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ISSN on-line: 0104-6578
Doi: 10.17058/signo.v46i87.16665.
Recebido em 30 de Maio de 2021
Aceito em 25 de Agosto de 2021
Autor para contato: assisguilherme@live.com
Reflexões sobre um processo de tradução: história, teatro e pintura em uma obra de
Rafael Alberti
Reflexiones sobre un proceso de traducción: historia, teatro y pintura en una obra de Rafael Alberti
Guilherme Assis dos Reis
Universidade Federal de Alfenas – Unifal –Minas Gerais – Brasil
Kátia Aparecida da Silva Oliveira
Universidade Federal de Alfenas – Unifal –Minas Gerais – Brasil
Resumo: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o processo de tradução crítica
que realizamos da obra teatral Noche de Guerra en el Museo de Prado (1956), do
escritor espanhol Rafael Alberti (1902-1999), a primeira realizada em língua portuguesa,
conforme temos notícia. Essa peça, que se situa temporalmente no momento da Guerra
Civil Espanhola, é construída a partir de uma relação interartes que faz dela original e
inovadora, o que motivou o interesse por sua tradução e difusão entre os leitores
brasileiros. Neste artigo, discutimos a natureza do texto teatral e a problemática que
envolve traduzir o texto dramático, especialmente no caso de uma obra que dialoga com
outras artes. A partir de nossa experiência de tradução, destacamos o interesse em
estabelecer uma tradução que considerasse o público brasileiro e que permitisse uma
aproximação com uma história e cultura com as quais, talvez, não tivesse intimidade.
Buscamos discutir e apresentar, assim, as dificuldades que foram encontradas ao
traduzir uma obra cuja finalidade deixa de ser apenas a representação cênica, mas
também a construção de um discurso interartes.
Palavras-chave: Noche de Guerra en el Museo del Prado; Rafael Alberti; Tradução
Crítica; Tradução de teatro; Interartes.
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre el proceso de traducción
crítica que realizamos de la obra teatral Noche de Guerra en el Museo de Prado (1956),
del escritor español Rafael Alberti (1902-1999), la primera realizada en lengua
portuguesa, según que tenemos noticia. Esta pieza, que se ubica temporalmente en el
momento de la Guerra Civil Española, es construida a partir de una relación interartes
que la hace original e innovadora, lo que nos motivó el interés por su traducción y
difusión entre os lectores brasileños. En este artículo, discutimos el tipo del texto teatral
y la problemática que involucra la traducción del texto dramático, especialmente en el
caso de una obra que dialoga con otros tipos de arte. A partir de nuestra experiencia de
traducción, destacamos el interés en establecer una traducción que llevara en
consideración el público brasileño y que le permitiera una aproximación con una historia
y cultura con las cuales, quizás, no tenga intimidad, quizá. Buscamos discutir y
presentar, por consiguiente, las dificultades que encontramos en la traducción de una
obra cuya finalidad no está únicamente en la representación escénica, como también
en la constitución de un discurso intereartes.
Palabras-llave: Noche de Guerra en el Museo del Prado; Rafael Alberti; Traducción
Crítica; Traducción de teatro; Interartes.
Signo. Santa Cruz do Sul, v.46, n. 87, p. 124-125, set/dez. 2021.
A matéria publicada nesse periódico é licenciada sob forma de uma
Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional
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Reflexões sobre um processo de tradução
O autor estabelece uma complexa relação
1 Introdução
A obra Noche de Guerra en el Museo de Prado
(1956) é uma peça teatral que Rafael Alberti (19021999) escreve durante seu exílio na América Latina,
que se inicia depois da Guerra Civil Espanhola (19361939), forçado pelo governo ditatorial que é implantado
na Espanha. Da poesia à dramaturgia, Rafael Alberti
utilizou-se de diversas manifestações artísticas para se
expressar e para representar seus fortes sentimentos
em relação à sua terra natal e para destacar suas
posições políticas.
Alberti começa a se interessar pela escrita
após anos de dedicação à pintura, a partir de seu
contato com grandes nomes da vanguarda espanhola
do século XX. Alberti conta com uma grande produção
literária, sendo autor de obras poéticas como Marinero
en tierra (1924), A la pintura (1948), Las 4 estaciones
(1985), e também das obras teatrais Fermín Galán
(1931), La Gallarda (1945), Noche de Guerra en el
Museo de Prado (1956), entre outros. O poeta,
dramaturgo e pintor viveu para as artes e deixou um
grande legado para a literatura espanhola.
Alberti escreve Noche de Guerra en el Museo
de Prado depois de mais de vinte anos exilado do seu
país. Depois de uma viagem pela Europa e com ganas
de voltar à Espanha, o pintor escreve essa peça, na
qual remonta um dos momentos iniciais da Guerra Civil
que dividiu a Espanha no começo século passado. A
obra tem um enredo que se desenvolve em meio aos
bombardeios que a cidade de Madrid sofreu e retrata
uma das missões de que o autor participou junto à
Alianza de Intelectuales Antifascistas, organização
política da qual era membro.
Dividida em um prólogo e ato único, como diz
o título original, a obra de Alberti traz à tona a retirada
dos quadros do Museu para que sobrevivessem aos
ataques aéreos. Para contar a história, os personagens
pintados nos quadros ganham vida e se posicionam a
fim de defender uma Espanha à beira de mais uma
guerra. Ressalta-se, aqui, que a grande maioria dos
quadros remetem às guerras decorrentes das invasões
napoleônicas a Espanha (1808) e daí surge uma
interessante relação intertextual.
entre Pintura, Teatro e História, que transforma a peça
em uma grande obra. Alberti cria uma maneira única de
explanar o contexto histórico da segunda metade dos
anos 30 através do teatro, dotando a obra de grande
valor literário e cênico. Pensando nisso, realizamos a
Tradução Crítica de Noite de Guerra no Museu do
Prado (2019), com o intuito de aproximar o público
brasileiro dessa peça até então sem tradução.
