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A rural portrait by Fernando Lopes1 Paulo Cunha (CEIS20) paulomfcunha@gmail.com Sinopse: Nós Por Cá Todos Bem (1976) O filme começa com uma senhora idosa numa divisão escura semi-iluminada por uma lareira. Em monólogo, a senhora idosa fala das amarguras e da solidão da vida no campo. É com esta imagem de fundo que surge o genérico inicial, com acompanhamento musical de Sérgio Godinho numa letra que fala sobre o êxodo rural e a emigração e cujo refrão assegura um irónico “nós por cá todos bem”. Findo o genérico, a mesma senhora idosa continua a falar da vivência rural. Um grupo de homens chega para a matança do porco – um rito de enorme significado social e comunitário. Com a ajuda de todos, a matança consuma-se. As mulheres atravessam a aldeia em direcção ao rio onde vão lavar as entranhas do porco para a posterior confecção dos enchidos. O primeiro narrador, o próprio Fernando Lopes, fala pela primeira vez: “Várzea, 18 de Abril de 1976. Nós por cá todos bem ao fazer desta. Depois de termos filmado ontem a matança do porco, e com a equipa já instalada em duas casas da aldeia, começamos hoje verdadeiramente este filme, tentando fixar em imagens e sons o quotidiano da Várzea e dos seus habitantes.” O realizador assume que esta é a comunidade onde nasceu e que a senhora idosa é a sua mãe. Uma claquete com a palavra “Entrevista”. O segundo narrador/entrevistador anuncia a entrevistada: “Elvira Marques, 67 anos, viúva. Natural da Várzea dos Amarelos, aldeia da Beira Litoral.” A mãe do realizador fala sobre o seu percurso de vida, nomeadamente o êxodo para Lisboa e o trabalho na capital. O segundo narrador traça um quadro comparativo das condições de vida na Várzea desde finais dos anos 30 até 1976. Elvira Marques fala sobre a Revolução de 1974, a democratização da sociedade e da sua isolada aldeia. Vila Nova de Ourém, 18 de Julho de 1976. Cerca de 30 anos depois de aí frequentar o ensino primário, o realizador Fernando Lopes regressa com uma equipa de cinema ao 1 Trabalho apresentado em Conferência Internacional Avanca Cinema - Arte, Tecnologia, Comunicação, In Avanca Cinema 2010, Avanca. castelo local para rodar uma reportagem sobre um monumento histórico transformado em atracção turística kitsch. De volta à aldeia, ao som de Vivaldi, a equipa de filmagem almoça com os habitantes da Várzea que os acolhem como uma família. O fim do almoço marca, nas palavras do narrador/realizador, “o fim do documento e o início da ficção”: a actriz Zita Duarte encarna Elvira Marques nos seus tempos de cozinheira em Lisboa, numa sequência musical ambientada numa cozinha. Voltando à actualidade, Elvira Marques demonstra o processo de fabrico tradicional do pão e fala sobre a desertificação do meio rural. Na Páscoa, o pároco percorre a aldeia na tradicional visita pascal. Novo episódio encenado do passado: Elvira Marques (interpretada por Zita Duarte) divide o quarto de dormir com duas colegas de trabalho. Antes de adormecer, a mais velha lê um livro sobre Santa Maria Goretti, Elvira escuta atentamente, deitada na cama, enquanto a mais jovem veste a roupa de dormir. Já deitada, a jovem acaricia-se. Imagens de um filme italiano sobre a Santa Maria Goretti, que se martirizou para se manter virgem e pura. De volta ao Castelo de Ourém: chegada dos turistas norte-americanos e encenação medieval. Imagens do pugilista Belarmino na rua, do filme homónimo de Fernando Lopes. O narrador/realizador fala da influência de Belarmino e da cidade de Lisboa na sua vida. Episódio encenado do passado: numa casa de prostituição, um jovem é seduzido por uma das mulheres. Os dois refugiam-se na intimidade do quarto enquanto um amigo mais velho do jovem espreita pela fechadura. De volta à actualidade, o narrador/realizador fala do ciclo de vida da Várzea e do próprio filme. Imagens da festa religiosa do Senhor dos Aflitos em Ourém, “ponto de reuniões de familiares ausentes”: bandas musicais e fogo-de-artifício. O filme acaba como havia começado. Elvira Marques, à lareira, no escuro, fala da dureza da sua infância. O narrador/realizador grita “Corta!”