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Http://online.unisc.br/seer/index.php/signo ISSN on-line: 0104-6578 Doi: 10.17058/signo.v46i87.16665. Recebido em 30 de Maio de 2021 Aceito em 25 de Agosto de 2021 Autor para contato: assisguilherme@live.com Reflexões sobre um processo de tradução: história, teatro e pintura em uma obra de Rafael Alberti Reflexiones sobre un proceso de traducción: historia, teatro y pintura en una obra de Rafael Alberti Guilherme Assis dos Reis Universidade Federal de Alfenas – Unifal –Minas Gerais – Brasil Kátia Aparecida da Silva Oliveira Universidade Federal de Alfenas – Unifal –Minas Gerais – Brasil Resumo: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o processo de tradução crítica que realizamos da obra teatral Noche de Guerra en el Museo de Prado (1956), do escritor espanhol Rafael Alberti (1902-1999), a primeira realizada em língua portuguesa, conforme temos notícia. Essa peça, que se situa temporalmente no momento da Guerra Civil Espanhola, é construída a partir de uma relação interartes que faz dela original e inovadora, o que motivou o interesse por sua tradução e difusão entre os leitores brasileiros. Neste artigo, discutimos a natureza do texto teatral e a problemática que envolve traduzir o texto dramático, especialmente no caso de uma obra que dialoga com outras artes. A partir de nossa experiência de tradução, destacamos o interesse em estabelecer uma tradução que considerasse o público brasileiro e que permitisse uma aproximação com uma história e cultura com as quais, talvez, não tivesse intimidade. Buscamos discutir e apresentar, assim, as dificuldades que foram encontradas ao traduzir uma obra cuja finalidade deixa de ser apenas a representação cênica, mas também a construção de um discurso interartes. Palavras-chave: Noche de Guerra en el Museo del Prado; Rafael Alberti; Tradução Crítica; Tradução de teatro; Interartes. Resumen: Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre el proceso de traducción crítica que realizamos de la obra teatral Noche de Guerra en el Museo de Prado (1956), del escritor español Rafael Alberti (1902-1999), la primera realizada en lengua portuguesa, según que tenemos noticia. Esta pieza, que se ubica temporalmente en el momento de la Guerra Civil Española, es construida a partir de una relación interartes que la hace original e innovadora, lo que nos motivó el interés por su traducción y difusión entre os lectores brasileños. En este artículo, discutimos el tipo del texto teatral y la problemática que involucra la traducción del texto dramático, especialmente en el caso de una obra que dialoga con otros tipos de arte. A partir de nuestra experiencia de traducción, destacamos el interés en establecer una traducción que llevara en consideración el público brasileño y que le permitiera una aproximación con una historia y cultura con las cuales, quizás, no tenga intimidad, quizá. Buscamos discutir y presentar, por consiguiente, las dificultades que encontramos en la traducción de una obra cuya finalidad no está únicamente en la representación escénica, como también en la constitución de un discurso intereartes. Palabras-llave: Noche de Guerra en el Museo del Prado; Rafael Alberti; Traducción Crítica; Traducción de teatro; Interartes. Signo. Santa Cruz do Sul, v.46, n. 87, p. 124-125, set/dez. 2021. A matéria publicada nesse periódico é licenciada sob forma de uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/ Reflexões sobre um processo de tradução O autor estabelece uma complexa relação 1 Introdução A obra Noche de Guerra en el Museo de Prado (1956) é uma peça teatral que Rafael Alberti (19021999) escreve durante seu exílio na América Latina, que se inicia depois da Guerra Civil Espanhola (19361939), forçado pelo governo ditatorial que é implantado na Espanha. Da poesia à dramaturgia, Rafael Alberti utilizou-se de diversas manifestações artísticas para se expressar e para representar seus fortes sentimentos em relação à sua terra natal e para destacar suas posições políticas. Alberti começa a se interessar pela escrita após anos de dedicação à pintura, a partir de seu contato com grandes nomes da vanguarda espanhola do século XX. Alberti conta com uma grande produção literária, sendo autor de obras poéticas como Marinero en tierra (1924), A la pintura (1948), Las 4 estaciones (1985), e também das obras teatrais Fermín Galán (1931), La Gallarda (1945), Noche de Guerra en el Museo de Prado (1956), entre outros. O poeta, dramaturgo e pintor viveu para as artes e deixou um grande legado para a literatura espanhola. Alberti escreve Noche de Guerra en el Museo de Prado depois de mais de vinte anos exilado do seu país. Depois de uma viagem pela Europa e com ganas de voltar à Espanha, o pintor escreve essa peça, na qual remonta um dos momentos iniciais da Guerra Civil que dividiu a Espanha no começo século passado. A obra tem um enredo que se desenvolve em meio aos bombardeios que a cidade de Madrid sofreu e retrata uma das missões de que o autor participou junto à Alianza de Intelectuales Antifascistas, organização política da qual era membro. Dividida em um prólogo e ato único, como diz o título original, a obra de Alberti traz à tona a retirada dos quadros do Museu para que sobrevivessem aos ataques aéreos. Para contar a história, os personagens pintados nos quadros ganham vida e se posicionam a fim de defender uma Espanha à beira de mais uma guerra. Ressalta-se, aqui, que a grande maioria dos quadros remetem às guerras decorrentes das invasões napoleônicas a Espanha (1808) e daí surge uma interessante relação intertextual. entre Pintura, Teatro e História, que transforma a peça em uma grande obra. Alberti cria