanho. A afeição dos filósofos pelo ideal ascético, como expressa essa breve genealogia do espírito filosófico, mostra que a filosofia só pôde surgir a partir do ascetismo, usando a máscara e usurpando o hábito dos ascetas: Acerca da construção dos tipos de homens, ascendentes e decadentes, incluindo Wagner, confira Marton, 2016, p. 395 s. 7 Em O caso Wagner Nietzsche retoma a questão do ascetismo em Wagner, aprofundando a decadência fisiológica de sua arte, e como Wagner resume o que há de doentio e neurótico na modernidade. Cf. CW § 1-4. Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019 177 Clademir Araldi Todo animal, portanto também la bête philosophe, busca instintivamente um optimum de condições favoráveis em que possa expandir inteiramente a sua força e alcançar o seu máximo de sentimento de poder; todo animal, também instintivamente e com uma finura dos sentidos [...] tem horror a toda espécie de intrusões e obstáculos que se colocam ou poderiam colocar-se em seu caminho para o optimum (GM III 7). Assim, para o Filósofo, o ideal ascético é seu caminho próprio para o poder, para o domínio e constituição de si, por reunir as condições para a “mais alta espiritualidade”8. É surpreendente que Nietzsche valorize as três palavras pomposas do ideal ascético: a pobreza, a humildade e a castidade como condições para engendrar espíritos fortes e livres. O elogio da solidão é seguido por uma recomendação viva para que os filósofos não se casem. Heráclito é ainda o grande modelo de filósofo solitário, e o casamento de Sócrates é visto como uma exceção, permitida a esse grande irônico. Mas o que mais surpreende é quando Nietzsche julga encontrar apoio nos Fisiólogos para certos saberes “intuitivos”, como o dos efeitos nocivos do coito para os atletas (cf. GM III 8). Esse ódio dos filósofos em relação à sensualidade, seu retiro para o “deserto” sem paixões e ilusões de seu tempo, são condições para chegar à mais elevada espiritualidade. Essa é a questão que importa a Nietzsche, pois ela resume o sentido positivo do ascetismo nos Filósofos (verdadeiros). Quando esses exercícios ascético-espirituais se tornam instinto dominante surge o tipo do Filósofo livre e independente, tão valorizado por ele. Em GM III 8, Nietzsche ousa se colocar entre os Filósofos (“Nós, Filósofos”), entre os espíritos fortes, seguros de si que valorizam, acima de tudo, a independência e a liberdade de espírito. Até agora, o Filósofo só pôde existir com a máscara do ascetismo. Mas o ânimo de Nietzsche logo arrefece, quando constata que foi outra conformação de ascetismo que triunfou no Ocidente. A criação de novas artes de transfiguração (até mesmo do que há de mais horrível e penoso) é relegada aos Filósofos do futuro. Mas quem são os Filósofos do futuro? Temos de retornar ao final da primeira dissertação, para compreendermos bem as esperanças e tarefas que o genealogista atribui a tais Filósofos: A questão: que vale esta ou aquela tábua de valores, esta ou aquela “moral”? deve ser colocada das mais diversas perspectivas; pois “vale para quê?” jamais pode ser analisado de maneira suficientemente sutil. [...] O bem da maioria e o bem dos raros são considerações de valor opostas: tomar o primeiro como de valor mais elevado em si, eis algo que deixamos para a ingenuidade dos biólogos ingleses... Todas as ciências devem doravante preparar o caminho para a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa assim compreendida: o filósofo deve resolver o problema do valor, deve determinar a hierarquia dos valores (GM I 17). Ao final da primeira dissertação, ele convoca fisiólogos e médicos como colaboradores para a tarefa superior e afirmativa, própria do Filósofo (do futuro). Entretanto, esse tão valorizado Filósofo fica em segundo plano na segunda dissertação. Nietzsche evoca, em tom afirmativo, “o homem do futuro”, que salvará os homens da vontade de nada, do niilismo, do grande nojo (GM II 24). Na terceira dissertação, o Filósofo retorna, mas de modo muito mais contido, no contexto das considerações fisiológicas sobre o valor. Em contraposição aos atores no palco do espírito, os Filósofos amam o ocultamento, o livramento de tudo aquilo que “aprisiona” (fama, mulheres, príncipes), ou seja, a renúncia ascética, dura e serena, daquilo