Consumo e felicidade na contemporaneidade
RAFAEL BIANCHI SILVA*
FLAVIA FERNANDES DE CARVALHAES**
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a relação entre consumo e felicidade
no contexto da sociedade contemporânea. Para tanto, realiza um estudo das
características do mundo atual – a partir de autores como Z. Bauman e G.
Lipovetsky – para em um segundo momento analisar os impactos na produção
de subjetividade. Enquanto elemento fundamental para a discussão, destaca-se
a ascensão do mercado como parâmetro para a vida e a tomada do consumo
como valor máximo na busca por felicidade. Por fim, discute-se de que forma
estes pontos se articulam com as relações humanas e como estas podem se
configurar como alternativa à lógica de custo-benefício propagada pela
sociedade de consumo.
Palavras-chave: Consumo; Felicidade; Subjetividade; Contemporaneidade
Consumption and happiness in contemporanity
Abstract: The objective of this article is discuss the relationship between
consumption and happiness in the context of contemporary society. Therefore,
it is realized a study of the characteristics of the current world – with authors as
Z. Bauman and G. Lipovetsky – to, at second time, analyze the impacts on the
production of subjectivity. As a fundamental element for the discussion, it can
be detached the rise of the market as a parameter for life and the assumption of
the consumption as the maximum value in the search for happiness. Finally, it
is discussed how these points are articulated with human relations and how
these can be configured as an alternative to the cost-benefit logic propagated by
the consumer society.
Key words: Consumption; Happiness; Subjectivity; Contemporaneity.
*
RAFAEL BIANCHI SILVA é Doutor em Educação (Unesp/Marília); Docente do
Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
**
FLAVIA FERNANDES DE CARVALHAES é Doutora em Psicologia pela Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil; Docente do Departamento de Psicologia Social e
Institucional da Universidade Estadual de Londrina.
71
O termo “sociedade de consumo”
remete à década de 1920 e, conforme
aponta
Lipovetsky
(2007),
está
intimamente
articulado
com
o
nascimento da sociedade moderna que
possui como um de seus princípios
fundamentais, ser materialista. Porém,
seu desenvolvimento não seria possível
sem “[...] uma construção social e
cultural que requereu a ‘educação’ dos
consumidores ao mesmo tempo em que
o espírito visionário de empreendedores
criativos [...]” (p.28).
Ainda que estejamos imersos em
pressupostos similares, não podemos
afirmar que a atualidade se produz
unicamente em relação a tais
pressupostos. As práticas de consumo
que se enlaçam a vida cotidiana
contemporânea estão permeadas pela
necessidade por objetos de utilização
diária e, principalmente, assumem
importância nas relações interpessoais,
articulando modos de sentir, pensar,
experimentar e aspirar perspectivas de
vida.
Na tentativa de problematizar os efeitos
da
lógica
do
consumo
na
contemporaneidade,
dialogamos
principalmente com a perspectiva
teórica de autores que debatem sobre
essa questão. Segundo Bauman (2001),
ao longo do século XX, articularam-se
rupturas
em
parte
das
bases
institucionais
que
edificaram
a
sociedade moderna, o que implicou na
emergência de novos modos de
organização social e subjetiva.
Primeiramente, será problematizada a
transição da sociedade moderna para a
sociedade contemporânea, focalizando,
principalmente, nas maneiras como esta
se produz. Na continuidade da análise,
refletiremos sobre o consumo como
modo de vida exaltado e central na
sociedade atual, edificado em uma
promessa inalcançável de felicidade.
Por fim, refletiremos o quanto a busca
da felicidade associada ao consumo
implica
em
necessariamente
o
enfretamento do problema da frustração
72
e seus múltiplos efeitos na vida em
sociedade.
A ascensão do
parâmetro da vida
mercado
como
O primeiro elemento importante a
destacar diz respeito às mudanças nas
composições sociais que demarcam a
transição de uma sociedade atravessada
por estratégias disciplinares (ver
FOUCAULT, 2011) para outra na qual
há uma amplificação das formas de
controle. Enquanto a primeira é
caracterizada como um período em que
a população foi tomada como foco
privilegiado
de
técnicas
de
adestramento e normalização, a segunda
é marcada pela maior fluidez das
“formas ultrarrápidas de controle ao ar
livre, que substituem as antigas
disciplinas que operavam na duração de
um sistema fechado” (DELEUZE, 1992,
p.224).