uma maneira única de explanar o contexto histórico da segunda metade dos anos 30 através do teatro, dotando a obra de grande valor literário e cênico. Pensando nisso, realizamos a Tradução Crítica de Noite de Guerra no Museu do Prado (2019), com o intuito de aproximar o público brasileiro dessa peça até então sem tradução. Considerando que alguns temas e pinturas abordados na peça poderiam não ser conhecidos pelo público brasileiro, reunimos com a tradução um estudo introdutório dividido em quatro partes que prepara o público brasileiro para a peça que irá ler. A tradução foi desenvolvida em um projeto de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq), pela Universidade Federal de Alfenas, iniciada em agosto de 2018, com final em julho de 2019 e ainda não foi publicada. Neste trabalho apresentamos algumas reflexões acerca do texto teatral e das especificidades que envolvem a sua tradução. Para tal, recorremos a Sábato Magaldi (1994), Ryngaert (1996) e Pascolati (2019), que nos apresentam definições pertinentes ao texto teatral como texto literário e texto voltado para a representação cênica. Os trabalhos de Bassnett (1980) e Zurbach (2021) foram essenciais para que pensássemos a tradução do texto teatral com finalidade não unicamente cênica, mas também como texto literário e, a partir disso, poder analisar todas as dificuldades que foram vivenciadas ao longo do processo tradutório. 2. Rafael Alberti e Noche de Guerra en el Museo de Prado Rafael Alberti (1902-1999) foi um homem das artes. Escritor, dramaturgo e pintor espanhol, nasceu na pequena cidade de El Puerto de Santa María, em Cádiz, onde desde muito cedo começou a demonstrar seu interesse pelas artes através da criação de retratos dos navios que lá desembarcavam. No entanto, é em 1917, quando seu pai se muda para Madrid, que Alberti tem seus primeiros contatos com as grandes obras de arte espanholas. A ida para a capital permitiu que Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p. 124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Dos Reis, Guilherme Assis. Alberti tivesse a oportunidade de entrar em contato com de “estudar os novos movimentos cênicos” (CERIOGLI, o Museu do Prado, lugar no qual ele começa a p. 14). Nessas viagens o escritor entrou em contato com desenvolver suas habilidades artísticas (CERIOGLI, grandes dramaturgos, como Bertolt Brecht (1898- 2001, p. 12). O futuro escritor passava horas no museu, 1956), que se tornaria um dos amigos mais influentes analisando os quadros expostos, para que depois de Alberti, chegando até mesmo a ajudar em algumas pudesse realizar seus próprios trabalhos. Devido aos de suas obras teatrais, como em Noche de Guerra en longos períodos em que passava por lá, o Museu do el Museo de Prado, obra que traduzimos e que motiva Prado tomou uma grande importância para a vida de as reflexões apresentadas nesse trabalho. Alberti. Mais do que um espaço histórico, o museu se tornou uma escola e uma segunda casa para ele. Em 1923, Rafael Alberti passa a se dedicar à A referida obra foi escrita em 1956, quando Alberti e sua família já viviam seu exílio rio-platense, em decorrência da guerra e da ditadura que se escrita. Nesse ano, o agora escritor espanhol produz desenvolveram na Espanha. Noche de Guerra, assim seu tierra, como grande parte da obra de Alberti, evoca eventos posteriormente renomeado como Marinero en tierra ocorridos na Guerra Civil Espanhola. Mayra Carvalho (1924). É também nesse ano em que ele se encontra (2016, p. 145), em um estudo das poesias de Alberti, com os outros artistas, posteriormente conhecidos aponta que esse era um tema recorrente nos escritos como integrantes da Generación de 27. do autor, principalmente nos anos em que a Guerra primeiro livro de poesias: Mar y Ao lado de grandes nomes da literatura e acontecia. Segundo ela, através das poesias de Alberti, dramaturgia espanhola, como Frederico García Lorca inseridas no Romances de la Guerra de España (1938), (1828-1936), Ernestina de Champourcín (1905-1999), é possível identificar alguns eventos acontecidos Jorge Guillén (1893-1984) e María Teresa León (1903- durante a Guerra: nos poemas vemos, por exemplo, “a 1988), além de pintores, cineastas e músicos, Alberti tomada da residência do Duque de Alba pelos participou de uma renovação artística. Esse encontro milicianos, o papel da Catalunha e do País Basco e o foi essencial para que ele se interessasse ainda mais engajamento de poetas de todo o mundo à causa pela escrita e passasse a desenvolvê-la cada vez mais republicana.” (CARVALHO, 2016, p. 145). Essa (CERIOGLI, 2001, p. 13). Durante os primeiros maneira poética de documentar os eventos da guerra é momentos como escritor, Alberti dedicou-se quase retomada no teatro e em Noche de Guerra. exclusivamente à poesia. Entretanto, alguns anos É importante destacar que a Espanha de 1936, depois, durante a Segunda República espanhola, momento no qual a peça é situada, é marcada pela Alberti passa a ter mais contato e a escrever textos guerra e por uma história recente de poder alternado teatrais. entre a esquerda e direita, que provoca drásticas Naquele momento, a Espanha vivia tempos mudanças no país. A guerra civil eclode porque, em sombrios. As mudanças entre as ideologias do governo 1931, com a instauração da Segunda República, um anunciavam o momento ferrenho que o país viveria nos governo majoritariamente socialista ascende ao poder anos seguintes. Em paralelo a isso, o escritor, assim e as reformas propostas não foram bem aceitas pela como sua esposa, a também escritora Maria Teresa população espanhola, principalmente pela demora com León, se filiaram ao Partido Comunista em 1931. As a qual eram aplicadas, e