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Consumo e felicidade na contemporaneidade

2016

O objetivo deste artigo e discutir a relacao entre consumo e felicidade no contexto da sociedade contemporânea. Para tanto, realiza um estudo das caracteristica do mundo atual - a partir de autores como Z.Bauman e G.Lipovetsky – para em um segundo momento analisar os impactos na producao de subjetividade. Enquanto elemento fundamental para a discussao, destaca-se a ascensao do mercado como parâmetro para a vida e a tomada do consumo como valor maximo na busca por felicidade. Por fim, discute-se de que forma estes pontos se articulam com as relacoes humanas e como estas podem se configurar como alternativa a logica de custo-beneficio propagada pela sociedade de consumo.

Consumo e felicidade na contemporaneidade RAFAEL BIANCHI SILVA* FLAVIA FERNANDES DE CARVALHAES** Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a relação entre consumo e felicidade no contexto da sociedade contemporânea. Para tanto, realiza um estudo das características do mundo atual – a partir de autores como Z. Bauman e G. Lipovetsky – para em um segundo momento analisar os impactos na produção de subjetividade. Enquanto elemento fundamental para a discussão, destaca-se a ascensão do mercado como parâmetro para a vida e a tomada do consumo como valor máximo na busca por felicidade. Por fim, discute-se de que forma estes pontos se articulam com as relações humanas e como estas podem se configurar como alternativa à lógica de custo-benefício propagada pela sociedade de consumo. Palavras-chave: Consumo; Felicidade; Subjetividade; Contemporaneidade Consumption and happiness in contemporanity Abstract: The objective of this article is discuss the relationship between consumption and happiness in the context of contemporary society. Therefore, it is realized a study of the characteristics of the current world – with authors as Z. Bauman and G. Lipovetsky – to, at second time, analyze the impacts on the production of subjectivity. As a fundamental element for the discussion, it can be detached the rise of the market as a parameter for life and the assumption of the consumption as the maximum value in the search for happiness. Finally, it is discussed how these points are articulated with human relations and how these can be configured as an alternative to the cost-benefit logic propagated by the consumer society. Key words: Consumption; Happiness; Subjectivity; Contemporaneity. * RAFAEL BIANCHI SILVA é Doutor em Educação (Unesp/Marília); Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina (UEL) ** FLAVIA FERNANDES DE CARVALHAES é Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil; Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina. 71 O termo “sociedade de consumo” remete à década de 1920 e, conforme aponta Lipovetsky (2007), está intimamente articulado com o nascimento da sociedade moderna que possui como um de seus princípios fundamentais, ser materialista. Porém, seu desenvolvimento não seria possível sem “[...] uma construção social e cultural que requereu a ‘educação’ dos consumidores ao mesmo tempo em que o espírito visionário de empreendedores criativos [...]” (p.28). Ainda que estejamos imersos em pressupostos similares, não podemos afirmar que a atualidade se produz unicamente em relação a tais pressupostos. As práticas de consumo que se enlaçam a vida cotidiana contemporânea estão permeadas pela necessidade por objetos de utilização diária e, principalmente, assumem importância nas relações interpessoais, articulando modos de sentir, pensar, experimentar e aspirar perspectivas de vida. Na tentativa de problematizar os efeitos da lógica do consumo na contemporaneidade, dialogamos principalmente com a perspectiva teórica de autores que debatem sobre essa questão. Segundo Bauman (2001), ao longo do século XX, articularam-se rupturas em parte das bases institucionais que edificaram a sociedade moderna, o que implicou na emergência de novos modos de organização social e subjetiva. Primeiramente, será problematizada a transição da sociedade moderna para a sociedade contemporânea, focalizando, principalmente, nas maneiras como esta se produz. Na continuidade da análise, refletiremos sobre o consumo como modo de vida