Este novo modo de organização
societário se tornou possível a partir do
entrelaçamento de condições sociais,
políticas, econômicas, culturais, entre
outras, que se precipitaram na segunda
metade do século XX (PRECIADO,
2008). Desde então, assistimos ao
desmoronamento de algumas certezas
que até pouco tempo regiam a vida em
sociedade e estamos sendo impactados
pela emergência de outros arranjos
sociais, como, por exemplo, as
tecnologias high tech que dão maior
visibilidade a múltiplos modos de vida
na população. Segundo Pelbart (2000, p.
11):
[...] não paramos de nos perguntar:
o que se passou, o que terá
acontecido que de repente tudo
mudou,
que
já
não
nos
reconhecemos no que ainda ontem
constituía o mais trivial cotidiano?
Aumenta nosso estranhamento com
as maneiras emergentes de sentir,
de pensar, de fantasiar, de amar, de
sonhar, e cada vez mais vemo-nos
às voltas com imensos aparelhos de
codificação e captura, que sugam o
estofo do que constituía, até há
pouco, nossa mais íntima espessura.
Sobre as rupturas que implicaram em
maior fluidez da sociedade moderna,
Lipovetsky (2004, p.57) argumenta que
[...] por toda parte, a ênfase é na
obrigação do movimento [...]
quanto menos o futuro é previsível,
mais ele precisa ser mutável,
flexível, reativo, permanentemente
pronto a mudar, supermoderno [...].
A mitologia da ruptura social foi
substituída pela cultura do mais
rápido e do sempre mais: mais
rentabilidade, mais desempenho,
mais flexibilidade, mais inovação
[...] processo que transforma a vida
em algo sem propósito e sem
sentido.
Bauman (2007) também faz alusão a
uma
série
de
transformações
importantes observadas no individuo
contemporâneo. A primeira delas é, de
um lado, a perda da visão de progresso
derivada
da
separação
entre
conhecimento e sua aplicação e, de
outro, pela incapacidade das instituições
sociais de fornecer subsídios para viver
em uma sociedade em condição de
destruir a si mesma.
No Brasil, por exemplo, ao longo desse
ano, vimos acontecer o processo de
impedimento
da
presidência
da
República. Se em outros tempos, havia
uma crença absoluta de que tal mudança
significaria necessariamente melhora
nas condições de existência da
população, hoje, isso não se mostra
como verdade, questionando a ideia de
previsibilidade futura inerente ao
conceito de progresso.
O segundo ponto é o estabelecimento de
uma crise das instituições consideradas
como fundamento do sentido societário,
73
o que subjetivamente é sentido como a
ausência de parametrizações para o
viver. Não há mais um poder
centralizado, mas sim um poder
separado da política e que, de certa
forma,
parece
imune
à
institucionalização (BAUMAN, 2009b).
Um dos efeitos disso, por exemplo, é a
ascensão do mercado como esfera de
referência da vida que além de reiterar
modelos previamente estabelecidos,
incluirá outros tipos anteriormente
rejeitados como potenciais modelos
de/para consumo.
Como exemplo dessa questão, a mesma
sociedade que rejeita corpos ditos
abjetos – como os corpos transexuais
(BUTLER, 2003) – também coloca em
circulação campanhas publicitárias –
como da Revista Vogue - que anunciam
novos modos unissex de existir na
moda, mostrando a captura de parte da
reivindicação trans de existência em
prol da sociedade de consumo.
Dentre os múltiplos efeitos dos novos
desenhos da sociedade contemporânea,
tem-se a sensação de viver processos
em rápida mudança, marcados pela
fluidez. Conforme afirma Bauman
(2012, p.22), a vida proposta nesse
contexto “[...] é uma encenação diária
da transitoriedade universal [...]”.
Os dois processos indicados acima
geram uma alteração no sentido do que
entendemos por “História”. A vida em
estado de mudança e fluidez é vivida
em termos episódicos, muitas vezes sem
ligações uns com os outros. Por tal
característica, muda-se a temporalidade
da existência que passa a ser vivenciada
de forma mais rápida e sem linearidade,
propiciando a instauração da lógica do
“instantâneo”, enquanto valor social
(BAUMAN, 2009a).