que as pessoas comuns mais estimam. Esse vínculo tão forte dos Filósofos com o ideal ascético permitiu a formação das principais virtudes e impulsos filosóficos (como o de investigar, de negar) que marcaram a história do pensamento. Esse ascetismo afirmativo dos Filósofos e espíritos fortes é ainda mais necessário no tempo moderno do niilismo, quando a crise dos valores assume dimensões pavorosas. De modo circunspecto, o genealogista questiona quando o Filósofo será realmente possível: Isso mudou realmente? O colorido e perigoso bicho alado, o “espírito” que essa lagarta abrigava, foi afinal despido de seu hábito e solto à luz, graças a um mundo mais ensolarado, mais cálido e luminoso? Existe hoje suficiente coragem, ousadia, confiança, vontade do espírito, vontade de responsabilidade, liberdade de vontade, para que de ora em diante o filósofo seja realmente – possível?... (GM III 10). Considero decisiva essa modéstia do pensador Nietzsche, que recua de seus propósitos afirmativos, para pedir ajuda aos Fisiólogos, Historiadores e Psicólogos, no intuito de investigar como esse vínculo estreito entre Filosofia e ascetismo pode contribuir para resolver o problema dos valores humanos. O genealogista Nietzsche, que se considerava “o mais moderno entre os modernos”, também assume uma forma de querer o nada, que ele nomeia de “a hybris de nosso ser moderno”: 8 Nietzsche entende que “espiritualidade” (Geistigkeit) e “espiritualização” (Vergeistigung) são movimentos próprios da natureza instintiva humana, como poder do próprio ser humano de interiorizar e controlar seus impulsos, como um sentido positivo de “moralização dos impulsos”. É assim que o ser humano desenvolve as formas mais “espirituais” da vontade de poder. Acerca do sentido próprio de “espiritualização” em Nietzsche, confira Araldi, 2014 e Marton, 2016, p. 203. Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019 178 Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana Ainda que medido com o metro dos antigos gregos, todo o nosso ser moderno [...] apresenta-se como pura hybris e impiedade. [...] Hybris é hoje nossa atitude para com a natureza, nossa violentação da natureza com a ajuda das máquinas e da tão irrefletida inventividade dos engenheiros e técnicos; [...] hybris é nossa atitude para conosco mesmos, pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer com nenhum outro animal (GM III 8). Assim como todas as coisas “boas” de hoje, também o ascetismo dos Filósofos foi visto como “ruim” no passado, e foi visto com desconfiança, principalmente no período mais antigo da moral, a pré-história da moral, que era baseado na obediência aos costumes e à autoridade das tradições. Essa tendência ao excesso, à violentação da natureza exterior e interior seria uma forma bem diferente de crueldade consigo mesmo do que foi a contemplatividade nos ascetas antigos. Os “velhos brâmanes” e outros seres religiosos e contemplativos da Antiguidade, como Buda, estão na gênese do espírito filosófico (cf. GM III 9). Como dissemos acima, os Filósofos necessitaram imitar tipos ascéticos já existentes, para terem autonomia e liberdade de espírito. Mas somente os Filósofos do futuro poderiam assumir a tarefa de fornecer outra valoração da vida humana, diferente da do sacerdote ascético. Entretanto, o sacerdote ascético foi a “única forma sob a qual a filosofia podia viver e rastejar...” (GM III 10). O problema é que na História do homem ocidental o modo de valorar do sacerdote ascético preponderou sobre o modo de vida dos Filósofos e espíritos fortes. Com essa constatação, Nietzsche precisa atacar novamente seu problema – do significado do ideal ascético – a partir do sacerdote ascético. Provisoriamente, ele precisa se despedir das tarefas criativas do Filósofo do futuro, para concentrar-se no imenso poder e significado do ideal ascético nesse tipo tão hostil à vida. rece-me, é que Nietzsche está provocando, na terceira dissertação da Genealogia, os fisiólogos a testarem suas hipóteses de investigação acerca do valor do ascetismo. A que resultados chegaríamos se aplicássemos métodos fisiológicos para analisar a doença da vontade no sacerdote ascético e no rebanho por ele dominado? É constatável que o próprio Nietzsche desenvolveu explicações