isso causou insurreições por ideologias de Alberti estavam cada vez mais refletidas todo o território espanhol. O descontentamento com o em suas obras, e isso ficou mais evidente quando governo esquerdista cresce tanto que, em 1933, a passou a se interessar pelo teatro. Espanha elege um governo inteiramente direitista. Esse Os partidos da esquerda, naquele período, governo durou até 1936, quando novas eleições apostavam no teatro como meio de politização da trouxeram a esquerda de volta ao poder, causando, massa. Com isso, Alberti foi enviado, juntamente com assim, o descontentamento da direita conservadora Maria Teresa León, para uma viagem pela Europa a fim que aplicou um golpe, em 17 de julho daquele ano, Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Reflexões sobre um processo de tradução dando origem à Guerra Civil. (CASANOVA; ANDRÉS, período” (MOHALLEM; OLIVEIRA, 2017, p. 93). 2000, p. 83-95). Novamente, Alberti utiliza essa relação interartes na Alberti viveu esse momento crítico atuando construção da peça teatral que traduzimos. Intelectuales Essa peça, além de contar a história específica Antifascistas, sob a presidência de José Bergamín. Já da Guerra Civil, estabelece uma relação dialógica com nessa época tem-se registros das primeiras obras as guerras napoleônicas, ocorridas em 1808. Alberti escritas por Alberti que retratavam a Guerra Civil na consegue trazer os personagens das telas para forma de poesias (CARVALHO, 2016). Os apoiadores defender a Espanha dos séculos XIX, contra Napoleão, do um e XX, contra os insurgentes que lutavam contra a momento de muita resistência, já que sofriam diversos república, fazendo conectando as duas grandes ataques vindos da direita. Dentre esses apoiadores guerras civis que dividiram o povo espanhol e que o estava a Alianza de Intelectuales Antifascistas, que, no colocaram na rua, em luta armada, para defender seus intuito de proteger o legado intelectual espanhol, ideais (CERIOGLI, 2001). como secretário governo da eleito, Alianza de principalmente, viveram desenvolveu diversas missões pela Espanha, sendo Pode-se dizer, assim, que o Noche de Guerra uma delas a retirada das obras de arte do Museu do é uma peça que une o Teatro, as Artes Plásticas e ainda Prado, fato que inspirou a criação da peça aqui dialoga com a História. São três áreas diferentes que se estudada. integram, na obra de Alberti, para manter viva a Como expõem Ceriogli e Buades Juan (2001, memória de um período que não pode ser esquecida. A 2011), várias localidades da cidade de Madrid sofriam obra, para além de manter a memória viva do povo com bombardeios e o Museu era um destes focos. espanhol, cumpre o papel de divulgar o que aconteceu Alberti escreve, posteriormente, durante seu exílio, ali para o mundo, principalmente através das traduções sobre a noite em que ele e seus companheiros e que se realizam a partir dela. companheiras da Alianza de Intelectuales Antifascistas foram ao museu. Embora tenha um teor fictício, no qual 3. os personagens dos quadros escondidos tomam vida, teatro e traduzir a pintura. Dificuldade para a tradução: traduzir o a peça retoma a noite em que se inicia a Guerra e, mais “Sem obra dramática, não há teatro”, diz especificamente, remonta os bombardeios que a cidade Sábato Magaldi (1994, p. 15) em seu livro Iniciação ao de Madrid sofria sob ataques dos insurgentes. O Museu é o cenário principal dessa peça, Teatro. O autor propõe que o texto de teatro é como já explicita o título. Os acontecimentos (do essencialmente pensado com a representação no palco prólogo e do ato único) tomam vida no salão principal como produto final. Em suas palavras, “o texto deve ser da chamada Casa da Pintura, que acaba se tornando escrito para a eficácia do espetáculo” (MAGALDI, 1994, um espaço de guerra com o desenrolar da história. O p. 22). O texto teatral se sustenta, então, no diálogo prólogo recebe a função de situar o leitor/espectador assim como o texto do romance se sustenta na prosa e nesse espaço e de marcar a importância do museu para o poema nos versos. A ideia geral que o autor brasileiro a cidade de Madrid. Essa obra não é a primeira na qual transmite é a de que o texto teatral deve ser escrito já o autor intersecciona as artes. Em sua antologia Las 4 pensando no ator que o encenará. (MAGALDI, 1994, p. estaciones, como proposto por Mohallem e Oliveira 15-23) Por outro lado, em Jean-Pierre Ryngaert (2017) em sua análise, já podemos ver como Alberti consegue unir seu fazer artístico com seus (1995), encontramos uma discussão sobre as pensamentos políticos. “Alberti não só expressa sua especificidades do texto de teatro. Segundo ele, o teatro posição ideológica em relação ao contexto histórico e o texto teatral contam com diversas possibilidades republicano, como também retrata todo anseio, entre si: “fazer teatro de tudo é poder fazer teatro de desilusão e conflitos daqueles que viveram nesse nada, ou de pouca coisa.” (RYNGAERT, 1995, p. 6). O Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p. 124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Dos Reis, Guilherme Assis. autor propõe essa reflexão quando diz que, durante os Entendemos aqui que, embora o texto teatral e anos 60-80, o espetáculo reduziu o texto e começou a sua realização cênica possam ser estudados e priorizar os outros elementos que compõem a cena, discutidos separadamente, no momento de sua como o cenário, efeitos visuais ou figurinos, por tradução, eles devem ser, segundo a reflexão proposta exemplo. Logo, para Ryangaert, o texto de teatro é um por Christine Zurbach (2021), “from page to stage” (p. texto “transformável”, isto é, o texto de teatro apresenta 4). Na discussão de Zurbach, a