Considerando que alguns temas e pinturas
abordados na peça poderiam não ser conhecidos pelo
público brasileiro, reunimos com a tradução um estudo
introdutório dividido em quatro partes que prepara o
público brasileiro para a peça que irá ler. A tradução foi
desenvolvida em um projeto de Iniciação Científica
(PIBIC/CNPq), pela Universidade Federal de Alfenas,
iniciada em agosto de 2018, com final em julho de 2019
e ainda não foi publicada.
Neste
trabalho
apresentamos
algumas
reflexões acerca do texto teatral e das especificidades
que envolvem a sua tradução. Para tal, recorremos a
Sábato Magaldi (1994), Ryngaert (1996) e Pascolati
(2019), que nos apresentam definições pertinentes ao
texto teatral como texto literário e texto voltado para a
representação cênica. Os trabalhos de Bassnett (1980)
e
Zurbach
(2021)
foram
essenciais
para
que
pensássemos a tradução do texto teatral com finalidade
não unicamente cênica, mas também como texto
literário e, a partir disso, poder analisar todas as
dificuldades que foram vivenciadas ao longo do
processo tradutório.
2.
Rafael Alberti e Noche de Guerra en el
Museo de Prado
Rafael Alberti (1902-1999) foi um homem das
artes. Escritor, dramaturgo e pintor espanhol, nasceu
na pequena cidade de El Puerto de Santa María, em
Cádiz, onde desde muito cedo começou a demonstrar
seu interesse pelas artes através da criação de retratos
dos navios que lá desembarcavam. No entanto, é em
1917, quando seu pai se muda para Madrid, que Alberti
tem seus primeiros contatos com as grandes obras de
arte espanholas. A ida para a capital permitiu que
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Dos Reis, Guilherme Assis.
Alberti tivesse a oportunidade de entrar em contato com
de “estudar os novos movimentos cênicos” (CERIOGLI,
o Museu do Prado, lugar no qual ele começa a
p. 14). Nessas viagens o escritor entrou em contato com
desenvolver suas habilidades artísticas (CERIOGLI,
grandes dramaturgos, como Bertolt Brecht (1898-
2001, p. 12). O futuro escritor passava horas no museu,
1956), que se tornaria um dos amigos mais influentes
analisando os quadros expostos, para que depois
de Alberti, chegando até mesmo a ajudar em algumas
pudesse realizar seus próprios trabalhos. Devido aos
de suas obras teatrais, como em Noche de Guerra en
longos períodos em que passava por lá, o Museu do
el Museo de Prado, obra que traduzimos e que motiva
Prado tomou uma grande importância para a vida de
as reflexões apresentadas nesse trabalho.
Alberti. Mais do que um espaço histórico, o museu se
tornou uma escola e uma segunda casa para ele.
Em 1923, Rafael Alberti passa a se dedicar à
A referida obra foi escrita em 1956, quando
Alberti e sua família já viviam seu exílio rio-platense, em
decorrência
da
guerra
e
da
ditadura
que
se
escrita. Nesse ano, o agora escritor espanhol produz
desenvolveram na Espanha. Noche de Guerra, assim
seu
tierra,
como grande parte da obra de Alberti, evoca eventos
posteriormente renomeado como Marinero en tierra
ocorridos na Guerra Civil Espanhola. Mayra Carvalho
(1924). É também nesse ano em que ele se encontra
(2016, p. 145), em um estudo das poesias de Alberti,
com os outros artistas, posteriormente conhecidos
aponta que esse era um tema recorrente nos escritos
como integrantes da Generación de 27.
do autor, principalmente nos anos em que a Guerra
primeiro
livro
de
poesias:
Mar
y
Ao lado de grandes nomes da literatura e
acontecia. Segundo ela, através das poesias de Alberti,
dramaturgia espanhola, como Frederico García Lorca
inseridas no Romances de la Guerra de España (1938),
(1828-1936), Ernestina de Champourcín (1905-1999),
é possível identificar alguns eventos acontecidos
Jorge Guillén (1893-1984) e María Teresa León (1903-
durante a Guerra: nos poemas vemos, por exemplo, “a
1988), além de pintores, cineastas e músicos, Alberti
tomada da residência do Duque de Alba pelos
participou de uma renovação artística. Esse encontro
milicianos, o papel da Catalunha e do País Basco e o
foi essencial para que ele se interessasse ainda mais
engajamento de poetas de todo o mundo à causa
pela escrita e passasse a desenvolvê-la cada vez mais
republicana.” (CARVALHO, 2016, p. 145). Essa
(CERIOGLI, 2001, p. 13). Durante os primeiros
maneira poética de documentar os eventos da guerra é
momentos como escritor, Alberti dedicou-se quase
retomada no teatro e em Noche de Guerra.
exclusivamente à poesia. Entretanto, alguns anos
É importante destacar que a Espanha de 1936,
depois, durante a Segunda República espanhola,
momento no qual a peça é situada, é marcada pela
Alberti passa a ter mais contato e a escrever textos
guerra e por uma história recente de poder alternado
teatrais.
entre a esquerda e direita, que provoca drásticas
Naquele momento, a Espanha vivia tempos
mudanças no país. A guerra civil eclode porque, em
sombrios. As mudanças entre as ideologias do governo
1931, com a instauração da Segunda República, um
anunciavam o momento ferrenho que o país viveria nos
governo majoritariamente socialista ascende ao poder
anos seguintes. Em paralelo a isso, o escritor, assim
e as reformas propostas não foram bem aceitas pela
como sua esposa, a também escritora Maria Teresa
população espanhola, principalmente pela demora com
León, se filiaram ao Partido Comunista em 1931. As
a qual eram aplicadas, e isso causou insurreições por
ideologias de Alberti estavam cada vez mais refletidas
todo o território espanhol. O descontentamento com o
em suas obras, e isso ficou mais evidente quando
governo esquerdista cresce tanto que, em 1933, a
passou a se interessar pelo teatro.