exaltado e central na sociedade atual, edificado em uma promessa inalcançável de felicidade. Por fim, refletiremos o quanto a busca da felicidade associada ao consumo implica em necessariamente o enfretamento do problema da frustração 72 e seus múltiplos efeitos na vida em sociedade. A ascensão do parâmetro da vida mercado como O primeiro elemento importante a destacar diz respeito às mudanças nas composições sociais que demarcam a transição de uma sociedade atravessada por estratégias disciplinares (ver FOUCAULT, 2011) para outra na qual há uma amplificação das formas de controle. Enquanto a primeira é caracterizada como um período em que a população foi tomada como foco privilegiado de técnicas de adestramento e normalização, a segunda é marcada pela maior fluidez das “formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado” (DELEUZE, 1992, p.224). Este novo modo de organização societário se tornou possível a partir do entrelaçamento de condições sociais, políticas, econômicas, culturais, entre outras, que se precipitaram na segunda metade do século XX (PRECIADO, 2008). Desde então, assistimos ao desmoronamento de algumas certezas que até pouco tempo regiam a vida em sociedade e estamos sendo impactados pela emergência de outros arranjos sociais, como, por exemplo, as tecnologias high tech que dão maior visibilidade a múltiplos modos de vida na população. Segundo Pelbart (2000, p. 11): [...] não paramos de nos perguntar: o que se passou, o que terá acontecido que de repente tudo mudou, que já não nos reconhecemos no que ainda ontem constituía o mais trivial cotidiano? Aumenta nosso estranhamento com as maneiras emergentes de sentir, de pensar, de fantasiar, de amar, de sonhar, e cada vez mais vemo-nos às voltas com imensos aparelhos de codificação e captura, que sugam o estofo do que constituía, até há pouco, nossa mais íntima espessura. Sobre as rupturas que implicaram em maior fluidez da sociedade moderna, Lipovetsky (2004, p.57) argumenta que [...] por toda parte, a ênfase é na obrigação do movimento [...] quanto menos o futuro é previsível, mais ele precisa ser mutável, flexível, reativo, permanentemente pronto a mudar, supermoderno [...]. A mitologia da ruptura social foi substituída pela cultura do mais rápido e do sempre mais: mais rentabilidade, mais desempenho, mais flexibilidade, mais inovação [...] processo que transforma a vida em algo sem propósito e sem sentido. Bauman (2007) também faz alusão a uma série de transformações importantes observadas no individuo contemporâneo. A primeira delas é, de um lado, a perda da visão de progresso derivada da separação entre conhecimento e sua aplicação e, de outro, pela incapacidade das instituições sociais de fornecer subsídios para viver em uma sociedade em condição de destruir a si mesma. No Brasil, por exemplo, ao longo desse ano, vimos acontecer o processo de impedimento da presidência da República. Se em outros tempos, havia uma crença absoluta de que tal mudança significaria necessariamente melhora nas condições de existência da população, hoje, isso não se mostra como verdade, questionando a ideia de previsibilidade futura inerente ao conceito de progresso. O segundo ponto é o estabelecimento de uma crise das instituições consideradas como fundamento do sentido societário, 73 o que subjetivamente é sentido como a ausência de parametrizações para o viver. Não há mais um poder centralizado, mas sim um poder separado da política e que, de certa forma, parece imune à institucionalização (BAUMAN, 2009b). Um dos efeitos disso, por exemplo, é a ascensão do mercado como esfera de referência da vida que além de reiterar modelos previamente estabelecidos, incluirá outros tipos anteriormente rejeitados como potenciais modelos de/para consumo. Como exemplo dessa questão, a mesma sociedade que rejeita corpos ditos abjetos – como os corpos transexuais (BUTLER, 2003) – também coloca em circulação campanhas publicitárias – como da Revista Vogue - que anunciam novos modos unissex de existir na moda, mostrando a captura de parte da reivindicação trans de existência em prol da sociedade de consumo. Dentre os múltiplos efeitos dos novos desenhos da sociedade contemporânea, tem-se a sensação de viver processos em rápida mudança, marcados pela fluidez. Conforme afirma Bauman (2012, p.22), a vida proposta nesse contexto “[...] é uma encenação diária da transitoriedade universal [...]”