autora ainda menciona uma maleabilidade grande o suficiente para que seja as “mudanças estéticas introduzidas no campo da arte usado em diversos momentos: seja num palco ou como teatral [...] que alteraram as relações entre o texto e a estudo literário. cena e abriram a arte do teatro para as outras artes”, É nos estudos de Sônia Pascolati (2019), onde permitindo assim que o teatro expandisse sua encontramos o equilíbrio entre as duas teorias. A autora “dimensão performativa” (p. 6-7) e que o trabalho da reflete que “quando se questiona a autonomia do texto tradução se associasse a um processo de integração dramático em relação à representação ou vice-versa, de linguagens e artes. Vemos essa nova relação entre o teatro e optamos por afirmar que ambos sejam autônomos, dramático outras expressões da arte na obra teatral de Alberti de desvinculado da encenação” (PASCOLATI, 2019, p. 1956: o autor, ao mesmo tempo em que não reduz o 86). Ainda assim, a autora ressalta que, mesmo durante texto, – o texto, por si só, ainda é importante para que a análise de um texto dramático sem o apoio cênico, é a mensagem e a reflexão central sejam transmitidas –, necessário manter-se atento “à fluidez dos diálogos e utiliza os quadros e gravuras de outros pintores às indicações cênicas”, uma vez que são esses europeus para contar sua história. Em Noche de elementos textuais que trarão a “compreensão da ação Guerra, Alberti consegue equilibrar o uso de textos e o que se desenrola” (p. 86), e que requerem um esforço uso de referências externas, não sofrendo com o imaginativo ainda maior do leitor, que não tem o aparato “exagero dos efeitos de encenação”, como é criticado da representação para lhe ilustrar a cena. por Zurbach. sendo possível o estudo do texto Pascolati ainda diz que, ao fim de um Justamente pelo uso de tais referências, espetáculo, o que resta é “o texto a ser estudado, observa-se no texto original de Alberti que o leitor analisado, reencenado” (brasileiro, principalmente, que foi o nosso foco) poderia (PASCOLATI, 2019, p. 87), sem levar em consideração ter dificuldade de visualizar e entender o contexto da a representação que acaba de acontecer ou as que peça. Os quadros usados por Alberti têm suas próprias virão pela frente. Resta, então, o texto produzido pelo histórias e essas histórias somam-se à constituição dos autor. Ou, em alguns casos, como neste, o texto personagens da peça. Observa-se que a obra carrega elaborado pelo tradutor. diversas referências conhecidas do povo espanhol: relido, Susan reinterpretado, Bassnett (1991) comenta que a algumas artísticas, outras culturais e outras históricas. tradução do texto teatral se divide em dois pontos: Com a tradução, pretende-se trazer a obra para o deve-se estudar a dramaturgia do texto de partida, que conhecimento de outros povos, que nem sempre têm pode já dar indícios da interpretação cênica, mas conhecimento do que foram os períodos de guerra que também deve-se traduzir o texto já pensando na cena a sem a influência de seus criadores. Zurbach (2021) conhecimento das obras dos diversos pintores que resume os estudos iniciais de Bassnett, ao que ela dialogam com o texto de Noche de Guerra. Por isso, chama de tradição “clássica da tradução do texto de quando a ideia da tradução começou a tomar forma, teatro”, como “o processo de interpretação e reescrita surgiu a necessidade de criar um estudo introdutório de um texto de partida convencional, que termina no que antecedesse à peça. texto de chegada entregue para a publicação ou para a interpretação em cena” (2021, p. 10) Espanha viveu, ou que também não têm Neste estudo, inserimos informações que guiam o novo leitor não só para a leitura da peça como Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Reflexões sobre um processo de tradução também pela história da Espanha. Poucos brasileiros mostraram pertinentes para que o texto de chegada têm ou tiveram a oportunidade de conhecer o Museu do fosse igualmente palpável ao leitor brasileiro como o é Prado e de entender a importância histórica e artística para o leitor espanhol. que o lugar possui. Essas informações, dentre outras, Acreditamos que, para além da procura de estão presentes no estudo introdutório, a fim de guiar o palavras que transmitam a ideia da obra, a tradução público brasileiro para um melhor entendimento da para o teatro deve ser ainda mais cuidadosa. Como peça, seja ele um leitor contumaz ou um apreciador das apontado por Araújo, Leandro e Barbosa, “a palavra artes cênicas. oralizada é efêmera, irrecuperável” (2007, p. 106), A problemática aqui é: como se deve traduzir então, quando se traduz pensando tanto na melhor uma obra teatral que tem, em sua dramaturgia, versão do texto em sua língua de chegada quanto em aspectos pictóricos que compõe o texto? Essa sua encenação, a escolha das palavras deve ser discussão vai além, principalmente quando se leva em certeira: havia a necessidade de se escolher palavras consideração uma revolução das artes dramáticas no que, ao mesmo tempo, mantivessem a proposta original século XX, onde o texto começou a perder sua do autor, se aproximassem do leitor brasileiro e, ainda, essencialidade e começou a dar lugar a outros tivessem o mesmo efeito caso representadas em um elementos cênicos. Isso, claro, no palco. Bassnett palco. É preciso pensar em um texto que fosse claro (1980) conta que, na história da tradução teatral, em sua leitura e em sua representação. sempre existiram duas formas de se traduzir um texto: uma delas trata o texto como sagrado, na qual o 4. tradutor esforça-se para que o texto de chegada tenha en el Museo de Prado Processo de tradução de Noche de Guerra o mesmo valor poético que o