Espanha elege um governo inteiramente direitista. Esse
Os partidos da esquerda, naquele período,
governo durou até 1936, quando novas eleições
apostavam no teatro como meio de politização da
trouxeram a esquerda de volta ao poder, causando,
massa. Com isso, Alberti foi enviado, juntamente com
assim, o descontentamento da direita conservadora
Maria Teresa León, para uma viagem pela Europa a fim
que aplicou um golpe, em 17 de julho daquele ano,
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Reflexões sobre um processo de tradução
dando origem à Guerra Civil. (CASANOVA; ANDRÉS,
período” (MOHALLEM; OLIVEIRA, 2017, p. 93).
2000, p. 83-95).
Novamente, Alberti utiliza essa relação interartes na
Alberti viveu esse momento crítico atuando
construção da peça teatral que traduzimos.
Intelectuales
Essa peça, além de contar a história específica
Antifascistas, sob a presidência de José Bergamín. Já
da Guerra Civil, estabelece uma relação dialógica com
nessa época tem-se registros das primeiras obras
as guerras napoleônicas, ocorridas em 1808. Alberti
escritas por Alberti que retratavam a Guerra Civil na
consegue trazer os personagens das telas para
forma de poesias (CARVALHO, 2016). Os apoiadores
defender a Espanha dos séculos XIX, contra Napoleão,
do
um
e XX, contra os insurgentes que lutavam contra a
momento de muita resistência, já que sofriam diversos
república, fazendo conectando as duas grandes
ataques vindos da direita. Dentre esses apoiadores
guerras civis que dividiram o povo espanhol e que o
estava a Alianza de Intelectuales Antifascistas, que, no
colocaram na rua, em luta armada, para defender seus
intuito de proteger o legado intelectual espanhol,
ideais (CERIOGLI, 2001).
como
secretário
governo
da
eleito,
Alianza
de
principalmente,
viveram
desenvolveu diversas missões pela Espanha, sendo
Pode-se dizer, assim, que o Noche de Guerra
uma delas a retirada das obras de arte do Museu do
é uma peça que une o Teatro, as Artes Plásticas e ainda
Prado, fato que inspirou a criação da peça aqui
dialoga com a História. São três áreas diferentes que se
estudada.
integram, na obra de Alberti, para manter viva a
Como expõem Ceriogli e Buades Juan (2001,
memória de um período que não pode ser esquecida. A
2011), várias localidades da cidade de Madrid sofriam
obra, para além de manter a memória viva do povo
com bombardeios e o Museu era um destes focos.
espanhol, cumpre o papel de divulgar o que aconteceu
Alberti escreve, posteriormente, durante seu exílio,
ali para o mundo, principalmente através das traduções
sobre a noite em que ele e seus companheiros e
que se realizam a partir dela.
companheiras da Alianza de Intelectuales Antifascistas
foram ao museu. Embora tenha um teor fictício, no qual
3.
os personagens dos quadros escondidos tomam vida,
teatro e traduzir a pintura.
Dificuldade para a tradução: traduzir o
a peça retoma a noite em que se inicia a Guerra e, mais
“Sem obra dramática, não há teatro”, diz
especificamente, remonta os bombardeios que a cidade
Sábato Magaldi (1994, p. 15) em seu livro Iniciação ao
de Madrid sofria sob ataques dos insurgentes.
O Museu é o cenário principal dessa peça,
Teatro. O autor propõe que o texto de teatro é
como já explicita o título. Os acontecimentos (do
essencialmente pensado com a representação no palco
prólogo e do ato único) tomam vida no salão principal
como produto final. Em suas palavras, “o texto deve ser
da chamada Casa da Pintura, que acaba se tornando
escrito para a eficácia do espetáculo” (MAGALDI, 1994,
um espaço de guerra com o desenrolar da história. O
p. 22). O texto teatral se sustenta, então, no diálogo
prólogo recebe a função de situar o leitor/espectador
assim como o texto do romance se sustenta na prosa e
nesse espaço e de marcar a importância do museu para
o poema nos versos. A ideia geral que o autor brasileiro
a cidade de Madrid. Essa obra não é a primeira na qual
transmite é a de que o texto teatral deve ser escrito já
o autor intersecciona as artes. Em sua antologia Las 4
pensando no ator que o encenará. (MAGALDI, 1994, p.
estaciones, como proposto por Mohallem e Oliveira
15-23)
Por outro lado, em Jean-Pierre Ryngaert
(2017) em sua análise, já podemos ver como Alberti
consegue
unir
seu
fazer
artístico
com
seus
(1995),
encontramos
uma
discussão
sobre
as
pensamentos políticos. “Alberti não só expressa sua
especificidades do texto de teatro. Segundo ele, o teatro
posição ideológica em relação ao contexto histórico
e o texto teatral contam com diversas possibilidades
republicano, como também retrata todo anseio,
entre si: “fazer teatro de tudo é poder fazer teatro de
desilusão e conflitos daqueles que viveram nesse
nada, ou de pouca coisa.” (RYNGAERT, 1995, p. 6). O
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autor propõe essa reflexão quando diz que, durante os
Entendemos aqui que, embora o texto teatral e
anos 60-80, o espetáculo reduziu o texto e começou a
sua realização cênica possam ser estudados e
priorizar os outros elementos que compõem a cena,
discutidos separadamente, no momento de sua
como o cenário, efeitos visuais ou figurinos, por
tradução, eles devem ser, segundo a reflexão proposta
exemplo. Logo, para Ryangaert, o texto de teatro é um
por Christine Zurbach (2021), “from page to stage” (p.
texto “transformável”, isto é, o texto de teatro apresenta
4). Na discussão de Zurbach, a autora ainda menciona
uma maleabilidade grande o suficiente para que seja
as “mudanças estéticas introduzidas no campo da arte
usado em diversos momentos: seja num palco ou como
teatral [...] que alteraram as relações entre o texto e a
estudo literário.
cena e abriram a arte do teatro para as outras artes”,
É nos estudos de Sônia Pascolati (2019), onde
permitindo assim que o teatro expandisse sua
encontramos o equilíbrio entre as duas teorias. A autora
“dimensão performativa” (p. 6-7) e que o trabalho da
reflete que “quando se questiona a autonomia do texto
tradução se associasse a um processo de integração
dramático em relação à representação ou vice-versa,
de linguagens e artes.