A quarta característica da sociedade
contemporânea é o nascimento de uma
visão fantasmática de comunidades que
remonta a utopia de segurança. Esses
paraísos artificiais se configuram como
espaços nos quais diferentes indivíduos
podem ter uma sensação de segurança
de estar com pessoas que são
minimamente parecidas, sejam nos
lugares onde moram, nos espaços que
frequentam, nas roupas que usam e etc.
Isso também é capturado pela lógica de
consumo como produto que pode ser
adquirido. Exemplo disso é a
proliferação de condomínios que
articulam moradia e lazer, sob o
discurso de afastamento de possíveis
riscos à segurança daqueles que dele
fazem parte. Aumentando o valor
agregado para aquisição de uma
unidade residencial, amplia-se também
a probabilidade de ter ao lado uma
pessoa supostamente igual ou parecida a
mim no que tange ao poder aquisitivo (e
às possibilidades de acesso a
determinados regimes econômicossimbólicos).
Trata-se da ascensão do mundo das
tribos ou das “comunidades de
similares” que funcionam como uma
espécie de apólice de seguros contra a
diferença. Trata-se, ainda, de práticas de
comunitarismo baseadas na exclusão
daqueles
que
são
considerados
diferentes e que poderiam causar algum
tipo de estranheza ou em última análise,
risco. Ao mesmo tempo em que gera o
afastamento
dos
demais
e
consequentemente de si mesmo, esse
tipo de agrupamento possui como preço
a ser pago uma diminuição da liberdade.
Afinal é necessário determinar quem
são os estranhos na comunidade de
pretensa uniformidade:
[...] Você quer segurança? Abra
mão de sua liberdade, ou pelo
menos de boa parte dela. Você quer
poder confiar? Não confie em
ninguém de fora da comunidade.
74
[...] Você quer proteção? Não
acolha estranhos e abstenha-se de
agir de modo esquisito ou de ter
pensamentos bizarros. Você quer
aconchego? Não chegue perto da
janela, e jamais a abra. O nó da
questão é que se você seguir esse
conselho e mantiver as janelas
fechadas, o ambiente logo ficará
abafado e, no limite, opressivo
(BAUMAN, 2003, p.10).
Nosso modelo societário ao tentar
garantir alguma segurança, cobra, em
contrapartida, a expansão do uso de
dispositivos de desnudamento e controle
da vida, na qual a separação entre o
público e o privado entra em estado de
colapso. Isso pode ser observado no
trabalho
imaterial,
amplamente
disseminado
na
sociedade
contemporânea. Esta modalidade “busca
extrair da vida habilidades que vão além
da força física e envolvem dimensões
subjetivas que se tornam indispensáveis
para garantir a preferência dos clientes e
a permanência das empresas no
mercado” (MANSANO, 2009, p.517).
Na racionalidade do trabalho imaterial,
demanda-se do trabalhador habilidades
subjetivas
como
criatividade,
sensibilidade, afetividade, sociabilidade,
sendo a própria vida deste objetivo de
consumo e manipulação das empresas.
Em um contexto sem pontos fixos ou
formas de permanecer fora de instâncias
de vigilância e controle (que ganham
estatuto de meios para garantir a
segurança), o espaço virtual, e, em
especial, as redes sociais, passam a
ganhar destaque como modo de
expressão e constituição de si, bem
como de consumo de estilos de vida que
se
metamorfoseiam
segundo
as
exigências do mercado. Além de
minimizar possíveis riscos atrelados às
relações face-a-face, as redes sociais
fornecem condições de manter as portas
abertas para futuras e inusitadas trocas.
A reconfiguração das relações humanas
a partir da utilização de novas
tecnologias faz com que as relações
virtuais se transformem na base das
demais formas relacionais
O panorama construído até o momento
nos fornece as bases para compreender
de que forma o mercado, tendo no
consumo seu principal suporte, ganha
lugar de destaque em nossa vida
cotidiana. Um fator importante desse
processo é a sensação de que as
instituições sociais não conseguem mais
garantir uma vida segura e planificada.
Tal segurança poderia ser encontrada
via relações humanas, porém estas, de
certa forma, colocam em xeque a
liberdade individual. Sitiado e em frente
à impossibilidade ficar muito tempo
sem referências e/ou parâmetros de
conduta, o mercado surge como
alternativa para a resolução do impasse,
da ambivalência.
