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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ANAIS Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Anais do 12º Encontro Nacional de História da UFAL: Genocídios na História: passados, presentes, futuros Comissão Organizadora Ana Paula Palamartchuk (UFAL) Anderson Almeida (UFAL) Danilo Luiz Marques (UFAL) Elias Ferreira Veras (UFAL) Irinéia Maria Franco dos Santos (UFAL) Lídia Baumgarten (UFAL) Michelle Reis de Macedo (UFAL) Comissão Científica Aline Rochedo Pachamama - Churiah Puri (Pachamama Editora) Álvaro Nascimento (UFRRJ) Ana Cláudia Aymoré Martins (UFAL) Ana Paula Palamartchuk (UFAL) Anderson da Silva Almeida (UFAL) Andréa Giordanna Araújo da Silva (UFAL) Antônio Alves Bezerra (UFAL) Arrizete Cleide Lemos Costa (UFAL) Aruã Lima (UFAL) Cássio Junio Xucuru Kariri (SECULT - PALMEIRA DOS ÍNDIOS) Claudio Tomás (Universidade Agostinho Neto/Angola) Danilo Luiz Marques (UFAL) Edson Kayapó (IFBA) Elias Ferreira Veras (UFAL) Flávia Maria de Carvalho (UFAL) Flávio dos Santos Gomes (UFRJ) Gian Carlo de Melo (UFAL) Iracélli da Cruz Alves (IFBA) Irinéia Maria Franco dos Santos (UFAL) Ivanildo Gomes dos Santos (UFPB) Jéssica Evelyn Pereira dos Santos (UFRJ) José Vieira da Cruz (UFS) Lídia Baumgarten (UFAL) Luana Teixeira (UFAL) Luís Alberto Marques Alves (Universidade do Porto/Portugal) Marcelo Góes Tavares (UNEAL) Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Matheus Carlos O. de Lima (Egresso PPGH/UFAL) Michelle Reis de Macedo (UFAL) Muryatan Barbosa (UFABC) Osvaldo Maciel (UFAL) Pedro Lima Vasconcellos (UFAL) Raquel Parmegiani (UFAL) Renata Meirelles (UNIRIO) Sandra Catarina de Sena (Egressa PPGH/UFAL) Wellington da Silva Medeiros (SEDUC-AL) Ynaê Lopes dos Santos (UFF) Monitoria Adeildo José dos Santos Júnior Anderson Inácio da Silva Ana Clara Martins Miranda Ana Paola Santos Silva Arthur Davis do Nascimento Lima Bruno Rodrigo Carvalho de A. da Silva Camilly Victória dos Santos Torres Carla Catarina dos Santos Carolina Maria Albuquerque de Lima Caroline Alexandre Cavalcante de Almeida Elaine Menezes Araujo Evangelista dos Santos Ferreira Haniel Soares Lemos Helena Sayane dos Santos Silva Hilda Maria Couto Monte Ícaro Samuel Santos Barros Isaac Freitas da Silva Filho Jammerson Leonardo da Silva Sales Jennifer Thayna de Lima dos Santos Jonatas dos Santos Silva Lara Fernanda Café da Silva Larissa da Silva Vieira Lauane Beatriz da Silva Paixão Marcio Vinícius do Nascimento Ramos Maria Cecília Santos Cerqueira da Silva Maria Fernanda Alves da Silva Maria Laura Rosas Soares Silva Marília Gabryella dos Santos Silva Marina Andréa Moreira Cunha Matheus Elifaz da Costa Ribeiro Cavalcanti Matheus Henrique Pereira Ayres Câncio Nicolas Kervin Menezes de Almeida Paulo Henrique Araújo dos Santos Pedro Vinícius dos Santos Lima Samuel Soares da Silva Vandejer Adrian Melo das Chagas Filho Vitória Moreira Antoniol Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Anais do 12º Encontro Nacional de História da UFAL Genocídios na História: passados, presentes, futuros (Editoração e Revisão) Bruno Rodrigo Carvalho de A. da Silva Hilda Maria Couto Monte Camilly Victória dos Santos Torres Irinéia Maria Franco dos Santos Maria Cecília Santos Cerqueira da Silva Michelle Reis de Macedo Realização Cursos de História - graduação e pós-graduação - UFAL e Centro de Pesquisa e Documentação Histórica (CPDHis-UFAL) Apoio e Agradecimentos Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca Central Divisão de Tratamento Técnico Bibliotecário: Marcelino de Carvalho Freitas Neto – CRB-4 - 1767 C748 Encontro Nacional de História (12 : 2021 : Maceió, AL); Anais do 12o. Encontro Nacional de História da UFAL: Genocídios na História: passados, presentes, futuros. – Maceió: UFAL, 2021. 829 p. Inclui bibliografias. Organização: Universidade Federal de Alagoas. Departamento de História. Centro Científico de Pesquisa e Documentação Histórica. ISSN 2176-284X Maceió (AL) Novembro 2021 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sumário dos Textos Completos ST01 – Escravidão e Pós-Abolição .......................................................................................... 13 Mulato ou Homem de Cor: Atuação política dos negros livres (1833) ................................................... 13 Ana Paula Caetano da Silva Quem delle/della souber: cotidiano e vestuário dos escravizados por meio da seção Escravos Fugidos do Diario de Pernambuco ............................................................................................................................. 23 Dionisio Tito de Barros Neto “E que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas”: algumas notas sobre a família de escravizados africanos e a reprodução natural em Pernambuco (século XVIII) ......................................................... 33 Filipe Matheus Marinho de Melo “Reprimir vadios e contê-los na desregrada vida que levam”: cenas do pós-abolição em Maceió (18801910) ......................................................................................................................................................... 44 Kedimo Barbosa da Paixão Quilombos urbanos na Paraíba: a cultura, a resistência e a luta do povo preto paraibano .................... 57 Kynara Eduarda Gonçalves Santos J. Jonas Mangueira Ana Maria Veiga Os debates acerca da escravidão no Brasil na segunda metade do século XIX ..................................... 71 Lara de Sousa Lutife Criminalizações e silêncios: a construção de uma representação do medo branco em torno do escravo Lucas da Feira, 1890-1910 ....................................................................................................................... 85 Lázaro de Souza Barbosa Quebrando as correntes: o letramento dos negros e escravizados no século XIX ................................. 95 Maria Lidiane Santos Cardoso Aqueles que descem aos sertões: o processo de escravização das populações nativas amazônicas durante o século XVIII ....................................................................................................................................... 106 Nathália Moro Anelisa Mota Gregoleti Gabrielle Legnaghi de Almeida Entre a filantropia e a civilização: os debates sobre a escravidão nos periódicos de Alagoas (1850-1888) ................................................................................................................................................................. 115 Vanieire dos Santos Oliveira ST02 – Histórias de África, Histórias da Diáspora: Diálogos, Abordagens e Conexões ........................................................................................................................................... 123 "Da conservação do Reino de Angola depende todo o estado do Brasil": a política violenta dos governadores de Angola e o comércio no Atlântico Sul (1648-1666) ................................................... 123 Ana Maria Soares de Araújo Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Notas para o estudo da imprensa angolana oitocentista ........................................................................ 135 Eduardo Antonio Estevam Santos Notas sobre os Serviços de saúde na Província de Angola: sujeitos, instituições e práticas (1845-1880) ................................................................................................................................................................. 144 Idalina Maria Almeida de Freitas Conhecimento Antropológico e Colonialismo em Angola (1926-1961) ............................................... 154 Jéssica Evelyn Pereira dos Santos O protagonismo dos senhores da guerra nas relações políticas e comerciais na África Centro-Ocidental (segunda metade do século XVIII) ........................................................................................................ 168 Leonardo Oliveira Amaral Intérpretes africanos da administração colonial francesa e a produção da história: entre retratos, silêncios, arquivos e hiperlinks (décadas de 1880 e 1890) .................................................................... 179 Rafaél Antônio Nascimento Cruz Vicus Juda: redes de comércio judaico na Villa de Penedo Neerlandês (1637 a 1646) ...................... 191 Robson Williams Barbosa dos Santos ST03 – História da Educação: Objetos de estudo, Teorias, Fontes e Metodologias de Pesquisa......................................................................................................................................... 210 O Ensino de História da Educação Local: formação profissional e identitária de professores ............ 210 Andrea Giordanna Araujo da Silva Sujeitos revolucionários: trabalhadores/as rurais como fonte de conhecimento histórico escolar ....... 226 Adriana Mastrangelo Ebecken SECADI (2001-2019): vestígios materiais de uma breve política afirmativa indutora da educação antirracista .............................................................................................................................................. 236 Aldilene do Nascimento Alves Ana Lucia Malta Soares Andréa Giordanna Araújo da Silva Ensino de História Local nos estados brasileiros: um mapeamento legislativo (1990-2019) ................ 245 Gabriel Costa de Souza Professor Cônego Valente e as configurações para o Ensino da História do Brasil colonial no Liceu alagoano (1929-1952) ............................................................................................................................. 259 Ivanildo Gomes dos Santos O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939) como fonte para a História das Instituições Escolares em Alagoas ............................................................................................................................. 273 Marcondes dos Santos Lima Instruções pedagógicas para o trabalho da professora primária veiculadas pela Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1930) ...................................................................................................................... 286 Monalisa Lopes dos Santos Coelho Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A imprensa escrita como fonte na pesquisa histórica ............................................................................ 299 Sheila Cristina Ferreira Gabriel ST04 – O Brasil Republicano: Histórias, Memórias, Historiografia ....................... 312 Protagonismo das mulheres indígenas em Alagoas (1989-2010) ........................................................... 312 Ana Valéria Dos Santos Silva “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”: memórias do jornalismo brasileiro - entre o silenciamento e o reconhecimento ........................................................................................................ 323 Carlos Alberto de Melo Silva Mota História e memória em narrativas orais como experiências de lutas para (re)afirmação da identidade: de Caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São Pedro, Porto da Folha, Sergipe (1978-2021) ................................................................................................................................................................. 339 Ivanilson Martins dos Santos – Xokó A gente é trabalhador: a (in)existência do ferroviário na Historiografia do Ceará republicano (19701997) ....................................................................................................................................................... 357 Jaciara Azevedo Rodrigues Fernando Collor de Mello através das charges do Jornal de Alagoas (1989 – 1992) ............................ 366 José Cláudio Lopes dos Santos Junior A banda de música da polícia militar de Alagoas como meio de ascensão social para o músico: trajetória do capitão Jonas Duarte da Silva (1952-1980) ................................................................................................................................................................. 379 José Guido Dantas Lessa da Silva A Censura à Revista Adventista durante o Governo Médici (1969-1974) ............................................. 390 Moizes Saboia da Silva A representação dos superpoderes nas histórias em quadrinhos - aspectos históricos dentro da sociedade ................................................................................................................................................ 402 Peter Ferreira O anticomunismo nas páginas da Revista do Clube Militar (1995-2005) ............................................. 412 Vitória Weber Vieira do Nascimento ST05 – História e Marxismo...................................................................................................... 424 Genocidio político: el extermínio de la Unión Patriótica en el marco del conflicto armado en Colombia Felipe Garzón Serna ............................................................................................................................... 424 O genocídio ucraniano na histórica guerra diplomática Rússia-Ucrânia ............................................... 431 Maurício da Silva Lima ST06 – Combates pelo Ensino de História: teoria e prática em tempos de negacionismo histórico ................................................................................................................ 445 Compromissus com os saberes ancestrais na sala de aula ..................................................................... 445 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sueli do Nascimento Alonso Bezerra de Carvalho ST07 – Formação Inicial e Continuada: a Educação Histórica como forma de construir a Consciência Histórica de Estudantes e Professores (as) do Estado de Alagoas................................................................................................................................................. 458 Africanidade e formação docente: reflexões sobre o Ensino de História no Alto Sertão alagoano ..... 458 Tamires Vieira da Silva ST08 – Mulheres, raça e classe: história e abordagens intelectuais, luta por direitos e organizações sociais ................................................................................................... 470 Trabalho, violência e feminismo para o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) .................... 470 Caroline Gonzaga A mulher como sujeito silenciado na sociedade, 1970-2021.................................................................. 484 Diana Melo Silva A inserção da pauta das mulheres na esfera pública e a democratização brasileira............................... 496 Glenda Lunardi Feminismo e ecofeminismo: a marcha pela vida das mulheres e pela Agroecologia - PB ................... 508 Laís de Oliviera Neves Eu vejo você............................................................................................................................................ 518 Maria Adriana Pereira dos Santos As mulheres indígenas na cidade de Garanhuns-PE.............................................................................. 527 Verônica Araújo Mendes ST09 – Territórios e Saberes Históricos: embates/debates ……………………….…......... 534 Nativos americanos e abundância da abundância da Mata Atlântica: a exploração das naus europeias.........................................................................................................……….…………………......... 534 Anelisa Mota Gregoleti Eduardo Mangolim Brandani da Silva Gabrielle Legnaghi de Almeida Nathália Moro Historiografia Ambiental: problemas, práticas científicas e combate pelos direitos comunais…....……. 542 Arrizete C. L. Costa As múmias Incas e os caçadores de cabeças: Ritos fúnebres, epistemicídio e genocídio de populações americanas pré-colombianas …………...................................................................................................... 552 Eduardo Mangolim Brandani da Silva Anelisa Mota Gregoleti Gessica de Brito Bueno Petrolândia: uma velha cidade submersa no submédio do São Francisco pernambucano ................ 565 Érica Gabriela Fonseca de Menezes Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Paraíso destruído de Bartolomé de las Casas: a denúncia do genocídio nativo americano na Era dos Descobrimentos………............................................................................................................................. 575 Gabrielle Legnaghi de Almeida Anelisa Mota Gregoleti Nathalia Moro Genocídio indígena na contemporaneidade .......................................................................................... 582 Henry Mähler-Nakashima “Sacó hueste para yr contra los moros”: o fazer da guerra e o panorama das disputas territoriais na Crónica de Castilla (séc. XI a XIV)…………............................................................................................. 594 Higor Soares de Melo Debate de História Ambiental: cultura e sustentabilidade ecológica nas Reservas Extrativistas Marinhas do Brasil (1990-2020) …………….............................................................................................................. 607 Marcus Vinícius da Silva Santos ST10 – Narrativas Dissidentes: historiografia, gênero, interdisciplinaridade e interseccionalidade ........................................................................................................................ 620 Vidas trans importam! A série Pose numa análise histórica................................................................... 620 Hblynda Morais Rafaela Lima De Souza Os tabus da sexualidade feminina e a apreensão social do gênero ....................................................... 634 Ingryd Damásio Ribeiro Tófani A representação da domina no afresco da Vila dos Mistérios, Pompeia (século I EC) ....................... 643 Irlan de Sousa Cotrim Fazer da teoria um lugar de cura: narrativas dissidentes na encruzilhada epistêmica ........................... 656 Lucas Silva Dantas Homossexualidades e travestilidades na literatura capixaba na década de 1980: discursos e representações ........................................................................................................................................ 669 Randas Gabriel Aguiar Freitas Narrativas nas margens: histórias e memórias de mulheres .................................................................. 678 Silvano Fidelis de Lira ST11 – Dinâmicas Religiosas na História ........................................................................... 690 As mulheres na Irmandade do Bom Jesus dos Martyrios da Cidade das Alagoas (1851-1900) ........... 690 Élida Kassia Vieira da Silva ““Ou cismas, ou prisões, ou apostasia ou cadeia”: Administração das freguesias da província no contexto de embate entre o regalismo e o ultramontanismo em Alagoas (1859-1868) ....................................... 702 Lydio Alfredo Rossiter Neto Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X “Subversão para êles é tudo o que êles querem. Ou melhor tudo o que êles não querem ”: relação entre Igreja Católica piauiense e regime militar no O DOMINICAL (1964-1972) ....................................... 712 Mariana Rita de Paula “A mulher sábia edifica a sua casa” – Imprensa maçônica, mulheres e o combate ao jesuitismo no periódico Labarum (1874-1875) ............................................................................................................ 721 Marney Garrido Sacerdócio, ação social e repressão na implantação do regime civil militar: a trajetória de Humberto de Araújo Cavalcanti ................................................................................................................................... 731 Séfora Junqueira dos Santos Memória, Identidade e História: por uma reflexão acerca da produção historiográfica dos festejos de Nossa Senhora do Rosário em Delmiro Gouveia (Alagoas), 1951-2021 .............................................. 741 Thiego da Silva Barros Entre pesos e batinas: a participação do padre Ibiapina no Quebra-Quilos ......................................... 752 Wellington Luís de Albuquerque Espíndola O Caminho do Direito e o Sagrado no Ilê Asé Sogbô Aganjú da Yalorixá Zefinha de Aganjú ........... 764 Wellington Ricardo Felix dos Santos As guerras sexuais no Anglicanismo contemporâneo: um histórico das rupturas na Diocese Anglicana do Recife (2002-2018) ............................................................................................................................ 779 Wilton da Silva Rocha Mesa de Encerramento Epistemícidio e o silenciamento do passado: combatendo o racismo historiográfico .......................... 792 Palestrantes: Álvaro Pereira Nascimento, Flávio dos Santos Gomes e Ynaê Lopes dos Santos Mediador: Danilo Luiz Marques Transcritor(a): Ana Beatriz L. de Araújo Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Textos Completos Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ST01 – Escravidão e Pós-Abolição Mulato ou Homem de Cor: Atuação política dos negros livres (1833)1 Ana Paula Caetano da Silva2 Resumo: A imprensa do século XIX possui um papel importante, especialmente para a disseminação de ideias e discussão de projetos políticos na esfera de gestação do espaço público no Brasil. No período regencial (1831-1840), ela exerceu uma relevante atribuição diante das disputas políticas em cena, marcado por transformações e novas ideias, que circulavam na nação recém independente, sendo o liberalismo uma delas. Foi neste cenário de transformações que a imprensa negra deu seus primeiros passos. Neste texto, temos como objetivo central analisar o pasquim O Mulato ou Homem de Cor − publicado em 1833 no Rio de janeiro pela tipografia Fluminense de Paula Brito − inserido num horizonte mais amplo dos pasquins negros, que se disseminaram na primeira metade do século XIX. Para tal, faz-se necessário expor e analisar a atuação política dos negros livres e seus respectivos papéis naquele contexto, bem como o papel exercido pela imprensa. Por fim, compreendemos a atuação política do pasquim O Mulato, ou o Homem de Cor como o início da imprensa negra no Brasil, denunciando as hostilidades, os preconceitos, lutando pelos direitos garantidos pela Constituição de 1824, além de ter aberto espaço para o desenvolvimento de outros impressos negros. Palavras chaves: Homens livres, Imprensa Negra, Período Regencial. A historiografia tratou o Período Regencial (1831-1840), como um período caótico e anárquico, tendo como cerne as diversas revoltas e rebeliões que houve em todo o Brasil, porém, nos últimos anos esse período vem sendo tratado sob novas perspectivas. De acordo 1 A presente pesquisa é parte do desenvolvimento do projeto de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na Universidade Estadual de Londrina, sob a orientação da Professora Drª Célia Regina da Silveira. Apresentamos, neste artigo, parte do estudo feito para o primeiro capítulo, o qual analisa o contexto de produção e circulação do pasquim O Mulato ou Homem de Cor. 2 Graduanda na Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: anacaetanno133@gmail.com 13 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X com Basile (2009)3, o período Regencial é complexo, atuando como um contexto de inúmeras possibilidades, pois novos agentes sociais passaram a ter destaque na historiografia em geral e, por sua vez, nos estudos sobre as regências. Para o autor, a historiografia por muito tempo não lidou com a complexidade e particularidades que este período possui e requer ainda muitos estudos. O Período Regencial é marcado por diversas disputas políticas, os principais grupos políticos que participaram desses conflitos são denominados: Moderados, Exaltados e Restauradores. Os dois primeiros grupos se denominavam liberais, todavia, tinham linhas divergentes. Enquanto os Restauradores, como o nome indica defendiam a monarquia absoluta na pessoa de D. Pedro I. O Sete de Abril − data da abdicação de D. Pedro I − trata-se de um movimento complexo, que abriu espaço para que outros agentes sociais participassem, e com isso novas demandas se desenvolvessem. Apesar de ter grupos políticos à frente do movimento, a participação popular foi muito importante, uma vez que movimentou centenas de pessoas, trazendo uma politização para as ruas (BASILE, 2009, p.59). As associações políticas, que lideravam o movimento eram os liberais, Moderados e Exaltados, que neste momento se unem com um objetivo em comum, a abdicação de D. Pedro I. A participação popular no movimento não trouxe grandes resultados, como sublinha Arnaldo Fazoli Filho (1990), o povo continuaria lutando, já que esses não possuíam influência nenhuma no governo que se instaurou. Dessa forma, o autor denomina como “Jornada dos Logrados”4. Portanto, os Moderados ficaram à frente do governo no período Regencial, e este grupo político defendia os interesses da elite, sendo assim, a participação popular na abdicação não passou “de uma Jornada de Logrados” (FILHO, 1990, p.20). Além disso, a Guarda Nacional foi criada como uma forma de conter possíveis tentativas de golpe, advinda não apenas do povo, mas de outros grupos políticos, como os Restauradores e os Exaltados. Os primeiros anos da Regência, é marcado pelo avanço liberal, no qual se tinha maior autonomia para as províncias e liberdade de imprensa. Entretanto, esse avanço liberal durou até o regresso restaurador, período esse que se encaminhou para o início do Segundo Reinado. Como aponta Filho (1990), o progresso do liberalismo neste contexto não está relacionado a 3 BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (orgs). O Brasil Imperial- vol II 1831- 1889. Vol II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 4 FILHO, Arnaldo Fazoli. O Período Regencial. São Paulo: Editora Ática S.A, 1990, p. 20 14 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X democracia, isso porque tinham o interesse de ascensão dos comerciantes e o fim dos privilégios; todavia, sem tocarem no ponto da escravidão, tendo-a mantida. Os grupos políticos Exaltados e Moderados uniram-se e tomaram à frente do Sete de Abril, no entanto, essa união durou até a disputa de poder, momento em que se tornaram oposição. Os liberais Moderados, contavam com grande influência no governo regencial, defendendo os seus interesses, que eram voltados para os bens da elite. Além disso, esse grupo político queria impedir os “baderneiros” e anárquicos, referindo-se aos Exaltados, que eram assim descritos nos impressos Moderados (FILHO, p.24). Os Moderados, estavam organizados desde 1826, seus integrantes eram advindos não apenas do Rio de Janeiro, mas de outras províncias como São Paulo e Minas Gerais, ocupavam em sua maioria do setor militar, além do comércio. Os Moderados, tinham como principal linha liberal marcada pelos autores clássicos como John Locke, Guizot, Benjamin Constant, assim defendiam a autonomia das províncias e do judiciário, redução dos poderes do imperador, ainda eram a favor da manutenção da escravidão (BASILE, p. 61). Os Exaltados, organizados desde 1829, possuíam um grupo social heterogêneo, poucos eram seus representantes no governo, ocupavam setores como: militar, cargos públicos civis e eclesiásticos. Os autores que norteavam o pensamento liberal dos Exaltados eram Rousseau, Thomas Paine, Montesquieu, pensadores que defendiam a ampliação dos direitos políticos e civis, o fim gradual da escravidão e uma relativa igualdade social (BASILE, p.61). Diante a este contexto de indefinições e lutas políticas, a imprensa era um locus central de debate e atuação dos grupos políticos. Neste sentido, fomentou os embates entre as associações políticas bem como permitiu que diferentes vozes alcançassem maior visibilidade. De acordo com Lima (1999), o número de folhas, panfletos e cartas cresce com a liberdade de imprensa. Essa expansão é acompanhada pelo aumento de tipografias instaladas no Rio de Janeiro5. O redator nunca era apenas redator. Isso se dava por não haver especialização profissional, assim os redatores mantinham outras profissões, como: políticos, livreiros, donos de comércio e afins. Uma vez que, a imprensa se instalou no Brasil, com a vinda da família 5 LIMA, Ivana Stolze. Com a palavra, a cidade mestiça: Imprensa, política e identidade no Rio de Janeiro, 18311833. In: MATTOS, llmar Rohloff de. (Org.). Ler e escrever para contar - Documentação, historiografia e formação do historiador, Rio de Janeiro, Access Editora, 1999. p. 161-184. 15 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Real em 1808, ao longo dos anos foi se tornando cada vez mais importante6, sendo utilizada no período Regencial, como “as arenas políticas" (BASILE, 2009), pois era consumida de forma ampla e aberta. Neste sentido, Basile afirma: Esse desenvolvimento da imprensa vinculava-se intimamente às disputas políticas, à emergência de diferentes projetos políticos e à mobilização da opinião pública. Foi a arena na qual os debates transcorreram com maior abertura e amplitude, além de franca virulência, facilitados pela relativa liberdade de expressão e pela prática comum do anonimato (BASILE, 2009, p. 65). Mesmo com a grande quantidade de analfabetos, os números de jornais e panfletos aumentaram, tornando-se a principal forma de comunicação. A partir de 1831, houve a proliferação dos pasquins, sendo que em 1833 temos o registro dos primeiros pasquins negros. Esta categoria de impresso, se diferenciava dado as suas características específicas, da qual Nelson Werneck Sodré, em suas pesquisas feitas ainda na década de 1960, especificou-as: A técnica de imprensa, ainda nos primeiros passos no país, ao tempo, acrescentou características formais ao pasquim: formato in-4º, quatro páginas em regra, preço de venda avulso de 40 réis, 80 no caso de dobrar o número de páginas. Não havia venda na rua; comprava-se nas tipografias e nas lojas de livros indicadas, exemplares isolados ou por assinaturas. O título se referia, via de regra, a pessoa, acontecimento, coisas de interesses notório no momento; quando não, sob disfarce, guardava alusão a isso. O pasquim, habitualmente não trazia o nome do redator (SODRÉ, 1999, p.158). Os pasquins não tinham um objetivo comercial, à vista disso, durava poucas edições, não tendo grande tiragem, sua circulação ficava restrita às áreas urbanas do local de publicação. Portanto, no ano de 1833, diversos pasquins surgiram, com títulos sugestivos, como: O 6 Para saber mais sobre o início da imprensa no Brasil, consultar: LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed, 2004. 16 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Cabrito7, O Meia Cara8, Lafuente9, Brasileiro Pardo10, e o Mulato ou Homem de Cor11 − nosso objeto de estudo. Ana Flávia Magalhães Pinto (2010), em sua pesquisa faz uma análise de vários impressos, entre os anos de 1833 e 1899, apresentando uma diversidade de locais e contextos. No entanto, como assinala a autora, mesmo com as diferenças de tempo e espaço, os conteúdos tratados nestes impressos se assemelham. Dessa forma, pretende-se neste texto expor um dos primeiros impressos negros que se tem conhecimento. Intitulado, primeiramente como O Homem de Cor, foi publicado entre os meses de setembro e novembro de 1833, no Rio de Janeiro, contendo cinco edições. Em sua terceira edição, tem o nome alterado para O Mulato, ou O Homem de Cor , foi publicado pela tipografia Fluminense de Brito e Cia, 12 pertencente ao jovem Francisco Paula Brito13. O jovem negro Paula Brito, foi mais um dos homens de cor a fazer sua carreira no mundo das letras, isso porque o fato de saber ler e escrever, em um contexto no qual a maioria da população era analfabeta, era um diferencial, ainda mais sendo negro e descendente de escravos, parcelas da população (negros livres e escravos) em que o analfabetismo intensificavase (FELIPE,2016, p.75). Como aponta Felipe (2016), a escrita também era tida como uma forma de ascensão, o mundo das letras não rendia muito; por isso, muitos iniciavam sua 7 O impresso é intitulado O Cabrito, sua primeira edição foi publicada no dia 07 de novembro de 1833, pela Typographia de Miranda & Carneiro, este impresso possui apenas duas edições, a primeira se encontra na Hemeroteca Digital (BND), de onde foi retirada tais informações. 8 O pasquim Meia Cara, publicado em 11 de novembro de 1833, pela Typographia Fluminense de Brito & Cia, a mesma tipografia onde foi impresso o pasquim Mulato ou Homem de Cor. A principal pauta do “Meia Cara” era o antilusitanismo. 9 Contendo apenas uma edição, Lafuente, é um pasquim publicado no dia 16 de novembro de 1833, pela Typographia Paraguassu, seu conteúdo denuncia a perseguição ao Sr. Maurício José de Lafuente, este era perseguido dado a sua atuação política a favor dos restauradores. 10 O impresso Brasileiro Pardo, difundido primeiramente no dia 21 de outubro de 1833, pela Typographia Paraguassu, mesma tipografia onde foi impresso o pasquim Lafuente, sua posição política era voltada para os “caramurus” ou “restauração”. 11 Intitulado primeiramente como O Homem de Cor, tem sua primeira edição publicada dia 14 de setembro de 1833, possui cinco edições, não contendo uma periodicidade. O nosso objeto de estudo se encontra na hemeroteca digital, da Biblioteca Nacional, tendo todas as edições digitalizadas e disponíveis para download. Link: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=701815&pagfis=1. Acesso em: Outubro de 2021 12 O impresso não apresenta nenhum motivo para tal alteração no título. Nas leituras feitas até o momento também não há explicações. Porém, essa será uma questão que a presente pesquisa pretende ainda amadurecer e levantar hipóteses possíveis, tendo em vista o significado da categoria social dos mulatos na primeira metade do século XIX. 13 Francisco Paula Brito, nasceu em 1809, no Rio de Janeiro, negro e descendente de escravos, foi comerciante no ramo dos livreiros, sendo proprietário da Typographia Fluminense de Brito & Cia, entretanto o auge da sua carreira foi com a Typographia Dous de Dezembro. Em sua carreira lançou nomes como Machado de Assis, faleceu em 1861. Para mais informações consultar a pesquisa de Rodrigo Godoi. GODOI, Rodrigo Camargo de. Um editor no império: Francisco Paula Brito (1809-1861). São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, Fapesp,2016. 17 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X carreira nas tipografias, como o Paula Brito, que ganhou maior notoriedade como tipógrafo, mas também foi escritor, poeta e redator. A tipografia Fluminense de Brito e Cia editou, imprimiu e vendeu o pasquim Mulato ou Homem de Cor, desde sua primeira edição; porém, existem autores que trazem como hipótese de que o dono da tipografia Fluminense, Francisco Paula Brito, seja o redator do pasquim. Ana Flávia Magalhães, faz uma ponte da relação entre o jovem negro e o impresso, afirmando que a sua tipografia era um espaço de debate e reuniões da Petalógica, sociedade lítero-humorística, que era liderada por Brito (PINTO, p. 34-35). Paula Brito, era filiado ao grupo político liberal Exaltado, grupo esse que o pasquim também fazia parte, outro episódio que coincide com o conteúdo do pasquim, é fato de que dois anos antes da publicação do Homem de Cor, Paula Brito tentou um cargo no Senado, junto ao regente da época − Francisco de Lima e Silva − todavia, foi uma tentativa frustrada, e depois desse episódio Paula Brito não tentou outro cargo público. (GODOI, 2016). No entanto, são apenas hipóteses levantadas, uma vez que não se tem nenhuma informação concreta. Nesta direção Rodrigo Godoi, que em sua pesquisa faz um panorama da vida e carreira de Francisco Paula Brito, afirma: “O único laço empírico que se pode estabelecer com segurança entre O Mulato ou Homem de Cor e Francisco de Paula Brito é que esse periódico foi impresso na Tipografia Fluminense de Brito e Companhia.” (GODOI, 2016, p. 90). O pasquim apresenta em seu cabeçalho, além do título, algumas informações. Todavia, o que mais chama a atenção é que do lado esquerdo, o redator evidencia um artigo da Constituição de 1824, o parágrafo XIV do art.179, onde se enfatiza que todos os cidadãos brasileiros, poderiam ser admitidos em cargos públicos civis, militares e políticos desde que tivessem os talentos e virtudes necessários. Ao passo que do lado direito, o pasquim apresenta o ofício do dia 12 de junho de 1833, do Presidente da província de Pernambuco Manuel Zeferino, onde este propõe que haja eleições, para que não tenha confusões entre os povos.14 Os dizeres descritos estão presentes em todas as edições. Deste Modo, havia um determinado medo de que os negros ascendessem a cargos de destaque, sendo assim, Zeferino propõe que haja divisão de classes de acordo com a tonalidade 14 Homem de Cor, 14 de set. 1833, p.1. 18 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de pele.15 Sobre o ofício do Presidente da Província de Pernambuco, Ana Flávia Magalhães Pinto afirma que o “objetivo era instituir uma forma mais eficaz de controle de poder, em que, no caso da Guarda Nacional, as altas posições não fossem ocupadas pelos “homens de cor” (PINTO, p.24-25). Utilizando o principal meio de comunicação que se tinha no período, o pasquim O Mulato ou O Homem de Cor, traz para o contexto novos debates e protestos, sendo que a questão racial figura como o tema principal. Sobre a atuação do pasquim Pinto ainda declara que a “novidade vinha apenas das especificidades do veículo de protesto: um pasquim que trazia o debate racial para o centro” (PINTO, 2010, p.25.). Outros assuntos são tratados no pasquim, como o assassinato do ex-redator do impresso Brasil Aflicto, que a partir deste evento que se deu outra polêmica também registrada no pasquim, a prisão do homem de cor, Maurício José de Lafuente16. A prisão do ex-cadete Lafuente, foi de tal relevo que possui um pasquim de uma edição apenas, da qual leva o seu nome: Lafuente. Além de o impresso O Mulato, ou o Homem de Cor − nosso objeto de estudo − que destina a sua quarta edição para narrar o ocorrido, temos outro impresso que aborda o caso Lafuente, o pasquim Brasileiro Pardo. Deste modo, nota-se que a prisão de Lafuente, repercutiu entre os pasquins da corte. N’O Mulato ou Homem de Cor, o acontecimento foi descrito como “uma prisão arbitrária" a de Lafuente, sua prisão se deu por estar portando uma arma de fogo, sobre isso o redator afirma: foi infeliz Cidadão preso, por dizer que andava armado, licença esta, que na forma da lei tinha obtido do Juiz de Paz do 2. Distrito da Freguezia do SS. Dando, uma justificativa de sua conduta, mostrando como sua vida estava ameaçada, pois as folhas do Governo, todos os dias lhe lançavam montões de injúrias e desafiava a sua cólera (Mulato ou Homem de Cor, 23 out. 1833, p. 1-2). 15 A distinção pela tonalidade da pele, já era utilizada na sociedade, como afirma os autores: “A cor da pele era um elemento poderoso de classificação social dos indivíduos, apesar de não haver discriminação legal como ocorria nos Estados Unidos. Para o branco pobre e até o mestiço, apadrinhamento e acesso a financiamento podiam abrir as portas para o ingresso nas camadas mais altas e em cargos públicos. Mas as barreiras se erguiam para os que tinham pele mais escura, sobretudo os crioulos e africanos, estes últimos genericamente chamados de pretos” (ALBUQUERQUE,Wlamyra R. de; FILHO, Walter F. 2006. p. 164). 16 Mauricio José de Lafuente, negro e ex-cadete, não foi encontrado até o momento uma biografia que desse informações concretas, o que sabemos é que este passou por diversas províncias, como Espirito Santo, Bahia e Pernambuco, sempre envolvido no meio político e nas revoltas. (PINTO, 2009, p. 35). 19 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O pasquim continua a descrever a prisão, informando que Lafuente, ficou sem comunicação, todavia foi solto no mesmo dia. A todo momento, o pasquim ressalta a inocência de Lafuente, de sua boa conduta, além de fazer críticas aos homens de cor que apoiavam os moderados, que para o redator esses homens haviam sido enganados pelos Moderados, “Nas eleições tivemos o exemplo, não há um representante das nossas cores, dos Empregos Públicos, e de toda parte nos excluíram, e vós, os escravos, que mamando na teta de tais feras estão lhe dando força”17. Segundo o redator, o que poupou Mauricio Lafuente da prisão, foi o fato de ter sido ex-cadete da Marinha. O que nos leva a pensar, sobre a importância da carreira militar, como uma forma de ascensão dos negros e mulatos, entretanto, a presença desses homens dentro da Guarda Nacional era uma bravata, uma vez que poderiam ocupar altas patentes. (Pinto, 2010, p.24-25). Neste sentido, o pasquim O Mulato, ou o Homem de Cor, faz-se muito relevante para as denúncias desses ocorridos − O ofício do Presidente de Pernambuco e a prisão do Lafuente −, ademais, era uma forma de conceder voz às questões raciais, que se sucediam, em razão de que, quase não eram noticiadas pela imprensa geral. De acordo com Lima (1999), esses impressos de pouca duração, portam uma identidade política e racial − como o caso do Homem de Cor e outros pasquins citados −, explicitando as questões políticas da época, o que estava sendo debatido na esfera pública e política. Se faz necessário enfatizar que, nenhum jornal, pasquim ou revista, é neutro, por conseguinte, esses pasquins disponham de uma opinião política, principalmente no período Regencial, no qual havia uma maior tensão política. Sendo assim, o pasquim O Mulato, ou o Homem de Cor, era um pasquim Exaltado, se utilizando da imprensa como estratégia política não apenas para denunciar as injúrias e defender a integração dos negros, mas era uma forma de influenciar seus leitores a irem ao encontro das ideais Exaltados (ROSA, 2014). Em síntese, vemos que o pasquim Mulato ou Homem de Cor, faz parte dos novos agentes que se expandiram no período Regencial; além disso, mostra a atuação política dos negros e mulatos através da imprensa, nos dá um vislumbre de como aqueles homens negros enfrentavam essas adversidades. E por fim, este impresso nos possibilita pensar sobre como os preconceitos vividos naquele período, ainda são enfrentados atualmente. 17 Mulato ou Homem de cor,23 out. 1833, p. 4. 20 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Referências Arquivos e Instituições pesquisadas BND- Biblioteca Nacional Digital. Brasileiro Pardo (1833). ____________________________. Lafuente (1833). ____________________________. O Cabrito (1833). ____________________________.O Homem de Cor (1833). ____________________________. O Meia Cara (1833). Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FILHO, Walter F. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro- Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. ANDRADE, Marcos F. de; SILVA, Janaína de C. Moderados, Exaltados e Caramurus no prelo carioca: os embates e as representações de Evaristo Ferreira da Veiga (1831-1835). Revista Almanack, Guarulhos,n° 04, p. 130-148, 2° semestre de 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S223646332012000200130&lng=pt&tlng=pt Acesso em: Junho de 2020. ARAÚJO, Valmir Teixeira de. “O Papel da Imprensa negra no Brasil”. Revista Alterjor, São Paulo, vol 02, 10, p. 212-228. Julho- Dezembro 2019. BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (orgs). 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Acesso em Abril e maio de 2020. LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed, 2004. MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ED, 2000. MOREL, Marco. O período das regências. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ED, 2003. PINTO, Ana Flávia Magalhães. Imprensa Negra do Brasil do século XIX. São Paulo: Selo Negro, 2010. RODRIGUES, Luciana dos Santos. Os Exaltados: Política e Identidade na corte regencial (1831-1834). 2013. 99f. Dissertação de Mestrado-UFF, Niterói, 2013. ROSA, Isabel Cristina Clavelin da. “Imprensa Negra: Descobertas para o jornalismo brasileiro”. Estudos em Jornalismo e Mídia, Brasília, v 11, n 1. Julho - Dezembro, 2014. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4° ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 22 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Quem delle/della souber: cotidiano e vestuário dos escravizados por meio da seção Escravos Fugidos do Diario de Pernambuco Dionisio Tito de Barros Neto18 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo explanar na seção Escravos Fugidos do jornal do Diario de Pernambuco, entre os anos de 1825 a 1827, algumas possibilidades de análise sobre o cotidiano dos escravizados. Compreendendo o contexto do surgimento desse veículo de informação, a que se propunha, e como esse periódico pode ser útil para os estudos acerca da escravidão na contemporaneidade, principalmente com foco no vestuário dos escravizados e como a fuga é interpretada pela historiografia. Palavras-chave: Escravizados, Século XIX, Vestuário. Introdução O Diario de Pernambuco, que está em circulação desde 1825 pode ser de grande valia para os estudos acerca da escravidão através de diferentes abordagens. Uma das práticas adotadas pelos senhores de cativos era anunciar no jornal quando seus escravizados fugiam, a finalidade era recuperar esses sujeitos. Nesta perspectiva, a descrição do cativo era fundamental para que o objetivo fosse alcançado, assim, na seção Escravos Fugidos, ou Fugidas de Escravos como também é possível encontrar em alguns exemplares do jornal, a qual iremos nos debruçar, é possível observar a etnia, marcas corporais, os ofícios, o vestuário que portavam, entre outras coisas. Vale destacar que os cativos são abordados no jornal em diferentes seções, seja por meio dos anúncios de compra, venda e aluguéis. O vestuário na condição de escravizados ainda é muito pouco explorado. Todavia, as vestimentas expressam as relações de poder entre os sujeitos, principalmente numa sociedade escravista, as formas de produção de uma época, a forma como cada sociedade atribui valores simbólicos a vestimenta, entre outras possibilidades de compreender a relação entre os sujeitos e as normas imposta no contexto que são refletidas através do vestuário. A análise dos escravizados por meio dos anúncios de jornal não é algo novo, Gilberto Freyre foi o precursor quando publicou em 1963 a primeira edição do livro O escravo nos 18 Mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) 23 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X anúncios de jornais brasileiros do século XIX, o autor analisou como os escravizados eram abordados em alguns periódicos. Todavia, a pesquisa historiográfica ganha novos questionamentos através do interesse do pesquisador e dos questionamentos feitos por ele às fontes, existentes na sua trajetória, por meio de um olhar atravessado pelo seu tempo. No caso desta pesquisa, o foco principal é observar o vestuário a fim de entender quais materialidades esses homens e mulheres portavam durante a fuga, quais possíveis estratégias que esses escravizados utilizavam para “parecerem-se” como libertos, como expressavam possíveis ancestralidades, ou referências culturais refletidas no vestuário num contexto permeado pela escravidão em todos suas esferas: social, política e econômica. A produção sobre a temática ainda é tímida no Brasil, como já mencionado. Todavia, alguns trabalhos foram desenvolvidos nos programa de Pós-graduação do Brasil, principalmente no Sudeste do país. A dissertação, Atrás dos panos: vestuário, ornamentos e identidades escravas: Colégio dos Jesuítas, Campos dos Goytacazes, século XIX, de autoria de Isabela Suguimatsu (2016) analisa a prática do vestir e adornar como “camadas” que constroem a identidades dos cativos. Analisando botões, ornamentos e amuletos, contas de colar, braceletes, anéis argolas e moedas perfuradas. Isabela compreende esses elementos como objetos que afetam e influenciam as pessoas, dando sentido às experiências cotidianas, entendendo qual a importância da materialidade na construção do sujeito na condição de cativo. Aline Monteiro (2012) na sua dissertação de mestrado, Para além do “Traje de Crioula”: um estudo sobre materialidade e visualidade em saias estampadas da Bahia oitocentista, fez uma análise descritiva das características visuais, materiais e as tecnologias aplicadas na confecção de duas saias que são datadas do século XIX que atualmente estão no Museu do Traje e do Têxtil da Fundação Instituto Feminino da Bahia, localizado na cidade de Salvador, com objetivo de explorar a história das saias e dos tecidos na Bahia oitocentista. A tese, Visualidades da escravidão: representações e práticas de vestuário no cotidiano dos escravos na cidade do Rio de Janeiro oitocentista, de autoria de Patrícia March (2011) buscou compreender de modo geral a forma de vestir na condição de cativos, e como a vestimenta expressava crenças, costumes e valores socais e culturais. Desse modo, Patrícia March ampliou a compreensão da maneira como os escravizados experenciaram a forma de vestir através de duas formas: alteração do corpo e meio de comunicação interpessoal. 24 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Para o contexto da cidade do Recife ainda não se tem registro de trabalhos que abordem o vestuário na condição de cativos. Assim, esta pesquisa busca apontar como a seção Fugidas de Escravos pode contribuir para estudos sobre o entendimento das materialidades usadas na cidade de Recife na condição dos cativos. O jornal como fonte O Diario de Pernambuco, o 24° veículo impresso oficial que surgiu em Pernambuco, foi fundado em 7 de novembro de 1825 por Antonino José de Miranda Falcão, da Tipografia de Miranda e Companhia. Possuía 38 anúncios e tinha dimensão de 27x19 centímetros19 e circulava pelas ruas do Recife durante 6 dias da semana, com exceção do domingo. À frente do jornal, Antonino Falcão chegou a ser preso em duas ocasiões, a primeira delas em 1826, por lutar a favor da liberdade de imprensa, e anos depois, quando foi acusado de publicar versos contra d. Pedro I, em 1829. O periódico foi vendido em 1835 à Tipografia Pinheiro & Farias. Manoel Figueroa ficou responsável pelo veículo e nova gestão, implementando algumas inovações, passou a ter contos, e foram ampliados o número de textos e informações (MAIA, 2016). Em sua primeira edição já ficou explícita a sua principal finalidade, pelo menos naquele momento: anunciar. Antonino Falcão parece ter enxergado uma necessidade dentro da cidade do Recife e resolveu supri-la com a fundação do jornal. Logo na sua Introducção20 se apresentava como uma solução para a sociedade, como exposto abaixo: Faltando nesta cidade assaz populosa um Diario de Annuncios, por meio do qual se facilitasse as transacções, e se communicassem ao publico noticias, que a cada em particular podem interessar, o administrador da Typographia de Miranda a Companhia de propoz a publicar todos os dias da Semana excepto aos Domingos somente o presente Diario, no qual debeixo dos títulos de Compra, Venda, Leilões-Alugueis—Arrendamentos—Aforamento—Roubo— Perdas—Achados-Fugidas e Apprehensões de escravos—Viagens- 19 Conforme Diário de Pernambuco. Disponível em: < http://blogs.diariodepernambuco.com.br/diario190anos/index.php/2016/11/08/o-inicio-da-historia/>. Acesso em: 24 jul.2021. 20 Bastos (2016) compara a Introdução do jornal, no período abordado, como o que na atualidade consideramos como o editorial desse meio de comunicação. 25 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Afretamentos-Amas de leite etc., tudo quanto disser respeito a taes artigos; para o que tem convidado a todas as pessoas, que houverem de fazer estes ou outros quasquer annuncios, aos levarem a mesma Typographia que lhes serão impressos grátis, devendo ir assignedos (Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diario de Pernambuco, 1825, n. 01. In. Introducção) O conteúdo do veículo era apresentado em duas colunas por página, totalizando oito colunas, distribuídas em 4 páginas por exemplar, cada página custava 10 réis e o exemplar completo 40 réis. As informações ali contidas necessitavam chegar aos ouvidos de uma população, que em sua maioria era composta por analfabetos. Dessa forma, segundo Bastos (2016), a leitura em voz alta feita nos espaços públicos possibilitava que mais sujeitos tivessem acesso às informações contidas no veículo de cunho conservador, assim o jornal destinava-se às classes mais abastadas, o que não impedia, claro, que demais sujeitos dos mais diversos estratos sociais tivessem acesso às informações proferidas naquela “praça”. Não por acaso a posição que esses homens, mulheres e crianças ocupavam dentro do jornal explicitava a forma como eram vistos e tratados na sociedade, como mercadoria/coisa. Partilhavam das mesmas páginas nas quais eram anunciados objetos, terrenos e outros bens de consumo. Do ponto de vista da quebra de como os escravizados eram abordados nos estudos acadêmicos o sociólogo Gilberto Freyre tem uma contribuição fundamental no que diz respeito disso. Reportando-os como detentores de costumes e práticas culturais por meio de suas obras, Freyre marca os estudos abordando os cativos não mais como mercadorias. No ano de 1963, com O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, em sua primeira edição, Freyre inaugura a “anunciologia”, a qual, pode ser utilizada por vários pesquisadores das mais diversas áreas do saber. Para Bastos (2016) o início dos anúncios dos escravizados tem surgimento com a implementação da imprensa brasileira, ocasionado pela vinda da família real para o Brasil. A forma como os escravizados são descritos no jornal é variável, o que nos possibilita analisar essa fonte com vários objetivos, e que na contemporaneidade nos permite investigar a dinâmica social da época e a forma como os sujeitos escravizados eram descritos neste tipo de fonte, como podemos observar abaixo. 26 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Quem souber ou achar huma negra de Angola de idade de 30 annos por nome Mariana que sahio a vender Fazendas, e miudezas, em hum batuleiro, com signaes seguintes, alta, seca do corpo, levou um cabeçaõ de bertanha, saia branca de babados, e baeta azul, quem a pegar a entregará a seo Sr. Joze Bernardino, na rua do Queimado na quina que vira para o Colejo que serà pago do seu trabalho (Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diario de Pernambuco, 1827, n. 69. In. Fugas de Escravos). Como apresentado, podemos observar que Mariana comercializava alguns artigos, “miudezas”, nas ruas do Recife, que era uma escravizada de ganho, onde seu senhor morava e consequentemente o lugar onde deveriam levá-la caso a encontrassem. A descrição dessas roupas nos possibilita investigar como esses escravizados vestiam-se e quais possíveis estratégias que os mesmos empregavam na fuga para que não fossem capturados, como por exemplo uma possível troca da muda de roupa. Segundo Carvalho (2003), o contexto político da primeira metade do século XIX no Recife possibilitou o aumentou das fugas, uma vez que esses conflitos agitavam as ruas e tiravam o foco dos senhores, abrindo margem para que os cativos escapassem. A fuga, estaria para João José Reis e Eduardo Silva (2009) na categoria de resistências físicas, sendo um ataque ao sistema, é também por meio dela que os escravizados recorriam a negociação com seus senhores. Para Reis e Silva (2009), as fugas poderiam ser de duas categorias: fugasreivindicatórias e fugas-rompimento. As fugas-reivindicatórias não tinham como finalidade um rompimento completo do sistema, mas como o próprio nome diz, reivindicavam algo. Seriam um meio pelo qual os cativos utilizavam para barganhar algumas conquistas, tais como melhores condições de trabalho, por exemplo. Esta categoria estaria na categoria de negociação/resistência. De todo modo, haviam motivos específicos pelos quais cada escravizados empregavam a fuga. As fugas individuais são associadas a maus tratos causados pelos senhores, ou para reestabelecer os mais diversos laços afetivos do cativo. Essas “pequenas” fugas são chamadas pelos franceses como petit marronage (REIS e SILVA, 2009). Segundo Carvalho (2010), essas fugas por vezes tinham datas marcadas, nos dias santos e feriados, e muito possivelmente foram utilizadas como forma de experiência e possível aprimoramento para fugas permanentes, segundo o autor. 27 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Os senhores tomavam medidas para impedir que seus cativos fugissem, utilizando ganchos em seus pescoços, por exemplo. Essa prática pode ser observada conforme descrito quando Anna21 crioula, de 20 anos fugiu. A mesma portava um gancho em seu pescoço. Segundo descrito pela sua senhora ao jornal, a cativa era acostumada a fugir, desse modo, o gancho servia para prendê-la, e no contexto das ruas do Recife era mais fácil de identificá-la. De todo modo, ambas as categorias de fuga demarcavam algo nessa relação com os senhores: a imposição do cativo em relação ao sistema escravista e formas de negociação. Todavia, a fuga não significava necessariamente liberdade do sujeito. Para Carvalho (2010, p. 237), a liberdade no século XIX para os cativos não era algo dada, mas um processo gradual, como afirma: “o caminho da liberdade correspondia a uma conquista gradual de espaços e posições nas várias hierarquias sociais justapostas.” Ainda segundo Carvalho (2010, p. 248) A liberdade “tinha graduação e era multifacetada.” Todavia esse processo poderia ser brusco, ou mesmo retroagir, assim como avançar. Desse modo, precisamos entender neste contexto a liberdade como algo dinâmico, não como uma situação dada. Nesse caminho de construção, Marcus de Carvalho (2010) aponta as malhas de solidariedade como uma forma para esta luta. Nem todos os escravizados fugiam para os quilombos, mas, para que a fuga fosse mais bem sucedida, era necessário que o cativo fugisse para pelo menos um outro bairro, os escravizados canoeiros poderiam ajudar nessa empreitada. Para Nascimento (2019) a fuga dos anúncios demonstra as estratégias adotas por esses homens e mulheres, além de mostrar as possibilidades de refúgio encontradas por eles, como: nas matas, em bairros vizinhos e outras províncias. Ainda de acordo com o autor, independente do lugar para onde o escravizado fugisse, sempre contava com redes de solidariedade para auxiliá-lo. De acordo com Carvalho (2010), Recife se distinguia das demais cidades escravistas, entre outras coisas, devido aos rios que cortavam os bairros. Em virtude disso haviam ofícios ligados aos transportes dos rios: os canoeiros. Essa categoria de escravo de ganho, ou “negro de ganho” como Carvalho (2010, p. 241) coloca, “tinham mais autonomia do que muita gente livre. Muitos desses escravos pagavam semanalmente uma certa quantia ao senhor e moravam 21 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diario de Pernambuco, 1827, n.31. In. Fuga de Escravo. 28 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X nos seus próprios casebres [...]”. Desse modo, trazemos o ofício de canoeiro para exemplificar a dinâmica social que a cidade escravista recifense vivenciava no século XIX, assim como na figura do mesmo um possível aliado para empreender as escapadas, fazendo parte de uma rede de solidariedade, além de exemplificar como a categoria dos escravos de ganho poderiam acumular pecúlio e gozar de uma certa autonomia e liberdade, no sentido aqui já mencionado, referente do contexto/sistema no qual estava inserido. É notória a presença desses escravizados de ganhos no Diario de Pernambuco, principalmente nos anúncios de fugas. O vestuário nos anúncios A roupa usada durante a fuga, ou levadas durante a mesma, e descritas nos anúncios nos possibilita compreender e especular algumas questões acerca da população cativa no Recife oitocentista. A dinâmica da cidade do Recife no que se referia a escravidão era diversa, como já abordado. Homens, mulheres e crianças que viviam sobre posse de seus senhores empregavam suas forças de trabalhos nos mais diversos meios econômicos e sociais espalhados pela cidade, transportando cargas nos rios e canais que cortavam a cidade, sendo amas de leite, inseridos nos serviços domésticos, descarregando navios e como escravos de ganho. Assim, seria simplista demais reduzir a prática do vestir na condição de cativo a um único modo, ou com base na aproximação do seu senhor, relacionando essa proximidade como único e exclusivo meio para obtenção de roupas de qualidade. Para Souza (2011, p. 180), de fato “a condição social e econômica seria um fator determinante na quantidade, formas e materiais de itens de vestuário que compunha a aparência dos escravos”, porém, outros fatores estariam ligados a tal prática. Ser escravo de ganho poderia possibilitar obtenção de melhores vestuários, uma vez que os mesmos ficavam com uma parte do ganho. É necessário entender a dinâmica social para que possamos fazer alguns apontamentos necessários acerca da temática. Observemos o anúncio abaixo. No dia 15 de abril fugio huma escrava criolla de nome Rita, estatura regular, cor preta, corpo alguma couza cheio, cara regular, e com os beiços alguma couza saídos para fora, levou vestida de chita parda uzada, cabecaõ de paninho com recorte no talho, e embrulhada hum pano da Costa; qualquer Capitaõ de Campo, ou qualquer pessoa que a pegar a poderá levar na rua do Vigario caza N°26 segundo andar, que será bem recompençado do seu 29 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X trabalho (Hemeroteca Digital. Fugas de Escravos in. Diario de Pernambuco, 1827, n.120). No anúncio acima podemos observar o que Rita portava quando fugiu. Além disso, sabermos que o tipo de tecido do seu vestido era de chita, sabemos também a condição material do mesmo, já “uzado”, portava também um cabeçaõ, que segundo Antonio de Moraes Silva (1789, p. 205) no Dicionário de língua portuguesa, afirma ser uma a parte que ficava em volta do pescoço, e virado para trás, Mariana22, já citada anteriormente, também utilizava cabeção, o que é algo recorrente no periódico. Outro elemento que nos chama atenção nos anúncios é a presença do pano da Costa. Desse modo, é possível perceber os vários elementos que constituíam a forma como escravizados se vestiam e quais objetos estavam sobre os corpos desses sujeitos pelas ruas, becos e vielas da cidade. Como pontua Braudel (1995) histórica das roupas apresenta várias questões que contemplavam desde os meios de produção até as hierarquias sociais. Paulo Debum corrobora com Braudel no sentido de que vestuário possuir várias questões para além da estética, segundo Debrum (2011, p. 3) “pelas tramas dos tecidos leem-se múltiplos discursos que vão desde os anseios pessoais, a expressão de personalidade, a influência da sociedade sobre o indivíduo e sua postura política”. De fato, através do vestuário é possível expressar ou forjar os lugares sociais, assim como usar elementos que pudessem resgatar memórias afetivas que remetiam, possivelmente, as suas origens, também é possível perceber as influências que a sociedade impõe sobre os sujeitos. O vestuário é atravessado por várias questões. Ao analisar a fonte é recorrente notar o uso da chita pelas escravizadas. Quando Josefa23 fugiu, usava um vestido de chita portuguesa, também usava chita Izabel24 e várias outras mulheres. É importante pontua que o uso da chita é descrito apenas relacionado a mulheres e meninas, quando o vestuário masculino é descrito não é evidenciado a utilização pelos cativos. Desse modo, podemos inferir que a chita era um tecido utilizados pelo gênero feminino. Consideração 22 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diario de Pernambuco, 1827, n. 69. In Fugas de Escravo. 23 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diário de Pernambuco, 1827, n.38. In. Fugas de Escravos 24 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diário de Pernambuco, 1827, n. 47. In. Fugas de Escravos 30 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Desse modo, o artigo versou sobre as possibilidades de investigação acerca da seção Escravos Fugidos com intuito de apresentar como tal fonte pode ser utilizada para estudos da dinâmica social da época, perpassando os motivos do surgimento do jornal Diario de Pernambuco, como estava inserido no contexto social e para que se propunha. Além disso, explorando como a seção pode subsidiar estudos relacionados ao vestuário e como o mesmo é descrito, e abordando de modo geral, por meio de três autores, os principais motivos que os estão associados as fugas dos escravizados. Os pontos apresentados até aqui são partes de uma reflexão inicial de uma pesquisa mais ampla sobre o vestuário dos escravizados na cidade do Recife durante a primeira metade, mas já se pode perceber algumas especificidades relacionadas ao uso da chita, utilizado apenas por mulheres e a presença do pano da Costa. Assim, vale uma investigação mais profunda, explorando se o uso era socialmente atribuído à população feminina cativa. Desse modo, há particularidades no cotidiano dos cativos que precisamos nos debruçar para compreender como essa população se articulava, onde compravam determinada materialidades, assim como perceber como o vestuário fazia parte das possíveis estratégias empregadas pelos escravizados de negociação e resistência. Referências BASTOS, Ana Karine Pereira de Holanda. Anúncios de escravos: traços de mudanças e permanências de tradições discursivas nos jornais do Recife. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Artes e Comunicação. Recife, p. 377. 2016. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995. CARVALHO, Marcus J. M de. De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no Recife, 1822-1850. Afro-Ásia, n. 29-30, 2003. ________________________. 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Tendo como principais fontes para discussão os inventários post-mortem deixados por pequenos e médios proprietários, foi possível observar que já nos Setecentos havia, entre eles, o estímulo às práticas de reprodução natural no cativeiro, algo destacado em demasia pelos estudiosos do século XIX. Versar sobre essas questões, não só confirma a existência dessas famílias, como possibilita pensar nas relações desenvolvidas entre senhores e escravizados. Palavras-chave: Família cativa; africanos; Pernambuco colonial; Introdução No ano de 1778 abriu-se o inventário de José Alves Crasto. Dentre seus bens, além das propriedades imóveis, como seu engenho em Ipojuca e seu sítio no Cabo, situados no litoral sul da capitania de Pernambuco, distante apenas por alguns quilômetros do Recife, chama atenção sua propriedade em cativos. Dos 37 escravizados arrolados, que variou entre homens e mulheres africanos, mulatos e crioulos, cerca de 27% eram compostas de “crioulinhos”. Esses “crioulinhos”, como são informados no documento, eram filhos de mães e pais escravizados do próprio Crasto, compondo assim, famílias cativas. Interessante notar ainda que não apenas havia homens e mulheres em relações estáveis – como se pode perceber pela expressão “mulher do dito” ao lado do nome das mulheres que, no momento da listagem, eram arroladas logo em seguida aos seus companheiros –, como também mães sem nenhuma descrição de relacionamento com outros cativos homens de Crasto, como foi o caso de Joana de nação 25 Mestre em História Social pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Professor do curso de História EAD da Universidade de Pernambuco. Esta pesquisa contou com o financiamento da FACEPE. E-mail: filipemarinhoo@gmail.com 33 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Angola, mulher de 20 anos, e já mãe do crioulinho Estevão, de 12 anos à época. Ou mesmo Antônia de nação da Costa da Mina, com seus 30 anos, mãe da pequena crioulinha de 7 anos, com nome de Izabel.26 Este trabalho, desdobramento de uma pesquisa mais ampla27 e apresentando resultados parciais de uma investigação ainda em andamento, tem o intuito de demonstrar empiricamente práticas de reprodução natural entre alguns proprietários de cativos no Recife e freguesias vizinhas na segunda metade do século XVIII. Para tanto, a documentação ao qual lançou-se mão foram os inventários post-mortem e testamentos presentes no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP). Com isso, buscamos apontar que as práticas de reprodução natural, amplamente estudadas por historiadores do século XIX, poderiam ter suas raízes já no período colonial. O que as diferia, vale destacar, era o sentido atribuído nos Oitocentos ao fim da escravidão e a tentativa, por parte do grupo senhorial, em preservá-la.28 O comércio de escravizados na segunda metade do século XVIII: um ponto de partida Estamos inclinados a acreditar que um dos motivos que levou os proprietários de cativos na segunda metade do século XVIII a estimular a reprodução natural foi a baixa entrada de escravizados no porto do Recife, de um lado. Por outro, o baixo poder de compra de pequenos e médios proprietários – responsáveis por mais da metade de nossos dados. Portanto, antes de partirmos para os dados em si, vale debater um pouco sobre a situação do comércio de cativos para Pernambuco a partir de 1750. Não é novidade na historiografia as medidas de controle régio implementadas na década de 1750, sobretudo em Pernambuco. No começo desta década, a criação da Mesa de Inspeção tinha como principal função regular os preços dos produtos exportados e importados. Entre 1759 e 1780, foi a vez da criação e atuação da Companhia Geral de Comércio Pernambuco e Paraíba (doravante CGPP) que visou estimular não apenas o desenvolvimento dos gêneros da terra – o açúcar, sobretudo –, como também monopolizar o comércio na mão dos funcionários da CGPP, o que situava Angola como principal exportador de mão de obra para Pernambuco, ao mesmo tempo que diminuía a ida de negreiros locais para a Costa da Mina, embora na documentação presente nos avulsos de Pernambuco do AHU, é possível 26 IAHGP, Fundo Orlando Cavalcanti, inventário de José Alves Crasto (1778). 27 MELO, Filipe Marinho de. “Que negros somos nós?”: africanos no Recife, século XVIII. Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2021. 28 Agradeço ao prof. Dr. Gian Silva e a profa. Dr.ª Luana Teixeira pela observação. 34 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X perceber que duas ou três embarcações ainda faziam a rota Recife-Costa da Mina, mesmo dentro da CGPP. No entanto, não há espaço aqui para debater sobre os méritos, formas de atuação e declínio da CGPP, assunto já debatido em trabalhos primorosos29. De acordo com o Slave Voyage Database (TDST2), entre 1759 e 1780, cerca de 46.462 escravizados desembarcaram no porto do Recife. E essa queda se mantém nos anos seguintes, já findada a CGPP. Ainda segundo as informações deste banco de dados, entre 1781 e 1800, há o desembarque de 28.726, ou seja, quase metade dos dados para o recorte anterior. Isso demonstra o sucessivo de declínio na entrada de cativos no porto do Recife. No entanto, somente a partir de 1801 até as vésperas da independência é que se retoma um crescimento aterrador: segundo os dados do TDST2, entre 1801 e 1820, houve 105.636 pessoas desembarcadas. Isso se deveu ao surto algodoeiro, somado com a saída da colônia francesa de São Domingos, com a revolução instaurada na década de 1790. Saindo dos dados amplos do TDST2, vale olhar para a avaliação do declínio da entrada de cativos feitos pelo então governador de Pernambuco, José César de Menezes. Segundo o que César de Menezes redigiu em 1778, durante os 18 anos de atuação da CGPP, ou seja, de 1760 até aquele ano, o número de entrada de cativos da Costa da Mina teria apresentado uma queda, se comparado aos 18 anos de livre comércio, ou seja, antes da atuação da Companhia. A queda, segundo informou, foi de 16.189 para 7.801 pessoas, no caso, mais da metade do valor. A queda desses dados não é surpresa, dado que eram os portos de Angola encarregados de exportar mão de obra para Pernambuco. Mas os dados do governador também apontam para quedas desta região. Ainda segundo as informações de sua missiva de 1778, também para os 18 anos de atuação da CGPP e de livre comércio, a queda de escravizados sentida foi de 38.383 para 29.73330. Segundo o TDST2, a década de 1780 foi marcada por um leve aumento geral de entrada de cativos, mas logo apresentou queda novamente na década de 1790, talvez devido aos problemas climáticos e de saúde pública enfrentados, tão relatados pelo governador à época, D. Tomás José de Melo31. Apesar disso, foi justamente pelos estímulos empreendidos pela Companhia que se deu especial atenção à cultura do algodão na capitania, o que levou a 29 Cf. DIAS, Érika Simone de Almeida. “As pessoas mais distintas em qualidade e negócio”: a Companhia de Comércio e as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa no último quartel de Setecentos. Tese (doutorado em História). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014; MELO, Felipe Souza. O negócio de Pernambuco: financiamento, comércio e transporte na segunda metade do século XVIII. Dissertação (mestrado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. 30 AHU, avulsos de Pernambuco, cx. 130, d. 9823. 31 AHU, avulsos de Pernambuco, cx. 190, d. 13117. 35 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X região da zona da mata de Pernambuco a se dedicar fundamentalmente a esta produção32. Mas isso já é outra história. O que vale destacar até aqui é que a baixa entrada de cativos no porto do Recife e, sem dúvida, aos movimentos de comércio interno de onde cativos saíam do Recife em direção a outras capitanias, como o Rio de Janeiro33, devem ter estimulado pequenos e médios proprietários a incentivar a formação de famílias para fins de reprodução natural. Nessa direção, concordamos com Laird Bergad quando, estudando a sociedade de Minas Gerais, informou que, na virada dos séculos XVIII ao XIX, afirmou que tais práticas estiveram ligadas com uma “menor dependência da importação de mão de obra”34, por parte dos proprietários, ou seja, estratégias senhoriais em momentos de baixa – fosse de entrada ou de poder de compra. Famílias de africanos cativos no Recife e as práticas de reprodução natural: dados e reflexões iniciais Algumas páginas atrás, o leitor ou leitora deve lembrar, afirmamos que a prática de reprodução natural (ou endógena, como quer alguns autores) teve suas raízes no período colonial. E, arriscamos dizer, era uma prática aconselhada pelos intelectuais do período – eclesiásticos, sobretudo – para que um proprietário melhor administrasse e dominasse seus cativos. Se retrocedermos ao final do século XVII e início do XVIII, vemos no padre Antonil um aconselhamento nesse sentido. No Capítulo IX de sua obra, Cultura e Opulência do Brasil, que versa sobre como um senhor de engenho deve administrar seus cativos, Antonil trata de festas, trabalho, alimentação, punição (o famoso PPP de Jorge Benci, outro jesuíta bastante conhecido), casamento e reprodução. É muito curta a passagem, mas não deixa de ser reveladora. O jesuíta escreveu: “ver que os senhores têm cuidado de dar alguma coisa dos sobejos da mesa aos seus filhos pequenos é causa de que os escravos os sirvam de boa vontade”. E completa: “e que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas” 35. Em outras palavras, o tratamento positivo dado por um determinado proprietário ao seu escravizado lhe 32 Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Uma outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2014. 33 AHU, códice 1821. 34 BERGAD, Laird. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p. 248. 35 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 111. 36 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X seria benéfico não apenas pelos bons serviços prestados por este último para com seu senhor, mas também para que o cativo fosse um meio de aumentar sua propriedade humana. Ou seja, o comportamento positivo, como um estímulo, gerava e um sentimento de gratidão por parte dos cativos. Aliás, vale comentar que, finalizando o capítulo, Antonil diz que como resposta a relação conturbada entre senhores e escravizados, as próprias cativas “procuram de propósito aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem”36. É possível que esses ensinamentos tivessem ecoado entre o grupo senhorial pela América portuguesa afora, chegando aos ouvidos de proprietários do Recife e freguesias vizinhas. Infelizmente não dispomos de dados sistemáticos para fins do século XVII ou mesmo para a primeira metade do século XVIII. Aliás, mesmo nossos dados são bastante limitados, seja pela conservação dos documentos – alguns se encontram bastante desgastados pelo tempo –, seja pela limitação das informações dadas pelos escrivães do período. Mas arriscamos indicar, como hipótese, já que não dispomos de dados empíricos, que pelo fato da primeira metade dos Setecentos ser um momento de alta entrada devido ao boom aurífero, a prática de reprodução natural não fosse tão difundida. Hipóteses, como se assinalou. Só para ilustrar, entre 1722 e 1731, conforme documento revelador do Provedor da capitania de Pernambuco, João do Rego Barros, se registrou a entrada de 22.220 africanos da Costa da Mina, o que perfaz uma média anual de 2.222 escravizados37. Número superior ao da própria população do Recife, que à época não ultrapassava nem 15 mil pessoas.38 A partir do momento de baixa demanda provocado pela crise na mineração, por volta da década de 1750, e sobretudo porque a CGPP priorizava a venda de cativos para os grandes proprietários do açúcar, já que tinha como propósito o incremento na produção local39, possivelmente os pequenos e médios proprietários, aqueles com cativos para auxílio do trabalho cotidiano ou mesmo para o serviço em pequenas roças e sítios, optaram pela prática de reprodução natural. O caso mais emblemático que encontramos foi de Luís Mendes de Sá. No ano de 1765, abria-se seu inventário. Dentre seus bens, estava um sítio localizado na Boa Vista, apenas uma 36 Idem. 37 AHU, avulsos de Pernambuco, cx. 42; d. 3786. Cf. Para mais detalhes sobre o comércio entre Pernambuco e a Costa da Mina, ver: LOPES, Gustavo Acioli. A Fênix e o Atlântico: a capitania de Pernambuco e a economiamundo europeia (1654-1750). São Paulo: Alameda, 2018. 38 MELO, Filipe Marinho de. Op. Cit., 2021, p. 73. 39 Ver a discussão sobre a baixa na produção do tabaco e o déficit de cativos da Costa da Mina em Pernambuco, durante atuação da CGPP, em: DIAS, Érika Simone de Almeida. Op. Cit., 2014, p. 306-307. 37 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ponte da freguesia de Santo Antônio e duas pontes da vila do Recife. E neste sítio, certamente trabalhavam seus 7 cativos. O curioso é que dos 7 cativos arrolados, todos eram descendentes de primeira e segunda geração de Feliciana do gentio do Congo, a escravizada mais velha de Luís de Sá, já com seus 60 anos de idade. Os demais, portanto, eram seus filhos e uma netinha, a crioulinha Joanna, de 9 anos de idade. O Quadro 1 abaixo ilustra o que se encontrou no inventário. Quadro 1: Lista dos cativos de Luís Mendes de Sá Nome Origem Idade Avaliado em Feliciana Gentio do Congo 60 anos 30$000 Domingos Crioulo (filho da 27 anos 120$000 dita) Anna Crioula (filha da 25 anos 80$000 dita) Joanna Crioulinha (filha da 9 anos 55$000 dita Anna) Gonçalo Crioulo (filho da 18 anos 110$000 dita Feliciana) Roza Crioula (filha da 16 anos 110$000 dita Feliciana) Francisco Crioulinho (filho da 12 anos 70$000 dita Feliciana) Fonte: IAHGP. Fundo Orlando Cavalcanti, inventário de Luís Mendes de Sá (1765). Se era um “bom” proprietário, nos termos do padre Antonil detalhados acima, pouco importa, pois o que se pode extrair desse caso é que certamente esse proprietário utilizava suas escravizadas – primeiro a mãe, depois a filha mais velha – para aumentar o volume de seus cativos. Voltemos agora ao caso de José Alves Crasto, citado na introdução deste trabalho. É interessante retomá-lo porque é um caso da década seguinte, de 1770. Detalhamos um pouco sobre quem foi Crasto e seus bens em terras e em cativos, mas não sobre a composição das famílias arroladas em seu inventário. Para além do que julgamos ser mães solteiras, nos casos 38 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de Joana Angola e Antônia Costa da Mina, há pelo menos 3 famílias de africanos dentro dos 37 cativos de José Crasto. Das três, duas estão listados os filhos e apenas uma não há indicação de descendência. O Quadro 2 abaixo detalha esses cativos em questão. Quadro 2: Lista de parte dos cativos de José Alves Crasto Nome Origem Idade Avaliado em Félix Angola Não informado 75$000 Izabel Costa da Mina 30 anos 75$000 (mulher do dito) Jerônima Crioulinha (filha da 7 anos 60$000 dita) Francisca Crioulinha (filha da 7 anos 55$000 dita) Maria Crioulinha (filha da [corroído] 50$000 dita) [danificado] Crioulinha (filha da 3 anos 25$000 dita) Florencio Crioulinho (filho 1 ano 18$000 do dito) Antônio Angola Joana Costa da 30 anos 70$000 Mina 40 anos 70$000 (mulher do dito) Anna Crioulinha (filha da 3 anos 30$000 dita) Marcos Angola Não informado [corroído] Romana Angola (mulher do Não informado [corroído] dito) Fonte: IAHGP. Fundo Orlando Cavalcanti, inventário de José Alves Crasto (1778) Na listagem dos cativos de Crasto há outros “crioulinhos” que não são filhos de africanos, mas este grupo social é o nosso principal interesse. É interessante notar que os dois 39 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X dos três casais arrolados acima são de nações diferentes, o que demonstra uma certa escolha senhorial na formação dos arranjos, conforme informa alguns trabalhos que se dedicaram a compreender estes arranjos familiares de pessoas escravizadas40. Uma outra questão, e que nos retorna ao caso de Feliciana do gentio do Congo, analisado páginas acima, é o distanciamento, em anos, entre um filho e outro, algo em torno dos 2 ou 3 anos. Tanto Manolo Florentino e Roberto Góes41, quanto Stuart Schwartz42 debateram sobre questões semelhantes indicando que havia um “padrão de natalidade” e que as africanas, nas Américas, adaptavam-se às circunstâncias locais. Segundo Herbert Klein, foi justamente tal “padrão” – demorado em demasia na opinião dos proprietários – que fazia com que tivessem dependência do abastecimento d’África43. Se é o caso, tanto de Feliciana quanto de Izabel, é algo a se investigar com maior profundidade. Por fim, também há o caso do proprietário Julião da Costa Monteiro. Em seu inventário aberto em 1800, há a presença de 5 escravizados, sendo dois adultos e três crianças. Embora não esteja detalhado no documento, acreditamos que se tratava de uma família, sendo os dois adultos os pais das crianças. Os dois adultos são africanos, do serviço da casa, e seus filhos, sem ofícios, foram classificados como “crioulinhos”, conforme se vê no Quadro 3 abaixo. Quadro 3: Lista dos cativos de Julião da Costa Monteiro Nome Origem Idade Avaliado em Francisca Angola 35 anos 110$000 Vicência Crioulinha 11 anos 10$000 (?) Joaquina Crioulinha 4 anos (?) [corroído] Francisco Crioulinho ? 10$000 Francisco Angola ? 100$000 Fonte: IAHGP. Fundo Orlando Cavalcanti, inventário de Julião da Costa Monteiro (1800). 40 Cf. PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo baiano (1750-1800). Afro-Ásia, 33 (2005). 41 Cf. FLORENTINO, Manolo; GÓES, Roberto José. A paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017. 42 Cf. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 43 Cf. KLEIN, Herbert. O Tráfico de Escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP: FUNPEC editora, 2004. 40 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Seja como for, chamar atenção para os casos de reprodução natural no Recife, o terceiro maior porto de desembarque de cativos da América portuguesa, nos faz repensar aspectos das relações senhor-escravizados, mesmo para uma região movimentadíssima, de muitas idas e vindas, como era o Recife na era do comércio de cativos. Robson Costa já teria observado, entre os séculos XVIII e XIX, práticas de reprodução natural como estímulos dentro da ordem de São Bento em Pernambuco, sendo uma das ferramentas da gestão escravista desempenhada por esses metódicos eclesiásticos44. Novidade, no entanto, é que práticas semelhantes fossem reproduzidas por proprietários leigos desta capitania, ainda que em menor medida, sem dúvidas. Há muito o que se fazer e muitas perguntas necessitam de respostas, mas dado o pouco espaço aqui, nos restringimos em apontar alguns casos que serão analisados de forma pormenorizada em um trabalho futuro. Considerações finais Em um outro trabalho, com base em um artigo de Nicolau Parés45, indicamos que esses casos de reprodução natural mostravam o “processo de crioulização” demográfica pela qual o Recife e as freguesias vizinhas tinham experimentado, dado o recuo nos números de entrada de africanos, como se viu páginas atrás. Ainda sustentamos tal hipótese, mas ela é apenas parte de um contexto mais complexo e que deve ser analisado com mais cautela e com menos generalizações. O espaço aqui é reduzido, mas em cada década da segunda metade do século XVIII foi possível encontrar nos inventários post-mortem e testamentos, famílias de escravizados (africanos ou não) gerando descendência para seus proprietários, ou seja, casos típicos de reprodução natural. Como destacamos no começo deste trabalho e reiteramos na discussão que se seguiu, é provável que a reprodução natural fosse uma prática já utilizada na colônia, mas não tão disseminada entre a população dada a constante entrada de africanos, mesmo em momentos de baixa oferta nos mercados do Recife. A existência dessas práticas revela as estratégias senhoriais para manter sob seus domínios sucessivas gerações de pessoas em cativeiro, fomentando, em um jogo de força e favor, a relação paternalista que era o centro do relacionamento senhor- 44 Cf. COSTA, Robson Pedrosa. Os escravos do santo: uma história sobre paternalismo e transgressão nas propriedades beneditinas, entre os séculos XVIII e XIX. Recife: Ed. UFPE, 2020. 45 Cf. PARÉS, Luis Nicolau. Op. Cit. 2005. 41 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X escravizado46. No entanto, se por um lado, isso deixava os cativos reféns de seus proprietários, por outro, garantia o espaço de negociação necessário para a construção de laços entre os seus e outras autonomias variadas. Não há mais lugar na História para se pensar o escravizado como submisso, passivo em relação às vontades de seu senhor. Ora, que tipo de acordos Feliciana do gentio do Congo não teria tecido com Luís Mendes de Sá, seu proprietário, para manter sua família intacta? Só nos resta conjecturar. Referências Fontes ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas. Brasília: Senado Federal, 2011. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) – Avulsos de Pernambuco e Códices AHU, caixa 42; documento 3786. AHU, caixa 130, documento 9823. AHU, caixa 190, documento 13117. AHU, códice 1821. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) – Fundo Orlando Cavalcanti Inventário de Luís Mendes de Sá (1765); Inventário de José Alves Crasto (1778); Inventário de Julião da Costa Monteiro (1800); Bibliografia BERGAD, Laird. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais. Bauru, SP: EDUSC, 2004. COSTA, Robson Pedrosa. Os escravos do Santo: uma história sobre paternalismo e transgressão nas propriedades beneditinas, nos séculos XVIII e XIX. Recife: Ed. UFPE, 2020. 46 Cf. SLENES, Robert. Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada no Brasil: o Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia de Bolso, 2019. 42 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X DIAS, Érika Simone de Almeida. “As pessoas mais distintas em qualidade e negócio”: a Companhia de Comércio e as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa no último quartel de Setecentos. Tese (doutorado em História). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014. FLORENTINO, Manolo; GÓES, Roberto José. A paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017. KLEIN, Herbert. O Tráfico de Escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP: FUNPEC editora, 2004. LOPES, Gustavo Acioli. A Fênix e o Atlântico: a capitania de Pernambuco e a economiamundo europeia (1654-1750). São Paulo: Alameda, 2018. MELO, Felipe Souza. O negócio de Pernambuco: financiamento, comércio e transporte na segunda metade do século XVIII. Dissertação (mestrado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. MELO, Filipe Marinho de. “Que negros somos nós?”: africanos no Recife, século XVIII. Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2021. MELLO, Evaldo Cabral de. Uma outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2014. PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo baiano (1750-1800). AfroÁsia, 33 (2005). SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. SLENES, Robert. Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada no Brasil: o Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia de Bolso, 2019. 43 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X “Reprimir vadios e contê-los na desregrada vida que levam”: cenas do pósabolição em Maceió (1880-1910) Kedimo Barbosa da Paixão47 Resumo: Este trabalho visa abordar a identidade negra alagoana, no final do séc. XIX e início do séc. XX, período de miséria e crise escravista. Nesse período o negro era tido como vadio e suas práticas eram reprimidas, a exemplo da Quebra de Xangô. Para melhor compreendê-la, é necessário revisar a construção histórica do país e analisar suas abordagens legislativas. Utilizaremos, para isso, periódicos como Gutemberg e o Decreto n.º 847/1890. Entendemos, assim, que a cidadania dada constitucionalmente ao negro gerou apenas aparente igualdade formal, pois a sociedade continuou a inferiorizá-lo. Palavras-chave: Pós-abolição; Silenciamento; Lei da Vadiagem. Introdução O presente artigo visa uma reflexão sobre os eventos que se processaram no Brasil após o 13 de maio de 1888, tomando como referência a produção de fontes e a própria produção historiográfica, como instrumentos que delinearam uma estratégia discursiva que tinha como objetivo transformar o evento em si num instrumento de redenção nacional, após quatro séculos de manutenção de um regime escravista. Devemos deixar claro que tal estratégia só poderia ser executada de forma satisfatória na medida em que a produção historiográfica tivesse como pressuposto uma narrativa bem traçada de silenciamentos acerca da materialização real da liberdade na vida dos supostos sujeitos históricos, beneficiados pela lei Áurea. Como principal ferramenta teórica que utilizaremos para fundamentar as nossas hipóteses, tomaremos como referencial os textos e abordagens com ênfase na ressignificação do próprio conceito de História que se processa a partir dos séculos XVIII e XIX e que é abordado por Koselleck na obra: “O conceito de História” (2013 [1975]) e Peter Burke, na obra: “História e teoria social” (2002 [1991]). 47 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Alagoas. 44 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O texto ao qual recorremos, escrito por Reinhart Koselleck, teve um papel fundamental na elaboração desse artigo, na medida em que fundamentou uma noção de História sem a qual seria impossível, para qualquer historiador, formular uma releitura crítica acerca dos eventos que se processaram em Alagoas e no Brasil, após o 13 de maio de 1888. Assim, novas perspectivas desenham novas perguntas, para as quais somos orientados a buscar novas respostas. Naturalmente, voltar ao 13 de maio e aos eventos posteriores a ele, diz muito respeito ao tempo de vida que nos toca viver; um tempo no qual os negros no Brasil ainda encontram enormes obstáculos para terem acesso à educação digna, moradia, saúde, educação e, principalmente, ao ensino universitário. Essa situação de exclusão a que os povos de matriz africana ainda hoje se encontram, mesmo passados tantos anos da abolição da escravidão, é o elemento que fundamenta as perguntas e as hipóteses que forjam a espinha dorsal desta pesquisa, que ainda se encontra na sua fase embrionária. A dimensão da temporalidade se soma aqui a uma dimensão qualitativa pela qual o historiador se assume, ele mesmo, como resultado de um processo histórico, patrimônio de todas as experiências vivenciadas e, que a partir dessas mesmas experiências, desenha um horizonte de perspectivas; a partir das quais constrói e dá materialidade à sua produção historiográfica. Quanto a Burke, o artigo tem para com o teórico uma dívida impagável, pois deriva do seu texto a percepção de que seria impossível produzir uma nova concepção acerca do 13 de maio sem fazer uso das categorias e conceitos tão bem apresentados por ele e que, por muito tempo, soavam tão pouco familiares a nós historiadores. Aqui nos referimos à resistência, movimentos sociais, poder, hegemonia. É fundamentalmente o presente e as inquietações derivadas do ambiente socioeconômico, no qual nós historiadores estamos inseridos, que promove o reencontro com o 13 de maio e irriga a principal hipótese que pretendemos sustentar, a saber, que a materialidade jurídica da liberdade se deu, simultaneamente, à implantação de um arcabouço também jurídico e político que impediria a materialidade real de uma liberdade, que pudesse ser tomada como sinônimo de igualdade. Contudo, tal constatação que hoje se apresenta diante de nós, como algo relativamente óbvio, como uma nuvem cinzenta a nos anunciar a chuva, durante muito tempo foi obstruída por uma eficiente estratégia de silenciamentos, que permeavam uma produção historiográfica responsável por introjetar no imaginário das pessoas 45 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X a ideia de que a abolição teria redimido o Brasil do seu passado escravista e elevado os antigos cativos a uma cidadania plena e universal. A partir da leitura de Peter Burke, entendemos ser possível enriquecer as hipóteses e argumentos sustentados no artigo, fazendo uso de duas categorias já há muito tempo trabalhadas, principalmente na sociologia, e que só recentemente passaram a ser usadas de forma mais sistemáticas pelos historiadores. Utilizando a categoria papel social, se torna possível entender como a abolição formal da escravidão não alterou de forma qualitativa os papeis que a elite brasileira atribuía aos libertos, na medida em que todo papel social é uma construção histórica e construções históricas não podem ser criadas, tampouco devem ser abolidas por decretos. A história contada a contrapelo que, embrionariamente, motivou esta pesquisa, constata que mesmo após o 13 de maio, a sociedade brasileira continua atribuindo aos ex-cativos, o mesmo papel social, o qual projetava a figura do negro e até certo ponto o reduzia à condição de trabalhador braçal, forte; porém, atrofiado intelectualmente, como aquele Hérculesquasímodo a quem se referia Euclides da Cunha, inapto a desempenhar papéis para os quais seria necessário supostamente maior elaboração teórica e mental. Tal papel social parece querer retirar dos recém libertos a mais genuína de todas as capacidades humanas, que vem a ser a própria capacidade de teleologicamente poder objetivar suas ideias, de pensar, aquilo a que Sócrates se referia como diálogo silencioso, que todo ser humano é capaz de produzir consigo mesmo. Ao trabalhar com a categoria identidade, compreendemos, ainda que de forma inicial, que a construção de uma identidade nacional pressupunha uma abordagem na qual negros, índios, mestiços e brancos constituiriam um amálgama, que resultaria na formação do povo brasileiro sintetizando, assim, uma riqueza multiétnica e multicultural que, sistematicamente, busca traduzir em forma de “democracia racial” e consensual um Brasil que jamais existiu, nem antes, nem após o 13 de maio. Poderíamos citar inúmeros pensadores que se inclinaram a essa abordagem, mas talvez, o símbolo maior da concretude dessa ideia tenha sido Gilberto Freyre através, da sua obra épica, “Casa grande e senzala”. Afirmar o Brasil como nação multiétnica e multicultural, não é o mesmo que afirmá-lo como palco de democracia racial. O uso dessas duas categorias, extraídas da obra de Peter Burke, nos foi muito útil para iniciar um processo de desconstrução das bem-sucedidas estratégias de silenciamento que marcaram nossa produção historiográfica e que, até hoje, são 46 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X amplamente reproduzidas, na literatura, na teledramaturgia, na produção de matérias jornalísticas e na produção de consensos dentro e fora das produções acadêmicas. Breves apontamentos do contexto do 13 de maio de 1888 O termo História, como ademais quase todos os outros termos, é permeado de polissemias. Contudo, duas delas nos convidam a uma reflexão para o debate que desenvolveremos neste artigo. Aqui nos referimos ao termo História quando relacionado à existência a que cada ser humano é chamado a viver; e o termo história enquanto produção intelectual, quando visa resgatar essas mesmas existências, tanto numa dimensão coletiva quanto individual. O presente artigo pretende investigar, com a devida cautela necessária, quando se trata de terminologias tão polissêmicas, uma das mais relevantes existências coletivas que contribuíram para nossa formação étnica e cultural, sobretudo, quando essa existência coletiva foi supostamente promovida a um novo estatuto sociojurídico. Nessa aparente promoção, uma elite econômica e intelectual pretendia redimir a nação e a si mesmo de um patamar civilizatório que predominou durante quatro séculos e do qual essa mesma elite agora se envergonhava; pois, ele revelava diante do mundo o seu atraso cultural. Quanto a isso, é importante enfatizar que o 13 de maio de 1888 aparece numa parte considerável da historiografia nacional como objeto suspenso no ar, um ponto sem nexo com um passado permanentemente silenciado e, com um futuro que começa a ser construído na manhã seguinte, sob uma lógica sistemática de silenciamentos, cuidadosamente construídos: “uma vez abolida a escravidão, a codificação civil tardiamente realizada se fez a partir de um silêncio, ainda assim racializante, sobre o passado escravista” (MATTOS, 2002, apud, ALBUQUERQUE, 2009, p.123.) No ensaio proposto, teremos como foco os elementos de silenciamento que permeiam a construção historiográfica brasileira no pós 13 de maio. A partir desta data começa a ser empreendido um esforço, por parte das nossas elites econômicas e intelectuais, no sentido de edificar, no imaginário coletivo da população brasileira, a ideia de que a abolição e todo o fundamento jurídico e político institucionalizado, a partir dela, produziria uma cidadania universalizada e horizontalizada, da qual todos os elementos constitutivos da identidade nacional poderiam usufruir. Sobre esse aspecto, é também importante observar que a horizontalidade almejada, a partir da inserção na esfera da cidadania de elementos que haviam 47 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sido historicamente marginalizados, exigia uma engenharia discursiva que, a princípio, transformaria esses mesmos elementos em heróis míticos, de uma identidade nacional multifacetada e que, agora, passaria a ser objeto de exaltação e ufanismos. Contudo, como já havíamos alertado no início, a história enquanto existência real, não se confunde com História enquanto produção intelectual sobre existências vividas. Na prática, a vida dos ex-escravizados beneficiados pela abolição e, até mesmo dos chamados “homens de cor” que já não vivenciavam a experiência do cativeiro, se transformou num mosaico de tentativas de inserção social. A inclusão, entretanto, foi obstruída na prática por direcionamentos jurídicos e políticos que visavam neutralizar as possibilidades de universalização da cidadania, que eram propagadas nos discursos oficiais e na maioria das narrativas produzidas pela nossa elite intelectual. É sobretudo, nessa outra história, ou seja, a história enquanto existência vivida que encontramos o uso frequente e sistemático do termo vadiagem, como instrumento através do qual, suscintamente, a elite procurou instrumentalizar toda uma pulsão de poder para neutralizar as possibilidades de acesso a uma cidadania plena e real a sujeitos que, teoricamente, estavam elevados a condição de cidadãos no marco jurídico legal. O termo vadiagem, na prática, condenava os recém elevados a condição de cidadãos a mutilarem a sua identidade cultural como pressuposto fundamental, se quisessem gozar do estatuto de cidadãos de segunda categoria. Ora, não há cidadania concebível quando a expressão cultural de um povo passa a ser tipificada em códigos criminais. O que se tem nesse caso é um processo objetivo e consciente de silenciamento das manifestações de um povo, que se reverbera numa duplicidade de silenciamentos, na medida em que uma ampla parte da produção historiográfica, sobretudo aquela ligadas à tradição positivista, corroborava o silenciamento que já se materializava na existência real desses indivíduos. Pós-abolição em Maceió: revisitando a historiografia do período entre 1880 e 1910 A produção historiográfica, apesar das incursões de silenciamento, era facilitada por uma vasta fonte documental, que era facilmente manipulada em arquivos públicos e, ainda hoje, pode ser revisitada por aqueles que se debruçarem sobre os jornais da época. No fragmento abaixo extraído do periódico Gutemberg (15/05/1888), em Maceió, percebe-se o quanto a imprensa pressionava as instituições a enquadrarem os ex-cativos na lei de vadiagem. É válido lembrar, ainda, que a edição inicia saudando o 13 de maio, vejamos: 48 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sendo a vadiagem um crime punido pelo artigo 295 do código criminal, recomendo a vmc. haja de providenciar de modo a que sejam obrigados a tomar ocupação lícita os vadios e vagabundos existentes nesse termo, compelindo-os pelos meios legais, nos termos do artigo 111 do regimento de 31 de janeiro de 1842. Se os vadios e vagabundos forem libertos deverá vmc. dentro de um prazo razoável, que lhes marcará, obrigá-los a empregarem-se, ou a contratarem seus serviços. Se, porém, terminar esse prazo sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da polícia, deverá vmc. comunicar o juiz de órfãos para os devidos fins, de conformidade com o art. 3° da lei de 28 de setembro de 1885 (GUTEMBERG, 15/05/1888). De acordo com Albuquerque, antevendo o caos social que poderia ser gerado, a “atuação policial se intensificou, nos momentos últimos da escravidão e imediatamente no pósabolição, revelando as tensões geradas com a iminente desarticulação do escravismo” (2009, p. 181). Além disso, chama a atenção o fato de a matéria ter sido produzida com tanta brevidade e guardar tão pouca distância com o 13 de maio. Isso nos leva a especular que o triunvirato constituído pela imprensa, instituições jurídicas-militares e elite econômica passa a desempenhar a base fundamental sobre a qual a historiografia da chamada Primeira República passa a ser produzida. O mesmo periódico vem à tona no dia 10/01/1883 para pressionar as instituições, sobretudo o aparato policial, a aumentarem o seu manancial repressivo sobre o povo negro, que, numa estratégia discursiva também cuidadosamente pensada, passava a ser associado à violência e gatunagem, termo muito comum na época, para se referir a prática de assalto e pequenos furtos: Desenvolve-se assustadoramente a gatunagem nesta capital; a polícia tem feito algumas prisões, porém que não são bastantes para reprimir vadios e contê-los na desregrada vida que levam. Em cada canto da cidade, encontra-se grupos de peraltas, gente suspeita, sem meio de vida conhecido e que, entretanto, faz alarde da mais invejável abundância de notas do tesouro de que trazem repletas algibeiras. Se a polícia se lembrasse de fazer assinar termo de bem 49 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X viver esses sevandijas [parasitas e vermes] sempre que fossem presos... talvez melhora-se este estado de coisas. (GUTEMBERG, 10/01/1883) O que esperar de uma produção historiográfica que se propõe a reproduzir de forma acrítica essas fontes jornalísticas, sem transformá-las em nenhum momento em um objeto de reflexão? A sintonia entre fonte documental e produção historiográfica era tão grande que se assemelhava ao alfaiate que faz roupas sob medida para seu cliente. A historiografia que sustentava a ideia, segundo a qual, os negros eram seres humanos atrofiados, supostamente, pertencendo a uma raça inferior, é aquela que dialoga com fontes documentais que reproduzem diariamente a mesma ideia. Sem nenhum receio de ser repetitivo, recorremos ao mesmo periódico, o artigo de opinião pública no Gutemberg, quando, no dia 15/05/1909, questiona o patamar civilizatório do povo negro e introjeta no imaginário do seu leitor a ideia de que esses indivíduos estariam hierarquicamente numa escala civilizatória inferior as demais: Desejava agora que o dr. Ferreira Pinto me explicasse como os indígenas e africanos introduzidos em nosso meio social influíram para o desenvolvimento de nossa cultura moral? O que sei de taes raças é que são as mais inferiores e retrogradadas da escala ethnica e, por conseguinte incapazes de qualquer que seja o acto moral a que não seja uma religião estupida própria das mais baixas raças humanas. (GUTEMBERG, 1909) É sempre bom lembrar que essa escala civilizatória composta por camadas hierárquicas era utilizada como base discursiva que estabelecia o acesso dos sujeitos sociais aos direitos e benefícios promovidos pelo Estado. Nosso trabalho, adquire dessa maneira, também o caráter de prospecção semiótica, na medida em que, todo termo enuncia e ao mesmo tempo apaga ou refrata parte da realidade que pretende retratar, como bem nos alertou Jaques Derrida, a palavra jamais vai dar conta do objeto em si que aspira revelar. Nesse sentido, o termo vadiagem enuncia que os sujeitos podem participar da festa, desde que assumam e internalizem os comportamentos e práticas que as elites esperam deles e, ao mesmo tempo, o termo silencia quanto à estratégia adotada após o 13 de maio, para manter 50 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sob forte sujeição os atores sociais que institucionalmente haviam sido libertados do cativeiro. Fica claro, portanto, que liberdade não pode ser confundida com igualdade. Um episódio ilustrativo, daquilo que queremos abordar, ocorreu em terras alagoanas, no início do século XX. A abolição da escravidão ensejou, principalmente, na capital e em seguimento conservadores ligados ao clero católico, um sentimento de profunda rejeição às manifestações culturais, ligadas aos povos de matriz africana. O personagem que melhor simbolizava esse sentimento de repulsa, que emanava das camadas conservadoras, era um político de baixa penetração no interior do Estado, mas que conseguia certa densidade na capital, chamado Fernandes Lima. Galvanizando em torno de si, parte desse eleitorado católico, Fernandes Lima articulou movimentos que recorreriam a práticas violentas para reprimir as manifestações religiosas dos povos de matriz africana. Contudo, a complexa engenharia socioeconômica implantada no Brasil, no pós 13 de maio, fazia com que alguns líderes tentassem se equilibrar, mantendo relações muitas vezes orgânicas com lideranças religiosas de matriz africana, como foi o caso de Euclides Malta. Transitando num populismo de matriz embrionária que tinha como finalidade última a consolidação do seu projeto político, Euclides Malta procurou garantir proteção aos seguidores e simpatizantes do Candomblé. Interessante observar aqui a instrumentalização do conceito de vadiagem em nome de projetos políticos abertamente conservadores. Marques tece relevante consideração relativa ao conflito perpetrado por estas figuras: Compreender o episódio apenas como uma querela política entre Fernandes Lima e Euclides Malta, é no mínimo um olhar reducionista. Haja vista, que mecanismos de controle social dos negros e a criminalização de suas religiosidades e culturas vem desde os tempos da escravidão, sendo atualizados e “sofisticados” pelos grupos dominantes no poder a partir de 1888. (2020, p.13) Para além das querelas políticas que envolveram esses dois representantes, se camufla a estratégia bem-sucedida de silenciamento das religiões de matriz africana que, consequentemente, potencializaria os mecanismos mutilantes dessas manifestações culturais. A evolução dos acontecimentos produziu em Alagoas um dos episódios mais chocantes de violência religiosa da História do nosso país e, aqui me refiro aos fatos que resultaram no 51 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Quebra de Xangó, conhecido movimento de violência contra os terreiros praticantes e simpatizantes do candomblé em Maceió. A consequência desse episódio em nosso Estado é, ainda hoje, objeto de pesquisas históricas e estudos de antropologia do mundo inteiro. O “xangô rezado baixo” é uma modalidade de liturgia umbandista que não se verifica em outros Estados da Federação. A prática litúrgica mais discreta, utilizada pelos praticantes do candomblé que permaneceram em Alagoas, se enquadra tanto numa forma de resistência por parte daqueles que, corajosamente, não estavam dispostos a mutilar suas manifestações culturais, quanto de silenciamento; pois, o metamorfoseamento de uma manifestação cultural, por uma prática exógena, não deixa de ser uma evidência do triunfo de um etnocídio, legitimado à época inclusive por agentes estatais. Um historiador minimamente perspicaz e distanciado de uma interpretação rankeana da história, saberia diferenciar a fronteira que separa o mundo real do mundo legal. O mundo real se desenvolve com a sua dinâmica própria, enquanto o mundo legal busca refleti-lo, muitas vezes, com um certo atraso. Contudo, no caso específico que agora é objeto de nossa análise, o mundo legal se apressou a estabelecer uma sintonia com o mundo real. A legislação sobre a vadiagem se apressou a dar contornos jurídicos e criar um marco legal sobre algo que, na prática, já se materializava de muitas maneiras, como é possível notar no estabelecimento dos critérios dispostos no artigo 399, do Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, Código Penal da época, transcrito conforme o texto original: Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes: Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias. Ao estabelecer o critério da empregabilidade comprovada, da comprovação oficial de domicílio e a criminalização aberta de práticas culturais como a capoeira, a lei da vadiagem se tornava, assim, um anômalo caso no qual o Estado se propunha a analisar de forma coercitiva práticas que, em grande parte, eram decorrentes da sua própria ingerência; na medida em que a 52 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X lei áurea de 1888 não criou as condições necessárias para que os libertos pudessem ter acesso a emprego digno, moradia e terra. A necessária reescritura do pós abolição A reescritura desta história é necessária e, a nosso ver, pressupõe uma minuciosa atividade pela qual os silenciamentos e os atores sociais silenciados possam ser libertados das cadeias da quais foram aprisionados e, a partir desse exercício de escutar quem não foi ouvido, tem-se um resgate das consciências individuais e coletivas, que não puderam se expressar, pois foram, cuidadosamente, diluídas numa cidadania, supostamente universal, mas que não se materializou efetivamente em inclusão socioeconômica e cultural. Que elementos desta historicidade permeada de silenciamentos, condicionam a vida dos descendentes de escravos no Brasil contemporâneo? Quando olhamos para o Brasil atual imbuídos do sentimento de formular respostas para esta pergunta, nos deparamos com um terreno no qual as práticas de manifestações culturais do povo negro, embora não sejam mais objeto de coerção jurídica e policial no campo formal, ainda são amplamente criminalizadas ou marginalizadas por uma parte considerável da nossa sociedade. Nesse sentido, afirma Miranda: História e memória são territórios em permanente disputa. Relegar o outro – o diverso – ao silêncio e à invisibilidade é uma forma de mantê-lo subjugado, excluído. As produções simbólicas e intelectuais que poderiam reconectá-lo com valores e laços de identidade são, muitas vezes, soterradas, escondidas. Ao restringir ou interditar o direito à palavra, compromete-se também a possibilidade de inventar, difundir e modificar existências (MIRANDA, 2019, p. 08) Em conformidade com o autor supracitado, não entender a relação entre a construção historiográfica que ora examinamos e o grau de preconceito que determinadas manifestações culturais ainda sofrem no Brasil é ignorar que o termo vadiagem já não tipifica mais um crime estabelecido pelo código penal, mas tipifica um olhar que uma parte da nossa sociedade incorporou, a respeito de práticas que ela considera incompatível com um modelo de sociedade que quis construir no pós 13 de maio. A república instituída em 1889 tornava-se desta forma uma espécie de camisa de força, mais adequada do que a própria monarquia para 53 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X legitimar os dispositivos de contenção pelos quais os libertos seriam mantidos sobre controle numa liberdade que jamais se traduziu em igualdade e inclusão. Faz-se necessário pontuar a influência da tradição positivista e de uma análise rankeana da história no processo de produção da república brasileira. Os indivíduos libertados no pós 13 de maio, e mesmo aqueles que já usufruíam deste status antes dessa data, não estavam habilitados para o mundo do trabalho que se projetava, para uma sociedade que pretendia se guiar por um movimento de inércia que se expressava da palavra ordem e outro de dinâmica que se expressava através da palavra progresso. O progresso como pressuposto da manutenção da ordem, se materializaria em formas de trabalho para os quais os antigos cativos não estariam aptos, por conta das suas limitações intelectuais e até mesmo “genéticas”. Daí que, então, os sujeitos seriam quase que mecanicamente condenados a levar, não como escolha própria, e sim por obstáculos estabelecidos pelo liberalismo vigente, a vida de vadiagem da qual eram acusados. Curiosa situação na qual o próprio Estado, através de seus mecanismos, condena os indivíduos a uma forma de vida e, ao mesmo tempo, tipifica essa situação no código criminal. Curioso é também observar como a produção historiográfica de alguma maneira se reorienta para estudar o passado escravista; mas, ao mesmo tempo passa a ignorar o presente, no qual os ex-escravos agora elevados a condição de cidadão livres, permanecem aprisionados; porém, com outras correntes pelas mesmas elites. Uma outra abordagem reveladora sobre essa estratégia bem-sucedida de silenciamentos é analisar como os movimentos feitos pelos antigos cativos, para romper as amarras jurídicas econômicas e políticas, após o 13 de maio, desapareciam com frequência dos arquivos oficiais ou, eram escritos com outras roupagens na historiografia e na literatura produzida e direcionada para uma casta econômica e intelectual. Um bom exemplo disso, pode ser extraído de um clássico da literatura nacional. Aqui nos referimos a Euclides da Cunha que, no seu épico, “Os sertões”, enuncia com certo ufanismo o homem preto do sertão como um Hércules Quasímodo. Uma expressão que enseja ao mesmo tempo uma visão positiva e simultaneamente depreciativa acerca dos mesmos sujeitos. Hercules é a expressão que denota força, enquanto Quasímodo faz referência ao ser esteticamente e fisicamente atrofiado, no qual a força só pode se manifestar no ambiente do sertão, tal como o corcunda, o qual toda utilidade se esvairia, se fosse retirado da sua monótona 54 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tarefa de badalar os sinos de Notre Dame. Esse homem negro do sertão, então, é belo e até apreciável, desde que permaneça no sertão, desde que não se arrogue em se aventurar pelos espaços dos quais não foram convidados. Não seria essa uma cuidadosa e bem-sucedida estratégia de silenciamento? Considerações finais Tomando como base todo o exposto, nos propomos a refletir uma pesquisa que, em seu caráter ainda muito embrionário, se apodera de alguns instrumentais teóricos com aspiração de escrever uma história a contrapelo, no sentido benjaminiano que essa expressão permeia. Um fato pouco conhecido daqueles que transitam pelas ciências humanas é que Walter Benjamim (2020) por muito pouco, não assumiu uma cadeira de professor titular da universidade de São Paulo, o que certamente o teria colocado diante da realidade que é objeto de reflexão deste texto e que ele não conheceu. Tivesse ele conhecido essa história, certamente teria proposto que ela fosse reescrita. Este trabalho buscou abordar a identidade negra alagoana, no final do séc. XIX e início do séc. XX, considerando este um período de transição e de crises em que, por meio da construção história e da legislação, os negros foram tidos como vadios e suas práticas, consequentemente, deveriam ser reprimidas, a exemplo da Quebra de Xangô. Para melhor compreensão dessa historiografia do país e do aparato jurídico como mecanismos ratificador, utilizamos fontes como o periódico Gutemberg e o Decreto n.º 847/1890. Concluímos, embrionariamente, que a cidadania, constitucionalmente estabelecida ao negro, gerou somente aparente igualdade formal, uma vez que a sociedade continuou a subalternizá-lo, sendo necessária a reescritura dessa historiografia para revelar e, ao mesmo tempo, combater os silenciamentos. Sendo este um artigo que visa estabelecer conexões entre o objeto da nossa pesquisa e os fundamentos teóricos que foram abordados na disciplina de Teoria e Metodologia, ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFAL e ministrada pela professora Irinéia Maria Franco dos Santos, entendemos que a própria pesquisa ganhou novos contornos e abriu diante dela própria novas possibilidades de horizontes e perspectivas. Assimilamos a compreensão de que o grande elemento enriquecedor para o projeto em si se dá no instante em que ele incorpora a noção de História, enquanto construção produzida no espaço tempo presente e permeada por uma noção sólida de temporalidade, na qual as 55 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X interrogações decorrentes das circunstâncias vivenciadas pelo historiador retiram o passado do seu casulo hermenêutico e o transforma em objeto, permanentemente aberto, a novas interpretações. As conjecturas suscitadas por novas problemáticas só podem ser produzidas pela ação ininterrupta do tempo, quando este se materializa em forma de presentes vivenciado por aqueles que querem e até mesmo para quem seria conveniente laçar o passado, numa masmorra da qual convenientemente, ele não deveria tê-la retirado. Referências ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhias das Letras, 2009. BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito de história / Walter Benjamin; organização e tradução Adalberto Müller, Márcio Sleligmann-Silva. I ed. São Paulo: LAMEDA, 2020. BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm. Acesso em: 17 set. 2021. BURKE, Peter. História e teoria social / Peter Burke; tradução Klauss Brandini Gerhardt, Roseneide Venâncio Majer. São Paulo: Editora UNESP, 2002 [1991]. MARQUES, Danilo Luís. Entre a Abolição da Escravidão e o Quebra de Xangô: cultura e sociabilidade negra em Maceió (1880-1910). In Anais Eletrônicos do XXV Encontro Estadual de História da ANPUH, São Paulo, 2020, p. 01-13. Disponível em: https://www.encontro2020.sp.anpuh.org/resources/anais/14/anpuh-sperh2020/1590619620_ARQUIVO_43cb68013eeee81d6fab99af8a03b509.pdf. Acesso em: 12 ago 2021. MIRANDA, Danilo Santos de. Prefácio: Em busca de história e tesouros ocultados. In: DOMINGUES, Petrônio. Protagonismo negro em São Paulo: história e historiografia. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019. REINHART, Koselleck; et al. O conceito de História, tradução René E. Gertz. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013 [1975]. 56 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Quilombos urbanos na Paraíba: a cultura, a resistência e a luta do povo preto paraibano Kynara Eduarda Gonçalves Santos48 J. Jonas Mangueira49 Ana Maria Veiga 50 Resumo: Entendendo o quilombo urbano contemporâneo como um espaço de resistência onde os/as negros/negras podem desenvolver sua cultura e religiosidade por onde se fazem presentes no território brasileiro, e sendo a cidade de João Pessoa - PB constituída por 58% de pessoas pardas e 8% de pessoas pretas, a intenção deste trabalho é discorrer acerca dos quilombos urbanos pessoenses e entender sua trajetória e contribuição para a história, a cultura e a resistência negra paraibana. Para alcançar tais objetivos, a metodologia escolhida é de uma pesquisa qualitativa e bibliográfica nas plataformas digitais. Foram pesquisados dois quilombos urbanos da cidade de João Pessoa: o Ateliê Multicultural Elioenai Gomes e a Casa de Cultura Vó Mera. A partir desses dois quilombos, foram analisados a atuação, a história, os objetivos e os conflitos do povo preto paraibano nesses espaços. Palavras-Chave: Quilombos contemporâneos; Cultura negra; Paraíba; Negritude. Introdução A palavra quilombo origina-se do vocábulo quimbundo kilombo e significa o aldeamento de escravizados fugidos, como também acampamento, arraial, povoação e união51. O quilombo surgiu como uma resistência ao período escravista, uma alternativa para os negros se tornarem livres das amarras do colonialismo e do escravismo. No Brasil, muitos quilombos foram criados, sendo o mais famoso o Quilombo dos Palmares, no estado de Alagoas, que esteve em atividade no período entre 1595 e 1695, e foi considerado o maior espaço de resistência de escravos durante mais de um século no período colonial. 48 Autora. Universidade Federal da Paraíba. Graduanda em Licenciatura em História. 49 Coautor. Universidade Federal da Paraíba. Graduando em Direito. 50 Orientadora. Universidade Federal da Paraíba. Professora doutora. Ver Nei Lopes. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 4 ed. São Paulo: Selo Negro, 2011. 51 57 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Segundo Candeia e Isnard (apud NASCIMENTO, 1985, p. 26) o quilombo nasceu da necessidade de se preservar toda a influência afro na cultura brasileira, uma herança que foi negada pelos brancos, que buscaram apagar a cultura negra presente na construção do Brasil como nação. De acordo com Lélia Gonzalez (1988, p. 69), se olharmos a formação históricocultural do Brasil, podemos perceber que o país não é aquilo que reiteradamente se afirmou: um país cujas formação do “inconsciente” é exclusivamente europeia e branca. Ao contrário, ele é, em muito maior escala, parte de uma América Africana, ou Améfrica Ladina, como afirma Gonzalez (1988) inspirada em Magno e na psicanálise. Ou seja, o Brasil é analisado pela autora como um país que se olha no espelho e não se enxerga como ele realmente é: um país negro e indígena. Porém, a luta e a resistência dos amefricanos52 proporcionou uma permanência cultural, dos saberes e de vestígios linguísticos, com suas variações que chegam à atualidade, naquilo que Lélia Gonzalez denomina o pretuguês. O povo preto resistiu às pressões culturais da sociedade dominante e foi submetido aos mais diversos tipos de violência, incluindo a religiosa, que impunha o batismo assim que os escravizados chegavam aos portos brasileiros. Segundo Abdias do Nascimento (1985), desde o início da colonização, as culturas africanas foram mantidas num verdadeiro estado de sítio. A mito da “democracia racial”, que predomina até hoje no Brasil, tenta transmitir a ideia de que neste país há uma convivência harmoniosa entre todas as raças e culturas, exaltando a mistura pacífica das raças, escondendo que a mestiçagem (MUNANGA, 1999) é fruto do estupro de mulheres negras e indígenas, e omitindo os dados que expõem as prisões e mortes, o desemprego e a miséria em que vive a população negra brasileira. A Paraíba, apesar de não ser um grande ponto de desembarque dos africanos, possuía uma pequena população africana que se fixou e reconstruiu a vida na província (GUIMARÃES, 2013). Essa presença negra foi por muito tempo desvalorizada pelos grandes pesquisadores e revistas da época da escravidão e da pós-abolição, que pretendiam afirmar que a população negra existente até o século XIX não contribuía com a cultura local ou com a mestiçagem. De acordo com Rocha (2007), em 1798, a maioria da população da Paraíba era composta por negros, 60,2%. De 122.407 habitantes, 73.794 eram negros, sendo divididos em Termo criado pela intelectual Lélia Gonzalez, para designar os nascidos nas Américas, o termo “americano”, para autora, tem implicações políticas e culturais democráticas, pois permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico. A palavra traz a América como um todo e incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural que é afrocentrada. 52 58 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 61.458 pardos e 12.336 pretos. A maioria dos negros era livre (56.161) e havia uma minoria de escravos (17.633). Esses dados sobre uma população tão expressiva de negros, sobretudo livres, vai de encontro às informações publicadas nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP), um dos importantes espaços institucionais nos quais se produziam discursos sobre a população negra na Paraíba. Porém, muitos autores que escreviam para o IHGP retratavam a população negra na Paraíba como uma parcela insignificante dos habitantes. A população negra paraibana sempre existiu, embora historiadores e jornalistas não estivessem preocupados em mencioná-los. A historiografia dominante também foi atravessada pelo racismo que estrutura a sociedade brasileira, o que resultou na invisibilidade dessa população e na pouca produção acadêmica e midiática sobre as pessoas negras no estado. Essa história oficial foi escrita para glorificar os governantes: a classe dominada quase não era citada. (HOBSBAWM, 1998). Diante disso, a presente pesquisa busca localizar os quilombos urbanos contemporâneos existentes e resistentes na Paraíba, perquirir acerca de sua importância e contribuição para a cultura negra. Nesse intuito, foi utilizado o conceito trazido por Lopes (2011, p. 1182) de quilombos contemporâneos. Segundo o autor, são [...] comunidades em que os habitantes se identificam por laços comuns de africanidade, reforçados por relações de parentesco e compadrio, e pela antiguidade na ocupação de sua base física (fundamentada em posses seculares e tradições culturais próprias), dentro de um sistema que combina apropriação privada e práticas de uso comum, em uma esfera jurídica infraestatal. Segundo a Associação Brasileira de Antropologia, a expressão define “toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos, vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado”. No filme Ôrí (1989), as escolas de samba, os terreiros de macumba, de candomblé, são definidos como os quilombos da atualidade, “os quilombos do século XX”. Seguindo tais conceitos, consideramos como quilombos urbanos do século XXI na Paraíba as casas de cultura, escolas de samba, grupos de capoeira, locais de afetividade ligados à arte e à cultura, que resgatam e fortalecem a negritude, como também lutam para melhores condições de vida para a população negra. Para além disso, tais grupos e instituições demonstram que o 59 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X quilombo, a partir do século XIX, passou a ter significado de um instrumento ideológico contra as mais diversas formas de opressão. Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro, sinônimo de comportamento do negro e esperança para uma melhor sociedade. Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural. Tudo, de atitude à associação, seria quilombo, desde que buscasse maior valorização da herança negra (NASCIMENTO, 2006, p. 124). A cultura paraibana tem uma intrínseca relação com a cultura africana, haja vista a marca da história da população negra nesse estado desde a época da escravidão. Nesse sentido, não podemos discorrer sobre a cultura da Paraíba, de modo especial sobre a cultura de João Pessoa, sem nos reportarmos à cultura afro-brasileira (ROCHA, 2007; FLORES, 2011 apud OLIVEIRA, 2019, p. 52). Oliveira (2019, p. 62) afirma que as manifestações culturais da Paraíba são, antes de tudo, práticas sociais e inventariadas a partir da cultura dos afrodescendentes. Metodologia De acordo com Alyrio (2009), a pesquisa bibliográfica tem como atividade básica a investigação de material teórico sobre o assunto de interesse. E é o passo inicial na construção efetiva do processo de investigação, quer dizer, após a escolha de um assunto é necessário fazer uma revisão bibliográfica do tema apontado. Essa pesquisa auxilia na escolha de um método mais apropriado, assim como no conhecimento das variáveis e na autenticidade da análise. É também um trabalho que se diferencia do levantamento de campo porque busca informações e dados disponíveis em publicações – livros, teses e artigos –, de origem nacional ou internacional, e na internet, realizados por outros pesquisadores (RODRIGUES, 2007). Na presente pesquisa foi utilizado o método qualitativo, que é o estudo de um objeto, buscando interpretá-lo em termos do seu significado. Neste sentido, a análise considera mais a subjetividade do pesquisador. O objetivo é considerar a totalidade, e não dados ou aspectos isolados (ALYRIO, 2009). Diante disso, para chegarmos aos objetivos, a metodologia escolhida é uma pesquisa bibliográfica nas plataformas digitais. Inicialmente, foi realizado um levantamento bibliográfico 60 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X objetivando embasar teoricamente o objeto de estudo, aprofundando o conhecimento a respeito dos quilombos, da chegada dos negros na Paraíba e da relação entre a cultura negra e o cenário paraibano, até os dias atuais. Ademais, foram utilizados artigos, livros e teses sobre os quilombos urbanos abordados, bem como a busca nas redes sociais para sabermos as atividades realizadas pelos quilombos, sua formação e trajetória. Para alcançar o objetivo proposto, questões norteadoras foram levantadas para nos guiar diante da imensidão de histórias e conteúdo que cada quilombo possui; são elas: o surgimento, o objetivo, as atividades desenvolvidas, o público, a importância para a cultura negra, a presença de elementos da negritude e o impacto da pandemia. Foram realizadas também visitas aos quilombos urbanos para conhecer e fotografar os espaços e atividades. Resultados e discussões A partir da metodologia utilizada, localizamos e aprofundamos nossa pesquisa em dois quilombos urbanos contemporâneos, sendo eles: o Ateliê Multicultural Elioenai Gomes e a Casa de Cultura Vó Mera. Trazemos ainda a atuação do Fórum de Artistas Pretes da Paraíba. Esses espaços foram escolhidos por se alinharem ao significado de quilombo contemporâneo, já citado anteriormente. De acordo com Reis (2020, p.17), “o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico, mas o território a nível duma simbologia. [...] A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.” Esses lugares reúnem pessoas negras a fim de propagar aspectos da cultura, como danças afro-brasileiras, tranças afro, músicas, religião, capoeira, entre outros. E também promovem espaços de acolhimento, onde pessoas negras possam trocar afetividades em meio a um país/Estado colonial. O Ateliê Multicultural Elioenai Gomes, é um quilombo urbano fundado em 2005, inicialmente localizado na Ladeira da Borborema, no bairro do Varadouro, centro da cidade de João Pessoa - PB. O espaço foi idealizado por Elioenai Gomes, artista multivisual, bailarino e ativista cultural paraibano, a partir das necessidades pessoais do artista enquanto cidadão que buscava construir coletivamente políticas afirmativas culturais para artistas negros e para a negritude em geral. O artista queria um espaço de referência étnica, com falas, artes, ações, projetos e eventos direcionados ao povo preto. No que se refere ao objetivo, o Ateliê busca o acolhimento afetivo; a partir desse acolhimento, foca-se na identidade do ser, buscando 61 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X resgatar, fortalecer e expandir memórias e histórias utilizando a arte como ferramenta de transformação. O Ateliê desenvolve inúmeras atividades, acompanhando o calendário comemorativo da cidade, do estado e do país. São realizados debates, exposições de artes visuais, performances artísticas, shows, apresentações teatrais e danças. E também eventos como bailes de máscaras, cortejos de tambores, reuniões e ensaios do bloco carnavalesco “Foliões de Ladeira Abaixo”, Festival Aiê, Auto dos Orixás, Festival Zumbi de Cultura Negra, Festival do Africaxé, Celebrando o povo cigano, Sagrado feminino das mulheres capoeiristas, Acolhimento afetivo afroindígena, que são eventos voltados para variados públicos, incluindo estudantes de escolas públicas, privadas, instituições, ONGs, entre outros. Figuras 1 e 2 - Acolhimento Afetivo Afroindígena no Ateliê Multicultural, 2019. Fonte: Instagram. O espaço não só acolhe e promove eventos, como também integra vários grupos de cultura popular de matrizes africanas, tais como a Escola Ilú Odara, Baque Mulher - JP, Associação dos Alas Ursas de João Pessoa, Grupo Kun Dayo e o Raízes, grupo de ritmos e danças afro-indígenas. O Ateliê Multicultural Elioenai Gomes trabalha com diversos segmentos, entre eles estão artistas, ativistas, fóruns e conselhos culturais, feministas, comunidade LGBTQIA+, educadores, turismólogos, pesquisadores, mestras e mestres de capoeira. E atende o público em geral. O gestor, Elioenai Gomes, afirma, em uma conversa informal, que as culturas negra, cigana, indígena e quilombola estão presentes em tudo: no espaço, nas ações e no próprio gestor. Além disso, o espaço é considerado quilombo pela identidade, seus objetivos, pela genética e pela história. 62 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O Ateliê tem sua importância referenciada e é reconhecido por todos os segmentos dos movimentos sociais, pelos parceiros sociais, pelo movimento negro e pela “negrada” que usufruem do espaço. Tornando-se um importante equipamento cultural no combate ao racismo, à intolerância afro-religiosa e a todas as formas de preconceito, além de promover e fortalecer a identidade do povo paraibano. Todas essas atividades eram realizadas antes da pandemia do novo coronavírus. Devido a este fator imponderável, a maioria das ações foram paralisadas ou adiadas, mas, referenciando Milton Nascimento (1981)53, “todo artista tem de ir aonde o povo está”. Por isso, o ateliê inova ao se adaptar ao sistema remoto para realizar algumas ações. Os debates presenciais se tornam, então, lives, e o Auto dos Orixás – um dos mais importantes eventos produzidos pelo ateliê para a cidade de João Pessoa no dia da consciência negra – também ganha o formato digital. Ao indagarmos a respeito dos problemas enfrentados, Elioenai Gomes elencou vários, entre eles o partidarismo das gestões (necessidade de promover o gestor, ao invés da arte); a realidade decadente e degradante do Centro Histórico; a invisibilidade dos moradores do centro histórico; a falta de segurança e a urgência de um policiamento que respeite os agentes culturais, os pontos de culturas e suas ações; a invisibilidade dos fazedores de cultura e arte, incluindo a urgência de políticas públicas culturais; a burocracia para o fazer cultural e a falta de respeito com a sociedade civil, os fóruns e pontos de cultura, pois suas demandas não são ouvidas; e a falta de profissionais capacitados para auxiliar tecnicamente os artistas. Além disso, podemos destacar o desconhecimento dos gestores desses equipamentos culturais quanto à identidade dos artistas, às casas de cultura e à localização de tais pontos culturais, ressaltando o racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) e a intolerância religiosa. O Ateliê localiza-se no centro histórico da cidade de João Pessoa, anteriormente era situado na Ladeira da Borborema no bairro Varadouro. Mas em 2021 ganha uma sede própria, também no centro histórico da cidade, em um prédio de 168 anos de idade que está em processo de restauração. Um ganho não só para o ateliê e para toda a comunidade preta e artística da Paraíba, mas também para a preservação da história do estado. Estando dentro do contexto histórico, político, social e territorial brasileiro, e paraibano, que é colonialista e sofre com o neoimperialismo, o quilombo urbano Ateliê Multicultural BRANT, Fernando; NASCIMENTO, Milton. Caçador de mim. Rio de Janeiro: Ariola, 1981. Disponível em: https://open.spotify.com/album/01zFz4ac6dhTga7MqEonsy?si=7NvVF97ZSqeaGknB0vwUhg&dl_branch=1. Acesso em: 07 set. 2021. 53 63 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Elioenai Gomes se apresenta como um espaço onde a cultura, a história e a arte negra resistem em seu conjunto. Suas ações artísticas persistem, apresentam a cultura negra para uma ampla população que não conhece sua ancestralidade, exaltam e propagam essa cultura, que é marginalizada e demonizada historicamente, além de ser considerada “inadequada” aos editais públicos. Essas ações vão além, ao adentrar o subjetivo para tratar as dores e os traumas, causados pelo racismo e tantos outros preconceitos, a partir da arte negra e sua divulgação. Ademais, o ateliê também promove uma ocupação no centro histórico da cidade e luta para que o centro permaneça vivo, com o uso engajado de seus casarões históricos. Diante disso, vale ressaltar a importância do Auto dos Orixás, uma apresentação anual que ocorre no mês da Consciência Negra e a cada ano tem um tema ligado aos povos originários e às matrizes africanas. Este evento está inserido no calendário paraibano, cuja apresentação é em uma praça histórica, a Vidal de Negreiros, que abriga grandes eventos públicos. Logo, constatamos que o quilombo constrói a memória e a identidade dos negros, a partir do corpo. De acordo com a pesquisa de Reis (2020, p. 16), [...] o corpo seria o grande guardião da memória e o indivíduo seria sujeito e objeto de si mesmo. Os corpos dos negros espelhariam entre si e os corpos se reconheceriam pelo contraste e pelo movimento ou deslocamento do corpo que carrega consigo um território abstrato, uma terra firme no “continente da memória”. Esse corpo, que guarda a memória, se materializa e transforma em espaços que objetivam perpetuar a história e a memória dos negros, através das expressões de arte e estética de matriz africana. O guardião deixa de ser um só corpo e torna-se espaço, com a presença de outros sujeitos, permitindo assim trocas de memórias e saberes. São trocas que também ocorrem na Casa de Cultura Vó Mera, espaço que foi inaugurado em 2017 e localiza-se na rua Bom Jesus, no bairro do Rangel, também localizado em João Pessoa - PB. Tendo uma grande importância na ciranda paraibana, a cantora de ciranda e coco de roda Domerina Nicolau da Silva – a elidada carinhosamente de Vó Mera – já recebeu o título de Mestra das Artes e o troféu de Honra ao Mérito Cultural. Uma atuação que visibiliza a cultura popular e as raízes afro-brasileiras e teve como um dos seus principais 64 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X produtos a criação da Casa de Cultura pela própria cirandeira, com assessoria de sua filha, Mônica Pimentel. Na casa de cultura são realizadas Feijoadas Culturais, que promoviam apresentações artísticas do universo da cultura popular de matriz afrobrasileira. Na maioria das vezes, o evento inicia-se a partir das 12h e se estende até 19h. Segundo Oliveira (2019), no espaço são desenvolvidas práticas e manifestações culturais de matriz afrobrasileira, desenvolvidas pela mestra Vó Mera, que conta com a colaboração das mulheres que integram o grupo cultural Vó Mera e suas netinhas, juntamente com as parcerias firmadas entre grupos de cultura popular e artistas de João Pessoa, Conde e Cabedelo, municípios paraibanos. Devido à pandemia, as feijoadas culturais não estão ocorrendo, porém, a atuação de Vó Mera não parou. Durante o momento pandêmico, é desenvolvido o sopão solidário na casa de cultura, e em breve, quando o contexto permitir aglomeração, o sopão solidário também irá contar com apresentações culturais. Além disso, na casa de cultura são realizadas as lives culturais e os ensaios para as apresentações virtuais. Essas apresentações e atividades atendem a um público eclético, abordando os vizinhos, o “pessoal do rock”, do candomblé e não apenas o pessoal da cultura, relata Mônica Pimentel, em uma conversa informal. A cultura negra está presente em todo o espaço, nas pessoas que compõem o grupo de Vó Mera e suas netinhas, nos ritmos e no acervo de Vó Mera. O intuito é abraçar a cultura negra, trazer e difundir a ancestralidade, a história, a cultura popular e as religiões de matriz afro, e mostrar quem são, guardar essa memória ainda durante a vida de Vó Mera. A casa de cultura não é apenas um espaço de apresentações, é também um acervo histórico-cultural. No acervo, estão presentes instrumentos musicais da cultura popular, como o pandeiro, chocalhos, tambores, entre outros. Também possui no acervo suas medalhas e troféus, instrumentos de trabalho quando ainda atuava na agricultura, figurinos, objetos da cultura popular como chapéus e sombrinhas de frevo. 65 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Figuras 3 e 4 - Acervo Vó Mera, 2021. Fonte própria. O ambiente residencial expõe em suas paredes e cômodos a história da artista que caminha lado a lado com a do próprio coco de roda, da ciranda e demais manifestações musicais populares locais das últimas décadas. Na casa, o público tem acesso a fotos dos eventos em que Vó Mera esteve presente, pode ver roupas utilizadas em apresentações especiais e os já citados instrumentos musicais típicos e tradicionais. Além disso, o espaço é utilizado para receber e apresentar outros artistas da cultura regional (ADYA, Geovanna. apud OLIVEIRA, 2019, p. 69). Figura 5 - Vó Mera e seu mural de fotos, 2021. Fonte Própria. Figura 6 - Ensaio de Vó Mera e o grupo As Calungas, 2021.Fonte Própria. 66 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Segundo Almeida (apud OLIVEIRA, 2019, p. 70), “Os documentos e artefatos pertencentes ao acervo da Casa de Cultura Vó Mera estão relacionados à cultura de matriz afrobrasileira, bem como as ações, práticas e manifestações culturais desenvolvidas pela mestra cirandeira e coquista.” O Acervo da Casa de Cultura Vó Mera é um lugar de preservação da memória tanto dessa artista como das práticas e manifestações culturais (OLIVEIRA, 2019). A casa de cultura é considerada um quilombo urbano, que resgata a história, a ancestralidade e a memória do povo negro por meio da vida e da obra de Vó Mera. Ao se tratar das dificuldades do espaço, nota-se que a ausência de políticas públicas é uma das principais. A falta de investimentos para se conseguir verbas para as atividades, como a contratação de oficineiros, professores e músicos, para atuarem de maneira ainda mais efetiva na comunidade, buscando transmitir os conhecimentos a respeito da ancestralidade ligados à arte. Outra dificuldade é em relação ao espaço/território, pois o imóvel é alugado e as feijoadas culturais arrecadavam dinheiro para o pagamento. Tal qual acontece no Ateliê Elioenai Gomes, a maior dificuldade para a Casa de Cultura Vó Mera neste momento é a pandemia, justamente porque as atividades que proporcionavam o retorno financeiro, foram interrompidas. Diante disso, percebemos que os principais problemas enfrentados são estruturais, sendo o maior deles a falta de políticas públicas voltadas para a cultura afro-brasileira e a luta pelo território. Em se tratando do direito ao território, é importante salientar que o espaço territorial faz parte da cultura de uma comunidade, e pode ser demandado como direito à própria existência (HEINEN, 2011, p. 54). O direito, inclusive, à liberdade de realizar seus ritos, danças e diversas manifestações culturais de forma segura, pois em um país colonial, racista, marcado pela violência policial contra os negros, e artistas negros, o aquilombamento e a luta por melhores condições de vida e pela sobrevivência são sempre necessários. O direito ao território permite também a proteção dos saberes e tradições, pois são nesses espaços que se tem a presença da memória ancestral em forma de resistência com as manifestações culturais, que irão preservar a cultura popular de matriz africana. Heinen (2011, p. 54), argumenta: Portanto, o que está em jogo não é a particularidade dominial, objeto da relação de propriedade (CASTILHO, 2006), mas sim, o valor que as comunidades que ali residem ofertam ao espaço geográfico. Trata-se de um 67 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X valor cultural que perpassa a mera acomodação espacial, enfim, de mera morada. As asserções culturais intensificam a utilização desses espaços, não podendo a legislação desconhecer dessas peculiaridades, sob pena de desconhecer a própria cultura. No que se refere à falta de políticas públicas, ao racismo estrutural e à burocratização do acesso aos editais, um problema enfrentado por todos esses espaços e artistas negros abordados na pesquisa, uma das alternativas foi um aquilombamento maior, com outros integrantes. Durante a pandemia, surgiu um quilombo virtual, intitulado Fórum dos Artistas Pretes da Paraíba. Esse quilombo manifestou-se a partir da necessidade de artistas pretos/as/es da Paraíba se reunirem para discutir os editais e denunciar os descasos para com a população negra artista da cidade. Os agentes culturais dos dois quilombos estudados, fazem parte do Fórum, que objetiva juntar mais vozes para denunciar o racismo estrutural. O Fórum realiza o mapeamento de artistas pretos na Paraíba, como também elabora notas de repúdio e cartas de denúncia ao racismo institucional presente no estado. Últimas considerações A partir do entendimento de que quilombos urbanos são os espaços onde o povo negro se une para resistir e criar esperança entre si, seja por meio da luta política, seja por meio da luta política expressada na cultura, podemos identificar nessa categoria as casas de cultura, os coletivos, as escolas de samba e os grupos de capoeira, entre outros. Sendo assim, mesmo diante de uma tentativa clara de apagamento da população paraibana negra e sua identidade, podemos observar a resistência e o trabalho desses grupos dentro do estado da Paraíba. O Ateliê Multicultural Elioenai Gomes e a Casa de Cultura Vó Mera, em seus respectivos meios de atuação, usam da cultura e da arte como forma de driblar o racismo na sociedade paraibana e se impor mesmo diante da história oficial pregada pelos brancos. Os problemas enfrentados apresentam semelhanças: são derivados do racismo estrutural e estruturante na formação da nossa sociedade e são sintomas diretos de um Estado burguês branco. Ademais, entendemos, por meio deste trabalho, que as ações promovidas por tais pontos de cultura, e pelos quilombos urbanos em geral, fazem parte de uma luta pelo direito territorial e pela liberdade de expressão. 68 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Referências ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Col. 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Paracambi: FAETEC/IST, 2007. 70 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Os debates acerca da escravidão no Brasil na segunda metade do século XIX Lara de Sousa Lutife54 Resumo A presente pesquisa propõe evidenciar as discussões que ocorriam em torno da questão escravista durante a segunda metade do século XIX. Para tanto, optou-se por analisar como estava posta a conjuntura da sociedade naquele período histórico, de modo a perceber as questões políticas, sociais e econômicas que estavam envoltas nessa problemática. Em vista disso, o estudo sobre o que os intelectuais e políticos da época pensavam/escreviam foi basilar para compreender o contexto de discussões sobre a escravatura, a qual foi palco para intensos debates em relação ao abolicionismo em nosso país. Palavras-chave: Escravidão; Debates; Abolição. Introdução No Brasil, o período que compreende os anos de 1850 a 1860 foi marcado por uma gama de acontecimentos importantes, dos quais estava incluso a efervescência dos debates ligados à problemática da escravidão. Isso porque, naquele contexto, o sistema escravista mantinha-se em voga na conjuntura imperial brasileira, embora fossem crescentes as pressões de grupos políticos e intelectuais tanto nacionais quanto europeus que viam a necessidade de findar o regime escravocrata no país, a exemplo do que vinha ocorrendo em outras nações. Contudo, essa estava longe de ser uma vontade unânime, pois também havia aqueles que davam preferência à manutenção do escravismo, uma vez que a maioria não demonstrou abertamente um posicionamento contra o tráfico de escravos. Em vista disso, é preciso dizer que, “quase todos os políticos reconheciam a obrigação moral e legal de terminá-lo, mas temiam as consequências econômicas da medida” (CARVALHO, 2008, p. 300). Sendo assim, as discussões promovidas por aqueles que eram pró ou contra a permanência da escravidão, se configurou em intensos desdobramentos ao longo do período 54 Graduanda do curso de História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, cursando o 8° período. E-mail: laralutife13@gmail.com 71 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X imperial e com maior vigor a partir da segunda metade do século XIX. Nesse cenário, as agitações partiam tanto dos setores econômicos e sociais, quanto dos intelectuais e políticos da época. Isso reforça a ideia de que [...] a década de 1860 foi a mais fértil e agitada de todo o Segundo Reinado. Em nenhuma outra se discutiram tanto a Constituição, o Poder Moderador, o sistema Representativo, as reformas políticas e sociais. Discutiu-se em livros, na imprensa, no Parlamento, em panfletos, em cartas, em conferências públicas. Mais ainda, foi nessa década que se formaram as propostas mais radicais de reforma social e política. (CARVALHO, 2009, p. 15) Tendo isso em mente, buscaremos perceber de que maneira se configuraram o conjunto de acontecimentos e reformas no início da segunda metade do século XIX, sobretudo, com o intuito de compreender através desses eventos como as questões relacionadas à escravidão eram vistas e debatidas nesses diferentes segmentos do Brasil oitocentista. 1. O estabelecimento das leis abolicionistas O início da década de 1850 foi determinante para fervilhar os debates em torno do regime escravocrata, uma vez que algumas Leis referentes ao tráfico de escravos, bem como pela busca da emancipação dos mesmos puderam, ainda que gradualmente, ser promulgadas no país. Entretanto, elas geraram posicionamentos distintos entre os diversos grupos constituintes da sociedade brasileira. Seguindo essa linha de raciocínio, a priori, faz-se necessário destacar as principais leis emancipacionistas que foram estabelecidas ao longo da segunda metade do século XIX com a finalidade de compreender como se deram os conflitos em torno dessas, que foram responsáveis por movimentar as discussões sobre a questão escravista, além de terem feito parte do processo ao qual culminaria posteriormente no abolicionismo. Nesse contexto, no ano de 1850 foi criada a Lei Eusébio de Queirós com o objetivo de proibir o tráfico de escravos africanos ao Brasil, sendo esta a primeira das principais leis que iriam ser promulgadas mais a adiante a respeito da emancipação dos escravos no país. A dita 72 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Lei possui este nome em homenagem ao ministro da justiça da época, Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara55 (1812-1868) que foi o responsável por sua elaboração. Naquele Momento, o Brasil observava que em diversos países como a Inglaterra, o tráfico de escravos já havia sido proibido, como também constatava que as resistências dos negros e a busca por Liberdade eram crescentes em todo o mundo, a exemplo da Revolução do Haiti (1791 – 1804) a qual foi liderada, majoritariamente por negros e mestiços. Mesmo diante desses fatores e temendo uma possível revolta dos escravizados no território brasileiro, os grandes latifundiários se mostravam avessos à ideia sobre o fim do tráfico de escravos, uma vez que estes representavam a principal mão de obra trabalhadora do país e sem eles os fazendeiros temiam o declínio das produções, sobretudo de café, que era uma das principais matérias-primas produzidas no Brasil na época. Ademais, havia o receio por parte dos senhores de que suas terras fossem tomadas pelos portugueses. Posto isso, Não é mesmo de estranhar que o progresso da ideia emancipatória tenha seguido semelhante curso num país onde a grande exploração agrária era amplamente dominante. Ou melhor, na luta entre o poder e a Nação, a última era realmente, em grande parte, escravocrata. As atividades econômicas voltadas para o mercado interno e os homens e mulheres situados entre o grupo senhorial e os escravos estavam, de uma maneira ou de outra, vinculados à grande exploração. Consequentemente, o setor da sociedade, que Caio Prado Jr. chamou de inorgânico, era ainda incapaz de universalizar seus interesses e valores para além dele mesmo, fazendo-se nacional. (RICUPERO 2004, p. 189) Nesse sentido, nas palavras de Ricupero (2004) já é possível perceber que a Lei Eusébio de Queirós gerou uma série de tensões principalmente entre as elites agrárias brasileiras. Apercebendo-se disso, na tentativa de amenizar a insatisfação dos donos de escravos, o Senado aprovou a lei de Terras56 em 18 de Setembro de 1850, que, dentre outras coisas, garantia o direito a propriedade contanto que fosse comprada e registrada em cartório. Desse modo, aos 55 Nasceu em Angola, mas ainda criança veio para o Brasil. No país, ele atuou como senador, deputado e Ministro da Justiça. 56 Lei nº 601 ou Lei de Terras foi promulgada no ano de 1850 durante o governo de D. Pedro II e tinha por finalidade promover uma organização sobre a propriedade privada. Por isso definiu a compra como a forma de se obter terras, bem como estabeleceu normas acerca da posse, manutenção e comercialização das mesmas. 73 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X fazendeiros seria retirada a possibilidade de comprar escravos no exterior, mas por outro lado, teriam a garantia sobre a manutenção da propriedade sobre suas terras. Mesmo com o estabelecimento da Lei, o tráfico intenso não só permaneceu, como aumentou, além do preço do escravo ter sido consideravelmente elevado, Assim, com a alta sucessiva do preço dos escravos, era mais difícil, para aqueles cativos que vinham economizando para comprar a liberdade, que alcançassem seu objetivo. Isso fazia com que a negociação entre senhores e escravos, sempre existente nos processos de obtenção de liberdade, muitas vezes gerasse conflitos – que tanto podia provocar atitudes como fugas e crimes quanto gerar processos na justiça. Afinal, tanto, as ações de manutenção de liberdade quanto as de escravidão são a tentativa de solucionar, no âmbito público, um longo processo de negociações ocorrido na esfera privada. (GRINBERG, 2009, p. 427) Diante desse cenário de disputas entre senhores e escravos, acima destacado por Grinberg (2009), no ano de 1854 foi promulgada mais uma Lei que se enquadra nas tentativas de estabelecer condições para que o abolicionismo fosse concretizado. Desta vez, foi decretada a Lei Nabuco de Araújo (n° 731) que estabeleceu algumas questões sobre a Lei Eusébio de Queiros, definindo então, que não seria preciso flagrante para que a denúncia do crime de tráfico de escravos fosse realizada. Dessa forma, a Lei partiu de uma tentativa para que a anterior passasse a ser cumprida no país, mas na realidade o tráfico não foi totalmente extinto, conforme relata o jornal o Diário do Rio de Janeiro no ano de 1855 na segunda página, quando enfatiza que mesmo com o estabelecimento dessas Leis “a existência da escravidão, com tudo, é uma fonte constante de tentação para homens pouco escrupulosos; em quanto ella durar haverá o perigo de reviver o trafico”. Isso de fato aconteceu nos anos subsequentes, já que, ainda segundo o jornal o tráfico de escravos entre as províncias do Rio de Janeiro e Bahia subiu consideravelmente naquele mesmo ano e os escravos continuavam a ter tratamentos dos piores possíveis. Perante o exposto, é importante frisar, que esses debates e as promulgações de leis em benefício da emancipação dos escravos já vinham ocorrendo fora do Brasil. Na Inglaterra, por exemplo, foi promulgada a Lei Bill Aberdeen (1855) que estabeleceu a proibição do tráfico de escravos entre os continentes africano e americano, além de conceder autorização à Inglaterra 74 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X para apreender navios negreiros intercontinentais. Dessa forma, os Ingleses defendiam o fim da escravidão, todavia, pensavam em seu próprio proveito, haja vista que eles já tinham passado pelo processo de abolição dos escravos, contudo os concorrentes portugueses ainda não. Nessas condições, o Brasil era pressionado pelos países europeus para por fim a escravidão, que embora com essas leis e com o crescente movimento abolicionista, caminhava a passos largos, fazendo com que prevalecesse a vontade dos escravocratas, uma vez que a transição gradual estava assegurada diante da forma que o processo estava sendo conduzido. Em contrapartida, tal fato fazia com que a reputação do país internacionalmente não fosse das melhores, o que aumentava as exigências para que o imperador D. Pedro II tomasse medidas a fim de contornar a situação. Para tanto, uma dessas medidas encontradas pelo monarca foi encarregar um de seus conselheiros a encontrar uma solução para a situação. O conselheiro foi José Antônio Pimenta Bueno57 que propôs então a libertação dos filhos das escravas. Apesar de a proposta ter sido realizada em 1866, somente no ano de 1871 a Lei que ficou conhecida como Lei do ventre Livre foi promulgada no Brasil. Esta Lei concedia a liberdade aos filhos de escravizadas nascidos a partir daquele mesmo ano. Entretanto, somente após o término da Guerra do Paraguai (1664-1870) que tinha sido o centro das discussões no país até aquele momento, é que a Lei esteve em cena novamente, desta vez proposta por Vicente do Rio Branco58. É válido pontuar que apresentar essas Leis faz-se necessário para compreendermos como o estabelecimento delas aconteceu aos poucos no país, o que evidencia o longo processo e os intensos debates que estavam postos naquele contexto. Além disso, através das mesmas, pode-se perceber a maneira com que elas estiveram centradas em disputas políticas entre aqueles que davam mais ênfase aos prejuízos econômicos que na condição nas quais os escravos eram explorados. Dessa forma, o exame desses conflitos ideológicos se faz fundamental, uma vez que é [...] revelador da natureza do pacto que sustentava o sistema político imperial. Em nenhum outro momento, em nenhum outro tema, ficou 57 Também conhecido como marquês de São Vicente, foi um político e diplomata brasileiro. 58 José Maria da Silva Paranhos (1819-1880), também conhecido como Vicente do Rio Branco, foi um estadista, militar e jornalista brasileiro. 75 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mais clara a oposição entre as motivações e os interesses do pólo burocrático do poder e os interesses do pólo social e econômico deste mesmo poder. Se, na expressão muitas vezes usada na época, a escravidão era o cancro que corroía a sociedade, ela era também o princípio que minava por dentro as bases do Estado Imperial, e que, afinal, acabou por destruí- lo. (CARVALHO, 2008, p. 293) Partindo dessa premissa, em que as disputas pelo poder estavam relacionadas às questões escravistas, torna-se de interesse dessa pesquisa compreender quais os posicionamentos manifestados sobre a escravidão no Brasil. De modo que, buscaremos perceber como os intelectuais da época pensavam acerca dessa situação nos diferentes espectros nos quais atuavam. Isso será possível através da análise do contexto sócio-político no qual o país se encontrava na época, bem como do que era escrito e debatido por aqueles que formavam a intelectualidade brasileira. 1.1 - A conjuntura política da Segunda metade do século XIX O alvorecer da segunda metade do século XIX veio acompanhado de intensas pressões reformistas que cresciam no Brasil eminentemente por conta dos reflexos das emancipações de escravos que vinham acontecendo em outros países, como nos Estados Unidos com a Guerra Civil59 e na Inglaterra que almejava o fim do tráfico de escravos em nosso país. Diante desses fatos, a condição do Brasil frente às demais nações era um tanto preocupante, haja vista que era um dos poucos países onde o escravismo ainda perdurava. Como era de se esperar, no âmbito do parlamento ganhava força às discussões sobre a escravidão, conforme evidencia um dos principais líderes do movimento abolicionista, o importante político da época Joaquim Nabuco60, quando fala que É, porém no decennio que começa em 1860 que a escravidão sofre as primeiras investidas sérias, ainda que em geral, cautelosas e animadas para 59 Conflito ocorrido nos EUA entre 1861 e 1865. A Guerra de Secessão ou Guerra Civil Americana foi uma disputa entre os Estados do Sul e do Norte dos Estados Unidos acerca da escravização dos negros no país. 60 Foi um importante nome do movimento abolicionista, tendo atuado em diferentes funções durante sua vida, como por exemplo, na política, como historiador e jornalista brasileiro. 76 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X com ella de todas as possíveis deferências. Será sempre a honra do instituto dos advogados poder dizer que a serie dos seus primeiros presidentes (como mais tarde os que se lhe seguiam, Nabuco e Saldanha Marinho), Montezuma, Carvalho Moreira (4) Caetano Alberto Soares, Urbano Pessôa (5), Perdigão Malheiro quando ainda fora não se tratava da emancipação, foi toda de abolicionistas. N’uma epoca em que o principio da escravidão era acatado por todos como um mysterio sagrado, aquelles nomes representam o protesto solitário do Direito. (NABUCO, 1866, p. 24) A fala de Nabuco retrata o quanto naquele momento, a causa abolicionista já obtinha muitos adeptos, como foi o caso dos grupos de advogados e políticos que marcavam presença em suas atuações no parlamento. Nessas condições, o imperador D. Pedro II era pressionado para realizar as reformas acerca da escravidão, contudo o foco naquele momento estava nos conflitos provocados pela Guerra do Paraguai, em que as nações da bacia platina, dentre outras coisas, buscavam se consolidar. O país necessitava ampliar suas forças e os escravos seriam utilizados como soldados. A eles restava a promessa da liberdade, caso saíssem vivos do serviço na guerra. Perante essas ações, o governo demonstrava estar disposto a promover a reforma servil e assim, executar as medidas emancipadoras. A começar com [...] “a decisão de acabar com o uso do chicote no trato dos escravos condenados a trabalhos forçados e a proibição do emprego de escravos em obras governamentais” (SILVA, 2004, p. 15). Essas medidas já davam encaminhamento, mesmo que lentos para as decisões que seriam tomadas na sequência. De modo que em 1866, uma mensagem da Junta Francesa de Emancipação foi enviada ao imperador D. Pedro II, em que a mesma encorajava o monarca a se utilizar de seu prestígio e poder real para acabar com a escravidão no Brasil. Tal mensagem foi respondida pelo Ministro Martim Francisco Ribeiro de Andrada assegurando que “a emancipação dos escravos, consequência necessária da abolição do tráfico não passava de uma questão de forma e de oportunidade”. Além disso, a carta acrescentava que o governo brasileiro não dava encaminhamento à questão naquele momento devido às dificuldades decorrentes da Guerra do Paraguai. Dessa forma, ficava publicamente declarada a intenção emancipacionista do governo e o Brasil, de certa forma, 77 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X comprometia-se internacionalmente a encaminhar a reforma escravista. (SILVA, 2004, p. 15) As ações do governo brasileiro davam abertura para que se sucedessem as leis emancipacionistas no país. O próprio D. Pedro II encarregou homens de sua confiança para pensarem acerca da reforma servil. Dentre os quais o Marquês de São Vicente foi um dos responsáveis nessa elaboração. Em que ele através de estudos sobre a questão escravagista no país, apresentou projetos que visavam promover medidas acerca da emancipação dos escravos. Tais projetos de Lei foram levados à câmara por Zacarias de Góis61 e discutidos na câmara nos dias 2 e 9 de Abril de 1867. Sobre essas sessões, vale destacar o resumo feito por Joaquim Nabuco em referência ao que foi discutido pelos conselheiros, sendo que para Nabuco, A atitude do conselho de Estado nessas duas sessões de 1867 poder-se-ia definir assim: na sua maioria quisera adiar a reforma sine die, indefinidamente; aceita-a, porém, pela força das coisas, pela pressão do governo, para quando não oferecesse perigo a apresentação, isto é, para uma data que ninguém poderia fixar. Nesse grupo devem contar-se os que não ocultam a sua oposição à reforma – Muritiba e Olinda – os que preveem perigos, sublevações, ruína econômica – Itaboraí, Eusébio de Queirós – e também Abaeté e Paranhos, que flutuam. A minoria reformista compõe-se de São Vicente, Jequitinhonha, Francamente, ainda que excentricamente, abolicionista, Souza Franco, Sales Torres Homem e Nabuco, emancipacionistas. Dos ausentes, que figurarão mais tarde nas deliberações do Conselho, Sapucaí deve ser contado entre os da máquina, Bom Retiro entre os de freio. A maioria era assim pela reforma. Desde a primeira reunião fica patente que o Imperador tomava a peito a reforma, que ele era, como depois foi chamado nas câmaras, o general da idéia, e que combatê-la era de antemão renunciar ao poder. (SILVA, 2004, p. 17). 61 Foi um político brasileiro que atuou em diversos setores do governo imperial, como por exemplo, no conselho de ministros do império e como senador. 78 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X As impressões de Joaquim Nabuco nos revelam como os debates na câmara estavam concentrados na questão escravista, mas também nos permite perceber que a reforma partia principalmente do imperador, ainda que sob imposições de terceiros, enquanto que o conselho continuava a resistir ao estabelecimento das medidas reformistas. Nesse cenário, cabe ressaltar que pensar a escravidão no Brasil requer compreender, ao menos o básico sobre a corrente política Liberal estabelecida no Brasil dos oitocentos, já que as ideias liberais exerceram forte influência sobre os movimentos abolicionistas que se sucederam no país. O Liberalismo surgiu na Europa, no contexto de independência americana de 1776 e também da Revolução Francesa (1789-1799), de modo que o Liberalismo pode ser entendido como “uma corrente de pensamento vastíssima, na qual abrange vários campos do pensamento humano.” (AFONSO, 2013, p. 84). Dentre o campo das ideias liberais, o referido autor destaca a busca pela liberdade, onde se inclui a propriedade privada e a vida humana. Nesse sentido, o autor pontua que, Durante o império, temos a formação de dois grupos políticos distintos que caracterizam o período com suas falas e conciliações, inclusive com a “troca de lado” de figuras relevantes, são eles o partido conservador e o partido liberal. Muitas das ideias que poderiam ser tomadas como liberais, foram implantadas no Brasil pelos conservadores, mas nenhuma delas deixava de buscar a realização de interesses particulares de uma elite social e política e a manutenção da exploração do trabalho (AFONSO, 2013, p. 84) Valendo-se desses debates entre grupos políticos liberais e conservadores, um dos principais espaços de discussão do período sobre a questão escrava aconteciam, principalmente, no âmbito do parlamento, onde os parlamentares estabeleciam os debates e decisões políticas referentes ao país. No entanto, o historiador José Murilo de Carvalho ressalta que além da tribuna parlamentar, as discussões políticas também se concentravam na imprensa sendo ainda mais [...] “na imprensa, uma vez que a tribuna se limitava ao período de quatro meses das sessões. A exceção foram os anos iniciais da regência, quando várias associações e clubes políticos se organizaram, sobretudo na capital do Império”. (CARVALHO, 2007, p. 19). Em vista disso, os escritos literários e as publicações nos periódicos eram fortes veículos de 79 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X informação e expressão sobre os diversos acontecimentos daquele contexto, incluindo a escravidão. 1.2 – Os posicionamentos dos intelectuais sobre o escravismo no Brasil A partir da década de 1860, os movimentos em favor da campanha abolicionista se acentuaram no país, sendo que a liderança de alguns intelectuais na luta pela liberdade de escravos se tornou de extrema relevância, mas também, tiveram aqueles que defendiam uma proposta de estabelecer a emancipação de forma gradual. Tendo isso em vista, vamos conhecer algumas dessas personalidades que estiveram debatendo acerca da escravidão. A figura de Luís Gama (1830-1882) um homem negro, que nasceu livre na Bahia, mas que fora vendido como escravo pelo próprio pai ganhou notoriedade, principalmente por sua trajetória que esteve marcada por muitos percalços, mas também por intensa superação. Embora tenha sido escravizado no Rio de Janeiro e também em São Paulo, com muito esforço Gama reconquistou sua liberdade, além de conseguir se alfabetizar, o que possibilitou que se tornasse literato, jornalista e escritor brasileiro. Sua luta e empenho pela causa dos escravos lhe rendeu o título de patrono da abolição da escravidão no Brasil. Dessa forma, ele ficou conhecido por defender judicialmente os escravizados e por reivindicar a carta de alforria dos mesmos. Inclusive, Ficaram famosos os anúncios desses serviços que Luís Gama fazia questão de publicar logo abaixo de anúncios de fugas e recompensa por captura de escravos nos jornais da corte. Ele sustentava publicamente que a escravidão era um roubo, por estar assentada numa transação ilegal, já que o tráfico atlântico havia sido proibido em 1831. Sua ousada atuação nos tribunais e na imprensa, bem como a participação em sociedades abolicionistas, interferiu nos encaminhamentos da chamada “questão servil”. Gama foi incisivo, como poucos, na exposição do quanto escravidão e racismo se entrelaçavam na cultura do Brasil oitocentista. (ALBUQUERQUE, 2018 p. 347) Em vista disso, a atuação de Luís Gama em mobilizar as massas populares a se unirem ao movimento antiescravista foi fundamental no processo de busca pela abolição dos escravos. Como também, vale destacar sua preocupação em incentivar a classe trabalhista para fazerem parte dessa luta e das associações em prol da liberdade dos escravizados, já que, na imprensa 80 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X “ainda na década de 1860, lia-se nas páginas do jornal O Typographo a convocação aos trabalhadores para erguerem a bandeira abolicionista.” (ALBUQUERQUE, 2018, p. 348). Além de Gama, André Rebouças (1838- 1898) foi outro nome que devemos ressaltar quando se fala na luta pelo abolicionismo. Ele formou-se em engenharia, mas também se destacou nas atividades jornalísticas. De modo que, nos chama atenção sua visão e atuação política em apoio ao fim da escravidão. Para ele, não somente a abolição era necessária, mas pensar em projetos que inserisse o negro no universo social e no trabalho livre. Na década de 1880 quando já se aproximavam os processos que culminariam na proibição do escravismo brasileiro, Rebouças se uniu a Joaquim Nabuco na fundação da Sociedade Brasileira Contra a Escravidão62. Joaquim Nabuco (1849- 1910), por sua vez é referência quando se fala nos movimentos abolicionistas, pois sua presença foi marcante nesta luta. Atuando como político, advogado e escritor a pauta da liberdade dos escravos era uma questão que o acompanhava em todos os espaços por ele ocupados. Em 1883, ele publica o livro o abolicionismo em que expõe suas opiniões sobre a escravidão, mas a respeito da obra, não será aprofundada por estar em uma temporalidade um pouco à frente da que nos propomos abordar nesta pesquisa. Contudo, é importante dizer que Nabuco esteve atuando e se contrapondo com o escritor e político José de Alencar (1829-1877) em diversos pontos, principalmente motivados pelas questões políticas já que aquele era defensor e adepto das ideologias do partido liberal, enquanto este fazia parte do partido conservador. Assuntos referentes à conjuntura imperial e a respeito de obras publicadas por eles foram alvo de críticas por um e por outro. Mas neste momento o nosso objetivo é perceber como a ideia desses autores sobre a escravidão foram manifestadas. Nesse cenário vivenciado pelo Brasil, em que os projetos de leis abolicionistas aumentavam, José de Alencar se posicionou sobre as questões a respeito da abolição sobretudo através dos seus discursos parlamentares e de suas cartas políticas, sendo que ele [...] acreditava que a abolição não poderia ser apressada por decretos ou leis, mas que seria resultado da ação natural do tempo, com a raça negra, em 62 Instituição brasileira criada em 7 de Setembro de 1880 pelo escritor e político Joaquim Nabuco da qual o engenheiro André Rebouças era sócio-fundador juntamente com o jornalista José do Patrocínio. O instituto tinha como finalidade a luta contra o escravismo no Brasil. 81 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X menor número, sendo absorvida pela raça branca, após gerações de cruzamentos inter-raciais. O maior temor do escritor era de que a abolição jogasse o Brasil em um caos econômico e social, com a possibilidade até mesmo de uma insurreição civil, a médio ou a longo prazo. (REIS, 2013, p. 67) Sendo assim, é válido destacar que “enquanto membro do partido conservador, Alencar defendeu os proprietários de terra, o trabalho escravo e o poder moderador, seguindo os ideais e a base política do partido pelo qual optara [...]” (ARAGÃO, 2019, p. 15). Esse trecho revela que Alencar possuía ligação com o partido conservador, contudo, o fato de pensar nos proprietários de terra ocorre paralelo ao entendimento do autor cearense de que uma abolição por meio das leis não seria suficiente para a libertação dos escravos, mas esta deveria ocorrer de forma gradual, com a inserção destes na sociedade, de modo que lhe garantisse condições mínimas de sobrevivência ao tornar-se livre. Considerações finais Em suma, foi possível identificar como às discussões em torno dos negros escravizados no Brasil acarretou intensos debates ao longo do período oitocentista. Sobremaneira, na segunda metade do século XIX quando as pautas acerca da escravidão foram aguçadas, e acrescidas pela participação de intelectuais que se manifestavam a favor da abolição e outros que pretendiam seu estabelecimento de forma gradual, conforme apresentado ao longo desse trabalho. Dessa forma, esse estudo nos possibilitou ter um panorama geral das discussões sobre a escravidão e os negros do período analisado. Através da análise da conjuntura política da época e das reformas resultantes das leis abolicionistas, como também, das discussões desenvolvidas no âmbito do parlamento e nas atuações da sociedade brasileira naquele período, se consegue perceber a relevância dessa pesquisa, que evidencia como o escravismo brasileiro representou e continua representando uma temática pertinente a ser pensada e problematizada pela historiografia dada a importância desses acontecimentos para compreender o processo de construção histórica do nosso país. 82 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Referências Bibliográficas AFONSO, Rogério Natal. A dimensão política do pensamento de José de Alencar (1865-1868) – Liberalismo e escravidão nas cartas de Erasmo. Dissertação (Mestrado em História Social das Relações Políticas) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2013. ALBUQUERQUE, Wlamyra. Movimentos sociais abolicionistas. In: SCHWARCZ, Lilia. GOMES, Flávio. (orgs). 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Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão no Brasil imperial. In.: CARVALHO, J. M.; NEVES, L. M. B. P. (Org.). Repensando o Brasil do. Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização. Brasileira, 2009. P. 427. NABUCO, Joaquim. “Elaboração da Lei de 28 de Setembro de 1871 no Conselho de Estado”. In: Um estadista do império. Vol 3, 1866-1878. REIS, Douglas Ricardo Hermínio. José de Alencar e o Teatro: Um romântico realista. Maringá, 2013. RICUPERO, Bernardo. O Romantismo e a idéia de Nação no Brasil (1830 – 1870). São Paulo: Martins fontes, 2004 83 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X SILVA, Hebe Cristina. Imagens da Escravidão – Uma Leitura de Escritos políticos e ficcionais de José de Alencar. Dissertação de Mestrado da Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, 2004. 84 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Criminalizações e silêncios: a construção de uma representação do medo branco em torno do escravo Lucas da Feira, 1890-1910 Lázaro de Souza Barbosa63 Resumo: Este trabalho examina a relação entre representação e escravidão em Feira de Santana-BA, buscando refletir sobre o processo de elaboração de um conjunto de escritos de pretensão científica entre os anos de 1890-1910, que acabaram por efetivar a criminalização das memórias a respeito do escravizado Lucas da Feira, insurgente no contexto de uma sociedade policultora e escravista na primeira metade do século XIX. Os objetivos dessa investigação buscaram entender até que ponto a existência desses escritos fortaleceu construções de silêncios e disputas em torno das memórias sobre este sujeito. Palavras Chaves: Escravidão; Lucas da Feira; Pós-Abolição. Terras do ódio racial: o lugar social de produção das histórias e das representações sobre Lucas da Feira Investigar as histórias e as representações sobre Lucas Evangelista dos Santos é tentar não se perder na grande encruzilhada de ditos e não ditos, imagens de controles e de apagamento, estratos de tempo e um vasto campo de repetições odiosas que monumentalizaram e fizeram erigir a figura mitificada de Lucas da Feira. É não se deixar seduzir pelas tentativas tautológicas e pouco reveladoras de recontar ou reler a sua história, perspectiva muita em voga nos cenários de produções historiográficas nas duas últimas décadas. Entender que essa representação em que foi transformada Lucas da Feira o apresenta enquanto símbolo dos negros, de uma raça incivilizada e bestializada na região de Feira de Santana nos idos de 1890-1910, seja talvez um passo historiográfico necessário para a compreensão do lugar social de produção dessas representações e histórias. Essas elaborações e imagens de controle sobre Lucas, num contexto de incipiente urbanização e de arregimentação de um projeto de civilidade de 63 Graduado em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana; professor do Projeto Popular de Educação Malungos /Anguera-BA. E–mail: lazzosza@gmail.com 85 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X feição antinegra, carregam dimensões concretas no tocante à configuração de um arcabouço jurídico penal feirense que deu conta da interdição da escravidão sem necessariamente abrir mão das técnicas de controle endereçadas a população negra e pobre. Os nomeamentos para Lucas da Feira foram e são vários, e durante muitas décadas foram marcados pelo viés racial, criminológico, animalesco. A desqualificação histórica marcou parte da trajetória do dizer, do contar, do oralizar e escriturar Lucas Evangelista dos Santos, como, por exemplo, demônio negro, o famigerado, salteador perverso, de ferocidade habitual, a figura do diabo, um bárbaro com entranhas de fera, o que acaba por resultar num enquadramento desse sujeito, atendendo assim a uma forma peculiar de ver, dizer e lembrar sua trajetória. Nessa empreita, os letrados baianos e de outras regiões do Brasil cumpriram um importante papel para as elites locais ao dedicarem parte significativa dos seus escritos a um labor de pretensa ciência e de efetiva criminalização das histórias e das representações sobre Lucas. Saltam aos olhos as várias narrativas encontradas nesses textos, que o tratam enquanto o celebre bandido, ou como um destacado personagem na história do crime em Feira de Santana. Aí se percebe uma erosão da escravidão enquanto processo e contexto de existência de Lucas Evangelista dos Santos, enforcado e a partir daí inscrito enquanto Lucas da Feira, o bandido, o criminoso, o facínora, preto assassino, mas diluído enquanto escravizado. A grande feira de representações existente sobre Lucas esconde que as vias simbólicas de dominação são efetivamente importantes na mediação de contradições em economias políticas em transformação. A fabricação de representações unidimensionais sobre Lucas, essa que é produto do racismo de verniz científico, não foi uma operação intelectual inofensiva, esses estudos seminais sobre o escravizado feirense protegiam interesses materiais e políticos reais. Ao narrar Lucas enquanto herói ou bandido repõe-se uma dada relação de poder que tira de cena o Lucas Evangelista dos Santos, sujeito de condição escravizada de um específico contexto da escravidão baiana, portador de contradições virulentas e filho de pai e mãe africanos com nomes, histórias e parentes silenciados. Com isso torna-se necessário dizer que a ‘raça’ esteve longe de ser o único vetor relevante na composição e na trama de poderes que possibilitaram a emergência histórica das representações sobre Lucas. O comportamento temporal pelo qual passava Feira de Santana no pós-abolição disponibilizou condições para a edificação de um Lucas enquanto reservatório dos medos das elites comerciais e agrárias 86 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X dessa região, ou seja, há ali evidentes sentidos de classe que tornavam mais amplo o projeto de civilidade e que revelavam as experiências a serem confrontadas na urbe ruralizada de Feira no contexto de final do século XIX e início do século XX. Compreender as representações sobre Lucas enquanto parte angular do projeto de civilidade feirense é partir da necessidade de se atentar para quem são os fabricantes dessas representações. A historiadora Tânia LUCA (1996, p. 94-95) indica que nas primeiras décadas do século XX, parte considerável da vida intelectual brasileira gravitou em torno da imprensa. Buscando validar seus discursos vias canais de ordem científica e publicá-los pelos periódicos ávidos por seu lugar no projeto de civilidade, letrados como Thomé de Moura, Nina Rodrigues, Melo Morais Filho, Virgilio Cesar Martins Reys, Arthur Cerqueira da Rocha Lima, Eduardo Pinaré, Silvo Romero, Andre Pinaré Silva Morais e Guimarães Cova trataram de Lucas Evangelista dos Santos narrando-o enquanto Lucas da Feira, confirmandoo enquanto um monumento a ser velado de perto pela ciência da época. Pode-se dizer que essas figuras das ciências (com trajetórias nas faculdades de Medicina e/ou faculdades de Direito) tinham em vista as possibilidades concretas de extração simbólica para usos e abusos nos projetos político/pessoais e de urbanidade pautados pela lógica de higienização da miséria e crivados de utopias disciplinadoras, assim como comprometidos com a agenda nacional – haja a vista a atenção dada a uma específica forma de ver e dizer Lucas da Feira – de formulação de uma identidade racial, que compreendia o povo negro enquanto objeto da ciência e que mobilizou várias formas e tentativas de silenciamentos na chegada da República. Vale dizer, amparado nos estudos de Lilia Moritz SCHWARCZ (2017, p. 25), que no Brasil, [...] o negro apareceu caracterizado antes de tudo enquanto expressão de sua raça. No contexto feirense, Lucas foi o sintoma dessa caracterização no que diz respeito à população negra local. Ao atentar-se para a malha de conteúdo e interesses que atravessam os escritos desses letrados sobre Lucas, escritos que inclusive apresentam uma intertextualidade muito escandalosa, identifica-se a condenação póstuma desse escravizado enquanto expressão de uma raça e de uma memória antitética a todo empreendimento de civilidade que era espraiado via discursos de progresso e modernização pelo Brasil, e que era bradado em Feira de Santana. Daí, “tendo em mente supostos atributos biológicos interpretados à luz da prepotente ciência do período, os teóricos da época impunham uma imagem absolutamente negativa do homem de cor perante outros tipos raciais” (SCHWARCZ, 2017, p. 25). 87 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Medos e distorções e deslocamentos O nome é Lucas e, com base nas escritas dessas figuras das letras e dos jornais locais, o sobrenome é crime (salteador, facínora, bandido, criminoso e etc.), já que não era digno conspurcar o nome da cidade narrando-a ao lado do nome de um escravo. O filho de africanos escravizados foi retirado de seu contexto de existência e isolado de suas historicidades. Em diálogo com o historiador Durval Muniz de ALBUQUERQUE (2013, p. 23) pode se apontar que essas historicidades foram neutralizadas politicamente ou censuradas, para serem colocadas a funcionar em novos contextos para a ocupação de novos lugares, para se constituir em formas quase que empalhadas des-historicizadas, transformadas em símbolo, em ícone do crime e das práticas indesejadas na cidade feirense. Vale dizer que a maioria dos letrados que se debruçaram na confecção das histórias e das representações sobre é representante de uma dada ordem social em tempos de escravidão. A consagração de Lucas enquanto bandido e ao mesmo tempo eclipsado enquanto escravizado está situada também no processo de materialização dos medos brancos em Feira de Santana. As representações distorcidas que conformam as histórias sobre Lucas da Feira recobrem a conflitividade social que esse escravizado agenciava com sua existência em contexto de elevado grau de insurreição negra antiescravista na Bahia. É possível sugerir que as representações que sustentam esse campo de histórias sobre Lucas subsidiaram os equipamentos policiais da Bahia no que diz respeito à formulação de imagens do crime e do criminoso que iriam constituir o modus operacional da polícia baiana, essa que em muito operou com lógicas gestadas em clara sintonia com a díade civilização x barbárie. A partir dos estudos do historiador baiano João José REIS (2019), em específico seu livro Ganhadores: A Greve negra de 1857 na Bahia pode se apontar caminhos de entendimentos mais clarificados a respeito desse uso de representações de crimes e criminosos sob a ótica da ciência para elaboração de imagens de controle de gente e do trabalho no final do século XIX e início do XX. Segundo João REIS (2019, p. 340), no final dos oitocentos não é certo, assim que a polícia baiana [...] tivesse sido rigorosamente treinada nos moldes da escola italiana ou quaisquer outros métodos de polícia científica que se espraiavam pela Europa da época. De acordo com esse autor, “o uso mais sistematizado desses métodos no Brasil esperaria a 88 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X chegada da Republica, quando foram introduzidos os gabinetes de identificação criminal” (REIS, 2019, p. 340). Ele dispõe que, [...] na Bahia isto se deu em 1911, e sua regulamentação veio no ano seguinte, tendo como objetivo, entre outros, produzir fichas criminais que descrevessem filiação morfológica e exame descritivo, notas cromáticas, traços característicos, particularidades, cicatrizes, tatuagens, anomalias congênitas acidentais ou adquiridas, conforme rezava seu regulamento (REIS, 2019, p. 340). Em tempos de consolidação das histórias e das representações sobre Lucas da Feira, também se regulamenta as instituições policiais baianas e suas técnicas e imagens de controle que emergem em meio à interdição da escravidão. João José REIS (2019, p. 340) destaca que embora na década de 1880 já devessem ter chegado à Bahia notícias da nova abordagem criminológica, esta devia se entrelaçar com velhos procedimentos usados para descrever em minúcias o sujeito das classes pobres e perigosas como adverte Sidney Chalhoub. Essas descrições, como foi o caso da feita sobre Lucas, que em muito foi utilizada nos textos de letrados fabricantes de histórias e representações sobre o mesmo, ainda com João REIS (2019, p. 340) não eram para prevenir o crime, mas para identificar o criminoso, capturá-lo e puni-lo. Os estudos de João Reis também são fundamentais para a percepção de que Não era somente a chave sociológica que abria novas portas de entrada para a construção da ideia de raça naquele período. À sociologia estava a biologia. A racialização das desigualdades sociais ganharia foro acadêmico nas teorias raciais que iriam definir o continente africano como o inferno berço genético do negro brasileiro, em parte, de seus mestiços. [...] Isto se encaixava melhor no pensamento racialista que começava a ocupar as elites letradas crentes que eram brancas. O que passava a valer era o critério cientifico, mais especificamente a biologia (REIS, 2019, p. 294). 89 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ou seja, “agora na forma de um racismo com veleidade científica de elite, embora uma versão mais antiga e popular, baseada no estigma da escravidão, continuasse alimentar o imaginário daquela sociedade, mesmo (talvez, sobretudo) após a abolição (REIS, 2019, p. 356)”. No contexto da Feira de Santana situada entre as décadas de 1890 e 1910, é possível identificar lógicas similares de difusão de saberes racializantes, como o de Nina Rodrigues, pela biblioteca pública da cidade. O periódico feirense O Município, em edição de 1892, através do “bibliothecario Francisco da Silva Pimentel” faz menção pública a Nina Rodrigues, agradecendo ao mesmo pelo envio de um das suas produções para a biblioteca pública da cidade feirense. Segundo o periódico, “pelo exm. sr. dr. Nina Rodrigues, ilustrado lente da Faculdade de Medicina da Bahia, foi offerecido um volume dos Fragmentos de Pathologia Intertropical, publicado pelo mesmo sr64”. A circulação dos estudos desses letrados comprometidos com a feitura de distorcidas histórias e representações sobre Lucas pela região de Feira de Santana esta situada num contexto de montagem e/ou regulamentação dos aparelhos penais dessa região. A de se falar das semelhanças também encontradas nesses trabalhos no que diz respeito às formas de ver e dizer Lucas da Feira enquanto bandido, criminoso, facínora, monumento a ser velado pela ciência em favor dos atos inaugurais dos discursos e representações sobre o crime. João José Reis sinaliza que [...] ao passar a ser chamado como antes eram chamados os africanos, o negro brasileiro sofreu uma espécie de africanização. Pode-se dizer que ele foi rebaixado à categoria de africano no imaginário daquele fim de século, e digo rebaixado porque o africano estava mais próximo à base da pirâmide social do que o crioulo de antigamente, o africano era, enfim, o cativo típico do escravismo luso-brasileiro (REIS, 2019, p. 294). As histórias e as representações sobre Lucas da Feira atendem por essas lógicas indicadas por Reis, Lucas representando a africanidade indesejada nas históricas de Feira de Santana, a sua figura e memória são antitéticas ao projeto de civilidade que avançava na cidade. Desafricanizar as ruas não bastava, era preciso também desafricanizar as histórias. 64 Jornal O Município, edição de 1892, nº 150. 90 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Assentar as narrativas sobre Lucas da Feira longe da ordem escravista foi uma tentativa consolidada. Essas narrativas dão conta de Lucas enquanto figurante de uma representação do medo branco da elite comercial e agrária feirense. Recorrendo aos estudos da historiadora Vera Malaguti BATISTA (2003, p. 7), vale dizer que as representações de Lucas enunciadas por esses letrados se transformam em discursos, em teorias criminológicas baseadas num senso comum com fundo de ciência, e que estiveram alinhavadas a difusão de imagens do terror que produz políticas violentas de controle social. Vera Malaguti BATISTA (2003, p. 51) é salutar para o entendimento de que o importante aqui não é o que os discursos, mensagens, representações proclamam, mas principalmente o que escondem. E as histórias e as representações fabricadas sobre Lucas escondem a ordem escravagista que foi organizada na região de Feira de Santana e com a qual Lucas Evangelista dos Santos confrontou-se. Nesse contexto em que se inscreve a tentativa de apagamento da memória da escravidão na história de Feira de Santana, há indícios de fragilidade nessa tentativa por acontecidos que guardavam relações oriundas das práticas escravagistas que imperaram naquela região do agreste baiano. O jornal feirense Gazeta do Povo, por exemplo, em edição de 1892, numa notícia chamada “Desordem”, anuncia que “Henrique-marcineiro, constanos, por motivo fútil, chicoteou, ao romper do dia 7 do corrente, a mulher de nome Etelvina, mesmo a porta da casa em que mora a referida mulher, a praça da cadeia 65”. Não se sabe aqui a fundo sobre as implicações desse acontecido nem seu contexto de acontecimento, mas talvez seja importante ressaltar a dimensão da existência de práticas oriundas da escravidão que se queria apagar com a fabricação das histórias e representações de Lucas da Feira enquanto ícone e símbolo do crime e da raça negra, não só descivilizada, incabível na memória da cidade, mas também descivilizadora, raça que era representada por experiências de pessoas concretas no cotidiano das décadas iniciais do século XX feirense. Identifica-se esse processo a partir de trechos do periódico O Município de 1892, que, por exemplo, atuava enquanto agencia de divulgação e execução, em certa medida, do projeto de civilidade feirense. Com uma notícia de título “Passeio das ruas”, o periódico informa que “o cidadão intendente municipal da nossa capital recomendou, aos fiscaes que tenham muito em vista as posturas que prohibem que estejam ocupados [sic] os passeios 65 Jornal Gazeta do Povo, 1892. 91 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X com cargas, em detrimento dos transeuntes66”. Em outra notícia do mesmo ano, o periódico em questão, com o título “Melhoramentos municipaes”, anuncia que “já tiveram começo e continuam em andamento os trabalhos de calçamento da Rua do Senhor dos Passos”. O articulista ainda pontua que “era essa uma necessidade palpitante, attendendo a beleza d’essa rua, uma das mais importantes d’esta cidade67”. Além desse processo de higienização com sentidos antinegreiros que estava localizado nos componentes do projeto de civilidade feirense, também tinha o processo de aprisionamento sustentado pela lógica racial de combate a vadiagem e ao consumo de álcool. O Município veiculou em 1892, ano de intenso empreendimento das utopias disciplinadoras na cidade feirense, um acontecido nomeado de “Prisões” pelo articulista, onde dizia que “a disposição da delegacia de polícia foram presos [...] Pedro das Virgens por estar embriagado promovendo desordem na Praça do Commercio, e João Ferreira da Silva que se acha processado, segundo informações prestadas a mesma delegacia, no termo de Cachoeira68”. Assim, vai ficando patente o lugar e contexto de produção social da razão fabricada sobre Lucas Evangelista dos Santos enquanto Lucas da Feira. Faz-se necessário destacar que vários sujeitos diretamente escalados em instituições do judiciário e da polícia baiana produziram textos e expandiram uma dada forma de ver e dizer o escravizado feirense gritantemente enquanto bandido e ícone das práticas de crimes a serem folclorizadas e esvaziadas na sua conflitividade social. Lançando mão de trechos “do livro Municípios da Bahia”, onde é possível localizar escritos sobre Lucas, elaborados por Guimarães Cova no ano de 1907, identifica-se que Guimarães “foi delegado em Feira de Santana no final do século XIX e início do século XX” e buscava “publicar um trabalho que [...] fosse, pelo menos, um repositório de informações de tudo quanto possuem os municípios da Bahia”. Buscando “não omitir o mínimo esclarecimento sobre a vida nessas terras do interior”, Cova versa sobre Lucas compreendendo-o enquanto personagem de uma “pagina negra” da história feirense, e “della não se” apagaria “uma só letra, [...] não se” apagaria “o borrão da vida de Lucas, o salteador, sem que não fique uma grande falha na história de Feira”. O mesmo dizia narrar “desapaixonadamente a vida dos bons e dos maus”, nesse sentido, ele 66 Jornal o Município, 1892, nº 150. 67 Jornal o Município, 1892, nº 164. 68 Jornal o Município, 1892, nº 164. 92 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X iniciava “a narração dos factos principaes da vida de Lucas e sua quadrilha (COVA, 1907)”. O conteúdo do texto de Cova apresenta fragmentos, mesclas e empréstimos de outros textos produzidos sobre esse escravizado nesse mesmo contexto histórico. É perceptível a intertextualidade com trabalhos de Virgilio Reys, por exemplo, quando Guimarães aponta Lucas enquanto “terrível facínora”, sujeito de “índole perversa”, de “cogitações diabólicas”, “chefe” dos “miseráveis (COVA, 1907)”, só para ficar com alguns intercâmbios de representações e tentativas de definições de Lucas da Feira. Ainda com percursos no campo jurídico, encontramos Thomé de Moura, produtor de um documento de extensiva exposição sobre as acepções e percepções que se tinham da questão racial naquele contexto de 1880-1920. Thomé de Moura, que já atuou em cargo de promotor público em Feira de Santana, trocava com Arthur Cerqueira da Rocha Lima, também implicado na formulação dessa razão sobre Lucas, saberes e informações a respeito de Lucas Evangelista dos Santos. Essas informações evidenciam o caráter fantasmagórico que, como uma fonte de subsídios caudalosa, marca a razão e o campo de estudos sobre Lucas. Mais que isso, se trata de informações e saberes que revelam o grau de terror e medo alocados em representações sobre o mesmo. Falava-se de Lucas da Feira em abundância naquele contexto de repaginação urbana de Feira de Santana, falava-se, sobretudo, para esquecer, falar é também esquecer. E é o que parece acontecer no contexto das décadas que recobrem essa pesquisa. Escriturar Lucas da Feira, e em volume documental considerável, como um bandido, que se deve falar, mas falar para esquecer, para não se pulverizar, e nem se imaginar pela urbe com futuras pronúncias de Princesa do Sertão, ou falar para lembrar, mas lembrá-lo como bandido, e bandido a ser combatido inclusive no campo das histórias e das representações, é, sobretudo, a tentativa de induzir e justificar os olhares criminalizantes, descivilizadores e demonizadores para os corpos negros e pobres que, por via de migração intensa, povoavam a cidade da Feira de Santana entre o final do século XIX e início do XX. Referências ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. O morto vestido para um ato inaugural: procedimentos e práticas dos estudos de folclore e de cultura popular. Prefácio de Regina Guimarães. – São Paulo: Intermeios, 2013. 93 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X BATISTA, Vera Malaguti. Na periferia do medo. Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro, 2003. LUCCA, Tânia Regina. A Revista do Brasil (1916-1925) na história da imprensa. Travessia Revista Literatura, nº 32, UFSC, Ilha de Santa Catarina, p. 94/126, 1996. REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo, 2ª ed. Companhia das Letras, 2017. Lista de fontes 1. Fontes impressas: os Periódicos. Jornal O Município 1892 e 1893. (Museu Casa do Sertão/UEFS). Jornal Gazeta do Povo 1892. 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Pasta doc sobre Lucas, MCS/UEFS. 94 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Quebrando as correntes: o letramento dos negros e escravizados no século XIX Maria Lidiane Santos Cardoso69 Resumo O objetivo deste texto é discutir sobre o processo educacional da população negra e escravizada, que conseguiu acesso ao sistema escolar de ensino na Província de Alagoas em meados do século XIX. Serão analisadas, as vivências e experiências cotidianas desses agentes históricos que viveram “acorrentados” ao sistema escravista oitocentista, para a partir disso, tecer observações teóricas e metodológicas necessárias acerca do estabelecimento da relação entre escravidão, educação e letramento. Palavra chave: letramento, escravidão, educação. Entender como se deu o processo educacional dos negros e escravizados que habitaram o Brasil do século XIX é abordar uma história de exclusões, desigualdades sociais, discriminações e subtração da cidadania. Tais modelos definiam o caráter excludente entre ricos e pobres, negros e brancos, escravizados e livres. Evidencia-se que nesse período, os lugares dos sujeitos eram definidos conforme a hierarquia social, onde se estabelecia e dividiam-se espaços segundo a cor da pele e posição social. Essa prática social dificultava o acesso e a ascensão social do negro, pois existia uma hierarquia dos lugares sociais. Cabe ressaltar, que essa hierarquia social não mudou muito nos dias atuais, uma vez que, a população negra ainda luta para ocupar um papel e lugar na sociedade. É dentro desse contexto de marginalização e humilhação que iremos analisar como se deram as práticas de escolarização/educação dos negros e escravizados que habitaram a Província de Alagoas no século XIX. Para que se possa entender como essa população de “marginalizados” foi submersa no processo educacional brasileiro, é preciso compreender a sociedade oitocentista escravista e 69 Graduada em História pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Mestranda em História pelo Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Alagoas -UFAL e Professora da Educação Básica de Ensino. 95 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X seus mecanismos educacionais arbitrários, bem como analisar o processo de Instrução Pública no Brasil a partir do decreto de 1827. E assim perceber o tipo de educação que era oferecida para aqueles que estavam à margem da sociedade na Província de Alagoas no século XIX. Assim, a educação brasileira no período oitocentista privilegiava atender a elite. Não há como negar que a população menos favorecida economicamente ao longo da história ficou em segundo plano, tendo que lutar contra o sistema que o inferiorizava. Podemos perceber que isso é um problema que perpassa a escravidão, pois quando se acrescenta ao processo de exclusão social a questão étnica racial, ele se agrava, Farias et al (2007). Nesta perspectiva, frisamos que o mundo das letras para os negros e/ou escravizados se apresenta como uma forma de ascensão social, pois, à medida que se aprendia a ler, escrever e contar, esses sujeitos históricos migravam das áreas rurais para as áreas urbanas, isso possibilitava um trabalho diferenciado daquele do cativeiro (CORREIA, 2000). Todavia, existia um preconceito étnico racial por parte da sociedade dominante o de que não haviam escravizados e negros letrados no Brasil do século XIX (SILVA, CORD, 2017). Entretanto, isso era um olhar por parte daqueles que viam o negro na condição apenas de escravizado. Apesar de a historiografia ser escassa no que diz respeito ao tema, é ingenuidade acreditar que as práticas de leitura e escrita não ocorreu no mundo dos escravizados. Winssembach (2017) aponta, que alguns aspectos devem estar presentes na abordagem sobre o tema da população cativa: “entre eles, o sentido e a simbologia quase mágicos que a habilidade de escrever, ou ainda a simples posse de “papel e de caneta de pena, assumiu entre escravos e libertos no processo de afirmação de sua identidade social e no âmbito das relações de sociabilidades cotidianas” a autora observa que uma das principais razões para o escravizado desejar o letramento, era a tão sonhada alforria Numa sociedade com baixos índices de letramento e entre frações sociais destituídas da habilidade da escrita, tal como imperava no Brasil colonial e imperial, além de a compra da alforria ser o grande objetivo da maioria dos escravos, a “carta” – como era familiarmente conhecida por eles – transformava-se em materialidade da liberdade desejada e obtida, constituindo-se, de fato, no principal documento capaz de distinguir os forros dos escravos. (WINSSEMBACH, MARC, 2017, P. 63). 96 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ora em um mundo onde os parâmetros sociais eram os europeus, era impossível pensar em indivíduos presos ao cativeiro ou negros livres e pobres com o domínio das letras, pois, isso lhes dava privilégios e poderes como afirma Silva. “A língua escrita sempre foi instrumento de poder. O domínio da leitura e da escrita com correção e precisão distingue quem é potencialmente intelectual” (SILVA, CORD, 2017, p. 07). Greive enfatiza, que durante o período imperial, “elaborou-se o imaginário de uma sociedade disforme70 a ser formatada pelas instituições. Esse imaginário tanto possibilitou a auto - representação das elites como pedagogas da nação, quanto das populações como portadoras de várias anomias71”. (GREIVE, 2010, p. 03). Assim, percebemos que a sociedade hegemônica “civilizada” se autodeclarou como letrada, implementando assim o modelo imperial de ensino. Em contrapartida as populações “incivilizadas” seriam a dos negros, índios e escravizados que habitavam a Província de Alagoas no século XIX. Cabem destacar que, essas populações foram consideradas como os incultos, os destituídos de alma e, portanto, ficariam fora do projeto escolar dominante. Assim, o espaço delegado a esses povos seriam as ocupações no mundo do trabalho. Desse modo, a Instrução Pública no Brasil iniciou-se com o decreto de 1827, que obrigava as províncias brasileiras a implementarem o ensino de primeiras letras seguindo o modelo imperial europeu de ensino. Oliveira (2019) observa que, foi a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808, que acelerou o processo de regulamentação do ensino de primeiras letras nas províncias brasileiras: “a Instrução Pública no Brasil foi pensada para atender as camadas mais abastadas” (COSTA, 1993). Não obstante, seguindo o modelo imperial, as escolas passaram a funcionar em um regime de ensino mútuo, desenvolvido a partir do método de Lancaster72. 