Vemos essa nova relação entre o teatro e
optamos por afirmar que ambos sejam autônomos,
dramático
outras expressões da arte na obra teatral de Alberti de
desvinculado da encenação” (PASCOLATI, 2019, p.
1956: o autor, ao mesmo tempo em que não reduz o
86). Ainda assim, a autora ressalta que, mesmo durante
texto, – o texto, por si só, ainda é importante para que
a análise de um texto dramático sem o apoio cênico, é
a mensagem e a reflexão central sejam transmitidas –,
necessário manter-se atento “à fluidez dos diálogos e
utiliza os quadros e gravuras de outros pintores
às indicações cênicas”, uma vez que são esses
europeus para contar sua história. Em Noche de
elementos textuais que trarão a “compreensão da ação
Guerra, Alberti consegue equilibrar o uso de textos e o
que se desenrola” (p. 86), e que requerem um esforço
uso de referências externas, não sofrendo com o
imaginativo ainda maior do leitor, que não tem o aparato
“exagero dos efeitos de encenação”, como é criticado
da representação para lhe ilustrar a cena.
por Zurbach.
sendo
possível
o
estudo
do
texto
Pascolati ainda diz que, ao fim de um
Justamente pelo uso de tais referências,
espetáculo, o que resta é “o texto a ser estudado,
observa-se no texto original de Alberti que o leitor
analisado,
reencenado”
(brasileiro, principalmente, que foi o nosso foco) poderia
(PASCOLATI, 2019, p. 87), sem levar em consideração
ter dificuldade de visualizar e entender o contexto da
a representação que acaba de acontecer ou as que
peça. Os quadros usados por Alberti têm suas próprias
virão pela frente. Resta, então, o texto produzido pelo
histórias e essas histórias somam-se à constituição dos
autor. Ou, em alguns casos, como neste, o texto
personagens da peça. Observa-se que a obra carrega
elaborado pelo tradutor.
diversas referências conhecidas do povo espanhol:
relido,
Susan
reinterpretado,
Bassnett
(1991)
comenta
que
a
algumas artísticas, outras culturais e outras históricas.
tradução do texto teatral se divide em dois pontos:
Com a tradução, pretende-se trazer a obra para o
deve-se estudar a dramaturgia do texto de partida, que
conhecimento de outros povos, que nem sempre têm
pode já dar indícios da interpretação cênica, mas
conhecimento do que foram os períodos de guerra que
também deve-se traduzir o texto já pensando na cena
a
sem a influência de seus criadores. Zurbach (2021)
conhecimento das obras dos diversos pintores que
resume os estudos iniciais de Bassnett, ao que ela
dialogam com o texto de Noche de Guerra. Por isso,
chama de tradição “clássica da tradução do texto de
quando a ideia da tradução começou a tomar forma,
teatro”, como “o processo de interpretação e reescrita
surgiu a necessidade de criar um estudo introdutório
de um texto de partida convencional, que termina no
que antecedesse à peça.
texto de chegada entregue para a publicação ou para a
interpretação em cena” (2021, p. 10)
Espanha
viveu,
ou
que
também
não
têm
Neste estudo, inserimos informações que
guiam o novo leitor não só para a leitura da peça como
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Reflexões sobre um processo de tradução
também pela história da Espanha. Poucos brasileiros
mostraram pertinentes para que o texto de chegada
têm ou tiveram a oportunidade de conhecer o Museu do
fosse igualmente palpável ao leitor brasileiro como o é
Prado e de entender a importância histórica e artística
para o leitor espanhol.
que o lugar possui. Essas informações, dentre outras,
Acreditamos que, para além da procura de
estão presentes no estudo introdutório, a fim de guiar o
palavras que transmitam a ideia da obra, a tradução
público brasileiro para um melhor entendimento da
para o teatro deve ser ainda mais cuidadosa. Como
peça, seja ele um leitor contumaz ou um apreciador das
apontado por Araújo, Leandro e Barbosa, “a palavra
artes cênicas.
oralizada é efêmera, irrecuperável” (2007, p. 106),
A problemática aqui é: como se deve traduzir
então, quando se traduz pensando tanto na melhor
uma obra teatral que tem, em sua dramaturgia,
versão do texto em sua língua de chegada quanto em
aspectos pictóricos que compõe o texto? Essa
sua encenação, a escolha das palavras deve ser
discussão vai além, principalmente quando se leva em
certeira: havia a necessidade de se escolher palavras
consideração uma revolução das artes dramáticas no
que, ao mesmo tempo, mantivessem a proposta original
século XX, onde o texto começou a perder sua
do autor, se aproximassem do leitor brasileiro e, ainda,
essencialidade e começou a dar lugar a outros
tivessem o mesmo efeito caso representadas em um
elementos cênicos. Isso, claro, no palco. Bassnett
palco. É preciso pensar em um texto que fosse claro
(1980) conta que, na história da tradução teatral,
em sua leitura e em sua representação.
sempre existiram duas formas de se traduzir um texto:
uma delas trata o texto como sagrado, na qual o
4.