fisiológicas acerca da narcose e do hipnotismo9. O importante, para o genealogista Nietzsche, é a investigação da “causação fisiológica efetiva” (die wirkliche physiologische Ursächlichkeit), da “verdadeira causa fisiológica” (die wahre Ursache, die physiologische) do mal-estar dos doentes e sofredores (a atingir também o sacerdote ascético), que pode residir: “numa enfermidade do nervus sympathicus, numa anormal secreção de bílis, numa pobreza de sulfato e fosfato de potássio no sangue, em estados de tensão do baixo ventre [...] etc.” (GM III 15). Ao investigar os processos fisiológicos dessa espécie ascética curiosa de vida, Nietzsche crê detectar a causação fisiológica do niilismo: a diminuição da vitalidade fisiológica (cf. GM III 11). Entretanto, com seu “monstruoso modo de valorar”, o sacerdote ascético efetiva suas pretensões de dominação e de poder: “O sacerdote ascético tem nesse ideal não apenas a sua fé, mas também sua vontade, seu poder, seu interesse” (GM III 11). Fica evidente aqui que o genealogista opera no registro da vontade de poder, ao pressupor que a vontade de poder é de fato a essência da vida e do mundo, tal como ele havia exposto na segunda dissertação (cf. GM II 12). Mas é na compreensão da “vitalidade fisiológica” no campo da vontade de poder que sua análise ganha mais força. Mas é uma resposta pouco satisfatória, quando analisamos de modo crítico e imanente a terceira dissertação da Genealogia! Nietzsche recorre ao “instinto profundo da vida” para explicar como esse tipo ascético (aparentemente hostil à vida) pode prosperar e dominar: [...] deve ser interesse da vida mesma que um tipo tão contraditório não se extinga. [...] Aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja assenhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais, aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo [...]; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, na desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e autossacrifício (GM III 11). 3. Que significa o ideal ascético para o sacerdote ascético? Para responder a essa pergunta decisiva, Nietzsche retoma a divisão de trabalho necessária entre filósofos, fisiologistas e psicólogos, no modo como ele a havia proposto no final da primeira dissertação. O genealogista, com pretensões de tornar o Filósofo novamente possível, não consegue ainda sintetizar todos esses investigadores implicados na questão do valor do ideal ascético. Nos limites deste artigo, enfatizo a importância crescente da fisiologia na terceira dissertação da Genealogia. Quando Nietzsche ataca decididamente o problema do ideal ascético, ele começa por colocar perguntas aos “fisiólogos”, cujos nomes não são mencionados. Mais importante, pa- Esses exercícios ascéticos operam em nível inconsciente e instintivo. Mas trata-se de um processo complexo, que 9 Acerca da importância das leituras de Nietzsche do médico inglês James Braid, confira Brusotti, 2000. Nietzsche concordava com Braid no modo como este explicava de modo fisiológico o hipnotismo e os fenômenos extáticos. Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019 179 Clademir Araldi oculta muitas discussões, leituras científicas e elucubrações de Nietzsche, de modo que a expressão “usar a força para estancar a fonte da força” mais encobre do que revela esse processo e causação fisiológicos10. Parece-me que Nietzsche quer mascarar os compromissos ontológicos tão fortes de sua concepção vitalista-antropomórfica de vontade de poder quando ele simplesmente deriva a “vontade encarnada de contradição e antinatureza” do “autêntico instinto da vida”, quando afirma que existe apenas uma “visão perspectiva”, um “conhecer perspectivo” (GM III 12). O perspectivismo de Nietzsche fica em segundo plano quando ele se prende de modo pouco crítico ao “instinto da vida”, sem perceber devidamente que a vida instintiva humana é um processo que não está separado da cultura, dos costumes e da história. Assim, o “interesse da vida” não se sustenta na moldura perspectivista e experimentalista da filosofia nietzschiana. Seria mais um capítulo do livro “Nietzsche contra Nietzsche”. Mas o que nos importa aqui é investigar aonde Nietzsche quer chegar com seu “interesse da vida”. É importante também notar que não há ainda uma