. Os dois processos indicados acima geram uma alteração no sentido do que entendemos por “História”. A vida em estado de mudança e fluidez é vivida em termos episódicos, muitas vezes sem ligações uns com os outros. Por tal característica, muda-se a temporalidade da existência que passa a ser vivenciada de forma mais rápida e sem linearidade, propiciando a instauração da lógica do “instantâneo”, enquanto valor social (BAUMAN, 2009a). A quarta característica da sociedade contemporânea é o nascimento de uma visão fantasmática de comunidades que remonta a utopia de segurança. Esses paraísos artificiais se configuram como espaços nos quais diferentes indivíduos podem ter uma sensação de segurança de estar com pessoas que são minimamente parecidas, sejam nos lugares onde moram, nos espaços que frequentam, nas roupas que usam e etc. Isso também é capturado pela lógica de consumo como produto que pode ser adquirido. Exemplo disso é a proliferação de condomínios que articulam moradia e lazer, sob o discurso de afastamento de possíveis riscos à segurança daqueles que dele fazem parte. Aumentando o valor agregado para aquisição de uma unidade residencial, amplia-se também a probabilidade de ter ao lado uma pessoa supostamente igual ou parecida a mim no que tange ao poder aquisitivo (e às possibilidades de acesso a determinados regimes econômicossimbólicos). Trata-se da ascensão do mundo das tribos ou das “comunidades de similares” que funcionam como uma espécie de apólice de seguros contra a diferença. Trata-se, ainda, de práticas de comunitarismo baseadas na exclusão daqueles que são considerados diferentes e que poderiam causar algum tipo de estranheza ou em última análise, risco. Ao mesmo tempo em que gera o afastamento dos demais e consequentemente de si mesmo, esse tipo de agrupamento possui como preço a ser pago uma diminuição da liberdade. Afinal é necessário determinar quem são os estranhos na comunidade de pretensa uniformidade: [...] Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de boa parte dela. Você quer poder confiar? Não confie em ninguém de fora da comunidade. 74 [...] Você quer proteção? Não acolha estranhos e abstenha-se de agir de modo esquisito ou de ter pensamentos bizarros. Você quer aconchego? Não chegue perto da janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se você seguir esse conselho e mantiver as janelas fechadas, o ambiente logo ficará abafado e, no limite, opressivo (BAUMAN, 2003, p.10). Nosso modelo societário ao tentar garantir alguma segurança, cobra, em contrapartida, a expansão do uso de dispositivos de desnudamento e controle da vida, na qual a separação entre o público e o privado entra em estado de colapso. Isso pode ser observado no trabalho imaterial, amplamente disseminado na sociedade contemporânea. Esta modalidade “busca extrair da vida habilidades que vão além da força física e envolvem dimensões subjetivas que se tornam indispensáveis para garantir a preferência dos clientes e a permanência das empresas no mercado” (MANSANO, 2009, p.517). Na racionalidade do trabalho imaterial, demanda-se do trabalhador habilidades subjetivas como criatividade, sensibilidade, afetividade, sociabilidade, sendo a própria vida deste objetivo de consumo e manipulação das empresas. Em um contexto sem pontos fixos ou formas de permanecer fora de instâncias de vigilância e controle (que ganham estatuto de meios para garantir a segurança), o espaço virtual, e, em especial, as redes sociais, passam a ganhar destaque como modo de expressão e constituição de si, bem como de consumo de estilos de vida que se metamorfoseiam segundo as exigências do mercado. Além de minimizar possíveis riscos atrelados às relações face-a-face, as redes sociais fornecem condições de manter as portas abertas para futuras e inusitadas trocas. A reconfiguração das relações humanas a partir da utilização de novas tecnologias faz com que as relações virtuais se transformem na base das demais formas relacionais O panorama construído até o momento nos fornece as bases para compreender de que forma o mercado, tendo no consumo seu principal suporte, ganha lugar de destaque em