tradutor esforça-se para que o texto de chegada tenha
en el Museo de Prado
Processo de tradução de Noche de Guerra
o mesmo valor poético que o texto de partida; e a outra,
seria a de que o tradutor “adapta” o texto à língua de
Noche de Guerra conta com ricos detalhes e
chegada. A segunda maneira se mostra mais próxima
sutis referências que foram percebidos a partir de uma
às convicções de Bassnett, que discorda, neste artigo,
leitura crítica. Observamos que no início do texto, antes
da existência da “performability”, que supostamente
do início da peça, que quando os personagens são
impediria uma tradução eficaz do texto teatral. Essa
apresentados, Alberti já indica que recorrerá a diversos
maneira “infiel” de se traduzir o texto, defendida por
quadros que darão vida às suas personagens. Grandes
Bassnett, pode acontecer em esferas diferentes: tanto
marcas intertextuais começam a aparecer mais adiante
durante o ofício do tradutor, ao trabalhar com o texto,
no prólogo, um monólogo em que o autor se transforma
como também durante o processo de adaptação da
em personagem e quebra a “quarta parede” do teatro
companhia teatral, que pode ter que reduzir ou
para comunicar-se diretamente com o leitor/espectador,
aumentar o texto para que ele seja inteligível ao seu
a fim de situá-lo. Ao longo do desenvolvimento do
público-alvo. (BASSNETT, 1991, p. 105-106)
prólogo, Alberti sugere, em suas notas de orientação à
Encontramos na discussão de Bassnett um
encenação, que as imagens, os quadros e as gravuras,
possível diálogo com Jorge Luís Borges (1926), que
sejam projetados. Já aí começa-se a entender que elas
defende que a tradução deve causar a identificação do
terão grande importância na peça.
leitor. Para ele, a obra não deve manter-se literalmente
Evidenciou-se a necessidade, para dar início à
fiel à original, mas sim abrir portas ao novo leitor (e
tradução, de realizar uma pesquisa acerca dos temas e
espectador, nesse caso específico) que tiver acesso à
obras abordados na peça por Alberti: o contexto das
obra traduzida, para que ele possa relacionar-se e
guerras, a relação interartes que ele estabelece em seu
entender as possíveis intenções do autor na produção
texto, quais as pinturas e gravuras utilizadas e as
original de sua obra (BORGES, 1926, p. 1). Nesse
formas como influenciam os sentidos da peça. Tudo foi
sentido, durante o processo de tradução de Noche de
feito para que se pudesse produzir uma tradução que
Guerra,
optamos
por
fazer
alterações
que
se
aproximasse o público-alvo da obra de Alberti, levando
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Dos Reis, Guilherme Assis.
em consideração que nem todas as pessoas brasileiras
explica o que eram as Reales Guardias de Corps. Neste
têm o conhecimento necessário sobre a história
caso, o termo, por se tratar de nome próprio, não foi
espanhola para aproveitar a obra em sua completude.
traduzido, embora tenha sido explicado na nota de
Esse estudo introdutório foi divido em quatro partes: na
rodapé referente.
primeira, explicamos quem é o autor e em qual contexto
Durante a peça, ganham destaque os
ele se inseria, na segunda, mostramos a discussão
quadros e gravuras de Francisco de Goya (1746-1828).
intertextual e interartes que nos levou a entender a
Essas obras remontam às guerras napoleônicas,
importância de traduzir a obra. Já na terceira parte,
vividas no século XIX, na Espanha. Para a tradução,
apresentamos a peça, de maneira que dialogasse com
então, foi necessário desenvolver um estudo não
as informações históricas já inseridas e, por fim, na
somente sobre as obras e sobre o pintor como também
quarta parte, explicamos a partir de qual perspectiva a
do período que elas retratavam. Nota-se como através
tradução foi feita.
de quadros como Los Fusilamientos de 3 de Mayo en
Como o intuito desta tradução era de se
la Moncloa (1814) ou as gravuras da coleção Los
traduzir o texto de Rafael Alberti de forma que ele
desastres de la Guerra (1810-1815), Alberti busca na
pudesse ser compreendido e aprazível para o público
Espanha do século XIX personagens que defenderão a
brasileiro, a opção por criar as notas de rodapé foi o
Espanha do século XX.
de
O primeiro quadro de Goya a surgir na peça, o
informações históricas, optamos por adicionar notas
Los Fusilamientos de 3 de Mayo en la Moncloa, aparece
que também explicassem quem foram os personagens
já com a descrição que o autor-personagem fornece de
mencionados
um povo espanhol que se posiciona frente à Guerra
passo
seguinte
no
a
ser
tomado.
decorrer
da
Para
além
história,
já
que
personagens históricos da Espanha são recorrentes na
Civil:
Milicianos dos primeiros dias, homens do
nosso povo, como estes que Goya viu cair,
ensanguentados, sob as balas dos fuzileiros
napoleônicos, ajudaram no salvamento das
obras célebres. 1808. 1936. (REIS, 2019, p.
16)
peça de Alberti.
Pode-se observar esse tipo de referência
textual no monólogo do prólogo, por exemplo:
Autor – Manuel Godoy e Álvarez de Faria,
seu Manolo, era belo, um oficial bonitão
(aparece o retrato de Godoy na “Guerra das
laranjas”.) das Reales Guardias de Corps,
quem, por ter amores com a rainha, chega a
ser nada menos que... (REIS, 2019, p. 19.
grifo meu)
Nesse trecho há duas datas: uma se refere às
guerras napoleônicas e a outra à Guerra Civil. O povo
espanhol (público-alvo de Alberti) conhece e mantém
viva
a
memória
dessas
datas.