70 A sociedade oitocentista coloca o negro e o escravizado como seres destituídos de alma, sem forma. Os negros vindos da África eram colocados como um ser deformado, sem cultura, língua ou religião. Ocorre que esse pensamento tinha o intuito de inferiorizar a humanidade dos africanos inserindo-os num processo colonizador cruel e desumano. (FONSECA, 2010). 71 Greive enfatiza que a sociedade colonial europeia tinha por objetivo inserir os africanos que chegavam ao Brasil no projeto colonial civilizatório. Partindo do princípio de que os africanos eram incivilizados, seres destituídos de alma e precisavam ser formatados pelas instituições. Esse projeto tendia incorporar o negro no processo educacional hegemônico (educação direcionada para a submissão) que negava toda e qualquer herança africana. Isso serviu como justificativa para colocar o africano como inculto e o colonizador como o detentor do saber. (GREIVE, 2010). 72 Este modelo foi desenvolvido pelo inglês Joseph Lancaster (1778-1838) consiste em dividir a escola em classes de rapazes quase da mesma idade, que tenham feito iguais ou quase iguais progressos, o lugar de cada um era determinado pelo seu adiantamento. Cada classe se divide em decuriões, e em discípulos. Os decuriões devem fazer estudar as lições os seus discípulos ao mesmo passo que as estudam suas próprias. Deve vigiar o grupo no seu bom comportamento, e no sossego e boa ordem da classe. (MOACYR, 1939, p. 590). 97 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Entretanto, as escolas de primeiras letras no Brasil oitocentista, apresentaram-se como mecanismos de controle social, visando difundir um modelo de comportamento que buscava atingir uma nação civilizada e uniformemente cultural, seguindo o modelo europeu, e com isso, negar a cultura indígena e negra (SANTOS, 2011). Assim, as populações de negros e escravizados que habitavam as províncias brasileiras nesse período, tiveram o acesso à escolarização colocada em segundo plano. A Constituição de 1824 em seu artigo 79 proibia veementemente o acesso de o escravizado e todo aquele que sofria de moléstia acessar a escola (OLIVEIRA, 2010). Entretanto em relação ao negro, a Constituição não o excluiu, porém, tendo em vista a sociedade discriminatória e excludente do período, esse também foi condenado a ficar fora do ensino, pelo menos era o que se supunha. Farias Filho (2000) observa que em algumas Províncias existiam debates nas assembleias a respeito da escolarização das chamadas “camadas inferiores” (negros, escravos, forros e crioulos). Porém a presença do Estado no ramo da Instrução Pública nesse período ocorria de forma pequena e insatisfatória73, chegando a ser até prejudicial para as Províncias em alguns casos. Segundo o autor, o poder público não dispunha de verbas, as aulas eram dadas nas casas dos mestres por não haver local próprio e adequado. Além disso, os professores eram mal remunerados e despreparados (SANTOS 2011). Entretanto, para enfatizar a não educação do negro, a sociedade imperial o reduziu a condição de escravizado, com o intuito de negar sua humanidade, e automaticamente exclui-lo do processo escolar. Veiga (2007) chamou esta associação, de sinonímia negros e escravos. A autora aponta que este modelo foi responsável por produzir uma sériede equívocos na historiografia no que se refere a situação da educação dos negros e escravizados. Pois, por muito tempo analisou-se o negro sob a perspectiva do escravizado. Incorporar tal nomenclatura em seus escritos causou ao longo dos tempos, reflexões contraditórias, pois, é preciso se atentar para as diferenças entre cor e condição jurídica desses sujeitos históricos. Porém, Wissenbach chama a atenção que, 73 A educação em Alagoas nos oitocentos, não tinha recursos suficientes para seu desenvolvimento. Desta maneira, a educação dependia de investimentos da elite e dos grandes proprietários de terras, porém estes também não tinham interesse em investir por priorizar a parte econômica na Capitania (COSTA, 1931). Os professores eram mal remunerados e despreparados, não existiam materiais mínimos nem local adequado para o desenvolvimento das aulas. Como observava presidente da província de Alagoas em 1844, Francisco Anselmo Peretti, “nestas aulas não sabem os alunos nem ler, nem escrever, nem as quatros operações, nem a doutrina cristã (...) e ainda dispara que os professores conquistaram as cadeiras por meio do patronato”. (MOACYR, 1939, p. 571). 98 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Nos últimos tempos, a historiografia sobre a escravidão no Brasil conheceu mudanças significativas e, em seus vários rumos e inovações, alguns enfoques interpretativos têm se mostrado particularmente produtivos, especialmente aqueles que, partindo da consideração do escravo como agente histórico, romperam com as visões tradicionais que insistiam na reificação do cativo e também em sua vitimização. (WISSENBACH, CORD, 2017, p. 53). A Constituição de 1824 enfatizava a proibição ao escravizado em acessar o ensino, porém esta associação do negro como escravizado, tirava-lhe as possibilidades de acessar a escola dentro dos padrões oficiais. Fonseca et al (2016) analisam essa sinonímia negro e escravo como sinônimo que, segundo suas concepções, esse modelo de análise resultou na construção de conceitos que reduziram ambos a objetos. Assim, é importante frisar que a situação de escravizado já definia a condição social e educacional com embasamento legal. Podemos perceber que excluir a população escravizada do sistema escolar no século XIX estava dentro da legalidade, pois a Constituição de 1824 não o considerava cidadão74. Com essa prerrogativa da Constituição, excluíam-se também os negros, forros, livres, crioulos ou ingênuos75. Freyre enfatiza que, “no Brasil as relações entre brancos e as raças de cor foram (...) condicionadas, pelo sistema de produção econômica – a monocultura latifundiária”, (FREYRE, 2005, p. 33). A partir do pensamento de Freyre, observamos que a influência negra no Brasil, estava restrita ao mundo do trabalho e à capacidade de submeter-se à imposição e à ordem dos brancos. Isso confirma a análise de Gorender (1998) quando diz que a sociedade patriarcal via os negros como mera mercadoria, podendo ser vendido, alugado e comercializados. Dessa maneira, a condição de ser humano foi negada ao negro, cedendo lugares às narrativas que os delimitaram a lugares sociais de mercadoria, coisa/objeto (GORENDER, 1998). Aos negros libertos não existia respaldo jurídico que os impedissem de frequentarem a escola, porém, era preciso provar que eram indivíduos livres. Ocorre que mesmo o negro 74 Segundo a Constituição brasileira de 1824, cidadãos eram todos aqueles nascidos livres, libertos ou ingênuos. Por muito tempo, os escravos ficaram fora das escolas de Primeiras letras, por não serem considerados cidadãos. (FONECA, 2007). 75 Ingênuos no Brasil oitocentista eram todos aqueles nascidos do ventre livre. (FARIAS FILHO, 2003). 99 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X liberto provando a liberdade através da alforria, havia a negação por parte das autoridades em inseri-los na escola. Bastos (2016) enfatiza que, muitos negros entravam na justiça para garantir que seus filhos acessassem a escola, mas sempre eram-lhes negado este direito. “Uma viúva parda, em Mariana/MG, que tentou, junto ao juiz de Órfãos, assegurar a instrução de seus filhos, porque não queria que fossem feitores e nem trabalhassem com a enxada. O juiz negou a demanda alegando que eles deviam mesmo, como pardos, trabalhar”. (BASTOS, 2016, p. 05). Podemos observar nesse relato, a opressão contra a população negra impedindo-lhes o acesso ao sistema escolar formal. É evidente, que os dominadores não aceitavam o ingresso dos negros nos mesmos ambientes que os brancos. Isso não estava restrito a província de Minas Gerais, mas também as demais províncias do Império. É importante frisar que em 1834, o ensino no Brasil sofreu uma descentralização, a partir desse período as províncias deveriam criar leis próprias e especificas para atender a demanda da população que seria letrada. No entanto, a população negra e escravizada continuou tendo seus direitos a educação sufocado pelo sistema operante. Porém, é importante observar que mesmo com esses sufocamentos, essas populações lutaram pelo direito ao letramento, pois, ter o domínio do ler, escrever e contar nesse período conferia-lhes liberdade. Assim, a partir de 1836 foi decretado pelo então governador da Província de Alagoas, Antônio Joaquim de Moura a regulamentação do ensino primário (MOACYR, 1939). A constituição brasileira dos oitocentos excluía do ensino os escravizados como já analisado, porém, com a descentralização do ensino, cada província criou leis próprias e específicas para atender a demanda da população no ramo da Instrução Pública. Fonseca (2010) observa que foi a descentralização do ensino que possibilitou aos negros e escravizados o acesso às letras. Entretanto, na prática isso não ocorreu de forma dinâmica, pois a sociedade excludente, não aceitava os agentes provenientes do cativeiro frequentando os mesmos ambientes. Nesse sentido, a população negra que habitava na Província de Alagoas, ficou à margem da escolarização. É dentro desse contexto que podemos observar que mesmo podendo criar leis que garantisse o ensino aos negros e escravizados, muitas das Províncias brasileiras preservaram o caráter excludente de ensino aos modos europeus (ROMÃO, 2016). A elite branca teria seus direitos educacionais resguardados, e às populações de escravizados, e negros ficariam reservados o direito ao trabalho bem como as ocupações subalternas. (FONSECA, 2010). 100 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Podemos constatar o fato em Moacyr (1939) onde encontramos documentos províncias das mais diversas províncias brasileiras. Em relação à Província de Alagoas, observam-se que não se criou uma lei impedindo o negro e o escravizado de acessar ao ensino, mas apesar da não proibição, vemos que a sociedade continuava com os mesmos sufocamentos. Podemos constatar isso quando o governador da província de Alagoas Antônio Joaquim de Moura via como um inconveniente estudar nos mesmos ambientes brancos e negros. (MOACYR, 1939). A população presa ao cativeiro, bem como os negros livres e libertos, tinha ciência de que ler e escrever, poderia ser uma arma para a libertação física e intelectual, sendo, portanto, um meio de expressar e defender o projeto social fora do cativeiro. Silva (2012) analisa que decifrar os códigos escritos de linguagem criavam possibilidades diversas como conhecimentos de seus grupos étnicos, significava ainda o manejo de uma arma que os conduziriam a construir a libertação76. Todavia, a sociedade hegemônica “civilizada” se autodeclarou como detentora do saber, implementando no Brasil o modelo imperial de ensino. Em contrapartida as populações incivilizadas seriam a dos negros, índios e escravizados que habitavam a sociedade no século XIX. Cabe destacar, que essas populações, foram preparadas por seus dominadores para desenvolver ocupações relativas ao mundo do trabalho, porém, podemos perceber que mesmo com essas predisposições hegemônica, as lutas sociais ocorriam na dinâmica local contra a imposição do dominador, conforme observa Chartier. As percepções dos sociais não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, politicas) que tendem a impor uma autoridade a custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (...) as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. (CHARTIER, 2002, p.17). Contudo, o termo civilizar traz consigo uma intenção perversa ocultada em um pseudo altruísmo, na realidade não tínhamos incivilizados, pois os colonizadores portugueses estavam 76Muitos escravizados fizeram da leitura e da escrita – descendentes seus ainda o fazem – meio para afirmar sua negritude, e a partir dela, combater a assimilação a conhecimentos e comportamentos nocivos ao seu pertencimento étnicos – racial que é enraizado em africanidade”. (SILVA, MARC, 2017, pg. 08) 101 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X comparando culturas diferentes, a deles, e a dos negros, e colocando-se como superiores. Dessa forma, o surgimento da educação em Alagoas, foi caracterizada por um olhar perverso dos governantes e da sociedade em geral. A estrutura monárquica, da Província de Alagoas no século XIX seguia o caráter educacional vigente bem definido, conduzida pelo modelo colonial de educação. Nos ambientes escolares, os mestres propagavam essas ideias tão presentes a partir da obediência obtida através da violência física (FONSECA, 2010). No entanto, esses modelos discriminatórios e excludentes não ficaram restritos a sociedade escolar oitocentista, eles perpassam o período escravista. É notório que esses modelos acompanham o ambiente escolar nos dias atuais nas formas de racismo, discriminação e preconceito (SILVA e MUNANGA, 2008). Porém, vale destacar, que mesmo com as duras condições impostas pelo sistema, aqueles que foram submetidos ao cativeiro, não renunciaram em momento algum a sua humanidade. Fonseca aponta que “os escravos foram capazes de construir um conjunto de experiências que se encontravam além daquelas que lhes eram impostas pelas regras e prescrições da sociedade escravista” (FONSECA, 2007, p. 18). É dentro desta perspectiva, que pretendemos inserir a educação dos negros e escravizados destacando suas possibilidades de relações entre escola, letramento e liberdade. A educação dos negros e escravizados como já citado, é o foco desta análise, retirar esses sujeitos históricos do cativeiro e da condição de submissão e colocá-los no palco como sujeitos ativos no processo de letramento em Alagoas é fundamental para entender sua ascensão social. Fonseca destaca que os processos ocorridos entre a educação pública e aquela ocorrida nos espaços privados são fundamentais para que se compreendam as influências da escravidão na formação dos indivíduos. A educação dada às crianças escravizadas ao longo da sua vida tendia a especificar o seu lugar na sociedade. Era uma educação para a manutenção do cativeiro, através da obediência ao senhor nas relações públicas e privadas. Dentro desse contexto, é necessário observar a distância entre a educação e escolarização desses sujeitos. “Tratar das práticas educativas voltadas para a formação dos trabalhadores escravos implicam em colocar de lado os processos relacionados com a escolarização”(CORD, 2017). Sabe-se que o processo colonial objetivava inserir e manter os negros no cativeiro para a manutenção do sistema econômico escravista. Para isso, se educava os escravizados desde criança para suas tarefas dentro dos modelos hegemônicos. Os africanos que chegavam da 102 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X África eram dominados, “adestrados” e controlados para aceitarem o padrão europeu de trabalho. Esses modelos abrangiam a educação e não a escolarização desses sujeitos. Desta maneira, tanto as crianças como os adultos escravizados eram preparados para o trabalho. “Os meninos começavam a trazer a profissão por sobrenome: Chico Roça, Ana Mucama” (FONECA, CORD, 2017, p. 22). O autor observa que essas práticas não eram mero adestramento, eram práticas sociais com controle e direção bem definidas, sendo portanto, uma prática pedagógica. Para enfatizar a educação para o trabalho, podemos observar que ofícios eram atrelados ao nome dos indivíduos. Esses recursos eram utilizados para destacar as ocupações, estas, deveriam acompanhar suas vivências por toda vida. Destacamos que apesar dessas práticas ocorrerem no período colonial, podemos perceber uma continuidade, pois a população de escravizados que habitaram a século XIX ainda sofriam com esse modelo colonial de educação que atrelava o nome dos indivíduos as suas ocupações. É importante perceber, que apesar de as crianças escravizadas receberem a educação imposta pelo poder senhorial com o intuito de controlá-las, esses, estavam longe de serem os únicos sujeitos ligados a sua formação. Fonseca analisa que, De alguma forma, estas crianças também estavam ligadas a outros escravos que, como sujeitos específicos, tinham conhecimentos e valores a lhes comunicar. Esses valores certamente não se incorporavam aos seus nomes, mas tinham importância na trajetória social destes indivíduos que nasceram e viveram no cativeiro. (FONSECA, CORD, 2017, p. 22). É notório que, apesar de toda articulação e imposição do sistema escravista negando sua civilização, cultura e humanidade, podemos perceber que esses, não perderam sua humanidade, longe disso, articulavam estratégias que objetivavam a preparação para os enfrentamentos nas relações sociais. Essas estratégias podem ser vistas como educacionais, ou seja, os comportamentos, ritos, processos e finalidades, garantiam a organização e o funcionamento da sociedade cativa. Assim, mesmo sendo-os ensinados e direcionados para as tarefas relacionadas ao mundo do trabalho, os negros e escravizados usaram de mecanismos e estratégias diversas para conciliar as aprendizagens também no mundo da escrita. Dito isto, com muito luta e resiliência, 103 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X esses sujeitos históricos adentraram também nos espaços públicos buscando a inserção no processo de letramento nas escolas formais do século XIX. Contudo, mesmo enfrentando dificuldades, partes da população de negros e escravizados alcançaram o mundo da escrita. Podemos constatar isso nos estudos sobre o tema nas diversas províncias do Império, como na pesquisa de Santos (2011), que estudou vestígios do letramento dos negros na Alagoas oitocentista. Fonseca (2010), que observou o fenômeno do letramento negro na província de Minas Gerais, constando que haviam negros e escravizados letrados. Neste sentido, vemos nos estudos de Winsembach (2017) no município de São Paulo no século XIX, análises em documentos criminais, onde detectou nos pertences dos escravizados presos, cartas endereçadas as suas famílias, configurando, portanto, o letramento desses agentes históricos. Silva (2002) corroborou com o letramento dos negros no século XIX, quando analisou uma documentação do município da Corte (Rio de Janeiro) a respeito de uma escola primária particular na freguesia de Sacramento, destinada a atender meninos pretos e pardos sob coordenação de Pretextato dos Passos e Silva que se designava negro. Essas evidências provam que mesmo a sociedade hegemônica enfatizando a inferiorização física, intelectual e cultural daqueles que sofreram o processo de escravização, esses foram inseridos no mundo da escrita. Porém, podemos perceber que a história desses povos sofreu ao longo dos tempos um silenciamento sufocador. Portanto, constata-se, nos dias atuais, que esses mesmos silêncios e sufocamentos acompanham as populações dos afro descendentes que continuam lutando por seus espaços nas esferas públicas e privadas nas mais diversas partes do Brasil nos dias atuais. Temos assim consciência de que esses homens e mulheres lutaram contra um sistema desigual e cruel, sendo necessário resistir constantemente, procurando sobrepujar o sistema e seguir buscando a liberdade. Desta forma, o letramento negro apresenta-se como possibilidade de ascensão social, garantindo-lhes novas formas de sobrevivência, o que corroborou para afastar os negros da experiência do cativeiro e da dependência dos senhores de escravos. Dentro desta lógica, vemos o letramento negro como algo desafiador e transformador, pois ao contrário do que acontecia nos quilombos, ele ocorria no cotidiano, dentro das casas dos senhores, nas fazendas, nas senzalas, nas áreas urbanas de maneira formal e informal, ou seja, ocorria nas áreas públicas e privadas, propiciando-lhes a liberdade física e intelectual para além do cativeiro. 104 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Referências Bibliográficas CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. 2ª ed. Lisboa: DIFEL, 2002. FARIA FILHO, Luciano Mendes; VIDAL, Diana Gonçalves. A história da educação no Brasil: a constituição histórica do campo. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: V. 23, N. 45, p. 37-70, 2003. FONSECA, Marcus Vinícius, BARROS, Pombo de. (Orgs.). A História da Educação dos Negros no Brasil. Niterói: EDUFF, 2016. FONSECA, Marcus Vinícius. 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São Paulo: Hucitec, 1998.162. 105 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Aqueles que descem aos sertões: o processo de escravização das populações nativas amazônicas durante o século XVIII Nathália Moro77 Anelisa Mota Gregoleti78 Gabrielle Legnaghi de Almeida 79 Resumo Durante o século XVIII, a colonização portuguesa da floresta amazônica esteve voltada para a exploração das drogas do sertão. Muitas populações nativas foram utilizadas como mão de obra escrava. Aproximadamente, um terço dos homens indígenas das reduções e aldeamentos era utilizado especificamente nas viagens de coleta das drogas. Nosso objetivo aqui é analisar de que forma estas estruturas colonizatórias estavam impostas e de que maneira as populações indígenas da Amazônia setecentista foram exploradas e escravizadas em prol de uma colonização portuguesa. Palavras-chave: América portuguesa; escravização indígena; colonização portuguesa. Introdução A colonização do norte da América portuguesa remonta desde o século XVI quando espanhóis, portugueses, holandeses e ingleses já disputavam áreas de interesse na região. No entanto, as práticas exploratórias se intensificaram apenas no século XVIII, a partir do comércio de plantas nativas da floresta amazônica. O extrativismo vegetal teve tamanha importância por dois motivos principais: em primeiro lugar, essas espécies possuíam grande peso comercial, já que, muitas vezes, equivaliam às especiarias orientais e podiam substituí-las; 77 Mestra e Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá; integrante do Laboratório de História, Ciências e Ambiente (LHC-UEM) e pesquisadora nas áreas de História da Alimentação e História Ambiental. 78 Doutoranda, Mestra e Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá; integrante do Laboratório de História, Ciências e Ambiente (LHC-UEM) e pesquisadora nas áreas de História das Ciências Naturais e História Ambiental. 79 Mestranda e Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá; integrante do Laboratório de História, Ciências e Ambiente (LHC-UEM) e pesquisadora nas áreas de História da Saúde e História das Ciências Naturais. 106 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X em segundo lugar, mostrou-se a opção mais viável para a colonização de terras que não produziam espécies agrícolas com as quais os portugueses estavam acostumados. Em outras palavras, podemos afirmar que, além de gerar um lucro muito elevado, a extração de frutos, óleos, cascas, raízes e resinas, denominadas de drogas do sertão, somava-se à exploração agrícola da Amazônia, marcada pelo clima equatorial muito quente, solos pobres em determinados nutrientes, elevada precipitação anual das chuvas e excessiva quantidade de insetos, fungos e pragas (FIORI; SANTOS, 2015, p. 16-17). A Companhia Geral do Comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão, criada em 1755 por Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal, posteriormente), foi a principal instituição responsável por favorecer o reino português através do comércio monopolista entre Brasil, Portugal e África. A Companhia utilizava 27 de seus 42 navios para realizar viagens de longas distâncias, nas quais transportava mercadorias de produção africana e brasileira para Portugal e trazia africanos escravizados para o norte da América portuguesa (CARREIRA, 1988, p. 97). Houve uma grande mobilização da coroa para que a escravização indígena, predominante na região amazônica, fosse substituída pela africana, pois assim, poderiam lucrar ainda mais com o tráfico negreiro e obter maior controle sobre a região colonizada. É importante lembrarmos que, nesse momento, os missionários eram os maiores detentores de poder e influência da região norte da colônia, uma vez que comandavam as reduções e, consequentemente, o trabalho indígena, principal mão de obra empregada na exploração extrativista amazônica. A partir disso, fica evidente uma disputa de interesse entre missionários religiosos e a coroa portuguesa. Nossa intenção aqui é, justamente, entender como esse processo se estabeleceu e de que forma as populações indígenas foram exploradas e escravizadas a partir da colonização portuguesa. Para alcançarmos este objetivo, utilizaremos fontes setecentistas escritas por viajantes, colonizadores e missionários europeus que estiveram na floresta amazônica naquele período e de referências especializadas que nos ajudarão a compreender como a escravidão indígena se tornou um dos temas mais debatidos pela coroa portuguesa no século XVIII. Desenvolvimento Muito antes da chegada dos primeiros europeus na América, a Amazônia já era habitada por diversas populações humanas. É difícil dizer com precisão quantas pessoas 107 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X moravam ali em 1500, mas o trabalho arqueológico, os relatos dos primeiros colonizadores, as taxas de destruição prováveis e o número de indígenas sobreviventes contribuem para algumas estimativas. Acredita-se que havia, pelo menos, de 4 a 5 milhões de pessoas apenas nas terras baixas da Amazônia no ano de 1500, sendo que, destas, quase 3 milhões estariam divididas em grupos de 400 indivíduos, aproximadamente (HEMMING, 2011, p. 24). Como sabemos, as numerosas populações foram massacradas ainda nos primeiros anos de colonização. O biólogo estado-unidense Jared Diamond (2013) analisa tudo isso a partir de três eixos centrais: armas, germes e aço. Para ele, o desenvolvimento agrícola e a oferta de grandes mamíferos que puderam ser domesticados, proporcionaram tais vantagens aos europeus. Isso nos ajuda a compreender não apenas a colonização na América, mas também o grande massacre das populações indígenas, que estavam tanto em desvantagem imunológica quanto militar. Em resumo, podemos dizer que as populações americanas nativas foram vítimas das doenças, que dizimaram milhões de pessoas que não possuíam defesas imunológicas contra os vírus e bactérias vindos da Europa; e das guerras, pois os europeus ocuparam à força um continente já habitado. No caso da Amazônia, muitos grupos tiveram que fugir para áreas de difícil acesso, tentando evitar que fossem capturados e transformados em escravos (PYDANIEL et al., 2017, p. 52). Infelizmente, sabemos que muitos não conseguiram fugir. A estimativa de historiadores e arqueólogos é que, apenas no primeiro século de contato, houve uma dizimação de cerca de 50 a 95% das populações indígenas da várzea (MORÁN, 1990, p. 24). Como dito acima, a escravidão indígena foi predominante na região norte da colônia. Até o governo pombalino, a coroa portuguesa aceitava a escravização de indígenas em casos específicos, como os que eram aprisionados em guerra justa ou resgatados do cativeiro imposto por outros indígenas. Essas regras estavam baseadas nos princípios de teólogos-juristas espanhóis do século XVI e admitiam legitimidade na obtenção de escravos indígenas. Algumas leis, promulgadas em 1595, 1609 e 1680, passaram a declarar irrestrita liberdade indígena nos casos de guerra (deveriam ser prisioneiros e não mais escravos) e afirmavam que os resgates estavam, terminantemente, proibidos (DIAS, 2017, p. 240). Analisando fontes do século XVIII, podemos perceber que, embora existissem leis na tentativa de controlar a escravidão, elas não se aplicavam tanto na prática. O governador e capitão-geral da capitania do Grão-Pará (1751-1759), Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em uma de suas cartas, denuncia Francisco Portilho de Melo que estava: “(...) no rio Negro há 108 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X muitos anos, (...) fazendo ou resgatando os índios, contra as ordens de V. Maj.” (MENDONÇA, 1963a, p. 87). Em outro documento, Furtado também apresenta alguns dos motivos que levavam os colonizadores ao “resgate” dos indígenas: Nas conversações com estes homens, lhes vou dizendo, quando eles se queixam que não tem escravos e que, em consequência, estão perdidos, que S. Maj. tem resoluto não mandar fazer resgates aos sertões, e que pela barra a dentro lhes há de vir a fortuna; que os negros são melhores trabalhadores do que os índios, e que eu espero vê-los por este modo remidos; ao que me respondem que não têm meios para comprar negros, que custam muito mais dinheiro; que ainda que lhos deem fiados, que depois não os poderão pagar; e como sobre esta matéria hei de informar a V. Exa. com mais largura, então direi o que me parece com os fundamentos que me ocorrerem.” (MENDONÇA, 1963a, p. 86). É importante lembrarmos que o governador-geral era irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo que, por sua vez, era secretário de Estado do Reino de D. José I (1750-1777) e futuro Marquês de Pombal. Isso evidencia a preocupação da administração portuguesa em colocar alguém de confiança para comandar a região e, mais do que isso, para defender os interesses da coroa frente à ocupação e influência dos missionários. Nas palavras do próprio Furtado, “(...) nestas terras pelo número dos escravos é que se medem as riquezas (...)”, e como os missionários, denominados também de Regulares, escravizavam os indígenas e tiravam o domínio de suas aldeias, logo “(...) hão de ser senhores de todas as riquezas deste Estado.” (MENDONÇA, 1963b, p. 503). Os missionários, de fato, comandavam a mão de obra indígena no norte da América portuguesa nesse momento. O padre José Xavier de Moraes (1860, p. 205) chegou a comparar o trabalho de “resgate das almas” dos indígenas com o processo de extração das drogas do sertão, ou seja, assim como os colonizadores precisavam adentrar as matas para extrair as drogas tão valiosas, eles faziam o mesmo em relação às populações nativas. Porém, sabemos que a atuação dos missionários não se restringia à catequização. Outro padre, João Daniel, descreve de que forma os acordos entre missionários e caciques eram feitos para que os primeiros pudessem obter mais mão de obra para além das que já possuíam em suas reduções: 109 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Chegado o tempo do ajuste, sobe o Missionário pelo Amazonas acima, os rios colatraes [onde] estão os índios practicados em üa canoa das mais possantes, ou em mais senão baste [roto o original] do gentilismo, que se espera, bem provida de pano de algodão, e de algüas outras drogas; de farinhas, e víveres etc. esquipada com índios mansos, e com algum língua para lhes falar. Gastam muitas vezes um mês, ou mais para lá chegar conforme a sua longitude. Chegado o Missionário vem a fala o cacique com os mais principaes índios, os quaes o Missionário procura acariciar mui bem já brindando-os com águas ardentes, já vestindo-os com camisas, e cabeções que é o usado vestuário dos índios mansos, e dos que leva por remeiros; reparte-lhes algüas carapuças, ou chapéos; mas sempre fazendo distinção do cacique, e dos mais graves; e depois de os ter contentes, entram a practicar o embarque; e o cacique a consultar os vassalos, a propor dúvidas, e dificuldades ao Missionário, e primeiro que se resolvam, e ajustem se gasta muito tempo, andando o padre com muita cautela, de que nem ele, nem seus remeiros digam algüa palavra, ou façam algüa acção, que eles possam estranhar, porque bastará qualquer palavra estranha para desfazer tudo (DANIEL, 1976b, p. 44). Nesses casos era comum que se realizassem trocas durante os acordos. Apesar do cacique receber algo por ceder homens para os missionários, podemos considerar que as condições de trabalho desses indígenas eram análogas à escravidão. Se por um lado, os colonizadores criticavam os missionários por utilizarem os indígenas como mão de obra, por outro, os missionários também criticavam a ganância dos colonizadores que sempre chegavam até as missões procurando e exigindo escravos indígenas. João Daniel denuncia a prática dos resgates feita em exagero pelos portugueses: [...] Com esta boa indústria livrou a milhares, e milhares do injusto cativeiro dos brancos; porém também muitos saíram escravos, sem o serem. Chegou finalmente à Corte a notícia destas injustiças, e para as atalhar, foi servido o Senhor Rei Dom Pedro, de boa memória, mandar recolher, e proibir a tropa de resgates, julgando por menos mal, que os índios se comessem uns aos outros, do que fazerem-se tantos, e tão injustos cativeiros, com a capa de os resgatar. Como porém esta proibição era remora da ganância dos portugueses, tanto pediram, instaram, e alegaram, que tornaram a conseguir a 110 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tropa: porém como as injustiças subiam ao galarim, depoes de várias vezes proibida, e concedida, finalmente no ano de 1750 foi Sua Majestade servido proibi-la de todo, para a qual resolução deram motivo vários casos. Um foi, que chegaram a tanto excesso estas amarrações, que não se contentando com o fazer no grande destricto português, se arrojaram ao mesmo dentro nos limites dos Monarcas Católicos, entrando em ua povoação, e amarrando nela alguns índios, não só uma, mas várias vezes. Por estes insultos se viram obrigados os missionários espanhoes a dar conta ao seu Monarca, e a Majestade Católica os fez propor ao Rei Fidelíssimo. [...] (DANIEL, 1976a, p. 232). Para o padre, foram esses “tiranos insultos” que teriam motivado a total proibição da tropa dos resgates no ano de 1750, “depoes de terem saído, só do Rio Negro perto de três milhões de índios escravos, como consta dos resistos, os quaes vendidos em pública praça, se repartiam pelos moradores.” (ibidem, p. 232). De qualquer forma, fosse por colonizadores ou missionários, os indígenas eram explorados por europeus preocupados em lucrar com o extrativismo vegetal da Amazônia. Denominadas de “descimentos”, as expedições em busca das drogas do sertão sempre partiam determinadas a coletarem uma carga principal que, na maioria das vezes, era o cravo, a salsa ou o cacau. Depois que está carga estivesse garantida, os colonizadores também aproveitavam para obter outras espécies, como a copaíba e a baunilha por exemplo. Caso não encontrassem a principal espécie buscada, eles costumavam optar por mudar a rota e buscavam navegar em outros rios (DANIEL, 1976b, p. 61). As principais drogas eram escolhidas visando seus valores no Velho Mundo, já que as espécies partiam do porto de Belém (Brasil) e chegavam à Porto (Portugal), onde, posteriormente, seriam distribuídas para o restante da Europa. Francisco Xavier de Mendonça Furtado nos dá uma ideia do valor do cacau e dos impostos cobrados sobre ele: Aqueles moradores mandaram à colheita das drogas do sertão, na forma da liberdade que lhes dei para isso, e tiraram 240 arrobas de cacau que de novo acresceram para se pagar dízimo delas, o que não sucedia aos da aldeia, e o venderam a 1$200 réis a arroba, vindo a pertencer ao dízimo vinte e quatro, que importaram em 28$800 réis que, juntos àquela acima vêm a importar em 144$425 réis, e como também cessa a côngrua do missionário, que eram 111 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 25$000 réis, que deve acrescer à conta acima, vem tudo a importar em 169$425 réis que esta povoação, sem ainda estar estabelecida, mas nos puros termos em que a conservavam os padres, vem a render, mostrando-se assim que de nenhum encargo é à Fazenda Real, antes sumamente útil, porque ainda sem terem intervindo nesta matéria os novos povoadores que tenho mandado, tem S. Maj. com que pague ao Vigário, sobejando-lhe ainda o que vai de 80$000 réis para a soma acima, como se faz evidente, sem dúvida alguma (MENDONÇA, 1963c, p. 944-945). Alguns relatos, como o de Alexandre Rodrigues Ferreira, evidenciam que a exploração extrativista era superior à agricultura na região amazônica. Podemos pensar em diversos fatores para justificar esse fato. Destes, dois merecem maior destaque: as drogas do sertão possuíam alto valor econômico (eram mais rentáveis) e o cultivo das terras amazônicas não era uma tarefa fácil (exigia alto grau conhecimento sobre o ecossistema local). O trecho abaixo demonstra como Ferreira estava preocupado com a agricultura de algumas espécies, uma vez que toda a mão de obra estava sendo empregue nas colheitas dos sertões. Segundo o filósofo natural setecentista: Não tem até agora prosperado tanto, quanto podia prosperar a agricultura do anil, do café e do tabaco, que são generos ricos e permanentes; porque os poucos braços, que ha, se tem empregado na colheita das drogas do sertão, por onde andam distrahidos os indios a maior parte do anno, dependendo da riqueza precaria do mato; sem se coadjuvarem os commerciantes dos calculos da arimethica mercantil e politica, que são a chave do commercio mais bem entendido entre os povos (FERREIRA, 1983, p. 657). É interessante notarmos que Ferreira cita a “riqueza precária do mato”. Apesar da tentativa de endossar sua crítica, exagerando nas palavras, a ideia de uma Amazônia extremamente fértil, defendida pelos primeiros colonizadores, de fato, foi sendo desfeita na prática pouco a pouco. As expedições em busca das drogas do sertão demandavam muitos esforços e um conhecimento profundo da região, especialmente, de sua hidrografia. Esse foi um dos motivos que levaram os europeus a utilizarem a mão de obra indígena. Ter alguém que 112 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X conhecia a natureza local era de fundamental importância para que a empreitada tivesse o sucesso esperado. Conclusão A partir do estudo das fontes do século XVIII e das referências de especialistas da área, é notável que a colonização da floresta amazônica só foi possível por conta de toda a exploração da natureza e das pessoas que ali já moravam. Os números que apresentamos sobre a dizimação das populações nativas evidenciam a brutalidade dessa colonização que matava e escravizava em prol da exploração e do lucro. Missionários, colonizadores e funcionários diretos da corte portuguesa disputaram zonas de influência na maior floresta tropical do mundo durante bastante tempo. A coroa sabia que precisava aumentar seu poder sobre a região que estava sob domínio dos missionários, especialmente, dos jesuítas. Isso explica, de certa forma, porque após receber inúmeras denúncias e relatos de seu irmão, Marquês de Pombal orientou D. José I a expulsar os jesuítas da colônia em 1759. Inúmeros foram os motivos para que a mão de obra indígena escravizada fosse adotada em maior quantidade do que a africana no norte da colônia: populações nativas numerosas; alto custo dos africanos escravizados; facilidade em escravizar populações que já estavam reduzidas e dominadas pelos missionários; conhecimento dos nativos sobre o ecossistema local; domínio indígena das técnicas de exploração das drogas do sertão etc. Seja sob domínio dos missionários ou dos colonizadores enviados pela corte, os indígenas foram vítimas desse processo que mudou, completamente, suas rotinas, divisões de poder e motivos de combate. Algumas fontes relatam que os colonizadores estimulavam conflitos entre indígenas para pessoas da tribo rival fossem capturadas e pudessem ser vendidas como escravas durante os “resgates”. Outras nos mostram como toda a vida dessas populações foi desorganizada, completamente, com as reduções jesuíticas: nova língua, crença e hábitos foram impostos às populações locais. Dessa forma, caso não morressem no primeiro contato com os europeus, poucas eram as saídas encontradas por essas populações. Os que conseguiam fugir tinham que abandonar suas terras, casas e rotinas. Os que não conseguissem fugir, acabavam reduzidos em missões jesuíticas e/ou escravizados pelo processo colonizador da região. Referências 113 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X CARREIRA, Antonio. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Vol. 1. São Paulo: Editora Nacional, 1988. DANIEL, João. Tesouro descoberto no rio Amazonas. v. 1. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976a. DANIEL, João. Tesouro descoberto no rio Amazonas. v. 2. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976b. DIAMOND, Jared M.. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. 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Correspondência inédita do Governador e Capitão-General do Estado do Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 1751-1759. v. 2. São Paulo: Carioca; IHGB, 1963b. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na era Pombalina. Correspondência inédita do Governador e Capitão-General do Estado do Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 1751-1759. v. 3. São Paulo: Carioca; IHGB, 1963c. MORAES, José Xavier de. História da Companhia de Jesus na extincta Provincia do Maranhão e Pará, pelo padre José Xavier de Moraes. Da mesma companhia. n. 17. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio de Brito e Braga; Travessa do ouvidor, 1860. MORÁN, Emilio F. A ecologia humana das populações da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1990. PY-DANIEL, Anne Rapp et al. Arqueologia e suas aplicações na Amazônia. 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Para o desenvolvimento da pesquisa foram consultadas como principais fontes os jornais disponibilizados no site da Hemeroteca Digital para Alagoas sobre o referido período. Através da análise dos periódicos alagoanos do período estudado é possível perceber as diferentes posturas que revelam as primeiras demonstrações contrárias ao trabalho escravo e que se detém a mencionar a necessidade do fim da escravidão, ora relacionando o trabalho escravo à barbárie, ora coloca a abolição da escravidão como um ato filantrópico. Palavras-chave: Escavidão - Abolição - Periódicos Desde a segunda metade do século XIX, em várias províncias do Brasil teve início às discussões sobre a questão escravagista. Os embates sobre a temática podem ser encontrados por meio da imprensa, onde é possível perceber de um lado a defesa pela manutenção do trabalho escravo e do outro as manifestações sobre a necessidade do fim da escravidão. Neste trabalho, o interesse é focar a partir da segunda questão, tendo em vista que através dos jornais nota-se argumentações contrárias no que se refere ao fim da escravidão, especialmente na província de Alagoas. A articulação discursiva daqueles que defendiam os prejuízos causados 80 Graduada em História Licenciatura - Universidade Federal de Alagoas. 115 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X pela escravidão permeia tanto entre um discurso moralista associado a ideia de humanitário como também ao discurso civilizatório que se encontra em jornais como O Orbe, Gutenberg, Jornal do Penedo, Lincoln, Jornal do Pilar, entre outros. O avanço de tais ideias nessa segunda metade do século XIX, fez com que o trabalho escravo passasse a ser associado à barbárie. Ao mesmo tempo fica a problemática em torno de quem poderia substituir a mão de obra escrava. Nesse cenário, os jornais tornam-se palco de diferentes grupos que buscavam defender seus discursos ideológicos e nos oferecem um vislumbre das disputas e pressões políticas em torno da questão escravista, como explica Luca e Martins juntamente com as folhas oficiais, nasciam folhas de oposição nas pequenas cidades, na capital da província ou na própria Corte. Do núcleo regional de oposição sairiam outros grupos, multiplicando-se as tendências e aumentando o número de impressos lançados fundamentalmente como instrumento de luta política.81 (LUCA; MARTINS, 2008.p 104) Pelo mostrado pelas autoras, nota-se a repercussão de debates de ideias próabolicionistas quanto os contra apropriando-se da imprensa para defender suas argumentações no jogo político dos grupos em disputa. Além disso, cabe destacar a importância do surgimento do movimento abolicionista e a organizações das primeiras associações com a finalidade de discutir o fim de escravidão. Em Alagoas, o movimento se fortaleceu especialmente a partir da década de 1880, e é quando surgem críticas acirradas na imprensa abolicionista, como nos jornais Gutemberg e Lincoln, este último autodeclarado como "órgão de propaganda abolicionista”. De acordo com Santos a estratégia inicial dos abolicionistas era a propaganda, direcionada não aos escravizados, mas aos seus senhores e à população livre do país, despertando nestes os horrores do cativeiro e disseminando os modelos norte-americano e europeu de civilidade e progresso como incompatíveis ao regime escravista, desconstruindo as LUCA, Tânia Regina de & MARTINS, Ana Luiza. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.p.104. 81 116 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X teorias justificadoras da escravidão.82 ( SANTOS, 2017) Ambientado em um contexto de mudanças políticas e econômicas, o período conhecido como Segundo Reinado no Brasil foi impulsionado por discursos antiescravistas influenciados, sobretudo pelas ideias que chegavam da Europa. Cabe destacar que outro fator determinante nos esforços em favor de se adotar a mão de obra livre ocorreu mediante a pressão inglesa que se fez presente desde a promulgação da lei de 1831. O que se percebe a partir desse momento é que a escravidão passa a ser ameaçada pelo avanço do sistema capitalista que vê na mão de obra livre e assalariada uma forma para obter lucros, o que pode ser visto logo na segunda metade do século XIX, quando se evidencia a necessidade de pôr fim ao tráfico de escravizados, como é exposto no Jornal O Constitucional A extinção do tráfico era para o país uma necessidade indeclinável que, por demais se tardia O tráfico repugnava com os princípios eternos e imutáveis do justo e do útil; era um contrassenso natural com a bondade natural do brasileiro, com sua civilização, com a religião que professam, com suas instituições políticas, e a sociedade auxiliadora da indústria nacional se compraz em acreditar que em breve os brasileiros se acharão totalmente libertados desse cancro que corroía suas fortunas, que venenava seus sentimentos de moral e os lançava na ociosidade, triste consequência da escravidão e eficaz promotora do pauperismo com toda sua corte de vícios.83 O CONSTITUCIONAL. 21 de Junho de 1851. Série.II n.20.p.3. Logo, surgem narrativas que passam a defender uma forma de trabalho mais humanitária e civilizadora, no qual apenas o trabalho livre poderia levar o país ao progresso e ao desenvolvimento, e o estabelecimento de mecanismos que passam a aprofundar a valorização e exaltação do trabalho, como o artigo denominado “Amor ao trabalho” publicado pelo Jornal do Penedo em 8 de maio de 1875, que diz SANTOS, Ricardo Alves da Silva. Interfaces do movimento abolicionista brasileiro: a imprensa abolicionista alagoana (segunda metade do século XIX). Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 25, V. 9, N. 3 (set./dez. 2017) p. 108. O CONSTITUCIONAL. 21 de Junho de 1851. Série. II n.20. p.3. Edição disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=779644&pesq=escravid%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pa gfis=67. Acessado em 09 de Out. de 2021. 82 83 117 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Um dos maiores e mais importantes benefícios que se podem fazer aos homens, em especial a classe popular é inspirar-lhes o amor ao trabalho, mostrar-lhes a sua utilidade, as suas inapreciáveis vantagens e seus felizes resultados, fazer entrar este assunto como parte essencial, no plano da instrução das primeiras escolas. O trabalho é o destino commum de todos os homens que existem sobre a terra: “comerás o pão”( Disse Deus ao nosso primeiro pae) “e comerás o pão à custa do suor do teu rosto.” Quem trabalha cumpre com o seu destino; obedece a voz do seu Criador. O trabalho é a verdadeira pedra philosofal, que os antigos com tanto empenho, e tanto em vão pretenderam indagar. 84 JORNAL DO PENEDO, 8 de Maio de 1875, ano V, n. 18, p. 3. Aqui observa-se o elemento de associar o trabalho como fonte essencial da vida, e ainda remetendo ao componente religioso de que o homem comerá à custa do próprio suor, ou ainda que o trabalho é o destino reservado a todo homem, buscando dessa forma legitimar o caráter natural da escravidão. O que podemos perceber nas argumentações do Jornal do Penedo em suas argumentações em favor do trabalho é uma espécie de contradição, já que o mesmo se sustenta tanto na base religiosa como na evocação de ordem científica ao citar Lavoisier, Kepler. Outro ponto que é mostrado em outras edições do Jornal como a de 22 de Maio de 1875 é a de que o trabalho induz a riqueza, a moralidade, a ordem e a pacificação. Diante da promulgação da lei do ventre livre existia o temor de que a mesma pudesse gerar uma desordem social provocada pela ociosidade dos escravizados. Nisto fica perceptível a visão do trabalho do como mecanismo de controle social. Em outras edições do mesmo jornal a narrativa continua mostrando o trabalho como a base do mundo moderno, e único meio de se atingir o progresso. O discurso revela as facetas das transformações econômicas que ainda buscaria manter a exploração do trabalhador em uma sociedade pós-abolição. 84 JORNAL DO PENEDO, 8 de Maio de 1875, ano V, n. 18, p. 3. Edição disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811696&pesq=escravid%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pa gfis=29. 118 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Além disso é perceptível a resistência por parte da elite local que insiste em lançar críticas ao fim do trabalho escravo e como tal ato poderia provocar uma crise econômica na lavoura brasileira, conforme se observa no editorial publicado em 10 de Novembro de 1876 pelo Jornal do Penedo AOS LAVRADORES DO BRASIL O elemento servil no Brasil – seu desaparecimento em 20 anos: ruína completa da lavoura – medidas urgentes no sentido de remediar o mal – meio de substituir o escravo pelo colono, utilizando as fontes de produção atual. [...] O período de transição do trabalho servil para o trabalho livre é cheio de perigos, pode marcar a época da ruína da lavoura e do comércio e realizar e realizar então as previsões sinistras, que se opuseram a decretação da lei.85 JORNAL DO PENEDO, 10 de novembro de 1876, ano VI, n. 43, p. 1. O texto demonstra a preocupação com as consequências provocadas pela promulgação da lei do ventre livre. Para o autor desse texto a lavoura entraria em queda pela falta de mão de obra escrava. A crítica sobre o fim da escravidão continua em outra publicação do dia 17 de Novembro de 1876, no qual o prosseguimento do editorial continua “Hoje, no meio das crises comerciais a situação da lavoura é por demais aflita, sem capitais baratos e a longo prazo ela começa a lutar com a impossibilidade de se manter ou aumentar a sua produção, porque ou vão escasseando, o norte não os podendo suprir em larga escala, ou porque, por efeito da lei natural da emancipação as alforrias os vão os retirando da lavoura. 86 JORNAL DO PENEDO, 10 de novembro de 1876, ano VI, n. 44, p. 2. Para a elite da época o avanço gradual do fim do trabalho escravo claramente estava sendo a causa da crise na economia alagoana. Ao que parece para os latifundiários da época Alagoas era totalmente dependente da mão de obra escrava, apesar de a escravidão já esta em 85 JORNAL DO PENEDO, 10 de novembro de 1876, ano VI, n. 43, p. 1. Edição disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811777&Pesq=trabalho&pagfis=353. Acessado em 08 de Out. de 2021. JORNAL DO PENEDO, 10 de novembro de 1876, ano VI, n. 44, p. 2. Edição disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811777&Pesq=trabalho&pagfis=358. Acessado em 08 de Out. de 2021. 86 119 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X queda devido ao tráfico interprovincial. Desta forma, tem início a busca por uma outra alternativa que pudesse substituir o trabalho escravo, com o incentivo a vinda de imigrantes. Todavia, em meio as narrativas em favor da escravidão em Alagoas, vale destacar que a Lei do Ventre Livre representou o início do processo para a extinção do trabalho escravo no Brasil. Como explica Santos, desde a década de 1860 já havia a constatação da forma desumana como os escravizados eram trabalhos. A partir daí, começa a atuação da Igreja Católica que através dos jornais se coloca contra o trabalho escravo, como publicado em 18 de Fevereiro de 1874 pelo Jornal do Pilar, onde é dito o seguinte “É Christã a ideia a abolição da escravidão. É próprio do christianismo oppor-se a que continue o crime das sociedades pagãs, oppor-se a que negue o negro a igualdade religiosa87” ( Jornal do Pilar). Em outro artigo intitulado “ Costumes bárbaros", publicado em 17 de Março de 1874 conclama que “O christianismo proclamou a igualdade de todas as raças, emancipou a todos os povos. [...] A sociedade não irá de acordo com os sagrados princípios da moral enquanto não se convencer que no século XIX , o captiveiro é um espantalho terrível, a escravidão é um absurdo.88”. Em ambos os trechos nota-se uma postura contrária a manutenção da escravidão, que em meio as mudanças decorrentes da segunda metade do século XIX passar relacionar a escravidão como um costume bárbaro e contrário aos princípios da fé cristã. Ao mesmo tempo, acompanhados do discurso civilizatório contra a escravidão surgem denúncias da situação dos escravizados nas mãoss de seus proprietários sendu repudiadas na imprensa como no Jornal Gutenberg. Assim, “ o mal-estar da escravidão não era mais uma constatação genérica, mas uma vivência concreta, experimentada extamente no momento em que a política externa imperial conhecia seu ápice.” (SALLES, 2009, p.69). Considerações Finais Os jornais como fontes historiográficas constituem um rico acervo capaz de oferecer ao historiador mecanismos para compreender o passado e a intencionalidade discursiva de suas publicações. No que tange aos discursos sobre a necessidade do fim da escravidão em Alagoas, os períodicos nos mostram um cenário de narrativas discursivas que se veem em meio ao JORNAL DO PILAR. 18 de Fevereiro de 1874, Ano II, n.12, p. 2. Edição disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811696&pesq=escravid%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pa gfis=22. Acessado em 09 de Out. de 2021. JORNAL DO PILAR. 17 de Março de 1874, Ano II, n.12, p. 1. Edição disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811696&pesq=escravid%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pa gfis=29. Acessado em 09 de Out. de 2021. 87 88 120 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X embate entre adotar uma forma de trabalho livre atrelada ao progresso e a modernidade, e por hora reconhecendo o caráter explorador da escravidão; por outro lado convive nessa mesma realidade a resistência por parte da elite local em manter a escravidão. Dessa forma, o que se percebe é que o caminho que levou ao fim da escravidão em Alagoas conviveu com duas realidades opostas coexistindo, com o aumento progressivo da mão de obra livre, a chegada de imigrantes, e a realidade do trabalho escravo presa na mentalidade escravista dos latifundiários. Essa contradição também é percebida na forma como se concebeu as discussões em torno da questão escravista. Aqueles que defendiam o fim do tráfico demonstram intenções e argumentos diferentes, o que nos leva a indagação de buscar conhecer quem estava por trás desses discursos, bem como a intencionalidade. É sabido que em todo Brasil, existiram expressões pró-abolicionistas atuando através de associações e se expressando através de periódicos. Todavia, resta a produção historiográfica avançar para identificar os sujeitos desses discursos. Referências bibliográficas ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. 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Interfaces do movimento abolicionista brasileiro: a imprensa abolicionista alagoana (segunda metade do século XIX). Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 25, V. 9, N. 3 (set./dez. 2017) SANTOS, Ricardo Alves da Silva. Abolicionismo e trabalho juridicamente livre: um olhar sobre a história social do trabalho em Alagoas (segunda metade do século XIX). 2019. 128 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes. Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2019. 122 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ST02 – Histórias de África, Histórias da Diáspora: Diálogos, Abordagens e Conexões "Da conservação do Reino de Angola depende todo o estado do Brasil": a política violenta dos governadores de Angola e o comércio no Atlântico Sul (16481666)89 Ana Maria Soares de Araújo90 Resumo: Este artigo analisa os governos brasílicos na Angola restaurada da ocupação holandesa e como esses agentes da Coroa, diretamente ligados com o Brasil pelo mercado atlântico de escravos, se empenharam na manutenção dos territórios conquistados e nas investidas de expansão do domínio luso. Essas gestões nos mostram o contraste entre a política administrativa “pacifista” e indireta determinada pela Coroa e a realidade de fomentação de guerras para a obtenção de escravos na conquista angolana, associado ao processo de expansão econômica do Atlântico Sul e à integração desses governadores ultramarinos nas conexões mercantis entre os dois lados do atlântico, representando uma nova forma de mobilidade social e ascensão política e econômica. Palavras-chave: Angola, comércio atlântico, administração portuguesa. “É só o que nos convinha para domar os desaforos destes negros”: os governos brasílicos e as guerras no sertão Em 12 de maio de 1648, partiu do Rio de Janeiro uma expedição liderada por Salvador Correia de Sá e Benevides com o objetivo de restaurar Angola das mãos holandesas – que haviam invadido e ecupado a região em 1641. A expedição aportou em 12 de agosto na capital Luanda, seis dias depois atacou os fortes do Morro e da Guia e, encurralados, os holandeses acabaram cedendo. Com Angola restaurada, Salvador de Sá assumiu o cargo de governador de Luanda, iniciando o período dos governos com interesses brasílicos em Angola, concentrado 89 Esse artigo é um fragmento de dissertação de mestrado intitulada “Não há cousa que mais danifique os homens que a ambição e soberba”: redes de poder e revoltas em Angola sob a administração ultramarina portuguesa pósRestauração (1640-1667), defendida em 2020. 90 Mestra em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: anams.araujo@outlook.com 123 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X no controle dos sertões, mais exatamente nas feiras e redes de comércio que conduziam ao porto de Luanda. Para reabrir o comércio, o governador promoveu campanhas ofensivas contra sobas rebeldes (aliados aos holandeses durante a invasão) e livres, avassalando o sertão até um raio de 180 quilômetros através da imposição de armas. Essas ações expedicionárias contradiziam a política minimalista e indireta definida pela Coroa. Os conselheiros do Rei não viam um quadro favorável ao domínio mais amplo da região: o clima difícil, a povoação colonial escassa, a resistência nativa e a presença estrangeira eram alguns dos fatores que corroboravam para a defesa de uma estratégia de controle restrito e concentrado na região costeira (ALENCASTRO, 2000, p. 262-264). Em carta régia, o restaurador de Angola é advertido a fazer guerra somente em última instância: caso “não for muito forçosa, a escuseis o mais que possa ser” (MMA, X, p. 343). Apesar de alguns feitos mais tolerantes de sua gestão, como a concessão de perdão aos vassalos pelos tributos anuais de escravos não pagos e a isenção de tais tributos a antigos e novos vassalos, as campanhas não cessaram e o sertão “ardia no fogo de viva guerra”, padecendo seus habitantes pela precedente infidelidade (MMA, X, p. 471-472; TORRES, 1825, p. 184). Em julho de 1651, o ouvidor e provedor da Fazenda Real em Angola, Bento Teixeira de Saldanha, escreveu ao monarca sobre a necessidade de se fazer guerra contra o rei do Congo, a rainha Nzinga e a província de Kissama sob o pretexto de escassez de escravos, principal recurso da conquista de Angola. Impedido o resgate nas feiras por esses inimigos da Coroa, restava-lhes pôr guerra em campo para adquirir cativos. Sua Majestade, contudo, manteve sua posição e reforçou que para tal ação as causas precisavam ser muito bem fundamentadas, já que muitas vezes os governadores arranjavam pretextos para guerrear contra os negros sem na realidade haver outra causa além da cobiça de cativá-los e vendê-los. O resgate, portanto, deveria ser realizado de forma “pacífica e justificada”, não sendo motivo de se empenharem expedições nos sertões (MMA, XI, p. 245-247). A cautela em evitar os conflitos com os sobas dos sertões ia além da política “pacifista” da Coroa, havia o receio em deixar a capital desguarnecida e suscetível a ataques de seus concorrentes castelhanos e holandeses. A praça de Angola era cara ao império português e qualquer ameaça à perda do controle sobre o trato negreiro e o fornecimento de escravizados para o Brasil preocupava a administração ultramarina. Por outro lado, os portugueses foram forçados a autorizar a venda de escravizados para a América espanhola e em troca obter a prata necessária para arcar com 124 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X os custos da guerra luso-espanhola (SCHWARTZ, 2008, p. 2018) . A reabertura do trato negreiro entre Angola e o Rio da Prata, que havia sido interrompida com o ataque holandês, era tida como favorável e impulsionada, principalmente por Salvador de Sá. A oligarquia dos Sá e seus aliados fluminenses possuíam grande interesse na região platina, já que estavam envolvidos no escambo de cativos africanos pela prata do Potosí, sendo tal negócio decisivo no investimento fluminense na expedição restauradora de Angola em 1648 (ALENCASTRO, 2000, p. 110). Salvador de Sá, que havia sido governador do Rio de Janeiro entre 1637-1643 e entre janeiro e maio de 1648, foi um dos responsáveis pela formação do triângulo Rio – Luanda – Buenos Aires, chegando a solicitar várias vezes apoio e recursos à Câmara para a criação de um entreposto no Rio da Prata que facilitasse as relações comerciais com as províncias espanholas, sempre destacando a conveniência da colonização dessa região (BICALHO, 1998, p. 9). Seu sucessor, Rodrigo de Miranda Henriques (1652-1653), enfrentou as más disposições do manicongo que vinha dificultando o comércio e a livre passagem e determinou o envio de gente armada para castigá-lo e os demais sobas “desobedientes e alevantados”, mas não conseguiu levar a empreitada adiante devido a seu falecimento (TORRES, 1825, p. 187). Tomando posse em Luanda, Luís Martins de Sousa Chichorro (1654-1658) tratou logo de informar ao Rei a situação da conquista que, por sinal, andava tumultuada pelo comportamento indesejado dos sobas. As queixas incluíam impedimento do trato, danos aos pumbeiros, roubo de cativos e a consequente paralização do comércio, causando danos aos moradores de Massangano, Muxima e Cambambe. Expostas as circunstâncias, convinha, para evitar a “ruína de Angola”, guerrear e conquistar a província de Kissama (MMA, XI, p. 497-499). A expedição, iniciada em fevereiro de 1655, chegou a um fim inconclusivo depois de aproximadamente um ano e meio de muitas perdas e gastos à Fazenda Real. Mesmo conseguindo refrear algumas revoltas, os sobas da “província indômita” continuavam livres e insubordinados. Vários fatores contribuíram para a retirada das tropas portuguesas da região, dentre eles a difícil geografia do território, o amparo de grupos jagas aos inimigos, a ameaça holandesa que ainda rondava a costa angolana e demandava a presença de um aparato militar para a proteção de Luanda e a proibição da obrigatoriedade da ida dos moradores às guerras nos sertões. Enquanto isso, D. Garcia II estava em contenda com o Conde do Soyo e com o Marquês de Mpemba, que reivindicava ter mais direito ao trono do Congo que o então 125 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X soberano e, ameaçado pelo manicongo, pediu auxílio português (CADORNEGA, II, p. 133135). O relacionamento com D. Garcia II mantinha-se instável: as constantes quebras das capitulações estabelecidas após a restauração fomentavam o anseio dos governadores por guerra. Quando informado por Chichorro acerca da fuga dos escravos dos moradores de Luanda para o Congo, o monarca ordenou a criação de uma junta com religiosos, ministros superiores da guerra, oficiais da Câmara e alguns cidadãos civis para tratar sobre a questão e qual desfecho deveria ser efetuado. Em abril de 1657 o governador escreveu ao Cabido do Congo para que este comunicasse ao soberano que, caso não tomasse as providências necessárias acerca de suas obrigações para com a Fazenda Real até junho, iria lhe enviar guerra (MMA, XII, p.42-43, 114). A guerra contra o manicongo havia sido votada e aceita no Conselho, que a considerava justa pela “pouca fé e afeição” do soberano à Coroa, e foi logo comunicada ao Rei. Segundo o governador, além de não ressarcir os prejuízos causados, D. Garcia II ainda estava gerando conflitos com seus vassalos, a exemplo da prisão de dois irmãos do Marquês de Mpemba. Além de subjugar o manicongo, o confronto acarretaria rendimentos ao Rei, como a chegada às marinas de sal. Com a posse das salinas a Coroa poderia adquirir renda necessária para a conservação do Reino e das forças militares e expandir sua influência sobre os sobas mais distantes, pela necessidade que estes tinham do sal. Mesmo com a decisão da ofensiva aprovada em Luanda, o Rei recomendou a criação de mais juntas e mais votações sobre tal tópico (MMA, XII, p. 124, 126, 146, 273). As ordens vindas de Portugal continuavam as mesmas: as guerras deveriam ser evitadas a todo custo e empregadas somente quando bem fundamentadas, a paz com os sobas era de “grande conveniência a defensa e conservação daquele Reino, principalmente enquanto não há nele grande poder, como algumas vezes se tem representado” (MMA, XII, p. 74). Essa política indireta não agradava a administração angolana. João Fernandes Vieira (1658-1661), relatando sobre a situação da conquista, destacou que os resgates e o comércio andavam de mal a pior, consequência da rebeldia dos sobas, com pouca ou nenhuma obediência desde a invasão holandesa, “porque como então viram suas armas superiores às nossas, logo tiveram delas muito diferente opinião da que tinham de antes” (MMA, XII, p. 172). Os ndembu estavam quase todos rebeldes e as armas portuguesas não mais tinham autoridade sobre eles. Para reverter esse quadro convinha: 126 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X [...] serem aqueles sovas castigados, e fazer-se com eles uma demonstração, para que outros se não atrevam [a] cometer semelhante maldade, e para que aqueles que são vassalos conheçam se deve fazer com os mais que forem rebeldes e impedirem o comércio, e o não deixarem fazer livremente (MMA, XII, p. 172). Em contraponto ao Conselho, Fernandes Vieira via a guerra como único remédio para a conservação da presença portuguesa e esse posicionamento se externou em seu governo. Em mais uma reunião com os prelados das religiões, autoridades civis, judiciais e militares a declaração de guerra contra o Congo foi deliberada, pois havia tempos D. Garcia II não respeitava as decisões estipuladas e mostrava-se inimigo declarado da Coroa, alegando publicamente seu descontentamento em entregar os escravizados fugidos à Luanda e com os impostos excessivos que lhes eram colocados, chegando a consumir metade de sua fazenda. Fora as reclamações, teria declarado seu intento em não mais permitir portugueses e nem resgates em suas terras (MMA, 1ª série, XII, p. 226). Reforçando a decisão, a Câmara de Luanda escreveu ao Rei D. Afonso VI em abril de 1659 que a ruína daquele reino de Angola nascia da acolhida desses fugitivos que se achavam no Congo e que calhava executar a guerra durante a gestão de Fernandes Vieira devido a sua grande fama entre o gentio “de quem tenha tanto temor, que é só o que nos convinha para domar desaforos destes negros” (MMA, XII, p. 231-232). O governo de Vidal de Negreiros (1661-1666) não foi menos violento que o de seu antecessor. D. Garcia havia morrido e D. António, Vita-a-Nkanga, era o novo soberano do Congo. Negreiros continuou investindo na legitimação da guerra contra o Congo e além das acusações de insubordinação e acolhimento de escravizados fugidos, o manicongo agora era acusado de não entregar as minas de metais de seus territórios à Coroa. Assim, Negreiros escreveu a D. António solicitando a entrega das minas e no caso de sua inexistência, como afirmava o mani, que lhe permitisse enviar seu pessoal para confirmar. D. António manteve sua posição e respondeu que desconhecia a existência de alguma capitulação sobre a entrega das minas no tratado de paz anteriormente estabelecido e que não as entregaria, mesmo que existissem (MMA, XII, p. 475-476). Os rumores da ofensiva portuguesa continuaram e chegaram aos ouvidos do cabido do Congo e sendo a região um reino independente, cristão e aliado da Coroa, tal ação não se mostrava “justa”, como protestavam os cônegos e padres de São Salvador, que escreveram ao 127 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X governador pedindo que desistisse da guerra e que em caso de hostilidades o soberano do Congo enviaria seus protestos a Luanda e suas queixas ao monarca português D. Afonso VI, ao que Negreiros respondeu que não preparava guerra contra o reino do Congo, mas para assegurar o descobrimento das minas de metais. O cabido mais uma vez destacou que para a exploração das minas (que não eram de ouro e sim de cobre) não havia necessidade de conflito, apenas que o Rei do Congo fosse comunicado “porque isso é entrar em casa alheia sem primeiro bater à porta” (MMA, XII, p. 545, 547, 552), mas o governador não voltou atrás, reforçando que se o manicongo não mudasse de parecer não só ia conhecer o erro desta sua resolução e o “que merece faltar sempre tanto ao reconhecimento e à fidelidade que deve, [...] mas se lhe eu bater à porta sobressaltar-se de maneira que temo lhe caia a coroa da cabeça e que a não possa mais levantar” (MMA, XII, p. 566-567). Em meio a isso, D. António declarou guerra à Coroa publicamente convocando todos os seus súditos (MMA, 1ª série, XII, p. 549). Com isso o manicongo lançou um atentado contra o Duque de Wandu (Oando) que desamparado fugiu para Mbwila (Ambuíla). Acolhendo o Conde de Wandu e com D. António marchando em direção ao seu potentado, o soberano de Mbwila recorreu ao auxílio português. O episódio de Mbwila trouxe muitas perdas à aristocracia congolesa: o soberano do Congo, um sobrinho seu, os duques de Mbamba, Mbata, Sundi e Mpemba, noventa e cinco altos dignitários, o clérigo mulato e quatrocentos outros muissicongos (MMA, XII, p. 589-591; SILVA, 2011, p. 488-489). O Congo agora se encontrava politicamente enfraquecido e descentralizado e a fragmentação do poder decorrente de 1665 acarretou em diversos conflitos pela ocupação do trono, iniciando um quadro político ainda mais conturbado (GONÇALVES, 2008, p. 96-97). A inserção desses personagens nas relações comerciais entre as duas margens do Atlântico Sul A ligação desses governadores com o Brasil era clara: todos possuíam histórico de ocupação de cargos administrativos ou envolvimento no comércio. Salvador de Sá, além de governador do Rio de Janeiro, foi membro da Companhia Geral do Comércio do Brasil, um grande proprietário de terras e determinava a economia açucareira fluminense desde 1635, controlando exclusivamente a exportação de todo açúcar fluminense à Europa. Logo, seu empenho na reconquista de Angola não refletia apenas sua fidelidade com a Coroa portuguesa, mas seus interesses no reestabelecimento do comércio de escravizados – fundamental para o funcionamento das lavouras – e também no escoamento dos produtos fluminenses: o açúcar e 128 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X a jeribita. Com isso, Salvador de Sá atendia às necessidades tanto do Brasil quanto da região da Prata (CAETANO, 2004, p. 349-350, 353). Rodrigo de Miranda Henriques tinha sido governador do Rio de Janeiro entre 1633 e 1637, conhecia bem as rotas da prata peruana e as transações comerciais no Atlântico Sul, dando continuidade ao processo de reabertura da carreia Luanda–Rio–Buenos Aires, iniciada por Salvador de Sá. Luís Martins de Sousa Chichorro ficou a par do negócio negreiro e da carreira de Angola na sede do governo-geral e em Luanda seguiu a mesma política de seus antecessores (ALENCASTRO, 2000, p. 271-272. João Fernandes Vieira participou da resistência contra a invasão holandesa em Pernambuco em 1630, trabalhou para o comerciante e senhor de engenho judeu neerlandês Jacob Stachhouwer, passando a ter experiência com o trato negreiro, foi indicado ao cargo de escabino em Olinda e ingressou na aristocracia rural pernambucana após seu casamento com Maria César. Vieira foi aclamado como uma das principais lideranças do movimento de restauração pernambucana contra o domínio holandês, atributo cedido também a André Vidal de Negreiros (SOUSA, 2013, p. 70). Nascido na Paraíba, Negreiros foi mestre-de-campo, governou o Maranhão entre 1655 e 1656 e Pernambuco de 1657 até 1661, quando assumiu em Angola. Exercer o cargo de governador de Pernambuco enquanto Vieira administrava Angola mostrou-se conveniente para unir as duas costas do Atlântico no mesmo objetivo: aumentar a produção açucareira com a mão-de-obra escrava adquirida na costa angolana (PESSOA, 2009, p. 5; SOUSA, 2013, p. 11). Apesar de seus postos como representantes da Coroa, a maior parte dos lucros no contexto ultramarino derivava do resgate e exportação de mão-de-obra escravizada e, portanto, esses funcionários tinham uma assídua participação no trato negreiro na busca por enriquecimento pessoal. Aqui há uma ascensão do controle de comerciantes coloniais sobre a economia atlântica, compondo um grupo com ambições próprias: a expansão das conexões mercantis com outras conquistas, sobretudo com a África. Os governadores ultramarinos estavam encarregados de cumprir as ordens régias transmitidas pela Coroa, eram representantes do Rei em suas conquistas (OLIVEIRA, 2013, p. 13, 22), mas, para suprir a demanda da produção açucareira no Brasil, desviaram da política estabelecida pelo monarca. Em um levantamento de dados obtido no Trans-Atlantic Slave Trade Database91, estima-se que o número de escravizados transportados para o Brasil entre 1646 e 1665 passou 91 Disponível no site slavevoyages. org, plataforma online que dispõe de um banco de dados sobre o transporte transatlântico de escravizados. 129 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de 6.210 para 38.738. Esses dados revelam um crescimento de 523,80% na quantidade de mãode-obra escravizada exportada entre 1646-1650 e 1651-1655, período de transição para a administração brasílica em Angola. A maior parte desses africanos foi destinada para a Bahia e para a região sudeste, no Rio de Janeiro, para o trabalho na produção de açúcar. O século XVII assistiu a decadência do Estado da Índia e a expansão econômica do Atlântico Sul devido às plantações de açúcar e, posteriormente, as minas de ouro descobertas no Brasil. A competição de espanhóis, ingleses e holandeses e a perda de Ormuz (1622), Malaca (1641), Cochim e Ceilão (década de 1660) provocaram uma redução das atividades comerciais nas conquistas portuguesas orientais. As viagens da carreira despencaram, com uma perda média de vinte por cento da tonelagem embarcada na segunda metade do século XVII mesmo com a autorização da parada de navios partidos de Goa no Brasil, onde havia uma grande demanda de mercadorias de luxo asiáticas. O fato é que o complexo açucareiro brasileiro havia se tornado o cerne do império português: em meados de 1630, os 350 engenhos do Brasil produziam mais de vinte mil toneladas de açúcar por ano e na década seguinte o açúcar era o centro das atenções no cenário econômico (SCHWARTZ, 2008, p. 2012). Sobre essa expansão atlântica, Boxer afirma: “Quem diz Brasil diz açúcar e mais açúcar”, escreveu o conselheiro municipal da Baía à Coroa em 1662; e, dois anos mais tarde, um marinheiro inglês dizia do Brasil: “O país está completamente cheio de engenhos de açúcar, os quais produzem a maior parte do melhor açúcar que é feito”. Acrescentou que o Rio de Janeiro, a Baía e o Recife “todos os anos carregavam muitos navios com açúcar, tabaco e pau-brasil para os mercadores de Portugal, sendo isso muito enriquecedor para a Coroa de Portugal, sem o que não passaria de um reino pobre” (BOXER, 1969, p. 155). Em 1640 havia aproximadamente setenta ou oitenta mil indivíduos de ascendência africana no Brasil, metade deles distribuídos em atividades ligadas à produção do açúcar (SCHWARTZ, 2008, p. 216). A crescente procura por escravizados para o trabalho nas minas e plantações conduziu ao aumento do trato negreiro com a África Ocidental e a consequente procura por novos mercados nessa região (BOXER, 1969, p. 159, 162). A interiorização do aparato administrativo português buscava viabilizar a canalização de cativos para o porto de Luanda, por isso o investimento em feiras no interior e a preocupação com a livre circulação de pumbeiros e promoção dos resgates. Nas feiras sertanejas circulavam o marfim, a cera de 130 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X abelha, peles, almíscar, cobre, ouro, goma, azeite de palma, entre outros. Esses produtos eram encaminhados para os portos junto com os cativos e serviam para aumentar os lucros obtidos com os carregamentos de escravizados (ALENCASTRO, 2000, p. 114). A maior parte das expedições punitivas postas em campo pelos governadores brasílicos foram respostas às queixas sobre os danos causados pelos sobas rebeldes nas transações mercantis e quando derrotados pelas armas portuguesas essas chefias eram coagidas a prestar vassalagem e manter as vias comerciais desimpedidas. O envio de assistência do Brasil era sempre solicitado nos conflitos contra os sobas insubordinados. Em uma consulta do Conselho Ultramarino de 1656, solicita-se o envio de dois navios com quatrocentos infantes para somar à guerra preta e aos colonos na guerra de Kissama, salientando a conexão entre as duas conquistas: sem o Brasil não haveria o trato negreiro e sem Angola não se sustentariam os engenhos de açúcar do Brasil, pois Luanda “pode ser o posto naquela costa que mais riquezas dê a este Reino, do que dão as Índias a Castela” (MMA, XII, p. 7-8, 18). Após a expulsão dos holandeses, a esfera econômica da região nordeste do Brasil se deparou com outro problema: a rápida consolidação do complexo açucareiro escravista nas Antilhas. O crescimento da produção inglesa e francesa no Caribe afetou negativamente a economia açucareira brasileira, derrubou o preço do açúcar nos mercados europeus e a demanda por mão-de-obra nas plantations antilhanas aumentou os preços dos escravizados no litoral africano. Além disso, a política mercantilista adotada pela Inglaterra e pela França na tentativa de elevar a produção antilhana garantiu-lhe proteções monopolistas e praticamente excluiu o açúcar brasileiro desses dois mercados europeus. O império português, financeiramente abalado pela guerra contra a Espanha e dependente dos lucros gerados por suas possessões na América, precisou aplicar uma tributação maciça sobre o açúcar brasileiro, necessária para a defesa do Reino. Para manter a estabilidade de produção nos engenhos brasileiros, a união com a África foi primordial; a garantia do fluxo contínuo de escravizados a baixo custo para os engenhos assegurou a conservação da economia açucareira da América portuguesa apesar da adversidade no contexto internacional (MARQUESE, 2006, p. 113). As transações no Atlântico Sul fluíam dos dois lados e existia uma demanda por mercadorias brasileiras na costa africana. Produtos de escambo, como os zimbos, a farinha de mandioca, a jeribita, tabaco, cavalos, fubá, marmelada, peixe seco e salgado, queijos, louça de barro, etc., eram adquiridos para as mais diversas finalidades: alguns serviam para rituais 131 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X religiosos e cerimônias políticas, outros compunham o banzo92, e todos integravam as redes de trocas no trato transatlântico. Os zimbos (ou nzimbu), búzios extraídos do mar, eram usados como moeda de troca, principalmente na região do Congo. Mesmo com a extração na costa angolana e congolesa, os zimbos baianos eram frequentemente importados de Salvador ou do Rio de Janeiro, de onde saíam sem pagar tributos, furando o controle metropolitano português. A mandioca era uma das bases da alimentação dos escravizados africanos e com a crescente deportação de cativos passou a ser muito requisitada. A baía de Guanabara enviou cerca de 680 toneladas de farinha de mandioca anualmente para Angola na primeira década do século XVII e, por conta da demanda, chegava ao porto de Luanda com seu valor quadruplicado. O predomínio da mandioca na alimentação negreira barateava o frete entre os dois lados do Atlântico e fortalecia o comércio entre as conquistas. O consumo em Luanda chegou a 35-40 mil em meados do Seiscentos, representando uma média diária de 1,5 tonelada de farinha e mesmo com o transporte dessa cultura para as lavouras africanas, os mandiocais regionais estavam suscetíveis às secas e pragas, fazendo com que a importação desse gênero perdurasse (ALENCASTRO, 2000, p. 251-256). Considerações finais Com Angola restaurada das mãos dos concorrentes holandeses, era hora de retomar o que foi perdido da jurisdição portuguesa. Os governos que se seguiram à restauração adotaram medidas similares: castigar os sobas que se aliaram aos flamengos e se revoltaram contra a Coroa; expandir o controle português, avassalando sobas livres; reabrir e expandir as rotas comerciais nos sertões e, consequentemente, retomar o comércio com o Brasil. A política adotada por esses governadores ultramarinos foi violenta e marcada por expedições punitivas no hinterland angolano, contradizendo as ordens administrativas determinadas pelo monarca português. A “dominação indireta”, respaldada na aproximação por meios brandos, foi constantemente frisada nas correspondências enviadas pelo Rei e seu Conselho. Contudo, as campanhas militares fomentadas por esses brasílicos e a construção da legitimação da guerra contra os sobas rebeldes, principalmente contra o manicongo, mostram a divergência de interesses entre centro e periferia e como as ordens saídas de Portugal podiam ser adaptadas por esses agentes da Coroa. 92 Banzo era uma unidade formada por vários produtos e usada para adquirir escravizados no sertão (ALENCASTRO, 2000, p. 115). 132 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Angola estava estreitamente conectada ao Brasil por meio do comércio atlântico e a política adotada por esses governadores só pode ser analisada através dessa ligação. A promoção de guerras, avassalamentos compulsórios e o investimento nas feiras e no livre comércio nos sertões visava principalmente a captação de mão-de-obra destinada à produção açucareira brasileira. A exportação de escravizados para o Brasil, que cresceu consideravelmente nesse período, e a importação de mercadorias brasileiras mostram como esses agentes viam na economia atlântica um meio de enriquecimento pessoal. Referências Fontes: BRÁSIO, A. Monumenta Missionária Africana. Série 1, Volume 10 (1647-1650). Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1965. ______. Monumenta Missionária Africana. Série 1, Volume 11 (1651-1655). Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1971. ______. Monumenta Missionária Africana. Série 1, Volume 12 (1656-1665). Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1981. CADORNEGA, A. de O. de. História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Agência Geral das Colônias/Editorial Ática, 1940, tomo II. The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: < https://www.slavevoyages.org/>. Acesso em: 10 jun. 2019. TORRES, J. C. Feo Cardozo de Castelo Branco e. Memórias contendo a biografia do vicealmirante Luis da Mota Feo e Torres. 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Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. 134 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Notas para o estudo da imprensa angolana oitocentista Eduardo Antonio Estevam Santos93 Resumo: Este breve artigo analisa e interpreta historicamente o surgimento e a produção de periódicos em Angola no século XIX. Apresenta um balanço do estado da arte, às características, às dinâmicas e particularidades desse tipo de imprensa. Palavras-chave: Imprensa, Política Colonial, Historiografia. Abstract: This brief article analyzes and historically interprets the emergence and production of periodicals in Angola in the 19th century. It presents a balance of the state of the art, characteristics, dynamics and particularities of this type of press. Keywords: Press, Colonial Politics, Historiography. Este artigo pretende contribuir, de forma limitada em função do limite destinado para esta publicação, para a historiografia da imprensa angolana, mais precisamente, para a escrita da História de Angola por meio da imprensa. Nosso marco temporal tem início em 1845, com o surgimento do Boletim do Governo Geral da Província de Angola, e a década de 1890, o encerramento desse ciclo, quando finalmente as pretensões de Portugal em África foram asseguradas internacionalmente, repercutindo na feição editorial da imprensa. A história da imprensa angolana tem início em 1836, quando o ministro Sá da Bandeira autoriza no artigo 13.º do decreto de 7 de dezembro a criação nas possessões ultramarinas portuguesas, publicações que pudessem transmitir informações militares, civis, legais, comerciais e gerais. O Boletim do Governo Geral da Província de Angola foi pioneiro, mas a imprensa não oficial teve sua primeira aparição em 1852 com o periódico Almanak Estatístico da Província de Angola e suas Dependências, que segundo Júlio de Castro Lopo, preocupava93 Prof. Dr. do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, campus dos Malês/Bahia. Este trabalho foi apresentado no simpósio temático Histórias de África, histórias da diáspora: diálogos, abordagens, conexões, parte integrante do 12º Encontro Nacional de História e 1º Encontro Internacional de História da Universidade Federal de Alagoas, realizado virtualmente entre os dias 8 e 10 de setembro de 2021. 135 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X se com as notícias do governo e informações genéricas sobre clima, população, religião, comércio e indústria, cujo objetivo era satisfazer o leitor com curiosidades e aprofundamento de assuntos sobre a história de Angola. Fundado por dois militares, um advogado e um funcionário do governo, o Aurora, foi o terceiro semanário fundado em Angola, em 1856, suas intenções eram exclusivamente literárias. O primeiro periódico noticioso, que inaugurou a chamada imprensa livre, A Civilização da África Portuguesa, teve o seu primeiro número editado em 06 de dezembro de 1866, esse impresso foi um marco na história do jornalismo angolano. Alguns meses depois, surgiu o Comércio de Luanda. Na década de 1870 surgiram mais 7 periódicos, O Mercantil (1870), O Almanach Popular (1872), O Cruzeiro do Sul (1873), O Meteoro (1873), Correspondência de Angola (1875) e o Jornal de Luanda (1878). O Almanach era composto e impresso nas oficinas do Mercantil. O Correspondência de Angola foi um jornal noticioso, literário e político e, assim como O Meteoro, também teve uma curta duração. Não era comum apresentar a tiragem das edições, apenas O Mercantil o mencionava, com publicações semanais, sua tiragem era de 700 exemplares. Em todo o século XIX foram publicados 52 periódicos e, no geral, esses impressos tiveram uma curta duração. Apresentavam-se no formato padrão do seu tempo, dividido em quatro partes. Nos primeiros periódicos havia uma ausência total de ilustrações. Na década de 1870 passou a circular impressos com gravuras e eram mais atrativos para ler. Contudo, para uma interpretação histórica desses materiais, apresentaremos um balanço do estado da arte, às dinâmicas e particularidades deste tipo de imprensa. Tabela 1 Periódicos Ano/duração Boletim do Governo Geral da Província de Angola 1845 Almanak Estatístico da Província 1852 d’Angola e suas Dependências A Aurora 1856 A Civilização da África Portuguesa 136 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 1866/1867 O Comércio de Luanda 1867-1870 O Mercantil 1870-1891 / 1896-1897 O Almanaque Popular 1872 O Meteoro 1873 O Cruzeiro do Sul 1873-1878 Correspondência de Angola 1875 Jornal de Luanda 1878-1882 Noticiário de Angola 1880 Boletim da Sociedade Propagadora de 1881 Conhecimentos Geográfico-Africano de Luanda Gazeta de Angola 1881 O Echo de Angola 1881-1882 O Jornal de Mossamedes 1881-1882 O Ultramar 1882 A Verdade 1882 A União Áfrico-portuguesa 1882-1883 O Raio 1884 O Bisnaga 1884 O Futuro de Angola 1882-1894 O Pharol do Povo 1883-1885 O Rei Guilherme 1886 O Arauto dos Concelhos 1886 O Serão 1886 A Tesourinha 1886 O Exército Ultramarino 1887-1888 O Progresso de Angola 1887 O Exército Ultramarino 1887 O Foguete 1888 137 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Mukuarimi 1888 Muen Exi 1889 Arauto Africano 1889-1890 O Desastre 1889-1890 O Tomate 1889-1891 O Correio de Luanda 1890 O Chicote 1890 Os Concelhos de Leste 1891 Notícias de Angola 1891 O Polícia Africano 1890-1891 Commércio d’Angola 1892 O Sul de Angola 1892-1893 A Província 1893 O Independente 1894 Bofetadas 1894-1895 O Imparcial 1894-1895 / 1898 Propaganda Colonial 1896 O Santelmo 1896 Revista de Luanda 1896 Propaganda Angolense 1897 A Folha de Luanda 1899 Fonte: LOPO, Julio de Castro. Para a História do Jornalismo de Angola. Luanda: Museu de Angola, 1952. Os trabalhos do Júlio de Castro Lopo são nomeadamente um marco na historiografia da imprensa angolana. Esse pesquisador nasceu em Valpaços (Portugal), em 1899, morou em Angola por mais de cinquenta anos e morreu em 1971 no mesmo local do seu nascimento. Foi funcionário público, mas, a sua grande paixão foi a investigação. Para a História da Imprensa de Angola, publicado em 1962 e Jornalismo de Angola – subsídios para a sua história, editado em 1964, são as suas principais contribuições para a historiografia da imprensa angolana. Em 138 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X linhas gerais, Lopo estava preocupado com a evolução da imprensa periódica 94 e jornalística, por meio de análises que se pautaram mais nas descrições dos materiais impressos que na articulação entre os processos históricos que os influenciaram ideologicamente. Na historiografia dos periódicos e dos jornais angolanos, embora a produção de artigos seja extensa, podemos destacar em ordem cronológica os seguintes autores e suas respectivas obras: Brito Aranha escreveu o livro Subsídios para a história do jornalismo nas províncias ultramarinas95, editado em Lisboa, pela Imprensa Nacional, em 1885; o jornalista Teófilo José da Costa, publicou importantes artigos em A Voz de Angola e Tribuna dos Musseques (19651974); Carlos Erverdosa, Roteiro da Literatura Angolana, publicado em 1979; Vittorio Salvadorini, Os Primeiros Números de um Jornal de Angola: O Cruzeiro do Sul; Rosa Cruz e Silva, O nacionalismo angolano. Um projeto em construção no século XIX? Através de três periódicos da época: O Pharol do Povo, O Tomate e O Desastre apresentado no II Seminário sobre a História de Angola; Fernando Gamboa, A guerra luso-dêmbica, através de um periódico oitocentista angolense (1872-1885), trabalho apresentado no Seminário Encontro de Povos e Culturas em Angola, atividade integrante da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, em 1997; Marcelo Bittencourt, Dos jornais às armas - trajectórias da contestação angolana, 1999; por fim, o livro A Imprensa e o império na África portuguesa, 1842-1974, resultado da tese de doutoramento da pesquisadora Isadora de Ataíde Fonseca. Esse vasto estudo de longa duração da Isadora de Ataíde analisa as dinâmicas da imprensa e do jornalismo nos territórios compreendidos como a África Portuguesa (Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné). No estudo de caso dessas regiões Isadora Ataíde demonstra que a imprensa e o jornalismo nos cinco territórios apresentaram dinâmicas e características similares no período colonial, e que a mesma foi decisiva na afirmação do colonialismo português, mas o jornalismo também contestou e opôs-se ao projeto imperial. 94 Segundo o decreto publicado no Boletim do Governo Geral da Província de Angola no dia 12 de fevereiro de 1857, sobre as restrições à liberdade de imprensa, entendia-se por imprensa periódica, toda a estampa, escrito impresso ou litografado, publicados em dias certos ou irregulares, que contivesse notícias ou matérias religiosas, políticas ou atos da vida particular de qualquer pessoa, dos quais possa resultar infâmia, desonra ou injúria, e que não excedesse seis folhas de impressão. Boletim do Governo Geral da Província de Angola, 12 de fevereiro de 1857, p.4. 95 Ver LOURENÇO, João Pedro da Cunha. A dinâmica e o estatuto dos jornalistas em Angola no período da imprensa livre (1866-1923). União dos Escritores Angolanos. https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios, consulta em 12 de maio de 2019. 139 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Essa imprensa periódica oitocentista, já foi classificada pela historiografia de forma exagerada, como amadora96, acreditamos que tal crítica não procede, pois, O Mercantil, foi tido como o primeiro jornal profissional de Angola, durou 27. A longa duração era um sinal de que esse meio de comunicação conquistou o grande público e teve leitores ativos durante muito tempo. A Civilização da África Portuguesa e O Cruzeiro do Sul também foram periódicos respeitáveis, dentro das condições técnicas e tecnológicas do seu tempo. Para garantir a confiança do público leitor os editores tinham que demonstrar posturas éticas. Vejamos o seguinte exemplo: No nosso n.º 42 apenas demos aos nossos leitores uma notícia sucinta, mais exacta, sobre os acontecimentos do Ambriz, como nos permitiu a falta de tempo e o recomendava a prudência para não sermos falsos noticiadores.97 Preocupações com a profissionalização existiam desde o surgimento da imprensa livre, e, em 1894, nota-se uma certa consciência coletiva, onde-se falava de critérios de admissão e conduta profissional. Sobre as condições técnicas, existiam poucos especialistas com o domínio dos prelos, os primeiros tipógrafos da imprensa livre eram os mesmos do Boletim Oficial. Era comum anúncios aceitando candidatos a aprendizes para composição nas tipografias nas décadas de 1860 e 1870. “Os nossos compositores e impressores são moços africanos de quinze anos que acabam de sair da aula de leitura, e nem sequer tinham entrado numa oficina tipográfica antes de aberta a nossa”98. As tipografias não imprimiam somente jornais, senão morreriam de fome, imprimiam todo tipo de material. Ter a sua própria tipografia revelava uma certa autonomia financeira, mas, nem todos a possuíam, o Aurora, o terceiro semanário fundado em Angola, em 1856, era impresso na tipografia do governo. O Desastre era impresso na tipografia do Arauto Africano, esses são apenas alguns exemplos. As edições eram numeradas, de modo que os leitores pudessem saber se tinham perdido algum exemplar. Novos temas dominaram a pauta política e influenciaram muito no surgimento de novos periódicos, tais como, os debates internacionais acerca da nova política colonial 96 A generalização de Júlio de Castro Lopo revela pouca profundidade analítica, ao caracterizar de forma homogênea 5 décadas de periodismo do século XIX como episódica e amadora. Lourenço, A dinâmica e o estatuto dos jornalistas em Angola no período da imprensa livre (1866-1923), s/p. Op. Cit. 97 Idem. 98 A Civilização da África Portuguesa, 31 de janeiro de 1867. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Monografias, cota 5150. 140 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X (Conferência de Berlim 1884-1885), as influências do republicanismo português e brasileiro, o movimento contestatório dos filhos do país, dentre outros. A elite letrada, principalmente mestiça, acreditava que nos ideais republicanos poder-se-ia concretizar a igualdade jurídica conforme preconizava a constituição portuguesa. Houve uma explosão de novas publicações, dos 52 periódicos do século XIX, 41 surgiram nas décadas de 1880 e 1890. Suas fontes de informações eram resultado de consultas realizadas junto aos sujeitos envolvidos no fato, em relação ao exterior, os periódicos de maior circulação tinham correspondestes em São Tomé, Moçambique, Lisboa. As portarias, nomeações, decretos e ofícios publicados no Boletim do Governo Geral de Angola, a depender o seu teor, tornavamse fatos políticos nos periódicos. Notamos que o periodismo, em seu conjunto, correspondia às necessidades informativas da população, dentro dos limites de suas limitações tipográficas, pois não evidenciamos críticas sistemáticas aos perfis editoriais. Ainda que a objetividade seja impossível, os fatos e as opiniões não se separavam no discurso periodista. Em linhas gerais esta imprensa periódica oitocentista foi mais opinativa e ideológica (imprensa de opinião) que de notícias, mas sobretudo, um fórum de discussão. A mudança do tom opinativo para o relato de notícias do cotidiano só aconteceu nas primeiras décadas do século XX. Referências Bibliográficas Autores Angolanos. Voz de Angola Clamando no Deserto – oferecida aos amigos da verdade pelos naturais. Lisboa: Typographia, 1901. Neste trabalho fizemos uso da edição fac-similar: Autores Angolanos. 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Destaque especial para a atuação de médicos angolenses na estrutura dos Serviços de Saúde, suas ambivalências como agentes da colonização em face as atuações políticas e sociais. As principais fontes pesquisadas são o Boletim Oficial da Província de Angola, Annaes do Conselho Ultramarino, Relatório dos Serviços de Saúde das Províncias, dentre outros. Buscamos seguir a chave de interpretação de que a identidade africana e o componente racial influenciaram nos desdobramentos das ações desses sujeitos. Palavras-chave: medicina - colonização – africanos. Essa comunicação é uma primeira abordagem de uma pesquisa mais ampla e em andamento, cujo objetivo é realizar uma história social da saúde em Angola do ponto de vista africano. Os processos de cura e desenvolvimento da assistência à saúde estiveram diretamente relacionados as transformações na vida social do continente. O argumento é que a identidade africana e o componente racial mediaram as experiências do chamado pluralismo médico, sobretudo a partir da sistematização de uma burocracia e hierarquias próprias, que em meados do século XIX de fato, se assentou como uma política sanitária para o continente. Cabe mencionar que em 1844 é esboçada uma primeira organização dos serviços de saúde no ultramar, no tocante aos regimentos de preços dos medicamentos, assim como a administração hospitalar. Em 1862 foi publicado o Regulamento Geral dos Serviços de Saúde das Províncias Ultramarinas, que criou o cargo de diretor do serviço de saúde pública, em 1869 é publicado outro decreto intitulado Organização do Serviço de Saúde das Províncias Ultramarinas que determinava a distribuição dos médicos e farmacêuticos nas diversas localidades. Os hospitais nos distritos e concelhos eram militares, atendendo a este grupo e aos  Professora adjunta no curso de História do Instituto de Humanidade e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), campus dos Malês. Email: idaensino@unilab.edu.br 144 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X civis. Existiam também as instituições de assistência por caridade como a Santa Casa e o Recolhimento Pio de D. Pedro V. Do ponto de vista historiográfico, na primeira metade do século XIX a ocupação portuguesa em território Angolano, restringia-se a aos chamados “reinos” de Angola e Benguela, a maioria da população era classificada como “preta”, destaque para o elevado número de mestiços, rotulados segundo vocabulário colonial como “pardos, mulatos ou filhos do país”. Os decretos de 1836 e 1854, referentes a abolição do tráfico e a criação da categoria jurídica dos libertos, fomentou uma “evolução” em relação a condição de “escravo”, no entanto, apesar da “carta de alforria” dada pelo estado, esses “libertos” não podiam dispor livremente de si e do seu trabalho, continuando “tutelados”, por uma junta especialmente designada.99 Esses “pretos libertos” empregados muitas vezes em obras públicas, davam entrada no hospital militar de Luanda, onde segundo correspondências do conselho de saúde naval eram “entregues aquella repartição e não eram tratados como deviam sêl-o ”.100 Tais afirmações nos permite visualizar as condições sanitárias que esses indivíduos estavam sujeitos, para além do trabalho compulsório. O combate mais metódico aos embarques de escravos assumiu um caráter de fato internacionalizado a partir da década de 1840. Pelo prisma da administração colonial, os planos forjados para estimular a transição da economia angolana do tráfico para uma economia assentada no chamado comércio lícito, utilizou como principal vetor a implementação de uma agricultura de exportação, o que nos moldes português daria uma maior “soberania” a província.101 Nesse sentido, os impactos dessas mudanças para uma sociedade com grupos diversos e interesses conflitantes foi enorme. Conforme explica Jill Dias, ocupar cargos dentro da estrutura colonial portuguesa além de garantir uma certa segurança material, era também, em última análise, fonte de prestígio social e político dentro da sociedade africana. Já antes de 1850, a posição implantada pela aristocracia crioula vinha sendo minada devido às transformações nas esferas da economia mundial e política portuguesa, que tentou redefinir seu interesse metropolitano por Angola. Com isso, alguns membros dessas famílias queixavam-se acerca da discriminação contra eles 99 NETO, Maria da Conceição. De Escravos a “serviçais”, de “serviçais” a “contratados”: Omissões, percepções e equívocos na história do trabalho africano na Angola colonial. Cadernos de Estudos Africanos (Online), 33/2017. p. 112. 100 Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Angola, 1859. 101 FERREIRA, Roquinaldo. Abolicionismo e fim do tráfico de escravos em Angola, século XIX. 145 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X em nomeações para cargos oficiais, ao passo que agentes metropolitanos passavam a concorrer a postos nas províncias africanas.102 Marcelo Bittencourt também adverte que a perda do espaço político e econômico em meados do século XIX, na lógica de teias coloniais emergentes, traria novidades pouco favorável ao grupo crioulo, afinal essa camada perderia espaço com a chegada de um maior número de homens vindos da metrópole, resultando na delimitação de espaços mais afunilados para a sua atuação e o componente racial era um ingrediente inegável no reforço dessas tensões.103 A revolução liberal e a restauração da monarquia portuguesa, seguidas no ano de 1822 pela Declaração de Independência do Brasil, impuseram transformações nas relações coloniais. As questões ligadas à abolição do tráfico de escravizados e à proteção dos interesses de negreiros foram determinantes. Outros elementos como a existência em Angola de um “partido brasileiro”104, as relações comerciais entre brasileiros da corte do Rio de Janeiro em detrimento de Lisboa, o apoio dos habitantes de Benguela à causa da independência brasileira, revelavam as transformações que estavam em curso. O governo liberal chefiado por Marquês de Sá da Bandeira promulgou as primeiras medidas dessa efetiva presença portuguesa em África, apesar do caráter gradual dos decretos relacionados à abolição da escravidão. Ancorado no discurso de desenvolvimento dos recursos agrícolas e minerais de Angola, baseado no trabalho livre e na colonização branca, uma camada fina de “novidades” impulsionadas pelo liberalismo português abrigava a velha estratégia de maximizar os rendimentos coloniais através do estímulo ao livre comércio. Já nessa época, as tensões entre a comunidade crioula e o influxo de europeus para Angola alistava as bases para, segundo Jill Dias, um aumento perigoso da consciência de raça, especialmente em Luanda na década de 1830. Na senda dos serviços sanitários, a legislação de 1825 instituiu a criação de escolas de cirurgia em Lisboa e no Porto, visando a conservação da saúde das populações do reino e das 102 DIAS, Jill. Uma questão de identidade: respostas intelectuais as transformações econômicas no seio da elite crioula da Angola portuguesa entre 1870 e 1930. Revista Internacional de Estudos Africanos, revista semestral, jan/jun, 1984. P. 67-68. 103 BITTENCOURT, Marcelo. Velho tema, novos problemas: a crioulidade em Angola. III Reunião Internacional sobre a História de Angola, Arquivo Nacional de Angola. P. 15-27. 104 Cumpre destacar, de antemão, que a expressão “partido brasileiro” não constituía um partido no sentido stricto sensu corrente, ou seja, não era uma sigla política tampouco seguia um programa político partidário. A expressão foi cunhada pelas autoridades metropolitanas de Angola única e simplesmente para identificar os indivíduos cujos interesses comerciais se achavam ligados ao Brasil e não a Portugal. APUD GUIZELIN, Gilberto da Silva. “Província de um partido brasileiro, e mui pequeno o Europeu”: a repercussão da independência do Brasil em Angola (1822-1825). Afro-Ásia, 51 (2015), 181-106, p. 83. 146 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X províncias do Ultramar, para que pudessem os estudantes dominar a importante Arte da Cirurgia e assim contribuir com o progresso, que, em outros países, estava se avantajando consideravelmente.105 No estudo de Patrícia Sanches sobre a Escola Médico Cirúrgica de Lisboa (EMCL), o objetivo foi compreender os percursos profissionais dos alunos daquela instituição, entre as décadas de 1837 e 1889, buscando analisar a predominância dos “filhos” da EMCL, nas décadas finais do século XIX, no que se refere à ocupação de cargos nos serviços de saúde pública e nas instituições médicas da capital do reino. No entanto, sobre a análise acerca da naturalidade dos alunos, segundo a autora, as informações recolhidas nos Livros de Termos de Exames e de Atos Grandes da EMCL revelaram que, contabilizando a naturalidade daqueles estudantes, apenas 196 alunos eram naturais da cidade de Lisboa e 479 de outras localidades, sendo muitos advindos das províncias do Ultramar.106 Mesmo considerando que a EMCL indiscutivelmente teve uma preponderância de estudantes de “outras naturalidades” e que os alunos lisboetas nunca foram a maioria naquela instituição, a autora ignora os possíveis desdobramentos desse desequilíbrio, sendo a EMCL possivelmente um reduto desses jovens filhos das províncias africanas. O que isso significou frente aos projetos e expectativas futuras desses estudantes? Quais impactos nos serviços de saúde das províncias a presença desses profissionais trouxe? Podemos supor desistências, formações políticas, retorno às suas províncias de origem, fixação em Lisboa, articulações contrárias a política colonial, dentre outras possibilidades. Tais questões recaem na análise da trajetória de Leonardo Africano Ferreira, médico negro, “filho do país”, que teve seus estudos subvencionados pela Real Fazenda e formou-se na EMCL, publicando no ano de 1878 a sua tese acerca da -“pulga penetrante”- inseto que segundo Africano, danificava severamente as populações da província de Angola e as duas Ilhas de S. Thomé e Príncipe que eram possessões portuguesas”107, sendo os principais atingidos os “infelizes escravos”, ocasionando muitas mortes. Os aspectos excepcionais da trajetória desse médico, ultrapassa o foco apenas da sua própria experiência, pois nos permite perceber um 105 Legislação Régia (1825), nº 124, p. 56 e seg, www.parlamento.pt. APUD SANCHES DA GAMA, Patrícia Eugenia Moreno. Médicos em Lisboa. Alunos da Escola Médico-cirúrgica de Lisboa 1837-1889. Tese de doutoramento em História Moderna e Contemporânea. Instituto Universitário de Lisboa, 2018. p. 55. 106 Idem. p. 89. 107 FERREIRA, Leonardo Africano. Pulga Penetrante (Pulex Penetrans). Das Lesões que esse inseto produz quando penetra nos tecidos do corpo humano: e das que sobrevem depois da sua extração do Tratamento dessas lesões e dos meios prophylacticos de as evitar. These Inaugural apresentada e defendida perante a Escola Médico Cirúrgica de Lisboa. Imprensa Democrática, 1878. p. 3 147 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X contexto mais amplo de deslocamentos geográficos e sociais de sujeitos no atlântico lusoafricano, descortinando redes de relações e significados. As práticas profissional e pessoal desse personagem como médico cirurgião vivenciadas em diferentes espaços — África, Europa e América — proporcionam uma reflexão acerca das tensões e dos conflitos que permearam a natureza da presença portuguesa em Angola, a estruturação dos serviços de saúde nas províncias africanas frente ao papel político e social de grupos crioulos, a fronteira entre o fim do tráfico transatlântico e o comércio lícito, ancoradas em tentativas mais sistemáticas de implementação da burocracia colonial em territórios como Luanda, Benguela e São Tomé e Príncipe. A escassez de médicos e boticas em várias regiões da província de Angola era um tema discutido amplamente, parte da população pobre, segundo o olhar europeu, não teria recursos para consultas e medicamentos, apostando na busca por milongos nativos.108 Os poucos médicos de partido 109 contratados naquela altura recusavam os vencimentos oferecidos pela Câmara, no valor de 60$000 ao ano, equivalente a 164 réis por dia, como foi o caso do dr. Matheus Alexandre Gueulette em ofício endereçado à Câmara de Luanda: A Ilma. Câmara quebrantou o contrato, que comigo celebrou e assignou logo que sem meo consentimento reduziu o ordenado entre nós estipulado ao de 60$000 réis anual ou de 164 rs por dia! Dá-me pois direito a declarar a Va. Sa. Para que o faça contar a mesma Câmara, que por tal preço não posso e não devo querer continuar a ter a satisfação e honra de me considerar como Cirurgião de seo partido; mas como habitante domiciliário do Município sejam-me permitido que eu apresente a minha admiração e reconhecimento a tanta economia que a actual Câmara vai realizando benefício de certo de todos, menos dos pobres, que ficarão sem facultativo, se não houver algum 108 SANTOS, José de Almeida. A alma de uma cidade. Edição da Câmara Municipal de Luanda, 1973. p. 38. 109 O Dr. Saturnino de Sousa e Oliveira, médico brasileiro, que há muitos anos exerce a clínica nesta província, enviara a junta de saúde um projeto de regulamento para o serviço do médico de partido da câmara (...) Distinguese o dr. a população em três classes: a 1° - das pessoas reputadas pelo recenseamento como possuindo de rendimento mais de 20$000 réis mensais, as quais não concede o direito de se aproveitarem gratuitamente dos serviços do médico de partido; - 2° - das pessoas que se reputarem possuir menos de 20$000 réis de rendimentos mensais, mas não classificadas pobres, ás quaes propõe que sejam assim como as pessoas de sua família, prestados socorros médicos gratuitamente, mediante uma licença, de que elas deverão prover-se anualmente, e pela qual deverão pagar 1$000 réis, que entrarão num cofre destinado a ocorrer ao pagamento do médico e a outras despesas da polícia municipal em serviço médico e hygienico; 3° - a das pessoas inteiramente indigentes, ás quaes o pároco e regedor devem das gratuitamente atestado de pobreza, e que devem ser de todos gratuitamente tractados. 148 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X que por caridade própria e não por interesses dados pelo município, lhe acuda em suas enfermidades – Deus Guarde a V. Sa. Loanda 14 de março de 1850. Ilmo. Sr. João de Souza Netto. Prezidente da Camara Municipal – Matheus Alexandre Gueulette, Cirurgião Civil.110 Os facultativos de partido, dentre outras atribuições, eram responsáveis pelo exame médico dos presos da cadeia pública, que eram muitos e as cadeias apresentavam péssimas condições de salubridade. As tentativas de inserção na profissão médica, nos postos da administração colonial, aliadas à escassez de recursos e disputas políticas, contribuíam para a desorganização dos serviços sanitários. Como foi o caso do dr. Januário Vianna de Resende, que, por meio de uma portaria de dezembro de 1854, fora substituído do cargo de Physico-mór da província, pela ordem de el-rei Pedro V. Segundo José de Almeida Santos, o médico era um homem de “franqueza rude, exigente e minuncios em fazer aplicar o rigor da lei, atitude que fatalmente lhe iria acirrar o vespeiro de inimigos.”111 No entanto, após apoio popular e intervenção do Chefe da Província junto ao Trono, o dr. Resende acabou permanecendo no seu posto. O tal médico, após edital datado de 28 de julho de 1855, que promulgava atitudes enérgicas contra sangradores e cirurgiões improvisados e punia esses “indivíduos destituídos de todos os conhecimentos” 112 , decidiu não aplicar aos “transgressores” as penas preconizadas, uma vez que, naquele período, não existia em Luanda, segundo ele, qualquer sangrador ou oficial menor de saúde. Nesse ensejo, o Physico-mór apresentou as suas providências: Tendo feito ver a S. Exa. o Governador Geral, o muito que approveitarão os povos, com a existência de pessoas habilitadas na dita arte, oferecendo-me para leccionar gratutitmente, um curso em que ellas se possam instruir e preparar para o competente exame público; e obtenção do respectivo Diploma: Tendo o mesmo Exmo. Sr. aceitado o meu oferecimento como meio mais próprio de remediar aquelles malles, faço saber que: 1°) No dia 15 do mez de agosto próximo futuro, no Hospital militar, darei princípio a um curso público e gratuito para a instrução de sangradores, dentistas, officiaes 110 Carta Transcrita, a folha 42 e 42 verso do livro nº 376 do Arquivo Municipal de Luanda – “Copiador de Correspondência Recebida – 1850/1853”. In SANTOS, José de Almeida. A alma de uma cidade. Edição da Câmara Municipal de Luanda, 1973. 111 Idem, p. 27. 112 Idem, p. 31. 149 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X menores de saúde, de que já se acha aberta a matricula em minha casa; 2°)Todos os indivíduos que se quiserem matricular hão de provar que sabem lêr e escrever, e que são maiores de 18 annos; 3°) Somente terão direito a fazer exame os estudantes que tiverem seguido o estudo, com matricula, e frequência regular; 4°) Logo que tenham sido aprovados alguns destes estudantes, será severamente punido, nos termos de lei, qualquer indivíduo que, sem esta habilitação, sangrar, tirar dentes, ou exercer alguma operação de cirurgia ministrante.113 Ao que parece, as medidas não surtiram efeito, no entanto foram retomadas pelo seu sucessor, nomeado em janeiro de 1856, o dr. Jacques Nicolao de Salis. O historiador Kalle Kananoja assinala que o pluralismo médico esteve presente nas primeiras tentativas de organização dos serviços de saúde na Europa moderna, e que o cenário terapêutico incluía diferentes formas de cura. Nesse contexto, cirurgiões e barbeiros não acadêmicos recebiam treinamento prático de médicos habilitados nas universidades. Em seu estudo para Angola setecentista, Kananoja oferece pistas sobre a transmissão de conhecimentos de médicos portugueses para africanos, uma vez que as aulas de medicina oferecidas pelo médico-chefe José Pinto de Azeredo, no final do século XVIII, eram frequentemente citadas como primeiro exemplo de formação médica em Angola, podendo ter havido precedentes e planos para formar pessoal médico em Luanda já no início do século XVIII. Na mesma esteira, outro profissional também obteve autorização para exercer a medicina em Angola, tanto para curar soldados quanto para ensinar medicina a todos os residentes que quisessem aprender, permanecendo em Luanda por mais de uma década.114 Tais exemplos na pena dos discursos adeptos do colonialismo, como era José de Almeida Santos115, unidos aos anúncios de médicos que viveram em Luanda, tais como Gueulette, Salis e Resende, que ofereciam tratamentos gratuitos aos pobres e indigentes, livrando a população de curandeiros e “charlatões”,116 laureavam o sentimento de ofício da 113 Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Angola, 1855. 114 KANANOJA, Kalle. Healing Knowledge in Atlantic Africa. Medical Encounters, 1500–1850. Cambridge University Press, 2021. p. 134. 115 SANTOS, José de Almeida. Páginas Esquecidas da Loanda de há 100 anos. Edição da Câmara Municipal de Luanda, 1970, 1971, 1972 e 1973. 116 SANTOS, José de Almeida. A alma de uma cidade. Edição da Câmara Municipal de Luanda, 1973. p. 34 150 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X medicina como um serviço de caridade ou filantropia. Vejamos uma nota veiculada no Boletim Oficial, a pedido do dr. Africano sobre os honorários médicos: Illm° Sr. – Hontem quando eu recebi o recado de V. Sa. Primeiramente pensei, que V. Sa. Pretendia falar-me sobre algum negócio particular; porem recebendo o segundo, vi que V. Sa. Pretendia tratar-se comigo. Não me demorei, prestando-me logo a tratal-o, o que fiz visitando-o. Agora pois cumpre-me dizer-llhe, que tenho estabelecido ser cada visita cinco mil réis, - o que está em harmonia, segundo me parece, com a excessiva despesa que se faz neste paiz onde tudo é muito caro – Sendo a visita feita a noute, é o tresdobro daquela quantia: por tanto se convém a V. Sa. O preço que deixo estabelecido, terá a bondade de responder-me ao pé desta, afim de eu ficar sciente. Desculpe esta franqueza, e aos mais – sou com estima de V. Sa. Muito Attento Venerador – Illmo. S. Vicente Ferrer Barruncho – S.C. (BOA 8 de abril de 1856) – Leonardo Africano Ferreira.117 Nas palavras de Santos, alguns médicos em Luanda exploravam de forma pouco decente os seus doentes. Nesse ensejo, o mesmo afirmava que, em Benguela, isso também acontecia, uma vez que, se aproveitando do fato de ser o único facultativo da cidade, o dr. Africano não passava de um “interesseiro” e estava muito longe de ser um “devotado guardião da saúde”, como era os outros médicos.118 Viver em Angola naquelas décadas, porém, não era nada fácil. A alta nos preços dos produtos, além de escassez de água potável, atingiu níveis severos, vide os preços da farinha, do feijão e do milho que eram, respectivamente, de 550 a 800 réis, de 350 a 700 réis e de 400 a 600 réis, por cada saco, como consta no Mapa do Terreiro Público, referente ao movimento dos cereais para a semana de 8 a 14 do ano de 1856.119 Obviamente, para a população local da província, a situação era ainda mais crítica tendo em vista que, unido ao caos sanitário, não era raro ouvir das autoridades “soluções” para a insalubridade pública, como a demolição de cubatas, criação de alojamentos, incêndios de musseques, além de imputar a culpa às centenas de pretos que vinham do Sertão e que 117 Boletim Oficial do Governo-Geral da Provincia d’Angola. nº 554, de 10 de maio de 1856. 118 SANTOS, José de Almeida. A alma de uma cidade. Edição da Câmara Municipal de Luanda, 1973. p. 47. 119 Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Angola, nº 542, 1856. 151 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X vagueavam pela cidade sujando onde quisessem, os tocadores de marimbas às portas dos seus senhores, entregues ao ócio, a frequência das danças e batuques que sempre “denegeram em orgia”, apresentando tantas outras “cauzas nocivas que convém contrariar, ou pelo menos diminuir-lhes a sua acção, e prevenir seus resultados.”120 A historiadora Rafaela Jobbit explica que, devido a uma série de variáveis, o chamado “pluralismo médico” era observado em províncias africanas como São Tomé e Príncipe, o que não implicava em atitudes tolerantes ou benevolentes de autoridades coloniais para com médicos não europeus, pelo contrário, podemos dizer que a necessidade de médicos oriundos das províncias africanas algumas vezes era bem vinda, mesmo que em cargos provisórios, devido a uma estrutura conflituosa do serviço de saúde, sobretudo em decorrência de inúmeros pedidos de licença que médicos europeus solicitavam com bastante recorrência, muitas vezes sem ao menos cumprir o tempo necessário em cada localidade. Outras impressões de comentaristas da época acerca dos serviços de saúde recaíam na sua ineficácia, pois, para eles, muitos profissionais tinham bastante conhecimento prático de doenças, mas nenhum treinamento formal ou diploma.121 As relações estreitas entre as províncias de Angola e São Tomé e Príncipe é uma outra dimensão interessante que o estudo das experiências com a territorialização da saúde implementada pela coroa portuguesa, nos ajuda a entender. Tais províncias tinham um histórico de relações muito estreitas e que interagiam de múltiplas formas, desde a circulação de agentes da burocracia colonial, até a troca de produtos agrícolas e o caso que pode ser mais emblemático nesse contexto: o resgate de libertos sob contrato de trabalho para as plantações de cacau. A legislação de 1854 criou essa categoria intermediária como forma de indenização aos antigos senhores. Os libertos trabalhariam durante dez anos evidenciando os limites do liberalismo português, sob formas camufladas de tráfico. Segundo Roquinaldo Ferreira, duas regiões concentraram o maior número de libertos em Angola: Luanda e Golungo Alto. As razões residiram desde a condição privilegiada da capital até a expansão econômica para o norte da província, a partir do eixo econômico do Ambriz. No Golungo Alto, expandiam-se as rotas do comércio para o sertão.122 120 Idem, 1856. 121 JOBBIT, Rafaela. Medical Practitioners anda The Colonial Project: medicine, public hygiene, anda the contested recolonization of São Tomé and Príncipe, 1850-1926. York University, Toronto, 2016. p. 126. 122 FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos Sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola, 1830-1860. Dissertação de Mestrado, UFRJ, 1996. p.71. 152 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Essa confluência de identidades políticas, étnicas e culturais formularam uma dinâmica de confrontação mútua, muito embora as fontes escritas e produzidas pelo colonialismo tendam a registrar as atuações portuguesas ou ações diretas e indiretas do resultado da interação com os africanos. As ações de africanos que mesmo em grupos privilegiados onde transitavam e dominavam os códigos culturais europeus, podem revelar posturas ambivalentes frente ao projeto colonizador, revelando assim as suas fragilidades. A chave das ações sanitárias no século XIX nas províncias de Angola e São Tomé e Príncipe é um caminho fértil para entender mudanças inter-relacionadas que impactaram as estruturas econômicas e sociais de africanos e europeus. Referências BITTENCOURT, Marcelo. Velho tema, novos problemas: a crioulidade em Angola. p. 17. 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ANPUH/SPUNICAMP. 153 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Conhecimento Antropológico e Colonialismo em Angola (1926-1961) Jéssica Evelyn Pereira dos Santos123 Resumo: De modo a contribuir com a compreensão dos contextos e implicações da produção de conhecimento antropológico para as experiências coloniais africanas, iremos discutir, neste trabalho, as condições de produção das publicações de caráter antropológico em Angola ao longo da vigência do Indigenato, de 1926 a 1961. Ao mapearmos as narrativas sobre as populações locais, buscaremos traçar as linhas gerais do cenário que permitiu a condução das investigações de caráter antropológico e seus significados para a trajetória histórica das sociedades locais. Palavras-chave: Colonialismo, Angola, Conhecimento Antropológico. 1. Introdução Conhecer, descrever, sistematizar e classificar foram elementos recorrentemente instrumentalizados pela gramática do discurso colonial124. No âmbito dos colonialismos em territórios africanos, essa tendência foi operacionalizada, majoritariamente, através do empreendimento de missões científicas, de recolhas etnográficas e museológicas, de censos demográficos e da atividade cartográfica125. Essas atividades produziram determinadas narrativas e discursos sobre os sujeitos em situação colonial e ocuparam um lugar na construção do repertório de conhecimento colonialista126. A atividade etnográfica e as investigações no campo da antropologia física foram parte da construção desse universo discursivo sobre os sujeitos africanos, principalmente na primeira 123 Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. 124 PEREIRA, R. M. Conhecer para dominar: o desenvolvimento do conhecimento antropológico na política colonial portuguesa em Moçambique, 1926-1959. Dissertação Doutoramento em Antropologia—Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2005; PORTO, Nuno Manuel de Azevedo Andrade. Modos de objectificação da dominação colonial: o caso do Museu do Dundo, 1940-1970. Tese de Doutorado em Ciências da Vida. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2002. 125 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 126 MUDIMBE, V. Y. The Invention of Africa: Gnosis Philosophy, and the Order of Knowledge. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1988; SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 154 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X metade do século XX. Como Talal Asad (1991, pp. 315-6) pondera, esse conjunto de sentidos não deve ser resumido à instrumentalidade direta da antropologia a serviço dos governos imperialistas. Embora a colaboração entre antropólogos e agentes do colonialismo tenha ocorrido127, as implicações dessa relação não se limitam aos casos explícitos de cumplicidade. Asad sugere que “o processo do poder global europeu foi central para a tarefa antropológica de registrar e analisar os modos de vida das populações estudadas” (1991, p. 316). Nesse sentido, compreender como esse léxico foi construído, e, portanto, o que dizia sobre a cultura e a organização social das populações locais, pode oferecer uma contribuição importante para a localização desse corpo de informações, descrições e análises no contexto da experiência histórica do período colonial. O questionamento acerca do lugar da antropologia na produção dos discursos sobre o “outro”128 começou a se fortalecer na década de 1960, seguindo a tendência da crítica epistemológica que floresceu por dentro das disciplinas das ciências humanas129, diante das implicações dos debates intelectuais e políticos que emergiram no cenário de fortalecimento da crítica anticolonial e das lutas de libertação130. Das suas raízes no pensamento anticolonial131, passando pela a análise do discurso colonial132 e pelas abordagens pós-coloniais133, a crítica à 127 Ver, por exemplo, LECLERC, Gerard. Anthropologie et Colonialisme. Paris: Fayard, 1972; GOUGH, Kathleen. Anthropology and imperialism. Radical Education Project, 1967; AFIGBO, Adiele E. Anthropology and Colonial administration in South-Eastern Nigeria, 1891-1939. Journal of the Historical Society of Nigeria, v. 8, n. 1, p. 19-35, 1975. 128 SAID, Edward. Op. Cit. 129 JOSEPH, George Gheverghese; REDDY, Vasu; SEARLE-CHATTERJEE, Mary. Eurocentrism in the social sciences. Race & Class, v. 31, n. 4, pp. 1-26, 1990; WALLERSTEIN, Immanuel. Eurocentrism and its avatars: The dilemmas of social science. Sociological bulletin, v. 46, n. 1, p. 21-39, 1997. ASAD, Talal. Anthropology and the colonial encounter. London: Ithaca Press, 2011; CLIFFORD, James; MARCUS, George. Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986; STEINMETZ, George. A child of the empire: British sociology and colonialism, 1940s–1960s. Journal of the History of the Behavioral Sciences, v. 49, n. 4, pp. 353-378, 2013. 130 GOPAL, Priyamvada. Insurgent empire: Anticolonial resistance and British dissent. London: Verso Books, 2019. 131 PARRY, Benita. Postcolonial studies: A materialist critique. Routledge, 2004. p. 32; Alguns trabalhos que trazem linhas gerais do pensamento anticolonial: FANON, Frantz. Racisme et culture. Présence Africaine, (8/10), nouvelle série, 122-131, 1956. FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; MEMMI, Albert. Retrato do colonizado. Precedido de retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; CÉSAIRE, Aimé. Culture et colonisation. Présence Africaine, (8/10), nouvelle série, 190-205, 1956. 132 SAID, Edward. Orientalismo; Para uma discussão conceitual sobre a análise do discurso colonial, ver: Homi Bhabha, The other question - the stereotype and colonial discourse, Screen, 24, 6, 1983; YOUNG, Robert JC. White mythologies: Writing History and the West. London: Routledge, 2004. 133 SPIVAK, Gayatri Chakravorty; HARASYM, Sarah.The post-colonial critic: Interviews, strategies, dialogues. London: Routledge, 2014; SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Outside in the teaching machine. Routledge, 2012; 155 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X noção de uma alteridade instrumentalizada pelo repertório de poder e conhecimento colonialista134 forneceu as bases para um redirecionamento no campo dos estudos coloniais, em oposição à lógica do eurocentrismo. Esse “descentramento”135 tornou possível a projeção de contribuições que se voltaram à investigação de como a subalternidade dos sujeitos nativos é construída nos discursos coloniais136. Neste trabalho, discutiremos o quadro geral de produção das pesquisas etnográficas em Angola na primeira metade do século XX, principalmente após a década de 1920 e da consolidação da figura jurídica do indígena através do Estatuto de 1926 137. Ao identificar os trabalhos que dialogavam com o campo etnológico sobre as populações locais de Angola, nos indagaremos acerca das afiliações sociais e institucionais dos sujeitos que conduziam e participavam dessas investigações. Ao identificarmos quais povos, culturas e geografias foram “etnografadas” no período, refletiremos acerca do contexto que permitiu a emergência de narrativas antropológicas sobre os povos de Angola em contexto colonial. 2. Antropologia e Colonialismo em Angola As publicações de caráter antropológico sobre os povos que habitavam o território que atualmente corresponde à Angola ganharam projeção no período colonial, especialmente a partir dos anos 1920138. Esse quadro reflete uma tendência geral de destaque da disciplina antropológica nos estudos africanos, ao menos até a Segunda Guerra Mundial139. Embora Donato Gallo (1988, p. 28) avalie que o colonialismo português ignorou as disciplinas etno-antropológicas até a metade da década de 1940, isso não significa que a circulação de discursos de teor etnográfico e etnológico sobre as populações colonizadas do império português não desempenhou um papel nas imagens projetadas sobre essas populações. BHABHA, Homi K. The location of culture. London: Routledge, 2012; ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen. The empire writes back: Theory and practice in post-colonial literatures. London: Routledge, 2003. 134 MUDIMBE, V. Y. Op. Cit. 135 SLENES, Robert W. A importância da África para as Ciências Humanas. História Social, n. 19, p. 19-32, 2010. 136 WILLIAMS, Patrick; CHRISMAN, Laura (Ed.). Colonial discourse and post-colonial theory: A reader. Columbia University Press, 1994. p. 16. 137 “Indígena” se refere à denominação jurídica para os sujeitos locais estabelecida a partir do Estatuto do Indigenato nas colônias portuguesas, vigente de 1926 a 1961. Lei n.º 12533 de 23 de outubro de 1926. 138 Dados extraídos de: DE AREIA, ML Rodrigues et al. Angola. Bibliografia Antropológica. 3º edição. Imprensa da Universidade de Coimbra/Coimbra University Press, 2019. e da base bibliográfica do acervo “Memórias de África”. Disponível em <http://memoria-africa.ua.pt/>. 139 Southall, A. (1983). The Contribution of Anthropology to African Studies. African Studies Review, 26(3/4), 63. DOI:10.2307/524162 p. 64. 156 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Uma abordagem que olhe para essas produções apenas a partir dos limites disciplinares pode, como Peter Pels (1999, p. 1) argumenta, negligenciar uma compreensão mais aprofundada das práticas etnográficas e das relações sociais construídas nos espaços coloniais. Para o autor, ampliar o escopo da investigação, para incluir a contribuições de caráter antropológicos de sujeitos não necessariamente vinculados a posições profissionais, é um caminho que permite melhor avaliar o contexto histórico e os significados dessas produções. Uma posição semelhante é desenvolvida por Lyn Schumaker (2001) em Africanizing Anthropology, quando a autora se volta a análise do papel das práticas de colonização, missões cristãs e da administração colonial na construção do conhecimento antropológico sobre as populações do Norte da Rodésia140. Rui Pereira (2005), ao abordar as relações entre a antropologia e o colonialismo português para o contexto moçambicano, adota a perspectiva de Peter Pels (1999), a partir da conceitualização de uma chave de leitura que permite explorar as práticas e construções discursivas sobre os povos colonizados: a “atenção antropológica”. De acordo com o autor, a “atenção antropológica” se desenvolve a partir do interesse nas práticas culturais das populações locais, de maneira imanente aos processos sociais e culturais, o que “implica, portanto e ainda, que se levem em consideração não apenas as práticas e conceitos que, até agora, temos considerado como ‘científicos’, mas, igualmente, as atitudes, comportamentos e concepções que emanam de múltiplos agentes das diversas instâncias do social” (PEREIRA, 2005, p. 17). Os caminhos apontados por Peter Pels (1999), Schumaker (2001) e Rui Pereira (2005) oferecem uma direção interessante para lidarmos com a natureza multifacetada desse campo de conhecimento. Na Angola da primeira metade do século XX, esse domínio era explorado por antropólogos profissionais, mas também por missionários, viajantes e administradores coloniais e implicava determinadas relações sociais e processos de mediação com as sociedades locais. Partindo dessas considerações, é importante localizarmos os sujeitos e instituições que compõem esse cenário de elaboração dos saberes de caráter antropológico. Dessa maneira, poderemos mapear os interesses e entender melhor como esse conhecimento é construído e impacta os povos locais. Para entendermos melhor o cenário de formulação das práticas e estratégias discursivas que se apoiavam na “atenção antropológica”, caracterizaremos o quadro da produção 140 SCHUMAKER, L. Africanizing Anthropology: Fieldwork, Networks, and the Making of Cultural Knowledge in Central Africa. Durham: Duke University Press, 2001. 157 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X antropológica na Angola colonial a partir de três abordagens principais: a antropologia portuguesa vinculada à administração colonial, a missionária e a institucional. É importante considerar que esses limites não são totalmente definidos e há interseções entre os sujeitos, instituições e interesses implicados nessas vertentes. No entanto, essa categorização oferece um ponto de partida para entendermos melhor como as redes se formam, se relacionam e mobilizam agências e sujeitos em terreno colonial. 2.1 A Antropologia Portuguesa e a Administração Colonial Ao final do século XIX e nos primeiros anos do XX, alguns personagens ligados à administração colonial portuguesa publicaram trabalhos sobre as culturas dos povos de Angola, como Fonseca Cardoso, com o Em Terras do Moxico: Apontamentos de etnografia angolense (1919) e Henrique Dias de Carvalho, com o Etnographia e história tradicional dos povos da Lunda: Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888 (1890)141. Esses trabalhos compartilhavam uma tendência de adoção do vocabulário de “usos e costumes”, o qual, de acordo com Ricardo Roque, “era assim visto por vários teóricos e praticantes da colonização europeia como um caminho necessário para assegurar aos Europeus uma governação eficaz e eficiente das populações nativas, bem como o controlo das formas locais de organização política” (ROQUE, 2011, p. 5). Foi apenas a partir da segunda década do novecentos que uma “atenção antropológica” um pouco mais sistematizada pôde ser observada por parte do governo português. Em 1919, o curso de formação de administradores coloniais da Escola Superior Colonial142 passou a incorporar a cadeira de Etnografia e Etnologia Colonial143. Com a reforma do estatuto da instituição em 1926, através do decreto n° 12.539, o programa da disciplina foi ampliado, e incorporou conteúdos de raciologia, estudos da religião e usos e costumes nativos 144. Até a 141 CARDOSO, Fonseca. Em terras do Moxico (Apontamentos de etnografia angolense). Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, vol. I, fase. 1, 35 pp, 1919. (publicação póstuma); CARVALHO, Henrique Augusto Dias de. Ethnographia e história tradicional dos povos da Lunda: Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888. Imprensa nacional, 1890. 142 A Escola Colonial foi criada em 1906, com o apoio da Sociedade de Geografia de Lisboa. <http://tecop.addition.pt/np4/escola-colonial.html>. 143 ABRANTES, Carla Susana Alem. “Problemas” e “soluções” para a gestão de Angola: um estudo a partir do ensino superior de administração colonial, 1950-1960. Tese de doutorado, Rio de Janeiro, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012. p. 84; SOUSA, Lúcio. A etnografia em concurso administrativo: a “monografia etnográfica” em Timor Português em 1948. Anuário Antropológico, n. II, p. 57-82, 2017. p. 61. 144 SOUSA, Lúcio. Op. Cit. pp. 62, 63. 158 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X década de 1950, a Escola do Porto145, que se voltava para a Antropobiologia (ou Antropologia Física), mantinha uma aproximação com as instituições oficiais portuguesas. As missões científicas enviadas às colônias nos anos 1930 e 1940, promovidas pela Junta de Investigações do Ultramar146, foram conduzidas por vários membros da Escola do Porto. Em Angola, pesquisadores ligados à Escola do Porto desenvolveram trabalhos que visavam construir, majoritariamente, uma caracterização dos elementos físicos dos sujeitos coloniais. Alexandre Sarmento desenvolveu pesquisas de seroantropologia e hematologia entre populações do centro e sul de Angola147, que foram publicadas em periódicos tanto acadêmicos, como os Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia e os Anais do Instituto de Medicina Tropical, quanto oficiais, como o Mensário Administrativo e o Boletim Geral das Colónias. António de Almeida, que liderou as campanhas da Missão Antropológica de Angola de 1948 e 1950, realizou investigações entre 1934 e 1955 no território angolano, principalmente nas regiões norte e sul. Abordando temas que tratam desde a descrição das “raças indígenas”, medição de índices corporais, até a caracterização das mutilações étnicas, Almeida publicou, assim como Sarmento, em veículos tanto acadêmicos quanto vinculados à administração colonial148. Outros pesquisadores trouxeram temáticas como a miologia (estudo da composição muscular), por Luis de Pina, a psicologia, por Alfredo Athayde, e o estudo dos 145 PEREIRA, Rui M. Raça, sangue e robustez. Os paradigmas da antropologia física colonial portuguesa. Cadernos de Estudos Africanos, n. 7/8, pp. 209-241, 2005. p. 211; MATOS, Patrícia Ferraz de. Mendes Correia e a Escola de Antropologia do Porto: contribuição para o estudo das relações entre antropologia, nacionalismo e colonialismo:(de finais do século XIX aos finais da década de 50 do século XX). Tese de doutoramento, Ciências Sociais (Antropologia Social e Cultural), Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2012. 146 De acordo com Claudia Castelo, “A Junta de Investigações do Ultramar, enquanto organismo central da política científica do Estado português para as colônias, foi um dos instrumentos usados pelo regime para, na era das descolonizações, fazer durar o império” In: CASTELO, Cláudia. Investigação científica e política colonial portuguesa: evolução e articulações, 1936-1974. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 19, p. 391-408, 2012. p. 403. 147 SARMENTO, Alexandre. Contribuição para o estudo da hematologia do indígena angolano Coloquio de Hematologia Africana, 1951; Contribuição para o estudo da seroantropologia dos Huambos, Medicamenta, 1959; Contribuição para o estudo das mutilações étnicas dos indígenas de Angola - Huambos e Sambos, Trabalhos de Antropologia e Etnografia e Etnologia, 1951. Os Huambos subsídios para o estudo da sua antropologia física biológica e cultural, Anais do Instituto de Medicina Tropical, 1956. Sobre alguns caracteres antropométricos da população Quimbunda do Bié, Arquivos de Anatomia e Antropologia, 1943. 148 ALMEIDA, Antonio. As investigações antropológicas e etnográficas em Angola. Anuário da Escola Superior colonial, 1943; Sobre o índice esquelético dos Mahungos e dos Luangos adultos do sexo masculino subsidio para o estudo antropológico da população dos Dembos Angola, Congresso Luso Espanhol, 1942; Sobre o índice nasal dos Mahungos e dos Luangos adultos do sexo masculino dos Dembos Angola, Africa Medica, 1936; Sobre os índices ponderais de Rorher e de Livi dos Mahungos e dos Luangos adultos do sexo masculino dos Dembos Angola, Congresso Nacional de Ciências Naturais, 1942; Subsidios para o estudo antropológico da população dos Dembos Angola - Sobre a frequência do pulso dos Mahungos e dos Luangos adultos do sexo masculino, Boletim Geral das Colônias, 1943. 159 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X cânones antropométricos, por Maria Galhano e Maria Emília de Castro. Mendes Correia, um dos expoentes da Escola do Porto, também contribuiu para o quadro, seja com pesquisas originais, como no caso de Notas antropológicas sobre os Luangos da região dos Dembos ou com escritos de revisão ou avaliação da literatura já publicada, como é o caso de suas notas sobre o trabalho de Fonseca Cardoso149. Esses trabalhos carregavam uma expressiva tendência à investigação das características físicas, biológicas e anatômicas dos sujeitos coloniais, a partir de um repertório que visava compreender os “tipos” humanos a partir de uma perspectiva comparada, que dialogava com a noção de Antropologia Aplicada defendida por Mendes Correia150. No campo da antropologia, a perspectiva antropobiológica dominou o cenário de investigações portuguesas nos territórios coloniais portugueses. Apenas a partir da reforma do ensino colonial de 1946151, abordagens da antropologia cultural passaram a ter espaço na formação dos administradores coloniais. Na segunda metade da década de 1950, a “atenção antropológica” passou a incorporar trabalhos voltados à etnologia, como pode ser observado, por exemplo, no caso de Moçambique, na obra de Jorge Dias152, e de Angola, de Manuel Viegas Guerreiro e Mesquitela Lima153. Rui Pereira sugere que “essa notável inflexão no campo dos interesses antropológicos coloniais deverá ter reflectido, necessariamente, idêntica inflexão nos propósitos da política colonial portuguesa” (2005, p. 177). No entanto, esse direcionamento não assumiu um caráter sistematizado para a administração colonial, refletindo o que Rui 149 CORREIA, Antonio Augusto Esteves Mendes. Estudos sobre antropologia física do Ultramar Português, Memórias da Junta de Investigações do Ultramar, 1959; Notas antropológicas sobre os Luangos da região dos Dembos, O Instituto, 1922; CORREIA, Antonio Augusto Esteves Mendes. 'Antropologia Angolense. Quiocos, Luimbes, Luenas e Lutchazes. Notas antropológicas sobre observações de Fonseca Cardoso', Arquivo de Anatomia e Antropologia, 2, 1916; Antropologia Angolense II. Bi-N'bundo, Andulos e Ambuelas-Mambundas. Notas antropológicas sobre observações de Fonseca Cardoso, Arquivo de Anatomia e Antropologia, 4, 1918. 150 CORREIA, Antonio Augusto Mendes. Antropologia aplicada. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, v. 3, 1926. 151 Para uma discussão sobre reforma de 1946 no ensino colonial, ver ABRANTES, Carla Susana Alem. Op. Cit. p. 98. 152 Jorge Dias (1907-1973) foi um antropólogo português, que desenvolveu pesquisas etnológicas em Portugal e Moçambique. Foi docente do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos – antiga Escola Superior Colonial e atual ISCSP. Para uma biografia resumida do autor, consultar: <https://dichp.bnportugal.gov.pt/imagens/dias_jorge.pdf> 153 LIMA, Mesquitela. Alguns aspectos da cultura Quioca, Mensário Administrativo, 1962; A Etnografia e Etnologia angolana considerações acerca da sua problemática actual, Museu de Angola, 1964; GUERREIRO, Manuel Viegas. Boers de Angola, Garcia de Orta, 1958; Os Quiocos, Revista de Ensino, 1950; Ovakwankala Bochimanes e Ovakwannyama Bantos, Garcia de Orta, 1960; Relatório da Campanha de 1957 Moçambique e Angola, Junta de Investigações do Ultramar, 1958. 160 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Pereira considera como “a inércia resultante de uma acrisolada ideologia colonialista” (2005, p. 178). Mais do que uma transição do interesse antropológico português, esse panorama reflete um momento de tensão e conflito por dentro do discurso colonial português sobre os significados do que consistiria a necessidade de “conhecer” o “indígena” dos territórios ultramarinos. O discurso português sobre as dimensões antropológicas dos sujeitos colonizados assumiu diferentes ênfases e referências, presentes nas perspectivas antropobiológicas, culturalistas ou voltadas à política indígena154. 2.2 A Etnografia Missionária Boa parte da produção etnográfica sobre territórios coloniais africanos na primeira parte do século XX se desenvolveu a partir de contextos missionários. As contribuições de sujeitos provenientes da missionação ao campo etnográfico compõem um repertório heterogêneo, que compreende desde a compilação de comentários às “sociedades indígenas” até o desenvolvimento de completas monografias etnográficas voltadas ao estudo das culturas locais. A circulação do material produzido no âmbito das atividades missionárias ganhou força no último quartel do século XIX. Patrick Harries (2005, pp. 239, 240) explica essa projeção a partir do crescimento de boletins, periódicos e revistas que circulavam nas metrópoles, apresentando informações sobre os costumes e modos de vida dos sujeitos os quais, segundo os missionários, necessitavam de evangelização155. O estabelecimento de missões cristãs em vários pontos do território angolano a partir da segunda metade do século XIX possibilitou um espaço de contato com sujeitos locais, o que propiciou a condução de trabalhos etnográficos tanto por parte de personagens envolvidos com a missionação como também por etnólogos profissionais. O interesse antropológico que emergia do contexto missionário mantinha uma aproximação, em vários níveis, com a inclinação classificatória, tanto do ponto de vista étnico quanto linguístico156. 154 ABRANTES, Carla Susana Alem. Op.Cit. p. 100. 155 BARRINGER, T. Why Are Missionary Periodicals (not) so Boring?, African Research and Documentation, LXXXIV (2000), pp. 33–46. 156 DULLEY, I. Deus é feiticeiro: prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial. São Paulo: Annablume, 2010. p. 39; RANGER, Terence. Missionaries, migrants, and the Manyika: The invention of ethnicity in Zimbabwe. African Studies Seminar series. Paper presented 2 April, 1984. 161 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X As missões católicas, promovidas pela Congregação do Espírito Santo157, apresentavam uma leitura dos “indígenas” que tinham vários pontos em comum com as perspectivas adotadas pela administração colonial. De acordo com Iracema Dulley (2010, p. 39), as duas instituições se baseavam em uma noção de alteridade que deveria ser adequada a seus projetos universalizantes de cristianização e civilização. Ainda segundo a autora, a concepção dessa alteridade partia de um repertório ligado ao racialismo e aos ideais civilizatórios. A prática etnográfica se mostrou como um dos caminhos empenhados por sujeitos missionários para conceber essa alteridade. O padre Carlos Estermann foi um dos personagens da Congregação Espiritana que se destacou no campo etnográfico. Para ele, a etnografia era um elemento subsidiário da atividade missionária, embora tenha tido significados variados para as ações do apostolado: À semelhança da linguística, a etnografia é uma ciência subsidiária do apostolado, que nenhum missionário digno dêste nome pode ignorar. Mas, como noutros ramos da ciência, há que distinguir entre missionários que adquirem conhecimentos etnográficos apenas para uso próprio e outros que comunicam os resultados dos seus estudos ao grande público. Infelizmente os representantes desta segunda classe são menos numerosos do que os da primeira. Ainda assim, podemos afirmar que, se muitos se não dão ao trabalho de publicar o fruto de longas e pacientes observações, se não mostram avarentos quando se tratam de fornecer dados a publicistas coloniais. Assim, grande parte dos capítulos que se referem às populações indígenas nos livros de João de Almeida, Ferreira Diniz e outros, deve-se à colaboração informadora de missionários. Há no entanto bastante material etnográfico publicado por missionários, que se encontra disperso por várias revistas, como: Portugal em África, Missões de Angola e Congo, Les Missiones Catoliques, Annales Apostoliques, etc. (ESTERMANN, 1941, pp. 13, 14). Ao longo de sua atuação enquanto missionário, Estermann dedicou-se ao estudo e análise das sociedades do sul e sudoeste do território angolano. Resultado dessas investigações, 157 A Congregação do Espírito Santo é uma congregação católica de origem francesa que atuou na missionação em Angola a partir das décadas finais do XIX. 162 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X publicou três volumes do Etnografia do Sudoeste de Angola entre os anos de 1956 e 1961. Nesses trabalhos, o missionário158 aborda temas como costumes, rituais, crenças e parentesco, além de se voltar aos modos de nomeação dos clãs, tribos e etnias159. Os padres espiritanos Alphonse Lang e Constant Tastevin publicaram uma monografia etnográfica sobre os Va-nyaneka em 1937160, que tratava de temas relacionados à vida social, intelectual, artística e industrial dos povos residentes no planalto da Huíla, além de dedicar uma seção ao que os autores consideravam como “religião e magia”. A recolha de informações que deu origem ao trabalho foi iniciada pelo também padre espiritano Eugênio Dekindt e completada em 1920 pelos autores da publicação161. No norte de Angola, os sacerdotes Manuel Vaz e Joaquim Martins publicaram textos sobre os significados do casamento e do simbolismo para as populações do enclave de Cabinda162. O padre José Francisco Valente, que atuou principalmente no planalto central, apesar de concentrar maiores esforços na construção de gramáticas e na recolha de provérbios e contos em umbundu, também trouxe contribuições no campo dos estudos sobre o casamento nativo163. As missões protestantes promoveram e mediaram um número significativo de investigações de caráter antropológico nos territórios angolanos. Carlos Serrano atribui o maior investimento desses missionários no campo antropológico ao fato de a formação desses sujeitos majoritariamente consistir de cursos superiores de Teologia, os quais geralmente incluíam cadeiras de Antropologia em sua base curricular (1992, p. 34). O planalto central, em Angola, 158 Sobre os trabalhos de Estermann, consultar: OLIVEIRA, J. P. Etnografias Missionárias no Sul de Angola: Danças Rituais e Celebração do boi sagrado na escrita do Padre Carlos Estermann. Revista Canoa do Tempo, v. 10, n. 2, p. 8–21, 26 jan. 2019; BAHU, Helder Pedro Alicerces. O sudoeste angolano e suas valências: uma análise crítica da produção teórica colonial. Com a Palavra, o Professor, v. 5, n. 13, p. 134-144, 2020. 159 ESTERMANN, Carlos. Etnografia do sudoeste de Angola. Lisboa: Junta de investigações do Ultramar, 1956; EDWARDS, A. C. Etnografia do Sudoeste de Angola. Vol. II. Grupo étnico Nhaneca–Humbe. By Carlos Estermann. Lisboa: Ministério do Ultramar (Mem. Sér. Antrop. e Etnol. 5), 1957; Etnografia do Sudoeste de Angola. Vol. III. O Grupo étnico Herero. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar (Memórias, 30), 1961. 160 LANG, A; TASTEVIN C. Ethnographie. La Tribu des Va-nyaneka. Mission Rohan-Chabot, V. Corbeil, 1937. 161 ESTERMANN, CARLOS. Contribuição dos missionários do Espírito Santo para a exploração científica do sul de Angola. Boletim Geral das Colónias, v. XVII, n. 196, 1941. p. 14. 162 VAZ, Manuel. Filosofia popular casamento indígena no enclave de Cabinda. Portugal em Africa, 1955; MARTINS, Joaquim. O simbolismo entre os pretos do distrito de Cabinda. Luanda: Instituto de Angola, 1961 (Luanda: Gráfica Portugal, Lda, 1961. - nº 15: il. - Separata de: Boletim do Instituto de Angola, nº 15, JaneiroDezembro 1961. 163 VALENTE, José Francisco. Seleção de provérbios e adivinhas em umbundu. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1964; Gramática Umbundu – a língua do Centro de Angola. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1964; A problemática do casamento tribal. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical e Congregação do Espírito Santo, 1985. 163 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X concentrou parte significativa do interesse antropológico desenvolvido na primeira metade do século XX por sujeitos ligados a missões protestantes, sobretudo as congregacionalistas164. Um caso de destaque é a trajetória do congregacionalista Gladwyn Murray Childs, autor de Umbundu Kinship and Character, monografia etnográfica voltada ao estudo sistemático da cultura umbundu, dos padrões de comportamento dos sujeitos locais e de sua psicologia social165. O trabalho foi publicado pelo International African Institute166 em 1949 e ganhou certo alcance no debate acadêmico167. Childs ocupava uma dupla função: era missionário e antropólogo de formação168. Essa condição sinaliza uma delimitação ainda fluida, àquela altura, da antropologia e missiologia enquanto campos de conhecimento. As afiliações da prática etnográfica com a atividade missionária cristã não devem ser negligenciadas na análise das obras. Essas conexões imprimem significados que devem ser considerados como componentes do universo de sentido dos agentes que os produzem, os quais compartilham, em vários níveis, noções de “cultura” e “civilização” que dialogam com referências do repertório de conhecimento colonial. Para Mudimbe, descortinar essas relações entre as etnografias sobre os povos africanos e as políticas de conversão é um dos caminhos para compreender como os discursos sobre “os outros” são construídos (1988, p. 64). A partir dessa direção, podemos melhor localizar, para o contexto angolano, como a alteridade é construída e mobilizada em contexto colonial e suas implicações para as trajetórias e percepções dos sujeitos africanos. 2.3 A Antropologia Institucional 164 Algumas etnografias produzidas no contexto das missões congregacionalistas: HASTINGS, Daniel Adolphus. Ovimbundu customs. Unpublished Ph.D. thesis, Kennedy School of Missions, Hartford, Conn, 1933; CHILDS, Gladwyn Murray. Umbundu Kinship And Character. Oxford: Oxford University Press, 1949. 165 CHILDS, Gladwyn Murray. Op. Cit. 166 O International African Institute é uma instituição que foi fundado no ano de 1926, voltado ao fomento e difusão dos estudos africanos. A partir de 1928 o IAI passou a publicar um periódico trimestral, o Africa. 167 READ, Margaret. Umbundu Kinship and Character. By Gladwyn Murray Childs. London: Oxford University Press for the International African Institute and the Witwatersrand University Press, 1949. pp. xi. 245, maps and plates, 21s. Africa, v. 21, n. 2, p. 159-162, 1951; EVANS‐PRITCHARD, E. E. Umbundu Kinship and Character. Gladwyn Murray Childs. AnthroSource, 1951. 168 Foi também fundador da missão do Dôndi, em 1914. SOARES, Mariza de Carvalho; AGOSTINHO, Michele de Barcelos. A Coleção Ovimbundu do Museu Nacional, Angola 1929-1935. Mana, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 493-518, Aug. 2016. p. 496; Gladwyn M. Childs Papers. Inventory. Special Collection. University of Washington Libraries. Disponível em: <https://www.lib.washington.edu/static/public/specialcollections/findingaids/2208-001.pdf> 164 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X No campo institucional, podemos destacar o notável interesse de instituições museológicas em empreender expedições ao território angolano, principalmente nas décadas iniciais do XX. Essas expedições se voltaram não apenas ao trabalho de campo etnográfico, mas também à recolha de objetos etnográficos. Em 1913 e 1914, o Museu de Etnologia de Berlim promoveu uma expedição de pesquisa e recolha etnográfica ao território do centro e sul de Angola. Liderada pelo etnólogo alemão Alfred Schachtzabel, a viagem, interrompida pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, forneceu as bases para a escrita de Im Hochland von Angola (No planalto de Angola). Publicado em 1923, o trabalho é um híbrido entre relato de viagem e monografia etnográfica sobre os Nganguela e os Tchokwe169. Em 1930, o mesmo museu enviou os etnólogos Hermann Baumann e Heinrich Meinhard ao território angolano, mais precisamente para o trabalho de campo com os povos Tchokwe, Lunda, Lwena e Lwimbi do norte de Angola170. Anos depois, já em 1954, Baumann retornou à Angola para desenvolver pesquisa etnográfica no sudoeste angolano, financiado pela Deutsche Forschungs-gemeinschaft (Sociedade Alemã de Investigação). Fragmentos dos resultados do trabalho de campo desenvolvido nos territórios dos povos Humbi, Musho, Kuvale, Handa, Mwila (Nyaneka), Nkhumbi, Ngangela e Kwankhala podem ser encontrados em várias publicações do autor, que incluem Les peuples et les civilisations de l'Afrique (Os povos e as civilizações da África), publicado em co-autoria com Diedrich Westermann em 1948 e Lunda: bei Bauern und Jägern in Inner-Angola (Lunda: entre fazendeiros e caçadores no interior de Angola), publicado em 1935. Em 1929, o museu de História Natural de Chicago, o Field Museum, enviou uma expedição que teve como objetivo a recolha de material etnográfico e fotográfico nos territórios das atuais Angola e Nigéria. A viagem foi liderada pelo etnólogo Wilfrid Dyson Hambly e financiada por Frederick Holbrook Rawson, presidente do National Bank de Chicago, à época171. Os objetos recolhidos somaram mais de dois mil itens. Hambly e seus colaboradores também produziram registros fílmicos e 550 fotografias172. Esse conjunto de itens compôs, ao 169 HEINTZE, Beatrix. Exploradores alemães: apropriações etnográficas entre comércio de escravos, colonialismo e ciência. Frankfurt: Universitätsbibliothek Johann Christian Senckenberg, 2011. pp. 340, 343. 170 HEINTZE, Beatrix. Op. Cit. 171 NASH, Stephen; FEINMAN, Gary. Curators, collections, and contexts: anthropology at the Field Museum. Fieldiana. Chicago: Field Museum, 2003. p. 159. 172 Os números são encontrados em NASH, Stephen; FEINMAN, Gary. Op. Cit. p. 154; Mariza de Soares Carvalho (2016, p. 507) relata que a coleção referente à Angola no Field Museum tem aproximadamente 30 mil 165 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X menos até 1971, uma parte essencial da exposição da ala de Etnologia Africana do Field Museum173. Além da catalogação e coleta de objetos da cultura material, Hambly desenvolveu um trabalho de campo que forneceu as bases para os textos The Ovimbundu of Angola (1934) e Anthropometry of the Ovimbundu (1938)174. A primeira publicação é um texto etnográfico, que se concentra primariamente na análise cultural dos povos do planalto angolano. A segunda é o resultado de um trabalho no domínio da antropologia física, baseado na medição corporal de indivíduos locais para explicar a constituição racial e cultural dos ovimbundu, a partir de uma perspectiva comparativa com outros agrupamentos sociais africanos. A circulação dos resultados dessas pesquisas ocorria, além de publicações de manuscritos e livros originais, em periódicos importantes para o campo dos estudos africanos, como a Africa e a Anthropos. Ainda que os responsáveis por esses trabalhos estivessem geralmente mais distantes do discurso colonialista do Estado do que seus contemporâneos administradores e missionários, observamos que as produções ainda carregavam referências do repertório imperialista nas categorizações, principalmente no que tange às concepções de raça, cultura e civilização e na tendência à “recolha” de cultura material, que parecem ter dado a tônica dessas investigações no território angolano na primeira metade do século XX. 3 Considerações Finais Neste trabalho, apresentamos um esboço do quadro geral das produções de caráter antropológico desenvolvidas no contexto colonial angolano ao longo da primeira metade do século XX. O panorama traçado funciona como um ponto de partida para entendermos os processos e experiências históricas que permitiram a emergência de narrativas antropológicas sobre os povos de Angola. Essas narrativas expõem uma dimensão importante do arquivo colonial, necessária para compreendermos como certas imagens dos povos locais são projetadas enquanto outras são obliteradas. 4 Referências objetos catalogados. In: SOARES, Mariza de Carvalho; AGOSTINHO, Michele de Barcelos. A coleção ovimbundu do Museu Nacional, Angola 1929-1935. Mana, v. 22, p. 493-518, 2016. 173 NASH, Stephen; FEINMAN, Gary. Op. Cit. p. 157. 174 HAMBLY, Wilfrid D. The Ovimbundu of Angola. Anthropological Series Vol. XXI, No. 2. Chicago: Field Museum of Natural History, 1934; HAMBLY, Wilfrid D. Anthropometry of the Ovimbundu. Anthropological Series, Volume XXV, No 2. Chicago: Field Museum of Natural History, 1938. 166 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ASAD, T. From the history of colonial anthropology to the anthropology of Western hegemony, George W. STOCKING (org.), Colonial Situations: Essays on the Contextualization of Ethnographic Knowledge, Madison, WI. 1991. DULLEY, I. Deus é feiticeiro: prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial. São Paulo: Annablume, 2010. ESTERMANN, CARLOS. Contribuição dos missionários do Espírito Santo para a exploração científica do sul de Angola. Boletim Geral das Colónias, v. XVII, n. 196, 1941. ETHERINGTON, N. Missions and Empire. Oxford: Oxford University Press, 2005. GALLO, D. O saber português: antropologia e colonialismo. Lisboa: Heptágono, 1988. MUDIMBE, V. Y. The Invention of Africa: Gnosis Philosophy, and the Order of Knowledge. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1988. OLIVEIRA, J. P. Etnografias Missionárias no Sul de Angola: Danças Rituais e Celebração do boi sagrado na escrita do Padre Carlos Estermann. Revista Canoa do Tempo, v. 10, n. 2, p. 8–21, 26 jan. 2019. PELS, P. J.; SALEMINK, O. Introduction: Locating the Colonial Subjects of Anthropology. 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Neste artigo investigaremos também os métodos pelos quais a Coroa portuguesa e seus administradores usaram para se impor frente às lideranças locais, fazendo um comparativo entre os governadores, em especial aos reformistas ilustrados e aqueles considerados “conquistadores”, pretendendo assim, evidenciar que muitas vezes o discurso ilustrado permanecia na documentação, enquanto a prática se mostrava bem diferente. Palavras-chave: Angola, chefias africanas, protagonismo. Entre os descontentes com o tráfico de armas e pólvora em seus territórios, a lista não se limitava às autoridades portuguesas; líderes africanos também se mostravam insatisfeitos com a fiscalização portuguesa desses produtos, como é o caso do jaga de Cassange, Dom Paschoal Rodrigues Machado, que por meio de cartas trocadas com o governador Barão de Mossâmedes, rebate uma das exigências presentes em seu termo de vassalagem de 1789 que visava a viabilização do comércio de armas entre os feirantes africanos e os comerciantes vassalos da Coroa, pois o jaga se sentia ameaçado e via seu poder diminuir à medida que autoridades menores que a dele passaram a ter acesso ao acervo bélico vindo da Europa, em 175 Fragmento de dissertação de mestrado intitulada Fluxo de armas, guerra e territorialização em Angola: Ferramentas de chefes africanos e administradores lusitanos na segunda metade do XVIII defendida em 2021. 176 Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas. Email: leonardo.amaral.18@outlook.com 177 LOVEJOY, Paul E., A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 128-129. 168 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X especial no Songo, “que com a provisão de Pólvora, e Armas, se tem Rebelado ao mesmo”178. Para o jaga, facilitar este comércio era promover os conflitos em suas terras e nas redondezas, o que enfraqueceria diretamente o mesmo e os comerciantes portugueses que ali tratavam, “pelo dano, que se segue de os proverem de armas, e pólvora, porque logrando esta força, experimentaria rigorosa inquietação de Guerra contra os Povos das suas Terras”179. Para que os acordos entre o jaga e a Coroa fossem estabelecidos, os interesses de ambos deveriam ser levados em consideração, convergindo para que o pacto fosse conservado e respeitado de forma duradoura pelos senhores africanos e pelos governadores e militares portugueses180. Notamos que não só a Coroa impunha obrigações nos tratos de avassalamento, mas que os chefes locais, até certo ponto, tinham voz de escolha ao exigir a retificação de certas condições, as quais os administradores portugueses examinavam e decidiam se aceitariam ou não diante dos embaixadores do chefe local. Ana Maria Araújo181 sugere que as constantes quebras dos juramentos de vassalagem demonstram o quanto sobas e jagas eram relevantes nas relações comerciais. Era indispensável para a administração portuguesa cativar esses agentes e, enquanto favoráveis aos interesses portugueses, os administradores da Coroa se referiam aos mesmos em suas correspondências com cortesia182 e, para agradá-los, faziam mudanças administrativas dos funcionários que trabalhavam nas feiras ou presídios ligados aos territórios dos chefes. A pedido do jaga em 1790 o governador português troca o escrivão da feira de Cassange – desgostado pelo jaga – por outro, “para todos ficarmos bem, e eu ter muitas ocasiões de darvos gosto”183. Comportamento que ainda se faz presente em 1792, quando em carta para novo dirigente da feira, informa que parte das vontades do jaga devem ser atendidas: “para manter o Cassange ligado ao nosso comércio pelos motivos ponderados, se faz indispensavelmente 178 Termo de fidelidade e vassalagem que jurou o Jaga de Cassange na presença do Embaixador Marcos Pereira Bravo, de 19 de Dezembro de 1789. Códice 3259 A-2-12, AHNA, 1789. 179 Ibid. 180 CARVALHO, Flávia Maria, Sobas e homens do rei: Relações de poder e escravidão em Angola (séculos XVII e XVIII). Maceió: Edufal, 2015, p. 279 e 301. 181 ARAÚJO, Ana Maria Soares de. O avassalamento como feramenta de poder nas relações comerciais entre cassanges e portugueses no século XVIII. Monografia – Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2018, p. 5. 182 “Estimo muito e muito a sua amizade e me comprazerá que seja firme pra se unir aos meus desejos, que se empenham a conservação de um amigo que estimo.” VASCONCELLOS, Manoel d’Almeida. Carta escrita pelo Excelentíssimo Senhor Manoel ‘Almeida Vasconcellos para o Jaga de Cassange a 17 de Novembro de 1790. Códice 3259 A-2-12. AHNA, 1789. 183 VASCONCELLOS, Manuel d’Almeida. Carta para o dito de 9 de Dezembro de 1790. Códice 3259 A-2-12, AHNA, 1789. 169 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X necessário condescender com ele de alguma forma para o agradar e conservar por meio de uma máxima política”184. Alguns sobas, devido ao seu posicionamento territorial e poder militar, dispunham de maior voz no momento da realização de acordos pois “para alcançar seus objetivos, portugueses e seus aliados precisaram muitas vezes ceder aos interesses de determinadas chefias para conseguir o apoio e a base”185, como vemos no caso de Cassange. Apesar disso, muitas vezes a comunicação entre a administração portuguesa e chefes locais era carregada de ameaças, expostas em duas cartas do então governador Manoel d’Almeida Vasconcellos ao jaga de Cassange em 1792, após inúmeras tentativas do chefe local de mudar os preços dos escravos de sua feira, visando seu maior ganho: “Então verás a diferença que fazem os protegidos e fiéis vassalos de traidores, inimigos e ladrões” 186 e “Eu vos tratarei e aos vossos povos como os mais indignos rebeldes, o que Deus não permita, porque sendo vós vassalo desejo a vossa conservação e assistir-vos com tudo que possa concorrer para a vossa felicidade”187. A preocupação do jaga de Cassange em proibir o tráfico de armas e pólvora no território sob sua influência também pode ser atribuída ao fato de que o mesmo funcionava como poder intermediário entre os povos mais ao interior e a administração portuguesa. Sua localização estratégica permitia que Cassange recebesse levas de escravos de seu vizinho interiorano, o Muatiânvua de Lunda, e as repassasse para os portugueses a partir das feiras. Tanto o chefe Muatiânvua quanto a administração portuguesa tinham interesse em ter contato direto entre si, mas isto era dificultado por Cassange, “empenhado em exercer o papel de Estado tampão, entre o hinterland a leste do seu território”188 e portugueses a oeste. Grupo da África Centro-Ocidental que também via na guerra e captura de escravizados a maior fonte de sua economia graças ao mercado atlântico, os lundos, segundo Paul Lovejoy, “participavam do comércio escravo porque podiam mobilizar a população do interior para a escravização, a produção e o comércio” – onde escravizados pelo Muatiânvua e seus guerreiros, 184 Diretório que levou o dito Chagas de 22 de Agosto de 1792. Códice 3259 A-2-12. AHNA, 1792. 185 CARVALHO, F. M., op. cit., p. 299. 186 VASCONCELLOS, Manoel d’Almeida. Carta para o Jaga de Cassange de 28 de Maio de 1792. Códice 3259 A-2-12. AHNA, 1792. 187 VASCONCELLOS, Manoel d’Almeida. Carta para o Jaga de Cassange de 22 de Agosto de 1792. Códice 3259 A-2-12. AHNA, 1792. 188 SANTOS, Maria Emília Madeira. Em busca dos sítios do poder na África Centro-Ocidental. Homens e caminhos, exércitos e estradas (1483-1915). In: HEINTZE, B.; OPPEN, A. Angola on the move: transport routes, communications and history. Lembeck: Frankfurt am Main, 2008, p. 30. 170 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X eram posteriormente encaminhados às feiras imbangalas, entre elas a de Cassange189. Assim, se o comércio de gêneros bélicos chegasse a seus vizinhos, Cassange se veria vulnerável a ataques dos mesmos, interessados em sobrepor o Jaga e negociar diretamente com comerciantes portugueses. No mapa a seguir podemos ver com mais clareza a localização de Cassange e a Leste, Lunda, responsável, segundo a documentação, por fornecer escravizados para outros potentados africanos na África Centro-Ocidental. No mapa, observamos que Cassange ficava exatamente entre Lunda e Luanda, causando assim a barreira comercial que os administradores portugueses tanto falavam, fazendo com que Cassange se tornasse intermediário entre Muatiânvua e a administração portuguesa do litoral: FIGURA 1: África Centro-Ocidental Fonte: BIRMINGHAM, op. cit., p. Em sua viagem sob ordens do governador António Álvares da Cunha, o sargento-mor Manuel Correia Leitão observa que o soberano de Cassange não queria permitir sua passagem para as terras além do rio Cuango por “arrogância e ambição”, pois “não querem que os 189 LOVEJOY, op. cit., p. 201. 171 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X portugueses tratem com os gentios de além do rio”190: “Ainda que se dê ao Cassange um milhão, sendo tão ambicioso, não deixará nenhum português chegar àquele rio [Cuango]”191. É importantíssima a análise deste documento pois comprova os interesses dos chefes locais não só em negociar diretamente com europeus, mas em barrar que outros povos africanos (potencialmente concorrentes) viessem a estabelecer comércio com os estrangeiros, não permitindo que portugueses fossem além de seus territórios, controlando as transações dos sertões: Este grande Cassange impede todos que em caso nenhum tenham os portugueses trato ou comércio com os poderosos e muitos potentados de além do rio [Cuango]; pena de vida, e de geração vendida aos seus vassalos que mostrarem tal caminho, e a razão da sua teima e ordem e, além de outras particularidades, para que se não ponham os portugueses da outra banda do rio e lhe tiremos o comércio dos escravos de que vivem, e os deixemos avassalados e sujeitos a presídios e nos não façamos senhores dessas muitas gentes que habitam tão dilatadas terras192. Para entender melhor quem eram Cassange e Muatiânvua, devemos nos voltar para o estabelecimento dos grupos imbangalas nos sertões angolanos. A despeito de não citar as épocas a que se refere, em carta de 26 de julho de 1789 ao jaga de Cassange, o barão de Mossâmedes enfoca para o líder africano a importância do apoio português no estabelecimento e fortificação de seu território no passado, comparando-o a seus ancestrais no que tange ao reconhecimento destes pela superioridade das forças e da tecnologia bélica portuguesas, que segundo o governador, foram responsáveis pelo “sossego” nas terras dos Cassanges: Aqueles [Jagas de Cassange anteriores] sim, que levaram o amor paternal para com os seus filhos, até acharem o verdadeiro, e mais sólido tratamento do Seu Estado que de todo o bem referido; que aborrecendo a vida, errante a que se viram necessitadas para subsistirem os primeiros Jagas aquém jamais foi possível ocuparem sossegadamente o menor canto desse Sertão, vendo-se a 190 LEITÃO, Manuel Correia. Viagem que eu, sargento-mor dos moradores do distrito do Dande, fiz às remotas partes de Cassange e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa, 1938, p. 9. 191 Ibid, p. 23. 192 LEITÃO, op. cit., p. 14-15. 172 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X cada passo expostos a perder o fruto das suas pilhagens, e cercados de contínuo pelos inumeráveis vizinhos, aquém tenham agravado: os vossos próximos Antepassados, conhecendo a força, e o justo Respeito, que tinham neste Continente, como em todo o Mundo, conseguido as Armas de Sua Majestade e Fidelíssima, não duvidaram, mas avisados, que vós, em procurar o seguro abrigo das Suas Reais Bandeiras. À sombra das quais, não só respiraram livremente à vista dos seus poderosos Inimigos, mas conseguiram ressarcidos com glória, e introduzir entre eles o Respeito, o temor do nome Cassange193. Lovejoy nos traz mais detalhes sobre o período da formação dos estados imbangalas que – não por mera coincidência – é o mesmo no qual a administração portuguesa usou tais grupos como mercenários em suas guerras na primeira metade do século XVII, fortificando-os política e militarmente face a seus vizinhos: Em 1601, alguns imbangalas tinham entrado em contato com os portugueses, formando alianças temporárias para capturar escravos em troca de produtos importados. Na segunda década do século XVII, esses arranjos tornaram-se permanentes, e os imbangalas na verdade foram transformados em mercenários dos portugueses. Alguns imbangalas permaneceram no Congo meridional e em outros lugares perto da costa; outros fundaram estados no interior194. Apesar de aqui problematizarmos o que Lovejoy apresenta como “arranjos permanentes” entre os imbangalas e a Coroa portuguesa – pois observaremos ao longo deste capítulo que até o fim do século XVIII muitos destes grupos imbangalas ainda não estavam sob o comando português, sendo assim estados independentes –, vemos que tanto o estabelecimento quanto a desintegração de sociedades e etnias africanas poderiam ocorrer pela influência ou interferência da administração portuguesa de Luanda no que tange assuntos internos das relações de poder entre uma sociedade africana e outra, direta ou indiretamente. A fundação de Lunda não foge à esta regra: 193 VASCONCELLOS, José de Almeida. Carta para o Jaga de Cassange escrita a 26 de Julho de 1789. Códice 3259 A-2-12, AHNA, 1789. 194 LOVEJOY, op. cit., p. 128-129. 173 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Da última década do século XVII em diante, uma série de guerras irrompeu, alimentando as rotas dos escravos para a costa. Essas guerras estavam associadas à consolidação de vários estados, sendo os mais importantes Luba, Lunda, Cazembe e Lózi. [...] Um desses se impôs na área que se tornou a Lunda, centralizada entre Luba e Caçanje, estando dessa forma bem localizada para tirar proveito do mercado escravo para a costa. O governante desse Estado, o mwant yaav ou muantiânvua, fundou uma capital (mussumba195), de onde os exércitos de Lunda atacavam, capturando escravos. No devido tempo, o número de províncias e outros pequenos estados foram estabelecidos sob o domínio de chefes guerreiros lundos, que canalizavam os escravos para a mussumba196. Segundo o sargento-mor, o chefe Muatiânvua fornecia escravos para Benguela, Cassange, Olos, Congo e muitos outros potentados africanos que faziam comércio direto com os portugueses. Manuel Correia se surpreendeu pelo fato de que até aos dembos Ambuela e Mutemos (mais distantes de Lunda e próximos ao litoral) os escravizados capturados por Muatiânvua costumavam alcançar, chegando à conclusão de que “a não serem eles, não teríamos tantos escravos, porque eles, pela sua ambição e fama de vencer, feito águias terrestres, correm terras tão remotas de sua pátria, só para se fazerem senhores das outras gentes”197. Era no comércio de povos aprisionados por meio dos conflitos que senhores da guerra locais tinham acesso aos produtos manufaturados europeus. Enquanto isso, europeus tinham interesse em escravos, metais preciosos, minérios e em algumas circunstâncias, alimentos198. Para isso, introduziram produtos do interesse de africanos dos sertões, muitas vezes bélicos, como nos mostra a carta do governador Manoel d’Almeida e Vasconcellos199 ao jaga de 195 Lovejoy afirma que mussumba seria o equivalente a capital para Lunda. De acordo com o dicionário Kimbuntu-Português de A de Assis Junior, o significado da palavra seria o seguinte: “Músumba, sub (II) bot. Árvore fam. Das leguminosas, de madeira muito resistente (brachistegia tamarindoides).| Planta têxtil e ornamental.” ASSIS JÚNIOR, A. de. Dicionário Kimbundu-Português. Linguístico, botânico, histórico e corográfico. Luanda: Argente, Santos e Cª L , p. 319. 196 ASSIS JÚNIOR, op. cit., p. 131. 197 LEITÃO, op. cit., p. 25. 198 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 89. 199 1790-1797. da 174 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Cassange, dizendo enviar armas de fogo ao mesmo por meio de seus embaixadores na tentativa de fazer com que o senhor do sertão respeitasse as regras impostas pelos portugueses referentes ao comércio e aos preços dos escravizados: Faço explicar ao vosso embaixador depois de o ter ouvido e aceitado os presentes que me mandais e que no conceito de seres bom vassalo e estares pelo que vos digo, o recebi, e em recompensa mando-vos a vossa bandeira um bonito par de pistolas, pólvora e bala para vos defenderdes dos vossos inimigos, e várias miudezas para os amigo. Ainda em sua viagem a Cassange, Manuel Correia Leitão conta do mérito das armas de fogo fornecidas por portuguesas nos conflitos travados pelo jaga, confirmando a dinâmica do comércio das armas de fogo e sua importância nas relações locais, garantindo superioridade bélica para africanos que as possuíssem, acesso que ajudou a moldar as relações e políticas dos reinos africanos200. Para Manuel Correia, os povos de Cassange eram bons atiradores, admitindo a facilidade a qual africanos possuíam em instruir-se no uso das armas de fogo201. Graças a essa habilidade e ao acesso às armas europeias, Cassange garantiu poder militar superior frente seus vizinhos: “a não ser o calor do nosso nome, armas e pólvora, seria já destruído da nação Malundo”202. Ainda na carta de 1789, o Barão de Mossâmedes elucida ao Jaga que portugueses introduziram armas aos soldados de Cassange, incentivando seu emprego nas batalhas com vizinhos: “quem vos mostrou o uso do fogo, para invadir os Inimigos ou para afugentar? [...] A vantagem do fuzil sobre a de uma flecha [...] que só vós estejas de posse desta vantagem, que vos resulta do nosso Comércio e da nossa amizade e da nossa Proteção”203. Além de atribuir aos portugueses a introdução inicial das armas de fogo europeias aos antepassados do então Jaga de Cassange, a afirmação do governador também evidencia a relevância em Cassange ser o único, entre seus vizinhos, a ter acesso às armas portuguesas, o que lhe garantiria superioridade bélica com outros senhores da guerra da região do Cuango. Caso os portugueses monopolizassem o comércio de armas e pólvora, tornando-se os únicos fornecedores para os chefes dos sertões, garantiriam que estes não se rebelassem, pois 200 FERREIRA, Roquinaldo. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade. Cambridge University Press: New York, 2012, p. 44. 201 LEITÃO, op. cit., p. 18-19. 202 Ibid, p. 17. 203 VASCONCELLOS, op. cit., 26 de julho de 1789. 175 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X assim perderiam o privilégio que o acesso das armas, munições e pólvora portuguesas conferia, sendo enfraquecidos perante outros povos dos sertões. A própria ameaça de interrupção no transporte de gêneros bélicos era capaz de coagir africanos a acatar desejos portugueses204. Mas a administração portuguesa em Angola não foi capaz de coibir o mercado de outras nações europeias no território, assim como não conseguiu estabelecer a exclusividade do comércio entre os chefes africanos205. A documentação nos permite mapear um pouco dos caminhos que produtos introduzidos por outras nações europeias percorriam desde o litoral aos sertões mais distantes da costa à procura de escravizados, causando prejuízos aos negociantes portugueses que por sua vez não eram capazes de concorrer na qualidade ou preços ofertados: Os negros dos portos do mar desta costa trabalham incansavelmente em se entranharem pelo sertão com as fazendas estrangeiras a comprarem os escravos por uns preços tão excessivos que com eles não podemos competir, levando com abundancia os gêneros da maior estimação do gentio, que nos não é permitido levar, pela notícia que temos, já os ditos pretos se acham nas vizinhanças d’Ambaca com fazendas estrangeiras, e nas terras do Ginga, donde tem um quilombo, do qual espalham as ditas fazendas para o mais sertão com que compram os escravos e conduzem para a beira-mar, de onde os levam os estrangeiros206. Não apenas portugueses, mas chefes locais também lutavam pelo monopólio sobre o acesso aos produtos europeus, tentando impedir muitas vezes que estes fossem introduzidos a seus vizinhos. A exclusividade garantia poder político e bélico. Por causa de tentativas portuguesas de estabelecer comercio direto com chefes do Holo na segunda metade do XVIII, Matamba retaliou estes avanços comerciais atacando presídios e comerciantes vassalos da Coroa que adentravam no território. Os senhores da guerra mais poderosos próximos ao 204 “Quando o ameacei, mostrou temor, especialmente quando lhe disse que, se se fiava nas armas, visse que as havíamos de reduzir a paus, ficando todas sem préstimo, negando-lhes totalmente a pólvora.” LEITÃO, op. cit., p.19. 205 AMARAL, Leonardo Oliveira. O dilema das armas e da pólvora nos governos ilustrados em Angola (segunda metade do século XVIII). ANPUH-Brasil – 30º Simpósio Nacional de História – Recife, 2019. 206 VASCONCELLOS, op. cit., 22 de agosto de 1792. 176 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Cuango buscavam manter suas posições privilegiadas de intermediários do fluxo de bens e de escravizados nos sertões de Angola. Numa tentativa de frear os avanços comerciais portugueses, Matamba ataca estes negociantes. Por sua vez a administração de Luanda reage e em guerra contra o potentado africano, captura grande número de escravizados e coage o líder a assinar acordo permitindo o livre comércio aos seus vassalos e territórios, garantindo ao reino do Holo o comércio direto com a costa. Ainda segundo Roquinaldo, “a escravização rotineira resultou não apenas na propagação do comércio itinerante, mas também no controle rígido que os reinos Ambundos de Casanje e Matamba exerciam sobre o comercio escravo interno no interior de Luanda”207. A exploração portuguesa na África Centro-Ocidental não teria se efetivado sem o interesse de uma elite local em lucrar a partir da venda e troca de escravizados. Apesar de se estabelecer como uma troca desproporcional, os produtos vindos do além-mar garantiam aos sobas e outros atores locais status e acumulação de poderes em seu nicho social. Ainda assim, muitas vezes as trocas foram forçadas pela ocupação portuguesa, onde o soba avassalado se encontrava obrigado a atender as especificações portuguesas em troca de um apoio bélico frágil que, por sua vez, era sustentado pelo número elevado de tropas africanas que o acompanhavam, estas, de outros sobados avassalados, explicando o porquê de que de tempos em tempos sobas recentemente avassalados voltavam a revoltar-se contra a administração portuguesa, “insultando-os” ao negar apoio militar ou assaltando comerciantes portugueses que circulavam pelos sertões. Referências Fontes: ASSIS JÚNIOR, A. de. Dicionário Kimbundu-Português. Linguístico, botânico, histórico e corográfico. Luanda: Argente, Santos e Cª Lda. Códice 3259 A-2-12. Arquivo Histórico Nacional de Angola. LEITÃO, Manuel Correia. Viagem que eu, sargento-mor dos moradores do distrito do Dande, fiz às remotas partes de Cassange e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa, 1938. Bibliografia: 207 Ibid, p. 16, tradução nossa. 177 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X AMARAL, Leonardo Oliveira. O dilema das armas e da pólvora nos governos ilustrados em Angola (segunda metade do século XVIII). ANPUH-Brasil – 30º Simpósio Nacional de História – Recife, 2019. ARAÚJO, Ana Maria Soares de. O avassalamento como ferramenta de poder nas relações comerciais entre cassanges e portugueses no século XVIII. 2018. Monografia - Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2018. CARVALHO, Flávia Maria. Sobas e homens do rei: relações de poder e escravidão em Angola (séculos XVII e XVIII). Maceió: Edufal, 2015. FERREIRA, Roquinaldo. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade. Cambridge University Press: New York, 2012. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora Unesp, 2014. LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. SANTOS, Maria Emília Madeira. Em busca dos sítios do poder na África Centro-Ocidental. Homens e caminhos, exércitos e estradas (1483-1915). In: HEINTZE, B.; OPPEN, A. Angola on the move: transport routes, communications and history. Lembeck: Frankfurt am Main, 2008. 178 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Intérpretes africanos da administração colonial francesa e a produção da história: entre retratos, silêncios, arquivos e hiperlinks (décadas de 1880 e 1890) Rafaél Antônio Nascimento Cruz208 Resumo: Neste texto objetiva-se pensar como os retratos de africanos que atuaram na condição de intérpretes formais ou ocasionais a serviço da administração francesa na África do Oeste nos convidam a questionar os silêncios das narrativas e repensá-las, lançando luz sobre ações e iniciativas de agentes africanos para além de chaves analíticas dicotômicas (que os reduzem a resistentes ou colaboradores). Para tanto, recorreremos a fotografias oriundas de diferentes acervos digitais de instituições de guarda documental; procura-se com isso estabelecer uma reflexão sobre a produção da história. Palavras-chave: Intermediários; Colonialismo; Fotografia. Introdução Ao longo do século XIX, cada vez mais africanos tiveram de lidar com a imposição da ocupação colonial. No Sudão ocidental,209 a invasão francesa teve lugar nas últimas décadas desse século. As sociedades das terras localizadas no alto rio Senegal e no alto e médio rio Níger, com suas diferentes formas de organização social e política, viram-se diante de uma modalidade de dominação até então desconhecida.210 De um ponto de vista historiográfico, os intermediários transacionais africanos que atuaram a serviço dos franceses oferecem uma possibilidade de explorar essa complexidade social e as diferentes maneiras de lidar com o poder colonial em implementação. Longe de ser um grupo homogêneo, a posição intermediária congregava sujeitos oriundos de diferentes sociedades, regiões, culturas, estratificações sociais e demais formas de agrupamento e identidade. Acessar esses aspectos 208 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (PPGHS/USP). Neste texto, apresento considerações parciais de minha pesquisa, intitulada “Intérpretes africanos e domínio colonial francês no Sudão ocidental (1863-1898)” e financiada pela CAPES. 209 “Sudão”, como é sabido, é um termo usado para se referir aos territórios imediatamente ao sul do Saara, nas zonas sahelianas e de savana. Tem sua origem na maneira como os geógrafos árabes e alguns letrados muçulmanos se referiam a essa região: vem da expressão árabe “bilad al-sudan”, que significa, em tradução literal, “terra dos negros” ou “país dos negros”. 210 O enfoque em pensar as distinções sociais e a sua intensa transformação em face da invasão colonial advém das reflexões formuladas por Lefebvre (2021) em seu estudo sobre o início da ocupação colonial no território que corresponde ao atual Níger. 179 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X demanda uma leitura “a contrapelo” da documentação produzida por europeus ligados ao poder colonial: relatos de viagem, tratados, recolhas de contos ou tradições orais – ou seja, apesar da diversidade de tipologia, trata-se de peças da “biblioteca colonial” (MUDIMBE, 2013). Contudo, conforme salienta Stoler (2002, p. 91-92), para fazer uma leitura “a contrapelo” é necessário entender também qual é o sentido que conforma a documentação e as categorias sociais mobilizadas na ordem do conhecimento colonial europeu. Por ora, gostaria de discutir um tipo específico de documento do corpus mencionado: as fotografias. Nesse sentido, acho pertinente a imagem da “galeria de retratos” aludida por Jean-Louis Triaud para comentar as transformações na historiografia sobre a colonização em África (DULUCQ et al., 2006, p. 240-241). Segundo o historiador, a “história colonial” durante a primeira metade do século XX era composta por uma galeria de retratos de heróis da colonização. No caso da região de meu recorte geográfico, podemos citar o exemplo de Louis Faidherbe, Louis Archinard ou Joseph Gallieni. São os “grandes nomes” de uma certa “história imperial”, laudatória e legitimadora da dominação colonial. Nessa narrativa, eles são “os construtores do Império”. Com a emergência da história da África como campo de estudos, Triaud observa que “Os combatentes e as gestas das independências, as galerias de retratos de grandes ancestrais africanos substituíram os heróis da colonização e a lenda dourada do Império” (DULUCQ et al., 2006, p. 240, tradução nossa). Novamente, a imagem da galeria de retratos, mas agora daqueles que foram escolhidos como heróis da luta anticolonial. Não significa com isso uma equiparação de valor moral entre uns e outros; não se trata disso e não se equiparam. Para se contrapor à “história imperial” e seus postulados, as historiadoras e os historiadores da década de 1960 enfatizaram a legitimidade de se produzir uma história da África. Até então, as resistências à invasão e à ocupação colonial eram entendidas como episódios sem consequências importantes, dando ensejo a processos de “pacificação”. A preocupação dos autores, então, era afirmar a pertinência das resistências em África, classificá-las, interpretá-las e identificar os seus condicionantes. Nesse período, as antigas colônias se tornavam países independentes e essa produção historiográfica era parte desse momento no qual a preocupação dos historiadores e historiadoras era a construção de um passado ligado ao ideário dos Estadosnações que surgiam. Assim, a “galeria de retratos” foi ornada, por exemplo, com figuras como Lat Dior, Samory Touré e el-hajj Omar. 180 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Intermediários africanos retratados por militares franceses Reconhecida a pertinência das diferentes abordagens sobre as resistências – importante notar que esse é um dos grandes temas da história da África e muitos trabalhos excelentes são produzidos nessa linha – gostaria de deslocar o olhar para agentes que não são grandes nomes da história desse período. Dos três citados, por exemplo, todos foram dirigentes de estruturas políticas: Lat Dior foi damel do Cayor; Samory Touré foi senhor de domínios que chegaram a ter quase 400 mil km²; el-hajj Omar foi dirigente do chamado “Império Tukulor”. As pessoas que eu gostaria de olhar não opuseram resistência armada aos invasores franceses – pelo contrário, foram empregados de baixo escalão e atuaram a seu serviço. Eram “pessoas comuns” que viviam nas regiões controladas pelos franceses. São homens como estes quatro, cujos retratos são reunidos abaixo. Figuras 1 a 4 Fig. 1. Hamadou Alpha, interprète. Fonte: Museu do quai Branly. Fig. 2. Amadi Coumba, interprète toucouleur en tenue de guerre. Fonte: Museu do quai Branly. Fig. 3. Diawé Fofana, domestique du capitaine Binger puis du colonel Archinard. Fonte: ANOM. Fig. 4. Abdulay-Diack, interprète. Fonte: Museu do quai Branly.211 Da esquerda para a direita, temos: Hamadou Alpha, Amadi Coumba, Diawé Fofana e Abdulay-Diack. Possuímos poucas informações sobre suas vidas e, no caso de alguns – como Hamadou Alpha e Abdulay Diack – sabemos apenas seus nomes. Há também o fator comum aos quatro: no momento em que foram fotografados, todos eles trabalhavam para a administração colonial francesa na condição de intérpretes, de modo formal ou ocasional. Os 211 As referências completas se encontram relacionadas ao final do texto. 181 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X intérpretes dos retratos 1 e 4, Hamadou Alpha e Abdulay-Diack, integraram a missão de exploração enviada ao Sudão ocidental entre 1880 e 1881. Foi nesta ocasião que foram fotografados pelas lentes do militar francês Pierre-Léon Delanneau, que também fazia parte da missão. Quanto aos outros dois, Amadi Coumba e Diawé Fofana, até o momento não foi possível identificar alguma ação específica que ocasionou a produção de seu retrato. Foram também fotografados por um militar, Jean-Marie Collomb, que produziu diversas fotografias no continente africano durante a década de 1880. Desse modo, nessa seleção temos quatro retratados e dois retratistas. A diferença na pose dos retratados expressa as diferentes escolhas por parte dos fotógrafos. Enquanto nas fotografias de Delanneau os retratados olham para o horizonte para além do enquadramento ou então olham para a câmera de soslaio, apresentando-se parcialmente de perfil, nos retratos de Collomb eles assumem uma pose na qual olham diretamente para a objetiva – estes padrões são observáveis em outras produções destes dois militares.212 A função primeira de um intérprete era a de tornar a comunicação mutuamente inteligível. A região de que tratamos é notória por sua heterogeneidade linguística. Para tomar a atualidade como parâmetro, a região conta com mais de 300 línguas e, no século XIX, possivelmente possuía uma multiplicidade linguística ainda mais acentuada (VAN DEN AVENNE, 2017a, p. 15). São línguas como o fulfulde, o uolófe, o bambara, o diúla, o árabe, o malinquê, etc. Porém, as atividades do intérprete transcendiam a tradução em um sentido estrito e eles atuavam como mediadores culturais, emissários políticos, guias em expedições, negociadores de tratados; também não era raro que desempenhassem outras atividades manuais, como soldados, cozinheiros ou carregadores (MOPOHO, 2001, p. 616). Com isso, observamos a conformação de uma situação paradoxal: os intérpretes – e intermediários africanos em geral – foram onipresentes e figuras centrais no processo de expansão e na dominação colonial; ao mesmo tempo, somente figuram de modo marginal e residual nos vestígios documentais que chegaram até nós. Esse paradoxo foi assinalado por historiadores que trabalharam anteriormente com esse tema, como é o caso de Brunschwig (1977, p. 5), Robinson (2000, p. 50) e M’bayo (2016, p. 169-177). Ou ainda, conforme apontado por Gebara (2019, p. 209), em artigo recente sobre 212 Outras fotografias de Delanneau e de Collomb podem ser encontradas no acervo virtual disponibilizado pelo museu do quai Branly. Disponível em http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/. Acesso em 4 de dezembro de 2020. 182 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X intermediários africanos e registros a seu respeito na literatura de viagem de expedições inglesas na África do Oeste: as menções a estes agentes costumam ocorrer com “objetivos anedóticos e/ou contextuais”, e se apresentam por meio de uma perspectiva eurocêntrica e pautada pela noção de suposta superioridade racial europeia. A ausência destes agentes na documentação chama a atenção para os silêncios. Trouillot (2016, p. 57) aponta que o silêncio é um elemento inerente da produção histórica. E esse elemento não constitui a história apenas no que toca aos vestígios documentais. Como ele aponta, os silêncios operam na elaboração das fontes, dos arquivos, das narrativas e da “história em última instância”. Ou seja, implica pensar nas seguintes questões: quem faz o registro e como? Como são compostos os arquivos e com qual objetivo? Quem estabelece as narrativas sobre o que aconteceu? (sempre pertinente recordar que a “história imperial” começa a ser narrada durante o próprio ato de expansão pelos militares franceses) Com base em que gramática do conhecimento a história foi produzida? Quem fica de fora e quem fica de dentro da história? A seleção e a discriminação são operações fundadoras dos arquivos. Escolhe-se aquilo que é “arquivável” e aquilo que deve ser descartado (MBEMBE, 2002, p. 20). A essa camada inicial de operação básica do arquivo, outras se somam no que respeita aos documentos que pudemos acessar. A partir daquilo que foi selecionado para se preservar da ruína do tempo ou não, escolhe-se o que vai ser digitalizado ou não vai, e o que será ou não disponibilizado nas plataformas digitais e de que forma. A minha pesquisa é feita por meio de repositórios on-line de documentos e esse é um ponto importante para entender as suas possibilidades e limitações. No tocante às fotografias, recorremos à biblioteca digital da Biblioteca nacional da França, a Gallica; à base de documentos iconográficos dos Archives Nationales d’outre-mer da França 213 (Ulysse);214 e ao acervo digital do Museu do quai Branly.215 As informações associadas às imagens nessas bases diferem entre si em muitos casos, oferecendo dados complementares ou, às vezes, conflitantes entre si. Muitas fotografias não são descritas com precisão, demandando um exercício de “escavação” por meio dos hiperlinks, das conexões e das palavras-chave. Um exemplo disso foi encontrar a autoria de algumas fotografias, como é o caso das que foram selecionadas para essa discussão. Foi por meio das informações fornecidas pelo Museu do quai 213 A biblioteca digital está disponível em https://gallica.bnf.fr/. Acesso em 11 de dezembro de 2020. 214 Disponível em http://anom.archivesnationales.culture.gouv.fr/ulysse/. Acesso em 11 de dezembro de 2020. 215 Disponível em http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/. Acesso em 4 de dezembro de 2020. 183 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Branly que conseguimos encontrar este dado e, com isso, localizar outros registros destes fotógrafos que não apareciam por meio de pesquisas por palavras-chave. Delanneau e Collomb eram militares franceses, como foi dito. Os militares produziam fotografias nesse período, na África do Oeste, com o objetivo de enviá-las para jornais ou então de reproduzi-las em relatos de viagem em formato de livros ou em revistas especializadas. Além disso, essas peças poderiam vir a alimentar as coleções das sociedades de geografia e das entidades dedicadas ao estudo das sociedades tidas como primitivas. Tomemos o exemplo da fotografia de Diawé Fofana. Em um primeiro momento, encontrei esta fotografia na Ulysse, base virtual de imagens dos Archives nationales d’outre-mer. O seu título identifica o retratado e descreve sua função: “Diawé Fofana, criado do capitão Binger e depois do coronel Archinard”. Este último, Archinard, é ainda identificado como o proprietário do álbum do qual faz parte esta fotografia e a ele é atribuída a autoria. A proveniência aponta o acervo a que pertence originalmente a fotografia e é sugestivo: MAAO é a sigla do Musée national des Arts d’Afrique e d’Oceanie. Em nenhum momento Diawé Fofana foi identificado como intérprete, o que não causa espanto: ele trabalhou como criado para Binger e Archinard e sua atividade como intérprete ocorreu de modo ocasional. Contudo, aqui a ligação com o poder colonial é mantida. Já no acervo virtual do Museu do quai Branly, encontramos outra cópia dessa fotografia com o título “Diabé fofana, bambara do Bélédougou”.216 Na descrição, há ainda o complemento: “menino pastor”. O doador é Jean-Marie Collomb, que também é identificado como o fotógrafo. Apesar de ser uma reprodução digital, é sensível a diferença de suporte material: a anterior, conforme descrição, era impressão em papel albuminado colado sob cartão, ao passo que a do quai Branly é o negativo em gelatina e brometo de prata sobre placa de vidro. Possivelmente, o negativo constante do acervo deste Museu deu origem à fotografia presente nos Archives nationales d’outre-mer. Essa hipótese parece provável, uma vez que o Museu do quai Branly, inaugurado em 2006, abriga a coleção do antigo Musée national des Arts d’Afrique et d’Océanie. Aqui, nenhum dado fornecido faz referência ao poder colonial – exceto, claro, pelo militar que registrou a fotografia. Um visitante desavisado do site poderia olhar essa imagem e 216 Disponível em: https://www.quaibranly.fr/en/explore-collections/base/Work/action/show/notice/519266-diabe-fofana-bambara-dubelegougou/page/1/. Acesso em 6 set. 2021. 