nossa vida cotidiana. Um fator importante desse processo é a sensação de que as instituições sociais não conseguem mais garantir uma vida segura e planificada. Tal segurança poderia ser encontrada via relações humanas, porém estas, de certa forma, colocam em xeque a liberdade individual. Sitiado e em frente à impossibilidade ficar muito tempo sem referências e/ou parâmetros de conduta, o mercado surge como alternativa para a resolução do impasse, da ambivalência. Assim, coloca-se em marcha uma lógica de mercado que incentiva o consumo ao relacioná-lo, ainda que por um instante, à sensação plena de liberdade. A vida passa a ganhar sentido nas práticas de comprar e consumir. O marketing trabalhará exatamente sobre essa esfera, buscando a captura subjetiva na sensação imaginária de que a maior expressão de liberdade é adquirir o produto desejado. Assim, é materializada a afirmação de Bauman (2008, p.109): “[...] os bens servem para mobilizar as pessoas [...]”. O autor (2009a) pontua que os centros de compra – shopping centers – se aproximam do sentido comunitário anteriormente descrito. É o que podemos observar, por exemplo, na forma de funcionamento de diferentes sítios eletrônicos chamados de “compras coletivas”. As comunidades de compras – ou “cardume”, utilizando 75 a metáfora de uma dessas empresas – remete a uma experiência coletiva ainda que, ao fim, a escolha, compra e utilização do produto será sempre vivenciada de forma individual. Nesse sentido: [...] a passagem da sociedade de produtores para a de consumidores, em geral é apresentado como um processo gradual, a ser finalmente completado, de emancipação dos indivíduos das condições originais de “não-escolha” [...]. Com muita frequência, essa passagem é retratada como o triunfo final do direito do indivíduo à autoafirmação, [...] por sua vez, a ser interpretada como o direito do indivíduo à livre escolha [...] (BAUMAN, 2008, p. 81). Se nos tempos da sociedade moderna administrada, a vida estava modulada principalmente pelo trabalho e o seu modo de organização, a sociedade líquido-moderna gera o deslocamento para o desenvolvimento de uma espécie de vocação consumista. Segundo Bauman (2009a, p.81), a história do consumismo é a história da quebra e descarte dos obstáculos que limitam a fantasia. Assim, A “necessidade”, considerada pelos economistas do século XIX como a própria epitome da “solidez” – inflexível, permanentemente circunscrita e finita – foi descartada e substituída durante algum tempo pelo desejo, que era mais “fluido” e expansível que a necessidade por causa de suas relações meio ilícitas com sonhos plásticos e volúveis sobre a autenticidade de um “eu íntimo” à espera de expressão [...]. Por essa razão, o autor (2012, p.23) afirma que “[...] a modernidade líquida é uma civilização do excesso, da redundância, do dejeto e do seu descarte [...]”. Essa é a questão que discutiremos mais atentamente a seguir. Consumo como modo de vida Vemos que o consumo ganha centralidade na vida contemporânea. O impulso de comprar e livrar-se do que é antigo para adquirir novos bens mais atraentes e provocadores de emoções. Nessa direção, “a plenitude do prazer de consumir significa a plenitude da vida. Compro, logo existo. Comprar ou não comprar, eis a questão (BAUMAN, 2012, p.83). Sobre a formação do espírito consumista, Santos (2012, p.212) afirma que é possível observar três perspectivas que constroem a cultura do consumo. A primeira delas diz respeito à relação entre valor, objeto e imagem da mercadoria obtida. Como valor social, o consumo é tomado a partir do seu papel dentro da dinâmica econômica, “[...] considerando-o como um momento do ciclo de produção e reprodução social [...]”. Sobre essa questão, Bauman (2012, p.105) afirma que é construída uma modalidade de discurso, intitulada “discurso do consumismo”, que se coloca “[...] contra qualquer satisfação de necessidades, desejos, ambições e anseios humanos que não passe pelo caminho das lojas – ou não seja mediada pela aquisição e o uso de mercadorias e, portanto, não envolva dinheiro trocando de mãos [...]”