No
entanto,
Nesse trecho, o autor-personagem cita um
questionamo-nos aqui, será que o nosso público-alvo,
personagem histórico da Espanha que possivelmente é
o leitor/espectador brasileiro, tem conhecimento de
desconhecido pelo público brasileiro. Ao dizer seu
quando a invasão de Napoleão ocorreu na Espanha?
nome, observa-se junto ao texto, a indicação cênica de
Será que há o conhecimento de como essa invasão
projeção do retrato do personagem, o que promove a
aconteceu? Como diz Newmark (2010), “El principal
relação interartes e facilita o diálogo cênico que Alberti
objetivo que se pretende con la traducción de una obra
nos propõe: o quadro aparece no mesmo momento em
de teatro es poder representarla con éxito.” (p. 232).
que Godoy é citado, então o público e os leitores podem
Para que uma peça possa ser bem representada, o
já identificar quem é a pessoa referida. Para além da
diretor, os atores e os encenadores devem entender o
tradução da fala, essa foi uma das ocasiões em que se
que se passa com as personagens e o mesmo deve se
viu necessária a criação de uma nota de rodapé.
passar com o leitor, quando a peça é lida como
Optamos por adicionar duas notas nesse trecho: uma
literatura. Pensando nisso, justificam-se, acreditamos,
para explicar quem foi Manuel Godoy, chamado pelo
as notas de rodapé ao longo de toda a tradução que
autor-personagem
e,
situam o leitor ou o ator e o diretor teatral a respeito dos
posteriormente, adicionou-se uma outra nota que
contextos históricos mencionados. Como no exemplo
pelo
apelido
Manolo,
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Reflexões sobre um processo de tradução
citado acima, Alberti coloca as datas de 1808 e 1936
a maneira com as quais os personagens devem
sem maiores explicações. Na tradução, adicionamos,
aparecer em seu texto. Coube-nos buscar palavras no
em rodapé, que
português – nossa língua de chegada
1808 é o ano em que, durante as Guerras
Napoleônicas, a Espanha foi invadida. As
tropas de Napoleão Bonaparte queriam
obter total domínio sobre a Península Ibérica
e, para chegar a este fim, invadiu o território
espanhol no ano citado. (REIS, 2019, p. 16)
– que
transmitissem a mesma importância que as escolhidas
por Alberti. Antes mesmo do início do texto, ainda na
indicação de quais personagens aparecerão na obra, já
começamos a inserir as notas. Alberti, na lista de
personagens, explica que o Anão e o Rei são os que
Nesse caso não mencionamos na nota o ano
de 1936, pois ela já tinha sido mencionada no estudo
introdutório e em notas anteriores. Desta maneira,
todos os que entram em contato com o texto escrito
poderão entender qual a importância das datas
retomadas em cena. Consideramos que as notas de
rodapé não tiram a mágica do teatro e que, no nosso
haviam sido pintados por Velázquez. Na tradução,
adicionamos em rodapé
Diego Rodríguez da Silva y Velázquez
(1599-1660) foi um dos maiores pintores
espanhóis. Admitido na corte do Rei Felipe
IV, passa grande parte da sua vida artística
pintando retratos da corte, incluindo os
anões e bobos da corte. Sua obra é marcada
pelas características do barroco, com
contrastes muito fortes. (REIS, 2019, p. 14)
caso, não chegamos a produzir o que Newmark chama
Buscamos elaborar uma breve explicação
de “sobretraducción” (2010, p. 233), limitando-nos
sobre quem é o pintor das telas incorporadas na peça,
àquilo que o texto pedia de conhecimento do leitor. As
facilitando, assim, o entendimento do leitor quando os
notas de rodapé não tiram a subjetividade das
dois personagens aparecem.
personagens nem tornam o texto cansativo: são
Ao longo do processo tradutório dessa obra,
meramente explicativas para aqueles que a colocarão
optamos por abrasileirar alguns dos nomes que surgem
no palco ou para o leitor da peça como literatura. Mas
com o desenvolvimento do enredo. O nome das obras
os atores, ao terem essa informação, poderão dar mais
e de seus pintores são um exemplo disso: o autor do
consistência aos seus personagens, transferindo-lhes
quadro das Três Graças, Pedro Pablo Rubens, tem seu
essa informação através de suas ações.
nome tradicionalmente traduzido como Pedro Paulo
As pinturas e gravuras de Goya, contudo, não
Rubens. Esse processo foi feito com todos os nomes
são as únicas que aparecem no texto de Alberti. O autor
que já contavam com uma versão na língua portuguesa,
espanhol recupera, também, pintores de outras épocas
enquanto nomes como as Reales Guardias de Corps,
da história, como Ticiano (1490-1576), trazendo
que não contam com uma versão tradicional, foram
pinturas como Venus y Adonis (1553-1554), ou Las
mantidos em sua língua original.
Tres Gracias (1639), de Rubens. Existem também
As notas de rodapé, nesta tradução, também
algumas obras de Velázquez, como o Retrato de
cumpriram a função de serem o veículo de tradução de
Sebastião Morra (1644), e também uma pintura de Fra
alguns dos versos que aparecem na peça. As
Angelico, Anunciación (1435). É necessário lembrar,
seguidillas manchegas, por exemplo, são versos que
aqui, que todas essas obras estavam expostas no
fazem parte um ritmo popular espanhol que surgiu em
Museu do Prado, lugar que teve grande influência na
La Mancha, no século XV que, segundo Corrales
formação artística de Alberti. Essas obras são
(1995), eram
importantes porque retratam a história de um povo,
espanhol, principalmente a partir do século XIX. Em
entre representações históricas e religiosas. Para esse
Noche de Guerra esse recurso é utilizado várias vezes
trabalho, mais que entendê-las, foi necessário levar ao
pelas personagens que defendem o Museu. Durante a
público as informações necessárias para interpretarem
tradução, optou-se por manter os versos originais e a
as pinturas no contexto da peça.
tradução foi apresentada no rodapé. Há um momento
usadas
constantemente
no
teatro
Alberti, além selecionar e colocar as
em que as personagens Velha 1, Velha 2 e Velha 3 (da
pinturas em sua peça, transformando os personagens
pintura de Goya - Las Viejas, 1810) começam a entoar
pintados em personagens de teatro, traduz em palavras
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Dos Reis, Guilherme Assis.
uma dessas seguidillas, acompanhadas por outros
conhecido em terras brasileiras. A ele, foi adicionado
personagens. No original:
uma outra nota, onde explicamos o que é o termo:
Vieja 1. — ¡Pues venga ya de ahí! ¡Vamos!