184 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sua descrição e pensar que se trata de uma fotografia de um pastor da região do Bélédougou, atualmente no Mali, que foi flagrado durante suas atividades de pastoreio. De fato, o dado que organiza essa imagem nesse espaço é a etnia do sujeito, informada no título da fotografia: “bambara”. É uma fotografia de “tipos humanos”, moeda corrente nos registros da etnografia e da antropologia primitivistas do período. Esse tipo de fotografia se propunha a captar objetivamente em uma pessoa as características (ou, melhor dizendo, as estereotipias) do grupo ao qual ela pertencia (ou cujo pertencimento lhe atribuíam), em um processo de classificação dos grupos humanos (muitas vezes com viés de evolucionismo social). O padrão desse tipo de representação é a posição frontal e o perfil. Nesses registros, o retratado não é visto como uma pessoa singular, mas como um representante intercambiável de um grupo (BOËTSCH; FERRIÉ, 2001). Diawé Fofana integrou a missão chefiada por Gustave Binger, que ocorreu entre junho de 1887 e março de 1889 e que percorreu cerca de quatro mil quilômetros entre Bamako, atualmente no Mali, e o litoral da atual Costa do Marfim. Ele foi descrito por Binger em seu relato como “um Fofana do Dogofili” (BINGER, 1892a, p. 9). Como a maioria dos membros da expedição, Diawé Fofana falava uma língua mandinga – que, de acordo com o modo como é referido pelo próprio Binger, incluía línguas como o bambara, o malinquê e o diúla. Além disso, Diawé Fofana falava também francês e Binger atribui a ele algumas falas em seu relato por meio do discurso direto, enquadrando esse registro no recurso literário (tido como cômico) do estereótipo do petit-nègre. Dentre os “indígenas” que compunham a missão de Binger, não havia nenhum com a função de intérprete. Binger falava rudimentos do que denominava de “bambara” ou “mandê” e se propunha a falar sem intermediação. A língua teria sido aprendida no período anterior de sua estada no Sudão ocidental, entre 1884 e 1885. Esse aprendizado resultou na produção de um manual linguístico em francês para a língua “bambara”, publicado em 1886 (BINGER, 1886). De acordo com o próprio Binger, ele aperfeiçoou o conhecimento da língua “bambara” na missão de 1887-1889 e aprendeu outras línguas com as quais entrou em contato (VAN DEN AVENNE, 2017a, p. 30-31). Foi em Kong, em janeiro de 1889, altura em que Binger afirma ter aprendido satisfatoriamente o “bambara”, que Diawé Fofana deixou de integrar a missão. Nesse momento, ele foi enviado de volta para sua aldeia, Dogofili, para realizar seu desejo de se casar com uma moça que lhe era prometida. De acordo com Binger, isso teria sido uma recompensa de sua parte pelos bons serviços prestados por Diawé Fofana, que não queria deixar a missão 185 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X antes de seu final (BINGER, 1892b, p. 211). Como fica demonstrado na narrativa do capitão, Diawé atuava como intérprete ocasional nos diálogos com autoridades locais ou com a população em geral. Ele também atuou como informante e propagandista de Binger, assim como foi o principal instrutor de Binger no aprendizado do “bambara” – em estudo de seus cadernos de campo, Van den Avenne demonstra como a interlocução com Diawé Fofana foi crucial para o aprendizado da língua que foi feito pelo francês (VAN DEN AVENNE, 2017b). Figura 5 Fonte: BINGER, Gustave. Du Niger au Golfe de Guinée (1887-1889). In: Le Tour du monde, v. 61, Paris, 1891, p. 4. Reprodução: Smithsonian Libraries. A fotografia de Collomb serviu de base para a elaboração de desenhos feitos pelo ilustrador Édouard Riou e que acompanham o relato de Binger (Fig. 5): pela primeira vez na publicação concisa que saiu pela revista Le Tour du Monde, em 1891 (BINGER, 1891, p. 4); e, no ano seguinte, quando o relato foi publicado no formato de livro, em dois volumes (BINGER, 1892a, p. 11). O desenho, ao que parece, consiste em uma composição que se baseou em fotografias diferentes e produziu uma junção de figuras. A fotografia de Diawé parece ter sido acrescida do seu igual, também criado de Binger, Moussa Diawara. Contudo, a 186 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X legenda dos desenhos, nos dois casos, lança uma dúvida: seria mesmo o retratado Diawé? São duas as possibilidades. A primeira, é que o retratado por Collomb seria na verdade Moussa Diawara. E, nesse caso, a legenda nos relatos informa as pessoas corretamente e pela ordem. Não seria impossível que as pessoas que legendaram as fotografias nas instituições de guarda tenham errado os sujeitos, ainda que pareça improvável. A segunda possibilidade, que nos parece mais provável, é de que a pessoa que fez a legenda para os relatos de Binger foi desatenta ou indiferente e não pensou na ordem de nomeação. Infelizmente, o texto de Binger não ajuda a esclarecer o ponto – pelo contrário, no relato publicado na revista Le Tour du monde, a menção à espingarda de cano duplo parece sugerir que a nomeação da legenda corresponderia à ordem no desenho. Nesse excerto que acompanha o desenho – ausente no livro publicado no ano seguinte –, Binger afirma ter dado de presente a Moussa Diawara uma espingarda de cano duplo. Seria aquela que aparece em mãos do sujeito no desenho? Ou então seria essa uma pista do que poderia ter causado a confusão do editor que criou a legenda nos relatos? Essa especulação permanece irresoluta. Considerações finais Com esse caso, pretendemos demonstrar quais os recursos necessários para abordar o nosso tema, bem como ilustrar as maneiras pelas quais esses atores se fazem presentes na “biblioteca colonial”. Aqui, as problemáticas suscitadas dizem respeito especificamente às fotografias e aos acervos digitais de instituições de guarda francesas. Porém, mecanismos de leitura semelhante precisam ser empregados na abordagem de outras tipologias documentais, como os relatos de viagem. O desafio é o de tentar refletir sobre a vida de atores africanos a partir das parcas informações oferecidas pela documentação. E como devemos, a nível teórico, compreender essas pessoas? Retomando o debate sobre as resistências que mencionamos no início deste texto, por vezes essas pessoas são compreendidas por meio da noção de “colaboração”. Porém, não foram poucos os autores que apontaram os limites e problemas dessa noção. Para citar apenas um exemplo, menciono a crítica de Adu Boahen (2010, p. 12) a este respeito, escrita em seu capítulo no volume VII da coleção História geral da África (que tem como tônica a abordagem das resistências e iniciativas africanas em face da invasão e da ocupação coloniais europeias). Reproduzo: 187 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Somos contrários ao emprego do termo “colaboração”, pois, além de inexato, é pejorativo e eurocêntrico. (...) Por colaborador entende-se seguramente aquele que trai a causa nacional, unindo-se ao inimigo para defender os alvos e os objetivos deste último ao invés dos interesses de seu próprio país. A noção de “colaboração” carrega consigo aspectos de valoração negativa, associando muitas vezes os “resistentes” ao heroísmo e os “colaboracionistas” à responsabilidade e à “culpa” pela dominação colonial. Pensamos que abordar os atores africanos que participaram do empreendimento colonial francês na África do Oeste oferece uma possibilidade de reexaminar a problemática da situação colonial no continente e de sua instauração, de modo a lançar luz sobre aspectos recorrentemente negligenciados. Examinar a agência de sujeitos como Diawé Fofana e os demais africanos que foram intermediários e trabalharam para os franceses possibilita repensar como se implementou a dominação, bem como permite que nos aproximemos de uma compreensão mais aprofundada da configuração do poder europeu no continente. Eles impõem que seja negado o reducionismo no qual os africanos aparecem destituídos de ambiguidades e destituídos de qualquer possibilidade de existência fora da resistência (preferencialmente a armada e direta) ao poder colonial. Sem descurar das assimetrias e da violência do poder colonial, pode-se dizer, em resumo, que a Resistência, escrita com “R” maiúsculo, pode estreitar a compreensão da história ao invés de ampliá-la (COOPER, 2008, p. 40). Relação de fotografias Figura 1. DELANNEAU, Pierre-Léon. Hamadou Alpha, interprète. c. 1880-1881. 1 fotografia, preto e branco, 20,5 cm x 15 cm, museu do quai Branly. Disponível em http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/base/Work/action/show/notice/503227hamadou-alpha-interprete/page/1/. Acesso em 31 de janeiro de 2021. Figura 2. COLLOMB, Jean-Marie. Amadi Coumba, interprète toucouleur en tenue de guerre. c. 1880-1889. 1 fotografia, preto e branco, 13 cm x 18 cm, museu do quai Branly. Disponível em http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/base/Work/action/show/notice/530168amadi-coumba-interprete-toucouleur-en-tenue-de-guerre/page/1/. Acesso em 31 de janeiro de 2021. 188 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Figura 3. ARCHINARD, Louis [Proprietário do álbum, o fotógrafo provável é Collomb]. Diawé Fofana, domestique du capitaine Binger puis du colonel Archinard. c. 1889-1894. 1 fotografia, preto e branco, 12 cm x 16,5 cm, ANOM. Disponível em http://anom.archivesnationales.culture.gouv.fr/ulysse/notice?q=diaw%C3%A9&coverage=&date =&from=&to=&mode=list&id=FR_ANOM_8Fi121b-7. Acesso em 31 de janeiro de 2021. Figura 4. DELANNEAU, Pierre-Léon. Abdulay-Diack, interprète. c. 1880-1881. 1 fotografia, preto e branco, 20,4 cm x 15 cm, museu do quai Branly. Disponível em http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/base/Work/action/show/notice/503209abdulay-diack-interprete/page/1/. Acesso em 31 de janeiro de 2021. Referências bibliográficas BINGER, Gustave. Essai sur la langue bambara parlée dans le Kaarta et dans le Bélédougou. Paris: Maisonneuve Frères et Ch. Leclerc, 1886. ______. Du Niger au Golfe de Guinée (1887-1889). In: Le Tour du monde, v. 61, Paris, 1891, p. 1-128. ______. Du Niger au Golfe de Guinée par le pays de Kong et le Mossi (1887-1889). V. 1. Paris: Hachette, 1892a. ______. Du Niger au Golfe de Guinée par le pays de Kong et le Mossi (1887-1889). V. 2. Paris: Hachette, 1892b. BOAHEN, Albert Adu. A África diante do desafio colonial. In: BOAHEN, A. A. (Ed.). História geral da África: África sob dominação colonial (1880-1935). 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Isso nos mostra que os judeus não ficaram restritos apenas ao Recife e que essas personagens controlavam um intenso comércio de açúcar, escravos, retalhos e de produtos usuais da terra (fumo, salitre, cachaça, âmbar, pau-brasil, farinha, de mandioca, etc.), além da criação de gado naquelas cercanias. Palavras-Chave: Vila de São Francisco de Penedo. Presença Judaica. Comércio Colonial. “Bem-aventurado o homem que acha sabedoria, e o homem que adquire conhecimento, porque é melhor a sua mercadoria do que artigos de prata, e maior o seu lucro que o ouro mais fino. Mais preciosa é do que os rubis, e tudo o que mais possas desejar não se pode comparar a ela.” Provérbio, 3:13-15 Um dos temas mais recorrentes na historiografia brasileira é o período da dominação neerlandesa218 no Norte do Brasil219, que se concretizou em 1630 quando os flamengos Mestre em História Social pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e integrante do Núcleo de Estudos Sociedade, Escravidão e Mestiçagem (NESEM). E-mail: robsonwilliams55@gmail.com 218 “Países Baixos” é a tradução em português de Nederland, que no original neerlandês é "Neder-landen", termo que literalmente significa "terras baixas". Isso nos remete ao reino dos Países Baixos, formado pela República das 217 191 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ocuparam Olinda e Recife, estendendo sua ocupação até 1654 quando foram expulsos. Com a ocupação neerlandesa veio a necessidade de uma organização econômica, que só aconteceu, de fato, com a chegada de Nassau em 1637, em que reorganizou a produção açucareira e o comércio de escravos e de produtos coloniais nas regiões de produção de açúcar. Mas ao que refere sobre a produção açucareira e comércio colonial na região de Alagoas220, constam apenas a tese de doutorado de José Ferreira de Azevedo; “Formação socioeconômica de Alagoas; o período Holandês (1630-1654) – Uma mudança de rumo”. Então, por esse motivo, faz-se necessário empreender maiores investigações sobre o tema e por consequência destacamos como recorte histórico, para esta pesquisa, o período conhecido como Pax Nassoviano (1637-1644) e estendemos até 1646. Nesse sentido, iremos empreender nossa pesquisa acerca de como era vista Alagoas pelos neerlandeses através do comércio judaico sefardita na região da vila de São Francisco de Penedo221 com a óptica de historiadores alagoanos. O que nos mostra que os judeus não ficaram restritos apenas ao Recife e que essas personagens controlavam o intenso comércio de retalhos, imobiliário, produtos usuais da terra222 (fumo, salitre, cachaça, âmbar, pau-brasil, farinha de mandioca etc.), açúcar, bem como o comércio de escravos e da criação de gado naquelas cercanias. Em “O Banguê das Alagoas”, Diégues Jr. considera que a região passou a produzir o “ouro branco” na segunda metade do século XVII diferente de Porto Calvo de Santo Antônio dos Quatros Rios223, como também afirma Barbara Consolini, “onde a produção de açúcar era Províncias Unidas dos Países Baixos, cujo órgão máximo de governo eram os Estados Gerais. Então, por esse motivo, ao nos referirmos à Província, iremos usar o adjetivo pátrio “neerlandês” para substituir o adjetivo “holandês” e, em algumas vezes, utilizaremos o termo “batavo” (os que são nascidos na Batavia) como sinônimo de neerlandês, ou até “flamengo”, nome dado para aqueles que nasceram nos Flandres. Ver LUCIANI, Fernanda Trindade. Munícipes e Escabinos: poder local e guerra de restauração no Brasil holandês (1630-1654). São Paulo: Alameda, 2012. p. 19. 219 No ano de 1621, os Estados da América portuguesa foram divididos em dois (Grão-Pará e Brasil), e nesse período não havia essa denominação para região do nordeste, que era conhecida como região norte. 220 Nesse período, não havia Alagoas, e sim uma região isolada, ou a periferia, ao sul da Capitania de Pernambuco que recebeu pouca atenção do governo colonial. AZEVEDO, José Ferreira. Formação socioeconômica de Alagoas; o período Holandês (1630 - 1654) – Uma mudança de rumo. São Paulo: USP, 2002. 111 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p.149. 221 Quando estava sob domínio holandês, a vila passou a se chamar de Maurícia. 222 MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. As múltiplas faces da escr avidão. O espaço econômico do ouro e sua elite pluriocupacional na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711 – c. 1756. Rio de Janeiro: Mauad, 2012. p. 121. LINDOSO. Formação de Alagoas Boreal. Maceió, Impressa Graciliano Ramos, 2019. p. 32. 223 192 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X maior, pois aí havia oito engenhos”224. Por outro lado, Diégues Jr. aborda que a região225 de Penedo, como produtora de outros gêneros agrícolas226, era fundamental para o processo de colonização neerlandesa da região, e a mesma visão se encontra na descrição de Verdonck, de maneira que não indica engenhos, mas aponta que era rica em outros produtos: gado, bastante farinha, muito peixe, fumo, paubrasil, âmbar. Contudo, fazia-se açúcar, embora pouco. Outros relatos holandeses silenciam igualmente quanto a engenhos na região do Penedo, donde se pode concluir que ou não existissem, ou, existindo, fossem de pequeno valor. Talvez algumas desvaliosas engenhocas. Foi no decorrer do século XVII que se alastrou o povoamento da região, e criaram-se para engenhos de açúcar; os vales de Coruripe e do Poxim prestavam-se para agricultura da cana. E começaram a encher-se de canaviais de boeiros de engenhos, de casas-grandes; igualmente – e principalmente – negros escravos227. O próprio Verdonck descreveu, em seu relatório, que na Vila de São Francisco de Penedo havia poucos engenhos e que Nassau tinha problemas com a colonização da região, por falta de um contingente humano para a produção industrial do açúcar e, também, para a pecuária com a criação de gado, já que a Vila de São Francisco de Penedo tinha poucos habitantes e nas imediações 5 ou 6 engenhos, mas fazem pouco açúcar e anos há em que alguns não moem; ainda nesse lugar existe grande quantidade de bois e vacas, por causa do excelente pasto, de sorte que por esse motivo os moradores possuem muito gado, que é a sua principal riqueza e constitui a melhor mercadoria destas terras e com a qual mais se ganha devido à sua rápida multiplicação (...)228 224 SILVA, Maria Angélica da. O Olhar Holandês e o Novo Mundo. Maceió: Edufal, 2011. p. 27. 225 Revista do Instituto do Açúcar e do Álcool (Rio de Janeiro, n. 1, 1942), p. 50. Na legenda das iconografias de Frans Post Forte Mauricius 1647 (figura 2), referente à Vila de Penedo, aparece a inscrição latina “Pascua Humilis Foli”, que significa “pastagem de terra fértil”, o que comprova que havia gado na região e, por consequência, condições para o desenvolvimento da lavoura da cana. 227 DIEGUES JÚNIOR, Manuel. O bangüê nas Alagoas. Maceió, EDUFAL: 2006. p. 84. VERDONCK, Adrian. Descrição das capitanias de Pernambuco, Itamaracá Paraíba e Rio Grande. Memória apresentado ao conselho político do Brasil por Adriano Verdonck, em 20 de maio de 1630. In: MELLO, José Antônio Gonçalves de. Fontes para o Brasil Holandês – a economia açucareira. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1981. p. 36. 226 228 193 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Em outras palavras, mesmo com a construção de alguns engenhos na região, a atividade que se desenvolveu com mais força foi a pecuária, com a criação de gado e do trânsito comercial dos produtos já citados. Mas, dos engenhos que ali constavam, quatro pertenciam a judeus sefarditas que, em terras brasílicas, movimentavam-se numa diversidade de atividades econômicas. A Vila de São Francisco de Penedo teve como catalisador econômico a fleuma comercial judaica229 que lá se estabeleceu e dominou toda a região do São Francisco230. Na Vila de São Francisco de Penedo, temos a figura do rabino Samuel Israel, da esnoga da vila, situada aos pés do Forte Maurício — apesar de não haver mais a sua edificação física podemos recorrer às iconografias231 dos pintores neerlandeses Frans Post (1612-1680)232 e Jacob van Meurs (16201680), bem como aos relatórios que os funcionários da WIC 233 enviaram para Amsterdã como registro durante a ocupação flamenga. A esnoga de Penedo tinha como rabino Samuel Israel, um médio comerciante, que fazia o trânsito de produtos com outros judeus que viviam em Porto Calvo e outras capitanias, e até mesmo outros, que viviam na Vila de São Francisco de Penedo como comerciantes de escravos que adquiriram através dos navios da WIC, que os traziam de Angola234 e Guiné235, como é o caso de João Nunes Velho, Jacob Franco Mendes, David Shalom, Jacob Bueno e Isaac Baru. Isso porque, em 1638, os neerlandeses, através da WIC, conquistaram a Fortaleza de São Jorge da Mina e, em 1641 e 1648, a ilha de São Tomé e o litoral do Congo e de 229 Podemos dizer aqui, que antes da chegada dos neerlandeses já havia um comércio movimentado por judeus e cristãos novos na Capitania de Pernambuco. Ver SILVA, Janaina Guimarães da Fonseca e. Cristãos-novos nos negócios da capitania de Pernambuco: relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos de 1580 e 1630. Recife: UFPE, 2012. 255 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Federal de Pernambuco, Recife 2012. p. 11. 230 Revistas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (Recife, ano 38, n. 54, 1900). p. 253. Documentação visual que constitui ou completa obra de referência e/ou de caráter biográfico, histórico, geográfico, e representa algum evento ou comportamento social e histórico. Em 23 de janeiro de 1637, Nassau traz ao Brasil a primeira grande missão científica a cruzar a linha do Equador, da qual fazia parte o médico Willem Piso, os botânicos Guillerme Piso e George Markgraf, os pintores Frans Post, Albert Eckhout e Zacharias Wagener, e o biógrafo Gaspar Barléus. CORRÊA DO LAGO, Pedro & Bia. Frans Post {1612-1680}. Obra Completa. Rio de Janeiro: editora Capivara, 2006. p. 21 A Companhia das índias Ocidentais foi criada em 1621 e era composta por um conselho administrativo de 19 membros conhecidos como “Heeren XIX”. BLACKBURN, Robin. A Construção do Escravismo no Novo Mundo, 1492-1800. (Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 235. 234 Revistas do Instituto do Açúcar e do Álcool (Rio de Janeiro, n. 1, 1942), p. 38. Segundo Rômulo L. Xavier Nascimento, os neerlandeses dominaram a costa da Guiné antes mesmo de 1617, ao construírem uma pequena fortificação com o nome de Forte Nassau, em Mori. Ver SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. et al. Atlântico: a história de um oceano. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013. p. 145. 231 232 233 235 194 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Angola236, incluindo os portos estratégicos de Mpinda e Luanda. Durante esses anos, são eles que controlam o comércio de escravos no Atlântico Sul237 e, desde do primeiro quartel do seiscentos, havia uma cobiça dessas áreas fornecedoras de escravos, ou seja, os holandeses fecharam as “duas portas” do Atlântico Sul: Recife e Luanda da mesma forma que fizeram no 238, Oriente com Ormuz e Málaca239, e isso já no começo da década de 1620, o Conselho começa a discutir sobre o lucrativo comércio de escravos, e, em 1624, a Companhia envia expedições para a conquista da Bahia e de Luanda, que, sem grandes sucessos, muito exigiu de seus cofres. Com a consolidação da conquista no nordeste brasileiro, após 1635, a Companhia passou a concorrer no mercado de escravos, uma vez que a reorganização da produção açucareira no Brasil dependia do fornecimento de mão de obra escrava. Dessa maneira, São Jorge da Mina, São Tomé e Luanda voltaram a despertar grande interesse e os diretores da WIC passam a armar navios para a conquista desses entrepostos portugueses na costa africana. Em maio de 1641, Pernambuco envia a Angola uma expedição neerlandesa com vinte e um navios sob o comando de Cornelis Jol e, no final desse mesmo ano, Luanda é conquistada240. Então, entre os anos de 1643 a 1646, os navios da WIC desembarcaram no norte do Brasil com 14.440241 cativos vindos dos portos africanos citados; porém, nesse período, boa parte da mão de obra compulsória que veio para o Brasil era de Luanda, que se tornou o porto de exploração de escravos do mundo Atlântico . Com isso, mostraremos, através do gráfico 242 abaixo, uma linha do tempo do número de cativos embarcados e desembarcados no Brasil, de 1643 a 1646, vindos do litoral africano. Rômulo L. Xavier Nascimento fala que o frete do pau-brasil que saía de Pernambuco para Portugal era pago com o dinheiro das vendas dos escravos de Angola. Idem, p. 125 e 126. CALDEIRA, Arlindo Manuel. Escravos e traficantes no Império Português: O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisbon, Esfera do Livro, 2013. p. 31. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. et al. Atlântico: a história de um oceano. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013. p. 120. Idem, p. 136. LUCIANI, Fernanda Trindade. Munícipes e Escabinos: poder local e guerra de restauração no Brasil holandês (1630-1654). São Paulo: Alameda, 2012. p. 88. https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates/. Acesso em: 30 dez. 2020. CALDEIRA, Arlindo Manuel. Escravos e traficantes no Império Português: O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisbon, Esfera do Livro, 2013. p. 95. 236 237 238 239 240 241 242 195 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Notamos, nesse gráfico, que o auge de escravos desembarcados no Brasil através do monopólio do comércio de escravos no Atlântico através do controle da WIC foi no ano de 1644, mas que houve uma variante entre o ano anterior, em que obtemos os seguintes números expressivos de desembarcados: no ano de 1643, temos 5.009; enquanto, em 1644, temos 5.142 desembarcados. Esses números começam a baixar no ano seguinte, com 3.719 desembarcados. Isso devido à retomada portuguesa ao controle do comércio de escravos no Atlântico, através da restauração do trono português. Mapa 1 - Mapa das possessões da WIC e ano da conquista Fonte: LUCIANI, 2012. p. 96. Temos registros de 4 navios da WIC, que atracaram nos portos da Capitania de Pernambuco, incluindo a Vila de São Francisco de Penedo. Os navios De Gulde Ree, Groote Gerrit, Leeuwinne e Leiden243 fizeram esse comércio com Angola e Guiné entre os anos de 1643 a 1644 e fizeram desembarques de escravos na Vila de São Francisco de Penedo. O MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife, Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 235. 243 196 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X primeiro navio – Leiden - desembarcou por duas vezes nos anos de 1641 e 1642244 e é o único que registra escravos vindos tanto de Angola quanto da Guiné. No ano de 1641, ele desembarca e vende 181 escravos vindos de Angola. A venda dessas “peças” rendeu 85.102 florins para WIC e, desses 181 escravos, 72 foram vendidos para judeus, que pagaram 27.432 florins por eles. Já em 1642, esse navio desembarca 42 “peças” vendidas no valor de 23.813 florins e, dessas “peças”, 16 foram vendidas para judeus, que pagaram 7.500 florins por esses 16 escravos. De Gulde Ree, o segundo navio citado, desembarcou em Pernambuco em 1643, com 148 escravos vindos da Guiné e vendidos no valor de 40.034 florins; desses 148 escravos, 77 foram vendidos para judeus que pagaram nesses escravos o valor de 20.664 florins. O Groote Gerrit desembarcou duas vezes. Em 1643, com 105 escravos vendidos no valor de 26.119 florins, sendo 82 “peças” vendidas para judeus, que pagaram 19.595 florins por elas. Já no ano de 1644, no auge do comércio, esse navio vendeu 896 escravos no montante de 121.554 florins, sendo 354 “peças” vendidas para judeus, que pagaram o valor de 46.631 florins pelos escravos. O último navio de que temos registros de desembarque em Pernambuco e, depois, em Penedo, com escravos vindos da Guiné, é o Leeuwinne, que desembarcou com 270 “peças” em 1644, gerando montante de 22.837 florins; 140 escravos foram vendidos para judeus, que pagaram 12.288 florins por eles. Assim, como já foi dito anteriormente, foi através das conquistas lá na África que o comércio de negros245 na Vila de São Francisco de Penedo foi parar nas mãos dos judeus — algumas vezes, quando os negros não eram vendidos diretamente com a WIC, eram adquiridos através dos leilões. A exemplo disso, temos cinco judeus que ampliaram o comércio de negros em Penedo. O primeiro deles foi Jacob Franco Mendes, morador da Vila de São Francisco de Penedo que vendia vinho, mas obtinha seu maior lucro com a venda de negros de Angola que vieram em navios da WIC [Zeelandia, Salamander, Concórdia, St. General, Haskamot, Engel e Destacamos os anos de 1641 e 1642 — mesmo estando fora do nosso recorte histórico —, visto que os dados levantados nesses navios nesses anos são fundamentais por possuírem informações que coadunam com o período do domínio dos portos com o crescente comércio de escravos no Atlântico. Vamos usar aqui o mesmo recurso que Silvia Lara usou para chama a atenção para os termos “negros” e “pretos”, em que o preto designa a cor e o negro equivale a condição de escravo. Nós usaremos, para fácil compreensão, o termo negro para designar o escravo, já que as fontes trabalhadas nesta pesquisa utilizam o termo negro para designar a mão de obra africana. FARIA, Sheila. Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 132 e 135. 244 245 197 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X no Iate de Brack]. Isso nos anos de 1646 a 1649. Também temos Samuel Velho246, aliás, João Nunes velho247, que era negociante de tabaco, vinho e cobrava dívidas, além de ser o maior credor248 da Coroa portuguesa e comerciante de negros vindo de Angola e Guiné. Ele, assim como Jacob Franco Mendes, dinamizava esse comércio com outras vilas em Alagoas e regiões, como é o caso da Vila de Porto Calvo de Santo Antônio dos Quatros Rios, Una, Santo Antônio e Camaragibe — as três últimas localizadas em Pernambuco. Já David Shalom de Azevedo, aliás, David Shalom, Jacob Bueno (Henriques) e Isaac Baru, negociavam exclusivamente como comércio de escravos que vinham de Angola através dos navios da WIC [Groote Gerrit, De Poortier, De Brack, Caritas e Leiden, Fortuna, N.Sra. do Carmo249, De Gulde Ree, D'burght, Leeuwinne e Haskamot]. Isso entre os anos de 1641 e 1646. Todo esse comércio começou a ser desarticulado a partir da Restauração do Trono Português, em 1640, e um levante dos moradores de Pernambuco, em 13 de junho de 1645, até resultar na expulsão dos batavos em 1654. Esse levante de 1645 coadunou com a insatisfação dos cristãos que se achavam prejudicados com o domínio judaico em todo território de Pernambuco. Isso inclui a Vila de São Francisco de Penedo. Com isso, a presença da Inquisição foi marcante por estes tempos, chegando à Vila de São Francisco de Penedo, em que foram presos sob acusações de blasfêmia e “judaizar” (praticar os ensinamentos religiosos da religião de Moisés, o que era condenado pela Inquisição)250. Em seguida, foram enviados para Bahia, em 18 de setembro de 1646 dez251 judeus, que carregavam o estigma252, cujos os nomes eram; Jacob Polaco, Samuel Israel, David Michel, Isaac Johannis, Salomão Jacob, David Shalom, Abraão Bueno, Isaac de ANTT-IL. Processo contra João Nunes Velho, nº 11575. Código de Referência: PT/TT/TSO-IL/028/11575. Disponível em: <http:\\digitarq.dgarq.gov.pt>. Acesso em: 30 dez.2020. Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, não era possível identificar o judeu ibérico pelo seu nome, já que muitos usavam nomes cristãos. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: Influência da Ocupação holandesa na Vida e na Cultura do Norte do Brasil. Recife: Editora Pernambucana – Volume XV, 1987. p. 258. Idem, p. 239. Não temos informação se os navios, Fortuna e N.Sra. do Carmo eram da WIC. Machado, Alex Rolim. Cristãos-novos, inquisição e escravidão: Ensaio sobre inclusão e exclusão social (Alagoas Colonial, 1575 – 1821).Disponível em; https://www.seer.ufal.br/index.php/criticahistorica/article/view/2974> Acesso em: 20 fev. 2021. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 320. 252 SILVA, Janaina Guimarães da Fonseca e. Cristãos-novos nos negócios da capitania de Pernambuco: relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos de 1580 e 1630. Recife: UFPE, 2012. 255 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Federal de Pernambuco, Recife 2012. p.12. 246 247 248 249 250 251 198 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Carvalho, Samuel Velho e Abrão Mendes, que viviam na região do forte e fizeram um levante contra as perseguições e as acusações apócrifas e ultrajantes. Para os comerciantes luso-brasileiros e espanhóis, os judeus e cristãos-novos eram vistos como perigosos. Não é à toa que, em 1641, os comerciantes253 cristãos do Recife escreveram uma carta pedindo a Nassau que ele limitasse o advento dos judeus e cristãos-novos para a Capitania Duartiana e a influência deles na economia e comércio locais e, ao mesmo tempo, fizesse restrições à abertura de lojas e vendas de retalhos254. Sem deixar de mencionar que, desde o controle do comércio negreiro no Atlântico pela WIC255, a venda das “peças” era à vista e quem tinha esse poderio econômico eram comerciantes judeus256 de médio e grande porte, como é o caso dos nossos 5 amigos judeus que viviam em Penedo e do rabino da esnoga da vila, Samuel Israel. Por consequência, eles revendiam os negros com valores altos, mas boa parte dos senhores de Penedo e cercanias não podia pagar esse valor de uma só vez e caía nas mãos dos judeus, que repassavam os negros com prestações e juros abusivos e deixavam muitos senhores em débitos257 com eles. Cobrava-se às vezes joias que vendiam, até dez vezes mais do que valiam; e, ainda, estipulando juros nunca vistos de 3, 4, 5, e 6 por cento ao mês258. Segundo Mello, o pagamento dos escravos à vista saía a 100 florins, enquanto a prazo, entre 6 a 12 meses, saía a 250 florins; muitas vezes não se cumpria o prazo e, quando não se podia fazer a devolução do valor emprestado, pagava-se com o açúcar259. Não é à toa que houve a maior reclamação dos senhores de engenho onde BOOGAART, Ernst van Dean. et al. Atlântico: a história de um oceano. Recife, Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 2007. p. 67. Retalho. Pedaço de pano retalhado. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino – volume 1. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/vila. Acessado em 12/01/2021, às 23: 08 min. Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, a WIC era a única credora dos senhores de engenho que, ao mesmo tempo, era também devedora de comerciantes holandeses e judeus. Mello, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil Holandês. Administração da Conquista II. Recife, Companhia Editora de Pernambuco, 2004. p. 200. Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, o Conselho administrativo conhecido como “Heeren XIX”, em 1642, determinou taxativamente que a venda das “peças” fosse a dinheiro, ou seja, à vista. Idem, p. 191. Segundo Arno Wehling e Maria José C.M. Wehling, havia uma lista de devedores que foi elaborada pela WIC, em que se somavam quase 200 senhores de engenhos, lavradores e comerciantes livres. Ver WEHLING, Arno. et al. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999. p. 131. Idem, p. 219. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 234. 253 254 255 256 257 258 259 199 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X queixava-se de que os negros que aqui desembarcaram são comprados em leilões pelos Judeus do Recife, aos quais, se quiserem compra-los, têm de oferecer altos preços, o que não lhes é possível fazer. Dizem, ainda, que os Judeus, sabendo que os senhores de engenho têm necessidade deles, valorizam-nos tanto que lhes parece melhor não fazer trabalhar os engenhos do que adquiri-los a tão altos preços260. Segundo Anita Novinsky, os judeus sefarditas eram bem-sucedidos nos negócios coloniais e isso levantava rivalidades econômicas por parte dos calvinistas e dos cristãos, que acusavam os judeus de desonestos por usarem a prática de juros, que era condenado pela Igreja, e dominarem o comércio colonial. Não é à toa que, anualmente, eram enviados à Companhia das índias Ocidentais relatórios sobre os negócios na colônia. O relatório de 1641 pedia que os judeus fossem proibidos de participar dos leilões (…)261. Figura 1 – Mercado de escravos em Pernambuco. 1641 – Zacarias Wagner262. Fonte: SCHWARCZ, 2015, p. 43. Mas o comércio colonial do século XVII, no nordeste neerlandês, incluindo a Vila de São Francisco de Penedo, não estava restrito à venda de escravos e à produção de açúcar. As diversidades dos produtos que se comercializavam eram tantas que, em muitos casos, funcionários civis da WIC e pessoas da Nação Judaica pediam desligamento para comercializar Mello, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil Holandês. Administração da Conquista II. Recife, Companhia Editora de Pernambuco, 2004. p. 152. NOVINSKY, Anita. et al. Os judeus que construíram o Brasil. Fontes inéditas para uma nova visão da história. São Paulo, Editorial: Planeta, 2015. p. 137. SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 43. 260 261 262 200 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X os diversos produtos que circulavam nas áreas açucareiras e iniciaram o chamado Kleine profijten263, ou seja, pequenos lucros. Não é à toa que muitos se fixaram em locais como a Vila de São Francisco de Penedo e passaram a fazer grandes negócios264. Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, havia uma penetração dos mascastes judeus em Penedo265 e, em alguns casos, compraram até engenhos e construíram casas para aluguéis residenciais e pontos comerciais, como é o caso do rabino da esnoga266 da vila, Samuel Israel. Para a historiadora Anita Novinsky, como os neerlandeses não falavam o português, os judeus sefarditas que viviam em Amsterdã faziam uma ponte intermediária nas transações comerciais aqui no Brasil neerlandês, e isso era um outro fator que deixava na vantagem os judeus sefarditas. Por isso, o comércio foi a atividade mais importante dos judeus sefaraditas no período holandês no Brasil. Além do açúcar, outros produtos como tabaco, conservas, peles, escravos, títulos de crédito, aparelhagem de navios de corso e todo o gênero de fazendas secas e molhadas eram negociados. A arrecadação de impostos, atividade exercida por judeus, levou a unia grande animosidade contra eles. Atuavam também em profissões liberais, eram médicos, boticários e juristas. Corno artesãos, sobressaíram-se na ourivesaria, na confecção de uniformes de soldados e na instalação de uma fábrica de alvejante mineral.267 Para Douglas Apratto, em “A Presença Holandesa: A História da Guerra do açúcar vista por Alagoas”, há duas formas de enxergarmos a dominação neerlandesa e uma das primeiras é que “uma coisa é uma sociedade que seria construída sob o comando de Nassau; outra seria com a WIC”268. Em que a primeira mostra “as obras publicas emprehendidas NASCIMENTO, Rômulo Xavier. O Desconforto da Governabilidade: aspectos da administração no Brasil holandês (1630-1644). Rio de Janeiro: UFF, 2008. 320 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Fluminense, Rio de Janeiro, 2008. p. 89. Mello, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil Holandês. Administração da Conquista II. Recife, Companhia Editora de Pernambuco, 2004. p. 218. Isso só é possível comprovar por conta de uma carta de crédito de João Nunes Velho, que foi relatado ao inquisidor quando fora preso em Penedo 1645. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: CristãosNovos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 239. Idem, p. 231. NOVINSKY, Anita. et al. Os judeus que construíram o Brasil. Fontes inéditas para uma nova visão da história. São Paulo, Editorial: Planeta, 2015. p. 135. 268 TENÓRIO, Douglas Apratto; DANTAS, Carmem Lúcia. A presença holandesa. A história da guerra do açúcar vista por Alagoas. Brasília: Editora: Senado Federal, 2013. P. 149. 263 264 265 266 267 201 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X levavam em si mesmas o cunho da bôa administração, e essa paginas do livro da civilização de um paiz (...) não houvera anteriormente obras tão consideráveis, e tão habilmente executadas”269 Então, se há duas formas de enxergarmos vamos trabalhar naquele que está voltada na óptica da WIC, que tinha apenas propósitos comerciais e dentro dessa óptica cabe o comércio judaico sefardita na Vila de São Francisco de Penedo e por consequência, vamos extrair as informações mais valiosas para o tema aqui trabalhado e expondo as informações voltada ao desenvolvimento do comércio desenvolvidos por esses comerciante judeus como e o caso da produção açucareira, o mercado fornecedor e consumidor de escravos, dentro do comércio transatlântico, produtos usuais da terra e a navegação desses produtos através das “estradas líquidas”270 que serviam para o escoamento dos produtos tanto produzidos em terras brasílicas quanto os que viam da Europa, em destaque os que viam de Amsterdã. Podemos perceber essa óptica comercial quando Rômulo L. Xavier Nascimento, descreve em uma tabela as entradas e saídas de embarcações, sobre o controle comercial da WIC, do porto do Recife através de navios, barcos, chalupas, e cruzadores com mercadorias para o “sul de Pernambuco”271. Ele não informa o destino dessas embarcações, mas acreditamos piamente que o “sul de Pernambuco”, seja a vila de São Francisco de Penedo, já que os outros locais de chegada dessas embarcações em Alagoas ele deu nomes como Porto Calvo de Santo Antônio dos Quatros Rios, Barra Grande e a vila de Alagoas. São Registrados 44 desembarques dessas embarcações que saíam do Recife com destino a Alagoas, sendo que a metade desses desembarques foram para o “sul de Pernambuco”, ou seja, para a vila de São Francisco de Penedo, em que estavam concentrados os grandes comerciantes judeus e entre eles João Nunes Velho, Jacob Franco Mendes, David Shalom, Jacob Bueno, Isaac Baru e o rabino da vila, Samuel Israel. Mas todo esse comércio só foi viável por conta do reaquecimento da indústria do açúcar na região. Não é à toa, que Nassau consolida a administração local no contexto da produção dos engenhos de açúcar e do comércio local que já havia antes de sua chegada com os judeus 269 Revistas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (Recife, ano 38, n. 54, 1900). 270 CARVALHO, Cícero Péricles de. Formação Histórica de Alagoas. Maceió, EDUFAL: 2015. p. 26 271 NASCIMENTO, Rômulo Xavier. Entre os rios e o mar aberto: Pernambuco, os portos e o Atlântico no Brasil Holandês. O envolvimento mitológico do Brasil Holandês: interpretação dos trabalhos de Albert Eckhout e Frans Post (1637-2011). In: Brasil holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012. p. 215. 202 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sefarditas e junto a isso parte desses judeus possuíram alguns engenhos que foram confiscados e leiloados por Nassau. Então, através desses leilões não era apenas o comércio local que estava nas mãos dos judeus, mas os engenhos em boa parte, sem deixar de mencionar que muitos senhores de engenhos, cristãos, estavam nas mãos dos judeus que eram acionistas da WIC. A estrutura administrativa local não foi alterada com a dominação neerlandesa, já que a administração neerlandesa impôs à territorialidade luso-brasileira uma territorialidade econômica, baseada fundamentalmente nas relações entre a Companhia e a produção açucareira da interlândia. E a isso se adaptaram bem vários senhores de engenho. Observemos, finalmente, que os holandeses não alteraram as estruturas econômicas de Pernambuco, baseadas na monocultura e na escravidão, daí a relativa facilidade com que alguns senhores de engenho se adaptaram à administração da WIC.272 (NASCIMENTO, 2015, p. 73) Então, tomando essa medida Nassau alarga o domínio comercial da WIC sobre os territórios conquistados, nesse caso aqui a Vila de São Francisco de Pendo, que era o limite do Brasil neerlandês. Tendo em vista dos argumentos apresentados, o intuito dessa pesquisa é trazer à tona esse comércio praticado por esses judeus sefarditas e mostrar às novas interpretações em mundo em que o dinamismo econômico construiu uma intensa comunicação entre a vila de São Francisco de Penedo e as demais capitanias e o mundo Atlântico. Segundo Ronaldo Vainfas273, entre os dez presos consta o nome do rabino Samuel Israel, que dominava muito bem os dois idiomas, tornando-se muito rico por dominar ambas as línguas. Segundo relato documental da Inquisição, ele era um dos mais ricos, assim como João Nunes Velho. O rabino era um médio comerciante de panos, possuía nove casinhas nas 272 NASCIMENTO, Rômulo Xavier. Entre os rios e o mar aberto: Pernambuco, os portos e o Atlântico no Brasil Holandês. O envolvimento mitológico do Brasil Holandês: interpretação dos trabalhos de Albert Eckhout e Frans Post (1637-2011). In: Brasil holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012. p. 215. VAINFAS, Ronaldo. Os prisioneiros do Forte Maurício: redes judaicas e identidade religiosa no contexto da Restauração portuguesa e das guerras pernambucanas no século XVII. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs.) Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 207 - 313. 273 203 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X cercanias do forte, possuía dois negros e emprestava a juros, além de atuar não só em Penedo, mas no Recife e na Paraíba, como consta no processo inquisitório274 de 17 de agosto de 1646. Mas o que nos chama atenção sobre o rabino diz respeito à posse das nove casas275 em Penedo. Para que ou quem as usava? Será que uma delas era a esnoga de Penedo? Eram alugadas? Se sim, para quem? O que funcionava nelas? Eram casas de escravos? Como havia na região, em 1601, quando ainda era uma sesmaria de João da Rocha Vicente, como chama a atenção o geógrafo alagoano Ivan Fernandes Lima276, em sua obra “Ocupação Espacial do Estado de Alagoas”? Era um mini armazém para produtos coloniais? São perguntas que precisam de respostas. Segundo Tânia Kaufman, é costume nas comunidades judaicas buscarem nos locais mais próximos um ponto para as principais celebrações religiosas e culturais do judaísmo. Também há referência à casa onde havia os "livros proibidos", o que é uma clara referência ao local onde se praticava o judaísmo. Essas casas e a esnoga, possivelmente, são retratadas na iconografia Castrum Maurity Ad Ripam Fluminis S. Francisci, de 1647, do pintor batavo Frans Post, citado por Barleus em “Reurm per octennium in Brasilia”, como podemos observar na figura 2. Nela, vê-se o Rio São Francisco e, acima da colina, o forte, além de, próximo a ele, uma concentração urbana e casas no leito do rio São Francisco. Figura 2 – Detalhe da iconografia Castrum Maurity Ad Ripam Fluminis S. Francisci 1647 – Frans Post. ANTT-IL. Processo contra Samuel Israel, nº 11575/ 11.362. Código de Referência: PT/TT/TSO-IL/028/11575. Disponível em: <http:\\digitarq.dgarq.gov.pt>. Acesso em: 30 dez.2020. João Nunes Velho, aliás, Samuel Velho, em seu depoimento ao inquisidor, em 1647, declara que, além de bens de raiz e bens móveis, 2 negros, ações e créditos, ele possuía em Penedo uma casa de 30 florins. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 239. LIMA, Ivan Fernandes. Ocupação Espacial do Estado de Alagoas. Maceió SEPLAN 1992. p. 129. 274 275 276 204 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fonte: CORRÊA DO LAGO, 2006, p. 56. A iconografia, de Frans Post277, nos faz pensar que essas casas poderiam pertencer ao rabino Samuel Israel e que uma delas poderia ser a esnoga, já que, segundo Bruno Feitler278, o termo “sinagoga” é uma designação muito genérica. Desse modo, uma dessas casas poderia ser a esnoga da Vila de São Francisco de Penedo. Para a historiadora Anita Novinsky, os judeus quando aqui chegaram reuniam-se na casa de proeminente homem de negócio279. Isso fortalece a ideia de que uma dessas casas seria a esnoga de Penedo e as demais eram casas para fins comerciais. Por outro lado, essas casas, e até a própria esnoga, não são citadas nos relatórios dos funcionários da WIC, como é o caso do belga Adriaen van der Dussen no “Relatório sobre o estado das Capitanias conquistadas no Brasil”280, em 4 abril de 1640 em que o Forte Maurício ficava à margem do Rio São Francisco, no morro chamado Penedo, situado 5 ou 6 milhas da foz, rio acima; o morro é alto e íngreme e só há um ponto de aproximação pelo qual se pode chegar ao forte. (...) Está situado na margem Norte do rio e tem cinco baluartes, dos quais três estão voltados para o lado pelo qual é possível atingir o forte, que domina o rio e a planície em torno, que no verão o rio cobre. No forte estão 7 peças de bronze, 2 de 12 libras, 3 de 6 lb e 2 de 3 lb.281 Na cartografia de Johannes Vingboons, de 1665, aparece o Forte Maurício, com suas legendas, mas não aparece nenhuma legenda sobre a edificação judaica. Em contrapartida, a legenda à direita mostra a letra E indicando moradias portuguesas e lugares para animais, como 277 Frans Post, em que a representação da paisagem açucareira em Alagoas estava inserido dentro do projeto de dominação do Conde João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679) e de Jacob van Meurs que estava fora desse projeto idealizado pelo conde de Nassau mostrando que ambos os pintores divergiam em muitos aspectos. Ver Revistas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (Recife, ano 38, n. 54, 1900). Em uma Live no canal do youtuber para o Museu Judaico de são Paulo em 27 de julho de 2020, às 18 horas, com o título; No Brasil holandês: a primeira comunidade judaica das Américas [História e Cultura no museu]. Acesso em: 27 jul. 2020. NOVINSKY, Anita. et al. Os judeus que construíram o Brasil. Fontes inéditas para uma nova visão da história. São Paulo, Editorial: Planeta, 2015. p. 135. VAN DER DUSSEN, Adriaen; J. Maurice Conte de Nassau, M. Van Ceullen. Breve discurso sobre o Estado das quatro capitanias conquistadas, de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, situadas na parte setentrional do Brasil. (1638). In.: MELLO, José Antônio Gonçalves de. Fontes para o Brasil Holandês – a economia açucareira. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1981. VAN DER DUSSEN, Adriaen; J. Maurice Conte de Nassau, M. Van Ceullen. Breve discurso sobre o Estado das quatro capitanias conquistadas, de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, situadas na parte setentrional do Brasil. (1638). In.: MELLO, José Antônio Gonçalves de. Fontes para o Brasil Holandês – a economia açucareira. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1981. p. 38. 278 279 280 281 205 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X podemos notar na figura 4. Ou será que essas moradias se referem aos judeus sefarditas? Será que essas moradias são as nove casas e a esnoga de Samuel Israel? Figura 3 - Kaart van het fort 't welk graaf Maurits van Nassauw heeft doen leggen aan de rivier St. Francisco den 29 maart de 1665 – Johannes Vingboons. Fonte: https://www.google.com.br/. Acesso em: 18 fev. 2021. Por outro lado, na tela Castrum Maurity Ad Ripam Fluminis S. Francisci, de Jacob van Meurs282, de 1671, notamos não só o Forte Maurício como casas, como também navios, provavelmente os da WIC, desembarcando escravos ou embarcando produtos usuais da terra; observamos, ainda, a figura do homem europeu desembarcando dos navios e os negros puxando a carroça de boi e carregando-a, como se fossem negros cangueiros, além de algumas coisas como produtos que foram embarcados ou desembarcados dos navios. Figura 4 - Castrum Maurity Ad Ripam Fluminis S. Francisci de 1671 – Jacob van Meurs. SALES, Francisco A. Arruando para o Forte: roteiro sentimental da cidade do Penedo. Penedo, Editora Fundação Casa de Penedo, 2013. p. 30. 282 206 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fonte: SALES, 2013, p. 30. Dentre os 10 judeus presos com o levante do Forte Maurício, apenas dois comercializavam o fumo283, produto a que os holandeses não davam importância, enquanto os judeus sefarditas não desprezaram a “eva santa”284 dentro do contexto comercial da região. Samuel Velho e Jacob Franco Mendes eram os dois comerciantes do fumo. Ainda não sabemos a quantidades que eles vendiam, para quem vendiam e de onde vinham esses produtos. O que sabemos é que ambos faziam negócios em Porto Calvo e que os dois eram os maiores comerciantes do fumo que se produzia em Porto Calvo e Penedo. Não é à toa que foi relatado a Guilherme Rozen, intérprete do Santo Ofício, que Samuel Velho tinha como ofício “enrolar tabaco”285. Além de Porto Calvo e Penedo, a incipiente indústria fumageira expande seus tentáculos para as vilas de Alagoas, como é o caso da Vila Real de São José do Poxim e de São Miguel (termo do Poxim). Isso no período da ocupação holandesa estando sob o controle dos judeus, que controlavam esse comércio, ainda tímido, do fumo do século XVII. No período colonial, o fumo foi considerado como atividade econômica secundária, já que o lastro econômico da colônia estava centrado no açúcar, mas o cultivo do fumo foi uma atividade essencial para o Brasil no comércio transatlântico de escravos em pleno século XVIII. Unia-se a qualidade indiscutível como facilidade de plantio ao alto valor comercial, como afirma Ana Emilia Staben, segundo a qual “a produção de tabaco na Capitania de Pernambuco estava diretamente relacionada ao comércio de escravos com a Costa da Mina” 286 e, coincidentemente ou não, ambos faziam comércio em portos como Luanda, em Angola, com escravos como foi citado anteriormente. A Costa da Mina foi o principal destino de grande parte do tabaco produzido na Bahia e Pernambuco durante o período colonial. Isso desde do século XVII. O fumo começou a ser plantado no Brasil lá pelos idos de 1570, apenas para consumo local, e não era necessária uma estrutura econômica complexa para plantar o tabaco e produzir 283 Revistas do Instituto do Açúcar e do Álcool (Rio de Janeiro, n. 1, 1942), p. 37. Expressão utilizada por Sebastião Rocha Pita. Ver PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Ed. Senado Federal. Brasília, 2001. p. 38. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 513. STABEN. Ana Emilia. Negócios de escravos. O comércio de cativos entre a Costa da Mina e a Capitania de Pernambuco (1701 - 1759). Curitiba, 2008. Recife, 121 p. Dissertação (Mestrado) – UFPR. p. 45. 284 285 286 207 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X o fumo; era preciso apenas a limpeza do terreno em volta. Com isso, as pessoas mais simples, com acesso a terra, tinham a facilidade do cultivo do fumo sem possuir um investimento econômico grande para plantá-lo, e teriam um produto de valor em sua horta no quintal de casa, diferentemente do açúcar. Segundo Antonil, o início da plantação do tabaco já ocorria no século XVI, pois até que, imitado por vizinhos, que com ambição a plantaram e enviaram em maior quantidade, e, depois, de grande parte dos moradores dos campos, que chamam da Cachoeira, e de outros do sertão da Bahia, passou pouco a pouco a ser um dos gêneros de maior estimação que, hoje saem desta América meridional para o Reino de Portugal e para os outros reinos e repúblicas de nações estranhas. E, desta sorte, uma folha antes desprezada, e quase desconhecida, tem dado e dá atualmente grandes cabedais aos moradores do Brasil e incríveis emolumentos aos erários dos príncipes287. A plantação da “erva santa” foi proibida em 5 de fevereiro de 1639, ainda no período da dominação holandesa, pelo então governador do Brasil, D. Fernando Mascarenhas, o Conde da Torre, alegando que as pessoas deixariam de plantar gêneros alimentícios de primeira necessidade para a colônia. Coincidência ou não, acreditamos que esse comércio do fumo, na região sul da Capitania de Pernambuco, teve seu início no Curato288 de São José e Madre de Deus do Poxim, que era um braço articulador comercial para a Vila de Penedo no período da invasão holandesa, servindo para o escoamento dos produtos coloniais para a Capitania da Bahia. Mas a indústria fumageira289 só se torna expressiva no século XVIII. Não é à toa que, no final do século XVII — em 1698 —, o desembargador Belchior da Cunha Brochado apontou Pernambuco como maior produtor de fumo além da Bahia. A Capitania de Pernambuco tinha lavradores que produziam do “Rio de S. Francisco, Rio de S. Miguel, (rio) Santo Antônio Grande, Alagoas, Porto Calvo de Santo Antônio dos Quatros Rios, Sirinhaém, Barra Grande, ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e Minas. 3. ed. Belo Horizonte :Itatiaia/Edusp, 1982. p. 51. Curato, curató. Igreja da Cúria. Paróquia. Vocabulario Portuguez e Latino – volume 1. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/CURATO. Não é a nossa intenção aqui estudar a indústria fumageira no século XVIII. Ver. LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico: Tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco: (16541760). São Paulo: USP, 2008. Tese de Doutorado. 287 288 289 208 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Rio Fermozo, e Guayana (Goiana)”290, de onde o tabaco era levado “em sumacas291” para os portos baianos292 e, ao norte, seguia para Paraíba através do descaminho e contrabando. Com o tabaco, geralmente se fazia troca ou resgate por escravos sem a figura de moeda. O tabaco que saía das regiões da Vila de São Francisco de Penedo ia até chegar à Paraíba para fazer negócio com a Costa da Mina e Angola e adivinha quem tinha negócios na Capitania da Paraíba? Ele mesmo: Samuel Velho. Contudo, concluímos e concordamos com Schwartz em que os produtos tropicais, como o tabaco, eram responsáveis por um número expressivo dentro do superávit colonial, que variava de 36% a 50%293. Esses números nos possibilitam ter o conhecimento do comércio do fumo que havia entre a colônia e a Costa da Mina. Então, levando-se em conta o que foi observado, o controle do intenso comércio que havia na Vila de São Francisco de Penedo, por judeus, com outras vilas e regiões, permite-nos fazer uma reflexão sobre a mentalidade comercial de Penedo, não através da óptica neerlandesa, e sim da sefardita. LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico: Tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco: (1654-1760). São Paulo: USP, 2008. Tese de Doutorado. p. 119. Navio pequeno, ou pequena embarcação, à vela, geralmente com dois mastros, comum na América do Sul até o início do Século XX; usado, principalmente, em navegação de cabotagem e muito utilizado para o contrabando no Brasil colonial. O tamanho das sumacas variava de 90 a 110 palmos. Seu tamanho era adequado para singrar nos “rios-do-açúcar”. Salvador era o melhor destino do tabaco produzido em Alagoas, pois além das praças baianas pagarem bem e mais que as praças do Recife e Olinda pelo produto eram mais perto, e o custo do frete do fumo e de outros produtos sairia mais barato. Ver SANTOS, Robson Williams Barbosa. ESCRAVIDÃO, SOCIEDADE E ECONOMIA NA VILLA REAL DE SÃO JOSÉ DO POXIM – 1774 A 1854. Maceió: Programa de PósGraduação em História, Universidade Federal de Alagoas - UFAL, 2019. Dissertação. Contudo, mesmo com a exportação desses produtos e da exploração do ouro, o açúcar sempre foi o lastro econômico do Brasil colonial. Ver. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 167. 290 291 292 293 209 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ST03 – História da Educação: Objetos de estudo, Teorias, Fontes e Metodologias de Pesquisa O Ensino de História da Educação Local: formação profissional e identitária de professores Andrea Giordanna Araujo da Silva* Resumo: Uma das questões fundamentais da educação superior é conhecer como ocorre o processo de aprendizagem e como os conhecimentos experienciados e as habilidades desenvolvidas, a partir dos estudos teóricos e das vivências pedagógicas, colaboram para a vida social e profissional após o término do curso de graduação. Por conseguinte, o objetivo deste estudo foi verificar como uma disciplina eletiva, com conteúdo de História Local, pode contribuir para a formação profissional e identitária do pedagogo e da pedagoga. A pesquisa documental teve como documentos de análise os relatos de experiência elaborados pelos estudantes do curso de Pedagogia, cursistas da disciplina Tópicos da História da Educação em Alagoas (2018-2019). As fontes analisadas foram documentos produzidos na disciplina ofertada a três turmas dos turnos matutino, vespertino e noturno (2018) e duas turmas dos turnos vespertino e noturno (2019). Para a identificação dos documentos, os Relatos de Aprendizagem foram enumerados em ordem crescente e deles foram extraídos trechos para a composição do corpus de análise, o que possibilitou identificar os sentidos e os significados atribuídos à História Local na formação dos professores e das professoras que irão atuar nos anos iniciais do ensino fundamental. Para compreender a relação entre memória e identidade realizou-se a interpretação dos escritos de Pollak (1992; 1989) e Nora (1993). Como aporte teórico para entender as possíveis relações estabelecidas entre a construção da memória nacional e o currículo escolar, consideramos os estudos de Bittencourt (1993), Fonseca (2004), Nadai (1993) e Arroyo (2013; 2019). Observou-se que o estudo da História da Educação Local possibilita entender os processos políticos e culturais constitutivos da memória coletiva e dos sistemas de ensino, como fenômenos históricos. Colabora, ainda, com o reconhecimento da necessidade * Graduada em História. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Mestra em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (PE). Professora da Universidade Federal de Alagoas. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa História da Educação, Cultura e Literatura; E-mail: andrea.giordanna@cedu.ufal.br. 210 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de preservação e guarda dos patrimônios históricos e culturais locais, mais especificamente os documentos históricos alocados em espaços oficiais de memória (arquivos públicos e privados, museus e institutos de pesquisa) ou disponíveis nas instituições de ensino escolar. Identificou-se que o estudo da História Local é um recurso para o reconhecimento das práticas e resistências pedagógicas e políticas inventadas por professores e estudantes no cotidiano escolar e também se apresenta como um lugar de inclusão dos sujeitos marginais (negros, mulheres, indígenas e operários) nos estudos históricos. Palavras-chave: História Local. História da Educação. Formação Inicial de Professores. Introdução Uma das questões fundamentais no processo de escolarização atual é entender como se dá o processo de aprendizagem e como os conhecimentos adquiridos e as habilidades desenvolvidas colaboram para a vida social e profissional após o término do curso de graduação. Estudos que abordam conteúdos sobre como os egressos se inserem e vivenciam o cotidiano laboral contribuem para a compreensão sobre como os processos de formação colaboram com as atividades profissionais cotidianas. Desse modo, conhecer as aprendizagens experienciadas, ainda no percurso de formação dos graduandos, pode possibilitar a elaboração e o desenvolvimento de práticas pedagógicas mais aproximadas das reais aptidões e saberes necessários ao campo de laboral e à prática social. Assim, o objetivo deste estudo é apresentar os conhecimentos tomados como relevantes à formação do(a) pedagogo(a) e relacionados ao campo da História da Educação, mas especificamente ao estudo da História da Educação Local. O que fazemos é, de fato, repetir a questão: para que ensinar História? Porém, voltamonos para a educação superior, mais especificamente para a formação de professores(as) polivalentes, e tomamos como objeto de referência a História Local, como parte dos estudos sobre Educação. No desenvolvimento da pesquisa, adotamos como documentos de análise os relatos de experiência elaborados pelos estudantes do curso de licenciatura em Pedagogia294, cursistas da disciplina Tópicos da História da Educação em Alagoas (THEAL), dos anos de 2018 e 2019. Assim, as fontes em análise são documentos produzidos na disciplina ofertada a três turmas, 294 O curso é ofertado no Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas. 211 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X dos turnos matutino, vespertino e noturno (2018), e a duas turmas, dos turnos vespertino e noturno (2019). O objetivo do estudo foi verificar como uma disciplina eletiva, com conteúdo de História Local, pode contribuir para a formação do(a) professor(a) polivalente, que se qualifica para atuar na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental ‒ sendo, portanto, um(a) profissional qualificado(a) para o exercício da docência com pessoas que se encontram em processos de desenvolvimento/maturidade intelectual e lugar/identidade social diversos. Para a identificação dos documentos, os Relatos de Aprendizagem (RA) foram enumerados em ordem crescente e foram extraídos deles trechos que possibilitam identificar as possíveis aprendizagens alcançadas no processo de formação e os sentidos atribuídos à História Local na formação dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental. Percurso das práticas de formação e pesquisa No desenvolvimento da disciplina, um conjunto de atividades, divididas em dois ciclos de formação, foram propostas aos graduandos e às graduandas. No primeiro momento, eles e elas deveriam, de forma individual ou em grupo, realizar a interpretação e produzir uma resenha de uma das dissertações elaboradas por egressos da linha de pesquisa de História e Política da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas. O exercício tinha como finalidade identificar possíveis temáticas, objetos e abordagens de estudo sobre a História da Educação Local. Os textos acadêmicos foram préselecionados pela professora da disciplina e competiu aos estudantes, ainda, elaborar um plano de aula e apresentar um seminário temático, tendo o texto acadêmico analisado como objeto de interpretação, análise e exposição. Como continuidade das práticas de formação técnica e pedagógica, os cursistas participaram de visitas monitoradas realizadas no Arquivo Público de Alagoas (APAL), no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL). A ação pedagógica teve como objetivo apresentar aos licenciandos e às licenciandas importantes espaços para pesquisa sobre o patrimônio e a história alagoana. Essas instituições são responsáveis pela guarda e preservação de documentos 212 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X históricos e detêm importante acervo da cultural material e imaterial de Alagoas. Também são espaços que ofertam visitas guiadas para os usuários dos acervos295 e para o público em geral. Na sequência, para trabalhar as especificidades da pesquisa histórica no tempo presente, foi vivenciada a palestra “O currículo e a educação escolar indígena em Alagoas” (2018)296, como atividade complementar ao estudo da dissertação A educação dos Jeripancó: uma reflexão sobre a escola diferenciada dos povos indígenas de Alagoas (FERREIRA, 2009). No segundo ano de oferta da disciplina, os alunos vivenciaram a oficina “Pesquisa histórica escravidão em Alagoas”297 (2019), ofertada pelo Arquivo Público de Alagoas. Terminado esse primeiro ciclo de atividades, os alunos produziram o primeiro relato de aprendizagem, tendo como diretriz: descrever as aprendizagens obtidas com as atividades vividas na primeira fase de formação, na disciplina THEAL. Também foram incorporados como fontes complementares de análises, os relatórios de visita produzidos pelos(as) alunos(as) das disciplinas Saberes e Metodologias do Ensino de História 1 e 2 (SMEH 1 e SMEH 2), que participaram das visitas monitoradas nas instituições caracterizadas como lugares de preservação do patrimônio cultural e histórico de Alagoas. Por conseguinte, no segundo ciclo de formação, os estudantes, de forma individual ou em grupo, realizaram a coleta e a análise de documentos históricos, disponíveis no site do Grupo de Pesquisa História da Educação, Cultura e Literatura, e produziram um artigo e um plano de aula para dar subsídio à realização dos seminários temáticos, em que apresentaram a análise dos seguintes documentos históricos: “Almanaque do Ensino” (ALAGOAS, 1939), “Compêndio de Pedagogia Prática” (ARAÚJO, 1886), “O desenvolvimento da Instrução Pública em Alagoas” (BASTOS, 1939), “Instrução Pública e Instituições Culturais de Alagoas” (COSTA, 1931) e “Como se ensina” (DORIA, 1923). Para definir os conteúdos de análise dos documentos históricos estudados, adotamos os temas apresentados na ementa da disciplina THEAL: Estudos sobre a trajetória da educação em Alagoas, do Império à República com enfoque nas políticas públicas, na legislação educacional, nas ideias e teorias pedagógicas (e na expressão dessas através dos recursos didáticos: 295 Pesquisadores(as) e professores(as). 296 A exposição foi realizada pelo professor doutor Gilberto Ferreira, pesquisador da Temática História e Educação dos Povos Indígenas em Alagoas. 297 Ministrada pelos professores Gean Carlos de Melo e Wellington Gomes. 213 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X obras didáticas e métodos de ensino), na biografia de educadores alagoanos, nas instituições educacionais públicas, particulares e filantrópicas e na educação superior (UFAL, 2006, p. 67). Assim, considerando as orientações da ementa da disciplina, na análise dos documentos históricos buscou-se contextualizar o cenário político, cultural e educacional de produção das obras e as biografias dos autores, realizando associações (não anacrônicas) com as práticas e as instituições educativas alagoanas do tempo presente. Segundo Moreira e Silva (2008), não é possível prever o resultado do currículo prescrito (idealizado), pois como receptores e produtores de cultura, os sujeitos professores(as) e alunos(as) elaboram os seus próprios itinerários de transmissão e de recepção de conhecimentos. Isso porque O currículo pode ser movimentado por intenções oficiais de transmissão de uma cultura oficial, mas o resultado nunca será o intencionado porque, precisamente, essa transmissão se dá em um contexto cultural de significação ativa dos materiais recebidos. A cultura e o cultural, nesse sentido, estão tanto naquilo que se transmite quanto naquilo que se faz com o que se transmite (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 27). Arroyo (2019, p. 9) reclama que a memória nacional não trata da história dos “Outros”. Declara que a falta de reconhecimento das produções culturais e intelectuais dos coletivos populares marginalizados (“[...] expropriados de seus direitos à vida, terra, teto, trabalho, renda, saúde, educação”, identidades sexuais e étnicas) contribui, no ambiente escolar, com a precarização dos corpos e mentes humanas. Para o autor, conhecer a história educativa dos “Outros” e suas formas de resistência possibilita conhecer e compreender as estratégias políticas administradas pelo Estado para controlar e dirigir os interesses dos oprimidos. Esta matéria contribuiu para o aprendizado de como trabalhar com documentos históricos, fontes históricas e a produção de dissertações e teses, principalmente com a visita ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas que nos deu uma noção material da história desse estado em que nos encontramos hoje, e nos proporciona um conhecimento para ser passado aos nossos futuros alunos, pois precisamos reviver a identidade do nosso estado, relembrarmos de toda 214 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X riqueza que passa despercebida, desde uma Avenida Fernandes Lima, até a cidade de Delmiro Gouveia. [...] em um momento ele [Delmiro] investe no interior de Alagoas, construindo uma fábrica, e é a partir desse momento que a educação entra na sua história, ao perceber que era necessária uma mão de obra qualificada para o funcionamento da fábrica, ele funda uma escola, que apesar de uma formação para o trabalho, e uma educação baseada em castigos e recompensas, era algo surreal para época, e os operários idolatravam Delmiro, porque ao levar em consideração a situação fora daquele ambiente que eles viviam, aquele contexto era o melhor que se poderia ter (AMARÍLIS298, Relatório 12, 2019b, p. 4). Dois conteúdos de aprendizagem são apontados pelo estudante: a) a necessidade de conhecer a História Local para aptidão/saber profissional; e b) o interesse em reconhecer as demarcações sócio-históricas do espaço geográfico alagoano, a partir do estudo (e desmistificação) dos eventos históricos e das memórias selecionadas para serem coletivas: “[...] precisamos reviver a identidade do nosso estado, relembrarmos de toda riqueza que passa despercebida, desde uma Avenida Fernandes Lima, até a cidade de Delmiro Gouveia” Relatório 12, 2019b, p. 4). Goksu e Someni (2019) observam que o ensino de História Local possibilita a aprendizagem de saberes do campo geográfico e especialmente das culturas locais, aproximando o passado e o presente por apresentar conexões entre os acontecimentos ocorridos no passado e os efeitos e as experiências relacionados a eles, vividos pelos sujeitos do presente, de modo que a transferência do patrimônio histórico de uma geração a outra ocorra de forma mais interessada. Os eventos históricos citados estão intrinsecamente relacionados à memória dos excluídos. O primeiro trata-se da rememoração de um personagem político, Fernandes Lima, que teve participação ativa no Quebra do Xangô (1912), um grave acontecimento de intolerância religiosa e de violência policial e política imprimida aos terreiros de cultos afrobrasileiros em Alagoas, no começo do século XX. O segundo acontecimento citado lembra o surgimento da cidade de Delmiro Gouveia, a partir do processo de implantação da Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso (1913) e da Fábrica de Linhas Estrela (1914), uma indústria de produção de tecidos, instituída no sertão alagoano, também nos primeiros anos da segunda 298 Para preservar a identidade dos graduandos e das graduandas produtores dos documentos analisados neste estudo, utilizaremos nomes de flores como substitutos de seus sobrenomes. 215 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X metade do século XX. A empresa associou práticas culturais da sociedade patriarcal e coronelista do sertão com procedimentos técnicos próprios da produção industrial e criou um conjunto de condutas e procedimentos culturais e educativos impositivos para os operários da fábrica, tendo como perspectiva a promoção da civilidade (NASCIMENTO, 2012). Pollak (1992) observa que a memória pública (coletiva) pode ser subsidiada por “lugares de apoio à memória”. Mesmo distante no que tange ao tempo-espaço de seus ancestrais, uma geração pode ser provocada ao pertencimento político, cultural, étnico ou racial, por exemplo, por meio dos lugares formadores de memória. Observamos que as visitas monitoradas provocam nos(as) estudantes o reconhecimento299/sentimento de pertencimento cultural e de reinvindicação do saber como direito/patrimônio coletivo. A visita ao arquivo gerou momentos de descobertas e sentimentos de pertencimento, pois conhecer um pouco mais sobre aquilo que nos pertence, é nosso – nossa história – nos faz compreender coisas que talvez sem a experiência oferecida não fosse tão bem consolidada (LÍRIO, Relatório 02, SMEH I, 2019). Não poderia deixar de falar sobre a visita no Arquivo Público e no IPHAN, que vergonha nasci e me criei em Maceió e nunca tinha ouvido falar desses patrimônios e nem das importâncias dos mesmos para a nossa cultura. A experiência foi única e riquíssima, poder ver que os documentos estudados se encontram lá sem dúvidas isso já dá uma vida aos textos. Agradeço a você professora e a nossa Universidade por me proporcionar um momento desse, após 29 anos uma descoberta valiosa. E com toda certeza levarei a minha filha para que ela desde pequena possa vivenciar e perceber a importância da História em nossas vidas. Ninguém tem o direito de apagar o nosso passado, e nem nos privar dele. Acredito que faria toda a diferença na formação de todos da Universidade, que eles tivessem o direito de também conhecer esses patrimônios e refletir sobre a sua importância para a cultura e das futuras gerações (JADE, Relatório 20, 2019, p. 1). 299 Nos relatos, os(as) estudantes utilizam a palavra “sentimento” para expressar a sua condição de partícipe de um grupo social específico. Nos fragmentos analisados, observa-se o que significado social e o sentido político produzido se aproxima do que Arroyo (2019) denomina de “reconhecimento dos professores”, de suas origens étnicas, culturais e classe. 216 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Desnaturalização300, desmitificação e problematização dos fenômenos sociais e históricos são os objetivos do estudo da História da Educação em âmbito universitário. A abordagem da História da Educação Local proporciona o desenvolvimento do olhar crítico sobre a realidade escolar do presente, pois desvela as intencionalidades políticas e ideológicas de um discurso que busca rememorar que estão no passado as experiências mais exitosas de desempenho estudantil e de qualidade da educação pública. A produção de uma memória que ressalta as práticas curriculares conservadoras (cultura letrada), tradicionais (ensino memorístico), autoritárias (disciplinadoras) e excludentes (meritocráticas) como sinônimos de qualidade educacional é ainda uma narrativa muito presente no senso comum; isto fortalece a exclusão dos saberes e das práticas produzidos pelos “Outros” no ambiente escolar. Nas aulas de história de Alagoas, realizamos leituras fundamentais para a formação dos futuros docentes, pois é compreendendo sobre a constituição do estado e de como foi fundado o sistema educacional, conseguimos ter uma consciência maior e conseguimos estabelecer uma relação, sentimento de pertencimento e de identidade com o local que moramos, buscando romper com ideias pragmáticas, tradicionais e preconceituosas (DICENTE, Relatório 30, 2019, p. 1). Com a leitura desses e de outros autores, percebo que não podemos afirmar que antes se tinha uma boa educação, pois não existia a condição de escolhas para a maioria, era aquilo ou nada. Fica bem claro no estudo de Delmiro Gouveia, aquelas pessoas da Vila da Pedra não tinham escolhas, era pura sobrevivência e por essas razões não podemos julgar aquela educação de boa qualidade. Estudar esses acontecimentos, me leva a olhar o presente de forma diferente, e defender a educação pública que temos, e não permitir que digam que antigamente se tinha educação com qualidade (JADE, Relatório 20, 2019, p. 1). No Brasil, a História Local tem perdido sentido e lugar na formação dos jovens. A instituição de exames de verificação do desempenho acadêmico estudantil, com conteúdo único e generalista, pode estar contribuindo para reduzir as práticas e o tempo pedagógico direcionado a esse tipo de proposta de ensino. Mesmo que o dispositivo oficial (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2017) apresente 40% para carga horária dos campos disciplinares para os 300 Entendimento das instituições escolares, práticas pedagógicas e relações educativas como construção social, por isso instituídas por interesses políticos e ideológicos em disputa (ARROYO, 2011). 217 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X estudos de conteúdo local, na análise da proposta para o ensino de História, do Referencial Curricular de Alagoas (ALAGOAS, 2019), não observamos uma proposta estruturada para o ensino de História Local. Verifica-se o indicativo de abordagem de alguns eventos pontuais da História Local, mas nem sempre numa perspectiva de formação articulada com outros campos do saber e mesmo com os conteúdos referentes à história do Brasil; e menos ainda com a dita história universal (ocidental). Goksu e Someni (2019) apontam que o tempo para o estudo da História Local e os recursos disponíveis são restritos nos currículos escolares. No caso da universidade pesquisada, a disciplina THEAL caracteriza-se como eletiva e, sem um professor com concurso específico para ministrá-la, cabe a professores de áreas científicas aproximadas, como os de Metodologia do Ensino de História ou de Fundamentos Históricos da Educação, ministrá-la. Como consequência, o componente curricular é ofertado sazonalmente, de acordo com a necessidade dos docentes de complementar a carga horária de trabalho ou de acordo com o interesse acadêmico particular (envolvimento em projetos de pesquisa com a temática, por exemplo). No curso da última década, a disciplina foi ofertada em 2012, depois em 2016 e só voltou a ser ofertada em 2018. Se consideramos que o curso de Pedagogia do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas é ofertado em três turnos letivos e recebe 180 ingressantes por semestre, podemos afirmar que algo em torno de 24 turmas não tiveram a possibilidade discutir de forma sistemática questões históricas e específicas relacionadas à História da Educação em Alagoas. Entendemos isso como uma perda no processo de formação, pois os relatos dos futuros professores e professoras possibilitam pensar que práticas de disciplina contribuem com a formação cultural ampla e a profissionalização, mediante o desenvolvimento da consciência sobre a necessidade de preservação e guarda do patrimônio histórico local. Em suma, a experiência obtida através desse momento que se caracteriza pela ida ao Arquivo Público, possibilitou-me a inúmeras sensações e sentimentos que nunca tinha tido antes, um deles foi a percepção de quão rica é a história de Alagoas, dos inúmeros documentos que existem ali e tratam da história de um povo, história essa que muitas vezes é ocultada devido à ausência de acesso dos sujeitos a esses documentos e bens patrimoniais. Além disso, minha sensibilidade foi despertada quanto a importância de preservar aquele espaço, pois, trata-se de um ambiente de um valor histórico riquíssimo, uma vez que, se aquelas fontes forem apagadas ou destruídas, a história e a memória de um povo e de um estado inteiro (Alagoas) também será esquecida (PETÚNIA, Relatório 01, 2019, p. 3-4). 218 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Só vim saber da existência do Arquivo Público de Alagoas a partir da disciplina de Saberes e Metodologias do Ensino de História I, apesar deste acervo era de acesso garantido para a população. Após conhecer este lugar que têm marcos importante da história de Alagoas, fiquei bastante curiosa para conhecer mais profundo a historicidade do lugar onde resido (ORQUÍDEA, Relatório 09, SMEH 1, 2019). A visita monitorada ao APAL, e às demais instituições de pesquisa e guarda de patrimônio cultural e histórico de Alagoas, como prática estrutural da disciplina, foi uma demanda política reconhecida/surgida mediante situação traumática. Em 2 de setembro de 2018 ocorreu um incêndio no Museu Nacional do Brasil e, nesse momento, identificamos que muitos estudantes das disciplinas SMEH 1 e SMEH 2 não apresentaram sensibilidade com a situação; falavam de forma racionalizada, mas sem apresentar sentimento de perda. Era só um evento ocorrido, lá longe, no Rio de Janeiro. Assim, em 2018, a visita de caráter pedagógico foi incorporada às práticas da disciplina de THEAL e, em 2019, também se tornou atividade didática regular das disciplinas SMEH 1 e SMEH 2. Isso porque entendemos que o ensino no campo pode possibilitar a aprendizagem e o desenvolvimento de sensibilidades que não são possíveis de serem realizadas no ambiente da sala de aula: [...] foi a primeira vez nesse semestre que a turma do 7º período vespertino saia para uma aula de campo, na realidade poucas vezes fizemos isso ao longo do curso. E foi um momento de muita ansiedade para mim, porque eu nunca tinha visitado o arquivo público, só passava na porta e não fazia ideia da riqueza de coisas que tinham ali dentro, documentos tão antigos, aonde vimos que os danificados eram todos congelados e mais de 6000 caixas, dívidas por números e o mais importante tudo isso sobre o Estado de Alagoas. Analisar as fotografias antigas, ver lugares que passamos diariamente e que estão extremamente diferentes de antes, além do jornal do século passada, onde rapidamente podemos ver o conteúdo dele, as propagandas e em como tudo era tão diferente de hoje em dia, até mesmo a grafia das palavras. Durante toda a visita ao arquivo me senti muito empolgada com tudo que víamos e estávamos descobrindo, mas para mim o momento mais importante foi o da oficina, mesmo conhecendo algumas questões que ali foram discutidas, a questão da escravidão, de como tudo ocorreu de forma tão cruel, a revolta dos malês, as questões das leis, do processo de alforria e de como 219 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tudo isso contribui e implica de forma direta pra explicar nossa sociedade atualmente é muito pertinente, porque algumas pessoas ali não tem acesso a esse tipo de discussão e aquele espaço foi de suma importância para isso, além de me levar mais uma vez a refletir sobre meu papel enquanto mulher negra na sociedade (CAMÉLIA, Relatório 32, SMEH 1, 2019). Durante a realização da oficina citada, os expositores apresentaram documentos (fontes) que foram utilizados para a produção de suas pesquisas e que estavam sob a guarda do APAL. A conexão entre a visita ao ambiente de preservação de guarda dos documentos históricos e a vivência de uma formação que abordava o uso dos documentos manuseados durante a visitação foi abordada como algo positivo nos relatórios elaborados pelos estudantes: [...] e o mais interessante dessa palestra foi quando o palestrante nos informou que partes das informações que ele apresentou para nós, foi fruto de pesquisas dentro do acervo. E isso deixou ainda mais nítido, a importância arquivo público de Alagoas, dado que esse se trata de uma verdadeira fonte de informação e saber. A visita técnica me proporcionou conhecer tal espaço além disso, compreender a importância desse espaço, a mim foi possibilitado mesmo que de modo breve um grande resgate com relação a história local cultural do estado, a história de um povo, do meu povo. E diante disso só posso expressar minha gratidão a professora por ter me proporcionado tamanha experiência (BEGÔNIA, Relatório 14, SMEH I, 2019). [...] é notória a grande relevância de ensinar a todos a conhecer e pertencer a sua história local buscando compreender os acontecimentos em volta em suas relações. No final da visita, participamos de uma oficina com um estudo histórico sobre os percursos da escravidão em Alagoas e demais regiões trazendo um novo olhar a respeito da reação dos negros, como protagonistas e reativos a tudo que lhe acontecia no caminho de escravidão com uma subordinação forçada, sacríficos, trabalho escravo e preconceito. Os pesquisadores desmistificaram a ideia de ‘protagonismo’ que os registros reforçam só relacionada a raça branca dos senhores, mas cabe trazer com clareza o real protagonismo dos negros escravos nessa história pois foram acima de tudo inconformados, sujeitos ativos na caminhada, usaram a inteligência, a força e a razão para resistir contra os levantes e opressão da burguesia mostrando a perseverança de um povo contra os levantes políticos, econômicos e sociais (AZALÉIA, Relatório 11, SMEH I, 2019). 220 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A visita ao APAL e à vivência da oficina possibilitou aos(às) estudantes a compreensão de que é possível o estudo histórico de outros sujeitos para além dos membros das elites locais (os ilustres alagoanos301). Pois no APAL, assim como no IHGAL, é possível encontrar documentos de diferentes tempos e que fazem referências a grupos sociais e sujeitos históricos diversos que podem servir de recursos para a elaboração da história dos excluídos da historiografia tradicional, aquela de viés eurocêntrico, que não considera os dissidentes da heteronormatividade, a diversidade cultural étnica das comunidades indígenas e quilombolas como objeto de pesquisa, por exemplo. Assim, é possível entender que a história oficial é uma elaboração política com funções práticas: produzir e difundir um tipo exclusivo de memória nacional (BITTENCOURT, 1993; FONSECA, 2004; NADAI, 1993). Logo, não são os documentos ou fontes que decidem quem serão os sujeitos da história oficial, mas são os sujeitos pesquisadores e as instituições de pesquisa que realizam essa seleção e a hierarquização das históricas contadas, bem como o silenciamento dos sujeitos oprimidos. Nora (1993) observa que, com a sociedade moderna, a história-nação vai perdendo o sentido e a história-sociedade ganha espaço. Essa última perspectiva de escrita talvez seja o que se busca na produção do conhecimento e do ensino de História Local: aproximar o sujeito de suas ancestralidades, dando-lhe o direito de identificar-se com a História dos “Outros”, aqueles que não estão na historiografia nacional oficial (ARROYO, 2019). Considerações finais Para a produção de um saber laico, de discurso crítico, fundamentado na análise de bens materiais e imateriais e de uso comum como a História (NORA, 1993), é fundamental que os espaços de preservação dos documentos históricos sejam mantidos pelo setor público e estejam disponíveis como lugares de vivência social e de práticas de pesquisa. O estudo de História Local possibilita: a) interrogar as tradições; b) questionar os valores que contribuem para a produção de ações coletivas e individuais discriminatórias e violentas; c) repensar o significado histórico e o sentido político do uso no presente de determinados símbolos políticos e ideológicos produzidos em outras conjunturas históricas; e 301 Essa é uma expressão comum no cenário intelectual alagoano quando se faz referência a um dos membros da elite intelectual, política ou literária do estado. 221 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X d) disputar os espaços culturais de produção de representações que, no caso alagoano, tem dado sustentabilidade à cultura do patriarcado e do colonialismo (VERÇOSA, 2015). Esses estudos contribuíram para entender o descaso com ensino primário até os dias atuais, ver a desigualdade existente em relação as raças e classes. Com os índices de analfabetismo em Alagoas é problema antigo. Como as questões políticas em Alagoas de desmando, e interesses são antigos, as indicações em relação as cadeiras de professores mesmo com avanços de conquistas continuam as mesmas. A organização da forma tradicional de ensinar ainda é praticada. Ainda existe casa em bairros em Maceió, sem muita organização ou com professores capacitados que servem para o ensino das primeiras letras. Portanto com essa contribuição rever a prática e assumir uma responsabilidade de comprometimento com educação, principalmente em se tratando na nossa Alagoas que traz uma trajetória de descaso e um alto índice ainda de analfabetos, e com escolas com ensinos precários (ANTÚRIO, Relatório 24, 2019a, p. 2). Através desses estudos podemos compreender, que traz uma contribuição para entendemos a precariedade da educação, principalmente em relação ao ensino iniciais que muito foi negligenciado desde a instituição do ensino no Brasil, vimos professores sem qualificação, escolas desorganizadas, politicagem, interesses individuais, que refletem nos dias atuais, mesmo com tantas lutas e conquistas, o reflexo de analfabetismo ainda é alto em Alagoas em relação aos outros estados. Com esse entendimento a nossa prática devem ser conscientes desse atraso, mesmo que sozinhas não podemos resolver, mas a nossa atuação deve ser responsável e com seriedade, e comprometimento em se tratando de atuamos no ensino dos anos iniciais. A nossa prática reflete na história futura da educação em Alagoas e que seja escrita com avanços, pois mesmo com mais de 200 anos não tem dado resultados positivos em se tratado da educação pública, e da forma de se fazer política em nosso Estado (ANTÚRIO, Relatório 33, 2019b, p. 1). Observamos que os conhecimentos e as práticas vivenciadas na disciplina, além da consciência crítica, possibilitam o reconhecimento do pertencimento e uma maior sensibilidade para a militância político-pedagógica no interior das escolas, sustentada pelo conhecimento das formas de dominação e de exclusão social e pela produção, com participação ativa e criativa 222 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X dos trabalhadores professores e professoras, de práticas e estratégias alternativas à dominação e à precarização da vida e do desenvolvimento humano (ARROYO, 2019). Vemos no curso da disciplina que a memória (individual e coletiva) ‒ como fenômeno social, constituída por lembranças, sendo mutável e fluída, que possibilita esquecimentos e silenciamentos (NORA, 1993; POLLAK, 1992; 1989) ‒ vai sendo problematizada como um instrumento para a constituição da identidade social. Assim, a História da Educação Local vai sendo observada como um instrumento que propicia a reorientação da memória coletiva, numa perspectiva mais interpretativa e crítica do passado e de constituição da identidade social e profissional. Referências ALAGOAS. Referencial curricular de Alagoas: ensino fundamental. Maceió: Secretaria de Estado da Educação, 2019. ARROYO, Miguel Gonzáles. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011. ARROYO, Miguel Gonzáles. Vidas ameaçadas: exigências-respostas éticas da educação e da docência. Petrópolis: Vozes, 2019. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. 1993. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas ‒ Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993. FERREIRA, Gilberto Geraldo. A Educação dos Jeripancó: uma reflexão sobre a escola diferenciada dos povos indígenas de Alagoas. 2009. 168f. Dissertação (Mestrado em Educação) ‒ Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2009. FONSECA, Thais Nivia. História & ensino de história. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. NADAI, Elza. O ensino de história no Brasil: trajetória e perspectiva. Revista Brasileira de História, v. 13, n. 25/26, São Paulo, 1993. Disponível em: file:///C:/Users/andre/Downloads/revista_v13_elza-nadai.pdf. Acesso em: 8 ago. 2021. GOKSU, Meral Metin; SOMENI, Tugba. History teachers’ views on using local history. European Journal of Education Studies, v. 6, n. 2, p. 253-275, 2019. Disponível em: https://eric.ed.gov/?q=%22%22&ff1=subLocal+History&id=ED597823. Acesso em: 9 set. 2019. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC, UNDIME, CONSED, 2017. 223 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo, cultura e sociedade. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2008. NASCIMENTO, Edvaldo Francisco do. Delmiro Gouveia e o processo educacional desenvolvido no núcleo fabril da Pedra, no sertão de Alagoas (1902 – 1926). 2012. 197f. Dissertação (Mestrado em Educação) ‒ Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2012. NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Projeto História. São Paulo: PUC, 1993. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 5, n. 10, Rio de Janeiro: CP/DOC FGV, 1992. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Tradução de Dora Rocha Flaksman. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. VERÇOSA, Élcio de Gusmão. Cultura e educação nas Alagoas: história, histórias. Maceió: ADUFAL, 2015. UFAL. Projeto político-pedagógico do curso de pedagogia. Maceió: CEDU/UFAL, 2006. Fontes Documentos históricos ALAGOAS. Almanaque do ensino. Maceió. 1939. ARAÚJO, Joaquim José. Compêndio de Pedagogia Prática. 1886. BASTOS, Humberto. O desenvolvimento da Instrução Pública em Alagoas. Departamento Municipal de Estatística, Maceió, 1939. COSTA, Craveiro. Instrução Pública e Instituições Culturais de Alagoas. Maceió. 1931. DORIA, A. de Sampaio. Como se ensina. 1923. Relatórios CAMÉLIA, L. Roteiro de visita técnico-pedagógica. Relatório 32. Maceió: UFAL/CEDU/SMEH 1, 2019. AMARÍLIS, M. Relatório de aprendizagem I. Relatório 12. Maceió: UFAL/CEDU/ THEAL, 2019. JADE, D. Relatório de aprendizagem. Relatório 20. Maceió: UFAL/CEDU/ THEAL, 2019. DICENTE, L. Relatório de Aprendizagem Individual 1. Relatório 30. Maceió: UFAL/CEDU/ THEAL, 2019. 224 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ANTÚRIO, V. Relatório de aprendizagem. Relatório 24. Maceió: UFAL/CEDU/ THEAL, 2019a. ANTÚRIO, V. Relatório de aprendizagem. Relatório 33. Maceió: UFAL/CEDU/ THEAL, 2019b. BEGÔNIA, C. Arcanjo dos. Relatório: visita técnica ao Arquivo Público de Alagoas. Relatório 14. Maceió: UFAL/CEDU/SMEH 1, 2019. LÍRIO, C. Relato sobre a visita ao Arquivo Público. Relatório 02. Maceió: UFAL/CEDU/SMEH 1, 2019. ORQUIDIA, N. Visita Técnico-Pedagógica – Arquivo Público de Alagoas. Relatório 09. Maceió: UFAL/CEDU/SMEH 1, 2019. AZALÉIA A. Relato da visita no Arquivo Público de Alagoas no Jaraguá. Relatório 11. Maceió: UFAL/CEDU/SMEH 1, 2019. PETÚLIA, E. Relatório sobre a visita ao Arquivo Público. Relatório 01. Maceió: UFAL/CEDU/SMEH 1, 2019. 225 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sujeitos revolucionários: trabalhadores/as rurais como fonte de conhecimento histórico escolar Adriana Mastrangelo Ebecken* RESUMO Este trabalho pretende colocar em pauta a invisibilidade dada à história dos trabalhadores/as rurais e movimentos sociais do campo no ensino de História na educação básica. Refletir sobre a importância de se conhecer esses sujeitos históricos desde a formação escolar – suas histórias e luta por melhores condições de vida. Propõe que esses sujeitos sejam discutidos em sala de aula a fim de construir um conhecimento histórico escolar a partir da interseccionalidade entre classe e raça para que possibilite aos educandos uma melhor compreensão da estrutura social brasileira. É construído, portanto, partindo da compreensão de que a colonização do Brasil se deu pela codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, que foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais e de que o currículo escolar é um espaço de disputa. Dessa forma, ao apresentá-los como sujeitos de suas vidas, propõe romper com um sistema de relações de força simbólica – que se dá através de sua invisibilização – cujo papel é reforçar as relações de força material na sociedade brasileira. Palavras-chaves: ensino de História; história do Brasil; história dos movimentos sociais no campo. Introdução O presente artigo é reflexo da pesquisa realizada no mestrado profissional em Ensino de História (ProfHistória), cursado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Tal pesquisa visa construir uma reflexão acerca da invisibilidade dada aos trabalhadores rurais brasileiros no ensino de História e, dessa forma, elaborar um material para professores da educação básica, a partir do levantamento de fontes históricas, para que os mesmos possam abordar a história dos movimentos sociais no campo em sala de aula. Pensa essa proposta através de um recorte * Licenciada e graduada em História. Professora de História na rede estadual de educação do estado do Rio de Janeiro. Mestranda em Ensino de História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), dricaebecken@yahoo.com.br. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); orientada por Samantha Quadrat. 226 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X múltiplo sobre os atores que vivem no mundo rural a fim de quebrar com um olhar homogeneizante sobre estes, visto que, no pouco que aparecem, são apresentados como um grupo submisso ou ignorante em relação a suas demandas e necessidades para viver/sobreviver – quando não aparecem de forma caricaturada como o matuto, o ingênuo ou o fanático religioso. O trabalho compreende que tais personagens possuem, na sua essência, o intuito de transformação da sociedade brasileira e de rompimento com a colonialidade imposta pelo ideal da modernidade. Sujeitos revolucionários. Entende ainda que apresentá-los na educação básica como conteúdo escolar se faz dentro de um espaço de disputa que é o currículo. Quando se está dentro de sala de aula, pouco se fala sobre as populações do campo, como se estas fizessem parte apenas dos bastidores dessa história. Suas trajetórias e lutas por direitos não possuem visibilidade no ensino de história, uma vez que o conteúdo é especialmente focado numa história econômica ou sob o olhar das relações político-administrativas. Onde estão os trabalhadores rurais brasileiros? A atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC) afirma a importância em destacar a relação sujeito/trabalho e toda a sua rede de relações sociais (BRASIL, 2018, pp 556-557). Traz apontamentos que dão respaldo para levar a história da população do campo para dentro do ensino de História, por exemplo, quando coloca como competências específicas da História para o ensino fundamental (BRASIL, 2018, p 402): 4. Identificar interpretações que expressem visões de diferentes sujeitos, culturas e povos com relação a um mesmo contexto histórico, e posicionar-se criticamente com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. 5. Analisar e compreender o movimento de populações e mercadorias no tempo e no espaço e seus significados históricos, levando em conta o respeito e a solidariedade com as diferentes populações. No entanto, em uma análise sobre os textos referentes ao ensino fundamental e ao ensino médio, como documento norteador do currículo, percebemos a invisibilidade desses 227 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X atores sociais na sua descrição. Por exemplo, referente ao ensino fundamental, a menção aos camponeses, especificamente, aparece somente no conteúdo final do 9° ano em: Objetos de conhecimento: A questão da violência contra populações marginalizadas; Habilidades: (EF09HI26) Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas (BRASIL, 2018, pp430-431). De acordo com Kátia Abud (2004, p 28), currículos e programas são instrumentos de intervenção do Estado no ensino, interferência na formação da clientela escolar para o exercício da cidadania no sentido que interessa aos grupos dominantes. O discurso do poder se pronuncia sobre a educação e define seu sentido, forma, finalidade e conteúdo e estabelece sobre cada disciplina o controle da informação a ser transmitida e da formação pretendida. O currículo é o veículo para disseminação do discurso do poder e difusão da ideologia entendida como corpus de representações e normas que fixam e preservam o que e o como se deve pensar, agir e sentir, assim como legitima a divisão social a partir de um imaginário coletivo. A ausência dos trabalhadores rurais no currículo corrobora para o apagamento da população do campo, assim desarticulando “o que e o como se deve pensar, agir e sentir” a respeito desses sujeitos. Invisibilizados para a população como um todo, invisibilizados no retrato sobre si. O texto da BNCC acaba por dissolver também a interseccionalidade entre classe e raça quando se pensa a estrutura social brasileira, já que, apesar de reiterar algumas vezes como conteúdo de aprendizado a questão indígena e quilombola, reflexo das leis 10.639/2003 e 11.645/2208, referente a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena na educação básica, não apresenta esses grupos dentro ou em relação à realidade do campo brasileiro. No texto referente ao ensino médio, ao desenvolver a categoria fronteira para ser trabalhada nas Ciências Humanas e Sociais, a BNCC coloca: Também há fronteiras de saberes, que envolvem, entre outros elementos, conhecimentos e práticas de diferentes sociedades. Caçar ou pescar, por exemplo, são atividades que demandam habilidades nem sempre conhecidas 228 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X e desenvolvidas por populações das grandes cidades. Plantar e colher exigem competências e habilidades experimentadas no dia a dia por populações dedicadas ao trabalho agrícola, desenhando fronteiras, frutos de diversas formas de produção e convívio com a natureza. Assim, no Ensino Médio, o estudo dessas categorias deve possibilitar aos estudantes compreender os processos identitários marcados por territorialidades e fronteiras de diversas naturezas, mobilizar a curiosidade investigativa sobre o seu lugar no mundo, possibilitando a sua transformação e a do lugar em que vivem, enunciar aproximações e reconhecer diferenças (BRASIL, 2018, pp 552-553). E para a Competência Específica 2 das Ciências Humanas e Sociais: Os atores sociais, na cidade, no campo, nas zonas limítrofes, no interior de uma cidade, região, Estado ou mesmo entre Estados, produzem diferentes territorialidades que envolvem variados níveis de negociação e conflito, igualdade e desigualdade, inclusão e exclusão. Dada essa complexidade de relações, é prioritário levar em conta o raciocínio geográfico e estratégico, bem como o significado da história e da política na produção do espaço(BRASIL, 2018, p 561). Logo adiante, como uma das habilidades a serem estimuladas a partir desta competência: (EM13CHS204) Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas (BRASIL, 2018, p 561). Percebe-se certa superficialidade para o tratamento das questões do campo bem como das histórias de sua gente, ainda que, em determinado trecho, o texto da BNCC traga certa 229 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X isenção ao colocar que os agrupamentos propostos não devem ser tomados como modelo obrigatório para o desenho dos currículos (BRASIL, 2018, p 402). A análise da BNCC se faz sob a perspectiva de Michael Apple (2011, p 59) ao afirmar que o currículo não é um conjunto neutro de conhecimentos, mas parte de uma tradição seletiva, produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas. Ao nos perguntarmos como os trabalhadores rurais e movimentos sociais do campo no Brasil são apresentados em sala de aula (ou não) coloca-se esse questionamento sob a perspectiva da relação do sistema de ensino com a estrutura das relações de força que se estabelecem entre as classes sociais, compreendendo que este grupo ocupa na sociedade o lugar daqueles que vendem sua mão de obra e estão, historicamente, sujeitos a redes de poder que os colocam em posição subalterna àqueles que detém a posse da terra ou melhores condições materiais de produção e sobrevivência no campo brasileiro. Convém colocar que muito do que aqui se coloca a respeito dos trabalhadores do campo também ocorre com os trabalhadores fabris, de serviços e de outros espaços referentes ao ambiente urbano brasileiro. Encontramos a possibilidade de tratar sobre estes em sala de aula na unidade temática “O nascimento da República no Brasil e os processos históricos até a metade do século XX” da BNCC para o 9° ano (BRASIL, 2018, p 428), nos objetos de conhecimento com os títulos “A emergência da vida urbana e a segregação espacial”, bem como "O trabalhismo e seu protagonismo político” com as referidas habilidades “Identificar e discutir o papel do trabalhismo como força política, social e cultural no Brasil, em diferentes escalas (nacional, regional, cidade, comunidade)” e “Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais”. Na unidade temática “Modernização, ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1946” (BRASIL, 2018, p 429), no objeto de conhecimento “O Brasil da era JK e o ideal de uma nação moderna: a urbanização e seus desdobramentos em um país de transformação” também parece ser possível de inserir a discussão a cerca das demandas e lutas sociais dos trabalhadores urbanos, entretanto estes não se veem nomeados ou sinalizados para serem abordados em sala de aula. Dessa forma, a abordagem dos trabalhadores enquanto sujeitos históricos, tanto do campo, quanto da cidade, ficam subentendidas quando pensamos o processo histórico brasileiro, porém não são diretamente tratadas como conteúdo curricular para o ensino de História. Compreende-se essa invisibilidade curricular aos trabalhadores de maneira geral sob a ótica de Quijano (2005, p 108), que afirma que a divisão social do trabalho na América Latina se 230 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X constrói a partir de uma distribuição racista do trabalho e das formas de exploração do capitalismo colonial, os trabalhadores fazem parte de um processo histórico de subalternização, vinculado a suas origens e a uma imposição da colonialidade, assim, deve-se perceber suas ausências no conteúdo curricular de História a partir dos seus condicionantes histórico-sociais. Ou seja, invisibilizar se encontra dentro de um processo de dominação simbólica sobre a classe trabalhadora brasileira, suas raízes subalternas a partir do fenômeno da colonialidade, e que trazê-las à tona faz parte do processo do que Saviani (1999, p 74) explica como a transformação da igualdade formal (o acesso dos filhos dos trabalhadores à educação) em igualdade real, que está associada à transformação dos conteúdos formais, fixos e abstratos, em conteúdos reais, dinâmicos e concretos (a possibilidade de enxergarem suas histórias e a de suas famílias em sala de aula como potência de transformação da sociedade brasileira). Os movimentos sociais no campo tomam maior amplitude a partir da década de 1950 com o aparecimento das Ligas Camponesas, associações e uniões de trabalhadores rurais. No entanto, é possível percebê-los desde a escravidão a partir dos levantes e fugas das populações escravizadas. A colonização do Brasil se deu pela codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, que se tornou o principal elemento constitutivo das relações de dominação, produzindo identidades novas (índios, negros e mestiços). Essas identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais dentro de uma nova estrutura global de controle do trabalho (QUIJANO, 2005, pp 107-108). Os trabalhadores rurais no Brasil são descendentes de um processo histórico no qual o Brasil, desde a sua formação, representou uma estrutura socioeconômica no quadro do capitalismo global constituída e organizada para fornecer produtos do setor primário. Nesse contexto, as diversas formas de controle e exploração do trabalho rural foram desenvolvidas, como a escravidão, a servidão, a reciprocidade e o salário. Ronaldo Vainfas (1999, p 8) ao fazer uma análise sobre a questão da miscigenação na historiografia brasileira coloca que o projeto português de ocupação e exploração territorial até certo ponto definidos não podia se efetivar com base na imigração reinol, consideradas as limitações demográficas do pequeno Portugal, por isso, buscou implantar a exploração agrária voltada para o mercado atlântico e que, até os anos de 1930, a historiografia brasileira tratava a miscigenação, não como problema de investigação, mas como problema moral ou patológico que cabia resolver para o bem da Nação (VAINFAS, 1999, p 4). O historiador conclui ainda que nossa historiografia atual avança, é certo, no tocante à mescla cultural, e nisso busca nossas 231 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X originalidades, mas evita o tema da miscigenação racial (VAINFAS, 1999, p 11). Como se esperar, portanto, que os trabalhadores, descendentes dessa mão de obra colonial, miscigenada, fossem retratados em livros didáticos de acordo com sua participação no processo histórico brasileiro e de luta por melhores condições de vida que, consequentemente, impõe uma transformação na estrutura social do país? Os trabalhadores rurais na sociedade até os dias de hoje vêm com marcas dessa dominação social que se fez na oposição entre colonizados e colonizadores. Como coloca Medeiros (1989), para o pesquisador que se debruça sobre as lutas do campo, o grande desafio que se coloca é tirá-las do silêncio a que foram submetidas e reconstruir alguns de seus momentos, de forma a dar-lhes visibilidade. A socióloga afirma que: [...] pensar os conflitos agrários nos leva a refletir sobre seu passado, mas também sobre sua importância nos dias atuais. No seu modo de aparecer, eles anunciam e denunciam questões cruciais que afetam nossa vida cotidiana, apontando algumas das razões da urbanização caótica, da pobreza, da violência, da crise ambiental, da reprodução de condições de vida que negam direitos básicos e, portanto, as dificuldades de realizarmos condições próprias à modernidade (MEDEIROS, 1989, p 28). Sujeitos revolucionários para o ensino de história A lógica da pesquisa de que se trata este artigo passa pelo intuito de romper com um currículo que funcione enquanto violência simbólica, via invisibilização de tais atores sociais. A violência simbólica se manifesta de múltiplas formas, por exemplo, como é o caso da formação da opinião pública através dos meios de comunicação de massa, da pregação religiosa, da atividade artística e literária, da educação familiar, entre outros. À medida que qualificamos as lutas das populações do campo dentro de sala de aula, rompendo com a ideia de um trabalhador rural passivo, submisso, incapaz de formular seus próprios interesses e de lutar por eles, nos colocamos contrários à reprodução de um sistema que garante uma assimetria de poder entre grupos sociais, e igualmente permite que – por meio da educação – se conteste tais desigualdades sociais. São sujeitos históricos como as Ligas Camponesas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento dos Atingidos por Barragens, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, a Marcha das Margaridas, dentre tantos outros. 232 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Para este artigo, coloca-se o exemplo da história de Dona Rosa Geralda da Silveira: posseira, descendente da população escravizada da Fazenda da Caveira (Cabo Frio, RJ) e primeira mulher farinheira da região. Projetou-se como liderança local atuando através do sindicato rural, do qual esteve presente na organização e fundação. Ficou conhecida como a primeira mulher a ir à feira vender seus produtos por conta própria, eliminando a figura do atravessador (PERES, 2020, p 89). O território pelo qual dona Rosa vai disputar o direito de morar e tirar seu sustento recebe o nome de Caveira porque, durante o Brasil colonial, era o lugar onde as carcaças de gado morto eram deixadas, bem como onde eram enterrados os corpos de escravizados que não sobreviviam na vinda para o Brasil. A fazenda, originalmente, fazia parte do Complexo Agrícola Campos Novos, dos padres Jesuítas. Com a expulsão destes do território brasileiro, deu-se a fragmentação de Campos Novos em várias propriedades, que, consequentemente, resultou em conflitos fundiários envolvendo os descendentes da população escravizada da região. Na década de 1920, a fazenda da Caveira é comprada pelo alemão Eugene Honold, que passa a explorar a mão de obra da população quilombola dessa terra como “colonos”, “pagando o dia para morar”. Em 1952, sua administração é passada para o italiano, Antonino Paterno Castello, o "Marquês". A partir desse momento, as famílias passam a sofrer a imposição de novas regras de trabalho e moradia, além do arrendamento das terras que ocupavam. A história de Dona Rosa permite compreender, por exemplo, como se constituiu alguns tipos de conflitos fundiários no Brasil. Os termos grileiros e posseiros são antagonistas quando estudamos a luta pela terra. Permite ainda compreender a utilização do conceito de diáspora. Se ela é, em primeira análise, descendente de uma população que já viveu sua diáspora, a saída de seu território de forma forçada e sob o regime da escravização e subalternização, a resistência de Dona Rosa em sua terra é desenho de uma luta para não viver uma nova migração como aconteceu a outras famílias da Caveira. Exemplo de fonte histórica a ser disponibilizada encontra-se no arquivo virtual da Videoteca Virtual Gregório Bezerra, disponível no Youtube, no qual em mesa redonda, sob o título “Memória Camponesa”, Dona Rosa dá o seguinte depoimento: “Essa história do marquês, eu conto de outra maneira, eu vou pedir a vocês, se vocês me permitirem um pouco da sua atenção, eu vou te contar uma história que se deu lá no sertão: 233 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Em Cabo Frio e São Pedro, onde vive os lavrador, por causa de tanta injustiça, nós tornamos lutador. Foi na década de 50, nós começamos a lutar contra um grupo de grileiro que veio pra nos expulsar. Conhecido por marquês, um tal de Antônio Paterno, quis transformar a nossa vida quase num verdadeiro inferno. Chamou o velho Severino e o senhor Marcelo Gaspar, quando foram pagar renda, pra um tal papel assinar, os velhos não aceitaram a ordem que estava lá, ‘vocês só vão tomar água se meu jagunço mandar’ ‘tira o cachimbo da boca, você não pode fumar’ ‘se não obedecer as ordens, já pode se retirar’ Tinha dois meninos menores, queria os dois meninos pra pagar dois dias de cada um pra fazer um dia de adulto. Os dois meninos menores responderam sem demora: ‘ou os velho fica aqui, ou todos nós vamos embora’, pediram pra Santo Inácio, que nos cubra com seu manto, foi José Joaquim Silveira e o menor, Joaquim Afonso dos Santos. Saímos dali pra casa, pensamos numa união, chamamos os trabalhadores e fizemos uma reunião. Uma palavra de ordem: ‘nunca mais pagamos renda!’, ‘morra a palavra patrão’, ‘todos juntos lutaremos por um pedaço de chão’ e estamos lutando por esse pedaço de chão até hoje, mas nós vamos chegar lá, Deus quiser, vai chegar lá”. (SILVEIRA, 2004: 00:36:35 a 00:38:21) Conclusão No processo de construção histórica do país, o lugar do trabalho braçal ficou confinado às populações dominadas. É necessário trazer suas histórias e lutas para a compreensão da formação da sociedade brasileira e a possibilidade destes de se enxergarem dentro desse processo entendendo a interseccionalidade entre classe e raça que os compreende. Esta discussão se justifica pela importância e necessidade, como afirmado por Saviani (1999, pp 6768), de se valorizar os conteúdos que apontam para uma pedagogia revolucionária, com intuito de abalar as certezas e desautorizar o senso comum. Trata-se de uma proposta possível para o ensino de História que aproximará o público da educação básica a uma gama de fontes históricas produzidas pelos próprios movimentos – hoje em dia, inclusive, disponibilizados a partir de suas páginas oficiais na internet e redes sociais, presentes também em acervos da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e de instituições de ensino que se ocupam do papel de guarda dessa memória e de produção de conhecimento científico a partir de pesquisas no campo. 234 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Compreende-se que enquanto conteúdo curricular para o ensino de História esta discussão se torna necessária pela invisibilidade imposta a luta por direitos da população do campo no Brasil, pela necessidade de construção de um conhecimento escolar a cerca dessas histórias a fim de desenvolver um pensamento crítico sobre a realidade social do passado e da atual, entendendo como tais histórias refletem na realidade social brasileira de maneira ampla, afetando não só essas vidas individuais, mas a vida também daqueles que estão no meio urbano. Bibliografia ABUD, Katia. Currículos de História e Políticas Públicas: os programas de História do Brasil na escola secundária. In: BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. 9a edição. SP: Contexto, 2004. pp 28-41. APPLE, Michael W. A política do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um currículo nacional? In: MOREIRA, Antônio Flávio; TADEU, Tomaz (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade. 12ª ed., São Paulo – SP: Cortez, 2011. p. 59-106. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Brasília, 2018. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/> Acesso em: 07/05/2021, às 15h30. MEDEIROS, Leonilde Servolo. História dos movimentos sociais no campo. RJ: FASE, 1989. PERES, Gessiane Ambrosio Mazario. O desafio da mudança: educação quilombola e luta pela terra na comunidade quilombola Caveira do Rio de Janeiro. Tese (doutorado). UFRJ, Faculdade de Educação, Programa de Pós Graduação em Educação, 2020. QUIJANO, Aníbal. 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Acesso em: 19/06/2021 235 em: Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X SECADI (2001-2019): vestígios materiais de uma breve política afirmativa indutora da educação antirracista Aldilene do Nascimento Alves 302 Ana Lucia Malta Soares 303 Andréa Giordanna Araújo da Silva 304 Resumo: O trabalho apresenta o levantamento e a análise da estrutura organizacional e a importância política da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (20012019). Tendo como objetivo observá-la como uma das políticas afirmativas de âmbito federal indutora de formações e produções pedagógicas que possibilitaram o desenvolvimento de práticas de ensino de perspectiva antirracista no interior da escola brasileira, especialmente as instituições de ensino público. De natureza documental e tendo como fontes de análise diversos documentos e materiais pedagógicos originais produzidos pelo aparelho público, a pesquisa delineia um conjunto de textos pedagógicos que podem ser utilizados como recursos para formação inicial e continuada de professores e professoras. Palavras-chave: SECADI; Diversidade; Política Afirmativa; Educação Antirracista. Introdução No Brasil, as práticas políticas, do final do século XIX e início do século XX, que pretendiam promover o embranqueamento da população Brasileira foram constituídas a partir de uma imagem negativa da população negra e uma imagem positiva do sujeito branco. Tais práticas foram atualizadas e apresentam formas diversas, mas efeitos semelhantes em diferentes espaços do tempo presente. Silva (2005, p. 23) aponta que “A ideologia do branqueamento se 302 Graduada em Pedagogia. Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Integrante do grupo de Estudo e Pesquisa História da Educação Cultura e Literatura (GEPECL). E-mail: Aldilene.nascimento@cedu.ufal.br. 303Graduada em Pedagogia. Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Integrante do grupo de Estudo e Pesquisa História da Educação Cultura e Literatura (GEPECL). E-mail: ana.malta@cedu.ufal.br. 304Graduada em História. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Mestra em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (PE). Professora da Universidade Federal de Alagoas. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa História da Educação, Cultura e Literatura; E-mail: andrea.giordanna@cedu.ufal.br. 236 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X efetiva no momento em que, internalizando uma imagem negativa de si próprio e uma imagem positiva do outro, o indivíduo estigmatizado tende a se rejeitar, a não se estimar [...]” procurando sempre se igualar as características do outro grupo dominante, tidas como características boas e perfeitas. Por isso, é importante “Trazer para dentro da escola a temática do racismo, do preconceito e discriminação racial para ocupar espaços importantes de discussão e práticas voltadas à educação que promovam o respeito à diversidade étnico-racial e cultural da sociedade brasileira” (COQUEIRO; GUELF, 2008, p. 03). O racismo é um problema de todos e envolve toda a sociedade brasileira, principalmente os educadores que estão em contato diário com essa problemática, dentro das escolas. Diante de vários casos de racismos expostos na sala de aula, devemos considerar que a sala de aula é um dos processos educativos de trocas de saberes, sobretudo, entre alunos de diferentes grupos sociais; o que falamos, discutimos e refletimos pode influenciar sobre as suas atitudes e as relações que são estabelecidas dentro e fora das escolas. Nesse contexto “O resgate de memórias coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, [...], pois ao receber uma educação envenenada pelos pré-conceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas” (MUNANGA, 2005, p.16). A escola é “[...] um espaço que agrega múltiplas relações, tem desempenhado o papel de reprodutora do pensamento dominante, afirmando que não existem tratamentos diferenciados” (COQUEIRO; GUELF, 2008, p. 4-5). Por muitas vezes, o ato de discriminar está relacionado com a naturalização das práticas de racismo, que foram reproduzidas e “inovadas” a cada geração. Muitos brasileiros negam suas origens e identidade devido à falta de conhecimentos que lhes permitissem desvendar, conhecer, saber e perceber a diversidade na sociedade. Considerando o contexto descrito, a Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) pode ser historicamente considerada uma importante ação federal, situada no tempo presente, de combate ao racismo no Brasil. Criada em 2001, como política para inclusão da diversidade étnica, cultural e social no âmbito da educação, A Secad tinha como um dos seus principais objetivos oferecer aos/às professores(as) formação continuada, de forma a estruturar as escolas com conhecimentos, práticas pedagógicas e estratégicas de combate ao preconceito, à discriminação e ao racismo. 237 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Na perspectiva de ampliar as ações de inclusão social no âmbito da Secad, em 2011, ocorreu a fusão entre a Secretaria de Educação Especial com a Secad, passando a ser chamada de Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi). Todavia, em 2019, com o Decreto nº 9. 465, publicado no Diário Oficial da União (BRASIL, 2019), as mudanças na estrutura e funções de algumas secretarias do Ministério da Educação provocaram perdas e a Secadi passou a se chamar Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), com a criação isolada ainda da Secretaria de Alfabetização (Sealf), que se tornou o suporte estratégico do governo para a reconfiguração do currículo escolar e para a formação de professores alfabetizadores. O estudo de caráter documental (PRODANOV; FREITAS 2013, GIL, 2002) observa a importância social e política da Secadi, como prática afirmativa de âmbito federal que possibilitou a produção de várias ações que buscavam a promoção da igualdade racial, dentre elas a produção de materiais pedagógicos e didáticos, de cunho antirracista, e direcionados às escolas públicas. A SECADI como política afirmativa A Secadi, em sua origem, tinha uma concepção institucional inovadora e buscava contemplar a eficiência gerencial e a participação democrática como pilares institucionais: “[...] pluralidade de atores governamentais e sociais no desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a inclusão e diversidade” (BRASIL, 2004, p. 11). Uma das características inovadoras da Secadi era a Transversalidade Intersetorial na composição das ações afirmativas, estruturadas por meio do diálogo entre diversos setores da sociedade e órgãos do governo, permitindo a criação de várias ações integradas, sendo capaz de planejar com maior eficiência as ações necessárias à escolarização antirracista, da educação infantil à educação superior. As políticas, sob gerenciamento da Secadi, tinham ligação direta com todas as demais unidades operacionais do Ministério de Educação (MEC), especificamente com as secretarias de Educação Básica (SEB), Educação Especial (Seesp), Educação Profissional e Tecnológica (Setec), Educação Superior (Sesu) e Educação a Distância (Seed). Tendo em vista que a questão da transversalidade de suas políticas públicas buscava atuar especificamente na articulação intersetorial e interinstitucional no âmbito do governo federal, destaca-se “[...] a busca permanente de cooperação e entrosamento com os seguintes ministérios: Meio 238 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ambiente, Cultura, Esportes, Reforma Agrária, Desenvolvimento Social, Integração Nacional, Saúde, Justiça e Secretária-geral da Presidência da República” (BRASIL, 2004, p.11). Assim, a Secadi buscou ter um bom entrosamento com os órgãos do governo federal, contribuindo para firmar parcerias estratégicas com os sistemas estaduais e municipais de ensino.305 Era atribuição da Secadi: “[...] planejar, orientar, coordenar, fomentar, acompanhar e avaliar, em âmbito nacional, a formulação e a implementação de políticas voltadas para a alfabetização e educação de jovens e adultos, educação indígena, educação ambiental, educação do campo e educação em áreas remanescentes de quilombos” (BRASIL, 2004, p. 16). A Secadi tinha entre as suas atribuições ofertar a formação inicial e continuada de professores e colaborar com a produções de materiais didáticos e pedagógicos para os diferentes níveis e modalidades de ensino. Desenvolveu, portanto, programas e ações que contribuíram para diminuição das desigualdades educacionais e de combate ao racismo. Podemos afirmar, que Secadi tinha as características dos grupos sociais que lutaram por sua origem e concepção institucional, segundo Taffarel e Carvalho, (2019, p. 86), a “[...] SECADI não brota espontaneamente da vontade dos governantes”, foi, “[...] sim, fruto de uma intensa luta pela Reforma Agrária e por Educação”. Deste modo, o aniquilamento da Secadi, “[...] não significa somente menos política pública social para as populações do campo brasileiro”, para os povos indígenas, negros, comunidades ciganas... “Significa mais do que isto. São medidas para destruir forças produtivas e assegurara as condições de (re)produção do capital” (TAFFAREL; CARVALHO, 2019, p. 87). A associação do fim da Secadi com a dilatação do capital ocorre devido ao caráter compensatório e distributivo que tinha a prática governamental. Na qualidade de política afirmativa, ela dava lugar e voz aos excluídos da história e da justiça, no âmbito da esfera pública, pois possibilitava o uso dos recursos do estado para promover práticas que visavam ampliar as ações de justiça social. Assim, no quadro a seguir, observam-se alguns dos projetos desenvolvidos pela Secadi e materializados em textos pedagógicos e literários: Quadro 1 - Obras para a formação continuada dos professores 305 “O governo de Bolsonaro, empossado em 2019, em aproximadamente quatro meses, vem tomando sucessivas medidas governamentais, via Ministério da Educação, que, não só retiram conquistas, direitos, mas, que impõe um retrocesso sem precedentes na história educacional do Brasil, [...]” (TAFFAREL; CARVALHO, 2019, p. 88). 239 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Título da Obra Autor (a) Editora Ano Financiamento ou Contribuição institucional Ações afirmativas e combate Sales Augusto dos MEC/SECA Santos. D Educação como exercício de Osmar Fávero e SECAD diversidade. Timothy Denis ao racismo nas américas. 2004 SECAD/MEC 2004 MEC/ UNESCO Ireland (organizadores) Dimensões da inclusão no Maria Lúcia de Ensino Médio: mercado de Santana Braga, trabalho, religiosidade e educação quilombola. SECAD 2006 SECAD/MEC SECAD 2007 UNESCO SECAD 2008 SPM/PR Edileuza Penha de Sousa e Ana Flávia Magalhães Pinto (organizadoras). Acesso e permanência da Maria Auxiliadora população negra no ensino Lopes e Maria superior. Lúcia de Santana Braga (Organizadoras) Gênero na Andreia Barreto de Leila Araújo e SEPPI306R/PR professoras/es em Gênero, Maria Elisabete SECAD/MEC. Orientação Sexual e Relações Pereira escola: e diversidade formação Étnico-Raciais. História geral da África Vários autores 8 Volumes: I, II, III, IV, V, 2010 UNESCO UNESCO SECAD/MEC UFSCar. VI, VII e VIII 306 Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial (Seppir). 240 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ciganos documento Vários autores SECAD 2014 orientador para os sistemas SEPPIR e de ensino. Uma SNDH, MinC história do povo MEC SECAD 2001 SEF/MEC MEC SECAD 2005 SECAD/MEC Kalunga – livro do professor (2ª edição) e do aluno. Quilombo resistência espaço de de homens e REDEH mulheres negras. Estória Quilombolas. A Presença Indígena na Formação do Brasil. Formação de SECAD 2005 SECAD/MEC João Pacheco de SECAD 2006 SECAD/MEC Oliveira e Carlos UNESCO Augusto da Rocha LACED/Museu Freire Nacional307. MEC SECAD 2006 SECAD/MEC Minas de dos Quilombos. MEC SECAD 2010 SECAD/MEC Yoté: o jogo da nossa história. MEC SECAD 2010 SECAD/MEC O índio brasileiro: o que você MEC SECAD 2010 LACED/ UFRJ/ indígenas: professores MEC. repensando trajetórias. precisa saber sobre os povos Fundação Ford/ indígenas no Brasil de hoje. História dos Ciganos no UNESCO MEC SECADI 2014 SECAD/MEC Brasil Ciganos. 307 Projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil / LACED –– UFRJ. 241 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Superando o racismo na MEC SECAD 2001 SECAD/MEC Educação infantil, igualdade MEC SECAD 2005 SECAD/MEC MEC SECAD 2013 SECAD/MEC MEC SECADI 2014 SECAD/MEC escola. racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. Indicadores da Qualidade na Educação: Relações na Escola/Ação Educativa. História e cultura africana e Programa Brasil- afro-brasileira na educação África: Histórias infantil. Cruzadas, desenvolvido por meio da parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil e o Ministério da Educação Fonte: As autoras (2020). Consideramos que as obras bibliográficas e pedagógicas disponibilizadas pela Secadi foram e são importantes instrumentos para o trabalho do professor, elas devem auxiliar no fazer pedagógico, em diferentes disciplinas escolares. Os materiais são importantes, mas, sem formações para os/as docentes, os mesmos acabam, por vezes, sendo pouco utilizados. Por isso , cabe ressaltar que a Secadi foi também irradiadora de muitos projetos de formação continuada de professores em modalidade presencial e a distância, deste modo a sua extinção significa menos espaços institucionais de aperfeiçoamento para o trabalho docente e de luta 242 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X antirracista. Ainda assim, consideramos o acesso ao material, descrito neste estudo, como elemento fundamental de estímulo à leitura e à formação do professor. Considerações Observamos a Secadi como uma política educacional antirracista porque nos últimos anos vinha contribuindo com práticas de inclusão social; atuava de forma articulada entre os diferentes setores da sociedade de forma a integrar ações, saberes e esforços com o objetivo de enfrentamento dos problemas sociais e oferecer aos professores formações institucionais, conteúdos teóricos e materiais e estratégias pedagógicas de combate ao preconceito e discriminação racial Segundo Jakimi (2021, p. 122), a Secadi foi “[..], um marco histórico do ponto de vista da garantia do direito à educação para a diversidade já que passa, pela primeira vez, a reconhecer os sujeitos historicamente excluídos como titulares do direito à educação”. A extinção da Secadi é mais um meio de reforçar a injustiça social e cognitiva no Brasil, por meio do reforço ao apagamento institucional dos pensamentos, das práticas, das memórias e das diversas identidades culturais, no interior das escolas. É sabido que, historicamente, no Brasil, sem política afirmativa e governamental torna-se mais difícil ampliar as práticas pedagógicas de educação antirracista e a justiça social. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares para Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: 2004. Disponível em: . Acesso em: 11 jun .2020 __________.Decreto nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019. Seção 1. Diário Oficial da União. Brasília. DF, Ed: 1-, p. 6. jan . 2019. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/decreton-9-465-de-2-de-janeiro-de-2019-57633269?inheritRedirect=true. Acesso em: 21 jul. 2021. COQUEIRO, Edna Aparecida; GUELF, Wanirley Pedroso. A naturalização do preconceito racial no ambiente escolar: uma reflexão necessária. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência de Educação. O professor PDE e os desafios da escola pública paranaense: produção didático-pedagógica, 2008. 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A pesquisa adota a metodologia estatística e a análise de conteúdo como ferramentas de investigação das legislações educacionais que normatizam o ensino de História Local nos estados brasileiros. Deste modo, insere-se esta pesquisa no âmbito da História da Educação, procurando compreender as estruturas conceituais, pedagógicas e legislativas que fundamentam a normatização da História Local e a sua relação com o aprendizado. Palavras-chave: História da Educação; História Local; Ensino de História. Introdução O Brasil é um território de múltiplas expressões culturais, sociais, políticas e regionais que marcam distintos processos históricos. Nesse ambiente de multiplicidade e diferenças, a escola se torna um espaço que necessita reconhecer e valorizar a diversidade como o fundamento da vida social. O processo de ensino-aprendizagem, no entanto, apresenta um significativo conflito representativo em que as instituições escolares das variadas regiões brasileiras estruturam o seu cotidiano escolar a partir de determinações e normativas construídas por indivíduos e organizações que nunca estiveram ou vivenciaram os seus territórios. A História, as especificidades, os simbolismos locais e as relações com outros espaços são distanciadas da formação dos estudantes em prol de uma unidade que reafirma um conjunto de elementos que produzem um sentimento de pertencimento nacional. Essas ideações nos permitem levantar a problemática central desta pesquisa que, por sua vez, possibilita outras questionamentos correlatos. O ensino de História brasileiro 308 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC-UFRRJ). Graduado em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail de contato: prof.gabriel.costa.souza@gmail.com 245 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X experiencia um processo de desterritorialização? A História Local está presente nas legislações dos estados brasileiros? Que tipologia de localismo se constrói nessas normativas? Deste modo, esta pesquisa tem como objetivo central compreender o processo de territorialização e desterritorialização experienciado nos últimos trinta anos no aprendizado de História Local no Brasil. Nesse sentido, a investigação identificará o espaço da História Local nas legislações estaduais, analisará a concepção teórica, metodológica e conceitual do localismo nessas normativas, além de refletir sobre os objetivos pedagógicos mobilizados por essas leis para o aprendizado na temática. O mapeamento estatístico dos dados das legislações estaduais propiciará um original panorama do espaço da História Local nas normativas educacionais, relacionando a temporalidade e os objetivos engendrados para o letramento dos estudantes. Essa escolha metodológica é importante por evidenciar estatisticamente os territórios, dos estados e das regiões, que dedicaram um espaço ao localismo em suas determinações curriculares, ou seja, que tiveram a preocupação de legislar sobre o ensino de História Local. O ensino de História Local no Brasil: um mapeamento legislativo dos estados (1990-2019) A influência política nas diretrizes curriculares de História é uma das questões mais instigantes para compreender o poder que uma simplória disciplina escolar possui, além de mensurar as potencialidades políticas que determinados grupos enxergam nessa ferramenta formativa. A História é capaz de reconhecer, valorizar ou apagar e minorar, de produzir heróis e de apontar inimigos, de narrar vitórias ou evidenciar derrotas, de unir ou separar, em síntese, a formação histórica é um ambiente em que os discursos são os elementos constituidores da escrita, leitura e interpretação dos fatos. O interesse político sobre o processo de ensinoaprendizagem é destaque da investigação do professor-pesquisador Christian Laville: “A história é certamente a única disciplina escolar que recebe intervenções diretas dos altos dirigentes e a consideração ativa dos parlamentos. Isso mostra quão importante é ela para o poder” (1999, p. 130). No âmbito do território, o ensino da História Local/Regional figura como um importante instrumento de aproximação territorial dos estudantes com os aspectos temporais, geográficos, sociais e com os distintos processos históricos experienciados pelas comunidades, bairros, cidades, grupos sociais, aglomerados econômicos, enfim, a partir das inúmeras classificações que se modificam de acordo com o objeto a ser mediado e/ou pesquisado. Essa 246 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X potencialidade gera disputas e tensões com intuito de reforçar laços culturais, de intensificar diferenças territoriais, de apagar processos históricos, entre outros fatores que intensificam o interesse dos organismos legislativos locais. Ao apresentar um singular mapeamento das leis que regem o local/regional em todos estados brasileiros podemos mensurar em quais territórios se lançaram as bases de um ensino reconhecedor das particularidades locais, associados aos aspectos globais, além de identificar quais não os fizeram. Reconhecemos a amplitude das fontes que exige um árduo trabalho de leitura, mapeamento, identificação e catalogação das leis nos 27 repositórios institucionais da Assembleias Legislativas dos estados e do Distrito Federal. Com isso, fica impossível abarcar a extensão completa e pormenorizada dos resultados, mas ficará evidente um panorama territorial das legislações, uma análise estatística dos dados, um desenho temporal das normativas e, sobretudo, uma leitura crítica das finalidades dessas normas. As legislações educacionais produzidas nos legislativos são um terreno fértil para entrar no sentimento político que prepondera sobre determinado tema sem, necessariamente, um rigor técnico que as diretrizes curriculares ou orientações metodológicas advindas de estruturas da administração do poder executivo possuem. Com isso, essas leis são a oportunidade de se aproximar das demandas que as comunidades escolares expressam ou das representações sociopolíticas determinadas para essas necessidades. O professor-pesquisador Wenceslau Gonçalves Neto ressalta a dimensão política que uma legislação educacional carrega consigo deve reconhecer que estão “[...] carregadas do cotidiano da comunidade, pois suas análises, descrições, críticas ou propostas visam ao envolvimento e à busca de soluções para os problemas conjuntos dessa comunidade” (GONÇALVES NETO, 2001, p. 11). A leitura das legislações que determinam o ensino de História Local e Regional, imerso nesse ambiente, é uma oportunidade de compreender a concepção pública dotada a esse conjunto temático, além de observar a relação entre o movimento de territorialização, fundamentado numa percepção de distanciamento do local com as outras escalas, e o intenso processo de desterritorialização. O espaço da História Local nas legislações dos estados brasileiros é observado abaixo: Figura 1 – Legislações de História Local nos estados brasileiros (1990-2019) 247 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fonte: Elaborado pelo autor, 2021. Os resultados evidenciam que os estados de Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins, além do Distrito Federal, não possuem qualquer legislação, estruturada pelas suas respectivas Assembleias Legislativas, sobre o ensino de história local/regional. Por outro lado, o localismo/regionalismo logrou êxito em cristalizar-se em legislações de estados como Acre, Amapá, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pernambuco e Rondônia com uma lei, nos estados do Pará, Piauí e Roraima com duas legislações e, por fim, no estado do Paraná com três normativas. Esse mapa, no entanto, não pode ser compreendido como a expressão da realidade experienciada no cotidiano da sala de aula dado que é possível que uma instituição escolar de um estado sem legislação possua alguma atividade relacionado ao local/regional, bem como uma escola de uma unidade federativa com legislação pode não cumprir com a normativa. Com isso, é possível aferir em que territórios foram lançadas as bases do ensino de História Local, além de compreender que tipo de localismo esse aprendizado está assentado, ou seja, a estrutura legislativa educacional “[...] não corresponde à realidade da escola, mas pode ser uma interessante porta de entrada para a compreensão dessa importante categoria de análise na história da educação brasileira”. (GONÇALVES NETO, 2009, p. 70). Em uma observação estatística dos estados brasileiros podemos identificar que a maioria dos estados brasileiros, um conjunto significativo de 55%, não destinou empreendimento 248 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X político efetivo na aprovação de diretrizes para o ensino do local/regional. Em contraposição, 41% dos estados centraram discussões políticas que regimentaram, após o longo processo institucional de aprovação de leis, o local/regional em suas diretrizes educacionais. A regionalização dos dados indica uma multiplicidade territorial na institucionalização de legislações que regem o local/regional no ensino de história. Enquanto na região CentroOeste e na região Norte há uma diversificação do quantitativo de legislações pelos estados que possuem entre uma e duas legislações, na região Sul, Sudeste e Nordeste a maioria dos estados não possuem leis sobre o ensino de história local/regional, mas alguns estados apresentam legislações que variam entre uma e três normativas sobre a História Local. A institucionalização de legislações que demarcam as especificidades locais na maioria dos estados das regiões Centro-Oeste e Norte, como é possível observar no gráfico abaixo, demonstra uma preocupação em rememorar e valorizar os seus processos históricos em complementariedade aos direcionamentos do currículo nacional. Essa realidade pode ser resultado da centralização curricular em um padrão historiográfico e pedagógico que representa as regiões Sudeste e Sul, distanciando-se da realidade territorial centro-oestina e nortista. Figura 2 – Legislações de História Local nas regiões brasileiras (1990-2019) Fonte: Elaborado pelo autor, 2021. 249 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O destaque das particularidades locais em meio ao padrão nacional emerge, como destaca o excerto da obra da professora-pesquisadora Janaína Amado, como um mecanismo de reafirmação, de sentimento de representatividade e, sobretudo, de determinar a agência cultural, histórica e política do território em que se media o localismo. Com isso, a significativa quantidade de legislações que regimentam o local no ensino nas regiões Centro-Oeste e Norte representam uma resposta à lacuna representativa desses territórios no currículo nacional, além de se constituírem como uma oportunidade de os agentes locais influenciarem nas diretrizes curriculares. A obra República em Migalhas analisa os motivos da valorização do localismo e do regionalismo por determinados territórios: [...] o estudo regional oferece novas óticas de análise ao estudo de cunho nacional, podendo apresentar todas as questões fundamentais da História (como os movimentos sociais, a ação do Estado, as atividades econômicas, a identidade cultural, etc.) a partir de um ângulo de visão que faz aflorar o específico, o próprio, o particular. A historiografia nacional ressalta as semelhanças, a regional lida com as diferenças, a multiplicidade. A historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o concreto e o cotidiano, o ser humano historicamente determinado, de fazer ponte entre o individual e o social. (AMADO, 1990, pp.12-13). O recorte geográfico apontado na investigação é significativo por evidenciar uma preocupação legislativa na mediação do local/regional em determinadas regiões do país, como no Norte, e de, por outro lado, ressaltar que em alguns ambientes de intenso localismo, como em Minas Gerais e na região Nordeste, não ocorreu um empreendimento normativo do ensino de História Local/Regional. No entanto, é necessário avançar para além de um desenho geográfico das legislações e conectar o panorama legislativo com a realidade temporal das políticas públicas nacionais que influenciam essa temática na História. 250 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Figura 4 – Marca temporal das legislações de História Local Fonte: Elaborado pelo autor, 2021. O panorama temporal das legislações educacionais, centradas no local e regional, dialoga precisamente com as políticas públicas adotadas nacionalmente seja na organização das estruturas curriculares, seja nas políticas de inserção nas universidades públicas que influenciaram na importância dada ao localismo e o regionalismo pelos legislativos dos estados. Com isso, podemos definir dois ciclos que determinaram uma relação heterogênea em que o ensino de História Local seguiu de complemento ao padrão curricular nacional – com uma valorização e interesse para os legislativos estaduais – para um elemento restrito as formações iniciais do estudante – com a indiferença por não abarcar um grande quantitativo de alunos. O primeiro decênio, entre 1990 e 1999, remonta a nacionalização das diretrizes curriculares que regimentavam o ensino público brasileiro, porém esse período se destaca pela distinção entre o currículo nacional e a complementaridade com temáticas regionais indicada pela LDB e pelos PCNs. A intensa proposição e aprovação de leis do localismo e do regionalismo são evidências objetivas do cumprimento dos poderes legislativos estaduais com a legislação do sistema de ensino nacional a qual determinava que “os currículos [...] devem ter base nacional comum, a ser complementada [...] por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais” (BRASIL, 1996, p. 9). 251 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X As normativas nacionais autonomizaram os estados e municípios na elaboração de conteúdos associados às demandas locais, respeitando o multiculturalismo brasileiro, exigindo que dialogassem com os padrões estabelecidos pela legislação nacional (FIORAVANTE, 2018, p.7). Segundo a professora-pesquisadora Luciana Velloso (2012), esse processo se refere a uma recontextualização pedagógica em que as diretrizes nacionais são implementadas a partir das necessidades locais apropriando-se da infraestrutura, da formação do docente, dos êxitos e déficits dos estudantes, enfim, a matriz curricular passa a ser construída no cotidiano escolar. Esse padrão histórico-temporal expandiu sua importância no decênio seguinte, especificamente entre os anos de 2000 e 2009, que lograram nove legislações dedicadas ao local e ao regional no ensino de História. No entanto, o ano de 2009 marca uma ruptura com a complementariedade e cristaliza o movimento de nacionalização do ensino de História, como esteio da formação discente, com profundas alterações da política educacional em relação a transição do ensino médio para a educação universitária, cabe destacar dois programas essenciais para esse processo: o novo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Sistema de Seleção Unificado (SISU). O novo ENEM tinha por objetivo a nacionalização do processo de seleção dos estudantes, abandonando um sistema desintegrado e possibilitando uma democratização na concorrência, uma reforma nacional do ensino médio e a mobilidade dos estudantes pelas instituições inseridas na avaliação (LUZ; VELOSO, 2014). A produção de um exame com parâmetros, metodologias de avaliação e questões comuns aos múltiplos territórios no Brasil, no entanto, produziram um movimento de afastamento da mediação do local e do regional nas instituições escolares influenciadas pelas demandas dos estudantes e suas famílias. O artigo ‘O Enem e a subsunção do ensino de História do Amapá’ demonstra essa realidade do localismo e do regionalismo após 2009: O ensino de História Regional e/ou Local praticamente desapareceu das salas de aula e dos conteúdos repassados nos cursinhos pré-vestibulares. Isso ocorreu apesar de a LDBEN estabelecer [...] a matriz nacional, porém com uma parte dos conteúdos sendo escolhidos livremente pelas escolas. Esse programa de nacionalização do currículo escolar do Ensino Médio reflete uma série de mudanças que já vem ocorrendo desde o início dos anos 2000, 252 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X com diversas alterações ao longo dos anos, aprofundadas a partir de 2009. (BARBOSA, 2017, p. 192). O apagamento do local e do regional, como ressalta a professora-pesquisadora Júlia Barbosa, ficou marcante mesmo com as normativas federais que determinavam a complementariedade curricular. O Enem operacionalizou o Sisu que efetivava um sistema nacional das vagas das instituições que aderiram ao programa intensificando a constante mobilidade dos estudantes entre cidades e estados (LUZ; VELOSO, 2014). É evidente que essas políticas possibilitaram um avanço na simplificação do processo de seletivo das instituições acadêmicas, na democratização do acesso aos ambientes acadêmicos, na expansão da rede federal de educação superior, na unificação da educação em uma rede nacional com parâmetros de eficiência, enfim, trouxeram distintos benefícios. No entanto, essas políticas, influenciaram na importância dada ao localismo e ao regionalismo no sistema educativo e, consequentemente, nos parlamentos estaduais. Com isso, no último decênio em análise, entre os anos de 2010 e 2019, não tivemos nenhuma legislação sobre essa temática em todo o Brasil, evidenciando uma ruptura com a trajetória ascendente da primeira fase das políticas federais no âmbito da educação e, consequentemente, se relacionando com a nacionalização educacional intensificada a partir de 2009. Muitos poderiam observar esse panorama histórico-temporal e determinar que o Brasil experienciava um movimento de territorialização que rompe diante programas nacionais do sistema educativo. Essa percepção, no entanto, não dialoga com o fundamento das legislações que está em sua finalidade ou no que podemos definir como uma resposta política que se pretende dar a determinada questão educacional. Esse resultado nem sempre está fundamentado em diretrizes técnicas, metodológicas ou intelectuais do processo de ensino-aprendizagem pois partem majoritariamente de indivíduos sem formação no âmbito das licenciaturas. Com isso, ao observar as legislações podemos aferir que a maioria, especificamente 68%, compreende o local e o regional a partir da obrigatoriedade do ensino da História do Estado ou dos municípios, relacionando a territorialização ao enraizamento estanque do estudante aos processos históricos do seu entorno. 253 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Figura 5 – Objetivos das legislações de História Local dos estados brasileiros Fonte: Elaborado pelo autor, 2021. As finalidades engendradas pelas legislações para o ensino de História, como é possível observar acima, se restringem aos recortes locais e regionais. As normativas propostas compreendem o ensino do localismo e do regionalismo fundamentado em aspectos próximos aos estudantes e que, por ventura, possam ser incluídos nas estruturas de avaliação. A professora-pesquisadora Circe Bittencourt ressalta o fundamento do ensino de História Local e Regional: Não se trata, portanto, ao se proporem conteúdos escolares da história local, de entendê-los apenas na história do presente ou de determinado passado, mas de procurar identificar a dinâmica do lugar, as transformações do espaço, e articular esse processo às relações externas, a outros “lugares”. (2008, p. 172). O isolamento do local ou do regional, como se fossem elementos à parte dos processos históricos, no ensino e na aprendizagem é um elemento constituidor da desterritorialização que aliena a relação do estudante com o território. Com esse olhar, as normativas, propostas nas Assembleias Legislativas dos estados, homogeneízam o local e o regional contribuindo para o 254 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X processo de desterritorialização do ensino de história com a repartição do localismo do restante das escalas e, sobretudo, com a não correlação histórica existente entre o local, o regional, o nacional e o global. É significativo observar essa realidade nessas leis já que possuem um discurso de reafirmação histórico-regional e, consequentemente, de uma suposta territorialização do ensino que enraizasse os estudantes em suas comunidades. As legislações, observadas em uma lente estatística, evidenciam um movimento de territorialização em que o local e o regional são valorizadas por determinado conjunto de estados. No entanto, essas normativas fragilizam a ideia do local ou do regional, restringindo o ensino aos recortes concretos e eliminando a complexificação das escalas que a História evidentemente constrói em sua constante relação pluriterritorial. A necessidade de correlacionar escalas para dotar o território de significado é tema em análise da obra O mito da desterritorialização: Hoje, poderíamos afirmar, a “experiência integrada” do espaço (mas nunca “total”, como na antiga conjugação íntima entre o espaço econômico, político e cultural num espaço contínuo e relativamente bem delimitado) é possível somente se estivermos articulados (em rede) através de múltiplas escalas, que muitas vezes se estendem do local ao global. Não há território sem uma estruturação em rede que conecta diferentes pontos ou áreas. (HAESBAERT, 2004, p. 79) Inexiste, como podemos ver na exposição do professor-pesquisador Rogério Haesbaert, um território isolado, inerte e cristalizado nos mais distintos espaços e tempos, ou seja, o território é, por natureza, uma estrutura das relações que não necessariamente são geográficas, podendo apresentar uma relação simbólica, cultural, entre outras. Pensando nisso, todas as legislações que, à primeira vista, são mobilizadores do movimento de aproximação, enraizamento e territorialização acabam por desaproximar, desenraizar e desterritorializar por não compreender a multiplicidade do território e, por consequência imediata, produzir um espaço dotado de significado artificial que mimetiza nomes, datas e lugares. As legislações educacionais sobre o local e o regional na História no Brasil, portanto, apresentam duas faces de uma mesma moeda. O movimento de territorialização, ao isolar o localismo e o regionalismo, passou a ser um catalizador do processo de desterritorialização em 255 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X que o estudante, em seu aprendizado, reafirma as particularidades e não as correlaciona com as universalidades. O territorializar, quando realizado sem os fundamentos técnicos e metodológicos das investigações sobre o ensino de História, produz a desterritorialização, padroniza a História como um produto de recortes e, sobretudo, afasta a realidade múltipla de um ensino de singularidades. Conclusão Ao longo dessa pesquisa foi possível compreender o complexo processo de territorialização e desterritorialização que o ensino de História Local tem experienciado nos últimos trinta anos na educação brasileira. Esse movimento ocorre a partir da desconexão entre as distintas etapas do processo de concepção teórica, normatização legislativa e mediação da temática no sistema educativo. Essa definição cristalizada do localismo é a compreensão mais difundida no âmbito da História como disciplina escolar, bem como está presente nos documentos que estruturam os currículos. A documentação, presente no mapeamento das legislações que regimentam a História Local nos estados brasileiros, evidenciou os fundamentos engendrados para a mediação do localismo, bem como a percepção conceitual das normativas. Uma observação preliminar determinaria que o ensino de História brasileiro vivencia, de alguma forma, um processo de territorialização que se distancia da nacionalização curricular do sistema educativo e, consequentemente, haveria um processo de aproximação, enraizamento e territorialização. A análise discursiva das legislações estaduais, entretanto, evidenciou que as fundamentações das normativas estruturavam objetivos de aprendizado e concepções teórico-metodológicas para a História Local que propiciavam um movimento de desterritorialização do ensino do localismo. Refletir sobre a (des)territorialização é, necessariamente, refletir sobre os currículos, as legislações, a autonomia docente, as concepções teóricas, o território, enfim, um integrado modelo educacional consciente, crítico e constantemente reavaliado para reconhecer as multiplicidades que o cercam. A História Local é uma oportunidade de repensar toda a estrutura de ensino para conhecer, reconhecer, valorizar e dinamizar a o aprendizado do estudante mobilizando uma consciência multiterritorial hábil em correlacionar suas particularidades com as universalidades. 256 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ao final deste percurso, é possível observar que o ensino de História vivencia um processo de desterritorialização em que o localismo não está presente na maior parte dos estados brasileiros. Um conjunto expressivo dos estados, especificamente 55%, não estruturou nenhuma ação política legislativa de inserção da temática nos currículos ou em outros espaços institucionais relacionados ao ambiente educacional. Os estados que apresentam legislações que instituem e regimentam a História Local se fundamentam em padrões metodológicos e pedagógicos que limitam o processo de ensinoaprendizagem dos estudantes. Essas normativas produzem uma lógica cartográfica da temática em que a memorização de datas, nomes e lugares figura como o fundamento da formação, abandonando as potencialidades históricas da História Local. Essas legislações que auxiliariam na territorialização, aproximação e no aprendizado crítico tornaram-se instrumentos da desterritorialização em que os estudantes são posicionados em processos históricos isolados, artificiais e concretos em uma lógica de aprendizado desconectado da multiplicidade que constrói significado aos territórios ocupados pela sociedade. A complexidade do localismo exige o reconhecimento das disputas, tensões e correlações da economia, da geografia, da natureza, do simbolismo, da sociedade, da cultura, enfim, das múltiplas dimensões que cercam o ambiente histórico da instituição escolar. O localismo é uma ferramenta de multiterritorialização que compreende que a História não é produto isolado, inerte ou à parte dos conjuntos globais, mas que os processos são construídos por muitos nomes, lugares e momentos. A multiterritorialidade é a resposta metodológica, conceitual e pedagógica para a desconstituir a desterritorialização do ensino de História. É necessário mobilizar um aprendizado consciente das múltiplas dimensões do território, construindo uma visão heterogênea e dinâmica sobre a História Local a partir das ferramentas que dão significado ao ambiente escolar: a autonomia docente, a valorização dos territórios escolares, a produção de currículos conectados à multiterritorialidade e, sobretudo, a relação entre a pesquisa, legislação e prática pedagógica. Referências bibliográficas AMADO, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos A. (coord.). República em migalhas: História regional e local. 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A Dissertação sobre os pontos controvertidos da historia do Brasil defendida pelo referido sacerdote, quando candidato ao cargo de docente da instituição, nos fornece pistas sobre a cultura literária e escolar da época, as preferências teóricas do autor, e os saberes que circulavam na formação discente no Liceu Alagoano da primeira metade do século XX. Nesse sentido, a pesquisa apontou que a escrita de Valente era coerente com as discussões encontradas nos compêndios e manuais didáticos da época. Estes, por sua vez, estavam associados à construção da identidade nacional, a partir, principalmente, do culto aos heróis. Esse tipo de “nacionalismo de direita”, como ficou conhecido, estava voltado para a manutenção dos projetos das elites, de seu poder e privilégios. Para identificarmos a finalidade do ensino de história nos apropriamos das obras de Bittencourt (2004; 2005) e Abud (2006). Palavras-chave: Cônego Valente; Ensino de história; Liceu Alagoano. Inserindo o homem no seu tempo e lugar: o percurso do cônego Valente Antônio José de Cerqueira Valente era filho de Arnóbio Monteiro de Cerqueira Valente e Leopoldina America da Costa Valente e nasceu na cidade do Pilar, em Alagoas, no dia 19 de abril de 1888. De acordo com Soares (1981), nessa cidade cursou as primeiras letras na escola do professor Antônio Florêncio, na rua do Pará; e concluiu o curso primário com monsenhor Francisco Maria, Vigário do Pilar. Coroinha da Matriz, desde cedo foi encaminhado para o sacerdócio. Para abraçar esta vocação, ingressou no antigo Seminário de Alagoas, em 1902. Conforme Soares (1981, p. 4), por ser de família com poucos recursos financeiros, sua pensão para ingresso na instituição, foi 309 Professor CEDU/UFAL. Doutor em Educação PPGE/UFPB. 259 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X paga por uma tia, e sua roupa “[...] seguia em um bauzinho, na lancha do Pilar, para ser lavada em casa dos pais, porque não podia pagar o lavado em Maceió [...]”. No Curso de Humanidades, o seminarista Antônio Valente foi aprovado com distinção em História Universal e História do Brasil. O mesmo ocorreu nos cursos superiores de Filosofia e de Teologia, tendo sido aprovado também com louvor em Teologia Moral, Teologia Pastoral e Direito Canônico (SOARES, 1981). Após concluir seus estudos, foi ordenado padre em 12 de novembro de 1911, por D. Manoel Antônio de Oliveira Lopes, segundo bispo de Alagoas e primeiro arcebispo de Maceió (1911-1923). Depois de ordenado, o padre Antônio Valente passou a exercer funções ministeriais como coadjutor da Paróquia de Viçosa (AL), que também englobava Chã Preta e Mar Vermelho. Em 1913, foi transferido para a capital para exercer seu ministério na Capelania do Bomfim, no atual bairro do Poço, e posteriormente na Igreja Nossa Senhora do Rosário310. Para a divulgação do pensamento católico, que receava o avanço das ideias liberais e comunistas no país, em 02 de março de 1913, com a colaboração do monsenhor Luis Carlos de Oliveira Barbosa e do cônego Franklin Casado de Lima, Valente fundou o jornal da arquidiocese, O Semeador. A fundação e direção de O Semeador representavam uma de “suas maiores glórias”, como menciona o Arcebispo Coadjutor de Maceió, D. Adelmo Machado, em discurso proferido pelas bodas de ouro de sacerdote de Valente, em novembro de 1961311. Nesse periódico, ele fazia um jornalismo calcado nos ideais pelos quais fez defesa a vida inteira. Medeiros (2007), atesta que o fato de O Semeador ter uma periodicidade diária era motivo de orgulho para a Arquidiocese de Maceió, que possuía o primeiro diário católico do país. Vasconcelos (1962), também chama a atenção para o fato de o periódico ser o diário católico mais antigo do Brasil. Por isso, sempre que ocorria alguma comemoração pelo aniversário do jornal esse feito era lembrado, como ocorreu em 1968, pelos 55 anos do periódico: “Ao tempo que tantas negativas de diários católicos surgiram no Brasil, ‘O Semeador’ foi o primeiro, na ordem do tempo, diário católico brasileiro e foi um dos poucos (três ou quatro) que conseguiram viver até hoje”312. No referido ano, por ocasião da morte de Valente, seu diretor-fundador, foi o último de circulação diária do jornal, que posteriormente 310 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 16 (1965-1968). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 64v. 311 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 15 (1961-1964). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 36. 312 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 16 (1965-1968). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 64v, apud MEDEIROS, 2007, p. 106. 260 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X foi reativado passando a ter publicação semanal313. Tal fato nos faz refletir que O Semeador era mantido pela dedicação e obstinação de monsenhor Valente, que tinha ciência do papel de persuasão da imprensa escrita à época. Em 1917 Valente foi transferido da Igreja Nossa Senhora do Rosário para a Paróquia da Catedral Diocesana. Como vigário de Maceió, ele fundou na Igreja Catedral de Nossa Senhora dos Prazeres várias instituições religiosas, destacando-se a Associação de Santa Zita, que tinha por finalidade prestar assistência às empregadas domésticas314 e a Escola Dom Bosco, noturna e gratuita, para crianças pobres. Quando iniciou sua gestão de pároco, a Catedral estava em ruínas, por isso monsenhor Valente realizou várias obras na igreja Matriz da cidade: “[...] nesse período, a Catedral se enriqueceu de majestosa escadaria, de um grande e artístico altarmor, de vários altares laterais, de um grande salão paroquial floriram as associações religiosas”315. Nessa igreja serviu durante mais de cinquenta anos, de 1917 a 1968. De acordo com Vasconcelos (1962, p. 30): Mons. Valente, pela sua cultura e tenacidade, promove a renovação dos quadros das associações, funda novos órgãos de assistência educacional e social, e cria, nas funções sagradas, êsse ambiente de serenidade e de recolhimento que tanto distingue a vida litúrgica da Catedral. O Cônego Capitular da Igreja Catedral foi ainda assistente da Ação Católica316, cuja atuação marcou o governo de D. Ranulpho da Silva Farias (1939-1948), instituindo-a em Alagoas. Vasconcelos (1962, p. 33) atesta que a primeira semana da Ação Católica em Maceió ocorreu em 1943, contando com a presença do bispo de Garanhuns, D. Mário de Miranda Vilas Boas, e a segunda em 1944, presidida por D. José Delgado. Conforme O Semeador: A Acção Catholica é a organização que fará voltar a christandade toda a humanidade. Ela poderá intervir indirectamente, semeando doutrinas, 313 Atualmente O Semeador tem periodicidade quinzenal. 314 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 16 (1965-1968). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 65. 315 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 15 (1961-1964). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 36v-37. Palavras de D. Adelmo Machado, em discurso proferido pelas bodas de ouro do sacerdote Valente, em novembro de 1961. 316 Movimento de apostolado, criado pela Igreja Católica no século XX, visando ampliar sua influência social, através da inclusão de setores específicos do laicato e do fortalecimento da fé religiosa, com base na Doutrina Social da Igreja. Em Alagoas, foi fundada por Dom Ranulpho da Silva Farias, 3º Arcebispo de Maceió, implantado nos diversos setores da sociedade alagoana. 261 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X defendendo os direitos dos pobres, formando a consciência catholica, educando religiosamente a consciência do cidadão, para que saiba cumprir seus deveres. Directamente, defendendo os interesses de Deus sempre que estiverem em jogo (O Semeador, Maceió, 1º de agosto de 1934, p. 01). Apesar de ter tido sua origem a partir do avanço e da ameaça comunista, a Ação Católica foi de fundamental importância para pôr em discussão graves questões sociais. As disparidades entre ricos e pobres, sobretudo no campo, tornaram-se alvo de análise e crítica por parte dos clérigos, que passavam a enxergar as necessidades dos mais pobres, como “[...] bem o comprovam a realização de diversos encontros de bispos, como o do vale do São Francisco e os encontros dos bispos do Nordeste e, no caso particular de Arquidiocese de Maceió, a realização das Semanas Ruralistas, a educação de base, a rádio educação, o sindicalismo rural [...]” (MEDEIROS, 2007, p. 103). O pensamento católico entendia que era necessário resolver esses graves problemas sociais, antes que o comunismo o fizesse. O religioso também era sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Nessa instituição, tomou posse no dia 11 de setembro de 1923317. Como membro da diretoria, atuou no cargo de suplente de secretário (1922-1923), Secretário Adjunto (1925-1927) e 2º Vice-Presidente (1929-1931)318. Foi também redator da Revista do Instituto, formando comissão juntamente com Craveiro Costa e Amphilophio Mello. Entre 1941 e 1949 participou da comissão de história, composta ainda por José Guedes Ribeiro Lins, Carlos Cavalcante de Gusmão, e posteriormente Manuel Diégues Júnior, Luiz Lavenère e Théo Brandão. Durante 19 anos, Valente lecionou Teologia Dogmática e Direito Canônico no Seminário Arquidiocesano de Maceió. E ao lado de Gabriel Mousinho, em Olinda, Angelo Sampaio, em Petrolina, monsenhor Tapajós, no Rio de Janeiro e Manoel Pedro Cintra, em São Paulo, o Vigário de Maceió tornou-se uma das maiores autoridades brasileiras na área do Direito Canônico (SOARES, 1981). Atuando no Liceu Alagoano, Valente foi professor catedrático de História do Brasil319, sendo nomeado por concurso em 18 de abril de 1929 e aposentando-se em 20 de fevereiro de 317 Acta da Sessão de 11 de setembro de 1823. 318 IHGAL, 2008. 319 Valente foi aprovado para a cadeira História e Corografia do Brasil, porém pelo Decreto nº 1293, de 21 de fevereiro de 1929, Corografia foi anexada à cadeira de Geografia. 262 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 1952320. Conforme Duarte (1961, p. 217-218), Valente assumiu ainda a 2ª cadeira de História da Civilização, criada pelo Decreto nº 1783, de 31 de maio de 1933, e retornou à cadeira de História do Brasil, quando restaurada em 1941. Foi também professor interino de Latim, no ano de 1932, além de diretor da instituição por duas rápidas oportunidades. Na primeira passagem entre outubro e novembro de 1931, sendo exonerado a pedido; e na segunda oportunidade entre março e maio de 1933. Essas funções eram tidas com muito orgulho pelo monsenhor, tanto que sempre eram lembradas nos discursos de homenagens que lhes eram feitas, como por ocasião dos seus cinquenta anos de sacerdócio e do seu falecimento. Afinal, ser professor do Liceu Alagoano era um privilégio e motivo de grande satisfação para os intelectuais da época. Vítima de um derrame cerebral em viagem ao Recife, monsenhor Antônio Valente faleceu no dia 04 de dezembro de 1968, aos 80 anos de idade, no hospital do Câncer de Maceió, sendo sepultado no Cemitério Nossa Senhora da Piedade. Consideramos indispensável traçar esse percurso para melhor compreensão do objeto deste trabalho. Segundo Certeau (1982), quando um autor escreve uma obra, o faz em função do seu grupo ou da instituição a qual pertence. Por isso, é importante nos darmos conta do lugar social-econômico, político e cultural de onde escreve o autor. Assim, é possível se ficar mais atento para captar as “leis silenciosas” nas produções historiográficas com as quais lidamos como fonte de nossa pesquisa: [...] Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas “científicas” e de uma escrita. Essa análise das premissas, das quais o discurso não fala, permitirá dar contornos precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto [...] (CERTEAU, 1982, p. 66). Feito esse percurso, que nos possibilitou compreender o lugar sociocultural, políticoeconômico e religioso do cônego Valente, examinaremos, a seguir, a tese Dissertação sobre os pontos controvertidos da historia do Brasil, que o religioso defendeu para ingresso como lente no Liceu Alagoano. 320 É justamente o período em que ele foi professor do Liceu Alagoano que demarcar o espaço temporal da pesquisa. 263 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A Dissertação sobre os pontos controvertidos da história do Brasil e suas configurações para o ensino da História do Brasil colonial Como ponto escolhido para concurso de professor catedrático, Valente defendeu, em 15 de abril de 1929, junto à egrégia Congregação do Liceu Alagoano, a tese denominada Dissertação sobre os pontos controvertidos da historia do Brasil, dividida em duas partes. Na primeira, o professor-autor busca discutir versões a respeito da chegada dos europeus em terras Pindorama321, defendendo, entretanto, a primazia da esquadra cabralina. Na segunda, analisa a atuação dos membros da Companhia de Jesus no Brasil. A primeira controvérsia que o autor questiona é a reivindicação de Pernambuco que os espanhóis teriam chegado às terras pernambucanas antes da esquadra cabralina aportar em Porto Seguro, na Bahia. De acordo com os historiadores do Instituto Archeologico de Pernambuco, o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón, companheiro de Colombo, teria alcançado a costa brasileira em 26 de janeiro de 1500, desembarcando num cabo que denominou Santa Maria de la Consolación, posteriormente nomeado Cabo de Santo Agostinho. Ainda segundo os pernambucanos, Pinzón teria seguido viagem e, em fevereiro, alcançado a foz do rio Amazonas, que chamou de Mar Dulce (1928, p. 6). 321 Designação dada ao Brasil pelas populações dos Andes e dos pampas (FERREIRA, 2004). 264 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Imagem 1 – Capa de Dissertação sobre os pontos controvertidos da historia do Brasil (1928) Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Conforme essa teoria existiria igualmente a possibilidade do também navegador espanhol Diego de Lepe ter circundado a costa brasileira em fevereiro e março de 1500. Assim, outros europeus teriam chegado ao Brasil, pelo menos três meses antes do português Pedro Álvares Cabral ancorar em Porto Seguro, na Bahia, em 22 de abril do mesmo ano, conforme narra a maior parte das obras oficiais de história do Brasil322. 322 Vale lembrar que em sua obra História da civilização das alagoas (1962), Altavila defende que a esquadra de Cabral aportou no Pontal de Cururipe, em Alagoas. 265 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Diante dessas afirmações e rejeitando tais possibilidades, Valente se coloca como defensor da tese que Cabral foi o primeiro europeu a chegar ao Brasil. Para defender que o “descobrimento” do Brasil teria se dado em terras baianas, baseia-se em autores como o filósofo e historiador norte-americano Edmund Fisk Green (de pseudônimo John Fiske), o geógrafo português Carlos Viegas Gago Coutinho e o historiador lusitano Duarte Leite Pereira da Silva. E assim, utilizando-se dos argumentos geográficos, astronômicos e históricos de tais autores atesta que Pinzón teria pisado na verdade a costa da Guiana Francesa (1928, p. 8). Assim o professor-autor confirmou “[...] o primado de Cabral entre os navegadores que attingiram as costas do Brasil [...]” (1928, p. 12). Não nos foi possível captar o motivo que levou Valente a fazer a reflexão exposta, uma vez que era tema de livre escolha. Contudo, supomos que havia realmente um grande debate à época sobre tais questões. Entretanto, o cônego incorpora a ideia de que a “[...] nação brasileira era uma dádiva da Europa, de um Portugal famoso nos séculos XVI e XVII [...]” (BITTENCOURT, 2005, p. 194). Esse tipo de visão, que concebe a História como genealogia da nação, era comum junto aos historiadores do IHGB e constava em alguns compêndios de História do Brasil, a exemplo das Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo. Nessa concepção [...] prevalecia a idéia de que a identidade nacional deveria sempre estar calcada na Europa – o “berço da Nação” – e de que a história nacional havia surgido naquele espaço. Esse ideário explica a razão de os estudos da História do Brasil começarem fora do espaço nacional. O Brasil nasce em Portugal e é fruto de sua expansão marítima. O povo brasileiro, constituído de mestiços, negros e índios, continuava alijado da memória histórica escolar e da galeria dos heróis fundadores e organizadores do Estado-nação (BITTENCOURT, 2004, p. 81). A segunda parte da tese é destinada a fazer a defesa dos jesuítas, considerados por ele como injustiçados com a “anti-propaganda e as calúnias” lançadas pelo Ministro português Marquês de Pombal. Para o autor, a Companhia foi injustamente criticada, uma vez que foram “[...] os grandes operários, os immortaes construtores da nossa nacionalidade” (1928, p. 13). No período compreendido entre 1549 e 1759, o ensino, sobretudo de Humanidades, esteve quase que exclusivamente sob a tutela dos inacianos. A ação dessa congregação teve um 266 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X efeito profundo na formação do povo brasileiro. Contudo, embora gratuito, o ensino oferecido pela Companhia era destinado aos filhos das elites, que se preparavam para o ingresso na Universidade de Coimbra. Salientamos que o atendimento a esse grupo evitou o investimento na escola de primeiras letras para a população. A exposição de Valente a respeito dos jesuítas está pautada em três principais ações de construção da nação. A primeira, do ponto de vista físico-geográfico, pela qual eles formaram “[...] os primeiros nucleos, as primeiras habitações, as primeiras vilas do Brasil, dando aqui, ali normas e feições de vida collectiva” (1928, p. 13). Não é demais lembrar que muitas cidades brasileiras foram edificadas a partir das missões jesuíticas, a exemplo de Piratininga (SP), Salvador, Vitória, dentre outras. O segundo tema apresentado pelo autor diz respeito à construção da religiosidade brasileira. Nesse sentido, eles catequizaram o gentio lhes ensinando os primeiros rudimentos da fé cristã (1928, p. 13). A terceira linha de pensamento aponta para a ação educacional, pois “grandes educadores, os jesuítas espalharam escolas primarias por todas as capitanias e edificaram institutos de ensino superior nas principaes cidades do Brasil, tornando-se os pioneiros da litteratura nacional” (1928, p. 15). Dessa forma, o professor-autor considera que os inacianos despertaram na nação brasileira os sentimentos de patriotismo e conservaram a unidade nacional, inclusive ajudando na expulsão dos “estrangeiros”. Essa ação se deu na formação de uma tríade, que unia o país numa única língua, pela formação intelectual, numa mesma fé, pela catequização e “civilização” dos indígenas e numa particular arquitetura, pela construção de vilas, povoados e estradas. Os programas para o ensino de História do Brasil destacavam a importância dos padres da Companhia de Jesus e de outras ordens religiosas católicas no período colonial, especialmente em se tratando das suas obras em favor da manutenção da integridade nacional. Segundo Abud (2006, p. 38), os programas de 1931 determinavam o seguinte: [...] conteúdos para a 4ª série do curso secundário: “A transmissão da cultura européia: início da literatura e da arte brasileiras. A Igreja no Brasil: sua organização e influência; a visitação do Santo Ofício e a Inquisição”. “Os jesuítas e a catequese” era a sexta unidade do programa de História do Brasil para a 4ª série, elaborado em 1940. 267 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ao afirmar que os jesuítas foram os grandes construtores da nação Valente aproxima-se da versão proposta por outros autores. Silva (1959, p. 202), por exemplo, afirma que eles “[...] chegaram a formar todos, ou quase todos que, no Brasil dos séculos XVI a XVIII, tiveram algum nome nas letras, nas ciências, nas artes, na política [...]”. Ainda segundo Silva (1959), é falsa a crítica de que os que estudaram com os inacianos não se destacaram nas ciências, a não ser que reneguem sua formação inicial, a exemplo de Descartes. Assim, os inacianos – para o bem ou para o mal – foram os grandes formadores de uma elite intelectual no período colonial, haja visto que por meio do seu ensino chegava a cultura clássica aos homens ilustres da época. Tal entendimento se aproxima das suposições de Certeau (1982), em A escrita da história, ao abordar o sistema religioso dos séculos XVII-XVIII, sobre o qual ressalta que a Igreja Católica passava a se amparar pelo jargão de que “não existe fé sem obras”. Para o autor francês, os jesuítas foram os principais introdutores da civilidade, da honestidade, do dever de estado e da honra, ao cuidarem de organizar tarefas no terreno das práticas civis e políticas. As edificações erguidas por eles ilustram esse propósito, ao tomarem o lugar do estado no cuidado de salvaguardar a moral e o corpo dos representantes da escória social. Pois bem, é na defesa desses “obreiros da nacionalidade brasileira”, que foram expulsos, perseguidos e caluniados pelo Marquês de Pombal (1928, p. 15), “aqueles a quem a história começa a fazer justiça”, que o Cônego Valente se coloca. Para isso, busca embasamento em dois eventos de história ocorridos no Rio de Janeiro. Inicialmente cita a moção de apoio aos inacianos, feita no Primeiro Congresso de História Nacional (1914), por ocasião do centenário do restabelecimento da Companhia, concedida pelo Papa Pio VII em 1814. Assim se manifestaram os congressistas: Considerando que o nome da Companhia de Jesus se acha indissoluvelmente ligado á História do Brasil e de modo tão estreito, que relembrar os seus factos é assignalar ao mesmo tempo os extraordinários serviços que na tríplice missão humanitária, política e social realisaram os Jesuitas no paiz durante mais de dois seculos; evangelizando as tribus selvagens, salvaguardando o principio da moralidade em face da corrupção e execrável cubiça dos colonos, alimentando a chama do patriotismo que repeliu as invasões extrangeiras, concorrendo efficazmente para a conservação da unidade e integridade da Nação, e diffundindo por toda a parte a cultura intellectual que preparou o surto brilhante na nossa litteratura; 2º Considerando que escriptores Jesuitas 268 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X foram dos primeiros que colaboraram com as descripções chorographicas, as biographias e as chronicas monásticas, os elementos primordiaes em que se baseia o estudo da geographia, da historia e da ethnographia do Brasil; 3º Considerando que a commemoração de todos esses grandes feitos tem lugar precisamente no anno do centenario do restabelecimento e rehabilitação da Companhia de Jesus pelo decreto do Summo Pontifice – Pio VII (7 Agosto de 1814); Resolve consignar na acta de sua ultima sessão plena, um voto de contentamento pela recordação desse acto de justiça que “solemne e juridicamente restituiu ao seu primeiro ser” a ilustre Sociedade a quem deve o Brasil tão denodados e eficazes obreiros da sua grandeza e da sua civilização (1928, p.17-18). A segunda manifestação ocorreu no Primeiro Congresso Internacional de História da América (1922), na qual os historiadores reconheceram o caráter humanitário, civil, político e científico das missões jesuíticas em toda a América Latina. Segundo Valente (1928, p. 19): Resolve, a exemplo do que fez, em 1914, o 1º Congresso de História Nacional, recordar na acta da sua primeira sessão plena, entre innumeros outros, os nomes imperecíveis de Manoel da Nobrega [...] para render a esses heróes um tributo da mais alta veneração e reconhecimento – e faz votos para que todos os povos do continente, cada vez mais unidos, se mantenham na defesa e acrescentamento do precioso legado de civilização, que receberam, e se pode synthetizar no inquebrantável respeito á liberdade humana, ainda mesmo daquelles que, na apparencia, se diriam menos dignos della, no espirito de abnegação e sacrificio, indispensavel a consecução dos grandes problemas, no culto desinteressado das sciencias, das lettras e das artes [...]. É consenso na historiografia da educação que não se pode falar de escolarização, especialmente no período colonial, sem mencionar a intensa ação dos jesuítas nas diversas regiões do país. De formação ilustrada e com sua metodologia baseada na Ratio Studiorium, os inacianos tinham como projeto o letramento da população e a catequização dos indígenas, deixando sua marca na formação do povo brasileiro com ações pautadas na escola. Assim, em que pese o caráter apologético da tese de Valente, não podemos negar o papel significativo que 269 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X a Companhia de Jesus teve na formação cultural, social e religiosa do povo brasileiro, especialmente porque eles passavam a reafirmar valores relacionados à família, ao civismo, à nação, à ordem e a conformação social. Considerações finais Não se pode negar a ação religiosa e educacional exercida pelo cônego Valente na sociedade maceioense, seja como sacerdote, atuando na Catedral de Maceió; jornalista, criando e dirigindo o jornal da Arquidiocese, O Semeador; membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas; ou professor, do Liceu Alagoano e do Seminário Arquidiocesano. Suas palavras e escritos tiveram um papel significativo na formação cultural, social e religiosa das elites alagoanas. Ao que constatamos, monsenhor Valente buscou se utilizar dos espaços sociais, disputando com a elite intelectual local os lugares de atuação política para difundir os valores do cristianismo católico. Entretanto, não se limitou à atuação enquanto religioso. Por diversos meios expandiu seu campo de formação junto aos meios educacional, cultural e social. Dessa forma, independentemente do juízo que se faça, suas ações estavam imbricadas social e historicamente, determinando e sendo determinado naquele contexto educacional. Nesse sentido, lembramos que a historia é uma experiência humana contraditória, não tem um único sentido ou significado, não é linear, não é homogênea, ela pode gerar várias interpretações. Portanto, devemos evitar a velha tentação de dividir os humanos em bons e maus, especialmente quando escolhemos um estudo sobre um sujeito que aos olhos de hoje pode ser caracterizado como um conservador. Longe de ser um revolucionário, Valente foi um homem do seu tempo e lugar, e como tal, enxergava o mundo por uma determinada lente. Como vimos, o professor-autor obedece a uma escrita própria de seu grupo social, em defesa do lugar da Igreja, e tenta fazer isto habilmente ao elaborar uma narrativa coerente do ponto de vista dos argumentos. Imerso numa concepção de história a qual privilegia os heróis da pátria, o sacerdote alagoano se põe numa escrita em defesa dos portugueses e dos jesuítas. Desse modo, o critério de neutralidade requerido por uma versão positivista da história não se manifesta nas entrelinhas daquela escrita. O fato de Valente ser um clérigo demarca seu lugar de escrita, como nos lembra Certeau, pela defesa permanente dos interesses da Igreja Católica. Pelo que pudemos constatar, Valente escreve sua tese baseada no “heroísmo” de dois grupos fundamentais para a construção da nação: primeiramente, os representantes do poder 270 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X institucional, que dominaram a Colônia; e segundo, os representantes do poder eclesiástico, “[...] notadamente os jesuítas, que se encarregavam de civilizar os indígenas antropófagos e selvagens” (BITTENCOURT, 2005, p. 194). Não é demais lembrar que esse tipo de ponderação, na qual se insere as reflexões do professor-autor pesquisado, “[...] eram apresentadas de forma altamente positiva pelos programas e textos didáticos [...]” (ABUD, 2006, p. 38). Assim, a escrita de Valente é coerente com as propostas dos compêndios, manuais e programas didáticos de sua época. É possível que, mesmo eventualmente ou seguindo o programa oficial nas suas aulas de História do Brasil no Liceu Alagoano, as lições tivessem relação com as temáticas da tese. Desse modo, não é difícil imaginar a exposição do professor cônego Valente, imerso nas reflexões relacionadas ao “Descobrimento” e aos Jesuítas. Em relação aos saberes que circulavam na formação dos discentes do Liceu Alagoano, a partir das teses do cônego Valente, consideramos que eles passavam a reafirmar valores relacionados à construção e constituição da identidade nacional, como fazia a maior parte dos intelectuais à época. Além disso, a escrita do professor era marcada pela ideia de pacificação e conformação social, as quais, embora, de certa forma, fossem oriundas de propósitos do catolicismo, não ficavam a dever àqueles pleiteados pelos ideólogos da República Brasileira. Referências ABUD, Katia. Currículos de história e políticas públicas: os programas de história do Brasil na escola secundária. In: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo, SP: Contexto, 2006. Acta da Sessão de 11 de setembro de 1823. In: Revista do Instituto Archeologico e Geographico Alagoano. Ano LVI, Vol XIII. Maceió: Officinas graphicas da Livraria Machado, 1928, p. 300-301. ALTAVILA, Jayme. História da civilização das alagoas. Maceió: Departamento Estadual de Cultura, 1962. Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 15 (1961-1964). Arquivo da Arquidiocese de Maceió. Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 16 (1965-1968). Arquivo da Arquidiocese de Maceió. 271 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Conteúdos e métodos de ensino de História: breve abordagem histórica. In: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. ________. Identidade nacional e ensino de história no Brasil. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 65-119. DUARTE, Abelardo. História do Liceu Alagoano. Maceió: Departamento Estadual de Cultura, 1961. IHGAL. Dados históricos. Maceió, 2008. MEDEIROS, Fernando Antônio Mesquita de. O homo inimicus: Igreja Católica, ação social e imaginário anticomunista em Alagoas. Maceió: Edufal, 2007. O SEMEADOR. Maceió, 1º de agosto de 1934. SILVA, Geraldo Bastos. Introdução à crítica do ensino secundário. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Companhia de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário, 1959. SOARES, Mons. José Luís. Antônio Valente. Conferência pronunciada no Teatro de Arena Sérgio Cardoso, em 18 de outubro de 1981, na série Nossas figuras pouco lembradas, organizada pela FUNTED (Fundação Teatro Deodoro). Maceió, 1981. (Texto datilografado). VALENTE, Conego Antonio. Dissertação sobre os pontos controvertidos da historia do Brasil. Maceió: Papelaria Valente, 1928. VASCONCELOS, Cícero de. Sôbre a história da Catedral de Maceió. Maceió: Departamento Estadual de Cultura, 1962. 272 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939) como fonte para a História das Instituições Escolares em Alagoas Marcondes dos Santos Lima323 Resumo: O escopo do texto é apresentar, sumariamente, um conjunto de dados acerca do Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas, publicado em 1939. Nisto, considero a sua possibilidade de ser apropriado como uma fonte para o subcampo da História das Instituições Escolares, uma vez que em seu conteúdo é apresentado um conjunto de dados sobre as escolas e colégios de Alagoas da década de 1930. Em especial, de instituições alagoanas que até o momento não se tornaram objeto de estudo. Ao eleger o Almanaque do Ensino como objeto e fonte deste texto me servi dos aportes da pesquisa de base documental, em específico, das orientações metodológicas de Luca (2008), que nos alerta para a observação da materialidade dos impressos, visto que o seu suporte emite enunciados, que nada tem de natural. Os resultados apontaram que dada a sua materialidade o Almanaque do Ensino se comporta como uma potencial fonte para o desenvolvimento de estudos acerca da historicidade das escolas e colégios alagoanos circunscritas na década de 1930. . Palavras-chave: Almanaque do Ensino (1939) – Fonte – História das Instituições Escolares. Considerações Iniciais O texto em apreço intitulado de, O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939) como fonte para a História das Instituições Escolares em Alagoas, se constitui como um dos resultados iniciais da pesquisa individual que venho desenvolvendo desde meados de 2021. Trata-se da pesquisa “As fontes para a História das Instituições Escolares em Alagoas, Império e República”. O referido projeto insere-se no campo da História da Educação e no subcampo da História das Instituições Escolares. 323 Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. E licenciado em Pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas. 273 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O objetivo geral constitui-se em mapear nos periódicos alagoanos veiculados no Império e República, bem como no Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939), dados acerca de instituições escolares que foram fundadas em Alagoas, a fim de montar um conjunto de dados que permitam elaborar uma narrativa acerca da história institucional das instituições públicas e colégios particulares do Estado. Por sua vez, os objetivos específicos incidem em identificar nos jornais alagoanos, salvaguardados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, bem como no Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939), o nome das instituições escolares alagoanas; listar os nomes das instituições escolares alagoanas que funcionaram no Império e República; elaborar uma narrativa acerca da história institucional das escolas alagoanas em formato de artigo científico; divulgar e socializar os resultados das análises em eventos acadêmicos e/ou revistas científicas. Aqui, pretendo apresentar de formar, preliminar, os primeiros dados que consegui coletar do Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939). Tais dados que serão apresentados na segunda seção traz um indicativo do funcionamento de alguns colégios particulares da capital Maceió/AL, que estiveram em atividades no final dos anos de 1930. Ressalto ao/a leitor/a que o presente texto é de caráter informativo no sentido de tornar público aos/as interessados/as a existência desse Almanaque que em seu corpus registra uma riqueza de dados sobre várias instituições alagoanas. O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas de 1939, encontra-se transcrito e disponibilizado no repositório de fontes do site do “Grupo de Estudos e Pesquisas História da Educação, Cultura e Literatura” (GEPHECL) do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)324. As fontes na escrita da História das Instituições Escolares Inicialmente, pretendo discorrer de modo pontual as relações que os/as historiadores/as das instituições escolares podem estabelecer com aquilo que considero como sendo a matériaprima do trabalho do/a pesquisador/a que lida com o passado das instituições, a saber: as fontes históricas. Embora saiba que esse é um assunto vencido no campo, mesmo assim, entendo que na produção de todo texto histórico-educacional é preciso nos guiarmos pelo o entendimento 324 Segue o link de acesso: https://cedu.ufal.br/grupopesquisa/gephecl/wp-content/uploads/2018/05/almanaque.pdf. 274 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X do que concebemos como sendo uma fonte. Para isto, me apoio nas reflexões do historiador da educação italiano, Dario Ragazzini (2001), num texto onde aborda o processo de identificação, o uso e a relação do/a pesquisador/a com as fontes nos estudos históricoeducacionais. A leitura de Ragazzini (2001), me reportou ao entendimento de que há uma diferença entre o que é uma “fonte” e o que é um “documento”. Toda fonte é um documento, mas nem todo documento é imediatamente uma fonte. O documento só se configura como uma fonte a partir do momento que responde as questões referentes ao objeto que se investiga. Para que um documento se torne fonte é preciso que o/a historiador/a da educação o interrogue, como pontua March Bloch (2001). Esse processo a qual me referi acima, segundo o autor, são características peculiares deste tipo de pesquisa. E complementa que a relação com as fontes é a base sobre a qual se edifica a pesquisa historiográfica. A partir dessa perspectiva, o autor nos dirá que no que tange ao tema da relação do/a historiador/a com as fontes, é sabido que no meio acadêmico é contestada o estabelecimento de uma relação objetiva entre o sujeito que pesquisa e a fonte que é averiguada. Atualmente, é quase um pecado dizer que é possível ser objetivo no exame das fontes. Concomitante, mais recentemente, é contestado uma ênfase demasiada na subjetividade do intérprete na abordagem. Embora, estejamos advertidos dessas duas contestações, sobretudo, a primeira, todavia o autor pontua que ainda permanece o risco de incorremos no excesso da subjetividade, isto é, de estabelecermos uma relação enganosa com a fonte, bem como de extrairmos delas interpretações equivocadas, muitas vezes ocasionadas pelos problemas contemporâneos que nos perseguem e dos interesses político e teóricos imediatos. É desse segundo tipo de relação com as fontes que devemos estar precavidos. É por este motivo que o autor considera emergente um retorno às discussões sobre as fontes, em especial, a relação do/a pesquisador/a com as fontes no campo da História da Educação e eu complementaria da relação deste/a com as fontes no subcampo da História das Instituições Escolares. Estarmos convencidos de que não é possível manter uma aproximação objetiva com a fonte, bem como estarmos cientes das armadilhas da subjetividade ou, melhor dizendo, de seu excesso nos direciona para uma outra questão que é pronunciada nas palavras do autor: “Agrada-me repetir que o trabalho historiográfico não é atinente à verdade, mas à certeza” (RAGAZZINI, 2001, p. 16). Interpreto “certeza” no sentido de o/a pesquisador/a ter a 275 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X convicção de que a sua interpretação/leitura das fontes estar próxima dos fatos. Entendo, também, que essa “certeza” ocorre mediante ao afastamento dos dois tipos de relação com as fontes citadas anteriormente. Nem objetivo e nem demasiadamente subjetivo. O certo é que as fontes não respondem por si só. São vestígios, sinais, indícios, marcas de um passado que quer se fazer ouvido. Ou, de um passado que aparenta estar morto, mas que se mostra vivo na medida que os seus mortos gemem. Esse passado mais vivo do que morto é empiricamente comprovado no momento em que o/a pesquisador/a interroga as fontes e estas lhes respondem. A fonte provém do passado, mas não é o passado, e sim uma representação do passado. As fontes são lidas a partir de múltiplas relações, tais como, as concernentes à sua produção em um contexto específico, sua seleção por um grupo ou instituição, a sua conservação no tempo e a da sua interpretação no presente. Entendo que o/a historiador/a da educação ao analisar o seu acervo deve se atentar para essas múltiplas relações que constituem as fontes. Mas não só isto. O conteúdo das fontes é composto por aquilo que se denomina de “conteúdo denotativo” e “conteúdo conotativo” (RAGAZZINI, 2001). O primeiro teria a ver com aquilo que está literalmente escrito no documento como palavras e números, por exemplo. Em outras palavras, é a mensagem explícita. O segundo tem a ver com o que está implícito, subjacente e que só é desvendado quando o/a pesquisador/a interroga a fonte. Para ilustrar a sua explicação Dario Ragazzini (2001) utiliza como exemplo um exame escolar de um estudante. No referido exame há elementos como a nota do aluno, as questões, as respostas, o seu nome, o nome da instituição, o nome da professora. Todos esses dados dizem respeito ao aspecto denotativo do exame. Logo, não passa de um exame escolar. Porém, quando o/a historiador/a da educação se apropria desse exame como fonte histórica, ele passa não somente a observar o seu conteúdo denotativo, mas também e, sobretudo, o seu conteúdo conotativo. Aliás, para o autor o que torna um exame escolar uma fonte histórica é justamente o seu aspecto conotativo. O exame escolar só é interessante quando indagado e pode informar sobre a cultura escolar da instituição, o perfil do professor e alunado, o sistema de avaliação implantado, os saberes ensinados. São esses dados que constituem o conteúdo conotativo do documento, neste caso, do exame. É precisamente a conotação do documento que é estudada pelo/a historiador/a da educação. 276 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Dessa forma, o conteúdo denotativo seria o dito pela fonte, enquanto que o conteúdo conotativo seria o não dito, nos termos de Certeau (2010). Um documento vale como fonte não só por aquilo que está escrito (conteúdo denotativo), mas pelo o que por algum motivo não foi dito (conteúdo conotativo). Identificar os motivos do porquê determinada informação não foi registrada, o contexto de produção da fonte, os critérios de seleção e conservação por qual passou é o que constitui o conteúdo da fonte e, portanto, é o que interessa ao historiador/a. A partir dessas breves considerações em torno das relações que podem ser estabelecidas com as fontes é que podemos pensar as fontes “da” história da escola e as fontes “para” a história da escola (RAGAZZINI, 2001). No primeiro caso, temos as fontes que são produzidas diretamente pelas instituições de ensino como os cadernos, provas, cartazes, atas do conselho docente, cadernetas e outros. Por exemplo, um caderno ou um exame escolar permite narrar uma história das disciplinas ou de uma disciplina específica; uma caderneta ou um mapa de aula do século XIX permite narrar uma história do trabalho docente. Antonietta D’aguiar Nunes (2006), apresenta alguns documentos que podem ser encontrados nas escolas e que têm um potencial de se constituírem em fontes para a História das instituições escolares. Partindo do pressuposto de que tudo o que o homem toca serve como fonte de informação, a autora diz que nas escolas encontra-se várias delas, cito algumas: livros didáticos e paradidáticos, estatutos e regimentos internos, atas de conselho de classe, orçamentos anuais e plurianuais, livros de matrículas, históricos escolares, cadernetas escolares, projeto político-pedagógico, powerpoint, transparência, slides, fotografias de eventos e atividades da escola. Até os sites acessados pelos/as alunos/as no laboratório de informática devem ser tomados como fontes. A biblioteca e seus livros, também. Todas essas fontes trazem elementos da cultura escolar e podem auxiliar na compreensão de diversas temáticas que dizem respeito ao universo escolar. As fontes “das escolas” auxiliam na compreensão não somente do fenômeno educativo, mas também do cotidiano de uma população como, por exemplo, os cadernos escolares podem apresentar indícios do nível de escolarização e alfabetização de uma determinada região geográfica (RAGAZZINI, 2001). No segundo caso, temos as fontes que são “para” a escola, ou seja, aquelas que não foram produzidas na instituição de ensino, no entanto ajudam a pensar a escolarização. Este é o caso da legislação, da imprensa, as estatísticas e outros. A imprensa, por exemplo, pode ajudar a pensar a época em que a escola funcionou. A apropriação desse tipo de documentação se justifica pelo o motivo de sabermos que as fontes escolares não são autossuficientes, isto é, não 277 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X são capazes de dar conta de uma história da escola e da educação, além de o estudo da escola implicar a relação com outras temáticas como a história da infância, por exemplo. Para além da documentação que chega à escola, bem como da que é produzida na escola, o/a historiador/a da educação pode construir, como bem nos lembra Nunes (2006), um acervo a partir das fontes que conseguiu catalogar durante a realização de sua pesquisa. Por exemplo, elaborar um catálogo de jornais com informações da instituição na imprensa. Nisto, é indicado o nome do jornal, ano de edição, número da publicação, número da página e título da seção. Também, pode criar um acervo com as entrevistas transcritas que foram realizadas com os/as ex-professores/as, ex-alunos/as e ex-gestores/as da instituição. Outra possibilidade é pedir autorização do/a entrevistado/a para transcrever, fotografar ou digitalizar algum caderno que usou no tempo que era aluno/a, fotografias com os colegas de turma, atividades de classe e as provas de avaliação e outros. Outrossim, ainda que o/a pesquisador/a esteja pesquisando a história da instituição, pode aproveitar a oportunidade e fotografar as dependência da escola na atualidade e arquivá-las para futuras pesquisas. Também, as transcrições e/ou digitalização dos documentos oficiais que dizem respeito à escola. Vale ressaltar que as fontes criadas pelos/as historiadores/as da educação podem ser disponibilizadas nos sites de grupos de estudo e pesquisa, bem como podem ficar sob a tutela das instituições escolares que foram o lócus do estudo. O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939): indícios das instituições escolares alagoanas O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas foi um impresso publicado no ano de 1939, pela Gráfica da Casa Ramalho na cidade de Maceió, então capital de Alagoas. Era publicado anualmente e tinha como finalidade informar a população fatos e ocorrências que diziam respeito a algum setor da sociedade civil, desde a educação até a economia, por exemplo. O almanaque por apresentar um caráter anual e único, torna-se um objeto notável. Com o tempo, passaram por mudanças e/ou adaptações a fim de satisfazer os seus leitores, assumindo diferentes formas e funções. Resistindo às transformações culturais modernas, os almanaques permaneceram circulando em uma profusão de produções em variadas modalidades e 278 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X gêneros, constituindo-se em literários, administrativos, mercantis e industriais, agrícolas, populares, ilustrados, entre outros. Assim, eles variavam tanto de tamanho quanto de conteúdo, possibilitando ao público escolher por qual impresso se guiar (MARQUES, 2019, p. 17). Nas primeiras páginas do referido impresso consta a informação de que era dirigido a comunidade escolar, a família, aos envolvidos com o comércio da capital e ao povo maceioense. Segue o excerto: “O ALMANAQUE DO ENSINO é obra de interesse geral: de professores e de alunos; de diretores de estabelecimentos e de pais de família; do comércio e do povo” (O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas, 1939, s/p). Ao constatar que o público alvo do Almanaque era composto por sujeitos da comunidade escolar entende-se o motivo de nele haver um conjunto significativo de informações acerca do funcionamento interno de algumas instituições escolares do Estado, que estavam em atividade no final da década de 1930. A partir de Marques (2019), percebo que o Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas pertence ao gênero pedagógico, visto que nele há registro do funcionamento de algumas escolas como será demonstrado mais adiante. Considerando que a natureza deste texto é informativo no sentido de tornar público aos/as interessados/as a existência desse Almanaque que em seu corpus registra uma riqueza de dados sobre várias instituições alagoanas que atuaram no final dos anos 1930, apresentarei a seguir uma tabela contendo os dados sobre alguns colégios particulares que estiveram em atividade na capital Maceió, durante o período citado. Tabela I - Instituições de Ensino Particular de Alagoas na Segunda República. Instituição Escolar Dados Fragmentos Dirigido pelos Irmãos da Congregação de Santa Catarina de Sena; Oferta os cursos Primário, Normal e Ginasial; “O Colégio está sob inspeção preliminar Oferta os cursos de letras, federal e oficializado 279 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Colégio de São José música, desenho, pintura e por despacho do atividades em estanho, cobre Exmo. Sr. Governador do Estado”. e ouro; O colégio se organiza na forma de internato, externato e semi-internato; O prédio da localizava-se instituição na Rua Fernandes de Barros, nº 161, Cidade de Maceió/AL; Fundado em 1905 no Estado de Alagoas; Dirigido pelos Irmãos “Instituto Maristas; inspeção Livre sob permanente pelo Decreto nº 2.597, Localizava-se na Rua Dr. de 29 de abril de Cincinato Pinto, nº 348, 1938”. Maceió/AL; Colégio Diocesano O colégio funcionava em próprio, “Acha-se instalado em edifício relativamente espaçoso e edifício próprio, adequado as orientações da espaçoso, dotado de pedagogia moderna; todo o conforto exigido pela pedagogia Ofertava os cursos primário e moderna e de todo o secundário; aparelhamento para os cursos 280 primários e Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X secundários”. O colégio se organiza na forma de internato, externato “sob e semi-internato; inspeção preliminar”. Ofertava os cursos primário e secundário; “O Colégio está situado A organização da colégio em Colégio Batista Alagoano seguia as orientações um dos mais da aprazíveis bairros da Pedagogia Moderna; cidade, tendo prédios bem arejados e Os prédios do colégio eram espaçosos, obedecendo espaçosos e arejados; em tudo aos requisitos da pedagogia Localizava-se na Rua Dr. moderna”. Aristeu de Andrade, nº 376, Bairro Farol, Maceió/AL; Colégio dirigido religiosas da pelas própria instituição; O Colégio foi equiparado à “Equiparado à Escola Escola Normal do Estado de Normal do Estado”. Alagoas; Ofertava os cursos de “Sob Infantil, Primário, Normal e federal”. Ginasial; Colégio SS. Sacramento O Colégio esteve sob a 281 fiscalização Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X fiscalização do Governo Federal; Sua organização era na forma de internato, semi-internato e externato; O Colégio recebia a matrícula e frequência de alunas; Localizava-se na Rua Ângelo Neto, nº 163, Bairro do Farol, Maceió/AL; Organizava-se na forma de internato; Era uma instituição de internato feminino; Ofertava os seguintes cursos: Primário, “Equiparado às Escolas Preliminar, Normal, Comercial e Normais Estado”. Profissional; A instituição era equiparada Azilo Nossa Senhora do Bom Conselho às Escolas Normais Rurais do Estado de Alagoas; O diretor do Azilo era Firmo da Cunha Lopes; 282 Rurais do Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O corpo docente era integrado por: Irmã Saint Louíse, Irmã Maria Noela, Maria C. Santa Maria Cavalcante, Inesia Mafra, Selenita Lima Jucá, Maria Das Dores P. de B. Ferrari; Localiza-se no bairro de Bebedouro, Maceió/AL; Foi fundado e dirigido por “O corpo docente deste seculares; educandário é Sua fundação foi no ano de constituído 1932; O educandário por professores de idoneidade moral foi reconhecida, equiparado à Escola Normal registrados do Estado; no Departamento Geral da Instrução Pública deste Colégio Imaculada Conceição A arquitetura do prédio onde Estado”. o colégio estava instalado seguia as recomendações do higienismo e da pedagogia “[...] moderna; instalado prédio em confortavel Foi um colégio destinado ao proporciona todas as sexo feminino, onde recebia garantias que exigem a alunas; higiene [...]”