. O segundo traço diz respeito ao estabelecimento de um vínculo entre o consumo e as diferenças sociais. Em outras palavras, a capacidade de adquirir determinados objetos em determinados lugares específicos reiteram as diferenças sociais fruto do próprio sistema capitalista. O ato de propagar uma ideia acerca de um 76 produto – através, por exemplo, das peças publicitárias – inicialmente, atinge o nicho de mercado escolhido como público-alvo, sem conseguir, porém, evitar que tal estímulo atinja indistintamente outros nichos – entendem-se camadas – sociais. Como consequência deste ponto, temos o aumento significativo de jovens que se envolvem no contexto da criminalidade pelo desejo de consumir modos hegemônicos de existência e de status amplamente anunciadas pela publicidade e que estão necessariamente articulados a posse de produtos industrializados. É nesta direção que adentramos no papel das instituições de crédito na garantia de manutenção do indivíduo na capacidade de consumo. Sobre esta questão, Deleuze (1992) argumenta que o “homem confinado”, que se constituiu entre os muros disciplinares da sociedade moderna, se atualizou na contemporaneidade na versão do “homem endividado”. Assim, não é necessário ter dinheiro para comprar, mas sim, ter uma atitude, desejo quanto ao processo, permanecendo infinitamente imerso nas redes de consumo. Sobre essa questão, afirma Bauman (2012, p.21) que “somos instigados, forçados ou induzidos a comprar e gastar – a gastar o que temos e o que não temos, mas que esperamos ganhar no futuro [...]”. O imediatismo, nesse caso, gera o endividamento futuro, mal menor em vista da satisfação imediata derivada do produto adquirido. Um exemplo disso é a cultura do crédito que propõe primeiro o uso e depois o pagamento, sem levar em conta na maior parte das vezes as circunstâncias futuras derivadas desse processo. O terceiro traço presente na sociedade de consumo diz respeito à relação entre consumo e prazer. Conforme afirma Santos (2012, p.215), a busca por novas mercadorias “[...] residem muito mais na procura do prazer imaginativo a que a imagem do consumo se empresta, do que na seleção, na compra ou no uso dos produtos, o que acaba gerando insatisfação por parte dos consumidores”. Essa busca marcada por tropeços e desencontros, precisa ser incentivada continuamente. Encontramos aqui um tópico importante para a manutenção da estratégia de consumo: a transformação dos objetos em símbolos. Consumimos não o objeto em si mesmo, mas sim, a ideia a ele articulada. Lipovetsky (2007) afirma que mais do que relacionar consumo ao prazer, o que está em jogo na sociedade de consumo na contemporaneidade é a difusão de discursos que fazem vinculação entre o consumo e a capacidade de ser feliz. Não se trata mais da busca de bens materiais, o que move o ser humano são experiências, sentimentos, afetos identificados como disponíveis nos corredores dos centros de compras. O autor afirma que “[...] assistimos à expansão do mercado da alma e de sua transformação, do equilíbrio e da autoestima, enquanto proliferam as farmácias da felicidade [...]” (p.15). Como exemplo desta racionalidade, sugerimos às propagandas de perfumes importados. Dificilmente as características dos perfumes em si são anunciadas, mas as propagandas se enlaçam a imagens e sons que tem o objetivo de exaltar corpos associados a modelos hegemônicos de beleza e de sedução, bem como a produtos de consumo (carros, joias, roupas), ou seja, o que se almeja é mais um determinado 77 estilo de vida consumidor do que o produto anunciado. Logo, mais do que apenas fabricar e colocar à disposição objetos a serem adquiridos, a lógica de consumo prevê um circuito no qual a terminalidade do objeto ou a satisfação por ele gerado leva necessariamente à obtenção de um novo objeto, reiniciando infindavelmente o processo. Em outras palavras, “[...] em uma sociedade de consumidores, a busca de felicidade tende a reorientar-se desde o fabricar ao adquirir coisas até o desfazer-se delas [...]” (BAUMAN, 2010a, p.225). Se aplicada à felicidade, tal afirmação acima ganha contornos problemáticos. Bauman (2009b) analisa que não há uma relação íntima entre a renda, o nível de investimento realizado na aquisição de um produto e, por fim, a renda per capita de um país e a felicidade dos indivíduos que fazem parte da comunidade analisada. Isso se deve principalmente pelo fato de que a felicidade possui uma dimensão subjetiva que não