(Bailan y cantan estas seguidillas
manchegas, accionando con las
escobas. El Ciego las acompaña con la
guitarra.)
Si el sapo no revienta
por la mañana,
es porque el pobrecito
se ha vuelto rana.
¡Anda jaleo!
Si me cago en el sapo,
también me meo.
“Seguidillas manchegas são um ritmo e um
tipo de dança populares criados na
Espanha, na região de La Mancha, no
século XV. Seu ritmo se constitui em três
tempos: um forte e dois fracos, e traz traços
do folclore espanhol.” (REIS, 2019, p. 44)
Os versos não foram traduzidos para que
pudessem ser fiéis ao seu ritmo original. A tradução
literal não seria próxima do público brasileiro porque
não estamos acostumados com o jogo musical
proporcionado pelas seguidillas. Uma opção à tradução
VIEJA 2 (quebrada y cojeando). — Dicen
que al sapo caben,
en la trasera,
mosquetón y cartucho
con cartuchera.
¡Anda la broma!
Ya nadie toma al sapo
por donde toma.
seria traduzi-las para um outro ritmo popular brasileiro
TORERO (entrando al baile con el
estoque). — Para matar al sapo
muestro tal arte,
que no hay parte que sea
más bona-parte.
¡Anda salero!
He de matar al sapo por el trasero.
(ALBERTI, 1956, p. 34)
manter a mensagem principal da peça e, ainda, criar
que fosse igualmente conhecido pelo público-alvo, mas
isso seria tomar uma liberdade poética que não nos
propusemos a tomar nesse momento. Entendemos
que, ao manter os versos originais no texto com sua
devida tradução nas notas de rodapé, conseguimos
uma atmosfera que remonta à cultura espanhola, que
está no cerne da peça. Para a encenação, porém, o
recurso de adaptar os versos para um ritmo popular
brasileiro, poderia ser um artifício interessante.
Nas palavras de Borges (1926), “el sentido de
Nesse trecho, alguns personagens entram na
una palabra no es lo que vale, sino su ambiente, su
música, cantando e dançando. A tradução dos versos,
connotación, su ademán.” (p. 256). Seguindo a ideia
para que pudessem ser entendidos pelo público leigo
proposta por ele, a escolha das palavras e dos termos
na língua espanhola, se encontram nas notas de
que foram usados na tradução foram feitas a partir de
rodapé:
uma pesquisa acerca de termos utilizados no português
Tradução da seguidilla manchega: Se o
sapo não estoura/ Pela manhã,/ É porque o
pobrezinho/ Virou rã./ Anda barulho!/ Se
cago no sapo/ Também mijo./ Dizem que
não cabem no sapo,/ Na traseira,/ Mosquete
e cartucho/ Com cartucheira./ Anda a piada!/
Já ninguém pega o sapo/ Por onde toma./
Para matar o sapo/ Mostro essa arte,/ Que
não tem parte que seja/ Mais bona-parte./
Anda, saleiro!/ Vou matar o sapo/ Pelo
traseiro./ Se alguma vez me cuspiu/ Na
jaquetinha,/ Vou rachar o sapo/ Com minha
navalha./ Anda, ronda!/ À uma bela não há
sapo/ Que se esconda./ Solta o violão!/
Corta a corda!/ Sapo gordo e pançudo!/
Sapo de merda! (REIS, 2019, p. 45.
Tradução nossa.)
O termo seguidillas manchegas também foi
mantido, nesse caso como forma de divulgar o nome
desse ritmo popular, que também não é muito
brasileiro e, também, como se trata de uma peça teatral,
palavras que remetem ao palco e ao ato cênico.
Dialogando com os outros teóricos do texto teatral, as
palavras e estruturas linguísticas foram escolhidas de
maneira que, quando
pronunciadas num palco,
atingissem seu objetivo final, que é o de impactar o
espectador, da mesma maneira que pudesse impactar
o leitor da obra.
Pensando nisso, outro fator que deteve nossa
atenção foram as expressões populares e palavrões
que aparecem ao longo da história. Noche de Guerra
retrata o povo espanhol e, mais que isso, um povo
revoltado, com pouco a perder, que se dispõe a dar a
vida para salvar seu país, sua casa. É de se esperar
que palavrões, palavras de ordem e expressões
variadas apareçam.
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Reflexões sobre um processo de tradução
Em um dos momentos finais da peça, há uma
ocasião na qual uma comitiva de mutilados pelos
de
tratamento
você,
acompanhado
da
terceira
conjugação verbal.
conflitos bélicos espanhóis aparece. Um personagem
Ainda no trecho citado, temos a expressão,
misterioso é carregado pelas Velhas de Goya. Segue
falada pelo Frade, “las cloacas del infierno”. A palavra
um diálogo, no original e a tradução:
cloaca, quando traduzida literalmente, significa sarjeta
MANCO. — ¡Rayos y truenos! ¿Qué
alboroto es éste?
ou esgoto e, até mesmo, o órgão excretor da galinha.
VIEJA 3. — No te aflijas, manquillo. Poca es
la bulla para la que se va a armar cuando
sepas quién soy y a quiénes traemos.
expressão “nos esgotos do inferno” ou “nas cloacas do
MANCO. — ¿Puede saberse a qué venís
con tantos pitos y matracas en una noche
como ésta?
falado
atualmente,
não
existe a
inferno”, mas há uma expressão popular mais usada em
ocasiões informais, que foi a que escolhemos colocar
na tradução.
Especialmente em momentos de conflitos, é
VIEJA 3. — Te vas a mear si te lo digo.
comum que as pessoas recorram a palavrões para
FRAILE. — Vienes de las cloacas del
infierno, de los sumideros del diablo.
¡Mascarón indecente! (ALBERTI, 1956, p.