. Segue-se o genérico final ao som de Sérgio Godinho, com imagens da Várzea e diversas fotografias da equipa de cinema durante a rodagem deste filme. Hipótese de interpretação A minha hipótese de interpretação de Nós Por Cá Todos Bem pressupõe uma decomposição do filme em três níveis narrativos: a) Contexto – Documentário sobre a Aldeia da Várzea dos Amarelos, concelho de Alvaiázere, distrito de Leira. Uma comunidade rural que sobrevive da agricultura e da pastorícia. O filme acompanha o ciclo agrícola como ciclo de vida da comunidade e os hábitos sociais de entreajuda como atitude de sobrevivência. b) Pretexto – Reportagem sobre uma equipa de cinema que chega à pequena aldeia para filmar o quotidiano da povoação e dos seus habitantes. Para além de filmar a aldeia, a equipa faz uma longa entrevista a Elvira Marques, mãe de Fernando Lopes, onde esta fala da sua infância e juventude, do presente e do futuro. c) Texto – Ficção, a partir das suas memórias pessoais, onde Fernando Lopes encena pequenos episódios sobre experiências familiares e pessoais: a sequência musical na cozinha; os rituais das empregadas domésticas antes do adormecer; a iniciação sexual do jovem na casa de prostitutas. Todo o olhar sobre o passado pressupõe uma visão condicionada pela presença de memórias. A par da vontade de aceder à verdade, o realizador é condicionado, como em todo o acto de recordação, pelas preocupações do presente. Num estudo intitulado Mémoire et identité (1998), o antropólogo Joel Candau organiza a memória em três níveis distintos: 1) A proto-memória, “fruto, em boa parte, do habitus e da socialização”. 2) A memória propriamente dita, “que enfatiza a recordação e o reconhecimento”. 3) A metamemória, “conceito que define as representações que o indivíduo faz do que viveu”. Pegando nas três categorias de memória definidas por Joel Candau, proponho associar cada uma delas a cada um dos níveis narrativos do filme. Os três níveis de narrativa anteriormente identificados na decomposição do filme sugerem três abordagens diferentes do ponto de vista do processo criativo e produtivo: - O Contexto (documentário sobre a Aldeia da Várzea dos Amarelos) é um produto da proto-memória: neste plano narrativo, o registo cinematográfico do meio envolvente é construído a partir de um conjunto de heranças – histórica, geográfica, etnográfica e antropológica – pré-existente ao próprio realizador que lhe são legadas por diversos veículos (família, vizinhos, etc.) de forma autónoma ou concertada. - O Pretexto (reportagem sobre a rodagem do filme e a entrevista a Elvira Marques) é um produto da memória propriamente dita: Lopes enfatiza as recordações e o reconhecimento da experiência de vida da sua mãe enquanto testemunha privilegiada das transformações sociais desde o início do séc. XX. Em lugar de recorrer a sociólogos, historiadores ou antropólogos, o realizador opta pelas recordações directas de uma camponesa/serviçal. No filme, não se pretende olhar retrospectivamente o passado, mas olhar subjectivamente, a partir de um caso de estudo, de uma experiência de vida. - O Texto (episódios ficcionados) é um produto da metamemória: a partir das memórias adquiridas e reconhecidas como próprias, o cineasta encena três episódios do passado como tentativa de “re-presentificação” de momentos importantes do seu percurso de vida, numa espécie de ritual de actualização. Para concretizar esta textualização, Lopes convoca a sua memória, o texto e o filme sobre Santa Maria Goretti, os poemas de Alexandre O’Neill (para a canção “Coro das Criadas de Servir”), a coreografia de Elisa Worm ou os cenários e guarda-roupa de Jasmin. O filme constrói-se no encontro destes três níveis de memória que se relacionam e (con)fundem de forma consciente ou inconsciente. A coexistência, dialéctica ou não, destas memórias privadas e públicas deu origem a olhares distintos de Fernando Lopes. Este filme é também o encontro de três formas diferentes de representar a cultura popular no cinema português dos anos 1960/70. Como resume Catarina Alves Costa (2010, p. 87), no “movimento de um cinema que representa a cultura popular, as intencionalidades variavam e por vezes cruzavam-se: o cinema etnográfico, quando de arquivo, punha o seu acento nas tecnologias e no ciclo agrícola, ou então no gesto ritual. Por sua vez, o cinema político, também ele um cinema de registo, punha o seu acento no discurso verbal que ilustrava uma verdade histórica. Ao cinema