pode ser quantificável. O autor pontua em outro momento que “[...] novos incrementos de renda não aumentam o volume de felicidade” (2008, p.61). Por essa razão, a equiparação entre a possibilidade de adquirir felicidade através da compra de um dado produto mostra uma relação equivocada e arbitrária. A sociedade de consumo mantém esse vínculo instável com o anseio de ser feliz através da manutenção constante da “busca”, ou seja, o desejo principal passa a ser o ato de deslizar pela rede de consumo e não a obtenção do produto como meta final. Isso lançaria à felicidade em uma condição impossível de ser alcançada, ainda que os produtos encontrados nas gôndolas gerem a miragem de tal possibilidade, como é possível observar, por exemplo, no convite expresso no slogan muito difundido de uma grande loja de departamentos: “Vem ser feliz!”. Sobre este anuncio de uma suposta felicidade inalcançável, Bauman (2009b, p.18) analisa que Alterando sutilmente o sonho de felicidade - da visão de uma vida plena e satisfatória para a busca dos meios considerados necessários para que a vida assim seja alcançada-, os mercados fazem com que essa busca nunca possa terminar. [...]. Imperceptivelmente, a visão da felicidade muda da antecipação da alegria pósaquisição para o ato de compra que a precede – um ato transbordante de expectativa jubilosa [...] (grifo do autor). Se o ato de comprar justifica-se por si mesmo, principalmente por aderir a uma instância emocional em relação ao objeto de consumo, a rapidez da compra garante o movimento necessário para a manutenção do próprio mercado. Assim, a sociedade contemporânea materializa-se na sociedade de consumo no que se refere à instabilidade e à instantaneidade. Sobre essa questão, Bauman pontua que “[...] um mercado de consumo que atenda a necessidades de longo prazo [...] seria um contrassenso [...]” (2010a, p.293). Vemos nesse processo de estabelecimento da insatisfação em algo permanente. A busca de felicidade se mantém pela esperança de poder ser feliz. A infelicidade é uma condição a ser afastada enquanto que a felicidade é uma possibilidade que precisa ser buscada e paga não importando o custo envolvido. Afinal, ser infeliz é tomado como um crime passível de punição que diferencia o cidadão consciente daqueles considerados como massa 78 descartável. Por essa razão, Bauman (2008, p.60) afirma, de modo sintético que esse é um dos traços mais característicos da sociedade de consumidores: “[...] a prometer a felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada “agora” sucessivo. Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua [...]. Deste modo, Bauman (2010b, p.42) aponta que “o consumismo de hoje não consiste em acumular objetos, mas em seu gozo descartável [...]”. Dessa forma, estar em movimento deixa de ser uma estratégia e ganha contornos imperativos. Ao mesmo tempo, é necessário estabelecer parâmetros que venham a garantir a manutenção da satisfação ainda que seja marcada pela brevidade. Assim, há na sociedade de consumo, uma relação entre satisfação e vínculo com os objetos, sendo o primeiro inversamente proporcional ao segundo. Ou seja, quanto mais rápida a obtenção e laço com o objeto, mais potencializada e imediata tenderia a ser a satisfação. De forma inversa, a manutenção de vínculo de longo prazo tenderia a produzir maior desconforto ou perda da potência à satisfação. Esse ponto coloca algumas novas problemáticas ao modelo de felicidade indicado pela sociedade de consumo, como analisaremos a seguir. (Des) caminhos para a felicidade A busca da felicidade no contexto da sociedade contemporânea leva ao enfretamento do problema da frustração. Bauman problematiza esta questão em diversos momentos de sua obra e afirma que “[...] o consumo não leva à certeza e saciedade. O bastante nunca bastará [...]” (2009c, p.35). A construção de tal panorama deriva, segundo o autor, de uma virada realizada pela sociedade de consumo atrelada à condição de infelicidade, vista como algo permanente. Para tanto, os discursos relativos à questão que são disseminados pela rede social apontam para a satisfação de: [...] toda necessidade/desejo/carência de tal forma que resulte inevitável que forneça bases para novas necessidades/desejos/carências. O que inicia-se como uma