. 283 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A sua organização era no formato de internato, semiinternato e externato; Ofertava os cursos Primário e Secundário; Localizava-se na Floriano Praça Peixoto, Maceió/AL; Ofertava os primário, cursos de telégrafos e “Corpo docente idoneo comércio; e especialisado”. A sua organização era na forma de internato, semiColégio 7 de Setembro internato e externato; Seu diretor foi o professor João Valeriano; Localizava-se na Praça Floriano Peixoto, nº 553; Fonte: Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas, 1939. Considerações finais Como demonstrado acima, os dados aqui apresentados foram extraídos do Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas, publicado na capital Maceió, em 1939. No referido documento está reunido informações acerca das atividades pedagógicas realizadas no Estado no final da década de 1930. Nele, encontramos anúncios de colégios particulares (publicidade), bem como das ações que foram feitas no interior de instituições escolares públicas. Entendido a 284 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sua função, corroboro com a ideia de que os almanaques de ensino, em especial, o do Estado de Alagoas constitui-se em uma potencial fonte de informações que nos permite acessar, de modo limitado, indícios da dinâmica de algumas instituições. Referências Bibliográficas Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas. Maceió: Of. Graf. da Casa Ramalho, 1939. BLOCH, Marc. Apologia da história - ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zarar, 2001. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. MARQUES, Ana Luiza de Vasconcelos. “O Almanach tudo desvenda.... tudo ensina”: sociabilidades, mediação cultural e elementos civíco-educacionais nos impressos Brasil-Portugal (1899-1903). 2019. 309 fls. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB, 2019. NUNES, Antonietta D’aguiar. 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Os resultados demostraram uma feminização do magistério primário em Minas Gerais, e que essa revista aliou o discurso cristão à Escola Nova para instruir o trabalho das professoras primárias. Palavras-chave: Feminização do magistério. professora primária. Revista do Ensino. 1 – Introdução Este trabalho insere-se na linha de pesquisa da História da Educação, que adotou o recorte histórico (1925-1930) relativo aos primeiros cinco anos de vida editorial da Revista do Ensino de Minas Gerais. O objeto de pesquisa trata das instruções pedagógicas para a professora primária veiculadas nesse periódico oficial mineiro. A imprensa pedagógica enquanto fonte historiográfica traz consigo muitas possibilidades de leituras, análise e interpretações para as pesquisas científicas no campo da História da Educação. Este estudo adotou o impresso pedagógico Revista do Ensino de Minas Gerais entendendo que esta fonte materializou em suas páginas propostas didáticas que expressavam as várias concepções pedagógicas que existiam em sua época. Desta maneira, por meio desse suporte material impresso podem ser conhecidas, por exemplo, algumas das práticas  Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia PPGED-UFU. Mestre em Educação pelo PPGED-UFU. Graduada em Pedagogia pelo Instituto de Ciências Humanas ICH-UFU. Professora Tutora formadora do Centro Colaborador de Apoio ao Monitoramento e à Gestão de Programas Educacionais CECAMPE-UFU. 286 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X pedagógicas recomendadas pela concepção educacional da Escola Nova chegou ao Brasil, e em Minas Gerais no começo do século XX. Para o estudo da imprensa periódica educacional, este trabalho apoia-se em Catani (1996), que considera as revistas especializadas em educação como instância “[...] privilegiada para a apreensão dos modos de funcionamento do campo educacional” (CATANI, 1996, p. 117); e também em Bastos (2002), que expõe a importância do estudo das revistas educacionais, enquanto fontes documentais significativas para desvelar o passado educacional. Assim, a imprensa periódica pedagógica, “se apresenta como importante fonte de informação para a história da educação”, quando “submetida ao crivo da crítica histórico-documental”. (BASTOS, 2002, p. 49). A Revista do Ensino325 foi criada em 1892 e extinta neste mesmo ano, alcançando sua efetiva produção e circulação a partir de março de 1925. Foi interrompida em 1940, reativada em 1946, e extinta em 1971. Este periódico enquanto impresso pedagógico oficial do governo de Minas Gerias era produzido pela Diretoria de Instrução Pública do estado, que pôde circular até as regiões mais distantes do estado, porque era um impresso oficial barato (acessível) e eficiente, e um dos mais importantes canais de comunicação da Diretoria de Instrução Pública com os profissionais das instituições escolares, para divulgar as novidades da reforma educacional mineira (BICCAS, 2008). Para colocar o Brasil na rota do desenvolvimento econômico, Souza (2001) explica que a educação deveria formar os cidadãos para um país urbanizado, moderno, industrializado, assim, era necessária a formação de braços e mentes preparados. Por meio da Reforma Francisco Campos aprovada em 1927, os professores, e os médicos eram os sujeitos disciplinadores. Era preciso mudar a realidade atrasada da escola, educar as muitas crianças analfabetas, doentes, indisciplinadas e sem hábitos de higiene, disciplinando-as, neste sentido a educação teria um papel fundamental para colocar o país na rota do progresso. Segundo Carvalho, Gonçalves Neto e Carvalho (2016), Francisco Campos enquanto Secretário do Interior em Minas Gerais autorizou a reforma do ensino primário e normal, por meio de regulamentos e decretos embasando-se nos os princípios da Escola Nova, que objetivava aperfeiçoar a educação, democratizar o ensino, reduzir o analfabetismo, preparar mão-de-obra para o trabalho, e promover a cidadania. 325 A Revista do Ensino de Minas Gerais possui todos os seus 239 números que circularam no período (19251971) digitalizados e disponíveis no site do Arquivo Público Mineiro: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. 287 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Francisco Campos no cargo de Secretário do Interior do Estado de Minas Gerais implementou leis, decretos e regulamentos para direcionar o ensino primário nas escolas, e a Revista do Ensino serviu para a divulgação destas mudanças na educação. Neste sentido, a Revista do Ensino foi instrumento oficial do governo mineiro para materializar e veicular as propostas pedagógicas da Escola Nova, consideradas na época como as propostas mais modernas e capazes de melhorar o trabalho pedagógico em sala de aula. Entretanto, Vidal e Faria Filho (2002) explicam que a Reforma Francisco Campos pode ser considerada como um caso à parte, se comparada com as outras reformas dos estados brasileiros, pois, ela a admitia tanto os pressupostos da pedagogia nova, quanto os pressupostos da pedagogia tradicional. Os reformadores pretendiam superar o passado e estabelecer um futuro inovador sem, contudo, romperem com a pedagogia tradicional, tentando inovar, mas, sem abrir mão da tradição católica. Nascia também uma nova educação, mas ela vinha, por assim dizer, de braços dados com a tradição católica, a qual, desde há muito tempo, vinha buscando formas discursivas e mecanismos pedagógicos de modernizar-se e de dialogar com as ciências e com os novos sujeitos sociais [...] (VIDAL; FARIA FILHO, 2002, p. 33). Diante deste contexto, pode-se dizer que Minas Gerais experimentou o nascimento de uma educação nova mergulhada na tradição católica. E que embora a Revista do Ensino fosse um impresso pedagógico oficial para a divulgação dos princípios da Escola Nova, tal impresso também veiculava conteúdos pedagógicos de teor cristão. Diante desse contexto histórico que envolve o objeto de pesquisa, indagou-se: quais foram as tentativas doutrinárias da Revista de Ensino de Minas Gerais (1925-1930) com a finalidade de instruir as ações do trabalho pedagógico da professora primária, e o seu comportamento social? Para responder a essa indagação, foram elaborados os seguintes objetivos de estudo: o objetivo principal é analisar os discursos pedagógicos da Revista do Ensino dirigidos às professoras primárias; os objetivos específicos intentam compreender porque o magistério era majoritariamente feminino, e analisar o papel da mulher como cidadã e professora. 288 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 2 – Desenvolvimento Para alcançar os objetivos propostos, como metodologia realizou-se a análise documental dos 52 números da Revista do Ensino (1925-1930), sob uma abordagem qualitativa. Esta pesquisa apoia-se na perspectiva da Nova História Cultural e respalda-se em Bakhtin (1975), para a análise dos discursos veiculados por esta revista educacional. A seguir, esta pesquisa apresenta as análises dos discursos da Revista do Ensino (19251930) que foram subdivididas em dois eixos de análises: o “2.1 Instruções para a postura social, política e religiosa da professora”, e o “2.2 Instruções para o trabalho pedagógico das professoras primárias” respectivamente. 2.1 Instruções para a postura social, política e religiosa da professora Para analisar os discursos dirigidos às professoras primárias no periódico é importante compreender inicialmente por que o magistério era majoritariamente feminino. De maneira geral, observou-se que as fotografias dos grupos escolares mineiros publicadas pelo periódico mostram o público feminino como a maioria dos professores. No entanto, os cargos da administração escolar como direção, inspeção, e assistência técnica de ensino eram ocupados majoritariamente pelo público masculino. Conforme Souza (2001) havia uma imagem social idealizada para magistério primário: ele deveria ser feminino. Afirmava-se também que o Ensino Primário deveria ser mais educativo que instrutivo, incluindo a disciplina, a higiene, boas maneiras, educação física e artística. Uma máxima constantemente afirmada era: “o fim da educação não é a educação do intelecto, mas do coração”. Portanto, nesta perspectiva, esperava-se do professor menos domínio de conhecimentos e mais dos sentimentos, assim resumida: “Os sábios não devem ensinar às criancinhas”. A mulher, usualmente tida como mais sensível, carinhosa e emotiva, ocuparia este lugar de “plasmar almas”, transformando o espaço escolar, antes rígido e desagradável, em lugar mais alegre, festivo e onde as crianças sentiriam prazer em estar. (SOUZA, 2001, p.160). Assim, neste contexto republicano, segundo Louro (2001), na educação das mulheres a intencionalidade era priorizar a moral em detrimento do intelecto, porque elas deveriam ser abnegadas e restritas ao lar e à família. Caso elas desejassem trabalhar fora do lar, o magistério 289 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X lhes seria a porta de trabalho mais parecida com o ambiente doméstico, por conta do trabalho com as crianças. Neste sentido, o ensino normal oferecido em escolas confessionais e públicas formava suas alunas perpetuando uma formação para o desempenho dos papéis femininos de mãe e esposa na sociedade. Se as moças quisessem aprofundar seus conhecimentos deveriam procurar um curso superior. Todavia, alguns nessa sociedade republicana defendiam que o excesso de instrução deveria ser negado às mulheres, porque elas deveriam ser “mais educadas” do que “instruídas” (LOURO, 2001, p. 447). Conforme a autora, neste período a sociedade republicana, de forma geral, acreditava que não caberia à mulher alcançar um nível de formação intelectual superior ao dos homens, porque o seu lugar na hierarquia social estava abaixo deles. Por isso, muitos defendiam que não havia razões para encher a cabeça das mulheres com informações e conhecimentos, porque a destinação feminina era o matrimônio e a maternidade. Deste modo, às mulheres caberiam pequenas doses de instrução para lhes habilitar ao trabalho pedagógico no magistério primário. (LOURO, 2001). A concepção de João Massena diretor da Escola Normal de Juiz de Fora, num de seus artigos publicados na Revista do Ensino reforça justamente esta percepção machista de que a mulher deveria receber menos formação intelectual que os homens. Na visão dele: [...] foi à mulher que a Providencia confiou o grato e ao mesmo tempo penoso encargo de dirigir a infância”. “A mulher, pelas limitações naturais de sua inteligência, pelo absoluto predomínio do seu coração sobre o seu cérebro, pelos sentimentos de maternidade que são inatos na sua divina organização, é a professora ideal para as tenras criancinhas [...] (MASSENA, 1929, p. 4). No entendimento do autor, por causa da maternidade os sentimentos femininos prevaleciam em relação à capacidade intelectual das mulheres. O papel da professora consistiria em ensinar os valores morais, as boas maneiras, e os conhecimentos do ensino primário. Este discurso tentava despertar uma espécie de conformação social e incentivo à aceitação feminina, de que por conta da maternidade as mulheres eram naturalmente aptas a desempenharem o trabalho pedagógico no magistério primário. E para corroborar com essa argumentação, o autor utilizou um discurso cristão para afirmar que foi a Providência divina 290 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X que conferiu tal condição das mulheres de serem mães, e por isso, elas deveriam ser professoras no ensino primário. No entanto, [...] nos cargos da educação com remuneração mais elevada [...] eram ocupados majoritariamente por homens. É o caso do cargo de diretor escolar, secretário, inspetor e técnico da educação. Portanto, aos homens não só eram reservados salários pelo seu trabalho, mas ainda seus salários eram mais elevados. (COELHO, 2021, p. 131). Nesta conjuntura, “O grande número de mulheres lecionando nas classes do primário era visto com agrado pelos dirigentes do sistema escolar [...] O magistério alicerçou-se como trabalho feminino em definitivo” (ALMEIDA, 2004, p. 81). Neste sentido, compreendeu-se que a feminização do magistério deveu-se à condição das mulheres encontrarem no ensino primário uma oportunidade de trabalho fora do lar que era aceita socialmente, e também porque os homens foram abandonado este campo de trabalho porque ele remunerava menos do que os demais cargos da educação. Com base em Louro (2001), Almeida (2004), e Coelho (2021) – que expõe sobre a formação de professores mineiros no recorte (1925-1940) interpelada pela divulgação do ideário católico nas páginas da Revista do Ensino neste período – compreendeu-se que o magistério em Minas Gerais aos poucos foi tornando-se majoritariamente feminino. Além da feminização do magistério, importa analisar o papel da mulher como cidadã e professora reconhecendo algumas formas de doutrinação presentes no periódico dirigidas às professoras primárias. Sabe-se que elas deveriam preparar os futuros cidadãos republicanos para o trabalho, mas em contrapartida a Revista do Ensino em alguns discursos recomendava que a professora fosse apartada das questões políticas. No número 1 do periódico, o Diretor de Instrução Pública Lúcio José Santos dirigiu um discurso a uma professora mineira de forma severa, por ela ter se envolvido com a política local: A uma professora do Estado foi dirigido o seguinte officio: Senhora professora [...] Tive [...] desprazer de constatar que tomaes parte nas luctas politicas desse florescente município, creando uma atmosphera de antipathias entre os elementos filiados ao partido contrario áquelle de que fazeis parte, 291 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X animosidade essa que se reflecte desfavoravelmente sobre a escola, promovendo o decahimento de sua frequencia. A vida do professor primario é antes missão do que indústria [...] uma das suas mais necessarias qualidades o desinteresse por cousas extranhas ao mister [...] o vosso alheiamento da politica é medida que se impõe, si quiserdes com proveito a cadeira de que sois titular. [...] O professor [...] precisa colocar-se em plano elevado fora do alcance de apreciações injustas que magoam e abatem o espírito, e evitar disputas inglorias, que consomem tempo precioso e nenhum beneficio produzem [...] principalmente quando o cargo é exercido por uma senhora [...] Conto que meus conselhos serão bem recebidos e calarão em vosso espírito, pois estou firme no propósito de não tolerar a intromissão de professores públicos [...] desejamos, sinceramente o engrandecimento da Pátria [...] trabalho intenso, firme e persistente na disseminação da instrucção primária [...] (SANTOS, 1925, p. 21-22). A partir deste discurso percebeu-se que o papel da mulher cidadã e professora neste período republicano, disseminada no periódico, envolvia a adesão de uma postura social alheia à política. Na visão do Diretor da Instrução Pública publicada no periódico, se uma professora primária resolvesse se inserir na política, esta atitude seria uma perda de tempo, porque a mulher deveria preocupar-se com a docência e não com a política. Além desse, outro discurso que corrobora essa mesma visão de mundo, sobre qual postura social e política as professoras deveriam aderir é o discurso do Firmino Costa, fundador e diretor no Grupo Escolar de Lavras em Minas Gerais, que escreveu no número 27 da Revista do Ensino o seguinte: “As professoras são de fato cidadãs, porque lhes impende o dever de formar cidadãos. Pouco importa que não exerçam o direito do voto pois seus alunos irão substituí-las nas urnas” (COSTA, 1928, p. 5). Ou seja, na ótica destes autores no periódico, a professora primária devia ser uma cidadã patriótica, porém, comportar-se como uma mulher despolitizada. Outra recomendação para a professora primária era a de encarar o magistério como missão, como ato heroico, abnegado e feito com dedicação. Outro texto que torna clara esta percepção é a “Oração da Mestra” publicado na capa da Revista do Ensino número 11 que diz: “Senhor! Tu que ensinaste, perdôa que eu ensine e que tenha o nome de mestra, que tivestes na terra. Dá-me o amor exclusivo da minha escola 292 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Arranca da minh’alma o subalterno desejo de justiça [...] Dá-me que eu seja mais mãe do que as mães [...]” (MISTRAL, 1926, p. 33). Analisando este e os demais discursos da Revista do Ensino que tratavam sobre a professora primária reconheceu-se que a postura social recomendada para a professora primária na Revista do Ensino era a de uma mulher abnegada, amorosa, sacrificada, e dedicada aos seus alunos, que deveria amá-los como uma mãe. O governo queria transformar a escola severa, que utilizava os castigos físicos, numa escola alegre, e prazerosa a partir dos princípios da Escola Nova. Por isso, a missão das educadoras das crianças pequenas era a de fazer do ambiente escolar um lugar de disciplina, mas sem torturas. Isso requeria delas cativar a simpatia e admiração dos alunos, por meio do amor ao magistério primário, que recebia doutrinações católicas dirigidas às professoras, para que elas o encarassem como se ele fosse o seu sacerdócio, por esta razão, elas foram chamadas de sacerdotisas em alguns textos no periódico. Um desses textos é o discurso do Inspetor Geral da Instrução Pública Mario Casasanta, publicado no número 26: Senhoras professoras [...] Encarae a vossa escola com aquele espirito superior com que se deve encarar as coisas sagradas [...] esforçai-vos por conservar dentro de vós como um fogo sagrado, de que sois sacerdotisas, as santas esperanças [...] Não leveis a vossa tarefa como uma cruz a carregar. A tarefa de ensinar está longe de ser Calvário, quando ensinava Jesus, escolhia o caminho de flores, as águas mais bonançosas e mais risonhas [...] Não leveis a vossa tarefa como uma cruz pesada. (CASASANTA, 1928, p. 80–83, grifos nossos). Nesse discurso foram observadas instruções religiosas para a postura religiosa das professoras primárias, que eram incentivadas a sentirem-se como sacerdotisas, inspirando-se em Jesus Cristo, que na lógica do cristianismo é considerado o sumo sacerdote que sacrificouse na cruz do calvário. Na Revista do Ensino, tanto na Oração da Mestra, quanto no texto citado acima, quanto em outros textos326 do periódico, a professora foi chamada de mestra, para 326 Conferir Coelho (2021) que analisa os vários textos publicados na Revista do Ensino (1925-1940) endereçados às professoras primárias que contém o ideário católico manifesto em suas recomendações. 293 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X que ela se inspirasse no Mestre Jesus, de modo a ensinar aos seus alunos com amor, sacrifício e abnegação. 2.2 Instruções para o trabalho pedagógico das professoras primárias Sobre o trabalho pedagógico das professoras primárias, observou-se que os discursos dirigidos a essas educadoras possuíam um caráter disciplinar, eles ressaltavam que elas deveriam seguir as instruções pedagógicas da Escola Nova, Escola Ativa ou Escola Moderna utilizando o método intuitivo327. Na Revista do Ensino, o método intuito e outros métodos de ensino preconizados pela Escola Nova eram recomendados às professoras primárias, a partir de prescrições para que elas fossem leitoras incessantes, que entendessem de Psicologia Infantil, que tentassem compreender a alma da criança, não reprimindo-as e estimulando-as expressarem seus pensamentos. Mário Casasanta no artigo “A Pedagogia de Jesus Christo” publicado no número 29 propôs que as professoras imitassem o “Mestre dos Mestres”, porque Jesus Cristo teria ensinado pelo método intuitivo, e tinha moral e amor para ensinar os corações infantis, ao mesmo tempo em que propunha os princípios da Escola Nova. (CASASANTA, 1929). Neste sentido, observou-se que o método intuitivo preconizado pela Escola Nova, também foi preconizado pela pedagogia católica. E, embora os princípios escolanovistas defendessem a escola laica, em Minas Gerais permaneceu a tendência da conciliação dos princípios pedagógicos católicos, aos métodos de ensino e pressupostos da Escola Nova. por causa da ciência, percebeu-se que o movimento reformador educacional mineiro recebeu a influência do catolicismo no estado. Deste jeito, concorda-se com o pensamento de Souza (2001), de que o governo de Minas Gerais mesmo que quisesse, não podia se opor ao poder político da Igreja Católica, porque ele precisava dos valores morais para disciplinar o ensino. E nas análises dos discursos publicados na Revista do Ensino, verificou-se que o governo aliou o ideário católico aos discursos da Escola Nova. Mario Casasanta no número 29, defendeu que a Escola Nova deveria se basear nos ensinamentos de Jesus Cristo: “[...] <<Deixae vir a mim os pequeninos e não os estorveis, 327 No método intuitivo, “o ensino deve partir de uma percepção sensível. O princípio da intuição exige o oferecimento de dados sensíveis à observação e à percepção do aluno. Desenvolvem -se, então, todos os processos de ilustração com objetos, animais ou suas figuras”. (SAVIANI, 2005, p. 9). 294 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X porque deles é o Reino de Deus>> [...] Vamos para a Escola Nova”. (CASASANTA, 1929, p. 85). Outro discurso que revela essa conciliação entre Escola Nova e pedagogia católica é o do autor Oscar Arthur Guimarães, assistente técnico do ensino em 1930, que no número 26 escreveu: Senhoras professoras: Eu não podia deixar de [...] pregar-vos o evangelho novo das escolas [...] com os preceitos de uma profissão de fé [...] empenhados numa obra salvadora [...] Quero apelar para a grande massa educadora [...] não falte à obra redentora a colaboração valiosa de corações generosos [...] com o fervor de sempre, empunhe bem alto a bandeira da Escola Nova, propague, pela palavra e pelo exemplo os seus princípios salutares, pela salvação da raça, pela grandeza de Minas, pela felicidade do Brasil! (GUIMARÃES, 1930, p. 71). Nestes discursos percebeu-se que o ideal pedagógico cristão católico incentivava a crença de que na eternidade, as professoras seriam recompensadas pelos seus sacrifícios desempenhados na missão terrena do magistério primário. E, por outro lado, este ideário as incentivava a aceitarem os baixos salários pagos. Neste sentido, Francisco Campos enquanto era Secretário do Interior e organizava a reforma educacional mineira, no discurso de inauguração da Escola de Aperfeiçoamento em Belo Horizonte, em 1929, publicado na Revista do Ensino, número 32 falou aos professores, sobretudo às professoras presentes, que o magistério era sinônimo de missão, devotamento e sacrifício: “[...] senhoras professoras [...] nos seus propósitos de devotamento e sacrifício [...] depositárias da confiança mineira [...] que Minas Geraes sinta que os seus sacrifícios fruticficam em verdadeira e authentica riqueza espiritual” (CAMPOS, 1929, p. 27). Em relação à essa promessa de riqueza espiritual defendida pelo autor, pode-se dizer que, implicitamente neste discurso havia uma intenção de sensibilizar as professoras a aderirem esse viés religioso, para que elas aceitassem se sacrificarem nesta profissão, no sentido de se contentarem com a condição salarial precária da função. 295 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sendo assim, entendeu-se que tanto no texto “Oração da Mestra” quanto nesse discurso de Francisco Campos, quanto nos discursos de Mario Casasanta, quanto nos demais discursos aqui explicitados, a religião contribuiu para tentar “naturalizar” a condição das mulheres ganharem menos que os homens na educação, aceitarem o magistério primário como profissão que remunera pouco, e a internalizarem que o magistério seria o local mais apropriado para o trabalho feminino. Diante desta doutrinação pedagógica, os resultados demonstraram que a Revista do Ensino aliou o discurso cristão aos procedimentos da Escola Nova, para moldar o trabalho pedagógico das professoras. Por meio destas prescrições e instruções pedagógicas de como ela deveria se comportar em sala de aula e fora dela, o periódico disseminou os pressupostos pedagógicos escolanovistas cristãos para que a mulher professora primária fosse mansa, submissa, controlável, e abnegada a tal ponto dela conformar que deveria receber menos que os homens. Assim, o periódico contribuiu para disseminar a ideia de que o magistério primário deveria ser visto como a missão terrena da professora, feita por amor, como se fosse um sacerdócio. E toda conjuntura profissional acabou servindo para corroborar com desvalorização salarial da profissão docente, e a feminização da carreira do magistério ao longo dos anos republicanos. Nesse contexto histórico percebeu-se a existência de indícios para esclarecer o entendimento dos dias atuais, em que a maioria dos professores que atuam na Educação Infantil, e nos primeiros anos do Ensino Fundamental 1 ainda continua sendo formada por mulheres, e a razão destas carreiras profissionais serem as que recebem menos em toda a educação. É que esta categoria profissional historicamente já começou sendo desvalorizada financeiramente desde a sua constituição e consolidação do campo do magistério primário, que se tornou marcado pela ocupação majoritariamente feminina, e esta condição profissional ainda persiste no campo educacional brasileiro até hoje. 5 – Considerações finais Considerando os objetivos propostos por esta pesquisa, e o questionamento inicial no texto compreendeu-se que as tentativas doutrinárias da Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1930), para instruírem o trabalho pedagógico e o papel da professora primária possuíam a intencionalidade moldar o seu comportamento social, político e religioso, além de instruir pedagogicamente o seu exercício profissional. 296 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Considerou-se, neste sentido que a Revista do Ensino foi bem mais que um veículo de comunicação do Estado aos professores mineiros, ela era um impresso pedagógico que oferecia formação de professores, e também uma doutrinação religiosa e pedagógica. Neste âmbito, ela tinha a finalidade de instruir e tentar construir a imagem social da professora primária preparando-a para que ela desempenhasse sua profissão como uma missão pedagógica sacrificial, seguindo ao mesmo tempo os fundamentos da Escola Nova, e os fundamentos da pedagogia católica em seu fazer pedagógico. Além disso, para além das contribuições trazidas neste artigo científico entende-se que a imprensa periódica como fonte e objeto de pesquisa oferece múltiplas possibilidades de construção de conhecimentos na área da História da Educação em novas pesquisas científicas. Deste modo, admite-se outras interpretações além desta aqui explanada, e compreende-se que esta pesquisa não se esgota neste breve estudo, que pode ser ampliado, e continuado focalizando outras nuances da formação de formação de professores, e outros assuntos neste mesmo periódico oficial mineiro. 6 – Referências ALMEIDA, Jane Soares de. Mulheres na educação: missão, vocação e destino? 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Nesse aspecto o jornal se torna uma possibilidade, aceito por uns e desacreditado por outros. Assim, cientes desta problemática metodológica, buscamos autores que nos dessem condições de compreender o jornal como fonte histórica. E para alcançar esse objetivo determinados em: a) evidenciar a história da escrita histórica; b) apontar as possibilidades e limitações das fontes impressas; c) analisar os jornais como possiblidade de fontes históricas. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, em que os resultados evidenciaram a fonte jornal como uma possibilidade válida para a construção da pesquisa histórica, desde que as ações do pesquisador sejam orientadas por métodos que sistematizem o processo e deem condições da concretização do discurso histórico. Palavras-chave. Metodologia da pesquisa histórica. Fontes históricas. Jornal como fonte histórica. 1 Introdução Este artigo é resultado das discussões realizadas na disciplina Seminário, na linha de pesquisa Fronteiras, Identidades e Cultura e pretende evidenciar aspectos relacionados as fontes ou documentos históricos, especificamente os jornais. Partimos do questionamento sobre a possibilidade ou não do jornal ser considerado como fonte histórica. Ressaltamos, que foi utilizado o termo documento como sinônimo de fonte para a pesquisa histórica, portanto, alternamos o uso dos dois termos, fontes e documentos. Trata-se de pesquisa bibliográfica, com 328 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá, Brasil. Docente do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal de Rondonópolis, Rondonópolis, Brasil. 299 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X a utilização das ideias de Le Goff (2013), Certeau (2002), Reis (2003), Burke (2008), Capelato (1988), Grespan (2008), Bouder e Martin (1983), entre outros. A reflexão e discussão sobre fontes históricas é essencial para o entendimento do processo da pesquisa histórica, uma vez que um dos requisitos obrigatórios para a realização de tal pesquisa é a existência de fontes. Espera-se com este texto contribuir para as discussões sobre o tema, principalmente entre os pesquisadores iniciantes, evidenciando autores relevantes neste cenário. 2 Os caminhos da escrita da história A necessidade de se registrar a história remonta, no Ocidente, à antiguidade grega. Os gregos percebiam a história como individual e local, registravam o presente, não se preocupando necessariamente com o futuro, que seria uma continuação daquele. Consideravam a história como imutável, posto que os seres humanos seriam imutáveis, como o próprio circuito solar e as estações, nesse aspecto, Reis (2003, p. 18) ressalta que para os gregos “A natureza das coisas seria crescer e declinar e nada de novo ocorreria sob o sol.” Um segundo momento da escrita da história, estaria relacionado aos romanos, que iniciariam a ideia de história universal, cujo final seria a salvação. A escrita da história não estaria mais condicionada ao individual e local, preocupava-se com o futuro, em relação às conquistas políticas (romanização, o mundo todo seria controlado pelos romanos) e religiosas (tudo se submetia a vontade divina) a serem empreendidas (BOUDER; MARTIN, 1983). Até o século XVIII, a história não tinha a pretensão de ser científica. Isso só ocorreu a partir do século XIX, com os preceitos do positivismo de Auguste Comte, que pensou a ciência social e humana com a utilização dos métodos aplicados às ciências exatas. O método ideal estudaria o fato histórico de curta duração, desconsidera de suas operações a subjetividade, tanto da fonte, quanto do pesquisador, de forma que a fonte deveria ser apenas escrita e voluntária, focando os sujeitos que praticavam grandes feitos e que estivessem posicionados no topo da hierarquia. Era destacada a história política e desconsiderado todos os demais aspectos, como o social, econômico, estético, cultural etc. A fonte ou documento, nesse contexto, seria o que fundamentaria a escrita da história (LE GOFF, 2013; BOUDER; MARTIN, 1983; GRESPAN, 2008). Posteriormente, outras abordagens se fizeram presente, como o materialismo histórico e a História Nova. Esta, especificamente, foi resultado de um movimento da Escola dos Annales, que considerava a História não apenas como constituída pelos fatos políticos e religiosos; e 300 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X somente do ponto de vista dos homens influentes, dos heróis e daqueles que detinham o poder, defendiam que a história poderia ser contada por meio de fatos aparentemente corriqueiros e de pessoas simples, inclusive os pobres, mulheres, crianças, negros, que seriam identificados nas mais diversas fontes e não somente em documentos legais e impressos. A História Nova estimulou estudos na área que foi denominada História Cultural, desenvolvida na década de 60 do século XX, sendo que os estudos se intensificaram, na década de 80 e 90 do mesmo século, tendo como estudiosos: Eric Robsbawm, Edward Thompson, Jacques Le Goff, Roger Chartier, dentre outros, que se empenharam na missão de pintar o retrato de uma época, conforme enfatiza Burke (2008). Essa História Cultural propiciou a emergência de estudos sobre os mais diversos temas como: história do jazz, vida cultural dos pobres, rituais de iniciação dos artesãos, simbolismo dos alimentos, inclusive a história da leitura, do livro e das bibliotecas (BURKE, 2008), estimulou também a utilização das mais diversas fontes, assunto que discutiremos a seguir. 3 As fontes: suas possibilidades e limitações As fontes são suportes de informação, produtos das experiências humanas, elaborados de forma intencional, onde indivíduos, ou instituições, registram e compartilham seus conhecimentos, deixando para a posteridade suas considerações sobre um dado pesquisado, ou sobre sua sensibilidade. Assim, os documentos se tornam fonte para que outros possam beber novos conhecimentos e o passado, nessa perspectiva, se torna “[...] sólido na estrutura do tempo.” (REIS, 2003, p. 182), pois estas fontes permitem o diálogo entre indivíduos que vivem ou viveram em tempos diferentes. Cabe ressaltar que a diferença entre uma fonte para estudos diversos de uma fonte histórica é a condição de produção, neste caso a fonte histórica é sempre uma fonte primária, que foi produzida no período que está sendo estudado pelo historiador, uma fonte que ainda não foi analisada naquela perspectiva que o pesquisador está investigando naquele momento. Com a História Nova houve o aumento da diversidade de documentos a serem utilizados pelo historiador, que criou maiores possibilidades, mas também algumas dificuldades. Para alguns assuntos há uma gama enorme de fontes e a dificuldade resulta em decidir o que utilizar e como organizar tais documentos; em outras situações há dificuldade no 301 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X acesso às fontes porque, muitas vezes, esses documentos não são ainda de acesso público e dependem de direitos autorais.329 A pesquisa histórica envolve - além da delimitação temporal e espacial - a captação, seleção, organização, transcrição e análise de fontes históricas (documentos), uma vez que se apropria das mesmas para compor seu corpus de informação que será devidamente contextualizado, (re)significado e contemplado no âmbito da produção científica, gerando novos conhecimentos. E o pesquisador que se envereda pelos caminhos da pesquisa histórica, na intenção de conhecer o que ainda está obscuro, se depara com uma problemática singular: ele não estava presente durante os acontecimentos, ele apenas tem no seu presente a pretensão de, por meio das fontes e vestígios, “[...] apreender o mundo dos homens através do estudo de suas experiências do passado.” (REIS, 2003, p. 241). Na perspectiva das fontes históricas, estas são os documentos que, segundo Le Goff (2013), foram escolhidos pelo históriador para serem a base de suas análises, portanto, tornamse documentos históricos. Nesse contexto, o documento, engavetado, guardado em um arquivo é apenas um suporte que contem dados ou informação, porém quando ele recebe o olhar crítico e analítico do historiador, ele se torna documento histórico. Esses documentos, segundo Le Goff (2013, p. 485) “[...] não são o conjunto daquilo que existiu no passado [...]”, mas uma escolha do historiador que faz um recorte do fato histórico, no tempo e no espaço e isto, por si só, já envolve a subjetividade. Nesse contexto, Karnal e Tatsch (2011, p. 24) conceituam documento histórico como “[...] qualquer fonte sobre o passado, conservado por acidente ou deliberadamente, analisado a partir do presente e estabelecendo diálogos entre a subjetividade atual e a subjetividade pretérita.” Portanto, os documentos históricos, não falam por si só e não são originariamente neutros, possuem subjetividade, posto que foi uma criação humana, e recebe no processo de análise do pesquisador/historiador (sujeito que possui subjetividade), interpretações que não são neutras, mas constituídas de ideologias e percepções pessoais a partir das vivências e conhecimentos teóricos do pesquisador. Essa subjetividade porém, não desautoriza a cientificidade da pesquisa histórica, uma vez que será o método adotado pelo pesquisador, para o trabalho com as fontes, que propiciará Ao ano de 2020 e 2021 acrescentou-se a problemática do distanciamento social devido ao COVID-19, que impossibilitou o acesso físico aos arquivos. 329 302 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X a objetividade necessária ao caráter da história como ciência, será o método que dará condições ao historiador de organizar sua atividade de pesquisa, relacionando o momento empírito com a teoria (GRESPAN, 2008). Para Grespan (2008) há necessidade de ultrapassar a polarização sujeito-objeto (tanto das Escola Histórica alemã, quanto da Escola Metódica francesa e das visões pós-estruturalistas), considerando que há subjetividade no objeto, que não é “puro” e também “[...] o que há de objetivo, de determinação histórica no sujeito do conhecimento, que não pode jamais ser considerado neutro.” Sendo assim, retomando Karnal e Tatsch (2011, p. 23) o documento “[...] não é tão autônomo como sonhavam positivistas, nem tão submisso como defende parte do pós-estruturalismo.” Le Goff (2013) ressalta que durante os séculos XVII e XVIII o documento foi denominado mais comumente como monumento, que por sua vez, segundo o mesmo autor, remete à memória, a recordação e seria toda concretização material do espírito humano que se perpetua, ele atesta que o monumento é “[...] tudo aquilo que pode evocar o passado[...] é um legado à memória coletiva.” Sendo assim, o monumento seria qualquer recurso material elaborado pelo ser humano no decorrer de sua trajetória e mantido e/ou conservado para a posteridade. Foucault ([200-?] apud LE GOFF, 2013) afirma que na história tradicional o monumento era memorizado e transformado em documento e que na historia atual os documentos são transformados em monumento. Nesse aspecto, entendemos que há o exercício da crítica interna do documento, de extrair a memória contida no suporte, de desestruturar o documento, evidenciando seu aspecto de monumento, expondo suas subjetividades. Le Goff (2013) aponta que na concepção positivista, o documento remetia a objetividade, a manifestação física (escrita) do fato histórico, o próprio testemunho histórico, que após comprovada sua autenticidade, seria o suporte da verdade histórica. Nessa perspectiva, o historiador competente iria extrair do documento, o que ele traz de verdade, não eliminando nem acrescentando nada, ele deveria se manter “[...] o mais próximo possível do texto.” (LE GOFF, 2013, p. 487), nesse contexto o documento seria sinônimo de texto e não de discurso. Havia nesse contexto, o foco no documento escrito como fio condutor da pesquisa, isso se modifica no decorrer do tempo, principalmente no século XX com os preceitos da História Nova, exercitada pela Escola dos Annales. Essa abordagem ampliou as possibilidades de temas, objetos e fontes de pesquisa. Houve iniciativas de estudos que privilegiavam a longa duração, 303 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X estudos quantitativos com utilização de séries documentais, abordagens econômica e não apenas política, posteriormente abordagens sociais e culturais e ainda, a aceitação de estudos que envolviam as representações as ideias, as mentalidades (BURKE, 2008). O documento, nessa perspectiva, toma uma nova forma, uma nova concepção, continua a ser protagonista, mas não o único, evocando também aspectos da memória coletiva (Monumento), assim, Le Goff (2013) entende que houve, portanto modificação no sentido do documento e este seria considerado pelo historiador como documento monumento, uma vez que não estaria mais condicionado a se constituir como texto escrito, mas seria suporte da memória coletiva. O conceito de documento para a História Nova amplia-se para todo o resultado da manifestação humana, registrada em suportes diversificados (LE GOFF, 2013). Porém, esta ampliação de possibilidades documentais colocaria como problemática a validação ou autenticidade do documento. Tudo poderia ser documento histórico? Para Le Goff (2013) a autenticidade estaria vinculada as condições de produção, distribuição do documento e ao seu status como instrumento de poder e autoridade. Na verdade, após apropriação das teorias, compreendo que cabe ao historiador com a utilização de um método adequado, e utilizando-se de recursos diversos (como exemplo estudo comparativo e triangulação entre fontes diversas) e suas análise, conferir ao documento ou fonte a autenticidade necessária para que seja um recurso válido na pesquisa. O documento só se tornará documento histórico se for visualizado e evidenciado por um historiador, porque enquanto objeto arquivado ou guardado nas estantes ou gavetas, ele será apenas um documento. O que fará com que ele se torne uma prova, evidência ou vestígio histórico, será o olhar do historiador (de seu lugar de fala), suas análises (de posse de uma ampla e profunda fundamentação teórica) e o registro da síntese deste pesquisador (o discurso). É esta operação historiográfica que possibilitará ao documento contribuir para a construção do conhecimento histórico (CERTEAU, 2002). O pesquisador necessita executar uma seleção cuidadosa e criteriosa das fontes, pois muitas vezes, estas, estão dispersas e devem ser localizadas e selecionadas; deve estar atento a questão da preservação física dos documentos, que frequentemente se encontram em má conservação, tendo o pesquisador que manuseá-lo de forma cuidadosa para não danificá-lo ainda mais; sendo importante já se ter uma pré-pesquisa para saber se existe alguma fonte disponível e se estas poderão ser manuseadas. Nesse cenário, o pesquisador deve se preparar para lidar com: dificuldade na localização dos acervos documentais; a dispersão dos materiais e 304 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X perda de tempo para localizá-los e reuní-los; a tendência à desoganização dos materiais acumulados, devendo portanto, manter um controle permanente sobre os mesmos (CAPELATO, 1988). Nosso posicionamento em relação as fontes/documentos, está em consonância com a História Cultural, porque nessa perspectiva, os sujeitos são as fontes/documentos, os vestígios, os rastros, os indícios, que podem ser textuais ou não. É para eles que o pesquisador volta seu questionamento e diálogo para compor seu corpus, que permitirá a concretização da investigação (BURKE, 2008; GINZBURG, 2006). Nesse contexto, os documentos seriam todo o suporte que possa conter informação, ou seja, todo o resultado concreto das ações humanas, intencionais ou não, constituídos nas diversas instâncias da vida humana, além dos escritos, soma-se os documentos iconográficos, arqueológicos, fontes orais “[...] e todo e qualquer mecanismo que possibilite uma interpretação.” (KARNAL; TATSCH, 2011, p. 22). São os documentos que possibilitam ao historiador o diálogo necessário à captação das informações pertinentes ao estudo, para tanto, o pesquisador precisa se despir de pré-conceitos e posicionar-se, tanto no contexto da época em que as fontes foram produzidas, quanto munirse das teorias disponíveis sobre o objeto e de suas percepções contemporâneas. Caberá ao historiador identificar as condições de produção do documento, caracterizar sua estrutura física, levantar questionamentos e manter-se atento às respostas, que muitas vezes estão implícitas nas entrelinhas. Quanto a isso Burke (2008, p. 33) afirma que “Os historiadores culturais têm de praticar a crítica das fontes, perguntar por que um dado texto ou imagem veio a existir, e se, por exemplo, seu propósito era convencer o público a realizar alguma ação.” No contexto da História Nova, muda-se o foco do documento para o problema e da pura objetividade para as possíveis subjetividades, inerentes ao documento e ao sujeito investigador, dessa forma, será a questão de pesquisa que irá direcionar os questionamentos destinados ao documento, este não mais falará por si só, conforme a visão positivista. Sendo assim, a tarefa do historiador é singular, porque mesmo não estando presente no momento dos eventos ou acontecimentos, ele, por meio das fontes/documentos, realizará um exercício de questionamento e criticidade das fontes, para tentar evidenciar uma versão do que ocorreu. Como abordado, há na atualidade, possibilidades diversificadas de fontes. O nosso interesse se detém, em um primeiro momento - em função da pesquisa a ser empreendida no doutorado, que abordará sobre: O Universo do livro em Cuiabá-MT no período de 1930 a 305 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 1945 - sobre as fontes escritas, especificamente documentos oficiais emanados pelas Secretarias de Educação e Secretaria de Cultura, e pela própria Biblioteca Pública Estadual de Mato Grosso (objeto da pesquisa) e jornais que fazem referência ao objeto de estudo e ao contexto cultural de Cuiabá no período de 1930 a 1945. A seguir, discutiremos sobre os jornais como fonte histórica. 3.1 Fontes escritas: jornais Os jornais como fonte histórica só foram considerados na historiografia com as premissas defendidas pela terceira geração da Escola dos Annales, que ampliaram as possibilidades de temas, objetos e fontes. Porém, no Brasil, as iniciativas foram de escrever a história da Imprensa, e não a história com o uso da imprensa, sendo a primeira obra sobre história da imprensa, de maior fôlego, produzida por Nelson Werneck Sodré, em 1966. Sodré aborda o período de 1808 a 1960 e dentre outros assuntos, ressalta a chegada dos primeiros jornais em terras brasileiras. Relata que o primeiro jornal impresso no Brasil foi a Gazeta do Rio de Janeiro, publicado em 1808, sendo um produto da imprensa oficial, que divulgava os assuntos relacionados a monarquia portuguesa. Outro jornal publicado por um brasileiro no mesmo ano, só que um pouco antes que a Gazeta, foi o Correio Brasiliense de Hipólito José da Costa, porém, impresso em Londres. Hipólito, sem o conrole imposto pelo governo português, tinha maior liberdade de divulgar os assuntos relacionados ao Brasil e ao cenário internacional (CAPELATO, 1988). Após 1970, iniciaram-se de forma tímida as pesquisas que se utilizaram dos jornais como fontes históricas, porém, havia no inconsciente acadêmico a desconfiança em relação a esses suportes como fontes, pela sua relação ambígua entre imparcial e tendencioso. Nesse aspecto, há o discurso dos jornalistas, afirmando que divulgam a notícia dos acontecimentos, tal como eles ocorreram, ou seja, a verdade dos fatos (LUCA, 2008). Porém, desconsideram do processo os fatores que envolvem a sua produção, desde a escolha do que terá ou não cobertura jornalística; de como o acontecimento será abordado no texto escrito (falando de imprensa escrita); o que será excluído ou mantido; se virá na página principal, ou impresso em um pequeno espaço do todo. Claro que não se pode desconsiderar que a notícia divulgada terá relação com a realidade vivenciada, no entanto, de acordo com Darnton (2010) não podemos considerar a notícia como aquilo que realmente ocorreu, mas “[...] uma história sobre o que aconteceu.”, o autor defende que a informação não deveria ser encarada: 306 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X [...] como se assumisse a forma de fatos objetivos ou pepitas de realidade prontas para serem garimpadas em jornais, arquivos e bibliotecas, mas como mensagens que são constantemente remodeladas em seu processo de difusão. Em vez de lidar com documentos fixos e estabelecidos, precisamos lidar com textos múltiplos, mutáveis.” (DARNTON, 2010, p. 48). Talvez a desconfiança e desconforto de alguns históriadores em aderirem ao jornal ou revista como fonte histórica, foi o fato de terem conhecimento desta impossibilidade de neutralidade e objetividade total das fontes jornalísticas. No entanto, deve-se considerar que isto se aplica a qualquer fonte histórica que, produzida por seres humanos, não são passíveis de neutralidade. Destarte, a percepção em relação aos jornais foi se modificando e, atualmente, há diversos trabalhos que se utilizam desse suporte como fonte única ou principal para o desenvolvimento de pesquisas históricas. A respeito do periódico como fonte histórica Capelato (1988, p. 13) ressalta que os jornais são: Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, a imprensa possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens através dos tempos [...] A imprensa registra, comenta e participa da história. Através dela se trava uma constante batalha pela conquista dos corações e mentes[...]. Nesse contexto, sem desconsiderar a subjetividade das fontes, que como já abordado, sempre serão resultados de ações humanas, portanto nunca neutras, o historiador poderá utilizar dos recursos metodológicos disponíveis para, por meio de análise crítica, garantir a objetividade necessária aos resultados das análises. O historiador deve, a partir do seu problema, dirigir alguns questionamentos à sua fonte: “Quem são seus proprietários? A quem se dirige? Com que objetivos e quais os recursos utilizados na batalha pela conquista dos corações e mentes?” (CAPELATO, 1988, p. 14). Segundo a mesma autora, todos os jornais tem o objetivo de atingir um determinado público, atraindo-o para o compartilhamento dos seus interesses, sempre com o objetivo de conseguir adeptos para uma causa, seja ela política, empresarial ou outra. Portanto, o conteúdo e a materialidade do jornal se concretizará de acordo com o público a que ele pretende atingir e 307 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X para isso serão utilizadas estratégias como ilustrações, charges, conteúdo mais sóbrio ou sensacionalista, dependendo do objetivo da publicação (CAPELATO, 1988). Luca (2008) comenta sobre as mudanças ocorridas na maneira de se abordar a notícia, dizendo que inicialmente os jornais possuiam claramente o objetivo de doutrinação (séculos XVIII e XIX) e que a partir da década de 50 do século XX, o foco passou para a veiculação de informação. Porém, é claro que a apropriação de cada informação pelo leitor acontecerá de formas diversas, dependendo dos conhecimentos acumulados no decorrer de sua vida e do contexto histórico, social, político e cultural em que ele vive (CHARTIER, 1999). Portanto, para lidar com a problemática das informações contidas nos jornais, o pesquisador deve observar no processo de análise, as condições de sua produção, que envolve a materialidade a técnica e o conteúdo, que para a autora possuem historicidade, devendo o historiador identificar a função social da publicação. Em relação a materialidade, Luca (2008) ressalta que o historiador deve buscar se inteirar do processo de produção do jornal, sua aparência física, capa, formato, tipo de papel, diagramação, qualidade da impressão, uso ou não de ilustrações. Chartier (1999) enfatiza que a materialidade, o suporte, poderá fornecer pistas a respeito de um determinado objeto, que este aspecto influencia na apropriação do leitor (pesquisador). Sobre isso o autor diz que: [...] a forma do objeto escrito dirige sempre o sentido que os leitores podem dar àquilo que leem. Ler um artigo em um banco de dados eletrônico, sem saber nada da revista na qual foi publicado, nem dos artigos que o acompanham, e ler o “mesmo” artigo no número da revista na qual apareceu, não é a mesma experiência. O sentido que o leitor constrói, no segundo caso, depende de elementos que não estão presentes no próprio artigo, mas que dependem do conjunto dos textos reunidos em um mesmo número e do projeto intelectual e editorial da revista ou jornal. Quanto a técnica, o historiador deve estar atento a “[...] estruturação e divisão do conteúdo, as relações que manteve (ou não) com o mercado, a publicidade, o público a que visava atingir, os objetivos propostos.” (LUCA, 2008, p. 138), considerando que fazer uma leitura crítica da fonte envolve historicizá-la e esclarecer o porque dentre um montante de fontes, elas foram escolhidas. 308 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X No tocante ao conteúdo, que envolve o processo de apropriação por meio da leitura, o historiador deverá se munir de um método, análise do discurso por exemplo, que lhe dê condições de lidar com o conteúdo que possui, originalmente, subjetividade e ainda sofrerá uma análise composta da subjetividade do outro (o próprio historiador), uma vez que não há possibilidade de neutralide absoluta do pesquisador, mas um esforço de comprensão, crítica, reflexão e objetivação dos resultados considerando, conforme Certeau (2002), que o processo historiográfico infere um lugar social do pesquisador, sua técnica e sua escrita. Portanto, para lidar com o conteúdo das fontes, o historiador precisa ter claro seu objeto, problema, objetivos, para que elabore as questões necessárias às fontes e esteja atento aos detalhes, vestígios e com as “lentes” corretas enxergue as possíveis respostas. De posse dos dados fornecidos pelas fontes, o historiador poderá, junto com o arcabouço teóricometodológico, elaborar sua síntese e registrá-la, construindo portanto, por meio das fontes, um discurso, ou seja um conhecimento histórico (CERTEAU, 2002). Entendemos que, na verdade, todas as fontes sejam elas escritas, iconográficas, arqueológicas ou outra, traz consigo a subjetividade inerente ao ser humano que a produziu, porque há intencionalidade nas suas ações; mas que há também objetividade, uma vez que os seres humanos são constituídos pela razão e emoção que vivem em constante disputa, a objetividade também ocorre por meio do método científico utilizado e da organização das ideias, culminando em um texto científico (objetivo, que se dá a ver), no entanto sempre permeadas por sua subjetividade. Então, consideramos a fonte jornal como uma possibilidade válida para a construção da pesquisa histórica, desde que as ações do pesquisador sejam orientadas por métodos que sistematizem o processo e deem condições da concretização do discurso histórico. 4 Considerações O texto visou abordar sobre o caminho da historiografia, evidenciando aspectos relacionados as fontes históricas jornais. Nesse sentido, acreditamos que alcançamos o objetivo e enfatizamos a relevância da discussão sobre fontes/documentos históricos, considerando imprescindível a divulgação das produções sobre, ou, que envolva o assunto. Ou ainda, a divulgação das próprias fontes que foram encontradas no processo de pesquisa que porventura sejam desconhecidas do grande público. 309 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Tomar conhecimento do que acontece, principalmente em relação à vida do outro, do seu presente e do seu passado, mobiliza diversos profissionais sejam repórteres, cineastas, artistas plásticos, autores, historiadores, etc.; conhecer o “outro” é uma busca constante de nós seres humanos. E uma das maneiras de se “conhecer” o outro é por meio da pesquisa histórica, que se concretiza por meio do exercício historiográfico do pesquisador, que utilizando-se de fontes/documento e método(s), faz a análise, a crítica, a síntese e registra este novo conhecimento, que se tornará novo documento (CERTEAU, 2002). Inserindo-me no universo da pesquisa histórica, percebi as inúmeras possibilidades de estudo das questões culturais e de fontes, a quase obsessão dos pesquisadores históricos em vasculhar documentos em busca de pistas que lhe direcionem às respostas(s) aos seus questionamentos. Por outro lado, percebi também, que nem todos os pesquisadores se dispõem a caminhar pela pesquisa histórica por considerarem-na um trabalho insalubre, cansativo, monótono, uma vez que se fica horas, dias, meses e até anos debruçados sobre inúmeros documentos, algumas vezes muitíssimo danificados, em busca de alguma informação que lhe possibilite construir um conhecimento a partir de dados que se não fossem visualizados, ficaria ali, inerte, sem significação. Por todas as possibilidades e dificuldades, a pesquisa histórica é atraente e sedutora nos levando a reconstruir e preservar as construções elaboradas através dos tempos e espaços trilhados pelo homem e são as fontes históricas que permitem ao historiador executar sua “operação historiográfica”, citando Certeau (2002), sendo os jornais uma possibilidade valiosa para a pesquisa histórica, desde que seja utilizado o método adequado para sua análise. Enfim, ao considerar que não há sociedade sem sujeitos e que sem estes não há conhecimento (REIS, 2003), são os sujeitos que, com suas experiências e memórias, possibilitam a construção do conhecimento histórico, utilizando-se de “[...] códigos lingüísticos, práticas especializadas, regimes de verdade, poderes institucionais que são finitos e históricos.” (REIS, 2003, p. 156). Referências BOUDER, Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Portugal: Europa América, 1983. BURKE, Peter. O que é história cultural?. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. (Coleção Repensando a História). 310 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X CERTEAU, Michel de. A Operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1999. GRESPAN, Jorge. Considerações sobre o método. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2008. P. 291-300. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006. KARNAL, Leandro; TATSCH, Flavia Galli. A memória evanescente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011. LE GOFF, Jacques. Documento Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. 7. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. p. 485-499. LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p.111-153. REIS, José Carlos. História e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Brasília: UNB, 2003. 311 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ST04 – O Brasil Republicano: Histórias, Memórias, Historiografia Protagonismo das mulheres indígenas em Alagoas (1989-2010) Ana Valéria Dos Santos Silva330 RESUMO: A pesquisa é resultado da Monografia apresentada como requisito para obtenção do título em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Procura analisar o protagonismo da mulher indígena em Alagoas e a sua participação política. Elas, passam a buscar autonomia através de organizações com objetivo de defender os seus direitos coletivos e suas particularidades de gênero. Através da historiografia recente, oficinas, encontros e conferências, a pesquisa busca então a pensar os estudos recentes sobre as mulheres indígenas no Brasil analisando as primeiras organizações femininas no âmbito nacional até chegar em um recorte de Alagoas através da trajetória de Graciliana Wakanã e a sua atuação no COIMI. PALAVRAS-CHAVE: Mulheres, Gênero, Protagonismo. Introdução As mulheres indígenas do Brasil ainda são grandes desconhecidas apesar de essas apresentar grande crescimento na atuação do movimento indígena em geral. Quando analisamos a atuação das mulheres indígenas no estado de Alagoas é possível constatar essa invisibilidade, mesmo com mulheres atuantes no movimento indígena com grande importância não só para o estado de Alagoas, como também para outros estados brasileiros, a exemplo de Maninha Xucuru Kariri e Nina Katokin. Maninha, foi a primeira mulher dirigente da Apoinme e liderou a luta pela terra junto ao seu povo e ajudou a construir retomadas por todo o Nordeste e Nina Katokin é Cacica e uma das principais liderança feminina indígena de Alagoas. Pesquisas que abordem a participação feminina indígena em Alagoas ainda são poucas, mesmo em regiões onde o número de populações indígenas é significativo, a invisibilidade dessas mulheres em diversos estudos ainda é uma realidade não apenas na historiografia, mas 330 Graduação em História pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL 312 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X também em outras áreas da Ciências Humanas. Essa realidade, talvez seja explicada devido as mesmas não aparecer nas fontes, devido a sua dupla invisibilidade a primeira por ser indígena e a segunda por ser mulher. Ao buscar pensar como esse grupo aparece nos primeiros registros escritos pelo olhar dos europeus ao chegar no território brasileiro, percebemos a caracterização da mulher indígena de forma pejorativa e hiper sexualizada trazendo uma ambiguidade ao retratá-las como disponíveis ao sexo ora como esposas devotas. Sobre isso, a historiadora Suelen Siqueira Júlio reflete, em seu artigo “O recorte de gênero na História Indígena: contribuições e reflexões”, sobre alguns estudos que prioriza o recorte de gênero, abordando os papéis exercidos pela mulher indígena no período colonial. Os autores citados por ela (FLECK, 2006; RAMINELLI, 1997; TENÓRIO & GOMES, 2004) comparam os relatos dos viajantes e dos missionários sobre as representações da mulher indígena: Para os primeiros, elas eram belas, sexualmente pecaminosas e as responsáveis pela recepção dos visitantes das aldeias. Já para os jesuítas, elas iam passando de auxiliares do demônio e incitadoras da luxúria à condição de grandes devotas, pregadoras inclusive, à medida que se convertiam. Os padres buscavam tomar essas convertidas como exemplos, destacando casos de índias que mortificavam a carne com golpes a fim de fugir da luxúria, que foram mortas por se recusarem ao sexo ou que se arrependeram após algum santo aparecer para elas. (JÚLIO, 2016, p.6) Algumas pesquisas as colocam como essenciais para a colonização no período colonial, excluído todo o processor de violência. Porém estudos como "De Cunhã a Mameluca a mulher tupinambá e o nascimento do Brasil", do historiador João Azevedo Fernandes, traz uma nova abordagem. O autor busca tratar da importância da mulher nos costumes e trabalho na sociedade colonial, coloca a mulher como protagonista da História dos tupinambás e da História da colonização. Sendo assim, a mulher é apresentada no livro como um elemento autônomo e não submisso aos interesses dos homens. Os estereótipos sobre as índias construídas através do olhar europeu as colocavam como a mercê dos interesses e mandos dos homens. Júlio, em sua dissertação de mestrado, utiliza o autor Joaquim Machado de Oliveira (1790-1867) para defender que, no século XIX, essa ideia 313 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X já era rebatida. Oliveira, no seu artigo intitulado “Qual era a condição social do sexo feminino entre os indígenas do Brasil?” publicado em 1842, defendia a importância das mulheres nas diversas sociedades indígenas, baseando-se em exemplos de índios de diferentes localidades e etnias. “Pretendia mostrar que a ideia de que as índias eram tratadas como escravas era uma construção baseada nos escritos dos primeiros observadores europeus, que não conheciam a fundo as realidades ameríndias” (JÚLIO, 2015, p.171). Novas pesquisas têm sido desenvolvidas sobre a mulheres indígenas com o objetivo de repensar o papel delas na sociedade brasileira, utilizando diversas abordagens e problematizando o significado de ser mulher indígena não só no período colonial, mas em toda a história do Brasil. Esse interesse dos pesquisadores pode ser explicado através da crescente participação e articulação delas em organizações políticas e pela crescente valorização das mulheres em geral enquanto sujeitos históricos. 1. Participação política das mulheres indígenas As mulheres indígenas vêm conquistando espaço de destaque e visibilidade na política, até então difícil de ser ocupado até por homens indígenas. Recentemente há o caso da conhecida Sônia Guajajara, que foi candidata a vice-presidente da República no partido PSOL nas eleições de 2018, e Joênia Batista Carvalho, deputada federal do partido REDE-RR, eleita no mesmo ano. Esta última foi, de acordo com o site Agência Brasil, “a primeira mulher indígena para a Câmara dos Deputados, desde que esta foi criada, em 1824 – ano em que a primeira Constituição brasileira foi promulgada, sem qualquer menção à existência e aos direitos dos índios brasileiros. Há 31 anos, desde que o cacique xavante Mário Juruna deixou o Congresso Nacional, em 1987, um índio não era eleito deputado federal.” (RODRIGUES, 2019). A participação das mulheres indígenas no movimento político não é algo recente, essas mulheres sempre defenderam seus interesses nos ambientes considerados públicos pelo nas indígenas. Ortolan Matos (2012), sobre isso, defende que as indígenas não estavam alienadas das tomadas das decisões coletivas sobre os destinos da sua comunidade. Para explicar o seu posicionamento, a autora defende “ser necessário reposicionar o olhar analítico para conseguir enxergar a diferença de perfis entre as esferas pública e privada quando vivenciadas nas sociedades indígenas e as mesmas esferas quando vivenciadas nas sociedades não indígenas.” (MATOS, 2012, p.147) 314 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X É nas suas casas que as mulheres debatem junto com outros integrantes da sua comunidade sobre aspectos que interferem na sua realidade e a partir daí durante certo período históricos os líderes masculinos saem da sua comunidade para defender o que foi acordado entre todos. É fundamental entender que, nas sociedades indígenas, os assuntos políticos e as decisões que afetam a coletividade mais ampla também são tratados no espaço doméstico e não reservados somente ao espaço público. Se, por um lado, as atividades femininas pertencem ao espaço doméstico, por outro, as ações (incluindo falas) protagonizadas pelas mulheres indígenas também chegam a afetar o espaço público, por estarem inseridas em comunidades cujo caráter doméstico implica em atuações políticas. Por muitos anos, entre os povos indígenas no Brasil, o papel político de interlocução e representação do grupo doméstico em espaços públicos, dentro e fora da aldeia, foram exercidos pelos homens com certa exclusividade. No entanto, a situação mudou significativamente, nos últimos anos. (MATOS, 2012, p.148) Porém, quando analisamos as primeiras organizações femininas marcadamente de gênero, pesquisadores afirmam que estas começas a surgir efetivamente a partir de 1990, apenas duas surgiram na década de 1980, caso da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) e Associação das Mulheres Indígenas de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié (AMITRUT), todas as demais foram fundadas a partir de 1990.” (SACCHI, 2016, p.2). Nos anos de 1970 e 1980, as mulheres indígenas, que exerceram o papel de lideranças em suas localidades, ocuparam cargos na Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e se fizeram ouvir por algumas instituições internacionais, tais como: a Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento (Norad), a Oxfam, o Departamento para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido (DFID), a Cooperação Técnica Alemã (GTZ), entre outras.” (VERDUM, 2008, p.11) As mulheres indígenas, na década de 1980, intensificaram sua participação em reuniões políticas tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Sua participação destacou-se quando fizeram parte das discussões e de campanhas reivindicatórias mais gerais tais como o direito territorial, a saúde, a educação escolar diferenciada, a 315 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X autodeterminação sobre o uso dos recursos naturais. Os espaços políticos dos quais elas participavam enriqueciam-se com as pautas específicas por elas colocadas, tais como a saúde reprodutiva das mulheres, a violência familiar e interétnica, a soberania alimentar e a participação nas decisões políticas. (VERDUM, 2008, p.11) Os autores que se debruçam sobre o assunto afirmam que foi na década de 1990 que as organizações de mulheres indígenas de diferentes características se intensificaram. Nesse contexto, elas tinham como objetivo participar e atuar de forma mais direta nos projetos e demandas do movimento indígena. Ortolan Matos (2012), ao analisar o espaço político das mulheres na trajetória do movimento indígena na Amazônia Legal Brasileira, defende que as mulheres indígenas se colocaram no movimento indígena, sobretudo em sua fase inicial, de modo complementar à luta dos líderes masculinos. A mesma autora, ao explicar sobre essa crescente participação da mulher em organizações femininas, defende que estava relacionado com a crescente ampliação e diversificação da atuação das organizações indígenas no contexto da política indigenista do Estado brasileiro e também das políticas de financiamento, resultando na abertura de espaços próprios às questões de gênero. Dessa forma, “mulheres indígenas foram assumindo postos de liderança em departamentos e organizações que tratavam especificamente das questões envolvendo as mulheres indígenas.” (MATOS, 2012, p.10) A Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) reuniu-se em Assembleia Ordinária realizada em maio de 2001, em Santarém (PA) e foi colocado como encaminhamento a criação de uma instância nacional para tratar das questões das mulheres. Esse departamento se configurou como o primeiro espaço institucional específico para as demandas das mulheres indígenas (VERDUM, 2008). Nesse encontro, foi identificado a necessidade de articulação de um encontro nacional de mulheres indígenas que foi realizado mais tarde. “Em 2002 foi realizado o I Encontro de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira com financiamento da Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento (Norad)” (VERDUM, 2008, p.12). Nesse encontro, foi criado um departamento integrante da COIAB, que se configurou como um primeiro departamento de mulheres indígenas no Brasil (DMI/Coiab), visto que se tinha percebido uma ausência de organização nacional de mulheres 316 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X indígenas. O objetivo principal do departamento era o de defender os direitos das mulheres e as suas demandas específicas. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, conhecida como COIAB, propõe articular os povos indígenas da Região amazônica e ter um departamento para tratar de questões específicas das mulheres, o que foi uma grande conquista para elas. “O que as lideranças femininas pretendiam com a criação do departamento era articular todas as associações de mulheres da região, oferecendo-lhes maior oportunidade de participação nas deliberações da organização macrorregional, ou melhor, a partir desse departamento, acreditavam estar garantindo às mulheres indígenas a inserção de seus interesses e reivindicações específicas na agenda coletiva do movimento indígena.” (MATOS, 2012, p.157) Estudar o protagonismo dessas mulheres, suas organizações políticas e as questões de gênero na sua comunidade é de extrema importância para tomar conhecimento das suas necessidades e das bandeiras que defendem. Foram nesses espaços que elas tomaram voz e reivindicaram seus direitos frente aos indígenas e não indígena. Hoje existem várias organizações de mulheres indígenas no Brasil e em cada região podem se perceber semelhanças e diferenças que são discutidas em seminários e reuniões desenvolvidas com o objetivo de diminuir os danos ou solucionar os problemas levantados pelas mesmas. Os silêncios sobre essas mulheres nas produções históricas precisam ser trabalhados para que se possa dar voz àquelas que são normalmente esquecidas por ser indígena e por ser mulher. “Suas experiências precisam ser contadas na contramão dos silêncios, das violações e das discriminações impostos pelas colonizações aos povos indígenas.” (SAMPAIO, 2001, p.9) 2. O protagonismo feminino em Palmeira dos Índios Como foi observado no capítulo anterior, a participação política da mulher indígena não é algo recente, elas sempre buscaram discutir os temas relacionados à sua comunidade dentro de ambientes que os não indígenas acabam por classificar como domésticos. É nesse ambiente doméstico que elas passam a ter voz nas discussões políticas que envolviam os interesses do seu povo, porém aqueles que acabavam por estar na linha de frente defendendo esses interesses já 317 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X discutidos na comunidade terminavam sendo espaços majoritariamente masculinos, mas isso não quer dizer que elas não participavam das decisões. Com o decorrer do tempo, a mulher indígena passou a ganhar voz dentro e fora da comunidade de forma mais significativa, defendendo os interesses do seu povo e de temas particulares das mulheres. Com isso, buscaram se articular em organizações e a planejar as suas ações para alcançar determinados objetivos, esses sempre alinhados com o movimento indígena geral, ou seja, suas pautas não excluíam reivindicações de todos os povos indígenas, sendo eles homens e mulheres. A pauta principal do movimento indígena em geral se refere ao direito à terra, pois é através dela que os povos indígenas conseguem assegurar a sobrevivência e reafirmação da identidade indígena. Sendo assim, as mulheres indígenas e suas organizações não estão totalmente desvinculadas a essas questões, pois influenciam diretamente nas suas vidas. Além disso pautas como o combate ao preconceito, ao uso de bebidas alcoólicas, maior participação da mulher como lideranças fazem parte da articulação destas mulheres e fortalece a luta do movimento indígena por seus direitos. Contudo, é preciso compreender que essas articulações e organizações ocorrem de forma distintas, cada etnia e cada organização busca transformar uma determinada realidade, podendo ter aproximações e distanciamentos. Isso acontece porque as mulheres indígenas não são um grupo homogêneo: as relações de contato, a sua história, relações de poder e outros fatores vão influenciar e determinar as suas particularidades. Sabendo disso, buscarei analisar aqui o protagonismo feminino na comunidade indígena de Palmeira dos Índios e, para isso, será analisada a atuação do Comitê Intertribal de Mulheres Indígenas de Alagoas (COIMI) e a trajetória de Graciliana Celestino Wakanã, presidente e fundadora deste comitê. Como fonte de pesquisa será analisada a cartilha do Stsô-Setsônika elaborada em 2015, recortes de jornais e entrevistas, a fim de entender melhor como as mulheres passaram a ultrapassar silenciamentos e invisibilidades e quais as suas pautas reivindicatórias nesta determinada região. 2.1 Trajetória da Graciliana Wakanã e Comitê Intertribal de mulheres indígenas No dia 17 de junho de 1975, nascia na aldeia Fazenda Canto, município de Palmeira dos Índios (AL), Graciliana Celestino Gomes da Silva ou Wakanã, seu nome indígena, filha do cacique Xucuru Kariri, Manoel Celestino da Silva, e de Maria de Lourdes Gomes da Silva, da 318 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X nação Kalankó. Uma Xucuru Kariri “índia boa de briga”, é assim que é colocada no livro Gogó da Ema (SCHUMAHER, 2004, p.14), como uma consequência do seu trabalho junto ao Comitê Intertribal de Mulheres Indígenas e a sua trajetória de vida. Em uma breve pesquisa em recortes de jornais sobre a participação da mulher indígena na política, o nome dela se torna constante quando se faz um recorte de Alagoas. Graciliana cresceu na Fazenda Canto e o seu início no movimento indígena inicia de forma comum as demais mulheres desse grupo, inicialmente ao para aprender a ler e escrever passa a auxiliar os líderes da sua comunidade anotando aquilo que foi debatido nas reuniões. Ela, passou a participar ativamente no movimento indígena quando enfrentou o chefe de posto da FUNAI que tinha desentendimentos com o Cacique Celestino, seu pai. A antropóloga Silvia Aguiar Carneiro Martins, em sua dissertação de mestrado intitulada “Os caminhos da Aldeia... Índios Xucuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais”, relata um pouco sobre esses conflitos entre Cacique Celestino e o Chefe de Posto Gracindo. Em sua ida a campo, percebeu os conflitos entre o chefe de posto e o Cacique e descreveu alguns detalhes sobre o assunto. Ela comenta que estando em uma loja onde o chefe de posto estava presente, acaba percebendo algumas articulações entre os que estavam ali contra o Cacique Celestino. Falavam sobre um trator que foi apreendido pelo chefe do posto por não permitir seu uso pelo Sr. Manoel Celestino, alegando que o problema seria resolvido com um motorista, porém o Cacique não havia concordado. A autora esclarece também que esse chefe de posto não residia em Palmeira dos índios e sim em Maceió, quando estava no município ficava hospedado no Quartel da Polícia Militar ou no Verde Hotel. Sobre ele: “os índios de uma forma geral, tanto na Fazenda Canto como na Mata da Cafurna, demonstravam insatisfação com a atuação dele; vários desentendimentos já tinham ocorrido em ambas as áreas entre o chefe de posto e os índios”. (MARTINS, 1993, p.68) Durante esses conflitos, Graciliana, ao tomar atitudes frente ao chefe de posto, passou a ser percebida pelos adultos da sua comunidade como tendo um perfil de liderança mesmo ainda muito jovem. Durante a entrevista, Graciliana comentou que o chefe de posto Gracindo havia chegado na sua casa para prender seu pai com seus amigos militares e, ao ver aquela situação e entender um pouco das leis por ter acompanhado as reuniões e ouvir os demais, sabia que ali não poderia entrar policiais militares no território indígena. 319 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Mas, foi em 1989 quando começa a participar do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher de Alagoas, que Graciliana passa a identificar-se com mulher indígena feminina. Pois, passa a aprender e trocar conhecimentos com outras mulheres brancas e negras que haviam se fundado organizações para a defesa dos seus interesses. Assim, que surge o comitê intertribal de mulheres indígena de Alagoas. O Comitê Intertribal de Mulheres Indígenas (Coimi), foi criado em uma reunião onde estavam presentes 21 mulheres; foi institucionalizado em janeiro de 2000 e possuía o mesmo perfil das demais organizações de mulheres indígenas presentes no Brasil, buscando fortalecer as lideranças femininas do Nordeste e contribuir junto com outras organizações para melhorar as condições de vida dos povos indígenas. O COIMI realizou diversas ações desde a época de sua fundação. Através da cartilha do Stsô-Setsônika elaborada em 2005, conclui-se que o objetivo do Comitê, além de incentivar a maior participação das mulheres como lideranças, buscou incentivar o associativismo feminino na luta pela educação, saúde e criação de renda para essas mulheres. Os povos indígenas que participaram das ações que consistiam em Seminários, Oficinas e capacitações do COIMI foram: Tiguí-Boto, Katokin, Karuazu, Karapotó, Wassu-Cocal, KaririXocó, Wakonã-Kariri, KaririXucuru, Geripankó, Kalankó, Pankararú, Kambiwá, Fulni-ô, Pítaguari, Genipapo Canindé, Tremembé e Kariri. Sendo assim, as etnias que participaram do comitê são do estado de Alagoas, Pernambuco, Ceará e Bahia, possuindo diversas formas de se organizar e diferenças culturais. As diversas ações elaboradas pelo COIMI tinham o objetivo de debater temas sobre Associativismo, potencialidades produtivas e gênero. Nesse ambiente estavam presentes homens e mulheres. As mulheres estavam guiando as discussões, mas os homens também participavam, realizando atividades relacionada a logística e participando como ouvintes Conclusão Para falar dos povos indígenas na contemporaneidade, deve-se dar voz àquelas que vem se destacando cada vez mais não só na comunidade indígena, mas também fora dela, tornandose deputadas e candidatas a cargos políticos de destaque e, com isso, combater a invisibilidade e os estereótipos que são atribuídos a elas desde o período colonial que perduram até os dias de hoje. 320 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Percebe-se que as organizações de mulheres indígenas não estão apenas comprometidas com pautas sobre gênero. Estas mulheres, além de estarem organizadas na defesa de pautas específicas das mulheres como uma maior participação destas no movimento indígena, estão comprometidas também com os direitos essenciais para a sobrevivência do seu povo como saúde, educação de qualidade e demarcação de terras. Dessa forma, a importância de aumentar as pesquisas relacionada a esses temas consiste em trazer novos olhares para elas, que quase sempre são colocadas como excluídas do processo político e duplamente silenciadas por serem mulheres e indígenas. Conhecer sua realidade, seu cotidiano e como se dão as relações de gênero presentes na comunidade poderá identificar como estas mulheres vêm alcançando espaços até então majoritariamente masculinos. BIBLIOGRAFIA CASTILLO, R. Aílda Hernández. Entre el etnocentrismo feminista y el esencialismo étnico. Las muljeres indígenas y sus demandas de género. México, 2002. DE PAULA, Luís Roberto. 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Na ocasião, o candidato a presidência foi questionado sobre sua posição acerca do Regime Militar instalado após o Golpe de 1964. Em sua resposta Jair elogiou um editorial do jornal O Globo de 1984 onde seu proprietário, Roberto Marinho, pontuava a participação e apoio do Grupo Globo à “Revolução de 1964”. Essa memória gerou mal-estar entre os jornalistas, sobretudo na economista Miriam Leitão, ex-militante do PCdoB presa pelas Forças Armadas durante o período. Buscamos, portanto, problematizar aspectos ligados ao esquecimento e silenciamento de determinadas memórias, por vezes vinculadas a um passado traumático, assim como os usos políticos desse passado e a importância do estudo dessas memórias. Construímos essa narrativa a partir da interlocução com uma série de autores, dentre os quais destacamos Benito Schmidt (2007), Mateus Pereira (2007), Ulpiano Meneses (1992), Beatriz Kushnir (2012), Tania de Luca (2012) e Maria José Rezende (2001). O diálogo estabelecido com os escritos de cada um desses autores possibilitou a construção de um texto permeado por referenciais de memória, política e escritos jornalísticos, conforme se tornará observável a partir da leitura. Palavras-chave: História. Memória. Mídia. 1. “O que é bom está na Globo”332 Durante o primeiro turno da Campanha Eleitoral de 2018, as Organizações Globo realizaram uma série de entrevistas com os candidatos à presidência mais bem colocados nas pesquisas. Os encontros tomaram proeminência na última semana de agosto, com sabatinas nas emissoras Globo e GloboNews, seguindo uma ordem definida em sorteio, onde foram 331 332 Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Slogan das Organizações Globo em 1973. 323 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X contemplados: Ciro Gomes (PDT), na segunda; Jair Bolsonaro (PSL), na terça; Geraldo Alckmin (PSDB), na quarta; e Marina Silva (Rede), na quinta. O ex-presidente Lula (PT), que na ocasião liderava as pesquisas eleitorais não pôde participar das entrevistas, por encontrar-se preso em Curitiba, desde abril de 2018. Dessa forma, a representação do Partido dos Trabalhadores seria ouvida apenas no dia 14 de setembro, três dias após Fernando Haddad assumir a posição de candidato do PT à presidência da República. As sabatinas das Organizações Globo mostravam-se como programas com alto índice de audiência na TV brasileira e, portanto, uma vitrine positiva ou negativa para os candidatos, que foram entrevistados às 20h:30m no Jornal Nacional (Rede Globo) e a partir das 22:00h na Central das Eleições (Globo News). O Jornal Nacional é um telejornal brasileiro exibido desde setembro de 1969, em horário nobre, de segunda-feira a sábado pela Rede Globo. O telejornal recebeu 14 vezes o Troféu Imprensa, sendo o maior vencedor em sua categoria. Seis desses troféus foram conquistados de forma consecutiva, desde 2014, naquela que é considerada a mais tradicional premiação referente ao entretenimento do país, tendo sido criada em 1958.333 Tais credenciais denotam o alcance do telejornal e a importância desse espaço de fala no jogo político. Por sua vez, a Central das Eleições foi um programa especial da GloboNews, que ficou no ar durante toda a campanha eleitoral de 2018, com debates, entrevistas, pesquisas de intenções de voto e análise de comentaristas acerca da conjuntura política. Estreou na segunda-feira, 30 de julho, com entrevistas aos, até então, pré-candidatos à presidência. As exibições foram um sucesso e deram um “boom” de audiência ao canal. Com a “Central das eleições”, a GloboNews ficou atrás só da Globo no ranking geral do público AB1. A audiência da faixa (das 22h30m à 0h30m) registrou um crescimento de 400% comparando com as quatro semanas anteriores. ... E mais Ficou assim o ranking geral da audiência, por candidato que participou da sabatina: Jornal Nacional é o campeão no Troféu Imprensa 2018. Portal Canãa. Disponível em <https://portalcanaa.com.br/site/entretenimento/celebridade/jornal-nacional-e-o-campeao-no-trofeu-imprensa2018/> Acesso em: 11/04/2020 às 20:50. 333 324 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Jair Bolsonaro (1.460.029 espectadores); Ciro Gomes (957.753); Geraldo Alkmin (930.849); Marina Silva (693.738) e Álvaro Dias (543.717).334 Conforme o ranking geral da audiência podemos observar que a sabatina de Jair Messias Bolsonaro alcançou um índice significativo de espectadores, concentrando 31,84% do público total do programa, que recebeu outros 4 candidatos. Esse número é representativo, tendo em vista que Bolsonaro teria pouco tempo de propaganda no rádio e na televisão: 8 segundos e 11 inserções - a título de comparação, o tucano Geraldo Alckmin teria 5 minutos e 32 segundos e 434 inserções na programação. Para estipular o tempo de cada candidato, leva-se em conta o número de deputados federais eleitos pelo partido em 2014. No caso do PSL, foram apenas dois.335 Esse curto tempo de propaganda oficial foi compensado por uma árdua atuação nas redes sociais, assim como um constante envolvimento em falas polêmicas que repercutiam dentro da mídia. Decididamente, a tática de campanha adotada por Bolsonaro encontrava na imprensa um inimigo a ser combatido, constantemente provocando e pondo em cheque a credibilidade dos meios de comunicação. Um levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo encontrou registro de 129 ataques de Jair Messias Bolsonaro à imprensa desde o início do ano de 2018 até a reta final da corrida eleitoral, “foram contabilizadas 39 acusações de falsidade e 38 denúncias de partidarismo a veículos de comunicação e jornalistas, além de 49 mensagens genéricas em que o capitão reformado do Exército deixou explícito o objetivo de estimular o descrédito a imprensa”.336 Um episódio marcante desses ataques aconteceria justamente na sabatina da Central das Eleições, citada anteriormente e transmitida ao vivo, no dia 03 de agosto. Os jornalistas das Organizações Globo ficaram desconcertados diante da fala capciosa de Jair Bolsonaro, que viria se repetir durante a sabatina do Jornal Nacional, no dia 28 de agosto. Ao ser indagado por Roberto D’Ávila sobre sua negação quanto a existência de uma ditadura no KOGUT, Patrícia. Central das eleições' faz crescer a audiência da GloboNews em 400%. O Globo. Rio de Janeiro, 08 de ago. 2018. Disponível em: <https://kogut.oglobo.globo.com/noticias-datv/coluna/noticia/2018/08/central-das-eleicoes-faz-crescer-audiencia-da-globonews-em-400.html>. Acesso em 25 de jun. 2019. ODILA, Fernanda. Eleições 2018: Os candidatos à Presidência e quais dificuldades têm de superar durante a campanha. BBC Brasil. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42313908> Acesso em: 13/04/2020 às 17:00. Ataques de Bolsonaro à imprensa chegaram a dez por semana no fim da campanha. Folha de São Paulo. 3 de nov. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/ataques-de-bolsonaro-a-imprensachegaram-a-dez-por-semana-no-fim-da-campanha.shtml> Acesso em: 15/04/2020 às 13:00 334 335 336 325 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Brasil e como isso poderia influenciar nos seus atos enquanto presidente, o militar da reserva afirmou que a TV Globo foi fundada durante o Regime Militar (em 1965) e completou: Eu quero aqui elogiar, saudar a memória do senhor Roberto Marinho. Editorial de capa do jornal ‘O Globo’ de 7 de outubro de 1984, ‘Senhor Roberto Marinho’: ‘Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas ameaçadas pela radicalização ideológica, distúrbios sociais, greves e corrupção generalizada’. [...] O senhor Roberto Marinho… O senhor acha que ele foi um democrata ou um ditador? Eu acabei de falar, por favor, me responda, um democrata ou um ditador?337 A colocação de Jair Bolsonaro causou um mal-estar entre os entrevistadores, por trazer à tona um episódio que a emissora buscava esmaecer. Nesse âmbito, situamos a posição das Organizações Globo ao conceito de esquecimento, que Andreas Huyssen nos ajuda a compreender, a partir de sua interlocução com Paul Ricoeur; o autor situa o esquecer num campo de termos e fenômenos como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, repressão – todos os quais revelam um espectro de estratégias tão complexo quanto o da própria memória. Com base na análise do discurso empregado pelos jornalistas, torna-se visível a busca por esmaecer essa memória e silenciar a narrativa que vincula a emissora aos militares no período de ditadura. Ricceur sugere algumas distinções básicas: o esquecimento como mémoire empêchée [memória impedida], que está primordialmente relacionado com o inconsciente freudiano e com a compulsão à repetição; segundo, o esquecimento como mémoire manipulée [memória manipulada], que tem uma relação intrínseca com a narratividade, no sentido de que qualquer narrativa é seletiva e implica, passiva ou ativamente, certo esquecimento de que uma história poderia ser contada de outra maneira; terceiro, o oubli CANDIDATO à presidência Jair Bolsonaro (PSL) é entrevistado na Central das Eleições. Globo News Play. 03 de ago. 2018. Disponível em: < https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6921428/> Acesso em: 20 de jun. 2019. 337 326 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X comandé [esquecimento obrigatório], ou esquecimento institucional que prevalece nos casos de anistia.338 Em determinado momento, a economista Miriam Leitão busca deslocar o foco de debate indicando “candidato, o importante é saber o seguinte: não é o passado, é o futuro. Em um governo seu, que risco há de se repetir esses atos do passado que o senhor acha que não são ditatoriais?”.339 Jair Bolsonaro então finaliza “Senhora, Miriam. Zero. Zero. Eram momentos diferentes, era uma outra época que aconteceu aquilo lá. ” Nesse ponto, podemos observar nitidamente o desconforto gerado pelo candidato do PSL, ao vincular as Organizações Globo ao Regime Militar, levando uma mulher que foi vítima do período a deslocar o foco da discussão para o “futuro”. A proposição de Miriam Leitão nos oferece uma nova chave para compreender a memória. Ao passo que a jornalista desloca as discussões do passado para o futuro, não esquece o questionamento sobre a possibilidade de que os atos anteriormente realizados voltem a acontecer “que risco há de se repetir esses atos do passado? ”; ao mesmo tempo que situa a posição de Jair Bolsonaro como apoiador do Regime Militar, “que o senhor acha que não são ditatoriais”. Conforme Gagnebin, é próprio da experiência traumática essa impossibilidade do esquecimento.340 Nesse sentido, podemos observar Miriam Leitão como uma vítima do período que busca respostas e nega-se a aceitar uma relativização desse discurso. Abaixo, observaremos um trecho da entrevista concedida pela ex-militante do PCdoB em 2014, após a divulgação de relatórios das Forças Armadas, seu primeiro esforço consistia em tentar dizer o indizível, numa tentativa de elaboração simbólica do trauma que lhes permitisse continuar a viver e, simultaneamente, numa atitude de testemunha de algo que não podia nem devia ser apagado da memória e da consciência da humanidade.341 HUYSSEN, Andreas. Resistência à memória: usos e abusos do esquecimento público, In: Culturas do passado presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. P. 158-159. CANDIDATO à presidência Jair Bolsonaro (PSL) é entrevistado na Central das Eleições. Globo News Play. 03 de ago. 2018. Disponível em: <https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6921428/> Acesso em: 20 de jun. 2019 às 14:30 GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Após Auschwitz” e “O que significa elaborar o passado, In: Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 99. Ibid. 338 339 340 341 327 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fui levada para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um plástico preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à paisana, um com muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês. Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo. O de cabelo preto me bateu: – A roupa! Tire toda a roupa. Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns 10 soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. O homem de cabelo preto falou: – Posso dizer a todos eles para irem pra cima de você, menina. E aqui não tem volta. Quando começamos, vamos até o fim. Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar, um clima de estupro iminente. O tempo nessas horas é relativo, não sei quanto tempo durou essa primeira ameaça. Viriam outras. Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá.342 Ao longo da entrevista, Miriam faz um detalhado relato sobre as condições que lhe foram impostas no quartel do Exército em Vila Velha, no Espírito Santo, ao longo de um mês, iniciado em 4 de julho de 1972. Amélia, como era conhecida, tinha 19 anos e estava grávida, afirma ter entrado no quartel com 50kg e ter saído com 39kg, chegando a passar 48h sem alimentação alguma, o que lhe provocara enormes chances de perder o bebê, além de outras mazelas, como carência aguda de vitamina D por falta de sol. Todavia, Miriam nunca pediu indenização pelas violências sofridas, o que a jornalista espera é um pedido de desculpas: “Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de CUNHA, Luiz Cláudio. Míriam Leitão fala sobre tortura que sofreu nua e grávida de 1 mês durante ditadura. O Globo. 19 de ago. 2014. Disponível em <https://oglobo.globo.com/brasil/miriam-leitao-fala-sobre-torturaquesofreu-nua-gravida-de-1-mes-durante-ditadura-13663114> Acesso em: 08 de jul. 2019 às 09:25 342 328 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo. As Forças Armadas nunca reconheceram o que fizeram”. 343 Conforme a jornalista, sua vingança foi sobreviver e vencer, mas aguarda esse pedido de desculpa, por seus filhos e netos. “Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país.”344 O desejo de Miriam Leitão por esse pedido de desculpas pode ser compreendido com a leitura de Benito Schmidt, que em seu artigo “Cicatriz aberta ou página virada: Lembrar e esquecer o golpe de 1964 quarenta anos depois” examina estratégias de enquadramento e de silenciamento das lembranças do período, no que concebe como “batalhas de memórias”. O cerne de sua análise consiste na promulgação da Lei de Anistia pelo governo do general João Figueiredo em 1979, que procurava instaurar por decreto uma reconciliação nacional, baseada no esquecimento do passado. Assim, anistiavam-se tanto os presos políticos, os exilados e os clandestinos, quanto os mandantes e responsáveis por torturas e assassinatos.345 A anistia trouxe ao país os presos políticos, exilados e clandestinos, mas os mortos e desaparecidos não voltaram sequer na forma de um atestado de óbito. [...] Os torturadores, mandantes e responsáveis pelas torturas e assassinatos não foram condenados, nem sequer julgados ou citados em processos criminais, a maior parte mantendo-se no anonimato até hoje. Porque foram, então, anistiados? Não pelo império da lei, mas através de uma interpretação da lei de que a abertura política poderia retroceder se houvesse por parte da oposição uma postura revanchista.346 A maneira como o fim da ditadura foi encarada no Brasil difere em grande medida do trato estabelecido na Argentina e nos outros países da América Latina que enfrentaram ditaduras militares. O nosso país vizinho engajou-se numa luta política, jurídica e simbólica para não esquecer o destino dos “desaparecidos” – as cerca de 30 mil vítimas do terrorismo do Estado perpetrado pela ditadura e seus esquadrões da morte nos anos 1976-1983. Ibid. Ibid. SCHMIDT, Benito Bisso. Cicatriz aberta ou página virada? Lembrar e esquecer o golpe de 1964 quarenta anos depois. Anos 90, v.14, n.26, p.127-156, dez.2007, p. 135. Ibid. 343 344 345 346 329 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Andreas Huyssen afirma que o esquecimento era claramente atraente para grande parte da sociedade, mas a intensa luta pelos direitos humanos travada para reconhecer-se a criminalidade do regime militar mostrou-se bem-sucedida, no cômputo geral, levando ao julgamento das juntas militares, que desencadearam sentenças de prisão para os generais.347 No âmbito brasileiro, a política adotada afasta os algozes do regime militar do sentimento de culpa, dificultando um pedido de perdão das Forças Armadas, como o desejado por Miriam Leitão, à medida que se fortalecem discursos como o de Jair Bolsonaro, que relativizam ou negam os acontecimentos do período. Essa narrativa justifica no presente, em particular, práticas, discursos, ideologias e lógicas que permanecem. Em grande medida, a impunidade em relação aos crimes praticados pelo Estado durante o período de 19641985 é o principal motor que faz com que essa “comunidade de memória” persista, cresça e se transforme e, sobretudo, que não sinta ou manifeste remorso ou culpa e, por consequência, não aceite nem reconheça qualquer tipo de erro. Em vez do remorso ou da culpa assistimos ao estímulo ao ódio e ao ressentimento. Afetos que também impedem ou dificultam um pedido de desculpas e/ou perdão pelos erros praticados: “o próprio das afecções é sobreviver, persistir, permanecer, durar, conservando a marca da ausência e da distância (...); nesse sentido, essas inscrições-afecções conteriam o segredo do enigma do rastro mnemônico”. Ainda sim, é preciso destacar, “cabe à noção de inscrição comportar referência ao outro; o outro que não a afecção enquanto tal. A ausência, como o outro da presença!” 348 No bloco final da sabatina, a jornalista Miriam Leitão, âncora do programa, toma a propriedade da fala, para transmitir uma mensagem da direção do programa Central das Eleições, que busca afastar a culpa das Organizações Globo em seu envolvimento com o Regime Militar, durante a sua fala a ex-militante não consegue disfarçar a dificuldade em proferir as seguintes palavras: Ibid. PEREIRA, Mateus. Nova direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (20122014). Varia História, Belo Horizonte, v.31, n.57. p.863-902, 2007, p. 884. 347 348 330 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O candidato Jair Bolsonaro disse, há pouco, que Roberto Marinho, identificado com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, apoiou editorialmente o que chamava então de "revolução de 1964". É fato. Não somente O Globo, mas todos os grandes jornais da época. O candidato Bolsonaro esqueceu-se, porém, de dizer que, em 30 de agosto de 2013, O Globo publicou editorial em que reconheceu que o apoio editorial ao golpe de 1964 foi um erro. Nele, o jornal diz não ter dúvidas de que o apoio pareceu, aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento, a atitude certa, visando ao bem do país, e finalizava com estas palavras: 'à luz da História, contudo, não há por que não reconhecer hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram deste desacerto original. A democracia é um valor absoluto e, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma'"349 A repercussão em torno dessa mensagem foi ampla, se tornando instantaneamente um dos assuntos mais comentados do Twitter, rede social popular por sua fluidez na circulação de informações em tempo real. As postagens variavam em seus conteúdos, porém predominavam as críticas as Organizações Globo, conforme podemos ver abaixo: O editorial das Organizações Globo balbuciado por Miriam Leitão ao final da sabatina com Bolsonaro foi um dos maiores tiros no pé que o jornalismo brasileiro já deu em sua história.350 Todavia, alguns usuários da rede foram menos enfáticos e buscaram contextualizar a fala da apresentadora: “Pô gente, sério que ninguém entendeu o que houve? A Globo ‘se deu’ um direito de resposta no programa, já que o Bolsonaro falou que ela apoiou o golpe. A Miriam Leitão era a porta voz da mensagem e só repetiu o que estavam falando no ponto APOIO editorial ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de ago. 2013. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604> Acesso em: 18 de jun. 2019 às 16:35 VASQUES, Martim. O editorial das Organizações Globo balbuciado por Miriam Leitão ao final da sabatina com Bolsonaro foi um dos maiores tiros no pé que o jornalismo brasileiro já deu em sua história. Twitter: @martimvasques, 4 de ago. 2018. Disponível em: < https://twitter.com/martimvasques/status/1025589149125025792> Acesso em 24/04/2020 às 9:00. 349 350 331 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X dela. Tem tanta dificuldade de entender?”(sic)351, comentou o jornalista Casimiro Miguel em seu perfil. A então pré-candidata a vice-presidente Manuela D’Ávila, na chapa formada pelo PT/PCdoB, solidarizou-se com Miriam Leitão, relembrando o seu passado e considerando um equívoco a escolha das Organizações Globo em colocar a nota no ar através da figura da jornalista, junto ao texto abaixo seguia o vídeo com o momento da fala. Não sei de quem foi a decisão de ler a nota sobre a Globo e ditadura ao final da entrevista de Bolsonaro. Ñ pude deixar de pensar, apesar de todas as divergências que tenho com Miriam Leitão, o assédio moral q é colocar uma mulher presa e torturada pela ditadura p/ ler aquele texto. (sic) 352 Minutos após, Manuela acrescenta o seguinte tópico à postagem inicial: “2) Afinal, conforme o vídeo mostra, juntar Globo e Democracia na mesma frase provoca gagueira, constrangimento, vermelhidão e rubor na face.”353 1.1. Entre no ar, no pique da Globo354 O editorial citado por Miriam foi publicado semanas após um leva de protestos em junho de 2013, que ficaram conhecidas por “Manifestações dos 20 centavos” ou “Jornadas de Junho”. Os movimentos desencadeados nesse contexto tiraram milhares de pessoas de casa, em diversas cidades do Brasil, sobretudo nas capitais e cidades de grande porte, com reinvindicações inicialmente ligadas a diminuição da tarifa do transporte público, todavia as reclamações escritas em cartazes feitos à mão foi uma marca importante desses atos, demonstrando a diversidade de posições e pensamento sobre a realidade brasileira, assim MIGUEL, Casimiro. Pô gente, sério que ninguém entendeu o que houve? A Globo “se deu” um direito de resposta no programa, já que o Bolsonaro falou que ela apoiou o golpe. A Miriam Leitão era a porta voz da mensagem e só repetiu o que estavam falando no ponto dela. Tem tanta dificuldade de entender?. Twitter: @casimiro. 4 de ago. 2018. Disponível em: < https://twitter.com/Casimiro/status/1025586817947582464> Acesso em: 24/04/2020 às 8:20. D’ÁVILA, Manuela. Não sei de quem foi a decisão de ler a nota sobre a Globo e ditadura ao final da entrevista de Bolsonaro. Ñ pude deixar de pensar, apesar de todas as divergências que tenho com Miriam Leitão, o assédio moral q é colocar uma mulher presa e torturada pela ditadura p/ ler aquele texto. Twitter: @ManuelaDavila. Porto Alegre, 4 de ago. 2018. Disponível em: <https://twitter.com/ManuelaDavila/status/1025813559060484096> Acesso em: 08 de jun. 2019 às 10:00 D’ÁVILA, Manuela. 2) Afinal, conforme o vídeo mostra, juntar Globo e Democracia na mesma frase provoca gagueira, constrangimento, vermelhidão e rubor na face.. Twitter: @ManuelaDavila. Porto Alegre, 4 de ago. 2018 Disponível em: <https://twitter.com/ManuelaDavila/status/1025813863147728902> Acesso em: 08 de jul. 2019 às 10:02 Slogan das Organizações Globo em 1984. 351 352 353 354 332 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X como a ausência de uma direção única e de lideranças de movimentos sociais já conhecidos no cenário político coordenando tais atos.355 Nesse contexto, junto aos coros contrários as organizações públicas também podia ouvir-se: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura!”. O grito dos manifestantes evocava uma memória silenciada, que ao ser instigada provocou a instituição a responder. Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura. Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro. Há alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se que ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para ser publicado quando o site ficasse pronto. Não lamentamos que essa publicação não tenha vindo antes da onda de manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas nos deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era correta e que o reconhecimento do erro, necessário.356 MOREIRA, Orlandil de Lima. Vem pra rua: os protestos de junho. In: SOUSA, Cidoval Morais de; SOUZA, Arão de Azevêdo (org.). Jornadas de Junho: Repercussões e Leituras. Campina Grande, PB: EDUEPB, 2013, p. 14. APOIO editorial ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de ago. 2013. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604> Acesso em: 18 de jun. às 16:35 355 356 333 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Figura 2: Levante Popular da Juventude 357 Figura 3: Protesto da União da Juventude Socialista358 Mediante as manifestações populares, as Organizações Globo anteciparam o editorial que seria publicado no projeto Memória, um espaço online que estava em fase de desenvolvimento com o intuito de, conforme o site do jornal, “resgatar e preservar a história do jornal”359 Nesse sentido, problematizamos essa proposição a partir das noções de Ulpiano Meneses, o autor situa que a crescente popularidade da memória, seja como tema acadêmico, seja como bandeira política, tem obscurecido sua natureza de fenômeno social. Conforme Ulpiano, com frequência a memória é associada como mecanismo de registro e retenção, depósito de informações, conhecimentos e experiências; por outro lado, também, diz-se que a memória corre o risco de se desgastar, dessa forma precisa ser preservada ou restaurada na sua integridade; numa busca de afastá-la do esquecimento, da ocultação, afirmam quem a memória deve ser resgatada: como uma criança que caiu num poço e não consegue subir à superfície sem o auxílio providencial dos bombeiros. Contudo, o autor considera, que a memória não pode ser confundida nem com seus vetores e referências objetivas, nem como ser considerada uma substância redutível a um pacote de recordações; ao contrário, a memória é um processo permanente de construção e reconstrução, um trabalho. A heterogeneidade que pode estar presente na memória individual e, mais amplamente, na de grupos e coletividades, torna seu resgate uma ilusão.360 Cientes disso, continuamos a análise do projeto Memória, desenvolvido pelas Organizações Globo. Ao adentrarmos na página inicial do portal, temos a possibilidade de observar uma série de abas, onde podemos navegar, nas quais se incluem: capa; linha do tempo; jornalismo; perfis e depoimentos; institucional; fotos; erros e acusações falsas; humor e vídeos. Enfatizamos a sessão “erros e acusações falsas”, onde estão presentes cinco matérias, em ordem cronológica, onde as Organizações Globo fazem um exercício de autocrítica para com a memória. Todavia, nas matérias não fica evidente um pedido de desculpas, mas uma tentativa Disponível em: <https://www.agenciajovem.org/wp/apoio-ditadura-midia-que-defendeu-militares-nao-sedesculpa> Acesso em: 22 de jun. 2019 às 15:30 Disponível em <https://www.conversaafiada.com.br/pig/bolsonaro-enfia-roberto-marinho-na-goela-dobonnerkamel> Acesso em: 22 de jun. 2019 às 15:40 O QUE é memória? O Globo. Disponível em: <http://memoria.oglobo.globo.com/> Acesso em: 23 de jun. 2019 às 10:00 MENESES, Ulpiano de. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 34, 1992, p. 10-11. 357 358 359 360 334 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de minimizar os seus erros. Ao falar do seu apoio ao golpe, a instituição cita outros jornais de grande circulação: “A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como ‘O Estado de S.Paulo’, ‘Folha de S. Paulo’, ‘Jornal do Brasil’ e o ‘Correio da Manhã’, para citar apenas alguns.” 361 E complementa, ressaltando o clima de instabilidade do período, fazendo alusão a um possível golpe do presidente João Goulart, evidenciando uma lógica maniqueísta de conceber a história: Naqueles instantes, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de sindicatos — Jango era criticado por tentar instalar uma “república sindical” — e de alguns segmentos das Forças Armadas. [...] A situação política da época se radicalizou, principalmente quando Jango e os militares mais próximos a ele ameaçavam atropelar Congresso e Justiça para fazer reformas de “base” “na lei ou na marra”. Os quartéis ficaram intoxicados com a luta política, à esquerda e à direita. Veio, então, o movimento dos sargentos, liderado por marinheiros — Cabo Anselmo à frente —, a hierarquia militar começou a ser quebrada e o oficialato reagiu. Naquele contexto, o golpe, chamado de “Revolução”, termo adotado pelo GLOBO durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única alternativa para manter no Brasil uma democracia. Os militares prometiam uma intervenção passageira, cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas para a sua intervenção, ultrapassado o perigo de um golpe à esquerda, o poder voltaria aos civis. Tanto que, como prometido, foram mantidas, num primeiro momento, as eleições presidenciais de 1966. 362 Com base em Fernando Felizardo Nicolazzi e Caroline Silveira Bauer, podemos compreender esse recurso como a reprodução de uma construção discursiva baseada na chamada teoria dos dois demônios, desenvolvida durante os processos de transição política na Argentina e no Brasil. Os autores empregam esse conceito ao analisar a obra de Marco Villa, APOIO editorial ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de ago. 2013. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604> Acesso em: 18 de jun. 2019 às 16:35. 362 Ibid. 361 335 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ditadura à Brasileira (2014), onde o historiador, formado pela Universidade de São Paulo, pontua que uma fração importante da esquerda brasileira que atuava na década de 1960, sobretudo aquela envolvida com a militância armada, tinha ela própria tendências golpistas, terroristas e, em certa medida, foi a grande motivadora da violência da repressão estatal. O autor constrói uma argumentação semelhante à das Organizações Globo, propondo que a grande vítima neste conflito entre a direita e a esquerda seria a democracia.363 Os autores estabelecem essa análise para enfatizar a questão dos usos públicos do passado, manifestando aos historiadores que o gesto historiográfico, como forma de atuação pública, é ele também um gesto político, e pode ser assim encarado. A atenção às variadas formas de usos públicos do passado pode ajudar a lançar luz sobre os fatos e incitar a reflexão crítica. Ao falar sobre o passado, o autor de Ditadura à Brasileira está agindo sobre o presente, sua escrita da história, assim como sua atuação midiática, são formas de uso público, e, portanto, político do passado. Assim como nas manifestações das Organizações Globo, que ao evocar o embate dos dois demônios e ao citar a participação de outros jornais, constrói uma defesa para os embates de memória recentes. Considerações Finais: “A gente se vê por aqui”364 Consideramos assim, que ao estudar a história e a memória do jornalismo durante o Regime Militar não devemos cair em determinismos ou leituras cristalizadas. Avaliamos, dessa forma, a imprensa como um grupo circunscrito no contexto de sua época, sujeita as condições impostas pelo governo, como decretos-lei assinados em diferentes momentos do regime que impunham uma censura prévia aos escritos de jornalistas; por outro lado, não podemos perder de vista a autocensura, uma subcategoria da censura cujos danos são mais perigosos, haja visto que não é o silêncio da ignorância ou falta de discernimento, e sim o da abstenção consciente. Os resultados, para o público, são semelhantes aos da censura em termos de manipulação do conhecimento e do entendimento, mas com frequência acrescenta-se o elemento de que o público sequer sabe que lhe está sendo negada a informação. Isso representa um nível mais alto de distorção ao qual ele está sendo submetido.365 BAUER, Caroline Silveira; NICOLAZZI, Fernando Felizardo. O historiador e o falsário. Usos públicos do passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea. Varia Historia, v.32, n.60, 2016, p. 823. Slogan das Organizações Globo de 2001-2012 SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: O consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 138. 363 364 365 336 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Referências APOIO editorial ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de ago. 2013. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604>. ARAÚJO, Angela de Aguiar. A imprensa brasileira e a política nos anos 1960 e 1970: “esvaziamento político” ou “lugar de descoberta” da memória social. Anais do VI Encontro de História da Mídia, em São Luís do Maranhão, 2005. 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Dando-nos elementos para identificarmos a diáspora Xokó a partir da década 1970 com o cercamento da Ilha de São Pedro, antigo aldeamento, até 1991; data da homologação pelo Decreto Federal n.º: 401 de 24/12/1991. A terra indígena Ilha/Caiçara fica localizada no município do Porto da Folha, Sergipe. Para isso, dialogamos com autores sobre alguns conceitos: T. Eagleton, conceitos de cultura; P. Burke, poder, hegemonia e resistência; Stuart Hall, identidade cultural e diáspora, dentre outros para compreensão da (re) afirmação identitária Xokó. Essas análises são partes da pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em História da Universidade Federal de Alagoas. Entender as dinâmicas e as transformações ao longo desse processo de memória diaspórica são de suma importância para a minha pesquisa. Palavras-chave: História oral; Identidade Cultural e Diáspora Xokó; Poder hegemônico Abstract: The purpose of the text is to reflect on the process of retaking Xokó from the oral narratives; of historical memory and social subjects in the present time. It was intended to identify how the ancient Caboclos of Caiçara – as they were known –, reached in time and space in a process of struggle against characters who held hegemonic power, the Xokó indigenous self-assertion. It is Indígena Xokó; Graduado em História Licenciatura Plena – UFAL; Mestrando no PPGH/UFAL; Ativista e Membro GT: "Os índios na história/SE", (ANPUH-SE); E-mail: ivanilsonmartins762@gmail.com . 366 339 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X interesting how these identities are (re) affirmed in 2021. We used the method: thematic oral history and qualitative research of the complete analyst type. Giving us elements to identify the Xokó diaspora from the 1970s onwards, with the enclosure of São Pedro Island, a former village, until 1991; date of approval by Federal Decree No.: 401 of 12/24/1991. The Ilha/Caiçara indigenous land is located in the municipality of Porto da Folha, Sergipe. For this, we dialogued with authors about some concepts: T. Eagleton, concepts of culture; P. Burke, power, hegemony and resistance; Stuart Hall, cultural identity and diaspora, among others for understanding the self (re) affirmation of Xokó identity. These analyzes are part of the ongoing research at the Stricto Sensu Graduate Program in History at the Federal University of Alagoas. Understanding the dynamics and transformations throughout this diasporic memory process are of paramount importance for my research. Keywords: Oral history; Cultural Identity and Xokó Diaspora; Hegemonic power Introdução: Fazer história oral significa, portanto, produzir conhecimentos históricos, científicos, e não simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experiência dos “outros” [...]. Além disso, a história oral é um ponto de contato e intercâmbio entre a história e as demais ciências sociais e do comportamento, especialmente com a antropologia, a sociologia e a psicologia (LOZANO, 2006, p.1719). A diáspora é a década 1970. Em 1978 o meu povo Xokó367 cercaram a Ilha de São Pedro — antigo aldeamento — e, em 1991, conseguiram na Justiça federal a homologação pelo Decreto n.º: 401 de 24/12/1991, da demarcação da terra indígena Ilha/Caiçara. Quando Utilizamos o termo Xokó com o “K” e não com o “C”, considerando a nomenclatura Xokó, pois, nós indígenas Xokó da Ilha de São Pedro/Caiçara/Sergipe nos identificamos hoje assim. Nos documentos históricos e coloniais podem ser encontrados grafias: Xokó, Shocó, Chocó, Chocoz, Ciocó ou Ceocose. A FUNAI expede documentos com K, e considerando também a 1ª Convenção Para a Grafia dos Nomes Tribais da Revista de Antropologia, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 150-152, dez. 1954. Transcrição de documento assinado na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia. Rio de Janeiro, em 14 nov. 1953. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/issue/view/8378>. Acesso em 17 de agosto de 2020. 367 340 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X falamos em Ilha/Caiçara, estamos nos referindo a todo território pertencente ao meu povo Xokó, à terra indígena que fica localizada no município do Porto da Folha, Sergipe. Portanto, entendemos que esse processo de retomada pelo territorial e pela identidade, se deu, sobretudo, a partir das narrativas orais; da memória histórica e dos sujeitos sociais no tempo presente, ou seja, da história presentista. Através dela, os antigos Caboclos da Caiçara — como éramos conhecidos — alcançamos no tempo e espaço, num processo de luta contra personagens que detinham poder hegemônico, nossa auto (re) afirmação indígenas Xokó. Hoje, entra em questão, como essas identidades são (re) afirmadas em 2021. Utilizamos o método da história oral temática e a pesquisa qualitativa, com estilo de pesquisa faceta metódica, que utiliza fontes orais, do tipo analista completo.368 Sobre a epígrafe, porém, não é um chamamento para a discussão de mérito em história oral, mas, para esclarecer o nosso entendimento enquanto a metodologia. Neste sentido, encontramos respaldo na história oral temática e na pesquisa qualitativa. Desta forma, “(…) as entrevistas não se sustentam sozinhas ou em versões únicas” (MEIHY; HOLANDA, 2015, p. 38). Além disso, buscam através das teorias, intercâmbios entre a história e as demais ciências, bases epistêmicas para as interpretações e análises.369 De acordo com Jorge Eduardo Aceves Lozano (2006, p. 23), o estilo analista completo: “Não se limita a um único método e a uma técnica, mas as complementam e as tornam mais complexas. Explicitam sua perspectiva teórico-metodológica da análise histórica e, sobretudo, estão abertos e dispostos ao contato com outras disciplinas”. Elementarmente, entendemos as narrativas orais como sendo fontes “criadas no encontro entre historiador e narrador” (PORTELLI, 2016, p. 9).370 Concordamos com Amado e Ferreira (2006, p. XVI), ao enfatizar que “(…) história oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho — tais “Nesse estilo de trabalho, a tarefa de produzir conhecimentos históricos se torna válida, especialmente rica e atual, já que implica: reflexão teórica, trabalho empírico e de campo; maior ligação e vínculo pessoal com os sujeitos estudados; um processo de constituição de uma fonte e um processo de produção de conhecimentos científicos (...)”. Ver: LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org). Usos & abusos da história oral. - 8. ed. - Rio de Janeiro: Editora FGV. 2006, p. 24. “Com a História Oral temática, a entrevista tem caráter temático e é realizada com um grupo de pessoas, sobre um assunto específico. Essa entrevista – que tem característica de depoimento– não abrange necessariamente a totalidade da existência do informante. Dessa maneira, os depoimentos podem ser mais numerosos, resultando em maiores quantidades de informações, o que permite uma comparação entre eles, apontando divergências, convergências e evidências de uma memória coletiva, por exemplo”. FREITAS, Sônia Maria de. História oral: possibilidades e procedimentos. 2. ed. – São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 21-22. Quando nos referirmos as narrativas orais, estamos situando em forma transcrita como fonte. Ver: PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. Tradução: Ricardo Santhiago. São Paulo: Letra e Voz. op. cit., p. 9 368 369 370 341 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X como os diversos tipos de entrevista e as implicações de cada um deles para a pesquisa (…)”. É interessante a afirmação de Reinhart Koselleck (2014, p. 37), quando diz que “A transmissão oral de avós a netos não basta para que se perceba a mudança em longo prazo”. Podendo ser compreendida por meio da reflexão histórica, pois, ultrapassam gerações e fogem à experiência imediata. Entendemos, portanto, que a metodologia da história oral pode ser ampliada através de outras fontes. Neste caso, “(…) utilizando a metodologia da História Oral produz-se uma documentação diferenciada e alternativa da história (…)” (FREITAS, 2006, p. 46). Na qual, é claro, possa haver subjetividades como quaisquer outras fontes, no entanto, devemos nos atentar e estar abertos às outras possibilidades de análises. Nessa perspectiva, Wilson do Nascimento Barbosa (1992, p. 19), afirma que “O encontro dos métodos adequados para tratar os problemas que foram identificados permite o entrecruzamento de percepções propiciadas por diferentes análises, cuja riqueza pode então ser explorada na síntese que se elabora”. Sendo assim, sustentamos na história oral como metodologia e buscamos interações com antropologia; história social; cultural e epistemologia decolonial. Pois, a história oral como uma metodologia, “(…) não dispõe de instrumentos capazes de compreender os tipos de comportamento descritos (bastante comuns, aliás). Apenas a teoria da história é capaz de fazê-lo, pois se dedica, entre outros assuntos, a pensar os conceitos de história e memória, assim como as complexas relações entre ambos” (AMADO; FERREIRA, 2006, p. XVI). Para Alessandro Portelli (2016, p. 18), “A história oral, então, é história dos eventos, história da memória e história da interpretação dos eventos através da memória”. Porquanto, pensamos a luta pela reconquista do território e da identidade indígena Xokó, despertada, sobretudo, pelo sentimento de rememoração que “(…) pode ser um difícil processo de negociação entre o individual e o social, pelo qual identidades estejam permanentemente sendo construídas e reconstruídas, garantindo-se uma certa coesão à personalidade e ao grupo, concomitantemente” (GOMES, 1996, p. 6). Ou seja, a memória como processo de (re) afirmação da identidade, que, por motivos sensíveis, foram reivindicadas. Pois, “(…) ela refaz o passado segundo os imperativos do presente de quem rememora, ressignificando as noções de tempo e espaço e selecionando o que vai e o que não vai ser "dito", bem longe, naturalmente, de um cálculo apenas consciente e utilitário (GOMES, 1996, p. 6). Assim, a memória retoma os acontecimentos que para meu povo Xokó, foram estratégias de permanência para a continuidade no território ancestral, usurpados pela família 342 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Brito desde pelos menos meados do século XIX, e retomado pelo meu povo Xokó na década de 1970. Para Peter Burke (2002, p. 108), o apadrinhamento pode “levar ao problema do poder”, numa relação o qual Antonio Gramsci chamara “hegemonia” . O que explicaria, a relação e o tempo que os Xokó levaram para reaver nossa identidade cultura e o nosso território sagrado por direito imemorial. Para Stuart Hall (1996, p. 69), “(...) as identidades culturais provêm de alguma parte, têm histórias. Mas, como tudo o que é histórico, sofrem transformação constante”. Deste modo, “Aqui surge um fenômeno que torna tão interessante a história: não só acontecimentos súbitos e singulares produzem mudanças; as estruturas de maior duração — que possibilitam as mudanças — parecem estáticas, mas também mudam (KOSELLECK, 2014, p. 22). Uma mudança necessária para que os Xokó se libertassem e retomassem a vida cultural e as práticas de nossa identidade indígena. Neste sentido, partindo do conceito de cultura e das suas raízes etimológicas, “Se somos seres culturais, também fazemos parte da natureza sobre a qual vamos trabalhar. Com efeito, parte do sentido da palavra «natureza» é recordar-nos o continuum entre nós próprios e o que nos rodeia, tal como a palavra «cultura» é útil para realçar a diferença” (EAGLETON, 2003, pp. 16-17). Para Marx (2011, p. 25), “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”. As escolhas foram a lutas e a consequências a retomada do território com a homologação em 1991 e a (re) afirmação identitária de ser Xokó da Ilha de São Pedro. Trabalhamos o conceito de história ressaltado pelo historiador alemão Reinhart Koselleck (2013, p. 206). Para ele, “(...) o conceito de História varia correspondentemente à experiência de ruptura que o determina. Por um lado, podia não apenas se referir à durabilidade do passado em processo de desaparecimento, mas também requerer a preocupação permanente com o futuro, indicando o rumo a ser seguido. Uma explicação clara e interpretativa, mostra que o meu povo Xokó não desapareceu como indicava a historiografia tradicional, mas fez uma escolha “permanente com o futuro, indicando o rumo a ser seguido”.371 A nossa história! Nessa perspectiva, o tópico, História e Memória: experiências e narrativas orais para (re) afirmação da identidade Xokó e seus contextos históricos, discorre, sucintamente, sobre a história de luta do meu povo Xokó a partir do levantamento Sobre os desaparecimentos, ver: LEGRE, Maria Sylvia Porto. Cultura e História: sobre o desaparecimento dos povos indígenas. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, vol. XXIII/XXIV, nº1/2,1992/1993. Disponível em:< http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/9648/1/1992_art_mspalegre.pdf> Acesso em: 18 de maio de 2021. 371 343 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X bibliográfico; da memória histórica e dos sujeitos sociais no tempo e espaço. Para isso, entendemos a história do tempo presente e a memória histórica base de uma construção histórica para esse [nosso] protagonismo. Neste sentido, a legitimidade e delimitação “(...) ao passado recente pode ajudar‐nos produzir uma história mais reflexiva, ou seja, mais atenta à historicidade da sua epistemologia e mais consciente da complexidade dos desafios do fazer da história hoje” (DELACROIX, 2018, p. 42). Para Le Goff (1990, p. 425), “O processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios”. Para tanto, o tópico Memória histórica: de caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São Pedro, Porto da Folha, Sergipe e suas relações com a memória, refletimos a partir das narrativas orais; da memória histórica e dos sujeitos sociais no tempo presente (1978) como os Caboclos da Caiçara deixaram de ser agricultores sendo reconhecidos como Xokó da Ilha de São Pedro. Destacamos a memória histórica dos sujeitos como meio para autoafirmação de ser Xokó da Ilha de São Pedro/Caiçara. Nessa perspectiva, trabalhar com as narrativas orais tende a abrir outros olhares e perspectivas outras, visto que muitas das pesquisas em história com povos indígenas “(…) exigem um minucioso trabalho de interpretação da documentação produzida por viajantes, cronistas, etnógrafos e outros que, ao longo do tempo, conviveram com populações indígenas e sobre elas deixaram registros escritos e iconográficos, dentre outros” (SILVA, J.; SILVA, G., 2010, p. 37). Esses trabalhos, muitas vezes, abrem margem para os preconceitos e estereótipos atualmente, por silenciar os povos indígenas contemporâneos. História e Memória: experiências e narrativas orais para (re) afirmação da identidade Xokó e seus contextos históricos Nós indígenas Xokó, Socó de onde vem a denominação Xokó; pássaro pescador — somos povos graficamente encontrados nos documentos históricos e coloniais como: Xokó, Shocó, Chocó, Chocoz, Ciocó ou Ceocose entre os séculos XVII e XVIII, de Sergipe ao sul do Ceará. E, no século XIX, no aldeamento São Pedro do Porto da Folha/SE como Ceocose. Historicamente, nosso protagonismo estende-se a esse vasto território. No entanto, não é uma proposta realizar um levantamento histórico desse percurso temporal dos deslocamentos do meu povo. O farei em outro momento, mas entender como são ao longo desse processo (re) afirmados enquanto Xokó da Ilha/Caiçara. Para isso, as narrativas orais como experiências de 344 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X lutas para (re) afirmação da identidade: de Caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São Pedro, Porto da Folha, Sergipe de 1978 a 2021 são importantes para o nosso ponto de partida. O historiador, Eric Hobsbawm, em seu livro Sobre História, 2001, disserta sobre o sentido do passado; da história social à história da sociedade; história de baixo para cima. Ali nos proporciona o entendimento sobre a memória como justificativa de direitos imemoriais; de que todo ser humano tem consciência do passado. O passado pode ser visto como afirmação do presente (direito indígena, identidade) e memória coletiva. Ou seja, o passado possui uma dimensão da consciência humana. Nessa perspectiva, pois, “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro” (LE GOFF, 1924, p. 478). Essa explicação fundamenta sobre a relação da memória e história. Porquanto, base para entendermos que o meu povo Xokó efetuara o uso desta memória para se reinventar enquanto Xokó contemporâneo. Em entrevista realizada por Angelita Queiroz, sobre a festa da retomada Xokó, 2020, ela pergunta a seu Heleno Bezerra Lima — Xokó, sobre o significado desta festa para ele, e para os Xokó, ele responde o seguinte:372 A festa da retomada me representa um passado que eu não vou... desejo para ninguém muito menos para as futuras gerações. Deixando a gente muito alegre e com um sentimento profundo porque a gente sabe que foi muito complicado, custou muito caro essa vitória. Porque hoje a gente vê os jovens sempre. Essa cicatriz pra mim é uma vitória muito grande, porque o que a gente viveu sarou, mas a cicatriz ficará, está e ficará pro resto da vida, porque o tempo apaga, sara uma ferida, mas não apaga a cicatriz. [...] (Heleno Bezerra Lima, 08/09/2019 – Ilha de São Pedro – Porto da Folha/SE, grifos do original).373 Heleno Bezerra Lima — Xokó, explica que a vitória do nosso povo pelo reconhecimento da identidade e do território, foi uma vitória árdua e enfatiza a “cicatriz” dessa Concordamos com a professora Valeria Maria Santana Oliveira, sobre a explicação da festa de Retomada Xokó: para ela, “A Festa da Retomada é a principal celebração dos Xokó e rememora o dia em que os indígenas saíram da Caiçara, onde eram oprimidos pelos fazendeiros, para tomar posse das terras da Ilha de São Pedro. Era o dia 9 de setembro de 1979, data que, no imaginário Xokó, tornou-se análoga ao Sete de Setembro, o Dia da Independência do calendário civil” ver: OLIVEIRA, Valeria Maria Santana. Memória/ identidade Xokó: práticas educativas e reinvenção das tradições. 2018. Tese (Doutorado em Educação). - Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade Tiradentes, Aracaju: UNIT, 2018, p. 132). Entrevista realizada por: QUEIROZ, Angelita. A festa da retomada: uma celebração identitária de ser Xokó na Ilha de São Pedro – Porto da Folha/SE. 2020. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Culturas Populares). – Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Culturas Populares (PPGCULT). Universidade Federal de Sergipe (UFS). São Cristóvão (SE), 2020, p. 96. 372 373 345 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X luta como elemento decorrente da resistência Xokó. Retoma nessa narrativa a história recente, recorre à retórica para expressar nas entrelinhas as lutas dos nossos antepassados. Nesse sentido, “o tempo apaga, sara uma ferida, mas não apaga a cicatriz”. Lembrando-se dos sofrimentos que nós Xokó, quando éramos pejorativamente chamados de Caboclos da Caiçara. Pois, “Não se trata, portanto, de colocar em competição [entre a] memória e história, mas de considerar como pode se realizar a reapropriação do passado histórico por uma memória que a história introduziu e com muita frequência feriu” (DELACROIX, 2018, p. 59). Vejamos, nessa perspectiva, os séculos XVIII e XIX. Quando os Brito — família proprietária de terras — influenciaram e se apossaram de grandes extensões no Sertão do São Francisco pertencentes ao meu povo Xokó. Terras, “doadas” em Alvará de 1700 e confirmadas pela Lei de 4 julho de 1703 por El-Rei de uma légua em quadra para os indígenas e os missionários.374 O fazendeiro João Fernandes de Brito, “se assenhora gradativamente das terras na qualidade de foreiro [das terras Xokó] e no ano de 1897 desfruta da posse de 5 dos 8 lotes em que foram divididas as terras dos índios” (DANTAS, 1980, p. 169). Os terrenos pertencentes ao meu povo Xokó (local do antigo aldeamento São Pedro do Porto da Folha — SE), foram sendo gradativamente arrematados por diversos fazendeiros utilizando-se do discurso de mestiçagem no século XIX. Conforme o pensamento da professora Dr. Luana Teixeira (2013, p. 5–6), quando enfatiza que um dos objetivos da política imperial a respeito dos indígenas, e: “(...) que, quando não eliminados fisicamente, a população nativa passasse a se integrar à massa da população. Por um ou outro modo, físico e simbólico, tratava-se de um projeto de extermínio”. Nessa perspectiva, atrelado a um projeto de branqueamento e “homogeneização nacional da população, segundo o modelo eurocêntrico de nação, só teria podido ser alcançada através de um processo radical e global de democratização da sociedade e do Estado” (QUIJANO, 2005, p. 135). O que não deu certo, acarretando ainda mais os preconceitos e estereótipos para essas populações. Nós, povos indígenas! Para Aníbal Quijano (2005, p. 118): (...) os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no Sobre os direitos dos povos indígenas, ver: CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. Editora Brasiliense, 1987. 374 346 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. No Brasil, esse projeto foi sustentado nas leis indigenistas do império, a exemplo, do Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios (Decreto 426 de 24/7/1845) e da Lei 601, de 18 de setembro de 1850, e seu Decreto de execução (1.318 de 30 de janeiro de 1854), que, explicitamente, possibilitavam os arrendamentos e aforamentos dos antigos aldeamentos pertencentes aos indígenas por direitos ancestrais. Após esses arrendamentos, nós indígenas pertencentes ao povo Xokó, não paramos de reivindicar os nossos territórios. Com essas reivindicações, entendemos como sendo forma de resistência. Em 1888 efetuamos viagens ao Rio de Janeiro para reivindicar os contratos de aforamentos empreendidos pelo coronel João Fernandes de Brito em conluio com a Câmara Municipal da Ilha do Ouro — SE, que, “(...) pede ao Imperador uma légua de terras pertencentes ao extinto aldeamento de São Pedro” (DANTAS, 1980, p. 17). Ou seja, pertencente ao meu povo Xokó. O Governo Imperial entrega as terras à Câmara que as por em aforamento em 1888. Sendo assim, viajam ao Rio de Janeiro, Manuel Esteves dos Anjos; Lourenço Marinho; Jesuíno Serafim de Souza e Manuel Pacífico de Barros, ambos Xokó.375 Essas estratégias de irem diretamente ao governo imperial demostram ativamente o protagonismo do meu povo na reivindicação pelo reconhecimento do direito ao território ancestral e sagrado. Infelizmente, dessa viagem não temos muitas informações de como se procedeu e quais foram os benefícios tidos nesse momento no que diz respeito aos documentos reivindicados.376 Decerto, na pesquisa de campo poderemos obter respostas através das narrativas orais. Pois, (…) a memória (talvez seja melhor dizer as memórias) pode entrar em concorrência com a história, e até mesmo opor‐se a ela censurando a esta última os seus “esquecimentos” ou os seus “recalques” (DELACROIX, 2018, p. 54). Para essas análises, bastam percebermos as trajetórias e as formas de resistência Xokó para entendemos os conceitos referentes as DOCUMENTO N° 20 PÁG. LXXXV OFÍCIO DA DIRETORIA DE AGRICULTURA DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS AO PRESIDENTE DA PROVINCIA DE SERGIPE: 20 DE AGOSTO DE 1888, APES – 421. Resumo: Comunica que voltam para Sergipe índios de São Pedro que foram ao Rio de Janeiro reclamar contra a invasão de suas terras. Recomenda providências para que seus direitos sejam garantidos. DANTAS, Beatriz G; DALLARI, Dalmo. Terra dos Índios Xokó: estudos e documentos. São Paulo: Comissão Pró-Índio. op. cit., pp. 50-51. Infelizmente não iniciei minha pesquisa de campo e com certeza existem algumas informações sobre tais circunstâncias. 375 376 347 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X resistências e protagonismos da memória da nossa história. Em 1916, os Xokó, “ensejaram um novo ciclo de viagens ao Rio de Janeiro e à Bahia promovidas por lideranças Xokó, a fim de reivindicar diretamente junto ao Governo Central a posse das terras em aforamentos” (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 131). Também sem sucesso! No entanto, bastante retomada como narrativa para sustentação da memória ancestral e (re) afirmação de ser Xokó da Ilha de São Pedro/SE. A continuidade dessas resistências pela retomada do território indígena, se deu pela “ocupação da Caiçara e Ilha de São Pedro, em 1930, liderada por Inocêncio Pires e que reuniu aproximadamente 30 Xokó em busca de se reestabelecer na Caiçara após anos de refúgio juntos aos Kariri, de Alagoas” (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 133). No entanto, apenas 20 famílias pertencentes ao meu povo Xokó permaneceram na terra Caiçara silenciando a identidade como estratégia para continuar no território. Trabalhando como meeiros assalariados e ceramista de forma “a tolerar o regime dos coronéis, submetendo-se às relações de favores e de obediência, a trabalhos de baixo rendimento, e ao regime de “meia” em diversas atividades, como na rizicultura, no cultivo de algodão, pesca e até na produção de cerâmica” (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 134). Em 1978, já cansados dessa vida, sem perspectiva de melhoras, decidimos em reunião coletiva e secreta, a retomar o território e cercar a Ilha de São Pedro, onde fica a sede da antiga Igreja construída em meados do século XVII, por volta de 1670. Consideramos, pois, a década de 1970 como sendo marco da diáspora pela retomada identitária de ser Xokó da Ilha de São Pedro/Caiçara. O colonialismo encobria e silenciava a verdadeira identidade cultural Xokó, a exemplo, de nos conhecermos como Caboclos da Caiçara. Para Reinhart Koselleck (2014, p. 62), “A história decorre sempre em diferentes ritmos temporais, que se repetem ou se modificam lentamente; por isso, as experiências humanas são preservadas, mudadas ou refratadas em tempos escalonados”. Sobre o silêncio, difere do silenciamento estratégico, que “(…) está ligado em primeiro lugar à necessidade de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de consentimento tácito, assistiram à sua deportação” (POLLAK, 1989, p. 5). Nesse sentido, a retomada pelo reconhecimento da identidade Xokó, se dá em circunstâncias das experiências que “(…) também são reunidas, resultam de um processo de acumulação, na medida em que se confirmam ou se consolidam por meio de correções recíprocas” (KOSELLECK, 2014, p. 34). 348 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Neste caso, pelos apoios externos e pelo reconhecimento da identidade e do território indígena Xokó. Memória histórica: de Caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São Pedro, Porto da Folha, Sergipe e suas relações com a memória O processo de luta pela retomada Xokó, é, sobretudo, um processo de regate da memória histórica no sentido de “(…) conservar certas informações, [e que] remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1990, p. 424). Porém, bastante presente em nossa consciência ou para esclarecer; em nossa ancestralidade reivindicada pela retomada de 1978 para nos afirmarmos enquanto indígena Xokó. Michael Pollak (1989, p. 10–11), diz que a “(…) memória é também o sentido da identidade individual e do grupo” […] que “A memória é assim guardada e solidificada nas pedras (…)”. Essas memórias foram os suportes para a auto (re) afirmação de ser Xokó. Foi através dessas memórias que nós nos reconhecemos enquanto indígenas da Ilha/Caiçara. Nesse sentido, “A rememoração pode ser um difícil processo de negociação entre o individual e o social, pelo qual identidades estejam permanentemente sendo construídas e reconstruídas, garantindo-se uma certa coesão à personalidade e ao grupo, concomitantemente” (GOMES, 1996, p. 6). Portanto, entendemos essa reconstrução a partir da diáspora, em 1978, com o ato de retomar o território. Isso, imbricado no sentimento de pertencimento, o qual é oficialmente exportada pela retomada que se dá em 1979, com as 22 famílias Xokó. Para tentar esclarecer, é importante o pensamento de Hebe Castro (2011. p. 78), para ela, “(…) em história, todos os níveis de abordagem estão inscritos no social e se interligam (…)”. Ou seja, como sugere Michel de Certeau (1982), “(…) a história social, quer dizer, a história dos grupos sociais e de suas relações” (CERTEAU, 1982, p. 78). Pois, entendemos o processo de retomada Xokó a partir das narrativas orais; da memória histórica e dos sujeitos sociais no tempo presente, como sendo também uma história social pelas relações exportas. Nessa perspectiva, é importante para esse processo, as alianças de apoios das ONGs — Organização Não-Governamentais —, e dos laços de amizades com os quilombolas e sociedade civil organizada para esse reconhecimento que ocasionaram na homologação do território indígena em 1991. Com essa reação de resistência, o meu povo Xokó reativaram todas as 349 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X práticas culturais de nossa ancestralidade. A reação dos fazendeiros foram diversas. Conseguindo retardar através de influências políticas até 1991 a homologação do território indígena Xokó. Após vários anos de luta, o meu povo consegue pelo Decreto N° 401, de 24 de dezembro de 1991, a homologação administrativa da Terra Indígena Caiçara/Ilha de São Pedro, no Porto da Folha / Estado de Sergipe, observemos o texto do Art. 1.º: Fica homologada, para os efeitos do artigo 231 da Constituição Federal, a demarcação administrativa promovida pela Fundação Nacional do Índio — FUNAI, da área indígena Caiçara/Ilha de São Pedro, localizada no Município de Porto da Folha, Estado de Sergipe caracterizada como de ocupação tradicional e permanente do grupo indígena Xocó, com superfície de 4.316,7768ha (Quatro mil, trezentos e dezesseis hectares, setenta e sete ares e sessenta e oito centiares) e perímetro de 35.529,93 metros (trinta e cinco mil, quinhentos e vinte e nove metros e noventa e três centímetros) (BRASIL, 1991, Art. 1º). É perceptível que essa homologação se deu pelos atos de luta como bem já expomos anteriormente. Atos, que “(…) foram realizados, em sua maioria, a partir e pela exigência de demandas sociais de reconhecimento e de justiça — que podem ser rotuladas como reivindicações memoriais” (DELACROIX, 2018, p.47). Porquanto, é parte de uma dívida histórica pelas atrocidades do colonialismo conosco. É emblemático esse Decreto, visto que mesmo com essa homologação, até 1993, outro fazendeiro chamado Jorge Pacheco, que teria comprado parte do terreno do meu povo anterior a homologação, ainda não teria saído do território. Permaneceu na terra de 1991 até 1993. Sendo assim, gerando mais conflitos pela regularização e demarcação da terra indígena. A homologação é de suma importância para bem-estar social e cultural do meu povo e para a garantia da nossa sobrevivência enquanto culturalmente diferentes. Além disso, asseguramos e garantimos proteções da fauna e flora. Um ano depois dessa homologação, no dia 2 de dezembro de 1992, nós Xokó ocupamos a “fazenda São Geraldo que faz limite com Caiçara e com povoado Mocambo (quilombola), objetivando a desapropriação definitiva da Caiçara” (SANTOS, 2020, p. 54). Por conta dessa ocupação, ocorreu uma troca de tiros com pistoleiros de Jorge Pacheco nas mediações da fazenda Surubim e da fazenda sede Caiçara e São Geraldo. Não houve mortes. Esse episódio foi noticiado pelo Jornal Gazeta de Alagoas. Com a notícia ocorrendo 350 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X nos meios de comunicações e as pressões feitas pelo meu povo na FUNAI e, em Maceió, Alagoas, as cobranças para a regularização aumentaram, e, em 12 de maio de 1993, a fazenda Caiçara foi deixada por Jorge Pacheco e seus empregados. O “(...) final da luta pela reintegração das fazendas São Geraldo, Surubim, Caiçara e Belém. Em celebração é realizada uma romaria (…)” (SANTOS, 2020, p. 54). Essa romaria saía da fazenda São Geraldo com destino a sede da fazenda Caiçara. Celebração em homenagem à luta e aos apoios recebidos da Igreja católica naquele momento.377 Com as terras indígenas Xokó regulamentadas pelo governo federal, o meu povo retoma toda vida cultural e ancestral. Nessa perspectiva, utilizamos o termo cultura com significado antropológico que começa a solidificar-se no século XIX. Para Terry Eagleton (2003) “Na opinião de Geoffrey Hartman, Herder é o primeiro a utilizar a palavra cultura em sua moderna acepção de uma cultura de identidade: um modo de vida social, popular e tradicional, caracterizado por uma qualidade que perpassa tudo e leva a que uma pessoa se sinta enraizada ou em casa” (EAGLETON, 2003, p. 41). Sendo assim, é entender que “(…) uma memória também, ao definir o que é comum a um grupo e o que, o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais” (POLLAK, 1989, p.3). Portanto, mesmo após esses eventos históricos, permanecemos na luta e continuamos na Caiçara como Caboclos e Agricultores. Essa permanência é resistência como narra a indígena Xokó, Maria Idalina dos Santos, em entrevista realizada por Angelita Queiroz (2020), vejamos: Saímo do cativeiro pra libertação! Não trabalhamo para rico nem pra nada. O que nós trabalha aqui, o que nós trabalha aqui é nosso. São Pedro deu muita força a nós também. A força primeira é a Deus, e depois é a da mãe natureza. A Igreja deu uma força a nós, o sindicato deu a força a nós. E então e o ritual tem muita, graças a Deus tem muita força. O ritual, o Ouricuri pra nós é muito forte. [...] Ah tem coisas que eu não posso que deve ser segredo. Só posso dizer que é bom pra quem comunica lá sabe? Daquela serra pra lá sabe. De mês em mês a pessoa vai pra lá, se reúne... Tem os que não pode ir, Ver a tese de Doutorado da professora Valéria Maria Santana Oliveira sobre Memória/ identidade Xokó: práticas educativas e reinvenção das tradições. A professora, tece explicações sobre o apoio da Igreja católica na década de 1970 com as minorias. Naquele momento com base na teologia da libertação: OLIVEIRA, Valeria Maria Santana. Memória/ identidade Xokó: práticas educativas e reinvenção das tradições, 2018. Tese (Doutorado em Educação). - Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade Tiradentes, Aracaju: UNIT, 2018. 377 351 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mas a maioria vai no ritual. (Maria Idalina dos Santos, 08/09/2019 – Ilha de São Pedro – Porto da Folha/SE, grifos do original).378 É salutar entender que a retomada pelo território indígena Xokó é ponto de sustentação e continuação da vida cultural por representação. Na narrativa acima da indígena, o Toré e o Ouricuri são retomados em consequência da luta pela terra. Além disso, uma narrativa ligada à nossa ancestralidade, à terra e a Mãe Natureza. Nessa linha de pensamento, é simpático o pensamento de Pierre Bourdieu (1989, p. 10). Para ele, os “símbolos são os instrumentos por excelência da integração social enquanto instrumento de conhecimento e de comunicação […] eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social”. Os símbolos nos permitem interpretar o mundo o qual o social está impelido ou inserido. Nesse sentido, é considerar essas simbologias como realidade cultural e social da sociedade. Bourdieu, enfatiza ainda que: “os símbolos são instrumentos de conhecimento e de comunicação, é um poder da realidade” (1989, p. 9). Portanto, “Os ‘objetos de memória’ são eminentemente bens simbólicos que contêm a trajetória e a afetividade do grupo. Sejam documentos, fotos, filmes, móveis, pertences pessoais etc., tudo tem em comum o fato de dar sentido pleno, de 'fazer viver' em termos profundos o próprio grupo” (GOMES, 1996, p. 7). Sendo assim, “A cultura não é suplementar ao pensamento humano, mas seu ingrediente intrínseco” (LEVI, 1992, p. 146). Nesse sentido, o reconhecimento pelo direito ao território do meu povo Xokó, é um processo de nascimento de nossa nova identidade, sobretudo porque passamos por mudanças temporalmente. Nessas perspectivas, e do pondo de vista metodológico, abre novas possibilidades para o “(…) entendimento do passado recente, pois amplifica vozes que não se fariam ouvir. Além de nos possibilitar o conhecimento de diferentes 'versões' sobre determinada questão, os depoimentos podem apontar continuidade, descontinuidade ou mesmo contradições no discurso do depoente” (FREITAS, 2006, p. 49). Assim, entendemos que a memória histórica está atrelada à diáspora Xokó, a partir da década de 1970, como dinâmica e transformações ao longo desse processo diaspórico. Considerações finais: Entrevista realizada por: QUEIROZ, Angelita. A festa da retomada: uma celebração identitária de ser Xokó na Ilha de São Pedro – Porto da Folha/SE. 2020. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Culturas Populares). – Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Culturas Populares (PPGCULT). Universidade Federal de Sergipe (UFS). São Cristóvão (SE), op. cit., p. 100. 378 352 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Não foi nosso objetivo realizar um histórico completo da história e luta de nós Xokó. Mas, compreender a partir da história e da memória como os atuais Xokó se auto (re) afirmam em 2021. Neste sentido, traçamos um panorama sucinto dos eventos históricos e a partir das narrativas orais entendemos que a auto (re) afirmação de ser Xokó se dá, sobretudo, a partir da luta pela posse das terras e da retomada da identidade através do suporte da memória ancestral. A ancestralidade Xokó foi reivindicada como (re) afirmação de pertencimento e isso foi possível pela memória cultural. A festa da retomada que acontece todos os anos em 9 de setembro, é o ponto de resistência e demostra a reinvenção da identidade enquanto Xokó contemporânea, ou seja, do presente. Portanto, a luta Xokó e o processo de retomada em 1978 com o cercamento da Ilha/Caiçara, demostra o primeiro momento pela oficialização que só aconteceu em 1979 com as 22 famílias Xokó, reivindicando o reconhecimento perante o estado e a identidade indígena. Assim, a diáspora Xokó é resistência e o (re) encontro de ser Xokó da Ilha de São Pedro/Sergipe, concretiza-se por uma luta conjunta. 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Acesso em: 01 de agosto de 2021. 356 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A gente é trabalhador: a (in)existência do ferroviário na Historiografia do Ceará republicano (1970-1997) Jaciara Azevedo Rodrigues379 Resumo: O presente trabalho analisa as histórias e memórias dos ferroviários no Ceará, apontando como os mesmos estão inseridos ou não na historiografia dita oficial, uma vez que contribuíram eminentemente para o desenvolvimento das cidades. Contudo, torna-se preciso afirmar que as histórias do cotidiano desses sujeitos estão invisibilizadas, em detrimento de uma história que destaca grandes figuras ilustres do espaço local. Na maioria das vezes, essas elites nomeam bairros e ruas da cidade. Para concretização da pesquisa, são utilizadas fontes orais que serão produzidas pelos próprios sujeitos do estudo. Através do método de história oral, buscar-se-á acessar as memórias dos ferroviários que prestaram serviço à Rede Ferroviária Federal (RFFSA). De modo a dizer que esses sujeitos não transmitem apenas informações, mas sim, adentram aspectos de sua cultura e cotidiano, estando sempre envolvidos em um imaginário social sobre determinada época. Dessa forma, mais do que nossos informantes, esses sujeitos são protagonistas do processo transformador da história. Nesse sentido, é importante dizer que embora essas histórias sejam oriundas de um grupo coletivo, estas, são subjetivas, tornando possível analisar conflitos e possíveis divergências por trás desses discursos, problematizando-os. Palavras-chave: memória; trabalho; ferroviários. Introdução O presente trabalho diz respeito a uma pesquisa em andamento que adentra na história e memória da população que experimentou os efeitos da ferrovia, símbolo de modernidade no referido espaço delimitado. A problemática que fundamenta essa temática parte da discussão das memórias dos ferroviários. Um exercício de interpretação que dialoga com outros tipos de fontes como iconografia e relatórios descritivos da Rede Ferroviária Federal que fazem referência ao cotidiano do ferroviário. Graduada em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)- E-mail: jaciara.azevedo2011@hotmail.com Especialista em Historiografia Brasileira pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI). 379 357 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Os sujeitos da pesquisa são trabalhadores ex-ferroviários que fizeram parte da referida demarcação temporal indicada no título da pesquisa, ou seja, 1970-1997 faz referência ao tempo de funcionamento do trem de passageiros quando a RFFSA administrava a ferrovia cearense. De forma que observando as práticas e representações do cotidiano do “tempo do trem”, é possível contar muito sobre a história desses sujeitos que não ocupam espaço na historiografia oficial. Assim, faz-se necessário dizer que a proposta em que se solidifica essa pesquisa não está pautada apenas no registro dessas histórias, mas em uma investigação para além dessas falas, problematizando-as de acordo com as devidas divergências que irá haver entre os entrevistados. Nesse sentido, indo para além de uma mera nostalgia de apitos, mas adentrar nessas narrativas subjetivas que serão invocadas pelos ferroviários. Com isso, mais do que nossos informantes, esses sujeitos são protagonistas do processo transformador da história. Nesse sentido, é importante dizer que embora essas histórias partem de sujeitos dotados de memórias individuais que nós, históriadores críticos, possamos problematizar essas falas considerando os seus perfis econômicos, políticos e culturais. Apesar de compartilhar as vivências dentro de um mesmo espaço, cada sujeito pôde sentir em um formato diferente, possuindo assim uma relação distinta com o passado. O trem impulsionou na fundação de alguns munícipes cearenses, possibilitando um desenvolvimento econômico significativo juntamente a uma vivência de novos ritmos sociais, atrelados à cultura do trem desenvolvida pela sociedade local. Por exemplo, muitas pessoas saiam de suas calçadas ou até mesmo iam para a própria estação esperar o trem e assisti-lo chegar ou partir, trocando relações de sociabilidades e interações que aconteciam. Desse modo, o trem mexeu com o cotidiano e rotina da cidade e de seus cidadãos, que muitas das vezes, embora não fossem viajar, tinham em mente os horários fixos que o trem passaria, se preparando para vislumbrar a grandiosidade dos vagões. Como ficou perceptível no resumo desse artigo, pensou-se o protagonismo de sujeitos subalternos esquecidos nos escritos oficias, percebendo que a inserção dos trabalhadores no campo historiográfico parece ainda algo desafiador para historiadores da atualidade. Sabemos que é um grande desafio pensar a história local como campo de produção de uma consciência histórica, pois envolve o reconhecimento do sujeito dentro de um imaginário social, no caso aqui envolvendo o tempo do trem de passageiros, ou seja, devemos entender o local como dimensão relacional dos sujeitos e suas ações ao longo do tempo. logo, as cidades ferroviárias cearenses merecem uma grande atenção na historiografia. 358 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Portanto, fica notório que as contribuições acadêmicas e científicas poderão dar notoriedade para pesquisas que envolvem sujeitos. Ademais, a concretização do trabalho oferece contribuições práticas quando tratamos dos resultados dessa pesquisa que podem ser executados, pensando de forma analítica baseada no cotdiano. Neste texto, o foco será demonstrar que é possível falar sobre ferrovia e memória dos trabalhadores no Ceará. De forma que, analisar uma cidade do interior do Ceará, nos leva a propor inovação historiográfica local, instigando a produção de uma bibliografia especialista desses espaços. A cidade cearense ferroviária que se trata essa pesquisa é Reriutaba-CE, localizada na zona Noroeste do Estado do Ceará. É notório que a instalação dos trilhos na cidade analisada dá origem ao município, diminui distâncias e melhora as relações com outras localidades da região, gerando consequentemente um processo de significativas transformações tanto na paisagem local, cada vez mais urbana, quanto no perfil da vida cotidiana. Lima e Pereira (2007) contam que ocorreu de certo modo, uma inovação na área de transportes e que essa medida amenizaria as distâncias entre o sertão. À medida que os trilhos penetram o interior do Estado, sertanejos são transformados em operários. E longe de serem sujeitos passivos, são protagonistas de greves, conflitos, sobretudos sentidos com impacto do regime ditadorial, uma vez que a demarcação temporal contempla esse período tão turbulento na história do Brasil. Nesse sentido, para uma análise efetiva das memórias e histórias dos ferroviários, leva-se em conta os contextos sociais, colocando em pauta os acontecimentos e circunstâncias que moviam o comportamento desses trabalhadores, nos convidando a pensar a memória não somente atrelada ao saudosismo que pode conter nas vivências desses sujeitos, mas também na análise de possíveis conflitos dentro do mundo do trabalho ferroviário, quiçá esses apontamentos preenchessem as lacunas precisas para (des) construção de boa parte da historiografia ferroviária cearense. 1 Um olhar histórico para os novos sujeitos/protagonistas Assim como já ficou notório, a metodologia de História Oral fará parte da pesquisa, sendo primordial a leitura de uma bibliografia especialista. Alessandro Portelli é uma das referências mais utilizadas para quem pesquisa se utilizando do método de História Oral. O autor trabalha de forma teorico-metodológica essa poderosa ferramenta capaz de conectar experiências. Portelli então nos fala que as fontes orais, ao contrário da maioria dos 359 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X documentos históricos, não são encontradas, mas co-criadas pelo historiador. “Elas não existiriam sob a forma que existem sem a presença, o estímulo e o papel ativo do historiador na entrevista feita em campo” (p. 10, 2018). Além disso, para essas pessoas que não foram escutadas ao longo da história, Portelli nomeia-os de sem-poder, levantando a premissa que esses sim têm voz, porém não há ninguém que os escute. Essa voz está incluída em um espaço limitado. O que faz o pesquisador é recolher esses discursos, amplificá-los e levá-los ao espaço público. A troca de olhares que acontece durante uma entrevista, costuma dar espaço aos sujeitos que ao longo da história foram silenciados. Desse modo, Portelli então nos diz que a questão norteadora dessa discussão não é que esses seres são sem voz, possuem voz sim, se não a tivessem, não teríamos nada a gravar e consequentemente nada a escutar. Conforme Thompson (1992) nos diz que a história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula e leva a história para dentro da cominidade e extrai a história de dentro da cominidade. Pollak (1989) nos diz que essas lembranças que são despertadas por meio da história oral durante tanto tempo foram confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e por meio de documentos escritos, permanecem sempre na memória. O longo silêncio sobre o passado desses grupos minoritários, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Como já mencionado, a partir da chegada do trem, a cultura e o cotidiano serão alterados, fazendo com que a sociedade crie um elo social com o trem nesse espaço. Diante disso é perceptível que a letra do hino municipal da cidade em análise retrata a ligação da sociedade com o trem, trazendo em uma parte de sua composição a seguinte passagem “cidade que acorda mais cedo, com o barulho do trem”380 esse simbolismo que consta numa simples letra do hino, pode ser problematizado e trazido em evidência na (pseudo) valorização da história ferroviária do espaço local. Hino municipal que teve como compositor e cantor o conterrâneo Edvar de Castro. A letra do hino está disponível na página virtual oficial da cidade: https://www.reriutaba.ce.gov.br/simbolos.php#:~:text=Hino%20de%20Reriutaba&text=%C3%89s%20bela%2C%20 dotada%20de%20prosperidade,%2C%20te%20amo%2C%20oh%20Reriutaba! 380 360 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ou seja, o hino se utiliza da figura do trem como forma de contar um pouco da história da cidade. Porém, pode-se perceber que o hino é um trecho bem breve, ou seja, há necessidade de uma visibilidade maior do trabalhador ferroviário. Um grande admirador da ferrovia cearense também escreve textos sobre a saudade do tempo do trem, dando um enfoque grande para o trem na sua vida: Eu fui esse menino ferroviário correndo pelas encostas de meus dias floridos, atrás de um trem que passou em minha vida e fez comigo uma amizade sem fim. Passou, mas esqueceu de levar a suplicante voz de seu apito e deixou a sua imagem nos cafundós de mim mesmo. Por isso, eu vivo sempre voando nas asas de suas lembranças. (XIMENES, 1984, p. 13) Como dito anteriormente, a análise desse perfil saudosista por parte dessas pessoas, só é possível através dos registros orais, os quais ao longo dos relatos, pode-se vislumbrar diversos fios tecidos de narrativas que são analíticos de contextualização, redesenhando o cenário desse tempo da ferrovia tanto por parte dos ferroviários, como também dos demais passageiros inseridos nos longos passeios de trens. Seu Hamilton, engenheiro aposentado e um dos chefes do Museu Ferroviário Cearense, conta-nos a sua ligação desde criança com a ferrovia: Eu fui “ferroviário” desde os 4 anos, por conta do meu pai, eu descobri muitos territórios do ceará. O cargo dele permitia viajar de estação para estação, então eu me envolvi na ferrovia não depois de jovem, e sim, comecei acompanhando meu pai. Sempre gostei do trem. Eu, como ainda era menino, gostava de brincar naquelas grandes máquinas, eram viagens longas...mas gostava de ver as paisagens tudo bonitas, rios, florestas, pontes e as estações que o trem passava, então, eu gravava tudo na memória. Eu tive essa vivência todinha de andar de trem com meu pai, ele me explicava tudinho...assim, todas as estações eu conhecia na palma da mão.381 Todo esse cenário confere as possibilidades de enunciação por parte de grupos subalternos, visto que ter o espaço de fala significa proporcionar a tal pessoa o Entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2019, à pesquisadora Jaciara Azevedo Rodrigues, pelo senhor Hamilton Pereira José, 79 anos de idade. Engenheiro da antiga RFFSA aposentado. Morador do centro de Fortaleza-CE, 381 361 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X reconhecimento do seu discurso. Deve-se pensar que os trabalhadores não devem ser postos em animosidade, por isso colher seus relatos se faz essencial. Porém a pesquisa como ainda está em andamento, pretende-se ainda comparar e colocar em evidência essas narrativas trazidas pelos sujeitos ferroviários. Atualmente estamos vivendo um período muito atípico na nossa sociedade, e que preservar a vida continua sendo prioridade. Há algumas semanas atrás recebo a notícia do falecimento de um dos ferroviários que muito iria contribuir para a pesquisa, vítima de COVID-19, e como estamos falando de humanos, é válido dizer que junto com esse exferroviário, Sr. Olímpio, foi junto uma parte da história da ferrovia cearense. Tomando isso como base, ressaltamos a necessidade urgente do compromisso social de colocar em evidência as histórias dos ferroviários que por décadas estavam envolvidos no desenvolvimento das cidades. 2 PARTIU QUEM TANTO PARTIA Conforme Certeau (2008) sobre o conceito de lugar e espaço, o autor considera que um lugar acaba incorporando um espaço, desde que seja repleto de vivências e experiências históricas, e todo esse modo de viver trará memórias. Tendo em vista essas concepções, um espaço pode constituir-se lugar de memória, conceito trazido por Nora (1993), a partir do momento que recebe (res) significações por parte dos habitantes que passarão a interagir nesses locais. Sendo assim, o referido autor introduziu o termo lugar de memória, fazendo ligações diretas aos espaços repletos de práticas, levando em consideração as cidades como espaços praticados, sobretudo, lugares de cultura. Assim, de acordo com obras bibliográficas que contam a história das estações ferroviárias, pode-se considerar cada estação cearense como um lugar de memória, onde estão guardadas tanto as vivências dos trabalhadores quanto das pessoas que viajaram por muitas décadas de trem, assim, fica notório que esses espaços estão revestidos de aura simbólica, e é isso que torna esses espaços repletos de memórias. Pode-se pensar de modo que Nora (1993) fala que a memória está imbricada no espaço, tornando-se lugar de mediação crítica. Segundo Candau (2012, p. 118) “transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma identidade não consiste, portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar no mundo.” Esses espaços eram a forma na qual esses indivíduos tinham de perceberem com 362 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mais afinco a si e o outro. Podia-se considerar os locais das estações como os espaços mais democráticos das cidades, uma vez que passavam por ali inúmeras pessoas pertencentes a diferentes classes sociais. Candau (2012) aponta que a necessidade de recordar é imperiosa, mesmo que apenas para que não nos tornemos seres “pobres e vazios”. Dessa forma, a cidade moderna é vislumbrada como espaço de formação de novas identidades sociais, em que as atividades urbanas se desenvolviam efetivamente, passando a ser pensada como sinônimo de progresso, lugar onde seus sujeitos eram capazes de construir suas próprias histórias. Esse (re) conhecimento da identidade ferroviária na cidade em análise, contribuirá para a historiografia local que passará a ser vista a serviço dos próximos trabalhos que poderão, por sua vez compor a história da cidade. As relações de sociabilidades se alteram e assim é visível a importância do registro dessas histórias dos sujeitos envolvidos no tempo do trem de passageiros. Conhecer os principais elementos que envolvem o estudo da história cotidiana de trabalhadores da extinta RFFSA que atuaram no Ceará se faz primordial, uma vez que como Matos (2002) reflete que essa visão de novas perspectivas para a história ampliou o leque de estudos interdisciplinares. Os estudos que abordam o cotidiano têm se mostrado um campo multidisciplinar, com uma pluralidade de influências, na tentativa de reconstruir experiências outrora vistas por baixo, logo pode-se constatar a inserção dos trabalhadores ferroviários na história. Sabemos que a ferrovia foi desativada em décadas do período republicano. A partir de 1930, as estradas de ferro começam sofrer concorrência no Brasil. O governo de Washington Luís, ao final da Primeira República Brasileira, adotou como lema: “Governar é abrir estradas”. Isso significa dizer que outros meios de transportes iam aos poucos sendo implantados no Brasil, não como complementos das ferrovias, mas como concorrentes. Vale ressaltar que a extinção da rede ferroviária de passageiros foi se dando de forma lenta e gradual em um determinado período de tempo, quando em 1956, no governo de Juscelino Kubitschek se teve essa desarticulação de forma mais proeminente, uma vez que a maior proposta do governo de JK, centrava-se numa prometida modernização em detrimento da produção da indústria automobilística. Essa crise crescente em meio a mudanças culminou na falta de investimentos da indústria ferroviária até não haver mais o crescimento da ferrovia, e quando o Ceará começou 363 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sentir esse impacto, alguns ramais cearenses foram desativados por conta de serem considerados antieconômicos para a época. Infelizmente, o Brasil perdeu muito com a marginalização da ferrovia, enquanto países que sempre apostaram nos trilhos, estão bem a frente do desenvolvimento e progresso econômico. Com o desenvolvimento dessa política danosa, foi posto à tona a extinção do trem de passageiros, e o que se pode dizer é que ficou a saudade do “tempo do trem”, fazendo-se imperioso problematizar as narrativas dos ferroviários que por décadas prestaram serviço ao desenvolvimento da cidade. É previsivel encontrar ao longo da pesquisa algumas partes na fala dos ferroviários que veredam para além da nostalgia, ou seja, a produção de discurso de angústias, desencantos e outras tensões que poderão estar fundamentando suas experiências na relação com o trem e cidade. Considerações finais A historiografia sobre ferrovias no Ceará, está repleta de enfoques, sejam ligados à matriz econômica, educação patrimonial, ou até mesmo estudos de caso. Contudo, uma pesquisa com ênfase na memória está por ser produzida, perpassando, por sua vez, por seres humanos, pelos trabalhadores da ferrovia, do que foi desenvolvido em torno dela e, principalmente, das relações sociais advindas da ferrovia que penetrou nos sertões como espetáculo, inovação tecnológica, símbolo da modernidade e campo de trabalho. Sendo assim, a pesquisa adentra na história e memória da população que experimentou os efeitos desse símbolo de modernidade no referido espaço delimitado. Ainda no que se discute, através das memórias desses sujeitos poderá ser possível acessar um pouco desse passado, que por vezes poderá ser saudosista e repleto de simbolizações históricas, fazendo referência às práticas sociais experimentadas pelos sujeitos históricos. É notório que a memória se constitui através de um caráter social, assim, se precisa ainda lutar muito por seu espaço na história, sobretudo, quando se trata das cidades do interior do Ceará. Fonte oral Entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2019, à pesquisadora Jaciara Azevedo Rodrigues, pelo senhor Hamilton Pereira José, 79 anos de idade. Engenheiro da antiga RFFSA, aposentado, morador do centro de Fortaleza-CE. 364 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Bibliografia BRANCATELLI, Maria Odete. LOPES. Helena (org.) A riqueza nos trilhos: A História das Ferrovias no Brasil. Editora Moderna, 1998. CANDAU, Jöel. Memória e identidade. Trad. Maria Letícia Ferreira. 1.ed. São Paulo, Contexto, 2012. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008. LIMA, Francisco de Assis de; PEREIRA, José Hamilton. Estrada de ferro no Ceará. Fortaleza: expressão Gráfica e editora Ltda., 2007. MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru, São Paulo; EDUSC, 2002. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, São Paulo, n° 10, p. 07-28, 1993. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Disponível in: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n. 3, 1989, p. 3-15. PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte da escuta, São Paulo: Letra e Voz, 2016. THOMPSON, Paul. A voz do Passado: História Oral. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992. XIMENES, Luís. Paixão Ferroviária. Fortaleza, Ed. Tribuna do Ceará,1984. 365 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fernando Collor de Mello através das charges do Jornal de Alagoas (1989 – 1992) José Cláudio Lopes dos Santos Junior382 Resumo O presente trabalho pretende ser uma contribuição para a história política do tempo presente, tendo como objetivo central investigar como Fernando Collor de Mello - entre seu último ano de mandato como governador de Alagoas, em 1989, e a abertura do processo de impeachment já como presidente da República, em 1992 - foi retratado nas charges do Jornal de Alagoas. A problemática é compreender como as charges veiculadas no periódico atuaram no desenvolvimento das narrativas jornalísticas, seja apresentando os governos de Fernando Collor e sua figura política como vitoriosa, seja construindo um personagem moderado e de forte influência no cenário estadual e nacional. Os principais autores que norteiam a análise proposta são René Rémond, Raoul Girardet, Peter Burke e Rodrigo Patto Sá Motta. Palavras-chave: Fernando Collor, Jornal, Charge. Considerações Iniciais O presente texto pretende fazer o diálogo das charges do Jornal de Alagoas durante o período de 1989 a 1992 em referência à figura de Fernando Collor de Mello com algumas referências bibliográficas. Esse recorte específico das charges faz menção à minha pesquisa de mestrado que tem o tema Nas tramas da sucessão: Fernando Collor de Mello e a Redemocratização do Brasil nas páginas do Jornal de Alagoas e da Gazeta de Alagoas (1989 – 1992). O projeto possui como escopo o estudo do desempenho de Fernando Collor de Mello entre seu último ano de mandato como governador de Alagoas, em 1989, e a abertura do processo de impeachment, em 1992, por meio da análise do Jornal de Alagoas e da Gazeta de Alagoas. Pretende-se, a partir da produção impressa, ressaltar como seu processo de campanha e seu período de governo foi arregimentado em confluência com o marketing político da época e direcionado à construção de discurso que primava pela estética pessoal. A problemática é Graduado em licenciatura em história, especialista em ensino de história pela UFAL, mestrando em História Social pela UFAL – PPGH e professor de História da rede privada de Alagoas. 382 366 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X compreender como os textos jornalísticos veiculados nos periódicos atuaram no desenvolvimento de distintas narrativas históricas, seja enquadrando os governos de Fernando Collor e sua figura política como vitoriosa, ou enquanto personagem moderado e de forte influência no cenário estadual. Nesse processo de analisar as fontes, percebi o quanto as charges e ilustrações dos jornais possuem uma riqueza fora do comum para análise das narrativas do período. Esse artigo terá como análise as charges e ilustrações do Jornal de Alagoas. O Jornal de Alagoas e a pesquisa em periódicos O Jornal de Alagoas foi fundado em 1908 pelo jornalista Luiz Silvestre, e depois de alguns anos, o grupo Diário dos Associados passou a administrar o jornal.383 Esse meio de comunicação era o mais antigo em circulação em alagoas durante o recorte cronológico dessa pesquisa. Em seus quase 90 anos de circulação, passou por vários problemas administrativos, tendo em consequência alguns períodos sem circulação, e pouca venda de exemplares. Foi o único veículo de informação de massa impresso em Alagoas que informou acerca de todas as constituições brasileiras após o advento da República, a exceção da promulgada em 1891. Na década de 1980, precisamente 1988, lançou um livro comemorativo aos seus 80 anos contendo depoimentos de funcionários, ex-funcionários e pesquisadores.384 A historiadora Tania Regina de Luca no texto História dos, nos e por meio dos periódicos, que está no livro Fontes Históricas (2008) explana que o historiador possui ferramentas para análise do discurso na problematização da narração e do acontecimento na imprensa. A historiadora afirma que o pesquisador dos jornais trabalha com o que é publicado, que se torna notícia. Com a publicação, ocorre a questão de entender as motivações que levaram à decisão de publicar. É observado que os jornais não são obras solitárias, mas empreendimentos que reúnem várias pessoas, gerando projetos coletivos através de ideias e crenças que serão expostas na palavra escrita. Por isso é importante analisar e identificar o grupo responsável pela linha editorial, pesquisar sobre os funcionários mais antigos, examinar os títulos das matérias, e os textos de cada publicação.385 A trajetória dos Diários Associados começou em 1924 quando o jornalista Assis Chateaubriand adquiriu O Jornal, periódico que circulava no Rio de Janeiro desde 1919. Chateaubriand adquiriu outras empresas de mídia impressa, rádio e televisão e o grupo se tornou um dos mais importantes do Brasil. ALAGOAS, Jornal de. Jornal de Alagoas 80 anos. Maceió, Editora Escopo, 1988. p. 9-40 LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PÍNSKY, Carla Bassanez (Org).Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 111-153. 383 384 385 367 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A historiadora expõe no texto sugestões práticas para o trabalho com a fonte imprensa. É enfatizado que são várias possibilidades de pesquisas no campo, e que não é viável sugerir um procedimento metodológico, ou técnicas de pesquisa para dar conta de tantas viabilidades. Nas sugestões constitui que o primeiro passo da análise é localizar a fonte em alguma instituição de pesquisa, e ter a ciência de que nem sempre os exemplares dos jornais estão organizados à espera do pesquisador, e ainda existe a possibilidade de encontrar exemplares em péssimo estado de conservação. Por fim, a historiadora divulga uma listagem de procedimentos para o primeiro passo em uma pesquisa, mas ressalta que não existe uma receita pronta para aplicar, pois o pesquisador irá perceber ao folhear a fonte, e aventurar na pesquisa. A historiadora explana A seguir, no box, uma listagem de procedimentos que vale como inspiração para que se dê o primeiro passo. Nunca é demais lembrar que não há uma receita pronta a ser aplicada e que os esquemas, por mais abrangentes que sejam, têm utilidade muito limitada, como você vai perceber assim que folhear sua fonte. A partir deste ponto a aventura é sua. Encontrar as fontes e constituir uma longa e representativa série; localizar a(s) publicação(ções) na história da imprensa; atentar para as características de ordem material (periodicidade, impressão; papel, uso/ausência de iconografia e de publicidade); assenhorar-se da forma de organização interna do conteúdo; caracterizar o material iconográfico presente, atentando para as opções estéticas e funções cumpridas por ele na publicação; caracterizar o grupo responsável pela publicação; identificar os principais colaboradores; identificar o público a que se destinava; identificar as fontes de receita; analisar todo o material de acordo com a problemática escolhida.386 As historiadoras Heloisa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto escrevem no artigo Na Oficina do Historiador: Conversas Sobre História e Imprensa (2007), sobre a importância da imprensa para as pesquisas não só na história, como também em diversas áreas de conhecimentos, e destacam a diversidade de caminhos sobre as fontes que os estudos LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PÍNSKY, Carla Bassanez (Org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, cap. 11, p. 142. 386 368 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X históricos passam a incorporar de forma crescente à imprensa como documento de pesquisa e material didático para o ensino. As historiadoras destacam Nesse período, a imprensa periódica, seja nas suas variedades históricas e de veículos, grandes jornais diários, jornais regionais e locais, revistas nacionais, revistas de variedades, culturais, especializadas ou militantes, gibis, jornais alternativos ou de humor; seja em suas diferentes partes e seções, como editoriais, noticiário corrente, carta de leitores, seção comercial, artigos assinados; ou ainda, nos diversos gêneros e linguagens que se articulam nos veículos, como artigo de fundo ou editorial, a notícia e a reportagem, as crônicas, críticas e ensaios, as cartas e pequenos comentários, a fotografia, o desenho e a charge, o classificado e o anúncio comercial – tem sido amplamente utilizada na pesquisa acadêmica e no ensino de história.387 Seguindo essa gama de variedades que o jornal oferece para a pesquisa, esse artigo busca dialogar sobre as charges e ilustrações, as quais existem motivações e contextos políticos para suas produções. Peter Burker no seu livro Testemunha ocular: O uso de imagens como evidência histórica (2017), atribui à leitura das imagens como fontes históricas a mesma importância de como pesquisamos outros documentos. O autor menciona que as imagens oferecem virtualmente a única evidência de práticas sociais, e afirma que historiadores de atitudes políticas e opinião pública já estão utilizando há tempos evidências das imagens. Burker faz um diálogo sobre a iconografia e a iconologia, lembrando que a iconografia é uma forma de linguagem visual que usa imagens para representar algum tema. Conforme destacado pelo autor Nos últimos tempos, os historiadores têm ampliado consideravelmente seus interesses para incluir não apenas eventos políticos, tendências econômicas e estruturas sociais, mas também a história das mentalidades, a história da vida cotidiana, a história da cultura material, a história do corpo etc. Não teria sido possível desenvolver pesquisa nesses campos relativamente novos se eles CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: Conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007. 387 369 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tivessem se limitado a fontes tradicionais, tais como documentos oficiais produzidos pelas administrações e preservados em seus arquivos.388 A iconografia estuda a origem das imagens, e como elas são expostas e formadas. Mas aprofundando sobre esse conceito vale a busca do entendimento através dos Dicionários de conceitos históricos (2009), escrito pela historiadora Kalina Vanderlei e pelo historiador Maciel Henrique, que em suas definições sobre a iconografia a descrevem como qualquer imagem registrada, e suas representações, e o conceito inclui desde desenhos, pinturas, fotografias, propagandas, e nesse sentido vale incluir charges e ilustrações. Os autores fazem o diálogo com Carlo Ginzburg onde o historiador italiano descreve uma diferença entre iconografia e iconologia sendo a primeira o conjunto de aspectos formais e estéticos de uma obra de arte, e a iconologia a série de significados sociais e mentais apresentados por toda obra. Kalina e Maciel expõem o significado historiográfico sobre esse conceito, explanando que o mesmo abarca todos os aspectos envolvidos não apenas em obras de artes, mas em qualquer imagem.389 O imaginário por trás de cada imagem é de fundamental importância para a leitura e interpretações, pois são representações de ideias, sonhos, motivações, medos de uma época. Logo surge a fonte histórica para a pesquisa. Quais motivações e crenças dos ilustradores para as elaborações das charges no Jornal de Alagoas? Considero a charge uma fabricação, a construção de uma ideia com técnicas e motivações. O que fabrica a charge? Nesse sentido menciono os questionamentos de Michel de Certeau no livro A escrita da História (1982) “O que fabrica o historiador quando "faz história"? Para quem trabalha? Que produz?”390 Através das leituras analiso que a historiografia também dá sentidos às imagens, e com os sentidos a análise cotidiana das páginas dos jornais passou a evoluir. As charges seguem uma ideologia? Para essa resposta vamos dialogar com o texto de Terry Eagleton em Ideologia (1997), o qual no capítulo 1 já menciona que não existe uma definição exata para tal conceito, e sim um texto em forma de tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por divergentes histórias, ainda menciono que seja um tecelão do tempo. Eagleton faz uma listagem de possíveis significados do termo ideologia, dos BURKER, Peter. Testemunha ocular: O uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017. p. 11. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 198 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 55. 388 389 390 370 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X citados eu menciono aqui “ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante”, e “comunicação sistematicamente distorcida”, ambos segmentos se encaixam no universo das charges do Jornal de Alagoas, pois no periódico existia a escolha por parte da direção de qual tema o chargista deveria abordar na ilustração, ou a ordem de não mencionar alguma figura política local. Seguindo as ideias do historiador Terry Eagleton, que ensina que a ideologia se encontra naturalmente em outra pessoa, acredito que o chargista colocava diariamente sua ideologia nas páginas do jornal.391 O cientista político Carlos Melo, autor do livro Collor - O ator e Suas Circunstâncias (2007), classifica Fernando Collor como um fenômeno político. Melo explica que a ascensão do ex-governador de Alagoas à presidência foi essencialmente um fenômeno de mídia e de medo. Essa concepção de Collor como fenômeno não fica apenas reservada para o autor, outras obras e artigos também destacam esse conceito. A revista Veja foi a fonte de pesquisa para elaboração da obra, e o autor enfatiza que a revista tinha uma posição de ceticismo com a candidatura do governador de Alagoas. A cada semana a publicação o tratava com maior atenção e prestígio, enquanto tratava outras candidaturas com desacertos reveses.392 Trazendo essa análise para o Jornal de Alagoas, e para as charges, de que forma os chargistas desenhavam/divulgavam a imagem de Fernando Collor e do seu contexto político através das imagens nos anos de 1989-1992? O personagem Fernando Collor de Mello e as charges Na intencionalidade de classificar Fernando Collor como fenômeno político é importante o estudo sobre a questão do Mito. A obra do historiador Raoul Girardet Mitos e mitologias políticas (1987) é de grande importância para analisar a figura de Fernando Collor como Mito político. Girardet analisa que em momentos de crises políticas, econômicas e sociais as pessoas ficam mais suscetíveis à efervescência mitológica, e surge o apelo ao grande líder salvador. O mito do herói encarnado nos políticos, os quais afirmam que irão combater o mal e salvar o povo. O autor enfatiza que a sociedade acorda seus mitos, e elegem personalidades capazes de encarnar os sonhos coletivos. A obra menciona que o mito tem audácia e ímpeto, e busca a glória, acumulando uma série de histórias e promessas fabulosas. Girardet destaca que o processo de heroísmo depende da relação da personalidade do EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora Boitempo, 1997. p. 15-25 MELO, Carlos Alberto Furtado de. Collor: O ator e suas circunstâncias. São Paulo: Editora Novo Conceito, 2007. p. 5-19 391 392 371 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X salvador. Mesmo com tantas propagandas, acesso à mídia, não é fácil criar um herói. O candidato deve possuir um conjunto de elementos que corresponde à sociedade naquele momento.393 As charges favoráveis a Fernando Collor ajudam na construção desse Mito. As charges no Jornal de Alagoas atravessaram tempos e momentos. Em entrevista com um dos chargistas do periódico, Léo Villanova394, busquei entender melhor sua rotina diária na redação do veículo de comunicação, e como se perdurava a formação das charges e ilustrações de cada dia. Villanova mencionou que durante o tempo em que trabalhou no Jornal, seu trabalho foi fiscalizado e muitas vezes silenciado. Durante o ano de 1989 as charges sobre as eleições presidenciais daquele ano sofreram silenciamentos quando carregava críticas contra o presidenciável Fernando Collor. O silenciamento ocorre na substituição do ilustrador, ou na repetição de alguma charge que não direcione algum grupo político. O Jornal de Alagoas também publicou desenhos a favor de Collor. Além do chargista Léo Villanova, o periódico tinha no corpo de funcionários o chargista Fred Ozanan395, que não atuava presencialmente na redação do jornal, pois residia na Paraíba, de modo que as charges eram enviadas via TeleFax. Percebo que nas ausências das charges de Léo Villanova, que sabemos agora terem sido causadas por ordens da direção, Fred entrava em ação com suas charges, que às vezes silenciavam temas relevantes do momento, ou como aconteceu nos primeiros meses de 1990, quando publicou charges a favor de Fernando Collor, umas delas tinha a frase: “Bonita camisa Fernandinho!!”, em referência às atitudes de Collor ao fazer aparições vestindo camisetas estampadas com frases. GIRARDET, Raul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia da Letras, 1987. p. 9-24. Léo Villanova trabalhou como chargista no Jornal de Alagoas durante os anos de 1982 a 1994, além de ser arquiteto, fotógrafo e publicitário. Foi chargista colaborador de vários jornais e revistas alagoanas e nacionais, entre eles as publicações Bundas e Pasquim 21. 393 394 Frederico Ozanan Pinto Gomes Pereira, mais conhecido como Fred Ozanan (Residente em Campina Grande PB), é cartunista, jornalista, designer gráfico brasileiro. Começou no jornal Gazeta do Sertão e trabalhou no Diário da Borborema, Jornal de Alagoas, O Norte, Correio da PB e diversos jornais, incluindo o Pasquim. Também atuou como chargista do Portal UOL e publica charges políticas nos sites Charge on Line, Brazil Cartoon e PBONLINE. 395 372 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Figura 1- Charge no Jornal de Alagoas Fred Ozanan, 1990 – Acervo do Arquivo público de Alagoas Villanova revelou que não tinha interesse em fazer charges e ilustrações em benefício de Collor, e não aceitava as ordens que eram colocadas. Um exemplo foi a charge que mencionava o último debate na Tv antes das eleições de 1989. No desenho a imagem de Lula e da estrela do PT estão em ênfase, não mostrando imagens do outro candidato. Villanova deixou bem claro que não queria fazer material de teor positivo sobre Collor, pois seu posicionamento sempre foi contra a figura do candidato. As intervenções por parte da direção do periódico não ficavam apenas nas matérias e sim também nas charges. Figura 2 – Charge no Jornal de Alagoas Léo Villanova, 1989 - Acervo do Arquivo público de Alagoas. 373 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O cientista político Francisco Wefort destaca a importância da imprensa na política afirmando que “jornais não são partidos, mas como se parecem às vezes!” 396 Analisar charges é um exercício minucioso, pois mesmo quando existiam críticas contra Fernando Collor em criações de Fred, é perceptível que elas não se comparavam às críticas produzidas através dos traços de Villanova. É notável que quando o Jornal de Alagoas passa a criticar Collor sequencialmente, as charges ficam “livres” para aparecer na página “opinião” sem intervenções prévias. Com isso, pude comparar as críticas sobre Collor em trabalhos dos dois ilustradores, e fica visível que as charges de Léo Villanova apresentam um teor “pesado”, e explícito. No ano de 1992, durante os meses do processo de Impeachment contra Fernando Collor, Villanova manteve sequência diária de charges criticando o presidente, e Fred também manteve a mesma linha, mas de maneira “leve”. Percebo então que o Jornal de Alagoas estava pró Impeachment. Gostaria de fazer um diálogo sobre o tempo através do texto Teoria e História (2012) de José Carlos Reis,397 minha justificava para essa abordagem é a provocação do silenciamento que acontece nos periódicos, e especialmente do Jornal de Alagoas através das charges. Reis, em seus questionamentos sobre o tempo, pergunta “Como se define o presente?”, e a coloco dentro de minha pesquisa, pois trabalho com o tempo presente, e esses estudos sempre causam provocações. Muitos historiadores tem optado por definições complexas sobre o tempo presente, o historiador alemão Reinhart Koselleck que se sobressai. Para ele o conceito de tempo presente ao longo da história vai sendo experimentado, definido e redefinido continuamente.398 Koselleck ainda coloca em pauta a indagação “Por que agora esta história do tempo presente e não aquela ou já não aquela?”399 Voltando aos diálogos sobre o tempo, Reis continua suas indagações, e faz o questionamento “E o passado e o futuro, como podem ser definidos?”. Converto essa dúvida para as charges e suas interpretações, pois a ilustração do presente é decorrente de um passado, e quando se enquadra na política isso fica bem explicito. Por exemplo, o Jornal de Alagoas em vários meses dos anos 1989 - 1992 não emitia críticas em suas páginas sobre a figura de Fernando Collor, as vezes apareciam elogios, propagandas do governo, mas em outros meses WEFFORT, Francisco. Jornais são partidos? Lua Nova. Cultura e Política, v. 1, n. 2, p. 37-40, jul./set. 1984. REIS, José Carlos. Teoria e história: Tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. p. 23-25. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História e escrita do tempo: Questões e problemas para a pesquisa histórica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História do Tempo Presente. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. cap. 1, p. 35-40. KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro: Editora PUC, 2014. p. 115-117 396 397 398 399 374 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X divulgava opiniões negativas sobre o candidato de Alagoas para presidente do Brasil. Durante as leituras dos jornais, percebi as repetições de charges sobre o mesmo tema, e questionei Léo Villanova quais os motivos para isso, e sua resposta foi incisiva, de que isso era decorrente de censura/silenciamento da direção sobre as charges polêmicas que eram criadas. A prática de repetição das charges remete à relação do tempo que José Reis explana. O historiador faz uma análise afirmando que o tempo predomina a regularidade, o retorno, a repetição, uma ordem estável. Essa concepção é associada às motivações que existem por trás de cada editorial ou charge dos jornais. Ao analisar uma charge a relação com o tempo ganha mais nitidez, através das motivações do passado e do presente. Quando associo a fala do chargista Léo Villanova, charges e o editorial daquela edição do jornal, o círculo do passado e presente se expressa para aprofundar a pesquisa e entender o que acontece por trás da empresa/jornal. Sobre passado e presente Reis diz O passado é o conhecimento de si do presente, de sua trajetória, que tem a forma da recapitulação, da retrospecção, da anamnese. Contudo, a memória presente pode recuperar fielmente o passado? Como “conhecimento”, o passado pode ser considerado também um não ser: ilusão, ficção, impossibilidade de reconstituição da experiência vivida. Mas, a memóriapresente produz uma “ilusão intelectual”, pois o real acontecido disciplina a fantasia. A representação do passado liga-se a uma situação presente e é nessa situação que ela ilumina a ação.400 Voltando a falar sobre as charges, é necessário entender mais sobre suas técnicas, pois para cada traço de ilustração existe o tempo, a ideologia e as múltiplas técnicas recheadas de críticas e humor. Com essa finalidade de entender as técnicas, a obra do historiador Rodrigo Patto Sá Motta, Jango e o golpe de 1964 na caricatura (2006) foi de fundamental importância para os estudos. O autor busca entender como a grande imprensa utiliza das caricaturas para divulgar suas opiniões, e vale ressaltar que no Jornal de Alagoas as charges chegam até o leitor dentro do caderno “opinião”, contido na mesma página em que se encontra o editorial do REIS, José Carlos. Teoria e história: Tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 27 400 375 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X periódico. Durante a pesquisa percebo a relevância da página, pois é nessa leitura que a direção do jornal divulgava sua visão sobre os assuntos mais relevantes. Na rotina em analisar uma charge, não importa se os desenhos estão bem criativos, belos, engraçados ou bem executados, o importante é a mensagem que está sendo carregada nos traços, e quais os discursos políticos. Mas, Motta enfatiza que se as imagens nos proporcionarem risadas, não tem problema. O historiador faz uma análise de como a caricatura/charge chega até os jornais, e vale enfatizar que os desenhos eram gravados e impressos para serem vendidos ao público de maneira isolada. No século XIX devido à grande demanda, as imagens de sátiras e caricaturas começam a aparecer nos periódicos. Por que as charges e caricaturas se adaptaram facilmente aos jornais? Talvez pela crônica política, o desenho atua de maneira diária nos acontecimentos sobre o tema, auxiliando o periódico na comunicação com o público, e mostrando a posição política do jornal. A charge tem o método de emitir opinião de quem divulga. O historiador explana que Interpretar caricaturas pode ser tarefa mais simples que decifrar pinturas renascentistas, embora não necessariamente menos polêmica. Para desvendar o sentido dos desenhos cômicos não é preciso atingir níveis elevados de abstração, tampouco se demandam grandes especulação ou intuição. Afinal, os caricaturistas desejam ser compreendidos pelo púbico comum, o que não ocorre com todos os artistas plásticos. Muitas vezes a caricatura usa artifícios metafóricos, mas quase sempre se trata de figura de linguagem simples, ao alcance da compreensão popular.401 Consideração Finais Podemos dizer que ao longo do tempo evoluiu a maneira de como as ilustrações chegam até o público. Durante o recorte temporal da minha pesquisa, é visivel o quanto o tempo se torna importante para as mudanças de opiniões do Jornal de Alagoas, tanto nos editoriais, quanto nas matérias, e nas charges. Faço o exercício de analisar as charges dos jornais, os editoriais e as matérias, e percebo a mensagem que o veículo de comunicação transmite, fazer isso é um exercício diário. É válido ressaltar que até quando a charge é MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahad Editor, 2006. p. 30. 