poético interessava, mais do que ilustrar, revelar, construir a partir da matéria etnográfica um universo que remetia para o mundo interior dos realizadores.” Para mim, este filme é exemplar no cruzamento destes três níveis distintos de intenções: - O Contexto (documentário sobre a Aldeia da Várzea dos Amarelos), expressão da proto-memória, assume as características do cinema etnográfico; - O Pretexto (reportagem sobre a rodagem do filme e a entrevista a Elvira Marques), expressão da memória propriamente dita, adopta a estratégia do cinema político; - O Texto (episódios ficcionados), expressão da metamemória, é a forma do cinema poético. A análise que tento de seguida propõe um cruzamento entre os três níveis narrativos, os três níveis de memória e os três “géneros” cinematográficos até aqui expostos. Contexto – Um olhar etnográfico Eu vivi permanentemente na conjugação do documentário e da ficção. Eu achava – e acho – que muitas vezes a ficção é um grande documentário e que o documentário, à sua maneira, contém muita ficção. (…) E o Nós por cá todos bem é isso. Aí eu tive a possibilidade de combinar tudo: o documentário clássico, quase etnográfico quase antropológico também – a matança do porco, o almoço em família com toda a gente (neste caso incluindo a equipa de rodagem) – e depois o lado biográfico todo daquela senhora que, em vez de ser contado por ela – que provavelmente a minha mãe contaria aquilo de uma forma extremamente dura e dramática – eu decidi contar cantado e dançado. Fernando Lopes, Fernando Lopes Provavelmente, min. 78. No genérico final do filme surge uma declaração: “Este filme faz parte da série ‘Museu da Imagem e do Som’ do C.P.C.”. A primeira vez que se terá falado publicamente do projecto Museu da Imagem e do Som foi em Dezembro de 1967, na célebre mesa-redonda que encerrou os trabalhos da Semana do Novo Cinema Português. A produção de “um conjunto de documentários do tipo ‘museu da imagem e do som’” foi uma das deliberações saídas dos mais mediáticos estados gerais do cinema português. Paulo Rocha, ligado ao início do Museu da Imagem e do Som enquanto presidente da direcção do Centro Português de Cinema/CPC (197374), recorda que a designação escolhida para o projecto – “um título populista grato ao poder revolucionário, e que eu tinha trazido do Rio de Janeiro” (Rocha, 1991, p. 6) – havia-se inspirado num museu audiovisual homónimo daquela cidade brasileira (MISRJ) que tinha sido inaugurado em 1965. António Reis terá sido, senão mesmo “o teorizador do projecto” (Costa, 1985, p. 128), um dos grandes dinamizadores do Museu da Imagem e do Som. A apresentação do projecto Nordeste – que se viria a tornar no singular Trás-os-Montes (1976) – funcionou como uma espécie de memória descritiva ou esboço da ideia que António Reis sustentava para um futuro Museu. Reis considerava este projecto “um dever histórico”, pois propunha registar para a posteridade “valores de imaginação, valores poéticos, lúdicos, arquitectónicos, de fauna e de flora” da região em causa. Mais do que um projecto antropológico ou etnográfico, o Museu seria um registo vivo do reportório humano, civilizacional e geográfico do Portugal profundo. Mais do que um mero registo documental, Reis queria “recriar” os sons e as imagens do imaginário transmontano: “Dir-me-ás que é falsear o real, mas, no nosso sonho, não pretendemos atingir uma verdade absoluta...” (António Reis cit. in Monteiro, 1974, p. 29-30). Eduardo Prado Coelho (1983, p. 70) integrou o projecto Museu da Imagem e do Som no momento em que “um sector muito significativo dos trabalhadores de cinema decidiu intervir na recolha de toda uma memória cultural do nosso povo prestes a ser varrida pelos moldes uniformizantes da cultura de massas”. No entanto, para Prado Coelho (p. 71), a “própria designação envolvia um paradoxo”. O complexo “movimento antropológico” desenvolvia-se no ambíguo território que demarca o documental e o ficcional: “este ‘retrata’ uma realidade que já não existe, que nunca existiu, impossível de existir, mas retrata-a com a mais implacável das fidelidades. Fidelidade a quê? Diríamos que a uma visão do mundo, no sentido mais visionário da fórmula, ou, se não tivermos medo da palavra, a uma metafísica (Ana será a revelação plena disso)” (Ibidem, p. 72). O