texto de partida; e a outra, seria a de que o tradutor “adapta” o texto à língua de Noche de Guerra conta com ricos detalhes e chegada. A segunda maneira se mostra mais próxima sutis referências que foram percebidos a partir de uma às convicções de Bassnett, que discorda, neste artigo, leitura crítica. Observamos que no início do texto, antes da existência da “performability”, que supostamente do início da peça, que quando os personagens são impediria uma tradução eficaz do texto teatral. Essa apresentados, Alberti já indica que recorrerá a diversos maneira “infiel” de se traduzir o texto, defendida por quadros que darão vida às suas personagens. Grandes Bassnett, pode acontecer em esferas diferentes: tanto marcas intertextuais começam a aparecer mais adiante durante o ofício do tradutor, ao trabalhar com o texto, no prólogo, um monólogo em que o autor se transforma como também durante o processo de adaptação da em personagem e quebra a “quarta parede” do teatro companhia teatral, que pode ter que reduzir ou para comunicar-se diretamente com o leitor/espectador, aumentar o texto para que ele seja inteligível ao seu a fim de situá-lo. Ao longo do desenvolvimento do público-alvo. (BASSNETT, 1991, p. 105-106) prólogo, Alberti sugere, em suas notas de orientação à Encontramos na discussão de Bassnett um encenação, que as imagens, os quadros e as gravuras, possível diálogo com Jorge Luís Borges (1926), que sejam projetados. Já aí começa-se a entender que elas defende que a tradução deve causar a identificação do terão grande importância na peça. leitor. Para ele, a obra não deve manter-se literalmente Evidenciou-se a necessidade, para dar início à fiel à original, mas sim abrir portas ao novo leitor (e tradução, de realizar uma pesquisa acerca dos temas e espectador, nesse caso específico) que tiver acesso à obras abordados na peça por Alberti: o contexto das obra traduzida, para que ele possa relacionar-se e guerras, a relação interartes que ele estabelece em seu entender as possíveis intenções do autor na produção texto, quais as pinturas e gravuras utilizadas e as original de sua obra (BORGES, 1926, p. 1). Nesse formas como influenciam os sentidos da peça. Tudo foi sentido, durante o processo de tradução de Noche de feito para que se pudesse produzir uma tradução que Guerra, optamos por fazer alterações que se aproximasse o público-alvo da obra de Alberti, levando Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p. 124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Dos Reis, Guilherme Assis. em consideração que nem todas as pessoas brasileiras explica o que eram as Reales Guardias de Corps. Neste têm o conhecimento necessário sobre a história caso, o termo, por se tratar de nome próprio, não foi espanhola para aproveitar a obra em sua completude. traduzido, embora tenha sido explicado na nota de Esse estudo introdutório foi divido em quatro partes: na rodapé referente. primeira, explicamos quem é o autor e em qual contexto Durante a peça, ganham destaque os ele se inseria, na segunda, mostramos a discussão quadros e gravuras de Francisco de Goya (1746-1828). intertextual e interartes que nos levou a entender a Essas obras remontam às guerras napoleônicas, importância de traduzir a obra. Já na terceira parte, vividas no século XIX, na Espanha. Para a tradução, apresentamos a peça, de maneira que dialogasse com então, foi necessário desenvolver um estudo não as informações históricas já inseridas e, por fim, na somente sobre as obras e sobre o pintor como também quarta parte, explicamos a partir de qual perspectiva a do período que elas retratavam. Nota-se como através tradução foi feita. de quadros como Los Fusilamientos de 3 de Mayo en Como o intuito desta tradução era de se la Moncloa (1814) ou as gravuras da coleção Los traduzir o texto de Rafael Alberti de forma que ele desastres de la Guerra (1810-1815), Alberti busca na pudesse ser compreendido e aprazível para o público Espanha do século XIX personagens que defenderão a brasileiro, a opção por criar as notas de rodapé foi o Espanha do século XX. de O primeiro quadro de Goya a surgir na peça, o informações históricas, optamos por adicionar notas Los Fusilamientos de 3 de Mayo en la Moncloa, aparece que também explicassem quem foram os personagens já com a descrição que o autor-personagem fornece de mencionados um povo espanhol que se posiciona frente à Guerra passo seguinte no a ser tomado. decorrer da Para além história, já que personagens históricos da Espanha são recorrentes na Civil: Milicianos dos primeiros dias, homens do nosso povo, como estes que Goya viu cair, ensanguentados, sob as balas dos fuzileiros napoleônicos, ajudaram no salvamento das obras célebres. 1808. 1936. (REIS, 2019, p. 16) peça de Alberti. Pode-se observar esse tipo de referência textual no monólogo do prólogo, por exemplo: Autor – Manuel Godoy e Álvarez de Faria, seu Manolo, era belo, um oficial bonitão (aparece o retrato de Godoy na “Guerra das laranjas”.) das Reales Guardias de Corps, quem, por ter amores com a rainha, chega a ser nada menos que... (REIS, 2019, p. 19. grifo meu) Nesse trecho há duas datas: uma se refere às guerras napoleônicas e a outra à Guerra Civil. O povo espanhol (público-alvo de Alberti) conhece e mantém viva a memória dessas datas. No entanto, Nesse trecho, o autor-personagem cita um questionamo-nos aqui, será que o nosso público-alvo, personagem histórico da Espanha que possivelmente é o leitor/espectador brasileiro, tem conhecimento de desconhecido pelo público brasileiro. Ao dizer seu quando a invasão de Napoleão ocorreu na Espanha? nome, observa-se junto ao texto, a indicação cênica de Será que há o conhecimento de como essa invasão