Assim, coloca-se em marcha uma lógica
de mercado que incentiva o consumo ao
relacioná-lo, ainda que por um instante,
à sensação plena de liberdade. A vida
passa a ganhar sentido nas práticas de
comprar e consumir. O marketing
trabalhará exatamente sobre essa esfera,
buscando a captura subjetiva na
sensação imaginária de que a maior
expressão de liberdade é adquirir o
produto
desejado.
Assim,
é
materializada a afirmação de Bauman
(2008, p.109): “[...] os bens servem para
mobilizar as pessoas [...]”.
O autor (2009a) pontua que os centros
de compra – shopping centers – se
aproximam do sentido comunitário
anteriormente descrito. É o que
podemos observar, por exemplo, na
forma de funcionamento de diferentes
sítios
eletrônicos
chamados
de
“compras coletivas”. As comunidades
de compras – ou “cardume”, utilizando
75
a metáfora de uma dessas empresas –
remete a uma experiência coletiva ainda
que, ao fim, a escolha, compra e
utilização do produto será sempre
vivenciada de forma individual. Nesse
sentido:
[...] a passagem da sociedade de
produtores para a de consumidores,
em geral é apresentado como um
processo gradual, a ser finalmente
completado, de emancipação dos
indivíduos das condições originais
de “não-escolha” [...]. Com muita
frequência, essa passagem é
retratada como o triunfo final do
direito
do
indivíduo
à
autoafirmação, [...] por sua vez, a
ser interpretada como o direito do
indivíduo à livre escolha [...]
(BAUMAN, 2008, p. 81).
Se nos tempos da sociedade moderna
administrada, a vida estava modulada
principalmente pelo trabalho e o seu
modo de organização, a sociedade
líquido-moderna gera o deslocamento
para o desenvolvimento de uma espécie
de vocação consumista. Segundo
Bauman (2009a, p.81), a história do
consumismo é a história da quebra e
descarte dos obstáculos que limitam a
fantasia. Assim,
A “necessidade”, considerada pelos
economistas do século XIX como a
própria epitome da “solidez” –
inflexível,
permanentemente
circunscrita e finita – foi descartada
e substituída durante algum tempo
pelo desejo, que era mais “fluido” e
expansível que a necessidade por
causa de suas relações meio ilícitas
com sonhos plásticos e volúveis
sobre a autenticidade de um “eu
íntimo” à espera de expressão [...].
Por essa razão, o autor (2012, p.23)
afirma que “[...] a modernidade líquida
é uma civilização do excesso, da
redundância, do dejeto e do seu descarte
[...]”. Essa é a questão que discutiremos
mais atentamente a seguir.
Consumo como modo de vida
Vemos que o consumo ganha
centralidade na vida contemporânea. O
impulso de comprar e livrar-se do que é
antigo para adquirir novos bens mais
atraentes e provocadores de emoções.
Nessa direção, “a plenitude do prazer de
consumir significa a plenitude da vida.
Compro, logo existo. Comprar ou não
comprar, eis a questão (BAUMAN,
2012, p.83).
Sobre a formação do espírito
consumista, Santos (2012, p.212) afirma
que
é
possível
observar
três
perspectivas que constroem a cultura do
consumo. A primeira delas diz respeito
à relação entre valor, objeto e imagem
da mercadoria obtida. Como valor
social, o consumo é tomado a partir do
seu papel dentro da dinâmica
econômica, “[...] considerando-o como
um momento do ciclo de produção e
reprodução social [...]”.
Sobre essa questão, Bauman (2012,
p.105) afirma que é construída uma
modalidade de discurso, intitulada
“discurso do consumismo”, que se
coloca “[...] contra qualquer satisfação
de necessidades, desejos, ambições e
anseios humanos que não passe pelo
caminho das lojas – ou não seja
mediada pela aquisição e o uso de
mercadorias e, portanto, não envolva
dinheiro trocando de mãos [...]”.