necessidade deve acabar como uma compulsão ou como uma adicção. E assim termina, dado que o impulso a buscar nas lojas (e somente nas lojas) soluções para problemas e alívio para a dor e ansiedade se transforma em um comportamento que não somente é tolerado, senão avidamente encorajados como hábito (BAUMAN, 2010a, p.243, grifo nosso). Lipovetsky (2007) chama esse traço da sociedade contemporânea de “felicidade paradoxal”, ou seja, ao mesmo tempo em que o consumo produz elementos de positividade para o comprador, ofertando um paraíso momentâneo, novos problemas se constroem como efeitos do modo de vida impresso pela dinâmica do consumo. Afirma o autor: [...] A imensa maioria se diz feliz, contudo a tristeza e o estresse, as depressões e as ansiedades formam um rio que engrossa de maneira inquieta [...]. Nossas sociedades são cada vez mais ricas: apesar disso, um número crescente de pessoas vive na precariedade e precisa fazer economias em todos os itens de seu orçamento, tornando-se a falta de dinheiro uma preocupação cada vez mais obsessiva. Somos cada vez mais bem cuidados, o que não impede que os indivíduos se tornem 79 uma espécie de hipocondríacos crônicos [...] (p.17). O traço compulsivo, entendido aqui como repetição de um ato de forma continuada e permanente, quando aplicado ao ato de comprar tem recebido uma atenção da mídia televisiva a partir da produção de programas sobre o que são chamados de “acumuladores”. É possível observar que suas vidas são empobrecidas de relações humanas, sendo os vínculos, de forma geral, transferidos aos objetos que foram pouco a pouco ocupando lugar privilegiado na vida. Uma análise mais cuidadosa nos mostra que os acumuladores são o produto direto da relação estabelecida entre felicidade e sociedade de consumo. Seu “erro” não está na compra dos objetos, mas sim, na ausência de seu descarte, gerando a acumulação. Assim, ainda que sigam as regras fundamentais que colocam o consumo como valor máximo nas relações estabelecidas, acabam por se tornar disfuncionais ao não conseguir se desvencilhar daquilo que, mesmo tendo recebido em algum momento a promessa de resolução de possíveis conflitos/carências/anseios internos, pelo investimento afetivo realizado, não conseguem dar o último passo que completa o circuito de consumir: jogar fora. Outro subproduto da busca da felicidade é o tédio. Bauman (2008) aponta que ele deriva da insuportável rotina que é estabelecida na compulsão em comprar, que mesmo sob efeito de novidades que surgem incessantemente, geram ao fim, a sensação de frustração. Sobre essa questão, Carvalho (2012) afirma que é de se esperar que o tedio surja como um componente de subjetivação no mundo contemporâneo. Aponta, por fim, que o impacto do tédio, enquanto cansaço de viver, “[...] atinge atualmente proporções inéditas e seus efeitos se fazem sentir nas diferentes culturas que hoje se inscrevem na dinâmica do capital [...]” (p.66). O desenvolvimento de novas patologias contemporâneas retroalimenta o próprio mercado de forma a este desenvolver novas estratégias/tratamentos destas enfermidades. É nesse contexto que, cada vez mais, os profissionais psi são demandados a trazer respostas acerca da incapacidade dos indivíduos lidarem com seus conflitos. Ao mesmo tempo, são difundidas “soluções” a partir, por exemplo, no investimento na imagem pessoal, no trabalho com o corpo, com o equilíbrio mental, etc. Bauman (2009d) afirma que os vínculos estabelecidos na contemporaneidade seguem, de forma hegemônica a lógica de custo-benefício, que retoma o afastamento de quaisquer sinais de malestar ainda que tal posição implique no fim da vinculação com o outro ou, dentro das possibilidades, reiniciar uma nova relação que retroalimenta o processo, gerando o empobrecimento das relações humanas. Tal afirmação torna-se evidente em relatos que circulam na sociedade atual, de pessoas que mantém um número elevado de amigos virtuais nas redes sociais, mais que se ressente pela dificuldade de manter relações de intimidade com as pessoas com que convive no cotidiano. Por essa razão, nas relações humanas, as pessoas são transformadas em mercadorias, passíveis de troca caso exista “algum defeito”. A instabilidade relacional pode ser observada em diferentes contextos, seja na