projeção do retrato do personagem, o que promove a aconteceu? Como diz Newmark (2010), “El principal relação interartes e facilita o diálogo cênico que Alberti objetivo que se pretende con la traducción de una obra nos propõe: o quadro aparece no mesmo momento em de teatro es poder representarla con éxito.” (p. 232). que Godoy é citado, então o público e os leitores podem Para que uma peça possa ser bem representada, o já identificar quem é a pessoa referida. Para além da diretor, os atores e os encenadores devem entender o tradução da fala, essa foi uma das ocasiões em que se que se passa com as personagens e o mesmo deve se viu necessária a criação de uma nota de rodapé. passar com o leitor, quando a peça é lida como Optamos por adicionar duas notas nesse trecho: uma literatura. Pensando nisso, justificam-se, acreditamos, para explicar quem foi Manuel Godoy, chamado pelo as notas de rodapé ao longo de toda a tradução que autor-personagem e, situam o leitor ou o ator e o diretor teatral a respeito dos posteriormente, adicionou-se uma outra nota que contextos históricos mencionados. Como no exemplo pelo apelido Manolo, Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Reflexões sobre um processo de tradução citado acima, Alberti coloca as datas de 1808 e 1936 a maneira com as quais os personagens devem sem maiores explicações. Na tradução, adicionamos, aparecer em seu texto. Coube-nos buscar palavras no em rodapé, que português – nossa língua de chegada 1808 é o ano em que, durante as Guerras Napoleônicas, a Espanha foi invadida. As tropas de Napoleão Bonaparte queriam obter total domínio sobre a Península Ibérica e, para chegar a este fim, invadiu o território espanhol no ano citado. (REIS, 2019, p. 16) – que transmitissem a mesma importância que as escolhidas por Alberti. Antes mesmo do início do texto, ainda na indicação de quais personagens aparecerão na obra, já começamos a inserir as notas. Alberti, na lista de personagens, explica que o Anão e o Rei são os que Nesse caso não mencionamos na nota o ano de 1936, pois ela já tinha sido mencionada no estudo introdutório e em notas anteriores. Desta maneira, todos os que entram em contato com o texto escrito poderão entender qual a importância das datas retomadas em cena. Consideramos que as notas de rodapé não tiram a mágica do teatro e que, no nosso haviam sido pintados por Velázquez. Na tradução, adicionamos em rodapé Diego Rodríguez da Silva y Velázquez (1599-1660) foi um dos maiores pintores espanhóis. Admitido na corte do Rei Felipe IV, passa grande parte da sua vida artística pintando retratos da corte, incluindo os anões e bobos da corte. Sua obra é marcada pelas características do barroco, com contrastes muito fortes. (REIS, 2019, p. 14) caso, não chegamos a produzir o que Newmark chama Buscamos elaborar uma breve explicação de “sobretraducción” (2010, p. 233), limitando-nos sobre quem é o pintor das telas incorporadas na peça, àquilo que o texto pedia de conhecimento do leitor. As facilitando, assim, o entendimento do leitor quando os notas de rodapé não tiram a subjetividade das dois personagens aparecem. personagens nem tornam o texto cansativo: são Ao longo do processo tradutório dessa obra, meramente explicativas para aqueles que a colocarão optamos por abrasileirar alguns dos nomes que surgem no palco ou para o leitor da peça como literatura. Mas com o desenvolvimento do enredo. O nome das obras os atores, ao terem essa informação, poderão dar mais e de seus pintores são um exemplo disso: o autor do consistência aos seus personagens, transferindo-lhes quadro das Três Graças, Pedro Pablo Rubens, tem seu essa informação através de suas ações. nome tradicionalmente traduzido como Pedro Paulo As pinturas e gravuras de Goya, contudo, não Rubens. Esse processo foi feito com todos os nomes são as únicas que aparecem no texto de Alberti. O autor que já contavam com uma versão na língua portuguesa, espanhol recupera, também, pintores de outras épocas enquanto nomes como as Reales Guardias de Corps, da história, como Ticiano (1490-1576), trazendo que não contam com uma versão tradicional, foram pinturas como Venus y Adonis (1553-1554), ou Las mantidos em sua língua original. Tres Gracias (1639), de Rubens. Existem também As notas de rodapé, nesta tradução, também algumas obras de Velázquez, como o Retrato de cumpriram a função de serem o veículo de tradução de Sebastião Morra (1644), e também uma pintura de Fra alguns dos versos que aparecem na peça. As Angelico, Anunciación (1435). É necessário lembrar, seguidillas manchegas, por exemplo, são versos que aqui, que todas essas obras estavam expostas no fazem parte um ritmo popular espanhol que surgiu em Museu do Prado, lugar que teve grande influência na La Mancha, no século XV que, segundo Corrales formação artística de Alberti. Essas obras são (1995), eram importantes porque retratam a história de um povo, espanhol, principalmente a partir do século XIX. Em entre representações históricas e religiosas. Para esse Noche de Guerra esse recurso é utilizado várias vezes trabalho, mais que entendê-las, foi necessário levar ao pelas personagens que defendem o Museu. Durante a público as informações necessárias para interpretarem tradução, optou-se por manter os versos originais e a as pinturas no contexto da peça. tradução foi apresentada no rodapé. Há um momento usadas constantemente no teatro Alberti, além selecionar e colocar as em que as personagens Velha 1, Velha 2 e Velha 3 (da pinturas em sua peça, transformando os personagens pintura de Goya - Las Viejas, 1810) começam a entoar pintados em personagens de teatro, traduz em palavras Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p. 