definição de qual tipo de homem (o filósofo ou homem do futuro, o artista criador ou o nobre do futuro) teria condições para superar o niilismo, em contraposição ao tipo ascético. Fisiologicamente considerada, a autocontradição do sacerdote ascético (vida contra vida) não faz sentido; é aparente, pois não expressa o processo efetivo das vontades de poder a operar no instinto da vida. A medicação dos sacerdotes ascéticos, desse modo, não é nenhuma cura efetiva dos doentes, em sentido fisiológico. Os valores gerados pelo sacerdote ascético, com seu olhar rancoroso e ressentido, são antinaturais; ele trata a vida como um “caminho errado”, volta a vida contra si mesma (cf. GM III 11). Entramos, assim, nos paradoxos e (auto)contradições da vida sacerdotal. Essa “vontade encarnada de contradição e antinatureza” buscará instintivamente o erro que a seduz a viver. O sacerdote ascético opera com uma psicologia falsa e com ignorância dos processos fisiológicos efetivos. A essa falsificação psicológica Nietzsche contrapõe a realidade dos fatos (Tatbestand). Sem mascarar seus comprometimentos ontológicos, Nietzsche contrapõe o “erro” que move a investigação ascética à busca da verdade do “autêntico instinto da vida” (der eigentliche Lebens-Instinkt): O ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, que busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente combatem com novos meios e invenções (GM III 13). Agora o ideal ascético é “um artifício para a preservação da vida”, faz parte das “grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida”. Entretanto, não temos indicações mais precisas, com um mínimo de sustentação na “realidade dos fatos”, acerca dos “instintos profundos da vida”: como eles podem permanecer “intactos”, se estão imersos em processos fisiológicos, culturais, históricos e sociais incessantes? Continuamos no paradoxo, pois é preciso buscar as causas efetivas dessa doença, sem compromissos ontológicos que comprometam a investigação naturalista do ascetismo. O genealogista Nietzsche não abandona suas pretensões naturalistas quando diagnostica que o homem tornou-se um animal doente, sob a influência do ideal vitorioso do sacerdote ascético. O problema é quando Nietzsche se detém em uma ambiguidade que lhe é muito inquietante: o ser humano, o “animal mais corajoso” e inventivo também está exposto à mais longa e terrível enfermidade, sob a influência dos valores antinaturais oriundos do ideal ascético. Mas o homem é também “o grande experimentador de si” (GM III 13), prenhe de futuro, inquieto, insaciado, lutando pelo domínio com os outros animais, com a natureza e com “deus”. São ressonâncias do projeto de transvaloração, tal como foi anunciado em Além do bem e do mal (cf. BM 203) e retomado no final da segunda dissertação da Genealogia (cf. GM II 24). Nietzsche presume que o ser humano esteja ainda inesgotado para grandes experimentos consigo mesmo e com o mundo. Mas teme que a influência nociva do sacerdote ascético possa tornar a Terra um grande hospício, um planeta ascético. Contra esse perigo, o genealogista procura articular suas análises fisiológicas do ideal ascético e do niilismo com considerações históricas. Ele mostra a ação das epidemias da saciedade de viver, como a dança da morte de 1348, o pessimismo parisiense a partir de 1850, o alcoolismo, a dança de São João e de São Vito na Idade Média, a depressão e a onda de suicídios na Alemanha depois da Guerra dos Trinta Anos (16181648) (cf. III 13, 17). Acrescentem-se a essa lista de desgraças “epidemias epilépticas, sistema nervoso arruinado, paralisias terríveis, depressões prolongadas, histerias das bruxas, sonambulismo, delírios coletivos sedentos de morte” (GM III 21). Essa vontade de (auto)destruição surge do instinto de espiritualidade, de caráter ascético, que quer negar a natureza e tem como consequência o taedium vitae, a saciedade de viver, o niilismo. O que importa nesse momento é mostrar que a potência da negação própria do ideal ascético é ambígua: “A negação que ele lança à vida traz à luz, como por milagre, uma quantidade de afirmações mais delicadas; sim, mesmo quando ele se fere, esse mestre destruidor, destruidor de si mesmo, - é ainda a ferida que o obriga a viver” (GM III 13). A expressão “como por milagre” traz dificuldades para compreender como a negação ascético-sacerdotal engendra novas afirmações. A descrição da ambiguidade da luta da vida ascética contra a morte é problemática, pois não fica claro em que sentido o sacerdote ascético é uma “potência conservadora e afirmadora” da vida. Fica bem claro, contudo, que o modo de 10 Expresso minha dívida a Angelo Marinucci, por ter apontado nessa passagem da GM a importância da teoria das forças de Nietzsche para a compreensão e efetivação de sua “fisiologia”. Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019 180 Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana valorar do sacerdote ascético torna o homem doente ainda mais doente. E que essas valorações desencadeiam a vontade de nada, como vontade de destruição e de autodestruição. Assim, o fascínio de Nietzsche pelos aspectos potencialmente afirmativos do ascetismo impede que ele distinga claramente o ascetismo do sacerdote ascético do ascetismo dos Filósofos, Espíritos fortes e livres. Detenhamo-nos nos aspectos niilistas dos ideais e valores do sacerdote ascético e de seu séquito de malogrados e ressentidos. No mundo moderno, o niilismo se torna uma condição normal, na medida em que é incontestável que “é normal a condição doentia do homem” (GM III 14). Os fortes e saudáveis são exceções, “acasos felizes”. Mas devem ser fomentados e isolados do contágio dos fracos e adoentados. Por isso, os doentes são o maior perigo para os sadios e para o futuro do homem. E Nietzsche não tem ilusões em relação a eles: “Eles monopolizaram inteiramente a virtude, esses fracos e doentes sem cura, quanto a isso não há dúvida” (GM III 14). Esses doentes incuráveis, no entanto, autoglorificam-se como bons e justos, de modo que forçam os nobres a voltarem-se contra si mesmos, engendrando a doença da má consciência, da crueldade interiorizada. Não podemos ocultar as consequências sociais e culturais dessa afirmação de que os fracos são incuráveis. Até porque eles tiveram êxito em tiranizar os mais sadios, impondo sua forma singular de vontade de poder: “A vontade dos enfermos de representar uma forma qualquer de superioridade, seu instinto para vias esquivas que conduzam a uma tirania sobre os sãos – onde não seria encontrada, essa vontade de poder precisamente dos mais fracos!” (GM III 14). A força dos fracos está justamente em seu instinto gregário. Mas é no rebanho que a doença niilista se prolifera. Por isso, Nietzsche conclui que o sentido do sacerdote ascético está na dominação sobre os que sofrem, partindo do fato de que o próprio salvador e pastor do rebanho é um doente. Mas o sacerdote ascético, apesar de doente, é forte o bastante para dominar: esse estranho médico e enfermeiro doente sabe que “remédios” prescrever para dominar o rebanho doente. E a solução está em propor um sentido a seu sofrimento. Nietzsche não poupa elogios a esse tipo de asceta: ele é “a primeira forma do animal mais delicado”, evolui para um “novo tipo de animal de rapina”, travando guerras “de espírito”, representa novos tipos de ferocidade animal (GM III 15). Por isso, o sacerdote ascético é um inimigo de peso, que ameaça tornar doentes os poucos sadios que ainda restam. O defensor dos ideais nobres suplica por ar puro, por apartar os doentes dos sadios, para precaver os Filósofos do futuro das duas mais terríveis pragas “o grande nojo do homem e a grande compaixão pelo homem!...” (GM III 14). Se o grande nojo e a grande compaixão pelo homem um dia se casarem, darão à luz o que há de mais monstruoso no mundo: “a última vontade do homem, sua vontade de nada, o niilismo” (GM III 14). Parece que isso ainda não ocorreu; nem é desejável que ocorra. Contra isso, o Filósofo quer reabrir o caminho ao futuro criador do homem. 