O segundo traço diz respeito ao
estabelecimento de um vínculo entre o
consumo e as diferenças sociais. Em
outras palavras, a capacidade de
adquirir determinados objetos em
determinados
lugares
específicos
reiteram as diferenças sociais fruto do
próprio sistema capitalista. O ato de
propagar uma ideia acerca de um
76
produto – através, por exemplo, das
peças publicitárias – inicialmente,
atinge o nicho de mercado escolhido
como público-alvo, sem conseguir,
porém, evitar que tal estímulo atinja
indistintamente outros nichos –
entendem-se camadas – sociais. Como
consequência deste ponto, temos o
aumento significativo de jovens que se
envolvem no contexto da criminalidade
pelo desejo de consumir modos
hegemônicos de existência e de status
amplamente
anunciadas
pela
publicidade e que estão necessariamente
articulados a posse de produtos
industrializados.
É nesta direção que adentramos no
papel das instituições de crédito na
garantia de manutenção do indivíduo na
capacidade de consumo. Sobre esta
questão, Deleuze (1992) argumenta que
o “homem confinado”, que se constituiu
entre os muros disciplinares da
sociedade moderna, se atualizou na
contemporaneidade na versão do
“homem endividado”. Assim, não é
necessário ter dinheiro para comprar,
mas sim, ter uma atitude, desejo quanto
ao
processo,
permanecendo
infinitamente imerso nas redes de
consumo.
Sobre essa questão, afirma Bauman
(2012, p.21) que “somos instigados,
forçados ou induzidos a comprar e
gastar – a gastar o que temos e o que
não temos, mas que esperamos ganhar
no futuro [...]”. O imediatismo, nesse
caso, gera o endividamento futuro, mal
menor em vista da satisfação imediata
derivada do produto adquirido. Um
exemplo disso é a cultura do crédito que
propõe primeiro o uso e depois o
pagamento, sem levar em conta na
maior parte das vezes as circunstâncias
futuras derivadas desse processo.
O terceiro traço presente na sociedade
de consumo diz respeito à relação entre
consumo e prazer. Conforme afirma
Santos (2012, p.215), a busca por novas
mercadorias “[...] residem muito mais
na procura do prazer imaginativo a que
a imagem do consumo se empresta, do
que na seleção, na compra ou no uso
dos produtos, o que acaba gerando
insatisfação
por
parte
dos
consumidores”.
Essa busca marcada por tropeços e
desencontros, precisa ser incentivada
continuamente. Encontramos aqui um
tópico importante para a manutenção da
estratégia de consumo: a transformação
dos objetos em símbolos. Consumimos
não o objeto em si mesmo, mas sim, a
ideia a ele articulada. Lipovetsky (2007)
afirma que mais do que relacionar
consumo ao prazer, o que está em jogo
na sociedade de consumo na
contemporaneidade é a difusão de
discursos que fazem vinculação entre o
consumo e a capacidade de ser feliz.
Não se trata mais da busca de bens
materiais, o que move o ser humano são
experiências,
sentimentos,
afetos
identificados como disponíveis nos
corredores dos centros de compras. O
autor afirma que “[...] assistimos à
expansão do mercado da alma e de sua
transformação, do equilíbrio e da autoestima,
enquanto
proliferam
as
farmácias da felicidade [...]” (p.15).
Como exemplo desta racionalidade,
sugerimos às propagandas de perfumes
importados.
Dificilmente
as
características dos perfumes em si são
anunciadas, mas as propagandas se
enlaçam a imagens e sons que tem o
objetivo de exaltar corpos associados a
modelos hegemônicos de beleza e de
sedução, bem como a produtos de
consumo (carros, joias, roupas), ou seja,
o que se almeja é mais um determinado
77
estilo de vida consumidor do que o
produto anunciado.
Logo, mais do que apenas fabricar e
colocar à disposição objetos a serem
adquiridos, a lógica de consumo prevê
um circuito no qual a terminalidade do
objeto ou a satisfação por ele gerado
leva necessariamente à obtenção de um
novo
objeto,
reiniciando
infindavelmente o processo. Em outras
palavras, “[...] em uma sociedade de
consumidores, a busca de felicidade
tende a reorientar-se desde o fabricar ao
adquirir coisas até o desfazer-se delas
[...]” (BAUMAN, 2010a, p.225). Se
aplicada à felicidade, tal afirmação
acima ganha contornos problemáticos.
Bauman (2009b) analisa que não há
uma relação íntima entre a renda, o
nível de investimento realizado na
aquisição de um produto e, por fim, a
renda per capita de um país e a
felicidade dos indivíduos que fazem
parte da comunidade analisada. Isso se
deve principalmente pelo fato de que a
felicidade possui uma dimensão
subjetiva
que
não
pode
ser
quantificável. O autor pontua em outro
momento que “[...] novos incrementos
de renda não aumentam o volume de
felicidade” (2008, p.61). Por essa razão,
a equiparação entre a possibilidade de
adquirir felicidade através da compra de
um dado produto mostra uma relação
equivocada e arbitrária.