124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Dos Reis, Guilherme Assis. uma dessas seguidillas, acompanhadas por outros conhecido em terras brasileiras. A ele, foi adicionado personagens. No original: uma outra nota, onde explicamos o que é o termo: Vieja 1. — ¡Pues venga ya de ahí! ¡Vamos! (Bailan y cantan estas seguidillas manchegas, accionando con las escobas. El Ciego las acompaña con la guitarra.) Si el sapo no revienta por la mañana, es porque el pobrecito se ha vuelto rana. ¡Anda jaleo! Si me cago en el sapo, también me meo. “Seguidillas manchegas são um ritmo e um tipo de dança populares criados na Espanha, na região de La Mancha, no século XV. Seu ritmo se constitui em três tempos: um forte e dois fracos, e traz traços do folclore espanhol.” (REIS, 2019, p. 44) Os versos não foram traduzidos para que pudessem ser fiéis ao seu ritmo original. A tradução literal não seria próxima do público brasileiro porque não estamos acostumados com o jogo musical proporcionado pelas seguidillas. Uma opção à tradução VIEJA 2 (quebrada y cojeando). — Dicen que al sapo caben, en la trasera, mosquetón y cartucho con cartuchera. ¡Anda la broma! Ya nadie toma al sapo por donde toma. seria traduzi-las para um outro ritmo popular brasileiro TORERO (entrando al baile con el estoque). — Para matar al sapo muestro tal arte, que no hay parte que sea más bona-parte. ¡Anda salero! He de matar al sapo por el trasero. (ALBERTI, 1956, p. 34) manter a mensagem principal da peça e, ainda, criar que fosse igualmente conhecido pelo público-alvo, mas isso seria tomar uma liberdade poética que não nos propusemos a tomar nesse momento. Entendemos que, ao manter os versos originais no texto com sua devida tradução nas notas de rodapé, conseguimos uma atmosfera que remonta à cultura espanhola, que está no cerne da peça. Para a encenação, porém, o recurso de adaptar os versos para um ritmo popular brasileiro, poderia ser um artifício interessante. Nas palavras de Borges (1926), “el sentido de Nesse trecho, alguns personagens entram na una palabra no es lo que vale, sino su ambiente, su música, cantando e dançando. A tradução dos versos, connotación, su ademán.” (p. 256). Seguindo a ideia para que pudessem ser entendidos pelo público leigo proposta por ele, a escolha das palavras e dos termos na língua espanhola, se encontram nas notas de que foram usados na tradução foram feitas a partir de rodapé: uma pesquisa acerca de termos utilizados no português Tradução da seguidilla manchega: Se o sapo não estoura/ Pela manhã,/ É porque o pobrezinho/ Virou rã./ Anda barulho!/ Se cago no sapo/ Também mijo./ Dizem que não cabem no sapo,/ Na traseira,/ Mosquete e cartucho/ Com cartucheira./ Anda a piada!/ Já ninguém pega o sapo/ Por onde toma./ Para matar o sapo/ Mostro essa arte,/ Que não tem parte que seja/ Mais bona-parte./ Anda, saleiro!/ Vou matar o sapo/ Pelo traseiro./ Se alguma vez me cuspiu/ Na jaquetinha,/ Vou rachar o sapo/ Com minha navalha./ Anda, ronda!/ À uma bela não há sapo/ Que se esconda./ Solta o violão!/ Corta a corda!/ Sapo gordo e pançudo!/ Sapo de merda! (REIS, 2019, p. 45. Tradução nossa.) O termo seguidillas manchegas também foi mantido, nesse caso como forma de divulgar o nome desse ritmo popular, que também não é muito brasileiro e, também, como se trata de uma peça teatral, palavras que remetem ao palco e ao ato cênico. Dialogando com os outros teóricos do texto teatral, as palavras e estruturas linguísticas foram escolhidas de maneira que, quando pronunciadas num palco, atingissem seu objetivo final, que é o de impactar o espectador, da mesma maneira que pudesse impactar o leitor da obra. Pensando nisso, outro fator que deteve nossa atenção foram as expressões populares e palavrões que aparecem ao longo da história. Noche de Guerra retrata o povo espanhol e, mais que isso, um povo revoltado, com pouco a perder, que se dispõe a dar a vida para salvar seu país, sua casa. É de se esperar que palavrões, palavras de ordem e expressões variadas apareçam. Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Reflexões sobre um processo de tradução Em um dos momentos finais da peça, há uma ocasião na qual uma comitiva de mutilados pelos de tratamento você, acompanhado da terceira conjugação verbal. conflitos bélicos espanhóis aparece. Um personagem Ainda no trecho citado, temos a expressão, misterioso é carregado pelas Velhas de Goya. Segue falada pelo Frade, “las cloacas del infierno”. A palavra um diálogo, no original e a tradução: cloaca, quando traduzida literalmente, significa sarjeta MANCO. — ¡Rayos y truenos! ¿Qué alboroto es éste? ou esgoto e, até mesmo, o órgão excretor da galinha. VIEJA 3. — No te aflijas, manquillo. Poca es la bulla para la que se va a armar cuando sepas quién soy y a quiénes traemos. expressão “nos esgotos do inferno” ou “nas cloacas do MANCO. — ¿Puede saberse a qué venís con tantos pitos y matracas en una noche como ésta? falado atualmente, não existe a inferno”, mas há uma expressão popular mais usada em ocasiões informais, que foi a que escolhemos colocar na tradução. Especialmente em momentos de conflitos, é VIEJA 3. — Te vas a mear si te lo digo. comum que as pessoas recorram a palavrões para FRAILE. — Vienes de las cloacas del infierno, de los sumideros del diablo. ¡Mascarón indecente! (ALBERTI, 1956, p. 40) expressar a indignação ou a raiva, como no caso do Velha 3 – Não se aflija, Manquinho. Pouca vai ser a zona que vai se armar quando descobrirem quem sou e a quem trazemos. Manco – Posso saber por que vocês vêm com tantos apitos e matracas em uma noite como essa? Frade – Vem do cu do inferno, dos sumidouros do diabo. Mascarado indecente! (REIS, 2019, p. 51) trecho, vários especificamente, elementos