401 376 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X repetida, ou quando o desenho não faz relação com os acontecimentos do momento, existe alguma mensagem sendo divulgada. O silenciamento faz parte do processo. Antes de buscar analisar a figura de Fernando Collor através das charges, logicamente estou em análise das manchetes e matérias do Jornal de Alagoas. Existe a percepção que estudar a trajetória política, ou até mesmo apenas no recorte de 1989 – 1992 em todos os aspectos é impraticável para apenas um artigo ou uma pesquisa, devido à riqueza o objeto. Nos trabalhos sobre a temática (livros, artigos, dissertações e teses) muitas questões são ressaltadas, mas também é notório o que ficou de fora. É preciso fazer escolhas, por isso o foco angular desse artigo é o estudo do objeto em Alagoas através das charges dos periódicos do Jornal de Alagoas (1989-1992). Durante o processo de pesquisa fiz o questionamento: Por que um objeto de riso causa desconforto? Essa pergunta surge devido ao silenciamento de temas importantes nas charges do Jornal de Alagoas. Durante o processo de Impeachment, o Brasil “fervendo” com os acontecimentos, e o Jornal de Alagoas silenciava charges colocando outros temas, até que depois mudou de posição e seguiu com críticas ao então presidente Collor. Por que o Jornal de Alagoas mudou de posicionamento? As pesquisas sobre o conteúdo do jornal que inclui manchetes, matérias e charges/caricaturas/ilustrações seguem, pois, a busca por análises das imagens vai além da charge, estão nos textos também. Referências bibliográficas: BURKER, Peter. Testemunha ocular: O uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: Conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007. EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora Boitempo, 1997. GIRARDET, Raul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia da Letras, 1987. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História e escrita do tempo: Questões e problemas para a pesquisa histórica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História do Tempo Presente. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Editora PUC, 2014. 377 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PÍNSKY, Carla Bassanez (Org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. MELO, Carlos Alberto Furtado de. Collor: O ator e suas circunstâncias. São Paulo: Editora Novo Conceito, 2007. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahad Editor, 2006. REIS, José Carlos. Teoria e história: Tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. WEFFORT, Francisco. Jornais são partidos? Lua Nova. Cultura e Política, v. 1, n. 2, p. 37-40, jul./set. 1984. 378 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A banda de música da polícia militar de Alagoas como meio de ascensão social para o músico: trajetória do capitão Jonas Duarte da Silva (1952-1980) José Guido Dantas Lessa da Silva402 Resumo Este artigo tem por objetivo trazer a história da Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas, assim como mostrar a importância que a Banda teve e ainda tem no movimento migratório dos músicos das cidades do interior que buscam não só a ascensão social, como também realizar o sonho de viver da música de forma segura. Tomamos como exemplo, o músico Jonas Duarte da Silva que vindo do interior do estado de Alagoas, ingressou na vida militar como soldado, chegando ao posto de major. Acompanharemos ainda a Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas como relações públicas da corporação, o seu comportamento durante o período da ditadura civil-militar; uma vez que, sempre teve uma boa penetração e aceitação nos diversos níveis culturais e sociais, seja em recepções a autoridades, festas religiosas, inaugurações, momentos cívicos, dentre tantos eventos. Por se tratar de uma banda militar, teceremos alguns comentários sobre o repertório habitualmente executado nas diversas ocasiões em que a Banda se fez presente. Palavras-chave: Música; Migração; Banda. Introdução A música sempre teve um papel importante na história, pois “A música é a nossa mais antiga forma de expressão, mais antiga do que a linguagem ou a arte; começa com a voz e com a nossa necessidade preponderante de nos dar aos outros” (MENUHIN; DAVIS, 1990, p. 01). A música esteve presente nas diferentes épocas, culturas e sociedades. No princípio tinha apenas como objetivo proporcionar prazer aos ouvidos e despertar sentimentos. A música tornou-se tão íntima do ser humano que o filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano Friedrich Nietzsche (1844-1900) afirmou que, sem a música, a vida seria um erro. Se Especialista em Música pela Universidade Federal de Alagoas, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas. 402 379 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X falarmos na música ocidental, existe um fato interessante quanto a sua origem, pois segundo Carpeaux: Nossa literatura, nossas artes plásticas, nossa filosofia seriam incompreensíveis sem o conhecimento dos fundamentos greco-romanos. Mas não acontece o mesmo com a nossa música. Esse produto autônomo da civilização ocidental moderna não teve suas origens na Antiguidade que se costuma chamar clássica (2000, p. 03) O que Carpeaux diz com essa afirmação é que a música ocidental evoluiu de tal forma que ganhou personalidade própria, mesmo que moldada pela e para a Igreja Católica, onde deu-se o desenvolvimento musical particularmente no que diz respeito à harmonia. Não mais restringia-se a proporcionar prazer auditivo e despertar sentimentos. Daí por diante, o seu valor como meio de expressão adquiriu também cunho social. A música, com o passar do tempo, ultrapassou as fronteiras da igreja e encorpada harmonicamente, também se mostrou bastante útil ás revoluções e movimentos populares, mesmo tratada como música mundana, pois não era composta em sua maior parte no ambiente sacro. Mesmo assim, essa música estava presa às regras impostas pela igreja que ditou e aperfeiçoou o sistema tonal. Esse sistema musical perdura até hoje, com poucas modificações. A música marcou e ainda marca nos tempos atuais o compasso da marcha, o clima, o temperamento, a paixão e a imponência nas vitórias; assim como a tristeza e a decepção nas derrotas. Serve como estimulante, incentivando e unindo tropas e multidões em busca de seus objetivos. Foi assim na grande Revolução Francesa de 1789 com a La Marseillaise que foi composta inicialmente como uma canção revolucionária e mais tarde, sendo adotada como Hino oficial da França por força da influência que teve na revolução. Como exemplo mais recente temos a canção Grândola, Vila Morena do compositor português José Afonso (1929-1987), que foi executada na rádio Renascença em Portugal, na madrugada do dia 25 de abril de 1974, como sinal para o início da Revolução dos Cravos, pondo fim a ditadura de Antônio Oliveira Salazar que dominava o país desde 1926 (MEYER-CLASON, OFFENHÄUSER, 1988). A força da música é indiscutível quando nos referimos à movimentos sociais, lutas de classe e regimes ditatoriais. Existem muitas formas de se fazer música, principalmente quando falamos em grupos musicais. Temos as orquestras, os corais, os trios, quartetos e quintetos, as bandas de música entre outras tantas formações, pois o homem é um ser sociável e, sendo assim, não poderia 380 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X deixar de se manifestar musicalmente em grupo. A música, como as demais manifestações artísticas, não foi criada para satisfazer um único indivíduo. Para ser plena, precisa ser apreciada, compartilhada e reproduzida. As bandas de música militares tiveram origem na França no século XVII e contavam com repertório próprio à sua condição de militar. No Brasil, elas surgiram na metade do século XVIII e daí por diante multiplicaram-se conforme a expansão dos quartéis militares. Vale ressaltar aqui que em se tratando de bandas musicais não militares a partir do Brasil Colônia, as informações sobre esses grupos e sua formação são escassas. Segundo Souza, “Durante o período colonial há poucos relatos da presença de bandas de música no Brasil. Pouco se sabe desses grupos musicais assim como das suas configurações instrumentais”. (2020, p. 117). Através de documentos pesquisados, tem-se o conhecimento de uma das primeiras formações que podemos chamar de banda de música. Era composta por escravos e data do ano de 1610. “...visitando a Bahia, em 1610, o francês Pyrard de Laval cita um potentado de então, cujo nome não menciona, mas que diz ter sido capitão-general de Angola o qual possuía uma banda de música de trinta figuras, todas [sic] negros escravos, cujo regente era um francês provençal.” (ALMEIDA, 1942, p. 291). Os grupos eram compostos por instrumentos e vozes, bem diferente da formação atual, não importando se eram civis ou militares. O panorama continuou assim até 1808 “...Com a chegada do príncipe regente D. João ao Brasil em 1808, o processo de normatização dos grupos musicais militares ficou intensificado, haja vista os Decretos que estabeleceram números mínimos de músicos nos regimentos, dentre outras medidas, tais como a gratificação pecuniária.”(SOUZA,2020, p. 122). Daí por diante, houve uma melhor organização das bandas militares em corporações e uma padronização nas suas formações, inclusive com patentes bem definidas. Este artigo está dividido em três partes distintas. Na primeira parte abordaremos a história da Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas compreendida, num recorte temporal, entre os anos de 1952 e 1980, a sua importância dentro do cenário cultural, político e social no estado de Alagoas, além de alguns fatos importantes da sua história nesse período. Na segunda parte, como exemplo de ascensão social do músico, trataremos da carreira militar do músico Jonas Duarte da Silva, ex componente da referida Banda, que migrou do interior do estado para a capital. O referido músico, já falecido, nasceu na cidade de Coruripe, situada no litoral sul de Alagoas. Através de levantamento bibliográfico, hemerográfico e entrevistas realizadas com dois músicos militares contemporâneos de Jonas Duarte, procuraremos 381 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X entender os motivos para a migração e acompanhar a ascensão na carreira de músico militar. Carlos Ginzburg em sua obra intitulada O Fio e os Rastros, refere-se à mitologia grega citando a lenda de Teseu e o Minotauro. Ele explora muito bem essa lenda ao nos mostrar que, além do fio existem os rastros deixados como pista a ser investigada, onde busca-se também a verdade. Para mim, o fio é a Banda de Música e os rastros são os músicos que fizeram parte dela. Precisamos dar voz a esses músicos através de suas histórias. O historiador, segundo Ginzburg, não deve prender-se apenas ao fio condutor, pois pode criar lacunas em suas pesquisas; uma vez que “Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo” (GINZBURG, 2007, p.14). Ao deparar-se com um documento histórico em sua investigação, por exemplo, o historiador deve concentrar-se não apenas no texto em si, mas buscar conhecer quem o escreveu e todo um contexto em sua volta para poder entender e decifrar aquilo que o ator quis nos mostrar. É fundamental para a pesquisa histórica investigar os elementos que se encontram por baixo do fato ou documento, como as mentalidades, as técnicas, a sociedade, a economia. É o que buscamos mostrar neste artigo. No terceiro e último capítulo abordaremos a Banda de Música no período da ditadura civil-militar, dando ênfase ao repertório utilizado e possível censura. Exemplificaremos o repertório com algumas letras de músicas compostas para enaltecer o período da ditadura, além do relato, através de entrevistas, de dois músicos que serviram à Banda de Música por boa parte do período da ditadura civil-militar. 1. A Banda da Polícia Militar de Alagoas A banda de Música da Polícia Militar de Alagoas é um dos mais tradicionais aparelhos culturais que temos em nosso estado. Centenária, a Banda foi fundada no ano de 1850, segundo Souza: A banda de música da Companhia de Polícia da Capital, no decorrer do século XIX e principalmente após a República, passa por diversas transformações vindo a ser denominada Banda de música da Força Policial do Estado de Alagoas. Trata-se de uma banda que surgiu provavelmente por volta de 1850, de acordo com o estudo hemerográfico, e que chegou aos 382 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tempos atuais como a Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas. (2020, P.199). A Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas sempre desempenhou um papel de destaque. Não só por suas obrigações militares, mas também por sua presença nas mais diversas manifestações culturais e sociais do estado de Alagoas. É importante conhecer o ambiente cultural, dentro do recorte temporal, compreendido entre os anos de 1952 e 1980. Ela Sempre contou em suas fileiras com boa parte dos músicos vinda do interior do Estado. Dentre os motivos para essa migração do interior para a capital estava, principalmente a falta de oportunidade para exercer a profissão de músico nas cidades de origem e a busca por ascensão social que o ingresso na banda de música trazia consigo. Eram músicos, em sua maioria de origem humilde. Suas cidades contavam apenas com bandas de música filarmônica, que não ofereciam, como ainda hoje não oferecem remuneração para o músico, tornando-o amador, tendo que abraçar outra profissão para seu sustento. Muitos eram, além de músicos, estudantes, pescadores, agricultores, professores, pedreiros, pintores, dentre outras atividades. A Polícia Militar tornou-se também o abrigo seguro daqueles que viviam também em precárias condições sociais, pois nas décadas de 1950 e 1960 não era exigido um grau de instrução elevado para o ingresso na corporação. Segundo entrevistas realizadas com o major Edison Camilo e o tenente Eraldo Trindade, ambos da reserva da Polícia Militar, ex componentes da banda de Música, o nível de escolaridade exigido para o ingresso na Polícia Militar nos anos cinquenta e sessenta era apenas a quarta série do ensino básico, antigo quarto ano primário. No interior de alagoas, segundo os entrevistados, não havia o antigo ensino ginasial, que se dava a partir da quinta até a oitava série. Esse material humano abundantemente disponível em todo o estado era bastante oportuno para a corporação militar, pois se tratava de pessoas humildes que, para atingir seus objetivos talvez se submetessem, sem contestação, a qualquer regime de poder que os fosse imposto, submetendo também suas famílias, que orgulhosamente se vangloriavam por ter um membro militar. O que em certa época, para os mais humildes, era motivo de segurança e vaidade. Havia cidades que se orgulhavam em ter alguns de seus cidadãos nas fileiras militares. A Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas participou também de diversos festivais de bandas militares, com destaque para o Festival Internacional de Bandas Militares realizado na cidade do Rio de Janeiro no período de 30 de maio a 05 de junho de 1965, onde 383 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X segundo o Major Edson Camilo narrou em sua entrevista, a banda viajou para o Rio de Janeiro a bordo de um navio da Marinha do Brasil, sem nenhum custo para o estado de Alagoas. Porém o que os componentes da Banda não sabiam é que não haveria recursos para a viagem de volta. A Banda apresentou-se com destaque no referido festival e na hora do retorno, tiveram que esperar por uma negociação, o que acarretou numa viagem fracionada em grupos. Em 1977, a Banda de Música participou de mais um Festival de Música de Bandas Militares, também na cidade do Rio de Janeiro a convite da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UNIRIO, segundo o major Edison Camilo e o tenente Eraldo Trindade relataram em suas entrevistas. A Banda da Polícia Militar esteve presente nas manifestações populares, religiosas, políticas, dentre outras e, para isso, teve que se moldar em diversos formatos como a Lira da Saudade composta por 12 músicos que executavam um repertório nostálgico e que se apresentava em coretos de praças pelas cidades; uma vez que os coretos não comportam uma formação musical grande. Outra forma de interagir com a comunidade, era quando a Banda de Música, tomava a forma do bloco carnavalesco Vulcão que desfilava no período de carnaval em Maceió. Ali, no calor do frevo, ninguém lembrava que se tratava de militares muito à vontade, longe das suas fardas e coturnos. 2. Jonas Duarte da Silva: de soldado a regente Como exemplo de ascensão social, temos a história de Jonas Duarte da Silva, nascido na cidade de Coruripe, litoral sul de Alagoas em 28 de março de 1928 e falecido em Maceió no dia 06 de julho de 2003. Ainda jovem, com apenas onze anos de idade, após o falecimento do seu genitor, iniciou-se na profissão de alfaiate, como aprendiz, mas logo interessou-se por música, pois seu pai, apesar de ser mestre de barcaça, também tocava um instrumento. Seu primeiro instrumento foi a clarineta que aprendeu a tocar com um amigo. Logo, Jonas estava tocando em um pequeno grupo e a futura profissão de alfaiate já estava por ser abandonada. A nova atividade, no entanto, não era suficiente para o seu sustento e de seus familiares- a mãe e mais dois irmãos, pois o irmão mais velho migrou para a cidade do Rio de Janeiro. Mesmo assim, não largou o estudo do instrumento e em 1952, decidiu, apesar de ter estudado até o quarto ano do ensino fundamental, o que era até comum para as os habitantes das cidades interioranas, submeter-se as provas para o ingresso na Polícia Militar de Alagoas, mais precisamente na banda de música. O ingresso na polícia militar garantiu-lhe fazer aquilo que 384 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mais gostava: dedicar-se à música, apesar de também ter que cumprir outras tarefas comum a condição de militar. Tornou-se uma celebridade em Coruripe, não apenas por ser militar, mas por ter também composto o hino daquela cidade. Compôs ainda os hinos das cidades alagoanas de Coqueiro Seco e Teotônio Vilela. Jonas Duarte da Silva chegou até o ápice da carreira militar na banda de música, que tem como patente máxima o posto de capitão, com a função de regente da banda. Sob seu comando, a Banda da Polícia Militar de Alagoas passou a ser classificada como banda sinfônica e participou de vários festivais concursos de bandas militares que ocorreram no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Foi integrante da orquestra da Rádio Difusora de Alagoas e fez parte como corista do Coral Expressionista de Maceió. Era uma figura respeitada pelo conhecimento musical que tinha, principalmente no quesito orquestração. Apesar de pouco estudo formal, Jonas Duarte aprofundou-se na ciência musical participando de cursos e encontros de música em diversas cidades no Brasil como o festival de inverno de Campus do Jordão, cursos de música em Recife, João Pessoa e outras cidades. Graças a estabilidade e segurança propiciados pela profissão, realizou-se musicalmente. No dia 29 de setembro do ano de 1980, foi para a reserva remunerada da Polícia Militar ocupando o posto de Major. Daí por diante, passou a fomentar a formação de bandas de música pelo interior do estado. Foi professor regente da Banda Filarmônica da cidade de Coqueiro Seco e ajudou a fundar a banda de música da cidade de Teotônio Vilela. Além disso, ocupou-se com uma nova atividade: afinador de piano. Jonas afirmava que graças a carreira militar, ele aprendeu a ter a disciplina que tanto lhe foi útil na carreira musical. 3. A Banda da Polícia Militar de Alagoas e o Golpe Civil-Militar de 1964 Um outro ponto que devemos considerar é a posição que a Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas exerceu e exerce no setor de relações pública da corporação. Levando em consideração o golpe civil-militar de 1964, podemos acompanhar a banda de música como porta-voz da corporação nos conturbados anos que antecederam e sucederam ao golpe civilmilitar de 1964, chamado de revolução pelos militares. Segundo Queiroz: Em 1964, por ocasião do golpe militar, o Estado de Alagoas era governado por um general do exército brasileiro, Luiz de Souza Cavalcante, popularmente conhecido como “Major Luiz”. Por essa razão o novo regime instalado não interferiu nas Alagoas, como fez em outras unidades da 385 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X federação, inclusive no vizinho Estado de Pernambuco, que teve seu governador - Miguel Arraes – deposto. (2017, p. 141) Dentro desse contexto acima descrito, entendemos que o estado de Alagoas, em termos de governo, passou com uma certa tranquilidade e estabilidade do regime democrático para o ditatorial e sendo assim, os militares sentiram-se seguros como donos da situação. Segundo relatou em entrevista o major da reserva da Polícia Militar Edson Camilo, no dia 30 de março de 1964, um dia antes da deflagração do golpe civil-militar, a Banda de Música estava em viagem a bordo de um trem acompanhando a comitiva do governador do estado para a inauguração de uma ponte na cidade de União dos Palmares. Quando estavam próximos a cidade, a composição parou e segundo o major, surgiram soldados da Polícia Militar fortemente armados informando que estavam ali para impedir que o governador de Pernambuco na época, Miguel Arraes, que segundo informações, teria um comício na Praça do Pirulito em Maceió, chegasse ao seu destino. Só a partir desde evento é que os componentes da Banda de Música tiveram conhecimento da situação em que o país seria submetido. Mas, segundo os ex componentes da Banda major Edison Camilo e tenente Eraldo Trindade, não houve modificação e ou orientação quanto a modificações no repertório da Banda de Música. A Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas, nos anos que antecedem ao golpe militar, executava um repertório, segundo o major Edson Camilo, diferentemente do que hoje ocorre, recheado de dobrados e marchas militares. Em algumas ocasiões executava músicas folclóricas, religiosas ou de compositores populares da época. As bandas de música gozavam de um certo prestígio nas cidades e estavam presentes nas principais festas e comemorações como por exemplo, inaugurações públicas e privadas, apresentações em coretos e festas religiosas. A televisão, assim como outros meios de entretenimento nas cidades eram escassos. A grande atração nos anos 1950 era o circo, que fazia temporadas com suas novelas e atrações espetaculares; porém era itinerante e, por sua vez, as bandas estavam sempre presentes. A Banda da Polícia, apesar de se tratar de uma banda militar, segundo os entrevistados, tinha uma certa liberdade para escolher seu repertório, usando o bom senso, evitando certas músicas tidas como subversivas. O repertório era limitado pela dificuldade em se adquirir partituras, principalmente na década de 1960. Na década de 1970, segundo relata o tenente Eraldo Trindade, era comum a banda de Música executar músicas, por exemplo, de autoria de 386 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Caetano veloso, compositor exilado político vítima do AI5. Na década de 1970 foram criadas músicas exclusivas que exaltavam o poder e a força, assim como a grandeza e desenvolvimento do Brasil. A banda de música, neste caso, torna-se também um garoto propaganda do novo sistema de governo. Era frequente a apresentação em escolas e a repetição do mesmo repertório intencionalmente preparado para essas ocasiões. Lembro-me, como estudante do primeiro grau, já na década de 1970, pois nasci em 1964, que presenciei várias apresentações da banda da Polícia Militar, onde eu já sabia de cor pelo menos a maioria das músicas que seriam executadas, como por exemplo, Pra Frente Brasil ou o Hino do Sesquicentenário da Independência, comemorado em 1972, e mais uma meia dúzia de músicas já bastante conhecidas do público. A censura imposta ao setor artístico foi rigorosa. Vale salientar aqui que a censura prévia era uma atividade legalizada pela Constituição de 1934 com o intuito de defender a moral e os bons costumes. Segundo o artigo A Censura Musical Durante o Regime Militar (1964-1985), escrito por Maika Lois Carocha: a censura prévia vigiava de perto a música popular, canções de teor político só eram divulgadas pelo rádio quando elogiosas ao Estado, mas foi sendo adaptada paulatinamente às especificidades do período em questão. A censura musical e todas as outras que fizeram parte do conjunto conhecido por diversões públicas eram feitas previamente, o que conferiu ao processo censório uma grande capacidade de coerção. (2006, p. 195) A censura prévia não foi criada pelo regime civil-militar e sim pelo Estado Novo. Já fazia parte do dia a dia dos nossos artistas, principalmente da área musical, há um bom tempo. À Constituição de 1934, seguiu-se a de 1937 e a de 1946, todas aumentando a área de atuação da censura. Apesar da censura prévia a que todo o meio artístico foi submetido, a banda de Música, segundo os entrevistados, não foi submetida a essa censura. Logicamente o foco estava voltado principalmente para a criação artística, onde se filtrava com antecedência os possíveis “abusos e exageros” de teor subversivo contra o regime. Conclusão 387 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X É incontestável o papel que a música desempenhou na história nos diversos níveis cultural, político, religioso. Como vimos, no início desse texto, desde os primeiros grupos musicais, ela sempre serviu para unir os homens em sociedade ou em grupos menores, inspirando-os em seus sentimentos. O homem é um ser social e naturalmente não pode fazer música para guardá-la para si. É uma expressão, uma linguagem e, portanto, precisa ser ouvida, apreciada, refletida, sentida, criticada para que ganhe sentido como arte que reflete a cultura, o momento, o contexto em que o ser humano se encontra. Por amor à música, muitos músicos fizeram sacrifícios em deixar suas cidades em busca de poder realizar o sonho do viver musical. Não hesitaram em deixar suas famílias ainda jovens, migrando em busca da realização de seus sonhos e melhorar suas condições na profissão de músico. Quando era criança, já estudando música com a idade de seis anos, certa vez, num momento de fúria, joguei meus métodos musicais no lixo. Porém, não havia mais jeito, eu já estava contaminado pelo “vírus” da música e não tardou para que fosse humildemente buscálos de volta da lixeira. Voltando à Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas é importante salientar que, ao longo de sua existência, ela sempre manteve uma relação de dependência e cumplicidade com a sociedade alagoana, pois independente das mudanças políticas e de regime ao longo do tempo, o laço que une as duas partes nunca foi cortado. Há, até os dias atuais, uma admiração da sociedade, do povo para com a Banda de Música da Polícia Militar e acredito que a banda retribui já há algum tempo, num período mais brando em que vivemos, com um repertório bem mais próximo do seu público. Bibliografia: MENUHIN, DAVIS, Yehude, Curtis. A Música do Homem. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1990 CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Música. São Paulo: Ediouro, 1999. ALMEIDA, Renato. História da Música Brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp – Editores, 1942. MEYER-CLASON, Curt; OFFENHÄUSER, Dieter. Portugiesische Erzählungen des 20.Jahrhunderts. , Freiburg: Beck & Glückler, 1988. 388 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X SOUZA, Nilton da Silva. As Bandas de Música do Baixo São Francisco Alagoano: Práticas Culturais Musicais em Contexto. Programa de Pós-Graduação em Música-Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Tese de doutorado, Salvador, 2020. 356 f. GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. QUEIROZ, Álvaro. Episódios da História das Alagoas. Maceió: A.Q.da Silva, 2017. CAROCHA, Maika Lois. A Censura Musical Durante o Regime Militar (1964-1985). História: Questões & Debates, Curitiba, n. 44, p. 189-211, 2006. 389 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A Censura à Revista Adventista durante o Governo Médici (1969-1974) Moizes Saboia da Silva403 Resumo: Este estudo se propõe a analisar como a Revista Adventista passou pelo crivo da censura aos periódicos durante a presidência do General Emílio Garrastazu Médici (19691974). Pretende-se discutir como a Revista perpassou a censura implementada pelos órgãos da comunidade de segurança e informação. O estudo da censura imposta aos meios de comunicação é um registro importante para compreensão tanto das estratégias de permanência do regime no poder quanto das tentativas de silenciar vozes contrárias. Em suma, neste estudo, através da Revista Adventista, busca-se evidenciar como uma revista do campo religioso foi matizada no referido regime pelo olhar da ideologia de segurança nacional em oposição a liberdade de expressão e a defesa da democracia. Palavras-chave: Revista Adventista. Governo Médici. Censura. Em janeiro de 1906, no Rio de Janeiro, circulou o primeiro número da Revista Adventista no Brasil. Em seu editorial, o impresso fora apresentado como “alimento espiritual” e justificado como reflexo de “autoconsciência, idealismo, crescimento, mobilização, sonho e desejo de aglutinar ideias”. (BENEDICTO, Marcos; BORGES, Michelson. Um século: 100 anos de história. Revista Adventista, p. 8, janeiro de 2006.) Com uma população girando em torno dos 20 milhões de habitantes (censo de 1900)404 e com 1.212 (um mil duzentos e doze) adeptos, o Brasil era uma grande seara a ser explorada pela doutrina adventista a partir da publicação do periódico que, como a imagem de corpo congregado, expandiria e conectaria, a nível nacional, os membros da Igreja. Pensar em trabalhar a Revista Adventista nasceu através de discussões sobre a dimensão política da censura e sua relação com a imprensa, realizadas no grupo de pesquisa Memória, Identidade e Ensino de História (Mnêmis) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. A leitura de textos (dissertações e teses), a pesquisa nos repositórios de teses e Mestrando pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: feziosaboia01@gmail.com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo de 1900. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25089-censo-1991-6.html?edicao=25091&t=publicacoes. Acesso em 08/09/2021. 403 404 390 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X dissertações das universidades brasileiras e do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), dos arquivos digitais da Hemeroteca Nacional ajudaram a localizar a documentação necessária (sobre a Revista Adventista) para a realização da pesquisa sobre a relação entre a Igreja Adventista e o Regime Militar brasileiro (1964 – 1985). Desenterrar silêncios, e a subsequente ênfase do historiador sobre o significado retroativo de eventos até então negligenciados, consiste em algo que exige não apenas trabalho adicional com os arquivos – sejam fontes primárias ou não o material que se use –, mas também um projeto vinculado a uma interpretação. Isso acontece porque os silêncios combinados, que cresceram ao atravessar os primeiros três estágios do processo de produção histórica, se misturam e se solidificam no quarto e último movimento, quando a própria significação retroativa é produzida. (TROUILLOT, 2016, p. 101.) A leitura de fontes que venham a contribuir com o processo e discussão de uma pesquisa vem desse olhar curioso que temos em relação a entender os porquês que nos cercam e nos atemorizam nos levando, muitas vezes, à busca de respostas que forneçam entendimento, por menor que seja, sobre os dias presentes em que vivemos. Não existe pesquisa sem um porquê. O objetivo da leitura nesses ambientes, sites e repositórios, que agregam essas teses e textos acerca da revista serviram para o processo de construção da proximidade da resposta dos porquês. A revista foi criada em 1906 no Brasil, com o propósito de fortalecer a comunicação entre os adventistas ao redor do país e do mundo. Circulava, inicialmente, com 12 páginas e posteriormente, ao longo dos anos que se seguiam, passou a circular com uma média de 30 páginas. Curiosamente, não possuía capa e sumário, surgindo apenas em 1953 e 1973, respectivamente. Até fevereiro de 1931, circulou como Revista Mensal. A partir de março do mesmo ano passou a ser Revista Adventista, “orgam offcial da Egreja Brasileira dos Adventistas do Sétimo Dia.” Seus editores, não profissionalizados em jornalismo, eram pastores (brasileiros e estrangeiros) missionários etc., que escreviam artigos sobre os mais variados temas religiosos e sociais para a revista, cujo intuito era mostrar os trabalhos da Igreja em sua expansão pelo Brasil e mundo. Dentro da revista, os membros adventistas eram constantemente alertados sobre o dever de ter a assinatura do periódico. Muitas vezes, com repressões severas. 391 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A igreja que nada tem a fazer, que não assina as nossas revistas, especialmente a REVISTA ADVENTISTA está a caminho do cemitério. Os oficiais da igreja que nada fazem que não orientam os membros quanto à importância da leitura de nossos livros e revistas são os que se preparam para carregar o esquife até a sua última morada. Todos os que se ocupam em seus afazeres materiais e não têm tempo para ler o que as nossas casas editoras produzem para a Igreja, são os que preparam a coroa para o enterro. Mesmo os que possuem os nossos livros, assinam as nossas revistas, mas, indiferentes, os deixam empoeirar-se nas estantes ou nas gavetas, são os que jogarão as últimas flores sobre a Igreja morta. (FERRAZ, Itanel. Nossa literatura alimento espiritual. Revista Adventista, Santo André, São Paulo, ano 67, n° 9, p. 23, setembro de 1972). Os editores eram ferrenhos em seus alertas a que a revista fosse não somente adquirida através das assinaturas, que eram anuais, mas também que se prontificassem a ler o que era escrito, já que a falta dessa leitura e cuidado que os editores exigiam, caso não viesse a ser realizada, tornaria os membros não leitores como aqueles que estariam contribuindo com uma Igreja sem vida. No periódico, as Sessões da Associação Geral recebiam textos de pastores e missionários estrangeiros, bem como dos adeptos das igrejas locais que partilhavam experiências e notícias em torno da fé dos congregados. O objetivo era produzir o discurso de que a Igreja era união global, corpo único em torno da fé a ser trilhada. Para isso era fundamental que os membros locais enviassem relatórios de suas viagens pelo Brasil, evangelização, colportagem405 e demais ações que fizessem em nome da Igreja para que os leitores do periódico se conectassem de alguma forma e o sentimento de que eram um só povo se solidificasse. Era tão importante para os editores e para a evangelização e manutenção da Revista esses relatos missionários, relatórios de colportagem, relatos pessoais etc., que, muitas vezes, os membros líderes das igrejas locais recebiam repreensões, exortações e críticas pelo fato de não mandarem o progresso de suas evangelizações pelo país à redação. A estratégia dos editores nesse sentido era mostrar que a Igreja obtinha sucesso no país em conquistar membros e que 405 Ação em que membros adventistas saem de porta em porta para vender livros e demais literatura adventista. 392 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X os fiéis não se cansavam em dar seu tempo, dinheiro e disponibilidade em sair aos campos em busca de novos adeptos. A ideia era, além de fortalecer a fé dos fiéis leitores adventistas, sensibilizar aqueles que estavam inertes a que também saíssem aos campos em busca de novos conversos. Os artigos eram publicados na primeira página abaixo do nome do periódico, dedicando-se a temas relacionados ao disciplinamento, obediência, princípios doutrinários adventistas, espiritualidade, saúde e questões sociais como a preocupação com a educação, trabalho, lazer. A estratégia era fazer da revista um espaço de circulação do suposto unitarismo do discurso religioso adventista, reforçado pela associação entre imagens e textos de Ellen White, cofundadora. O objetivo é entender, discutir, pôr na mesa dos debates o posicionamento da Igreja no período Médici (1969-1974), pois se faz necessário e de grande importância social ao se perceber os intuitos claramente doutrinais que corroboram diretamente com o governo dos militares. Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatíveis com ele; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a torná-las óbvias e aparentemente inevitáveis; denegrindo idéias que possam desafiá-lo; excluindo formas rivais de pensamento, mediante talvez alguma lógica não declarada, mas sistemática; e obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-lo. (EAGLETON, 1997, p. 19) Unir-se em ideias com o regime dos militares parece ter sido algo que não foi difícil, já que a Igreja buscava sua expansão pelo país e não se pôs a ser contrária ao governo vigente, tendo em vista que a postura contrária seria um grande entrave a sua expansão e, certamente, o periódico, tão importante para o crescimento da Igreja no país e manutenção da união e fortalecimento do pensamento entre os adventistas seria censurado devido as margens da liberdade e de críticas políticas reduzidas a zero FILHO (2014) se implantarem no país. Autores que estudam o período do Regime Militar como Daniel Aarão Reis Filho (2014), Ditadura e Democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988; Maria Aparecida de Aquino (1999), Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento; Carlos Fico 393 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X (2001), Como eles agiam: os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política etc. Dentre outros que possam agregar a discussão são essenciais para a discussão a respeito do regime. Quanto as imagens da própria revista é um ponto de muita ajuda para discutir táticas do editorial. A capa da revista era um meio de sensibilização pelo olhar em que se apresentavam datas comemorativas, religiosas e civis, o dia das mães, a Independência do Brasil. A datas são muito importantes para se buscar o controle e o engajamento da população e seu uso era muito bem pensamento para os meios e propósitos almejados. “A história se compõe de coisas do passado e de coisas do futuro, de esperança e de lembrança.” (KOSELLECK, 2013, p .101) que fazem parte da vida das pessoas e são utilizadas para se atingir os desejos de quem comanda. É fundamental perceber como a política era tratada pelos líderes da Igreja e como ela passou e circulou durante o processo de censura e se aproximou do governo para manter-se viva e atuante já que “[...] entre 1968 e 1975, a censura assume um caráter amplo, agindo indistintamente sobre todos os periódicos.” (AQUINO, 1999, p. 212). Entender a dimensão do que foi a censura aos meios de comunicação é um processo indispensável ao se estudar os anos do governo dos militares no Brasil, pois sem a censura à oposição, o processo de manutenção no poder teria sido mais difícil. Na segunda fase (de 1972 a 1975) há uma radicalização da atuação censória, com a institucionalização da censura prévia aos órgãos de divulgação que oferecem resistência. Observa-se que em parte desse período o regime político recrudesce em termos repressivos, momento em que o controle do Executivo pertence aos militares identificados com a “linha-dura”. O ano de 1972 marca a radicalização e a instauração da censura prévia, e coincide com a discussão da sucessão presidencial que levará a escolha do general Ernesto Geisel, oriundo da ala militar da “Sorbonne” e que terá uma grande dificuldade de aceitação por parte dos militares da “linha-dura”. Estes prosseguirão controlando altos cargos (por exemplo, o comando do II Exército em São Paulo), durante algum tempo. (AQUINO, 1999, p.212) Nenhum dos presidentes da ditadura deixou de usar os órgãos de repressão e censura à oposição. O SNI (Serviço Nacional de Informação) atuava dentro do governo e da sociedade se 394 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X capilarizando sem precedentes através das agências regionais formulando dossiês e todas as informações possíveis dos opositores e até mesmo daqueles que estavam dentro do governo. Ninguém estava a salvo dos tentáculos do olho observador dos órgãos de busca criados para a formulação de informações visando o extermínio de todos os que se colocavam contrários ao modo como o país estava sendo conduzido. O terror que caía sobre os opositores podia ir desde uma repressão até a morte. Ainda em 1967 a repressão começa a tomar nova forma de modo mais sólido e escancarado com o CIE (Centro de Informações do Exército). Um dos órgãos responsáveis não somente pela coleta de muitas informações, mas também por atuar diretamente na repressão contra a oposição. Escapar dos órgãos de repressão era cada vez mais difícil e delicado, já que os centros criados se capilarizavam de forma cada vez mais rápida. O CIE e outros como o CENIMAR, CISA, OBAN, por exemplo, contribuem de forma nítida para a criação em 1970 dos CODI e os DOI causando censura como os cortes nas matérias, censura de matérias completas, quando não, o editorial inteiro, já que os periódicos tinham um censor para avaliar o conteúdo da matéria antes de ser publicado, apreensão, tensão, medo, perseguição, tortura, ameaças e cerceamento das liberdades individuais que a democracia traz. Prezar pela liberdade, pela democracia, pelo livre pensamento e por entender que a política deve ser crítica, principalmente, nos anos de chumbo, é lutar cotidianamente pela sobrevivência não só de si mesmo, mas também pela manutenção de uma sociedade e um país civilizado com todos os direitos de ir e vir sem ser importunado, vigiado, ameaçado, censurado. Nesse processo, permanecer inerte diante de uma democracia que era atingida não podia ser aceitável, pois “uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais, é uma civilização enferma. Uma civilização que trapaceia com seus princípios, é uma civilização moribunda.” (CÉSAIRE, 1978, p. 16). A censura agia de modo nítido e presente em vários periódicos do país buscando silenciar as vozes da oposição e que porventura viessem a levar qualquer tipo de pensamento crítico contra os atos e maneira de atuar do governo vigente. Médici foi o presidente que mais tensão e perseguição executou a todos os que pensavam diferente dos pensamentos militares, ficando conhecido como “Anos de Chumbo” Gaspari (2002). Todo e qualquer periódico que ousasse publicar qualquer nota, artigo, conto etc. contrária ao que os militares pensavam poderia ser multado, censurado ou sofrer algum tipo de 395 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X revés para que entendesse que as ordens militares deveriam ser seguidas e obedecidas. A oposição deveria ser calada e/ou controlada, por isso “a censura, o sistema repressivo, e a propaganda oficial, é claro, também ajudaram a criar um clima de calmaria e paz social, mais próxima de uma paz de cemitério, ao menos no plano político.” (NAPOLITANO, 2014, p. 160) já que as vozes que gritavam contrárias a política dos militares eram constantemente perseguidas e postas distante do olhar crítico da sociedade. A visão política crítica era um ponto impensável que a população viesse a ter, por isso era constantemente buscado passar uma imagem de prosperidade e bonança vindo dos militares tanto pelos meios oficiais quanto pela mídia que se congratulou ao regime. Nunca fomos tão felizes! O projeto do Brasil Grande Potência parecia ter uma base material inédita. O sucesso econômico do regime também se transformava em sucesso político com a derrota da luta armada de esquerda, que na ótica do regime era apenas uma desagradável serpente a perturbar a harmonia do paraíso capitalista finalmente atingido.” (NAPOLITANO, 2014, p. 163) À população era dirigida notas e números positivos da sobressaltos que ocorreram na década de 1970, o chamado “milagre econômico”. Embora esse “milagre” não tivesse atingido a todos, pois “numa sociedade de classe, há principalmente as desigualdades entre as classes.” (WILIANS, 1971, p. 112.). Esses números, claro, ajudaram a fortalecer o discurso militar de progresso e prosperidade e de um país imparável. Infelizmente, até os dias atuais, é possível ouvir pessoas, muitas que não viveram os tempos da ditadura ou não conhecem o cerceamento de liberdades, bradar pelas ruas, em especial nas mídias sociais, que o tempo dos militares era melhor e deveria voltar. Ledo engano. Dentro da Revista Adventista perceber como era composto o editorial e como se articulavam para selecionar o que iria chegar ao leitor é um meio pelo qual se pode entender como estava o editorial referente aos anos de chumbo, à política, à sociedade. Discutir como era pensado o projeto gráfico, o conteúdo, o modo como essas revistas deveriam chegar aos assinantes e a tecnologia usada para a impressão das revistas e como se dava a circulação da revista, é de suma importância. Para o editorial, as revistas não somente deveriam chegar aos assinantes, mas fossem lidas. 396 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Cada membro da Igreja Adventista deve assinar a Revista Adventista. Comparando o seu preço, que é apenas NCr $ 9,00 por ano, com as revistas seculares (sendo que a maior parte delas somente serve para alimentar o fogo), o preço destas últimas é bem mais elevado. Ela é quase de graça, pois não se pode comparar o valor moral e espiritual da Revista Adventista, que instrui, fortalece a fé, traz ótimas notícias de nossos campos missionários e nos ajuda na preparação para o reino de Deus, com outras revistas e panfletos, que muitas vezes promovem a degradação, mormente da juventude que se deixa iludir com os seus enredos de amores ilícitos e apaixonantes. Vale a pena empregar NCr $ 9,00 por uma assinatura da Revista Adventista. Ela é o termômetro da igreja. Através de suas páginas, sentimos o calor espiritual e a fé que mantêm firmes os nossos queridos irmãos em todo o mundo. (ALVES, Felipe F. O termômetro da igreja. Revista Adventista, Santo André, São Paulo, ano 65, n° 5, p. 15, maio de 1970). Percebe-se claramente a estratégia e exortação dos editores em que se comparava não somente o conteúdo religioso produzidos pela CPB406, mas também o preço. Para os editores era fundamental que os membros lessem o conteúdo publicado, pois isso era uma forma de fortalecer as ideias adventistas e de manter a CPB com recursos financeiros para continuar produzindo. Portanto, não somente o conteúdo era melhor, mas também o preço que cabia no bolso. As revistas seculares não só eram mais caras, e não traziam edificação espiritual. Desse modo, os editores buscavam inculcar, talvez, um processo de culpa nos membros que não lessem e adquirissem a revista. Caso ocorresse algum mal a família e filhos de quem preferisse ou desse espaço as revistas seculares. Entender como a revista chegava ao seu público, os assinantes, é de suma importância, tendo em vista que o crivo da censura estava nos principais periódicos do país, e por menor que o periódico fosse, caso viesse a afrontar o governo, não seria tolerado em hipótese alguma. Entender isso contribui no esclarecimento de como a Igreja se relacionou durante o período do regime militar para poder se expandir e conquistar mais fiéis, passando pelos crivos da censura, contribuindo com a disseminação dos lemas Deus, Pátria e Família em harmonia com o governo. 406 Casa Publicadora Brasileira. Editora da Igreja Adventista. 397 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Em todas as entrevistas mantidas com autoridades militares e civis procuramos deixar clara a posição da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e de seus membros, de fielmente trabalharem por Deus e pelo nosso Brasil. É notável o grau de simpatia que desfruta nossa Igreja no mundo oficial. O nome adventista do sétimo dia, longe de ser um empecilho, é hoje uma recomendação. Sentimos essa atitude amiga entre militares, senadores, deputados etc. (NEPOMUCENO, Antônio A. Departamento de Assuntos Cívico-Religiosos da Confederação das Uniões Brasileiras da IASD. Revista Adventista, Santo André, São Paulo, ano 66, n° 4, p. 37, abril de 1971). O editorial frisa que sua relação com os militares em todas as suas entrevistas não passava de boa vizinhança. No entanto, manter boa vizinha com governos antidemocráticos é um meio pelo qual não se contribui com o processo democrático e de livre circulação de ideias e pensamentos. A sociedade é um misto de pessoas de diversos locais e com muitas características próprias, mas que devem se encontrar nos ideais democráticos de direito. Um país amordaçado é um país sem voz, sem vida, sem liberdade e sem segurança. Viver sob o constante medo da censura é um mal incalculável. O editorial da revista voltava-se a temas bíblicos mostrando seu crescimento pelo país e mundo. Os artigos publicados pelo editorial buscavam passar a ideia de que a Igreja estava distante dos atos seculares e tinham sua atenção voltada unicamente para o celestial. No entanto, também publicava notas e até artigos a respeito de políticos adventistas que estavam no Congresso, como é o caso da família Losso do Paraná. Ganhando a simpatia e apoio dos militares. Sem dúvida a religião consiste em um conjunto de discursos que se mesclam a outros para criar um continuum ininterrupto entre o teórico e o comportamental EAGLETON (1997). Trazer isso à tona é clarear como a Igreja circulou sua mensagem através das páginas da Revista Adventista durante todo o Governo Médici (1969 -1974) e corroborou com ele, moldando uma membresia obediente e casta. Desta forma, atenta-se para a discussão dos meios e formas que foram utilizados pelos editores nas páginas da revista para atingir esse propósito. 398 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O campo da experiência dos cristãos é o pecado, a punição, o sofrimento, a profecia, a vinda de Cristo, a Paixão; o horizonte de expectativa é a volta iminente do Messias, que porá fim ao castigo do tempo e da história e separará os bons dos maus, salvando a uns e condenando a outros. A esperança é que, no fim da linha, o Messias os espera de braços abertos e a história é o caminho que têm de atravessar para retornar à casa do Pai. A esperança é que a história será totalmente abolida no futuro — a sua linearidade só é tolerada porque se acredita que ela cessará um dia. A história não é eterna, o tempo e seu império serão abolidos e a eternidade vencerá. O cristão aceita conviver e até valoriza a história, mas tem fé que a eternidade abolirá o tempo de um só golpe. (REIS, 2021, p. 50) Esse é um meio pelo qual os membros adventistas acreditam na mensagem divulgada nas páginas do periódico adventista. O aguardo do Messias, de certa forma, causa inercia nos membros fiéis, pois a crença de que não pertencem a esse mundo os faz esperar unicamente por intervenção divina. Assim, o membro fiel não age, não atua e não protesta, pois esse mundo pertence aos pecadores, e existe uma pátria celeste esperando os fiéis, portanto, por que lutar pelo que não é meu e será destruído? O Messias, portanto, virá e dará o galardão a todos os que se mantiveram fiéis. Esse é o pensamento que causa inercia e contribui para que governos ditatoriais permaneçam por mais tempo. A abordagem religiosa e a relação entre o Projeto Gráfico e Editorial da Revista Adventista são entendidas como as principais estratégias para atingir o leitor do periódico de modo fácil e apreciável à leitura. Em seu conjunto, expressavam os interesses em maximizar o espaço dos artigos sobre a vida social e política tornando a informação mais direcionada aos objetivos propostos pelos editores, especialmente, à expansão do periódico nos lares dos membros da Igreja e fora. É importante lembrar que os militares permaneceram por mais tempo no governo por terem apoio de jornais e demais meios de comunicação que os apoiaram. Muitos por acreditarem, talvez, que o país seria grande como o “irmão do norte”, os EUA, outros por acreditarem que teriam benesses e incentivos ficais, como muitos tiveram, de fato. Ao longo da empreitada, os proprietários dos veículos de comunicação de massa – grandes jornais, revistas, estações de rádio e da ainda principiante 399 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X rede de televisão – demonstrariam, de forma inequívoca, os limites do liberalismo que professavam e a relativa rapidez com que estavam dispostos a abrir mão da democracia, da liberdade de expressão e do respeito às instituições e preceitos legais. (MARTINS; LUCA, 2006, p. 96.) Muitos meios de comunicação renunciaram a democracia em favor de vastos e variados interesses que iam desde o pessoal ao econômico. Tratar e discutir como o processo de apoio que muitos meios de comunicação e a relação que tiveram com o regime é de fundamental importância para se compreender a dimensão do apoio e até que ponto a censura ia. Estudar o posicionamento dos editores da Revista adventista é essencial para se compreender até que ponto membros adventistas brasileiros eram influenciados pelas ideias militares através dos artigos, avisos etc. publicados. Fonte CPB Acervo Digital Bibliografia CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978. AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC, 1999. BARROS, José D’Assunção. A fonte histórica e seu lugar de produção. Petrópolis: Vozes, 2020. ARÓSTEGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. São Paulo/Bauru: Edusc, 2006 EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Unesp, Boitempo editorial, 1997. FILHO, Daniel Aarão Reis. Ditadura e Democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2014. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. – São Paulo: Companhia das Letras, 2002. KOSELLECK, R.; MEIER, C.; GÜNTHER, H.; ENGELS, O. O conceito de História. Coleção História e Historiografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 400 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de. Imprensa e cidade. São Paulo: Editora UNESP, 2006. NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. 1. Ed., 1° impressão. – São Paulo: Contexto, 2014. REIS, José Carlos. Teoria & História. Tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012. WILIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. 401 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A representação dos superpoderes nas histórias em quadrinhos - aspectos históricos dentro da sociedade Peter Ferreira407 Resumo: Através do surgimento dos super-heróis nos anos 1930, é perceptível que as histórias em quadrinhos são elementos importantes para entender como um determinada população ou cultura se interagem. Sendo observado de maneira individual, cada poder dos heróis ou vilões representa o desenvolvimento no perfil dos personagens das histórias de aventuras, como os quadrinhos. Ao mesmo tempo, os produtores e desenhistas começaram a interpretar a sociedade em suas épocas, aprimorando a visão da necessidade dos superpoderes para uma narrativa social. Elas são vistas de forma velada nos quadrinhos através das lutas sociais, superação moral e ética, psicológicas e psiquiátricas, com entrada entre a fantasia e a realidade. Em conjunto de sistemas narrativos, elas se baseiam na análise na jornada do herói, na qual está encrustada a necessidade da salvação - quase religiosa – da imagem do homem como ser insuperável, perpassando pela atuação real da sociedade com os fatos do dia a dia, até mesmo a alienação num todo ao deparar com problemas pessoais e profissionais. Assim, esta comunicação tem como objetivo de oferecer novas oportunidades para pensar sobre as histórias em quadrinhos ligados aos superpoderes de heróis e vilões, suas representações dentro da sociedade e os manifestos culturais, observando os pontos históricos envolvidos em cada quadrinho e personagem. Palavras-chave: representação, superpoderes, sociedade. Questão Psicológica: Interpretar os quadrinhos para aspectos da construção da sociedade parte da premissa do objetivo que o superpoder terá no seu papel de representação. Uma característica que tange a complexidade da ação dos poderes nos quadrinhos são os pontos psicológicos. Estes pontos Pós-graduando em História Social e Contemporânea pela Faculdade Única de Ipatinga e graduado em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte. Atualmente trabalha na MCA Auditoria e Gerenciamento na conferência e montagem de acervo de arquivos institucionais e privados na reparação do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana – MG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7539857896255191 407 402 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X podem ser notados através das proporções e propostas carregadas pelos superpoderes, carregadas pelos seus usuários e hospedeiros.408 De acordo com Lilian Graziano, da FDC409, ao analisar as obras de Christopher Peterson sobre o pensamento aristotélico e suas análises de conjunto de valores ao redor do mundo – tanto religiosos quanto éticos – se depara com virtudes ubíquas410, presentes em todas as culturas, tais como: coragem, sabedoria, justiça, humanidade, moderação e transcendência411. Com base nessas virtudes, verificado por diversos psicólogos, Graziano aponta que esta análise chegou a caracterizar o modelo chamado de forças pessoais412, nas quais representam as características do comportamento humano responsáveis pelo desenvolvimento de cada uma dessas 6 virtudes. Segundo ela, essas forças representam aquilo de melhor que alguém tem a oferecer ao mundo. E, quando usadas a nosso favor, elas podem nos levar a ótimos resultados. Por isso, ela compara as forças pessoais às habilidades dos super-heróis413. Observando os super-heróis, partimos para análise do Superman e Capitão América, sendo estes personagens que carregarem virtudes desde a sua criação.414 Ao considerarmos as fases que eles passaram,415 eles possuem similaridades em virtudes na conduta ao utilizar os poderes. No caso do Superman, sendo trabalhado por Eco em “O Mito do Superman”, o comportamento e a influência exercida pelo desenho no leitor ou telespectador são mostrados sob o olhar semiótico. Demonstrados dos poderes do herói, a invencibilidade – dentre outros poderes – é personificada através do desejo da ascensão das pessoas que viviam na época nos Há diferenças entre hospedeiros e usuários de superpoderes. Enquanto hospedeiros podem carregar poderes vindos de outros seres que os escolhem para habitar o seu corpo, os usuários podem ter poderes ou habilidades para manipulação de técnicas, a depender do personagem. Fundação Dom Cabral. Do latim que significa “em qualquer lugar”. GRAZIANO, Lilian. E se você tivesse superpoderes? Youtube, 19 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/39nSecG>. Caracterizado por Christopher Peterson pela Psicologia Positiva trazendo perspectiva de cada indivíduo tem uma composição própria de virtudes ou forças pessoais. As forças pessoais dão base para os 5 elementos do bem-estar, ou seja, o emprego de maiores forças leva a mais emoção positiva, sentido, engajamento, realização e melhores relacionamentos. Assim, estes atributos teriam 6 virtudes e 24 forças de caráter definidos pela própria humanidade. Disponível em: https://www.dvf.com.br/e-se-voce-tivessesuperpoderes/?fbclid=IwAR2HqntqQCN9FG-0_sBa61it8yyOU2NSkh9ZUEPumpOBJ0Y89Sh21arpb5Q GRAZIANO, Lilian. E se você tivesse superpoderes? Youtube, 19 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/39nSecG>. Apesar de serem criados quase na mesma época (Superman em junho de 1938 e Capitão América em Dezembro de 1940), os dois possuem atributos similares de quando foram criados. Através dos anos, somente Capitão América permaneceu com alguns traços de personalidade da época de criação, enquanto Superman houve alterações em seu perfil para atender ao público em diversas épocas. Desde ascensão do nazismo até o final da Segunda Guerra Mundial, com períodos também demonstrados durante a Guerra Fria. 408 409 410 411 412 413 414 415 403 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X EUA, mas ainda demonstrando humildades e posição ética ao salvar as pessoas, mantendo em alguns momentos sua identidade humana de Clark Kent. Agora ao deparar com o Capitão América, os poderes do Steve Rogers também demonstram os mesmos anseios sociais da época, porém, da forma como foram adquiridos, as abordagens de seu uso estão atreladas a uma construção de uma imagem suprema de superação de um povo. Em ambos os casos, ascensão social do cidadão, de vitórias, aplacadas, maquiadas e saciadas junto às batalhas vencidas pelos ídolos, episódio após episódio, baseia-se no que lhes impelem as aspirações de status, de nível social, desejando ser algo formado pela mídia, inconscientemente integrado a sua mentalidade subjetivamente, ilustrada por Eco da seguinte forma: Os meios ligados à nossa cultura, como as revistas de histórias em quadrinhos, constituem um sistema coerente nesse sentido. Sobre o assunto, [...] a televisão, o jornal, o rádio, o cinema e a estória em quadrinhos, o romance popular [...] agora colocam os bens culturais à disposição de todos, tornando leve e agradável a absorção das noções e a recepção de informações, estamos vivendo numa época de alargamento da área cultural, onde finalmente se realiza, a nível amplo, com o concurso dos melhores, a circulação de uma arte e de uma cultura “popular.”416 Assim, seres poderosos como Superman e Capitão América, podem demonstrar as virtudes e éticas que envolvem esta imagem ideal que a sociedade busca (seja ela em qualquer época), está ligada a como a cultura é constituída, sendo verificado estes pontos em suas criações, como o Quarteto Fantástico417, por exemplo, com superpoderes que transmitem métodos e aparências diferenciadas a serem exploradas como fonte as ficções científicas, modelo literário na moda nos anos 1960 e em contexto de Guerra Fria. É valido lembrar que os personagens mencionados sempre estão sendo reconfigurados, mas alguns graus de essência ainda permanecem em suas narrativas atuais. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 8-9. Primeiro time de super-herói criado pelo escritor-editor Stan Lee e o ilustrador Jack Kirby, com primeira aparição em novembro de 1961. 416 417 404 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X De acordo com Cirne (1975), “o espaço criativo da obra é ocupado pela ideologia de um momento social em sua historicidade mais profunda. Ou mais complexa [...] para refletir de maneira simplesmente mecânica a ideologia que representa”418. Ou seja, o poder representado passa a ser valorizado em todas as camadas e, ao mesmo tempo em que os códigos, que antes deveriam ser feitos de uma forma mais simples para que a grande massa pudesse entender, muda com os graus de sua representatividade. Este ponto estará intimamente ligado a questões culturais e políticas, dadas em cada período de publicação das HQs. Questão Cultural e Política: Passar a perceber como os quadrinhos, principalmente a de super-heróis, é interligar a sociedade como ela realmente é, sendo somente refletida nas HQs os conjuntos de valores sociais vigentes em cada período. Estas são as formas de que os quadrinhos podem analisar o superpoder do herói, fazendo que proposta seja vista em algum momento para atender aspecto social, e quebrada pelas publicações ao identificar ativismos de rompimento no costume. Pode-se enumerar diversos personagens da Marvel, por exemplo, para entendermos como a sociedade era retratada e a importância dos seus poderes, percebemos que alguns deles, como Homem-Aranha419, Luke Cage420, Pantera Negra421 e os X-Men422, rompe com a mentalidade de representatividade ideal, muitas vezes estereotipadas em variados estilos de desenho. No Homem-Aranha, Peter Parker é mordido por uma aranha geneticamente modificado, passando-lhe as habilidades aracnídeas e assim, sendo utilizados para ganhos individuais e depois para o combate ao crime. As relações entre o herói e seus poderes vem das atribuições da responsabilidade e a ética da ação, sendo demonstrado como contraponto da sociedade que ainda estava preso ao biotipo atlético de seres com poder excedente, como Superman. Ao colocar a imagem do jovem comum nos quadrinhos, seus criadores estabelecem um novo padrão de publicação, assim como a retratação de poderes que podem ser específicos, CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 51. Criado por Stan Lee e Steve Ditiko, surgindo em Agosto de 1962, sendo um dos primeiros heróis a ter uma imagem comum da sociedade: um garoto em descobrimento, sem nenhum tipo de porte atlético. Surgindo em junho de 1972, escrita por Goodwin e desenhada por George Tuska. Foi o primeiro personagem super-herói negro a ter sua própria série de HQ's. Surgiu nos quadrinhos do Quarteto Fantástico nº 52, de julho de 1966, criado por Stan Lee e Jack Kirby. Criado por Stan Lee e Jack Kirby em setembro de 1963. 418 419 420 421 422 405 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sem apresentar altas capacidades. Através do lema “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”, o individualismo é perdido e a ética é reafirmado. De acordo com Tardeli, na importância das narrativas heroicas no desenvolvimento da personalidade moral dos poderes, os super-heróis seriam “um modelo otimizado dos valores que uma cultura entende como bons e próprios”, [...] que articula tanto o próprio (o que somos, o que cremos que somos, o que queríamos ser), quanto o que é percebido como outro (o que cremos que não somos quem cremos não ser), [...] sendo que muitas vezes estes termos se confundem nos limites entre heroísmo e vilania.423 Portanto, a dualidade de ação faz com que o poder seja algo limitante para seu usuário, fazendo que em momentos cruciais sejam pensados, buscando motivação para atuar nos momentos de necessidade. Estas ações são encontradas também em Luke Cage e Pantera Negra, os primeiros heróis negros da Marvel Comics, desde seu surgimento até os momentos atuais. Falar deles, como representantes diretos dos mecanismos sociais dos anos 1960 e 1970, é dar-lhes a identidade de ícones durante o processo de luta pelos direitos civis nos EUA 424, com abordagens diferenciados entre eles. Enquanto o Pantera Negra (título que é dado ao chefe de Estado e o melhor guerreiro do país), sendo um dos primeiros heróis de origem africana, carrega o equilíbrio entre o misticismo e a ciência em suas habilidades, com utilização de vibranium425 e capacidades aprimoradas pela poção que lhe dá força, agilidade e velocidade. Estes poderes só podem ser usados em alguns momentos, sendo estes de interesse de seu próprio reino, que depois passa a ser utilizado para o bem coletivo global. Só na harmonização que dá habilidades de combate, é notório que o processo de sua constituição seria uma ponte para outros heróis negros, mesmo que alguns deles possuam modus operandi de acordo com o espaço de atuação, como é o caso de Luke Cage. Luke Cage, um dos primeiros heróis negros a ganhar seu próprio quadrinho na Marvel Comics, é o conhecido “herói urbano” (operando em cidade grande como Nova York) e “herói de aluguel” (recebendo remuneração na maioria das vezes em sua atuação). Surge no TARDELI, Denise. Super-heróis na construção da personalidade. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: 423 Ideias & Letras, 2011, p. 131. O movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos foi a campanha por direitos civis e igualdade para a comunidade negra nos Estados Unidos. Metal fictício encontrado em Wakanda, reino também fictício encontrado na África, sob o trono do Pantera Negra. 424 425 406 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X momento da moda do estilo cinematográfico blaxploitation426, gênero de representatividade negra em variados títulos e obras, tanto literárias quanto em roteiros com aventuras (ficção ou reais). Através da reunião da força interior com aumento da capacidade normal, como superforça e resistência, ele atua no combate ao crime organizado, na maioria das vezes acompanhado de outros heróis. Em estabilidade dos heróis Pantera Negra e Luke Cage, os seus poderes e formas de utilização ajudariam as pessoas como modelo de identificação que aponta para a formulação de um propósito de vida, o que seria um fator importante para seu desenvolvimento psicossocial. Isto é, no decorrer dos anos ne publicação e utilização em outras mídias (reformulados ao longo dos anos), integra a nova forma de ver como a cultura estabelece com identificação dos poderes. Enquanto o equilíbrio do Pantera Negra na utilização dos poderes e a concentração e superação das adversidades de Luke Cage são demonstradas, é apontado aqui por Tardeli desta forma, “explicando o super-herói pela perspectiva moral, observa-se, ao vencer todos os obstáculos, diferentemente do herói trágico, ele vence todas as vicissitudes”427. Ainda sobre as lutas pelos direitos civis nos EUA, com referência histórica dos líderes negros Malcolm X e Martin Luther King Jr.428, a elaboração dos X-Men traz a tona outra característica de representatividade: a igualdade e diferença ao mesmo tempo em relação a imagem do ser humano. Enquanto os últimos heróis mencionados buscam na representação dos poderes ao demonstrarem a superação, os X-Men buscam representar a evolução dos seres e as consequências dessas questões. Eles partem da premissa de pessoas, com um gene modificado (aqui chamado de gene X), desenvolverem poderes em níveis de capacidade, chamados de “mutantes”, com denominações sendo utilizadas através do alfabeto grego. Esta variedade de poderes, dentre outros motivos, gera grande temor entre as pessoas ditas normais nos quadrinhos da equipe de Charles Xavier, até mesmo ocasionando revoltas e perseguições constatntes, similares ao que ocorria com os negros na realidade pela busca de direitos. Foi um movimento cinematográfico estadunidense que surgiu no início da década de 1970. Os filmes blaxploitation eram protagonizados e realizados por atores e diretores negros e tinham como público-alvo, principalmente, os negros estadunidenses. TARDELI, Denise. Super-heróis na construção da personalidade. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2011, p. 135. Líderes negros do movimento por direitos civis nos anos 1960 e 1970. Cada líder possuía uma abordagem diferente, enquanto um buscava por luta armada, o outro buscava por meio de discursos e manifestos, os direitos igualitários. 426 427 428 407 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Na busca por direitos aos mutantes, o professor Charles Xavier busca uma “coexistência” entre as pessoas pelo reconhecimento de direitos, enquanto Eric Lehnsherr, o Magneto, acredita que um conflito entre os mutantes e humanos é inevitável, então atua como vilão em boa parte do tempo nas HQs. Os dois líderes entram em embates constantemente, com ideologias diferentes. O poder do Magneto, por exemplo, possui a característica que define sua atuação enquanto um dos antagonistas dos quadrinhos, controle sob metais e ondas magnéticas no controle de armas e seres, ao contrário do professor Xavier, que utiliza seus poderes, sendo ampliados por dispositivos como Cérebro429 para localizar e manter seguro mutantes, além de mantê-los acolhidos na sua escola. De acordo com Vergueiro e Viana, essas narrativas propõe uma trajetória de criação e transformação dos super-heróis em relação aos superpoderes estão relacionados com o desenvolvimento histórico e social. Em Viana, o ponto de referência está a “sucessão de regimes de acumulação”430; já em Vergueiro, é mantida o foco na sociedade estadunidense, tomando os super-heróis e seus poderes como um fenômeno que se vincula primordialmente a cultura deste país. Para ele, a produção/invenção dos poderes noutros “contextos culturais costuma representar uma imitação bastante limitada do modelo narrativo original, com resultados muitas vezes patéticos, totalmente dispensáveis – o que é pior – contraditórios em relação à cultura nativa”431. A partir dessas análises, podemos verificar que os X-Men, assim como outros personagens, estão interligados para em questões políticas e sociais, através da cultura popular narrada pelas entrelinhas dos balões dos quadrinhos estadunidenses, influenciados por seus respectivos quadros sociais na realidade. A realidade aqui é o centro do texto de Edmilson Marques. Em verdade, o texto de Marques amarra a uma perspectiva metodológica/política que lhe garantiria acesso a “essência da realidade social” que ao denunciar o maniqueísmo das superaventuras e a utilização dos superpoderes, que corre o risco de trazê-los de maneira caricata para representações. Exemplo disso acontece quando argumenta que: Máquina fictícia dos X-Men, com capacidade de localizar mutantes, assim como ampliar capacidades de mutantes telepatas, dentre outras funções. VIANA, Nildo. Breve história dos super-heróis. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos . Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2011, p. 30. VERGEIRO, Waldomiro. Super-heróis e a cultura americana. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2011, p.148. 429 430 431 408 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X “Assim, partindo de um ponto de vista maniqueísta, podemos chegar à conclusão de que, nas histórias em quadrinhos, ocorre uma inversão da realidade, colocando o bem como mal, e o mal como bem, se a partir do pressuposto de que o mal é aquele que prejudica a vida de seres humanos.”432 Isto só colabora para que as representações sejam fechadas para públicos e formatos para publicações-alvo, sendo construído nesta perspectiva, inicialmente, mensagens sociais a serem alcançados, buscando reflexões e aventuras, na condução de personagens poderosos como referência. Conclusão: Esses sistemas de ideias e práticas dos superpoderes dentro da sociedade acabou sendo utilizado para a construção de uma identidade nacional ao ser usado por países em referência cultural e mercadológica, tanto nos anos 1940 quanto atualmente, destacando a importância dos meios de comunicação nesse processo. Será utilizado as análises dos quadrinhos da Marvel e DC Comics, dentre outras, para uma identificação de como estes poderes representam a ligação do contexto histórico real e a imaginação dos criadores. A representação, neste caso, parte de vários pontos que se inserem na sociedade, desde psicologia até política, estendendo para História como ponto de interseção, capaz de identificar como um elemento da cultura pop, ao demonstrar pessoas ou seres utópicos com atributos especiais, conseguem transmitir o lado desejável da superação das adversidades. A partir da interpretação histórica, com Peter Burke, na obra A Escrita da História, parte das análises historiográficas através de observações dos esquemas estruturais, como as de Fernand Braudel. Neste caso, não se pode ignorar totalmente as diversas narrativas, pois o problema não está na narrativa em si, mas no modelo narrativo usado pelos historiadores, que deve ser ampliado para abraçar tanto a descrição quanto sua análise estrutural.433 Assim, a produção de conhecimento, quer ele científico ou de senso comum, são elaborações interpretativas desta realidade para dotar o mundo de sentidos que guiem as condutas da vida MARQUES, Edmilson. Super-heróis: ficção e realidade. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Superheróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: Ideias 432 & Letras, 2011, p.115. BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. 433 409 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X cotidiana.434 Neste caso, os processos de formação e estudo histórico da vida cotidiana são conjuntos de fenômenos independentes da vontade do produtor, sendo observado a consciência coletiva da sociedade e suas peculiaridades. Na questão psicológica, foram apresentados dois personagens que possuem construções narrativas similares, sendo modificados ao longo dos anos para atender o grande público em determinadas épocas. Mas ao analisar suas essências, é notório que as diferenças também são acentuadas. Capitão América, ao ser modificado por ser demonstrado como um poder bélico, o Superman é apresentado como algo a ser alcançado e desejado pelas pessoas. Na questão cultural e política, a demonstração através dos personagens pela superação da visão e o estereótipo do ser é superado através dos poderes que os representam em cada contexto social dos anos 1960 e 1970. No Homem-Aranha, o herói estabelece um diferencial no poder ao adquiri-lo, sendo específico em suas habilidades e adotando novamente a ética como modo de atuação. Em Pantera Negra, existe a harmonização das habilidades distintas e a capacidade de utilizar em sintonia. Luke Cage carrega uma forma de poder que busca adequar ao momento para utilização dos poderes, sem ser reconhecido e atuando em pontos locais. Por fim, os X-Men possui os poderes que interliga o momento político social em que, ao serem diferenciados, possuem atributos que orientam na atuação perante a sociedade. Existem ainda outros personagens dos quadrinhos que ainda poderiam ser mencionados, mas os apresentados possuem marcos históricos que transitam entre o ponto do real e o imaginário, algo que os quadrinhos de super-heróis ainda realizam atualmente. Mesmo que o recorte temporal esteja restrito ao momento da criação dos personagens, as publicações hoje buscam trazer novidades em suas representações, com diversidade social na maioria delas, com respeito dos novos criadores nas obras e o legado que foi deixado, tendo a liberdade de criar códigos e mantendo as virtudes e as forças pessoais. Referências Bibliográficas: BURKE, Peter. A Escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. 354 p. CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1975. 100 p. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. 386 p. Idem. 434 410 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X GRAZIANO, Lilian. E se você tivesse superpoderes? Youtube, 19 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/39nSecG>. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2011. 184 p. 411 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O anticomunismo nas páginas da Revista do Clube Militar (1995-2005) The anti-communism in the pages of the military club magazine (1995-2005) Vitória Weber Vieira do Nascimento 435 Resumo: O objeto desta pesquisa é o anticomunismo debatido nas páginas da Revista do Clube Militar. O recorte temporal escolhido compreende o período de 1995 a 2005. Trabalhamos com a hipótese segundo a qual a Revista do Clube Militar alimenta uma posição de combate ao que entende ser uma “conspiração comunista” no Brasil. Desse modo, a RCM atua como porta-voz dos militares e civis vinculados ao Clube Militar bem como a setores militares da ativa. Palavras-chaves: anticomunismo, Revista do Clube Militar, Golpe de 64. Abstract: The object of this research is the anti-communism mentioned in the pages of Military Club Magazine. The time cut is between the years of 1995 to 2005 and we work with the hypothesis that the Military Club Magazine uses as a position of combat a “communist conspiracy” in Brazil. In fact, the MCM act like a spokesperson of military and civilians linked with the Military Club like a military sector in activity.. Keywords: anti-communism, Military Club Magazine, The Military Blow. Introdução Iniciou-se os estudos sobre a Revista do Clube Militar, onde foram observados muitos ataques feitos pelos militares da reserva acerca do comunismo, pois os indivíduos que acreditavam nesta ideologia contestavam assuntos polêmicos da Ditadura Militar, dentre eles: Se ocorreu ou não um golpe por parte dos militares no Brasil; Lei da Anistia, que perdoou não só os contestadores do regime, como também os torturadores; Como é formada a esquerda e quais suas premissas no Brasil. 435 Aluna do curso de graduação em História- UFMT. E-mail: vitoriaweber1@hotmail.com 412 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Este tema adquiriu relevância diante do momento político e ideológico vivido no Brasil nos últimos anos, em que houve grande desconfiança sobre a efetividade da democracia, como também o início de uma forma de governo com posturas autoritárias. Este artigo tem como propósito demonstrar como a Revista do Clube Militar influenciou o pensamento de uma parte da sociedade, especialmente as forças militares, com a sua interpretação do período militar e como essa visão transformou o modo de pensamento dos indivíduos e se difundiu para parte da sociedade brasileira no período do recorte pesquisado. A fonte de pesquisa utilizada foi a Revista do Clube Militar, um periódico com início de circulação em 1926. Foi fundada por oficiais da reserva ou reformados da Marinha, da Aeronáutica e do Exército. Nas edições da Revista Clube Militar, são narrados os acontecimentos da Ditadura Militar, o chamado processo de redemocratização e como se sucederam os primeiros anos de democracia após esse período da história brasileira. A partir desses acontecimentos, é possível analisar a visão e a abordagem do grupo sobre temáticas relacionadas ao comunismo. Segundo os autores da Revista, essa ideologia é prejudicial à nação e causa a desordem social. A maneira em que o periódico aborda aspectos que se relacionam à ótica comunista acaba influenciando setores das forças armadas – tendo em vista que o público maior da RCM são militares – com a percepção de que a ideologia comunista é sinônimo de baderna e a solução para evitar a chamada “ameaça comunista” seria dar poder e voz aos militares. Há também nas páginas da Revista Clube Militar análises sobre o processo de desenvolvimento econômico e político do país, com opiniões contundentes dos militares da reserva. Estes sempre apontando favoritismo para questões como nacionalismo e segurança nacional, ao mesmo tempo em que criticam formas de governo que se opõem à visão adotada pelos militares. Diante do acervo do periódico, existem matérias feitas tanto por militares já na reserva, como também de outros autores, como por exemplo Olavo de Carvalho. Do ponto de vista teórico vários autores expõem como os meios de comunicação tem o poder de influenciar na opinião dos indivíduos de forma que os pensamentos se alinhem com os seus anseios políticos, que no caso da Revista, o alinhamento com o pensamento conservador e favorável à Ditadura. A temporalidade da pesquisa sobre o anticomunismo da Revista Clube Militar (19952005) torna-se presente à medida em que vivemos dentro de uma sociedade que ainda sente os 413 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X reflexos da Ditadura Militar vivenciada a partir de 1964 e devido às memórias daqueles que viveram e aprovavam o período, perpetua-se ideias de cunho autoritário até os dias atuais, divulgadas por veículos como a RCM. A Revista do Clube Militar como fonte de pesquisa A Revista do Clube Militar é tomada como fonte de pesquisa segundo a visão dos integrantes das forças armadas, entretanto para que seus pensamentos sejam compreendidos é preciso analisar com mais clareza os autores teóricos já citados na introdução: Jean-Noel Jeanneney, Jean-Jacques Becker e Tânia de Lucca. O texto denominado A mídia de Jean-Noel Jeanneney, trata sobre como o autor classifica o poder da mídia, quais são os interesses por trás dos fatos expostos e sua forma de agir. Sendo assim, Jeanneney inicia seu artigo afirmando que muitas vezes os meios de comunicação ao repassarem uma notícia não abordam o essencial (JEANNENEY, 1996), no caso da Revista Clube Militar, é possível analisar a preocupação dos autores em chamar a atenção do público para as causas defendidas pelos militares, porém sem fatores concretos que comprovassem suas teses. Jean Jaques Becker, em seu livro Por uma história política, aborda o conceito de opinião pública: “integra-se no processo histórico e muito em particular na história política: se a história é também explicação do passado, não existe explicação completa sem que seja elucidado o papel desempenhado pela opinião pública.” (BECKER, 2003, p.201). Do mesmo modo, no capítulo História dos, nos e por meio dos periódicos, do livro Fontes históricas, a autora Tânia Regina de Luca informa como pesquisar por periódicos, como por exemplo, a RCM. Para isso, ela inicia explicando que antes de haver o fortalecimento da história cultural e da antropologia, os meios de comunicação não manifestavam preocupação com a historiografia em suas publicações, como conseguinte, os artigos eram produzidos em sua maioria movidos à interesses e retratavam a história de forma distorcida, com retratos parciais. Esse fator possuía e ainda possui extrema importância quando tratamos das pesquisas de periódicos, pois demanda enorme dificuldade saber qual a verdadeira inclinação de determinado meio de comunicação, como também a influência que a disseminação de alguma matéria terá. A solução, segundo a autora, é analisar as fontes, sua tiragem, a área de difusão e sua relação com instituições políticas, grupos econômicos e financeiros (DE LUCA, 2005). 414 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Como já mencionado com os autores, Jean-Noel Jeanneney e Jean Jaques Becker, é possível observar e constatar que a Revista do Clube Militar tem interesse em registrar a história – principalmente o período do Regime Militar – de uma forma que irá beneficiar os militares. Pode-se citar como exemplo desse interesse a forma como são retratados os opositores do governo, como o comunismo é abordado e também as denominações utilizadas para caracterizar o Regime Militar – citando como exemplo: “Revolução Democrática de 64”. A “conspiração comunista” nas páginas da Revista do Clube Militar Ao escrever o livro Mitos e Mitologias políticas, o autor Raoul Girardet tratou sobre mitos que retratam a historiografia política mundial. Deste ensaio, trataremos dos capítulos A conspiração e Idade de ouro. O autor retrata os “mitos” criados durante toda a história mundial, para induzir a sociedade a acreditar que existe um plano sistemático acontecendo enquanto a sociedade corre perigo. Entretanto, essas ficções não se baseiam na historiografia, ou seja, no processo histórico de acontecimentos. Em primeiro lugar, o capítulo sobre o mito da conspiração inicia-se comentando sobre a conspiração judaica, na qual usou-se a narrativa de que um romance escrito pelo pseudônimo de “Sir John Retdife”, retirando-o de contexto e adicionando fatos que não existiam. A finalidade foi fortalecer a ideia da conspiração judia, em que o pseudônimo narra uma reunião de judeus em um cemitério judaico. Nela, eles dialogam sobre o desejo de subverter metodicamente a ordem mundial, agindo em diversas áreas da sociedade, sendo elas econômica, social e religiosa, e então, dominar o mundo. Além dessa história, Girardet ainda descreve duas outras, entre elas, estão “Judeu Errante”, de Eugene Sue, tratando de uma conspiração jesuítica e também um romance em que seu enredo principal é a maçonaria liderando o planejamento de uma nova ordem mundial (GIRARDET, 1986). Tanto na forma de construção dos mitos de Girardet, como na Revista do Clube Militar, o tempo cronológico é ignorado, dando lugar à relatividade dos fatos e acontecimentos. Dessa forma, pode-se concluir que os autores da RCM distorcem as narrativas para que obtenham sucesso no convencimento do leitor. É possível confirmar essa afirmativa na edição 336 da Revista do Clube Militar, em um artigo denominado Nos 33 anos de eclosão da Revolução democrática de 64, publicado em junho de 1997. Nesta matéria, o autor general 415 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Jonas Correa Neto436, propõe a ideia de fazer um projeto histórico, político e cultural sobre as memórias chamada por ele de “revolução democrática de 1964”, em que os indivíduos que experenciaram aquela época possam compartilhar suas boas vivências. O general, ao referenciar os opositores do governo relata que a “Revolução democrática de 64” foi mal interpretada e é até os dias atuais. Esse fator explica-se, segundo ele, pois os opositores dos militares ocupam cargos importantes e utilizam seu poder de fala para doutrinar a sociedade com base na teoria marxista. A revolução e os revolucionários, somos acusados e ofendidos, condenados e maltratados, como se houvéssemos feito alguma coisa que não devêssemos. (...) Os comunistas querem a quebra da coesão das forças armadas e a subversão da organização militar no país (NETO, 1997, p. 4). Na edição 347, de maio de 1998, da Revista do Clube Roberto Campos437 faz referência ao le livre noir du communismè, uma obra feita por professores universitários europeus, com a temática anticomunista. O livro baseia-se na teoria de que o comunismo foi o regime que matou mais pessoas do que qualquer outro regime de Estado ou ideologia. Diante dos argumentos do livro, o autor, ex-Deputado federal pelo partido PPB-RJ (Partido Progressista Brasileiro), compara o comunismo com as ditaduras que ocorreram na América Latina após a Guerra Fria. Ao defrontá-los, o então Deputado alegou que o comunismo matou milhares de pessoas em todos os países que se instalou e que a violência era parte do cotidiano. Em contrapartida, afirmou que nas ditaduras militares ocorridas na América Latina as Jonas de Morais Correia Neto, Tenente Coronel, era militar durante o período de Ditadura Militar no Brasil, ocupou cargos no EME – Estado-Maior do Exército e também assumiu o comando do colégio militar de Porto Alegre. VERBETE. In: CPDOC FGV. Jonas de Morais Correia Neto. Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/correia-neto-jonas-de-morais. Acesso em: 18 de agosto de 2020. Roberto de Oliveira Campos graduou-se em teologia e filosofia e atuou em diversos campos políticos, não somente durante a Ditadura Militar, como diplomata, embaixador nos Estados Unidos e em Londres, Ministro do Planejamento e coordenação econômica. Além desses cargos, ainda ocupou a presidência do BNDE e foi senador em 1983. Era opositor ao governo de João Goulart e apoiou o golpe militar de 1964, alegando que João Goulart iria comandar uma revolução comunista no país. Ademais, durante sua vida política mantinha posições contrarias à democracia, por exemplo, durante a Ditadura Militar, votou contra a Emenda Dante de Oliveira – que deu origem ao movimento popularmente conhecido como Diretas Já. VERBETE. In: CPDOC FGV. Roberto de Oliveira Campos. Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbetebiografico/roberto-de-oliveira-campos Acesso em: 12 de agosto de 2020. 436 437 416 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X repreensões e violências eram promovidas de maneira acidental. Como é possível comprovar nos trechos abaixo: Ao contrário da repressão episódica e acidental das ditaduras latinoamericanas, a violência comunista se tornou um instrumento políticoideológico, fazendo parte da rotina do governo. (...) Em termos de violência o número de mortos e desaparecidos no Chile foi estimado em três mil, enquanto que Fidel fuzilou 17 mil (CAMPOS, 1998, P.5). O autor Raymundo Negrão Torres também descreve o presidente Fernando Henrique Cardoso como um representante arrependido de sua ideologia marxista em sua juventude e culpa alguns indivíduos que ocupam cargos em seu governo de serem responsáveis por implantações classificadas como ruins (pelos militares), por exemplo a lei dos desaparecidos políticos no Brasil e a lei da anistia – para os opositores ao regime. Como é possível observar nos trechos abaixo: Porque a maioria esmagadora da sociedade já fizera sua opção contra a baderna acobertada por um governo que se tornara refém das manobras cubano-soviéticas para comunizar o Brasil. (...) Fernando Henrique Cardoso, o antigo militante da Ação Popular e hoje penitente confesso e arrependido de seu marxismo juvenil (TORRES, 1997, P. 12). Ao relacionar este artigo de crítica da RCM com o capítulo A conspiração de Raoul Girardet é possível notar como os militares da reserva colocam todos os indivíduos que não compartilham da mesma ideia militarista como incompetentes para cargos públicos, ao passo que somente os militares souberam e ainda saberiam comandar o Brasil. Já no capítulo Idade de ouro do livro Mitos e mitologias políticas, Raoul Girardet relembra que a aclamação de parte da população por tempos antigos não é algo recente, pois já aconteceu outras vezes na história mundial, a exemplo da expressão citada por Girardet “refazer 1789”. Esse tipo de manifestação social normalmente surge quando existem problemas graves enraizados na sociedade, ligados à corrupção, crise nos valores e dos costumes. Entretanto, o autor explica que o desejo de retorno ao passado como algo bom, na verdade, é equivocado, pois baseia-se na memória histórica individual e esse plano imaginário nunca é um 417 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X registro fiel dos fatos. Sendo assim, o passado desejado pelos indivíduos, na verdade, nunca existiu ou se passou de forma idealizada e serve como referência saudosista. Esse desejo encontra-se no imaginário. É um passado idealizado que não retornará no presente. Esse pedido de volta às dinâmicas de um tempo passado é bastante propagado nas páginas da Revista do Clube Militar, pois, como já dito anteriormente, os militares, autores da revista, apenas julgam corretas as medidas governamentais tomadas durante o período militar e, por conseguinte, todos os outros governos, com destaque nos opositores, são criticados por eles. Sente-se, então, que no tempo presente somente existem desordem, corrupção e desvio de valores. Por outro lado, no passado, Período Militar, encontram-se a calmaria, os bons costumes e as medidas governamentais corretas. Cabe ainda destacar o autor Olavo de Carvalho, que possui vários artigos publicados na Revista do Clube Militar, como uma espécie de referência para a RCM e seus muitos dos seus articulistas. Na edição 382, no artigo encontrado na página 7, com o título Por que ninguém entrevista Ladislav Bittman, o ex-espião tcheco que sabe tudo sobre 1964? , o autor Olavo de Carvalho busca distorcer a historiografia quando a mesma aponta os Estados Unidos como mandantes do golpe militar de 64. Segundo ele, a pauta que é repassada nos livros didáticos a respeito da tomada de poder do Brasil em 1964 pelos militares deveria ser revista. Olavo acredita que o serviço secreto da então República Socialista Tchecoslováquia financiava os jornais e jornalistas da época, levando-os a manipular as informações repassadas para o povo brasileiro e, por conseguinte, a historiografia brasileira. Raoul Girardet em seu capítulo O mito da conspiração do livro Mitos e mitologias políticas, discorre a respeito de uma prática comum na Revista do Clube Militar, que consiste na construção de um mito onde indivíduos planejam a tomada de poder para a mudança de regime, no caso da RCM. Segundo ele, os comunistas buscavam tomar o poder no Brasil e executar uma Revolução Comunista. Por causa desta conspiração, foi necessário que os militares tomassem o poder e instalassem novamente a paz no país. A semântica desse mito tem relação com este artigo da Revista do Clube Militar, em que o autor afirma que o chefe do serviço tcheco de informação, chamado Ladislav Bittman, veio ao Brasil para controlar as fases finais do Plano “Operação Thomas Mann”, um empreendimento em que os militares e aliados acreditavam que teria havido uma conspiração na qual o governo da Tchecoslováquia teria influenciado o desejo de implantação do comunismo no Brasil e, ainda, criado a narrativa de 418 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X que o Golpe Militar de 64 fora uma obra dos EUA com documentos falsificados divulgados pela imprensa. Sabem quem inventou essa história e a disseminou na imprensa deste país? Foi o serviço secreto da Tchecoslováquia, que naquele tempo subsidiava numerosos jornalistas e jornais brasileiros. (...) A safadeza foi realizada através da distribuição anônima de documentos falsificados, que a imprensa e os políticos brasileiros, sem o menor exame, engoliram como “provas” do intervencionismo norte-americano. (...) Redescobrir a verdade sobre 1964 é curar o Brasil (CARVALHO, 2001, P.7). A ideia dos militares como salvadores do Brasil contra o comunismo permanece no artigo de Hélio Ibiapina Lima438, denominado A contra revolução restauradora de 1964- 1967, em que se encontra na edição 407. O artigo descreve como foi o processo de planejamento para a retirada de poder de João Goulart, preparação da “resistência”, em que os militares observaram a aproximação de pessoas com ideologias socialistas se aproximando do governo e das Forças Armadas. O movimento cívico-militar de 31 de março de 1964 abortou a possibilidade de golpe desfechado pela esquerda populista e o assalto dos comunistas ao poder. Após uma rápida fase punitiva, abriu caminho para uma verdadeira revolução nas áreas social, política e econômica que produziu, no período de 20 anos, um extraordinário desenvolvimento do Brasil. (...) Grupos de oficiais da Reserva, sempre aproximados dos corpos de tropas, nas diferentes Unidades da Federação , ligavam-se entre si e buscavam integração com civis, alertando-os para os perigos da sistemática e tendenciosa aproximação do Governo João Goulart com elementos de formação marxista, nas mais diversas representações da sociedade, nas áreas do próprio governo, da política, dos sindicatos, das associações rurais e estudantis (LIMA, 2004, P. 10). Foi um General brasileiro. Ocupou o cargo de diretor do Clube Militar. É considerado um dos principais responsáveis pelas violações dos Direitos Humanos durante a Ditadura Militar. Não foram encontradas maiores informações sobre o General Hélio Ibiapina. 438 419 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Inicialmente, o autor critica o governo de João Goulart e determina-o como marxista. Relata que no governo de Goulart havia tanta desordem a ponto de assustar a população. Diante disso, Ibiapina narra as mobilizações populares feitas por parte da sociedade no período anterior à 31 de março de 1964, onde destaca-se o movimento Marcha com Deus pela liberdade, liderado pela igreja, como também o apoio da imprensa frente aos militares. O autor ressalta que o compromisso dos militares é com o Estado e não com o governo. E, assim, pontuou como ocorreu a eclosão para ocorrer a chamada “contrarevolução” de fato, com a destituição de diversos governos estaduais que apoiavam João Goulart e a adesão de alguns estados ao movimento, como Minas Gerais. Diante da mobilização, João Goulart decide não resistir e seguir em direção ao Uruguai. Hélio Ibiapina Lima retrata a consolidação do Ato Institucional n°1, que entre outras medidas aprovou o governo provisório e regulamentou-o. Além disso, esse Ato estabeleceu diversas medidas antidemocráticas, tais como: confisco de bens e cassação de direitos políticos e mandatos, regulamentou uma comissão nacional de investigação e regulou o funcionamento do legislativo e judiciário – cujos membros foram escolhidos pelos militares. Vale ressaltar que todos os elementos citados acima seguem o mesmo raciocínio das demais edições da revista estudadas, justificando que tais medidas forma necessárias para a implantação da ordem que havia sido perdida no país durante o governo de João Goulart, como a defesa à ameaça de cunho comunista que havia se estabelecido no Brasil. Que fazer quando já não há mais um governo que mereça respeito e confiança ou quando ele mesmo é o principal agente da desordem e ilegalidade? (...) a ação das Forças Armadas, naquelas circunstancias, foi um ato lícito e indispensável, conduzido dentro da sua destinação, com oportunidade e energia necessárias para deter a marcha acelerada do País para a desordem e a violência com o objetivo de transformá-lo em uma república “sindicalista-marxista” (LIMA, p. 17, 2004) Pelo exposto neste artigo, é possível relacionar os dois mitos estudados de Raoul Giradet: em primeiro lugar, o autor desenvolveu a narrativa da conspiração, ao mencionar o Golpe Militar, o autor descreve-o como necessário para livrar o Brasil das garras do comunismo; em segundo lugar, é notável a descrição do autor acerca do Período Militar, em 420 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X especial sobre o Ato Institucional n°1, no qual é possível relacionar o mito da Idade de ouro, pois Ibiapina a expõe o período de Ditadura Militar como de notável desenvolvimento, sendo eles econômico, político e social. Considerações Finais Neste artigo, pesquisamos a natureza do anticomunismo divulgado nas páginas da Revista do Clube Militar, no período de 1995-2005. Comprovamos a nossa hipótese segundo a qual a Revista do Clube Militar alimentou uma posição de combate ao que entendia ser uma “conspiração comunista” no Brasil do período em estudo. A Revista atuava como porta-voz dos militares da reserva e de civis vinculados ao Clube Militar bem como a setores militares da ativa. No decorrer da nossa investigação da Revista do Clube Militar, surgiram outras pautas importantes como a questão do Golpe de 64 e a própria Ditadura Militar, temáticas que complementavam a abordagem feita sobre o anticomunismo, o que enriqueceu muito a pesquisa. Em muitos artigos encontrados nas edições da Revista do Clube Militar, a pauta principal baseia-se no tema do Anticomunismo. Do mesmo modo, é comum nos dias atuais ouvirmos de pessoas de idade mais avançada, que o movimento intitulado pela história como “Golpe Militar” ou “Golpe de 64”, na verdade foi uma “Revolução Democrática”, ou ainda ouvir que “A ditadura só matou os indivíduos criminosos”. É evidente a necessidade de analisar até que ponto as ideias divulgadas pela Revista se estabeleceram no pensamento de parcela expressiva da sociedade brasileira ao ponto de, mais de 30 anos após o fim da cruel Ditadura Militar, o país eleger em 2018 um presidente com discursos autoritários e tecidos de frequentes elogios a esse regime. Segundo os anticomunistas, se a ideologia comunista fosse implantada no Brasil, iria de encontro com as instituições e dogmas religiosos. Já o nacionalismo, por sua vez, para eles, era pautado na defesa da ordem pública contra as ameaças estrangeiras – ou comunistas. Ambos discursos são publicados por membros que representam a extrema direita, por exemplo, e um muito contundente, Olavo de Carvalho, denominado de Guru do atual governo. Esses indivíduos visam estimular o extremismo de direita, o pânico, o anticomunismo e o antipetismo em seus discursos. 421 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X No decorrer da nossa investigação tomamos como referência teóricas os capítulos Mito da conspiração e Idade de ouro do autor Raoul Girardet em sua obra Mitos e mitologias políticas. Pudemos observar que a Revista do Clube Militar compreende a tomada do poder em 1964 (por meio de um golpe), sendo necessária diante da existência de um “Plano de Revolução Comunista”. Esse discurso, mesmo após o fim do Regime Militar, perpetuou-se da Revista Clube Militar. Interpretamos que em seus artigos há da defesa da teria de que há uma ideia permanente de uma conspiração comunista voltada a levar o Brasil à desordem, à violência e à pobreza. No capítulo Idade de ouro Girardet demonstra que muitas vezes os indivíduos não conseguem diferenciar o que de fato realmente aconteceu daquilo que é parte da sua memória pessoal. Isso ocorre, pois os seres humanos costumam, em certas situações, relembrar somente acontecimentos bons e criar uma memória de caráter seletivo. Nesse sentido, a Revista do Clube Militar, no período aqui estudado, constrói uma versão da história de acordo com a qual o período da ditadura militar é caracterizado como revolucionário, democrático e de grande bem-estar social. Nessa visão da história, as medidas autoritárias tomadas pelo governo, por exemplo, o Ato Institucional n°5, foram necessárias para livrar o Brasil da Ideologia Comunista. Considerando o que investigamos ao longo deste artigo, tomando por base os teóricos, a historiografia e a análise das fontes primárias da Revista do Clube Militar. Acreditamos que caiba à historiografia desmistificar as narrativas como esta da RCM, que são voltadas à construção de uma versão revisionista da história dentro da qual os militares das Forças Armadas, apoiadas por civis, figuram como heróis nacionais diante do combate à pretensa ameaça comunista em 1964, ou mesmo no período estudado neste artigo, 1995-2005. Com efeito, esta pesquisa adquire singularidade diante de uma história do tempo presente à medida em que desvenda os meandros de um discurso da Revista do Clube Militar sobre o comunismo ainda muito vivo na sociedade brasileira contemporânea. Cabe destacar que tanto a temática do comunismo como os articulistas da RCM, entre eles o astrólogo Olavo de Carvalho, continuam presentes no cotidiano brasileiro e contribuem com a ideologização e polarização política, via de regra, com a defesa de posturas antidemocráticas. Por fim, registramos também a relevância da defesa do ensino de História do Brasil a partir de premissas científicas elaboradas pelo consenso historiográfico acadêmico a fim de que o revisionismo histórico, com as suas manipulações e distorções dos fatos, tal qual evidenciado 422 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X em nossa fonte primária de pesquisa, não ganhe reconhecimento e apoio popular como expressão de verdade histórica. O desafio do fazer historiográfico é permanente! Referências Fontes Revisa do Clube Militar (1995-2005) CAMPOS, Roberto. O livro negro do Comunismo. Revista Clube Militar: a casa da república. Rio de janeiro. n ° 347. p. 5-6. 1998. 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(p. 103-124). 423 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ST05 – História e Marxismo Genocidio político: el extermínio de la Unión Patriótica en el marco del conflicto armado en Colombia Felipe Garzón Serna439 Resumen: La Corte Interamericana de Derechos Humanos CIDH tiene abierta una denuncia contra el Estado de Colombia por el asesinato y desaparicón forzada de aproximadamente seis mil miembros y simpatizantes del partido político Unión Patriótica, movimiento político que nació como una convergencia de fuerzas políticas alernativas de izquierda creado en el año 1984 como parte de la negociación y los acuerdos de paz alcanzados entre el gobierno del presidente de Colombia Belisario Betancur (1982 – 1986) y el grupo guerrillero de ideología marxista – leninista FARC - EP (Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pueblo). Este artículo propone una clasificación de genocidio político al proceso de exterminio sistemático de este partido político con base en los procesos de denuncia y visibilización llevados a cabo por las víctimas, familiares, sobrevivientes y organizaciones de derechos humanos. Palabras Clave: Genocidio político, Conflicto armado, exterminio Consideraciones iniciales Colombia es tal vez uno de los pocos países del mundo (si no el único) en el que un partido político en su totalidad fue exterminado de forma sistemática por su orientación de izquierda, alternativo a los partidos tradicionales de derecha (partidos Liberal y Conservador). Se trata del partido político Unión Patriótica, cuyo exterminio físico ha sido orquestado por el propio Estado colombiano a través de funcionarios, políticos y agentes de la fuerza pública (militares y policías) en complicidad con grupos paramilitares de extrema derecha que fueron creados en Colombia principalmente desde la década de 1980 para combatir y erradicar Mestrando em História na Universidade Federal de Alagoas UFAL/ Bolsista OEA - GCUB E-mail: felipe.garzon.wlg@gmail.com Orientador: Prof. Dr. Anderson da Silva Almeida/PPGH-UFAL 439 424 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sistemáticamente la insurgencia armada, el comunismo y todo aquello que fuera considerado como su base social (sindicatos, movimientos sociales, estudiantes, líderes sociales, defensores de derechos humanos, ambientalistas, entre otros). El genocidio practicado contra el partido político colombiano Unión Patriótica (UP) se inscribe dentro de las experiencias de exterminio de fuerzas políticas de oposición a nivel internacional (CEPEDA, 2006). En el mundo, representa un caso emblemático de aniquilación sistemática de los militantes y simpatizantes de todo un grupo político por motivo de sus convicciones ideológicas de izquiera, alternativo al bipartidismo tradicional de Colombia que históricamente ha monopolizado el poder político y económico del país. No siendo suficiente con el asesinato sistemático de los miembros del partido UP, las amenazas, persecuciones, desapariciones y muertes también se han extendido hacia simpatizantes, familiares y todo aquello que pudiera ser considerado como la base social del partido y de las guerrillas, sin hacer mucha diferenciación entre estas: sindicatos, estudiantes, líderes campesinos y muchas otras poblaciones fueron y siguen siendo víctimas de un exterminio sistemático (GMH, 2013). Antecedentes Tristemente, el genocidio contra la Unión Patriótica no ha sido el único caso de violencia masiva y sistemática contra agrupaciones políticas en Colombia. La supresión violenta de rivales políticos ha sido una práctica trágicamente común en la historia del país. Hace parte de su cultura política desde su nacimiento como república independiente entre los años de 1810 y 1819. A lo largo de ese siglo XIX los bandos centralistas y federalistas se enfrentaron a muerte en la naciente nación a través de una serie de guerras civiles por el modelo de Estado, y el ordenamiento y distribución de los poderes central y regionales (GMH, 2013). Para el siglo XX, esa violencia política se degradó a un enfrentamiento directo entre los partidos políticos Liberal y Conservador que encontró su máxima expresión entre los años 1948440 y 1958441, un período que se conocería como “La Violencia” y que dejó alrededor de 200.000 muertos, la gran mayoría de ellos campesinos simpatizantes de uno u otro partido El 09 de Abril de 1948 fue asesinado en la ciudad de Bogotá el candidato presidencial por el partido Liberal Jorge Eliécer Gaitán, acto que desencadenaría un nuevo ciclo de violencia entre los partidos Liberal y Conservador que se extendería por todas las regiones del país. En 1958 se da inicio al Frente Nacional, un pacto bipartidista que pretendía ordenar la distribución del poder ejecutivo de manera alternada cada cuatro años para así intentar detener la violencia entre Liberales y Conservadores. 440 441 425 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X (OQUIST, 1978). Desde la década de 1960, en el contexto internacional de la guerra fría, la persecución y supresión violenta de grupos políticos se ha concentrado básicamente en los movimientos alternativos de izquierda, comunistas, socialistas, sindicatos, entre otros. Esta tendencia ha condicionado contundentemente la posibilidad de que en Colombia surjan opciones políticas plurales y diversas como se espera que acontezca en una sociedad democrática y en un Estado Social de Derecho (GMH, 2013). Para el caso de la Unión Patriótica, este partido político nació como una convergencia de diversas fuerzas políticas alternativas al bipartidismo tradicional, entre ellas el Partido Comunista Colombia (PCC). Esta convergencia tiene lugar a raíz del proceso de negociación y acuerdos de paz alcanzados entre el gobierno del presidente conservador Belisario Betancur (1982 – 1986) y el estado mayor de la organización guerrillera Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC). En el año 1984 las partes en negociación firmaron un conjunto de compromisos para posibilitar un alto al fuego entre esta guerrilla y el Estado colombiano. Este grupo de compromisos fueron conocidos como los “acuerdos de La Uribe”442 (CEPEDA, 2006). Entre los acuerdos alcanzados en este escenario de negociación y de paz se estableció la creación de un movimiento político legal y de oposición para permitir que los miembros de la guerrilla de las FARC abandonen la lucha armada y se reincorporen a la vida civil con la posibilidad de ejercer plenamente los derechos políticos y participar formalmente en los espacios democráticos a nivel local, regional y nacional. Fue en ese contexto que nació en 1984 el partido Unión Patriótica como una convergencia de miembros de la guerrilla de las FARC junto a otros movimientos alternativos de izquierda históricamente excluídos de la participación política en Colombia. En efecto, desde sus comienzos la UP fue sometida a toda clase de señalamientos, estigmatizaciones, amenazas, hostigamientos y asesinato de sus miembros que incursionaron en un escenario político caracterizado por la histórica monopolización del poder en los partidos tradicionales de derecha: Liberal y Conservador. Desde el momento mismo en que la UP incursionó en la política nacional comenzaron los asesinatos selectivos contra sus miembros, quienes eran vistos como una amenaza real que obtuvo resultados significativos en las elecciones locales y regionales del país de los años 1986 y 1988. 442 Por el lugar donde se firmaron: municipio de La Uribe, departamento colombiano del Meta 426 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X El exterminio sistemático La Unión Patriótica se consolidaría como la tercera fuerza política del país después de los partidos tradicionales Liberal y Conservador. Sin embargo, el precio a pagar sería inmenso. En el proceso de exterminio sistemático de la UP fueron asesinados el presidente del partido, 2 candidatos presidenciales, 8 congresistas, 13 diputados, 70 concejales, 11 alcaldes, y en total alrededor de 6000 víctimas de asesinato o desaparición forzada de miembros y simpatizantes a través de acciones criminales combinadas por políticos, fuerza pública y grupos paramilitares. A raíz de la persecución, asesinatos selectivos y la evidente falta de garantías para que los miembros de la UP pudieran ejercer plenamente sus derechos políticos se produjeron constantes violaciones a los acuerdos firmados en 1984 entre el gobierno de Colombia y las FARC. Antes de 1990 se rompieron las negociaciones y la guerrilla de las FARC retomó la lucha armada, mientras tanto la UP continuó activo en un escenario de altísimo riesgo en el que abiertamente han sido señalados como simpatizantes de la guerrilla y acusados de servir de portavoces de la insurgencia armada, situación que conllevó a que el Estado se negara a brindar condiciones efectivas de seguridad y garantías políticas. Con ello se consolidaría el escenario de persecución y exterminio sistemático de los militantes de la UP. Varios son los rasgos característicos que configuran el escenario de persecución y exterminio sistemático de los miembros de la Unión Patriótica. En primer lugar se evidencia una intencionalidad clara de los autores de los crímenes contra la UP, y esa intencionalidad ha sido la de exterminar físicamente al movimiento político, incluyendo simpatizantes, familiares y todo aquello que pudiera ser considerado como la base social del partido (sindicatos, estudiantes, maestros, líderes sociales, movimientos, defensores de derechos humanos). En razón de esta clara intencionalidad de exterminar al movimiento político, víctimas y sobrevivientes del exterminio de la UP han adelantado acciones legales para que este caso emblemático de violencia política sea reconocido a nivel nacional e internacional como un genocidio por razones políticas. Además de esto, cabe resaltar que el proceso de exterminio sistemático de una fuerza política como lo fue la UP dentro del escenario de un Estado que se considera democrático, con unas instituciones legales que se suponen ajustadas a las normas del derecho internacional. En razón de ello, el exterminio de la Unión Patriótica es un fenómeno que cuestiona profundamente la condición de Democracia y las garantías sociales y políticas que de ella se 427 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X derivan, pues a parte del aniquilamiento físico se han llevado a cabo múltiples acciones “legales” desde el Estado colombiano para criminalizar a la oposición mediante señalamientos, estigmatizaciones, campañas de desprestigio y decretos para limitar la participación de fuerzas alternativas en los escenarios del poder político. La persecución y exterminio de la UP ha trascendido a un escenario político coyuntural que se extiende por más de dos décadas desde su creación, a lo largo de las cuales han tenido lugar diferentes períodos presidenciales con diferentes filiaciones políticas pero de derecha al fin y al cabo, y que tradicionalmente han ostentado los poderes político y económico de Colombia, y han negado la naturaleza sistemática de la persecución y el aniquilamiento físico de la oposición. El reconocimiento de la naturaleza sistemática del exterminio de la UP ha sido más bien un esfuerzo incansable de las víctimas sobrevivientes del exterminio, junto con diversas organizaciones de derechos humanos que se han dado a la tarea de denunciar públicamente y visibilizar ante la opinión pública nacional e internacional la existencia de un genocidio en Colombia por razones de ideología política, a pesar de que la posición de los represantes del Estado frente al exterminio de la UP ha sido la de considerarla como una desafortunada serie de eventos que no tienen ninguna conexión entre sí (CEPEDA, 2006). El genocidio político Desde diferentes esferas de la sociedad colombiana se ha comenzado a cuestionar la existencia y la naturaleza del exterminio de la Unión Patriótica. En el camino, uno de los principales obstáculos para visibilizar esta realidad radica en el hecho de que desde el punto de vista del Derecho internacional443 el crimen de genocidio incluye grupos nacionales, étnicos, religiosos o raciales, pero no tipifica el crimen de genocidio por razones políticas o ideológicas. De hecho, a nivel de América Latina solamente dos países han reconocido el crimen de genocidio por motivos políticos. Estos países son Costa Rica444 y paradógicamente Colombia. Para el caso de esta última, la tipificación del genocidio por razones políticas ha sido uno de los logros históricos alcanzados por las víctimas y sobrevivientes del exterminio de la Unión Patriótica junto con otros crímenes vinculados al terrorismo de Estado. Después de muchos esfuerzos y reclamaciones, las víctimas consiguieron que el debate Ver Convención para la prevención y la represión del crimen de genocidio, 1948 El artículo 375 del código penal de Costa Rica reconoce la existencia del genocidio por razón de creencia religiosa o política. 443 444 428 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X se llevara hasta el congreso de la república y después de un largo proceso se logró que el Código Penal colombiano expedido mediante la ley 599 del 24 de julio del año 2000 reconozca también la figura de genocidio por motivos políticos. En el artículo 101 de dicha ley se define este crimen atroz como destruir total o parcialmente un grupo por razones políticas y ocasionar la muerte de sus miembros por razones de su pertenencia al mismo. Sin embargo, a pesar de que las víctimas sobrevivientes del exterminio de la UP han conseguido que se tipifique el crimen de genocidio político, pocas decisiones en los tribunales de justicia han llegado a sancionar la responsabilidad de funcionarios del Estado en el exterminio sistemático de la Unión Patriótica lo que en últimas significa que lo que ha primado ha sido la impunidad en los miles de asesinatos y desapariciones de los militantes de este movimiento político. A escala internacional, la Comisión Interamericana de Derechos Humanos CIDH admitió el caso colectivo número 11227 del 12 de marzo de 1997 presentado por un grupo de víctimas sobrevivientes del exterminio, la corporación Reiniciar y la Comisión Colombiana de Juristas. En el informe de admisión la CIDH señaló que los hechos expuestos por los peticionarios evidencia una situación que comparte muchas características con el fenómeno del genocidio en cuanto se ha establecido la existencia de una serie de asesinatos masivos y de persecusión de los miembros de la Unión Patriótica con la finalidad de exterminar físicamente al partido y toda su base social. En desarrollo del proceso ante la CIDH, las víctimas han denunciado reiteradamente la continuidad de las amenazas, la violencia y la persecución política contra los sobrevivientes de la Unión Patriótica y contra otros movimientos de oposición en el país; situación de riesgo que continúa hasta la actualidad. Los avances que han tenido lugar a nivel internacional y a nivel de la legislación colombiana son logros muy importantes que marcan precedentes históricos en materia de derechos humanos; sin embargo eso ha sido sólo el comienzo en un escenario de adversidades y múltiples formas de violencia política. Las víctimas sobrevivientes del exterminio de la Unión Patriótica se han constituido en un importante actor social para movilizar estos procesos históricos en la búsqueda de verdad, justicia y reparación integral, pero también con el propósito de transformar la cultura política de Colombia. 429 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Bibliografía CEPEDA, Ivan (2006). Genocidio político: el caso de la Unión Patriótica en Colombia. Revista CEJIL, San José de C.R., n. 2, p. 101 - 112 GRUPO de Memoria Histórica GMH (2013). ¡BASTA YA! Colombia: Memorias de guerra y dignidad. Bogotá: Imprenta Nacional. JARAMILLO, Jefferson (2014). Pasados y presentes de la violencia en Colombia: estudio sobre las comisiones de investigación. Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana. OQUIST, Paul (1978) Violencia, conflicto y política en Colombia. Bogotá: Instituto de Estudios Colombianos. 430 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O genocídio ucraniano na histórica guerra diplomática Rússia-Ucrânia Maurício da Silva Lima445 Resumo O objetivo deste artigo é apresentar as origens e os desdobramentos do Genocídio Ucraniano acorrido na União Soviética no período de 1932 e 1933 e fomentar com o pensamento histórico a partir desse evento o conhecimento sobre a histórica guerra diplomática Rússia-Ucrânia que tem como um dos seus desfechos atuais a anexação da Criméia à Federação Russa em 2014 e tensões militares nas fronteiras entre os países, recentemente. Para estes fins, toma-se (APPLEBAUM, 2019) como aporte teórico sobre o percurso do nacionalismo ucraniano e as políticas retaliativas soviéticas que culmina em autoritarismo no início dos anos 1930; e (TAMANINI, 2019) sobre os usos públicos desse evento na construção da memória coletiva. Os resultados que se alcançam nessas breves páginas são o entendimento sobre como o Genocídio se situa em uma sequência factual de colonialismo pan-eslavista russo na história da Ucrânia e como é empregado como pauta de defesa antirusso pelos ucranianos no litígio político prefigurado por histórias nacionais e sentimentos nacionalistas. Palavras-chave: Genocídio Ucraniano; Diplomacia; Crise russo-ucraniana. Introdução Da disputa de narrativas nacionalistas entre a Rússia e a Ucrânia após a anexação da Península da Crimeia em 2014 à Federação Russa, surge entre os argumentos do litígio um caso de Genocídio promovido pelo regime soviético no território ucraniano entre 1932 e 1933, posteriormente popularizado como Holodomor446, ou Grande Fome Ucraniana, que se tornou pauta de defesa política dos ucranianos em face do colonialismo russo existente desde os tempos imperiais quando da adoção dos Pogroms pelos czares na retaliação aos grupos étnicos do país. O Genocídio Ucraniano marcou a história diplomática entre os dois Estados, sobretudo após a década de 1990 quando acontece a abertura dos arquivos soviéticos para pesquisadores do mundo todo e o consequente esclarecimento sobre a conjuntura que deu 445 446 Graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mauricio.silvalima@ufpe.br A formação da palavra deriva de Holod (extermínio) e Mor (fome), palavra em ucraniano para significar o caso. 431 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X origem ao Genocídio a partir de pesquisas documentais e bibliográficas, impulsionadas por uma nova geração de historiadores e jornalistas. (APPLEBAUM, 2019. p. 25-26). As narrativas historiográficas em torno do evento desfiam que o regime stalinista promoveu na Ucrânia uma das grandes tragédias humanitárias que atingiram a Europa no século XX no auge dos regimes totalitários, chegando à cifra de 3,9 milhões de mortes, o que equivalia a treze por cento da população da República Popular da Ucrânia na época (APPLEBAUM, 2019. p.15). O fator causal da mortalidade em massa foi a fome, pensada como arma política por Joseph Stalin (1878-1953), secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, para retaliar o recalcitrante nacionalismo ucraniano, movimento insurgente no período da Guerra Civil Russa e com forte viés antissoviético, acusado de sabotar a política e a economia do país após o fracasso da coletivização na Ucrânia. Tomando a História como orientadora do conhecimento político sobre os fenômenos do cenário contemporâneo, faz-se fundamental trazer esse caso da história soviética para se pensar nos atuais desfechos envolvendo as relações de Estado que remontam às histórias nacionais entre Rússia e Ucrânia e aprofundar o conhecimento sobre as motivações das disputas políticas no século XXI entre essas nações, tomando o totalitarismo e a história da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas no período stalinista como motes. Russificação, sovietização, ucranização Para explanar o cenário histórico sobre o evento totalitário em questão é necessário que partir das origens que deram causalidade política ao Genocídio ocorrido na Ucrânia nos anos 1932 e 1933. Nesse sentido, tomamos a linearidade histórica com que Anne Applebaum (2019) constrói a análise dos fatos: ao descrever os desdobramentos do evento nos anos 1930, a pesquisadora vai apresentar o fenômeno do nacionalismo ucraniano enquanto movimento político surgido desde a época imperial que ensejara uma inquietação dos governos russos em face da contrafação que o senso de identidade revelava ao interesse da unidade nacional, representando um prenúncio de secessionismo no contexto de uma política imperial centralista. Os ideais autodeterminantes dos nacionalistas ucranianos geraram o que autora vai chamar de “Questão Ucraniana”, que na verdade foram os problemas envolvendo o surgimento do nacionalismo no espectro dessa política centralista russa – ainda mais marcada pelo ideal pan-eslavista. O desenvolvimento do senso de identidade a uma nação que engendra 432 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X a mobilização política pela autonomia alude a uma formação histórica medieval que se intensifica na Ucrânia durante a formação dos Estados nacionais: Pelo fim da Idade Média, existia uma língua ucraniana, com raízes eslavas, relacionada, porém distinta da polonesa e da Russa e bem parecida com a relação da língua italiana com o espanhol e o francês. Os ucranianos tinham uma culinária própria, costumes e tradições locais, além dos seus próprios vilões, heróis e lendas. Assim como em outras nações europeias, o senso de identidade ucraniano se aguçou durante o século XVIII e XIX. Entretanto na maior parte de sua história o território que hoje chamamos de Ucrânia foi como a Irlanda e a Eslováquia uma colônia que fez parte das terras de outros impérios europeus. (...) A Ucrânia pertenceu ao império Russo entre os séculos XVIII e XX, antes disso as mesmas terras foram da Polônia, ou melhor, da Comunidade Polaco-lituana. (APPLEBAUM, 2019, p.30) É já sob a dominação russa que se dará o surgimento moderno do nacionalismo craniano, motivado, principalmente, a partir da conquista de autonomia legada pelo regime czarista que herdara o território ucraniano em 1721 quando Pedro, “o Grande”, expandiu o território russo para o lado leste anexando a Ucrânia e legando certo grau de autonomia do poder central – mais do que as outras regiões do Império – para que assim o czarismo pudesse garantir a fidelidade da região à unidade o imperial. Os cossacos ucranianos - comunidades autogovernadas de semimilitares, com suas próprias leis internas - foram os primeiros a transformar tal sentimento de identidade e de descontentamento em projetos políticos concretos conseguindo privilégios incomuns e certo grau de autonomia dos czares. (APPLEBAUM, 2019, p. 33) Por outro lado, a autonomia em relação às outras regiões do vasto império multiétnico fez com que o nacionalismo passasse a ser alvo de retaliação ainda no século XIX sob a prerrogativa da preservação da hegemonia política russa pelo controle da unidade nacional. O meio de dissuasão adotado foi desestabilizar o eixo central que caracterizava a motricidade da identificação ucraniana - aquilo que mais o definia era a língua, falada, 433 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sobretudo, pelos camponeses: “A língua foi mais preservada no campo, pois como observou Trotsky, as cidades se tornaram centros de controle colonial, ilhas de cultura russa, polonesa e judaica num mar de campesinato ucraniano” (APPLEBAUM, p. 34). Portanto, os primeiros reveses ao movimento nacional começaram a ser notados pelo ataque ao idioma, sinônimo de liberdade política: O idioma ucraniano foi o primeiro alvo. Durante a grande reforma educacional no Império Russo em 1804, o czar Alexandre I permitiu que algumas línguas não russas fossem usadas em novas escolas estatais, mas não o craniano, pretexto que ele não era um idioma e sim um dialeto. O governador-geral de Kiev, Pedólia e Evolyn declarou em 1881 que uso da língua ucraniana nas escolas e seu emprego em livros didáticos fundamentais poderia levá-la ao ensino de níveis superiores e no fim a legislação, aos tribunais e administração pública, criando, assim, complicações numerosas e alterações perigosas ao Estado russo unificado. (APPLEBAUM, 2019, p. 37) No início do século XX, época da modernização russa em que acontecem as reformas liberais no Império, as classes políticas e populares se fortaleceram na participação em atos públicos e protagonizam a luta por abertura política e direitos civis, inclusive a região da Ucrânia que participara de levantes camponeses em 1902, dando uma demonstração que além do caráter intelectual do movimento nacional, também se tinha uma caracterização predominantemente popular. Esse início de século vai se tornar marcante para o movimento nacional ucraniano, pois nesse contexto de participação popular e reinvindicações é que se enseja o fortalecimento da causa nacional a partir da liberalização política: No entanto mesmo dentro do Império russo e os anos imediatamente anteriores à Revolução de 1917 foram, em muitos aspectos, positivos para a Ucrânia. O campesinato ucraniano participou com entusiasmo da modernização ocorrida no início do século XX na Rússia Imperial. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial seus membros adquiriram rapidamente conscientização política e se tornaram céticos a respeito do Estado Imperial. Uma onda de revoltas camponesas ricocheteou tanto na Rússia quanto na Ucrânia em 1902; camponeses desempenharam um papel crucial também no 434 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X levante de 1905. As sublevações deram início a uma reação em cadeia de inquietações, desestabilizaram o tzar Nicolau II e resultaram na introdução de alguns direitos políticos e civis na Ucrânia, inclusive o direito de usar o idioma ucraniano em público. A segunda década do século XX vai ser também inspirativa para que o movimento nacional ucraniano logre conquistas, pois após a Revolução de Fevereiro de 1917 os nacionalistas veem na efervescência de grupos políticos e suas ideias (inclusive a dos bolcheviques de separatismo dos povos não-russos como fator de desestabilização imperial) e da queda do czarismo a oportunidade da Independência, intensificando o apoio a Rada Central, órgão de governo que dirigiu o caminho de liberdade política nos anos de emancipação. A região alcançara sua independência enquanto República Popular da Ucrânia em 22 de janeiro de 1918 e sofre invasão soviética em fevereiro de 1921 e teve Symon Pleitiura como líder socialista da luta pela Independência da Ucrânia – independência que teve curto prazo e deixou marcas no governo soviético, sobretudo após o envolvimento da Ucrânia na guerra civil russa que a colocaria numa memorialística de centro de independentistas antissoviéticos. Em 1919 na assinatura do tratado de Versalhes onde acontece a divisão dos Estados pelos vencedores da Primeira Guerra, a Ucrânia permanece enquanto território anexado à Rússia, pois a necessidade dessa nação se desenvolver na construção do socialismo e no contexto da Guerra Civil precisou dos seus territórios para abastecer de alimentos o exército e desenvolver sua indústria. O período da Guerra Civil Russa vai dar a oportunidade para que os bolcheviques enxerguem no movimento nacional ucraniano um inimigo da causa da construção do socialismo soviético e interessado somente na sua autodeterminação enquanto Estado separado. Stalin no primeiro governo bolchevique foi o Comissariado do Povo para as Nacionalidades e seu papel era convencer ou forçar as nacionalidades não russas a se submeterem ao comando soviético com o objetivo de solapar o movimento nacional, claramente o mais importante opositor do bolchevismo na Ucrânia: Em seu ensaio “O marxismo e a questão Nacional” ponderou em 1913 que o nacionalismo era um alinhamento para casa do socialismo e que os camaradas Tinha que trabalhar só lidar e o infatigavelmente contra a névoa do 435 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X nacionalismo sem dar importância ao Rincão do próprio viesse por volta de 1925 seus pensamentos evoluíram ainda mais para argumentação de que o nacionalismo era essencialmente uma força camponesa. (APPLEBAUM, 2019, p. 54). A história de lutas internas por hegemonia de territórios para russos e ucranianos, como vimos, vai se formar a partir do século XIX e se amadurecendo à medida que a política se transforma de autocracia para um governo mais liberal nos primórdios do século XX e, posteriormente, com os desfechos envolvendo crises nacionalistas nos governos socialistas. Applebaum (2019) numa sutil utilização de termos para cada um desses períodos vai designar a etapa do século XIX como “russificação” da Ucrânia e o período revolucionário de “sovietização” do país, que se caracterizaram pelo domínio monarquista e socialista, respectivamente, e a continuidade do jugo russo na região. A mesma autora chama de “ucranização” a tentativa de Lenin de estabelecer governos bolcheviques na Ucrânia, sob a tentativa de suavizar a dominação após a Guerra Civil para que não parecesse uma invasão estrangeira, colocando governantes bolcheviques ucranianos para que o poder não se parecesse como domínio colonial. (APPLEBAUM, 2019. p.132). Em 1932 acontece o desfecho final do nacionalismo ucraniano a partir da eliminação do seu “exército de camponeses”, como identificava Stalin. Após o Plano Quinquenal de 1929 a política econômica do Partido Comunista da União Soviética passa a estabelecer que todas as propriedades rurais se unifiquem em fazendas coletivas gerenciadas pelo Estado. A política de coletivização atendia a demanda de crescimento do país sob a tentativa de tornar bem do Estado todos os minifúndios. Leonardo Vizeu Figueiredo (FIGUEIREDO, 2014, pág. 76-77) conceitua o empreendimento sob o seguinte pensamento: [...] a apropriação pelo Estado soviético das terras, colheitas, gado e alfaias pertencentes aos camponeses. Dessa forma, o Estado passaria a estabelecer planos de coleta para a produção agropecuária, que lhe permitiam de modo regular e quase gratuito abastecer as cidades e as forças armadas, bem como exportar para o estrangeiro. Por outro lado, pretendia-se estabelecer um efetivo controle político-administrativo sobre o campesinato, forçando-o a apoiar o regime soviético. 436 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Na Ucrânia a coletivização não se tornou popular entre os camponeses que relacionavam o sentido de coletivização ao de servidão. A resistência ao coletivismo fez com que o governo central associasse o pleito a uma tentativa de sabotagem à política e a economia da União Soviética por parte do movimento nacional ucraniano. Como retaliação a desobediência foi estabelecida uma cotação de dois terços da produção agrícola em forma de pagamento de impostos para o fomento à indústria. A Comissão de Aprovisionamento de Grãos, criada para este fim, cumpriu a tarefa de expropriar os camponeses até de suas garantias de grãos para o sustento próprio, gerando com isso a mortalidade que perfaz o caso como genocídio chegando ao número aproximado de 3,9 milhões de mortes pela causa da engenharia social lançada pelo governo. Para Figueiredo (2014,76-77) Com o seu cortejo de violências, de torturas e de chacinas pela fome, o Holodomor constituiu uma enorme regressão civilizacional. Assistiu-se à proliferação de déspotas locais, dispostos a tudo, para extorquir aos camponeses as suas escassas reservas alimentares e à banalização da barbárie, que se traduziu em rusgas, abusos de autoridade, banditismo, abandono infantil, "barracas da morte", canibalismo e agravamento das tensões entre a população rural e a urbana. A “arma da fome esmagou a resistência camponesa”, garantindo a vitória de Stálin e do seu regime totalitário; abriu o caminho para a vaga de terror de 1937-1938 (o "Grande Terror"); O fato deixou um legado de dor em numerosas famílias que nunca tiveram direito a expressar o luto, porque a fome se converteu em segredo de Estado. A grande mortalidade de ucranianos em resultado dessa política de devastação soviética não haveria de não se tornar marcante no discurso da trajetória da Ucrânia pela conquista de seu aparato jurídico de país, e especialmente memorar a dominação soviética nos dois séculos de história intrínseca com a Rússia, exaltando suas conquistas sociais e políticas e tornando expresso o descontentamento contra a sua nacionalidade. O Genocídio Ucraniano e seu uso político na História Pública: disputas de narrativas na contenda diplomática 437 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A história da Ucrânia desde o século XIX até sua Independência em 1º de dezembro de 1991 enreda a narrativa política de acusação de colonialidade nas relações com a força de domínio hegemônico antecessor - o Estado russo. O genocídio promovido pelos soviéticos nos anos 1930 na Ucrânia deixaram chagas políticas muito vivas no século XXI na forma de um ressentimento do qual os ucranianos apontam qualquer ato político russo que afete a diplomacia entre os dois países como uma escalada colonialista contra sua soberania, conquistada após o fim da Guerra Fria, na decomposição dos Estados-membros soviéticos. (TAMANINI, 2019. p.160) apregoa que: Nos grupos regionais, nos grupos sexuais, étnicos, comportamentais, de gerações, de gêneros, entre outros, se procura ter acesso a uma memória viva e presente no dia-a-dia. Nora conceitua os Lugares de Memória como, antes de tudo, um misto de história e memória, momentos híbridos, pois em um evento considerado trágico não há como se ter somente memória, mas uma constante necessidade de identificar uma origem, os motivos, os pretextos, as causas. Nesta perspectiva, a fome de 1931-1933, portanto, é reatualizada e identificada como tributária de uma memória que teve uma gênesis, mas que não se pode prever seu fim. A memória em torno do Genocídio Ucraniano põe também em jogo questões do Direito Internacional envolvendo a discussão sobre o separatismo, questão inconclusiva entre os países desde a fase da primeira independência ucraniana que acabou motivando àquela ação política trágica contra o nacionalismo radical. À medida que se vislumbra o plano da história ucraniana, é evidenciada a tentativa da conquista de autogoverno retardada na Revolução Russa, que impossibilitou a soberania do país no período entreguerras, no impulso do nacionalismo de início de século XX e da formação de Estados do Leste Europeu após a divisão das fronteiras com o fim da Primeira Guerra Mundial. Conforme jugam alguns nacionalistas ucranianos, a independência foi tardia e a causa do seu adiamento foi o empecilho que o secessionismo representou para o controle administrativo do socialismo soviético em formação. Essas questões atuais envolvendo o debate sobre independência regional remetem-nos a pensar na relação com a memória que os ucranianos dispensam sobre o fato: 438 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A memória coletiva, segundo Halbwachs, não só repete, mas recompõe e reedita o passado, conforme as circunstâncias e conjunturas. Se memória coletiva é uma reconstrução de algo já vivido e experimentado por um determinado grupo ou sociedade, dentro de marcos temporais, ela, por causa dos mesmos condicionantes pode ser contaminada pelas emoções e sentimentos. Por certo, as recordações dos ucranianos e descendentes sobre o Holodomor são reeditadas e remanejadas pelas circunstâncias do tempo e o espaço em que são demandadas. (TAMANINI, 2019. p. 159) Importante observar como a memória desse genocídio é reacendida pelas circunstâncias das crises que a Ucrânia tem vivido desde 2014. Os ucranianos associam a anexação da Crimeia pela Rússia como um desmando estrangeiro contra sua população assim como foi em 1932 e anos anteriores ao massacre. O direito a autodeterminação dos povos na formação do Estado e no reconhecimento internacional da soberania é um assunto transversal na contemporaneidade que envolve a Ucrânia e Rússia desde quando em 2014 aconteceu no intervalo de um mês a independência plebiscitária da República Autônoma da Criméia e sua decorrente anexação a Federação Russa, ressuscitando as semelhanças entre o Genocídio e a tomada territorial. A secessão é um ponto de disputa que marca o entrave da emancipação ucraniana e agora marca o discurso russo. Os russos reivindicam a posse sobre o território que fala em maioria da população a sua língua como fator de nacionalidade e pertencimento russo. O elo histórico que estabelece mais afinidade histórica entre os assuntos foi esclarecido pelo embaixador da Ucrânia no Brasil, que na oportunidade explicitou como o Genocídio deixou traços tão marcantes na história e na geografia do país que levou a desencadear as intrigas na última década pelas circunstâncias que as geraram: O embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko, afirmou em palestra, em Brasília, que parte da motivação do atual conflito entre Rússia e Ucrânia por parte do território ucraniano tem origens no Holodomor, genocídio ocorrido na Ucrânia entre os anos de 1932 e 1933, em que, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), tirou a vida de sete a dez milhões de pessoas, vítimas da fome. “Esquecer essas vítimas é condenar o passado mais uma vez”, criticou. (...) Segundo o embaixador Rostyslav Tronenko, o atual conflito entre Rússia e Ucrânia na península da Criméia, e 439 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mais a guerra entre ucranianos e grupos separatistas em Lugansk e Donetsk se deve, de certa forma, a esse genocídio. Ele afirma que a fome deixou um “vácuo populacional” no país e permitiu um preenchimento por russos, bielorrussos, cazaques e outras nacionalidades da União Soviética que tentam ser repatriadas pela Rússia. Essa política também teria motivado os conflitos entre Rússia e Geórgia, que atualmente passam por uma situação parecida. (UniCEUB, 2018) Mais que deixar publicizar a memória da fome, os ucranianos reivindicam que ela não caia no esquecimento.” (TAMANINI, 2019. p.161). Então o governo da Ucrânia luta para que os Estados legitimem e reconheçam o evento histórico como uma escalada colonialista russa que se constitui como uma agressão política qualificada como programática no plano da História. Na Ucrânia, após a independência nacional de 1991, foi instituído, em 26 de novembro de 1998, o “Dia da Memória das Vítimas da Fome e das Repressões Políticas”, a ser celebrado no quarto sábado do mês de novembro. Mais de uma década depois, o Parlamento ucraniano, através da Declaração de 15 de maio de 2003 e da Resolução de 28 de novembro de 2006, formalmente especificou o Holodomor como um ato de genocídio. Na esteira do reconhecimento ucraniano do Holodomor como um genocídio, fizeram o mesmo outras câmaras legislativas: o Conselho Nacional da Eslováquia (12 de Dezembro de 2007); o Congresso dos Deputados da Espanha (30 de Maio de 2007); a Assembleia Estatal da Estónia (20 de outubro de 1993); a Assembleia Nacional da Hungria (24 de Novembro de 2003); o Parlamento da Letônia (13 de Março de 2008); o Parlamento da Lituânia (24 de novembro de 2005); o Senado (16 de Março de 2006) e a Câmara Baixa do Parlamento da Polónia (6 de Dezembro de 2006); e a Câmara dos Deputados da República Checa (30 de novembro de 2007). Merece também destaque a cerimônia comemorativa do 70.º aniversário da Grande Fome na Ucrânia, promovida pelo Senado da Bélgica (3 de abril de 2003), bem como a resolução da Comissão dos Negócios Estrangeiros e Comunitários da Câmara dos Deputados de Itália (22 de março de 2004). A condenação por crime de genocídio foi igualmente expressa pelos seguintes 440 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X parlamentos nacionais: o Senado (17 de setembro de 2003 e 7 de novembro de 2007) e a Câmara dos Deputados da Argentina (26 de dezembro de 2007); o Senado (28 de outubro de 1993 e 30 de outubro de 2003) e a Câmara dos Representantes da Austrália (22 de Fevereiro de 2008); o Senado (19 de Junho de 2003) e a Câmara dos Comuns do Canadá (27 de maio de 2008); a Câmara dos Deputados do Chile (13 de Novembro de 2007); a Câmara dos Representantes da Colômbia (10 de dezembro de 2007); o Congresso Nacional do Equador (30 de Outubro de 2007); a Câmara dos Representantes e o Senado dos Estados Unidos da América (17 de Novembro de 1983; 20 de Outubro de 1990; 10 de Setembro de 1993; 12 de outubro de 1993; 10 de Outubro de 1998; 21 de Outubro de 1998; 20 de Outubro de 2003; 29 de setembro de 2006 e 23 de setembro de 2008); o Parlamento da Geórgia (20 de Dezembro de 2005); a Câmara dos Deputados (19 de Fevereiro de 2008) e o Senado do México (11 de Novembro de 2008); o Senado do Paraguai (25 de Outubro de 2007); o Congresso da República do Peru (20 de Junho de 2007). Merecem destaques também os relatórios da Comissão dos Direitos Humanos e das Minorias Nacionais (2 de Dezembro de 2008) e da Comissão dos Veteranos de Guerra do Parlamento da Croácia (4 de Fevereiro de 2009); a resolução do Parlamento de Andorra (26 de Novembro de 2009); e a resolução da Duma Estatal da Federação Russa (Câmara Baixa), aprovada em 2 de Abril de 2008, na qual se condena o regime estalinista pelo desprezo pelas vidas humanas na concretização dos objetivos econômicos e políticos bem como quaisquer tentativas de ressurgimento de regimes totalitários que desrespeitem os direitos e as vidas dos cidadãos nos estados da antiga União Soviética. (TAMANINI, 2019. p. 171-173.) O autor continua o catálogo das organizações internacionais que qualificam esse caso de genocídio como um evento totalitário no século XX, endossando o discurso de perseguição étnica durante o governo Stalin no período soviético: Diversas organizações internacionais e regionais expressaram o seu juízo, através das seguintes iniciativas: a) “Declaração conjunta sobre o septuagésimo aniversário da Grande Fome de 1931-1933 na Ucrânia -Holodomor” de 7 de 441 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Novembro de 2003, subscrita, no âmbito da 58.ª Sessão Plenária da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, por 65 estadosmembros; b) Resolução “Necessidade de uma condenação internacional dos crimes dos regimes totalitários comunistas” incluindo o Holodomor, no âmbito da 5.ª Sessão da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, em 25 de Janeiro de 2006; c) Resolução “Homenagem às Vítimas da Grande Fome -Holodomor na Ucrânia” de 1 de Novembro de 2007, subscrita, no âmbito da 34.ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); d) Declaração “Em Homenagem às Vítimas do Genocídio e das Repressões Políticas Cometidas na Ucrânia em 1932 e 1933” da Assembleia Báltica, em 24 de Novembro de 2007; e) Declaração Conjunta “No 75.º Aniversário do Holodomor de 19321933 na Ucrânia” de 30 de Novembro de 2007, subscrita, no âmbito da 15.ª Reunião do Conselho de Ministros da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), por 33 estados-membros; f) “Resolução sobre o Holodomor de 1932-1933 na Ucrânia” no âmbito da 17.ª Sessão Anual da Assembleia Parlamentar da OSCE, em 3 de Julho de 2008; g) “Resolução do Parlamento Europeu sobre a evocação da Holodomor, a fome programada na Ucrânia (1932 -1933)”, no âmbito da Sessão Plenária do Parlamento Europeu, em 23 de Outubro de 2008; h) “Declaração por ocasião do septuagésimo quinto aniversário da Grande Fome de 1932-1933 na Ucrânia Holodomor” de 16 de Dezembro de 2008, no âmbito da 63.ª Sessão Plenária da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas; i) Resolução do Parlamento Europeu “Consciência Europeia e o Totalitarismo” de 2 de Abril de 2009, na qual se evoca o Holodomor; j) merece também ser referida a aprovação, pelo Parlamento Europeu, de uma declaração sobre o “Dia Europeu da Memória das Vítimas do Estalinismo e do Nazismo”, em 22 de Setembro de 2008.39No Brasil, as moções da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados do Brasil (19 de setembro de 2007) e da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados do Brasil (16 de setembro de 2009) impetradas pelo deputado paranaense Angelo Vanhoni (REQ 124/2007 CDHM). A nível regional, em Curitiba, a Câmara dos Vereadores da capital do Paraná, acolheu a proposição do 442 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Vereador André Passos, em11 de junho de 2008 (Prop. 59.00007.2008) reconhecendo e condenando o Holodomor. (TAMANINI, 2019. p.171-175). É desses embates discursivos que se constituem as disputas de memória entre as duas nações em torno do fato histórico do Genocídio, com a Ucrânia sendo apologética política sobre o caso e a Federação Russa detratora da expressão do evento. O título da matéria do jornal O Globo de 7 de fevereiro de 2018 “Rússia critica projeto de lei em Israel que reconhece genocídio na Ucrânia” exemplifica os usos do passado pela História Pública, sobretudo esse passado misturado em intencionalidades políticas que marca as crises diplomáticas entre esses dois países e envolve um cenário internacional de crises geopolíticas maiores a medida que o Genocídio Ucraniano se torna um evento histórico da História Geral para a comunidade internacional. Conclusão A interpretação das questões políticas do presente nos leva a lançar mão de conhecer os envolvimentos dos sujeitos históricos no passado e os resultados que se produziram das causas que o geraram. A história magister vitae é aquela que nos ensina que existem mudanças de tempo, mas algumas características de uma temporalidade se apresentam em outras como herdeiras de um passado que perfaz o modus operandi com que o presente se constitui engendrado pelos determinantes temporais. A repaginada sobre o evento que marcou a história nacional ucraniana e russa produz interpretações inconclusivas sobre o passado comum na história soviética desses países e gera um efeito discursivo nas pautas de defesa contra as relações de hegemonia política entre Estados e isso nos permite avaliar os usos públicos do passado. São nos tempos de crise que percebemos qual o lugar da História. Após a eclosão da crise que colocou no debate político os destinos do leste europeu e as consequências e as adversidades que poderiam advir de tal crise é fundamental que se evidencie que o fenômeno produzido é marcado por vultos históricos que fazem com que recaiam consequências sobre a crise atual com conotações de inconcludência que tonificam a guerra diplomática. Por isso é que se buscou elaborar nesse artigo breves considerações sobre o passado e o presente de uma relação diplomática centenária marcada pelos pontos de disputa política entre russos e ucranianos e a expectativa dos resultados da pesquisa é que os interessados em entender o atual 443 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X conflito se orientem pelo entendimento de uma motivação histórica que gerou todo o estado de coisas que confluem para a guerra diplomática. Referências APPLEBAUM, Anne. A fome vermelha: A guerra de Stalin na Ucrânia. 1º ed.- Rio de Janeiro: Editora Record, 2019. FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. NEIVA, Lucas; MENDONÇA, Vitor. 85 anos após genocídio, ucranianos ainda sofrem consequências. Agência de Notícias UniCEUB: um novo ponto de vista, 2018. Disponível em: http://www.agenciadenoticias.uniceub.br/?p=19065 . Acesso em 04/10/2021. PARLAMENTO EUROPEU. 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A proposta segue a linha da Filosofia e da História da Educação, tendo por referência a autorreflexão freireana, com a qual se construa um (re)existir metodológico, epistêmico, ético e intercultural, envolvendo os saberes dos povos originários. A metodologia envolve o espaço tridimensional entre a memória social, a memória coletiva e as vidas experienciadas/narradas, considerando assim, o apreender com os elementos que ensinam, como as plantas, o sol, as estrelas, e com eles aprender a interpretar a simbologia que o mito embala. Pretende-se conectar a ética e a interculturalidade num compromisso com a prática docente e os saberes ancestrais na sala de aula. Palavras-chave: Decolonial. Saberes Ancestrais. História e cultura dos povos originários. Compromissus. 447 448 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (Unesp), Campus de Marília. Linha de pesquisa: Filosofia e História da Educação, orientada por Alonso Bezerra de Carvalho, mestre em Educação pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS/Unidade Paranaíba-MS); integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (Gepees), Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marília/SP. Docente do Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium (UniSALESIANO), campus Araçatuba/SP, e da rede pública municipal de ensino de Birigui/SP. Doutor e mestre em Educação; pós-doutor em Ciências da Educação; graduado em Filosofia e em Ciências Sociais; professor adjunto do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marília/SP; líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (Gepees) - Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), Marília/SP. 445 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 1 Introdução A reflexão proposta sobre o compromissus requer pensar na origem da palavra que advém do latim – particípio passado de compromittere, com = junto + promittere = prometer, etimologicamente “uma promessa mútua”, que em contexto histórico-filosófico, significou o comprometimento e a responsabilidade com o outro, ou seja, um vínculo de amizade. No momento, tanto a amizade quanto o compromissus se apresentam com outro significado: ou um “coleguismo”, com ausência de compromissos, com distanciamento social dos sujeitos com ou sem máscaras, ou obscuridade de relações, que tornam discutível o conceito de alteridade. Para os pensadores latino-americanos Mignolo e Quijano, um desafio para a sociedade contemporânea. Nota-se, em diversos espaços, formais ou não, que, mesmo almejando romper com o distanciamento, os que foram historicamente silenciados - sejam eles povos originários, negros, camponeses e comunidades tradicionais – continuam à margem. Isto confirma a necessidade de se refletir sobre o compromissus. Em nossa discussão, predeterminados o espaço universitário e o tempo presente - século XXI e os tempos obscuros da pandemia Covid 19 -, carece indagar sobre a ausência de um compromisso com o outro, o que, na filosofia dos povos originários e nos saberes ancestrais, se define como prática de “bem-viver”. A origem do bem-viver chegou ao Brasil mediada por uma outra língua - o espanhol. A referência advém de uma prática ancestral dos povos que viviam na cordilheira dos Andes. Parentes originários de uma constelação de povos que viveram por séculos na cordilheira, que utilizavam como imagem de cosmovisão ‘a cordilheira viva’, pretendem, figuradamente, por analogia ou metáfora, a manter uma convivência pacífica e harmoniosa como a de montanhas e vulcões, todos harmoniosamente. Respeitadas as diferenças, a seu modo vivem. A essa convivência chama de Pachamama - Mãe Terra - coração da Terra. Essa cosmovisão designa o modo de estar na Terra e de estar no mundo - que constitui a vida das pessoas e de todos os outros seres que compartilham o ar, que bebem água e que pisam na terra - essa constelação de seres é que constitui uma cosmovisão. A pesquisa, qualitativa e participante, em desenvolvimento junto ao Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília, 446 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X segue a linha da Filosofia e da História da Educação, tendo por referência a autorreflexão freireana, com a qual se pretende construir um (re)existir metodológico, epistêmico, ético e intercultural, envolvendo os saberes dos povos originários. Nesta perspectiva, a metodologia envolve o espaço tridimensional entre a memória social, a memória coletiva e as vidas experienciadas/narradas, considerando o apreender com os elementos que ensinam, como as plantas, o sol, as estrelas, e com eles aprender a interpretar a simbologia que o mito embala. Pretende-se, nesta parte da pesquisa, conectar a ética e a interculturalidade num compromisso com a prática docente e os saberes ancestrais na sala de aula. O foco desta reflexão é exatamente a palavra (pensar) e sua ação (movimento), que conecta a relação entre ética e interculturalidade. Sendo assim, faz-se necessário repensar que a criação da palavra advém de uma necessidade humana e, nesse trajeto histórico-filosófico, ela poderá se esvaziar dos significados que até então carregava, de suma importância para aquele determinado tempo e espaço. Observa-se nas sociedades originárias que a palavra possui uma conexão entre os seres. Cabe lembrar o que mencionou Eduardo Viveiros de Castro sobre o posicionamento que segrega os povos originários num contínuo silenciar (aos quais todos/as brasileiros/as nos conectamos por nossas ancestralidades) de sua relação orgânica, política, social, vital com a terra e com suas comunidades, que vivem em relação integral com a Mãe Natureza. Nota-se esse processo, nesses mais de cinco séculos de estruturais espoliações, genocídios e etnocídios. Também há 521 anos os povos originários protagonizam originariamente a resistência e a (re)existência! A votação da PL 490449 é o exemplo atual do brutalismo capitalista e da ausência de uma promessa mútua com o outro, sem compromissus. Infelizmente, ainda se apresenta uma imagem distorcida do originários na escola, nos jornais, na televisão, enfim, na sociedade brasileira. Mesmo com a Lei 11.645/2008, persiste um tratamento das sociedades originárias carregado de limitações e silenciamentos. Até quando? Nesse contexto, os povos originários seguem no caminho de re(existir) diante da imposta invisibilidade, como também em seu fazer frente à negação de seus saberes ancestrais num passado não tão distante de nossa história. Unidos em Brasília, mais de seis mil originários 449 A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e demais entidades de base dos povos originários organizaram a mobilização nacional “LUTA PELA VIDA” em Brasília: ‘Não ao marco temporal’. 447 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X e aproximadamente 170 etnias se reúnem (desde agosto próximo passado), reivindicando os direitos assegurados na Constituição Federal de 1988. O compromissus com esses povos advém da voz da floresta, em sua naturalidade de sentir e viver numa pedagogia própria e distinta, com que cada etnia rompe com o silêncio da história para ecoar, em sua narrativa, ritualisticamente, sua voz para além das fronteiras impostas e demarcadas. Temos muito que aprender com os povos originários para que um diálogo intercultural ocorra para aprofundar o que Freire diz da “autorreflexão”, que levará as massas à “tomada de consciência” (2002, p. 44). Este trilhar nos faz acreditar na inserção dos sujeitos “na História, não mais como espectadores, mas como figurantes e autores”. Nesse pensar por um movimento que não se pode ignorar, cabe evidenciar as palavras de Krenak (2019, p. 35-36): “[...]nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo, ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos jogados nesse abismo”. Este estudo acredita no educador que metaforicamente rompe com o silenciamento e o apagamento histórico-filosófico dos povos num compromissus que metodologicamente chamaremos de escutatória dialogal: um vínculo com o outro, mais do que simplesmente perguntar ou responder. Vínculo que sensibilize o outro a compreender o que estamos vivendo, como menciona Krenak (2019, p.13): “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar”. Assim, a proposta metodológica tem necessidade de buscar o trilhar decolonial para desconstruir os entraves eurocêntricos, para, assim, promover uma dinâmica na perspectiva da escutatória-dialogal. Está aí condensada a ideia que constitui o fulcro da tese que pretendemos desenvolver: adotar um trilhar decolonial para desconstruir os entraves eurocêntricos, corrigindo nosso rilhar atual por esse sentir repleto de responsabilidade ética, ética alinhada à interculturalidade 448 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X com que iniciamos nossa escutatória-dialogal com um indígena-professor, o qual contribuiu imensamente com esta reflexão inicial. Trata-se de Casé Angatu. A ele, “Kwekatureté”.450 2 Compromissus numa escutatória-dialogal451 Pensar em ouvir o outro requer o exercício silencioso do ato de ouvir – a que chamaremos de escutatória-dialogal, num viés ético e intercultural, lembrando que a perspectiva decolonial possui um grande desafio diante dos entraves sócio-históricos eurocêntricos de nosso passado e presente. Metodologicamente, a escutatória-dialogal permite aproximar-nos do pensamento decolonial, aproximar-nos das narrativas que percorrem a palavra (pensar) e sua ação (movimento), que conecta a relação entre ética e interculturalidade. Nessa interface, reaprender a ouvir o outro com todos os sentidos, trajeto que nos permite acreditar que os saberes ancestrais têm muito a contribuir no contexto históricofilosófico em favor de uma educação que contemple um bem-viver. A diversidade é primeiro ponto a constelar as relações e não a diminuí-las e/ou a segregá-las. Destarte, conscientemente, é preciso ter o cuidado de não “olhar para os povos indígenas apenas do ponto de vista ocidental do colonizador” (MEDEIROS, 2012, p. 52). Esse cuidado é referido por Freire quando fala das palavras que, ao compor frases e ao se trocarem, não apenas estruturam um sentido, mas promovem “relações entre as pessoas”, estabelecem uma ligação ou relação que tanto pode representar “a agressividade, a amorosidade, a indiferença, a recusa ou a discriminação sub-reptícia ou aberta” (FREIRE, 1997, p. 27). Está aqui o princípio de nossa responsabilidade com as narrativas de quem participou e participará da escutatória-dialogal que ressaltamos no início, para, assim, ultrapassar as paredes eurocêntricas que se silenciam em estruturais espoliações, genocídios e etnicídios, e estimular a aproximação tal como ocorre com a terceira parede de uma peça teatral, com a finalidade do encontro com o outro e levá-lo a participar do processo de construção. 2.1 Procedimentos metodológicos452 450 451 452 Gratidão! Pesquisa inicial apresentada no V Colóquio Internacional Diálogos Sul-Sul e o no II Congresso Internacional de Pesquisa e Práticas em Educação (Conippe), em agosto de 2021, Universidade Federal do Acre (Ufac) e da Faculdade de Filosofia e Ciências (Unesp), do campus de Marília. Os procedimentos metodológicos são parte da estrutura inicial da pesquisa, apresentado em eventos neste ano: XXI Fórum de Análise de Conjuntura: Covid 19: América Latina e os impactos multidimensionais da 449 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A pesquisa, de natureza qualitativa e participante, em fase de desenvolvimento, foi iniciada em 2021, e seguirá um procedimento de quatro etapas, desde contatar o possível participante, até alinhar a primeira fase da construção teórico-prática que resultou na presente reflexão. O aspecto metodológico baseia-se em Jacques Le Goff (1996), como também em Benjamin (1984;1987), Deleuze (1991) e Petrucci-Rosa (2011). Em Le Goff (1996), na relação entre história e memória e, mais especificamente, sobre memória social, num processo que se propõe ser ativo, dinâmico e complexo. Nesse contexto, pensar em memória numa relação comportamental com a narrativa significa adotar a mediação da linguagem – fruto da sociedade –, em sua dimensão coletiva e suas possíveis interferências sobre o outro durante a socialização. A confirmar esta intenção de aproveitamento, escreve o próprio Le Goff, “a memória coletiva pode ser concebida como o que fica do passado no vivido dos grupos ou o que os grupos fazem do passado” (1990, p. 472). Além desse aspecto, a proposta segue o pensar da narrativa – ou o pensar em movimento –, a partir de um espaço tridimensional. Extraímos tal ideia de Clandinin e Connelly (2011), por sua contribuição na possibilidade de compreender as vidas experienciadas e narradas, em sua temporalidade, por pessoas, ações e contexto envolvidos. Enquanto a escutatória-dialogal que citamos é um termo criado especificamene nesta e para esta pesquisa sob influência de Le Goff, encontramos, como proposta para análise de narrativas, algo semelhante nas mônadas453 de Walter Benjamin, além de outros autores. Assim o têm feito Carla Melo da Silva, Marcelo Prado Amaral-Rosa e Maurivan Guntzel Ramos, aplicando-a ao campo da educação. No caso desta pesquisa, a escutatória-dialogal possibilitará a construção de nossa escrita científica, em particular por envolver a dimensão de um espaço tridimensional, constituído pela relação entre a memória social, a memória coletiva e as vidas experienciadas/narradas. Com este embasamento, o presente estudo se dedica à escutatória-dialogal do primeiro indígena-professor com quem dialogamos para além da mera leitura do corpus em análise por parte de uma pesquisadora-professora, aprofundando-nos num processo reflexivo de significação do registro de cada mensagem, em sucessão, da primeira a todas as demais, na 453 pandemia; V Colóquio Internacional Diálogos Sul-Sul e II Congresso Internacional de Pesquisa e Práticas em Educação, e em capítulos de livros. “Mônadas” refere-se a Benjamin (1984;1987), Deleuze (1991) e Petrucci-Rosa (2011), na perspectiva de que mônada significa“ideia” e “[...] cada ideia contém a imagem do mundo” (BENJAMIN, 1984, p. 70). 450 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X brecha conectiva para pensar no compromissus para o movimento (ação) em relação ao outro, contato ao qual fizemos referência neste estudo. Apresentaremos aqui as etapas que constituem a metodologia deste estudo, a começar pela questão: 1 - O que é bem-viver para você? Uma educação conectada com o bem-viver necessita do quê? Constou como sugestão, ao final das questões: “Se quiser contar outros assuntos, além das questões dadas, fique à vontade. O sentido de nosso projeto é ouvi-lo com todos os sentidos que possam contribuir para uma educação numa perspectiva decolonial”. Constou como sugestão, ao final das questões: “Se quiser contar outros assuntos, além das questões dadas, fique à vontade. O sentido de nosso projeto é ouvi-lo com todos os sentidos que possam contribuir para uma educação numa perspectiva decolonial”. Quanto à narrativa, passará por diferentes fases: a primeira é a da pré-análise; a segunda, a da exploração do material e a terceira, a do tratamento dos resultados, das inferências e da interpretação, com base no pensamento de Benjamin (1984; 1987), Deleuze (1991) e PetrucciRosa (2011). Admitida ou aprovada tal estrutura, descreveremos a prática relacionada exclusivamente à leitura/escutatória de autores latino-americanos e a narrativas/escutatórias dos nossos participantes, também por etapas, conforme apresentado a seguir. 1ª Etapa – Contato com o indígena-professor, descrevendo o caminho metodológico de escutatória-dialogal a ser traçado, explicando tema, objetivo e a questão a ser respondida via Google Meet, contando que nesse processo a resposta será transcrita. 2ª Etapa – Organização do material a ser investigado, leitura das respostas - constituída por definição do corpus de análise, formulação da hipótese e interpretação do material coletado, processo em que se deverão considerar todos os elementos – representatividade, critérios apresentados, pertinência com o objetivo, ou seja, de acordo com o estudo proposto, assegurando que as narrativas dos povos originários sejam eticamente respeitadas. 3ª Etapa – Tratamento dos resultados, inferência e interpretação a partir do registro das narrativas, agrupadas tematicamente em categorias, de tal maneira que possibilitem as inferências. Nesse processo inferencial, o objetivo não é somente compreender o sentido da fala, mas, principalmente, entender o significado da mensagem proposta na primeira mensagem. 451 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 4ª Etapa – Construção do artigo a partir da escutátória-dialogal, lembrando que “quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontála um dia” (BENJAMIN, 1987, p. 204). Acredita-se numa possível multiplicação de narrativas, enquanto reflexão da prática docente, impregnando literalmente as memórias de quem ouve/lê, valorizando, ao mesmo tempo, as experiências-narradas - a palavra (pensar) e sua ação (movimento) -, que conectam ética e interculturalidade, cumprindo com o compromissus escolar numa perspectiva decolonial. Nossa escutatória-dialogal se iniciou com Casé Angatu Xukuru Tupinambá, indígena e morador no Território Tupinambá, na Taba Gwarïnï Atã, em Olivença (Ilhéus/BA), Sul da Bahia. Casé é docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia e na Universidade Estadual de Santa Cruz. Doutor pela FAU/USP e autor dos livros: Nem Tudo Era Italiano; São Paulo e Pobreza na Virada do Século (1890-1915, Annablume, 4. ed., 2018). É também um dos autores do livro Índios no Brasil: Vida, Cultura e Morte (Intermeios, 2018), entre outros. Casé nos deu a honra, em entrevista pelo Google Meet, para refletirmos sobre uma ação-reflexão-ação entre escutar, ver e sentir as origens, razão por que lhe somos imensamente Kwekatureté (gratidão)! No início do diálogo, ele falou de sua trajetória até chegar à Taba Gwarïnï Atã, em Olivença (Ilhéus/BA). Antes disso, viveu em São Paulo. Disse na entrevista: Tive uma vivência em São Paulo. Minha família é de Xukuru, por parte de pai, exclusa, excluída da terra na década de 30, lá de Palmeiras dos Índios em Sertão dos Alagoas, Graciliano Ramos prefeito de lá, houve uma forte perseguição pelo governo Getúlio Vargas e uma série de índios Xukurus migraram pelo Brasil afora: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e não só Xukuru... Segundo Casé, o mesmo se aplica a outras etnias: O que chamam de migração nordestina, mas chamo de diáspora indígena, muitos familiares indígenas saíram destas terras e foram morar, é o caso da minha família. Meu pai vai para São Paulo e conhece minha mãe – uma Kaingaing do interior de São Paulo - e pouco ficam no interior e já vão morar 452 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X na capital juntos com outros Xukurus. Então eu nasci na cidade de São Paulo, numa comunidade de mais de oitenta Xukurus, que a gente manteve o sotaque nordestino. Minha mãe, apesar de ser Kaingaing, ela vem morar numa comunidade de Xukuru. Ela adotou a cultura Xukuru, o sotaque nordestino, a língua, a forma de falar indígena e toda a tradição. Em plena capital paulista, em plena cidade de São Paulo, naquela região da Zona Leste, perto do rio Tiquatira, na Penha de França, meu parto foi caseiro. Quem fez foi minha vó – mãe de minha mãe, que veio também morar com os Xukurus e sempre na tradição do cachimbo, da língua. Aí que vivenciei os primeiros momentos. Minha mãe nunca conheceu a avenida Paulista; nunca conheceu o centro da cidade de São Paulo; nunca foi ao cinema. Meu pai nunca foi ao cinema e ambos não sabiam nem ler e nem escrever. Muita gente confunde isso com lugar e território. O espaço pode se chamar São Paulo, mas o território que estávamos lá era um território indígena, por nós mesmos e nossas criações - porco, cabrito, plantava, tinha palmito. A gente comia palmito, coco, tudo que a gente fazia numa roça indígena, a gente fazia em plena cidade de São Paulo, e assim a gente foi criado. Teve que ir para escola, mas a gente não foi muito bem tratado não, como a gente tem essa cara, e minha mãe cortava o cabelo tigelinha, e a gente tinha dificuldade de falar a língua não-indígena, aí fui colocado numa sala de aluno especial. A escutatória-dialogal possibilitou o contato com a trajetória histórico-cultural de Casé, além de seu trilhar como docente. Ele lecionou na Unesp, campus de Marília, na UEL, em Londrina, até chegar à Universidade Estadual de Santa Cruz, onde, coincidentemente, em Olivença, se encontra o povo tupinambá. A resistência e a militância de Casé são admiráveis em tempos obscuros, tempos em que ele já enfrentou paulada ao voltar do trabalho e o racismo médico local,454 que lhe deixaram marcas físicas. Hoje já não leciona mais à noite por conta do perigo do trajeto do trabalho até o Território Tupinambá, na Taba Gwarïnï Atã. Segundo suas palavras: “A gente não tem rancor, mas tem memória”, num local repleto de preconceito, assassinato, genocídio e resistência a viver as tradições. Continua: “Tem a ciência divina no tronco da Jurema”.455 “Primeiro vem o 454 455 O desconhecido grita “é índio!” e dá paulada; ao ir ao hospital, ao ouvir o “é índio!”, o médico costura sem anestesia e trata mal. Costurou ele em pé. Canto ecoado por Casé durante a escutatória-dialogal. 453 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ser, sou indígena, que sou doutor, e depois professor universitário”. “A sabedoria ancestral vem primeiro do que o conhecimento”. “Converso com minha mãe pelo som dos pássaros, dos matos, do balançar das folhas das árvores: esse é o bem-viver, tendo junto a natureza, um princípio indígena”, ele explica. Casé adverte a respeito da perda de “referência do coletivo e da natureza” e sugere revisitar o conceito de Antropofagia. Ele diz que “não é devorar o homem, ser humano pelo ser humano, mas devorar aquilo que já fomos... a essência que está na anga (alma)... o que somos”, contando que “quando você entra pela mata, você é devorado pela mata e com muito respeito”, ressaltando que “o bem-viver com a natureza é coletivamente o maior exemplo do bem-viver indígena”. 2.3 Discussão para pensar em resultados? Para pensar em resultados, pensemos juntos na atual educação brasileira, especificamente no ensino superior, num ato de esperançar por uma prática decolonial que instigue, sensibilize e que possa multiplicar, metodologicamente, a escutatória-dialogal. Esta primeira escutatória-dialogal, a qual articulamos no trajeto desta proposta é impregnada de sapiência prática,456 dos saberes ancestrais e da história presente, da origem mítica e da visão de um povo, além das características ocidentais. De acordo com as palavras de Kopenawa (2015), gente da floresta tem outra perspectiva de existência, o que é confirmado por Krenak: “Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas existencial. É enriquecer nossas subjetividades” (2019, p. 32). É o que deve ser ensinado nas escolas dos não originários, escreve Angatu: Pensamos que as contribuições para o ensino das Histórias e Culturas Indígenas, como em relação a outros conteúdos, precisam de um constante processo de discussão e ponderação que acompanhe a dinâmica da sociedade. É fundamental oferecer prioridade à formação de professores nos cursos de graduação em história, relacionando o ensino com as vivências, memórias e sabedorias populares, incluindo a indígena. (2020, p. 62). 456 Sapiência prática; aquele que conta transmite um saber (BENJAMIN, 1984, p. 11). 454 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Além dessa problemática apresentada por Angatu, Quijano (2005, p. 127) afirma que o não-europeu é percebido como passado, aprofundando a questão e remetendo ao sofrimento opressivo. O que propomos, a palavra (pensar) e sua ação (movimento) que conecta a relação entre ética e interculturalidade, é o compromissus, de suma importância na sala de aula, na perspectiva de aprender com as subjetividades ancestrais. O que se espera é contribua para o que Krenak manifesta: “O tipo de sonho a que eu me refiro é uma instituição. Uma instituição que admite sonhadores. Onde as pessoas aprendem diferentes linguagens, se apropriam de recursos para dar conta de si e do seu entorno” (2020, p. 34). A sala de aula é espaço libertador para sonhar e no qual se espera que brotem práticas decoloniais éticas e interculturais, através das quais se manifestem os saberes dos povos originários; saberes que, ao serem metodologicamente estimulados, possam despertar a escutatória-dialogal, e seu efeito seja o de (re)existir às estruturais espoliações, aos genocídios e aos etnicídios. Nesse espaço de discussão, aspira-se a pensar-juntos (pensamento-outro) em resultados para um futuro com compromissus, com e para o outro. Este não é somente um convite aos educadores, mas para pesquisadores, alunos, leitores que são de suma importância nesse processo plural de vozes para romper com a prática eurocêntrica na sala de aula. 3 Conclusões - por um repensar A ausência de compromissus na atualidade, que se manifesta no distanciamento social dos sujeitos, com ou sem máscaras, como também na obscuridade dessas relações, nos desperta para a necessidade da alteridade, ideia já encarada e discutida pelos pensadores latinoamericanos Mignolo e Quijano. Dadas a história, a cultura e as práticas já seculares, esse conceito de alteridade representa, insistem os referidos pensadores, um desafio a ser enfrentado pela sociedade contemporânea. A presente reflexão considera a contribuição dos saberes dos povos originários, a partir de uma escutatória-dialogal, uma fonte. O de que se precisa é de uma metodologia que possa estimular a pluralidade de vozes e caminhos numa perspectiva decolonial. O compromissus, nesse processo ético e intercultural na universidade, é suspender o céu dos nossos horizontes e romper com o eurocentrismo na busca pelo comprometimento decolonial. 455 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Eis o grande desafio: “escutar o outro” para, assim, numa aprendizagem decolonial, apreender com os elementos que ensinam, como as plantas, o sol, as estrelas, numa simbologia embalada pelo mito, que está na interculturalidade dos saberes dos povos originários. Este estudo é um convite inicial. Nele, a palavra (pensar) e sua ação (movimento) se conectam na relação entre ética e interculturalidade pelo compromissus de um com o outro na sala de aula. Nesse processo, deseja-se que todos/as/es tenham coragem, no sentido de sua etimologia, pois procede do latim - cor, cordis, “coração”, repleto de amor (morada dos sentimentos), para multiplicarmos nossas discussões e pesquisas! Referências ANGATU, Casé (SANTOS, Carlos José F.) “Decolonizar o conhecimento e o ensino para enfrentar os desafios na aplicação da Lei 11.645/2008: por uma história e cultura indígena decolonial!” In: MATTAR, Sumaya; SUZUKI, Clarissa; PINHEIRO, Maria. A lei 11.645/08 nas artes e na educação: perspectivas indígenas e afro-brasileiras. São Paulo: ECA-USP, 2020. Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/525/463/1803-1. Acesso em: 19 abr. 2021. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. CLANDININ, D. Jean; CONNELLY, F. Michael. 2011[2004]. Pesquisa narrativa: Experiência e História em Pesquisa Qualitativa. Uberlândia: EDUFU. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz Orlandi. São Paulo: Papirus, 1991. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 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Buenos Aires, Colección Sur Sur, 2005. p. 118-142. 457 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ST07 – Formação Inicial e Continuada: a Educação Histórica como forma de construir a Consciência Histórica de Estudantes e Professores (as) do Estado de Alagoas Africanidade e formação docente: reflexões sobre o Ensino de História no Alto Sertão alagoano Tamires Vieira da Silva457 RESUMO: O presente trabalho almeja realizar reflexões em torno da formação de professores de história no alto sertão alagoano, enfatizando o ensino de História da África e sua importância no processo de ensino e aprendizagem no âmbito escolar, ao mesmo em que destaca as formações continuadas que o Grupo de Cultura Negra do Sertão, Abí Axé Egbé promove na região. Considera-se a necessidade de pensar uma formação docente a partir de debates que se articulem valorizando a história da África e sua colaboração na formação da sociedade brasileira, coincidentemente, (des)construindo a visão sobre o povo africano. Como referencial teórico apresentamos Fonseca (2011) e Bittencourt (2011) e Lamosa (2014) que nos ajudam a pensar sobre o surgimento da disciplina História e o processo de formação docente; para discutir a Lei 10.639/03 e as mudanças no ensino de História utilizamos Alves; Silva e Lima (2019) e Paula; Guimarães (2014); e por fim, Gomes (2019) que apresenta como ocorre a formação continuada para professores de História, objetivando o ensino de História e cultura africana no sertão alagoano desde 2013. Observou a importância de incluir no contexto da sala de aula uma historiografia que dá ênfase a História e cultura africana, além de uma formação continuada que priorize conteúdos sobre a temática. Palavras – chave: Formação docente; Ensino de História; Africanidade; Abí Axé Egbé. 1 A disciplina de História e a formação docente Durante as últimas décadas muito se tem discutido sobre o ensino e a formação de professores de história. Entre os diversos debates levantam-se questionamentos relacionados aos desafios enfrentados pelos docentes na sala de aula, livros didáticos, conceitos, conteúdos, Mestranda em História tamiresvieira620@gmail.com 457 Cultural pela Universidade 458 Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X relação professor-aluno e, principalmente, os preconceitos e tabus que ainda rodeiam o ensino da história da África, que nesse momento utilizaremos o termo africanidade. Estes estudos buscam problematizar como se dá o desenvolvimento da disciplina história na sala de aula, ao mesmo tempo em que buscam melhorar sua prática dentro do ambiente escolar, analisando o tipo de formação docente e a dedicação ao ensinar sobre a cultura africana, por exemplo. Nesta circunstância, muitos anseios surgem. Dentre eles, despontam, primeiramente, um em especial: saber de que forma acontece a formação docente quando se trata de História da África? Sabemos que a história brasileira se evidencia por intermédio de uma pluralidade étnica, sendo essa inserida no contexto escolar e no currículo com o objetivo de dar espaço a história que muitas vezes foi/é silenciada em sala de aula, tentando desconstruir um pouco a visão eurocêntrica quando se fala em ensino de história. Cabe lembrar que nem sempre ocorreu dessa forma, pois existia uma silenciamento muito grande com relação a temas como: escravidão, cultura africana, leis abolicionistas e abolição dos escravos, por exemplo. Antes, porém, se faz importante conhecer como a disciplina escolar458 História surgiu, pois só foi possível criar cursos de formação docente após essa disciplina ter sido aplicada nas escolas. Com base em Beatriz Boclin (2014), a disciplina de História surgiu no campo educacional especificamente no século XIX, ou seja, os primeiros sinais de uma História de bases científicas que seria ensinada nas salas de aula, era bem diferente da História ligada à religião que os jesuítas 459ensinavam no Brasil no período colonial. Apoiados em Fonseca descrevemos que: Nas décadas de 20 e 30 do século XIX surgiram vários projetos educacionais que, ao tratar da definição e da organização dos currículos, abordavam o ensino de História, que incluía a “História Sagrada”, a “História Universal” e a “História Pátria”. O debate em torno do que deveria ser ensinado nas escolas, e como isso seria feito, expressava, de certa forma, os enfrentamentos políticos e sociais que ocorriam então no Brasil, envolvendo liberais e os conservadores, o Estado e a Igreja (FONSECA, 2011, p. 42-43). Entende-se como disciplina escolar o agrupamento dos saberes, que possuem organização própria para o estudo escolar, contendo objetivos específicos a serem alcançados nas series de ensino e tem a sua forma própria de apresentar os conteúdos, partindo, contudo, de sua apresentação. (FONSECA, 2011, p.15). “(...)os jesuítas ensinarem temas de História em suas escolas nos séculos XVII e XVIII não significa que este conhecimento já estivesse organizado como disciplina escolar(...)”. (Idem, 2011, p.15). 458 459 459 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Nesta perspectiva, a educação se aproxima dos objetivos políticos. Não se pode pensar a escola longe do Estado na sociedade capitalista (BARROSO, 2005), pois, de acordo com princípios liberais, para se alcançar fins de êxitos econômicos é preciso reestruturar a educação para perpetuar esse modelo de sociedade. Compete-nos ressaltar que: A constituição da História como disciplina escolar no Brasil só ocorreu após a Independência, quando o governo imperial iniciou a organização de uma estrutura de ensino. [...] A estrutura curricular do período expressava a forte presença da Igreja nos assuntos educacionais e a influência do liberalismo como ideário político presente no país desde o fim do século XVIII (LAMOSA, 2014). A primordialidade de reestruturar a educação no Brasil nesse período buscava atender as demandas capitalistas, implicando na ampliação da sociedade nos âmbitos econômicos e educacionais. Em conformidade ao objetivo de constituir uma nação que, para além da independência, conseguisse formar-se política, econômica e culturalmente, a concepção liberal no século XIX tentava estabelecer o papel de moldar os cidadãos em concordância aos critérios científicos. Desta maneira, impulsionava o projeto produtivista que é importante no capitalismo. Formar o indivíduo para a vida civil, importunaria em um ensino controlado pelo Estado (FONSECA, 2011). Cabe aqui, ressaltar que nesse momento que a população brasileira era escravista; com isso, a educação precisava atender as demandas e objetivos econômicos, políticos e sociais, assim como a formação de professores. Sempre tentando atender a um ensino voltado para elite, ao mesmo em que, excluíam em boa parte as minorias (pobres, escravos, indígenas). Esse mesmo modelo foi atualizado no período republicano quando foi dada uma atenção maior a disciplina de História, pois ela seria responsável por construir esse sentimento de nacionalidade dos discentes. A nova geração teria que compreender e formar-se de acordo com o perfil patriota que exigia. Essas mudanças nos programas para as escolas elementares, profissionais e secundárias duraram praticamente todo o século XIX, e os objetivos do ensino de História foram se definindo ao longo desse período com maior nitidez, trazendo a História como disciplina escolar, ao mesmo tempo em que se almejavam futuras alterações no currículo escolar, que 460 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X precisaria se adaptar ao novo modelo de educação que estava se iniciando, simultaneamente, em que mudaria também o perfil de cidadão que a sociedade iria cobrar futuramente (BITTENCOURT, 2011). A disciplina de História era vista como fundamental no currículo, tendo em vista que os autores dos livros didáticos (docentes) ocupavam posições de poder dentro e fora da instituição escolar, o que ajudava de forma direta e indiretamente o perfil de cidadãos que a elite social esperava no século XIX. Devido a essas informações o currículo da disciplina de História é o que se transforma sempre com as novas demandas para educação. Em 1838 surgiu o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado com o objetivo de elaborar uma história nacional transmitida nas escolas com o auxílio do ensino de História. As elites que estavam no poder colocavam a identidade nacional no centro das discussões sobre a construção da nação, era necessário que os alunos aprendessem a História nacional. Como essa história deveria ser reconhecida por todos os brasileiros, a melhor forma de disseminá-la seria através da escola (LAMOSA, 2014). Nesse contexto, para a disciplina escolar História cabia: (...) apresentar às crianças e aos jovens o passado glorioso da nação e os feitos dos grandes vultos da pátria. Esses eram os objetivos da historiografia comprometida com o Estado e sua produção alcançava os bancos das escolas por meios dos programas oficiais e dos livros didáticos, elaborados sob estreito controle dos detentores do poder (FONSECA, 2011). Segundo Bittencourt (2011, p. 61) a escola “era lugar destinado a ler, escrever e contar”, expressando o destaque as disciplinas Língua Portuguesa e Matemática, pois não se pensava na História, não se articulava uma educação voltada a história local ou regional, tornava-se importante que os alunos soubessem datas e fatos históricos “na ponta da língua”, enquanto os professores de história, esses ainda sem uma formação específica, deveriam somente associar as lições que envolviam leitura com o ensino de História, para que os alunos pudessem aprender usando a imaginação460. Cabe ressaltar que a História proposta para o ensino no séc. XIX era positivista, que mostrava necessariamente a história dos grandes heróis, como por exemplo: Dom Pedro II, Pedro Alvares Cabral, entre outros; Além de discutir com clareza uma história do povo branco, burguês, cristão, do mesmo modo que ressaltava datas e 460 461 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Entre os séculos XIX e XX a discussão voltada para a história nacional se tornou bastante intensa, pois procurava-se romper com a noção de história sagrada que era aplicada nas escolas, para que os professores pudessem ensinar aos alunos assuntos voltados à nação. Com esse objetivo, a partir da 1920 se introduziu a disciplina escolar “Instrução Moral e Cívica”, que ligada ao ensino de História buscava instruir a formação dos cidadãos, reforçando assim os sentimentos patrióticos (SANTOS, 2014). Percebe-se então que mesmo com a História enquanto disciplina aplicada nas escolas desde século XIX, somente no século seguinte é tratada definitivamente como parte do currículo escolar. As modificações continuaram se perpetuando. Com a instalação do regime militar em 1964 passou-se a enfatizar nas salas de aulas, ainda mais, os fatos políticos e as biografias dos ‘brasileiros célebres’. Entre estes, destacavam-se os principais personagens do, então, novo regime, esquecendo com isso a História Antiga, História Medieval, e demais temas relacionados a disciplina (FONSECA, 2011). Após a LDB, nº 5.692 de agosto de 1971, ainda durante a ditadura civil militar as disciplinas História e Geografia foram substituídas por “Estudos Sociais” que seria uma junção das duas no ensino de Primeiro Grau. Nesse momento, as disciplinas de História e geografia seriam necessariamente resumidas durante as aulas, tentando abranger conteúdos de forma superficial. A ideia de incluir essa nova disciplina no currículo era discutida desde 1920 pelo movimento conhecido por Escola Nova461, que buscava trazer para o Brasil uma nova concepção de educação. Os objetivos que foram estabelecidos para o ensino de Estudos Sociais462 a partir dos conteúdos e atividades que eram predeterminados, em que deveriam ajustar os alunos ao meio social que conviviam, preparando-os para uma convivência cooperativa, cumprindo assim suas responsabilidades como cidadão através dos deveres básicos para uma comunidade (FONSECA, 2011). acontecimentos voltados para uma história política e militar. Certificamos, portanto, que a concepção de história como disciplina escolar não estava concentrada apenas na formação científica da sociedade, mas também, política. A Escola Nova foi um movimento pedagógico que reagia contra o modelo tradicional de ensino, valorizando experiências sobre fatos de aprendizagem. Abrangendo um novo caminho aos educadores, impulsionando o olhar do professor para novas práticas pedagógicas, dessa forma, consistia na reformulação dos métodos de ensino, sendo decisivo na mudança do campo educacional do Brasil. (VIEIRA, 2001, p.54). A disciplina Estudos Sociais nas escolas acabava englobando outra disciplina “Educação Moral e Cívica” que até os dias atuais algumas escolas ainda permanecem com a mesma em seus currículos. Os conteúdos ainda são voltados para os direitos e deveres do cidadão e sempre fazem relação a sociedade. 461 462 462 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X No início do ano de 1980 surgiram várias propostas de mudanças curriculares voltadas ao ensino de História e associadas ao contexto de redemocratização463 no Brasil. Neste período de modificações no ensino, a História voltou a ser uma disciplina autônoma, separando-se assim da Geografia e se desfazendo dos Estudos Sociais. Ao mesmo tempo, em que seu currículo disputado por correntes historiográficas (marxismo464 e positivismo) a disciplina escolar História nesse contexto, era voltada a memorização da biografia dos heróis nacionais (LAMOSA, 2014). Lamosa (2014) relata que até o fim do regime militar, nos anos 80 a disciplina de História esteve muito associada à pedagogia tradicional, focava muito nos fatos políticos e na história dos grandes heróis, lembrando que se fazia importante mostrar aos alunos a importância dos grandes acontecimentos políticos, esquecendo assim dos demais conteúdos voltados a História que são importantes para a formação do cidadão, além de se distanciar das grandes revoltas populares, da história de desigualdade e exploração, que era o que mais se aproximava da realidade dos discentes. De acordo com Fonseca (2011) em meados dos anos 90, os livros didáticos e os programas curriculares começaram a atender as tendências de uma teoria contemporânea da História, mais voltada à história do cotidiano e das mentalidades, deixando as aulas de História com mais conteúdos voltados a realidade dos alunos, não esquecendo, no entanto, os grandes nomes, mas dando espaço para as pessoas comuns, também sujeitos históricos que antes não eram ensinados na sala de aula. Contudo, esse novo modelo educacional tratou-se de articular novos conteúdos em perspectiva contextual, crítica e inclusiva465, pois no ensino de História também deve ser ensinado além da história dos “heróis”. A redemocratização nos remete aos novos compromissos políticos com a população, se caracterizando pela descentralização do poder, no caso do Brasil, a redemocratização se consolida com o fim da ditadura militar, em 1985. As transformações ocasionadas a partir desse processo ampliaram novas garantias individuais e coletivas para a sociedade, a ponto de culminar uma eleição presidencial (civil) após 21 anos de ditatura. Devido à isso, novas propostas também surgem ao ensino de história, que antes era regulado pelo Estado militarizado, como uma forma de controlar o que a população precisa de fato aprender. (SOUZA, 1999). Corrente teórica entendida como um conjunto de ideias desenvolvidas através das obras dos autores Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). O marxismo possibilita um método próprio para se analisar a sociedade e seus aspectos, esses ligados aos conflitos de classe e organização da produtividade social. A teoria do marxismo se apresenta enquanto uma evolução teórica que pretende explicar o capitalismo. (NETTO, 1997). Lembramos do impacto da Escola dos Annales na historiografia brasileira dos anos 1980/90 que contribuiu para que a história dialogasse também com outras áreas das Ciências Humanas, desenvolvendo um caráter interdisciplinar. Nessa perspectiva a História enquanto disciplina escolar poderia utilizar, por exemplo: novas metodologias, novos temas e maior diversidade documental, expandindo, com isso, os efeitos do ensino de História na sala de aula. 463 464 465 463 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Nesse contexto de mudanças, é notório que o Ensino de História continua mudando até os dias de hoje junto aos objetivos políticos como era no início. A disciplina escolar História ainda guarda alguns elementos desde sua origem no século XIX, sendo que todos os processos que contribuíram para as alterações no perfil da disciplina estão interligados as transformações da própria ciência histórica, como do contexto social, político e cultural da sociedade e do próprio campo do ensino de História. 2 A lei 10.639/2003 e as mudanças no Ensino de História Pensando as tantas mudanças que ocorreram no ensino de História desde surgimento da disciplina no século XIX, destacamos nesse momento a importância da Lei Federal de nº 10.639, sancionada no dia 09 de janeiro de 2003, tal qual estabeleceu como obrigatório o ensino da História e Cultura da África e afro-brasileira nos currículos nacionais. Perante as mudanças no ensino de História foram adotadas no Brasil novas iniciativas que visam à formação docente para educação básica, ao mesmo em que se acompanha os desafios colocados às suas metodologias e práticas educacionais de acordo com a lei (PAULA; GUIMARÃES, 2014). A Lei 10.639/03 viabiliza “combater o racismo nas escolas e, ao mesmo tempo, (...) reconstruir as memórias e fortalecer os referenciais da identidade negra” (ALVES; SILVA; LIMA, 2019, p. 59). Dessarte, a formação continuada especializada no tema de africanidade se torna primordial, visto que aos professores de História não se tinha cobrança sobre o tema na sala de aula. Consideramos até aqui, os professores sendo direcionados a um ensino de história ainda pautado na visão eurocêntrica, em que o próprio livro didático silenciava o tempo todo a historicidade do povo negro. O próprio currículo, os livros didáticos466, assim como a formação de professores, precisaram se ‘atualizar’, incluindo com clareza, mesmo que em poucos capítulos o conteúdo que a partir de janeiro de 2003 se tornou obrigatório. “De modo geral, os livros didáticos ainda se limitam frente às discussões sobre a diversidade étnica do país, que mesmo de forma indireta contribui para perpetuação do conflito à pluralidade étnica, tornando latente a ideia de homogeneidade e mestiçagem que vislumbra a branquitude e a democracia racial”. Ou seja, mesmo que sendo obrigatório o ensino de História e Cultura da África e afro-brasileira continua enfrentando dificuldades frente a sala de aula, aos alunos e muitas vezes ao próprio docente. (CARVALHO, 2019, p. 80). 466 464 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A partir de então, a historiografia brasileira possibilita discutir com os alunos textos que dão voz a africanidade, seja a cultura africana ou a história da África como um todo. Pensando na formação dos professores de história, os mesmos podem utilizar em sala de aula, para além do livro didático que muitas vezes apresenta um conteúdo bem resumido, autores como Clóvis Moura e sua obra intitulada “Rebeliões na senzala”; Angela Alonso, com o texto “Associativismo avant la lettre – as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista” e até uma biografia como por exemplo, “FRANCISCO JOSÉ GOMES DE SANTA ROSA: experiências de um mestre pedreiro pardo e pernambucano no oitocentos” de Marcelo Mac Cord, para mostrar aos alunos as histórias que muitas vezes são “esquecidas” ou até que não é possível incluir no planejamento escolar, na tentativa de continuar mostrando uma história dos vencidos. O texto Rebeliões na senzala de Moura (1981) foi um dos primeiros no século XX a desconstruir a ideia do povo negro enquanto submisso e que, como já era costumeiro, um povo que não se importava com sua situação de cativo. O autor apresenta as questões das rebeliões de forma sistemática, esclarecendo os fatos históricos e como as organizações em grupo eram importantes para o processo abolicionista e libertário. Segundo Angela Alonso (2011), no texto “Associativismo avant la lettre -as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista”, nos mostra a veridicidade da sociedade do Brasil no século XIX, assim como Moura (1981) a autora desmonta uma visão eurocêntrica que sempre se perpetuou nos livros didáticos, em especial, sobre a abolição dos escravos, que enfatiza a figura da princesa Isabel, regente no Brasil em 13 de maio de 1888, data da abolição. O texto de Marcelo Mac Cord (2014) intitulado “Francisco José Gomes de Santa Rosa: experiências de um mestre pedreiro pardo e pernambucano no Oitocentos” retrata de forma particular a trajetória de vida de um artesão e mestre de obras, ao mesmo em que, destaca sua luta pelo trabalho e para manter um status, já que a sociedade no Brasil no século XIX desprivilegiava a classe baixa e consequentemente, o povo negro. Não podemos esquecer as formas como a sociedade negra foi por muito tempo representada em TV, rádio, jornais, revistas, na mídia como um todo. Articulando com a formação docente, se faz necessário preparar professores de história capazes de aproximar a africanidade o mais próximo possível da realidade dos educandos. 465 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Durante a formação de professores e a formação continuada é necessário incluir textos mais atualizados e que mostrem uma nova realidade e contexto no ensino da História da África. 3 O Abí Axé Egbé e a formação continuada de professores no Sertão O Campus do Sertão iniciou suas atividades acadêmicas no dia 15 de março do ano de 2010 como planejado. A vinda da Universidade muda a sociedade, visto que “antes da instalação do Campus do Sertão o acesso ao ensino superior era limitado as pessoas que tinham oportunidade e condições de sair do munícipio para ir em busca de uma formação profissional” (FIRMINO, 2018, p. 10), ou seja, além de contribuir com a economia da cidade, possibilita novos cursos de formação profissional, tendo em vista que está cada dia mais difícil aos cidadãos encontrarem emprego fixo, aos que possuírem ensino superior as possibilidades também aumentam. No sertão a formação continuada dos professores de História acontece com o apoio do Grupo de Cultura Negra do Sertão e Equipamento Cultural “Abí Axé Egbé”, criado no ano de 2013 enquanto “projeto de extensão acadêmica (...) como uma oportunidade a mais de construir saberes acerca da história e cultura afro-brasileira no Campus Sertão” (GOMES, 2019, p. 23). No grupo de pesquisa os integrantes e convidados podem discutir textos científicos, ao mesmo em que problematizam as experiências negras no Brasil e buscam o tempo todo acabar com o preconceito e racismo ainda muito presente na sociedade. Fonte: Google imagens: Slogan do grupo. De acordo com Gomes (2019 p. 23), O grupo também promove um evento voltado à formação de professores do Sertão para relações étnico-raciais (Ciclo de Formação Docente do Abí Axé 466 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Egbé), além de realizar oficinas itinerantes de dança, capoeira, percussão, estética negra, contação de histórias africanas, artesanato, história e cultura afro-brasileira e enfretamento ao racismo religioso em escolas e instituições públicas. Mediante a formação de professores467, é primordial o diálogo das escolas com a Universidade Federal de Alagoas (UFAL) – Campus do Sertão, afim de aprimorar os conhecimentos e promover formação continuada ao corpo docente468. As formações que são promovidas pelo grupo almejam preparar os professores para ministrar aulas sobre a temática e mostrar em sala de aula e/ou ambiente escolar a exiguidade ainda existente. O Abí Axé Egbé publica no ano de 2019 seu primeiro livro intitulado “Ser(tão) negro com o Abí Axé Egbé: estudos e pesquisas interdisciplinares sobre as presenças negras no sertão alagoano” com o objetivo de continuar ajudando os docentes em sala de aula. O livro contém artigos que foram pensados e organizados por integrantes do grupo, entre eles: professores, mestrandos, doutores, discentes (dos cursos de pedagogia, matemática, história, geografia, engenharia). Fonte:https://ufal.br/ufal/noticias/2019/11/abi-axe-lanca-livro-sobre-presenca-do-negro-nosertao-alagoano Link de inscrição utilizado no II Ciclo de Formação Docente e cronograma do evento: https://doity.com.br/abiaxe As formações em escolas e instituições públicas também contam com a participação dos discentes e de toda comunidade. 467 468 467 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Desde ano 2020, o grupo realiza formação continuada de professores através dos meios de comunicação, utilizando redes sociais como: Instagram469 e Youtube470, onde as gravações ficam salvas, para que deseje visualizar. Devido a pandemia e não sendo possível encontros presencias, seguindo as medidas de segurança, o Abí Axé garante a continuidade das formações através de lives. 4 Conclusão Conclui-se que pensar o ensino de História e todas as suas demandas hoje é entender que formação docente perpassa por inúmeras mudanças ao longo do tempo, mudanças essas que buscam acompanhar o desenvolvimento social. Como observamos, a formação dos professores de História foi por muito tempo voltada para alcançar objetivos políticos. Não podemos negar que a educação muitas vezes se perpetua em torno do Estado, por esse motivo, durante governos ditatoriais a formação e o ensino de História como um todo precisou se adaptar as novas necessidades. Assim como ocorreu com o surgimento de leis e normas voltadas para a formação docente. Hoje a formação de história acontece de inúmeras maneiras; no alto sertão alagoano o curso de história tem uma colaboração do equipamento cultural da UFAL que forma professores de todas disciplinas sobre a História e Cultura da África, sendo esse um tema interdisciplinar, podendo ser utilizado na sala de aula formas variáveis. Por fim, percebemos que a formação docente, seja ela inicial ou continuada almeja sempre o desenvolvimento e atender as demandas sociais. 