40)
expressar a indignação ou a raiva, como no caso do
Velha 3 – Não se aflija, Manquinho. Pouca
vai ser a zona que vai se armar quando
descobrirem quem sou e a quem trazemos.
Manco – Posso saber por que vocês vêm
com tantos apitos e matracas em uma noite
como essa?
Frade – Vem do cu do inferno, dos
sumidouros do diabo. Mascarado indecente!
(REIS, 2019, p. 51)
trecho,
vários
especificamente,
elementos
que
A tradução de peça de Alberti exigiu o apoio de
diversos recursos, alguns bibliográficos e outros
linguísticos. Além disso, foi necessário trazer ao texto
traduzido o contato com a pintura e com a cultura
popular espanhola. O teatro não permite os parênteses
da narrativa, então, a tradução que elaboramos exigiu
a adequação do texto dramático ao português, mas
mais que isso, a inserção do leitor em um universo
Velha 3 – Vai se mijar se eu te disser.
com
já que seu uso é recorrente no texto de Alberti e, com a
frase causa no texto original.
Manco – Raios e trovões! Que alvoroço é
esse?
Nesse
trecho citado. Optamos por traduzir com um “palavrão”,
tradução escolhida, teríamos o mesmo efeito que a
------
deparamos
No português
nos
foram
artístico por meio da tradução e dos paratextos
pensados como maneira de conduzi-lo por uma cultura
diferente da dele.
Considerações finais
recorrentes e que detiveram nossa atenção durante a
tradução. Muitas expressões são usadas, e tivemos
que as traduzir de uma maneira que soasse familiar ao
público brasileiro, como é o caso do diminutivo usado
em “manquillo”, por exemplo, foi traduzido para
“manquinho”. Mais adiante, temos a frase da Velha 3
“Te vas a mear si te lo digo.” No português usamos uma
expressão equivalente, então não tivemos tantos
problemas ao traduzir literalmente para “Vai se mijar se
eu te disser”. Nota-se, aqui, uma mudança gramatical,
apenas. Como no português brasileiro não se usa a
conjugação verbal em segunda pessoa, optou-se por
patronizar no texto da peça o tratamento pelo pronome
Para introduzir uma obra literária de outra
cultura e escrita em outra língua para um determinado
público,
cremos
ser
necessário
fazer
uma
contextualização acerca de quem a escreveu e em
quais circunstâncias foi escrita. Em nossa tradução e
neste artigo, ao apresentar as reflexões referentes ao
processo de tradução, destacamos a figura de Rafael
Alberti, indicando quais os seus campos de atuação
dentro das Artes, sua trajetória de vida e aspirações
políticas. Paralelo a isso, mencionamos brevemente, o
momento histórico que a Espanha viveu durante os
anos 1930 e toda as implicações que isso teve para a
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Dos Reis, Guilherme Assis.
história do país e para a escrita da peça Noche de
causam a identificação e comoção do público, por não
Guerra en el Museo del Prado.
serem fruto de um processo de tradução aprimorado.
Entendemos que grande parte dos brasileiros
não têm contato com a história da Espanha e com as
Referências
obras criadas durante e em decorrência da guerra que
marcou o país. Por isso, a tradução contou com a
criação de um estudo introdutório que cumpre a função
de imergir o leitor/espectador na obra que dialoga com
um momento histórico específico.
Não foi um processo fácil nem rápido, visto que
a obra retrata um povo dividido que luta pelos seus
ideais ao mesmo tempo em que tem que lidar com as
consequências de uma guerra. Para além disso, a peça
conta com a personificação de personagens históricos
espanhóis, que voltam à obra para também defender
seu ponto de vista. Nos deparamos com expressões e
ritmos populares, palavrões, jargões utilizados por um
povo espanhol, e isso resultou em mais uma pesquisa,
para que pudéssemos aproximar a tradução de nosso
público-alvo.
Embora não esteja publicada, a Tradução
Crítica de Noite de Guerra no Museu do Prado foi o
resultado de um ano de pesquisa e estudo que
resultaram nesse artigo, que nos deram a oportunidade
de refletir e analisar as dificuldades que vivenciamos
durante o processo de criação. Mais do que traduzir
uma
peça
teatral,
esse
trabalho
exigiu
das artes plásticas, como Goya e Velázquez, e que
entrássemos em contato com expressões e ritmos
populares – tanto em espanhol (nossa língua de
origem), como em português (nossa língua de
chegada), a fim de criar um texto que fosse próximo e
agradável para o leitor brasileiro.
Consideramos que essa obra traduzida abre
novas portas para a peça de Alberti. Com sua versão
em português, o acesso à novas dramaturgias e
narrativas teatrais se torna possível, bem como a
inserção da obra em aulas de história, artes plásticas
ou literatura, uma vez que ela abrange essas três áreas.
além
disso,
serve
como
ampliação
ARAÚJO, Ana Ribeiro Grossi; LEANDRO, Maria Clara
Xavier; BARBOSA, Tereza Virginia Ribeiro. As
dificuldades de traduzir para teatro: o prólogo das
Eumênides de Ésquilo. Cadernos de Tradução,
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<<http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/5004
6/54174>> Acesso em: 04 maio 2021.
que
traduzíssemos pinturas e gravuras de grandes nomes
Para
ALBERTI, Rafael. Noche de Guerra en el Museo de
Prado (Águafuerte, en un prólogo y un acto). Buenos
Aires: Losange, 1956.
das
possibilidades do fazer teatral no Brasil, que ainda
conta com exportações europeias que nem sempre
CARVALHO, Mayra Moreyra. Transcendente e histórica:
a poesia de Rafael Alberti escrita durante a Guerra Civil
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COMO CITAR ESSE ARTIGO
DOS REIS, Guilherme Assis; OLIVEIRA, Kátia Aparecida da Silva. Reflexões sobre um processo de tradução: história,
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Disponível
em:
<https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/16665>.
doi:https://doi.org/10.17058/signo.v46i87.16665.
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p. 124-135, set/dez. 2021.
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