que A tradução de peça de Alberti exigiu o apoio de diversos recursos, alguns bibliográficos e outros linguísticos. Além disso, foi necessário trazer ao texto traduzido o contato com a pintura e com a cultura popular espanhola. O teatro não permite os parênteses da narrativa, então, a tradução que elaboramos exigiu a adequação do texto dramático ao português, mas mais que isso, a inserção do leitor em um universo Velha 3 – Vai se mijar se eu te disser. com já que seu uso é recorrente no texto de Alberti e, com a frase causa no texto original. Manco – Raios e trovões! Que alvoroço é esse? Nesse trecho citado. Optamos por traduzir com um “palavrão”, tradução escolhida, teríamos o mesmo efeito que a ------ deparamos No português nos foram artístico por meio da tradução e dos paratextos pensados como maneira de conduzi-lo por uma cultura diferente da dele. Considerações finais recorrentes e que detiveram nossa atenção durante a tradução. Muitas expressões são usadas, e tivemos que as traduzir de uma maneira que soasse familiar ao público brasileiro, como é o caso do diminutivo usado em “manquillo”, por exemplo, foi traduzido para “manquinho”. Mais adiante, temos a frase da Velha 3 “Te vas a mear si te lo digo.” No português usamos uma expressão equivalente, então não tivemos tantos problemas ao traduzir literalmente para “Vai se mijar se eu te disser”. Nota-se, aqui, uma mudança gramatical, apenas. Como no português brasileiro não se usa a conjugação verbal em segunda pessoa, optou-se por patronizar no texto da peça o tratamento pelo pronome Para introduzir uma obra literária de outra cultura e escrita em outra língua para um determinado público, cremos ser necessário fazer uma contextualização acerca de quem a escreveu e em quais circunstâncias foi escrita. Em nossa tradução e neste artigo, ao apresentar as reflexões referentes ao processo de tradução, destacamos a figura de Rafael Alberti, indicando quais os seus campos de atuação dentro das Artes, sua trajetória de vida e aspirações políticas. Paralelo a isso, mencionamos brevemente, o momento histórico que a Espanha viveu durante os anos 1930 e toda as implicações que isso teve para a Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p. 124-135, set/dez. 2021. http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Dos Reis, Guilherme Assis. história do país e para a escrita da peça Noche de causam a identificação e comoção do público, por não Guerra en el Museo del Prado. serem fruto de um processo de tradução aprimorado. Entendemos que grande parte dos brasileiros não têm contato com a história da Espanha e com as Referências obras criadas durante e em decorrência da guerra que marcou o país. Por isso, a tradução contou com a criação de um estudo introdutório que cumpre a função de imergir o leitor/espectador na obra que dialoga com um momento histórico específico. Não foi um processo fácil nem rápido, visto que a obra retrata um povo dividido que luta pelos seus ideais ao mesmo tempo em que tem que lidar com as consequências de uma guerra. Para além disso, a peça conta com a personificação de personagens históricos espanhóis, que voltam à obra para também defender seu ponto de vista. Nos deparamos com expressões e ritmos populares, palavrões, jargões utilizados por um povo espanhol, e isso resultou em mais uma pesquisa, para que pudéssemos aproximar a tradução de nosso público-alvo. Embora não esteja publicada, a Tradução Crítica de Noite de Guerra no Museu do Prado foi o resultado de um ano de pesquisa e estudo que resultaram nesse artigo, que nos deram a oportunidade de refletir e analisar as dificuldades que vivenciamos durante o processo de criação. Mais do que traduzir uma peça teatral, esse trabalho exigiu das artes plásticas, como Goya e Velázquez, e que entrássemos em contato com expressões e ritmos populares – tanto em espanhol (nossa língua de origem), como em português (nossa língua de chegada), a fim de criar um texto que fosse próximo e agradável para o leitor brasileiro. Consideramos que essa obra traduzida abre novas portas para a peça de Alberti. Com sua versão em português, o acesso à novas dramaturgias e narrativas teatrais se torna possível, bem como a inserção da obra em aulas de história, artes plásticas ou literatura, uma vez que ela abrange essas três áreas. além disso, serve como ampliação ARAÚJO, Ana Ribeiro Grossi; LEANDRO, Maria Clara Xavier; BARBOSA, Tereza Virginia Ribeiro. As dificuldades de traduzir para teatro: o prólogo das Eumênides de Ésquilo. Cadernos de Tradução, Universidade Federal de Minas Gerais, v. 2, ed. 20, p. 101-124, 2007. BASSNETT, Susan. 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Buenos Aires: Losange, 1956. das possibilidades do fazer teatral no Brasil, que ainda conta com exportações europeias que nem sempre CARVALHO, Mayra Moreyra. Transcendente e histórica: a poesia de Rafael Alberti escrita durante a Guerra Civil Espanhola. Caracol, n. 11, p. 134-175, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/118333. Acesso em: 04 maio 2021. CASANOVA, Julián; GIL ANDRÉS, Carlos. Breve historia de España en el siglo XX. Barcelona: Editorial Planeta, 2012. CERIGIOLI, Marcelo Maciel. Rafael Alberti: Leituras do Museu do Prado. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH/USP, 2001. Disponível em: <www.teses.usp.br/teses/disponiveis/.../2011_MarceloMa cielCerigioli.pdf> Acesso em: 04 maio 2021. CORRALES, Eloy Martín. La lucha por los escenarios y el público catalán: el arraigo popular del flamenco y de los toros frente a la oposición de la burguesía industrial y el catalanismo. In: STEINGRESS, Gerhard; BALTNÁS, Enrique. 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