projecto Museu da Imagem e do Som foi sobretudo uma ideia de cinema, um plano de intenções que marcou diversos realizadores portugueses durante esses anos e que teve obras mais ou menos conseguidas. Independentemente do reconhecimento da generalidade das obras filiadas neste Museu, este “momento antropológico” mostrou uma audácia e uma versatilidade criativa que constituiu uma etapa importante na construção da identidade do cinema português e do Portugal recém-democrático. A parte dita documental ou de vocação etnográfica do filme assenta sobretudo em dois rituais ligados ao ciclo da natureza: a matança do porco e o fabrico do pão. A importância material destes dois rituais tradicionais – porque garantem a alimentação e a sobrevivência dos camponeses durante toda a vida – é reforçada por uma dimensão colectiva que envolve toda a comunidade. No entanto, tal como Manoel de Oliveira em O Pão (1959), o registo cinematográfico de processos tradicionais é mais um pretexto para filmar a relação do homem com a natureza, o sentido telúrico da paisagem e da ruralidade, do que propriamente um registo de arquivo etnográfico. A forma poética e autoral como Lopes filma os dois processos – usando diversas câmaras para filmar o mesmo objecto de ângulos diferentes e sobrepondo-os, usando voz off não-síncrona, misturando música de Vivaldi – afastam o registo cinematográfico da sua vertente etnográfica e aproxima-o do registo poético. Em suma, não é o real que interessa ao cineasta, mas antes “uma aparência fantomática desse real”. Como sublinha Catarina Alves Costa (2010, pp. 88), a generalidade dos filmes etnográficos trabalha a partir da “ideia do momento presente, do aqui e agora”, mas neste filme – tal como nos filmes de António Reis e Margarida Cordeiro – sobressai uma dimensão onírica e ficcional sem grandes preocupações científicas. Tratase, essencialmente, de um etnografia espontânea onde a “procura da tradição, do arcaico, do original (…) é acompanhada por um nostálgico sentimento de continuidade histórica para com as gerações passadas.” O cineasta parte para este filme com uma ideia de recolha, colecção e inventário enquanto mecanismo de retorno a uma origem mais pura e menos corrompida. Em simultâneo, este arquivo de imagens e sons também potencia o impulso criador do cineasta, adquirindo uma dimensão de espaço (re)fundador. O que não interessa definitivamente a Fernando Lopes é a folclorização e a estilização que as ideologias fazem do passado. A encenação medieval pseudo-histórica no Castelo de Ourém, promovida por uma empresa de turismo (Castles of Portugal Incorporated), é o contraponto do trabalho proposto por Lopes para a perpetuação da memória: “Descobrimos rapidamente que não há memória que resista a um grupo de turistas americanos que brincam à história de Portugal pelo preço de uma refeição tax-free acompanhada de uma banda sonora saída de um filme do Cecil B. DeMille.” Existe no filme uma consciência de que cada presente constrói o seu próprio passado, não só em função da onticidade do que ocorreu, mas também das necessidades e lutas do presente. O uso recorrente da memória como instrumento de manipulação e de uso político-ideológico, respondendo a uma necessidade de “reinventar” o passado através de processos de formação ou “refundação” de novas ideias, exige agora um trabalho de descontextualização ou re-contextualização para salvaguardar as tradições e memórias autênticas. Este filme insere-se, segundo Catarina Alves Costa (ibidem), no cinema que “procurou o país (…); que saiu da cidade e se encontrou no rural, na interioridade, na procura da autenticidade, legitimou, de certa maneira, a procura uma certa ideia de povo, através de atitudes diferentes: a atitude mais científica, ou etnográfica, a atitude mais politizada, que corresponde aos anos da revolução e finalmente a mais assumidamente poética.” Os gestos e modos registados neste filme reforçam uma certa ideia do mundo rural enquanto repositório da tradição, do primitivo e do arcaico que estava em vias de extinção, que definhava de dia para dia com o envelhecimento das pessoas e o êxodo das novas gerações. O registo destes gestos e modos permitirá sempre um regresso, ainda que virtual, através do cinema, a esse estado utópico que repousa para sempre na