A sociedade de consumo mantém esse
vínculo instável com o anseio de ser
feliz através da manutenção constante
da “busca”, ou seja, o desejo principal
passa a ser o ato de deslizar pela rede de
consumo e não a obtenção do produto
como meta final. Isso lançaria à
felicidade em uma condição impossível
de ser alcançada, ainda que os produtos
encontrados nas gôndolas gerem a
miragem de tal possibilidade, como é
possível observar, por exemplo, no
convite expresso no slogan muito
difundido de uma grande loja de
departamentos: “Vem ser feliz!”. Sobre
este anuncio de uma suposta felicidade
inalcançável, Bauman (2009b, p.18)
analisa que
Alterando sutilmente o sonho de
felicidade - da visão de uma vida
plena e satisfatória para a busca dos
meios considerados necessários
para que a vida assim seja
alcançada-, os mercados fazem com
que essa busca nunca possa
terminar. [...]. Imperceptivelmente,
a visão da felicidade muda da
antecipação da alegria pósaquisição para o ato de compra que
a precede – um ato transbordante de
expectativa jubilosa [...] (grifo do
autor).
Se o ato de comprar justifica-se por si
mesmo, principalmente por aderir a uma
instância emocional em relação ao
objeto de consumo, a rapidez da compra
garante o movimento necessário para a
manutenção do próprio mercado.
Assim, a sociedade contemporânea
materializa-se na sociedade de consumo
no que se refere à instabilidade e à
instantaneidade. Sobre essa questão,
Bauman pontua que “[...] um mercado
de consumo que atenda a necessidades
de longo prazo [...] seria um
contrassenso [...]” (2010a, p.293).
Vemos
nesse
processo
de
estabelecimento da insatisfação em algo
permanente. A busca de felicidade se
mantém pela esperança de poder ser
feliz. A infelicidade é uma condição a
ser afastada enquanto que a felicidade é
uma possibilidade que precisa ser
buscada e paga não importando o custo
envolvido. Afinal, ser infeliz é tomado
como um crime passível de punição que
diferencia o cidadão consciente
daqueles considerados como massa
78
descartável. Por essa razão, Bauman
(2008, p.60) afirma, de modo sintético
que esse é um dos traços mais
característicos
da
sociedade
de
consumidores: “[...] a prometer a
felicidade na vida terrena, aqui e agora e
a cada “agora” sucessivo. Em suma,
uma felicidade instantânea e perpétua
[...].
Deste modo, Bauman (2010b, p.42)
aponta que “o consumismo de hoje não
consiste em acumular objetos, mas em
seu gozo descartável [...]”. Dessa forma,
estar em movimento deixa de ser uma
estratégia
e
ganha
contornos
imperativos. Ao mesmo tempo, é
necessário estabelecer parâmetros que
venham a garantir a manutenção da
satisfação ainda que seja marcada pela
brevidade.
Assim, há na sociedade de consumo,
uma relação entre satisfação e vínculo
com os objetos, sendo o primeiro
inversamente proporcional ao segundo.
Ou seja, quanto mais rápida a obtenção
e laço com o objeto, mais
potencializada e imediata tenderia a ser
a satisfação. De forma inversa, a
manutenção de vínculo de longo prazo
tenderia a produzir maior desconforto
ou perda da potência à satisfação. Esse
ponto
coloca
algumas
novas
problemáticas ao modelo de felicidade
indicado pela sociedade de consumo,
como analisaremos a seguir.
(Des) caminhos para a felicidade
A busca da felicidade no contexto da
sociedade contemporânea leva ao
enfretamento
do
problema
da
frustração. Bauman problematiza esta
questão em diversos momentos de sua
obra e afirma que “[...] o consumo não
leva à certeza e saciedade. O bastante
nunca bastará [...]” (2009c, p.35).