4. O instinto da vida e a vontade de nada Apesar de tornar o rebanho doente ainda mais doente, esse estranho pastor consegue dar um sentido à dor, aos afetos dos sofredores. Após colocar de vários modos a pergunta pelo sentido do ideal ascético no sacerdote, Nietzsche busca respostas que apontem para saídas efetivas ao problema. E uma resposta decisiva é: “O sacerdote ascético é aquele que muda a direção do ressentimento” (GM III 15). É bem elucidativa a interpretação de Antônio E. Paschoal a essa passagem da terceira dissertação: Na terceira dissertação, na qual o ressentimento é associado ao sofrimento interior do homem e esse causado por fatores “fisiológicos” (GM III 15) e o sacerdote ascético é apresentado como aquele que altera a “direção do ressentimento” (GM III 15), tem-se justamente a exposição do modo como aquela concepção de que o sofrimento do homem seria uma espécie de punição é utilizada para conter o rebanho e mantê-lo apaziguado. O ideal ascético aparece, então, como parte do modus operandi da moral do ressentimento, que apresenta o próprio sofredor como o culpado pelo seu sofrimento e, por conseguinte, como o alvo da própria sede de vingança (Paschoal, 2015, p. 27). Com isso, Nietzsche mostra a verdadeira causação fisiológica do ressentimento: é o “entorpecimento da dor através do afeto”, que caracteriza fisiologicamente a vida desses doentes. O sofredor busca instintivamente causas (agentes culpados) para seu sofrimento, para descarregar, para obter alívio, entorpecimento (Betäubung) e narcóticos para seus males. Mas como opera essa mudança de direção do ressentimento? Novamente, Nietzsche recorre ao instinto da vida (der Instinkt des Lebens) para mostrar que a medicação desse estranho pastor não fornece uma verdadeira cura, no sentido fisiológico. Não temos maiores explicações do modo como o instinto profilático da vida tentou através do ascético sacerdote. Parece-me que Nietzsche sobrecarrega o sacerdote ascético com dois impulsos inconciliáveis: o instinto da vida e o instinto ou vontade de nada. O sacerdote ascético, enquanto animal doente e “domador de animais de rapina”, somente de modo temporário expressa o instinto profilático da vida. No fundo, é a vontade de nada que move seu agir e valorar. Infelizmente, Nietzsche pouco desenvolve na terceira dissertação os rumos da vontade de nada no sacerdote ascético e no rebanho doente. Mas fornece uma indicação importante, no sentido de que essa vontade de nada ocorre como uma exaustão, que se alastra de forma epidêmica. “Culpa, pecado” são apenas interpretação de um fato (Interpretation eines Thatbestandes), de uma indisposição fisioló- Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019 181 Clademir Araldi gica (GM III 16): essa é a clarificação fisiológica de Nietzsche às falsificações do sacerdote ascético cristão. Esse falso médico é no fundo um pastor que quer mitigar o sofrimento, a profunda depressão por meio de narcóticos, calmantes e de afetos estimulantes. Nesse ponto, Nietzsche se detém nos meios de cura engendrados pelas grandes religiões para combater essa epidemia da saciedade de viver (cf. GM III 21). O sacerdote ascético não possui um saber fisiológico correto para tratar desse sentimento de obstrução fisiológica e suas erupções na História. Atuando nas grandes religiões, o sacerdote ascético construiria, segundo Nietzsche, tentativas psicológico-morais ruins de cura e de combate a esse cansaço niilista. Nietzsche busca a chave por ora na fisiologia, seguro de possuir um saber fisiológico correto. O pessimismo, nesse sentido, é apenas uma consequência dessa obstrução fisiológica. Apesar de em alguns momentos propor um reducionismo fisiológico, o genealogista propõe uma relação complexa entre fisiologia e psicologia. Os exercícios ascéticos do sacerdote ascético11, vistos pelo ângulo moral-psicológico errôneo, seriam “a renúncia de si”, a “salvação”. Expressos fisiologicamente, eles são formas de hipnotização, utilizadas pelos sportsmen do ascetismo. Há na genealogia nietzschiana aplicações do saber fisiológico adquirido para analisar os rigorosos treinamentos do sacerdote ascético para combater a depressão fisiológica. O sentimento de obstrução fisiológica (physiologisches Hemmungsgefühl) que surge de tempos em tempos nas grandes religiões ou no pessimismo europeu pode ter origem no cruzamento de raças, em uma dieta errada, na degeneração do sangue, etc. (cf. GM III 17). Aquilo que os místicos ou os crentes do budismo, do cristianismo e do bramanismo julgavam ser um mistério: a redenção, o sono profundo, o descanso eterno, a unio mystica com Deus pode ser reduzido em termos fisiológicos à hipnotização. Epicuro, sofredor, de modo mais lúcido e frio, expressou esse sentimento do nada hipnótico (das hypnotische