memória e no passado. Pretexto – Um olhar político Eu dizia que gostava de ser radical, de ir às minhas raízes, voltar à minha aldeia e perceber qual é a minha origem e a minha posição de classe. Fernando Lopes, cit. In Fernando Lopes Por Cá, p. 86. Em texto recente a propósito do cinema de António Reis/Margarida Cordeiro, a antropóloga Catarina Alves Costa (2010, p. 86) fala de “um movimento de incursão da esquerda na cultura popular, um movimento de intelectuais e também de cineastas” que, a partir dos anos 60, criaram um cinema de raiz documental que pretendia cultivar um imaginário ligado a uma ideia de povo com uma atitude estética, intelectual e política próprias. Fernando Lopes começa por induzir o espectador em erro, fazendo-o acreditar que estas pessoas, de condição humilde e semi-analfabeta, não tinham preocupações políticas ou assumiam mesmo uma atitude apolítica: “Deixámos Lisboa engalfinhada na campanha eleitoral para a primeira Assembleia da República e, chegados aqui, descobrimos que estamos noutro planeta. Eleições e Assembleia da República são palavras que na Várzea quase não têm eco nem significado, tão poucos são os seus habitantes e tantos os problemas com as próximas sementeiras do milho que hão-de garantir a sobrevivência dos que ainda restam.” No entanto, apesar de manifestarem um certo alheamento da política partidária, os habitantes da Várzea tem consciência política de classe, reconhecendo as desigualdades sociais e todos os problemas efectivos do quotidiano. O isolamento e a desertificação, provocados pelo êxodo rural para Lisboa e pela emigração para o estrangeiro, são sintomas de perda de qualidade de vida mas também de um certo atraso civilizacional: “A electricidade só agora [1976] chegou aqui, e com ela a televisão, as notícias e o mundo. O tractor saltou finalmente a estrada nacional e, por carreiros difíceis e quase intransitáveis, substitui os braços dos homens ausentes a ganharem lá fora a vida que estas terras, transmitidas por gerações e gerações de sacrifício e amor, não conseguem assegurar.” As letras das duas canções do filme – “Nós por cá todos bem”, letra de Sérgio Godinho; “Coro das Criadas de Servir”, letra de Alexandre O’Neill – reforçam inequivocamente o carácter político e ideológico subjacente. Na primeira, canção do genérico, a ênfase é posta sobre o fenómeno do êxodo rural e da emigração: “(…) Emigrar, uns para a França e outros para a morte/ E desta sorte já todos lá vão/ Vão e vem, nós por cá todos bem/ Alugados, uns para Lisboa e outros para a vida/ E à despedida, uns ficam e outros vão/ Vão e vem, nós por cá todos bem/ (…) Regressar, com a folha aos ombros e a raiva ao lume/ Que é já costume vermo-nos sem tostão/ Lembro bem, nós por cá todos bem/ Tenho as mãos com as veias duras demais/ Desde sempre, a trabalhar, para nunca ser ninguém/ Nós por cá todos bem/ (…)” Como destaca o segundo narrador – o jornalista que entrevista Elvira Marques –, a história das famílias da Várzea está marcada pela emigração: “as famílias espalhadas pela África, pelo Brasil e, nos últimos anos, pela França”. De resto, a mãe do realizador foi empregada doméstica e cozinheira em Lisboa durante quase 35 anos, servindo em casas aristocráticas ou da alta burguesia, com severas condições de trabalho. As precárias condições de vida do campesinato rural são o tema principal da letra de Alexandre O’Neill em “Coro das Criadas de Servir”: “(…) Ela sachava, ela lavrava, ela montava por conta dos honrados dos pais/ Mentira, mentira/ Agora é serviçal para todo o serviço/ Verdade, verdade/ (…) Ela foi metida num comboio-correio e veio rapariga para casa de um doutor/ Mentira, mentira/ Agora corre e espreita quando ouve um motor/ Verdade, verdade/ (…) Ela bem podia ter sido, se quisesse, puta… e até puta de classe/ Mentira, mentira/ Mas na luta de classes, deu-lhe para ser criada/ Verdade, verdade/ (…)” Tanto o realizador como a sua mãe transmitem um sentimento de cepticismo em relação ao futuro, porque sugerem que a mobilidade de classes ou a ascensão social são fenómenos ainda mais raros no meio rural. A participação política também era uma realidade estranha à maior parte dos trabalhadores rurais assalariados, geralmente analfabetos ou semi-analfabetos. Passaram dois anos entre a Revolução de 1974 