A construção de tal panorama deriva,
segundo o autor, de uma virada
realizada pela sociedade de consumo
atrelada à condição de infelicidade,
vista como algo permanente. Para tanto,
os discursos relativos à questão que são
disseminados pela rede social apontam
para a satisfação de:
[...]
toda
necessidade/desejo/carência de tal
forma que resulte inevitável que
forneça
bases
para
novas
necessidades/desejos/carências. O
que
inicia-se
como
uma
necessidade deve acabar como
uma compulsão ou como uma
adicção. E assim termina, dado que
o impulso a buscar nas lojas (e
somente nas lojas) soluções para
problemas e alívio para a dor e
ansiedade se transforma em um
comportamento que não somente é
tolerado,
senão
avidamente
encorajados
como
hábito
(BAUMAN, 2010a, p.243, grifo
nosso).
Lipovetsky (2007) chama esse traço da
sociedade contemporânea de “felicidade
paradoxal”, ou seja, ao mesmo tempo
em que o consumo produz elementos de
positividade
para
o
comprador,
ofertando um paraíso momentâneo,
novos problemas se constroem como
efeitos do modo de vida impresso pela
dinâmica do consumo. Afirma o autor:
[...] A imensa maioria se diz feliz,
contudo a tristeza e o estresse, as
depressões e as ansiedades formam
um rio que engrossa de maneira
inquieta [...]. Nossas sociedades são
cada vez mais ricas: apesar disso,
um número crescente de pessoas
vive na precariedade e precisa fazer
economias em todos os itens de seu
orçamento, tornando-se a falta de
dinheiro uma preocupação cada vez
mais obsessiva. Somos cada vez
mais bem cuidados, o que não
impede que os indivíduos se tornem
79
uma espécie de hipocondríacos
crônicos [...] (p.17).
O traço compulsivo, entendido aqui
como repetição de um ato de forma
continuada e permanente, quando
aplicado ao ato de comprar tem
recebido uma atenção da mídia
televisiva a partir da produção de
programas sobre o que são chamados de
“acumuladores”. É possível observar
que suas vidas são empobrecidas de
relações humanas, sendo os vínculos, de
forma geral, transferidos aos objetos
que foram pouco a pouco ocupando
lugar privilegiado na vida.
Uma análise mais cuidadosa nos mostra
que os acumuladores são o produto
direto da relação estabelecida entre
felicidade e sociedade de consumo. Seu
“erro” não está na compra dos objetos,
mas sim, na ausência de seu descarte,
gerando a acumulação. Assim, ainda
que sigam as regras fundamentais que
colocam o consumo como valor
máximo nas relações estabelecidas,
acabam por se tornar disfuncionais ao
não conseguir se desvencilhar daquilo
que, mesmo tendo recebido em algum
momento a promessa de resolução de
possíveis
conflitos/carências/anseios
internos, pelo investimento afetivo
realizado, não conseguem dar o último
passo que completa o circuito de
consumir: jogar fora.
Outro subproduto da busca da felicidade
é o tédio. Bauman (2008) aponta que ele
deriva da insuportável rotina que é
estabelecida na compulsão em comprar,
que mesmo sob efeito de novidades que
surgem incessantemente, geram ao fim,
a sensação de frustração. Sobre essa
questão, Carvalho (2012) afirma que é
de se esperar que o tedio surja como um
componente de subjetivação no mundo
contemporâneo. Aponta, por fim, que o
impacto do tédio, enquanto cansaço de
viver,
“[...]
atinge
atualmente
proporções inéditas e seus efeitos se
fazem sentir nas diferentes culturas que
hoje se inscrevem na dinâmica do
capital [...]” (p.66).
O desenvolvimento de novas patologias
contemporâneas retroalimenta o próprio
mercado de forma a este desenvolver
novas estratégias/tratamentos destas
enfermidades. É nesse contexto que,
cada vez mais, os profissionais psi são
demandados a trazer respostas acerca da
incapacidade dos indivíduos lidarem
com seus conflitos. Ao mesmo tempo,
são difundidas “soluções” a partir, por
exemplo, no investimento na imagem
pessoal, no trabalho com o corpo, com o
equilíbrio mental, etc.
Bauman (2009d) afirma que os vínculos
estabelecidos na contemporaneidade
seguem, de forma hegemônica a lógica
de custo-benefício, que retoma o
afastamento de quaisquer sinais de malestar ainda que tal posição implique no
fim da vinculação com o outro ou,
dentro das possibilidades, reiniciar uma
nova relação que retroalimenta o
processo, gerando o empobrecimento
das relações humanas. Tal afirmação
torna-se evidente em relatos que
circulam na sociedade atual, de pessoas
que mantém um número elevado de
amigos virtuais nas redes sociais, mais
que se ressente pela dificuldade de
manter relações de intimidade com as
pessoas com que convive no cotidiano.