Nichts-Gefühl), esse amortecimento hipnótico da sensibilidade, como o valor mais elevado para sofredores fatigados (cf. GM III 17). Para além da atividade maquinal (um training mais fácil para os sofredores), o sacerdote ascético propõe para os fisiologicamente travados, com doses homeopáticas, a estimulação da vontade de poder, do “impulso mais forte e afirmativo da vida”. Não há que censurá-los, pois os fracos buscam instintivamente se organizar em rebanho, para encontrar um sentido para seu sofrimento. E esse sentido é produzido pelo sacerdote por meio de atividades que conduzem ao excesso de sentimento (die Ausschweifung des Gefühls). O poder do entusiasmo contido nos afetos fortes partilhados alivia a dor do indivíduo. Assim, o excesso de sentimento é obtido no seio da comunidade, da organização gregária (cf. GM III 18 e 19). O doente, pecador, é culpado por seu sofrimento. Com seu olhar hipnótico, o pecador busca em toda parte uma “culpa” como causa de seu sofrer. O mago, o salvador ascético triunfou. Buscava-se sempre mais dor, êxtases, mistérios oriundos do excesso de sentimento, um inferno de dores a afastar qualquer taedium vitae. Assim, Nietzsche conclui que o ideal ascético propiciou o excesso de sentimento, como fármaco com certo prazo de validade para combater a depressão e o mal-estar das massas (cf. GM III 20). Temos uma transição importante: Nietzsche se assume agora (cf. GM III 20) como psicólogo (Wir Psychologen), para diagnosticar que o doente se tornou ainda mais doente, devido às “revanches fisiológicas veementes de tais excessos”. As tentativas de unir a fisiologia com a psicologia do sacerdote ascético são muito limitadas. Nietzsche retoma suas análises da má consciência da segunda dissertação (cf. GM II 16-23), para mostrar como a psicologia da consciência moral liga-se ao sofrimento do homem consigo mesmo, à violenta separação do passado animal. O que há de novo na terceira dissertação são os novos trainings, os exercícios ascéticos do tipo sacerdotal, como novas formas de crueldade para consigo mesmo, que acabam por mudar a direção do ressentimento. O sacerdote ascético, desse modo, é um “verdadeiro artista em sentimentos de culpa” (GM III 20). Mas trata-se de uma espécie de magia negra, pois com sua interpretação religiosa do sentimento de culpa ele torna ainda mais doente o paciente: Apenas na mão do sacerdote, [...] ele (o sentimento de culpa) veio a tomar forma – e que forma! O “pecado” – pois assim se chama a reinterpretação sacerdotal da “má consciência” animal (da crueldade voltada para trás) foi até agora o maior acontecimento na história da alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa (GM III 20). O sacerdote ascético conseguiu triunfar como artista do sofrimento, pois soube utilizar meios efetivos para anestesiar os doentes, com a intenção de propiciar o excesso de sentimento. O problema é que Nietzsche não articula de modo satisfatório seus saberes fisiológicos com a psicologia da consciência moral na terceira dissertação, de modo a investigar o modo de ação e o imenso poder do sacerdote ascético. Ele não chegou a uma crítica interventora ao ideal ascético, para permitir que os Filósofos possam construir novas formas de ascetismo, para reunir condições favoráveis à afirmação da vida e à criação de 11 Em GM III Nietzsche se concentra nos aspectos negativos do ideal ascético ligados à vida gregária. Mas o próprio Nietzsche desenvolveu análises positivas do ascetismo em Humano, demasiado humano, no capítulo “A vida religiosa”, e em Além do bem e do mal, no capítulo “A natureza religiosa”. Nesta última obra, o ascetismo pode significar também uma forma elevada (espiritual) de vontade de poder, que seria atributo dos novos espíritos livres. O fascínio de Nietzsche pela vida ascética dos eremitas e dos filósofos solitários do passado está relacionado a essa elevação do tipo homem. Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019 182 Niilismo e ideal ascético: acerca do valor do ascetismo na genealogia nietzschiana novos valores naturalistas. O genealogista Nietzsche apenas aponta para “espíritos livres”, para “homens do conhecimento”, para ateístas desiludidos, que teriam a tarefa de auxiliar na tarefa de combater a pretensão do sacerdote ascético de estabelecer sua interpretação como a única interpretação. Com a ruína da interpretação moral do mundo, não surge por geração espontânea o ascetismo dos fortes, mas o que prospera é o niilismo enquanto vontade de nada (cf. GM III 23 e 24). Com isso, em sua genealogia do espírito filosófico, desde os velhos brâmanes, passando por todos os disfarces ascéticos da Filosofia – até ele próprio, Nietzsche se depara com o deserto dos valores arruinados do mundo moderno. É dali que terá de vir um dia sua Filosofia do futuro e o que ele chamará posteriormente de “o ascetismo dos fortes”. Por fim, Nietzsche se pergunta acerca do antagonista natural do ideal ascético. Esse antagonista não é a ciência, pois ela não é um “poder criador de valores”. Além disso, a ciência é aliada ao ideal ascético, pois ambos superestimam a verdade (cf. GM III 25). É então que Nietzsche abre um longo parêntesis, para insinuar que a arte é uma antagonista mais radical ao ideal ascético do que a ciência. Terá a arte poder suficiente para se contrapor ao ideal ascético e vencê-lo?12 E que tipo de arte está qualificada para essa tarefa gigantesca? Eis a resposta de Nietzsche: A arte, para antecipá-lo, pois ainda tornarei mais demoradamente ao assunto – a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético: assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a Europa jamais produziu. [...] (GM III 25). O projeto da “fisiologia da arte” será mais desenvolvido no ano de 1888, no ano em que Nietzsche esboçará também “o ascetismo dos fortes”, que valerá como apoio a esse projeto. A solidão e o recolhimento são condições para as tarefas criativas dos Filósofos do futuro e do próprio Nietzsche, que avança bastante no ano de 1887, com sua Genealogia da moral, na confluência do ascetismo com o niilismo. A ciência e a historiografia modernas são avaliadas como niilistas, em grau elevado, expressões oitocentistas do triunfo do ideal ascético. A arte, como glorificação das mentiras e das ilusões, será um dos esforços derradeiros mais significativos de Nietzsche para se contrapor ao niilismo radical que foi nutrido pelos ideais ascéticos. Referências ARALDI, C.L. 2004. Niilismo, criação, aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo/Ijuí, Discurso Editorial/Editoria UNIJUÍ, 475 p. ARALDI, C.L. 2012. Os extremos do niilismo europeu. Estudos Nietzsche, 3(2):169-182. ARALDI, C.L. 2014. Die Vergeistigung der Passion : Nietzsches einzigartige “Moralisierung” der Triebe. In: C. DENAT; P. WOTLING, Les heterodoxies de Nietzsche: Lectures du Crépuscule des idoles. Reims, EPURE, 402 p., p. 225-240. BRUSOTTI, M. 2000. Ressentimento e vontade de nada. Cadernos Nietzsche, 8:3-34. JANAWAY, Ch. 2007. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. New York, Oxford University Press, 284 p. MARTON, S (ed. reponsável). 2016. Dicionário Nietzsche. São Paulo, Edições Loyola, 466 p. (Col. Sendas & Veredas). NIETZSCHE, F.W. 1988. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe (KSA). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin, de Gruyter, 15 vols. NIETZSCHE, F.W. 1998. A genealogia da moral. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 180 p. NIETZSCHE, F.W. 2012. O niilismo europeu. Tradução de Clademir Araldi. Revista Estudos Nietzsche, 3(2):249-255. PASCHOAL, A.E. 2015. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo, Editora Humanitas, 226 p. Submetido em 09 de janeiro de 2019. Aceito em 08 de maio de 2019. 12 Christopher Janaway (2007) afirma que na terceira dissertação da Genealogia Nietzsche esboça duas contraposições ao ideal ascético: a afirmação estética de si mesmo e a satisfação estética consigo mesmo. Essas duas contraposições tenderiam para direções diferentes, na medida em que se vinculam a obras anteriores de Nietzsche, como A gaia ciência e Assim falou Zaratustra, às temáticas do eterno retorno, do amor fati e da estilização do caráter. Entendo que essa contraposição não se sustenta na terceira dissertação, pois ali Nietzsche não vincula a afirmação artística ao eterno retorno e se distancia também da arte de viver do espírito livre, como ele desenvolveu nos quatro primeiros livros de A gaia ciência. Filosofia Unisinos – Unisinos Journal of Philosophy – 20(2):175-183, may/aug 2019 183