e o período de rodagem deste filme. O sentimento na população da Várzea dos Amarelos varia entre a decepção e a desconfiança. Lopes destaca um mural da aldeia onde se pode ler a seguinte frase: “O 25 de Abril ainda não chegou a este concelho”. Para a generalidade da população rural, que esperava grandes mudanças na qualidade de vida e nas condições de trabalho, os primeiros tempos da revolução foram algo decepcionantes. Lopes tenta demonstrar que a revolução foi essencialmente um fenómeno urbano – sobretudo lisboeta – com dificuldade em comunicar com as camadas mais populares. Por outro lado, a instabilidade do recente regime democrático também causava alguma preocupação aos habitantes mais idosos, sobretudo devido às transformações políticas e sociais que a revolução poderia desencadear. É em Deus e na religião que Elvira Marques encontra algum conforto, segurança e esperança no futuro. Do discurso da anciã, que representa aqui a generalidade do mundo rural, ressalta uma certa desconfiança em relação às ainda pouco definidas transformações sociais e políticas precipitadas pela revolução: “Está bem, a mudança é boa, também não digo que não é. Mas é preciso que a mudança dê qualquer coisa de capaz. Não é só mudar, é fazer as coisas!” Texto – Memória e autobiografia Nós por cá todos bem – ou a coragem de um cineasta que faz a travessia do deserto da sua própria memória, recusando a ilusão do oásis do seu ‘eu’, para antes o confrontar, permanentemente, com o ‘nós’ da comunidade nacional a que pertence. E é mergulhando nas raízes profundas da história de cada uma, que iremos encontrar e inventar o sentido da História de todos!!! Maria João Seixas, in Fernando Lopes Por Cá, p. 134. O historiador Fernando Catroga (2001, pp. 15-16) sublinha que enquanto o primeiro nível de memória “se refere a algo de passivo – ao que os gregos designavam por mneme”, os outros dois níveis “recobrem a noção de anamnesis ao significarem a procura activa de recordações”. As recordações radicam na subjectividade, “embora cada eu só ganhe consciência de si em comunicação com os outros, pelo que a evocação do que lhe é próprio tem ínsitas as condições que a socializam.” Ainda segundo Catroga (ibidem, pp. 16-18), a memória individual “é formada pela coexistência, tensional e nem sempre pacífica, de várias memórias (pessoais, familiares, grupais, regionais, nacionais, etc.) em permanente construção devido à incessante mudança do presente em passado e às consequentes alterações ocorridas no campo das re-presentações do pretérito”. Enquanto processo relacional e inter-subjectivo, a memória privada constrói-se em interacção simultânea com outras memórias privadas e com a memória social, colectiva ou pública. A memória, marcadamente selectiva e subjectiva, “não é um armazém que, por acumulação, recolha todos os acontecimentos vividos por cada indivíduo, um mero registo”, mas antes uma construção feita a partir da “retenção afectiva e ‘quente’ do passado feita dentro da tensão tridimensional do tempo”. Com o tempo, o esquecimento vai sendo preenchido “como se o percurso autobiográfico fosse um continuum, cuja coerência existencial unifica os buracos negros da caminhada”. É também frequente que, por este mecanismo, a “verdade factual se miscigene com conotações estéticas e éticas” (ibidem, pp. 20-21). Fernando Catroga (ibidem, pp. 22-23) adverte que, nas relações entre memória e imaginação artística, o processo de construção do passado através da memória é distinto do processo criativo e artístico, porque enquanto o primeiro se subordina a um princípio de realidade e de referencialidade, a representação estética dispensa argumentos de veridição. Apesar de diferir nos mecanismos de construção, a memória precisa das representações artísticas como veículos de uma liturgia social centrada no reavivamento de uma realidade que já não existe. É precisamente esta função social que Lopes pretende para o seu filme. Não é por acaso que o cineasta filma os tradicionais ritos sociais da matança do porco – “foi a última que se fez ali” (Lopes cit. in Andrade, 1996, p. 88) – ou do fabrico do pão – também em vias de extinção. Por outro lado, Lopes também rejeita fazer apenas um filme estritamente sociológico ou documental, conferindo-lhe uma dimensão poética e ritual