crise da instituição matrimonial, seja nas queixas de falta de comprometimento na relação empresa-trabalhador, seja em situações-limite como, por exemplo, 80 quando o pai que esquece o filho bebê no banco de trás do carro em meio à lista de tarefas a cumprir em seu dia. Em síntese, as relações afetivas se tornam líquidas porque são rápidas; mas esse mesmo processo, dificulta aquilo que há de mais próprio em uma verdadeira relação que é sua capacidade de ser durável, potencializando a geração de experiências significativas para o sujeito. Estar com o outro é estar convivendo com o risco. Na diferença, a relação entre dois é marcada pela imprevisibilidade e pelo mistério do olhar do outro, seus desejos, aspirações e formas de conduta. O autor analisa essa questão ao afirmar que relacionarse com o outro é como assinar um cheque em branco, o que implica em confrontar-se “[...] com algo ainda desconhecido, e com desconfortos e sofrimentos inimagináveis, sem uma cláusula de escape que possa ser invocada [...]. (BAUMAN, 2009c, p.26). Por essa razão, a densidade do laço e relações de longa duração passam a ser evitadas. Insere-se a transitoriedade onde via de regra encontrava-se a permanência. Porém, é exatamente nestes tipos de relação, mais duradouras, que é possível exercitar o que Bauman chama de “prazer dos prazeres” derivada do “prazer das ligações” pautada na impossibilidade de substituição do outro, o que em contrapartida, também impossibilidade a substituição de si. O autor (2009c, p.28) afirma que “[...] esse sentimento só pode vir de um sedimento do tempo, do tempo preenchido com seus cuidados – sendo estes o fio precioso com que se tecem as telas resplandecentes da ligação e do convívio”. Em tempos de crise relacional, a defesa da densidade dos laços, portanto, é vista como uma alternativa possível. Conforme explica Bauman (2009d), este tipo de vínculo funciona como um bote salva-vidas que nos possibilita velejar em um cenário turbulento de mudanças rápidas e sem aviso prévio. Não podemos entender a proposta do autor no sentido de retomar formas relacionais presentes em tempos de solidez, mas sim, movimentar-se nos vínculos estabelecidos de forma a ser capaz de reconstruí-los para que gerem maior potencialidade de efeitos prazerosos. Considerações provisórias A sociedade de consumo se atualiza em múltiplas formas, imagens e discursos, que se produzem e enlaçam no contemporâneo e nos permitem a experimentação de novas sensações e relações. Na análise realizada, a problematização da relação entre produção social e consumo anuncia um caminho possível de problematização da sociedade contemporânea e suas novas configurações. Destaca-se, sobretudo, a crítica ao fato de um suposto ideal de felicidade estar sendo amplamente transformado em mais um objeto a ser adquirido, comprado, na sociedade atual, o que implica na vivência constante de frustação e no adoecimento psíquico e físico de parte da população. Cabe ressaltar ainda que as análises apontam a defesa da construção de uma ética que inclua o outro a partir da diferença. (Re)fundar o outro torna-se uma tarefa fundamental para a construção de uma nova concepção societária que possua outros elementos em suas bases, que podem gerar impactos também no que tange à dimensão individual, institucional e política. A reformulação do projeto 81 comunitário se mostra como alternativa de resistência ao mundo do consumo. Se a prosperidade da sociedade de consumo está intimamente relacionada com a tendência à transformação de todos os elementos em objeto de consumo, o fomento de relações que respeitem a humanidade de cada um é um caminho possível para a produção de modos singulares de existência. Referências BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. _______. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. _______. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. _______. Modernidad líquida. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica: 2009a. _______. Mundo consumo: etica del indivíduos en la aldea global. Buenos Aires: Paidos, 2010a. _______. Capitalismo parasitário. Rio de Janeiro: Zahar, 2010b. _______. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CARVALHO, P. R. 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