Por essa razão, nas relações humanas, as
pessoas
são
transformadas
em
mercadorias, passíveis de troca caso
exista “algum defeito”. A instabilidade
relacional pode ser observada em
diferentes contextos, seja na crise da
instituição matrimonial, seja nas
queixas de falta de comprometimento
na relação empresa-trabalhador, seja em
situações-limite como, por exemplo,
80
quando o pai que esquece o filho bebê
no banco de trás do carro em meio à
lista de tarefas a cumprir em seu dia.
Em síntese, as relações afetivas se
tornam líquidas porque são rápidas; mas
esse mesmo processo, dificulta aquilo
que há de mais próprio em uma
verdadeira relação que é sua capacidade
de ser durável, potencializando a
geração de experiências significativas
para o sujeito. Estar com o outro é estar
convivendo com o risco. Na diferença, a
relação entre dois é marcada pela
imprevisibilidade e pelo mistério do
olhar do outro, seus desejos, aspirações
e formas de conduta. O autor analisa
essa questão ao afirmar que relacionarse com o outro é como assinar um
cheque em branco, o que implica em
confrontar-se “[...] com algo ainda
desconhecido, e com desconfortos e
sofrimentos inimagináveis, sem uma
cláusula de escape que possa ser
invocada [...]. (BAUMAN, 2009c,
p.26).
Por essa razão, a densidade do laço e
relações de longa duração passam a ser
evitadas. Insere-se a transitoriedade
onde via de regra encontrava-se a
permanência. Porém, é exatamente
nestes tipos de relação, mais
duradouras, que é possível exercitar o
que Bauman chama de “prazer dos
prazeres” derivada do “prazer das
ligações” pautada na impossibilidade de
substituição do outro, o que em
contrapartida, também impossibilidade
a substituição de si. O autor (2009c,
p.28) afirma que “[...] esse sentimento
só pode vir de um sedimento do tempo,
do tempo preenchido com seus cuidados
– sendo estes o fio precioso com que se
tecem as telas resplandecentes da
ligação e do convívio”.
Em tempos de crise relacional, a defesa
da densidade dos laços, portanto, é vista
como
uma
alternativa
possível.
Conforme explica Bauman (2009d),
este tipo de vínculo funciona como um
bote salva-vidas que nos possibilita
velejar em um cenário turbulento de
mudanças rápidas e sem aviso prévio.
Não podemos entender a proposta do
autor no sentido de retomar formas
relacionais presentes em tempos de
solidez, mas sim, movimentar-se nos
vínculos estabelecidos de forma a ser
capaz de reconstruí-los para que gerem
maior potencialidade de efeitos
prazerosos.
Considerações provisórias
A sociedade de consumo se atualiza em
múltiplas formas, imagens e discursos,
que se produzem e enlaçam no
contemporâneo e nos permitem a
experimentação de novas sensações e
relações. Na análise realizada, a
problematização da relação entre
produção social e consumo anuncia um
caminho possível de problematização da
sociedade contemporânea e suas novas
configurações.
Destaca-se, sobretudo, a crítica ao fato
de um suposto ideal de felicidade estar
sendo amplamente transformado em
mais um objeto a ser adquirido,
comprado, na sociedade atual, o que
implica na vivência constante de
frustação e no adoecimento psíquico e
físico de parte da população.
Cabe ressaltar ainda que as análises
apontam a defesa da construção de uma
ética que inclua o outro a partir da
diferença. (Re)fundar o outro torna-se
uma tarefa fundamental para a
construção de uma nova concepção
societária que possua outros elementos
em suas bases, que podem gerar
impactos também no que tange à
dimensão individual, institucional e
política. A reformulação do projeto
81
comunitário se mostra como alternativa
de resistência ao mundo do consumo.
Se a prosperidade da sociedade de
consumo está intimamente relacionada
com a tendência à transformação de
todos os elementos em objeto de
consumo, o fomento de relações que
respeitem a humanidade de cada um é
um caminho possível para a produção
de modos singulares de existência.
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