bem vincada. Enquanto rito de recordação, comemoração, legitimação, este filme de Fernando Lopes pretende procurar uma coerência e perpetuar um sentimento de pertença, instituir a sua identidade (pessoal, familiar, regional) como um produto social e subjectivo: “O imaginário da memória liga os indivíduos, não só verticalmente, isto é, a grupos ou entidades, mas também a uma vivência horizontal e encadeada do tempo (subjectivo e social), inserindo-se numa ‘filiação escatológica’ garantida pela reprodução (sexual ou familiar) das gerações e por um ideal de sobrevivência na memória dos vivos. A memória revivifica-se, portanto, num ‘campo de experiência’ aberto à recordação e às expectativas, horizonte que a recebe como herança e como um imperativo de transmissão, num aceno em que se promete ser possível vencer a morte, jogo ilusório que faz esquecer que, tarde ou cedo (duas, três gerações?), também os mortos ficarão órfãos de seus próprios filhos.” (Catroga, 2001, pp. 28-29). Em Nós por cá todos bem, Fernando Lopes usa a(s) memória(s) como instância construtora e solidificadora de identidades. Tal como todas as liturgias de recordação, o filme procura “socializar e enraizar a(s) nova(s) memória(s) em construção (ou em processo de refundação)” (ibidem, p. 57), contribuindo de forma decisiva para a interiorização e legitimação de um novo imaginário. Tal como os ritos cívicos, “que punham em cena processos comuns à construção da memória individual (re-fundação, identificação, filiação, distinção, finalismo)” (ibidem, p. 61), o filme assume uma função cívico-pedagógica através da invocação de um culto nostálgico. Considerações finais Vinte anos depois da rodagem de Nós Por Cá Todos Bem, Fernando Lopes decidiu voltar à Várzea dos Amarelos e à figura da sua mãe num novo documentário: Se Deus Quiser… (1996). Intercalado por várias sequências de Nós Por Cá Todos Bem, este documentário propõe-se fazer um balanço, agora sem intermédios ficcionais, sobre os últimos vinte anos de existência daquela pequena comunidade a partir da conversa entre a sua mãe e a sua esposa Maria João Seixas. O cineasta confessa (in Fernando Lopes Provavelmente, min. 82) que pretenderia rodar ainda um terceiro filme sobre a sua comunidade natal e sobre a sua mãe: “No fundo era muito simples: era na mesma aldeia e a minha mãe, com os netos todos e bisnetos, ia-lhes mostrar, a cada um deles, cada bocadinho de terra que ela tinha. Era uma viagem dela pelas pequenas terras, porque ela passava o tempo com medo que nós esquecêssemos onde é que estavam aquelas terras. E tinha um título que era Assim seja.” Nós Por Cá Todos Bem é um filme sobre o sentimento de perda, a inevitabilidade do tempo e o isolamento. Em plena revolução, de desconstrução e reconstrução, este filme é uma reflexão pessoal de Fernando Lopes sobre a identidade nacional, a ideia de povo e de cultura popular. É um estudo de caso que procura analisar de forma directa as condições de existência do mundo rural em oposição, ou contraponto, ao modo de vida urbano. Fernando Lopes faz um elogio a uma forma de comunismo primitivo, ainda que pouco consciente na população católica e conservadora desta comunidade, que contraria o discurso e imaginário ruralista e folclórico promovido durante o período de vigência do Estado Novo. O filme enceta uma busca pela autenticidade e verdade do mundo rural (construída em contraponto a uma cultura urbana marcadamente burguesa) que valoriza a cultura oral e popular como contraponto a uma cultura escrita e erudita característica do meio citadino. Fernando Lopes propõe um filme sobre as suas origens como pretexto para filmar a aldeia onde nasceu e que abandonou para ir viver em Lisboa, movimento comum a várias gerações de portugueses. Este regresso às origens parece corresponder a um desejo de redenção interior que pretende reconciliar-se com a sua identidade, e sobretudo com a figura paternal. Sob a forma de uma viagem à aldeia natal, o cineasta recorre ao passado – reencontrar a sua identidade – para viver o presente e preparar o futuro. Para além da redenção individual, o filme aponta também caminhos de aperfeiçoamento para uma revolução em curso que ameaça aburguesar-se. A opção de, em plena campanha eleitoral, um cineasta politizado como Fernando Lopes se dedicar a realizar um filme sobre o modo de vida de uma pequena comunidade agro-pastoril do Portugal profundo – como o fizeram António Reis e Margarida Cordeiro – parece-me um claro depoimento político. O cineasta sugere que o presente pode aprender e tomar em consideração a forma como essa comunidade sobreviveu durante séculos e foi passando gestos e hábitos de geração em geração através da oralidade. É esse modo de (sobre)vivência primitivo e arcaico, em que o homem está umbilicalmente ligado à terra (raízes) durante todo o seu ciclo de vida, que fascina o cineasta. No entanto, esta vontade de Lopes em conhecer as raízes e valorizar o passado não parece implicar nenhuma atitude reaccionária, apenas a procura de novos sentidos para o processo revolucionário. Referências bibliográficas Andrade, José Navarro de (coord.) (1996) – Fernando Lopes Por Cá. Lisboa: Cinemateca Portuguesa. Catroga, Fernando (2001) – Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto. Coelho, Eduardo Prado (1983) – Vinte anos de cinema português 1962-1982. Lisboa: Centro Nacional de Cultura. Costa, Catarina Alves (2010) - «O cinema de Reis e Cordeiro e a Representação da Cultura Popular». In: PANORAMA 2010, Catálogo da 4.ª Mostra de Documentário Português. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, Videoteca Municipal de Lisboa, APORDOC e EGEAC, pp. 86-89 Costa, João Bénard da (2007) – Cinema Português: Anos Gulbenkian. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Cunha, Paulo (2009) - «Museu da Imagem e do Som». In: Catálogo Filminho 2009 - Festa do Cinema Galego e Português. VN Cerveira/Tomiño, pp. 80-85. Lopes, Fernando (1985) – «Centro Português de Cinema». In Cinema Novo Português 1960-74. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, pp. 58-70. Monteiro, João César (1974) – «Entrevista a António Reis». In Cinéfilo, 20 de Abril de 1974, pp. 23-32. Reis, António (1974) – «Arquitectura do Nordeste». In Cinéfilo, 6 de Abril de 1974, pp. 24-25. Referências filmográficas Fernando Lopes Provavelmente (2008). Realização: João Lopes. Produção: Midas Filmes. Nós Por Cá Todos Bem (1976). Realização: Fernando Lopes. Produção: Centro Português de Cinema. O Pão (1959). Realização: Manoel de Oliveira. Produção: Federação Nacional dos Produtores de Trigo Se Deus Quiser… (1996). Realização: Fernando Lopes. Produção: RTP/Ministério da Cultura. Trás-os-Montes (1976). Realização: António Reis e Margarida Cordeiro. Produção: Centro Português de Cinema. Resumo "(...) I proposed doing a sort of museum of image and sound of the Portuguese reality through documentaries, where each director could show his region, or its cultural region. Then came Trás-os-Montes by António Reis and Margarida Martins Cordeiro. Noémia Delgado directed right afterwards Máscaras, António Campos made [Falamos de] Rio d'Onor and I directed Nós Por Cá Todos Bem." Fernando Lopes, 1996. The action of Nós Por Cá Todos Bem (1976-78) takes place in the hometown of Fernando Lopes and the film's protagonist is the director's own mother. It is primarily a movement of the director in search of his family, his community and historic roots. At the same time it is an attempt to assess, from the living testimony of his mother, the influence exerted by the population in a legacy of emotional heritage. Formally, the film is constructed through the mixture of two representational modes, which confuse and contaminate each other: a documentary record portrays the present in an objective way, while a fictional record stages a subjective view of the past. This presentation intends to determine to what extent the film contributed, in the aftermath of the Revolution of April 1974, to a reflection on national identity and on the ideas of people and popular culture. It will also reveal the process of ‘deconstruction’ and ‘reconstruction’ of the discourse and imagery of the ruralist landscape and folklore of the Estado Novo regime, reviewing adjectives as 'authentic', 'primitive', 'popular' and 'rural' and reinventing the representation of rural space. Palavras-chave Fernando Lopes, New Portuguese Cinema, Museum of Image and Sound, Popular culture, People; Paulo Cunha Nacionalidade portuguesa paulomfcunha@gmail.com 967557061 Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra – CEIS20