5 Referências ALONSO, Angela. Associativismo avant la lettre -as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista. Sociologias vol.13 no.28 Porto Alegre Sept./Dec. 2011. ALVES, Dirley Rocha; SILVA, Sara Oliveira e; LIMA, Vitor Rafael Monteiro de. 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Objetiva-se com isso compreender uma parte das visões de mundo que permeiam o Movimento de Mulheres Camponesas no Brasil. Palavras-chave: Movimento de Mulheres Camponesas; Feminismo camponês popular; História Agrária. Introdução Durante a década de 1980, no Brasil, surgiram vários movimentos autônomos de mulheres que possuíam objetivos comuns. Entre esses movimentos estavam àqueles ligados à luta das mulheres camponesas. Nasceram como uma resposta à tentativa do Estado de implantar um modelo desenvolvimentista e excludente. Esse modelo fez com que o Estado se tornasse um aliado no fortalecimento do agronegócio, financiando obras de infraestrutura, reduzindo impostos para os produtos destinados à exportação, liberando o cultivo de sementes transgênicas, oferecendo empréstimos e renegociando dívidas de grandes proprietários rurais (GADELHA et al, 2017, p. 181-184). Todo esse “desenvolvimento” foi cobrado dos trabalhadores, especialmente os rurais. Pode-se citar ainda a chamada Revolução Verde, que suscitou a organização de movimentos sociais que reivindicavam a reforma agrária. Como bem Doutoranda em História na Universidade Federal do Paraná, na linha de pesquisa Intersubjetividade e Pluralidade: Reflexão e Sentimento na História. Possui mestrado em História pelo PPGHIS- UFPR (2020). Graduação em História - Licenciatura e Bacharelado pela UFPR (2016). 471 471 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X aponta Isaura Conte (2013, p. 59): “Terra e território são fatores fundamentais que fazem parte da identidade do povo campesino, pois é por meio deles que se possibilita a própria (re)produção da vida/cultura”. Neste período, a organização das mulheres camponesas se deu por meio da influência de setores progressistas da Igreja, principalmente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) (CINELLI, 2013, p. 39). Um dos frutos desse diálogo entre trabalhadoras rurais e igreja foi o Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA/SC) que teve início em julho de 1981, em Itaberaba – Santa Catarina (na época distrito do município de Chapecó). A fase inicial desse movimento se deu em torno da conquista de agricultores e agricultoras da direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Chapecó. As mulheres, juntamente com religiosos e agentes de pastoral, definiram os rumos de seu movimento próprio (SALVARO; LAGO; WOLFF, 2013, p. 80). Outro exemplo é o Movimento Popular de Mulheres do Paraná (MPMP), que surgiu em 1981, contando com a participação de mulheres tanto urbanas quanto rurais. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), bem como agentes de pastoral, também tiveram papel decisivo na criação do movimento (GADELHA et al, 2017, p. 186-187). Em 1986, em Barueri (SP) ocorreu o Encontro Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais – sendo essa a primeira vez que camponesas se reuniram em âmbito nacional para trocar experiências. A partir do encontro as mulheres definiram uma estrutura organizativa que partia das comunidades rurais, passando pelas coordenações municipal, estadual, regional e chegando, por fim, na articulação nacional. Depois disso foram realizados vários outros encontros que desembocaram, em 2000, no primeiro acampamento nacional de mulheres trabalhadoras rurais. Esses acampamentos foram espaços ricos de discussões que possibilitaram a criação do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Assim sendo, em 2004 o MMC foi consolidado no Brasil, unificando vários grupos estaduais. Sua ação, desde o princípio, se deu em torno do objetivo de libertação das mulheres, da construção de um projeto de agricultura agroecológica e da transformação da sociedade. O Movimento de Mulheres Camponesas pode ser caracterizado como um movimento camponês, de classe, feminista e autônomo (CINELLI; JAHN, 2011, p. 87). Além disso, constitui-se como o primeiro movimento autônomo de mulheres camponesas do Brasil. 472 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Os diversos movimentos autônomos de mulheres trabalhadoras rurais possuíam lutas e pautas muito semelhantes, mas cada um tinha bandeiras, lemas, diferentes. Havia a necessidade de uma identidade que unisse esses movimentos no Brasil como um todo. Dessa forma, em 2004 ocorre o Congresso de consolidação do MMC - Brasil (Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil), de 05 a 08 de Março, com a participação de 1.400 mulheres de 14 estados (GADELHA et al, 2017, p. 191). Considerando os apontamentos acima, o objetivo geral deste trabalho é fazer uma análise do livro Feminismo camponês popular: reflexões a partir de experiências do Movimento de Mulheres Camponeses, publicado em 2020, a partir de um esforço coletivo de militantes e pesquisadoras do Movimento de Mulheres Camponesas. Busca-se compreender as visões de mundo que permeiam o MMC a partir de três eixos temáticos: trabalho, violência e feminismo. Os eixos foram escolhidos considerando que sua temática se repete, diversas vezes, ao longo do livro mencionado. Estrutura da fonte analisada O livro Feminismo camponês popular: reflexões a partir de experiências do Movimento de Mulheres Camponesas, tomado aqui como fonte, foi publicado em 2020 pela editora Outras Expressões, que faz parte da Expressão Popular. Foi organizado por Adriana Maria Mezadri472, Justina Inês Cima473, Noeli Welter Taborda474, Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto475 e Zenaide Collet476. O selo Outras Expressões é dedicado a publicações de produções sobretudo acadêmicas. Conta com um Conselho Editorial, formado por especialistas de diversas áreas, que garante ao selo reconhecimento nas instituições acadêmicas. Além disso, um dos critérios para publicação é o compromisso do proponente em cobrir todos os custos de produção do Graduanda em Educação do Campo – Ciências da natureza. É militante do MMC. Graduada em Pedagogia e Pós-Graduada em Filosofia. É militante do MMC. Graduada em Pedagogia e História pela Uninter. Aluna do curso de Pós-Graduação em Metodologia do Ensino de História na Uninter. É militante do MMC. Doutora em Desenvolvimento Regional. Mestre em História e Ciência Sociais. Especialista em Educação em Direitos Humanos e História no Brasil República. Graduada em Pedagogia. É militante do MMC. Graduada em História pela Unijuí e Geografia pela Uniasselvi. Mestra em Educação pela Unochapecó. É professora e militante do MMC. 472 473 474 475 476 473 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X livro. Essa informação é importante para que possamos compreender o esforço das mulheres do MMC em produzir e publicar suas ideias. Logo na apresentação do livro podemos compreender seu objetivo principal: Ao ler o livro, será possível ouvirmos as vozes das mulheres camponesas de nosso país. Diferentemente do que tem ocorrido com os registros da história oficial, escrita por “vencedores”, homens brancos, abastados e que negaram às mulheres, especialmente às camponesas, o direito de estudar e escrever sobre suas vidas e trajetórias. São 13 textos que trazem alguns elementos conceituais e teóricos, mostrando a face oculta e revelada das mulheres camponesas no MMC (MEZADRI, et al, 2020, p. 7, grifo nosso). Tratando especificamente sobre a estrutura do livro analisado, ele contém 189 páginas e, além da apresentação e do prefácio, possui 13 artigos. Esses artigos falam sobre a história do Movimento de Mulheres Camponesas, sobre a história do campesinato no Brasil, sobre mulheres indígenas, sobre feminismo, antirracismo, agricultura, alimentação, trabalho, violência, economia, entre outros temas. Destaca-se, contudo, os eixos temáticos trabalho, violência e feminismo. Como já mencionado anteriormente, são questões que se repetem em diversos artigos que compõem o livro. Acredita-se que apreender estes eixos auxilia na compreensão de uma parte das visões de mundo que permeiam o MMC. Sobre as visões de mundo Antes de adentrar nos eixos temáticos propostos se faz necessário delimitar o que são as visões de mundo e de que modo é possível apreendê-las. Para tal, considera-se as intuições teóricas do filósofo húngaro Karl Mannheim, que escreveu o artigo “Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation” (Contribuições para a teoria da interpretação das visões de mundo). Ao invés de propor uma definição substantiva do conceito de visões de mundo, Mannheim aponta alguns questionamentos. O primeiro deles é o de indagar qual a tarefa do pesquisador do campo da história da cultura ao determinar as visões de mundo de uma época, ou ao tentar explicar as manifestações parciais de uma área de estudo a partir dessa totalidade. O segundo, indaga se essa totalidade nos é dada, e se nos é dada, como ela se relaciona com a realidade de outros campos da história da cultura. Ainda, o autor destaca que essas visões de 474 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mundo nos são dadas sem que possamos explicá-las de maneira teórica (WELLER et al, 2002, p. 378). Para Mannheim, as visões de mundo – ou Weltanschauung – são o resultado de uma série de vivências ligadas a uma estrutura que, por sua vez, constituem a base comum das experiências que perpassam a vida dos sujeitos (WELLER et al, 2002, p. 378). Assim sendo: As visões de mundo estão situadas entre os níveis social e espiritual. Elas não consistem, portanto, nem na totalidade das formações espirituais presentes em uma determinada época nem na soma dos indivíduos que pertencem a essa época, mas na totalidade de uma série de vivências/experiências interconectadas estruturalmente que podem derivar, tanto da formação de grupos sociais como das criações espirituais (WELLER et al, 2002, p. 379). Em resumo, as visões de mundo são construídas a partir das ações práticas e pertencem ao campo do conhecimento ateórico. Portanto, a compreensão das visões de mundo e das orientações coletivas de um grupo só é possível a partir da explicação teórica desse conhecimento ateórico. No livro Feminismo Camponês e Popular: reflexões de experiências do Movimento de Mulheres Camponesas, podemos compreender que: O feminismo camponês popular não nasce das teorias, dos centros acadêmicos ou de grandes discursos políticos, mas nasce das experiências das mulheres camponesas por transformações concretas na vida delas, do campesinato e da classe trabalhadora. Uma prática cotidiana que está motivada por um pensamento político, que vai sendo apreendido nos processos de formação e estudo político ideológico da Educação Popular, da Teologia da Libertação, do feminismo popular e revolucionário, dos clássicos sobre o campesinato, do pensamento crítico ao modelo capitalista de sociedade e apontando a sua superação para a construção de uma sociedade socialista (LORENZONI; SEIBERT; COLLET, 2020, p. 13, grifo nosso). Esse trecho demonstra como as visões de mundo do MMC partem de um conhecimento ateórico e prático. Nesse sentido o livro analisado se mostra como uma fonte 475 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X importante já que traduziu teoricamente conhecimentos que estavam dissolvidos na práxis do MMC. Para Wivian Weller: [...] a compreensão das visões de mundo e das orientações coletivas de um grupo só é possível através da explicação e da conceituação teórica desse conhecimento ateórico (...) O papel do(a) pesquisador(a) passa a ser, então, encontrar uma forma de acesso ao conhecimento implícito do grupo pesquisado, explicitá-lo e defini-lo teoricamente (WELLER, 2005, p. 262). Para tornar as visões de mundo um objeto de análise científica, Mannheim apresenta um método de interpretação que caracteriza como documentário. Ademais, as visões de mundo podem ser compreendidas quando analisadas transversalmente e em relação a um problema específico, constituindo-se dessa forma como objeto teórico. No caso desta pesquisa, os problemas específicos selecionados, ou os eixos temáticos norteadores, são trabalho, violência e feminismo. Eixo temático 01: trabalho Para as militantes do MMC a agricultura começou pelas mãos e observações das mulheres. Elas são as responsáveis por grande parte da produção de alimentos, pela reprodução da vida e também são guardiãs de sementes e portadoras de grande conhecimento sobre plantas medicinais. Assim sendo, o conhecimento, perpetuado ao longo da vida, pertence às mães e avós das mulheres camponesas. Essa questão ressignifica a experiência de luta do MMC, já que agora é de posse e responsabilidade dessa geração de mulheres levar adiante essas práticas em suas unidades de produção. Nesse debate surge a agroecologia: uma ciência capaz de compreender as práticas desenvolvidas pelas camponesas ao longo do tempo (LIMA; PEREIRA, 2020, p. 87, 92, 94). As mulheres camponesas manufaturam os alimentos no campo. Também plantam e colhem, sempre trabalhando muito e se preocupando com a conservação e multiplicação das sementes crioulas. Apesar disso, essas mulheres não são reconhecidas, valorizadas e remuneradas pelos seus trabalhos. No momento da comercialização, as mulheres são excluídas – são os homens que, na maioria das vezes, fazem as relações com os mercados para venda. 476 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Portanto, as mulheres camponesas não acessam os mercados nem os recursos da venda da produção que elas mesmas realizaram (CAVALCANTI; SILVA; KREFTA, 2020, p. 120). Esse sistema patriarcal faz circular uma ideia de que as mulheres camponesas não trabalham, apenas ajudam seus companheiros. Elas não são remuneradas pelo trabalho na roça, na casa, no cuidado com a família, na produção nos quintais, na lida com animais, etc. (ALMEIDA; JESUS, 2020, p. 76). O não reconhecimento do trabalho produtivo da mulher contribui para a precarização de sua condição enquanto um sujeito de direito, deixando-as à margem de direitos como seguridade social, atendimento à saúde, previdência social, etc. Na legislação previdenciária as trabalhadoras e trabalhadores do campo começaram a ser mencionados em 1963. Ainda assim, os beneficiários eram apenas os “chefes de família”, ou seja, os homens. Essa questão invisibilizava o trabalho da mulher e da juventude, o que reforça o sistema patriarcal e machista no campo. A mulher só teria direito à benefícios quando se tornasse viúva – uma visão que só enxergava o homem como trabalhador rural, enquanto a mulher seria sua dependente. Essa questão reforçava, ainda mais, o imaginário de que as camponesas eram incapazes, que não trabalhavam e apenas ajudavam seus maridos. Por esse motivo, os movimentos autônomos de mulheres, bem como as camponesas, atuaram fortemente na luta pelo reconhecimento da profissão de trabalhadora rural pelo Estado. Em 1986 iniciaram discussões sobre emendas populares para garantir o direito das trabalhadoras rurais na Constituição. Entre suas reivindicações estavam a aposentadoria para a mulher trabalhadora rural aos 45 anos e, para os homens, aos 55 anos. Também pediam a reforma agrária, a melhoria nas escolas rurais, preço justo dos produtos e justiça nos casos de violência contra a mulher. A conquista da profissão de trabalhadora rural ocorreu somente na Constituição de 1988. A luta por direitos também perpassou a luta por documentos de identificação própria como RG e CPF. Essa luta foi assumida pelo governo Lula, em 2004, que instituiu o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural. A conquista de documentos representou uma busca pela emancipação das mulheres já que, até aquele momento, elas apresentavam os documentos de um homem – pai ou marido. Para as camponesas, ter sua própria documentação vai além de ter acesso a direitos, significa terem uma identidade e serem donas de sua própria história (MUNARINI; CINELLI; CORDEIRO, 2020, p. 35-38). Apesar do não reconhecimento da mulher camponesa enquanto trabalhadora os impactos de seu trabalho são considerados como importantes pelo MMC e vão além das suas 477 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X unidades de produção. As mulheres possuem uma visão mais ampla e se preocupam com a comunidade ao redor. Suas ideias e práticas são partilhadas com a família e a comunidade. Além disso, geralmente são as mulheres que incentivam a cooperação, a fraternidade e o desenvolvimento sustentável. Por esse motivo o Movimento de Mulheres Camponesas defende ser necessário uma maior visibilidade ao trabalho da mulher camponesa que é essencial para a manutenção e desenvolvimento da agricultura sustentável e também para a enfrentar a divisão sexual do trabalho (LIMA; PEREIRA, 2020, p. 94). Eixo temático 02: violência O próprio não reconhecimento do trabalho das mulheres camponesas, citado no eixo acima, é uma forma de violência. Mas não é a única que essas mulheres enfrentam. Múltiplas são as formas de violência que perpassam o cotidiano das camponesas. Pode-se citar aqui a violência de gênero, a violência pela sobrecarga de trabalho, a violência pela desvalorização e condição social, a violência física, a violência moral e verbal, a violência psicológica, a violência sexual, a violência pelo uso de agrotóxicos, a violência dos conflitos por terra e território, a violência institucional, patrimonial, estrutural, etc. (LORENZONI; SEIBERT, COLLET, 2020, p. 26). No depoimento da camponesa Lucimar podemos ler: “A mulher que mora no campo, ela tem a vida muito isolada. Se bater. Se gritar. Se chorar. Se espernear ninguém ouve” (LORENZONI; RODRIGUES; SANTOS, 2020, p. 148). A fala de Lucimar explicita outra questão relacionada à violência: o isolamento da mulher camponesa. Ao se preocuparem com essa questão, em 2008, durante a V Conferência Internacional da Via Campesina, o MMC coordenou a campanha Basta de violência contra a mulher camponesa (LORENZONI; SEIBERT, COLLET, 2020, p. 26). “Assim, o tema violência faz parte das lutas e mobilizações locais, nacionais e internacionais, em um esforço coletivo de reflexão junto às mulheres e suas famílias sobre esse fenômeno que aniquila os direitos, mata e destrói a vida de milhares de mulheres” (LORENZONI; RODRIGUES; SANTOS, 2020, p. 153). Para o MMC é no processo de acesso à renda que as mulheres camponesas vão se libertando da discriminação, da desvalorização e das situações de violência doméstica. Ao se tornarem independentes financeiramente, elas constroem sua autonomia, sua capacidade de decidir os rumos de suas vidas pessoais e também de sua produção. “Nesse sentido 478 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X entendemos que a geração de renda e o acesso dessa renda pelas mulheres é elemento fundamental na luta do MMC, para promover a libertação das camponesas” (CAVALCANTI; SILVA; KREFTA, 2020, p. 121). O trabalho de combate à violência do Movimento de Mulheres Camponesas se fundamenta sob três aspectos: 1) organizativo, 2) estudo e 3) formação. Para o movimento é importante que as mulheres, em grupo ou individualmente, busquem conhecimento para que possam agir, exercer a cidadania e se engajarem na luta para transformar a sociedade. “Esse tripé é essencial para nós mulheres identificarmos e reconhecermos as formas de violência, bem como construirmos estratégias de luta para enfrentar e, dessa forma, fazer o processo de desnaturalização” (LORENZONI; RODRIGUES; SANTOS, 2020, p. 155). Eixo temático 03: feminismo O feminismo camponês assumido pelo MMC do Brasil é construído em pareceria com as lutas de mulheres de organizações mistas, de forma especial, junto à Via Campesina. Avança-se coletivamente e se dá força entre organizações de mulheres em pautas e lutas conjuntas. Por isso, para o MMC, o feminismo camponês não é individualizado, ele precisa ser cada vez mais coletivizado para ter mais força frente à sociedade capitalista-patriarcal, individualista, racista, homofóbica, e sabe-se que há muito a construir (CONTE, 2013, p. 63). O MMC se assume como um movimento feminista desde 2004, com a consolidação do movimento nacional (CINELLI; JAHN, 2011, p. 90). Como já dito anteriormente, o feminismo camponês popular não nasceu das teorias, da academia ou dos grandes discursos políticos – ele nasceu das experiências das mulheres camponesas que buscavam transformações concretas na sua vida, no campesinato e na classe trabalhadora (LORENZONI; SEIBERT; COLLET, 2020, p. 27). Para as militantes do MMC o próprio termo “camponesas” possui uma marca de resistência, já que reafirma um compromisso histórico com mulheres como Elizabeth Teixeira que teve um papel imprescindível na luta das mulheres do campo (SILVA; SANTOS, 2020, p. 70). O Movimento de Mulheres Camponesas possui bastante convicção de que sua luta é, e sempre foi, feminista. Também de que seu movimento faz parte da luta pela transformação da 479 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sociedade e da luta de classe. A sociedade que o MMC busca transformar é: 1) capitalista, já que vive da exploração do trabalho e dos bens naturais, tentando transformar tudo em mercadoria (as sementes, a terra, a vida e os corpos); 2) patriarcal, porque se organiza sob a divisão sexual do trabalho, que hierarquiza homens e mulheres, tratando as últimas como propriedade; 3) racista, pois prevalece a atribuição de superioridade dos brancos em detrimento de outros povos (especialmente os negros e indígenas), essa atribuição de superioridade legitima as violências e discriminações, utilizando argumentos arcaicos e coloniais que reverberam até os dias de hoje. “Portanto, é coerente afirmarmos que esse sistema se encontra amparado em um nó entre capitalismo, patriarcado e racismo” (ALMEIDA; JESUS, 2020, p. 75-76). Portanto, outro fator que permeia o feminismo do MMC é que ele deve contemplar a diversidade das mulheres camponesas, levando em consideração a diversidade do campesinato brasileiro. Por isso, o MMC propõe uma abordagem antirracista, pois as mulheres negras e indígenas fazem parte desse movimento que se insere em um país assimétrico entre povos, raças/etnias e culturas (ALMEIDA; JESUS, 2020, p. 76-77). Na construção do Feminismo Camponês e Popular, temos a convicção de que só avançamos em uma sociedade socialista se todas as mulheres forem livres, mas, além disso, temos a compreensão de que existem assimetrias em como as mulheres vivenciam as explorações e violências nesta sociedade de classes. Não tratamos a questão racial como um tema ou como algo isolado, mas imbuído na base de exploração neste sistema injusto (ALMEIDA; JESUS, 2020, p. 84). As mulheres do MMC, foram, ao longo de seu percurso, refletindo sobre a cultura patriarcal, questionando suas “verdades” instituídas que colocam a mulher como sujeito inferior na sociedade. Ao compreender o sistema patriarcal como uma construção, estas mulheres contemplaram a possibilidade de que ele poderia ser destruído. Dessa forma, as militantes do MMC passaram a questionar os papéis designados para homens e mulheres. Também passaram a buscar formas de sair de uma condição submissa (CINELLI; JAHN, 2011, p. 89). Uma das maneiras de enfrentar esse modelo de sociedade que as mulheres organizadas encontraram no decorrer da história 480 e que perpassa as Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X lutas, a organização e a formação do movimento social aqui pesquisado é a organização coletiva no feminismo. Ao tomarem contato com teorias e práticas feministas, as camponesas resistem à cultura imposta a homens e mulheres e que as convenceu da inferioridade feminina (CINELLI; JAHN, 2011, p. 89). Por meio do feminismo as mulheres do MMC conseguiram sair do papel secundário de acompanhar seus maridos em reuniões, de ajudar na coleta das ofertas na igreja, de anotar nomes em atas de reuniões. Passaram a ocupar o papel de lutar lado a lado de seus companheiros, cultivando a igualdade, o respeito de gênero – enfrentando as raízes do preconceito sexual (SILVA; SANTOS, 2020, p. 71). Por fim, na construção do Feminismo Camponês e Popular, as mulheres do MMC o relacionam sempre com suas próprias vidas no campo e com as especificidades de ser do campo. Para elas, esse feminismo é o respeito ao seu modo de vida, baseado em um projeto de agricultura agroecológica, que busca construir as bases para uma sociedade sem classes, socialista e feminista. Portanto, a luta por autonomia e o reconhecimento de seu trabalho são partes essenciais na construção de seu feminismo e de sua libertação (ALMEIDA; JESUS, 2020, p. 76). Considerações finais Resgatar a história dos movimentos sociais é tarefa essencial para que possamos compreender nossa realidade atual, de como nossos direitos foram conquistados. Compreender as lutas que foram travadas e todo o processo de construção dessas lutas nos revela que nenhum direito, transformação social, ocorre se não nos mobilizamos e organizamos socialmente. Conservar viva as histórias de lutas é uma arma para que as gerações futuras compreendam que as vitórias contra a discriminação e exploração em nossa sociedade foram feitas à custa de muito esforço, organização e resistência. Dessa forma, a história, mais que revelar faces ocultas de nossa realidade cotidiana, inspira, fortalece e forma tantos outros sujeitos que se conscientizam que não só 481 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X podem, mas devem, ser os sujeitos de sua própria história (GADELHA et al, 2017, p. 181). Ainda que se tenha apresentado as visões de mundo do MMC divididas em eixos temáticos é possível perceber que todas as questões estão conectadas, formando uma teia de ideias. Para que se enfrente a divisão sexual do trabalho é necessário combater a violência e construir um movimento feminista. Para combater a violência é necessário o reconhecimento da mulher enquanto trabalhadora rural, bem como discutir sobre o sistema patriarcal que as cercam. Para construir o feminismo camponês popular é necessário pautas como o trabalho e o combate à violência. Nesse sentido, acredito que os eixos temáticos escolhidos representam uma tríade que ajuda a compreender as visões de mundo que permeiam o MMC. Por meio deles é possível transmitir teoricamente esse vasto conhecimento ateórico das mulheres campesinas e apreender, mesmo que sucintamente, a importância desse movimento para a construção da sociedade brasileira. Referências bibliográficas ALMEIDA, Itamara; JESUS, Cleidineide Pereira de. Feminismo camponês e popular: uma abordagem antirracista. In: MEZADRI, Adriana Maria, et al. 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Buscou-se ao longo desse texto mapear obras de historiadores como: Bloch, Burke, Albuquerque, dentre outros, tendo como finalidade, observar o modo como esses autores citam as mulheres, como é posto o conceito de História e de que forma tais informações se mesclam com a estrutura da sociedade que temos. Como resultado, descobriu-se que tais narrativas historiográficas dava uma representação e papel dominante ao gênero masculino. Tais questões de gênero se encontram representadas na escrita da História, mediada pelos historiadores através das estruturas socioeconômicas, políticas e culturais que regem o lugar social no qual residimos. Essa representação/narrativa ainda interfere na sociedade, no que diz respeito ao forte enraizamento do machismo, patriarcado, e os vários tipos de violência ao gênero feminino, o que acaba por impossibilitar a mulher de gozar de sua liberdade, do seu direito de fala, de ser digna de respeito, de ser julgada por suas escolhas, suas falhas e não pelo simples fato de ser mulher. Palavras-chave: Historiografia, Gênero, Mulher, Sociedade. Introdução Quando refletimos sobre o conceito de História, logo pensamos em sua conexão com o passado, o presente e o futuro. Quantas narrativas nos são apresentadas, e quantas definições nos são dadas. O que nos vem à cabeça quando a ouvimos? Era uma vez... Ou, há muito tempo atrás... São diversos os contos e historinhas que ouvimos durante nossa infância, dentre outras façanhas da imaginação humana. Mas não é sobre essa História que iremos nos debruçar. Afinal, qual seria a importância da História? Mostrar-nos uma fantasia com inúmeras possibilidades fora da realidade, ou nos mostrar a verdade nua e crua? E, sem mais delongas, Graduada em História pelo Centro Universitário Internacional UNINTER e mestranda pelo Programa de PósGraduação em História PPGH da UFAL. 477 484 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X para que nos serve essa tão preciosa História? Seria para conhecer nossa própria História? E de quem seria essa história? Mas, o ponto que queremos chegar no decorrer deste artigo é a forma como a mulher foi e vem sendo representada na historiografia, qual seu papel e qual sua visibilidade nos caminhos dessa mesma História. É sabido que a mulher existiu nesse período, pois senão, não teríamos tamanha nação. Logo, acabamos de associar a mulher à procriação. Por quê? Por sua função e existência está apenas voltada ao procriar? Por mais que a sociedade tenha suas mudanças, no quesito de: técnicas de pesquisa, dos estudos feministas, dos estudos historiográficos, e todos os sujeitos que contribui de alguma forma para uma sociedade livre de preconceitos, de estereótipos, violência, exploração, dentre outros. A sociedade, ainda, infelizmente, associa a mulher ao ser que é responsável apenas pela reprodução humana, a matriarca do lar. Desenvolvimento São inúmeros os questionamentos que contribuem para chegarmos à História que temos hoje. É importante lembrar que a escrita da História assim como todos nós, passou e vem passando por mudanças, tanto em seus conceitos, quanto em seus métodos. Burke (1992, p. 10-15), tratando da escrita da História, resume a História tradicional e a nova História em seis pontos: listemos a tradicional. Primeiro: “De acordo com o paradigma tradicional, a história diz respeito essencialmente à política”. Em segundo lugar: “uma História essencialmente voltada para uma narrativa dos acontecimentos”. Em terceiro lugar: “a História oferecia uma visão de cima... concentrada nos grandes feitos dos grandes homens, estadistas, generais ou eclesiásticos”. Em quarto lugar: “uma História que suas fontes eram apenas os documentos oficiais”. Em quinto lugar; “uma História com poucos questionamentos”. E em sexto lugar: “não apresentava todos os lados da História, ou seja, todos os fatos que estavam por trás dos acontecimentos”. É percebível que a metodologia teórica da História tradicional é amplamente voltada ao discurso do gênero masculino um discurso hierárquico, filtrando qual escrita lhe cai melhor. Enraizando culturas e ideologias de poder ao gênero masculino, propiciando uma submissão do gênero feminino. Os padrões culturais e ideológicos de cada época contribuíram para a formação/construção de uma mulher, sensível, amorosa, que tinha por finalidade cuidar da 485 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X casa, dos filhos e do marido, a então matriarca do lar. A cultura, em um de seus muitos conceitos, engloba esse fazer e desfazer de funções e papeis. Assim, como diz Eagleton: Se a palavra «cultura» descreve uma decisiva transição histórica, ela também codifica várias questões filosóficas fundamentais. Num único termo, os contornos de questões como liberdade e determinismo, actividade e resistência, mudança e identidade, o que é dado e o que é criado, surgem difusamente. Se cultura significa a procura activa de crescimento natural, a palavra sugere, então, uma dialéctica entre o artificial e o natural, aquilo que fazemos ao mundo e aquilo que o mundo nos faz (EAGLETON, 2003, p. 12). Podemos, assim, dizer que a cultura dá liberdade ao homem e aprisiona a mulher? Ela modifica, ou podemos dizer, cria papeis, ou dá forma à rituais cabíveis ao homem e a mulher? Seria errôneo dizer que a cultura não teve sua participação nos diversos estereótipos que rodeiam na maneira como a mulher deve ser e se comportar perante a sociedade e ao homem? Somos o que somos, devido à cultura, as matrizes ideológicas que nos cercam. Nosso modo de agir e se comportar estão relacionados ao que nos foi passado, mediante a cultura dos que conosco convivem, que passa agora a ser também nosso legado de transmissão, sendo, por vezes, submetidos a modificações, ou as mesmices. A História, como bem se sabe, não foi representada ou contada por mulheres, tais funções não eram cabíveis a elas. Se pegarmos obras de Heródoto e Tucídides, considerados os “pais da história”, não iremos nelas encontrar trechos voltados à mulher. Encontraremos Histórias bem detalhistas em relação a guerras, disputas de poderes e as inúmeras estratégias para conseguir a tão esperada glória. Deste modo, se formos também analisar os acervos históricos, ou até mesmo as produções historiográficas, vamos nos deparar com uma infinidade de homens; homens para cá, homens para lá. E, não estamos aqui querendo criticar as obras produzidas por eles, pois são elas que nos serviram e vêm servindo até os dias de hoje; inclusive, são essas mesmas obras que nos servem para analisar como a mulher foi e vem sendo apresentada por eles. Paremos, agora, para analisar algumas concepções de História segundo alguns autores. Conforme Koselleck: “[...] a “Historie”, como conhecimento, narrativa e ciência, é um fenômeno antigo da cultura europeia. Não há duvida de que a narração de histórias faz parte da 486 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sociabilidade dos homens” (KOSELLECK, 2013, p. 37). Quando Koselleck diz, “não há duvida” podemos dizer que seja porque desde o início dos tempos temos um mar de narrativas em que é dado aos homens todos os papeis, sendo eles os principais, ou, os coadjuvantes. Já em Bloch (1997) também é percebível, mais uma vez, uma narrativa que tem como objeto principal o homem: A história é busca, portanto escolha. Seu objeto não é o passado: "A própria noção segundo a qual o passado enquanto tal possa ser objeto de ciência é absurda.” Seu objeto é "o homem", ou melhor, "os homens", e mais precisamente "homens no tempo". (BLOCH, 1997, p. 24). A preocupação de Bloch é com o homem, é ele seu objeto de estudo. Já em Koselleck, era uma narrativa escrita para homens e contata por homens, sendo o gênero masculino o instrumento principal e destinatário da obra. Contudo, o homem ao qual autores se referem está relacionado ao ser humano. Como bem se sabe, o gênero homem e mulher ainda são, pode se dizer, temáticas recentes. Então, quando os autores colocam em suas escritas “o homem” é subtendido que eles estão se referindo ao gênero humano universal, o que pode provocar intrigas no uso apenas do gênero masculino, “o homem”, para quem não tem o conhecimento de que, ao se usar apenas o sentido de: o homem, como sendo o ser humano universal. Então, quando nos perguntamos a quem a História servia, ou de quem seria essa História, fica meio que evidente que o objeto principal do trabalho da História foi o homem, os homens que eram conhecidos por seus poderes e seus grandes feitos. É o homem que todos param para ouvir. É ele o ser livre e independente, é ele que tanto transforma a natureza e a molda de modo a satisfazê-lo. Logo mais adiante na obra “O conceito de História,” de Christian Méier, fica evidente que nas histórias prevalecia os interesses machistas/patriarcal presentes no lugar social, aos quais os historiadores da época estavam a vivenciar; lembrando que era uma História que se baseava nos contos da mitologia grega, dos povos antigos, dentre outros. É sabido que a História teve seus impulsos nessas pequenas narrações. Então, Christian Méier problematiza que: 487 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O próprio Heródoto diz que lhe interessa preservar “ aquilo que aconteceu a partir dos homens (rá ysvópeva éÇ ávQpchncov), e de grandes e admiráveis obras (êpyd) que foram apresentadas por gregos e por bárbaros”, bem como “ descobrir por que razão e por que culpa (Si rjv ahnjv) guerrearam entre si” (MÉIER, 2013, p. 42). Se a mulher não estava presente nessa escrita, nessa realidade, como podemos identificar seu papel social, sua forma de viver? Como ela era, como se organizava, como se sentia em relação à maneira a como a História estava sendo escrita? Se tinha vontade de participar destas façanhas, se participara e ficara silenciada, ou apagaram os seus vestígios? Enfim, são vários os questionamentos. Nós, historiadores e historiadoras, precisamos vasculhar camada por camada da construção histórica da sociedade, para obter algum vestígio que virá a solucionar algumas de muitas de nossas dúvidas. Mediante tamanhas dúvidas, Albuquerque (2005), em sua belíssima obra “A hora da Estrela: A Relação entre a História e a Literatura, uma questão de Gênero?” apresenta um jogo de palavras que faz nossas imaginações flutuarem, quando diz que; “Talvez a diferença entre a História e a literatura seja mesmo uma questão de gênero”. Dito isto, o autor mostra a relação de: História e literatura, uma voltada para a masculinidade e, a outra, para a feminilidade. Mas de gênero no sentido de que o discurso historiográfico pertenceria ao que na cultura ocidental moderna se define como sendo o masculino, enquanto a literatura estaria colocada ao lado do que se define como sendo o feminino. A história seria discurso que fala em nome da razão, da consciência, do poder, do domínio e da conquista. A literatura estaria mais identificada com as paixões, com a sensibilidade, com a dimensão poética e subjetiva da existência, com a prevalência do intuitivo, do epifânico. Só com a literatura ainda se pode chorar. A história masculinamente escavaria os mistérios do mundo exterior, iria para a rua ver o que se passa, a literatura, ficaria em casa, prescrutando a vida íntima, o mundo interior, femininamente preocupando-se com a alma, um mundo informe que está próximo do inumano (ALBUQUERQUE, 2005, p. 7-8). 488 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Certamente, nesta narrativa compreendemos como era definhado o papel da mulher na cultura ocidental moderna, e o porquê dela se definir como sendo masculina. Como exposto no início do artigo, a História narrava as ações dos homens, uma narrativa sobre o poder, e quem, historiograficamente era dono do poder? O homem! Logo, o homem seria o sujeito que tinha por natureza, deixar a sua zona de conforto e ir em busca de olhar o que se passa em sua volta, seria ele o ser forte e destemido que a História representa. E, na representação historiográfica, a mulher seria o ser que fica no lar preocupado com os afazeres domésticos. A mulher, para a cultura, seria a mãe zelosa que não pode, em hipótese alguma, desviar o olhar do seu lar. Posto isso, Albuquerque (2005, p. 8) apresenta uma segunda relação: Os homens, como a história, tenderiam a acreditar que a realidade é aquilo que vêem e se quedam pacificados a contemplar o mundo que construíram. Tudo o que perturba é afastado, dando origem a um mundo de superfícies nítidas. As mulheres, como a literatura, intuem que a realidade está sempre mais além ou aquém do que vêem e a buscam incessantemente, buscam um mundo que ainda estaria por construir, pois só vêem ruínas onde os homens enxergam construção. Albuquerque, dá a entender que o homem está relacionado à História porque ele tende a deixar o mundo ao qual ele construiu com uma superfície mais nítida, uma construção que seja vista e compreendida. Já as mulheres, como a literatura, ainda estão na busca dessa construção, estão na espera do mais, algo que seja belo para elas também. E, por fim, Albuquerque finaliza dizendo: A história, como o masculino, como o seu poder, como o tempo, seria o que permanece, a literatura, como o feminino, seria o que se substitui permanentemente, buscando habitar, ser nas brechas, nas fendas desta dominação secular, frinchas por onde o vento entra e a revolta pode se expressar, a raiva e o grito podem se manifestar.24 A literatura, como a mulher, teria a coragem de se perder, de errar, de se afirmar na queda, de ser como decaída.25 O realismo da história seria masculino, pois os homens são a realidade, é isso contra o qual se esbate a literatura, o feminino 489 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X inconformado com essa realidade que o alija, a procura de um outro mundo que só a mulher poderia compreender.26História e literatura, masculino e feminino,ainda inimigos, mesmo no amor (ALBURQUERQUE, 2005, p. 8). De todo modo, Peter Burke nos traz, em sua obra “História e teoria social” um arcabouço teórico referente à escrita da História, defendendo que a História foi criada sem se pensar na mulher. Para o autor, as mulheres ficavam invisíveis aos olhos dos historiadores, sendo por vezes abafadas. São em poucos documentos e artefatos históricos que encontramos vestígios de que a mulher estava de fato contribuindo para que a escrita da História ocorresse, contribuindo com a economia, com a política, com os movimentos sociais. Então, é percebível que essa mulher tinha voz, era vista, só não tinha seu próprio lugar na História, o tempo ao qual a história se passava não dava tais brechas. É com o destrinchar de uma nova História, com as mudanças vindas ao longo dos tempos, com novas perspectivas e novos métodos e o impulso do feminismo que vem se desenvolvendo para uma História das mulheres, tirando-as das zonas silenciadas e colocando-as a par dos fatos. Alguns anos atrás seria surpreendente, se não chocante, discutir a divisão entre homens e mulheres como exemplo de divisão entre papéis sociais. Se a idéia de que a masculinidade e a feminilidade são “construídas” socialmente está passando a ser considerada óbvia, a mudança é, em grande parte, consequência do movimento feminista (BURKE, 2002, p. 75). Para compensar tamanha omissão da escrita da História tradicional Burke diz que “as duas novas formas de História arriscam a perpetuar uma oposição binária entre elite e povo, em um caso, homem e mulher, no outro” (BURKE, 2002, p. 77). Mas será que ao colocar a mulher na escrita da História, graças às contribuições das feministas, que ao se questionarem sobre o seu lugar na sociedade, sobre o vazio de sua existência, não só na escrita, mas também em seu cotidiano, do ser invisível que éramos, será que ainda há tempo de reverter tamanhas omissões? Se a historiografia é escrita sobre os grandes feitos, e esses são citados por homens, então, seria a História masculina. A historiografia não narra uma História dos grandes feitos das mulheres, nem sequer lhe dá um papel glamoroso e audacioso de respeito e credibilidade, pois 490 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X suas teorias ainda não se permitiam fazer questionamentos, ou ditar o que propriamente caberia ao homem e a mulher no tempo ao qual estava situada. São falhas que os historiadores tendem a não mais cometer. Se formos classificar por classes sociais, cor e raça, o silêncio/ausência de representação ao gênero feminino veremos que há mudanças em cada uma delas, e não é à toa que portamos de um feminismo no plural, feminismos. Um feminismo que busca atender a cada uma das principais necessidades da mulher independente da raça, cor, classe social, identidade de gênero e orientação sexual. E se pararmos agora para analisar como a mulher era tratada no quesito cor, raça e classe social? Como seria olhar de forma diferente a indígena, mulher tida como selvagem, vista apenas para os prazeres sexuais dos homens brancos que aqui chegaram? E a mulher negra, explorada, tanto na agricultura como na vida doméstica e também tratada como um objeto sexual e sem valor, seria essa a imagem que vem se perpetuando até os dias de hoje? Como historiografar sobre a mulher branca, com algumas regalias, mas que também foi trazida ao Brasil como mercadoria sexual, para formar família com os homens brancos? E a mulher camponesa, que tem, por vezes, que fazer o que o homem faz, estando presente nos cultivos da agricultura, no cuidar do lar e dos filhos? Não é errôneo dizer que a miscigenação no Brasil é fruto de estupros. E, para completar, temos a mulher trans, vista como um ser anormal, mais uma vez marginalizada pelo homem e, infelizmente, pela própria mulher em algumas situações. Sobre essas circunstâncias históricas às quais a sociedade foi submetida, sendo esse ambiente, extremamente machista e autoritário, tornando o espaço de representatividade da mulher ainda inacabado, um espaço representativo que ainda é omisso e opressor, podemos dizer que chega a ser um faz de conta. Faz de conta que agora a mulher pode ocupar todos os lugares e que agora também tem o poder de falar e ser ouvida. Mas a verdade é que ainda estamos lutando por mais espaço, não somente de fala, mas também pelo direito de sermos vistas e respeitadas em qualquer espaço social. Com relação ao contexto no qual as mulheres estão inseridas na sociedade, vamos citar a forma como a sua imagem se encontra representada na política. Ali podemos mencionar um dos inícios dessas lutas conhecidas como “o movimento operário” bem mencionado nas obras de Michelle Perrot e, também temos “as sufragistas” pelo direito ao voto. Esses movimentos têm suas origens entre os séculos XVIII, XIX e se prolongam até os dias de hoje, e possibilitaram não só o direito ao voto, mas a representação no cenário político. E essa luta pelo espaço no ambiente político, que hoje é algo garantido por lei, ainda vem sofrendo 491 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X modificações na forma como essas leis vêm sendo aplicadas, visto que se tem uma parcela de representatividade crescente nos últimos anos, mas que não deixa de ter atropelos pela recusa dos homens de ter mulheres nesse contexto. É sabido que, no quesito “política” essa palavra demanda autoridade e poder, e falando em gênero, ela seria aplicada ao masculino, conforme analisamos no decorrer do texto, sendo o poder, por ordem, destinado ao homem. Com isso, ao adentrarmos no âmbito político, não somos respeitadas, pois, em primeiro lugar, somos mulheres e também porque somos consideradas frágeis, por ter como dever apenas o lar e os filhos. É assim que somos vistas, como uma espécie destinada apenas a reprodução e a um objeto sexual para saciar os desejos dos homens. Na página eletrônica da Câmara dos Deputados, constam alguns dados referentes a variados tipos de violência, aos quais as mulheres são submetidas quando se encontram no espaço político. Dentre os tipos de violências estão: 82-% das mulheres em espaços políticos já sofreram violência psicológica; 45% já sofreram ameaças; 25 % sofreram violência física no espaço parlamentar; 20%, assédio sexual; e 40% das mulheres afirmaram que a violência atrapalhou sua agenda legislativa (BRASIL, 2020). É nesse contexto que a mulher está inserida, onde muitas delas chegam até a desistir do mandato por não ter mais saúde mental e física para lidar com tais situações rotineiras. São xingamentos e atos violentos antes e depois das eleições. Não são ataques voltados a alguma falha em seu mandato, mas sim ataques ao gênero, a mulher. Não se é enxergado uma vereadora, prefeita, senadora, deputada, governadora ou presidenta, mas sim, uma mulher, apenas isso. O modo como se veste, por onde anda com quem se relaciona, dentre outras coisas. Não se está em julgamento a forma como se posicionam, mediante as funções de seus cargos, seus projetos, suas falas, seu cansaço, dentre outras coisas. O julgamento é apenas por ser uma mulher ocupando um cargo político. Temos um descaso tão grande em nossa sociedade referente ao gênero que, a orientação sexual é algo que ainda chama bastante atenção da sociedade, uma vez que ainda estamos lutando por um “lugar de fala” ¹ - um espaço onde cada sujeito tenha o direito e a liberdade de falar, se auto representar mediante suas lutas diárias ou grupos em que se encontra 492 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X inserido - da mulher. Sabemos que a cota de tabus aumenta no quesito orientação sexual, contexto que muito está sendo discutido e que envolve uma porcentagem bem elevada de conservadores que não compactuam com estas discussões. E foi nesse contexto que no dia 01 de julho de 2021 o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no programa “Conversa com Bial”, da TV Globo, se assumiu homossexual, tendo com isto grande repercussão a sua imagem. 478 O ponto ao qual queremos salientar é sob a forma como o pronunciamento do governador Eduardo Leite repercutiu tão rapidamente, uma vez que não era mantida em segredo sua relação com o pediatra Thalis Bolzan, e tendo em vista também que ele não é o primeiro homossexual no meio político. Temos, na mesma situação, a governadora Fátima Bezerra, do Partido dos Trabalhadores (PT), que é lésbica, e que em nenhum momento precisou expor a sua orientação sexual em algum tipo de entrevista, e que, diferente do governador, tem um trabalho de apoio à comunidade, Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero (LGBT), presente em suas falas e ações. É sob essas circunstâncias que a questão de gênero está inserida na sociedade ao termos um alcance diferente de ambos os lados. De um lado, temos um homem se assumindo gay, e no outro, uma mulher lésbica, ambos do meio político, mas a informação que ganha mais visibilidade, independente de quem luta pela causa dos LGBT, que tem um papel mais ativo a quebra do preconceito e dos altos índices de violência não é posto em pauta com tamanho alcance. É posto aí uma informação que leva a crer que se tem maior poder de fala até no quesito, orientação sexual é o gênero masculino. E falando em poder de fala, ao acompanhar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que tem por finalidade investigar/apurar se houve falhas por parte do Governo Federal no enfrentamento da pandemia da covid-19, que já vem ceifando mais de 579.052 de vidas é percebível que o momento de fala da mulher tem-se uma interrupção tremenda da parte dos homens. Não é um lugar de igual para igual. O espaço ininterrupto de fala é mais favorável ao homem. Conclusão 478 SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 15. 493 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Portanto, como problematiza Albuquerque (2005), seria a História uma questão de gênero? Ou, podemos dizer também, seria a construção de uma sociedade mediata por sua diversidade cultural e ideológica que estava voltada a definhar essa barreira do gênero feminino e do gênero masculino? Seria essa a vertente que proporcionou esse ambiente hostil de ambos os sexos? A raiz desses problemas podemos assim dizer que se encontra no berço da sociedade, ou seja, no seu início, no seu processo de construção. Como diz Certeau (1982, p. 56): “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômica, política e cultural”. Narramos ou escrevemos o que nos é passado, vivenciado ao longo dos anos, o que nos foi ensinado conforme o lugar ao qual nos encontramos, sejam elas escritas, ou em gestos, ou a forma como nos articulamos com os outros sujeitos, creio que seja o mais cabível a se dizer. Só sabemos que este silenciamento, essa ausência de respeito que a História nos apresenta para com a mulher e a forma como vinha sendo posta na construção desse lugar socioeconômico, político e cultural, propiciou a termos uma sociedade extremamente violenta, machista, preconceituosa, cheia de rótulos, etc. que vem ceifando vidas diariamente por consequências dessas divergências ao gênero feminino e masculino, por sempre ter direcionado o poder ao homem, sempre o alimentando dia após dia. É nessas circunstâncias que se encontra a sociedade a qual vivemos hoje, um lugar de medo para o gênero feminino, que apesar de tudo isso ainda tem-se dado mais visibilidade ao homem. E nos fica aqui mais uma pergunta que pode vir a suceder outros questionamentos: e se a História tivesse sido escrita de forma diferente, com os sujeitos em conjunto, homem e mulher na construção da sociedade, sem enaltecimento de ambos os sexos, será que teríamos um cenário diferente? Bem, teríamos que ter uma sociedade construída de outra forma, ao modo que possibilitasse uma escrita diferente. Referências ALBUQUERQUE, J. M. D. A hora da estrela: a relação entre a História e a Literatura, uma questão de gênero? Anais do XXIII Simpósio Nacional de História. ANPUH, Londrina 2005. BLOCH, M. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. França, 1997. BURKE, P. A Escrita a historia: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. BURKE, P. História e teoria social. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 494 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X CERTEAU, D. M. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982 EAGLETON, T. A ideia de cultura. Lisboa, 2003. KOSELLECK, R.; MEIER, C.; GUNTHER, H.; ENGELS, O. O conceito de História. Selo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/participacao-mulher-na-vida-politica.htm. Acesso em: 10 Ago. 2021. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/06/13/fatima-bezerra-pede-que-congressoaprove-projetos-contra-a-discriminacao. Acesso em: 06 Ago. 2021. VIOLÊNCIA na política afasta as mulheres. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/693968-violencia-na-politica-afasta-as-mulheres-dizespecialista/. Acesso em: 06 Ago. 2021. 495 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A inserção da pauta das mulheres na esfera pública e a democratização brasileira Glenda Lunardi479 Resumo: A ausência das mulheres nos espaços de poder dentro da esfera pública demonstra que a constituição da democracia brasileira ainda não conta com um processo plenamente participativo. Diante disso, pretende-se compreender como o campo feminista brasileiro tem lidado com a pauta da exclusão política desde o início dos anos 2000 até 2015. Nesse trabalho, faz-se discussões sobre práticas feministas dentro do campo político para compreender como as novas configurações vistas no feminismo jovem apresentam novas formas de articulação para dar continuidade a antigas reivindicações. Palavras-chave: Feminismo, Estado, Democratização É uma pauta histórica dos feminismos de Segunda Onda pretender que a presença das mulheres rompa com a sua legitimidade de pertencimento unicamente na esfera privada e se faça participar da esfera pública. Partindo do princípio de que essa divisão entre esfera pública e privada é criada pela sociedade civil, Pateman (1993), aos estudar os contratualistas clássicos, identificou que existe um contrato sexual no modo em que as sociedades ocidentais se organizam, onde a liberdade civil pressupunha a dominação dos homens sobre as mulheres. Essa dominação, segundo a autora, permitiu que a esfera pública tivesse se constituído como um espaço de direitos e de liberdade para os homens, enquanto esses teriam acesso livre ao corpo e ao fruto do trabalho gerado pelas mulheres. Os desdobramentos dessa segregação entre esfera pública e privada repercutem nas relações de gênero em diversos momentos da história. Em 2010, Pinto escreveu que o espaço político é o mais masculino dos espaços e que quando mulheres precisam adentrar no espaço da política institucional representativa, tornam-se cada vez menos mulheres, ou seja, não assumem esse sujeito político para serem eleitas. Essa conclusão veio de uma pesquisa publicada pela autora em 2009, quando, ao analisar as candidatas à eleição para a prefeitura de Porto Alegre em 2008, percebeu que em suas campanhas de televisão não havia qualquer referência à pauta dos direitos das mulheres, enquanto em seus sites, sim. Isso demonstra “que 479 Mestranda na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bolsista PROMOP. 496 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X as candidaturas não assumem a existência de um número significativo de eleitoras-eleitores que se sensibilizariam com esse tipo de problemática” (2009, p. 86). Segundo a autora, a mulher ainda teria dificuldade de irromper o espaço da política porque no Brasil os membros de parlamentares e governos adquirem um imenso poder pessoal, o que “é fundamental na reprodução de ordens hierárquicas presentes na sociedade brasileira” (PINTO, 2010, p. 1920), isso faz com que a presença de pessoas que representem outros sujeitos políticos que não o dominante seja freada de todas as maneiras. A ausência das mulheres demonstra que a constituição da democracia brasileira ainda não conta com um processo plenamente participativo, “no qual a sociedade civil e os atores políticos democráticos estejam plenamente integrados” (AVRITZER, 1995, p. 15). Parte-se desse princípio para refletir, então, quais são os espaços de presença das mulheres no setor público brasileiro e por quais meios as pautas feministas podem se fazer presentes na esfera política. Pinto (2010), mobiliza as teorias de Butler (2003) para demonstrar que as mesmas estruturas de poder pelas quais as mulheres buscam emancipação, como o espaço da política institucional representativa, também são responsáveis por reprimi-las “Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das ‘mulheres’, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais se busca a emancipação” (PINTO apud BUTLER, 2003, p. 19). Nesse sentido, Pinto (2010) segue afirmando que esse espaço não é um espaço novo a ser conquistado, ele é um espaço a ser invadido, ao contrário dos Conselhos, Delegacias e Secretarias das mulheres. Diante disso, pretende-se compreender como o campo feminista brasileiro tem lidado com a pauta da exclusão política desde o início dos anos 2000 até 2015. Esse recorte temporal leva em consideração as dinâmicas do movimento, quando percebe-se mudanças nas configurações das estruturas das atoras e atores do feminismo. A intenção de avaliar essas movimentações surgiu por meio das leituras de Avritzer (1995) e Pinto (2010). O primeiro autor, ao refletir sobre as teorias de transição para a democracia sob a perspectiva de cultura política, coloca como protagonista a relação de negociação e consenso entre atores políticos 497 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X democráticos e atores políticos tradicionais no interior da renovação das práticas sociais para a construção de um sistema democrático. Tais proposições permitiram a indagação sobre quais seriam as possibilidades do campo feminista nessa dimensão de negociação e consenso para a conquista de práticas democráticas referentes aos direitos das mulheres; ou como as teorias de representação e presença política das mulheres podem ser instrumentalizadas para a expansão do campo. Nesse sentido, as proposições de Pinto (2010) enfatizam a necessidade do desenvolvimento de uma inclusão das mulheres na vida política por meio de programas para construir espaços nos quais as mulheres falam e são escutadas, para a reconfiguração do espaço público. Lendo seus trabalhos, foi questionado se as propostas e configurações vistas nos feminismos do início dos anos 2000, quando a autora escreve, são as mesmas propostas pelos feminismos das novas gerações de juventudes. Em um primeiro momento pretende-se compreender a possibilidade de absorção dos discursos e práticas feministas dentro do campo político. A partir do estudo desenvolvido por Gomes (2016), compreendemos as dinâmicas que essas práticas adquirem dentro dos partidos político e a partir de Medeiros (2019) compreendemos como essas movimentações ocorreram formando o feminismo periférico. Em um segundo momento pretende-se fazer um debate teórico sobre as propostas de participação política, pensando a partir das toerias de Evaristo (2005) sobre autorepresentação na literatura e do debate construído por Phillips (2001) sobre representação e presença de sujeitos excluídos na política. Em um terceiro momento, pretende-se abordar as novas configurações vistas no feminismo jovem, os quais apresentam novas formas de articulação política para dar continuidade a antigas reivindicações, por meio das teorias de Alvarez (2014), Di Giovanni (2003) e Maia (2013). Marginalização de sujeitos entre amplas relações políticas A possibilidade de absorção dos discursos e práticas feministas dentro do Estado é possível, também, por meio da presença das mulheres que defendem essas pautas na política institucional. No entanto, nas próprias organizações partidárias essa presença é reprimida. Ao estudar a inclusão das mulheres na política entre partidos que se localizam na direita, no centro e esquerda do espectro ideológico, os resultados das pesquisas de Gomes (2016) indicam que existe uma maior quantidade de mulheres dentro de partidos de esquerda, nos quais também participam de mais cargos dentro da organização em relação a partidos de 498 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X direita. Diante dessa constatação, a pesquisadora entrevistou os diretores de três partidos que se localizam nos três espectros políticos mencionados, e também realizou um survey com candidatas a Assembleia Legislativa de Minas Gerais em 2010 desses e de outros partidos. O interesse em pesquisar esses dois grupos tem como propósito entender como o partido se posiciona em relação a participação política das mulheres, por meio das entrevistas com os diretores, e como é o posicionamento das próprias candidatas. Nesse estudo, constatou que as mulheres sentem dificuldades em conseguir apoio partidário independente da ideologia do partido. Enquanto a esquerda apresenta uma pequena preponderância na abertura de espaços partidários e no conhecimento sobre as causas da subrepresentação feminina, seu apoio às mulheres em tempos de campanha não difere dos outros campos ideológicos (GOMES, 2016, p. 50) Em entrevista para Gomes (2016) há um reconhecimento da falta de inclusão das mulheres na política por parte dos diretores do Partido dos Trabalhadores, Partido Popular Socialista, e Partido da Social Democracia Brasileira. E apesar de haver mínimos incentivos para participação das mulheres nos dois primeiros partidos – como a existência de cotas, não há ações significativas que colaborem com a eleição dessas candidatas ou com a “penetração de assuntos importantes para as mulheres no interior do cotidiano partidário” (GOMES, 2016, p. 38). Para a autora, o próprio sistema político reforça desigualdades ao incentivar a ação individual de cada político. Quando Alvarez (2014) falou que o próprio Estado já foi um nó articulador do feminismo, ela estava se referindo a outros mecanismos de defesa dos direitos das mulheres, como os Conselhos, Delegacias e Secretarias das mulheres, principalmente a Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM), que realizava grandes conferências com o público amplo para discutir as propostas de direitos das mulheres. No entanto, Medeiros (2019) entende que houve uma absorção tecnocrática de gênero por parte desses mecanismos do Estado, os quais levaram a novos conflitos e desigualdades, produzindo uma reformulação do campo feminista na América Latina. Partindo da observação que essas reformulações estavam acontecendo, Medeiros (2019) buscou compreender as mudanças estruturais que levaram o “feminismo popular” (formado 499 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X por feministas que atuavam em ONGs para o atendimento jurídico e psicológico de mulheres em situação de violência), ao “feminismo periférico” (constituído por coletivos formados a partir de movimentos culturais periféricos e debates sobre feminismos nas redes sociais, cujas principais práticas são de caráter artístico-cultural) na Zona Leste de São Paulo. A partir do conceito de contrapúblicos subalternos, desenvolvido por Fraser (1992), os quais podem ser entendidos como “arenas discursivas paralelas nas quais membros de grupos sociais subordinados inventam e circulam contradiscursos para formular interpretações oposicionais de suas identidades, interesses e necessidades” (MEDEIROS apud FRASER, 1992, p. 123), podemos entender que as novas gerações de feministas inventaram uma nova linguagem, reformularam suas identidades afim de reduzir suas desvantagens nas esferas públicas oficiais, como aquelas formadas dentro do Estado em vínculo com as ONGs. Essas formulações nos permitem apreender a permanência do campo feminista, ao mesmo tempo em percebe-se sua dinamicidade. A ocupação de espaços na política institucional é uma luta a ser conquistada, no entanto o campo feminista não deixa de compor outras movimentações nesse trajeto. A representação e a presença feminista na política Enquanto o campo feminista se modifica constantemente para levar suas práticas e discursos, também teoriza sobre suas movimentações e perspectivas. Para Evaristo (2005), é importante levar em conta a auto-representação. Essa autora percebe a literatura enquanto espaço de produção e reprodução simbólica de sentidos, e no caso da literatura brasileira, um espaço de discursos em que a mulher negra é constantemente representada de forma negativa. A autora, em suas pesquisas, percebeu a ausência de representação materna das mulheres negras, mesmo que a formação de família tenha representado uma das suas maiores formas de existência e resistência. No entanto, a representação das mulheres negras na literatura se dá de outra forma quando Evaristo (2005) analisa obras desenvolvidas por escritoras negras. Essas, segundo a autora, Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeitomulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria 500 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. (EVARISTO, 2005, p. 54) Ou seja, inscrevem na literatura uma auto-representação. A autora entende que nessas novas escritas estão as vivências das autoras negras, o que movimenta as possibilidades, na literatura, de novos conteúdos e o desenho de novos perfis. A constatação de Evaristo, de que as autoras negras se auto-representando na literatura geraram discursos diferentes e mais justos com suas lutas, causas e vivências, faz-nos refletir sobre qual poderia ser o impacto de uma maior quantidade de outras minorias sociais se autorepresentando, ou seja, ocupando outros espaços de poder e de produção de discursos e significados. A exclusão política tem sido uma pauta histórica dos grupos de minorias sociais. Phillips constatou em 2001 que a resposta a essa exclusão foi a produção de um debate que propunha a necessidade da “presença física de grupos excluídos nos locais de decisão”. Nesse estudo, a autora discute os moldes de representação política nas democracias liberais, e como isso foi pensado por autores como John Burnheim, Callenbach e Phillips, James Fishkin e Hanna Pitkin de forma a apresentar novas propostas que visassem uma maior inclusão de grupos marginalizados nas decisões políticas institucionais. A partir desses autores, percebe-se que ocorre uma substituição de uma proposta de sistema político que prioriza a diferença de ideias em direção a uma política que prioriza a presença de pessoas que são historicamente excluídas desses espaços. A novidade da presença de pessoas não seria a valorização da diferença e da diversidade, pois essas já eram valorizadas por liberais, mas no âmbito das ideias. Ou seja, ideias diferentes eram representadas sempre por um mesmo grupo de pessoas, e aqui a autora abre um parêntese para indicar que a maior parte desses transmissores e representantes de ideias são homens. No entanto, a representação de diversidade de ideias na política deixa de ser o suficiente quando a diferença é percebida enquanto atrelada a experiência e identidades de diferentes grupos. Nesse caso a inclusão de dos membros desses grupos se torna necessária. Preocupações contemporâneas sobre representação justa freqüentemente se traduzem em reformas imediatamente alcançáveis, como os sistemas de quotas, que têm sido adotados por diversos partidos políticos europeus, para 501 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X produzir paridade de gênero em assembléias eleitas, ou o redesenho dos limites em torno de distritos de maioria negra, para aumentar o número de políticos negros eleitos nos EUA. Este não é o mundo das utopias políticas no limite da imaginação, mas o de reformas realistas, muitas vezes realizadas. (PHLLIPS, 2001, p. 273) Para a autora, essas demandas por presença têm emergido das políticas dos movimentos sociais, as quais se relacionam com outras desigualdades que não as de classe. Nesse sentido, não foi mais possível homogeneizar as características da população para lutar a favor de uma única pauta (como a superação da existência de classes), foi preciso valorizar suas diferentes identidades, mesmo que as desiguales possam estar diminuindo. Essa mudança sobre a perspectiva do que é inclusão política produz novas estratégias para associar “representação justa com presença política” (PHLLIPS, 2001, p. 278), de forma a produzir a necessidade de mecanismos políticos que asseguram a presença da diversidade de etnicidade, gênero e raça dos representantes. É o que a autora chama de uma “intervenção deliberada” que pode proporcionar uma mudança mais imediata nas estruturas sociais de desigualdade ou exclusão de participação política. Phllips (2001) continua seu trabalho mostrando autores que abordaram possíveis soluções para a representação política das diferenças, numa sociedade plural, por meio de autores como Lijphart - que propõe uma democracia consensual alternativa, a qual permitiria a presença proporcional dos grupos na distribuição do poder executivo; ou Will Kymlicka e Joseph Raz - que vem de uma tradição liberal e pautam as questões de diferença nos limites da liberdade e autonomia; e a na obra de John Rawls, que propõe um exercício de imparcialidade nas tomadas de decisão política, o qual não exige nem igualdade de representação nem de presença. Por último, a autora critica também as teorias de Iris Young, que reafirma a importância do papel dos grupos sociais no desenvolvimento de políticas públicas ou acesso a assembleias deliberativas para isso. A conclusão da autora diante desses debates bibliográficos é afirmar que a forma mais favorável a um combate da exclusão política seria mesclar uma política de ideias com uma política de presença para encontrar um sistema mais justo de representação. 502 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Embora a política de idéias seja um veículo inadequado para tratar da exclusão políticas, há pouco que se possa ganhar simplesmente pendendo para uma política de presença. Tomadas isoladamente, as fraquezas de uma são tão dramáticas quanto as falhas da outra. A maior parte dos problemas, de fato, surge quando as duas são colocadas como opostos mutuamente excludentes: quando idéias são tratadas como totalmente separadas das pessoas que as conduzem; ou quando a atenção é centrada nas pessoas, sem que se considerem suas políticas e idéias. É na relação entre idéias e presença que nós podemos depositar nossas melhores esperanças de encontrar um sistema justo de representação, não numa oposição falsa entre uma e outra. (PHLLIPS, 2001, p. 273) Nesse sentido, acredito que os debates da autora possam contribuir de forma mais profunda com as preocupações do movimento feminista sobre participação política, já que a invasão desse espaço, considerado tão masculino, precisa ser pensada de forma questionar a própria natureza da representação política como ela está dada no Brasil. Novas configurações, novas dinâmicas, novos feminismos A percepção mencionada anteriormente por Phllips (2001), de que mecanismos institucionais não são o suficiente para modificar os sistemas que produzem parte das exclusões políticas, é uma interpretação presente entre as feministas das novas gerações, que presenciam a difusão dos feminismos plurais e a multiplicação de campos feministas, segundo o que interpreta Alvarez (2014). Essa autora interpreta o feminismo enquanto um campo discursivo de ação, composto por redes político-comunicativas, que são como teias ou malhas, “costuradas por cruzamentos entre pessoas, práticas, ideias e discursos” (ALVAREZ, 2014, p. 18), nas quais diversas atoras e atores circulam e se entrelaçam. É a partir dessa chave interpretativa que analisa dinâmicas do feminismo da América Latina em três momentos. Rompendo com a categoria de “ondas do feminismo”, Alvarez identifica a construção de uma narrativa oficial sobre os feminismos, a qual pretende pluralizar. O primeiro momento do campo feminista na América Latina identificado pela autora é durante os anos 1970 e 1980, no qual existe uma narrativa que tende a ocultar que os feminismos já eram heterogêneos e permeados por disputas. O segundo momento, correspondente ao final dos anos 1980 e a década de 1990, tende a seguir uma narrativa de que é um período em que o feminismo se institucionalizou 503 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tanto em ONGs quanto em partidos políticos. Essa narrativa também negligencia a dinâmica de pluralização do campo feminista, no qual diversas atoras estavam atuando em diferentes espaços. A autora exemplifica a estruturação e visibilidade dos feminismos negros, a participação das feministas nos movimentos sindicais, estudantis, rurais, católicos, etc. Com os anos 90, a autora identifica o terceiro momento. Nele, existem outros discursos articuladores do campo feminista. A perspectiva de gênero é mais instrumentalizada, chegando a níveis institucionais e empresariais, o que muitas vezes favoreceu com que a pauta da igualdade fosse usada de forma despolitizada a favor de projetos neoliberais. Ao mesmo tempo, o discurso de gênero também foi amplamente articulado dentro de outros movimentos sociais, e seguiu articulando o campo feminista junto a outros discursos, como os debates sobre as corporalidades, sexualidades, e identidades de gênero também têm sido particularmente marcantes, como, por exemplo, o transfeminismo, o transgênero, o pós-gênero, o queer, e outros debates trazidos pelas trabalhadoras do sexo, mulheres trans, lésbicas e bissexuais (ALVAREZ, 2014, p. 44). Dessa forma, a partir das teorias compostas pela autora, pode-se dar continuidade ao tema levantado por Phllips (2001), quando essa pesquisadora analisou as teorias relacionadas a exclusão política de grupos marginalizados, por meio das propostas de representação e presença política. O que se pretende fazer, é perceber a continuidade da pauta sobre a marginalização de sujeitos na política, ao mesmo tempo em que as novas configurações do campo feministas analisadas por Alvarez (2014) encontraram novas formas de articular essa luta. As pesquisadoras localizam a reivindicação da participação política das mulheres desde os estudos compostos sobre os primeiros movimentos de emancipação feminina no Brasil, como mostra Nascimento (2018). Alguns direitos foram conquistados e os cenários se modificaram. As novas gerações de feministas encontraram novos projetos para o que Pinto (2010) identificou como necessário para o desenvolvimento de uma inclusão para a vida política das mulheres na direção da reconfiguração do espaço público. 504 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Nesse sentido, é possível compreender algumas diferenças entre as configurações dos movimentos feministas encontradas no início dos anos 2000 e aqueles encontrados em 2013/2014. Participando da Marcha Mundial das Mulheres no III Acampamento Intercontinental da Juventude em 2003, Di Giovanni (2003) tentou entender os questionamentos e pautas que as feministas do evento estavam formulando. Ela ressalta que as participantes do evento nascerem e cresceram entre promessas e a instituição de políticas neoliberais, as quais reproduzem constantemente discursos associados a mercantilização da vida. Essa juventude está lutando contra essas políticas, que reproduzem desigualdades, através de mobilizações de massa, articuladas por meios de comunicação como jornais, rádios, sites de internet, e por meio da ação direta não violenta junto a coletivos independentes, grupos de artistas, etc. Mas também está lutando contra o próprio machismo, tentando afirmar as pautas feministas dentro dos próprios movimentos sociais em que participam, visando produzir iniciativas de auto-organização das mulheres no interior desses grupos. O público estudado pela autora parece estar tentando reformular a linguagem e as práticas feministas para que essas ocupem espaços dentro das outras organizações sociais que as militantes compõem. Na pesquisa de Maia (2013), que pretendeu estudar as novas formas de expressões políticas por meio das articulações dos jovens dentro de coletivos, entende-se que a juventude está buscando novos tipos de articulação que superem as relações hierarquizadas e autoritárias, o que se relaciona muito com o reconhecimento de pertencimento dos jovens a diversos grupos – não apenas uma única pauta identitária - o que resulta no fato de que os coletivos estudados pela autora acabam agregando múltiplas demandas. Apesar de buscarem alternativas como grupos com propostas de lideranças mais horizontais, a juventude ainda está participando de partidos políticos e organizações formais como os Centros Acadêmicos das universidades. O grupo e a pesquisa bibliográfica estudada pela autora também indicam um intenso uso da internet para a divulgação e organização dos Coletivos. Dando continuidade a algumas pautas do início dos anos 2000, as novas configurações dos campos feministas chamam atenção para a visão extremamente interseccional e diversa. A continuidade das reivindicações se articula a novos tipos de organização, através de coletivos mais horizontais e com lutas que abrangem pautas amplificadas. Consideração finais 505 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A partir da pauta da exclusão política das mulheres podemos compreender algumas dinâmicas dos movimentos feministas. Percebe-se que o campo feminista, como diz Alvarez (2014), é constante, mas muito dinâmico. A solução para a e exclusão das mulheres no campo da política institucional, foi popular nos anos 80 e 90 com a proposta de criar mecanismos dentro do Estado para combate-la. A partir dos anos 2000, com um cenário em que o feminismo se encontra, também, mais institucionalizado do que nunca, os novos grupos se articulam de formas diferentes, criam outras maneiras de articulações e constituem relações políticas possivelmente mais potentes do que aquelas estabelecidas no âmbito institucional nesse contexto. Referências ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. cadernos pagu, n. 43, p. 13-56, 2014. AVRITZER, Leonardo. Cultura política, atores sociais e democratização: uma crítica às teorias da transição para a democracia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 10, p. 1-15, 1995. AVRITZER, Leonardo; MARONA, Marjorie Corrêa. Judicialização da política no Brasil: ver além do constitucionalismo liberal para ver melhor. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 15, p. 69-94, 2014. EVARISTO, Conceição. Da representação à auto-apresentação da Mulher Negra na Literatura Brasileira. 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A Marcha pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia - PB, realizada convencionalmente no dia 8 de março, iniciada nos anos 2010, é organizada pelas mulheres do Polo da Borborema e ASPTA - Agricultura Familiar e Agroecologia, com proposito de reivindicar autonomia, igualdade, equidade e justiça no combate ao feminicídio das mulheres rurais. Sendo assim, este texto tem o objetivo de apresentar debates sócio-históricos junto ao feminismo decolonial e ao ecofeminismo, através da luta de mulheres rurais nesta marcha, seguindo o suporte teórico e metodológico de autoras como Cecilia Toledo, Heleieth Saffioti, Vandana Shiva, María Lugones, Emma Siliprandi, entre outras referências que fazem parte do corpo deste trabalho, evidenciando a importância da união dos feminismos com movimentos sociais agroecológicos na construção de uma sociedade mais equânime no respeito à vida e a todos os seres. Palavras- chave: Ecofeminismo; Feminismo decolonial; Mulheres rurais Introdução A construção deste artigo se deu no período da Covid-19, uma pandemia que por meio da qual assisti a transformações nos modelos de vida, de ensino e aprendizagem, assim como de diálogos e trocas teóricas. Viver em um estado de necropolítica481 diária no Brasil, permite vivenciar situações de risco de saúde física, psicológica, seja com nós mesmas ou com amigas, parentes, familiares. A pandemia tornou ainda mais visível a catástrofe ecológica e a necessidade de auto-observação para saída sustentáveis, e é nesse interim que correntes de Historiadora, ecofeminista, mestranda do PPGH/UFPB, compõe o grupo de pesquisa ProjetAH- Mulheres, Gênero, Imagens Sertões. E-mail:lais_oliveiraneves@hotmail.com Achile Mbembe descreve necropolítica como 480 481 508 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X pensamento científico, como a agroecologia e o ecofeminismo, constituem-se como ações de luta social em respeito à vida. Os debates sócio-históricos enquanto campo teórico (História Social) tem estudado, ao longo de décadas, os fenômenos de mudanças sociais e da ação humana com suas próprias e diferentes ferramentas disciplinares, a exemplo das vertentes clássicas europeias entre os anos de 1960 e 1980, com a Natalie Davis, Michelle Perrot, Edward P. Thompson, Eric Hobsbawm; nos anos 1980-1990, quanto às questões de gênero e sexualidade, com Joan Scott, Michel Foucault, Jacques Derrida, dentre outras referências que foram e são utilizadas como suporte teórico-metodológico por diversas historiadoras e pesquisadoras ao pensarem cotidiano, história social, gênero e sexualidade, costumes, etc. Segundo Pinsky (2009), nos anos 1990 emerge o “feminismo” diante das potências que se levantavam e se apropriavam do espaço acadêmico, demarcando diferenças, ampliando territórios e se tornando uma espécie de “guarda-chuva político” capaz de abarcar movimentos sociais, assim como ativismos de característica epistêmica, (a exemplo do movimento de mulheres negras e o movimento LGBTQ+) na busca conjunta de uma coexistência pautada no respeito, na visibilidade e na luta por direitos equânimes. De acordo com Carneiro (2011), a demarcação das diferenças no Brasil é visivelmente caracterizada pelo seu passado colonial, dessa forma vale salientar as diferenças interseccionais que compreendem as lutas feministas. A exclusão pelo não direito à voz camufla a verdadeira face do trabalho, além da geração de renda. Se as mulheres burguesas de Simone de Beavouir (2009), após a Revolução Industrial, enfrentavam a ideologia da feminilidade e uma disputa no que concerne ao acesso ao mercado de trabalho no âmbito público, as mulheres negras trabalhavam com jornadas exaustivas no serviço doméstico, mal remunerado482. A conversa de que a “mulher tem que ser dona de casa” constrói uma dupla jornada de trabalho, em sua maioria negligenciado e não remunerado; isso acontece tanto nos centros urbanos como (e principalmente) nas zonas rurais. Vendo isso, muitas mulheres organizaram-se em marchas pelas cidades do Brasil contra as violências de gênero, mas também de raça e classe. Freire (2015) destaca que a marcha se torna um importante momento para denunciar e dar visibilidade sobre as desigualdades de gênero. A Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia - PB, dentre muitas que Em 2009, no Brasil, cerca de 7,2 milhões trabalharam no serviço doméstico, sendo 93% mulheres, uma vez que do total 61,6% são mulheres negras (OIT, 2010). 482 509 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X espalham nas diversas regiões - norte, sul, nordeste sudeste do Brasil -, é uma ação social de luta pelos direitos das mulheres. Dessa forma, o presente trabalho segue dividido em dois tópicos: “Me deixe ser quem sou”, onde apresentarei a Marcha pela Vidas das Mulheres e Pela Agroecologia - PB e sua importância no cenário das mulheres rurais, e “Ecofeminismo Decolonial”, onde discutirei as implicações do pensamento decolonial aliado ao ecofeminismo no combate à catástrofe da natureza. Me deixe ser quem sou Eu quero ser amiga e companheira Quero mostrar a força do amor Quero viver como tenho direito Não quero preconceito Me deixa ser quem sou. Gilvanisa Maia – Apelo de Mulher ASP-TA 2013 A Marcha pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia - PB começou em 2010, com intuito de ser realizada convencionalmente no dia 8 de março, Dia Internacional das Mulheres; é organizada por mulheres do Polo da Borborema, contendo cerca de 150 associações comunitárias e organizações regionais acerca das invocações da agroecologia e de sistemas ecológicos, com base agrícolas, se afirmando em uma tradição de resistência a conjuntura política adversa da agricultura camponesa. Essa marcha tem ganhado projeção crescente, com abrangência semelhante à Marcha das Margaridas, em âmbito nacional. Sendo uma Marcha acompanhada por mulheres do brejo, do sertão e do cariri paraibanos, de diversas cores, idades, classe e amores. O trecho da canção citada acima propõe uma relação humana de civilidade, ao reconhecer a mulher como um ser, não um objeto, e que tem liberdade de escolha, pelo direito de viver, amar e ser mulher. De acordo com a ASPTA (2013), a canção foi ao ar nos programas de rádio, e programas de regionais, com intuito de divulgar a Marcha e, através da canção, promover sensibilização de mulheres e homens da região do Polo da Borborema. 510 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Constituindo-se como uma identidade coletiva protagonizada pelo campesinato, a atuação da marcha tem avanços importantes na defesa da agricultura familiar, camponesa e na vida das mulheres. De acordo com Sobreira (2017), a edição do ano de 2017 contou com aproximadamente cinco mil mulheres reunidas na cidade de Alagoa Nova (PB). A figura 01 é uma foto tirada na 11ª edição da Marcha na cidade de Esperança, que contou com aproximadamente seis mil mulheres, de acordo com a ASPTA (2020). Figura 01 Fonte: Túlio Martins/ Brasil de Fato.483 Siliprandi (2015) aponta para a importância que o cenário feminista proporcionou aos movimentos de mulheres do campo, principalmente em relação à visibilidade das pautas relacionadas à acessibilidade das mulheres à terra, ao reconhecimento de sua profissão e à garantia de seus direitos. Além da participação em movimentos sindicais, em associações e grupos de produção, na formação de espaços de comercialização, elas desenvolveram experiências produtivas alternativas no nível das propriedades, além da fundação de centros de formação, cooperativas, associações, com prestação de assessoria técnica e organizativa. Disponível em: https://img.brasildefato.com.br/media/0ea84938e4235ae93acae89dd7f6701d.jpeg. Acesso em 26/03/2021. 483 511 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Assim, é importante dar ouvidos às revoluções que as mulheres têm feito, seja no âmbito acadêmico, seja no campo ou nas ruas ou dentro de suas próprias casas, são elas que têm mostrado, com suas ações, “que é possível resistir, denunciar, organizar-se, construindo-se como políticas”484. A Marcha pela vida das Mulheres e pela Agroecologia - PB tem grande importância na transformação das ausências dessas mulheres rurais em presenças de lutas, assim como o movimento de marcha anuncia um novo lugar para suas vidas, um lugar de inclusão. Ecofeminismo decolonial O privilégio do conhecimento, e de quem o produz, passa antes de tudo por uma estrutura sócio-histórica. O cientificismo e o eurocentrismo são sustentados pelo discurso de Descartes elaborado em 1637, o Discurso do Método, que instaurou uma tradição de pensamento que se perpetuou e reproduziu com validade universal, sem determinações geopolíticas, mas sim de unicidade. Mesmo depois de 500 anos de história colonial, os modelos de vida importados da Europa, ou até mesmo dos Estados Unidos (desde o período pós-Segunda Guerra Mundial), são tratados como ápice do desenvolvimento científico humano, sendo eles exportados dos países do Norte-centro para os do Sul global485, ignorando e inferiorizando outros tipos de organização de mundo (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2018). Imbricada nas diversas esferas constituintes da vida, a ciência do universalismo apresenta-se nos modos de poder/ser/estar na economia, na política, na estética, na subjetividade e, ainda mais, nas relações com a natureza. Segundo Dussel (1994), tudo isso resulta de anos de domínio e exploração dos povos africanos e originários486. Para Lugones (2008), tanto para as Américas quanto para o Caribe, foram transportadas bases de dicotomias hierárquicas de denominação humana e o não-humana, acompanhadas também por outras distinções hierárquicas dicotômicas, incluindo aquelas entre homens e mulheres. Mesmo que tais distinções fossem carregadas de misoginia com a mulher branca visto que o homem europeu é considerado o portador do conhecimento científico “legítimo” do sistema heteropatriarcal -, essa mulher, branca e burguesa, ainda estava cercada dos aparatos ??? Santos (2007, p. 12) refere-se ao “Sul Global” como regiões periféricas e semiperiféricas de países do sistemamundo moderno, que foram denominados de Terceiro Mundo após a Segunda Guerra Mundial. Povos indígenas habitantes do que se convencionou denominar América Latina. 484 485 486 512 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de classe que validavam a sua humanidade, diferentemente das mulheres indígenas e africanas, classificadas como espécies não-humanas, como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. Lugones (2008), ao apresentar o feminismo decolonial, busca entender como a construção histórica da representatividade da humanidade sempre esteve aliada à lógica colonial de exploração, que passa pela classe, raça, geração, sexualidade e língua. Sendo o movimento decolonial feminista identificador da constituição dessas opressões e atuante no empoderamento feminino, abrindo espaço para a construção mais equânime no campo cientifico, filosófico e político. Segundo Saffioti (2013), a força de trabalho das mulheres situa-se em uma constante relação dialética, uma vez que a sociedade capitalista constrói um arquétipo de mulher que executa simultaneamente um trabalho que só gera trabalho, não mercadoria, sendo esse trabalho contínuo e sem possibilidade de fim. Nesse contexto, “[...] o sexo opera como fator de descriminação social, enquanto perdura-se o modo de produção baseado na apropriação privada dos meios de produção” (SAFFIOTI ,2013, p. 61). Não só nos centros urbanos, mas principalmente no campo, reproduziram-se semelhantes e ainda mais intensas formas de exploração da mulher. A tripla jornada de trabalho - composta pela casa, o cuidado com os filhos e o roçado - traduz-se em atividades exaustivas que se concretizam no cotidiano das mulheres rurais. De acordo com Duarte (2014), os trabalhos desenvolvidos nesse espaço consequentemente reproduzem uma hierarquização sobre a participação das mulheres rurais no âmbito público que, muitas vezes, é controlada pelos maridos. Shiva (2010) apresenta o ecofeminismo como um movimento que identifica no sistema heteropatriarcal a origem da catástrofe ecológica atual, sendo tanto a natureza como as mulheres alvos de agressões desse sistema mecânico e destrutivo. Nessa perspectiva, o patriarcado denomina-se com a lógica do poder supremo, opressor e totalitário da agroindústria, atacando os fundamentos da vida na sua expressão simbólica mais profunda: a fecundidade do ser vivo. Para Sobreira (2017), é necessário reconhecer a crise ecológica para que assim haja uma libertação do sistema de opressão, sendo fundamental a união do movimento feminista com o movimento ecológico, pois “Sem feminismo não há agroecologia”. A agroecologia apresenta-se em um campo múltiplo, integrado a diversos saberes e práticas de mulheres do campo, sejam 513 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X negras, indígenas, juntando forças às ações dos movimentos sociais, valorizando conhecimentos tradicionais, reduzindo os impactos ambientais na produção de alimentos saudáveis e da ética do bem viver. Sendo assim, as múltiplas articulações do ecofeminismo e do feminismo decolonial partem não somente da transformação do processo de exploração das mulheres e da natureza, mas também de uma profunda reconfiguração das relações capitalistas, racistas, antropocêntricas e patriarcais que estruturam as ciências, as tecnologias e as desigualdades no mundo. Desta forma, pensar A Marcha pela vida das Mulheres e Pela Agroecologia como uma ação de luta e de transformação no quadro ambiental é reconhecer sua capacidade de fornecer novas articulações combativas à tentativa massificadora do projeto neoliberal, ao mesmo tempo em que traz mudanças nas formas de participação política das mulheres do campo. Considerações finais É importante reconhecer as lutas de resistência que a Marcha pela vida das Mulheres e pela Agroecologia - PB toma frente, assim como perceber que, mesmo que as mulheres que compõem a marcha não se autodenominem ecofeministas decoloniais, suas ações podem ser relacionadas a esse pensamento. No momento em que constituem uma concepção ética de base ontológica de respeito à vida de todos os seres, em diferentes termos, construindo um saber próprio de mulheres rurais da agroecologia, e que propõem um modelo de desenvolvimento com relações de menor impacto ambiental, no que se refere à produção/distribuição de alimentos e à apropriação da natureza, assim como os direitos de todas as mulheres, elas fogem da lógica capitalista que se apoia na reprodução das desigualdades socioeconômicas, raciais e sexistas. Assim, tornam-se potência decolonial de enfrentamento às injustiças sociais e de promoção de equidade, em amplos sentidos. Referências bibliográficas BEAVOUIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Millet. 2 ed. (vol. único) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Geledés, 2011. 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Invisibilidade Reanudar Este texto tiene como objetivo identificar y reflexionar sobre la invisibilidad de los autores descolonizadores que pasaron desapercibidos en el proceso educativo brasileño. Este estudio tuvo un enfoque cualitativo utilizando como métodos y técnicas de recolección de datos, investigación bibliográfica y análisis descriptivo reflexivo. ¿Qué se nos permite ver cuando tenemos una estructura racista en nuestro país? Por lo tanto, nos centramos en los autores que nos hacen ver un universo descolonizante disociado de la opresión y hegemonía occidental racista de los blancos. Palabras clave: Racismo. Intelectual negra. Invisibilidad Introdução O processo de escravização formal no Brasil é caracterizado por uma longevidade absurda, diante disso, marcado na operação de uma “elite” branca hegemônica que que sempre possuiu privilégios ao longo da história do Brasil, enquanto nesse processo, a opressão Mestranda em Educação: Programa de Pós-graduação em Educação-PPGED, pela Universidade Federal de Sergipe. adrielisa1@academico.ufs.br. 487 518 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X da população negra (preta e parda), se tornou palco de invisibilidade social, suas subjetividades foram alijadas a uma descaracterização e precarização humana. Consequentemente a população negra ficou à parte das riquezas do país, mesmo se fazendo constructo nesse processo, assim, como refletiu Nascimento (apud Ratts, 2007), ademais, desencadeando o alijamento de sua cultura, crenças, religião, política e socio histórica, em um epistemicídio marcando o apagamento das contribuições do povo negro como cidadão e participativo na sociedade. No entanto, esse apagamento foi imposto, era como se propositadamente tivessem atirado um punhado de areia nos olhos da população brasileira, pois os mecanismos de descaracterização do negro, constituiu-se como operante, cabendo uma nova visão de todo o processo de nação de uma vida inteira. Contudo, a resistência do povo negro é algo que não cabe em nenhum estudo acadêmico social ou fenomenal, e diante desse protagonismo podemos apontar a natureza expressiva e significativa da mulher negra. Por isso abordar as contribuições do povo negro, principalmente no processo educativo social colabora para uma reflexão ao processo de colonização social, e o quanto ficamos por tanto tempo à mercê de um projeto racista colonizador. Será que nos tornamos fantoches de um processo racista, sem que ninguém tivesse feito nada a esse respeito, o que é permitido ver diante de uma estrutura racista? Essa reflexão é imbuída de sentido, sendo o patriarcado machismo e racismo o limiar de tanto absurdo que deixou o povo negro à margem, considerando um processo altamente discutível até os tempos atuais. À princípio as reflexões sobre colonialidade, raça e racismo são importantes para composição dessa discussão, seguida da contribuição de autoras negras no processo descolonizador educacional, como vejo você através de nossos ancestrais intelectuais e dos que atuam hoje em dia e por fim as considerações finais. 1.Considerações teóricas colonialidade, raça e racismo A colonização social tratada por Quijano (2005) permite pontuar os processos de capitalização global do poder hegemônico europeu ocidental sobre os corpos humanos, deixando prevalecer os eixos que o autor aborda do poder, saber e do ser. 519 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Assim, tendo a capacidade de exercer em termos geopolíticos histórico da colonização, atribuindo a dimensão do eixo do poder, denotando a raça/cor branca sobre as demais raças. O eixo do saber deixando prevalecer os saberes dominantes ocidentais, delegando aos demais saberes a sua inferioridade, provocando o epistemicídio dos saberes não hegemônicos. E o eixo do ser delegando o apagamento das contribuições culturais, do ser pensante e atuante na sociedade quando se trata das raças/cor não branca. Por ventura, o projeto do poder hegemônico eurocentrado contou com a racialização dos povos, destacando como uma raça/cor superior, a branca, e as demais como inferior, subalternizada a ordem escravocrata da dominação política socio cultural. Assim o processo de colonialidade do poder tratado por Quijano (2005) estabelece nas bases do capitalismo, neoliberal, à tomada de decisões que deixem seus objetos, os negros, como seres servil e voltados ao consumo de uma imagem poder branca. É possível observar que o termo raça, não tem na modernidade, nenhum sentido biológico, o qual foi seu processo primário, as bases ideológicas são as que a compõe, sendo essa, fundamentalmente necessária ao projeto de dominação da colonialidade do poder. Segundo Guimarães apud Sansone (2008, p. 64) “as raças são cientificamente uma construção social”. Chama atenção a questão da hierarquização das raças para o projeto de poder dominante, esse aspecto criou estereótipos para justificar todas as atrocidades existentes, incluindo, genocídios e o racismo, que se tornou difícil de ser combater até os dias atuais. A população embalada pela canção de Gilberto Gil nos anos oitenta “A raça humana é uma semana do trabalho de Deus”, poderia pensar em buscar as origens da formação da raça humana, no sentido cientifico e religioso, gerando especulações várias, de acordo com um modelo, estabelecido para fins religiosos, todos somos iguais em irmandade, no entanto a hierarquização de uma raça superior em detrimento de uma inferior, se projeta a uma dimensão de colonialidade do poder. Para fins de uma construção de que o negro se caracterizava como uma raça degenerada, inferior, instrumentos como o racismo cientifico constituíram a caricatura estereotipada de um ser perigoso, passível de cometer crimes, e assim a ciência colaborou no projeto de eugenia social (SCHWARCZ, 1993). Segundo Almeida (2018,p.36) “ raça não é um termo fixo, estático, o sentido está atrelado as circunstâncias históricas em que é utilizado, assim a história das raças é a constituição política e econômica das sociedades contemporâneas” 520 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O racismo segundo Almeida (2018) opera para além da vontade das pessoas, podemos entender que todas as pessoas, nessa conjuntura, são potencialmente racistas, o mecanismo do racismo se constitui nas instituições, dinâmicas, estruturais, assim o racismo estrutural permeia a vida das pessoas. Contudo no Brasil a identidade negra ficou comprometida pela difusão de diversos interlocutores, inclusive Gilberto Freire, na obra casa grande e senzala (2019), de que havia uma harmonia racial, devido ao processo de miscigenação que constituiu a população brasileira. Esse ideário ainda atribuiu ao negro no imaginário social, no qual a espontaneidade, o samba, e o futebol foram uma espécie, por qual os poderes dominantes usaram de componentes que impediram a pauta de questões importantes como a racial, para que o estado promovesse uma reparação e melhoria na vida do negro. Somente mais recentemente os movimentos sociais, obtiveram conquistas mais concretas quanto a questão racial, que está sendo pauta importante incluída em projetos de estado, através das cotas, na Lei 12.711/12 que trata do ingresso de pessoas negras(pretas e pardas) e indígenas nas universidades públicas, e na Lei 11.645/2008 que atribui a obrigatoriedade da temática afro-brasileira e indígena no currículo da educação básica. O racismo é uma lástima que atrasa todo um projeto de sociedade democrática, que imprime a uma suposta supremacia branca o poder de privilégios dada a opressão e descaracterização baseando-se na tonalidade da pele. Munanga (2019) o racismo é operante nesta estrutura da sociedade, e precisamos conhecer a contribuição do povo negro diante dessa situação, o mito da democracia racial, se ampara sobre a situação da mestiçagem do povo negro. Fanon (2008, p. 106) aborda que “é preciso demolir o mito do negro ruim”, assim o autor reflete o quanto é necessário um tratamento de desconstrução desse imaginário coletivo de agressão as subjetividades do povo negro na sociedade. Contudo, temos uma grande contribuição de pessoas negras que se fizeram/fazem um caminho descolonizador neste universo, machista, patriarcal racista. 2. Eu vejo você através de autores(as) em caminhos descolonizadores Em uma sociedade permeada pelo racismo estrutural, a percepção que pessoas não brancas formam uma beleza, cultura, política histórica e social provida de significados, se torna 521 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X invisível aos olhos da população. Nessa estrutura que circula a mídia branca, e postos prestigiados comandados por brancos, infelizmente para um projeto educacional dentro dessa estrutura, ainda não conseguiu refletir de forma sistêmica e possível o que é a crueldade do racismo e levar essa reflexão a uma mudança social. Para tanto, o sofrimento das pessoas não brancas reflete a uma sociedade do atraso econômico e estrutural, quando olhamos para a diversidade ampliamos a possibilidade da dinâmica da vida, de construção, inovação, a partir do momento que se inova se concretiza mudanças importantes na vida como um todo. Um país que deslumbre o crescimento econômico, que amplie as possibilidades na diversidade consequentemente garante a evolução de sua nação, a diversidade deveria ser um processo prioritário dentro da política de estado (Almeida, 2018). Consideramos dentro dessa visão a juventude, em suas perspectivas e suas mais dinâmicas formas de se lançarem para vida, sendo que esta, se encontra altamente invisibilizada dentro do projeto colonizador racista. Ainda mais invisibilizada é a mulher nessa estrutura do atraso, que se encontra ainda operando, imaginemos a mulher negra, e ainda trans ou LGBTQIA+. Portanto merecemos identificar na sociedade as (os) intelectuais que subsistiram e se encontram ainda não projetados no processo educacional de nosso país. Autoras importantes como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento deveriam ser capa de revista em todos os artigos que situem proposta de descolonização social e do constructo social. Para Nascimento apud Ratts (2007) a história do negro foi apresentada pela ótica do colonizador, o que deixou um lacuna incalculável, delegando aos opressores os registros de uma história de falácias, pois o negro foi altamente podado nesse processo. Gonzalez (1983) apresenta uma visão crítica ao projeto ocidentalizado que desprezou a cultura e a contribuição de outras epistemologias em saberes, tendo através da linguagem um instrumento de poder. A trajetória da intelectual, ativista, professora, política, escritora e tantos atributos de Lélia Gonzalez transforma as epistemologias que levaram ao poder hegemônico, negligenciar tais contribuições. Para que haja uma transformação do quadro educacional brasileiro, é importante o conhecimento da vida e obras de Gonzaléz e Nascimento de demais autores que fizeram diferença na construção da sociedade brasileira. 522 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Contando com as desventuras particulares de Gonzalez em relação a sua história de vida, suas subjetividades afetadas pelo racismo, a conduziu para uma visão espetacular da sociedade, sendo que diante de um conjunto de oportunidades que ela vivenciou ao longo de sua vida. Ratts e Rios (2010) realizaram o retrato de um Brasil diferente, aos dados da autora Gonzalez, seus registros de uma evolução em quanto mulher filha de pai negro, mãe índia e o primeiro marido branco. Assim essa autora conseguiu capitalizar em tempos de inovação para o seu tempo, sob contexto da ditadura, e, atualizações em processos históricos políticos, o conceito de interseccionalidade de raça, sexo e classe. A aproximação ao universo da brancura, racismo estrutural, a qual estamos sujeitos, por situarmos nessa estrutura foi ressignificada pela autora, diante de muita luta no campo político e levando reflexões aos textos deixados como legado. Um legado que Beatriz Nascimento apud Ratts (2007) e Gonzalez idem Ratts (2010) levantaram em suas descobertas e ressignificações, diante das relações raciais no Brasil, a aparência física como o cabelo, determinado por uma sociedade que prioriza e cobra um padrão, um comportamento, tais autoras circularam por um novo lugar, e nesse lugar as cobranças de comportamento e modo corpóreo enquanto professoras na sociedade. As autoras diante dos seus processo nos mostra uma nova forma de vida, como se enunciassem: “eu vejo você” você faz parte dessa estrutura, você não é feio, seu cabelo não é “ruim”, você não é filho do diabo por conta de sua fé, a sua alma não é suja nem maldita, você é inteligente, você é o que você quiser ser. A descoberta da liberdade de padrões impostos pelo mundo patriarcal, machista, sexista, colabora para a elaboração de novas epistemologias sociais, considera as relações étnico raciais. Durante todo o processo escravista, pós abolição a identidade negra passou por conflitos diante das barreiras do racismo, da colonialidade do poder. As contribuições de intelectuais negros e negras no projeto que rompe com o pacto da branquitude, (que Bento (2016) trata, que entre eles existe um narcisismo) que fornece elementos para combater o racismo, precisaria ser constituído desde a educação básica de educação. Autoras como Carolina Maria de Jesus (1999) um marco potencial de intelectualidade e leitura da sociedade, a favela trazida para desestabilizar o mascaramento de uma sociedade que não tem nada de igual. O potencial feminino intelectual desprezado por essa estrutura racista, machista e sexista que temos. 523 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Contando a história da mulher negra na sociedade brasileira em termos de produtividade, no mercado de trabalho sempre foram consideradas ativas, ao contrário da mulher branca que vivia no ócio. No entanto as mulheres brancas na atualidade se destacam devido a questão da aparência, ser branco em uma sociedade racista é sinônimo de passaporte para o conforto material do capital. Proporcionalmente mais mulheres negras sempre trabalharam fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupou na vida das mulheres negras, segue hoje um modelo estabelecido desde o início da escravatura, como escravas, o trabalho compulsoriamente ofuscou qualquer outro aspecto de existência feminina. (DAVIS, 2013, P. 10) Logo precisamos focar em algo que a sociedade veja além do que foi mostrado, deixado a regalia de uma representatividade masculina, branca em nossa sociedade, e desassociando de uma imagem negativa a situação da população negra da sociedade. Diante de tantos descasos e operacionalização da natureza de naturalidade de um sistema patriarcal, machista e sexista, o olhar e o não ver, constituem-se automáticos, que precisa ser superado desse sistema opressor, 3. Considerações finais Segundo Ratts e Rios (2010, p. 617) “ Afirmação e reconhecimento fazem parte de espelhos entre pessoas negras em processo de construção de sua identidade racial”. Por isso o racismo precisa ser enfrentado conforme um processo de educação, mas que a visualização é um componente muito significativo, pois diante da nossa sociedade capitalista, racista, sexista, o consumo de uma imagem positiva do negro na sociedade provoca uma reflexão para encontrarmos o caminho da mudança social. Assim, é fundamental revisitar a história do Brasil sob uma ótica diferente, a partir da leitura de intelectuais negros(as). Na escala da hierarquia da opressão, a mulher negra se encontra em um patamar altamente excludente, levando a compreensão de uma solidão e apagamento de sua existência. Consequentemente situam-se nos mais baixos cargos, são menosprezadas sem ao menos terem o direito de mostrar suas potencialidades. A crueldade do racismo e da colonialidade do poder, transporta os corpos negros para uma marginalização. 524 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Levando em consideração a contribuição das autoras apresentadas neste texto, temos uma saída para realização da transformação da realidade opressora, visto que a partir de uma imagem da negritude de forma positiva, e desmistificação de estereótipo, a sociedade passa a enxergar-se e constitui-se distante do racismo que a moldou. Segundo Gomes (2018, p. 49) “ A emancipação entendida como transformação social e cultural, como libertação do ser humano, esteve presente nas ações da comunidade negra organizada, com todas as tensões e contradições próprias desse processo” , a autora reflete o quanto o movimento negro educou e se fez agente na ruptura da estrutura racista, para que as desigualdades sejam superadas. A educação é a ponte para a transformação social, portanto tais intelectuais negros e negras deveriam fazer parte do currículo desde a educação básica. A Lei 11.645/2008 na obrigatoriedade da história e cultura afro-brasileira e indígena, promove elementos para a quebra da estrutura racista, padrão na sociedade brasileira, é impossível essa quebra como as epistemologias ocidentais operantes, as contribuições de autores negros que foram negligenciados ao longo do processo histórico cultual passam a ser ferramentas de visibilidade social. Diante dessas reflexões, trilhamos o caminho para a desconstrução dessa violência que parece absurdamente invisível, despertando para uma educação que desarticule os mecanismos desse sistema que se encontra fadado, no limbo do atraso socio histórico, político e cultural. Como diz Evaristo (2016, p. 22) “ Escrever é uma maneira de sangrar” uma busca de sentido para o vazio causado pelas opressões da vida, a importância de tais registros nos conforta e leva a uma ação, a de romper com a crueldade do racismo, esse movimento descolonizador não pode parar. Referências bibliográficas ALMEIDA, Silvio de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte/MG: Letramento, 2018. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília/ DF: Presidência da República, 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 18 out. 2020. 525 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ______. 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Palavras-chave: Mulheres indígenas, contexto urbano, Garanhuns-PE. Introdução: A presença indígena na cidade não constitui dado novo, podendo ser vislumbrada paralela aos processos de construção citadinas. A novidade consiste no interesse dos pesquisadores que só recentemente passaram a olhar para a questão, ainda que pouco explorada. Tal fato talvez se deva há uma forte herança de um imaginário forjado no passado colonialista, o qual tende a dicotomizar os “índios” dos “não índios” em espaços distantes: os primeiros, tidos como selvagens, são vinculados às matas, os segundos, tido como civilizados, aos grandes centros urbanos. Este trabalho representa um esforço na construção de diálogos teóricos que forneçam subsídios para pensar à temática dos indígenas nas cidades, focalizando a presença feminina. Nesse sentido, cabe sublinhar a contribuição epistemológica da Antropologia Urbana e da História Oral a partir de um enfoque que se concentra nas margens. Ademais, o uso da fonte oral aparece como instrumento fundamental, uma vez que possibilitou o diálogo com os sujeitos da pesquisa. Foram entrevistadas quatro mulheres indígenas das respectivas etnias: Xucuru de Cimbres, Xucuru do Ororubá, Pankará e Kambiwá que, por razões diversas, Graduada em Licenciatura em História pelo Centro de Ensino Superior de Arcoverde – CESA (2018), graduanda em Pedagogia pela Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns, professora e autora do artigo. Contato: historia.veronica96@gmail.com 488 527 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X habitam a cidade de Garanhuns – PE. Optei por não as identificar por seus nomes, mas sim por suas etnias. Objetivou-se, ainda, apresentar as experiências de vida de algumas mulheres que somam as estatísticas, onde de acordo com o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Garanhuns – PE possui uma população de 246 indígenas (0, 19%) em domicilio urbana, oportunizando uma perspectiva histórica “vista de baixo” através dos testemunhos de “pessoas comuns”. Trata-se de contextualizar a história indígena, mais especificamente a história de mulheres indígenas em contexto urbano com os próprios relatos pessoais. 2. Existe índio na cidade? A partir do ano de 1991 os censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estática passou a incluir no quesito cor e raça a categoria “indígena”, repetindo nos censos subsequentes, de 2000 e 2010. Os resultados censitários para o ano 2000 apresentou significativo aumento de pessoas que se autodeclaravam indígenas em situação de domicilio urbana. No censo de 2010, foi acrescentado perguntas acerca do pertencimento étnico e língua falada para aqueles que se autodeclaravam indígenas. Apesar do número continuar se elevando, o aumento não foi tão expressivo quanto o indicado no censo anterior. Além disso, sob um macro prisma, houve uma inversão espacial, com o aumento da população em área rural e a diminuição na área urbana. Quando o foco recai na região Nordeste, os dados apontam o contínuo crescimento nos dois espaços, sendo Pernambuco um dos estados com maior proporção de povos indígenas. De acordo com o último censo, a cidade de Garanhuns – PE, lócus desse estudo, possuí uma população de 246 indígenas autodeclarados. Embora as mulheres representem uma parcela bastante significativa, pouco sabemos sobre elas. De antemão, podemos concluir com base nas cifras citadas, o obvio: que sim, existe índio na cidade, mesmo com os esforços do imaginário colonialista para apagar tal presença. O antropólogo Michel Agier (2015) escreveu um interessante trabalho de antropologia urbana, apresentando o lócus como um significante vazio, o qual é preenchido de sentido pelos diferentes sujeitos que o reivindicam. Apesar de compreender a cidade como um espaço que é constituído por um movimento dialético, no qual os citadinos sem cidades também fazem cidade. É no diálogo com Lévi Strauss que encontramos uma pista sobre o imaginário 528 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X colonialista que entende o índio como não cidade, como fora do movimento de fazer cidade. Agier expõe a ideia de Strauss de cidade como expressão máxima de refinação e civilidade. Ora, se os indígenas configuram o lado da barbárie, não haveria lugar para eles na civilização. Todavia, o lócus que se funda sob o viés branco, ocidental, normativo e que, consequentemente, apaga a diversidade, não condiz com o que propõe o autor, o qual nos leva a contestar e extrapolar as normas, fazendo-nos constatar que para além da visão estática, temse um intenso movimento que faz emergir às contradições sociais. Que faz perceber que os citadinos sem cidade também constroem cidade a sua imagem e semelhança. Sendo, portanto, possível vislumbrar forças sociais ocultas que transformam à cidade em um espaço para e dos excluídos, ou seja, “o fazer cidade dos citadinos sem cidade” (AGIER, 2015, p. 487). Michel Agier elabora uma noção pertinente à discussão, a de “cidade bis”, para sublinhar a possibilidade de uma cidade múltipla, a qual possa ser percebida sob a perspectiva dos próprios citadinos, bem como de suas práticas e relações. É importante lembrar que os conjuntos de elementos que caracterizam à cidade não são eternos e nem definitivos. A máxima de Agier, ao evidenciar que os citadinos sem cidade também fazem cidade, constitui uma chave de leitura fundamental à temática dos indígenas em contexto urbano. Ao destacar, com tamanha ênfase, populações em “locais fora do lugar”489, consegue demonstrar o quanto são estigmatizados e agrupados homogeneamente, o que não corresponde à realidade. Contudo, apesar de todos os pontos problemáticos e da notória desigualdade que enfrentam, o autor sinaliza algo extremamente positivo: o fato de ocorrer um movimento que os tira da invisibilidade completa através de sua insistente afirmação no espaço. Esse movimento é uma tomada do espaço tanto quanto uma tomada da palavra, é o momento político porque é aquele que cria uma situação radicalmente nova. Eis por que os atores da margem, citadinos sem cidade, ocupam um lugar à parte, precário, mas exemplar nos movimentos que fazem a cidade (AGIER, 2015, p. 491). O texto de Agrier toma como sujeitos os migrantes de modo mais enfático, além de mencionar outros grupos que ocupam às cidades e as constrói na precariedade, como os ribeirinhos, autóctones e etc., mas a discussão é igualmente rica para pensar em outros grupos sociais minoritários e que também configuram o lado dos excluídos citadinos, como os indígenas. 489 529 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Em suma, a concepção de cidade e o “fazer-cidade” deve ser compreendido como um processo sem fim, como um movimento que, em certa medida, direciona-se à uma conquista espacial. As lutas e ocupações urbanas é, segundo Agier, um “agir político”, um “direito humano”, “um direito à cidade” (2015, p.492) capaz de conduzir à uma transformação, inerente a este movimento permanente de trocas. 3. Vista indígena: quatro mulheres descrevem a experiência na cidade Xucuru de cimbres (estudante do curso de engenharia de alimentos na UFAPE): “[...] escuto piada de todo tipo “índio não tem celular, índio tem que morar em oca, não se veste assim.” Xucuru do Ororubá (estudante do curso de medicina veterinária): “É difícil para um indígena viver em cidades grandes porque a natureza faz muita falta, é ela que renova a nossas energias, ela faz nos sentirmos vivos, é nela que gostamos de estar.” Pankará (estudante do curso de medicina veterinária da UAG): “Podemos ser indígenas e ocupar outros lugares além da aldeia, mas as pessoas parecem ainda não aceitar ou não se dar conta disso [...] Às vezes dá medo, às vezes tentam fazer como sintamos vergonhas.” Kambiwá (estudante do curso de Agronomia da UAG e membro da associação de mulheres indígenas do povo Kambiwá): “Ouvimos muito que nossos lugares é na aldeia [...] precisamos nos deslocar das nossas bases para buscar aprendizagens para trazer para nossos espaços e assim poder soma-los junto ao nosso povo. E o que os não-indígenas não entendem é que podemos sim morar na cidade e continuar sendo indígenas.” A presença indígena na cidade é acompanhada de atitudes de extremos preconceitos, como observado na fala de algumas das entrevistadas. A inserção no contexto urbano resulta das mais diversas circunstâncias, só para citar alguns exemplos, encontrados nos diálogos com essas mulheres: tem-se, o ingresso no ensino superior, para se apropriar dos conhecimentos do não-índio e instrumentalizá-los a serviço de seu povo, os conflitos territoriais que culminou com a ida para cidade, a busca por sonhos, por melhorar de vida e etc. 530 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X É importante frisar, que, mesmo diante de uma acentuada invisibilidade, elas resistem e, por resistirem, elas existem. Uma vez que “ser mulher indígena brasileira é resistência, é força, é luta, é respeito, é amor pela natureza, é cuidado com nossa casa sagrada e com os que foram criados para viverem nela” (XUCURU DO ORORUBÁ, 2021). Ser mulher indígena é ser sujeito atuante, é se inserir nos espaços de poder e tomadas de decisões. “A voz de mulheres indígenas vem com peso muito grande, pois além de pedirmos por nossos direitos como povos originários, também exigimos o respeito perante nós mulheres indígenas” (KAMBIWÁ, 2021). 4. História Oral Indígena A História Oral constitui, para além de uma metodologia de pesquisa, uma alternativa à história oficial. De modo que, para o estudo de um grupo silenciado pela história oficial, representa um caminho interessante pra se respaldar. Ela concede uma contribuição de extrema relevância para a História Social, uma vez que o seu propósito é intrinsecamente social, é o historiador social que faz uso dos “dados orais para darem voz àqueles que não se expressam no registro documental” (PRINS, 2011, p. 194). Há três elementos básicos para o uso da história oral: o entrevistador (que pode ser mais de um), o entrevistado (que podem ser vários), e a aparelhagem de gravação (que pode ser apenas de som, como também de imagem, com filmagens, envolvendo outros participantes, além do entrevistador, e com outras implicações) (ICHIKAWA; SANTOS, s/d, p.2). É importante levar em consideração algumas variáveis, dado o contexto pandêmico ocasionado pela crise sanitária da covid-19, o pesquisador se ver obrigado a ser criativo, a encontrar outros tipos de aparelhagem, buscar outras alternativas para dar continuidade a suas pesquisas. As tecnologias de comunicação se revelaram ferramentas muito uteis e válidas para esse momento de crise, apesar de não substituir o presencial, o contato face a face, é o recurso disponível para o momento. Ednaldo Bezerra de Freitas sublinha a importância do registro oral para o resgate da história indígena no Brasil, ou mais precisamente nas palavras do autor: “para que se dê voz ao índio, que se escreva a partir do relato narrativo, do que o índio tem para expressar” (2004, p. 531 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 184). Trata-se de “dar voz, ouvir, dialogar, inteira-se dos mundos da memória, da verbalização da experiência, dos universos de subjetividades. Documentar os fatos que ficam à margem da oficialidade, dar oportunidade ao anônimo, a uma “história vista de baixo” (FREITAS, 2004, p.184). Os diálogos teóricos com o autor nos ajuda a construir um projeto de história indígena por meio do uso da fonte oral de modo contextualizado, ou seja, é preciso sim que se deixe falar o índio, mas que contextualize com uma conjuntura mais ampla. Conforme nos faz ver, é importante ter em vista: • O que este fala; • De onde fala; • As circunstâncias e os interesses que os orientam. Afinal de contas não existe neutralidade, como aponta Gwyn.Prins (2011) ao discutir a questão da “memória seletiva” presente nas fontes orais. O ser humano é movido por interesses, e por mais que esses interesses confluam para uma visão consistente da história, ela não se dar de forma separada da realidade política, social e cultural da qual o sujeito se encontra imerso. 5. Conclusões: Em suma, há três elementos de extrema relevância apresentados nesta discussão a serem considerados e aprofundados em trabalhos futuros. O primeiro diz respeito a necessidade de se realizar produções cientificas que tenham como objeto de estudo as mulheres indígenas, nas mais variadas espacialidades e temporalidades, levando em conta as dinâmicas sociais nas quais protagonizam, haja vista que os estudos historiográficos pouco as incluíram em suas produções. O segundo concerne a importância de se discutir a problemática dos indígenas em contexto urbano, sobretudo, focalizando a presença feminina, a partir de suas próprias vozes, narrativas e experiências. E terceiro, a possibilidade do trabalho com o uso da fonte oral para a construção de um trabalho cuja perspectiva é “vista de baixo”. Referências AGIER, Michel. Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro. Mana 21(3): 483-498, 2015. 532 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. 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[Entrevista concedida à autora]. Garanhuns – PE, 2021. PANKARÁ. Mulheres indígenas na cidade. [Entrevista concedida à autora]. Garanhuns – PE, 2021. KAMBIWÁ. Mulheres indígenas na cidade. [Entrevista concedida à autora]. Garanhuns – PE, 2021. 533 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ST09 – Territórios e Saberes Históricos: embates/debates Nativos americanos e abundância da abundância da Mata Atlântica: a exploração das naus europeias Anelisa Mota Gregoleti 490 Eduardo Mangolim Brandani da Silva491 Gabrielle Legnaghi de Almeida492 Nathália Moro 493 Resumo: As expansões dos impérios coloniais de Portugal e Espanha nas grandes navegações do século XVI, colocaram os colonizadores em contato com novos povos e com novos ambientes e, progressivamente, deixou claro que a diversidade de plantas e animais era muito maior e, de certa forma, mais complexa do que os pensadores do Velho Mundo podiam supor. Diante disso, analisar as descrições feitas pelos colonizadores do Velho Mundo pode auxiliar na compreensão da Filosofia Natural daquele período e, ter uma dimensão das consequências que geraram para o período contemporâneo. A Mata Atlântica, com toda sua exuberância, foi a primeira visão apresentada diante dos olhos europeus. Uma mistura de espanto e fascínio tomou conta dos colonizadores. Muitos, como o navegador italiano Américo Vespúcio (14541512), chegaram a questionar se não estariam diante do Éden. Logo houve a preocupação em analisar e catalogar a fauna e a flora do Novo Mundo. Por meio de crônicas, tratados e cartas, os europeus conseguiam provar que haviam chegado em novas terras e descrever aquilo que observavam e que mais lhes chamava a atenção. Naturalmente, entre a maior parte dessas descrições, encontravam-se os alimentos, tanto de origem vegetal quanto animal (FERRÃO, 1992, p. 10). No entanto, também não podemos desconsiderar que o grande impacto sobre a Mata Atlântica, como nos recorda Dean (1996, p. 59), teve início desde que os portugueses derrubaram a primeira árvore para construir uma cruz. Ao mesmo tempo em que encantava os naturalistas e colonizadores, a floresta também apresentava razões econômicas para a 490 491 492 493 Doutoranda em História no PPH - UEM Mestrando em História pelo PPH - UEM Mestrando em História pelo PPH - UEM Mestra em História pelo PPH - UEM 534 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X exploração e ocupação do Novo Mundo. Rapidamente os portugueses descobriram o potencial econômico atingido pelo pau-brasil (Caesalpina echinata) e deram início a exploração da Mata Atlântica (TONHASCA JUNIOR, 2005, p. 12). Palavras-chaves: Mata Atlântica; América portuguesa; século XVI. Introdução A Mata Atlântica foi a primeira paisagem que os colonizadores encontraram. Era exuberante e majestosa. Nada nela lembrava as florestas europeias, nas quais as plantas são pouco variadas e se distribuem de modo bem-comportado. Um misto de assombro e fascínio tomou conta dos primeiros exploradores. Estariam diante do Éden? “Se o paraíso terrestre está localizado em alguma parte da Terra, julgo que não dista muito desta região”, escreveu em 1502, extasiado, o navegador italiano Américo Vespúcio (1454-1512), que teve seu nome eternizado no novo continente. O encantamento dos forasteiros durou pouco. Logo eles começariam a destruir aquela floresta aparentemente inesgotável, dando início a uma tragédia ambiental que se agravou ao longo dos séculos e prossegue até hoje. A arte de classificar e registrar o mundo natural veio a se transformar em uma necessidade para compreender as funções das plantas, minerais, rochas, animais, etc. O cenário e as paisagens do território conhecido atualmente como Brasil, foram escritas e pintadas por diversos artistas, clérigos, exploradores e demais pessoas enviadas ao Novo Mundo. Esse conjunto de obra testemunha a variedade de tradições artísticas que combinaram com as novas paisagens visuais, por exemplo, a imensidão da paisagem despovoada e o estranhamento causado pela vegetação e pelos animais dos trópicos. (BELLUZO, 1999). Após a descoberta do Novo Mundo pelos portugueses, o chamado Brasil se tornou um dos destinos mais desejados atual território pelos exploradores europeus, devido às suas riquezas naturais. Nos três primeiros séculos de colonização, viajantes e jesuítas contribuíram para o conhecimento da fauna e flora. A partir do século XVI, com a era dos Descobrimentos, até o século XVIII, percebe-se através de relatos de viagem, a preocupação em obter fontes de proteína e gordura animal para o próprio sustento dos navegantes, e também o impulso sobre as redes de comércio das especiarias (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p.532-557). Os homens renascentistas e aqueles anteriores a eles possuíam uma percepção da natureza repleta de sentimentalismo e, em certa medida, antropocêntrica. Ao longo da era 535 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Moderna ocorreram diversas mudanças relacionadas à maneira como o homem observava a natureza e compreendia sua interação com os animais, plantas e a paisagem que o rodeava. A partir do século XVI, observou-se que a relação entre o Homem e o Mundo Natural começou a se transformar. Os animais passaram a ser classificados e considerados primeiramente como fontes de alimento, perdendo características sentimentalistas (THOMAS, 2010). Para os homens daquele período, a dominação em relação aos animais era importante, pois, demonstrava racionalidade, assim como servia de justificativa para a caça, para a domesticação, para o hábito de comer carne, para o extermínio de raças de predadores e animais nocivos, assim como qualquer outra operação feita em animal vivo com objetivo de realizar estudo ou experimentação (THOMAS, 2010, p.55- 56). A dominação sobre os animais e o conhecimento das espécies, eram fatores de extrema importância para a própria sobrevivência do homem. As questões relacionadas ao estudo da natureza estavam em foco ao longo dos séculos XV e XVI na Europa. À medida que a exploração se torna mais sistemática e extensiva, naturalmente a observação se torna mais exata sobre a fauna exótica conduzida ao interesse da história natural. A redefinição do mundo zoológico medieval, a introdução de novos hábitos e ações, o estudo geográfico, etnográfico, botânico, mineral, meteorológico e muito mais, despertaram o interesse em estudar a vida dos animais e o conhecimento integrado ao que os colonizadores vivenciavam e englobavam, fazendo com que a figura do animal não fosse independente (BOEHRER, 2007). A área delimitada no estudo é a região da Mata Atlântica brasileira, que compreende atualmente os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro (Carnaval & Moritz, 2008; Costa et al., 2000; Muller, 1973; Silva et al., 2012). Essa região foi cenário de importantes explorações geográficas e científicas ocorridas nos primeiros séculos de exploração pelos europeus. A Mata Atlântica sofreu grande perda florestal e biológica desde o início da colonização pelos europeus, constituindo uma importante região de interesse. Podendo ser considerada como uma região com grande carga histórica para ser estudada, explorada e analisada. A região da Mata Atlântica é uma área extremamente fragmentada e que vem sofrendo pressão de fora dos Trópicos desde os primeiros anos de colonização europeia. O uso das fontes antigas que remontam a presença de mamíferos nativos na região da Mata Atlântica no 536 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X século XVI trouxe revelações interessantes sobre a visão dos naturalistas e exploradores dos séculos passados. Mesmo com a falta de exatidão sobre o comportamento e ecologia desses animais nativos, esses documentos trazem informações importantes para a Zoologia atual. Objetivos Uma das contribuições da História Ambiental refere-se ao questionamento da noção de tempo cronológico, dominante no campo das ciências sociais, mas que não é suficiente para compreender ou explicar a evolução das florestas no planeta. Para explicar os processos evolutivos da natureza, precisamos da escala monumental do tempo geológico, que como adverte Drummond (1991, p.179), “tem evidentes implicações para pensar a aventura humana no planeta, mesmo que seja apenas para torná-la cronologicamente insignificante.” Afirmando que a História Ambiental representa uma tentativa “de ajustar os ponteiros dos relógios dos dois tempos -, o geológico (natural) e o social” (cronológico) -, o autor acusa a impossibilidade de pensarmos o destino das sociedades “sem ancoragem no mundo natural.” (DRUMMOND,1991, p. 180). As florestas sofreram modificações depois de eventos geológicos e sísmicos ocorridos na era Mesozoica, a partir de 200 milhões de anos, que iniciaram o processo de rompimento da massa terrestre da Pangeia. Primeiramente em dois subcontinentes e, depois, em porções menores que se tornaram, com o tempo, os continentes que conhecemos. A separação dos continentes provocou impactos determinantes na distribuição dos seres vivos. Isso aconteceu na medida em que o afastamento geográfico ocasionou mudanças climáticas significativas, que favoreceram a evolução de diferentes espécies da flora e fauna nas regiões formadas pelo afastamento. Esse fenômeno explica as espécies exclusivas (conhecidas como epidêmicas) de plantas e animais presentes em determinados ecossistemas da Mata Atlântica. Os relatos de viajantes, cronistas, religiosos e colonos, no contexto das descobertas, descrevem o Novo Mundo no intuito de informar aos seus superiores (rei ou membros da Companhia) as condições de potencialidades daquelas terras. Os viajantes cronistas observaram muito sobre o conhecimento dos indígenas. (RIBEIRO, 2006, p.6). Resultados 537 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sem entrar no debate sobre as primeiras migrações humanas no continente americano, recorro a um arqueólogo brasileiro, Prous (2006), que afirma serem inquestionáveis os resultados de pesquisas mais recentes que revelam a presença humana na América do Sul entre 11.500 e 13.000 anos atrás, citando alguns sítios brasileiros em Minas Gerais, no Mato Grosso, no Nordeste e na Amazônia. O desconhecido entre os séculos XVI e XIX foi descrito em crônicas, diários de viagens e textos científicos, porém os desenhos e xilogravuras também eram recurso de alto valor, pois funcionavam como uma extensão das descrições, constituindo uma conexão para os textos zoológicos (ENENKEL & SMITH, 2007). As obras dos aventureiros, viajantes e naturalistas sobre a fauna, flora e biodiversidade da Mata Atlântica constituem, não somente, informações de como o desconhecido era tratado pelos exploradores europeus no Brasil, mas também de registros históricos importantes e de informações de caráter geográfico e utilidade conservacionista. Os primeiros europeus que vieram para a América portuguesa se depararam com a Mata Atlântica, uma floresta úmida tropical com abundância em espécies da fauna e flora que ocupa toda a faixa litorânea e é predominante de 15% do território brasileiro. Sua extensão é do Norte ao Sul do Brasil. com extensão inicial era de 1.296.446 km2. Seu bioma possui florestas ombrófila densa, ombrófila aberta, ombrófila mista, estacional semidecidual, estacional decidual, savana, savana estépica, estepe, formações pioneiras, refúgios de vegetação e tensão ecológica com ilhas oceânicas (CAMPANILLI & SCHAFFER, 2010, p.56-60) Sua rica diversidade é resultante de clima úmido formado pela entrada de frentes de chuvas do oceano atlântico, juntamente com a influência dos trópicos por se estender através de várias linhas do Equador, com regimes de pluviosidade, insolação e oscilações de temperaturas. (SILA & CASTELETI et al., 2005, p.44) O estabelecimento do primeiro contato dos europeus com a Mata Atlântica, em um ambiente tropical, era um desafio imenso. A diversidade de insetos, animais selvagens, e clima quente da região quente e úmida foram de total estranhamento para os europeus que chegaram ao Novo Mundo (CROSBY, 2011). Devemos reconhecer que os povos nativos não eram inofensivos em relação aos bens naturais, sendo portadores de tecnologias, embora rudimentares, capazes de impor impactos na Mata Atlântica, evitando qualquer idealização sobre a vocação ecológica dos ameríndios, 538 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X incorrendo, como sugere Drummond (1997, p.31), num indesejável “etnocentrismo às avessas”. Podemos considerar, portanto, que as sociedades tribais em questão desenvolveram estilos de vida explorando os recursos naturais da Mata Atlântica, modificando-a, certamente, mas sem produzir rupturas ou danos ambientais irreversíveis. Quando o europeu chegou às terras do Novo Mundo e se deparou com a abundância terrestre, aquática e aérea, logo, quis investir na exploração desses recursos. A natureza tem o seu ritmo de produção, os animais tem o seu estilo de vida e reprodução, e tudo isso era respeitado pelos nativos. Não é exagero dizer que o futuro da caça está por toda parte ameaçado, podendo ser culpa humana. A pobreza da fauna fez com que em muitos países pregassem medidas de conservação (COSTA, 1963). Considerações Finais Se a Mata Atlântica e os povos nativos foram atingidos no primeiro século de colonização, nos dois séculos seguintes os impactos foram profundos e irreversíveis, com a apropriação de amplas porções de terra para o cultivo em grandes propriedades de terras e o emprego sistemático de mão de obra escrava, sobretudo de africanos. Ao final do terceiro século de exploração colonial, a Mata Atlântica sofreu perda significativa de sua extensão, principalmente nas áreas dominadas pela produção do açúcar - no nordeste e no sudeste da colônia -, além da região impactada pela mineração do ouro e diamantes. Estima-se que, ao longo do século XVIII, com a mineração, a lavoura de subsistência e a pecuária, cerca de 30 mil km2 de floresta tenham sido eliminados. Em 1800, cerca de 1.800.000 de habitantes viviam em áreas originalmente ocupadas pela Mata Atlântica, exercendo pressões diárias sobre os seus recursos e projetando um futuro sombrio para a preservação de sua riqueza natural, e que, ao ser atingida pelos cafezais, reafirmaria a perspectiva predatória já conhecida (DEAN, 1996). Assim, o entendimento de que os bens naturais, como as florestas, representam apenas um obstáculo a ser vencido - ou no máximo algum recurso a ser transformado em mercadoria -, integra a herança colonial mencionada, merecendo também um esforço teórico, filosófico, pedagógico e político para sua superação. Se desejarmos justiça socioambiental em nosso país, não devemos perder de vista que “a exploração da natureza foi realizada pari passu com a 539 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X exploração do trabalho de indígenas, africanos, libertos e mestiços, brancos pobres livres” (MARTINEZ, 2006, p. 28). O conceito de imperialismo ecológico e o problema de enfermidade no Novo Mundo precisam ser pensados de outro modo, evidenciando não só a questão das trocas biológicas e estranhamento geográfico, mas também o fazer humano e as trocas culturais entre colonizados e colonizadores. Pensar nessas trocas no Novo Mundo é válido quando sabemos das trocas mais amplas entre os povos. Analisando com isso o impacto das doenças europeias no Novo Mundo, e como os europeus também foram influenciados pelos aspectos biológicos dos nativos existentes nas áreas colonizadas (CROSBY, 2011). Foi a história das interações entre povos distintos que deu forma ao mundo moderno, epidemias, conquistas, genocídio, exploração indevida do solo, caça excessiva de animais, entre outras coisas. Esses enfrentamentos produziram consequências que ainda continuam presentes em áreas do mundo atual (DIAMOND, 2013). A cobertura de áreas protegidas na Mata Atlântica avançou expressivamente ao longo dos últimos anos, com a contribuição dos governos federais, estaduais, municipais e iniciativa privada. No entanto, a maior parte da vegetação nativa ainda permanece sem proteção. Atualmente, a região da Mata Atlântica é altamente prioritária para a conservação da biodiversidade mundial, abrigando 849 espécies de aves, 370 espécies de anfíbios, 200 espécies de répteis, 270 mamíferos e cerca de 350 espécies de peixes. (dados do Ministério do Meio Ambiente). Em termos pedagógicos, até o momento, a história da Mata Atlântica nos permite superar os marcos temporais que costumam limitar a consciência de crianças e adolescentes em nossas escolas, ao considerar a perspectiva do tempo geológico, sem o qual não compreendemos os processos evolutivos da natureza. Tal perspectiva histórica pode contribuir para desconstruir a forte vocação antropocêntrica da cultura escolar tradicional, que apresenta a natureza como fonte de recursos úteis, como se a história da natureza existisse apenas para servir aos propósitos humanos. Precisamos aprender, em nossas escolas, a reconhecer valores intrínsecos na natureza, se desejamos de fato construir sociedades sustentáveis. Podemos, ainda, afirmar a importância de conhecermos mais sobre a colonização humana do continente americano, que só recebe atenção nos currículos tradicionais depois do séc. XVI, como se nada 540 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de importante tivesse acontecido antes, revelando a perspectiva eurocêntrica e etnocêntrica que prevalece ainda nas narrativas dominantes. Referências BELLUZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. Faculdade de arquitetura e Urbanismo de São Paulo. Editora Objetiva. Metalivros, 1999. BOEHRER, Bruce. 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Costa (UFAL- CITCEM/PT) A proposição desta comunicação reside em questionar como os inúmeros tumultos, conflitos e riscos ambientais que estão causando impactos danosos à sobrevivência de um contingente populacional cada vez mais extenso têm se tornado visíveis aos historiadores. Como a historiografia tem abordado os problemas ambientais que nos desafiam de maneira tão “encarnada” (FEBVRE, 1953). Como conciliam às dimensões cognitivas plurais, os domínios, as abordagens e fontes? Quais são suas práticas científicas relacionadas à cultura, às interações comunitárias, à reprodução da vida, ao poder e à luta contra as multifacetadas formas de opressão? Há um campo epistemológico que instaure o combate pelos direitos comunitários historicamente inscritos em uma ecologia específica baseada no Conhecimento Tradicional? São algumas das questões inquietantes para as quais buscaremos respostas. Palavras-chaves: Historiografia Ambiental. Combates. Comunais. Nos dias atuais, os tumultos, conflitos e riscos ambientais que têm causado impactos danosos à sobrevivência de um contingente populacional cada vez mais extenso, são inquietações constantes na pauta dos historiadores. As catástrofes e as pungentes problemáticas relativa à qualidade de vida vem comprometendo de maneira intensa e extensiva, não só deslocando, mas exterminando populações de humanos e não humanos, comprometendo o bem viver na contemporaneidade. Desde a década de 1970, premidos pelas angústias provocada por tempos disruptivos, os historiadores vêm, sistematicamente, perscrutando às interações entre a vida humana e os fatores ambientais, entre os sistemas sociais e naturais contextualizadas no decorrer de diferentes periodicidades (PÁDUA, 2010, p. 86). Os acontecimentos se lhes apresentam como uma avalanche de escombros – desaparecimento de espécies, intervenções em conflitos armados que redundaram em crimes contra a humanidade (agente laranja, Hiroshima, Nagasaki), desertificação de extensas áreas, mudanças climáticas acentuadas, aquecimento 542 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X global, desastres ambientais (Mariana, Brumadinho e derramamento de óleo, afundamento do solo de uma parte do território de Maceió pela extração do salgema), endemia e pandemia – que, recorrentemente violam os direitos ambientais e nos fustigam como farpas nos termos colocados por Lucien Febvre, em 1953: “[...] conflito vivo e carnal das ideias encarnadas nos homens [e mulheres] e nos seus agrupamentos pululantes e contraditórios. (FEBVRE, 1985, p. 103/4).494 Este cenário nos coloca frente à urgência de participação e contribuição ativas desde o nosso ofício do pensar/fazer historiográfico Os estudos no campo da história ambiental495 que buscam atender aos clamores da atual conjuntura histórica, mira desde às “formas sociais de destruição ou de coevolução com a natureza [...] aos fenômenos históricos situados em ambientes concretos, na interação sociedade/cultura e natureza/mundo biofísico” (PÁDUA apud RODRIGUES, 2013, p. 92). Essa ampliação da análise histórica permite a reconstituição das redes de relações sustentáveis. E, diante dos infinitos rastros da vida e da morte, os pesquisadores da história ambiental apreendem, como todas as outras modalidades do fazer historiográfico, tanto um aparentemente insignificante pedaço de tecido, uma cruzinha azul ou sementes – “vestígios materiais dos instantes mais íntimos e menos verbalizados de pessoas às voltas com o espanto, dor ou o fingimento” (FARGE, 2009, p. 18) até volumosos processos criminais guardados em arquivos que têm o “mesmo formato, quase a mesma estrutura, informações, declarações de testemunhas, a sentença [...]” (FARGE, 2009, p. 10). Os historiadores ambientais lidam com uma vasta e diversificada tipologia de fontes documentais, sejam elas verbais, escritas e/ou audiovisuais: censos populacionais, econômicos e sanitários; inventários de recursos naturais e de bens; escrituras de compra e venda de terras; testamentos; material da imprensa; leis; documentos governamentais; atas legislativas e judiciárias; crônicas; mitos e lendas; relatos etnográficos; relatos de viajantes e naturalistas; memórias; diários; descrições de dietas, roupas, moradias, mobiliário; ferramentas e técnicas produtivas; estudos epidemiológicos; projetos e memoriais descritivos de obras (estradas, ferrovias); romances, desenhos, pinturas; fotografias e filmes; paisagens e observações pessoais. Este amplo e infinito espectro foi apontado em 1953, no trecho poético de Lucien Febvre: 494 495 FEBVRE, Lucien. Combates pela história. 2. ed. Lisboa: Presença, 1985. A primeira edição é de 1953). 1972 é o ano/marco criador deste campo de estudo na Academia, simbolizado pelo primeiro curso de História Ambiental ministrado pelo historiador da cultura Roderick Frazier Nash, na Universidade da Califórnia. 543 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A história se faz, sem dúvida, com documentos escritos. Quando há. Mas pode e deve fazer-se sem documentos escritos, se não existirem... faz-se com tudo o que a engenhosidade do historiador permite utilizar para fabricar seu mel, quando faltam as flores habituais: com palavras, sinais, paisagens e telhas; com fores de campo e com as más ervas; com eclipses da lua e arreios; com peritagens de pedras, feitas por geólogos e análises de espadas de metal, feitas por químicos. Em suma, com tudo o que, sendo próprio do homem, dele depende, lhe serve, o exprime, torna significante a sua presença, atividade, gostos e maneiras de ser (FEBVRE, 1985, p. 249). Para Julio Aróstegui, a relação estabelecida entre a aquisição das fontes documentais e os instrumentos operativos conceituais mais apropriados para torná-los “informações documentais” – é o lugar mesmo da alquimia da reformulação conceitual e penetração na realidade do histórico (2006, p. 488). Vale acrescentar a contribuição de Michel de Certeau quando discute sobre o papel que as informações documentais exercem diante da “operação historiográfica” (CERTEAU, 1982, p. 65). Decerto que este fabrico se faz no intercâmbio entre práxis e teoria. Segundo o historiador ambiental José Augusto Pádua, a história ambiental deve ser perspectivada como uma ampliação da análise histórica, pois, seu movimento expande “[...] as temáticas e dimensões da historiografia para além da história dos Estados e dos grandes personagens” (PÁDUA, 2010, p. 94). Um movimento que se manifesta nas várias dimensões cognitivas da história: a econômica, a social, a cultural, a política – interpelando-as com desafiantes problemáticas. Dentre essas problemáticas, singularizo às práticas científicas relacionadas a cultura, as interações comunitárias, a reprodução da vida, ao poder e a luta contra as multifacetadas formas de opressão. Para responder, recorro às reflexões estimuladas pelo argumento do sociólogo ambientalista Enrique Leff: [...] das ruínas do neoliberalismo ambiental, homens e mulheres edificam um outro paradigma – o da complexidade ambiental e do diálogo de saberes – este implica na “apropriação de conhecimentos e saberes dentro de distintas racionalidades culturais e identidades étnicas. São reelaboradas questões cognitivas para a apreensão da natureza e formação da sustentabilidade 544 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X partilhada por intermédio de novos conceitos, noções, categorias, narrativas, agentes históricos e estratégias de um saber/poder para a apropriação do mundo (LEFT, 2020).496 Complementa-o a afirmação do historiador ambiental Donald Worster497 sobre a aquisição por parte da história ambiental, do estudo de aspectos da estética e ética, do mito e folclore, da literatura e do paisagismo, da ciência e religião – ramificando-se “[...] a toda parte onde a mente humana esteve em voltas com o significado da natureza” (WORSTER, 1991, p. 210). Seu empenho quer, metaforicamente ir até às raízes da natureza humana: Agora chega um novo grupo de reformadores, os historiadores ambientais, que insistem em dizer que temos de ir ainda mais fundo, até encontrarmos a própria terra, entendida como agente de uma presença histórica. E para apreciar essas forças, devemos de vez em quando deixar os parlamentos, as salas de parto e as fábricas, abrir todas as portas e vagar pelos campos e florestas, ao ar livre. Chegou a hora de comprarmos um par de sapatos resistentes para caminhadas, e não poderemos evitar sujá-los com a lama dos caminhos. (WORSTER, 1991, p. 199). Os citados historiadores costumam sistematizar o campo de estudo com base numa tríplice partição: o nível do estudo da natureza como história; o nível da constituição socioeconômica das comunidades em sua inter-relação com os espaços geográficos; e, o nível da construção da relação simbólica humano-natureza. Mas como observa Pádua, os elementos do conhecimento ecológico e das ciências naturais se misturam nas dimensões da história: a econômica, a social, a política e/ou cultural ao construírem grandes narrativas (clássicas) que evoluem ao longo do tempo de maneira bastante linear. Todavia, considera que a novidade principal está na interação entre o natural e o social. (PÁDUA, 2010, p. 86). Do recorte “stricto sensu da produção bibliográfica” sobre o campo da história ambiental realizado por José Augusto Pádua, cito, apenas, algumas abordagens como exemplos: Webinar com o ecólogo Enrique Leff sobre “Os desafios para a História Ambiental na América Latina. ” (17/11/2020). Professor emérito do Departamento de História da Universidade do Kansas, é tido como um dos mais destacados historiadores clássicos do campo da história ambiental, tendo publicado vários livros e artigos relevantes. 496 497 545 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X uma história do Brasil a partir da destruição da Mata Atlântica elaborada por Warren Dean (1997); o manguezal na formação da história e na cultura do Brasil, particularmente os usos e representações dos mangues para os povos indígenas e populações pobres – um estudo de Arthur Soffiati (2006); a história da indústria madeireira na América portuguesa foi escrito por Shawn Miller (2000) e Diogo de Carvalho Cabral (2014), abordou a relação entre o corte de madeira e a produção agropecuária (PÁDUA, 2020, p. 1313/14/15). Estas e tantas outras referências – de livros, ensaios e artigos – compõem consistentes revisões historiográficas elaboradas tanto por José Augusto Pádua, quanto por Paulo Henrique Martinez (2005). O campo epistemológico da história ambiental se complexificou e elaborou outras configurações na dialeticidade mesma de seus próprios processos produtivos, cujos protagonistas fundamentam suas pesquisas numa “nova ordem ética ambiental integrando sociedade e natureza.” Deste campo particularizamos àqueles que instauram um combate pelos direitos comunitários historicamente inscritos em uma ecologia específica baseada no Conhecimento Tradicional. Destaco a declaração de José Augusto Pádua: “o historiador não se forma numa torre de marfim, ele se forma com as questões do seu tempo, com as suas inquietações pessoais” (2013, p. 91). Às inquietações pessoais que são também coletivas. Por exemplo, olhemos para o nosso país, nos chama a atenção às incessantes e programáticas políticas públicas que vêm agravando às injustiças históricas e sociais contra um contingente populacional majoritário. Como podemos pensar e agir para testemunhar, demonstrar e apoiar os projetos produtivos – de autogestão – das comunidades indígenas, comunidades quilombolas, comunidades rurais e urbanas. Existem muitas histórias para serem (re)constituídas: a dos “ movimentos sociais e organizações não-governamentais, práticas sociais e ações coletivas, partidos políticos, políticas públicas em diferentes níveis e articulações importantes no campo das relações nacionais e internacionais. (PÀDUA, 2005, p. 60). O cientista ambiental Luiz Antônio Ferraro Júnior e o economista Marcel Bursztyn descrevem a formação histórica dos “fundos de pasto” como áreas não cercadas de Caatinga, tradicionalmente utilizadas para pastoreio comunal e representam um padrão de ocupação que se desenvolveu no semiárido nordestino, passou por um processo progressivo de usurpação semelhante ao enclosures ingleses nas décadas de 1970 e 1980: 546 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X As comunidades são compostas por familiares, e há inúmeras práticas de compadrio. As identidades, os acordos e o diálogo são reforçados por essas relações. A documentação frágil e o pouco interesse em fragmentar as áreas dos “clãs” em unidades familiares contribuíram para a manutenção do regime comunal. O longo prazo de maturação dessa ocupação – mais de duzentos anos, em alguns casos – favoreceu um posicionamento firme por parte das comunidades, que passam a se perceber e a se afirmar como detentoras de direitos históricos. (FERRARO JÚNIOR & BURSZTYN, 2010). O etnohistoriador Dirceu Lindoso ao descrever o espaço das lutas cabanas (18321850) no livro Utopia Armada: rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real, 2005, nos mostra como nas extensões dessas matas: Os cabanos fizeram o uso comunitário das terras das matas, trabalho comunitário de organização insurrecional, a produção comunitária de autoconsumo e escambo, igualdade social, ausência de hegemonias étnicas ou estamentais e pluralidade religiosa. (LINDOSO, 2005). Para Dirceu Lindoso, esta insurrecionalidade camponesa, ágrafa, realizada pela massa popular dos campos e matas do sul de Pernambuco e do norte de Alagoas, abre no seu interior, a “brecha camponesa” – expressão que designa àquelas atividades econômicas que fogem ao sistema de plantação escravista. Esta economia é a base de um campesinato formativo comunal. Vale citá-lo: A economia de subsistência dos negros fugidos nos espaços das matas úmidas do sul de Pernambuco e do norte de Alagoas é bastante antiga, e teve seu ponto alto no século XVII, com o estabelecimento de uma confederação de mucambos de negros alçados, que passou à história com o nome de Quilombo dos Palmares. Neste caso, a brecha camponesa durou possivelmente um século, ou mais, e não cessou com a destruição dos Palmares em fins do século XVII. O espaço mucabeiro papa-mel, formado por mucambos autônomos, absorveu a brecha camponesa palmarina sob a forma de um proto-campesinato, que se foi inserir, a partis de 1832, no espaço insurrecional cabano. [...] Era uma economia de proto-campesinato 547 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X baseada na colheita de frutos silvestres, nas plantações de mandiocas e milharais, e no cultivo de raízes comestíveis (inhames, carás, batatas e mindubins) e de fruteiras de ciclo sazonário (LINDOSO, 2000, p. 112/13). Tanto o antropólogo Antônio Carlos Diégues, quanto o ecólogo José Geraldo Wanderley Marques atestam que os pescadores “caiçaras” fazem uso comum dos mangues, corpos d’água de lagunas e estuários regulados por “[...] um “ethos” marcado pelo ‘respeito’ através do qual os direitos comunitários e familiares são garantidos pela tradição, pelas festas, pelos mitos e lendas (DIÉGUES, 1993). Em Alagoas, a “caiçara” consiste num engenhoso sistema de pesca ou cultivo extensivo de organismos estuarinos baseados na noção de espaço de uso comum, apropriados pelos pescadores locais. (MARQUES, 1991). Alerto que não se trata de questões anacrônicas, mas tornar mais visíveis às experiências históricas – passadas, presentes – social e culturalmente construídas, que necessitam de investigações que resultem na fabricação de historiografias ambientais, cujas contribuições aloquem mais conhecimento histórico neste front de debates ou “comunidades epistêmicas” e “pragmáticas” onde os “[...] membros compartilham crenças baseadas em princípios, noções de validade e metas políticas”, particularmente, àquelas cuja ética ambiental498 orienta os processos e comportamentos sociais – individuais e coletivos – em direção a um futuro justo e sustentável; uma nova geopolítica fundada no pensar globalmente e atuar localmente (POLÔNIA, 2015). Resulta daí o importante apoio de um campo de produção de saberes que apoia resolutamente: [...] à criação de uma economia com bases produtivas e distributivas com a autogestão das comunidades na apropriação e transformação de seus bens e serviços ambientais para o uso comum, valorização de autonomias culturais, assessoria às estratégias de resistência às políticas de globalização e capitalização da vida. (LEFF, 1994). Para esta linha de pensamento convergem àqueles/as cujas considerações argumentam que a “ética para a sustentabilidade vai além do propósito de conferir à natureza um valor intrínseco universal, econômico ou instrumental.” A valoração dos bens comuns a partir das “O Manifesto pela Vida” surgiu do Simpósio sobre Ética e Desenvolvimento Sustentável, realizado em Bogotá, Colômbia, em maio de 2002. 498 548 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X culturas, crenças e sentimentos que, milenarmente vêm desenvolvendo intrínsecas relações, transformações e coevoluções com a natureza. (HABERMAS, 1986 apud COARASA; PEQUEÑO, 2006). Alfonso Coarasa e David Pequeño, professores499 engajados com temas relacionados à Filosofia da Educação Ambiental, problematizam o paradigma da “sustentabilidade”. Ao analisar tanto seus elementos de “lucidez”, quanto os de “ingenuidade”, expressam uma suspeição: “[...] uma versão politicamente correta e constituída de uma racionalidade instrumental que se consolidou como hegemônica desde os primórdios da Modernidade e da revolução industrial.” Aqui reside um tópico deveras importante para precisar os alcances epistemológicos deste campo de conhecimento, todavia, partimos da redefinição dos nossos objetos de estudo a partir de, como bem a chama Jacques Revel, a história “ao rés do chão”500, aqui traduzida como: O critério para valorizar o natural requer um ponto de vista muito mais abrangente do que a mera consideração dos retornos econômicos: o fundamental, como já apontou Marx, é não desenvolver políticas econômicas a partir do reconhecimento da escassez de recursos naturais, mas levando em conta, em primeiro lugar, os pressupostos sociopolíticos específicos que produzem a escassez efetiva a partir de um desequilíbrio distributivo excessivo (COARASA E PEQUENÑO, 2006). Por fim, corroboro as palavras do historiador Emmanuel Le Roy Ladurie (1974), ao declarar que os diversos temas da vida e do ambiente na agenda política são catalisados por uma interpretação ecológica da história – a história ambiental – cujo exercício de reconstituição narrativa permite-a ser mais inclusiva e descentralizadora no que diz respeito às decisões sobre os processos de produção e distribuição dos recursos naturais como bens comuns. Referências Universidade de Buenos Aires. REVEL, Jacques. Prefácio: “A história ao rés-do-chão”. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 26. 499 500 549 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X AROSTÉGUI, Júlio. O processo metodológico e a documentação histórica. In: A pesquisa histórica: teoria e método. Tradução de Andréa Dore; revisão técnica de José Jobson de Andrade Arruda. 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A morte por ser um processo natural inerente a vida, acomete todos os seres vivos, portanto perpassa todas as sociedades e temporalidades. Apesar dessa naturalidade, ela é lidada artificialmente. Esse processo, historicamente construído, está atrelado a determinantes culturais. Os ritos ganham vida por meio dessa relação entre questões culturais e aspectos naturais. Cada grupo possui uma maneira de lidar com seus defuntos. Os únicos padrões que se notam são o temor à morte e o horror ao cadáver (MOORE e WILLIAMSON, pp.3, 2003) (COLMAN, pp.42, 1997). Os indivíduos fugiam da morte nas primeiras sociedades. No entanto, aos poucos, os grupos sociais foram reconstruindo sua relação com o fim da vida. A ideia passou a ser a busca Eduardo Mangolim Brandani da Silva é mestrando em história pela linha de história culturas e narrativas no programa de pós-graduação em História da Universidade estadual de Maringá. Possui estudos na área de história das ciências da saúde e história das ciências da natureza. Faz parte do LHC (Laboratório de história ciências e meio ambiente). Anelisa Mota Gregoleti é doutoranda em história pela linha de história culturas e narrativas no programa de pósgraduação em História da Universidade estadual de Maringá. Possui estudos na área de história das ciências da natureza. Faz parte do LHC (Laboratório de história ciências e meio ambiente). Gessica de Brito Bueno é graduanda em História na Universidade estadual de Maringá. Possui estudos na área de história das ciências da saúde. Faz parte do LHC (Laboratório de história ciências e meio ambiente). 501 502 503 552 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de evitar a morte, o que designou diferentes ritos ao cadáver (MOORE e WILLIAMSON, pp.3-4, 2003). Esse confronto com a morte, suscitou em medidas de preservação cadavérica. O embalsamamento é uma metodologia muito antiga, que vem sendo realizada desde os primórdios da humanidade. Quando se compara diferentes culturas, com distintos aspectos religiosos, é possível compreender quais eram as intenções ao lado das mais diversas técnicas de preservação cadavérica utilizadas (COLMAN, pp.45-48, 1997). O embalsamamento, seja natural ou artificial, possui como produto restos humanos que possuem partes orgânicas preservadas, mantendo assim a forma e parte da aparência. As de tipo natural são aqueles produzidas em meio à local árido, seja com ou sem intencionalidade humana. Quando havia intenção nesse processo e havia o uso do espaço natural, a metodologia passa a ser considerado como natural- artificial. A mumificação mantém a estrutura intracelular apesar da perda da funcionalidade da célula (LYNNERUP, pp.162-164, 2007). Os autores Erich Brenner e Robert G. Mayer estipularam que existam três períodos distintos na história do embalsamamento, que se definem por meio das diferentes intenções para a conservação do cadáver. O primeiro período é chamado período das culturas antigas, se iniciando das primeiras evidências até o ano de 650 D.C; o segundo período é conhecido como período dos anatomistas (650 D.C. – 1861 D.C.) e o terceiro e último período é conhecido como período funerário (1861 D.C. – tempo presente) (BRENNER, pp.316, 2014) (JOHNSON et al, pp.983, 2012). O período das culturas antigas congrega uma multiplicidade de civilizações que possuíam uma visão de mundo própria. Os fatores religiosos e mágicos individuais aparentam ser o grande fator motivador da realização da preservação para as civilizações desse período, o mesmo valendo para técnicas e recursos (JOHNSON et al, pp.983, 2012) (THOMAS, pp.236, 1989). Na maioria desses grupos a intenção era de preservar o cadáver para que seu espírito, ou identidade, pudesse transitar ao seu respectivo paraíso ou pudesse continuar existindo no espaço terreno (MOORE e WILLIAMSON, pp.4, 2003) (THOMAS, pp.236, 1989). A relevância de se estudar um procedimento como esse é devido sua centralidade nessas sociedades (ARRIAZA et al, pp.196, 1998). Esse esquema apresentado sobre as eras do embalsamamento pode induzir à um grave erro de concepção temporal. O marco temporal de 650 D.C. esse ponto deve ser entendido como divisa entre duas eras do embalsamamento. O período anterior a esse ano é dito como o período das culturas antigas, servindo como identificação de modelos de embalsamamento com 553 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X enfoque religioso. Tal divisa se dá porque, por volta do ano 650 D.C., na Idade Média Europeia, surgiu o embalsamamento com foco na preservação da imagem do defunto. O erro que não deve ser cometido é o de achar que após o ano 650 D.C. não surgiram novas culturas que realizavam o embalsamamento com enfoque religioso. Os marcos temporais do embalsamamento referenciam o começo de novas intenções para embalsamar e não o fim das anteriores (BRENNER, pp.316, 2014) (JOHNSON et al, pp.983, 2012). Os Incas os Jívaro Shuar são duas culturas que surgiram após o ano de 650 D.C., portanto estão na segunda era do embalsamamento. No entanto por realizarem a preservação cadavérica com intenções religiosas, eles se enquadram melhor nos pressupostos da primeira era do embalsamamento. A ideia será expor como se davam as metodologias de preservação cadavérica desses dois grupos, assim como determinar a relação delas com os pressupostos culturais e religiosos dessas culturas. Com tais determinações, esse trabalho também busca evidenciar como as invasões espanholas alteraram as configurações culturais desses grupos, de forma que ficará evidente os impactos da invasão e colonização sobre esses ritos fúnebres. As múmias Incas: Embalsamamento, invasão e perda de conhecimentos no mundo incaico. Os Incas em se constituíram enquanto povo por volta do século XII, mas a estrutura de império só se consolidou em 1438. Enquanto que o grupo Inca se constituía em cerca de cem mil indivíduos, nota-se que o império era formado por 10 milhões de habitantes. Esse modelo imperial só foi possível devido a boa administração do grupo central, por meio de questões militares e vantagens de tipo econômico e de proteção. O império começou sua derrocada com a invasão espanhola em 1532, essa liderada por Francisco Pizarro, processo esse que logo será comentado (MONTGOMERY e KUMAR, pp.254-266, 2016). Os Incas por terem um império de larga extensão acabaram se apropriando de conhecimentos regionais que lhes foram úteis, um desses fora o embalsamamento. O que se nota é que haviam várias metodologias, tendo elas variado de acordo com a regionalidade e em relação à posição social que possuía o defunto que ia ser tratado (VREELAND, pp.168-169, 1998). Ao que tudo aparenta, apenas pessoas de alta hierarquia eram embalsamadas. No entanto, a metodologia dos imperadores e kurakas (líderes regionais) diferia das dos outros indivíduos (THOMAS, pp.231-232, 1989). Nenhum exemplar de múmia imperial remanesceu. Restaram apenas relatos de cronistas Incas e de Espanhóis que se depararam com elas. Dentre os motivos pensa-se na destruição por parte dos locais e a falta de cuidados por parte dos 554 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X espanhóis, que não as restauraram, provocando a deterioração delas nos séculos XVI e XVII (HEANEY, pp.21, 2018) (WEBB, pp.176-177, 2015). A múmia do imperador era conhecida como Yllapa, sendo ela um objeto de veneração que trazia luz aos indivíduos, pois era dito que ela continha o último sopro de vida do dignitário. É provável que a metodologia empregada no preparo da mesma foi apropriada de grupos andinos por volta de 1300 D.C. Os procedimentos técnicos encontrados nos relatos afirmavam ocorrer a evisceração onde o coração era retirado, secado e disposto num ícone de ouro, assim como a retirada do intestino. Substâncias balsâmicas eram aplicadas no exterior e interior do cadáver, sendo esse corpo levado a um local frio com incidência do sol, para que pudesse dessecar. Essa era a metodologia mais comum nas terras altas centrais (VREELAND, pp.170, 1998). Esse corpo recebia cera e tinturas para modelar, sendo ele todo enfeitado com penas de ouro e pedras preciosas (HEANEY, pp.5-6, 2018) (THOMAS, pp.231-232, 1989). Durante o período de um mês o corpo do imperador permanecia com suas vestes reais, assim como era disposto num trono (VREELAND, pp.171-172, 1998) (WEBB, pp.177, 2015). Depois de passado o mês a Yllapa era levada numa praça, para que ocorressem comemorações, pois ela ainda teria vida. Em seguida ele era colocado num palácio suntuoso, cheio de joias onde havia o corpo de outros imperadores mumificados (HEANEY, pp.6, 2018). O fato de que o imperador era colocado numa câmara junto de corpos de concubinas, esposas e lhamas que foram sacrificadas, assim como oferendas, nos leva a crer na ideia de um pós vida (THOMAS, pp.232, 1989). O papel do imperador mumificado era o de manter sua linhagem, pois uma vez que seu corpo fosse preservado, a existência de seu grupo estava assegurada (HEANEY, pp.6, 2018). Nenhum familiar ou indivíduo podia visitar a múmia do imperador, apenas os profissionais encarregados, que cuidavam de manter as provisões e oferendas ao corpo defunto (VREELAND, pp.172-173, 1998). Fora do planalto central, nas terras baixas e costa, as técnicas de mumificação variavam. No entanto, a evisceração aparenta ter sido uma constante nas diferentes metodologias desenvolvidas. O corpo era enrolado em tecidos, após isso recebia uma camada de algodão, seguido de mais uma camada de tecido e uma série de sementes de algodão, sendo muitas vezes aplicada uma corda ao redor (VREELAND, pp.170, 1998). No topo desse conjunto trabalhado, era colocada uma cabeça falsa que tinha sido ornamentada. Alguns dos corpos no interior desses mantos estavam muito bem preservados, enquanto outros encontravam-se bem deteriorados (WEBB, pp.178, 2015). 555 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Como colocado, haviam variantes locais. Em Pachacámac o corpo era tratado no método acima, recebia uma série de oferendas para o pós-vida e as cabeças falsas eram de diferentes materiais. Dentro desse grupo havia cabeças de madeira talhadas com conchas nos olhos, de cerâmica com detalhes coloridos e de pano pintado recheado com raízes e folhas (FLEMMING, pp.40-43, 1986). Na província de Carangas o processo era similar, havendo uma incisão abdominal para retirar as vísceras, sendo esse corpo dessecado pelo frio e sol e resguardado com oferendas (VREELAND, pp.170-171, 1998). No grupo Chacapoya a metodologia era similar. No entanto, as vísceras eram retiradas por um alargamento anal que depois era selado com panos. A pele nesse grupo era tratada com plantas andinas e esse corpo também recebia oferendas (WEBB, pp.178, 2015). O Kuraka recebia um procedimento similar àqueles citados que não eram o do imperador. No entanto, por ter uma posição social de liderança, os itens que lhe eram dispostos para o pós-vida eram únicos. Esses líderes regionais eram dispostos numa sala própria, de maneira que todas as suas posses lhe acompanhavam, assim como oferendas. Além disso, servos e mulheres sacrificados lhes serviriam no pós-vida, sendo esses cadáveres dispostos ao seu lado (VREELAND, pp.171, 1998). Toda essa miscelânea técnica se alterou com a chegada, invasão e colonização do espaço americano por parte dos espanhóis. O fim do mandato do imperador Wayna Kapaq em 1528 deu seguimento à um período de interregno. Esse era o processo habitual na transição de governos de forma que os líderes regionais entrariam em desavenças até que o novo imperador fosse escolhido. Tal cenário levava certo tempo até que os ânimos se acalmasse, no entanto isso não foi possível devido á chegada dos invasores espanhóis (FAVRE, pp.84-85, 2004). Os Incas já tinham tido contatos prévios com os espanhóis desde 1524, isso porque a expedição de Francisco Pizarro (1478-1541) fazia excursões de reconhecimento nas costas dos atuais Peru e Colômbia. Huáscar que era o pretendente imperial do sul, se aliou à tais indivíduos com a ideia de que isso possibilitaria uma mudança de forças na guerra travada contra seu irmão do norte, Atahualpa. A guerra ia assim ganhando corpo, de forma que esse processo acelerou com a prisão de Atahualpa por parte de Pizarro (FAVRRE, pp.86-88). A morte de Atahualpa pelas tropas de Pizarro, fizeram com que a guerra se configurasse. Caso os Incas não estivessem atravessados pela crise cíclica de transição de sua cultura, é bem provável que a dominação espanhola não tivesse sido tão fácil. Porém por outro 556 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X lado se Atahualpa tivesse sido poupado provavelmente o regime colonial teria sido instalado com maior facilidade. Isso fica claro pelos movimento seguintes à morte do pretendente imperial do norte, onde uma grande anarquia surgiu no interior do império, onde de certa forma esse se desfez. Sem uma burocracia central de comando, os grupos regionais entraram em guerra, de forma que antigas rivalidades foram evocadas. No longo prazo esse processo foi danoso à conquista espanhola que teve problemas na região até o século XVIII (FAVRE, pp.90-94, 2004). Frente à desestabilização do império Inca e a queda do poder central, nota-se que tais processos impactaram os conhecimentos tanatológicos contidos no interior desse domínio. Nota-se que os modelos regionais continuaram sendo produzidos mesmo após a invasão espanhola, pois esses grupos que eram dominados pela burocracia central do império foram conquistados apenas depois pelos espanhóis (HEANEY, pp.5, 2018). As Yllapas, como foi citado acima, não tiveram a mesma sorte dos outros corpos embalsamados. Primeiramente é preciso ressaltar que parte delas foram destruídas no processo da guerra. Os grupos regionais e os espanhóis destruíram parte delas, por serem símbolos de poder do império. No entanto nota-se que com o abafamento da guerra, parte dessas múmias imperiais ainda existiam (HEANEY, pp.7, 2018). Parte dos espanhóis considerava que essas múmias deveriam ser destruídas, no entanto devido ao estado de preservação desses cadáveres, tais patrimônios incas foram levados para a Espanha para que pudessem ser estudados. O problema é que os espanhóis levaram essas múmias para um local com outro clima, saindo de um ambiente árido e seco, para a região central da Espanha, que era menos seca. Esse cenário, aliado à falta de investimentos em preservar tais cadáveres, isso devido ao lapso desse conhecimento, fizeram com que essas múmias não existissem mais até o fim do século XVII. Tal conhecimento caiu no esquecimento no mundo andino, podendo se configurar como um epistemicídio (HEANEY, pp.11-15, 2018). Cabeças encolhidas: Os Jívaro-Shuar, a caçada de cabeças e a resistência ao epistemicídio. Dentro do espaço sul-americano surgiu, entre diferentes culturas, um fenômeno cultural chamado de “caçada de cabeças”. Sua presença, em diferentes partes do mundo, conota uma questão primitiva de muitos grupos. No entanto, uma etnia manteve essa metodologia até o século XX, os Jívaro-Shuar (ARRIAZA et al, pp.211, 1998). Esse grupo vivia na bacia do rio 557 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Amazonas, numa região montanhosa que fica ao sul do Equador e ao norte do Peru (JANDIAL et al, pp.1215, 2004) (SAUVAGEAU et al, pp.72, 2009). Essa técnica de embalsamamento vem desde períodos pré-coloniais, sendo que o diferencial dos Jívaro-Shuar, entre outras etnias de caçadores de cabeça, reside no fato de que estes encolhem o crânio para o tamanho de um punho adulto (ARRIAZA et al, pp.212, 1998). A cabeça preparada se chama Tsantsa. Ela funcionava como uma espécie de troféu e havia muitos motivos para sua busca (THOMAS, pp.233, 1989). O motivo para a promoção desse tipo de caçada se pautava na questão ideológico-religiosa, pois a morte natural de um indivíduo do grupo era considerada fruto de pragas feitas por outro grupo (JANDIAL et al, pp.1217, 2004). O processo era organizado pelo Kuraka do povoado ao lado do xamã, sendo uma batalha que poderia ter de cinco a cinquenta guerreiros, seu objetivo era obter o máximo de cabeças possíveis (SAUVAGEAU et al, pp.72, 2009). Todo o processo ritual em torno da caçada importava muito. O mesmo se iniciava com uma preparação na noite anterior ao começo da viagem. Os guerreiros bebiam cerveja de mandioca, se entorpeciam com um alucinógeno, Natéma, e o xamã bebia o Maikua, que permitia o contato com os antepassados. O grupo viajava, cercava o outro povoado, invadia o mesmo e focava em ataques de tacape com dardos venenosos. Quando necessário, lutavam com lanças de madeira. Com os inimigos mortos, as cabeças eram retiradas pelo pescoço num corte em V, sendo esse feito com uma faca de metal ou de madeira que eram depois deixadas no mesmo local (JANDIAL et al, pp.1217, 2004). O objetivo não era conquistar o território inimigo, mas sim garantir o máximo de cabeças possíveis. Depois do ataque, os invasores recuavam. O recuo se dava por medo dos espíritos raivosos na região, por isso as facas também eram deixadas para trás. Os Jívaro-Shuar retornavam à sua aldeia e davam início à confecção do troféu. A cabeça era toda escalpelada, sendo retiradas as entranhas e ossos, no entanto as cartilagens eram mantidas assim como o que restava do cabelo (JANDIAL et al, pp.1217-1218, 2004). Essa etapa era rápida levando de quinze à vinte minutos. No entanto, o processo completo geralmente levava oito dias (SAUVAGEAU et al, pp.72, 2009) (THOMAS, pp.233, 1989). Como a viagem de volta com as cabeças costumava demorar, em muitos casos as mesmas estavam em estado de putrefação ainda durante o transporte (ARRIAZA et al, pp.213, 1998). As cabeças eram então dispostas num recipiente com água de rio e plantas cozidas, havendo a presença de tanino, coagulantes e antissépticos. Se a cabeça estivesse fresca ela não 558 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X necessitava de calor, mas caso a putrefação tivesse começado ela era condicionada a um processo de aquecimento (ARRIAZA et al, pp.213, 1998). Esse processo levava de quinze a vinte minutos e, durante o mesmo, havia a recitação de passagens rituais importantes (JANDIAL et al, pp.1218-1219, 2004). O crânio tinha seus orifícios selados com fibras vegetais e gravetos, enquanto que o topo era selado pelos cabelos abundantes (ARRIAZA et al, pp.214, 1998). A cabeça era colocada numa estaca e assim os Jívaro- Shuar reiniciavam a marcha de volta ao seu povoado (JOHNSON et al, pp.1000, 2012). O processo de encolhimento dependia da introdução de pedras e areia quentes que tinham sido previamente aquecidas num prato. A cabeça recebia primeiro a areia, sendo chacoalhada para se espalhar e depois recebia pedras, processo que conforme a redução desse saco de pele, ia necessitando da introdução de pedras cada vez menores (THOMAS, pp.233, 1989). A preservação do crânio significava manter o inimigo preso e reduzido ali, sendo as pedras quentes úteis para acalmá-lo (JANDIAL et al., pp.1219, 2004). Óleos vegetais e gorduras eram utilizados para modelar a face, portanto seu escurecimento vem desses fatores e da fumaça das pedras e areias aquecidas (ARRIAZA et al, pp.214, 1998). Esse saco de pele era recheado com carvão e por fim estava pronta a Tsantsa (THOMAS, pp.233-234 1989). O processo em si tinha mais de uma motivação. A primeira delas era o de poder libertar os antepassados de seu grupo, pois se alguém morrera por um sortilégio, o rito final da Tsarutama poderia libertar este antepassado (JANDIAL et al, pp.1220, 2004). O crânio também funcionava como um troféu e um amuleto, pois detinha os atributos do indivíduo decapitado, uma vez que o guerreiro inimigo tinha seu espírito ali encerrado, podendo este ser evocado. Esse processo pode parecer muito violento. No entanto, tais valores eram construídos entre esses grupos dentro de um modelo ideológico pautado em crença construído desde a infância. Cabe ressaltar que a vida seria então mantida no pós- morte, só que encerrada dentro desse crânio e utilizada pelo seu possuidor (ARRIAZA et al, pp.210-214, 1998). Esse grupo teve de lidar com mais de um tipo de tentativa de dominação. Primeiramente eles sofreram sucessivas tentativas de serem agregados pelos Incas entre os séculos XV e XVI. No entanto eles conseguiram barrar essas invasões sucessivas vezes, de forma que se mantiveram separados do império (JANDIAL et al, pp.1217, 2004). Além das tentativas de invasão Incas, nota-se que esse grupo não foi conquistado pelos espanhóis. Inclusive todas as tentativas dos invasores em estabelecer acampamentos espanhóis na região 559 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X bacia do alto Amazonas culminaram em fracassos possuidor (ARRIAZA et al, pp.210-214, 1998). Esses grupos locais tiveram de lidar com múltiplas tentativas de invasões por parte dos espanhóis. Inclusive no século XVIII houve uma grande incursão contra eles, de forma que a resistência dos nativos exigiu que povoados rivais tivessem de se unir contra essa incursão. O resultado foi a derrocada dos invasores, o que lhes garantiu segurança até o fim do século XIX (JANDIAL et al, pp.1219, 2004). Uma curiosidade é notar que devido à longa duração desse grupo, as cabeças- troféus vieram sendo produzidas até o século XX. No decorrer do século XIX é possível notar que esses grupos foram se desagregando, de forma que suas populações foram diminuindo. Nesse século conforme suas áreas foram sendo cada vez mais ocupadas pelos invasores nota-se que o interesse por esses crânios preservados se ampliou. Muitos estrangeiros buscavam possuir essas cabeças para compor acervos de curiosidades o que gerou uma série de cabeças falsas, preparadas a partir de animais ou por meio da obtenção de cabeças de defuntos em hospitais da região. As cabeças falsas passaram a ser vendidas como acessórios, sendo apenas possível diferenciar as falsas das verdadeiras por meio de uma análise forense com recursos bioquímicos (SAUVAGEAU et al, pp.72-74, 2009). Esse cenário expõe que esse costume religioso e sagrado para os Jívaros mas considerado primitivo e barbárico pelos estrangeiros, foi apropriado como um modelo de curiosidade comercial. Esse modelo foi sendo deixado de lado gradativamente conforme os Jívaros foram perdendo seus espaços. Tanto o modelo original religioso, quanto os falsos de tipo comercial perduraram até as duas primeiras décadas do século XX. O interessante é observar a transição de uma visão estrangeira que considerava esse ato barbárico, para uma apropriação de curiosidade comercial. Conclusão No início deste material foi dito que o primeiro período de embalsamamento foi até 650 D.C., momento esse em que o segundo período surgiu (BRENNER, pp.316, 2014). De fato, a partir de 650 D.C, o ato de embalsamar incorpora novas finalidades (JOHNSON et al, pp.983, 2012). Posto isso, as intenções que estimavam a garantia do pós-vida não desapareceram a partir de 650 D.C. A divisão dos períodos designa que intenções dentro de novos paradigmas surgiram e não que as outras desapareceram. Portanto, enquanto na Europa 560 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X se tem, a partir de 650 D.C., a intenção voltada à proteção da imagem do defunto, nos outros locais a ideia ainda era proteger a alma ou essência do morto (BRENNER, pp.316, 2014). Essa prática com intenções religiosas ainda era vista no terceiro período, a Era da indústria fúnebre, que começou em 1861 D.C., isso bem aparente pelas cabeças encolhidas dos Jívaros (JOHNSON et al, pp.983, 2012). É interessante colocar os métodos de embalsamamento desses dois grupos de forma à pensar elementos sociais e culturais semelhantes ou diferentes que eles possuíam entre si. No caso dos Incas apenas a elite e membros da corte poderiam ser embalsamados, enquanto que os Jívaro tinham um sentido coletivo, mas com especificidades. Isso porque no caso dos Jívaros, a caçada de cabeças fazia com que qualquer indivíduo pudesse ser executado para esse propósito. Quando se pensa nos estudos de gênero, nota-se que nos dois casos tanto homens quanto mulheres poderiam passar pelo embalsamamento. No caso dos Jívaros, a caça de cabeças trazia esse cenário de uso de qualquer crânio. No caso dos Incas, nota-se que a prioridades para essa preservação se dava sobre os líderes, e esses eram homens. No entanto como as esposas e serviçais do imperador e dos Kurakas eram embalsamados para o pós-vida nota-se a presença do embalsamamento para cadáveres femininos. As premissas mais coletivas em relação ao embalsamamento se davam no decorrer da história em relação à grupos com menor grau de diferenciação e hierarquia social. Isso fica bem aparente no caso do Jívaros e dos Incas. Os Jívaros possuíam baixo grau de hierarquia social e o embalsamamento se dava sobre todos os inimigos capturados. No caso dos Incas que possuía uma sociedade muito diversa e dividida, o embalsamamento era limitado apenas aos indivíduos em posições de poder. Dentro de questões religiosas, nota-se que o embalsamamento poderia ser para manter o espirito do indivíduo num plano terreno ou como garantia desse indivíduo ter acesso ao paraíso. Os Jívaros preservavam as cabeças para utilizar as forças de seus inimigos, portanto era um modelo de manter a alma num plano terreno. No caso dos Incas a ideia era de garantir que o dignitário tivesse acesso ao paraíso, este pensado como existente em outro plano (BRENNER, pp.316, 2014). A última questão a ser colocada remete às diferentes maneiras que foram propostas para embalsamar. As inspirações de cada grupo se deram de acordo com as condições ambientais que lhes cercava. É por meio das primeiras tentativas de conservação de corpos, 561 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X fosse na observação ou realização de mumificação natural, que esses grupos começaram processos tanatopráticos de preservação (LYNNERUP, pp.162, 2007). Com relação a certas culturas foram os dois fatores, geografia e costumes internos, como a defumação da caça, que propiciaram tal prática. Em outros foi apenas um deles, pois as condições ambientais poderiam não ser propicias para ser natural, ou o grupo não realizava defumação nem salgavam a carne, estando dependentes de um dos dois fatores (COLMAN, pp. 48, 1997). Existem diferentes modelos, mas aqui vale citar que tanto Incas quanto Jívaros fizeram uso da evisceração ao lado do dessecamento. O processo de invasão da América por parte dos espanhóis ao lado das dinâmicas de colonização acabou por solapar as estruturas internas das sociedades Ameríndias. A desorganização social gera impactos em todos elementos pertencentes da malha social, inclusive aqueles de ordem técnica. No caso dos Incas nota-se que esse processo foi mais severo. Mesmo que os Incas não tenham deixado de existir, nota-se que o império se desagregou rapidamente com a guerra instaurada por Pizarro. Portanto os conhecimentos centrais, assim como parte de seus patrimônios materiais e científicos foram perdidos. Esse processo pode ser configurado como um epistemicídio (HEANEY, pp.11-15, 2018). O epistemicídio nesse caso se deu porque o poder central Inca foi perdido, portanto não havia mais um imperador para ser embalsamado para gerar a Yllapa. As múmias imperiais que não foram destruídas na guerra, foram destruídas pela ação do tempo, pois os espanhóis não sabiam lidar com elas em sentido de restauração. Sem a organização do grupo original que tinha noção de como realizar esse embalsamamento, esse conhecimento técnico foi perdido, configurando assim o epistemicídio. No caso dos Jívaros não houve um processo de conquista tal qual se deu sobre os Incas. Esse grupo resistiu tanto às tentativas de dominação do império Inca, quanto às empreitadas da colonização espanhola. Esse cenário permitiu que esse grupo existisse e realizasse a produção das Tsantsa até o começo do século XX. No entanto os avanços sobre as terras desse grupo no século XIX, fez com que suas cabeças preservadas fossem notadas pelos estrangeiros como uma curiosidade. Isso levou à produção por parte dos colonizadores de cabeças falsas para a venda delas, o que denota uma apropriação. Os Jívaros existem até hoje mas possuem outras configurações sociais. Ambos os grupos lutaram e resistiram às invasões estrangeiras de intenção de colonização. Os Incas sucumbiram devido ao momento frágil que se encontravam durante a 562 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X invasão, enquanto os Jívaros permaneceram existindo. Por fim é interessante notar que o colonizador frente ao conjunto de conhecimentos dos colonizados pode optar pelo recusa e descarte das técnicas, que pode suscitar num epistemicídio como se deu com as Yllapas. No entanto, o colonizador pode se interessar pelos produtos nativos, de forma que ele se apropria e ressignifica esse objeto e técnica à seu bem entender, independente de quão sagrado é para o grupo nativo, como se deu com as Tsantsa dos Jívaros. Referências ARRIAZA, T.B., ARROYO, F.C., KLEISS, E. e VERANO, J.W. South American Mummies: Cultures and disease. In: Mummies, disease and ancient cultures. 2 ed. Cambridge: Cambridge university press, 1998, pp.190-234. BRENNER, E. Human body preservation – Old and new techniques. Journal of Anatomy, V.224, pp.316-244, 2014. COLMAN, P. Corpses, coffins and Crypts, A history of burial. 1 ed. Nova Iorque: Henry Holt and Company, 1997. FAVRE, H. A civilização Inca. 1 ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2004. FLEMING, S. The Mummies of Pachacamac. Expedition Magazine, V.28, N.3, pp.39-45, 1986. HEANEY, C. How to Make an Inca Mummy: Andean Embalming, Peruvian Science, and the Collection of Empire. Isis, V.109, N.1, pp.1-27, 2018. 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Resgatar a história local também é uma forma de recuperar nossa história, nossas origens, permitindo lidar com uma simbologia muito forte para a cidade e seus habitantes, valorizando suas lembranças construindo a História Local através da Memória Coletiva. Analisando as consequências e benefícios da construção da Usina Hidrelétrica - Luiz Gonzaga pela CHESF e a forte intervenção do Estado e sua relação com a população local no período entre 1940 e 1988, Petrolândia foi palco de vários empreendimentos ao longo dos anos como a estrada de ferro, implementação do projeto de irrigação contra a seca e a construção da Usina de Itaparica. A construção da Usina Hidrelétrica resultou na inundação da cidade velha pelo lago de Itaparica forçando a transferência dos habitantes com o discurso do progresso, para a presente cidade em 06 de março de 1988. Em virtude da construção da Usina, a cidade de Petrolândia, é um dos dez maiores arrecadadores de impostos e o mais importante município do Sertão do Submédio do Vale do São Francisco. Palavras-chaves: Petrolândia, História, Memória e Sociedade. Introdução Este trabalho tem como objetivo de estudo refletir os conceitos da historiografia, atendendo os aspectos culturais da Velha Petrolândia. O interesse da História pelas pessoas comuns insere-se no Movimento dos Annales que oferece auxílio para as novas gerações de historiadores, tornando possíveis as pesquisas regionais, locais e uma história cheia de questionamentos. A primeira geração da Escola dos Annales é liderada por Marc Bloch e Lucien Febvre. O movimento contribuiu para a renovação da historiografia no final da 504 Mestranda PPGH-UFAL – erica.menezes@delmiro.ufal.br 565 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X década de 1920, facilitando uma discussão entre a história e as ciências sociais, rompendo com os paradigmas da história tradicional positivista. Segundo, Burke (1992) a nova história corresponde a terceira geração da Escola dos Annales, ela enaltece o resgate da memória, do cotidiano, das pessoas comuns, das mulheres e dos imigrantes, “a nova história começou a se interessar por virtualmente toda a atividade humana” (BURKE, 1992, p.11). A vida cotidiana também é abordada nos estudos sobre sociologia e filosofia, ambos refletem o mundo as experiências comuns, como valores e comportamentos. A historiografia procura transmitir ao leitor o cotidiano e a vida dos indivíduos em uma determinada cultura, cidade, estado ou país. A pesquisa foi realizada na revisão bibliográfica sobre a cidade de Petrolândia, em Pernambuco, onde será desenvolvido esse estudo de caso. Discorre-se um pouco sobre a sua história e apresenta alguns momentos importantes como o período de ocupação e a ligação existente entre sua história com Jatobá, Tacaratu e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF). Os tópicos abordados objetivam ampliar o conhecimento da história regional do Município de Petrolândia, estimulando o ensino da história das comunidades trazer essa relação entre passado-presente onde o comportamento faz com que os indivíduos se transformem em cidadãos participantes na história da sua cidade só pelo fato de se reconhecer e de reconhecer o outro, contribuindo para o seu conhecimento histórico. Segundo Aróstegui (2006, p. 216) a Micro-história trouxe grandes contribuições no “estudo de história local” na condução de novas ideias no que diz respeito ao uso de fonte oral. Contudo, a História Oral se completa com o uso de outras fontes como a bibliográfica e fotográfica na análise de uma sociedade. De acordo com Reis (2012, p.110) a Microhistória favorece o historiador no trabalho de “restaurar a memória” através dos vestígios deixados “involuntariamente”. O autor cita Carlos Ginzburg: São os detalhes deixados involuntariamente que revelam a totalidade e se a realidade/sistema quer se manter invisível e indecifrável, opaca, há sinais, indícios, que permitem decifrá-la e tornar visível sua violência. A microhistória, ao reconstruir o passado, serve à denúncia e à ação contra a ordem. Através dela, o todo torna-se visível, o sistema não é uma entidade extra- 566 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X história, mas real, e sua contestação pode ser feita (Ginzburg, 1990, 2007). (IBDEM, 2012, p.110) Nesse contexto, o embasamento teórico metodológico deste projeto de pesquisa tem como metodologia a pesquisa exploratória, proporcionando maior aproximação com o problema e aprimoramento das ideias. Para Gil (2007, p.41) “o planejamento da pesquisa exploratória” é bastante flexível, nesse caso “assume a forma de pesquisa bibliográfica e de estudo de caso”. A escolha da pesquisa bibliográfica e o estudo de caso tem como propósito valorizar a história local do município de Petrolândia nas aulas de história. Boa parte dos estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas bibliográficas. As pesquisas sobre ideologias, bem como aquelas que se propõem à análise das diversas posições acerca de um problema, também costumam ser desenvolvidas quase exclusivamente mediante fontes bibliográficas. (GIL, 2007, p. 44) A pesquisa bibliográfica foi desenvolvida a partir de uma listagem de referências teóricas como materiais publicados em artigos, livros, dissertações e teses. Conforme (Fonseca, 2002, p.32) com o objetivo de recolher informações ou conhecimentos prévios sobre o problema a respeito do qual se procura a resposta. Um estudo de caso pode ser caracterizado como um estudo de uma entidade bem definida como um programa, uma instituição, um sistema educativo, uma pessoa, ou uma unidade social. Visa conhecer em profundidade o como e o porquê de uma determinada situação que se supõe ser única em muitos aspectos, procurando descobrir o que há nela de mais essencial e característico. O pesquisador não pretende intervir sobre o objeto a ser estudado, mas revelá-lo tal como ele o percebe. O estudo de caso pode decorrer de acordo com uma perspectiva interpretativa, que procura compreender como é o mundo do ponto de vista dos participantes, ou uma perspectiva pragmática, que visa simplesmente apresentar uma perspectiva global, tanto quanto possível completa e coerente, do objeto de estudo do ponto de vista do investigador (FONSECA, 2002, p. 33). 567 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Para Aróstegui (2006, p. 446) algumas teorias acabam incluindo a outras, criando etapas na pesquisa e o estudo de caso é um método qualitativo que proporciona um conhecimento mais profundo em determinados grupos, compreendendo melhor os fenômenos individuais permitindo um amplo e minucioso conhecimento sobre o tema. A importância da história local como fonte metodológica O uso da História Local contribuir para uma compreensão diversa da História, principalmente como base nas pesquisas históricas; pois, é através dela que pessoas comuns buscam compreender as transformações que aconteceram em suas vidas, tanto social, tecnológico e intelectual. Seu domínio de ação é essencial para o resgate histórico de diversas culturas, exemplo, as que não utilizam a escrita, como é o caso de algumas comunidades indígenas, as quais apresentam culturas peculiares e na “experiência histórica de pequenas comunidades” (ARÓSTEGUI, 2006, p. 227). O que se recomenda com essa nova possibilidade da História é a atribuição de um novo sentido do olhar do historiador, através da sua problematização, conforme se percebe perceba o seu arredor como construído historicamente e que, consequentemente, como sujeito histórico, suas escolhas estabeleça uma construção histórica. Segundo Reis (2012, p. 27) “O passado é o local da experiência: sido, acontecido, vivido” que enxerga o “tempo histórico” como retrato mental na construção cultural de uma determinada sociedade. Transmitir a memória de alguém desde a sua infância e juventude na velha cidade é reviver a história como sujeito participante de uma história já vivida e reservada na memória e na expressividade da narrativa de pessoas que guardam uma saudade daqueles velhos tempos. Nenhuma das grandes histórias das civilizações conseguiu eternizar suas histórias sem a preservação do seu passado, tanto na memória individual, coletiva e social. Para Reis (2012, p. 55), “a memória não é do passado, mas instrumento que torna o presente a ele mesmo”. Consequentemente, o alicerce social da memória alcança a vida diariamente, tanto no emprego, com a família, nos grupos sociais, na história, na música, arte, literatura, em toda memória social existente e o critério para distinguir a memória social da coletiva muda conforme a ideologia dos autores Segundo Menezes (1984, p. 33) toda 568 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X memória individual e coletiva transforma-se em base fundamental da identidade, sua essência absorve as “informações, conhecimento, experiências individuais ou social”, caracterizando dando forma e clareza para a inteligência. História de uma velha cidade no interior de Pernambuco Compreender a memória histórica da cidade de Petrolândia (PE) tem como objetivo focalizar as mudanças da paisagem urbana, com a obra da Usina e seus espaços construídos e modificados, permitindo lidar com simbologia muito forte para a cidade e seus habitantes. Petrolândia nasceu de um bebedouro à sombra de um Jatobá; pois, era comum nas margens de um rio ter sempre um lugar ideal para dar água ao gado à sombra de árvores. Realmente, muitas cidades nasceram à margem de rios. Em 1960 até 1977 em Quixaba passava uma das paradas de trem que vinha de Petrolândia à Piranhas (AL), onde embarcava a população que morava em (Curral do Bois) Glória antiga, Forquilha (Atual Paulo Afonso), Brejo dos Padres etc. O motivo de Petrolândia ter nascido foi escolha do lugar para a construção da estrada de ferro Paulo Afonso, que estava prevista para ser na Vargem Redonda, lugar mais habitado e conhecido (citado nos relatórios exigidos por D. Pedro II), o engenheiro responsável resolve fazer a estação na fazenda Jatobá por ser uma povoação também tinha bebedouro e curral. (FERRAZ, 2007, p. 28) Durante os anos 1970 e 1980, a construiu a Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga que resultou na inundação da antiga cidade pelo lago de Itaparica, forçando a transferência dos habitantes para a presente cidade, em 06 de março de 1988. Em virtude da construção da Usina, a cidade de Petrolândia (PE) é um dos dez maiores arrecadadores de impostos e o mais importante município do Sertão do Submédio São Francisco. Após a obra da Usina e a mudança entre Petrolândia Velha para a Nova Petrolândia, a cidade ficou conhecida pela sua Igreja do Sagrado Coração de Jesus, submersa nas águas do rio São Francisco até os dias atuais. Petrolândia nasceu de um simples bebedouro que ficava ao lado de vários jatobazeiros nas fazendas de Brejinho da Serra e de Fora, que durante um século o espaço 569 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X era conhecido e frequentado somente pelos vaqueiros e chamado de bebedouro de Jatobá505. Em 1859 o Imperador D. Pedro II em suas viagens pelo Norte do Brasil ficou encantado ao conhecer a cachoeira de Paulo Afonso, e passou a nutrir a ideia de unificar economicamente o Médio ao Baixo São Francisco através de uma via férrea. Colocando o plano em execução em 1877 devido à seca no Norte, a primeira província beneficiada foi em Alagoas, seguindo para Jatobá em Pernambuco no total de 115,136 quilômetros. No livro “O simples povo brasileiro de Jatobá de Tacaratu: “Petrolândia” o autor aborda a historiografia da cidade de Petrolândia, que sofreu com o impacto da construção da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga. Na obra o autor destaca a falta de um plano urbanista que é uma de suas decepções após a mudança de localidade: “Quando eu tinha 16 anos e soube da mudança de local da minha cidade eu sonhei dias e noites com um modelo referência para todo país, ainda cheguei a comentar com políticos da época[...] A cidade não terá poeira, insetos, terá praças e avenidas lindas e largas e limpas de fazer inveja a qualquer outra cidade[...], era só um sonho de um jovem “que não conhecia a parte suja da política brasileira. (FERRAZ, 2007, p. 13) No decorrer dos anos 1970 a CHESF chega a Petrolândia com o objetivo de construir o Reservatório de Itaparica para a manutenção da vazão do curso do rio na construção da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga de 834 km² com capacidade de gerar 2.500 MW em complemento com o Complexo Paulo Afonso. Para a conclusão desse projeto foi necessário a transferência de várias cidades ribeirinhas de lugar e indenizar os proprietários, de imediato foi indispensável erguer uma vila operaria batizada de Acampamento Chesf para os funcionários e operários da barragem que ficou conhecido como Cidade Livre. A cidade de Petrolândia teve sua sede atingida pelo Plano de Desocupação elaborado desde 1985, era importante fazer o cadastro socioeconômico das famílias atingidas pela obra, mas não foi tão fácil convencer os moradores e os trabalhadores rurais, a área escolhida para a construção da nova cidade apresentava vários problemas como terras improprias para a Jatobá: significado de jatobá no dicionário português Aurélio. Nome de várias árvores da família das leguminosas, que produzem longas vagens comestíveis e copal.; Madeira dessas árvores, dura e de tom avermelhado. https://dicionariodoaurelio.com/jatoba 505 570 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X construção, plantio e as baixas indenizações. Provocando vários movimentos de resistência mobilizado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, apesar dos problemas a escolha do local foi mantido pela CHESF via repressão e institucional do Estado. Concluídas as obras da barragem, mais de 800 km² de terra ficou submerso, a população petrolandense desolada foi relocada dando início a inundação do Reservatório de Itaparica em 06 março de 1988. A transferência para a nova cidade foi feita ainda sem suporte suficiente para atender a população no saneamento e nas condições de abastecimento de água, principalmente na área rural batizadas de agrovilas que a CHESF não haviam colocado em prática o projeto de irrigação ficando sem funcionamento de produção até 1993, coisa que não deveria acontecer sendo uma cidade planejada através intervenção do Estado e de diversas propaganda feitas pela CHESF de “cidade planejada”, que ainda hoje rende luta judicial pelo Ministério Público de Pernambuco no direito de reassentamento dos trabalhadores rurais afetados pela barragem. Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público de Pernambuco – MPPE em Petrolândia (Proc. 81643-3), resultante de direito de reassentamento de trabalhadores rurais afetados pela construção da UHE Itaparica. O Autor afirma ser inexistente por carência de legitimidade o acordo firmado pelo Polo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco, em 06/12/1986, e requer a diferença das verbas de manutenções temporárias pagas no período (VMT. Recurso de Apelação da Chesf, alegando a ilegitimidade do MPPE para o feito teve provimento pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco - TJPE, contudo, o STJ, em grau de recurso especial proposto pelo Autor reconheceu a legitimidade do MPPE e determinou a remessa dos altos ao TJPE. Em 19/04/2010, julgando o mérito da Apelação da Chesf, o TJPE, à unanimidade, negou-lhe provimento. A Chesf interpôs conjuntamente Recurso Especial e Recurso Extraordinário e correspondentes agravos de instrumento. Em 07/11/2012 foi proferida decisão que negou seguimento ao Recurso Especial da Chesf. Contra essa decisão, a Chesf apresentou Recurso de Agravo Regimental, ao qual foi dado provimento tendo sido reconsiderada a decisão e se determinando o 571 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X processamento do recurso especial. O Agravo encontra-se pendente de julgamento em 31/12/2015.506 Apesar da falta de estrutura prometida, parte dos moradores que não tinham casa ou só tinham casa de barro, taipa e palha pode finalmente realizar o sonho de ter sua casa graças à indenização. A Constituição Federal de 1988 assegurou a arrecadação de impostos mensal para os municípios, a compensação financeira pelo uso das águas da barragem pela CHESF colocando a cidades de Petrolândia entre uma das maiores arrecadadoras de royalty beneficiando a economia da cidade. Conclusão Para a efetivação do trabalho, o presente artigo teve como como objetivo valorizar a historicidade local. A história da Velha Petrolândia (PE) em específico sugere, nesse contexto, uma reflexão no resgate da memória coletiva dos pais e avós que moraram na velha cidade de Petrolândia no interior de Pernambuco, abordando suas experiências vividas desses moradores mais antigos considerando suas lembranças, entre 1943 ano de sua fundação e 1988, ano que a cidade velha foi submersa pelo lago de Itaparica. Na opinião de Mehy toda memória coletiva faz parte da tradição oral, que acaba produzindo um vínculo entre o entrevistado e a pesquisa. As entrevistas carregam uma memória coletiva que está o tempo todo interagindo com as recordações individuais de modo que suas experiências se constituem com a cidade. Para Bosi (1994, p.418) “Cada grupo vive diferentemente o tempo da família, o tempo da escola, o tempo do escritório... Em meios diferentes ele não corre com a mesma exatidão”. Petrolândia teve sua sede totalmente inundada com a obra da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga, grandiosa obra realizada pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), forçando a transferência dos habitantes para a Nova Cidade com o discurso do progresso. A população petrolandense foi relocada pela CHESF através do plano de reassentamento e indenizados pelos prejuízos causados no quesito físico e econômico. Esses são registros permanentes e de uma valiosa contribuição histórica no conhecimento dos 5DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS 2015 – Companhia Hidroelétrica do São Francisco: CNPJ nº33.541.368/0001-16 – Companhia Aberta. P.120 506 572 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X fatos acontecidos naquele longínquo período e que merecem sempre serem analisados e divulgados. Por fim, Petrolândia, compõe continuamente a memória associada à cidade submersa e as lembranças dos anônimos deve ser refletida como a identidade da Memória Social, sendo fundamental para a riqueza cultural. “Uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito.” (BOSI, 1979, p31) Por tanto, a memória familiar está ligada a memória de grupos sociais que compõe toda uma cidade, afinal, memória não é sonho, é trabalho, que constrói as ideias e imagens do passado. Fontes e bibliografias ABREU, J. Capistrano de. Antecedentes indígenas. In: Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Conselho Editorial do Senado federal, 1998. p.15 Agência CONDEPE/FIDEM, Calendário Oficial de Datas Históricas dos Municípios de Pernambuco. Recife: CEHM, 2006. v. 3 p.17 __________ Calendário Oficial de Datas Históricas dos Municípios de Pernambuco. Recife: CEHM, 2006. v. 3 p.13 ANDRADE, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. 1º Ed. 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Métodos de pesquisa / [organizado por] Tatiana Engel Gerhardt e Denise Tolfo Silveira; coordenado pela Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS e pelo Curso de Graduação Tecnológica-Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da SEAD/UFRGS. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. OLIVEIRA, Eveline Antunes F, de. “Nos trilhos da história de Piranhas: um ensaio sobre a Estrada de Ferro Paulo Afonso.” Araújo Sá, Antônio Fernando de e Vanessa Maria Brasil. Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco. Aracaju: FAPESE, 2005. P.221-239 PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça. História das Comarcas Pernambucanas. 2ª ed. Recife, 2010. P.17 SÁ, Antônio Fernando de Araújo; BRASIL, V. M...“Por uma nova História do Rio São Francisco.” Araújo Sá, Antônio Fernando de e Vanessa Maria Brasil. Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco. Aracaju: FAPESE, 2005. P.13 – 19 SÁ, Silvânia Gomes de. A cidades, o Rio... a Represa: a intervenção do Estado no Submédio São Francisco: o caso de Petrolândia, 1940-1995. 2000. SILVEIRA, Denise Tolfo e CÓRDOVA, Fernanda Peixoto. A Pesquisa Científica. Coordenado pela Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS e pelo Curso de Graduação Tecnológica - Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da SEAD/UFRGS. - Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009, 120p REIS, José Carlos. Teoria & história: tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. 574 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Paraíso destruído de Bartolomé de las Casas: a denúncia do genocídio nativo americano na Era dos Descobrimentos Gabrielle Legnaghi de Almeida507 Anelisa Mota Gregoleti508 Nathalia Moro509 Resumo: O frade dominicano espanhol Bartolomé de Las Casas (1484-1566) produziu inúmeras narrativas envolvendo os mais diversos aspectos do processo de colonização espanhola no Novo Mundo. Dentre seus trabalhos incluem-se detalhados documentos sobre o cotidiano e trato com os nativos americanos, dos quais contribuíram para debates e questionamentos sobre a legitimação da escravidão indígena ainda no século XVI. Assim, buscaremos analisar seu discurso acerca do genocídio e barbárie nativa, principalmente a partir de sua obra “O paraíso destruído: brevíssima relação da destruição das Índias”. Palavras-chave: América Espanhola; genocídio; Bartolomé de Las Casas. A chegada dos europeus nas terras tropicais impactou os dois lados do Atlântico. Os castelhanos voltaram a sua atenção para o Novo Mundo, assim como os portugueses, buscando expandir os seus limites e influências de maneira agressiva, característica herdada principalmente da Espanha medieval. Consequentemente, a fixação nas novas terras visando a expansão territorial e a exploração de bens comercializáveis, não implicou somente o desenvolvimento da Coroa castelhana. Em uma relação diretamente proporcional, quanto mais avanços econômicos, políticos e geográficos benéficos para os exploradores, maior era o declínio, mortes e exploração da mão-de-obra dos nativos americanos. As ações espanholas diante da expansão ultramarina poderiam implicar em desenvolvimento comercial ou invasões, estabelecendo-se no território ou seguindo em frente. Essas escolhas impactariam drasticamente o futuro dos continentes. O curso das ações tomadas se vinculou com as condições locais, a facilidade ou dificuldade de ocupação e os tipos de recursos 507 508 509 Mestranda do programa de pós-graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) Doutoranda do programa de pós-graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) Mestre pelo de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) 575 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X exploráveis, somados com a combinação de interesses individuais que conduziram o processo da colonização. Dentre os envolvidos, a figura individualista do conquistador, como por exemplo os famosos espanhóis Hernán Cortés (1485-1547) e Francisco Pizarro (1476-1541), faziam parte de um grupo comandando de um caudillo, figura de liderança que mobilizava homens e recursos (BETHEL, 2018, p. 142). Além das dinâmicas e tenções organizacionais internas envolvendo os caudillos, seus financiadores, e subordinados, dentre o grupo de europeus que aportaram nos trópicos, os clérigos, letrados, médicos e aventureiros também estavam presentes nas embarcações espanholas. Os escritos produzidos por esses homens foram essenciais para os estudos envolvendo o processo da colonização europeia na América. Desde a descrição da viagem ultramarina, a chegada das embarcações nas primeiras ilhas caribenhas, o clima, relevo, hidrografia, fauna, flora, os nativos habitantes dos trópicos e mais uma infinidade de detalhes sobre as novas terras, atestam o início de um dos mais importantes eventos históricos e, infortunadamente, o declínio de grandes impérios e grupos nativos originários. Inegavelmente os principais objetivos das empresas coloniais era o lucro pessoal e a riqueza da nação. Contudo, a religião não se dissociava da política, e a Igreja Católica desempenhou um importante papel, tanto quanto o da Coroa, na formação política colonial dos trópicos e nas relações com os povos nativos. Assim, era necessário o aporte teológico associado com o padrão sociopolítico espanhol para moldar as interações sociais com os “novos povos”, bem como o plano da colonização e exploração de recursos de bens comercializáveis, sejam eles naturais ou humanos (STOLKE, 2006). Um dos personagens de grande relevância histórica nos estudos acerca da Era Moderna e as questões envolvendo os grupos originários é o frade dominicano espanhol Bartolomé de Las Casas (1474-1566), também conhecido como bispo de Chiapas e defensor indígena. Nascido em Sevilla e filho de um mercador que esteve presente na segunda viagem de Colombo para as Índias em 1493, Bartolomé tem seu primeiro contato com um nativo americano quando seu pai, Pedro de Las Casas, recebe um indígena escravo de presente de um comandante de uma expedição. De acordo com Huerga (1998), o espanhol é seduzido pela riqueza das Índias e parte rumo aos trópicos na função de clérigo encarregado de doutrinar os nativos. A partir dessa análise tem-se uma dualidade, ora é apresentado como catequizador ora como explorador, resultando em diferentes juízos (NETO, 2003, p. 34-35). Mesmo com essa divergência de análises, uma posição não anula a outra. De acordo com seus escritos, 576 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X testemunha-se uma comoção para com o trato para com nativos americanos, e muitas vezes denúncias para com as atrocidades da conquista espanhola, destacando que os conquistadores são estão movidos pela fé. Em sua obra “O paraíso destruído: brevíssima relação da destruição das Índias” (2008), o frade afirma que os espanhóis “[...] nossos espanhóis, por suas crueldades e execráveis ações, despovoaram e desolaram mais de dez reinos, maiores que toda a Espanha, nela compreendidos Portugal e Aragão [...]”. Nas estimativas do bispo, cerca de mil léguas de reinos foram destruídas (LAS CASAS, 2008, p. 28). Era inegável a destruição causada pelos conquistadores espanhóis, seja pela violência características das empreitadas colonizadoras ou pela infortuna troca de patógenos com os nativos, o declínio da população era alarmante, mas não a ponto de conter o avanço espanhol. Esses aportaram na Ilha Espanhola, e logo iniciaram um longo processo de matanças e perdas de gentes, começando pelas mulheres e crianças a fim de usar, servir e adquirir seu viveres. Las Casas afirma que os colonizadores queriam ainda mais do que os indígenas lhes ofereciam de bom grado, o abastecimento que normalmente duraria um mês para dez pessoas, um espanhol consumia em menos de um dia (LAS CASAS, 2008, p. 30). Esse tratamento agressivo característico dos espanhóis foi de encontro com o que o bispo de Chiapas narra sobre a bondade nativa. No primeiro volume de sua “Historia de las Índias” (1986), os nativos são caracterizados “[...] en su inmensa generalidade, por su inocencia y por su bondade; naturalmente mansos y pacíficos, humildes e pacientes, moderados en su apetitos y honestos en su costumbres [...]”. Francos e de natureza serviçal, governam a sua vida material, doméstica e social ao seu gosto e satisfação. “[...] son felices, en médio de uma hermosa y lozana naturaleza que les proporciona colmadamente cuanto puedan necesitar [...]”, e mesmo que lhes faltem uma religião, como a católica, suas faculdades e virtudes os fazem ser plenamente capazes de aceitar a fé e os costumes cristãos, “[...] con tal que se las enseñen, como a criaturas racionales, con benevolência persuasiva y con amor [...]” (SAINT-LU, 1986, p. XXXII). A dualidade de discurso entre o reconhecimento dos nativos como sendo seres racionais, dignos da fé católica e capazes de exercer sua fé, entra em conflito com a defesa do bispo ao criticar as explorações e conduta violenta para com os nativos: De los indios, no podia menos de tener Las Casas, por su larga permanencia en las islas y países mesoamericanos, un conocimiento directo e incluso íntimo, fundado en sus primeros contactos de colono y de clérigo, y después 577 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de religioso y misionero, y hasta de obispo. Abundan en la obra las observaciones recogidas en el mismo terreno, máxime en la Española y en Cuba entre 1502 y 1515. Estas, a la verdad, fueron determinantes para la futura visión del historiador: la imagen que nos da de los indios, en su generalidad, queda condicionada com toda evidencia por su recuerdo enternecido de los pacíficos taínos, y más aún de aquellos inocentes lucayos en que veía, a semejanza de los antiguos Seres (lib. I, cap. 40), la representación más acabada de la primitiva perfección del género humano (SAINT-LU, 1986, p. XXXIII). Las Casas (2008) afirma que os nativos possuem um entendimento nítido e vivo, sendo criaturas dóceis, de boa doutrina e capazes. Segundo ele são aptos para o recebimento da santa Fé Católica e a serem instruídos nos bons e virtuosos costumes. De maneira geral, a doutrina católica vinculava-se com os ideais de dominação espanhola, de tal maneira que mesmo munidos de perspectivas violentas de conquista herdadas da Idade Média, os conquistadores também admitiam que os nativos americanos possuíam uma bondade natural, e que seriam plenamente felizes caso tivessem o conhecimento sobre o “verdadeiro Deus” (LAS CASAS, 2008, p. 27). Essa mistura de pensamentos em que, ora aceita os nativos, reconhece sua natureza, e os condiciona à religião, e ora permite sua exploração, configura a empreitada colonialista espanhola evidenciando a barbárie e a uma certa permissibilidade religiosa. Afinal, a Igreja e seus representantes nos trópicos tinham a função de catequizar e converter, juntamente com os interesses individuais e da Coroa de conquistar, explorar e colonizar. Essas gentes, assim como suas terras, tão diferentes dos habitantes do Velho Mundo, não apareciam nas enciclopédias ou nas sagradas escrituras. O reconhecimento do bispo de Chiapas sobre os nativos baseou-se nas crenças católicas em que Deus, criador de tudo e todos, também teria criado as “gentes infinitas” “[...] de todas as espécies, mui simples, sem finuras, sem astúcia, sem malícia, mui obedientes e mui fieles a seus senhores naturais e aos espanhóis que a servem [...]”. São humildes, pacientes, pacíficos, amantes da paz, sem ira, sem ódio, e “[...] de forma alguma desejosos de vinganças [...]” (LAS CASAS, 2008, p. 30). A visão do “bom selvagem” e do nativo americano pacífico não amorteceu tamanha violência exercida na fixação castelhana nos trópicos, segundo o frade o único cuidado que tomavam com os indígenas era de destinar os homens para as minas de extração de ouro e prata, que era um trabalho considerado “intolerável”, e as mulheres destinadas aos trabalhos nos campos e 578 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X lavrando, também tido como trabalho pesado até mesmo para o mais robusto homem. Além da dificuldade e intensidade do trabalho as condições de vida eram lamentáveis. “[...] A eles e a elas não lhes davam a comer senão ervas e cousas semelhantes, sem substância alguma: de tal sorte que o leite que secava nos seios das mães e assim em pouco tempo morriam todas as criancinhas [...]”. Como consequência, observando as taxas de natalidade, por “[...] estarem os maridos separados, não coabiando com suas mulheres, a geração cessou entre eles [...]”, além das mortes nas minas de trabalho, e fome, nas lavouras o cenário era o mesmo. Assim, foi se consumindo uma grande parte dos nativos americanos (LAS CASAS, 2008, p. 37). As Índias Nuevas descobertas em 1492 e povoada no ano seguinte era repleta de suas gentes. “[...] A primeira terra em que entraram para habitá-la foi a grande e mui fértil Ilha Espanhola. Essa ilha te seiscentas léguas grandes e infinitas ilhas que vimos povoadas e cheias de seus habitantes naturais, o mais que o possa ser qualquer outro país do mundo [...]”. Las Casas descreve sua numerosa população como um formigueiro de formigas, repleto de gente e densamente povoada. Assim como o bispo descreveu os trabalhos compulsórios em “Paraiso Destruído”, os adeptos da chamada “Lenda Negra” afirmam que além do sádico assassinato indígena, a exploração levou a morte de inúmeros nativos. O choque da conquista e da cruel exploração contribuíram para a perca de vontade de viver, queda das taxas de natalidade, suicídio, fome, migração forçada, epidemias e uma verdadeira catástrofe demográfica (COOK, 1998, p. 2). Mesmo que as estimativas sobre o número exato de habitantes no Novo Mundo não sejam exatas, há indícios e aproximações sobre a quantidade populacional da Ilhas de Hispaniola logo no primeiro contato com os nativos americanos (tabela 01). Tabela 1 – Estimativa populacional indígena de Hispaniola em 1492. Fonte Ano Estimativa Verlinden (1973) 1492 60.000 Amiama (1959) 1492 100.000 Rosenblat (1959, 1976) 1492 100.000 Lipschutz (1966) 1492 100.000-500.000 Moya Pons (1987) 1494 377.559 Cordova (1968) 1492 500.000 N.D. Cook (1993) 1492 500.000-750.000 579 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Moya Pons (1971) 1492 600.000 Zambardino (1978) 1492 1.000.000 Denevan (1992) 1492 1.000.000 Guerra (1988) 1492 1.100.000 Denevan (1976) 1492 1.950.000 Watts (1987) 1492 3.000.000-4.000.000 Borah & Cook (1971) 1492 7.975.000 Fonte: Noble David COOK, «Enfermedad y despoblación en el Caribe, 1492-1518», W. George LOVELL y Noble David COOK (coords.), Juicios Secretos de Dios: epidemias y despoblación indígena en Hispanoamérica colonial, Quito, Abya-Yala, 1999, p. 36. Os resultados das investidas colonizadoras foram desastrosos para os nativos americanos. O processo teve um forte caráter individual, e nenhuma regulamentação era feita visando a proteção dos indígenas. Las Casas no terceiro volume de “Historia de las Índias” (1986) afirma que haviam dez coisas que os espanhóis eram obrigados a cumprir, mas que não se cumpriam e nem era possível. O primeiro ponto de destaque do frade era que a comida era necessária para que pudesse se viver, e “[...] según los trabajos grandes en que les ponían, que fuese de sustancia, como de carne o de hierbas, o raíces como les daban, y segun el numero suficiente tantas vezes as dia como convenia para los [...]”. O segundo era a obrigação de curara-los de suas enfermidades com um médico e medicinas adequadas. O terceiro era que tenham conforto nas camas para quando estiverem doentes. O quarto era fornecer ensopado aos doentes. O quinto e sexto era dar de vestir a todos, “[...] como infieles, no se vistiesen, porque la honestidade Cristiana no sufre andar los hombres e mujeres desnudos [...]”, e calçá-los. O sétimo e oitavo era dar-lhes cama e casas nas minas e estancias. O nono item era obrigação regular os trabalhos evitando a exaustão. E o último ponto era dar o conhecimento de Deus e ensinar-lhes a doutrina cristã e enviá-los para a vida de salvação (LAS CASAS, 1986, p. 342). Mesmo com a listagem das obrigações dos senhores para com os indígenas, muito pouco ou quase nada era executado. O chamado “estanciero” ou “calpsique”, espanhol subordinado nas terras, tinha a missão de tê-los à mão garantindo que os nativos trabalhassem e fizessem toda e qualquer atividade que o senhor quisesse. O bispo de Chiapas afirma que “[...] ainda que outro tormento não existisse no inferno, este lhe pode ser muito bem comparado [...]”, diante da brutalidade contra os povos originários. As atrocidades denunciadas por Las Casas feitas por esses estancieros vão desde flagelos, bastonadas, unta-os em gordura fervente, tormentos, 580 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X trabalhos contínuos, violência física e sexual, abusos, desonras e o apoderamento de todos seus tesouros e produtos (LAS CASAS, 2008, p. 144). Assim, pode-se destacar a impossibilidade de realização de uma colonização da América pautadas em ideais que hoje reconhece-se como humanitários. A ideologia medieval da conquista, somadas com a doutrinação e fé católica mesclaram-se em um dos maiores eventos históricos, resultando assim no extermínio e declínio dos nativos americanos logo nos primeiros séculos de contato entre o Velho com o Novo Mundo. Fontes: LAS CASAS, Bartolomé de. Historia de las Indias, vol 1. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1986. LAS CASAS, Bartolomé de. Historia de las Indias, vol 3. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1986. LAS CASAS, Bartolomé de. O paraíso destruído: brevíssima relação da destruição das Índias. Tradução de Heraldo Barbuy. Porto Alegre: L&PM, 2008. Referências: BETHELL, Leslie. A ESPANHA E A AMÉRICA. História da América Latina. 2018 COOK, Noble David. ¿ Una primera epidemia americana de viruela en 1493?. Revista de Indias, v. 63, n. 227, p. 49-64, 2003. COOK, Noble David; LOVELL, William George (Ed.). Juicios secretos de Dios: epidemias y despoblación indígena en Hispanoamérica colonial. Editorial Abya Yala, 1999. NETO, José Alves de Freitas. Bartolomé de Las Casas: narrativa trágica, o amor cristão e a memória americana. Annablume, 2003. STOLKE, Verena. O enigma das interseções: classe, "raça", sexo, sexualidade: a formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v.14, n.1, p.15-42, Apr. 2006. Available <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2006000100003&lng=en&nrm=iso>. access on: 08 setembro. 2021. 581 from Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Genocídio indígena na contemporaneidade Henry Mähler-Nakashima510 Resumo O presente texto tem como objetivo entender por que tão pouco se sabe sobre o genocídio indígena na contemporaneidade. Partindo das atuações das instituições indigenistas do Estado, o SPI e a FUNAI, de algumas leis, das investigações das CPI’s de 1963 e 1968, ambas da Câmara dos Deputados, do Relatório Figueiredo (1967) e da Comissão Nacional da Verdade (2014), é possível identificar um padrão de comportamento genuinamente genocida por parte do Estado brasileiro para com os indígenas. Entretanto, sua histórica condição de cristalizados em estereótipos, como selvagem, atrasado, bárbaro, etc, somada ao discurso desenvolvimentista e à indiferença da sociedade nacional contribuem para que permaneçam marginalizados, mesmo sofrendo genocídio durante toda história republicana brasileira. Palavras-chave: genocídio, povos indígenas, decolonialidade De tal forma se construiu a ideia de um “índio genérico”, muito devido à corrente romântica da literatura e dos indianistas do século XIX, que uma parcela considerável da sociedade nacional considera os povos originários – os indígenas – personagens cristalizados no passado. Até por isso, pode causar estranheza afirmar que aconteceu a prática de genocídio indígena na contemporaneidade. Sobre o passado mais distante, pode-se dizer que é um consenso a ideia de que neste espaço geográfico chamado Brasil eles tenham sofrido as mais variadas formas de extermínio. Afinal, dos dias como colônia portuguesa até a criação de um império brasileiro, ainda que houvesse entendimento jurídico sobre seus direitos, toda e qualquer política envolvendo-os era concretizada à sua revelia, o que levou inúmeros à morte. Lamentavelmente, porém, essa prática não se restringiu ao passado distante. Nos primeiros anos da república, em 1910, sob forte influência positivista, criou-se o primeiro órgão estatal indigenista, o Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais, Membro da Ocareté; Doutorando em História Social pela PUCSP, cuja pesquisa analisa sob uma perspectiva decolonial as ações da FUNAI frente aos Waimiri-Atroari durante a ditadura militar. Contato: henry@ocarete.org.br 510 582 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X (SPILTN; tornando-se SPI a partir de 1914), que apesar de ter entre seus objetivos garantir a “efectividade da posse dos territorios occupados”, “pôr em pratica os meios mais efficazes para evitar que os civilizados invadam terras dos indios” e “fazer respeitar a organização interna das diversas tribus, sua independencia, seus habitos e instituições […] consultado sempre a vontade dos respectivos chefes”,511 como está registrado no decreto que o criou, não se pode afirmar categoricamente ter cumprido esses termos. Se por um lado o lema de seu idealizador, Marechal Rondon, “morrer se preciso for, matar jamais!”, vigorava como uma lei oficiosa, por outro, as ações do Estado brasileiro mantiveram o padrão estabelecido na colônia e no império brasileiro. Os interesses do poder vigente continuaram prevalecendo. A despeito das leis indigenistas já existentes à época, foram desconsideradas a estrutura cultural, social, histórica e sua etnicidade. Isso porque, apesar da eloquência presente no decreto que criou o SPI, os povos indígenas eram considerados inferiores e cabia ao “civilizado” a responsabilidade de tirá-los da condição de atraso e selvageria. Esse período contribuiu enormemente para estabelecer uma ideia presente até os dias atuais, a de que indígenas vivem em uma condição de transitoriedade em que, ao utilizar tecnologias distintas das suas, ao terem hábitos urbanos, em suma, ao adotarem práticas consideradas “civilizadas”, perderiam sua “condição de índio”. Nos dias da chamada primeira república, reforçava-se a ideia de que a doutrina positivista seria o instrumento para alicerçar “as condições para a integração natural do indígena à sociedade nacional”.512 E por terem uma perspectiva evolucionista e linear da espécie humana, acreditavam que isso se daria pela vontade dos próprios indígenas. Nesse processo, caberia ao SPI lhes garantir uma transição segura. Ainda que durante algum tempo, especialmente pela presença de Rondon, o SPI tenha seguido à risca a política de não violência contra os povos indígenas, é preciso expandir o entendimento de que agressões não podem ser definidas apenas pelo lado de quem as pratica. A política de jamais matar é por si só suficiente para garantir uma prática respeitosa aos povos indígenas? Obviamente, a premissa de não matar é louvável e deve ser respeitada. Mas uma percepção um pouco mais abrangente pode ser profícua para entender que a morte do corpo físico não é a única possível; e talvez não seja a pior. Decreto nº 8.072, de 20 de junho de 1910. Artigo 2º. O decreto pode ser acessado em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/d8072.htm >. Acesso em: 05/07/2021. RODRIGUES, 2019, p. 192. 511 512 583 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Se às sociedades ocidentais modernas513 a noção de pertencimento parte de uma premissa nacionalista, que tem no Estado e seus critérios o referencial, aos povos indígenas a identidade se pauta na coletividade em que um só o é devido à existência do grupo. Enquanto aos Estados modernos o território está relacionado à ideia de soberania e segurança nacional, aos povos indígenas, esse vínculo é ancestral. Primeiro, porque não veem na terra uma materialidade a ser possuída ou conquistada, mas como parte de um conjunto em que tudo surge do mesmo direito existencial, o que nos leva ao segundo ponto. Mais do que posições geográficas e biomas, os elementos do que entendemos por meio ambiente podem ser considerados entidades ou ainda fazerem parte de uma relação de parentesco. Portanto, transferi-los ou privá-los de acesso a seu território ancestral pode ser entendido como a primeira morte. Considerando essa conexão, as ações do SPI para demarcar terras indígenas podem ser consideradas o primeiro passo para essa morte simbólica representada na diminuição gradativa dessas áreas. Ainda que tenha demarcado um número considerável de Terras Indígenas,514 um levantamento realizado nos primeiros anos da década de 1980, apontou que a extensão total foi de menos de 300 mil ha, o que na época, considerando as TI demarcadas pela FUNAI, representava apenas 2,4% do total.515 A estratégia de ação do SPI face à fricção das frentes pioneiras com grupos indígenas parece haver sido de estabelecer de imediato uma área reduzida como terra reservada aos índios, assegurando logo tais direitos pela demarcação, e, paralelamente, livrando para ocupação pelos brancos as demais faixas de terra.516 Partindo desses dados, pode-se apontar a baixa preocupação do SPI em garantir a relação ancestral entre a população indígena e a terra, e a intenção flagrante de forçar uma restruturação no modo de vida dessas pessoas tornando-as dependentes do sistema econômico. Por ocidental, não me refiro à invenção da divisão geográfica do globo, mas ao grupo que estruturou as bases colonialistas (política, filosófica, científica, cultural, etc) que vigoram no mundo, composto por Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos. Moderno, por sua vez, refere-se ao recorte histórico que começou com a invasão do continente chamado de América até culminar com a criação dos Estados, no século XIX. Terra Indígena é entendida como uma definição jurídica em que essa área pertence à União, mas competindo a ela a garantia de usufruto por parte dos indígenas. Distingue-se de “terra indígena ancestral” por esta não possuir delimitações específicas e, sobretudo, por ser o entendimento do próprio povo que ela habita. Cf. OLIVEIRA, 1983, p. 18. OLIVEIRA, 1983, p. 18. 513 514 515 516 584 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Portanto, essas áreas são “muito menos uma reserva territorial do que uma reserva de mão-deobra”.517 À percepção não-indígena, essa mudança pode não se configurar genocídio por não haver nitidamente a intenção de causar mal à integridade física ou à vida dessas pessoas. Estando posto o entendimento colonialista de que os indígenas deveriam deixar sua condição de atrasado, essa usurpação territorial foi entendida como parte do avanço do progresso e da modernidade, especialmente por aqueles que se apropriaram dessas áreas. Mas há mais a ser considerado. No contexto da Segunda Guerra Mundial e nos anos que se seguiram, o entendimento sobre violências contra minorias começou a ganhar espaço a partir de uma proposta do linguista Raphael Lemkin de se discutir a definição de genocídio. Assim, sob grande influência dos males causados a eslavos, ciganos, homossexuais, negros e, principalmente, judeus, a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, realizada em Paris, em 1948, definiu os termos que passaram a vigorar em todos os países signatários. No Brasil, o Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952,518 e a Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956,519 descrevem da mesma forma que genocídio é o ato de intencionalmente “destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, assim como “matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física ou parcial. Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”. Paralelamente a essas discussões, o SPI seguia atuando entre sucessos e dificuldades impostas pela falta de apoio financeiro e político. Darcy Ribeiro, que atuou pelo órgão, apontou o cumprimento em “pacificar”520 os indígenas que faziam frente a incursão civilizatória como um empecilho para a sequência dos trabalhos. Sendo grande defensor do SPI, fosse por idealização ou por vínculo afetivo de quem vivenciou as ações “de dentro”, apontava forças externas como principal barreira. Afirmou que “O rápido sucesso alcançado na pacificação das Idem, p. 19. O decreto pode ser acessado em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-30822-6maio-1952-339476-publicacaooriginal-1-pe.html >. Acesso em: 05/07/2021. A lei pode ser acessada em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l2889.htm >. Acesso em: 05/07/2021. SPI e FUNAI seguiam o procedimento de “atrair” os grupos sem contato para, então, “pacificar” o que consideravam hostis. Em outras palavras, esse método consistia em garantir que os povos indígenas não interferissem nos empreendimentos do estado ou da iniciativa privada. 517 518 519 520 585 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tribos hostis mais próximas das grandes cidades aliviou o Governo das pressões que sofrera no sentido de criar e manter o SPI”. Para ele, o fato de o órgão ter se deparado com pessoas poderosas, que exploravam a mão de obra indígena e se beneficiavam da usurpação de suas terras, fez com que gradativamente ele entrasse em declínio. Destacou ainda que o Governo ter utilizado o SPI como moeda de troca política potencializou seu sucateamento, culminando com as administrações militares, que em suas palavras, levou-o à “condição degradante de agente de sustentação dos espoliadores e assassinos de índios”,521 especialmente por ter o órgão se afastado dos princípios filosóficos positivistas.522 Se por um lado Darcy Ribeiro pouco destacou os inúmeros crimes praticados por servidores do SPI, por outro, era crescente o número de denúncias contra o órgão tornando-se insustentável ignorá-las. Os casos de violência extrapolaram as páginas dos jornais e alcançaram as salas do Congresso Nacional, onde foi instituída na Câmara dos Deputados Federais uma Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguar irregularidades no Serviço de Proteção aos Índios. A partir de denúncias do próprio Diretor-Chefe do SPI, o Cel. Moacyr Ribeiro Coelho, a Resolução nº 1523 da Câmara dos Deputados, oficializou a criação de uma CPI, em 19 de abril de 1963, tendo em suas páginas menções a contaminações de indígenas por tuberculose e malária, subnutrição e arrendamento de terras, como a dos Kadiwéu, o que sempre foi proibido. As investigações da CPI chegaram ao fim três meses depois, sendo constatados “delitos contra a Fazenda Nacional e o Patrimônio Indígena; abandono de indígenas; precária ou quase nula assistência médico-sanitária”, etc.524 Entretanto, o que marcou essa CPI foram os interesses transparecidos nas disputas entre o deputado que a propôs, Edson Garcia, cujo sogro tinha interesse de se apropriar de terras indígenas, e o próprio Cel. Moacyr, que acabou acusado de “incúria administrativa; conivência ou omissão injustificável quanto ao Patrimônio Nacional e Perjúrio”, como aponta a Resolução nº 65, de 1964,525 Mas apesar das acusações, o fato é que o prejuízo financeiro alegado pelo uso indevido das terras indígenas recebeu mais atenção do que a vida daquelas que as habitavam. Alguns anos depois, em meados de 1967, a sede do SPI, que RIBEIRO, 2017, p. 134. Cf. Idem. A resolução pode ser acessada em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/19601969/resolucaodacamaradosdeputados-1-20-marco-1963-319946-norma-pl.html >. Acesso em 05/07/2021. Cf. BARBOSA, 2016, p. 152. Idem, p. 156. 521 522 523 524 525 586 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ficava no prédio do Ministério da Agricultura, foi tomada por um suspeito incêndio levando às cinzas boa parte da documentação que incriminava seus servidores. A essa altura, o governo golpista realizava restruturações institucionais visando concretizar seus projetos desenvolvimentistas. Mas as denúncias contra o SPI e de casos de massacres de indígenas não cessaram. Nesse contexto, não era somente a mídia nacional que estampava em suas páginas a forma com que os povos indígenas eram tratados no Brasil, também a mídia internacional disseminava uma imagem prejudicial aos propósitos econômicos e à imagem que se criava do país. À frente do recém-criado Ministério do Interior, o General Albuquerque Lima, mais preocupado em desvincular o corpo militar golpista dos servidores acusados de estar envolvidos em crimes do que com o bem-estar dos indígenas, convocou o Procurador do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, Jáder de Figueiredo Correia, para ficar à frente da CI (Comissão de Inquérito) 154-67 e investigar as diversas denúncias. Sua primeira descoberta foi a de que os documentos tinham sido consumidos pelo incêndio, o que o levou a registrar no relatório final que tal fato dava a “impressão de protecionismo, pois havia em todos uma característica comum, um traço dominante: a existência de um vício processual que determinava sua anulação e arquivamento”.526 Se a causa do incêndio teve como objetivo o acobertamento dos envolvidos, foi frustrado pelo que se sucedeu. A nova investigação aprofundou muito os levantamentos da CPI de 1963 e a CI chegou ao fim com um processo contendo 20 volumes, com 4942 folhas e mais 6 volumes anexos com 550 folhas. Se a CPI já tinha feito descobertas importantes envolvendo políticos, o que motivaria uma queima de arquivo, as constatações feitas pela CI reforçaram a investigação anterior e tornaram o incêndio na sede do SPI ainda mais suspeito. Assassinato de indígenas (individuais e coletivos), prostituição, sevícias (maus-tratos e tortura), trabalho escravo, usurpação do trabalho do indígena, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena e dilapidação do patrimônio indígena (arrendamento de terras, exploração de minérios, etc) foram descritos com grande horror por Correia. A lista é por si só repugnante, mas causa mais assombro quando são mencionadas vendas de “crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos” e “Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça”,527 além de “espancamentos, independentes de idade ou CORREIA, 1968, p. 5. Idem, p. 2. 526 527 587 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sexo, (que) participavam de rotina e só chamavam a atenção quando, aplicados de modo exagerado, (ocasionando) a invalidez ou a morte”.528 A prática de tortura mais comum era o “tronco”, que consistia na “trituração do tornozelo da vítima, colocado entre duas estacas enterradas juntas em ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”.529 Nas palavras de Correia, diante das práticas de tortura, castigos de trabalho forçado e a prisão em cárcere privado podiam representar uma humanização dos indígenas, já que de modo geral não eram respeitados como pessoas, mas serviam como animais de carga para beneficiar os servidores. No caso das mulheres, em alguns Postos Indígenas, eram mandadas trabalhar um dia após o parto, sendo obrigadas a ficar longe de seus bebês, além de terem seus corpos estuprados rotineiramente.530 A completa configuração da prática de genocídio nesse contexto está manifestada nas “chacinas do Maranhão, onde fazendeiros liquidaram toda uma nação, sem que o SPI opusesse qualquer reação”531 e na “extinção da tribo localizada em Itabuna, na Bahia”,532 onde jamais se apurou as denúncias de inoculação do vírus da varíola para exterminar a população e assim o governo local distribuir as terras. Eram praticadas as formas diretas e indiretas de extermínio. Os Cinta-Larga, no Mato Grosso, foram alvos de “dinamite atirada de avião, e a extricnina adicionada ao açúcar enquanto os mateiros os caçam a tiros de ‘pi-ri-pi-pi’ (metralhadora) e racham vivos, a facão, do pubis para a cabeça, o sobrevivente”533 (sic), ao passo que “A fome, a peste e os maus tratos, estão abatendo povos valentes e fortes. […] A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitose externa e interna, quadro êsses de revoltar o indivíduo mais insensível”.534 A lista segue com casos de fome, tortura, arrendamento de terras, precariedade da saúde, etc, entre os Xavante (MT), os Kaingang (RS), os Kadiwéu (MS), e outros. O aprofundamento dado pela CI às investigações iniciadas pela CPI de 1963 corroboraram o que a mídia nacional e internacional vinha divulgando possibilitando “condições objetivas para a efetuação de 17 prisões administrativas e a anulação de 38 Idem, p. 3. Idem. Cf. CORREIA, 1968. p. 3-4. CORREIA, 1968, p. 6. Idem, p. 7. Idem. Idem. 528 529 530 531 532 533 534 588 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X nomeações ali verificadas”,535 mas dezenas e dezenas de pessoas indiciadas permaneceram impunes. O relatório final536 da CI passou a ser conhecido por um dos nomes de seu principal responsável e teve seu paradeiro convenientemente desconhecido desde então até ser identificado em 2012, por Marcelo Zelic, no Museu do Índio. Em meio a tantas irregularidades, o SPI foi encerrado e, em seu lugar, estrategicamente vinculada ao Ministério do Interior, encabeçada por Albuquerque Lima, foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em dezembro de 1967, que herdou toda estrutura do antigo Serviço, incluindo muitos dos servidores, e que se associou à política desenvolvimentista e expansionista na região norte e no Centro-Oeste. As declarações de Albuquerque Lima, de outros ministros do Interior e de presidentes da FUNAI eram a de que as irregularidades foram cometidas por governos anteriores. Oportunamente, Costa e Silva convidou entidades como a Cruz Vermelha Internacional para enviar missões e testemunharem em que condições estavam os indígenas, provocando o arrefecimento dos protestos internacionais, anulando uma investigação do governo brasileiro.537 No entanto, inúmeras denúncias continuavam surgindo na Câmara dos Deputados levando à criação de mais uma CPI para estudar a legislação indigenista e investigar a situação em que se encontravam esses povos. Em 1º de maio de 1968, foi criada aquela que ficou conhecida como “CPI dos índios”, que viajou de Brasília para Tocantins, Pará e Maranhão, onde puderam conhecer a realidade dos recém-contatados Xikrin, dos Apinayé, dos Xerente, dos Parkatêjê, dos Gavião, dos Kanela e dos Guajajara, que enfrentavam fazendeiros, caçadores, grileiros e também as obras do Estado brasileiro, já anunciando o Programa de Integração Nacional, implementado em 1970. Os membros da CPI puderam testemunhar os impactos que barragens e rodovias, como a Transamazônica, causaram na vida desses povos. Em uma segunda viagem, ao Rio Grande do Sul, ouviram dos Kaingang novos relatos de genocídio. De acordo com a liderança Pedro Silveira, em um primeiro momento, foram proibidos de plantar na própria terra e, posteriormente, colocados em caminhões e abandonados em locais distantes. Diante do que ele entendeu ser uma perseguição, afirmou que seria melhor se “fizesse fogo e queimasse tudo do que fazer sofrer um mundo de Diário Oficial de 10 de setembro de 1968. Disponível em: < http://www.docvirt.com/docreader.net/docindio/69 >. Acesso em: 06/07/2021. O Relatório Figueiredo pode ser acessado em: < http://www.docvirt.com/docreader.net/docindio/1 >. Cf. BARBOSA, 2016, p. 182. 535 536 537 589 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X criancinha nas estradas”.538 Ao que tudo indica, tratou-se ser esse esbulho parte da reforma agrária promovida por Leonel Brizola no início da década de 1960, que posteriormente se limitou a dizer ser impossível devolver as terras, já que “o que está feito está feito”.539 Ao ser decretado o AI-5, em dezembro de 1968, a CPI foi encerrada após somente duas viagens, e vários de seus integrantes foram cassados. Apesar do ambiente hostil, os remanescentes publicaram um relatório com depoimentos no diário do Congresso Nacional. Mais recentemente, foi criada a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para apurar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 – o que incluiu o período da ditadura (1964-1985) –, mas que inicialmente não considerou incluir os povos indígenas. Somente após diversos debates e muita pressão por parte de indígenas e indigenistas que se acatou sua inclusão. As investigações, que duraram de 2012 a 2014, acabaram por concluir que as maiores vítimas das ações do Estado foram justamente aqueles quem inicialmente não foram considerados. Os casos registrados no Relatório Figueiredo vieram à tona, mas o que se viu foi um agravamento no número de vítimas indígenas devido aos projetos do Estado brasileiro que se intensificaram a partir de 1968. De acordo com o relatório final da CNV, “Como resultados desas políticas de Estado, foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos [...] em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”.540 Considerando que a mesma Comissão confirmou ter havido 434 mortes e desaparecimentos de não-indígenas, sendo “191 os mortos, 210 os desaparecidos e 33 os desaparecidos cujos corpos tiveram seu paradeiro posteriormente localizado”,541 o número de vítimas indígenas é quase vinte vezes maior! Essa cifra se torna mais alarmante se considerarmos que somente 10 etnias542 fizeram parte do levantamento. Foram cerca de 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-Larga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédé.543 Relato de Pedro Silveira. In: PENNA, 1998. Cf. BOND, 1989. CNV, 2014b, p. 205. CNV, 2014a, p. 963. Os povos indígenas só passaram a figurar no censo recentemente, sendo que não há dados demográficos sobre eles no período citado. Entretanto, pode-se assumir que o número de etnias não tenha sofrido grandes alterações a ponto de minimizar o impacto desses dados. O censo de 2010 registrou 305 etnias falantes de 274 idiomas. Cf. Cf. CNV, 2014b, p. 254. 538 539 540 541 542 543 590 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X As promessas dos militares golpistas representadas nas palavras de Albuquerque Lima não cessaram as denúncias e investigações, o que levou o Brasil ao Tribunal Russel II, “realizado entre 1974-1976, e também à quarta sessão desse tribunal internacional, realizado em 1980 em Roterdã. Nessa sessão foram julgados os casos Waimiri Atroari, Yanomami, Nambikwara e Kaingang de Manguerinha, tendo o Brasil sido condenado”.544 Isso porque, com o AI-5 e a criação do Plano de Integração Nacional (PIN), também as políticas indigenistas se tornaram mais agressivas. As obras da Transamazônica, das BR-174, 210 e 374 levaram mortes, doenças e tragédias a diversos povos, o próprio presidente da FUNAI, Bandeira Mello, pra citar um exemplo, atuou favoravelmente à Vila Bela Agropastoril S/A, afirmando que os Nambikwara seriam atraídos, pacificados e transferidos a uma reserva definitiva, tirando-os do caminho da empresa.545 Entre os Waimiri-Atroari, surgiram perguntas dos sobreviventes como “O que é que civilizado joga de avião e que queima o corpo da gente por dentro?”.546 Até entenderem que seu território ancestral atraía a atenção de mineradoras (Paranapanema S/A) e que uma rodovia (BR-174) o atravessaria, muitos sucumbiram à doença, aos ataques realizados por militares e civis com armas de fogo e ataques aéreos, até que passaram a perguntar: “Por que kamña matou kiña? Apiemieke?”.547 As fontes revelam muito mais. A própria FUNAI chancelou a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), em 1969, que visava militarizar indígenas para se tornarem a presença do Estado nas aldeias e garantir o discurso paranoico de segurança nacional. Da mesma forma, criaram o Reformatório Krenak e a Fazenda Guarani, onde aprisionavam indígenas que se rebelavam contra a invasão de suas terras por fazendeiros ou por simplesmente beberem álcool. Tais locais eram verdadeiros campos de concentração, onde a prática comum era a tortura.548 Em tão poucas linhas é possível notar que o genocídio dos povos indígenas é prática corriqueira por parte do Estado brasileiro. Então, por que tão pouco se sabe sobre o assunto, mesmo após as investigações da Comissão Nacional da Verdade? Essas mortes simbólicas e CNV, 2014b, p. 208. Cf. Idem, p. 209. COMITÊ ESTADUAL DE DIREITO À VERDADE, À MEMÓRIA E À JUSTIÇA DO AMAZONAS, 2014, p. 32. Idem, p. 19. Kamña é como esse povo se refere aos “brancos”, aos “civilizados”, como oposição à sua autodeterminação, kiña, que significa “nós”. Apiemieke significa “Por quê?”. 548 Cf. CNV, 2014b, p. 245. 544 545 546 547 591 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X físicas representam sobretudo a invisibilidade em que se encontram esses grupos. Ainda que historicamente eles estejam presentes nas narrativas, é sempre de uma forma coadjuvante ou como empecilho. A forma colonialista com que eles ainda são vistos os cristaliza numa condição em que ser o que se é faz deles selvagens e atrasados, sendo necessário tirá-los dessa condição, trazê-los para a sociedade nacional, salvá-los de sua barbárie por meio da cristianização. Pode soar como ações anteriores ao século XIX, mas é sua realidade atual. Não à toa, iniciativas como os projetos de lei que tentam alterar a forma de demarcar terras indígenas, tirando da FUNAI essa responsabilidade passando-a para o Congresso, onde adversários históricos dos indígenas representados nas bancadas do boi, da bala e da Bíblia atuam com grande força, passam despercebidas pela sociedade. Por um lado, poucos se interessam e se importam, por outro, ainda vigora o argumento de que eles precisam “evoluir”, “capitalizar suas terras” e passar a ser “humanos como nós”. Defensores desses pensamentos não compreendem que há no mundo muito mais do que cartesianismos e binarismos ocidentais. As relações que esses povos têm com o meio em que estão inseridos, suas compreensões de mundo, seus modos de vidas, suas culturas, são sua estrutura existencial, sem a qual, tornam-se vazios. Não sendo alterada a forma com que esses povos são vistos, desprovidos de humanidade, permanecerão invisibilizados, no limbo histórico deste país. A despeito das recomendações registradas no relatório da CNV, como pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas, reconhecimento da prática de perseguição aos povos indígenas, a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, entre outras, o fato é que longe de haver alguma reparação histórica, permanecem o descaso e a indiferença. Consequentemente, a negação do genocídio indígena. Referências BARBOSA, Rodrigo Lins. O Estado e a questão indígena: Crimes e corrupção no SPI e na FUNAI (1964-1969). Dissertação de Mestrado em História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Orientadora: Profa Dra. Bartira Ferraz. Recife: UFPE, 2016. BOND, Rosana. Índios querem as terras que Brizola tomou em 62. O Estado de São Paulo. 20/09/1989. Disponível em: < https://tinyurl.com/y5f552rl >. Acesso em: 06/07/2021. 592 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010: população indígena é de 896,9 mil, tem 305 etnias e fala 274 idiomas. Brasília, 10/08/2012. Disponível em: < https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?idnoticia=2194&view=noticia >. Acesso em: 07/07/2021. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório v. 1. Brasília: CNV, 2014a. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório v. 2, Texto 5. Brasília: CNV, 2014b. COMITÊ ESTADUAL DE DIREITO À VERDADE, À MEMÓRIA E À JUSTIÇA DO AMAZONAS. A ditadura militar e o genocídio do povo Waimiri-Atroari: “por que kamña matou kiña?”. Campinas, SP: Curt Nimuendajú, 2014. CORREIA, Jáder de Figueiredo. Relatório Figueiredo, v. 20. Brasília, 1968. OLIVEIRA, João Pacheco de. Terras Indígenas no Brasil: Uma tentativa de abordagem sociológica. Antropologia nº 44, Nova Série, Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1983. PENNA, Hermano. Índio, memória de uma CPI. Realização da TV Câmara. Produção LUZ XXI CINE VÍDEO LTDA, 32 min, 1998. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. 7ª ed. São Paulo: Global, 2017. RODRIGUES, Cíntia Régia. O Apostolado Positivista do Brasil e o SPILTN: propostas e políticas para a questão indígena no Brasil. Topoi, Rio de Janeiro, v. 20, nº 40, p. 185-203, jan./abr. 2019. 593 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X “Sacó hueste para yr contra los moros”: o fazer da guerra e o panorama das disputas territoriais na Crónica de Castilla (séc. XI a XIV) Higor Soares de Melo549 RESUMO A dissolução do Califado de Córdoba, nas primeiras décadas do século XI, e a desagregação territorial observada posteriormente a este acontecimento, marca o início da expansão definitiva das monarquias cristãs do norte da Península Ibérica rumo ao sul. Aproveitando a debilidade militar dos pequenos reinos taifas, - assim como um breve período de prosperidade, propiciado por condições climáticas, econômicas e demográficas favoráveis – os cristãos passaram a pressionar mais fortemente seus vizinhos muçulmanos de Al-Andalus, recrudescendo os combates que já vinham sendo travados, tanto numa dimensão material como simbólica, desde o final do século VIII. Testemunhos dos embates territoriais, bem como das operações militares e das proezas das cavalarias castelhano-leonesas ficaram fartamente registradas em diversas crônicas régias e gerais, escritas entre os séculos XI e XV. Estas fontes, escritas sob encomenda da nobreza, para leitura da própria nobreza, tinham por objetivo principal comunicar às gerações posteriores de aristocratas as condutas e virtudes desejadas nestas elites. Num período em que a guerra era um aspecto fundamental da vida em sociedade, torna-se natural que estes tratados pedagógicos se dediquem longamente a descrever as qualidades que um grande líder militar deveria desenvolver, e saber manobrar no campo de batalha era uma das mais importantes. Esta discussão foi em boa medida escamoteada por certa historiografia militar tradicional, herdeira das tradições do período napoleônico – quando as grandes batalhas campais com exércitos de dezenas de milhares de soldados perfilados eram a norma – que tendeu a enxergar a guerra medieval uma atividade irracional, regida por operações desorganizadas, desprovidas de estratégia, onde apenas os números definiriam os vencedores e os perdedores. Pesquisas mais recentes mostram como essa historiografia ignorou as minúcias e as particularidades do guerrear na Idade Média, como a importância da guerra de assédio e dos cercos, por procurar no passado as táticas que se faziam eficazes no presente em que escreviam, diante desta incompatibilidade, rapidamente taxaram a realidade passada como inferior. Licenciado em História pela Universidade Federal de Alagoas. Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História da mesma Universidade. 549 594 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Seguindo as discussões mais recentes da historiografia militar medieval ibérica, como elencadas por GARCÍA FITZ & MONTEIRO (2018), propomos estabelecer um panorama do fazer da guerra nos combates descritos na Crónica de Castilla, fonte dos primeiros anos do século XIV que narra os acontecimentos em Castela e Leão desde meados do século XI. Palavras-chave: Nova História Militar, “Reconquista”, História Medieval. Introdução As reflexões sobre a arte da guerra foram constantes entre historiadores. Atentos aos movimentos de longa duração, muitos buscaram comparar as particularidades deste ofício de acordo com as divisões tradicionais da cronologia ocidental, nos períodos medieval, antigo e moderno. A enorme maioria destes historiadores chegou a conclusão de que a arte da guerra era, na Idade Média, medíocre, rudimentar, simplória ou até não existente de um ponto de vista heurístico e de organização. As operações do período seriam, segundo esses historiadores, desengonçadas, e os guerreiros, lutadores individualistas, ignorantes dos conceitos de disciplina e de trabalho conjunto. Muitos destes historiadores eram, eles próprios, soldados ou oficiais dos exércitos das potências imperialistas europeias550, em serviço ou reformados. Partindo desta posição, seu foco foi desenvolver um estudo pragmático, utilitarista no sentido de ensinar o que se descobria aos novos oficiais em formação e de aplicar imediatamente esses conhecimentos adquiridos nos campos de batalha aos quais já estavam acostumados. Desta perspectiva, concluíram que praticamente nada poderia ser aprendido ou aproveitado da Idade Média, subscrevendo nos vícios e referendando os mesmos preconceitos de positivistas e historicistas, as mesmas tradições historiográficas que categorizaram o período como uma Era das Trevas, um interstício estéril entre a grandiosidade da Antiguidade e o esplendor da Renascença (CONTAMINE, 1986, p. 208 - 209). Contudo, como Philippe Contamine aponta na obra que foi um marco na superação desses preconceitos, diversos trabalhos mais recentes demonstraram que a realidade era muito mais complexa do que estes historiadores supunham, sendo muito factível apreender a partir da documentação disponível os princípios gerais das táticas medievais; examinar campanhas e discernir em suas movimentações as ideias diretivas que as guiavam, ou seja, as estratégias Os primeiros expoentes, já no século XIX, eram herdeiros diretos das doutrinas táticas-estratégicas do período napoleônico, quando as grandes batalhas campais com exércitos de dezenas de milhares de soldados perfilados, disparando salvas nos adversários do outro lado, eram a norma. Já no início do século XX, com o advento da Grande Guerra, o parâmetro do que era adequado implementar no campo de batalha se moldou à realidade das trincheiras. 550 595 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X empregadas; listar uma série de procedimentos e respostas realizadas de acordo com as condições específicas de tal ou qual batalha; e reconhecer que os guerreiros medievais tinham a clareza de que dominar um arcabouço variado de conhecimentos práticos e teóricos sobre a guerra traziam vantagens diretas às suas operações. Este breve artigo traz uma singela contribuição nas discussões sobre o fazer da guerra na Idade Média, para o caso específico da península ibérica, com ênfase ao reino de Castela e Leão entre os séculos XI e XIV. Há muitas formas de abordar o tema na documentação, existindo inclusive uma série de tratados do período que contemplam as minúcias do ofício guerreiro, sendo a Segunda Partida de Afonso X um dos textos mais relevantes nesta seara. Contudo, nossa exploração seguirá por uma via diferente, a das crônicas, em específico a Crónica de Castilla, dos primeiros anos do século XIV. Sendo um gênero textual de caráter eminentemente pedagógico dirigido às aristocracias guerreiras, as crônicas não só ensinavam aos jovens cavaleiros quais os valores e atitudes exigidas deles, como também descreviam, com alguns detalhes, a atividade principal que desenvolveriam durante a vida. Com grande apoio na sistematização recente organizada por GARCÍA FITZ & MONTEIRO (2018), discutiremos como se dava a organização das operações militares na Castela medieval e como essas atividades são representadas na fonte. O ofício da guerra na península tinha algumas características particulares. A mais importante é que era condicionado pelo território fronteiriço com o Islã. Embora houvessem confrontos constantes entre as potências cristãs, a guerra contra Al-Andalus era o foco. Neste sentido, o guerrear na península só é comparável ao das Cruzadas, na Terra Santa. Quanto ao terreno, infraestruturas – como estradas romanas – canalizavam as operações, que também eram direcionadas segundo a disposição de acidentes geográficos como rios – Douro, Tejo, Guadiana e Guadalquivir – e cadeias montanhosas, bem como da rede de cidades. A guerra era mais frequente na primavera e no verão, quando o frio não era tão intenso, ainda que este fator perca impacto com o passar das décadas, quanto mais para o sul a fronteira era empurrada. No mais, as operações militares na península tinham muito em comum com o que se observa no resto do Ocidente Medieval, podendo ser divididas em três formas principais de guerrear: a guerra de assédio, ou as incursões; a guerra de sítio, ou os cercos; e as batalhas campais (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 66). Guerra de assédio 596 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Como em outras partes de Europa, os líderes militares hispânicos não empregaram estratégias de confrontamento direto de forma sistemática. Eles preferiam táticas de confronto indireto, que eram mais eficientes para os meios limitados dos quais dispunham. Estas consistiam em operações de assédio temporárias que visavam enfraquecer continuamente as bases econômicas, militares, políticas e psicológicas de seus adversários. Tratados castelhanoleoneses referem-se a tal modalidade de combate como guerra ligera, guerra de passada ou guerra guerriada. (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 66). Baseavam-se em incursões de devastação de tamanho, alcance, duração e intensidade variáveis. As operações mais comuns, conhecidas como algarradas, correduras ou cavalgadas (na Crónica de Castilla, aparecem muito mais os dois últimos termos), eram de curto alcance e duração, de um ou dois dias. Pequenos contingentes de cavaleiros em armamento leve adentravam o território inimigo, preferencialmente à noite, aproveitando o fator surpresa, e retornando a uma fortificação próxima antes que os defensores pudessem se mobilizar. O propósito dessas operações era atacar alvos específicos, para roubar comida ou gado, matar ou capturar a população, e destruir infraestrutura agrícola e plantações. O butim tinha papel central nas operações, fundamentando tanto seu planejamento quanto seus objetivos (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 66). Desde os estágios mais remotos da Reconquista, grandes incursões foram realizadas, guiadas pelo monarca ou por algum grande aristocrata, com forças maiores e penetrando mais fundo no território inimigo. Sabe-se muito pouco sobre sua organização antes do século XI. Cavaleiros, infantes e arqueiros se concentravam num local fixo, de onde partiam com itinerários planejados com a ajuda de guias moçárabes ou muçulmanos. A expedição era precedida por cerimônias onde o exército e seus estandartes eram benzidos. Na campanha, o comando ficava na mão dos adalides, que eram líderes militares com conhecimento e experiência (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 66 - 67). Estas são as quais a Crónica de Castilla dá mais importância, uma vez que os protagonistas da narrativa são sempre os reis de Castela – ou cavaleiros de muito renome, como El Cid. As expedições de larga escala, chamadas na fonte de fonsado, são usualmente precedidas de jejuns e peregrinações rumo a Santiago de Compostela por parte do monarca que a lidera. Em geral, poucos detalhes são dados na Crónica sobre a organização dessas expedições, ficando o enfoque em celebrar os resultados materiais de cada incursão, relatando enormes ganhos em gado aprisionado, ouro e cativos. Comparada com outras formas do 597 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X guerrear medieval, as cavalgadas parecem ser pouco esmiuçadas na Crónica. Isso, contudo, parece não se dar por sua escassez. Muito pelo contrário, o motivo parece ser o caráter corriqueiro e frequente de tais atividades, que estam presentes na atuação de todos os monarcas dos quais a fonte se ocupa. Seria impossível relatar todas as instâncias nas quais os monarcas organizaram incursões de assédio, sendo assim, a Crónica se dedica apenas àquelas que considera especiais na grandeza dos saques, na extensão dos danos causados, ou na função edificante da narrativa que está construindo, servindo por vezes como etapa de desenvolvimento de determinados personagens. Os cristãos desenvolveram, também, mecanismos de resposta às incursões muçulmanas, especialmente devastadoras no período Omíada. Quando uma incursão era detectada, os defensores observavam a movimentação de uma distância segura. Se houvesse tempo, a população fugia para fortificações. Tropas defensivas locais, chamadas apellido, eram efetivas contra ataques menores. No caso de incursões grandes, preparavam emboscadas (çeladas) em pequenos grupos, enquanto uma força maior era organizada para interceptar o inimigo durante sua retirada, uma vez que um exército carregando saques se movia mais lentamente. Era conveniente bloqueá-los nas passagens de colinas. A perseguição podia, contudo, terminar em combate frontal (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 67). A Crónica, a princípio, tende a relatar pouco tais mobilizações de caráter defensivo, muito pelo momento histórico de enfraquecimento bélico de Al-Andalus nos séculos iniciais dos quais a fonte se ocupa. Realidade que muda sensivelmente, mas por curtos períodos, com a chegada dos Almorávidas, em 1086, e dos Almóadas, em 1147. Novamente, o protagonista de tais operações, quando não o próprio monarca, é El Cid, retratado como eficiente defensor das fronteiras do reino, responsável por interromper ou impedir incusões muçulmanas em suas terras e nas terras de seus correligionários. Durante os séculos XI e XII, muitas operações de assédio foram realizadas por milícias municipais fronteiriças, de forma autônoma. Farta documentação legislativa (fueros) sobre a distribuição do butim mostra que essas operações eram uma verdadeira forma de subsistência para muitos cristãos na fronteira. A partir de meados do século XII, a autonomia operacional dessas milícias urbanas foi reduzida, a medida que passavam a integrar cada vez mais as expedições de grande escala organizadas pelos monarcas (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 67 - 68). 598 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Crônicas e tratados militares permitem rastrear o desenvolvimento dessas incursões de longo alcance. Eram operações temporárias, de no máximo 45 dias. Tropas reais, exércitos de nobres, milícias urbanas e Ordens Militares integravam as forças que poderiam somar alguns milhares de homens. Entre os contingentes, podiam haver pastores, responsáveis por transportar o gado apresado, guardiães de espólios e cativos (guardadores), equipes de cuidados médicos (físicos, maestros de las llagas) e clérigos. Os líderes militares continuavam a ser os adalides, que acompanhavam o rei ou o comandante do exército. Suas operações eram planejadas a partir de informações obtidas por espionagem ou interrogatório de prisioneiros. Eles guiavam o exército buscando por rotas e passagens que oferecessem espaço suficiente para os acampamentos. Sistemas de segurança também ficavam sob sua discrição (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 68). A prudência dos líderes, observação cuidadosa do terreno, vigilância à movimentação inimiga e a disciplina das tropas eram considerados fatores essenciais aos bons resultados. O exército em marcha poderia ser dividido, preferencialmente, em quatro colunas, a vanguarda, a retaguarda e duas alas de cavaleiros prontos para o combate. O exército era precedido e flanqueado por batedores (descobridores). A coluna nunca deveria se quebrar, especialmente na travessia de locais acidentados, que eram assegurados previamente por besteiros, infantes e cavaleiros. Durante a marcha, pequenos grupos faziam saídas regulares para garantir as provisões da hoste e multiplicar os efeitos da operação. Se a coluna fosse atacada, recomendava-se que as provisões fossem protegidas no centro, e que fossem evitadas perseguições para que não caíssem na armadilha tradicional da cavalaria leve muçulmana conhecida por tournafuy. Em circunstâncias ideais, um exército em retirada poderia dar a volta e entrar no território inimigo de novo, movimento considerado a tática mais devastadora (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 68). A guerra de assédio, além de seu propósito econômico imediato, poderia ter objetivos estratégicos de longo prazo. Campanhas importantes foram planejadas para ganhar prestígio e enfraquecer o domínio muçulmano na região. A partir do século XI, incursões foram usadas como meio de extorquir e punir os reinos taifas, bem como uma arma política. Diversas são as menções na Crónica a tréguas compradas pelos reinos taifas, pagas com prata e ouro, para que as destruições cessassem. Incursões sistemáticas eram lançadas com o objetivo de desestabilizar politicamente Al-Andalus, abalando a credibilidade dos grupos no poder de serem realmente capazes de proteger seus súditos, e aprofundando possíveis crises políticas em curso entre os 599 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X domínios mouros. Outro uso estratégico dessas incursões era como distração para outras ofensivas de propósito mais imediatamente expansionista (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 68 - 69). Nas áreas fronteiriças, a função estratégica das destruições e do assédio estava diretamente ligada à expansão territorial. O dano acumulado de sucessivas incursões neutralizava o potencial ofensivo dos muçulmanos e exauria sua capacidade defensiva, pavimentando o caminho para a anexação definitiva em médio ou longo prazo. A conquista de uma praça, por exemplo, dificilmente poderia acontecer sem uma fase anterior de enfraquecimento, por meio da exaustão de recursos econômicos e da conquista de pontos fortes circundantes (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 69). Guerra de sítio A expansão territorial efetiva exigia o controle de fortalezas. O próprio termo Castela alude à onipresença da guerra nas fronteiras, e da construção de castelos para se proteger de ameaças externas. Dada a superioridade das táticas de defesa sobre as de ataque, qualquer grupo numa posição fortificada com muralhas e em terreno mais elevado poderia se defender de atacantes em maior número. Desta forma, os líderes e habitantes de Castela e Leão, tendo de lidar constantemente contra os muçulmanos, outras potestades cristãs e conflitos internos, implementaram a política de construir sistematicamente e manter fortificações. Num nível estratégico, a função de enclaves fortificados não era a de constituir uma barreira, mas a de atrasar ao avanço do inimigo. Só o domínio de cidades assegurava controle estável sobre o território. Ao mesmo tempo, fortalezas eram as bases a partir das quais eram lançadas as operações de assédio e conquista. (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 69 - 79) Essas construções eram tremendamente diversas no que diz respeito a seu posicionamento, seu desenho, aos materiais de sua construção, tamanho e funcionalidade. As construções mais comuns incluem as muralhas urbanas, que serviam para defender e marcar a jurisdição das cidades. As mais antigas eram legado de assentamentos romanos. Contudo, partindo do século XI, novas cidades começaram a ser construídas em regiões esparsamente povoadas, equipadas com muralhas. Mesmo com a progressiva expansão de Castela e Leão rumo ao sul, procurava-se manter intactas as muralhas das cidades conquistadas. Além disso, muitos pequenos vilarejos tinham fortificações, sendo o meio rural frequentemente associado à presença de uma fortaleza. Membros da nobreza, Ordens militares e a Igreja construíam 600 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X castelos de onde irradiava seu poder senhorial, exercendo domínio político e econômico sobre os territórios sob sua jurisdição. Torres de vigia ou atalayas eram erigidas por todo o território, mas principalmente perto das fronteiras. A importância dessas fortificações era, portanto, não apenas militar, mas também se dava pelas funções administrativas que possuíam, constituindo pontos de desenvolvimento agrícola, mercados e locais de coleta de impostos, os verdadeiros centros de poder da península medieval. . (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 79 - 80) Havia várias formas de se tomar uma fortaleza. O furto consistia num ataque surpresa rápido, realizado por um pequeno grupo de guerreiros experientes que se aproveitava da escuridão da noite, de condições climáticas favoráveis ou do descuido da guarnição para escalar as muralhas e capturar o lugar. Outro método era o do assalto em massa (por fuerça), que poderia funcionar em fortificações pequenas, com guarnições reduzidas, mas que era arriscado demais quando atacando uma cidade (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 69). Quando esses meios se mostravam impraticáveis, os atacantes poderiam levantar um bloqueio ou cerco. Por vezes aconteciam lutas fora das muralhas, mas o objetivo dessa operação era forçar a rendição dos defensores. Para tanto, era necessário isolar fisicamente o lugar, para que a fome, a sede e as doenças inviabilizassem a resistência. O bloqueio efetivo de uma cidade exigia um esforço militar, logístico e técnico considerável. A necessidade de concentrar tantos recursos humanos explica porque muitos cercos eram operações conjuntas de diferentes potestades. Garantir os suprimentos das tropas que cercavam era essencial, sendo a inabilidade em garantir a logística necessária o motivo de diversos cercos prolongados acabarem em retirada dos atacantes. Em lugares com grandes guarnições, sortidas executadas pelos defensores também constituíam um perigo constante. Durante um cerco, era indispensável isolar o lugar militarmente, impedindo a chegada de reforços. Via de regra, quando os defensores percebiam que não havia perspectiva da chegada de ajuda externa, iniciavam-se as negociações de rendição, segundo termos razoáveis (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 69 - 70). A Crónica de Castilla é farta em descrições de cercos. Alguns são deflagrados com justificativas vindicantes, como da cidade de Viseu, empreendido pelo rei Fernando I como punição ao abate de seu sogro, muitos anos antes, por uma seta disparada das muralhas da cidade. Observamos descrições de métodos empregados para proteger os atacantes de flechas, prendendo tábuas nos escudos para diminuir o poder de penetração dos projéteis, e da construção de castelos de madeira ao redor da cidade cercada, técnica que potencializava a 601 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X eficiência do sítio por fortificar as posições de bloqueio dos atacantes, dificultando escaramuças de tropas do interior da cidade ao mesmo tempo que impedia a chegada veloz de um exército de reforço aos defensores. A crônica também cita constantemente o emprego de engeños, torres sobre rodas e catapultas e fondas. No que tange a essas máquinas de cerco, sabe-se mais do cenário a partir do século XI, período inicial da narrativa da crônica, sem grandes diferenças entre o que se observa na península e no resto da Europa. Os atacantes se aproximavam das muralhas usando manteletes (sarzos) e cabanas móveis de madeira (gatas, viñas). Os equipamentos mais usados em assaltos eram cordas e escadas, comuns nos furtos. Torres de madeira, eram estruturas de vários andares sobre rodas, usadas para atingir, com segurança, os topos das muralhas. Para destruir defesas, haviam várias técnicas, ferramentas e máquinas. O uso de aríetes (boçon, burzón) é pouco documentado. A demolição de muralhas e torres se dava pelo subterrâneo, cavando túneis para remover as camadas inferiores de pedra, ou minando os suportes da muralha. Quanto à artilharia, assim como no resto da Europa, há problemas de interpretação. Documentação variada menciona balistas – sem evidenciar se se tratam de catapultas ou de lançadoras de projéteis – e almajaneques, que eram, seguramente, trabucos de contrapeso. Entretanto a maioria dos termos - machinas, fundibularios, fondas ou algarradas - não deixa clara qual a fonte de propulsão empregada para o lançamento dos projéteis. (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 70) Apesar de sua reputação, os engenhos não costumavam ser decisivos no desfecho de um cerco. Sua qualidade técnica é muito limitada e eram vulneráveis a ataques dos defensores. Autores de tratados militares do período eram céticos quanto a sua eficiência no cerco a cidades, preferindo contar com a fome ou a surpresa. As armas de cerco, porém, aparecem em quase todos os relatos, o que provavelmente se explica por seus efeitos psicológicos, capazes de aterrorizar os defensores, contribuindo para uma rendição mais rápida (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 71). Batalhas campais Desde as primeiras décadas de confrontos após a conquista islâmica, os exércitos das Astúrias e de Leão procuraram a evitar batalhas abertas contra os muçulmanos, preferindo emboscadas e lutas de pequena escala. A partir do século XI, as batalhas tiveram papel secundário nas estratégias de expansão cristãs, visto que as incursões e a captura de fortalezas 602 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X eram mais eficientes para alcançar um domínio territorial duradouro. Fernando III, rei de Castela e Leão mais bem sucedido nas guerras contra os muçulmanos, conquistando uma área de mais de 100.000 km², jamais lutou uma batalha campal (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 71). É sabido que as batalhas eram muito arriscadas em termos militares e políticos. Vários governantes morreram em combate, gerando consequências desastrosas. Desta forma, as batalhas costumavam se desenrolar como resultado circunstancial de outras ações. Alguns confrontos diretos foram travados para parar o avanço de um exército invasor. Outros ocorreram durante a perseguição a invasores em retirada. No contexto dos cercos, batalhas ocorriam quando reforços chegavam ou quando os defensores saíam para enfrentar os atacantes. (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 71 - 72) Apesar dos riscos, reis e líderes militares entendiam os benefícios de uma vitória em campo aberto. Autores castelhanos reproduziam a máxima antiga de evitar uma batalha e só lutá-la caso seu resultado pudesse decidir uma guerra em definitivo. A ética cavalheiresca, com todas suas representações a respeito do combate frontal, também nutriu essa consciência. Não se deve desprezar, também, o fascínio pelos aspectos litúrgicos em volta das batalhas campais. Por razões práticas e psicológicas, a batalha constituía uma alternativa militar válida para expulsar uma ameaça externa, para eliminar um rival político, como afirmação de legitimidade ou para rapidamente resolver um conflito (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 72). Este parece ser o uso preferido das descrições de batalhas campais na Crónica de Castilla. No mais das vezes, vitórias em batalhas campais são apontadas como o corolário no processo de legitimação de um novo monarca, por exemplo. Tanto no caso de Fernando I, quanto de seu filho, Sancho II, a legitimidade de seu senhorio só é reconhecida por todos os súditos diante de vitórias decisivas em campo aberto contra seus irmãos, também monarcas dos reinos cristãos rivais vizinhos. Pouco se fala sobre os detalhes táticos e estratégicos, com alguma sorte nomeando tal ou qual cavaleiro ficou responsável por coordenar determinada seção do exército, ficando a narrativa mais focada, novamente, nas consequências políticas que a vitória ou a derrota traziam. Na hora do combate, a escolha do terreno era importante. No campo aberto, as posições visadas eram as que garantiam altitude ou obstáculos naturais, também levando em conta a posição do sol e a direção do vento. Batalhas próximas a muralhas eram comuns, especialmente quando na defensiva. Quando perfilados, os combatentes se preparavam 603 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X espiritualmente e eram encorajados por discursos dos líderes. Os exércitos eram dispostos numa ordem específica, algo que era considerado crucial. A organização ideal das hostes era formada pela vanguarda (delantera), centro (medianera), flancos (costaneras, alas, çitaras, açitaras), e retaguarda (çaga), posição considerada natural para o rei, devido à segurança que dispunha e à visão elevada que garantia do campo de batalha (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 72). As fontes nem sempre permitem conhecer as táticas usadas em cada batalha. Os exércitos muçulmanos confiavam no assédio à distância através de arqueiros a cavalo, fugas simuladas (tournafuy) e manobras envolvendo os flancos, ainda que não evitassem combate de proximidade com cavalaria bem equipada e formações compactas de infantaria. Seu uso experiente dessas estratégias explica muitas de suas maiores vitórias. Entre os cristãos, há evidência do uso de cavalaria leve à moda moura bem antes do século XI. Após essa data, cavalaria com armadura cada vez mais completa, se lançando contra o inimigo em formações cerradas, preferencialmente portando lança foi prevalente. Não há registros de batalhas em que cavaleiros tenham desmontado para lutar a pé (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 72). A unidade tática mais importante era o esquadrão (acies, az), um retângulo com várias linhas de guerreiros formando uma fronte estendida. Às vezes, grupos menores são mencionados. Os acies se comunicavam por mensageiros, sinais sonoros (gritos, trompas e tambores) e sinais visuais (bandeiras e cruzes). Soldados a pé (peones) subestimados pelos autores medievais, performavam funções táticas essenciais, como defender os acampamentos, enfraquecer as linhas inimigas com o lançamento de projéteis (fundeiros e besteiros), e proteger a cavalaria, antes de sua hora de entrar em ação ou entre uma carga e outra. Também poderiam compor formações mistas com os cavaleiros (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 72 - 73). Também haviam outras disposições táticas. A muela era uma formação em círculo, usada caso as tropas estivessem cercadas. Para defender o comboio de carga ou o rei, a formação quadrada de muro podia ser empregada. A çerca ou corral dos Almóadas era similar a esta. Consistia numa posição fortificada na retaguarda, defendida por soldados a pé, com lanças fincadas no chão, e outras formações de arqueiros, besteiros e fundeiros. Por ser uma posição estática, servia para estimular o espírito de combate em todo o exército. Algumas formações de cavalaria também são conhecidas. A saber, o tropel era uma formação compacta e estreita, pensada para quebrar a formação inimiga graças a uma vanguarda de cavaleiros 604 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X pesados, bem armados. Já a cunha (cunno) era uma disposição triangular com grande capacidade de penetração nas linhas inimigas (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 73). O desfecho de uma batalha campal não era sempre previsível. Os textos de juristas insistem na prudência, na disciplina e na manutenção da formação cerrada, prescrevendo punições severas para os que não acatassem as ordens. Controlar a sanha dos homens pelo saque também era uma preocupação constante, mas que por vezes era impossível de conter, podendo resultar em viradas catastróficas (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 73). Considerações finais Percebe-se, ao cabo dessa breve articulação entre a leitura preliminar de uma fonte – que não é nem específica sobre a temática em sua inteireza – e das referências historiográficas mais recentes, que um olhar aguçado pemite, sim, apreender o sentido tático e estratégico de operações militares na península ibérica medieval. É visível, também, que os contemporâneos não apenas sabiam da importância da organização e da disciplina nessas empreitadas, como também reconheciam os benefícios que a manutenção de um arcabouço teórico sistematizado por escrito oferecia às gerações posteriores de guerreiros, conferindo-lhes um referencial a ser consultado durante a sua formação para o ofício das armas, ou em preparação para determinada operação. Ainda que seja muito difícil verificar em que nível tais acúmulos teóricos impactaram diretamente o guerrear naquele cenário, torna-se temerário ignorar a existência e a permanência da farta documentação que discorre sobre a temática, sob pena de cair nos mesmos preconceitos que historicistas e positivistas outrora incorreram. Referências bibliográficas ALVARO, Bruno Gonçalves e PRATA, Rafael Costa. Guerras rendilhadas da erudição: um breve panorama dos combates e debates em torno do conceito de reconquista. SIGNUMRevista da ABREM, v. 15, n. 2, p. 104-126, 2014. CONTAMINE, Philippe. War in the Middle Ages. Oxford: Blackwell, 1986. FITZ, Francisco García. La Reconquista: un estado de la cuestión. Clio & Crimen, 2009. FITZ, Francisco García; MONTEIRO, João Gouveia (Ed.). War in the Iberian Peninsula, 700–1600. Routledge, 2018. FLORI, Jean. Guerra Santa. Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013. 605 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ROCHWERT-ZUILI, Patricia. Crónica de Castilla. París: Les Livres d’e-Spania.(= CC), 2010. RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. 606 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Debate de História Ambiental: cultura e sustentabilidade ecológica nas Reservas Extrativistas Marinhas do Brasil (1990-2020)551 Marcus Vinícius da Silva Santos552 Resumo: Esta comunicação objetiva debater sobre às práticas de sustentabilidade de Comunidades Tradicionais nas Unidades de Conservação Marítimas do Brasil. Utilizamos fontes disponíveis na internet: site do ICMBio, site do ISA e dos Planos de Manejo – coletadas durante o período de pesquisa do Projeto PIBIC 2020-2021, intitulado: “Contribuições Etnohistóricas para a Cogestão de Áreas Marinhas Protegidas de Uso Sustentável do Brasil”. As informações sistematizadas foram submetidas à microanálise para destacarmos os elementos da cultura material e imaterial das comunidades extrativistas pesqueiras de Arraial do Cabo (RJ), Caeté-Taperaçu (PA), Cassurubá (BA), Cururupu (MA) e Soure (PA). Diante das invasões territoriais e seus impactos multifatoriais, as Comunidades Tradicionais residentes nas Reservas Extrativistas acima citadas, empreendem uma permanente luta em defesa de suas autonomias e da sustentabilidade de seus “bens comuns” de forma ecológica e coexistente entre cultura e natureza. Palavras-Chave: Extrativismo pesqueiro tradicional. Sustentabilidade ecológica. Territorialidade e “bens comuns”. E no sangue extrativista, vê-se a sua identidade. Verdadeira conquista (no sol, no sol, suor e dor), ser pescador lá na cidade. E no sangue extrativista, vigorosa batalha, verdadeira conquista. É arte e chumbo na tralha”. Marcio Novaes, Artistas da praia (publicado no livro Memórias do Mar – Mero, em 2011). Tanto o texto quanto a pesquisa foram orientados de perto pela professora drª Arrizete C. L. Costa (UFAL/CITCEM). Graduando em História-Licenciatura pelo Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte (ICHCA) na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Membro do Grupo de Pesquisa Documentos, Imagens e Narrativas – GPDIN/CNPq. 551 552 607 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 1. Neste breve debate, convido cada mente leitora que aqui se aguça para conhecer um dos frutos do Projeto de Iniciação Cientifica (PIBIC 2020-2021) intitulado: “Contribuições Etnohistóricas para a Cogestão de Áreas Marinhas Protegidas de Uso Sustentável do Brasil”. Distanciando-me dos protocolos e burocracias dos relatórios parcial e final, tentarei tecer uma narrativa menos enfadonha e mais circunscrita a respeito deste último ano de pesquisa, voltando-me especificamente para as práticas culturais de sustentabilidades ecológicas empregadas pelas comunidades residentes das Reservas Extrativistas Marinhas do Brasil. Está dada a largada! 2. Antes de ir de vez ao nosso objeto investigativo, gostaria de explanar rapidamente o meu encontro com o campo da História Ambiental553. Uma área de conhecimento das ciências históricas totalmente desconhecida para mim até o início de 2020. Na verdade, igualmente a nova sarscovid-2, o campo da História Ambiental se fazia novo e completamente imprevisível. Mesmo dentre as minhas mais improváveis hipóteses, este campo do conhecido se apresentou como algo único e renovador, e de certa forma – em meio a toda calamidade de crises econômica, política, ambiental e sanitária que temos vivenciado no Brasil desde o golpe de 2016 –, ele parecia ser uma das poucas “luzes no fim do túnel”. O contato com alguns nomes representantes da História Ambiental foi um ponta pé decisivo para minha iniciação em debates das ciências humanas, sociais e ecológicas. Este caleidoscópio de conhecimentos ambientais só confirma a assertiva do historiador estadunidense Donald Worster que caracteriza a História Ambiental como um “esforço revisionista para tornar a disciplina da história muito mais inclusiva nas suas narrativas do que ela tem tradicionalmente sido” (1991, p. 2)554. Mas o contato com Worster só foi possível pelo intermédio de alguns nomes pioneiros da História Ambiental aqui no Brasil, dentre eles, destaco os historiadores José Augusto Drummond e José Augusto Pádua, e a historiadora Regina Horta Duarte. Para o historiador José Augusto Drummond, o primeiro a traduzir os textos de Donald Worster do inglês para o português, a História Ambiental “trata-se de uma mudança séria de paradigma nas ciências sociais. Significa que o cientista social dá às ‘forças da natureza’ um Utilizarei as iniciais deste campo científico em maiúsculo para enfatizar as contribuições significantes da História Ambiental para os resultados de nossa pesquisa. As principais críticas que partem da História Ambiental a disciplina de história, é o fato de a história ter mudado em muitas questões, mas permanecido tradicional quanto a sua curta temporalidade de 10 mil anos, especialmente se comparada aos bilhares de anos da existência da terra, e aos aproximados 5 milhões de anos desde o surgimento dos primeiros hominídeos (CROSBY, 2011; MCNEIL, 2001; PÁDUA, 2010). 553 554 608 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X estatuto de agente condicionador ou modificador da cultura” (1991, p. 180). O historiador José Augusto Pádua (2010), um dos primeiros a trazer o debate ecológico para o ventre da história, categoriza a História Ambiental em três níveis: o 1) interdisciplinar, entre a história, a biologia, a ecologia, a física etc., para conhecer o mundo biofísico; o 2) dialógico, com a interlocução entre materialismo dialético e a antropologia contemporânea555 para estudar os avanços tecnológicos criados pelas sociedades passadas; e, por fim, o 3) cognitivo, evocado por Donald Worster para compreender as relações entre a cultura humana e o mundo biofísico a sua volta. Desembocando então na relação cultura e natureza. Desta forma, os historiadores e historiadoras ambientalistas “tem como missão estudar o homem juntamente com o ecossistema que o comporta, sem dissociá-lo do meio em que está inserido”. De igual maneira, nunca se devem deixar esquecer que “isso se dá numa busca de entender esse mesmo meio e suas transformações, suas mudanças, sejam elas causadas ou sofridas pelos seres humanos” (OLIVEIRA, 2009, p. 10). A História Ambiental surge a partir da década de 1970556 com a necessidade de uma resposta à demanda global dada pelos debates ambientais e ecológicos despontados pelo mundo uma década atrás sobre o uso de agrotóxicos, combustíveis fosseis, desmatamentos, poluição de rios e mares, testes nucleares e as mudanças climáticas. A invenção de algumas ONGs como International Union for Conservation of Nature/IUCN, a United Nations Evironment Programe/UNEP (Traduzido como Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA), e o surgimento do Greenpeace, deram origem a chamada “Primavera Verde”557. As ciências históricas, como uma ciência humana e social, tinham a obrigação de acompanhar estas revoluções. A História Ambiental surge também num confronto direto com a concepção de história que reinava nas academias de história pelo ocidente da primeira geração dos Annales, de que “a história é o homem”, como defendia Lucien Febvre. Ou ainda como Marc Bloch cristalizou em nós: “a história é a ciência dos homens no tempo”. No entanto, desde Fernand Braudel, e especialmente em seu delfim, o annalista de terceira geração, Emmanuel Le Roy Ladurie, o mais emblemático representante da História Ambiental, temos consciência de que na medida A ideia de antropologia contemporânea é debatida por Donald Worster (1991). O primeiro curso de História Ambiental foi dado pelo historiador estadunidense Roderick Nash, em 1972 na Universidade da Califórnia. A pioneira e uma das mais importantes figuras deste movimento é a ambientalista Rachel Carson com a publicação de Silent Spring, (1962). No Brasil, o livro-manifesto foi traduzido como Primavera Silenciosa (2011). 555 556 557 609 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X em que “é uma função do tempo, varia. Está sujeito a flutuações. É objeto da história” (apud PÁDUA, 2010, p. 97). 3. Mas Emmanuel Le Roy Ladurie não me era estranho antes deste processo investigativo. O primeiro contato que tive com o cânone francês, autor de Montalliou (1975), foi por conhecimento da corrente historiográfica mundialmente conhecida como microhistória. Esta, que surgiu no Norte do globo a partir da década de 1970, e que tem como principais representantes o francês Jacques Revel, a estadunidense Natalie Zemon Davis e os italianos Edoardo Grendi, Enrico Castenuelvo, Carlo Poni, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg, me acompanham em leitura desde o início de minha graduação em 2018. Para brevemente definir este grande movimento que tem se espalhado pelo mundo nas últimas quatro décadas, podemos entender a micro-história como um corpus epistemológico que gira em torno de 13 teses teórico-metodológicas558. Carlo Ginzburg, seu mais proeminente representante, a classifica como um método analítico “centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais; ‘baixos’” (1991, p. 148/9). Com os avanços nos debates historiográficos, a micro-história foi readequada a ideia de microanálise, que consiste na “hipótese de reconstruir o espaço social relevante como um todo, através dos conceitos de escala, de limiar, de configuração etc.” (GRENDI, E. apud ESPADA LIMA, 2006, p. 284). Dadas tais informações, acrescento ainda que este embasamento teórico-metodológico foi fundamental para o processo de leitura e a coleta de informações pertinentes que cada um destes textos nos permitiu na apreensão de categorias conceituais559 encontradas em fontes virtuais digitais como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, às páginas do Instituto Socioambiental – ISA, e o Instituto Chico Mendes da Biodiversidade – ICMBio. 4. A leitura das fontes acima citadas, nos possibilitou inventariar algumas categorias conceituais das Unidades de Conservação (UCs), como o Bioma, a Área das UCs, os Decreto de criação, a Portaria do Conselho Deliberativo, os Planos de Manejo (PMs), a Portaria de aprovação do Plano de Manejo, e a Composição atual do conselho. Dentre as UCs inventariadas, selecionamos cinco Reservas Extrativistas Marinhas (RESEX/Resexmar560): Em seu livro Historiografia e Hermenêutica (2014), a historiadora brasileira Arrizete C. L. Costa descreve de forma minuciosa as treze teses da corrente microanalítica (p. 73). Nesta etapa, elaborei fichas de conteúdo e bibliográficas na leitura dos textos selecionados, e nas fontes consultadas, recorremos ao método de análise de conteúdo da psicanalista francesa Laurence Bardin (2011). Diante da disposição de espaço que o texto dos anais deve-se enquadrar, utilizarei as siglas UCs para me referir as Unidades de Conservação, e RESEX ou Resexmar para me referir as Reservas Extrativistas Marinhas. 558 559 560 610 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Arraial do Cabo (RJ), Caeté-Taperaçu (PA), Cassurubá (BA), Cururupu (MA) e Soure (PA). Com o apoio do método onomástico, foi possível “sobrepor-se no tempo e no espaço de modo a permitir-nos encontrar o mesmo indivíduo ou grupos de indivíduos em contextos sociais diversos” (GINZBURG, 1989, p. 173/4). Tais indivíduos foram sistematizados quanto a hierarquia e organização social de cada RESEX: 1) Chefe da RESEX, 2) Coordenador(a) da RESEX, 3) Líder comunitário extrativista, 4) Membros do Conselho Deliberativo, 5) Líder de Associações da RESEX, 6) Líder da Cooperativa de Mulheres, 7) Líder do CONFREM, 8) Líder do REMAR e 9) Pesquisadores/as561. Está finalizada a parte metodológica (se é que ela realmente tem um fim para nós que nos movemos na Teoria e Metodologia da história). 5. Para compreender nosso objeto investigativo, as Reservas Extrativistas Marinhas, é preciso antes conhecer um pouco de suas origens em território brasileiro. Se acompanharmos a historiadora Regina Horta Duarte à década de 1930, os anos da “Revolução Constitucionalista”562, encontramos três biólogos do Museus Nacional, Edgard Roquette-Pinto, Alberto José Sampaio e Cândido de Mello Leitão se movendo inquietos e apressados para levar à Câmara de Deputados um projeto de criação de Unidades de Proteção em território nacional (2010, p. 34-49). A ideia que já havia sido sugerida e “fervorosamente” defendida no início do século XX por um dos herdeiros de Charles Darwin, o naturalista Herman Von lhering (DEAN, 1996, p. 245), reaparece duas décadas depois entre os militantes do Museu de Nacional, resultando na criação de 4 unidades federativas de conservação no Brasil (BENSUSAN, 2006; DUARTE, 2010; PÁDUA, 2016). José Augusto Pádua (2016) nos diz que no decorrer das décadas de 1940-1970, são criadas 38 novas unidades federativas de conservação. Não que os governantes estivessem preocupados com a preservação de nossos biomas, na verdade, “tratava-se de um mero dever burocrático e de uma medida convencional no sentido de não deixar o país muito para trás em relação aos Estados Unidos e, especialmente, à Argentina, onde já existiam parques deste tipo” (PÁDUA, 2016, p. 10). É apenas a partir da década de 1980, nos anos da reabertura democrática, e com os avanços dos debates internacionais sobre a importância da preservação da natureza e do aquecimento global – pode-se destacar a influência da “Primavera Verde” –, que o Brasil ganha 94 novas unidades de preservação. Já na década de 1990, este número caí para 54. Com a chegada do século XXI, a criação de Unidades de Conservação chega a 116 A sistematização minuciosa com os nomes de cada uma destas figuras foi publicada no Relatório Final. Para mais informações sobre este acontecimento, consultar o clássico livro de Boris Fausto: A revolução de 1930: historiografia e história (1970). 561 562 611 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X (DRUMMOND, FRANCO E OLIVEIRA, 2011; PÁDUA, 2016). Nestas décadas, são criados o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA (1989), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (2000) e o Instituto Chico Mendes da Biodiversidade – ICMBio (2007). No entanto, Pádua nos alerta para um fator geográfico e político que tem sido determinante na criação destes espaços. Desde meados dos anos 1970 que o avanço de UCs em direção e na região da Amazonia tem sido significativamente maior em relação a outras regiões do país que passavam pelo processo de urbanização e industrialização563. Um forte e infeliz contraste, por exemplo, com a Mata Atlântica, que têm sofrido alarmantes níveis de desmatamento desde o período colonial564. A menor exploração do território amazônico foi favorável, de certa forma, para criação de diferentes tipos de UCs: desde parques e florestas nacionais, até reservas e assentamentos indígenas (PÁDUA, 2016, p. 5-15). Não que a presença de grupos originários e tradicionais tivessem alguma importância para o Governo Federal, o interesse deste tipo de preservação por parte das autoridades, e em certa medida de alguns grupos conservacionistas, era apenas uma “estratégia para proteger as áreas antes que fossem alteradas pelo processo de desenvolvimento” (ARAÚJO, 2007; SANTOS, 2015). 6. Mas é do coração da floresta amazônica que nasce nosso interesse de pesquisa: as Reservas Extrativistas (RESEXs). Elas são indicadores da emergência de uma política ambiental para garantir o uso e a permanência de espaços de preservação, visto que no coração da floresta amazônica, já se fazia visível a luta travada a sangue e fogo entre seringueiros e latifundiários. De um lado, liderados por Chico Mendes, estava um grupo de indivíduos ligados a terra, que dela extraiam seus modos de sobrevivência. Do outro, um grupo incentivado pelo agronegócio que negava as leis federativas e depredavam o meio ambiente em prol do lucro. Somente após o assassinato de Chico Mendes, é criada a primeira Reserva Extrativista (RESEX) do país: Reserva Alto Juruá (98.863/1990), uma área de uso sustentável, protegida por lei e pelas práticas tradicionais. 7. As Reservas Extrativistas marinhas costeiras são territórios habitados por comunidades agrícolas ou pesqueiras de subsistência, legalizadas constitucionalmente; inclusive, Para melhor conhecimento de um tema tão vasto e indelével, recomendo as leituras do cientista social Manuel Castells (1983), o geografo Candido Malta (1992), a geografa Ana Fani Carlos (1992), e o renomado geografo e intelectual negro Milton Santos (1996). Para um debate mais recente, recomendo Lucí Hidalgo Nunes (2015). Quem melhor demonstrou a realidade do desmatamento da Mata Atlântica foi o historiador estadunidense Warren Dean em seu livro A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira (1996). 563 564 612 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X são o único modelo, dentre os 16 classificados pelo SNUC, onde a comunidade local tem direito total de uso e pertencimento da área. Sua legitimidade institucional é regida pelo documento denominado de Plano de Manejo (PM). Falando agora deste instrumento tão relevante para nossa investigação, e que serviu inclusive como nossa “vara de pesca”, os PMs são para as RESEXs um instrumento que rege o uso sustentável dos recursos naturais através do manejo. Numa profícua e estimulante entrevista concedia pela bióloga Norah Costa Gamarra (UFAL), este instrumento de gestão das áreas protegidas exigem “[...] recursos financeiros e humanos que são necessários para sua formulação, além de ser necessário vários levantamentos biológicos, históricos e sociais para sua formulação”565. Os PMs das Resexmar aqui estudados seguem as disposições das unidades, as necessidades apresentadas e os recursos investidos. Ainda que não haja um padrão escritural na redação de cada PM, há alguns pontos comuns a todos os PMs analisados: são feitos conjuntamente entre uma equipe de planejamento do ICMBio (ambientalistas, ecólogos, oceanógrafos etc.), o Conselho deliberativo da Resexmar, ou seja, um grupo de representantes locais que falam em nome da unidade e os/as representantes das associações, programas, ou grupos da unidade e os/as redatores/as. Ouvintes e convidados/as da própria unidade podem participar dos debates nas reuniões deliberativas. Os encontros de elaboração podem contar com a presença de algum grupo privado que patrocina a Resexmar em prol do turismo. As reuniões são publicadas nos sites do ISA e ICMBio. O antropólogo britânico E. E. Evans-Pritchard (2005) nos revela que o primeiro passo a ser dado no estudo de uma comunidade é o do distanciamento em relação a ela. Este passo deve inclusive percorrer todo o processo de construção da análise, pela razão de que apenas o distanciamento reafirmará nossa identidade e não nos deixará esquecer de nosso objetivo central: a observação. Muito embora – antropólogos/as e historiadores/as estejam tratando de tradições cognitivas diferentes, encontramos ecos. No ensaio “Distância e Perspectiva” (2001), Carlo Ginzburg defende que a prática da perspectiva, permite conhecer representações e pontos de vista diferentes das nossas e esta pluralidade pode se basear no conflito. Ao traçar os modelos explicativos da história, o historiador britânico Peter Burke (2012) nos alerta de que estes modelos são construções intelectuais simplificadoras da realidade para salientar o recorrente, o geral e o típico, apresentados na forma de conjuntos de características ou Entrevista concedida por GAMARRA, Norah C. [08.03.2021]. Entrevistador: Marcus Vinícius S. Santos. Maceió, 2021. 565 613 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X atributos. E classifica-os em dois tipos: o consensual e o conflituoso. Aqui buscamos nos aproximar do modelo conflituoso em conformidade com o pressuposto da microanálise ao fazer uma análise social tornando suas variáveis mais numerosas, mais móveis e mais complexas (COSTA, 2014, p. 63). Em uma Conferência intitulada “História Conectada, Global History, Micro-História”, pudemos compreender junto a Giovanni Levi de que há nas ciências humanas, o risco de uma leitura mecânica, funcionalista e positivista da sociedade ou da cultura; portanto, “as realidades históricas necessitam de ser lidas por dentro”566. O trabalho que fazemos aqui segue propriamente esta linha de pensamento. Pensar as múltiplas realidades históricas por dentro de suas próprias ações. Não apenas a visão institucionalizada que os Estados-nação reduzem a cada grupo social para criar sua identidade maior. Pelo contrário, entender cada realidade em si e em suas complexidades. Não por elas não serem relevantes, mas por não serem mais, como diria a escritora Conceição Evaristo (2017)567, os únicos protagonistas de nossas histórias. 8. Retomando a José Augusto Pádua (2021), estamos vivendo no Brasil, um fascismo antiecológico. A desintegração das comunidades tradicionais, a proibição de imigrantes, e a superexploração das classes subalternas (para usar uma expressão de Mikhail Bakhtin), não apresenta nem de longe uma falsa preocupação com o mundo natural. As elites brasileiras querem tomar estes espaços apenas para o avanço do agronegócio. 9. Contra as práticas predatórias e de extermínio, surgem então modelos que ainda que estejam “sendo subsumidas no universo semântico do conservacionismo ambiental [do SNUC]”, são vítimas de ingerência nas políticas públicas cogestoras dos bens comuns que se entremeia não somente nos domínios econômico e ambiental, mas também nas “questões relativas ao uso e ocupação do território”, nas políticas do cotidiano e da cultura, restringindo a “ênfase original na proteção e direitos sociais” (SILVEIRA LOBÃO, 2006, p. 153), destas unidades territoriais, tutelando-as. No dizer de Kátia Barros – extrativista da RESEX de TauáMirim (MA) – se caracterizando mais como uma “congestão” do que uma cogestão. No entanto, foi contra as práticas de caça predatória do caranguejo uçá, que os extrativistas de Soure, na Ilha do Marajó (PA), com apoio de ambientalistas criaram o “Manifesto do Caranguejo”, dando origem a Resexmar na década de 1990, visando a proteção CEMIDI – UNISINOS: YouTube. História Conectada, Global History, Micro-história - Giovanni Levi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JtmITnHCeZk (28/05/2021). ITAÚ CULTURAL: YouTube. Ocupação Conceição Evaristo (2017) – teaser. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5QBXp-MqF18. 566 567 614 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X do ambiente e da vida animal, dos mangues-vermelhos e dos pântanos salinos. As comunidades tradicionais em Soure, que também sofrem com o uso do puçá (rede que fecha o rio) incentivado por fazendeiros locais para pescar no interior e nos limites da Resexmar, e que impede a passagem de peixes do mar para o rio e vice-versa, também se confrontam cotidianamente com fazendeiros da região que se apropriam dos limites da unidade, chegando a expulsar os extrativistas com o argumento que as terras os pertenciam. Os extrativistas de Soure conseguem pôr em prática as práticas herdadas das comunidades originarias do Marajó na fabricação de cerâmicas, adornos artesanais retirados dos mangais, das danças tradicionais como o carimbó (patrimônio imaterial do Brasil), mas principalmente na manutenção e preservação do caranguejo-uçá. O uçá, em seu período de acasalamento anda quilômetros a procura de uma fêmea, e após esta etapa, ocorre a chamada “andada do mangue”, que consiste na caça do caranguejo adulto macho que acabou de acasalar, que pode ocorrer três dias após a lua cheia ou a lua nova. O uçá também é responsável por repor os nutrientes dos manguezais por meio da criação de galerias que permitem a passagem de nutrientes nos solos lamosos. O uçá é conhecido pelos ambientalistas como o “engenheiro do mangue” (SCHMITD, 2015). A “Andada” é também endêmica da Resexmar de Cassurubá, em Caravelas (BA). A unidade, formada por retirantes no início do século XX, é uma das mais afetadas pela ação humana. Mesmo após a proibição da caça as baleias na década de 1980, a unidade foi criada apenas na primeira década deste século como uma última chance de preservação dos abrolhos. A Resexmar está sufocada entre uma empresa multimilionária de carcinicultura que invade a região do rio Macaco e do mar para ampliar seus reservatórios de camarão, a unidade abriga os maiores bancos de camarões do Brasil, com mais de 30 espécies catalogadas. Outra grande questão, é uma empresa madeireira que tem uma grande plantação de eucaliptos do lado oeste da Resexmar e que de lá faz a extração da celulose. O acesso a plantação da empresa é feito por meio de uma drenagem na rota mar/rio da unidade, que acabou com o ecossistema local, tornando-a uma zona quase morta (NICOLAU, 2007). A Resexmar de Arraial do Cabo (RJ), a terceira RESEX marinha criada em 1998 e a terceira unidade conservação mais visitada do país, herdou das antigas comunidades tamoios – deserdadas do espaço e da história (PEREIRA, 2010) –, as práticas originárias na preservação das vidas marinhas dos corais e bentônicas que estavam sendo ameaçadas desde a década de 1970 pela construção de bases petrolíferas (LABOREL, 1977). A unidade que enfrenta com o 615 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X turismo desenfreado patrocinado por empresários e a inserção de espécies invasoras, insiste no uso de pequenas embarcações e em denúncias dos espaços da RESEX tomada por grileiros. Voltando a região Norte do país, em especial a Resexmar de Caeté-Taperaçu, em Bragança (PA), encontramos um grupo de indivíduos que sofreram com os avanços da modernização. Numa falha tentativa de construção de um píer que invadia os limites marítimos e a rápida resposta da força das águas, e a depredação da fraca estrutura, deixou uma praia abandonada, restando apenas famílias com pequenas barracas, onde a fome era a realidade; todavia, as comunidades de Caeté-Taperaçu souberam se reinventar (CONTENTE, 2013). A reinvenção surgiu quando os extrativistas locais começaram a replantar os mangais degradados pelas queimadas provocadas para a construção de rodovias, e especialmente, pelo respeito de no período de reprodução e crescimento da pescada-amarela, que é conhecido como “defeso”. A resposta dada pelo mundo natural aos extrativistas locais os fez criar a “Festa do caranguejo”, um evento anual, além da “Comitiva de São Sebastião”, que se tronou tradicional em comemoração à garantia do maior fruto de renda da Resexmar. Da pescada-amarela, se extraí o “grude” (a bexiga natatória), muito apreciado na culinária oriental. A extração do “grude” é também comum a Resexmar de Cururupu, em Cururupu (MA), que abriga doze comunidades dentro de seus limites. Divididas em polos desde o interior do município, passando pela região dos mangues568, até chegar as ilhas nas regiões salinas. Foi também devido à seca no início do século XX, que as comunidades de Cururupu chegaram à região norte do litoral maranhense, e ocuparam-na. No entanto, a unidade sofre com litígios causados pelas famílias de latifundiários, e a presença de embarcações invasoras patrocinadas pelos “patrões de pesca”. Na chamada pesca de embarcada, as comunidades que costumam “torar o mangue” para criar artes de pesca, empregam a prática do defeso três vezes ao ano para garantir a renda e manutenção da espécie (FREITAS et al. 2012). 10. Todos estes desafios têm sido enfrentados nas unidades analisadas e suas respostas partem da cooperatividade de seus membros, da articulação com ONGs, ambientalistas, ativistas e com os movimentos sociais – na defesa de seus territórios, formações históricas, natureza e populações – constantemente sob ameaças. Finalizamos nossas contribuições neste debate de História Ambiental, enfatizando que o termo mais identitário para as Reservas É interessante lembrar que as Resexmar de Caeté-Taperaçu, Cururupu e Soure estão inseridas na maior faixa de manguezais do mundo que vai desde os limites do Ceará e Maranhão até o Amapá. 568 616 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Extrativistas Marinhas é o de territorialidade, entendida como um conjunto de elementos simbólicos e funcionais que conferem a comunidade local “uma noção de pertencimento, e que pode ser analisada enquanto um instrumento de emancipação territorial, conduzido a partir da organização interna de grupos que estabelecem, por meio da sua prática política, os seus objetivos em comum” (ARAÚJO; CALDAS, 2019, p. 360). Já que para as comunidades tradicionais e originárias, habitar, é também ser o espaço. A manutenção da biodiversidade local, e por biodiversidade podemos entender uma prática de combinação comunal de direitos de uso e manutenção do espaço das sociedades não industriais (DIEGUES, 2000; SHIVA, 2001); assim como os usos renováveis e sustentáveis do espaço habitado, visível especialmente na criação dialética de instrumentos comunitários e de reivindicação social de alguns protagonistas destas histórias: Cooperativa de Mulheres e as Associações de Pesca Tradicional (AREMAC) em Arraial do Cabo. A Associação dos Usuários Extrativistas (ASSUREMACATA) e os líderes comunitários em Caeté-Taperaçu. As associações Mãe, dos Pescadores e dos Agricultores e o Programa dos Jovens Protagonistas em Cassurubá. A Associação dos Moradores (AMREMC) em Cururupu. E a Associação dos Usuários em Soure (ASSUREMAS). Além da participação ativa da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (COFREM). Aqui, narramos as práticas culturais de sustentabilidade ecológica como personagens centrais de nossa trama. Referências ARAÚJO, Cristiano Cassiano de; CALDAS Alcides dos Santos. Território, Territorialização, Territorialidade e a Questão Agrária: impasses socioespaciais, possibilidades analíticas. GEOSUL, Santa Catarina, vol. 34, nº 70, p. 358-384, mar./2019. BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70 Ltda. 2011, 226 p. BURKE, Peter. História e teoria social. 2ª ed. Trad. de Klaus Gerhardt [et. al]. São Paulo: Editora Unesp, 2012. 339 p. COSTA, Arrisete C. L. Historiografia e Hermenêutica: uma interpretação da narrativa micro analítica de O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg. Maceió: Edufal. 263 p. DIEGUES, Antonio Carlos (Org.). Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. 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A Série é uma criação de Ryan Murphy, Brad Falchuk, e Steven Canals, onde podemos notar no decorrer de seus episódios uma estreita relação com o documentário Paris is Burning, que retrata a cultura dos bailes. Com um elenco constituído em sua maioria por negros e mulheres transexuais a Série aponta sobre os preconceitos, a luta pelo respeito e por um lugar na sociedade, destacando problemas e questões que precisam ser discutidas, pois ainda se faz presente na contemporaneidade. Com isso, também trazemos sobre como trabalhar a série em sala de aula, tentando romper com as barreiras colônias e fazer desse movimento um futuro diferente, utilizando autoras e autores que discutem Teoria Queer e Decolonidade, pois sem o grito não há revolução. Palavras-chave: Pose, Transgeneridades, Ensino de História. INTRODUÇÃO O Transfeminismo571 (JESUS, 2011; NASCIMENTO,2021) luta por direitos políticos e sociais de pessoas Trans, que essas vidas importam, mas isso não é algo dado, fácil de aceitação Graduanda Trans não binária do Curso de Licenciatura em História da Universidade de Pernambuco, halberys.holanda@upe.br Graduanda do Curso de Licenciatura em História da Universidade de Pernambuco – UPE, Rafaelalimadsouza@gmail.com Letícia Nascimento fala que, "O Transfeminismo é, ao mesmo tempo, lugar de luta política e de produção intelectual, compartilhado por pessoas que se autodefinem como mulheres, queers, mulheres travestis, mulheres 569 570 571 620 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X na nossa sociedade. São muitos os embates enfrentados quando se fala das transgeneridade. Simone de Beauvoir diz “não se nasce mulher, torna-se mulher". Pois, é nas relações sociais que o gênero é constituído. A partir do "é menino, é menina" inicia-se a generificação daquele corpo e consequentemente vão se construindo as formas de viver e do que se espera que apresente na sociedade. A série Pose se apresenta no afrontamento de seu elenco de mulheres trans e negras, dando o seu recado com a personagem Elektra, "Deus pode ter dado a Barbie para você, um jardim com Pônei, um namorado chamado Jake, uma gravidez indesejada que seu pai pagou para abortar e você pode ir para faculdade se formar em vadia. Mas nada disso não faz de você mulher." Partindo desse enunciado, compreendemos que a sociedade divide masculino ou feminino/ azul ou rosa/ carrinho ou boneca. Estruturas compartimentadas numa lógica biológica, enxergando esses binômios e tantos outros para enquadrar as vidas e classificálas dentro do CIStema. Temos então, dispositivos que operam o CIStema Heteronormativo e regulamentam as práticas sexuais. E aqueles que se encontram fora de suas regulações, infringindo o que se espera destes corpos, sofrem sanções e estão à mercê das violências sejam elas físicas ou psicológicas. ( BENTO, 2004). O primeiro pensamento para entender esse dispositivo controlador dos corpos, é a discussão que a filósofa norte americana Judith Butler traz sobre o sistema sexo-gênero572, entendendo que ambos se fabricam em meio ao social, e é na base das relações que eles se constroem. Foi se pensado por muito tempo um sentido relegado ao sexo de ser pré-discursivo, a-histórico e natural, que construiria o gênero. Mas ambos se retroalimentam e se constituem. Podemos dizer que o sexo constrói o gênero (BUTLER,2003). Um conceito que precisamos analisar levando em consideração as formações que foram postas por séculos e que engendram a vida em sociedade, é a Cisgeneridade.( VERGUEIRO, 2015; NASCIMENTO 2021). A partir dela se desprendem a bipartição cis x trans, construindo o outro lado que se está em oposição à concepção sexo-gênero-desejo (BUTLER,2003) . É através da cisgeneridade que transgêneras, mulheres transexuais, pessoas não binárias, travestis, ou ainda de outros modos, como transviadas".( NASCIMENTO, 2021, p.58) BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. 2003. 572 621 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X vamos ter o processo de patologização, criminalização e subalternização das identidades trans.(NASCIMENTO, 2021). A série Pose possui majoritariamente pessoas trans e negras em seu elenco, constituindo um feito inédito nas produções audiovisuais e uma relevância de grande mérito para as discussões de gênero e sexualidade. Fazendo com que este trabalho tenha o intuito de analisar as temáticas levantadas na série, construindo pontes de discussões com autores que abordam Teoria Queer573 e Decolonialidade574, mas que não tem a intenção de findar com os estudos produzidos, sendo mais uma ferramenta de possibilidades de compreensão e chave de leitura sobre os estudos de gênero e sexualidade. Neste trabalho também será discutido sobre a epidemia da HIV-AIDS, os locais designados para regulação da vida Trans e os famosos Ballrooms. Encontrando debaixo deste grande arco-íris, cheio de cores vibrantes, uma história que vai mostrar os sabores e dissabores das corpas dissidentes. Com isso, esses copos de rebeldia e, sobretudo de (re)existência vão para jogo e no bordão de Pray Tell iniciamos essa jornada: Viva… Trabalhe.. POSE! VIVA O Brasil é o país que lidera por 13 anos o ranking das estatísticas como o país que mais mata pessoas Trans e Travestis. Também é um dos que mais consome conteúdo pornográfico de pessoas trans. Aqui podemos encontrar duas situações contrastantes, o corpo que tem passibilidade de morrer a qualquer momento é aquele que é procurado para satisfazer o prazer de seus agressores. Angel diz, "você sabe que esses homens têm medo do desejo que sentem. Eles sempre descontam na gente. Eles não matam porque odeiam a gente, mas sim pelo que significa gostar da gente". É instaurado a necropolítica (MBEMBE,2018) a estes corpos que transgridem e desmantelam a ordem social cis-heterossexual. Temos como mote de exemplificação, a música de Chico Buarque de Holanda Geni e o Zepelim, onde apresenta em sua composição Geni (a travesti) que sofre as agruras de ser quem é, com a chegada de um forasteiros a cidade em romaria, só restaria a bela "donzela" Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis e drags. É o excêntrico que não deseja ser ‘integrado’ e muito menos ‘tolerado’. Queer é [...] um jeito de pensar que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do ‘entre lugares’, do indecível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2016, p.7-8). 574 Proposta apresentada por Ochy Curiel em seu texto Construindo Metodologias feministas a partir do feminismo decolonial onde apresenta discussão sobre diversos pensadores e pensadoras fora do eixo norte global, visando produções Latinas. 573 622 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X salvar a todos. Mas por ironia do destino fica em suas mãos a responsabilidade. Contudo, é usada e abandonada como bem expressa Buarque por tal ato, recebendo a penalização, Joga pedra na Geni Joga bosta na Geni Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni Geni e Zepelim - Chico Buarque de Holanda575 São muitas as Genis que sofrem violências dia após dias e não há medidas que protejam suas vidas. Sua vidas importam? Para quem? Quem chora por seus corpos? Tendo em vista esse bloqueio da aceitação, suas vidas são compelidas a eugenia, uma tentativa de limpeza das existências, no que no Brasil fica bem evidenciado no período da ditadura civil-militar com a operação Tarântula, realizada em São Paulo ( SILVA, 2019). Neste processo em que uma varredura se aplicava, temos um marco na história da população Trans e Travestis que é quando a Transexualidade entra para o rol de doenças, em 1980. Com isso, vamos ter o processo transexualizador. O médico Henry Benjamin foi um dos que construíram práticas de tratamento para a Transexualidade, enquadrando o transexual "de verdade" ou não. Onde põem também sobre o suicídio pela não conformidade com o gênero e a retomada de um transtorno psicológico. Berenice Bento discute sobre a despatologização e de como os manuais médicos reiteram esse ideal. Tendo o Código Internacional de Doenças (CID - 11 e o DSM - IV) como regulamentadores das normas e parâmetros estabelecidos para determinação dos corpos. "Por que diagnosticar o gênero? Quem autoriza psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e outras especialidades que fazem parte das equipes multidisciplinares a avaliarem as pessoas transexuais e travestis como “doentes?” (BENTO, 2012,p.579). Pensar sobre as vulnerabilidades que nos cercam enquanto LGBTQIA+, é pensar em como as estruturas de opressões foram formadas. A sociedade se constitui em que o homem branco, cis e hetero, sem deficiência é referência. E todas aquelas que estão fora desse “padrão” estão à margem. 575 Geni e Zepelim - Chico Buarque de Holanda. Disponível em: https://youtu.be/jWHH4MlyXQQ 623 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Dentro da miríade de identidades, os corpos trans e travestis são os que mais sofrem exclusões e violências, esse corpo Abjeto conceito utilizado pela filósofa Judith Butler explícita bem como são corpos que não merecem atenção e o espaço reservado muitas vezes para suas corporalidades são às ruas. A compreensão de suas vidas são vistas como precárias e que não possuem importância. O movimento LGBT comumente traz em suas discussões que um dos marcos mais importantes de sua História foi a Revolta de Stonewall, em 1969. Dali em diante muitos processos de emancipação política se desprenderam, com a constituição de grupos reivindicando espaços de fala e escuta para as questões LGBTQIA+. No Brasil, vamos ter o Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) e um dos primeiros grupos a se organizar é o SOMOS (Grupo de Afirmação Homossexual) em 1978, buscando uma articulação com membros da sociedade civil como o objetivo da luta por direitos e visibilidade LGBT. Teremos também jornais criados na época, como Lampião da Esquina e Xana com Xana, veículos publicitários que foram disparadores de notícias, transgredindo a ótica social vigente do período.576 O CIStema Heteronormativo branco, não deficiente, busca a todo momento a eliminação dessas vidas, e cria maneiras de exclusão para que não haja emprego, acesso à saúde, à educação. Cooptando as formas de viver a zona de subalternização.577 Para além de trazer discursões sobre a exclusão, relações de trabalho e preconceito, a série possui em sua narrativa uma temática constante, a epidemia da AIDS nos Estados Unidos, que durante a década de 80 passou a ser uma doença associada a homossexuais, e a pessoas de grupo de risco como, por exemplo, pessoas que possuíssem relações com mais de um parceiro, sendo assim, pessoas que seguiam com as normas e os padrões cis na sociedade não seriam atingidas pela doença, e os que transgrediam as normas eram punidos. O comportamento perigoso que produz a AIDS é encarado como algo mais do que fraqueza. É irresponsabilidade, delinquência — o doente é "Nesse momento, o Brasil ensaiava os primeiros e ainda tímidos passos de um lento e gradual processo de liberalização política. Homossexuais se faziam mais presentes nas grandes cidades e surgia, em diversos veículos da imprensa, uma curiosidade crescente em torno dessas pessoas que desafiavam as normas de comportamento padrão de gênero e de sexualidade". ( QUINALHA, 2021, p.3). 576 SPIVAK, Gayatri Chakravorty,1942 - Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2010. 577 624 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X viciado em substâncias ilegais, ou sua sexualidade é considerada divergente. A transmissão sexual da doença, encarada pela maioria das pessoas como uma calamidade da qual a própria vítima é culpada, é mais censurada do que a de outras — particularmente porque a AIDS é vista como uma doença causada não apenas pelos excessos sexuais, mas também pela perversão sexual. (SONTAG,2007,p.80) Na Série, os personagens participam de um protesto do ACT-UP (AIDS Coalition to Unleash Power) um grupo cujo objetivo era lutar e reivindicar direitos para as pessoas que estavam com o vírus. De acordo com uma matéria do jornal New York Times publicada em 1989, o protesto realizado na catedral de São Patrício, era contra as declarações do cardeal John Cardinal O’Connor, sobre sexualidade, aborto e AIDS, dentre essas declarações o cardeal afirmava quer o uso do preservativo era ineficaz contra a aids, e defendia a abstinência. Outro momento do protesto que a série reproduziu além das prisões, foi o momento em que os manifestantes durante a missa, fingiram sua morte em protesto as muitas vitimas da AIDS, alguns manifestantes acorrentaram-se aos bancos da igreja e outros emitiram palavras de ordem durante o ato dentro da igreja como relata Jason Deparle na matéria em que escreveu para o New York Times em 1989. Como a AIDS ainda era uma doença desconhecida, grande parte da população na época acreditava que possuir a doença significava que o infectado logo chegaria a óbito, tendo em vista que o índice de mortes após contrair o vírus era alto. Em Pose esse medo é frequentemente relatado, Blanca e Pray Tell estão sempre preocupados e temerosos em relação ao tempo que ainda têm ao descobrirem-se portadores do vírus. E como havia a ideia de que os portadores do vírus logo morreriam, a omissão daqueles que possuem a doença na série é uma forma de relatar o preconceito e o imaginário em relação aos portadores da doença. Outro ponto abordado pela série é a escassez de soluções e de medicamentos para serem utilizados, o AZT era o medicamento indicado para o tratamento, pois além de possuir um alto custo, o remédio poderia ser tóxico para alguns pacientes, o que levava muitas pessoas a rejeitarem o AZT e optarem por tratamentos experimentais ou a tratamentos sem eficácia, como é o caso do Pray Tell, que na busca por uma opção além do AZT começa a consumir grandes quantidades de manteiga na ideia de que seu organismo ficasse livre da AIDS. 625 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X E uma mistura previsível de superstição e resignação está levando alguns aidéticos a não recorrerem à quimioterapia antiviral, a qual, ainda que não constitua uma cura, tem certa eficácia (retarda o avanço da síndrome e previne algumas infecções oportunistas comuns), e em vez disso a tentarem curar-se sozinhos, muitas vezes orientados por algum guru da “medicina alternativa”. (SONTAG, 2007,p.86) A produção ainda traz em sua narrativa uma crítica à forma que os corpos dos mortos pela AIDS eram tratados. No início da segunda temporada a Blanca e o Pray Tell vão até a ilha Hart, onde de acordo com uma matéria publicada no ano de 2018 pela New York Times, os corpos dos indivíduos mortos pela AIDS que não eram reclamados por nenhum parente, eram levados para a ilha e enterrados sem cerimônia em uma grande vala, isso após um período de quarentena, devido ao crescente medo da doença na época. A ilha Hart foi o local de destino desses corpos, sendo alguns deles corpos de crianças aidéticas. TRABALHE Em Pose, a luta pela vida, a dignidade, o acesso ao trabalho rondam por toda história. E esse lutar trazendo aqui para os trópicos, a pesquisadora Dodi Leal vai dizer que se dará pelo Hackeamento do gênero e as fabulações travestis do fim (LEAL, 2021). É através deste fim, que podemos pensar que o "fim de mundo” refere-se, antes, ao fim de um mundo: o mundo da branquitude, o mundo da cisgeneridade, o mundo adultocêntrico, o mundo capacitista, etc.” ( LEAL, 2021,p.5) Encontramos na produção, a história da Candy que ao fundar a casa Ferocity com sua amiga Lulu, suas despesas aumentam e a personagem passa a fazer programas para ganhar mais dinheiro, mas infelizmente durante um dos programas Candy é assassinada, nesse momento a série não só mostra a forma que muitas tinham de conseguir dinheiro, mas também a frequente violência contra esses corpos, que ainda hoje se faz presente nas estatísticas. Ainda no primeiro semestre de 2021, de acordo com o boletim feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil tem “89 pessoas trans mortas no 1º semestre em 2021. Sendo 80 assassinatos, 9 suicídios. Houveram ainda 33 tentativas de assassinatos e violações de direitos humanos” (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p. 1) 626 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X "O fundo do poço somos nós. Tudo aqui vai morro abaixo passando pelas mulheres, os negros, latinos, os gays, até que chega no fundo e toca na gente". A personagem Lulu traz esse discurso bastante forte e retoma a ideia de não visualização de possibilidade de vida. Se o poço são suas vidas, os processos para neutralização de suas existências operam e uns dos primeiros mecanismos é a patologização. No que fica bem nítido neste trecho "Papi, eu sou transexual, eu não devia trabalhar nenhum dia, quando mais um ano como modelo. Nós não somos nada além de loucos. A gente tem que viver em algum gueto e servir de chacota para o mundo". Diante disso, as relações de trabalhos para pessoas LGBTQIA+ retratadas na Série apresenta os lugares destinados a esses corpos para a obtenção de dinheiro, que são, o píer e as boates, tendo em vista que muitos eram expulsos de casa depois de se assumirem homossexuais e devido ao fato de transgredirem um ideal estabelecido, não eram contratados. A personagem Angel que sonhava em ser modelo tenta candidatar-se para uma vaga de emprego em uma loja, mas a chance de concorrer à vaga lhe é negada, por ser uma transgressora da norma imposta pela sociedade. “A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, em que esses são compreendidos como atributos expressivos de “macho” e de “femea”. A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as praticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”. (BUTLER, 2003,p.39) A personagem Blanca também sofre com a opressão e o desrespeito, ao trabalhar em um salão de unhas, a cena em que Blanca se demite possui uma fala que retrata a relação de trabalho para pessoas Transexuais não apenas na década de 80, mas também nos dias atuais, ao se demitir após uma discussão com a dona do salão, Blanca escuta da mesma a seguinte frase “Devia beijar meus pés por te contratar. Ninguém mais vai. você verá. Senhoras gostam de ter suas unhas feitas por senhoras”. Essa fala representa o preconceito de um passado e de um presente, pois ainda hoje pessoas Transexuais sofrem com o preconceito e na maioria das vezes 627 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X não são contratadas por subverterem os padrões de gênero, e encontram como alternativa a prostituição como a Angel. “De acordo com dados levantados pela ANTRA, 90% da população de Travestis e Transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda, e possibilidade de subsistência, devido à dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho e a deficiência na qualificação profissional causada pela exclusão social, familiar e escolar.” (BENEVIDES, 2017,p.18) Blanca também tenta construir seu próprio salão, mas o sonho dura pouco, pois a locatária descobre que Blanca é uma mulher Transexual, e devido a isso, Frederica, proprietária do local tenta sabotar o salão, fazendo ameaças, fechando o local com um cadeado o que acarreta uma briga na justiça na qual a Blanca vence, mas que não impede Frederica de incendiar o lugar, Frederica faz uso de diversos artifícios por não querer, manter um contrato com uma pessoa trans. POSE A cultura Ballrom começa a ser fomentada na década de 1960, mas a consolidação e despontamento da cultura dos bailes só ocorre na década de 1970 com a criação das chamadas “houses”, sendo a casa Labeija a primeira a ser fundada. A cultura Ballroom que é apresentada em pose, é herdeira dos bailes voltados para drag queens, frequentados por diversos seguimentos da sociedade em sua maioria LGBTQIA+, inicialmente ocorriam apenas performances das drags, mas logo depois esses eventos começaram a promover uma competição a partir de categorias. Entretanto, a maior parte da população que frequentava esses bailes era branca, e apesar de haver a participação de indivíduos de diversas classes e contextos, pessoas negras não possuíam destaque nesses bailes. “[...] os participantes negros que quisessem uma chance real de ganhar em alguma das categorias, deveriam “branquear” sua aparência e, mesmo assim, raramente conseguiam (SANTOS,2018,p.16). 628 levar o prêmio da noite” Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Diante desse cenário, na década de 1960 a cultura dos Ballrooms começa a ser constituída, os indivíduos que não eram contemplados nesses bailes buscaram criar um novo evento organizado e criado para as pessoas que não se encaixavam nos padrões dos bailes drags, e dessa maneira se inicia o processo de formação da cultura ballroom. A criação desses bailes proporcionou a integração e a liberdade que esses grupos almejavam para desenvolver suas praticas, as categorias e a forma na qual o baile seria organizado. O espaço proporcionado pelos bailes fornecia um ambiente de segurança e liberdade, onde os grupos que eram marginalizados nos demais setores da sociedade podiam ocupar um espaço, ter liberdade, respeito e apoio. O cenário dos bailes não era apenas o cenário de um evento, mas também de uma comunidade, um ambiente para viver uma fantasia, de sentir-se prestigiado e importante. Os bailes são mais ou menos como nossa fantasia de ser famosos. Sabe, como os oscars, algo assim, ou estar numa turnê como modelo. Sabe, esses garotos que estão nos bailes eles não tem nada. Alguns nem tem o que comer. Vem para os bailes com fome. E dormem na rua, ou no píer, não sei. Eles não tem uma casa[...] Eles saem vão roubar algo, se vestir, e vêm ao baile por uma noite e vivem a fantasia. (transcrição da entrevista de Pepper Labeija presente no documentário Paris is Burning de Livingston, 1991) Os bailes representavam também um espaço de competição, onde havia diversas categorias que os frequentadores participavam, e o competidor com a maior nota e performance recebia um troféu, o que contribuía para a construção da imagem daqueles que estavam sempre em destaque nos bailes e nas disputas durante a anunciação das categorias. Nos episódios de Pose o cenário dos bailes é bastante explorado, inclusive os conflitos que aconteciam quando um dos competidores não aceitava a nota fornecida pelos jurados também são retratados. Dentre as numerosas categorias existentes nos bailes para que os frequentadores pudessem competir, havia também as categorias de voguing, um estilo de dança que teve sua origem na prática de insultar ou diminuir um rival, a partir de gestos sutis. A dança é frequentemente retratada na série, os personagens Rick e Damon, possuem destaque no cenário da dança, e devido ao sucesso da música Vogue interpretada por Madonna, Damon ministra aulas para aqueles que querem aprender o voguing. Na série, o 629 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sucesso da música significa para o público que frequenta os bailes um momento de ascensão da cultura dos bailes e um espaço a ser ocupado por eles. Durante a década de 1990 a música da Madonna juntamente com o documentário Paris is burning dirigido por Jennie Livingston forneceu visibilidade aos bailes, além de gerar oportunidades para alguns frequentadores, como Willi Ninja um dos entrevistados do documentário, que chegou a participar de clipes musicais, além de criar coreografias e participar na produção de shows, contudo, após esse período de visibilidade, esses grupos voltaram para a margem da sociedade. Voguing, da maneira como ficou conhecido, incorporou à essa atitude de um jogo de uma ofensa corporal através da imitação das poses das modelos presentes na revista Vogue, a estética dos movimentos do kung-fu, assim como a inspiração nas poses precisas e angulares dos hieróglifos egípcios. (SANTOS,2018,p.22). Em POSE, é demonstrado que é através dos bailes que elas podem se reunir, confraternizar a vida e ali também é lugar de luta pelos seus direitos. A constituição de uma família se apresenta. As casas formam essas famílias, advindas principalmente pela rejeição da família consanguínea, na fase da adolescência. Temos que pela Associação Nacional de Trans e Travestis ( ANTRA), no Brasil a idade que esse abandono acontece é em média, aos 13 anos. Na série, as casas são os lares desses meninos e meninas. A partir da entrada em alguma das casas que frequentam os bailes, são discutidos questões que são muito caras à causa LGBTQIA+: o HIV e AIDS é perpassado por toda a série, abordando sistematicamente os processos de morte, mas também da luta anti-aids, do amor, da aceitação, a luta contra o preconceito e principalmente a importância da coletividade. Keyla Simpson já disse, "A nossa vingança será envelhecer” (KEYLA SIMPSON, 2021). O USO DE POSE NA SALA DE AULA Contos, lendas, filmes de ficção ou documentários televisivos, poemas, musicas, artigos de jornal ou revistas, leis, cartas, romances são documentos produzidos para o público bastante amplo, que por intermédio do professor e seu método se transforma em material didático.(BITTENCOUT, 2008, p.297) 630 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O audiovisual não é uma ferramenta incomum nas salas de aula, e mesmo que a produção a ser utilizada não seja produzida para fins didáticos, é possível utilizá-la em sala. E diante do que foi abordado neste artigo sobre a série Pose, porque não levar essa discussão para a sala de aula? Tendo em mente que é um assunto que precisa ser discutido com os/as alunos(as), inserido na sala de aula em forma de debate para que assim consigamos realizar pequenos feitos, desconstruir ideias retrógradas e preconceituosas que representam a legitimação dos diversos tipos de violências praticados contra pessoas LGBTQIA+. É preciso ter em mente que o silêncio e a omissão desses debates contribuem para a fomentação da ignorância e propagação de ideários violentos. Cenas da produção podem ser levadas para a sala de aula e contextualizadas, o docente pode fazer paralelos entre o período retratado na série e o presente, questionando os discentes sobre as discrepâncias entre um período e outro, estabelecendo um diálogo urgente e necessário. A escola pode e deve ser esse local de encontro para discussão de assuntos tão importantes. Como bem diz Berenice Bento, é preciso estranhar o currículo. Há uma forma de produção da escola que gera desigualdades e exclui aqueles(as) que escapam à norma. Portanto, POSE é uma ferramenta para o ensino de História, extraindo pontos de extrema relevância, pois muitos professores "não sabem" como tratar em sala sobre as transgeneridades, configurando o quanto precisamos trazer materiais que versem sobre a temática e mostram que essas vidas importam e são dignas de estar em qualquer lugar que desejarem. A ideia é pôr em questão o conhecimento (e o currículo),pôr em questão o que é conhecido e as formas como chegamos a conhecer determinadas coisas e a não conhecer (ou desconhecer) outras (...) à ideia de que há limites para o conhecimento: nessa perspectiva, parece importante indagar o que ou quanto um dado grupo suporta conhecer. ( LOURO, 2004,p.65) CONSIDERAÇÕES FINAIS A série faz o recorte de um período e denuncia para os seus telespectadores questões que infelizmente não estão encerradas ou distantes de nós, o preconceito, a falta de políticas de proteção e de valorização a vida das pessoas LGBTQIA+ fazem parte do nosso presente. 631 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Discutir essas temáticas é fundamental para a construção de uma sociedade livre de preconceitos e violências, levantar essas pautas significa também um grito de guerra contra um sistema que oprime e segrega. Diante disso, a produção carrega um significado muito importante, discussões que merecem ser levadas para os grupos de estudo, rodas de conversas e também para a sala de aula, debates que poderiam ser acompanhados por cenas da série e dos dados coletados na contemporaneidade, a Associação Nacional de Trans e Travestis (ANTRA) e ao Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), são duas instituições que têm bastante importância à causa trans fornecendo um mapeamento das ações feitas com a organização de estudos que lutam em prol dos direitos da população Trans. São muitos os enfrentamos que esses órgãos e outros se lançam todos os dias, tentando romper as barreiras colônias e fazer desse movimento um futuro diferente. REFERÊNCIAS BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Não der Bonfim ( orgs). Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2021. BENEVIDES, Bruna. 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Como resultados pode-se evidenciar que a sexualidade feminina segue padrões próprios de determinadas épocas, onde, na maioria das vezes, as mulheres se veem obrigadas a adotarem posturas submissas e de castidade. Além disso, apesar dos ideais de igualdade entre os sexos vigentes na sociedade do século XXI, a sexualidade feminina ainda é reprimida e permeada por mitos e tabus. Assim, faz-se necessário trazer cada vez mais essa temática para os espaços de debate como uma forma de proporcionar um conhecimento maior dessas questões na busca pelo rompimento de padrões e conceitos errôneos. Palavras-chave: Gênero; Sexualidade feminina; Tabu. Introdução A sexualidade feminina foi por muito tempo entendida como inexistente, por se atribuírem a elas unicamente a função reprodutora. Sendo o sexo ainda permeado de muitos tabus, as mulheres ainda se sentem restringidas com relação à exploração e a valorização dos seus desejos. Contudo, essa temática vem conquistando espaço na sociedade contemporânea como algo que deve ser exposto e dialogado, propiciando o conhecimento das questões que envolvem a sexualidade feminina, a busca pelo rompimento dos padrões e dos conceitos errôneos. Através da pesquisa bibliográfica e documental busca-se compreender a história da sexualidade feminina no Brasil e as influências exercidas pelo contexto cultural, social e familiar. Assim, espera-se que o presente estudo contribua para a remoção da posição de 578 Advogada e Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Estadual de Montes Claros- Unimontes. 634 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X obscuridade ocupada pela mulher que ainda se mantém presente na sociedade mesmo com tantos avanços já conquistados. Construção histórica da sexualidade feminina no Brasil Ao se falar em sexualidade, faz-se necessário realizar um resgate histórico de sua evolução visto que, as relações sexuais são construídas socialmente ao longo da história e envolvem diversos valores, modelos e estruturas. Família, igreja, escola e instituições médicas apresentam-se como instituições importantes nesse processo. Para Louro (2008), [...] a construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. No Brasil, a sexualidade feminina passou por várias transformações até se achegar ao modelo atual. Até o século XIX, com a normatização pelos padrões cristãos, o sexo somente podia ser praticado no contexto do casamento, cuja finalidade era unicamente a reprodução. As mulheres saudáveis eram aquelas que não tinham desejos sexuais e esperava-se delas o não prazer (ZICAN,2005). Com base nos padrões morais, éticos e comportamentais desde pequenas as mulheres eram ensinadas a viver em família, a cuidar dos filhos e a zelar pelo seu lar. De acordo com Del Prior (2004) a Igreja exercia grande controle sobre a sexualidade feminina para que assim elas não caíssem em tentação como aconteceu com Eva no jardim do Éden. A autora expõe ainda que a mulher se tornava apta para o casamento a partir do momento em que seus desejos estivessem domados: “Finalmente, com prazer ou sem prazer, com paixão ou sem paixão, a menina tornava-se mãe, e mãe honrada, criada na casa dos pais, casada na igreja. Na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da mulher” (DEL PRIORE, 2004, p. 43). Fomentava-se na mulher a ideia de submissão e de um não poder sobre o próprio corpo. As mulheres que não se encaixavam nas normas da igreja não eram tidas como honestas e, logo, não eram para casar. Para Morga e Lage (2015, p.164): 635 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X [...] O mundo feminino passa pela história da humanidade como um lugar a ser vigiado e punido. Condenada ao degredo de pecados silenciosos, contidas confissões de corações entristecidos e olhares melancólicos, a mulher se vê entre o labirinto do pudor e os prazeres que lhe são negados. Filhas do medo, mães do silêncio, esposas do recato, mulheres do mundo feérico. Uma grande mudança nesse contexto ocorreu a partir da entrada da mulher no mercado de trabalho. Com as duas grandes guerras mundiais, a mulher começa a sair de casa para trabalhar nas indústrias visto que, nesse período, os homens estavam lutando nas guerras e muitas mulheres ficaram viúvas, sendo a busca pelo espaço no mercado de trabalho a única maneira de obter o sustento de casa. A partir de então as mulheres começaram a adquirir independência e autonomia, fato este que ocasionou mudanças nos papeis sociais para homens e mulheres. Na década de 1960, a pílula anticoncepcional representou outro grande avanço para as mulheres. Com a sua chegada “ela passa a separar sexo produtivo do sexo prazeroso” (ZICAN, 2005, p. 8). Isso permitiu com que as mulheres controlassem a questão da natalidade e também deixassem de ser vistas somente como reprodutoras, passando a separar a reprodução do prazer (PEDRO, 2003, p. 248). A entrada da mulher no mercado de trabalho proporcionou que elas tivessem maior compreensão quanto aos seus direitos e fez com que buscassem a liberdade e o prazer sexual almejado, tendo clareza de que a sexualidade não se baseia apenas na reprodução (ARAN, 2003). Apesar da mulher estar conquistando cada vez mais espaço na sociedade e vivendo com uma maior liberdade, muitas delas ainda convivem com a repressão de sua sexualidade e de seus desejos, haja vista que desde pequenas elas são educadas para não conhecer e nem olhar seu corpo. Nota-se que a sexualidade feminina ainda é permeada de tabus, estritamente relacionados à ambiguidade entre sagrado e profano. Entre mitos e tabus Os temas considerados tabu encontram-se vinculados a questões variáveis entre os grupos e inevitavelmente se relacionam com as representações sociais de um determinado povo. Compreender o tabu de determinada cultura resulta na observância dos seus 636 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X comportamentos ideológicos. Vilaça (2009) exemplifica essa questão através dos conceitos de “decente” e “indecente” que são socialmente aprendidos. Em diversas culturas o tabu é tido como objeto de temor e proibição, geralmente associados à ideia de sujeira, poluição e mácula. Sob essa ótica, Frazer (1982) ressalta o tabu existente no que diz respeito à menstruação. Para a menina, a primeira menstruação representa um acontecimento marcante. Significa que ela adquiriu sua maturidade biológica, já sendo mulher e capacitada fisicamente para o amor e para a maternidade. Sobre a primeira menstruação, Salzedas (2001) diz que: Entre os primitivos, a primeira menstruação está rodeada de tabus e cerimônias que culminam num grande festival, durante o qual a menina é aceita na sociedade das mulheres adultas como uma delas. Com a aquisição da capacidade reprodutiva do púbere, uma retomada dos conflitos envolvendo a vivência da sexualidade ronda o adolescente, até que, superando esta fase, possa vir a ser um adulto que experiência de forma madura e, possivelmente, prazerosa, sua própria sexualidade. Assim como a menstruação, a questão da virgindade é outro acontecimento rodeado de inúmeros tabus. A autora complementa que nas sociedades antigas a defloração ocorria em meio de uma festa, com o consentimento de toda tribo. Destaca-se ainda que algumas partes do corpo também são compreendidos como tabu, as quais devem ser escondidas e até evitadas de serem pronunciadas. Para as mulheres, a virgindade ainda é considerada como uma entrega; já para os homens, a primeira relação sexual é um ganho (GIDDENS, 1993, P.61). Elas associam a primeira relação sexual a um relacionamento; eles, a mais uma experiência social (MARQUES, 2007, p.7). Nota-se com isso que cada pessoa vivencia sua primeira relação sexual de uma forma diferente. A maternidade e a infertilidade também são tabus que permeiam a sexualidade feminia.Quando se pensa em “ser mulher”, logo se pensa na vivência da maternidade. De acordo com os ensinamentos de Villela (1998, p. 66): 637 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A construção da feminilidade como maternagem e maternidade, e a sua associação a comportamentos dóceis e assexuados começou a se delinear no século XVIII como subproduto significativo do discurso médico e tomou forma, em especial no século XIX, quando, em função das altas taxas de mortalidade infantil, era importante que as mulheres tivessem muitos filhos e pudessem se dedicar exclusivamente a elas. Por outro lado, “a infertilidade, historicamente, sempre veio acompanhada de atitudes de depreciação, acusação e repúdio, principalmente à mulher” (SALZEDA,2001, p.24). A autora diz ainda que ao longo da história a esterilidade da mulher sempre foi mais falada que a do homem, sempre se atribuindo a primeira a responsabilidade da fecundidade e a culpa da infertilidade a ponto de, em algumas culturas, tornar-se legítimo o repúdio do marido a mulher que não conseguisse ter filhos. Nota-se que não é somente o corpo da mulher e seus aspectos sexuais que geram tabus, mas tudo aquilo que representa poder. Ainda persistem as tentativas de reinventarem os imaginários cristalizados nos homens e mulheres no tocante às noções de masculino e de feminino. Persistem as expectativas das sociedades e das culturas no ajustamento cotidiano das pessoas à padronização de comportamentos, em face de que esses modelos são culturais e históricos coabitam com novas organizações familiares e com relações conjugais mais livres. A aprendizagem social do ser homem e do ser mulher A família apresenta-se como um instrumento importante para a formação do ser humano. É nela que os indivíduos encontram os subsídios afetivos e materiais necessários para seu desenvolvimento. É nesse espaço que se absorvem os valores éticos e humanitários decisivos para a formação da educação formal e informal. Ainda, é na família que, segundo D’Ávila (s/a, p.4) constroem-se “as marcas entre as gerações e a transferência de valores culturais, bem como o aprendizado do ‘ser mulher’ e do ‘ser homem’”. A formulação do papel de cada indivíduo é concebida por Negreiros e Carneiro (2004, p. 34) como “um conjunto de prescrições e proscrições para determinada inserção no meio social”. Nesse sentido, os papeis masculino e feminino englobariam restrições, aprovações e proibições aprendidas e transmitidas ao longo das gerações. Mcdougall (1997, p.35) afirma que 638 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X a determinação do que é “feminino” é “masculino” mudam tanto entre as culturas, quanto entre as épocas. As relações sociais são atravessadas por diferentes discursos, símbolos, práticas, imagens e representações, onde as pessoas vivem como masculinos e femininos, movimentando os lugares sociais e as formas de ser e estar no mundo. As identidades de gênero movem outros modos de ser homem e de ser mulher na sociedade atual. Desde o nascimento, vivencia-se experiências determinadas pelo fato de ser menino ou menina: a boneca à menina, o carrinho ao menino. Para as meninas, o rosa, a maternidade, a beleza e as tarefas domésticas; para os meninos, o azul, o trabalho fora de casa na intenção de sustentar a futura família (BRUSCHINI, 1990, p. 57-61). Sobre a educação das crianças, destaca-se o tratamento diferençado dispensado quanto à formação dos filhos e das filhas. Quanto aos meninos, geralmente os pais comentam orgulhosos com os amigos e familiares sobre tamanho do pênis do filho, ou lhes ensinam palavras eróticas desde cedo e profetizam a sua virilidade e sucesso sexual. Por outro lado, em relação ao corpo da menina, sempre é recomendado discrição e o constante olhar vigilante dos pais. A aprendizagem dos papeis sociais é, na realidade, a aprendizagem do conjunto de rituais que cada sociedade criou (D’ ÁVILA, s/a, p.5). Quando se pensa em “ser mulher, logo vem à mente a vivência materna. Conforme os ensinamentos de Villela (1998, p. 66) A construção da feminilidade como maternagem e maternidade, e a sua associação a comportamentos dóceis e assexuados começou a se delinear no século XVIII como subproduto significativo do discurso medico e tomou forma, em especial no século XIX, quando, em função das altas taxas de mortalidade infantil, era importante que as mulheres tivessem muitos filhos e pudessem se dedicar exclusivamente a eles. A definição do que é “ser homem” e do que é “ser mulher” estará relacionado com as interpretações associadas a cada momento cultural de vida. Boris (2002) fazendo referência à Simone de Beauvoir em sua frase “não se nasce mulher, torna-se mulher” salienta que o mesmo pode ser aplicado ao homem “o homem não nasce homem, torna-se homem”, ou seja, assim como a feminilidade, a masculinidade também poderia ser ensinada e construída. 639 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Conclusão É perceptível que sexualidade feminina passou por transformações que proporcionaram a sua liberdade sexual. Observa-se que o papel da mulher no processo histórico, bem como a forma de tratamento da sua sexualidade, nem sempre foram marcados pela passividade. Devido aos avanços e mudanças sociais ocorridas nos últimos anos, ao se rever a ideia de família patriarcal, obtém-se uma nova interpretação dos modelos de família e do papel social da mulher. O comportamento feminino não mais é marcado pelo estereótipo dócil e submisso. O poder que antes era exercido pelos pais e pela igreja na vida dessas mulheres passa a ser questionado e resistido. Ao concordar que as diferenças entre mulheres e homens são discursos construídos - e não apenas determinados pela biologia-, transfere-se o foco de atenção de uma mulher submissa para uma relação de poder em que as diferenças e desigualdades são apenas produzidas, vividas e legitimadas. Para que as relações sociais sejam construídas de forma mais igualitária entre homens e mulheres, é imprescindível compreender que masculino e feminino se misturam e se cruzam o tempo todo. Não é mais possível sustentar uma dicotomia rígida e imutável entre os dois gêneros. Não existe um modelo de mulher e nem um modelo de homem, apenas várias mulheres e vários homens. Já é possível vislumbrar pequenas mudanças nas relações entre os gêneros. O azul e o rosa ficam em segundo plano e novas cores ganham destaque. As roupas e brinquedos tomaram novas formas e nos filmes já se é possível encontrar meninas heroínas e meninos interessados em arte ou atividades que antes eram tipicamente femininas. Mostra-se necessário que as mulheres gozem do pleno desenvolvimento de suas vontades, comportamentos sexuais e desejos e que, sobretudo, os tabus impostos culturalmente não as persuadam e as impeçam de conhecer seu corpo e refletir a sua identidade sexual. Ainda tem-se um longo caminho pela frente para que a sexualidade feminina seja expressa de forma natural, pois infelizmente ainda tem-se uma sociedade baseada num conceito de superioridade masculina, cujas raízes de violência e repressão feminina ainda se fazem presentes. Referências BORIS, G. D. B. Falas de homens: a construção da subjetividade masculina. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult, 2002. 640 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. 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Abordamos as possíveis relações entre a funcionalidade do espaço e sua decoração associadas às possíveis aspirações dos domini, mediante o exame do conteúdo da documentação escrita. Analisamos a pintura mural no oecus da Vila dos Mistérios levando em consideração a espacialidade, a função do cômodo e as informações da historiografia mais recente. Inferimos que sendo o oecus um ambiente de socialização, em que os domini poderiam oferecer banquetes a convidados oriundos da aristocracia, a pintura de temática báquica/dionisíaca estava de acordo com o caráter da domina – proprietária de uma vinícola – e que, além disso, buscou ser representada como uma devota piedosa. Utilizamos os conceitos de representação de Roger Chartier e interseccionalidade nos estudos da Antiguidade romana. PALAVRAS-CHAVE: Pompeia. Vila dos Mistérios. História das mulheres. A descoberta do sítio arqueológico de Pompeia data do século XVIII. Diferentemente de outras cidades antigas como Tróia, Pompeia não foi apagada, mas preservada sob as nuvens piroclásticas que castigaram a cidade em 79 EC. Casas, estradas, comércios e restos mortais foram alguns dos legados deixados pela tragédia causada pela erupção do vulcão Vesúvio . 580 Desaparecida durante muito tempo e só reencontrada em fins do século XVI, a região foi um dos primeiros sítios arqueológicos no mundo. Entre os séculos XVIII a XX, as descobertas de cultura material na região provocaram duzentos e cinquenta anos de interferências no sítio, nem sempre bem fundamentadas. Durante esse tempo foram as agendas políticas que ditaram qual seria o tratamento adequado aos objetos e pinturas encontrados por arqueólogos que, paulatinamente, descobriam formas outras de exploração do sítio cada vez menos predatórias. 579 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIS/UFES), sob a orientação da Profa. Dra. Leni Ribeiro Leite. Bolsista Capes. E-mail: irlancotrim@gmail.com 580 Abordamos a temática dos tesouros arqueológicos de Pompeia concernentes à sexualidade e à religiosidade da antiga cidade em outro trabalho. Cf. Cotrim (2018, p. 45-68). 643 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Toda descoberta e preservação da antiga cidade foram diretamente proporcionais aos discursos e concepções morais e estéticos de sua época (HARRIS, 2007, p. 2; SANFELICE, 2016, p. 38). A pintura que nos interessa está situada no oecus ou triclinium da domus Vila dos Mistérios, uma das residências preservadas. Podemos conceituar domus como uma residência particular ocupada por seus proprietários e sua família . Era o tipo de moradia das linhagens 581 mais ricas e de prestígio da Roma Antiga. A arquitetura era toda funcional, ou seja, todos os cômodos possuíam sua função. Dentro dessas residências existiam espaços destinados ao aconchego privado e espaços para as visitações e encontros comerciais, protocolares ou amistosos. Podemos citar alguns dos espaços da domus romana, dividida entre áreas de circulação e áreas de representação . Por áreas de circulação entendemos os espaços de ligação 582 entre os cômodos da domus, enquanto áreas de representação são os destinados à recepção e encontros casuais e/ou protocolares. Dentre as áreas de circulação temos o atrium e o peristylium, e dentre as áreas de representação temos o tablinium, o oecus/triclinium, a exedra e o balneum (MAGALHÃES, 2013, p. 60). A residência no Mundo Antigo era habitada por sujeitos distintos e não havia a separação clara entre o local de trabalho e aquele destinado à moradia, pois o público e o privado se imiscuíam. Temos documentações do século I AEC que atestam a importância da relação entre a posição social do indivíduo e sua residência. Por exemplo, Vitrúvio (80-15 AEC) no Tratado sobre Arquitetura , afirma: 583 581 O conceito de família na Antiguidade romana abrangia desde os membros consanguíneos até as propriedades do pater famílias como os escravizados. Dessa forma, a domus era ocupada também pelos lacaios dos proprietários, servos e escravizados (SANFELICE, 2016, p. 162). O oecus ou triclinium era o espaço residencial no qual os proprietários faziam suas refeições diárias e recebiam convidados em ocasiões solenes para o desfrute de banquetes que poderiam durar o dia inteiro (COTRIM, 2018, p. 29). Para um estudo sistemático sobre o convivium no Império Romano da Antiguidade Tardia cf. Andrade (2018, p. 125-134). 582 Seguimos as contribuições de Chartier sobre as representações e as práticas. Chartier determina que as representações, produzidas individualmente ou em grupo, não podem ser observadas pelo pesquisador de forma desencarnada de seu contexto de produção. As condições de produção, incluindo seu contexto histórico e social, permitem ao pesquisador compreender as idiossincrasias presentes nos documentos. Por meio das práticas e das representações, que são conceitos que se coadunam, podemos compreender as diversas maquinações ou construções estabelecidas pelas sociedades sobre os seus respectivos mundos sociais (CHARTIER, 1991, p. 184). 583 Vitrúvio delineia as características inerentes da arquitetura nessa obra. A ordenação (ordenatio/taxis) – ordenação, ato de pôr em ordem; a disposição (dispositio/diathesis), disposição, apresentação, representação; a euritmia (eurytmia), proporção, harmonia; a comensurabilidade, configuração, correlação, sistema de medidas; decoro (decor), decoro, conveniência, o que fica bem, o que convém; e, a distribuição (oeconomia), distribuição, repartição, divisão (De Architec. 1.2.1). 644 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X [...] Pois parece que residências urbanas deverão ser construídas de um modo, e aquelas às quais afluem os frutos das propriedades rurais, de outro; e o mesmo se dirá para as casas dos usuários, diferentes das dos opulentos e dos delicados; todavia, para os poderosos, de cujos pensamentos a coisa pública se governa, serão planejadas conforme essa finalidade; e, em geral, as disposições dos edifícios deverão ser adequadas a cada tipo de pessoa (Vitr. De Architec. 1.2.9) grifos nossos. 584 Nessa passagem Vitrúvio demonstra que as construções deveriam representar o estatuto social dos proprietários . O fato de serem funcionais evidencia que o edifício deveria se 585 moldar ao caráter do dono conforme a posição que ele ocupava na sociedade. Os cômodos da domus deveriam se adequar à sua função de modo que os objetos, a iluminação solar, a posição geográfica em que se assentavam as fundações da construção buscassem corresponder às necessidades e o status social do dono (BEARD, 2016, p. 146; WALLACE-HADRILL, 586 1994, p. 5). Dada essa discussão, concordamos com Wallace-Hadrill no tocante à adequação da construção à vida dos proprietários, pois no Mundo Antigo a divisão público/privado não possuía o mesmo valor da atualidade. Numa carta a Marco Fábio Galo, Cícero (106-43 AEC) reclamava das compras de objetos para sua residência . O conteúdo da crítica é emblemático: 587 […] Em primeiro lugar, eu nunca deveria ter pensado que as próprias Musas valem todo esse dinheiro, e todas as Musas teriam concordado. Ainda assim, elas seriam adequadas para uma biblioteca e se harmonizariam com minhas atividades literárias. Mas quanto às bacantes, onde há espaço para elas na minha casa? Ah, mas você dirá que são lindas figuras pequenas. Eu as conheço perfeitamente e muitas vezes as vi. Se eu as tivesse desejado, encarregaria você especificamente para comprar estátuas que me eram conhecidas. Pois muitas vezes compro o tipo de figuras que adornariam um 584 Tradução de Justino Maciel (2007). Namque aliter urbanas domos oportere constitui videtur, aliter quibus ex possessionibus rusticis influunt fructus; non idem feneratoribus, aliter beatis et delicatis; potentibus vero, quorum cogitationibus respublica gubernatur, ad usum eonlocabuntur; et omnino faciendae sunt aptae omnibus personis aedificiorurh distributiones. 585 Não pretendemos utilizar tal excerto como espelho fiel das construções antigas. O que buscamos é a prerrogativa da adequação da construção às demandas dos donos, ao seu estilo de vida, a sua posição social. 586 De fato, Vitrúvio aponta que o decoro (decor) também se exprime de acordo com o costume. A construção de entradas elegantes para edifícios deveria também conter interiores com decoração luxuosa (Vitr. De Archic. 1.2.6); bem como a construção deveria corresponder a um bom aproveitamento das condições naturais em que o edifício será erigido (Vitr. De Archtec. 1.2.7). 587 Na ocasião Marco Fábio Galo, que estava na condição de agente de Cícero, comprou um conjunto de estátuas de bacantes em mármore – considerado na Antiguidade como símbolos do descontrole e do estado selvagem. Cícero na carta apesar de considerar o objeto belo escreveu ao amigo que era inadequado para sua biblioteca pessoal (BEARD, 2016, p. 146; COTRIM, 2018, p. 27). 645 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X lugar na minha palestra e a fazem parecer com um ginásio. Mas uma estátua de Marte! O que eu, defensor da paz, quero com isso? Fico contente por não haver uma de Saturno, pois devo suspeitar que essas duas estátuas tenham me causado dívidas. Preferiria que houvesse algum tipo de estátua de Mercúrio. [...] Construí novas salas de leitura em uma colunata na minha vila tusculana e gostaria de decorá-las com figuras; de fato, se algo desse tipo me dá algum prazer, é a pintura. [...] (Cic. Fam. 7.23) . 588 A partir desse excerto da carta ciceroniana podemos perceber certo cuidado de Cícero na escolha das estátuas que comporiam a sua biblioteca, local cuja finalidade é a leitura e reflexão, e do qual as representações de Musas, mesmo sendo caras, poderiam fazer parte. Cícero, porém, questiona Galo sobre qual espaço de sua residência seria apropriado para as miniaturas das bacantes. Isso nos evidencia que a decoração não era algo fortuito ou mero capricho de seus habitantes, mas deveria fazer parte da ornamentação do ambiente bem como funcionar como retrato de seu dono. Dessa forma, concordamos com Beard quando afirma que as escolhas decorativas dos proprietários das casas pompeianas tinham a característica de relacionar o estilo e a função do ambiente, conforme o interesse do proprietário de apresentar determinada imagem de si (BEARD, 2016, p. 146). Ao analisar o caso da pintura mural da Vila dos Mistérios, porém, essa autora aponta duas questões. Dada a íntima relação entre funcionalidade/estilo e o caráter do proprietário do imóvel, é possível traçar os motivos lógicos por detrás das escolhas decorativas nas casas de Pompeia? Além disso, seria possível também explicar os motivos da escolha de uma determinada figuração para decorar um cômodo da domus em específico? (BEARD, 2016, p. 147). Buscaremos as possíveis respostas a esses questionamentos. A mais remota datação das fundações da domus Vila dos Mistérios corresponde a sua parte estrutural, que remonta ao século II AEC. A partir da década de 80 AEC a construção é modernizada após o domínio romano da região, o que lhe forneceu as feições de uma típica vila abastada romana. A maioria dos afrescos dessa domus pertence ao segundo estilo de 588 Tradução de Glynn Williams (1952). [...] primum ipsas ego Musas numquam tanti putassem, atque id fecissem Musis omnibus approbantibus. Sed tamen erat aptum bibliothecae studiisque nostris congi-uens. Bacchis vero ubi est apud me locus? At pulchellae sunt. Novi optime, et saepe vidi. Nominatim tibi signa mihi nota mandassem, si probassem. Ea enim signa ego emere soleo, quae ad similitudinem gymnasiorum exornent mihi in palaestra locum. Martis vero signum quo mihi pacis auctori ? Gaudeo nullum Saturni signum fuisse. Haec enim duo signa putarem mihi aes alienum attulisse. Mercuri mallem aliquod fuisset. [...] Exhedria quaedam mihi nova sunt instituta in porticula Tusculani. Ea volebam tabellis ornare, Etenim, si quid generis istiusmodi me delectat, pictura delectat. [...]. 646 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X pintura desenvolvida na época, segundo Sanfelice (2016, p. 144), mas Beard (2016, p.149) discorda dessa assertiva. Segundo a autora, a maioria das paredes pintadas em residências pompeianas seguia o quarto estilo, que ganhou força a partir de meados do século I EC. A autora salienta que a Casa dos Quatro Estilos evidencia que os gostos decorativos e arquitetônicos de Pompeia poderiam mesclar essas tendências. A Teoria dos Quatro Estilos não leva em conta as possibilidades dos vínculos entre a função dos cômodos e seus motivos decorativos . Dessa forma, a autora conclui que a decoração residencial pompeiana dentro e 589 fora da construção seguia uma combinação de antigas e novas perspectivas decorativas (BEARD, 2016, p. 149). Possuímos uma representação imagética do que seria uma sequência de cenas do culto a Baco/Dioniso na Vila dos Mistérios em Pompeia. A técnica pictórica mais comum era o afresco (GARRAFFONI, 2007, p. 153). É necessário pontuar, porém, que o ambiente em que a pintura se encontra era um oecus, que eventualmente era usado como uma sala para os banquetes oferecidos pelos domini, ou seja, como um triclinium. O oecus era um espaço entre o atrium e o peristylium que desembocava no jardim da casa romana. Além disso, o mapa da domus da Vila dos Mistérios deixa evidente que mesmo sendo um ambiente de representação, o cômodo era de difícil acesso (SANFELICE, 2016, p. 146). Os banquetes romanos teriam sido parte das heranças helênicas em Pompeia, uma vez que o hábito de jantar reclinado tinha raízes gregas (MAGALHÃES, 2013, p. 58; HARRIS, 2007, p. 14-15). 589 A teoria dos quatro estilos explica que as técnicas de pintura e ornamentações parietais romanas ao longo dos séculos II AEC e I EC passaram por variações no que diz respeito ao uso do mármore, à delicadeza do traçado, o uso de colunas e de frontões (BEARD, 2016, p. 164). Mais informações a respeito cf. Beard (2016, p. 164-167). 647 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fig. 1: Parte do afresco do oecus da Vila dos Mistérios, Pompeia. FONTE: CUVELIER, 2015, p. 62. Fizemos então a leitura das cenas conforme Sanfelice (2016, p. 146 e ss.) propôs. A megalografia deve ser lida como um livro em que as cenas dos mistérios se iniciam da esquerda para a direita, o que nos mostra uma grande e única alegoria. Na primeira cena temos a representação de uma mãe ao lado de um menino que segura um pergaminho, que parece ler. Para Sanfelice, o pergaminho representa a erudição, as liturgias que a mãe passa ao filho, ou seja, a cena retrata a iniciação do menino pela mãe nos mistérios báquicos (SANFELICE, 2016, p.147). Ainda no tema da maternidade, temos na segunda cena uma mulher grávida, coroada, segurando o que parece ser uma bandeja com bolo numa mão e na outra um ramo de videira. A coroa seria a representação da identidade dos tíasos, isto é, dos membros dos mistérios báquicos e a mulher grávida traz à memória a atribuição do deus Baco enquanto divindade atrelada à fertilidade e ao nascimento/renascimento. Na mesma cena da mulher grávida, temos outras três mulheres que estão envolvidas em um ritual de purificação. Segundo Sanfelice, a mulher coroada e sentada tem suas mãos lavadas por outra à sua direita, também coroada, que está com uma jarra. A mulher da esquerda oferece um pano cor púrpura para que as mãos sejam secas. Temos, portanto, o caráter purificador dos mistérios dionisíacos (SANFELICE, 2016, p. 149). São apresentados dois semideuses ao lado dessas mulheres, o que pode evidenciar a presença de um Sileno – o responsável pela lira – e um casal de Pã, sendo o macho aquele que segura um instrumento musical e a fêmea aquela que fornece a uma 648 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X cabra seu leite. Isso pode significar tanto o caráter da fertilidade por conta da presença do leite quanto da ideia de purificação nos rituais (SANFELICE, 2016, p. 150). A quarta cena representa uma mulher cuja expressão parece ser de espanto, seja por conta da revelação do divino falo, seja por conta da quinta cena, na qual vemos Baco, embriagado, nos braços de Ariadne, sua amante. Na sexta cena temos a representação de bacantes em êxtase, em transe, durante os rituais báquicos. A de joelhos parece ser chicoteada pela criatura alada enquanto a outra mais ao fundo porta um manto cor púrpura e segura um tirso. A outra bacante está nua tocando o címbalo, em estado de possessão o que, segundo Sanfelice, pode representar que a música, a dança e o consumo de vinho auxiliavam o iniciado a se contatar com o deus. Assim terminaria a parte sagrada dos ritos báquicos na pintura parietal, pois, “sendo a dança de possessão báquica a divina transformação da bacante terrena, o mistério se cumpriu” (SANFELICE, 2016, p. 156). A historiografia a que tivemos acesso entre os séculos XX e XXI diverge quanto à interpretação dessa pintura. A rigor percebemos três linhas interpretativas, a saber, uma que considera a pintura como a representação de um casamento (MAIURI, 1960); outra que a entende como um ritual de homens e mulheres (SAURON, 1998); e, finalmente, a que entende ser um registro de um ritual dionisíaco (CLARKE, 2003). Entretanto, para Beard (2016, p.146) a despeito de qualquer explicação referente ao que a pintura representaria, o afresco, por ser muito adornado, deveria refletir aquele ou aquela que utilizaria o cômodo como um triclinium em termos de exibição de opulência. As escolhas decorativas desses proprietários deveriam corresponder à mescla entre função do ambiente e o caráter de seu anfitrião. A pintura, por estar em um ambiente representativo, um espaço em que o público se faz presente, figurava como local de manutenção do prestígio social dos domini. Dessa forma, a depender do caráter do anfitrião, dos moradores, da atividade que exerciam, da necessidade de manutenção do prestígio frente ao público, podemos compreender o afresco em relação à função daquele ambiente para os domini (BEARD, 2016, p. 146). Os fragmentos do mito de Baco, bem como as representações do culto a essa divindade, correspondem ao tema do afresco do cômodo (SANFELICE, 2016, p. 96). Além das imagens divinas, temos a representação de uma mulher que entendemos ser uma possível anfitriã dos banquetes quando o oecus fosse utilizado como triclinium. A mulher se encontra bastante adornada com joias e parece contemplar as cenas do ritual báquico (SANFELICE, 2016, p. 158). 649 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fig. 2: Parte do Afresco, a domina FONTE: CUVELIER, 2015, p. 65. Essa seria a representação da domina que mandou fazer a pintura para demonstrar sua dignidade e sua piedade . A domina está representada com dignidade matronal em termos de 590 atitude mediativa e austera. O nome dessa figura é incerto, porém nota-se ser de uma pessoa da aristocracia, com prestígio social. Tal imagem representaria a dona da casa, de origem aristocrática, que se fez representar com dignidade matronal, ao passo que indicaria também um dionisismo filosófico. A domina poderia representar, dessa forma, a participação feminina em rituais religiosos na antiga Pompeia. A razão para isso pode encontrada na cultura material. Para Sanfelice, essa domus era possivelmente uma propriedade produtora de vinhos da região, como indica o fato de haver duas prensas de vinho muito próximas à sala dos mistérios. Baco/Dioniso pode estar relacionado com as preces por prosperidade do cultivo da uva bem como a fertilidade da vegetação, o que poderia indicar a devoção dos proprietários a essa deidade (SAURON, 1998; SANFELICE, 2016, p. 160). Como pudemos perceber, a historiografia privilegia análises do campo das religiosidades muito mais do que voltada para a funcionalidade do cômodo e sua relação com o afresco. Aqui nos propomos a preencher tal lacuna. Inferimos que a sociedade romana tinha a 590 Essa representação significaria que a domina pretendia reviver as etapas do relato mítico em sua própria vida, pois teria se auto representado em conjunto com a divindade. A mulher estaria procurando sua divinização tal como Ariadne ao casar-se com Baco, após ser abandonada por Teseu. Portanto, a salvação que a domina representada na megalografia buscava seria oriunda do amor, tal como o mito de Ariadne (SANFELICE, 2016, p. 158). 650 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X preocupação de se manter em concórdia com os deuses, logo a pintura remeteria a esse acordo entre os dois planos. Tal acordo seria sempre firmado mediante os jantares nos quais a domina convidaria o deus a se fazer presente. Ao mesmo tempo em que a dimensão religiosa, a dimensão simbólica também é importante, uma vez que os convidados aos banquetes teriam a visão imponente da domina ao lado dos deuses Baco, Sémele e Ariadne . A matrona 591 representada na pintura evidencia a construção de uma imagem de piedosa, aristocrata e anfitriã dos banquetes realizados no triclinium. Nossa hipótese se respalda na assertiva de que na Antiguidade romana as representações de teor laudatório, em outras palavras o elogio, eram práticas comuns. A representação de si enquanto alguém munido de virtudes era, para os antigos, condição essencial para alcançar o prestígio social. O elogio constituiu no Mundo Antigo, juntamente com o discurso judiciário e deliberativo, um dos tipos retóricos ao qual o orador poderia se dedicar. A teorização sobre a retórica em solo romano tem como primeira obra a Retórica a Herênio, escrita entre 86 e 82 AEC, de autoria desconhecida. Essa obra se revela um testemunho da fecundação das ideias helênicas na cultura das letras em Roma. A tripartição de origem grega é mantida nesse tratado, sendo o elogio e o vitupério parte do gênero demonstrativo ou epidítico. O elogio incidiria assim em três categorias centrais, a saber, as coisas externas (como ascendência, educação, riqueza, poder), as coisas do corpo (características físicas, classificadas como más ou boas) e as coisas do ânimo, como as virtudes, dentre as quais a prudência, justiça, coragem e modéstia (GIESEN, 2016, p. 77). A Institutio Oratoria de Quintiliano, obra quase contemporânea à erupção do Vesúvio que sepultou Pompeia, enumera as cinco partes do discurso, a saber, a invenção, a disposição, a elocução, a memória e a ação. Divide os gêneros discursivos em genera causarum compostos pelos discursos laudativum, deliberativum e iudiciale, e também percebe o discurso epidítico como aquele destinado ao elogio ou vitupério. Quintiliano apresenta aos leitores os preceitos sobre o que deve ser louvado ou vituperado e como se deve fazê-lo. Os destinatários aos louvores seriam os deuses, os homens e as cidades. O louvor aos homens para Quintiliano poderia elencar e amplificar os acontecimentos antes e depois da existência do elogiado, elogio a cidade natal da pessoa, sua linhagem nobre ou as formas pelas quais o mesmo enobrece sua 591 Aqui nos referimos ao sistema de representações políticas proposta por Pierre Bourdieu (1989). O autor conceitua o poder simbólico como o conjunto de sistemas simbólicos (arte, religião, monumentos) cuja finalidade é o consenso social de uma determinada visão de ser e estar no mundo, o que legitima determinada ordem ou visão de mundo (BOURDIEU, 1989, p. 15). 651 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X casa, elogio ao caráter do indivíduo, ao físico, aos feitos do elogiado (Quint. Instit. 3.7.10-16). Os feitos para serem elogiados, contudo, deveriam ser considerados inusitados, de caráter singular e deveriam contemplar interesses outros do que aos do elogiado (GIESEN, 2016, p. 80). Podemos ler a sequência de imagens no oecus da Vila dos Mistérios, portanto, a partir da chave do elogio, inferindo que a associação da imagem daquela mulher com o deus Baco representa a piedade e opulência da domina. Entendemos a retórica como um sistema de pensamento que extrapolava os limites do discurso falado e escrito e se realizava em toda parte no cotidiano da aristocracia romana e provincial. Pensamos, portanto, a ornamentação da pintura mural pompeiana como uma laudatio – laudação, discurso elogioso – à anfitriã da domus. Nosso objetivo com esse trabalho foi o de analisar a série de pinturas parietais dispostas no oecus da domus da Vila dos Mistérios em Pompeia a partir de uma perspectiva interseccional . Pensamos numa história que privilegie os estudos culturais das sociedades, dos 592 grupos e dos indivíduos e consideramos que as mulheres possuem sua parcela de contribuição no jogo sociopolítico. Revisitar o passado do Mediterrâneo Antigo sob a perspectiva de gênero nos é apropriado na medida em que se na Antiguidade os papéis sociais eram diferenciados conforme o status social – as mulheres aristocratas não possuíam as mesmas expectativas comportamentais que as plebeias – a história sempre é um produto contemporâneo, portanto, deve se preocupar com o resgate histórico desses sujeitos. Nesse sentido, o estudo sobre a participação de mulheres em processos ritualísticos na Antiguidade Romana se revela um esforço contemporâneo em apreender a história de mulheres que exerciam papéis os mais diversos em sua época. O caminho a ser percorrido é diferente, pois ao se pensar gênero como uma categoria útil para a análise histórica enriquecese o enredo das sociedades analisadas, ao mesmo tempo em que a memória, em sua forma científica, se torna mais democratizada (SCOTT, 1995, p. 75). 592 Entendemos o conceito como uma proposta dos estudos culturais contemporâneos na qual as ideias de gênero, raça, classe social e outros se coadunam de modo a explicar desigualdades de gênero e/ou de sexo existentes no seio social. No entanto, conforme os estudos de Silva (2018) e de Cotrim (2018), esse conceito quando usado para análises das sociedades do Mediterrâneo Antigo precisa ser matizado por causa da inexistência das noções de raça e de classe social na Antiguidade. Por outro lado, as noções de gênero, identidades culturais e de estatuto jurídico-político são categorias que podemos perceber no modus operandi das sociedades do Império Romano (SILVA, 2018, p. 160-161; COTRIM, 2018, p. 59-60). 652 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A Vila dos Mistérios guarda um tesouro arqueológico em que a vida cotidiana de seus moradores é revelada por meio de pinturas, objetos e arquitetura. O oecus que possuía a funcionalidade de triclinium apresenta uma pintura mural em que vemos a domina em posição de autoridade cercada pelos deuses Baco, Sémele e Ariadne. A representação da anfitriã dos banquetes, como piedosa e digna, foram algumas de nossas inferências sob a perspectiva da análise antropológica das imagens, tal como proposta por Burke (2004, p. 237). A historiografia de meados do século XX e inícios do XXI apresentou três correntes explicativas acerca dessa pintura mural pompeiana. Se por um lado temos a questão religiosa como o tema da imagem é salutar compreender que toda a construção da domus atendia aos propósitos daqueles que a habitava, bem como cumpria a função de manutenção do prestígio social dos domini. Dessa forma, compreendemos que os motivos imagéticos pintados nas paredes do oecus em específico não foram uma escolha fortuita dos responsáveis pela construção e decoração dos ambientes da domus, antes fruto do ingenium, de uma intencionalidade de propagar um determinado discurso sobre si, logo de apresentar uma determinada representação daquela família perante os convidados aos banquetes. Referências Documentação impressa ANÔNIMO. Retórica a Herênio. Tradução de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra. São Paulo: Hedra, 2005. ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. 2 ed. Lisboa: Casa da Moeda, 2005. CICERO. The letters to his friends. Edited and translated by Glynn Williams. 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Dessa forma, esse artigo permeia as frestas da produção destas autoras que se constroem como flecha certeira contra o racismo, o capacitismo e o cisheteropatriarcado na educação, e a partir dela criando táticas de transgressão na encruzilhada epistêmica. Palavras-chave: Corpos dissidentes – Educação – Encruzilhada Epistêmica INTRODUÇÃO Como pessoa Trans Não Binária594, pertencente da comunidade LGBTQIAP+, pude vivenciar a dupla pertença ao espaço acadêmico e ao ativismo, como necessidade da formação e da luta política sobre o entendimento do meu corpo e da comunidade da qual eu fazia parte. A necessidade em manifestar, denunciar e apontar novos caminhos se tornou uma recorrente desde a graduação, juntamente com a ânsia em criar alianças com outros corpos dissidentes que tinham sua permanência ameaçada em sociedade. O interesse em pesquisar sobre os corpos dissidentes na educação nasceu na graduação, no início da minha trajetória acadêmica. Em 2016, quando estava cursando a licenciatura em Letras no Instituto Singularidades, fiz parte da criação e da fundação do Coletive da Diversidade, que era composto por pessoas Negras, LGBTQIAP+, Pobres, Periféricas e Migrantes. Tínhamos, naquele momento, como objetivo trazer para dentro da Mestre em Educação: História, Política, Sociedade - PUC/SP Ver o texto “Como uma identidade pode começar com um não? Reflexões sobre a construção do mundo cisgênero e a existência da não binariedade” - Publicado pela Revista Lüvo, disponível em: https://fundacionluvo.files.wordpress.com/2020/09/v6.n2.revistalucc88vo-para-impresiocc81n_26agosto.pdf 593 594 656 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X universidade as discussões e as pautas que acessávamos a todo tempo nos ativismos e nos movimentos sociais que nos contemplavam. Sabíamos que É preciso que muitas vozes se ergam contra o genocídio da população negra, o aumento crescente da população de rua, o avanço criminoso do agronegócio sobre os territórios indígenas e quilombolas, o assassinato das mulheres cis e trans, as práticas de ódio contra a população LGBT, a criminalização dos movimentos sociais e a repressão ao conhecimento por meio do ataque às escolas e às universidades (ALMEIDA, 2019, p. 14). De 2016 a 2019, travamos uma batalha em modificar a placa dos banheiros da instituição, em incluir no currículo e na ementa os saberes que contemplavam nossa trajetória, em pluralizar o corpo docente, em solicitar cotas para pessoas trans e negras, em impulsionar formações de professores sobre inclusão e diversidade, entre outros fatores que nos eram essenciais. Diante da consciência de que nossos corpos estavam ameaçados dentro e fora da universidade, sabíamos que éramos insustentáveis, e que algumas ações poderiam possibilitar permanência e sustentabilidade aos nossos corpos dentro do espaço educacional. Como trabalho de conclusão de curso, me propus a investigar e narrar a trajetória do Coletive da Diversidade dentro do Instituto Singularidades, bem como suas barreiras, seus desafios e suas conquistas. Para que essa escrita comunicasse de forma direta e política, visto que eu também estava dentro desse processo, decidi juntar os gêneros textuais manifesto e monografia. O trabalho que chamei de Manifestografia recebeu o título de “Corpos (In)Sustentáveis na Formação de Professorxs”, sendo defendido e aprovado em dezembro de 2018. No capítulo “Morrer de corpo, alma e epistemologia” discorri sobre a insustentabilidade dos corpos dissidentes na educação através do assassinato de Ágatha Mont e Matheusa Passareli, ambas pessoas trans, que estavam finalizando suas graduações em diferentes universidades. O corpo físico ainda é a premissa básica para continuar a existir nesse planeta, e quando nos tiram o corpo eles nos tiram tudo, nos levam a 657 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X alma, o futuro, nossa epistemologia, todas as possibilidades de desdobramento em projetos de mundo para fundar uma outra sociedade. Corpos em potência interditados pelo mesmo genocídio dissidente que aniquilou e matou corpos trans na ditadura militar, nas fendas da história, desde que o mundo se tem registro e a nossa história parece ser a mesma, sem evolução ou grandes novidades. Não há vida para o morrer, não há presença, não há concerto ou chance. A morte é o ponto máximo da insustentabilidade, e essa eu espero que não me atravesse (DANTAS, 2018, p. 74). Nesse trabalho, desenvolvi os conceitos de corpos sustentáveis e corpos insustentáveis na educação, atrelando a discussão de sustentabilidade ao processo genocida, estrutural, opressor e violento ao qual os corpos dissidentes estão submetidos. Desta reflexão, publiquei em 2020 o artigo “Um corpo insustentável: a disputa dissidente pela permanência em sociedade” na Revista de Estudos Brasileiros da Homocultura (REBEH), onde afirmo que: Um corpo insustentável é aquele que vivencia o genocídio que mira nos corpos dissidentes, que ancestralmente atua para colocar para fora do planeta todos os corpos que não correspondem à norma, retirando e ceifando vidas. Um corpo insustentável não vira a esquina em paz. Ele é insustentável porque teoricamente todos teríamos direito à educação, à comida, ao transporte, ao lazer, à moradia e à cidadania. Mas os direitos não estão chegando aos humanos que se destinam, eles estão sucateados, eles se fazem utopia ao não concretizarem sua missão. Quem não consegue permanecer no mundo, jamais conseguirá adentrar e permanecer na educação. É insustentável porque a experiência dos corpos dissidentes na escola é um não lugar, uma habitação em regresso, um corpo que não consegue usar o banheiro, o vestiário, a quadra, um corpo que apanha e sofre abuso, um corpo que constantemente retrocede por vontade alheia, e quando ele não suporta dizem que ele não quer mais estudar, que ele evadiu, que ele foi embora (DANTAS, 2020, p. 9). 658 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Quando entrei no mestrado no programa de pós-graduação em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, decidi continuar minha investigação sobre os corpos dissidentes na educação. Desta forma minha dissertação intitulada “Dissidência, Resistência e Transgressão no Espaço Escolar: Vozes Trans, Negras, Indígenas e Pessoas com Deficiência na Encruzilhada Epistêmica” teve como objetivo analisar teses e dissertações escritas por mulheres trans, negras, indígenas e mulheres com deficiência, que refletiam sobre as práticas de resistência e transgressão, adotadas por estes corpos para permanecer na educação. O que chamo de encruzilhada epistêmica, metodologia que criei durante o processo de escrita da dissertação, é justamente o encontro interseccional de todas estas identidades no centro da encruzilhada, refletindo de que forma as práticas se assemelham, destoam ou se encontram. A encruzilhada é trabalhada sob o ponto de vista simbólico e epistêmico, presente na discussão e na fundamentação de autores como Akotirene (2019), Rufino (2019), William (2021) e Nascimento (1981). O que me levou a pesquisar sobre a produção dos corpos dissidentes dentro das universidades se deve ao fato do meu próprio processo em ser um corpo dissidente que habita o espaço acadêmico, em escrever para refutar o cânone, escrever para denunciar os silenciamentos, escrever o que eu não encontrei escrito, escrever como um lugar de dor, de expurgo, mas também de cura. Queria me encontrar com outras curas epistêmicas nessa encruzilhada que é a resistência e o enfrentamento dos corpos dissidentes dentro das universidades. É a partir desse lugar e dessa vivência que nasce esse trabalho. NARRATIVAS DISSIDENTES Corpos negros, trans, indígenas e com deficiência são corpos sobreviventes no território brasileiro. Vivem profanados num solo que nega sua humanidade, que nega seu corpo, seu gênero, sua sexualidade, sua raça, suas diferenças, e que consequentemente lhe nega trabalho, estudo, educação, saúde, políticas públicas, assistência, equidade e reparação. São corpos que carregam a dissidência, a outridade, a subalternidade, a experiência do não ser, a referência do que não se tornar. São aqueles ignorados em todas as suas contribuições, 659 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X que para a sociedade não tem mais nada a oferecer a este mundo, que já nem deveriam estar aqui. Se o trabalho da colonização desde 1.500 é catequizar e evangelizar os indígenas, escravizar e desumanizar o povo negro, acusar as pessoas trans de sodomia e as executar em praça pública e abandonar as pessoas com deficiência em hospícios e lugares que as apartam da sociedade, é porque suas presenças não são bem-vindas neste espaço. Quiseram para além de matar, escravizar e torturar os seus corpos, apagar qualquer traço que tenha vindo das suas culturas, da sua espiritualidade, do seu modo de ver e pensar a vida. Quiseram lhes matar de corpo, alma e epistemologia. É por isso que Sueli Carneiro (2005) nos lembra que o epistemicídio é matar o saber, é matar a memória, é matar a ciência, é matar as contribuições, é matar a cultura, visto que essa ação é uma combinação de genocídio mais epistemologia. Por isso neste trabalho é uma posição política escolher os corpos dissidentes que produziram na contramão do epistemicídio, que se colocaram no lugar de autores para contar a sua própria história e a história do seu povo, que sistematizaram e que deixaram junto ao seu trabalho um legado de luta e resistência sem desprezar, em nenhum instante, a potência da oralidade e das tradições orais presentes na cultura indígena e africana, presente no pajubá que se constrói nas ruas como tática de defesa em meio as violências da prostituição. Todas as escolhas feitas nesta pesquisa foram pensadas em meio a complexidade das identidades e da matriz de opressão, considerando as contribuições do pensamento interseccional. Desta forma foram escolhidas para análise os seguintes trabalhos: Quadro 1 – Teses e dissertações analisadas pela pesquisa segmentadas por nome da autora, Universidade, programa em que a pesquisa foi elaborada, ano de defesa, título da tese/dissertação e problema de pesquisa Universidade, Nome do Nome da programa de Pós- Título da autora Graduação e ano Dissertação/Tese Problema de Pesquisa da Defesa Luma Universidade Travestis na escola: Como as estudantes travestis se Federal do Ceará assujeitamento e movem na ordem normativa da 660 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Nogueira de (UFC) Andrade resistência à ordem escola e quais as possibilidades normativa de resistência diante desse ciclo Programa de PósGraduação em de (Tese) interdição e práticas reguladoras do sexo existentes na instituição escolar? Educação 2012 Universidade O diabo em forma de Megg Federal do Paraná gente: (r)existências de subjetivação das experiências Rayara (UFPR) gays afeminados, viados e negras que fogem à norma cis bichas pretas na educação heterossexual, Gomes de Oliveira Programa de PósGraduação em Como os processos de expresso na experiência de gays afeminados, (Tese) Educação viados e bichas pretas são agenciados no interior da escola? 2017 Candice Universidade de Inclusão e Ideologias no Esta pesquisa analisa, através Brasília (UNB) Contexto da de entrevistas com estudantes Aparecida Globalização: Uma com deficiência e com Rodrigues Programa de Pós- Investigação à Luz da profissionais que vivenciam em Assunção graduação em Análise de Discurso suas práticas profissionais a Linguística Crítica inclusão educacional, os 2016 (Tese) discursos educacional da no inclusão contexto da globalização com a finalidade de verificar as ideologias que esses discursos veiculam. Universidade Olhar, (não) ouvir, Anahi Federal de Santa escrever: uma Guedes de Catarina (UFSC) autoetnografia ciborgue A metodologia etnográfico é de o caráter objeto de reflexão da presente tese, que tem como objetivo discutir a Mello Programa de Pós- (Tese) influência da surdez no fazer Graduação em antropológico, tomando como Antropologia foco da análise a experiência da própria Social pesquisadora como antropóloga surda, a partir de uma 2019 661 perspectiva Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X autoetnográfica. Universidade Educação, identidade e Como as pessoas negras Maria da Federal de histórias de vidas de doutoras do Brasil construíram Conceição Pernambuco pessoas negras do Brasil sua identidade negra através da dos Reis (UFPE) sua história de vida e das (Tese) Programa de Pós- influências da educação e se afirmaram nas questões étnico- Graduação em raciais? Educação 2012 Pontifícia Trajetória Maria José Universidade educacional de dos Santos Católica de São mulheres Paulo (PUC SP) Como as mulheres do Quilombo das Onze Negras superaram as barreiras do quilombolas racismo, discriminação e no quilombo preconceito, acreditando na Programa de Pós- das onze educação escolar como arma de Graduação em negras do transformação social? Educação: cabo de Santo História, Política, Agostinho - Sociedade PE 2012 (Dissertação) O Barro, o Genipapo e o Célia Nunes Universidade de Giz no fazer Correa Brasília (UNB) epistemológico de Autoria Xakriabá Xakriabá: reativação da Programa de Pós- memória por uma Graduação educação territorializada pesquisa teve como objetivo refletir sobre os saberes e os fazeres território, analisando experiências indígena presentes de mesmo no as educação antes da presença da escola e depois do Profissional em Desenvolvimento Esta (Dissertação) Sustentável 2018 662 amansamento dessa. Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Universidade Que memórias me A Mirna Federal de Goiás atravessam? meu autobiográfica do percurso de Kambeba (UFG) percurso de estudante Omágua- indígena Yetê Programa de Pós- Anaquiri Graduação em estudante pesquisadora, tem (Dissertação) partir por da pesquisa indígena a da investigação objetivo reunir elementos para entender como a Arte e Cultura narrativa autobiográfica pode Visual auxiliar na construção docente, e como a construção docente 2017 pode auxiliar na identidade indígena. Fonte: elaborada pela autora (2021) As categorias de análise buscaram identificar: como a história pessoal aparece nas pesquisas, qual a crítica que elaboram sobre a educação, quais as formas de resistência e transgressão apontadas pelas autoras e qual a elaboração teórica constroem com suas pesquisas. O que está expresso neste artigo, e mais profundamente na dissertação, é como as autoras dissidentes fazem da sua teoria um lugar de cura, como narram sua trajetória de vida e suas vivências dentro dos seus próprios trabalhos, como denunciam e manifestam sua dor, como produzem a partir de um lugar de dissidência e marginalização, diante de um currículo que não vislumbra a potência dos diversos sujeitos existentes neste território, e que por consequência aniquila os seus saberes e suas potências epistêmicas. FAZER DA TEORIA UM LUGAR DE CURA Na análise foi possível identificar que as experiências de transfobia, racismo e capacitismo experenciado pelas autoras em suas vivências não dizem respeito somente a elas mesmas, mas uma sociedade estruturada que revive e repete esse mesmo preconceito e aplica essa mesma opressão em todos os corpos dissidentes atravessados pela subalternidade das questões de gênero, sexualidade, raça e deficiência. Como corpos dissidentes, suas vivências extrapolam o campo individual, denunciando opressões estruturais e violências que atingem uma multiplicidade de corpos de formas distintas, mas que estão sempre conectados por suas dissidências, fazendo com que suas trajetórias pessoais dentro dos seus próprios trabalhos 663 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X denunciem uma estrutura inteira. O pessoal é coletivo, o pessoal é político, o pessoal é científico e epistemológico. Em todas as teses e dissertações analisadas as pesquisadoras utilizam várias metodologias distintas para atingir os resultados de suas pesquisas. Seja através da autoetnografia, da etnografia, da história oral e de outras metodologias presentes nos trabalhos, todas elas relatam a si mesmas. Esse relato aparece em lugares distintos da pesquisa, em alguns casos como um capítulo próprio, em outros como um desabafo, as vezes no meio da análise, em alguns trabalhos mais detalhados, com fotografias, em outros de maneira mais concisa, mas sempre presentes. Contar a própria história e falar de si mesmo em um trabalho científico quando se é um corpo dissidente pode ser considerado uma espécie de denúncia, um relato político, um manifesto. Ao relatar suas próprias histórias de vida, dentro e fora do espaço educacional, as autoras estavam falando mais do que sobre si mesmas, mas todo um grupo de pessoas atravessados pela mesma dissidência que a sua. Como no caso de Kambeba (2017) quando fala dos abusos que sofreu e chama a atenção para a condição da mulher indígena, como quando Santos (2012) fala sobre como se sente dentro do espaço acadêmico e denuncia sua solidão e a ausência de mulheres negras neste espaço, quando Oliveira (2017) e Andrade (2012) falam sobre seus processos de transição enquanto travestis e denunciam a transfobia, a perseguição e a violência. Para Bell Hocks (2017) a teoria pode ser um lugar de cura, pode ser um lugar para expurgar traumas, para descarregar os engasgos, para quebrar o silenciamento, para de alguma forma, tentar se livrar da dor, da angústia, de explicar a mágoa para fazê-la ir embora. Em muitos relatos, as autoras falam sobre não conseguir ser um pesquisador “neutro”, que não aparece na sua própria pesquisa, que não fala de si, que não se coloca ou posiciona. Suas escolhas estão voltadas para abrir a sua pessoalidade de modo a torná-la política, de fazer com que ela também se torne o corpus analítico da pesquisa, que ela também possa ser analisada, possa ser lida, possa ser registrada. Com exceção de Mello (2019) e Kambeba (2017), que utilizaram a autoetnografia e a autobiografia, todas as outras pesquisadoras escolheram os sujeitos das suas pesquisas que pertencem ao mesmo grupo identitário ou que permeiam a mesma dissidência que a sua. Propositalmente ou não, de uma certa forma, elas estavam refletidas em seus próprios entrevistados, conforme aponta Santos (2012) quando relata que se via refletida naquelas 664 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mulheres quilombolas que estava entrevistando. Esse encontro entre o pesquisador sujeito e os sujeitos da pesquisa gera um encontro científico, afetivo, político, dissidente e transgressor. Essa escolha gera impactos não somente no pesquisador, mas nos próprios entrevistados, que passam a ter mais confiança, que passam a se abrir mais e que se sentem seguros para expor suas histórias. Neste caso, o encontro do pesquisador sujeito com os sujeitos da pesquisa gera um encontro dissidente na encruzilhada da opressão. O encontro de Luma Andrade com as jovens travestis na escola; o encontro de Megg Rayara com os docentes Gays afeminados, Viados e Bixas pretas; o encontro de Candice Aparecida Rodrigues Assunção com as pessoas com deficiência; o encontro de Mirna Kambeba Omágua-Yetê Anaquiri com as mulheres A'wẽ; o encontro de Célia Nunes Correa Xakriabá com o corpo-território e os saberes do seu povo; o encontro de Maria José dos Santos com as mulheres quilombolas do Quilombo das Onze Negras; o encontro de Maria da Conceição dos Reis com os doutores negros do Brasil. Desta forma, a pesquisa é potencializada, os resultados compõem uma profundidade outra, a análise é feita com o material de vida do pesquisador e dos sujeitos entrevistados. A ausência é preenchida por presença, afinidade e identificação, visto que muitas autoras eram as únicas mulheres negras/indígenas/trans/com deficiência de suas salas, em alguns casos da universidade inteira. Quando Mello (2019) escolhe não se moldar, enquanto uma antropóloga surda, aos desígnios da etnografia que lhe eram incômodos e faz uma escolha política em mostrar através de uma autoetnografia ciborgue suas potências mediadas pela surdez, ela representa o caminho trilhado por muitos corpos dissidentes no espaço acadêmico. Não permitir que sua subjetividade e seu modo de fazer pesquisa seja moldado por uma prática normativa e excludente, mas de criar um caminho possível voltado a um modo dissidente de fazer pesquisa. Sua ação em romper com a etnografia e criar uma autoetnografia ciborgue representa o movimento que as pesquisadoras aqui analisadas fizeram em suas metodologias, em suas pesquisas, em seus escritos. Andrade (2012) narra em sua tese que sempre que chegava a uma turma nova fazia questão de contar toda a sua história na primeira aula, dizer que era uma travesti e que não tinha problema algum conversar sobre isso dentro da sala de aula. Segundo a autora, isso fazia com que os alunos não ficassem especulando sobre a sua identidade e nem criasse tensões e barreiras. Ao falar de si abertamente imprimia com o seu discurso poder e segurança, 665 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X deixando claro o seu lugar de fala e a sua luta contra a transfobia. Assim como Assunção (2019) relata que explicou em sua primeira aula todas as instruções necessárias para os alunos referentes às suas necessidades como alguém com deficiência visual. Neste sentido, para além do espaço acadêmico, falar de si mesmo e da própria dissidência na escola também faz parte de um processo de cura e pode ser considerado uma prática de resistência. Pois como nos aponta Oliveira (2017) quando a bicha preta se torna professora ela também traz consigo a possibilidade de que alunos que se identifiquem com a sua identidade não se sintam estranhos, excluídos, a margem e sem perspectiva. CONCLUSÃO No fundo, tudo dependerá do modo pelo qual o passado será referido no presente; se permanecemos no simples remorso ou se resistimos ao horror com base na força de compreender até mesmo o incompreensível (ADORNO, 1995, p. 46). Na busca de relatar a si mesmas, as autoras buscam compreender o seu passado, evocá-lo no presente para que ele possa servir de material impulsionador da resistência, para que seja mais do que um relato de dor, trauma ou cicatriz. Na tentativa desse diálogo entre os tempos a teoria se torna um lugar de cura, de potencialidade. É relatando a si mesma e se encontrando com os seus semelhantes que a teoria passa a ser um encontro dissidente, um lugar de transcendência, uma produção de conhecimento carregada de urgência, de vozes ainda insurgentes, de denúncias e registros ainda inexistentes no espaço acadêmico. Ao relataram suas próprias histórias, em sala de aula e em suas teses e dissertações, ao se encontrarem com os sujeitos de suas pesquisas e se verem refletidas neles, fazem com que seu grito vire eco, pois nele está contido uma série de vozes dissidentes, ansiando por justiça e luta. Fazem com que sua teoria seja também uma prática de resistência e transgressão, um lugar de denúncia, de manifesto, de justiça epistêmica, de grito contra o silenciamento, também de dor, mas sobretudo, de cura, porque como nos afirma Castiel Vitorino Brasileiro (2021) “a cura é uma experiência, e não uma palavra” (p. 37). Corpos dissidentes habitam o espaço acadêmico driblando o racismo, o capacitismo, a LGBTfobia, que os queriam fora desse espaço. Habitam as linhas das teses e dissertações produzindo flechas para o arco das lutas, suas narrativas se encontram na essência da barbárie que atravessa os seus corpos, na luta que travam cotidianamente por um novo mundo onde suas diferenças não sejam sinônimos de morte, indiferença e desigualdade. Suas palavras são 666 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X feitiços que desencantam o mundo colonial e que abrem frestas para que possa surgir uma nova força, um novo fronte, uma nova barricada, são encontros de ruas nessa que é a encruzilhada epistêmica. A face semelhante que se reflete nesse espelho são as estratégias de resistência e a resiliência que historicamente nos foram ensinadas, engendrados que somos pelas lutas (XAKRIABÁ, 2018, p. 58). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Educação contra a barbárie. 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O Barro, o Genipapo e o Giz no fazer epistemológico de Autoria Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada. Brasília – DF, 2018. 218 p. 668 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Homossexualidades e travestilidades na literatura capixaba na década de 1980: discursos e representações Randas Gabriel Aguiar Freitas595 Resumo: Francisco Ribeiro argumentou que a partir da geração de escritores capixabas dos anos 1980 o discurso sobre as homossexualidades e travestilidades mudaram. Anteriormente as sexualidades e gêneros dissidentes apareciam como xingamentos, ofensas ou em discursos rasos e estigmatizantes. Nos anos 1970 e, especialmente, nos anos 1980, alguns escritores capixabas abordaram as práticas e identidades gays, lésbicas, bissexuais e travestis de modo a problematizar “verdades” colocadas a esses corpos e sujeitos. Pensando representação com Roger Chartier e discurso com Michel Foucault, nos propomos a analisar quatro contos e crônicas produzidos por escritores capixabas que tematizavam lesbianidades e travestilidades. Palavras-chave: lesbianidades; travestilidades; literatura; Espírito Santo. INTRODUÇÃO A proposta desse ensaio é analisar os discursos e as representações sobre lesbianidades e travestilidades na literatura produzida no Espírito Santo durante a década de 1980. Pensamos os conceitos de representação e discurso a partir dos estudos e diálogos entre Roger Chartier e Michel Foucault, respectivamente. Para Chartier, perceber o social e representá-lo não é de forma alguma um discurso neutro, na medida em que produzem “estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros”596. Entretanto, Foucault destaca que é necessário compreender que “poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”597. 595 Mestrando em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo e licenciado em História pela mesma instituição (2017). Membro do Laboratório de História Regional do Espírito Santo e Conexões Atlânticas (LACES/Ufes) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade (GEPHGS/Ufal). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes). E-mail: randas.aguiar@live.com. 596 CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel, 1988. p. 17. 597 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 31. 669 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Quando escrevemos e falamos sobre algo o dito e o não dito entram nas lutas de representações, que buscam hierarquizar a estrutura social através de um jogo de ordenação, como apontado por Roger Chartier598. Para Michel Foucault “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos”599. Isto é, quando escrevemos sobre algo fora da caixa tradicional das representações não estamos apenas lutando contra as representações hegemônicas, mas também nos inserindo no próprio jogo de poder de representar e ser representado. Analisar as representações e os discursos sobre as homossexualidades e travestilidades em textos literários passa por verificar “correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação excluem”600. Por esse motivo, não pensarmos as lutas de representações como um sistema fechado e rígido no qual um grupo possui o poder de representar e outro é automaticamente representado, também acreditamos na capacidade de ressignificar e reorganizar essas hierarquias e definições. É sob essa hipótese que nos debruçamos para analisar quatro contos/crônicas produzidos por três escritores capixabas, sendo eles: “Theda Bara” e “Victor ou Vitória?” por Luiz Fernando Tatagiba, “Primeiro amor” de Sebastião Lyrio e “As namoradas” de Lacy Ribeiro. Selecionamos duas crônicas e contos que tematizassem lesbianidades e duas que sobre travestilidades, com o objetivo de verificar regularidades discursivas e lutas de representações. Nos baseamos no levantamento realizado por Francisco Ribeiro que buscou analisar os discursos sobre as homossexualidades na literatura capixaba de meados das décadas de 1970 até o início dos anos 1990. UM BALANÇO ACERCA DAS HOMOSSEXUALIDADES E TRAVESTILIDADES NA LITERATURA CAPIXABA Ao analisar a literatura homossexual, uma literatura que não só foi produzida por homossexuais, mas que também tematizasse as homossexualidades, Francisco Ribeiro constatou que anterior a década de 1970 as sexualidades e gêneros dissidentes apareciam nos escritos capixabas como ofensas e xigamentos, tais como: bicha, veado, fanchona, travesti, todos em tom pejorativo, visto que estes termos buscavam ofender e/ou estigmatizar. 598 Chartier, 1988, p. 23. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 3. 600 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 28. 599 670 Ribeiro Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X verificou que no decorrer da década de 1970, inaugurou-se uma nova conjuntura no qual as homossexualidades e travestilidades apareciam na literatura capixaba sob outras representações e discursos. Pela literatura produzida no Espírito Santo que tematizava as homossexualidades, Francisco Ribeiro percebeu que, quantitativamente, a homossexualidade masculina era mais representada. Do mesmo modo, ainda sim, essa geração de escritores acabara por colocar as homossexualidades e travestilidades de forma complexa, com seus amores e desejos, suas opressões, seus medos e dificuldades, fugindo de uma narrativa que os ligavam a fraqueza, doença e perversão601. Ainda nos anos 1970, Amylton de Almeida abriu portas para essa nova narrativa ao publicar os romances Blissful Agony (1972) e A passagem do século (1977). Waldo Motta foi o mais contínuo com poemas nos seus livros Pano rasgado (1979), Os anjos prescritos e outros poemas (1980), O signo da pele (1981), Obras de arteiro (1982), As peripécias do coração (1982), De saco cheio (1983), Salariana loucura (1984) e Eis o homem (1987). Luiz Fernando Tatagiba focou nas travestilidades nas crônicas “Theda Bara” e “Vitor ou Vitória?”, nos livros O sol no céu da boca (1980) e Rua (1986), respectivamente. A escritora Bernadette Lira tematizou as homossexualidades masculinas nos contos “1” e “2” no livro As contas no canto (1980) e “O dourado e o negro”, “Tempo” e “Urália” no livro Jardim das delícias (1983). No livro Coração de cristal ou a vida secretas das enceradeiras (1984), Bernadette Lira abordou pela primeira vez as lesbianidades, no conto “Letícia”. Sebastião Lyrio no livro Tigres de papel (1983) tematizou as homossexualidades femininas em três contos: as lesbianidades nos contos “Primeiro amor” e “Modulações” e as travestilidades no conto “Apocalipse: contagem regressiva”. Sérgio Blank deixou implícito o desejo homossexual nos poemas “rimbaud e verlaine” e “flauta de defais” no livro Estilo de ser assim, tampouco (1984) e abordou as homossexualidades mais diretamente no livro Pus (1987) nos poemas “Você castrate”, “Pour lui” e “Cinza de fumaça azul”. Paulo Roberto Sodré abordou as homossexualidades nos poemas “Germinação”, “Poética”, “Estradas”, “Embriaguez”, “Êxtases” e “Quendanças” no livro Interiores (1984) e depois publicou o romance Lhecidio Gravuras de Sherazade na Penúltima Noite (1987). 601 RIBEIRO, Francisco Aurélio. A Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996. p. 80. 671 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X As travestilidades foram abordadas no conto “Meus meninos” do livro No escuro, armados (1987) de Marcos Tavares e no conto “Zaringuer e o mundo” no livro Diga adeus a Lorna Love (1987) de Francisco Grijó. Este último abordou também a homossexualidade masculina no conto “Dois meninos e um jazz”. Lacy Ribeiro abordou as lesbianidades no conto “As namoradas” no livro Avenida República: diário da madrugada em 1987. Por fim, Maria do Carmo M. Schineider abordou o amor entre mulheres nos poemas “Agonia”, “Alma gêmea”, “Encontro marcado”, “Timidez”, “Roupagem”, “Fugaz”, “Eco” e Narciso”, presentes no livro Fio de prumo (1989). LESBIANIDADES E TRAVESTILIDADES ENTRE DISCURSOS E REPRESENTAÇÕES Luiz Fernando Tatagiba publicou a crônica “Theda Bara” no livro O sol no céu da boca em 1980602. O título da crônica e nome da personagem principal é em homenagem a atriz estadunidense Theodosia Burr Goodman, conhecida popularmente como Theda Bara, que atuou no cinema mudo na primeira metade do século XX. A crônica narra a história de Antônio que durante o dia trabalhava como garçom em uma lanchonete e de madrugada se travestia e transformava-se em Theda Bara. O mesmo se montava “diante do espelho, absorta, peruca alugada, cílios postiços adquiridos de segundo olho, colar e brincos oxidados, usando maquilagem da mãe, entrava fraudulentamente em outra dimensão”. Theda Bara “fazia pista” na praça Costa Pereira. Suas colegas de trottoir não sabiam falar seu nome e fugiam do assunto quando Theda Bara começava a falar sobre o cinema mudo. Pediam para que Theda Bara mudasse de nome para algo mais fácil e “Theda, porém, sensível como era, não suportava que a chamassem de outra maneira. Enraivecida corria para o outro lado da avenida, soluçando”. Toda manhã, Theda Bara tinha seu sonho ceifado quando esbarrava no balcão da lanchonete e seu gerente gritava: “Antônio, atende aqui” ou “Está na hora de fazer café, Antônio”. Quando anoitecia, Theda Bara se vestia e preparava-se mais um dia para os olhares dos transeuntes. Quando chegava em casa sua mãe que a esperava dizia: “Chegou, Antônio?” e quando chovia: “Tira a roupa, Antônio, para não se gripar”. Ao chegar em seu quarto Theda Bara “apanhava o álbum com as fotos, relia um artigo, beijava o “poster” na parede. Depois, deitava e fingia que sonhava”. 602 TATAGIBA, Luiz Fernando. O sol no céu da boca. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1980. 672 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A crônica “Vitor ou Vitória?” de Luiz Fernando Tatagiba foi publicada no livro Rua em 1986603. A crônica leva o mesmo nome do filme Victor ou Vitória?, com roteiro e direção de Blake Edwards, que tematiza o transformismo em Paris de 1934. A crônica de Tatagiba narra a história de Vitor que virou a travesti Vitória e paralelamente cria uma metáfora da transformação urbana da capital do Espírito Santo, Vitória. Vitor se assumiu e “nas imediações da praça Costa Pereira, galeria Palácio do Café, Av. Beira Mar, todo o mundo tomando hormônio como quem bebe cafezinho para depois fumar”. Vitor se travestiu, agora é Vitória ou Vitorinha para os mais íntimos. Vitória “é travesti de trottoir, de michê barato, não podendo concorrer nem mesmo com as prostitutas”. Num concurso de fantasia, Vitória concorreu na categoria “Dura realidade”. Sua fantasia: nos babados, “as meninas famintas de Itanhenga”, na cintura “os pobres que moram embaixo da ponte da Vila Rubim”, na blusa “as prostitutas das imediações da Lanchonete Cavalo de aço”, no decote “as crianças de São Pedro, as bocas cheias de lixo”, no chapéu “gente que pede esmolas nas ruas do centro”, na fita na testa “achada na rua”, no bronzeado “juntamente com algumas micoses”, nas mãos espalmadas “os que dormem pelas ruas”. Podem chamar Vitória de Vi ou de Vit, “ele – ou ela? Não estará sozinha na avenida iluminada”, sempre acompanhada de Serra, Cariacica, Vila Velha, dançando no bloco “Grande Vitória”. Vitória pode não dar certo como travesti, “mas não custa nada tentar”. Percebemos algumas regularidades discursivas e representações acerca das travestis: trânsito de gênero; oposição prática eventual versus sujeito; e, modelos de autoidentificação. Luiz Fernando Tatagiba ao descrever a “montação” de Theda Bara destaca: “entrava fraudulentamente em outra dimensão”. Tal colocação está presente numa perspectiva que entende o gênero enquanto uma construção, mas o coloca como intrinsicamente ligado ao sexo, isto é, montar-se Theda Bara, montar-se travesti, é algo que você apenas pode tornar-se, não se ensina de berço como dito por Amara Moira604. Elias Veras ao analisar as bonecas, que também passavam por esse processo de montar-se, lembra que “o termo boneca é empregado para nomear homossexuais que se apropriavam de artefatos associados às mulheres para realizarem performances femininas”605. 603 TATAGIBA, Luiz Fernando. Rua. Vitória: Fundação Cecíliano Abel de Almeida, 1986. RODOVALHO, Amara Moira. O cis pelo trans. Estudos feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 365- 373, 2017. p. 370. 605 VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Appris, 2019. p. 61. 604 673 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Elias Veras idêntica a década de 1970 como um ponto de inflexão para pensarmos a prática de travestir-se e o sujeito travesti. O tempo das perucas é um período anterior a década de 1980, no qual travestir-se estava muito ligado a uma “prática eventual, clandestina e restrita aos momentos e espaços privados”606. O tempo dos hormônios, que Veras designa como tempo farmacopornográfico, mostra que “o sujeito travesti público midiatizado emerge [...] marcado por uma série de transformações que afetaram a intimidade, o corpo, o gênero e a sexualidade”, isto é, torna-se um sujeito com suas subjetividades607. Nesse sentido, o processo de construção da identidade travesti passou por vários modelos de identificações. “Travesti de peito”, “Travesti de rua”, “Travesti de trottoir” são, segundo Elias Veras, “categorias êmicas que revelam o quanto a associação entre travesti, corpo transformado e prática da prostituição marcaram/marcam as (auto)identificações dos sujeitos e sua aproximação-afastamento de certa identidade travesti”608. A crônica “Primeiro Amor” de Sebastião Lyrio foi publicada em 1983, no livro Tigres de papel609. A crônica em formato de diálogos narra o encontro de Hilda e Isis, essa última que tem seu nome revelado no último parágrafo. Hilda esperava Isis no bar, que chegou atrasada por causa do trânsito. Hilda questiona se Isis gostaria de tomar uma cerveja ou se beberia outra coisa. Isis responde: “Acho que vou pedir um Martini” e reclama do jeito que os outros clientes do bar as olham: “É como se estivéssemos num zoológico”. Hilda questionou se Isis gostaria de ir para outro bar, afirmando que haviam outros três no mesmo quarteirão. Isis fala que os outros eram ainda piores que aquele. Hilda questiona se Isis gostaria de ir ao cinema assistir Godard, que responde que já havia assistido na TV. Isis pede para que Hilda mude de assunto, que responde: “OK, OK, não precisa se zangar”, seguido de um silêncio. O garçom Haroldo trouxe a cerveja e Hilda reclama que demorou. Hilda pergunta para Isis se a zanga passou, que questiona: “que zanga?” e pede novamente para mudar de assunto. Hilda pede um beijo para Isis, que nega e fala que ali não. Hilda questiona o problema e Isis argumenta: “Toda essa gente...”. Hilda insiste e Isis fala: “Não, Hilda. Aqui não. Agora não”. Hilda questiona se seria a primeira vez de Isis beijando uma mulher. Isis confirma que sim e pede para Hilda falar mais baixo. 606 Veras, 2019, p. 25. Veras, 2019, p. 55. 608 Veras, 2019, p. 71. 609 LYRIO, Sebastião. Tigres de papel. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1983. 607 674 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X As duas se organizam para irem embora. Isis ajuda Hilda a tomar o resto da cerveja. Pagam a conta e saem. Fazia frio, vento forte, num trecho mais escuro Hilda cantarolou: “Primeira vez... Primeiro amor...” e Isis responde confirmando e diz que a ama. Isis chama Hilda, que pergunta: “O que é meu bem?” e beijam-se. Lacy Ribeiro publicou o conto “As namoradas” no livro Avenida República: diária da madrugada, em 1987 . O conto narra que duas mulheres que se namoravam estavam andando 610 na rua de mãos dadas “quando um jorro de luz [...] as iluminou” fazendo com que se separassem e soltassem as mãos. Foram para um cantinho escuro da calçada onde puderam voltar a ser aproximar e dar as mãos: “As pessoas as olhavam de soslaio, mostrando, com meneios de cabeça e risinhos debochados, o espanto”. Uma delas subiu no ônibus e “a que ficou na calçada teve um ataque de tosse, talvez pela fumaceira preta do cano de descarga do ônibus que lhe roubava a amada”. Nessa lógica, na literatura lésbica também verificamos regularidades discursivas e representações: oposição afeto versus sexo; oposição privado versus público; o escuro como uma heterotopia. A relação entre as categorias afeto e sexo é um debate presente na literatura que lida com os relacionamentos entre mulheres. Nádia Nogueira nos fala “a questão do afeto como elemento de aproximação entre duas mulheres é muito valorizada”611. O sexo é posto como menos importante que o carinho e o afeto, ele aparece como consequência e não como causa de alguns relacionamentos lésbicos612. Isso fez parte da construção da identidade lésbica, que através de regimes reguladores foram categorizadas a partir verdades aceitas que atuam na manutenção das categorias de gênero. A apropriação de espaços públicos e própria relação dos relacionamentos lésbicos nos espaços privados podem ser percebidas como espaços de construção e não exclusivamente de assujeitamento das normas. Como vimos tanto da crônica “Primeiro Amor” quanto no conto “As namoradas” a presença de lésbicas em ambientes públicos questiona as normas vigentes que atuam sob os relacionamentos homoafetivos: “não precisam demonstrar isso em público”. De igual forma, a repressão que atua em cima desses relacionamentos acaba por criar outras formas de sociabilidade, isto é, atua como como incitação de subjetividades. É esse caráter 610 RIBEIRO, Lacy. Avenida República: (diário na madrugada). Rio de Janeiro: Catedra, 1987. NOGUEIRA, Nádia. Invenções de si em histórias de amor: Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop. 2005. 315 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Universidade Estadual de Campinas, 2005. p. 93. 612 Nogueira, 2005. 611 675 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X repressão/incitação que atua sob os corpos dissidentes e ao mesmo tempo que tenta condiciona-los as normas vigentes acabam por incitar o surgimento de espaços de sociabilidades que fogem dessas normas. É nesse sentido que o “escuro”, nas crônicas, aparece como uma heterotopia de sexualidade, isto é, um espaço-tempo em que se pode fugir das normas vigentes da heteronormatividade. Michel Foucault destaca alguns princípios das heterotopias: toda sociedade e cultura no mundo cria suas heterotopias; uma mesma heterotopia em determinado tempo pode adquirir significado diferente do inicial; num mesmo espaço heterotópico pode haver diversos espaços, inclusive serem incompatíveis; as heterotopias estão ligadas a pequenas parcelas de tempos-momentos; pressupõem um sistema de inicio e fim; são capazes de criar espaços-outros613. Percebemos então que em “Primeiro amor” e em “As namoradas” o escuro da rua age como um espaço heterotópico, capaz de permitir que casais lésbicos desviem por um pequeno espaço-tempo das normas reguladoras. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pudemos perceber que na década de 1970 e 1980 emergiu no Espírito Santo uma literatura que tematizava as dissidências de gênero e sexualidade. A literatura como um gênero de discurso tanto reproduz quanto produz discursos e representações acercas das categorias que está falando. Se antes a literatura capixaba abordava as homossexualidades e travestilidades em tom estigmatizante, verificamos, assim como afirma Francisco Ribeiro, que a geração de escritores locais abordou as homossexualidades fugindo de uma regularidade discursiva e de representações que os colocassem como fracos, doentes e depravados. Essa geração abordava não só os controles que sujeitavam os corpos e sujeitos dissidentes, mas também mostrava como existia uma pluralidade de experiências que cercavam e ainda cercam esses sujeitos. BIBLIOGRAFIA BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. São Paulo: n-1 edições, 2019. 613 FOUCAULT, Michel. Outros espaços. Ditos e escritos, v. 3, p. 411-422, 2001. 676 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. Cadernos de leitura, n. 78, p. 1-16, 2018. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel, 1988. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. FOUCAULT, Michel. Outros espaços. Ditos e escritos, v. 3, p. 411-422, 2001. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. LAURETIS, Teresa. “A tecnologia do gênero”. In. HOLLANDA, Heloisa. (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. LYRIO, Sebastião. Tigres de papel. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1983. NOGUEIRA, Nádia. Invenções de si em histórias de amor: Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop. 2005. 315 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Universidade Estadual de Campinas, 2005. RIBEIRO, Francisco Aurélio. A Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996. RIBEIRO, Lacy. Avenida República: (diário na madrugada). Rio de Janeiro: Catedra, 1987. RODOVALHO, Amara Moira. O cis pelo trans. Estudos feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 365- 373, 2017. TATAGIBA, Luiz Fernando. O sol no céu da boca. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1980. TATAGIBA, Luiz Fernando. Rua. Vitória: Fundação Cecíliano Abel de Almeida, 1986. VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Appris, 2019. 677 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Narrativas nas margens: histórias e memórias de mulheres Silvano Fidelis de Lira614 RESUMO: O texto é um recorte de minha dissertação de mestrado, defendida em 2015 junto ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, onde estudei a constituição de memórias e sensibilidades de trabalhadores dos campos e motores de agave, a principio a pesquisa seria realizada apenas com homens, contudo, os durante os caminhos da pesquisa, segui o desvio e realizei entrevistas com mulheres para compreender qual o seu papel desempenhado nesse campo de trabalho, bem como as os afetos, os sonhos e os desejos que fizeram parte de suas vidas. Entendo que essas narrativas femininas narram uma História das margens, que muitas vezes foram negligenciadas por uma historiografia que colocou o masculino no centro de suas reflexões. Essas memórias nos levam a entender como se davam a divisão do trabalho, mas também os sentimentos tecidos nas relações afetivas, e sociais que marcaram a vida das fibreira na secunda metade do século XX. PALAVRAS-CHAVE: Memórias; Sensibilidades; Mulheres. O próprio cunhado meu, hoje em dia ele já morreu, ele tá pagandoonde ele tiver. O próprio cunhado não tinha respeito, dizia cada um palavrão que fazia vergonha. No motor de agave. Acredita? Era João de Conceição. Eu sofri muito. 615 As palavras de Julieta de Castro além de trazer para a discussão da presença das mulheres nos campos de agave mostram também as tensões existentes entre homens e mulheres, os conflitos que se configuravam o cotidiano do trabalho e que foram capazes de deixar marcas, no corpo e na alma dessas pessoas. O ressentimento que ela mostra em sua fala é uma resposta às humilhações e ao desrespeito a que estava submetida pelos candangos de 614 Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba e Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: silvanohistoria@gmail.com. 615 Julieta de Castro da Silva, entrevista concedida em 29/07/2013. 678 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X motor616. Os homens não só ditavam as regras a que elas deveriam ser submetidas, mas também demarcavam os espaços em que elas poderiam habitar que deveria ir e vir. Essas mulheres estavam controladas pelos dispositivos de masculinidade que dominavam o trabalho nos campos e nos motores de agave, bem como grande parte de uma sociedade machista e marcada pela dominação masculina (BOURDIEU, 2002). Quando realizei as primeiras entrevistas617 com os trabalhadores dos campos e motores de agave eu quase que desconhecia a participação feminina nesse trabalho. Até então só tinha ouvido narrativas masculinas, ou de mulheres que ignoravam o trabalho de outras mulheres e falavam apenas de homens. Em minha mente, tudo que se falava da produção, da comercialização e do trabalho no campo de agave era masculino, era traçado pelos fios da masculinidade. Aos poucos fui percebendo que mulheres também tiveram uma participação direta naquela história. Quando entrevistei a primeira mulher, do grupo de dez pessoas que colaboraram com a pesquisa, percebi que elas não só trabalharam, mas que tiveram um papel de destaque, que embora fossem tidas como inferiores e subalternas, haviam constituído novos espaços de criação de si, muito importantes para se compreender todo aquele enredo que falava muito da História de Cubati. Uma das primeiras entrevistas foi realizada com Dona Julieta, uma senhora de sessenta e três anos, me recebeu em sua casa e narrou suas experiências, contou-me de como era difícil trabalhar naquele lugar, de conviver com aqueles homens, embrutecidos, machistas e extremamente opressores. Sentada num confortável sofá e rodeada de coloridas almofadas, aquela senhora narrava suas memórias e ao mesmo tempo estabelecia comigo uma relação de intimidade, falou de seus amores, de suas aventuras e de suas dores, dores da alma por está num lugar onde era descriminada e hostilizada. Em primeiro lugar ela deixa claro que não era a única mulher a seguir todos os dias às seis da manhã para o trabalho na fibra do agave; Não. Era eu tinha doze anos, eu ia mais minhas irmãs. Ia mais minhas irmãs, depois mais Miguelina, Miguelina que mora ali, tu sabe quem é. Trabalhei mais Miguelina e a finada Nina, irmã dela. O finado Antônio 616 Candangos de motor é o termo que na época se utilizava para designar os homens que vivam nos motores de agave, e que eram responsáveis tanto pelas atividades como pela administração do mesmo, portanto os contratos e pagamentos eram realizados por eles. 617 As entrevistas foram realizadas entre os anos de 2013 e 2014, todas na cidade de Cubati, PB, onde residem os depoentes. 679 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Velho, a finada Joventina e Inácio Benedito, nóis trabalhava tudim, aquela ruma de gente trabalhando. Três mil réis, a semana, trabalhava até umas onze horas, ai de onze horas ia almoçar.618 Identificar outros sujeitos que partilham da vida de quem narra a memória, além de ser uma tentativa de identificação dentro de um grupo, faz parte do que a Sociologia, através dos estudos de Maurice Halbwachs, chamamos de memória coletiva (HALBWACHS, 2013) uma memória que não consegue existir por si só, mas que busca a todo tempo se entrelaçar com o outro. Seguir cedinho para o campo de agave, unir as amigas e as irmãs para seguirem juntas me parece uma primeira tentativa de se criar um universo feminino dentro daquele espaço onde a palavra masculina era revestida de um sentido de autoridade e força. Mesmo o cunhado dela era capaz de lhe dizer palavras, que feriam, que humilhavam e que a colocava num lugar maldito, sobre elas pesava a intensa violência de gênero (SEGATTO, 2003), essas mulheres estavam marcadas pelo signo da exclusão. O olhar masculino de Francisco Maciel Neto lança sobre a questão do trabalho feminino nos motores de agave, sua narrativa parece querer pacificar as lutas simbólicas entre os homens e as mulheres, segundo ele, elas até podiam vir no motor, mas era só pra fazer alguma coisa. Ele não desconsidera a existência de certo tipo de desrespeito por parte dos homens, mas especifica que quando as mulheres chegavam eles mantinham o respeito, mas diz em sua narrativa de maneira clara que elas eram excluídas, vinham e faziam alguma coisa, mas tinham que voltar imediatamente para o campo, lá, longe, as mulheres estavam livres daqueles rudes homens, de suas palavras, de seus atos e de seus desejos; Era. Elas ficavam lá pro campo isoladas, se viessem no motor era pra botar água, alguma coisa. Mais eram lá pros canto delas. Quando era pra cuidar do feijão, alguma coisa elas vinham, mais eram separadas. Era, viu? É, tinha sim. Tinha muito, mais depois se acostumava. Porque o camarada tem que entrar com respeito, a mulher vem com respeito. Se diz uma brincadeira é com um conhecido, uma brincadeira 618 Julieta de Castro da Silva, entrevista concedida em 29/07/2013. 680 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ali, aquilo ali passa, ninguém fica aplaudindo não. As mulheres sempre eram lá, no campo, estendendo a fibra limpando.619 Mas qual a necessidade delas precisavam ficar isoladas? Quais perigos ofereciam? Ou será que corriam perigo? O campo, onde o agave era estendido pelas mulheres ficava numa relativa distância do motor, lá elas tinham que limpar e estender toda a fibra. Era um trabalho bastante penoso e a fibra ainda molhada estava completamente encharcada daquela substância que provocava intensa coceira, isso fazia com que as mulheres tivessem seus braços atingidos por aquele liquído, muitas vezes causando feridas. Naquele espaço as mulheres tinham um espaço só delas, um recanto íntimo, onde poderiam falar das coisas de que eram privadas pelos homens. Outros amores, outros sonhos, outros desejos. As mulheres não se submetiam, faziam dali um espaço de criação de si, de novas subjetividades. Algumas até gostavam de estar separadas daqueles homens, pareciam ser mais alegres assim. Quem sabe aquele espaço feminino fosse também uma libertação, mesmo que momentânea, do machismo do lar, exercido pelo pai ou pelo marido; Quando a gente trabalhava era cantando, era rindo, era contando piada. Tudo que a gente fazia naquela época a gente fazia alegre, por amor. Às vezes tava chovendo e a gente ia tirar aquela fibra, tomava banho na chuva. Ai a gente colocando no varal e a água caindo e a gente tomando banho, ah era muito bom, isso em João Jerônimo né. Passei muitas fazes muito boas. Lá em Osvaldo já era diferente, já ninguém ia pra campo, lá em Osvaldo era misturado, era homem e mulher, assim, as mulheres, num era misturado porque as mulheres ficavam num galpão, os homens noutro pegado a fibra, jogando e a mulher pegando e amarrando e jogando por ouro lado, pra depois fazer os fardo e os carros levar. Era melhor em João Jerônimo, ganhava mais, mais era muito atribulado, era muita mulher, muito homem.620 619 620 Francisco Maciel Neto, entrevista concedida em 07/01/2014. Maria de Lourdes de Oliveira Santos, entrevista concedida em 22/12/2014. 681 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Para Maria de Lourdes aquilo era até bom, um espaço onde a alegria era mais intensa, mais livre. Melhor do que quando mudou para trabalhar na fazenda de Osvaldo, onde o trabalho era junto, homens e mulheres. As fibreiras, ainda sofriam outro tipo de violência, dentro do trabalho elas eram consideradas frágeis, vulneráveis e mais preguiçosas, portanto os homens determinavam que o pagamento de uma mulher devesse ser a metade do pagamento oferecido aos homens. Duas mulheres não valem nem por um homem, diziam. Outra coisa que chamava a atenção eram as vestimentas, se por um lado, o grande chapéu de palha, o casaco de mangas compridas e a calça comprida protegiam do sol e do contato direto com a fibra, essa indumentária também servia para esconder aquilo, que para o machismo a mulher tem de mais perigoso, indomado: o seu corpo. A mulher além de isolada, ficava também escondida. Quase sempre, o marido trabalhava no motor e a mulher, ou suas filhas ficavam na fibra, então esses homens queriam ocultar o corpo feminino daquelas que faziam parte de sua família, assim as esconderiam dos olhares, dos desejos daqueles homens que tinham como conduta o ser macho, ser dominador, sobretudo, sexualmente. Maria Hélia desobedeceu isso, mãe, negra e separada ela se recusava a vestir aquilo. Eu não gosto muito de lembrar porque a gente sofria demais. Essa hora no sol quente, eu era da cor dessa televisão de preta, do sol. Eu nem botava calça comprida, nem chapéu na minha cabeça. Botava só um casaco por causa da fibra. Era um calor da mulinga.621 O calor, certamente dificultava muito a vida dessas mulheres que usavam essas roupas. Trabalhando a céu aberto, elas passavam horas debaixo do sol escaldante, ao contrário dos homens que ficavam no motor, que ficavam ou debaixo de uma latada improvisada ou debaixo de alguma árvore de sombra, estando ao menos parcialmente protegidos do sol. Além disso, elas ficavam distantes e só vinham ao motor nas horas das refeições, em alguns casos, como relata Maria Hélia, comiam ali mesmo, e voltavam ao trabalho. A hora de comer o feijão era, muitas vezes um momento de briga, de disputa, onde os homens queriam exercer seu domínio e mulheres, semelhante a Julieta de Castro ousavam desafiar aqueles códigos 621 Maria Hélia de Sousa, entrevista concedida em 22/12/2014. 682 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X opressores; A gente fazia fogo. Ora conversava, num tinha tempo de conversar não. A gente chegava e ia pra fibra, ai quando chegava de onze horas, aí o puxador que tava lá atiçava o fogo, ai quando nóis chegava, ai naquela hora a gente botava mais água no feijão, ai botava sal, tempero não, que não existia tempero. Só era a água, o sal e o feijão. Feijão véi preto, da cor de tirna, tão duro. A gente ia comer de doze horas, era durim, desse feijão véi preto. Todo mundo almoçava junto. E tinha vez quando a gente chegava, eles parava o motor de onze horas e ia comer. Ai a gente que tava na fibra, estendendo e virando fibra, só chegava mais tarde. Quando chegava num tinha mais nada, nem feijão, tinha só o caldo limpim. Ai eu dizia, oxente a gente trouxe o feijão pra botar no fogo e vocês comeram? Ai eles dizia, “ah, todo mundo bota uma chicra, aí dentro da panela”, eu digo, eu botei a conta que dava pra eu pra comadre Rita. Ele dizia, “como caldo se quiser, se não quiser vá simbora pra casa”. Ai eu disse, pia comadre Rita, é a lei do diabo, essa da gente aqui, era. Ai tinha vez que num tinha vez que eles nem tinha respeito, dizia tanto palavrão no mundo, lá no motor. Eu dizia, respeite que minha irmã é casada e eu sou uma criança, me respeite. Eles dizia, “num tem respeito não aqui, pra quem trabalha no motor junto com os machos num tem respeito não”. Foi, mais eu sofri muito. O próprio cunhado meu, hoje em dia ele já morreu, ele ta pagando onde ele tiver. O próprio cunhado não tinha respeito, dizia cada um palavrão que fazia vergonha. No motor de agave. Acredita? Era João de Conceição. Eu sofri muito.622 De fato, em alguns momentos parecia prevalecer a “lei do diabo” do diabo masculino e opressor. A cena narrada por essa senhora mostra como a violência de gênero que operava no dia a dia, nas relações cotidianas. Das quatro mulheres que colaboraram com esta pesquisa, apenas Julieta de Castro narra tantas tensões na relação entre os homens e as 622 Julieta de Castro da Silva, entrevista concedida em 29/07/2013. 683 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mulheres no trabalho com agave. Eu poderia dizer que isso se dá por causa de seu temperamento forte, evidente durante toda a narrativa, essa seria uma explicação em um primeiro momento. Mas comparando as entrevistas percebo que as outras, que narram menos conflitos e embates tem uma coisa em comum, o fato de terem um homem como ponto de referência trabalhando no motor. Maria Hélia tinha seu pai trabalhando junto com os outros homens, e isso lhe permitia estar no motor quando quisesse isso só deixa de acontecer quando ele morre, aí ela começa a se distanciar dos homens, ficava só no campo, comia ali mesmo. As fronteiras entre os homens se alargam quando ela perde sua referência masculina, com a ausência da imagem protetora de seu pai, Dona Hélia passa, inclusive, a limitar os espaços por onde podia andar,ou ficar juntamente com os homens. Após a morte de sue pai ela deixa de cozinhar com os homens e faz suas refeições longe deles, de maneira isolada, juntos às fibras que estendia. Outra mulher entrevistada, Maria de Lourdes Oliveira, tinha uma condição ainda melhor. Seu pai, Agenor Cassimiro, era, durante o período em que ela trabalhou como fibreira, o administrador da fazenda São Domingos, que pertencia a João Jerônimo. Seu pai, a quem chamavam de encarregado, era responsável por vigiar o trabalho dos candangos, o funcionamento dos motores e elaborar a lista de pagamento dos trabalhadores, ele era a extensão do poder do patrão. Evidentemente isso lhe fazia um homem temido, ou no mínimo, respeitado. E quem ia desrespeitar sua filha? Ela não se refere a nenhuma cena de violência de gênero, possivelmente, não tenha presenciado mesmo. Até porque, seu pai era como se fosseo patrão, então a ela se direcionava certo respeito. Ela narra que; Não. Era separado. Porque os homens ficaram lá, eu e minha irmã, que na época era adolescente, a gente teve uma época que a gente pegava o agave, os homens limpava, puxava, no meu tempo chamava assim, puxava o agave, ai outro, o que chamava bagaceiro, que pegava o bagaço, amarrava e eu pegava e colocava no burro e levava pra outro canto pra as mulher estender. Na época quando era adolescente o meu trabalho era esse, depois quando fiquei maior eu fui estender, lavei também o agave, mais era separado o povo. Não. Não tinha nada a ver. Porque meu pai não ficava bem no foco, teve época que ele ficava bem no foco, mas depois ele ficava na fazenda inteira. A turma que eu 684 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X trabalhava sempre me respeitava, mesmo que a gente num ficava muito lá. A gente pegava o agave, levava pra fazenda, o agave era no mato, nos campos lá. Naquela reta grande que você sabe onde é. A gente pegava o agave, colocava no burro e ia pra fazenda, que os canto de estender era na fazenda. Então, em São Domingos pelo menos, não tinha disso não. Eu num vi nem falar. Porque eu só trabalhei lá, lá e em Osvaldo.623 Ainda, uma terceira mulher fala de não ter presenciado esse tipo de coisa, mais uma vez trata-se de quem tem uma relação com um homem do motor, nesse caso, Marineide Duvales se refere com saudades do seu pai, sempre severo e correto. Ainda uma coisa deve ser levada em conta em sua narrativa, ela não era fibreira, visitava o motor apenas para observar. Na infância tinha plantado agave e ajudado o pai nos mais diversos trabalhos da roça, mas quando ele melhorou de vida tirou logo ela e suas irmãs daquele trabalho, que ela diz ser o pior de todos. Era mais homens, porque, assim, pra estender a fibra é sempre uma mulher, dificilmente tinha um homem pra trabalhar na fibra, sempre é mulher, ai eu participava assim, porque sempre tinha aquele, porque mamãe fazia muito bolo na época pra vender aquele pessoal do motor, tinha dia, era na quinta feira pra levar na sexta, mamãe fazia bolo e a gente ia lá entregar a eles, e comiam lá mesmo, debaixo dos umbuzeiro, num umbuzeiro não, numa barraca, eles montava aquela barraca e lá mesmo, aquela comida, sei lá, mas eles comiam lá mesmo, e eu vinha aqui pra casa. Mas a gente sempre tava ali. Papai deixava, papai nunca se importou, ele deixava, sempre a gente participou junto com aqueles, que chamava os candango de motor. Pode ir com eles, ai a gente sempre tava participando de tudo. Ajudava só não mamãe que num ia, mais a gente ajudava quando era aqui perto, aquilo dava uma coceira sem fim gente, aquela fibra do agave. É difícil. 624 623 624 Maria de Lourdes de Oliveira Santos, entrevista concedida em 22/12/2014. Marineide Pereira Duvales, entrevista concedida em 19/12/2014. 685 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Maria Hélia, Maria de Lourdes e Marineide tinham uma coisa em comum que as distinguia de Julieta de Castro. As três primeiras contavam com um homem da família no espaço do motor, eram respeitadas não por causa delas, mas por causa deles. O que se constitui também em uma violência, em um apagamento do sujeito em detrimento de outro. Sem eles, elas voltariam a ser mulheres mal faladas, disputadas como objetos de desejo entre aqueles homens. O corpo feminino é transpassado assim por vários discursos, que as inferiorizavam, que as anulavam, essas mulheres eram transpassadas por uma regulamentação binária da sexualidade (BUTLER, 2014, p, 41). Dessa forma, as mulheres eram classificas de acordo com categorias de exclusão, sua presença no espaço habitado pelos homens não era apenas indesejadas, mas era regulamentada por um sistema de de esclusão. Se podiam adentrar ali era porque estavam tuteladas pela presença masculino de um parente próximo ou cônjuge. O corpo era o corpo maldito, indisciplinado e até mesmo nocivo ao desenvolvimento do trabalho, elas poderiam desviar os olhares, as atenções. Poderia causar acidentes? Em certo sentido sim. Não apenas nos corpos, mas também em suas vidas, em suas subjetividades. É certo que o masculino, mesmo em sua visível força e dominação, teme a mulher. A separação entre os gêneros que é possível observar nesse mundo do trabalho queria não apenas promover uma divisão social e sexual do trabalho no motor, há uma vontada escondida por trás disso, não é uma coisa lnatural. Há uma vontade de controlar os fluxos de desejos (ALBUQUERQUE, JR., 2013) que poderiam contribuir para um desmantelamento da subjetividade masculina, pautada na razão, na produção econômica e na sociedade ainda patriarcal. Mas essas mulheres, cada uma de sua maneira, também criaram novos espaços de invenção de si, souberam aproveitar as brechas de um sistema opressor e forjarem novas artes de viver (FOUCAULT, 2004) maneiras artísticas de existência. Essa arte da existência se mostra, sobretudo, através da deseobediência, em ações demarcadas como proibidas pelos homens, para subverter a dominação masculina elas viviam namorando escondido, saindo para lugares não permitidos. E, até mesmo, coisas simples, triviais para quem estava fora daquela realidade a que foram submetidas, como cantar com as amigas e criar um espaço de alegria, de felicidade momentânea, tudo isso se constituía em uma nova forma, inventada, planejada longe do poderdo macho, de ser mulher. 686 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Julieta de Castro é um exemplo de mulher que se revolta com a condição que era forçada a viver, em sua narrativa conta as diversas vezes em que “bateu boca” com os “caba” do motor, os motivos eram diversos. Certa vez ela discutiu com seu cunhado por não tolerar tanto desrespeito, de outra vez ela reagiu por ter passado a manhã inteira trabalhando na fibra e quando chegou para fazer a refeeição não tinham deixado nada pra ela, só tinha o caldo de feijão. Segundo ela aquilo era a “lei do diabo”. Em alguns momentos da narrativa, e não são poucos, ela fala muito do sofrimento que as mulheres passavam, trabalhando muito e ganhando pouco, sofrendo todo tipo de violência, se submetendo àqueles homens brutos, quase animalizados. Mas, ela, assim como as outras, como as outras sabia escapar, sabia aproveitar as poucas oportunidades que tinha para forjar suas subjetividades de mulher, de “mocinha” como ela fala, mesmo em casa essas mulheres não escapavam desses dispositovos de exploração, ali estavam tuteladas por uma estrutura familiar que também oprimia, que as tornava responsáveis pelas coisas de casa, por ajudar nas tarefas domésticas; Ai no domingo, mãe botava o quilo de porco no fogo, botava o arroz e a gente almoçava, ai, ia lavar roupa dos meninos do motor de agave, ia pros tanques de manhã lavava a roupa, ai nois, tomava banho nos tanques, ai almoçava. E nois dizia, agora nois vamo pra rua. Mãe dizia “vai nada, vai remendar as roupas dos meninos, do motor de agave.” Eu dizia, ai minha Nossa Senhora, eu quero ir pra rua. Ai pegava a agulha veia, botava a linha e ia botar os remendos nas camisa deles, nas calças, ai quando remendava, ai quando eu vinha pra rua era três horas da tarde. Ai assistia a novena de noite, ai na rua, no domingo, a novena. Ai quando dava dez pra onze horas a gente ia pra casa, eu e ela sozinha. As vez, nois arrumava namorado, eu ia com um e ela com outro. Eles deixar na porta de casa. Deixava a gente porta. Ai o povo ia dizer aos meninos. Ai foram dizer que eu tava namorando com um soldado. E ele ia me deixar na porta de casa. Ai ele me deu uma pisa com uma macaca de boi, quase que me matava, com a macaca. O soldado disse, “eu vou matar ele com um tiro na boca”, ai eu disse, não, não faça isso 687 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X não, porque se você fizer, eu acabo agora mesmo. Eu disse, vamos namorar escondido.625 Essas mulheres não fizeram nenhum tipo de grande revolução, não protagonizaram nenhum evento da luta pela humanização daquele trabalho, o seu mérito está em, nos pequenos e moleculares espaços, subverterem à ordem, inventarem novas formas de vida, desafiaram o que lhes era imposto de uma forma micro, simples e para muitos invisíveis. Ficaram ocultas, “isoladas no campo”, como narrou um dos colaboradores da pesquisa, e hoje elas só desejam ser ouvidas, pois isso possibilito a elas se constituírem narrativamente, criarem uma identidade que lhes foi negada, uma subjetividade feminina quase sufocada pelo machismo dos homens do motor. Suas falas guardam potências, formas e sentidos que, embora façamos um grande esforço, seremos incapazes de decifrar completamente. É preciso empreendermos um trabalho historiográfico que lhes permita a fala antes da interpretação (ROVAI, 2021). Mulheres simples, mulheres de fibra, que conseguiram subverter códigos contrariar disciplinas e dar um rosto feminino ao duro e difícil trabalho nos campos e motores de agave que se espalhavam por Cubati, a partir da segunda metade do século XX. Mulheres fortes, mulheres frágeis, mas que sempre nutriram grande força, potências que nós não somos capazes de compreender ou de decifrar, seguimos, pois o desafio de ouvir é tão importante quanto o desafio de interpretar, talvez devessémos inciar nosso conhecimento sobre o passado não pelos centros, mas a partir das margens. REFERÊNCIAS: ALBUQUERQUE, JR. Durval Muniz de. Nordestino: invenção do “falo” – uma história do gênero masculino (1920-1940). 2ª ed. São Paulo: Intermeios, 2013. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. FOUCAULT, Michel. Uma estética da existência. In: _________. Ditos e escritos, volume V: ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp, 281-286. 625 Julieta de Castro da Silva, entrevista concedida em 29/07/2013. 688 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2013. ROVAI, Marta de Oliveira (Org.). Escutas sensíveis, vozes potentes: diálogos com mulheres que nos transformam. Teresina: Cancioneiro, 2021. SEGATTO, Rita. Las estructuras elementales de la violência: Ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal, Universidad de Quilmes, 2003. 689 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ST11 – Dinâmicas Religiosas na História As mulheres na Irmandade do Bom Jesus dos Martyrios da Cidade das Alagoas (1851-1900) Élida Kassia Vieira da Silva 626 Resumo: O presente trabalho busca elaborar apontamentos iniciais sobre as relações entre gênero e religiosidade a partir da irmandade do Bom Jesus dos Martyrios, localizada na cidade das Alagoas (atual Marechal Deodoro), entre 1851 e 1900. Com base no livro de entrada da associação, do Compromisso e de notas encontradas nos jornais circulantes em Alagoas no período proposto, pretende-se problematizar a presença feminina nos espaços de poder da irmandade, assim como estabelecer conexões entre o percentual de participação feminina e seus respectivos estados civis. Palavras-chave: Irmandades religiosas. Bom Jesus dos Martyrios. Gênero e poder. Mulheres, poder e historiografia Enquanto campo de conhecimento, a historiografia sofria em seus primórdios o domínio e a influência dos homens. Esse domínio levou a uma produção historiográfica que privilegiava a ação masculina na história, assim como no ambiente público. Segundo Maria Gabriela e Nadja Paraense 627 “[...] o registro da história, de maneira geral, privilegiava os cenários público, políticos, econômico e de guerra, nos quais as mulheres não estavam incluídas”. Nesse sentido, o privilégio masculino reverberou em uma invisibilidade feminina na história. Essa invisibilidade atuou tanto nas narrativas sobre as mulheres, quanto na própria produção historiográfica, situação que tem mudado há pouco tempo, com a entrada das 626 Graduada em licenciatura em História e mestranda em História pela UFAL, professora de História da rede pública e privada de Alagoas e membra do Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões – Lier – da Universidade Federal de Alagoas. 627 SANTOS, Nadja Paraense; SILVA, Maria Gabriela Evangelista Soares. A historiografia e a exclusão da história das mulheres. In: Scientiarum Historia IX: Congresso em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, 9, 2016, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, RJ: UFRJ, 2016. Disponível em: http://www.hcte.ufrj.br/downloads/sh/sh9/SH/trabalhos%20posteres%20completos/AHISTORIOGRAFIA.pdf . Acesso em 23/08/2019. 690 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mulheres nos cursos de História e a consequente escrita da história pelas mulheres. Desde então, as historiografias sobre tais problemáticas têm suscitado debates e olhares múltiplos, e pode-se observar o crescimento de trabalhos com recortes de gênero, trabalho feminino, etc. Para Joan Scott , a análise histórica a partir do recorte de gênero contribui para a formação de 628 “novas perspectivas sobre velhas questões”. Essa mudança nas tendências historiográficas foi objeto de reflexão para diversos autores, entre eles Michel de Certeau, que apontou as relações entre estrutura e conjuntura como pontos importantes a serem levados em consideração na historiografia e que levam a mudanças na forma de se produzir a história. Conforme destacado pelo autor Uma situação social muda ao mesmo tempo o modo de trabalhar e o tipo de discurso. Isso é um "bem" ou um "mal"? Antes de mais nada, é um fato que se detecta por toda parte, mesmo onde é silenciado. Correspondências ocultas se reconhecem em coisas que começam a se mexer ou a se mobilizar juntas, em setores inicialmente tidos como estranhos. É por acaso que se passa da "história social" à "história econômica" durante o entreguerras, por volta da grande crise econômica de 1929, ou que a história cultural leva vantagem no momento em que se dispõe por toda parte, com os lazeres e o mass media, a importância social, econômica e política da "cultura"? 629 Cabe ressaltar que o recorte de gênero não se insere isoladamente no campo historiográfico, mas faz parte de um conjunto com outras perspectivas que questionam velhos paradigmas históricos. Como exemplo desses novos questionamentos, pode-se destacar a obra de Michelle Perrot, intitulada Os excluídos da história630. Nela, a autora lança olhares sobre grupos comumente invisibilizados no debate historiográfico: mulheres, operários e prisioneiros. A história que até então era dominada pelas elites, pelos “grandes líderes”, pelos generais, avança com a possibilidade de novos olhares com a história vista debaixo631. As irmandades religiosas no Brasil As irmandades religiosas foram associações populares na América Portuguesa e no Brasil oitocentista. Como associações coletivas, eram responsáveis por concentrar diversos 628 SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, p. 93. 629 CERTEAU, Michel de. A escrita da história, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 59. PERROT, Michelle. Os excluídos da história. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. 631 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 280-300. 630 691 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X aspectos importantes da vida social: as festas, o catolicismo, a solidariedade, o “bem morrer”, etc. De forma geral, existiram diversos tipos de irmandades religiosas, e os critérios de pertencimento variavam de acordo com o grupo social; assim, havia associações para brancos, pardos e negros, e diversas irmandades aceitavam associados de diferentes etnias. Além do critério fenotípico, é importante destacar que muitas irmandades surgiram a partir da condição do ofício ou da classe dos associados. Apesar de se constituírem como espaços plurais, pode-se estabelecer alguns elementos comuns a elas: a fé católica, a devoção a um santo escolhido pelos associados, a existência de um compromisso regulador (espécie de estatuto com os regulamentos da irmandade), a mesa regedora (grupo eleito pela própria associação para administrá-la), as práticas de fraternidade cristã e o acúmulo de bens materiais. Para Vainfas , as irmandades religiosas eram 632 Exemplo do catolicismo herdado do período colonial, as confrarias eram associações organizadas por leigos e sediadas nas igrejas. Denominavam-se irmandades ou ordens terceiras, sendo que as últimas se diferenciavam das primeiras por estarem ligadas às ordens religiosas. Podiam reunir membros de diferentes origens sociais, estabelecendo solidariedades verticais, mas também servir como associações de classe, profissão, grupo étnico ou cor. [...] As festas organizadas pelas irmandades em homenagem aos santos padroeiros, ou a outros, eram o momento máximo na vida dessas associações. Nesses momentos, afirmava-se a força daquela devoção, e a de seus próprios membros, criando-se uma oportunidade de arrecadação dos fundos necessários para a assistência, pois se aproveitava a ocasião para a cobrança das mensalidades atrasadas. Conforme destacado pelo autor, as festas religiosas configuravam-se como os pontos altos de sociabilidade para a sociedade oitocentista. Muitos autores atribuem, inclusive, o surgimento de novas sociabilidades no início do século XX como um dos motivos para o declínio das associações religiosas. As mulheres nas irmandades religiosas no Brasil 632 IRMANDADES. In: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 390. 692 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sendo a vida pública o espaço de atuação masculino, a participação das mulheres nas irmandades e na vida religiosa popular também foi objeto de estudos na historiografia. Alguns historiadores problematizaram a ação feminina nas associações a partir dos espaços de poder nelas contidos. João José Reis afirmou que nas irmandades africanas a participação feminina 633 era desejada provavelmente para “aumentar o estreito mercado afetivo dos homens”. Dessa forma, segundo o autor, a presença feminina era incentivada para atender as necessidades de socialização masculinas. Problematizando outro aspecto da presença feminina nas associações, o autor destacou que os cargos diretivos ocupados por mulheres não passavam de “cargos honoríficos”. Muitas irmandades possuíam cargos para serem ocupados por homens e mulheres na mesa regedora. Corroborando com a visão do autor, algumas pesquisas apontam que, enquanto os diretores possuíam direitos a decisões importantes dentro das associações, as mulheres ingressavam nesses espaços com a função de cuidar das festas e eventos. Considerando a importância desses aspectos para a vivência do catolicismo, não se deve desprezar a importância das mulheres nesses espaços. A experiência das festas muitas vezes poderia constituir o catolicismo vivenciado pela população. Dilermando Ramos destacou a 634 importância das instituições na fé popular, ressaltando que muitas características a respeito do vivencial da religiosidade católica estavam ancoradas nas irmandades religiosas: (...) o católico brasileiro não lia a Bíblia, pouco participava dos sacramentos (exceção feita ao batismo), e assistia esporadicamente à missa, celebrada em latim, incompreensível para a quase totalidade dos presentes, (...). Coube então às procissões e novenas a função de darem o caráter vivencial a religião, (...). Cabe ressaltar também os apontamentos feitos por Juliana Sampaio, que estudando a presença feminina na Irmandade do Rosário de Santo Antônio em Pernambuco, destacou que o espaço para atuação de mulheres era mais aberto nas irmandades de pretos e pardos, se comparado ao espaço ocupado nas irmandades de brancos. A autora também enfatizou o discurso religioso do século XVIII sobre o papel ideal a ser seguido pelas mulheres: 633 REIS, João José. A Morte é uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 70-71. 634 VIEIRA, Dilermando Ramos. O processo de reforma e reorganização da Igreja no Brasil: 1844-1926. São Paulo: Santuário, 2007, p. 182-183. 693 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A mulher perfeita, na visão católica, deveria assemelhar-se à Virgem Maria, símbolo de pureza e castidade, em oposição à imagem da Eva, detentora do mal e do pecado. Maria era considerada emblema da perfeição humana. Imaculada, diferentemente do restante da humanidade corrompida pelo pecado original, e afetada em sua alma pela dor do Cristo, era o ser mais próximo do Criador, sendo escolhida por Ele para ser mãe de seu filho e, consequentemente, segundo a Igreja, mãe do próprio Deus. Todas as mulheres possuíam então a obrigação de seguirem o modelo mariano e o culto às suas mais diversas manifestações se tornou fervoroso e popular, tanto nas metrópoles européias católicas quanto em suas possessões, colaborando inclusive na conversão dos colonizados.635 Irinéia Maria Franco dos Santos fez uma importante indicação quanto as relações de gênero dentro da irmandade do Rosário de Anadia: no ano de 1880, após as eleições para cargos da irmandade, foram escolhidos como rei e rainha José e Anna, ambos escravizados; como juiz e juíza, Joaquim e João, ambos também escravizados . O curioso é que nesse caso 636 específico, um homem ocupou o cargo que deveria ser destinado a uma irmã. Segundo a autora, tal procedimento pode ter sido adotado devido à falta de associadas. Contudo, a falta de documentação não permite um apontamento conclusivo. Alguns dados sobre a participação feminina na Irmandade Analisando a documentação específica a respeito da Irmandade dos Martyrios da cidade das Alagoas, é possível identificar alguns pontos a serem problematizados. Seu compromisso é breve e de fácil leitura, apontando a constituição da mesa da seguinte maneira: CAPITULO II Da mesa, sua eleição e obrigações. SAMPAIO, Juliana da Cunha. Irmãs do rosário de Santo Antônio: gênero, cotidiano e sociabilidade em Recife (1750-1800). 2009. 160 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife. p. 27 SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. A caverna do diabo e outras histórias: ensaios de História social das religiões (Alagoas, séculos XIX e XX). Maceió: Edufal, 2016, p. 123. 635 636 694 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Art. 5.º A irmandade será representada por uma mesa composta de um juiz, um escrivão, um secretario, um thesoureiro, quatro procuradores e doze irmãos de mesa; todos terão o voto deliberativo nas respectivas sessões, e a mesa não poderá funccionar sem que se achem reunidos pelo menos oito irmãos, inclusive o seu presidente. No capítulo VIII do Compromisso, intitulado Disposições Gerais, o artigo 37 destaca que Art. 37. Haverá na nossa irmandade, além dos empregados mencionados no artigo 5.º uma juiza que pagará a joia de trinta mil réis e uma escrivã, a qual dará a joia de quinze mil réis. Si estas empregadas não forem irmãs, serão admittidas sem mais formalidades, não pagarão quota alguma a titulo de entrada, e si o forem ficam isentos de pagar annual no anno que servirem estes empregos. Como se pode observar, os cargos ocupados por mulheres são destacados fora do capítulo que trata sobre a mesa regedora. A juíza e a escrivã não eram parte integrante da mesa regedora? Essa disposição dos termos no compromisso pode indicar que os cargos para mulheres existiam à parte em relação aos cargos para os homens. Há, nesse caso, um indício da participação feminina em segundo plano. Outro aspecto importante a ser observado é o número de cargos ocupados por homens e mulheres. Há uma discrepância na quantidade de cargos. Contudo, para que não se realize uma análise descuidada, precisa-se levar em consideração as taxas de participação da irmandade divididas por sexo, como demonstrado no gráfico abaixo: 695 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fonte: Arquivo pessoal. Assim, enquanto os homens constituíam 64% da irmandade em discussão, as mulheres constituíam 36%. A análise objetiva do livro de entrada pode indicar aspectos importantes de uma associação religiosa, mas é necessário um cuidado com a interpretação dos dados, uma vez que o cotidiano pode ultrapassar a dimensão do registro oficial. Assim, o livro de entrada pode fornecer indícios, mas não dados objetivos de uma realidade concreta. Ao observar a porcentagem de cargos destinados de acordo com os sexos, obtém-se a tabela abaixo: Cargos Homens Mulheres Juiz Juíza Escrivão Escrivã Secretário - Tesoureiro - Procurador - Irmão de Mesa - Fonte: Arquivo pessoal. Organizando as informações da tabela acima em um gráfico, pode-se compreender melhor a divisão dos “espaços de poder” por sexo: 696 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Fonte: acervo pessoal. Nesse sentido, enquanto as mulheres representavam 36% da irmandade, os cargos ocupados por elas em relação aos homens constituíam apenas 25% do total, enquanto os homens constituíam 75% dos cargos diretivos. Há ainda a forte possibilidade de os cargos direcionados para mulheres não possuírem o mesmo nível de poder que os cargos exercidos por homens, conforme problematizado anteriormente, colocando-os com 100% do comando da associação. Cabe ainda uma última problematização, a respeito do estado civil das mulheres. De acordo com os dados obtidos pelo livro de entrada, a condição civil das associadas se distribui da seguinte maneira: Fonte: Acervo pessoal. 697 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Inicialmente, pode-se problematizar o motivo da baixa adesão (ou pelo menos do baixo registro) de mulheres viúvas. Enquanto as mulheres casadas constituíam 57% da irmandade, as solteiras formavam 36% e as viúvas apenas 7%. Esse dado pode ressaltar o papel protecionista masculino na sociedade oitocentista, já que até mesmo as mulheres solteiras geralmente eram associadas a um homem, como por exemplo, ao pai. As mulheres da irmandade nos jornais de Alagoas Como as mulheres associadas deixaram registro de seus nomes no livro de entrada, é possível buscar informações sobre elas nos jornais de Alagoas. É importante destacar que a pesquisa por mulheres nesses jornais é bastante problemática, pois pode-se perceber de maneira geral que a individualidade feminina era suprimida, e isso se deu justamente pela visão sobre a mulher do período. No periódico Gutenberg, publicado em 1911, lê-se a seguinte nota fúnebre Missa funebre Realizar se-há na proxima segunda-feira, na igreja do Livramento, missa em suffragio da alma de d Crecencia Sinhorinha da Gama Leite. Há o registro de Crecencia Sinhorinha da Gama Leite no livro de entrada, datado de 1850, com os anuais pagos até 1866. Há ainda a informação de seu local de origem: Alagoas (cidade das Alagoas). Apesar de não haver a confirmação por fontes de que trata-se da mesma pessoa, pode-se supor essa possibilidade a partir do recorte temporal e territorial. Uma nota em jornal sobre a missa de sétimo dia pode indicar uma condição social privilegiada por parte da família de Crecencia. Analisando outros dados sobre as mulheres da irmandade, pode-se perceber um conflito bastante interessante, possivelmente envolvendo uma associada, chamada Candida Maria do Espírito Santo, cuja entrada data de 1870, com anuais pagos até 1896. O conflito foi noticiado pelo periódico O Orbe em 1879: [...] A’ 27 do mez passado, Alexandre, - subdelegado da Colonia, prendeu a Candida Maria do Espirito Santo, bem como tres mallas com roupa, um 698 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X cavallo e silhão pertencentes àquella, que foi remettida do Delegado deste Termo, o qual mandou recolhel a á disposição da Chefatura de policia, ficando em poder d’aquella subdelegacia os ditos objectos. Detida a paciente já ha um mez, sem legalidade alguma, (senão o poderio e vontade dos homens da situação) recorreu ao nosso amigo, Tenente Marinho o qual requereu e obteve em seu favor uma ordem de habeas-corpus, e procura haver agora pelos meios legaes os bens ali conservados em poder da policia! O Justo. Com a prisão aparentemente ilegal de uma mulher detida sem justificativa e com seus objetos retidos pela polícia, apesar do habeas corpus, o jornal denuncia um abuso de poder das autoridades. Infelizmente, até o momento não foram encontrados registros sobre o motivo da prisão ter ocorrido ou maiores detalhes do caso, que ajudem a compreender se Candida Maria era de fato acusada erroneamente ou quais as razões para o conflito. É importante também destacar que se tratando da mesma pessoa, nesse período a associada estava diretamente ligada à irmandade. É interessante questionar de que forma a associação pode ter agido em socorro da acusada, inclusive com a denúncia no jornal, uma vez que tais espaços tinham como base de sua formação a ajuda mútua. Infelizmente, os limites estabelecidos pelas fontes trabalhadas até o momento não permitem maiores afirmações. Conclusão Como discutido com as fontes e a bibliografia, a presença das mulheres na irmandade é uma problemática que desperta mais questões do que respostas. Parte desse problema se dá pela escassez de fontes sobre o período, mas parte disso se deve a própria produção documental de uma época que se preocupou em destacar o homem e invisibilizar a mulher no espaço público, gerando silenciamentos. Apesar disso, é relevante o questionamento sobre o próprio silenciamento e qual o seu significado para a historiografia. Um silenciamento histórico também comunica algo, pois revela características, personagens e problemáticas que foram evitadas ou propositalmente 699 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X invisibilizadas por determinadas sociedades. Esse fato é extremamente relevante, uma vez que a história também é constituída por silenciamentos, conforme ressaltou Trouillot . 637 Os dados iniciais permitem concluir que na irmandade religiosa do Bom Jesus dos Martyrios da Cidade das Alagoas, os papéis femininos e masculinos reforçavam os papéis dados pela estrutura social do Brasil oitocentista em geral. Mulheres e homens eram divididos de acordo com os sexos, e os menores espaços eram reservados para as mulheres. Até o momento, não se pode encontrar espaço para o contraditório, ou ainda algo que fuja as regras estabelecidas na sociedade em geral. Sem espaço de destaque nas irmandades, a imprensa também atuou como um agente silenciador dessas mulheres, visto que nessas produções, elas eram tratadas de forma genérica, com notas de enterros ou missas de sétimo dia. A outra possibilidade de elas serem citadas nos jornais é mediante problemas de desordem social, como no caso da prisão de Candida Maria, citada anteriormente. Cabe ressaltar, contudo, a importância de novas pesquisas que permitam aprofundar o olhar sobre tais aspectos, problematizando as questões de gênero na sociedade oitocentista. Referências: Fontes: Fundação Biblioteca Nacional: Hemeroteca Digital Brasileira. Gutenberg, ano XXXI, Maceió – 1911, nº 75. Fundação Biblioteca Nacional: Hemeroteca Digital Brasileira. O Orbe, ano I, Maceió –1879, nº 66. Compromisso da Irmandade do Bom Jesus dos Martyrios de 1861. Compilação das Leis Provinciais de Alagoas de 1835 a 1872 por Olympio de Arroxelas Galvão e Tiburcio Valeriano de Araújo. Legislação e actos dos annos de 1860 a 1867. Tomo IV. Maceió, 1872. – Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Livro de entrada da Irmandade do Bom Jesus dos Martyrios das Alagoas - Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Bibliografia: CERTEAU, Michel de. A escrita da história, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 637 TROUILLOT, Michael-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Curitiba: huya, 2016. 700 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X DE OLIVEIRA, Maria da Gloria. Os sons do silêncio: interpelações feministas decoloniais à História da historiografia. História da Historiografia, v. 11, n. 28, 2018. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. IRMANDADES. In: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008 PERROT, Michelle. Mulheres emparedadas e seus espaços de memória. In: Estudos Feministas. 14(2), Florianópolis, maio-agosto/2006, p. 566-571. ________________. Os excluídos da história. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. RODRIGUES, Dayanny. Escritos de e para mulheres no século XIX: o conceito de emancipação e a representação feminina no jornal das senhoras. In: Revista Outras Fronteiras. Vol. 4, n 1, jan/jul., 2017. p. 54-76. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, p. 71-99. SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. A caverna do diabo e outras histórias: ensaios de História social das religiões (Alagoas, séculos XIX e XX). Maceió: Edufal, 2016, p. 123 SANTOS, Nadja Paraense; SILVA, Maria Gabriela Evangelista Soares. A historiografia e a exclusão da história das mulheres. In: Scientiarum Historia IX: Congresso em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, 9, 2016, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, RJ: UFRJ, 2016. Disponível em: http://www.hcte.ufrj.br/downloads/sh/sh9/SH/trabalhos%20posteres%20completos/AHISTORIOGRAFIA.pdf . Acesso em 23/08/2019. TROUILLOT, Michael-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Curitiba: huya, 2016. VIEIRA, Dilermando Ramos. O processo de reforma e reorganização da Igreja no Brasil: 1844-1926. São Paulo: Santuário, 2007, p. 182-183. 701 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X ““Ou cismas, ou prisões, ou apostasia ou cadeia”: Administração das freguesias da província no contexto de embate entre o regalismo e o ultramontanismo em Alagoas (1859-1868) Lydio Alfredo Rossiter Neto * Resumo: Esta comunicação tem como objetivo estudar as atuações dos membros do episcopado olindense e do clero Alagoano, sob a tutela do Padroado Régio, na gestão das freguesias de Alagoas e a restauração ultramontana enquanto representação de gradual reforma institucional no fim do segundo reinado. Em particular, observar de que forma os aspectos econômicos, políticos e sociais do período influenciaram a interiorização dos preceitos eclesiológicos, regalista e ultramontano na província. Palavras-chave História de Alagoas, Documentação Eclesiástica, Relações de poder. Introdução Esta é uma breve análise das fontes oficiais, ofícios e correspondência da Igreja Católica – episcopado olindense e das vigarias da província de Alagoas, com recorte temporal de 18591868, com objetivo de estudar as atuações desses agentes clericais, sob a tutela do Padroado Régio, na gestão das freguesias. Em particular, investigar a “denúncia” de ingerência feita pelo Pe. Domingos José da Silva (1800-1870), enviada ao vice-presidente da província, Silvério Fernandes de Araújo Jorge (1817-1893), com o intuito de averiguar de que forma este conflito contribui para a compreensão das mudanças de cunho jurídico e administrativo e seu impacto social nas vilas e cidades. Foram contemplados o estudo das instituições do Império Brasileiro, por meio da averiguação dos ofícios obtidos no Arquivo Público de Alagoas – APA. Esta opção deu-se pela capacidade do conhecimento de seu aspecto técnico ser “frequentemente indispensável para os estudos dos fenômenos sociais” (HESPANHA, 1982, p. 36). Baseando-se no conceito da secularização 638 do Estado brasileiro, faz-se necessário: compreender de que maneira as Mestrando do programa de pós graduação em história pela universidade Federal de Alagoas – UFAL; Membro do Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões (LIER). O termo secularização aqui utilizado parte do seguinte preceito: “Por secularização entendemos o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. Quando falamos sobre a história ocidental moderna, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de áreas que * 638 702 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X mudanças de cunho eclesiológico nas esferas da gestão pública, ordenadas pelos agentes do poder eclesiástico, se modificaram após a iniciativa de restauração romana (SANTIROCCHI, 2015), em particular confronto entre as posturas regalistas e ultramontanas, a primeira enquanto uma vertente vinculada ao padroado régio, onde a crescente reforma do Estado atrelava cada vez mais sujeição da instituição eclesiástica ao Governo, além de fortalecer sua própria autoridade por meio da Igreja; enquanto a segunda vertente, ao contrário, buscava aumentar a liberdade e independência da Santa Sê em relação ao Estado, bem como afirmar a própria autoridade sobre a hierarquia católica, num processo de centralização eclesiástico em torno da infalibilidade Papal (SANTIROCCHI, 2015.). Coube também, considerar os canais de comunicação entre a Igreja e a presidência da província como alcance das influências políticas de uma instituição sobre a outra; visto que estes documentos oficiais, “[...] carregam o conhecimento detalhado da competência e processo burocrático dos órgãos ou instituições donde provieram esses corpos.” (HESPANHA, 1982, p. 36). É precisamente nas vivências dos membros do clero, enquanto agentes religiosos no serviço da fé cristã e da hierarquia eclesiástica, ao mesmo tempo, servidores públicos do Estado Imperial na administração das freguesias; por diversas vezes, proprietários de terra e/ou de escravos, além de agentes políticos atuantes nas câmaras legislativas – que é possível constatar uma realidade complexa e repleta de contradições. A exemplo do Vigário da freguesia de Alagoas, Domingos José da Silva (1800-1870) proprietário de terras e dono de escravos, que durante sua longa carreira envolveu-se em diversos conflitos com autoridades civis e eclesiásticas, dentre eles a longa e infrutífera disputa contra o Guardião do Convento de São Francisco, Frei João das Chagas de Cristo - de dezembro de 1864 até sua morte em novembro de 1870 - acarretada pelo que acreditava ser uma afronta à sua autoridade (ROSSITER NETO, 2019). Após a proibição dos enterramentos no interior das igrejas, passou-se a ser necessário a construção de cemitérios públicos para alocação dos cadáveres em todo território nacional (FIGUEIRA JÚNIOR, 2018), (REIS, 1996). Contudo, devido à precariedade econômica das vilas e cidades, além da terrível epidemia presente no Brasil desde o final da década de 1850, não havia cemitério público apropriado na Cidade de Alagoas. (ROSSITER NETO, 2019). 639 Por este motivo, a câmara municipal achou apropriado que o espaço do claustro do Convento antes estavam sob seu controle ou influência: separação da Igreja e do Estado, expropriação das terras da Igreja, ou emancipação da educação do poder eclesiástico, por exemplo.” (BERGER, 1985, p. 119) 639 Atual Cidade de Marechal Deodoro. 703 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de São Francisco fosse utilizado para realização dos enterros até que um cemitério adequado fosse construído, para a insatisfação do Vigário (ROSSITER NETO, 2019) Embate com o guardião do convento Em ofício de 31 de agosto de 1868, o Vigário de Alagoas, Pe. Domingos José da Silva, respondeu um oficio do vice-presidente da província, Silvério Fernandes de Araújo Jorge, datado de 11 de agosto de 1868, no qual havia pedido informações acerca do encaminhamento das obras da matriz. Estas deveriam ser expostas de forma detalhada e com presteza; o vigário deveria também, comunicar quais dessas obras ainda estavam em construção e quanto do investimento público já havia sido despendido. Ainda, outra demanda da presidência era o esclarecimentos acerca da construção do cemitério público da cidade e seu estado, assim como “[...]quaisquer planos e projetos que a tal respeito haja na minha freguesia” . Em seu parecer, o 640 vigário responde: [...] Quanto a primeira parte cumpre-me declarar a Vossa Excelência que minha Matriz, sendo reedificada a 08 anos pouco, mais ou menos presentemente de nada carece, só sim a sacristia que precisa de forro pois que está um “trovejamento”, e mais alguns pequenos reparos, pois que estando a porta da sacristia virada ao norte, é muito arriscado, quando os reverendos acabam [..] de qualquer ato podem sofrer um ataque o que já tem acontecido a alguns.641 É possível notar que a pequena obra citada no oficio do padre poderia orçar, segundo ele, aproximadamente quatrocentos mil réis (400$000) . Tal quantia, destoava dos valores 642 atribuídos à reforma da Matriz em ofícios similares, tal qual no ofício de seu antecessor, o Pe. Conrado Alves de Moura, datado de agosto de 1859 , onde este estipulava um orçamento de 643 640 Vigário de Alagoas. Ofício ao vice-presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1681; IT, 1868. 641 Idem. 642 Idem. 643 Vigário de Alagoas. Ofício ao vice-presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 377; IT, 1859. 704 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sete a oito mil réis (7-8$000) para reparos similares. Contudo, o próprio Domingos José, reitera que sua estimativa, parte da supracitada reedificação da Matriz, realizada no espaço de tempo entre, 1860-1862, quando se ausentou da vigaria. Não sabendo, ao certo se o tesouro havia despendido tal valor, pois lhe constava um donativo de quinhentos mil réis (500$000) com que se acabou a obra . Apesar disso, esta informação permite ponderar a respeito da significância 644 das obras de restauração para a administração da freguesia e realização do culto público. Inclusive, é possível perceber uma quantidade substancialmente maior de verbas destinadas para a preservação desses edifícios na década de 1860 (NUNES, 2020), a exemplo da fala de José Martins Pereira de Alencastro, no relatório da Assembleia da província de julho de 1867. Em sua ata, mencionava a aprovação de cotas para diversas matrizes e capelas, totalizando o valor de trinta milhões de réis (30.000$000) . 645 É importante salientar que, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, e sua gestão, são elementos perenes nas fontes oficiais, devido à sua importância no contexto da hierarquia eclesiástica, mas também devido aos tenebrosos percalços pelos quais sua manutenção passou. Apesar de ser o assento da vigaria na cidade das Alagoas, “ao logo de todo o século XIX foi alvo de insistentes solicitações dos párocos para a realização de serviços, dos mais, variados, desde a manutenção predial, segurança do patrimônio” (MAGALHÃES, 2018, p. 228). Sabese ainda que, durante as celebrações religiosas, tais como a Semana Santa, a integridade do edifício era indispensável para os festejos, devido Igreja da Matriz representar uma parada indispensável para o fluxo de pessoas que trafegavam pela cidade em procissão (MAGALHÃES, 2018) De fato, a impossibilidade de realização das celebrações devido à ingerência dos recursos destinados à preservação desses patrimônios, implicaria na direta interrupção do ato religioso. Entende-se a preocupação destes agentes, especificamente, na gestão do cotidiano e a administração das vilas, conexas ao fenômeno religioso enquanto uma forma de preservação do costumes, destacando a relação com os espaços de poder provincial. É possível, compreender que a relação entre o religioso e o político dar-se, ao mesmo tempo em dois âmbitos: em primeiro lugar: 644 Vigário de Alagoas. Ofício ao vice-presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1681; IT, 1868. 645 Cf. ALENCASTRE, José Martins Pereira de – Relatório de 10 de julho de 1867. Maceió: Typographia do jornal<http://ddsnext.crl.edu/titles/163#?c=0&m=56&s=0&cv=6&r=0&xywh=248%2C470%2C2271%2C1602> consultado em 02 de setembro de 2021. 705 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A crença religiosa se manifesta em Igrejas, que são corpos sociais dotados de uma organização que possui mais de um traço em comum com a sociedade política. Como corpos sociais, as Igrejas cristãs difundem um ensinamento que não se limita às ciências do sagrado e aos fins últimos do homem” (COUTROT, 2003, p. 334). Em segundo: a religião vivenciada dentro das Igrejas cristãs excede os limites do espaço delimitado e manifesta-se coletivamente nos hábitos dos praticantes, tornando sua influência portadoras de um conteúdo cultural e agentes de socialização (COUTROT, 2003) A exemplo do histórico da Matriz como um dos primeiros templos a receber os sepultamentos dos moradores da cidade e das povoação adjacentes, inclusive dos pardos, quando estes ainda não possuíam capela própria (MAGALHÃES, 2018); assim, como os elementos relacionados à morte e morrer existentes na matriz, que eram destacados com nas fontes oficiais, com enfoque em suas condições de conservação. Partindo deste lugar de prestígio, sendo o mais antigo dos templos, símbolo da eloquência política e administrativa que a cidade tivera até bem pouco tempo (MAGALHÃES, 2018) diante dessa constante precariedade, pondera-se a respeito do estado das outras edificações de gestão religiosa, especialmente a serviço da população, tal qual os cemitérios, abordados na segunda parte do oficio do Pe. Domingos. [...] bem quisera nada dizer porem para cumprir a determinação de Vossa Excelência a passo a informar o que tenho visto e sei. Não me posso persuadir de [que] um Governo Constitucional se lembrasse de criar um privilégio exclusivo dos Reverendos Franciscanos, mandando a Ilustríssima Câmara designar o lugar do Cemitério, visto que o Provisório estava arruinado, esta designou algumas sepulturas dos Claustros e o pouco terreno que fica entre o Convento e a Ordem Terceira de S. Francisco.646 Como afirmado, este conflito entre os dois religiosos tem sua origem na primeira metade da década de 1860, quando o vigário de Alagoas deflagrou suas primeiras acusações contra o guardião e contra o convento (ROSSITER NETO, 2019), especificamente sobre o sepultamento da população. Em outro ofício, de 26 de outubro de 1864, com o conflito em 646 Idem. 706 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X curso, comunicou sua insatisfação quanto à decisão da Câmara Municipal. Incluso, citava a quantia de quinhentos mil réis (500$000) dada pela Secretaria do Ministério do Império para o princípio de ereção de um cemitério geral na freguesia, quantia aquela que, segundo ele, constava um montante de aproximadamente um Conto de réis (1:000$000 ) por ter-se dado 647 juros; além de uma quantia entregue pela Assembleia Provincial de três milhões e quinhentos mil réis (3:500$000), ao assegurar lugar apropriado para construção do cemitério . Entretanto, 648 no oficio de 1868, o Padre esclarecia que tal projeto desandou, tendo apenas o alicerce da frente sido erguido; ainda, a quantia de quinhentos mil reis para o cemitério público havia sido empregada na Caixa comercial de Maceió, pelo cidadão José Fernandes de Oliveira Santos, “que os meteu a juros”, por ordem do Governo. Subsequentemente, mandou vender as ações, de maneira que, tendo-se despendido com o alicerce, apenas um conto de réis, foi deduzido do donativo e seus juros chegavam, aproximadamente quatro mil réis(4$000) do que fora acordado . 649 [...] a partir dessas e de outras leituras em fontes oficiais, é possível saber que, embora as câmaras estivessem desde 1828 com as suas atribuições esclarecidas pelo governo imperial, em Alagoas, as cidades se mantiveram durante muito tempo carentes de uma regulamentação quanto ao seu ordenamento e atendimento às necessidades do espaço habitado e da sua população, inclusive no que diz respeito ás providências para a construção de cemitérios públicos (MAGALHÃES, 2018, p. 239). Neste caso, a tutela da atividade por parte de agentes seculares e clericais, não garantia seu cumprimento, que dirá a qualidade deles. Além disso, é evidente que a constante presença desses conflito, exprime que a escrita das regulamentações e do emprego das verbas não implicava, necessariamente, na concretização das obras à serviço da população. Apesar do processo de construção que se deu até aquele ponto, da determinação da Câmara Municipal, e a aprovação do Governo para as obras de conclusão do cemitério público, a gestão das almas, permaneceu sob gerência dos reverendos do convento de São Francisco. Ainda no ofício de 1868, o Pe. Domingos José acusou os franciscanos de exigirem 647 Vigário de Alagoas. Ofício ao Deão da Catedral de Olinda Dr. Joaquim Francisco de Farias; Arquivo Público de Alagoas 648 Idem. 649 Vigário de Alagoas. Ofício ao vice presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1681; IT, 1868. 707 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X cinco mil réis (5$000) pela sepultura; “isto é sendo pobre o finado, pois sendo rico pode chegar a mais de seis mil reis (6$000)” . Anexo ao oficio de 1868, o vigário remeteu à vice-presidência 650 uma cópia da conta paga para uma “infeliz que nada tinha para sepultar-se”; a finada Romana do Nascimento, sepultada no Convento de São Francisco no dia 21 de agosto de 1868. Desta 651 conta, possuidora de todos os custeios do sepultamento, com recibo do Frei Luis da Divina Pastora datado de 26 de agosto de 1868, é possível compreender qual destino esses recursos atendiam. Além dos custeios, esperados: caixão e sepultura, dois mil e cinco mil réis, respectivamente, pode-se evidenciar o custo reservado para os direitos paroquiais e celebração da cerimônia e ritos fúnebres, neste caso: mil e oitocentos (1$800) réis, que compunham pouco mais de 20% do orçamento total custeado. O Vigário, conclui seu oficio fazendo uma contundente reclamação: Eis aqui o privilegio, e da conta se depreende que é melhor ser Guardião de S. Francisco que vigário das Alagoas; porque este tem responsabilidade e aquele por nada responde, tanto mostrado com clareza o privilégio exclusivo. Falarei agora sobre a finta levada sobre o povo, de maneira que a quatro anos tendo-se sepultado mais de quatrocentos cadáveres é um dinheiro exímio que tem entrado para aquela casa sem utilidade alguma. Não contando ainda as visitas de covas privativas do Convento652. Considerações finais Conflitos como o este, carecem de uma questão: onde se iniciava a jurisprudência do Estado e terminava a da Igreja? Para além da eloquência com que estes grupos beligerantes propagavam suas acusações, injurias, defesas, martírios, etc. O que fica claro é a obstinação com que eles lutaram nas esferas institucionais para estender sua influência. Ao considerar que os conflitos ocorridos na gestão pública se deram devido a adaptação de seus membros às mudanças de cunho filosóficos, científicos e eclesiológicos (regalismo e ultramontanismo), é possível ver que este fenômeno de crescente afastamento, já consolidado em meio as estruturas do Estado Imperial, apontava para uma crescente insustentabilidade do padroado Régio, visto que: segundo Coutrot, 650 Vigário de Alagoas. Ofício ao vice presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1681; IT, 1868. 651 Idem. 652 Idem. 708 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O religioso informa em grande medida o político, e também o político estrutura o religioso. Colocando questões que não se pode evitar, apresentando alternativas, ele força as Igrejas a formularem expectativas latentes em termos de escolha que excluem toda possibilidade de fugir do problema. (COUTROT, 2003, p. 335) Inclusive, esta abordagem permite também estudar os efeitos dessa transição na província de Alagoas em meio a crescente pluralização de crenças do final do século XIX, assim como de que forma a elite eclesiástica prevaleceu após a separação oficial do poder temporal. [...]sem contar as remanescências e as permanências. A religião continua a manter relações com a política, amplia mesmo seu campo de intervenção e diversifica suas formas de ação, de tal forma que o assunto é de grande atualidade.”. (COUTROT, 2003, p. 335). A presente análise buscou esmiuçar a rica gama de informações disponíveis nas fontes oficiais da Igreja católica, assim como sua relevância para a história social de Alagoas. Apesar de seus limites, foi possível ponderar a respeito da gestão do cotidiano da província, da precariedade das vilas e cidades, e sobretudo dos conflitos oriundos do choque entre os diversos agentes clericais e suas repercussões para a população. Por exemplo, a decisão do governo civil que acabou subjugando a jurisprudência do vigário, responsável pelos ritos fúnebres dos cristãos de sua freguesia, à deliberação do Guardião do Convento. Referências bibliográficas ■ Fontes: Arquivo Público de Alagoas Caixa 377; IT, 1859. Caixa 999; IT, 1864. Caixa 1681: Vigário da província de Alagoas; Center for Research Libraries: Global Resources Network Alagoas (Provincia) Presidente (Pereira de Alencastro) Relatório 10 de Junho de 1867. ■ Bibliografia BLOCH, Marc. Apologia da História, ou O oficio do Historiador. Rio de Janeiro :Zahar, 2001 709 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X CARVALHO, Cícero Péricles de. Formação Histórica de Alagoas.4ª Ed. – Maceió: EDUFAL, 2015. COUTROT, Aline. Religião e Política; Rémond, René (Org). Por uma História política; Tradução Dora Rocha. – 2 ed. – Rio de Janeiro: Editora: FGV, p. 331-363, 2003. 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Ou melhor tudo o que êles não querem”: relação entre Igreja Católica piauiense e regime militar no O DOMINICAL (1964-1972) Mariana Rita de Paula * Resumo: O trabalho propõe-se a analisar como a Igreja Católica piauiense reforçava ou criticava o que era propagado pelo regime militar, principalmente através do jornal religioso O DOMINICAL. Pretende-se analisar através das fontes hemerográficas como o regime estabeleceu seu controle e repressão não só no campo das leis, mas no nível micro, nos discursos, nos comportamentos, nas manifestações de gênero – entendidas através de Scott (1995) –, a partir da noção de Utopia Autoritária apresentada por Carlos Fico (2004); e como a Igreja Católica se posicionava quanto a esses discursos e intervenções. Palavras-chave: História. Regime Militar. Igreja Católica. Introdução Este trabalho pretende compreender como o discurso repressor que o regime militar utilizou para estabelecer um controle dos indivíduos em certos pontos reverberava, positiva e negativamente, dentro do discurso religioso veiculado no jornal O DOMINICAL, dentro do recorte estabelecido pelas fontes encontradas e analisadas, de 1964 a 1972. Pretende-se entender como se posicionaram os membros da Igreja Católica Piauiense sobre aquilo que o regime militar defendia, e como eles expuseram e debateram isso por meio da mídia. Metodologia A metodologia desta pesquisa funda-se num casamento entre uma abordagem qualitativa de estudos bibliográficos sobre obras que discutem acerca do tema e a investigação das fontes hemerográficas, matérias dos jornais O DOMINICAL, especialmente, e do A HORA. O jornal O DOMINICAL foi um periódico criado e construído por membros da Igreja Católica Piauiense e, por esse motivo, é visto como capaz de oferecer, enquanto fonte, as * Graduanda do curso de História pela Universidade Federal do Piauí. 712 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X visões, representações e percepções dos diferentes membros da Igreja e sua diferentes opiniões. Segundo a historiadora Luciana de Lima Pereira (2015, p. 148) “O jornal O DOMINICAL foi criado por Dom Severino Vieira de Melo, em 21 de fevereiro de 1937”, se pretendia um “Semanário de Orientação Católica”, como apresentava em seu corpo, um guia, e tinha como “plano de ação [...] ‘levar o pão da doutrina’ ao indivíduo, ao lares, às famílias e à sociedade.” (p. 149). Resultados e discussão Percebeu-se através da análise da bibliografia e das fontes que o regime militar alimentou representações de indivíduos que não se encaixavam com um modelo ideal que os militares aceitavam/cultivavam e pretendiam na época, por meio da noção de uma “Utopia Autoritária” sonhada que, segundo Carlos Fico (2004, p. 30), se constituía na “crença de que seria possível eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo, ‘subversão’, ‘corrupção’) tendo em vista a inserção do Brasil no campo da ‘democracia ocidental e cristã’” ; e assentava-se na crença em uma superioridade militar sobre os civis, [...] se realizava em duas dimensões: a primeira, mais óbvia, de viés saneador, visava “curar o organismo social” extirpando- lhe fisicamente o “câncer do comunismo”. A segunda, de base pedagógica, buscava suprir supostas deficiências da sociedade brasileira. [...] Enquanto os primeiros eliminavam, mesmo fisicamente, comunistas, “subversivos” e “corruptos”, as duas últimas buscavam “educar o povo brasileiro” ou defendê-lo dos ataques à “moral e aos bons costumes”. (FICO, 2004, p. 38-39) O que indicava os dois caminhos de onde partiam as repressões dos militares no contexto da ditadura, aos campos em que eram percebidas possíveis ameaças ao regime: a atuação no âmbito político-ideológico e no âmbito moral. Essa ação dos militares era direcionada aos indivíduos que se enquadravam nas representações que se tinha no momento dos comunistas e subversivos, e, dessa maneira, como aponta Chartier (1990, p 17), as representações do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e as práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a 713 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Assim, compreende-se que os perfis dos indivíduos que eram vistos como ameaça ao regime militar nesse caso eram representações de um grupo específico com uma gana saneadora e pedagógica que buscava se impor e que geravam ações, reações, práticas, como eram os casos dos inquéritos e das prisões desses indivíduos. Já no âmbito local piauiense, sobre o ponto de dissidência encontrado entre os discursos, através da pesquisa pode-se compreender que os membros da Igreja Católica que redigiam O DOMINICAL discordavam do alargamento que o regime dava ao termo subversão, e o medo que isso gerava, uma associação com a representação, a imagem, do indivíduo subversivo e/ou comunista. As pessoas que se envolviam com temas, com discussões, com pessoas que eram vistas como subversivas e/ou comunistas poderiam ser preso ou seria chamado a depor. O problema era que na época a Igreja Católica Piauiense sob chefia e atenção do Arcebispo Metropolitano Dom Avelar Brandão Vilela se relacionava muito diretamente com os problemas do campo e com a construção de sindicatos rurais. Na época tinha-se medo de que as Ligas Camponesas se infiltrassem no meio rural e influenciassem os indivíduos que moravam no campo, por conta de eram vistas por alguns membros da Igreja como “comunistas” – algo que a Igreja Católica se opunha fervorosamente porque acreditava que o comunismo influenciava uma ideologia ateia que atacava os preceitos da Igreja. Então, alguns indivíduos membros da Igreja foram associados como comunistas e subversivos por conta dessa relação feita pelos militares no contexto piauiense, mesmo quando os próprios indivíduos se declaravam claramente contra o comunismo e não emitiam discursos subversivos, de desagrado ao regime e aqueles que estavam no poder na da época. Como foi o caso de Manuel Emílio que trabalhava na Organização Sindical no meio rural, no Piauí, e também era cronista do jornal O DOMINICAL. Em uma de suas publicações no periódico ele aborda o episódio de sua prisão: Devido às minhas atividades justo ao trabalhador rural, fazendo sindicalismo, assessorando sindicatos, de forma a participar do processo de concretização e politização doo pequeno lavrador para dar-lhe possibilidades de uma vida 714 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X condizente com sua dignidade de pessoa humana, estive prêso, após a Revolução de Março, 12 dias. Acusado, ao que me parece, de atividades subversivas ou comunizantes, não me lembro bem. Como as acusações e denúncias que me foram feitas eram desprovidas de quaisquer fundamentos e ate ridículas para as pessoas de bom senso, no dia em que ouvido pelo chefe do IPM, major Nogueira Diógenes, fui posto em liberade e devolvido ao convívio dos meus. Na verdade, nunca fui comunista. Nem mesmo simpatizante do comunismo. Simplesmente porque sempre acreditei em Deus. [...] (OLIVEIRA, 1964, p. 2) Assim, torna-se visível que arbitrariamente por conta de condutas percebidas como não condizentes às características, às inclinações pessoais que os militares afirmavam como as corretas, os indivíduos, mesmo que não se posicionassem contra o governo; mesmo que fossem declaradamente contra o comunismo, como queriam os militares; ainda assim eles poderiam ser alvos de suas repressões, da ação dos tentáculos locais do regime. A opressão e o controle do regime militar sobre os indivíduos iam além da condição política, todos aqueles que ameaçavam minimamente a “utopia autoritária” do regime – que, como foi abordado anteriormente, se baseava na eliminação da subversão e da corrupção para alavancar o Brasil – encontrava-se na mira dos militares. E essa necessidade saneadora excessiva era um ponto de discordância entre membros da Igreja Católica Piauiense e o regime militar no âmbito local. Como a historiadora piauiense Marylu Oliveira expôs em sua obra “Contra a foice e o martelo”, onde a autora busca compreender as representações dos indivíduos vistos como comunistas veiculadas nos jornais, e propagadas/utilizadas pelo discurso militar: Era muito fácil ser identificado como comunista na década de 1960, no Brasil, mais especialmente no Piauí, e mais particularmente ainda na capital do Estado. Bastava que o indivíduo apoiasse as Ligas Camponesas, ou a reforma agrária; que se identificasse com o nacionalismo; militasse em movimento estudantil e organização de bairros; participasse de movimentos eclesiais de base; reivindicasse mais urbanização para o centro da cidade. Eis o perfil do comunista construído pelos discursos dos jornais e instituições oficiais da época. (OLIVEIRA, 2007, p. 47) 715 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sobre essa perseguição específica a aqueles que se relacionavam com o âmbito rural e com os processos de politização e de construção de um amparo intelectual e econômico para estes, na coluna “Em tôrno de tudo” o Pe. Luís Soares declarou “Antes, camponêses era manchete; agora, é palavra proibida.”. E, assim, ao tratar sobre a Doutrina Social da Igreja, principalmente por meio da Encíclica Mater et Magistra, uma matéria traz a manchete no jornal: “Doutrina Subversiva?” (DOMINICAL, 1967, p. 2), possivelmente pelo fato da encíclica tratada na coluna tratar sobre as problemáticas do campo, mesmo de maneira não acusatória, como aponta Manuel Diégues Junior (1961, p. 1) “propõe um programa de revisão das estruturas rurais”, embora “sem se referir diretamente a uma reforma agrária”. O discurso veiculado pelo O DOMINICAL, dessa maneira, ia de encontro à visão do apoio aos trabalhadores do campo, e atenção aos problemas no contexto rural, como comunistas e/ou subversivas. Sobre essa ampliação arbitrária e exagerada da noção de comunismo e, principalmente, de subversão, e de vontade de uma adequação dos indivíduos em uma conduta inofensiva irreal que acusou diversas pessoas, o jornal O DOMINICAL publicou diversos artigos e crônicas. Entre elas, está a discussão minuciosa da palavra Subversão que Pe. Raimundo José fez em sua coluna, [...] Ela se tornou bifronte. [...]. Assumiu 2 faces. Uma face fantasma. E uma face fantoche. [...] A face fantasma se tornou temida. Quem vê apenas êste aspecto não dorme mais direito. Vive sobressaltado. Com receio de ser acusado de subversão. Muitas vêzes com mêdo de ser descoberto de subversão. Mas de ser encoberto com sua máscara. Porque quase tudo é possível principalmente no campo dos fantasmas. E é terrível ser taxado de subversivo. É fatal. Não há taboa de salvamento. A face fantoche revelou se temerária. É a face usada por muitos oportunistas contemporâneos. Subversão para êles é tudo o que êles querem. Ou melhor tudo o que êles não querem. (AYREMORAES, 1964, p. 6) O que demonstra a indignação com as ações e os discursos proferidos pelos militares – mesmo que não dito explicitamente, mas o contexto e os acontecimentos nos permitem 716 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X interpretar dessa forma – em nome de uma “defesa”, em nome da tão idealizada “segurança nacional” e da “utopia autoritária” que serviam arbitrariamente para atender suas vontades de controle, seus interesses próprios, e não os do povo. E sobre essas práticas repressivas, o regime não se limitou à repreensão de uma representação de individuo no âmbito político e ideológico, mas também agiu como censora à moral, ao que diz respeito aos valores, ao campo micro dos usos do corpo, dos cabelos. Sobre isso, Carlos Fico expõe: A censura moral e política integrou o aparato de repressão política da ditadura e também expressava a existência das dimensões saneadora e pedagógica da utopia autoritária que temos mencionado – pois é evidente que a censura moral tinha uma pretensão pedagógica quando procurava evitar que os ‘atentados à moral e aos bons costumes’ corrompessem a sociedade brasileira. (FICO, 2019, p. 84-85) Esse, por outro lado, era um ponto de encontro, de coro do discurso dos militares e o discurso da Igreja Católica Piauiense no O DOMINICAL. Ficou perceptível pela análise dos jornais que no campo da moral, na pretensão de controle e vigilância dos corpos os discursos da Igreja presentes no DOMINICAL e os discurso do regime militar se encontravam. Entendeu-se a partir da análise, que se tinha na época no discurso do O DOMINICAL um modelo adequado de comportamento e expressão e um modelo inadequado, execrado, criticado, “transviado”. Sobre isso, Dom Avelar Brandão em sua coluna afirmava: Entre os jovens, existem aquêles que se apresentam como filhos-família, dentro de uma linha tradicional e elegante, mas discreta. E também aquêles que se sentem atraídos pela revolução, das idéias sociais mais avançadas, na sêde de tudo reformar, de tudo modificar, como se a salvação consistisse apenas em mudar a face da terra. Enquanto isso, surgem aquêles que se apresentam, com ou sem idéias, mas de acôrdo com o figurino dos últimos tempos, com vestimentas, cabelos e modos exóticos, a despertarem curiosidades, a provocarem reações, a atraírem solidariedade. 717 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X [...] Gostaria de ver a juventude mais tranqüila, menos extravagante na sua apresentação, mais ordenada em seus movimentos, mais preocupada com os grandes problemas da nossa realidade. (VILELA, 1966, p. 8) Entre esses indivíduos que não se encaixavam com o ideal proposto pela Igreja e pelo regime militar estavam os homens que utilizam os cabelos grandes, estes citados por Dom Avelar no trecho acima como “aquêles que se apresentam, com ou sem idéias, mas de acôrdo com o figurino dos últimos tempos, com vestimentas, cabelos e modos exóticos, a despertarem curiosidades, a provocarem reações, a atraírem solidariedade.” oposto ao filho-família. Esses que por vezes eram chamados também de “cabêludos” eram homens que naquela época adotavam os cabelos compridos – algo considerado próprio do gênero feminino - como maneira de expressar sua inconformidade com os padrões sociais anteriores, ou como forma de se expressar esteticamente de acordo com os novos grupos juvenis culturais. Uma das notícias abordava a ideia de um “problema dos cabeludos”, como uma questão a ser debatida politicamente em Teresina, no qual a juventude deve ser direcionada em seus caminhos, pois “Os jovens de hoje são os homens de amanhã. Não precisamos tanto de jovens ‘originais’ como de jovens conscientes.” (O DOMINICAL, 1966, p. 4). Outra falava da confusão e transparecia o desconforto com indivíduos do sexo masculino de cabelos compridos e calças apertadas (MONTE, 1965, p. 5). Esse discurso propagado pelo jornal, segundo Luciana Pereira (2015, p. 149) se encaixava no papel que esse periódico possuía de Nesse contexto [do período de circulação do jornal], a instituição eclesiástica, por meio de um aporte da imprensa O DOMINICAL, maximiza o seu poder de influenciar os costumes e os valores sócio-religiosos praticados pelos teresinenses, além de contribuir para a construção de identidades. Assim, ela, no intuito de adequar os fiéis ao modelo de sociedade cristã, tentava construir e controlar os corpos e mentes de homens e mulheres, os quais poderiam ser forjados por práticas, produzindo modos de ser feminino e masculino na neocristandade para adequar ao modelo de família católica. Esse desagrado com esses indivíduos era algo compartilhado com os militares no contexto da época, segundo a notícia do jornal A Hora: 718 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X POLÍCIA QUER CORTAR CABELO DOS “HIPIES” O Capitão Astrogildo Sampaio, da DOPS, prendeu, ontem pela manhã, quatro “Hipies” em poder deles apreendeu cerca de um quilo de maconha que eles dizem haver adquirido dos índios “guajajara”, no Maranhão. [...] os quais vão ter as malenas cortadas pelo barbeiro da Polícia. Aliás, é pensamento do Capitão Astrogildo prender, cortar o cabelo e deportar do Piauí todo “hipie” que aqui chegar. (A HORA, 1972) A matéria traz a notícia de apreensão de indivíduos considerados “hipies”, outra forma de existência que a juventude experimentava naquele período para se pôr contra os padrões sociais esperados, e a declaração do Capitão do Dops no estado sobre ter cortado as malenas (ou melenas), os cabelos compridos, dos sujeitos apreendidos em sua ação. Como foi explorado, a exibição da cabeleira comprida nos homens da época era vista como uma manifestação de afronta às normas sociais, morais e de gênero da época, a ação do capitão de cortar os cabelos dos hippies naquele momento, e, principalmente, a alegação de intenção/ameaça de cortar os cabelos de todos os outros que viessem ao Piauí demonstra o desagrado com o posicionamento político e moral exposto pelos hippies e sua expressão política corporal de gênero. Apresentando neste discurso e na ação a dimensão moral do regime. Conclusão Dessa maneira, foi possível perceber que o discurso de repressão do regime ditatorial pretendia se fazer amplo para cercear aqueles que fossem vistos como uma ameaça, aqueles que se ligavam a ideia de comunismo, seja pela ideologia e pela atuação social, seja pelo comportamento e as noções de moralidade. O discurso da Igreja Católica Piauiense se desencontrava do regime em sua noção de subversão, porém sobre o ideal moral do indivíduo, da juventude, dos corpos e expressões de gênero, a Igreja acabava reforçando os discursos pedagógicos de controle e padronização. Bibliografia CHARTIER, Roger. A história cultural: entre prática e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 719 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. O problema rural na encíclica “Mater et Magistra”. Revista Síntese Política Econômica Social. Rio de Janeiro, 1961, vol. 3. n. 11. pp. 37- 46. 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Hoje, principalmente, em âmbitos mais conservadores, é possível observar a permanência desse ideal, que delineia, que demarca a mulher “boa esposa”, da chamada “mulher de vida fácil” (dentre outros termos pejorativos utilizados). Perpassando a discussão sobre o papel da mulher na sociedade, é necessário demonstrar como esse papel se dá frente as tensões relacionadas ao poder. Entende-se o poder, especificamente, como a capacidade de ação política e social, geralmente ligado a homens; às mulheres se costuma legar papel secundário no exercício desse poder. Como se verá neste artigo, ao tratar da relação entre a estratégia da Maçonaria e as mulheres da sociedade alagoana do século XIX, em que se buscou recrutá-las para o seu lado no conflito da Questão Religiosa que se seguia, tal poder feminino era visto como um apoio, força auxiliar, geralmente desempenhando seu papel no âmbito privado (na medida em que o lar era o meio de ação da mulher), e deveria estar alinhado com um determinado projeto político/social (costumeiramente masculino), que tenderia à manutenção de valores tradicionais defendidos ou a alguma visão tida naquele período como progressista. Conforme diz Perrot: “A ação das mulheres no século XIX consistiu sobretudo em ordenar o poder privado, familiar e * Mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). 721 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X materno, a que eram destinadas (PERROT, 2020) . Tendo como base esse ponto de vista e 653 levando-se em consideração as nuances da sociedade alagoana do período (1874-1875), buscouse analisar como esta modalidade de poder atribuído a mulher pôde auxiliar a causa da Maçonaria, contra o chamado movimento jesuíta e/ou ultramontano, num debate em que as duas ideologias tentavam se manter dominantes . 654 A imprensa maçônica alagoana Para situar o objeto desse estudo dentro da questão proposta, é preciso antever o perfil da imprensa regional no período. Palco de conflitos políticos, a imprensa alagoana do século XIX, era marcada por tons de protesto e defesas de causas específicas, defendidas por segmentos de intelectuais da província, geralmente ligados a elite local, e se debruçavam sobre variados temas e assuntos. Segundo Goulart Andrade: O jornalismo alagoano teve sempre, desde os primeiros tempos de seu estabelecimento, feição essencialmente político-partidária; algumas vezes o calor e o exagero da linguagem na defeza do interesse dos partidos, tocaram aos excessos655. Dentro desse cenário de predominância de uma imprensa com caráter político militante, o periódico Labarum – Órgão da maçonaria, surgiu para dar conta do conflito gerado pela Questão Religiosa no território de Alagoas, na época sob jurisdição eclesiástica do bispado de Olinda, em Pernambuco. Alvo das excomunhões praticadas por parte do papado, os maçons utilizaram como principal meio de propagação das suas ideias (assim como outros órgãos sociais, partidos Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema mulheres e poder ver: As mulheres, o poder, a história. In.: PERROT, Michelle. Os excluídos da história: Operários, mulheres e prisioneiros. PARTE II: - Mulheres. Pp. 177-196. – 9ª ed. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. Tendo-se como base a definição de ideologia como “uma função da relação de uma elocução com seu contexto social.” (EAGLETON, Terry. O que é ideologia? In.: Ideologia. Uma introdução. Pag.: 22. São Paulo. Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997). ANDRADE, Goulart. ESTUDOS SOBRE O JORNALISMO ALAGOANO. In.: COSTA, Craveiro; CABRAL, Torquato (org.). Indicador Geral do Estado de Alagoas. Maceió/AL: EDUFAL; Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2016. p. 158. 653 654 655 722 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X políticos principalmente) os folhetins e jornais. Grande parte da estratégia do Labarum, consistia em questionar o poder papal, principalmente a infalibilidade: E tudo isto devido a inconsideração ultramontana, que não trepida de agitar no ultimo concilio questões as mais graves e difíceis – como a infalibilidade essa moderna praça de Gréve da razão e da liberdade! (Labarum, Maceió, p. 1, 31 de out. 1874). O princípio da Infalibilidade do Papa, reforçada por Pio IX na bula Syllabus errorum, era alvo das principais críticas por parte dos maçons, tida como a principal causa da intolerância que sofriam todas as demais denominações religiosas ou filosóficas, não abarcadas pelo catolicismo. Ainda, em uma edição do ano seguinte, dizia o periódico: Intolerantes, que não vêem o abysmo que cavam, insuflados pelos brados da – infalibilidade, a mais monstruosa imposição dos tempos modernos, o maior sacrilégio contra as doutrinas do Crucificado, aspirando o levantamento da teocracia papal com o seu cortejo de crimes – estabelecendo o horroroso império sobre o cidadão e sobre o homem! (grifo do autor). (Labarum, Maceió, p.1, 11 de março de 1875). Além disso, contradizer os ensinamentos da Igreja e desacreditar a moral do clero diante da população e das autoridades políticas eram elementos presentes no discurso da imprensa maçônica. Na medida em que se desenrolava o conflito religioso e político/social, os embates entre a Maçonaria e a Igreja desembocaram na esfera do privado. Organizar a população e alinhá-la a prática de um catolicismo reformado, fazia parte do avanço do clero ultramontano; contradizer essa organização católica tida como intolerante e angariar apoio da população era a estratégia da maçonaria. Nesse ínterim, a esfera da vida privada, na qual o papel atribuído a mulher (especificamente a mulher esposa) era a de mantedora da harmonia no lar, acabou sendo levada, em certa medida, para o plano do conflito. As mulheres na imprensa do século XIX 723 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Ligada as transformações que ocorriam nos espaços urbanos nacionais no século XIX, a imprensa se tornou o lugar para discussão e representações diversas. Servindo aos interesses de grupos e ideologias que dela se serviam para propagar seus ideais, a imprensa logo se tornou uma atividade de alta produtividade, sendo inúmeros os periódicos que circularam na nação no período. Dentro dessa diversidade de temáticas, a ocupação das mulheres nesse ambiente, ligado à vida pública, em específico um espaço dominado por homens, se deu de forma um tanto sufocada: A constituição da esfera privada, enquanto aquela cabível às mulheres, e a pública, enquanto espaço masculino, carrega consigo inúmeras consequências que, a longo prazo, acabaram desencadeando a institucionalização de práticas imperiosas, nas quais as desigualdades de gênero são característica marcante. De acordo com Biroli (2014) “é uma forma de isolar a política das relações de poder na vida cotidiana, negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho e das relações familiares” (BIROLI, 2014, p. 31)656. No decorrer do século XIX, esse era o cenário em voga no Brasil. Ultrapassar a barreira do privado ia de encontro à toda uma conduta institucionalizada. A imprensa, nessa conjuntura, enquanto espaço público, tardiamente incorporou elementos “cotidianos” em suas discussões. As mulheres, salvo algumas exceções, também demoraram a se inserir nesse espaço.657 Nessa observação feita por Rodrigues (Rodrigues, 2017, p. 58), a qual perpassa também a problemática do papel de gênero na sociedade, e do que se esperava da mulher nesse quesito, é ressaltado como as mulheres demoraram a se inserir nesse espaço. Porém, com a crescente demanda das transformações sociais que ocorriam, a esfera do privado, onde atuava a mulher, logo passou a ser alvo de interesse da imprensa. Nesse ínterim, em conformidade com o ideal da nação sobre o papel da mulher, a imprensa da província de Alagoas atuou com um reforço dessa concepção da mulher como boa esposa e administradora do lar. Segundo Silva (2019, p. 128), no que diz respeito à 656 BIROLI, Flávia. O Público e o Privado. In: MIGUEL, Luis Felipe. BIROLI, Flávia. Feminismo e Política: uma introdução. São Paulo: Boitempo. 2014. 657 RODRIGUES, Dayanny. Escritos de e para mulheres no século XIX: o conceito de emancipação e a representação feminina no jornal das senhoras. In: Revista Outras Fronteiras. Vol. 4, n 1, jan/jul., 2017. p. 58. 724 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X concepção da mulher ideal na imprensa, em contraste com outras formas de comportamento feminino relatadas: Não havia espaço para o diferente, para o contraditório. Todas as mulheres deveriam permanecer no espaço privado, cuidar de seus filhos, sonhar em casar, dentre tantas outras características discutidas anteriormente. A imprensa, como um espaço de poder discursivo dentro da sociedade, acabou endossando em suas publicações o ideal de mulher submissa, perfeita, quase que separada de características inerentemente humanas.658 Tal visão era predominante não só numa vertente mais conservadora como também 659 numa vertente dita liberal. Como se verá no presente artigo, mesmo com a bandeira hasteada do progressismo e se julgando sua defensora, a Maçonaria, ao inserir no debate o âmbito do privado como campo em disputa com o avanço das ideias ultramontanas, reforçava tal visão de mulher ideal. As mulheres na imprensa maçônica alagoana do século XIX e o combate ao jesuitismo Ao trabalhar com o periódico Labarum, nota-se a presença de certos casos de intolerância relativos aos sacramentos (nascimento, casamento e falecimento). Como caberia aos padres ofertá-los à população, não raros são os casos, no periódico, de vigários que se negaram a dispensar os sacramentos para os declarados fiéis maçons. Tal atitude tinha por objetivo encorajar os católicos (especificamente homens, já que mulheres não eram aceitas na fraternidade maçônica) a abjurar à Maçonaria. Nesse âmbito havia como estratégia complementar o apelo que os frades católicos faziam às esposas dos maçons. Há no periódico notas como a seguinte: Fra Cattaniceta fazendo brilhaturas. - Escreve-nos das Alagoas: Nesses últimos dias o ilustrado Fra Cattaniceta, em suas predicações, com a lingoagem verbosa e algaravica que lhe é peculiar, tem derramado sua bílis SILVA, Élida Kassia Vieira da. “Boa esposa, recatada e do lar”: o padrão de mulher ideal nos periódicos de Alagoas (1870-1899). In.: Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 11, Set/2019. p. 128. 659 Entendendo-se por conservador uma concepção, muitas vezes de cunho religioso, que ordenava os papéis dos sexos na sociedade, na qual a mulher/esposa deveria ser obediente ao homem/marido. 658 725 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X furiosa contra os maçons. Não sabemos qual o damno que os maçons causarão a esse frade! Espalhando, como tem por digno costume, as doutrinas mais perniciosas, calumniando a respeitável ordem maçônica, induzindo as mulheres a fugirem, logo que saibão que seus maridos a ella pertenção, os filhos a faltarem com as devidas atenções á seus pais, esse aza negra (tenha paciência o Reverendissimo) breve será o motor de anarchia seria, antifamiliar, social e religiosa. (Labarum, Maceió, Ano I, Nº 4, 2 de Outubro de 1874). O fragmento acima se refere a um frade (figura recorrente nas críticas do periódico) que estaria encorajando as esposas a fugirem dos seus maridos, ao descobrirem que eles estavam vinculados à Maçonaria. Cabe ressaltar que a figura da mulher estava estritamente ligada à esfera do privado no período estudado. Compreende-se que a acusação do periódico ligava a fala do frade, em encorajar a fuga das mulheres do lar onde há um maçom, a uma ameaça à família, a ordem social e a própria religião. Cabendo a mulher a tarefa de organizar o lar, o incentivo ao abandono desse ambiente pelas mesmas podia ser encarado como “o motor de anarchia” que ameaçaria a ordem social. Era esperado da mulher (e ambas as instituições, a Igreja e a Maçonaria, afirmavam isso em seus discursos) que apoiasse o seu marido e prezasse pela unidade de seu lar. Outras acusações feitas pelo periódico eram relativas à negação do casamento: Facto, porém, mais horroroso acaba aqui de ter logar com o infeliz súbdito portuguez José Domingues da Cunha. Accommettido de varíola, e sentindo a morte aproximar-se, pede aos amigos confissão e estes trouxeram-lhe o vigário, que o confessou e absolveo. Querendo, porem, José Domingues unir-se com os laços do matrimonio a uma infeliz que o acompanhava em todos os transes de sua vida, e cuja união nutria desejos de legitimar nessa hora extrema, o Rvmº Vigario declarou que o não fazia, nem lhe dava a comunhão porque Domingues era maçon, e só o faria se abjurasse. José Domingues sorprehendido por essa exigência do Vigario, vio despertarse-lhe nesse momento os grandes estímulos que o alimentaram n’uma vida cheia de nobres acções, e repelindo esse ministro, que lhe exigia na hora da morte, nesse momento tão solemne, um acto ignóbil e repugnante à santidade 726 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X dos princípios que como christão havia abraçado, declarou-lhe firmemente que não desceria a abjurar, porque pretendia perante Deos apresentar-se sem essa macula, que pretendiam necessária para morrer como christão. O Rvm.º Vigario, recorrendo a companheira de José Domingues da Cunha, pede-lhe então instantemente que faça intervir perante Cunha a autoridade de seu compadre Antonio Thomaz Pereira a quem o enfermo muito estimava, para faze-lo compreender a necessidade da abjuração. Chegando então Thomaz Pereira, fez sentir ao Rvm.º que não se prestava a aconselhar semelhante infâmia ao seu amigo, porque além d’outras razões que não eram extranhas ao Vigario, devia este estar lembrado que quando há pouco o havia cazado, conhecendo-o como maçon, não se escusara de fazel-o atenta a esportula que recebera. Em meio do todo esse borborinho, dessa luta da sordidez, da hypocrisia e do interesse conta a honra e a probidade, contra a fé e a sinceridade, appareceram algumas pessoas, entre ellas Antonio Gaspar, que conduzindo um crucifixo, o apresentou ao moribundo e pedio lhe que cresse n’aquelle Senhor, que se sacrificára por nos salvar. O imenso povo que nesse momento acudio ao logar do acontecimento, unanimemente reprovou o procedimento do Vigario, que vae assim alienando as sympathias que creara e destruindo a confiança que nelle tinha a população. É assim que vão procedendo esses ministros de Jesus! É assim que se desmoraliza a obra gigante desse martyr, que dizia aos seus discípulos. Curae os enfermos, ressucitae os mortos, alimpae os leprosos, expelli os demônios: dae de graça, o que de graça recebestes, S. Math> X, 8. Pilar, 30 de setembro de 1874. Feliz Peretti. (Labarum, Maceió, ano 1, Nº 4, 2 de outubro de 1874). A negação dos sacramentos foi notícia recorrente nos chamados casos de intolerância expostos no Labarum. No entanto, vale ressaltar a estratégia do vigário de recorrer à figura feminina para interceder em favor da abjuração por parte de José Domingues a Maçonaria. Além de outras acusações, cabe pôr em evidência também a recusa: se tratar de um casamento não aprovado pelo vigário, com base no fato de José Domingues ser maçom. Essa seria uma outra forma de controle da esfera do privado, na medida em que, ao desencorajar as pessoas a 727 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X casarem com maçons e viverem em concubinato, os clérigos conseguiam tornar inviável a união entre maçons e mulheres, que estivessem sob responsabilidade de suas paróquias. Uma forma de angariar as mulheres possíveis esposas para a causa ultramontana. Com isso, tem-se a estratégia maçônica de tentar impedir o avanço do ultramontanismo na mentalidade feminina da província. Passou a fazer parte do discurso presente no periódico uma seção dedicada às mulheres, intitulada “A Mulher na Maçonaria”. O objetivo dessa seção era firmar um ideal de mulher, agente alinhada com o discurso maçônico: De facto. A mulher antiga e a mulher moderna é a parte brilhante e sensível da humanidade, ao passo que o homem é a parte severa e imponente que se prevalecia da supremacia natural de suas inclinações e força para interceptar a luz que resplende na fronte da mulher. Onde há mais sensibilidade, indubitavelmente, há mais inspiração: e onde há mais inspiração, há mais brilhantismo e levantamento de idéas grandes. (Labarum, Maceió, ano 2, Nº10, 29 de agosto de 1875). Sendo esse o ideal de mulher que os maçons evocavam em seu discurso, logo: A iniciação da mulher na maçonaria, especialidade emergente para a grandesa e sanidade d’alma, é um golpe ousado que rompe de frente os inimigos do bem, o jesuitismo, esse parto monstruoso das iras infernaes: é um fim de manifesta vantagem em beneficio da mulher, do homem, da família e da sociedade; porque como diz o ilustrado órgão que citamos, se o jesuitismo lança mão da mulher por todos os modos a seu alcance, por meio do confessionario, para plantar a desordem na família, devemos chamal-a para nós, não por meio de arguciosos embustes e sacrílegas insinuações, sim, pelo meio da verdade, - e aos seus fulgores, que não pode a mentira jesuitia contrabalançar, erguer-se ostensiva e modesta a paz familiar. (Labarum, Maceió, ano 2, Nº 10, 29 de agosto de 1875). Iniciar a mulher na Maçonaria, não de forma institucional, mas ideológica, chamá-la pela “verdade”, não por embustes. Estas foram as argúcias presentes no discurso do periódico. 728 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Uma tentativa de angariar uma aliada na esfera do privado, onde visava-se impedir que o discurso do catolicismo reformado adentrasse. Conclusão Cabe ressaltar que estes espaços aos quais a mulher era chamada a combater, no caso, a esfera do privado e da vida religiosa, ainda assim deveriam ser delimitados de acordo com o que ambas as instituições esperavam dela. Vê-se no discurso, em muitas vezes, uma pretensa pontada de progressismo ao se pretender “iniciar a mulher” na Maçonaria, alinhá-la com suas demandas, num “golpe ousado” que teria por objetivo frear a ação jesuítica (entenda-se ultramontana) nos lares e confessionários. No entanto, a partir do discurso presente no periódico, mesmo com a pretensão de ceder espaço às mulheres, tal era ofertado com um papel muito bem definido a seu sexo; a mulher/esposa ordenadora do lar. O embate entre as duas instituições, logo, não deve ser confundido com qualquer progresso real que visava dar protagonismo de fato às mulheres, e sim como um instrumento de controle na esfera do privado. Mesmo que começassem a despontar já na época algumas reivindicações por parte do público feminino (inclusive a existência de uma imprensa voltada para as mulheres), o paradigma cultural da época ainda era a predominância de uma hierarquização, de uma relação de dominação do homem para com a mulher. Mesmo as próprias ferramentas de que dispunham as vertentes tidas como as mais progressistas da sociedade, elas estavam condicionadas por essa mentalidade organizadora do meio social. Bibliografia CARVALHO, Cícero Péricles de. Formação Histórica de Alagoas. 3ª Ed. – Maceió: EDUFAL, 2015. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3ª Ed. – Rio de Janeiro. – Forense, 2017. COSTA, Craveiro; CABRAL, Torquato (org.). Indicador Geral do Estado de Alagoas. Maceió/AL: EDUFAL; Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2016. EAGLETON, Terry. O que é ideologia? In.: Ideologia. Uma introdução. São Paulo. Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 3ª Ed. – São Paulo. - Edições Loyola, 1996. 729 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X LUCA, Tania Regina de. Fontes Impressas - História dos, nos e por meio dos periódicos. In.: Fontes históricas / Carla Bassanezi Pinsky, (Org.) – 2 ed., 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2008. NASCIMENTO, W. N. O Problema da Metodologia na Prática da Pesquisa Social. 1992. (Apresentação de Trabalho/Conferência ou palestra). PERROT, Michelle. Os excluídos da história: Operários, mulheres e prisioneiros. Seleção de textos e introdução Maria Stella Martins Bresciani; tradução de Denise Bottmann. – 9ª ed. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. RODRIGUES, Dayanny. Escritos de e para mulheres no século XIX: o conceito de emancipação e a representação feminina no jornal das senhoras. In: Revista Outras Fronteiras. Vol. 4, n 1, jan/jul., 2017. p. 54-76. SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de consciência: Os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889). Belo Horizonte/MG: Fino Traço, 2015. SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Uma questão de revisão de conceitos: Romanização – Ultramontanismo – Reforma.Temporalidades - Revista Discente do Programa de Pósgraduação em História da UFMG, vol. 2, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2010. SILVA, Élida Kassia Vieira da. “Boa esposa, recatada e do lar”: o padrão de mulher ideal nos periódicos de Alagoas (1870-1899). In.: Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 11, Set/2019. VIEIRA, David. Gueiros. O protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil. Brasília: EDUB, 1980 (Coleção Temas Brasileiros). 730 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Sacerdócio, ação social e repressão na implantação do regime civil militar: a trajetória de Humberto de Araújo Cavalcanti Séfora Junqueira dos Santos * Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar a pesquisa, em andamento, sobre o padre Humberto de Araújo Cavalcanti, com a qual se pretende investigar sua trajetória, através da análise de documentação do Serviço Nacional de Informações (SNI) disponível no Sistema do Arquivo Nacional e dos arquivos da Cúria Metropolitana de Maceió, a fim de melhor compreender o interesse dos agentes do sistema repressivo do regime civil militar nos sacerdotes brasileiros e, em especial, alagoanos, logo após a instalação do regime. Palavras-chave: Igreja católica. Sacerdotes. Regime civil militar. SNI. Investigação. Introdução Instalado o regime civil militar, em abril de 1964, teve início, por todo país, uma perseguição aos “inimigos do regime” através de uma série de inquéritos policial-militares (IPMs). Um dos investigados, o então padre Humberto de Araújo Cavalcanti, é o objeto deste artigo, no qual se pretende investigar sua trajetória, através da análise de documentação do Serviço Nacional de Informações (SNI) referente à Alagoas, disponível no Sistema do Arquivo Nacional, e ainda não estudada. Humberto Cavalcanti faz parte de um conjunto de sacerdotes progressistas, também investigados à época, envolvidos com questões político-sociais, segundo orientação da Igreja, que, a partir da década de 1950, com a criação dos grupos laicos da Ação Católica Brasileira (ACB), aproximou a atuação do sacerdócio do dia a dia de estudantes e trabalhadores urbanos e rurais. Esta trajetória foi reforçada pelas encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris, publicadas em 1961 e 1963, no papado de João XXIII, e, principalmente, pelo Concílio Vaticano II (1962-65) que ressaltou a importância do envolvimento dos eclesiásticos com as questões de justiça social e dos direitos humanos. Mestre em Modelagem Computacional do Conhecimento, bacharelanda em História pela Universidade Federal de Alagoas e pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões (LIER). seforajunqueira@gmail.com. * 731 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Tal atuação, como vários autores defendem, tornou os sacerdotes alvos do sistema repressivo do regime, considerados agentes subversivos ou comunistas. Espera-se, com este trabalho, parte de uma pesquisa mais ampla cujo objetivo é o estudo das relações entre as diferentes religiões e o Estado brasileiro, colaborar com a compreensão das relações entre o estado autoritário de 1964 e a igreja católica alagoana. O contexto nacional e a trajetória de Humberto de Araújo Cavalcanti Os anos entre 1945 e 1964, instalados entre dois períodos de governos autoritários, de mínima liberdade de expressão e representação política, caracterizaram-se por disputas políticas e ideológicas em gradativa radicalização. Em um contexto econômico e social marcado por processos de industrialização e urbanização crescentes, tramam-se, em paralelo, projetos de democratização da cidadania e inclusão social e o projeto de “um outro modelo político e ideológico de sociedade e de Estado, esboçado bem antes do golpe: a modernização socioeconômica do país e a construção no longo prazo de uma democracia plebiscitária, tutelada pelos militares com nome do ‘partido da ordem’” . 660 Na instalação do regime militar, logo nas primeiras semanas, muitos foram denunciados, investigados e presos. Isso mostra que já havia todo um sistema repressivo em construção nos anos anteriores. Havia antes um órgão de informações, o “não muito prestigioso” SFICI – Serviço Federal de Informações e Contrainformações. O processo se acelerou. O SNI foi criado por lei apresentada em 11 de maio e aprovada em 13 de junho. 661 Entre as diversas categorias profissionais espionadas e citadas nos relatórios dos órgãos de informações, estão os bispos. 662 Desde o início do século XX, a Igreja Católica vinha se engajando nas questões sociais, em reação à separação entre Igreja e Estado, quando os bispos brasileiros, na esteira da orientação do Papa Leão XIII, começaram a “recristianizar a sociedade.” 663 Uma das características deste processo foi a valorização do laicato, através da criação de entidades como a Ação Católica Brasileira – ACB, em 1935, que, a partir da década de 1950, passou a contar com subdivisões como a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Operária Católica 660 NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. Editora Contexto, 2014, p.17-18. GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de Janeiro: Record, 2014, p.93. 662 Op. Cit. p.113. 663 Op. Cit. p.31. 661 732 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X (JOC) e a Juventude Universitária Católica (JUC), que aproximaram o clero dos trabalhadores e dos estudantes e, em consequência, das questões políticas com as quais estavam envolvidos . 664 Em 1952, criada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a liderança empreendida por Dom Hélder Câmara, secretário-geral da entidade por 12 anos, imprimiu à agenda da instituição a prioridade das questões político-sociais, sua preocupação pessoal. Na década de 1960, algumas reformas importantes promoveram os posicionamentos mais progressistas da instituição. As encíclicas Mater et Magistra, publicada em 1961, e Pacem in Terris, de 1963, ambas do papado de João XXIII (1958-63), foram importantes marcos da doutrina social da Igreja, pois buscaram sintonizar as orientações das encíclicas anteriores que tratavam das questões sociais com o mundo secular moderno. 665 Mais tarde, foi o Concílio Vaticano II (1962-65) que pôs a questão da justiça social e dos direitos humanos em primeiro plano. [...] Em linhas gerais, nele se discutiu a importância de o clero não manter suas funções alheias à realidade sócio político-econômica [...]. 666 A Arquidiocese de Maceió, na trilha deste movimento, encabeçada por Dom Adelmo, arcebispo coadjutor a partir de 1955, se dedicou à construção de uma rede de apoio social, que a aproximará, principalmente, do homem do campo, em função do contexto econômico e político do Estado. 667 Ao mesmo tempo, vinha-se reforçando, dentro da Igreja, um discurso anticomunista, cujos traços remontam ao final do século XIX, quando a “instituição vivia um grande temor com relação ao crescimento dos movimentos operários e, sobretudo, ao comunismo presente nestes movimentos” . Tal discurso era indicador de uma instituição enfraquecida, preocupada 668 com a possibilidade de uma perda ainda maior de poder diante das emergentes ideologias socialistas e comunistas. 669 Nesta Igreja que se pretendia “social”, mas não “socialista”, encontram-se muitas “igrejas”. Atitudes progressistas em meio a atitudes conservadoras. 664 Op. Cit. p.32. Op. Cit. p.37. 666 GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de Janeiro: Record, 2014, p.37. 667 Op. Cit. p.32. e MEDEIROS, Fernando Antônio Mesquita de. O homo inimicus: Igreja católica, ação social e imaginário anticomunista em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2007, p.29. 668 GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de Janeiro: Record, 2014, p.26. 669 MEDEIROS, Fernando Antônio Mesquita de. O homo inimicus: Igreja católica, ação social e imaginário anticomunista em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2007, p.39. 665 733 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Paradoxo que explica, em parte, o comportamento das autoridades eclesiásticas diante da instalação do regime militar. Apoio às políticas do Presidente João Goulart, sob lideranças mais progressistas, em seguida apoio à tomada de poder pelas autoridades militares, sob lideranças mais conservadoras, e mais à frente, o gradual afastamento de um regime que se mostrava indiferente, quando não contrário, às bandeiras sociais que a Igreja vinha defendendo havia décadas. Até se tornar, nos anos 1970, um dos principais opositores do regime. Paradoxo que pode explicar, também, por que, embora oficialmente a Igreja Católica tenha apoiado a intervenção dos militares, alguns de seus membros estavam entre os primeiros alvos do sistema repressivo que se deflagrou naquelas semanas. Os relatórios encontrados nos arquivos do SNI mostram que, além de bispos, também muitos padres eram observados. Sua vida foi acompanhada de perto, por muitos anos. Alguns foram denunciados e processados. São informações, listas, relatórios, dossiês que, estudados, podem ajudar a compreender os pressupostos teológicos e políticos, expressos em práticas organizadas nos diferentes movimentos eclesiais, que motivavam a perseguição daqueles sacerdotes, ou seja, quais atitudes e comportamentos do clero eram focos de preocupação e atenção dos agentes do governo e conduziam a identificação daqueles que deveriam ser vigiados. Parte de uma pesquisa mais ampla , cujo objetivo é o estudo das relações entre as 670 diferentes religiões e o Estado brasileiro, em que se configurem as lutas pelos espaços sociais de poder em diferentes temporalidades e espaços geográficos, este trabalho focaliza a igreja católica durante o regime civil militar de 1964, dirigindo atenção aos padres atuantes em Alagoas, cujos documentos do SNI fornecem a possibilidade de reexaminar a forma e as bases do processo persecutório do regime militar, a partir de uma diferente perspectiva. “A elaboração do conhecimento histórico consiste precisamente neste permanente reexame do passado com base em determinadas fontes e a partir de determinados pontos de vista.” [Barros, 2015, p. 144] A abordagem ainda inédita destas coleções com foco nos agentes da Arquidiocese de Maceió oportuniza conhecer um pouco melhor o papel social e político da Igreja Católica em Alagoas, o sistema repressivo do regime civil militar e as relações entre a Igreja e o Estado durante o período referenciado. Esse artigo é parte do projeto de pesquisa em andamento “Agentes e movimentos católicos alagoanos nos arquivos do Serviço Nacional de Informação (SNI), 1964-1979”. 670 734 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Um dos sacerdotes alagoanos encontrados nos documentos produzidos pelo SNI, custodiados no Fundo BR_DFANBSB V8, recolhidos ao acervo do Arquivo Nacional entre 2007 e 2009, em consequência do Decreto 5.584/2005, é o padre Humberto de Araújo Cavalcanti. Natural de Viçosa, Alagoas, Humberto Cavalcanti fez o seminário no Colégio Pio Brasileiro, em Roma, entre 1947 e 1950, quando foi ordenado padre. Ainda na Itália, cursou 671 Teologia e Direito canônico na Universidade Gregoriana de Roma , antes de voltar ao Brasil, 672 em 1951. 673 De volta a Maceió, em poucos meses, Padre Humberto se envolveu com atividades relacionadas à Ação Católica, orientando senhoras nas manhãs de formação e participando de encontros como a Semana Jecista do Nordeste, presidida por Dom Hélder Câmara , como 674 675 mostram registros encontrados no Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió, já nos anos de 1952 e 1953. Abraça, à época, também, a carreira acadêmica, prestando concurso para as cátedras de Filosofia, em 1953, e Português, em 1958, no Colégio Estadual de Alagoas . Lecionou, ainda, 676 no Liceu Alagoano e no Colégio Estadual Moreira e Silva. A tese defendida no concurso ao Colégio Estadual, “Filosofia da Existência em Thomaz de Aquino”, publicada em livro pela Casa Ramalho, dá início a uma carreira literária, sendo seguida pela obra “Presença do transcendente em Jorge de Lima”, publicado pela Imprensa Oficial, em 1958. Após um par de anos, aparentemente afetados por questões pessoais delicadas , os 677 registros do SNI apontam para o gradativo envolvimento de Humberto em atividades de conotação político-social, como conferências, palestras e a gestão de jornais, sendo apontado 671 Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Caderno 1 - Episcopado de D. Ranulpho: Informes, Resenha, Relação, Resumo. 672 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informações, BR DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033 – Neise Annibal Cavalcanti – Dossiê – 30/1/1979. 673 Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Livro do Tombo nº 12, 30v. 674 Relacionada à Juventude Estudantil Católica. 675 Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Livro do Tombo, nº 12, 1952, 138. 676 Suruagy, Divaldo. Humberto Cavalcanti. Jornal Tribuna do Sertão. Notícias. Maceió, AL, 8/10/2014 677 Recorte de número do Jornal Diário de Alagoas, de 30 de janeiro de 1961 comenta o assassinato de uma mulher pelo marido, no bairro do Farol, em Maceió, repercutindo sobre a presença de Dom Adelmo Machado e do Padre Humberto durante o depoimento do criminoso. Documento BR_DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033, posterior, menciona ter sido o padre Humberto flagrado em “crime de adultério” com a Senhora Ivone Barbosa, no dia 4 de julho, pelo próprio esposo da mesma, Senhor Deoclécio Barbosa, tendo este, naquela ocasião morto sua mulher. 735 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X como orientador do Jornal Estudantil do Colégio Estadual de Maceió, diretor do Departamento de Jornal Falado da Rádio Difusora de Alagoas e diretor geral da mesma rádio. Uma relação de autores alagoanos, cujas obras são mantidas no Arquivo Público de Alagoas, publicada pela página ABC das Alagoas, que registra a peça “O Valor Social da Educação”, conferência pronunciada por ele, no Rotary Club de Santana do Ipanema, em 28 de agosto de 1963, é a única fonte alternativa encontrada até agora, que parece corroborar com a tendência identificada nos documentos do SNI. A informação contida no documento BR_DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033, 678 menciona como antecedentes do padre Humberto: Quando Padre, compareceu, como conferencista ao I SEMINÁRIO OPERÁRIO ESTADUAL CAMPONÊS, organizado por elementos esquerdistas. Declarava-se favorável à FRENTE ÚNICA no País, como solução para a resolução dos problemas sociais. Recebia publicações comunistas, nomeou elementos subversivos para o Departamento de Jornal Falado da Rádio Difusora de ALAGOAS, onde era então Diretor. Como orientador do Jornal Estudantil, do Colégio Estadual de MACEIÓ fez publicar uma edição em termos que, obrigaram o Diretor daquele Estabelecimento de Ensino a apreender toda a tiragem. Promoveu palestras no SINDICATO RURAL DO PILAR/AL, junto com elementos reconhecidamente comunistas, conforme apurado em IPM a que respondeu. O texto traz alguns sinais: “elementos esquerdistas”, “publicações comunistas”, “elementos subversivos”. Expressões que podem ajudar a compreender a sequência dos acontecimentos. Instala-se o regime. Inquéritos militares são abertos por todo país, envolvendo pessoas suspeitas de “subversão”, “agitação” e “comunismo”. Políticos, estudantes, jornalistas, 678 Produzida em agosto de 1977, a informação contém uma apuração das informações colecionadas ao longo dos anos sobre o, à época, ex-padre, casado com Neise Annibal Cavalcanti, assessora de segurança e informações do INAMPS/AL, cuja possibilidade de ascensão na carreira preocupou o SNI, por sua relação com Humberto. 736 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X escritores, sindicalistas, assistentes sociais, sacerdotes, entre outros, foram processados, alguns presos e/ou colocados sob constante vigilância, outros torturados, desaparecidos e mortos. 679 O dossiê do SNI mencionado registra que o padre Humberto recebeu prontuário nesta Agência por ter se envolvido em atividades subversivas, tendo sido indiciado em IPM instaurado pela Comissão constituída pela Resolução nº 06/64 em Maceió/AL, encaminhado à Auditoria da 7ª RM em 1964/; que remeteu à Auditoria de Correição da GB com o Processo nº 77/64. Foi incurso no inciso 4º do Art. 2º; Artigos 7º, 9º e 10º, letra "b" do Art. 11º; Artigos 12º, 17º e letra "a" do Art. 34º da Lei 1802/53.680 O documento contém, ainda, o Termo de Assentada do interrogatório ao qual foi submetido em 26 de maior de 1964, em que relata desconhecer o teor da investigação e quem seriam os demais investigados ou testemunhas. Respondendo às perguntas formuladas, Humberto Cavalcanti negou participar de sindicatos rurais, admitindo prestar colaboração intelectual ao Serviço de Orientação Rural, ter feito pronunciamentos e conferências e participado como convidado de reuniões e seminários sobre a “solução humana e cristã dos problemas sociais” , seguindo a orientação da doutrina 681 social da Igreja, de acordo com a Encíclica Mater e Magistra do Papa João XXIII. Afirmou ser contrário a totalitarismos de esquerda ou de direita e a favor do regime democrático. Ouvidas as testemunhas, que confirmaram seu depoimento, o inquérito foi encerrado sem seu indiciamento. Após um silêncio nas fontes, encontra-se, em 1968, no Arquivo da Cúria, o registro da excardinação do padre Humberto da Arquidiocese de Maceió e sua incardinação na Arquidiocese de São Paulo. E no ano seguinte, o dossiê do SNI contém certidão de seu casamento com Neise Annibal Cavalcanti, em 26 de fevereiro de 1969. 679 SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Padres agitadores em Alagoas: o Inquérito Policial-Militar do padre Luiz de Oliveira Santos (1964-1969). Original em curso de publicação (gentileza da autora). 680 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informações, BR DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033 – Neise Annibal Cavalcanti – Dossiê – 30/1/1979. 681 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informações, BR DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033 – Neise Annibal Cavalcanti – Dossiê – 30/1/1979. 737 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Depois de outro breve período de ausência de informações, o dossiê o registra de volta a Maceió, segundo o então governador Divaldo Suruagy, tendo retornado por sugestão sua. A 682 partir de então, o ex-padre Humberto foi empossado sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas _IHGA, ocupou cargos de assessoria e consultoria no governo do Estado e na Universidade Federal de Alagoas, continuou sua carreira acadêmica e literária, tornou-se membro da Academia Alagoana de Letras e formou-se bacharel em Direito, em 1974. A conclusão da Informação nº 655/300/ARE/77, em 1979, fecha o dossiê sobre Humberto Cavalcanti informando que: Embora tendo prestígio com determinadas autoridades do Estado de ALAGOAS, teria mantido após 1964 uma conduta político--ideológica discreta e declarado, quando Chefe de Gabinete do Reitor da UFAL, estar integrado ao Movimento revolucionário de 1964; não possui idoneidade moral, não goza de bom conceito junto a ASI/UFAL e Comando do 59º BI/MACEIÓ/AL e não inspira confiança. Nos primeiros anos da década de 1980, seu nome ainda pode ser encontrado em informes do SNI, relacionado à infiltração comunista e atividades de conotação esquerdista. Outros sacerdotes alagoanos estiveram envolvidos em investigações nos meses seguintes à instalação do regime e permaneceram nos radares do SNI, durante toda a ditadura. Entre eles estavam Theóphanes Augusto de Barros, Luiz de Oliveira Santos e o cônego Hildebrando Veríssimo Guimarães. Luiz Santos foi, entre eles, o único a ser processado. Dados sobre eles 683 podem ser encontrados nos documentos do fundo BR_DFANBSB V8. O cotejamento das informações sobre o padre Humberto demonstra que a análise destes documentos, antes não estudados com método, pode corroborar as teses das pesquisas que procuram demonstrar o vínculo existente entre a atuação dos membros da Igreja na Ação Social Católica e a desconfiança dos agentes do sistema de informações do regime militar. Pode, também, acrescentar informações específicas que auxiliem na compreensão das relações mantidas entre a Igreja e o Regime em Alagoas. 682 Suruagy, Divaldo. Humberto Cavalcanti. Tribuna do Sertão. Artigos. 8 de outubro de 2014. Disponível em https://tribunadosertao.com.br/2014/10/humberto-cavalcanti-2/. Último acesso em 29 de maio de 2021. 683 SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Padres agitadores em Alagoas: o Inquérito Policial-Militar do padre Luiz de Oliveira Santos (1964-1969). Original em curso de publicação (gentileza da autora). 738 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Considerações Finais A análise dos documentos encontrados no Fundo do SNI no Sistema do Arquivo Nacional, ainda em andamento, já permite resgatar, com ajuda do Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió, a trajetória de Humberto de Araújo Cavalcanti. Os documentos, via de regra, dão destaque ao padre Humberto Cavalcanti em sua relação com elementos tidos como “subversivos” ou “esquerdistas”, participando de reuniões de trabalhadores, recebendo publicações “comunistas”, exprimindo opiniões “progressistas” quanto às questões sociais, corroborando as teses que defendem o vínculo entre a atuação eclesial na Ação Social Católica e a repressão do regime militar. As informações encontradas até agora parecem mostrar que o interesse dos agentes do sistema repressivo por Humberto se devia as suas opiniões progressistas, identificadas em sua fala e seus escritos. Outros sacerdotes alagoanos, contemporâneos de Humberto Cavalcanti, aparecem nos documentos encontrados, levando a crer que a ampliação do universo de análise, incluindo outros padres, pode fortalecer (ou não) estas primeiras conclusões, além de enriquecer a compreensão sobre a atuação dos membros da igreja católica alagoana durante o regime civil militar. Referências (A) Fontes Arquivo Nacional BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informações, BR DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033 – Neise Annibal Cavalcanti – Dossiê – 30/1/1979. Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió Caderno 1 - Episcopado de D. Ranulpho: Informes, Resenha, Relação, Resumo. Livro do Tombo nº 12, 30v. Livro do Tombo, nº 12, 1952, 138. (B) Bibliografia 739 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de Janeiro: Record, 2014. MEDEIROS, Fernando Antônio Mesquita de. O homo inimicus: Igreja católica, ação social e imaginário anticomunista em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2007. NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. Editora Contexto, 2014. SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Padres agitadores em Alagoas: o Inquérito Policial-Militar do padre Luiz de Oliveira Santos (1964-1969). Original em curso de publicação (gentileza da autora). SURUAGY, Divaldo. Humberto Cavalcanti. Tribuna do Sertão. Artigos. 8 de outubro de 2014. Disponível em https://tribunadosertao.com.br/2014/10/humberto-cavalcanti-2/. Último acesso em 7 de julho de 2021. 740 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Memória, Identidade e História: por uma reflexão acerca da produção historiográfica dos festejos de Nossa Senhora do Rosário em Delmiro Gouveia (Alagoas), 1951-2021 Thiego da Silva Barros * Resumo: A presente proposta visa discutir as relações que se construíram a partir da realização dos festejos de Nossa Senhora do Rosário, no distrito de Vila da Pedra (atual Delmiro Gouveia). Os festejos foram iniciados em 1951, após a criação da sede paroquial do distrito. Este trabalho visa pensar as memórias e as identidades que se estabelecem no plano espacial, geradas na participação nesses festejos, a fim de compreender a formação da identidade histórica, local e práticas sociais. A celebração está associada à conquista da autonomia distrital, assim, este estudo em fase inicial, busca refletir sobre a ideia de pertencimento da comunidade com os festejos, refletindo as relações entre sujeitos, grupos e o mundo social de uma paisagem sertaneja. À luz dos referenciais teóricos como Maurice Halbwachs (memórias coletivas), Joel Candau (memória enquanto geradora de identidade), bem como, no diálogo com as fontes, na compreensão das memórias que vivenciam estes momentos de festividades e suas expressões no campo social. Para além dos teóricos utilizados, a pesquisa fará uso de fontes orais, fontes visuais, livros de memórias que expõem aspectos do cotidiano na vertente social, cultural e política do munícipio de Delmiro Gouveia, no sertão do São Francisco. Palavras-chave: memórias, identidades, religião, sertão. Introdução: Em 7 de outubro de 1951, a comunidade católica do então distrito de Vila da Pedra684, realizou a primeira festividade dedicada a Nossa Senhora do Rosário, esse acontecimento marcou a vivência dos fiéis católicos do distrito, hoje denominado Delmiro Gouveia685 (Alagoas). Foi também neste ano, em 30 de março, que a organização eclesiástica católica assumiu um novo direcionamento em sua área pastoral, com a presença de um padre residente Professor de História da Rede Municipal de Educação de Ouro Branco/AL e Major Izidoro/AL; mestrando em História pelo PPGHIS – UFAL. 684 Somente em 14 de fevereiro de 1954, é que o Distrito é emancipado e torna-se Delmiro Gouveia (Alagoas). 685 Munícipio localizado há 306 km da capital alagoana Maceió/AL. * 741 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X na comunidade para atender aos membros do catolicismo686, e ganhou autonomia em relação à Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca687. A comunidade católica é constituída em paróquia, sendo desmembrado da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, município de Água Branca, “Com o intuito de atender ao bem e progresso espiritual dos fiéis confiados a nossos cuidados pastorais”,· em 30 de março de 1951. A primeira festa dedicada a Nossa Senhora do Rosário ocorreu em 7 de outubro de 1951 (NASCIMENTO, 2001, p.05), ou seja, os festejos ocorrem após a criação da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, sob a organização do primeiro padre da recém-criada paróquia, Fernando Soares Vieira, o qual exerceu o ofício de pároco de 1951 a 1980, por trinta anos (ROSÁRIO, 2011, p.4-5). A construção da capela de Nossa Senhora do Rosário, no distrito de Vila da Pedra, ocorreu a pedido de Mariêta Ionas (1887-1925), esposa do italiano Lionelo Ionas (1866-1931), sócio de Delmiro Augusto da Cruz Gouveia (1863-1917) que, por devoção, desejava construir uma capela dedicada à referida santa. O pedido ocorreu em 1917, no mesmo ano, em 10 de outubro de 1917, o empresário Delmiro Augusto da Cruz Gouveia foi vítima de assassinato, ele que fundou a primeira fábrica de tecidos da região, denominada Companhia Agro Fábril Mercantil, mais tarde Fábrica da Pedra. A construção da capela ocorreu com o financiamento direto da indústria de tecidos nos anos que se seguem (CORREIA, 2013, p. 08). No ano seguinte, ocorreu a inauguração da capela de Nossa Senhora do Rosário, iniciando assim, a criação do primeiro templo religioso católico neste território, localizado no sertão de Alagoas. (ROSÁRIO, 2011, p. 6-7). Após a inauguração da capela, em 1918, passou a ocorrer cerimônia religiosa na localidade. Até esse período àqueles que desejavam participar de alguma atividade religiosa católica, como batismo, casamentos, festividades religiosas, dirigiam-se ao munícipio de Água Branca, que era sede pastoral e administrativa do distrito de Vila da Pedra. Apenas no período de Natal, em 25 de dezembro, é que ocorria celebração de missa na escadaria da Fábrica da Pedra, anterior a construção da capela (NASCIMENTO, 2001, p.08). Com a inauguração da capela de Nossa Senhora do Rosário, os moradores da localidade passaram a ter um espaço físico para a vivência dos momentos religiosos católicos, ROSÁRIO, 1951, p. 03 – Livro de Tombo. Munícipio sede administrativa do então Distrito de Vila da Pedra e sede pastoral da Capela de Nossa Senhora do Rosário, a cidade de Água Branca fica há 326 km da capital alagoana Maceió/AL. 686 687 742 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X próximo de suas residências. Quem prestava assistência religiosa era a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do munícipio de Água Branca, na pessoa do padre Manoel José de Oliveira, um dos padres que prestou amparo religioso aos que frequentavam a capela de Nossa Senhora do Rosário, localizada no espaço denominado de Vila Operária688, recebendo o ofício de capelão689. Também, exerceu o ofício de vigário paroquial690, na paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca, auxiliando o padre Nicodemos da Rocha (SILVA, 2016, p. 4950). O distrito de Vila da Pedra não tinha um pároco até então, todavia, o padre Manoel permaneceu auxiliando os trabalhos religiosos por dois anos. Quem respondia juridicamente na Vila da Pedra era o padre Nicodemos da Rocha, pároco691 de Água Branca (SILVA, 2016, p. 13). No tocante a capela da Vila da Pedra, que recebe o nome de capela de Nossa Senhora do Rosário, vale ressaltar que a mesma pertenceu, em seu aspecto administrativo, pastoral e territorial, a paróquia de Nossa Senhora da Conceição do município de Água Branca, até 30 de março de 1951. Naquele município, havia uma confraria692 denominada de Confraria do Rosário, composta por diversos membros da comunidade católica do lugarejo que transitavam para Vila da Pedra, o que nos leva a observar à existência de uma devoção a referida santa católica por habitantes do distrito, anterior a construção da capela no local.·. É notável, que a festividade dedicada a Nossa Senhora do Rosário tem um significado diferenciado para a comunidade católica em sua dinâmica histórica. Mas, para além desses aspectos, há as relações que se estabelecem no plano espacial com os sujeitos envolvidos nesse processo. Trata-se de uma celebração que também está associada à conquista de autonomia distrital e à construção da identidade local. Essas dinâmicas históricas desempenham papel fundamental que merecem uma atenta pesquisa a fim de qualificar as reflexões sobre as relações entre sujeitos, grupos e o mundo social de uma paisagem sertaneja que se reconfigurava. 688 Ao falar sobre Vila Operária estamos nos referindo ao espaço criado em 1912, em que era local de moradia de trabalhadores e operários da Fábrica da Pedra. 689 Sacerdote responsável pelos serviços religiosos de uma capela sem Sede pastoral e administrativa. 690 Sacerdote, que exerceu o papel de auxiliar do pároco numa paróquia de grande extensão territorial. 691 Padre responsável por uma paróquia, com Sede administrativa e pastoral independente. 692 Associação laica que funciona sob princípios religiosos, fundada por pessoas piedosas que se comprometem a realizar conjuntamente práticas caritativas, assistenciais etc.; congregação, irmandade. 743 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A festividade de Nossa Senhora do Rosário e a produção da narrativa histórica. Neste sentido, a partir do percurso histórico mencionado acima, convém refletirmos sobre a produção do conhecimento histórico, as relações que se estabelecem e a dinâmica envolvida, é pertinente refletir sobre o lugar de produção, o lugar de fala na produção historiográfica, sobretudo, ao buscar compreender o objeto de pesquisa, que neste caso específico, é uma festividade religiosa católica, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, principal evento católico, que ocorre no munícipio de Delmiro Gouveia, no sertão alagoano, anualmente no mês de outubro. Dessa forma, busca-se questionar como este fenômeno religioso contribuiu para as relações sociais construídas na localidade, a partir de 1951, ano em que é criada a Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, e com isso a expansão desse festejo religioso com o desenvolvimento de uma nova dinâmica religiosa católica no então distrito de Vila da Pedra. A criação da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, que marca o desmembramento com a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca/AL, ocorreu em 30 de março de 1951, antes da emancipação política do então distrito de Vila da Pedra, assim, neste percurso buscaremos refletir sobre as relações construídas em meio à dinâmica histórica, a partir da formação das identidades e das experiências sociais (MARTINS, 2011) que cooperaram para a construção da ideia de pertencimento da comunidade com a festa de Nossa Senhora do Rosário, que passa a ocorrer a partir de 1951 com a presença de um padre residente na localidade. Neste interim, entendemos que tal celebração religiosa católica, é uma celebração identitária, observando que essa festividade, possibilita um discurso que deve ser refletido na compreensão da trama histórica, em suas expressões de sentimentos e sensações. Assim, pensar essa produção histórica, é compreender que o conhecimento histórico é relativo às condições históricas de sua produção (MUNIZ, 2011, p. 22). Ao falarmos sobre essa festividade religiosa, que também impulsiona a movimentação econômica do município, no período de realização festiva, além de ser um dos eventos mais aguardados pela comunidade católica e pelo comércio local, em decorrência da movimentação realizada. Ao longo dos dez dias de festejos religiosos, ocorrem o novenário e missa na praça multieventos Nossa Senhora do Rosário, com a presença do parque de diversões, em frente à 744 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X capela da Vila Operária693, além da realização de festividades patrocinadas pelo poder público municipal nos últimos dias dos festejos. Por isso, essa reflexão deve nos levar a dialogar com as fontes existentes para ampliação do leque interpretativo, numa feitura da interpretação e recomposição histórica, de modo a compreender os significados dessa festividade para o munícipio de Delmiro Gouveia, entendendo que as fontes envolvidas nesse processo investigativo, é fruto de seu tempo, contexto e realidade, e para tanto, se faz necessário um olhar atencioso, com relação às lacunas e os silêncios. Tendo em vista que o ato de escolha já supõe algum silenciamento, daí a necessidade de se refletir sempre sobre essas problemáticas na dinâmica da pesquisa histórica, buscando compreender como se dá a elaboração e como se adquire sentido nos agentes históricos em sua temporalidade e contexto social. Memórias, identidades e experiências vivenciadas nos festejos de Nossa Senhora do Rosário de Delmiro Gouveia/AL. Este texto reflexivo nos leva a pensar as vivências e as experiências a partir dos festejos de Nossa Senhora do Rosário, com um olhar direcionado sobre o sertão, assim ao discutir sobre as memórias e as experiências vividas, o diálogo com Maurice Halbwachs (2006) e Joël Candau (2012), se faz necessário, pois esta memória individual só pode existir dentro dos quadros sociais da memória, em sua dinâmica coletiva, a qual deverá ser problematizada dentro de seu contexto social, na ideia de memória enquanto geradora de identidade, numa reflexão essas memórias católicas e as relações construídas a partir dos festejos de Nossa Senhora do Rosário em Delmiro Gouveia (Alagoas). Vale salientar, que ao refletirmos sobre as memórias, num diálogo teórico, compreendemos a memória numa perspectiva de construção coletiva, não como verdade absoluta, mas enquanto múltiplas formas de leituras e representações do passado que incidem diretamente na vida social, política, econômica e cultural dos sujeitos dentro do contexto de ação. 693 Capela circunscrita à vila operária, em que diversos moradores eram trabalhadores da fábrica da Pedra. Essa capela dedicada a Nossa Senhora do Rosário foi erguida em outubro de 1918, antes da criação canônica da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário. A criação canônica da paróquia ocorre em 31 de março de 1951. Até esse período a localidade em seu aspecto católico pertencia a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição no munícipio de Água Branca/AL 745 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Nisto reside, a importância de se refletir sobre as identidades, diferenças e memórias em que sua transmissão está condicionada ao contexto histórico em que é inserida, nas relações que se constroem, com os interesses envolvidos, e nas participações que geram significados sociais e culturais a partir das experiências vividas. Sendo assim, ao se estudar esta festividade, percebemos também, que é uma celebração que também está associada à conquista de autonomia distrital e a construção da identidade local em seu processo histórico de desenvolvimento social. Assim, compreendermos como essas práticas culturais ocorrem, é identificar os modos como em diferentes lugares e em diferentes momentos, a realidade social é construída, pensada, dada a ler em sua dinâmica histórica, e para tanto, é necessário perceber que as representações do mundo social e suas percepções não são discursos neutros, como nos advertiu Roger Chartier (1988, p.16). Ou seja, num estudo atento das experiências vivenciadas pela comunidade, as mudanças sociais e culturais no tempo construindo uma historiografia pensada, crítica, que permita compreender a experiência dos sujeitos em seu tempo, de modo a percorrer um itinerário investigativo que nos possibilite compreender o não dito, por meio de uma leitura problematizador das fontes num olhar a contrapelo (BENJAMIM, Walter, 2013). Nessa perspectiva de sentimento e pertencimento num diálogo com Maurice Halbwachs, em sua obra Memória Coletiva (2006), nos mostra que a memória passa a existir à medida que se criam laços afetivos de pertencimento a um determinado grupo. Para Michel Pollak (1990), o sentimento de pertencimento contribui para o estabelecimento de uma identidade, a qual também é construída por meio dos espaços, os lugares e objetos da memória que circundam a realidade material dos grupos que se envolvem com o objeto em sua movimentação econômica e cultural. Ou seja, no sentido de construção de significados, nas reflexões sobre as experiências sociais vividas no e com o espaço, em seu ato celebrativo em um aglomerado de significados e imaginários que sustentam as práticas e as representações atribuídas a este evento religioso católico. Num olhar atento e minucioso, podemos compreender as relações que são construídas com o objeto e o seu entorno, em que se moldam identidades ao redor da celebração, contribuindo para a compreensão de um traço da cultura e das práticas sociais de parte da comunidade delmirense na reflexão sobre as memórias e as identidades dessa festividade religiosa católica. Assim sendo, Pozenato (1990, p. 10), nos dirá que a identidade não é buscada no 746 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X “plano das manifestações externas, mas no uso que existe por trás dessas manifestações”, indo além dos momentos celebrativos, mas na compreensão crítica dessa possibilidade que reside na percepção das pessoas e da comunidade. Desta feita, interpretar, desvendar as relações forjadas, construídas com o patrimônio cultural imaterial, é compreender a gama de significados e simbolismos advindos das relações de afeto e das práticas sociais que são articuladas entre o sujeito e o patrimônio histórico, cultural imaterial que também são produções humanas. (LEÃO, 2009). Assim, os estudos sobre as memórias e práticas sociais e culturais em Delmiro Gouveia, insere-se numa história que não é isenta de configurações, mas que se constrói na teia social do trajeto social e político (CANDAU, 2012, p.35-38), visto que não há busca identitária sem memória. Para tanto, se faz necessário pensar nesse emaranhado existente, nas várias camadas de silêncios, que se podem examinar meios e o processo de produção histórica, observando as desigualdades nesse processo e na narrativa histórica (TROUILLOT, Michel-Rolph, 2016, p. 73-74). Com isso, buscamos contribuir para a compreensão dos usos e percepções das práticas culturais e sociais da Festa de Nossa Senhora do Rosário numa qualificação das reflexões sobre as relações entre sujeitos e o mundo social, de uma paisagem sertaneja que se reconfigurava, impulsionando a emancipação política do distrito de Vila da Pedra em 14 de fevereiro de 1954, passando a receber o nome de Delmiro Gouveia. O uso das fontes e o percurso investigativo Balizado pelas reflexões desenvolvidas neste texto, percebemos que estudar a história, pensar o lugar de produção, é compreender uma leitura do passado com base nas indagações, nos problemas que são postos pelo presente, e neste objeto específico pensar as relações construídas em seu contexto e dinâmica social, visto que a história é um conhecimento dinâmico, com uma dedicação a interpretar as experiências da humanidade com base em diversos tipos de registros (documentos escritos, pinturas, fotografias e vestígios materiais e imateriais). Neste percurso podemos falar um pouco sobre as fontes históricas ou documentos históricos, definindo-o como tudo aquilo que, de algum modo, está marcado pela presença humana; como por exemplo, discursos orais, escritos, monumentos, obras literárias, pinturas, obras de arte, objetos cotidianos. 747 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Com relação às fontes históricas temos que ter clareza que estas informações que nos chegam através da pesquisa, são as presenças ou ausências encarnadas em fontes, que não são neutras e tampouco isentas, e sim culturais, criadas, produto da sociedade, com menções ou silêncios de vários tipos e níveis, visto que fontes implicam escolhas no processo de produção histórica (TROUILLOT, Michel-Rolph, 2016) na construção interpretativa e de sentido. Com este objeto específico será importante o uso metodológico da história oral, visto tratar-se de uma festividade religiosa, a qual ainda se tem pouca documentação escrita, além de se fazer necessário compreender, as formas de percepção dos festejos pelos sujeitos envolvidos de modo direto ou indireto; sejam eles o devoto e o não devoto, pois a festividade ocorre ainda, numa praça denominada de praça de eventos Nossa Senhora do Rosário, local em que esta instalada a primeira igreja católica do munícipio, inaugurada em outubro de 1918. Neste espaço central também ocorrem diversos eventos locais, além de ao redor possuir diversos estabelecimentos comerciais do munícipio, o que torna a realização deste evento religioso, um dos mais aguardados pelo comércio local, pois ao longo dos dez dias de festejos diversos eventos tanto por porte do poder público quanto do poder religioso ocorrem mobilizando um número significativo da população delmirense em seus grupos sociais. Desta feita, a diversidade de estabelecimentos comerciais circunscritos a este espaço, os quais se apropriam desse recinto de diferentes formas, não apenas como um lugar no todo religioso, mas um ambiente de vivências sociais e experiências múltiplas, nos leva a percorrer um caminho interpretativo em busca de problematizar o significado no aspecto econômico e cultural, enquanto fenômeno cultural para o munícipio e para a região. A partir da presença de visitantes diversos que impulsionam o turismo local, bem como a vinda daqueles que nasceram em Delmiro Gouveia, construíram suas vidas em outros locais e aproveitam a realização dessa festividade para também visitar os familiares que residem no munícipio. Com esta reflexão buscaremos enriquecer os estudos acerca da dinâmica que impulsionou o vicejar do lugarejo denominado de Vila da Pedra, que mais à frente deu origem a hoje, cidade de Delmiro Gouveia, em suas reconfigurações e dinâmicas sociais e culturais. Ainda no tocante as fontes, vale salientar que elas não falam por si só e não trazem a “verdade” pronta. Mas, são as inquietações do percurso investigativo, método e refinamento teórico que nos levará a desenvolver uma narrativa sobre o passado. O olhar interpretativoproblematizador atento aos rastros deixados por cada fonte, observando o processo de escolha e de organização documental, percebendo que a história não é uma narrativa única e definitiva 748 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de tudo que aconteceu, mas embasada em teoria e método para o percurso investigativo da pesquisa histórica. A narrativa histórica é construída com base em vestígios, fontes e documentos. Vale salientar que essas informações têm autores e intenções; por isso, é necessário, neste processo investigativo, compreender o contexto de produção, pois, o documento é também produto da sociedade (LE GOFF, 2010). Por isso, interrogar o sentido dos fatos, dos acontecimentos e das relações de força existente para pensar o objeto em questão, com um refinamento teórico que iluminará o caminho metodológico e permitirá a construção de uma narrativa sobre o objeto pesquisado. Sendo assim, o que fortalece a pesquisa, a investigação é a percepção de que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas “científicas”, e de uma escrita (CERTEAU, 1982, p. 61-62). Articula-se neste lugar de produção socioeconômico, político e cultural, num conjunto de práticas, produto de um lugar, tornando possíveis as pesquisas em decorrência de conjunturas e problemáticas comuns pensando historicamente o objeto de pesquisa e o pesquisador. Considerações finais sobre o processo investigativo e interpretativo. “A história não vive fora do tempo em que é escrita” (Michelle Perrot) Neste percurso investigativo, interpretativo da história e sua produção historiográfica, sobretudo, pensando este objeto de pesquisa, buscaremos compreender as relações que construíram historicamente os festejos dedicados a Nossa Senhora do Rosário de Delmiro Gouveia, como um marco da memória coletiva e da identidade cultural, por meio da análise dos sentidos e práticas evocadas e produzidas no entorno da festa, numa reflexão sobre as memórias e as identidades construídas em seus múltiplos aspectos e suas vivências sociais em seu contexto. Sendo assim, pensar a produção historiográfica sobre este evento religioso, é problematizar as experiências vividas incorporando aspectos da vida social e cultural, percebendo a ideia de cultura como algo dinâmico, numa reflexão sobre as memórias na formação das identidades, (JOEL CANDAU, 2012) numa ideia de cultura enquanto um modo 749 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X de vida, de uma comunidade em relação às vivências e experiências com os festejos religiosos católicos locais. A dinâmica causada pela Festa de Nossa Senhora do Rosário nos diversos espaços, como as reuniões de diversas comunidades tanto da área rural quanto urbana para vivenciar os momentos religiosos, até pagamentos de promessas, a presença de diversos visitantes e devotos de outras localidades próximas. Isso nos levará a compreender a construção de significados nas elucubrações sobre as experiências sociais do munícipio sertanejo de Delmiro Gouveia/AL nas devoções e práticas religiosas dos festejos de Nossa Senhora do Rosário e suas representações. Neste trajeto, Carlo Ginzburg nos dirá que, “o objetivo do historiador é a narração, historiador é aquele que narra e explica, o historiador explica as ações que os próprios homens fazem, não inventa, mas explica” (GINZBURG, 2007, p. 27). Ou seja, a produção historiográfica em seu percurso investigativo deverá nos levar a destrinchar o emaranhado existencial do estar no mundo, em sua ação temporal, com os instrumentos que lhe são próprios. Desta feita, pensar este conhecimento produzido pelo historiador é perceber que a produção está inserida num lugar social em que agimos e nos desenvolvemos enquanto pessoas, em que suas formas históricas são estabelecidas, suas experiências sociais desenvolvidas, em sua articulação com o real que busca representar, produzindo um pensamento com base na visão histórica de mundo. Assim, todo conhecimento nasce das escolhas, e estão inseridas num lugar social, e sua produção histórica enquanto um saber social, numa relação com as memórias compartilhadas, daí a importância de analisar os processos de construção dessa memória em sua temporalidade. Por fim, a produção do conhecimento histórico-científico reflete acerca das relações de poder e das práticas sociais e representações culturais produzidas pela sociedade. A partir de uma compreensão acerca do objeto em questão, que perpasse as vivências e as permanências, como a religiosidade e as crenças, com a transmissão da memória condicionada ao contexto histórico em que está inserida, numa disciplina histórica feita de espaço, tempo e gente, por meio das ações de homens e mulheres no tempo e no espaço, em seu ato de dizer e de representar. Referências bibliográficas: ALVES, José Ricardo. Camargos: Festas, Cultura e Religiosidade. Mariana: UFOP, 2004, 750 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X (Monografia). BARROS, Thiego da Silva. Ensino de História e Educação Patrimonial: Um olhar sobre a centenária Igrejinha da Vila Operária em Delmiro Gouveia (Alagoas). Delmiro Gouveia: Universidade Federal de Alagoas, 2018 (Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização). BARROS, Thiego da Silva. 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São Paulo: Cia das Letras, 2010. 751 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Entre pesos e batinas: a participação do padre Ibiapina no Quebra-Quilos Wellington Luís de Albuquerque Espíndola * Resumo: A revolta do Quebra-Quilos ocorrida no início da década de 1870 em algumas províncias do Norte, teve como objetivo a não aceitação dos novos padrões de pesos e medidas que o governo imperial tentou implantar no Brasil, seguindo o modelo francês. Em várias províncias os populares se levantaram contra essas medidas. No caso específico aqui desse estudo analisaremos essa revolta nas províncias da Paraíba e de Pernambuco, que além do levante social contra os novos padrões de medidas teve as questões religiosas que deram combustível a mais nessa revolta. Nessas duas províncias os populares assimilaram a Questão Religiosa e o Quebra-Quilos como uma afronta do governo Imperial contra a população. É nesse contexto que o padre Ibiapina após realizar uma missão em Campina Grande/PB, à convite do seu amigo padre Calixto, em dezembro de 1873, realiza prédicas contra a Maçonaria e todo aquele universo da Questão Religiosa que estava ocorrendo. Para algumas autoridades do período essas prédicas foram as responsáveis pela ocorrência de tanta desordem. Palavras-chaves: Padre Ibiapina – Quebra-Quilos – Questão Religiosa A década de 1870 foi sacudida por dois movimentos: a Questão Religiosa e a Revolta do Quebra-Quilos. Com relação à primeira foi um embate entre a Igreja, o Império e a Maçonaria, sendo que desde a colônia o Brasil, assim como Portugal, a Igreja estava submetida ao Império, no sistema de padroado, onde o rei era quem comandava os assuntos religiosos. Essas instituições vão entrar em choque quando o papa Pio IX decretou a Bula Syllabus, que em sua essência determinava a infalibilidade do poder papal, era uma tentativa da Igreja combater os avanços de ideias liberais em uma instituição conservadora. A Maçonaria, que era contra o ultramontanismo, teve seus seguidores afetados com 694 essa Bula. Muitos participavam da Maçonaria, a exemplo de alguns clérigos e pessoas do Mestre em História pela UFCG. De acordo com Lemaitre (1999, p. 273), conforme citado por Bezerra (2010, p.150), o fenômeno consiste num “conjunto de doutrinas e atitudes favoráveis à centralização da igreja romana e opostas à autonomia das igrejas nacionais. Nascido no século XIX, o ultramontanismo foi defendido por Lamennais (1802-1861) e seus discípulos, e depois por Luís Veuillot (1813-1883). Reafirmado pelo concílio Vaticano I (1870), permitiu que às igrejas nacionais defenderem a sua independência em relação aos Estados.” O termo tem origem francesa e significa para além dos Alpes (em direção a Roma). * 694 752 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X governo, inclusive D. Pedro II e o Visconde do Rio Branco, que era seu ministro, os quais não irão acatar a decisão papal. Esse fato vai dividir os membros da Igreja, uns apoiando a decisão do imperador e outros seguindo a decisão de Pio IX. Em Pernambuco, por exemplo, haverá uma repercussão bem maior desses acontecimentos, pois o bispo de Olinda, Dom Frei Vital, defenderá as determinações da Igreja e isso o levará para a prisão assim como o seu colega Dom Antônio de Macedo, bispo de Belém/PA. Todos esses acontecimentos não passaram despercebidos no interior da província, uma vez que a Questão Religiosa chegará às pessoas mais pobres do interior e alguns sacerdotes tiraram proveito da situação para manipular as mesmas. Já o Quebra-Quilos foi uma revolta popular, que eclodiu em decorrência da Lei Imperial 1.157, de 26 de junho de 1862, que determinava a substituição dos velhos métodos de pesos e medidas, pelo sistema métrico decimal francês. “Havia no Brasil uma grande variedade de pesos e medidas, e que variavam de um lugar para outro, como: braça; légua, arroba; o côvado; o feixe; a libra; o grão; o móio; a onça; o quintal; a vara; o pão de forma cônica, para medir açúcar e outros produtos” (LOPES, 2004. p. 101). A lei previa um prazo de dez anos para a implantação gradual de transição até o sistema ser totalmente implantado. Em setembro de 1872 é editado novas instruções com base nas quais “determinou-se, então, que, do dia 1º de julho de 1873 em diante as mercadorias oferecidas no comércio deveriam ser medidas ou pesadas de acordo com o novo sistema de pesos e medidas” (SOUTO MAIOR, 1978. p. 22). Esse fato ocorre por conta do governo imperial não ter tomado as medidas que lhe cabia para executar a referida lei, que tinha sido criada em 1862. Ainda nessas novas instruções diminuiu as penalidades para quem descumprisse a nova lei, a prisão poderia ser de cinco a dez dias e as multas variavam de 10$000 a 20$000 (dez a vinte mil reis). Mesmo com essa extensão de prazo, às pessoas não estavam preparadas para uma mudança total, na forma de negociar que vinha desde a colônia. E apesar do adiamento, o governo em algumas localidades não fornece, por exemplo, tabelas com o valor dos novos pesos e medidas. Em muitos lugares as Câmaras Municipais se aproveitam do ensejo para criar novos impostos ou aumentar algumas tarifas já existentes. A nova lei de pesos e medidas, aumento de impostos e devoção religiosa, serão a base para o início da revolta do QuebraQuilos, ou a “sedição maçônico-decimal”, como se referiu o então Ministro da Justiça do 753 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Império, se referindo ao movimento. A Paraíba será o epicentro da revolta que se espalhará para Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas. A respeito do envolvimento do padre Ibiapina na Revolta do Quebra-Quilos, um dos seus principais biógrafos, Celso Mariz, não dá a atenção devida ao fato, no mais o que ele tenta mostrar é “a figura do missionário, já alquebrado e doente, carismático, dando bênçãos, perorando contra mancebias, falando dos castigos do inferno e das delícias do céu” (SOUTO MAIOR, 1978. p. 32). Porém, os jornais da época mostram a efetiva participação do missionário. Aqui analisaremos dois jornais: um ligado à Igreja Católica e outro à Maçonaria, que noticiam a missão em Campina Grande em 1873. Na cidade de Campina Grande, é instalada uma loja maçônica Segredo e Lealdade, que é denunciada ao padre Calixto Corrêa da Nobrega, vigário do lugar. Esse expulsa da igreja matriz pessoas que são acusadas de pertencerem à referida loja. O fato chamará a atenção da imprensa, onde lemos: Fanatismo – Pessoa fidedigna vinda de Campina Grande, nos afirma que indo assistir a missa parochial, em um domingo desses passados, na matriz d’aquela cidade, o vigário não quis celebrar, em quanto não foram lançados fora da igreja dous indivíduos que supôs ser maçons; o que conseguio concitando a ignorância do povo para tal fim (A PÁTRIA, 05/11/1873, p. 2). Tal fato ocorre em agosto de 1873, com a notícia ganhando repercussão em vários jornais, de Pernambuco ao Rio de Janeiro. Inclusive alguns jornais descrevem o padre Calixto com um certo furor clericalis, haja vista que naquele momento a Questão Religiosa era o principal assunto, e Campina Grande torna-se palco de alguns embates a respeito. Algumas autoridades campinenses não gostaram da atitude do padre, como foi o caso do capitão Pedro Américo de Almeida “a denunciar do acto do mesmo vigário ao presidente da província e ao governador do bispado mais tarde, não obtendo a resposta” (A NAÇÃO, 2/04/1875, p. 3). A ausência de resposta nos faz crer que as referidas autoridades apoiavam a decisão do padre Calixto. Além do mais, em outro artigo de jornal extraímos esse fragmento: “E poderia o coadjutor pensar de diversos modo quando, apesar da decisão de 12 de junho, o Sr. Bispo ordenou ao vigário de Campina Grande, que intimasse por três vezes a irmandade, que fizesse expelir de seu seio os maçons” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 27/08/1873, p. 3). Como 754 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X percebemos, o padre Calixto tinha apoio do Bispo, nesse caso era a irmandade do Santíssimo Sacramento que estava passando por uma análise, para saber se os seus membros eram maçons, e se fossem tinham que ser expulsos, por determinação do Bispo. O padre Calixto convida o padre Ibiapina para realizar missão e conquistar mais apoio popular, uma vez que as referidas missões tinham uma grande aceitação no meio social. Prontamente Ibiapina aceita o convite, ressaltando que já tinha estado em Campina Grande em outras oportunidades, sempre a convite do seu amigo padre Calixto. A missão ocorre entre os dias nove e vinte de dezembro, como podemos perceber nesse trecho: “durante esse tempo missionára ao povo em grande latada, que para esse fim foi levantada, aconselhando ao povo, que os filhos não obedecessem aos pais, as mulheres aos maridos, e o mesmo povo em geral ao governo por este ser maçon.” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 27/08/1873, p. 3). Podemos perceber que o tom do discurso de Ibiapina já mostra o quão a Questão Religiosa já estava bem difusa no interior da província. Observamos também que a cidade de Campina Grande estava numa grande efervescência nesse embate entre Igreja Católica e Maçonaria. Ainda a respeito dessa missão em Campina Grande, extraímos esse fragmento do jornal A Família Maçônica, que nos diz: O povo não é dos mais culpados, porque o seu fanatismo o faz acreditar no que lhe pregão esses dois degenerados padres Ibiapina e Calixto, o primeiro missionando com uma mulher, o segundo, além de suas imoralidades, deixando agora um liberto abrir missões pregando nos cemitérios e até dentro da própria matriz!!! É muito escândalo: é muito abuzar ... (16/12/1874, p. 2). Podemos observar que a cada notícia, o tom é elevado, e o conflito existente entre a Maçonaria e a Igreja Católica em Campina Grande fica cada vez mais acirrado. Na perspectiva da maçonaria o povo estava sendo levado pelos padres, observando que os dois são colocados como “charlatões”, pois estaria conduzido o povo ao “fanatismo”. Com relação à mulher que acompanha Ibiapina, o restante do artigo não dá mais detalhes de quem seria essa mulher, isso faz com que se abra um leque de possibilidades de quem seria essa mulher, uma Irmã da Caridade? Uma beata? Uma companheira? Ou mera intriga do jornal maçônico para tentar de alguma forma manchar a imagem do padre em torno da sociedade campinense e, 755 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X consequentemente, o mesmo perder apoio ou ter a sua credibilidade abalada entre os seus fiéis? A respeito ainda da missão em Campina Grande, a imprensa Católica, através do jornal O Apostolo, do Rio de Janeiro, traz em uma das suas edições o relato desse acontecimento “missionando o Revd. Padre M. Ibiapina com muito proveito espiritual para aquelle povo, que em numero de cerca de cinco mil pessoas rodeam a cadeira da verdade e ouve com recolhimento a palavra de Deos” (O APOSTOLO, 22/02/1874, p. 4). O jornal ainda afirma que Ibiapina tinha a pretensão de criar uma sociedade católica, no dia seguinte mil pessoas já estavam inscritas, para tal fim, sendo a maioria analfabetos e escravos. Essa missão será colocada no Relatório da Polícia da Paraíba, pelo então chefe de polícia Manoel Caldas Barreto, que foi incumbido para realizar a investigação, pelo presidente da província o Dr. Silvino Cunha. Eis um trecho a respeito de Ibiapina: Pregou doutrinas as mais subversivas da ordem social, expondo o povo, increpando o – <por não se levantar como um só homem contra o governo a que chamou de herético > - dizendo-lhe que nada tinha a receiar porque entre os defensores da religião e os do governo a proporção era de um para cem, aconselhando-o ainda á nada comprar nem vender aos maçons, e, finalmente, que não obedecesse as autoridades, porque eram ellas maçônicas. (A NAÇÃO, 23/02/1875, p. 2). Essa fala de Ibiapina, transcrita pelo delegado, mostra que para defender o seu ideal, os católicos estavam dispostos a tudo e que a qualquer momento católicos e maçons entrariam em conflito corporal, fato que quase ocorreu, após a saída de Ibiapina de Campina Grande no final de dezembro. Nos primeiros dias de janeiro de 1874 ocorre uma discussão entre dois senhores, acerca do catolicismo romano e da maçonaria, desse fato aglutinou-se cerca de cinquenta pessoas que estavam dispostas a lutar para defender o seu ponto de vista, porém não se chegou às vias de fato. Observamos que os ânimos estavam à flor da pele e que toda essa discussão servirá de combustível, meses depois, para iniciar a revolta do Quebra-Quilos. Em novembro de 1874 no povoado de Fagundes, pertencente ao termo de Campina Grande, ocorre as primeiras notícias de um conflito entre o povo e a polícia. Um conflito que inicia-se uma agitação na feira livre do lugar, quando o “matuto” Marcolino se nega a pagar o imposto do chão que era de cem mil reis, alegando que “era imposto criado por maçom, 756 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X imposto excomungado, ímpio, contra a religião e até contra Deus” (SOUTO MAIOR, 1978. p. 42). Observamos que a revolta contra o novo sistema métrico-decimal, já estava interligada com a Questão Religiosa, e sobretudo, com os discursos proferidos pelos padres Ibiapina e Calixto em Campina Grande. O próprio Secretário de Polícia da Paraíba, afirma em seu relatório sobre esse movimento, que “essas missões foram as sementes que, mais tarde, germinarão a sedição, latente desde aquela época” (A NAÇÃO, 23/09/1875, p. 2). Mesmo que a Questão Religiosa e o Quebra-Quilos sejam movimentos distintos, no norte do Brasil eles se entrelaçam, e se fundem em um só movimento, assimilado por muitos sertanejos. As notícias correm o Brasil chegando à capital do Império. Em telegrama enviado de Pernambuco, em vinte e seis de novembro, se ler: “Diz-se que os amotinados, em numero de 1,000 pouco mais ou menos, se sublevaram a instigações do padre Dr. Ibiapina, que lançando mão de predicas, os fanatisou” (A NAÇÃO, 27/11/1874, capa). A esse telegrama segue-se outros que mostram uma preocupação das autoridades no tocante a possibilidade do movimento ganhar maiores proporções, razão pela qual tropas são enviadas da Bahia em socorro das vilas da Paraíba e Pernambuco. Nos dias seguintes as notícias relatam a volta da paz e ordem pública nos lugares atingidos. Mesmo que as notícias fossem de tranquilidade, deve se perceber que manifestações desse tipo ainda iriam repercutir em Pernambuco, como veremos mais adiante, e o envolvimento do padre Ibiapina é notório, pois os sermões proferidos em Campina Grande foram o início de todas as “perturbações” registradas entre 1873-1875 na Paraíba e Pernambuco. Ibiapina se resguarda na Casa de Caridade de Santa Fé, na Paraíba, onde recebe notícias do desenrolar da revolta através de correspondências, ele mesmo relata às Irmãs da Caridade com certa preocupação, Minhas filhas, vocês não se perturbem com o que eu vou dizer, porque eu estou conformado e só quero o que Deus quiser. Agora recebi uma carta dizendo-me que me acautelasse porque queriam me prender, porém, eu não tenho para onde me esconder e, ainda que tivesse não me esconderia, porque, se me prenderem, estou muito consolado, porque é por amor de nosso bom Deus, que tudo nos acontece (CARVALHO, 2008, p. 119-120). Essa fala de Ibiapina ocorre cerca de um ano depois daquela missão de Campina Grande e um mês depois do levante em Fagundes, em que se percebe que o seu nome já estava 757 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X na lista dos envolvidos no movimento. A esse fato Ibiapina escreve uma carta ao seu amigo capitão Pedro Lôbo, na qual afirma: Lutamos infelizmente com a maçonaria, que tem decretado a prisão, perseguição aos catholicos, que se pronunciam contra Ella em favor da religião não podia eu por isto ser esquecido. Tive um aviso de ser preso, mas isso ainda não realizou, pelo abalo que causou no povo, comtudo estou tranquilo em sofre por Deos a prisão ou a morte. (LIMA, 2014, p. 297). Nessa carta, Ibiapina coloca a Maçonaria e o governo como sinônimos, porém podemos notar que o referido padre não foi preso por conta do medo das autoridades de uma nova revolta, que seus fiéis fariam para defendê-lo. Em outra carta endereçada ao jornal A Província, do Partido Liberal (PE), é descrito a tropa que chegou a sair para prender Ibiapina: “seguiram 200 praças de linha para Campina, onde as cousas não estão boas. Diz-se que levam ordem de prender o vigário Calisto e o missionário Ibiapina” (A PROVÍNCIA, 16 /12/1874, capa). O padre Calixto chega a ser preso, o que não ocorre com Ibiapina que continuará agindo. Mesmo com esse alerta, Ibiapina prossegue com movimentações “subversivas”, só que agora através de cartas e com ligação direta com jesuítas em Pernambuco, onde o movimento vem em uma crescente. A respeito dos jesuítas, eles vieram para o Brasil desde o início da colonização, na missão de catequisar os nativos, mas ao longo dos anos tomaram outras funções, como a educação da colônia e a realização de missões no interior do Brasil. Porém, após os decretos pombalinos eles acabam sendo expulsos, regressando ao Brasil em 1866. Eles também estarão envolvidos no Quebra-Quilos. Segundo palavras do ministro Rio Branco: “As autoridades não devem recuar. Os jesuítas de Triunfo são os mais perigosos; prepararam o movimento da Paraíba e de Pernambuco, de inteligência com Ibiapina e outros missionários” (SOUTO MAIOR, 1978, p. 70). Em Pernambuco, várias localidades se levantaram no Quebra-Quilos, porém nesse trabalho atentaremos para a questão em Triunfo, pois para as autoridades da época era um dos principais pontos da organização do movimento, uma vez que ela faz divisa com a Paraíba. A história de Triunfo durante o século XIX é marcada fortemente pela presença de alguns religiosos na localidade, com alguns trabalhos prestados à comunidade, entre os quais 758 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X podemos destacar Frei Caetano de Messina, que empenhou na construção de um açude. Também os jesuítas Antonio Onoratti e Antonio Aragnetti, que se empenharam na edificação da matriz, além do padre Ibiapina, que construiu uma Casa de Caridade. Com relação a esses últimos padres a sua estadia nas terras da Baixa Verde não só foram marcadas por essas obras, mas também por atitudes ditas “subversivas”. As autoridades policiais pernambucanas encontram correspondências dos jesuítas que por inúmeras vezes citam o padre Ibiapina. Em correspondência enviada para a redação do jornal A Nação, do Rio de Janeiro, tem-se uma carta, “um cavalheiro digno de fé,” segundo o mesmo jornal que diz: “cheios de ódio, tem percorrido esses dous sacerdotes o sertão da Parahyba, procurando excitar o fanatismo a população ignorante. Entre os seus sermões e os Dr. Ibiapina há perfeito acordo de vistas” (A NAÇÃO, 28/11/1874, p. 2). Então podemos perceber que existia entre ambos uma sintonia que levaram muitas pessoas a seguir seus sermões. A chegada dos jesuítas Onoratti e Aragnetti, no sertão pernambucano, ocorre em meados de 1874. Vindos do Recife, esses sacerdotes passam os meses de março e abril, na casa do professor Manoel Joaquim Xavier Ribeiro em Vertentes/PE, afirmando que estavam indo para Triunfo/PE, cuidar da Casa de Caridade de Ibiapina e de outras coisas que o mesmo desejava. Esse professor será o responsável por várias informações durante o inquérito que será instaurado pela polícia de Pernambuco. Essas ações em Pernambuco ocorrem paralelamente aos levantes da Paraíba, pois enquanto Ibiapina tinha “saído de cena” em terras paraibanas, ele trocava correspondências em Pernambuco. Entre a documentação que será apreendida na residência dos padres jesuítas, há uma carta do padre Antônio Onoratti, já em Triunfo, do dia 18 de junho de 1874, enviada ao vigário Francisco de Araújo, de São Lourenço da Mata/PE, onde o mesmo descreve com certa decepção a resposta negativa que recebe de Ibiapina, porém, duvido muito que venha, por varias razões, que ele nestes últimos dias deu em resposta a sua vinda. Parece que, cansado por seus grandes trabalhos na vida de missionário, com sua idade tão avançada de 70 annos queira cuidar do governo de suas 20 casas, que de outras missões (A NAÇÃO, 30/12/1874, p. 2). 759 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Existia todo um interesse do vigário de São Lourenço quanto à presença de Ibiapina, com o pretexto de buscar uma imagem e dessa forma trazer vários seguidores para a localidade. Mas como dito na resposta de Onoratti, isso não ocorreu. Percebe-se também nessa fala do jesuíta no final da mensagem a palavra missões, em que fica subentendida de qual missão está sendo falada. A missão de evangelizar as pessoas ou a de “fanatizá-las”, haja vista que na ótica das autoridades policiais, transcorre uma investigação a respeito do envolvimento de Ibiapina no movimento. Também se coloca a questão do estado de saúde e da idade avançada para o mesmo não ir a São Lourenço da Mata, mas Ibiapina fará a sua última viagem “missionária” a Triunfo no final de 1875, ou seja, cerca de um ano depois da expulsão dos jesuítas. A respeito ainda desse episódio da ida a São Lourenço da Mata, o professor público de Vertentes, o Sr. Manoel Joaquim, em carta enviada ao vigário desse lugar, relata que não esqueceu da pretensão do amigo vigário de convencer Ibiapina a ir para São Lourenço, porém ele diz: Mas desde já lhe advirto que faz-se necessária a ida do dito padre a Baixa Verde primeiro do que ahi a S. Lourenço. Convem irmo-nos firmando acolá de maneira que possamos (embora a operação seja de tempo) atingir ao desiderato que almejamos. Em conclusão, declaro a V. Rvma que vou empenhar-me com o Ibiapina para este ir a S. Lourenço, apenas acabar a santa missão de Baixa Verde. Para outros lugares também há os mesmos desejos, entretanto os taes que tenham paciencia (A NAÇÃO, 30/12/1874, p 2). Parece não haver exagero na fala do ministro Rio Branco, onde ele coloca os jesuítas de Triunfo como os “mais perigosos.” Podemos perceber, nesse trecho, que apesar da tentativa de mudar um pouco o foco de ir para mais perto da capital pernambucana, no caso São Lourenço da Mata, o professor Manoel Joaquim fala por mais de uma vez que é necessário ir a Triunfo terminar a missão, e percebemos também a existência de uma ideia de expansão do movimento para outros lugares. O governo imperial determina a expulsão dos jesuítas estrangeiros do país, sob acusação dos mesmos serem uns dos responsáveis pelas agitações que a província estava sofrendo. A respeito desse fato o delegado de Triunfo/PE, ao receber a ordem de intimação para com os 760 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X jesuítas, escreve uma carta ao Dr. Antônio Francisco, Chefe da Polícia de Pernambuco, em outubro de 1874, em que ele afirma: Este ofício chegou precisamente no tempo em que os ditos Padres Jesuítas estão dando as Santas Missas a uma imensa multidão de pessoas concorridas de todo o distrito do Pajeú para esta nossa Vila de Triumpho [...] V. Sª. bem sabe da veneração ou amor e adoração que os sertanejos prestam aos missionários. Por isso V. Sª. com o seu aclamado juízo bem pode entender que tal intimação seria sobre nós o mais certo sinal de revolução. Ainda mais que correm por cá uns folhetos incentivadores excitam os povos a revolução sob pretexto das novas leis dos impostos e do recrutamento e dos pesos e medidas. [...] Se o governo insistir nesta determinação que eu julgo injusta e contrárias a todos os interesses de minha Pátria, faço desde já a minha demissão (LOPES, 2004, p. 107-108). A recusa do delegado tem a ver com o fato de que não via crime algum para com os dois jesuítas, mas sim tinha medo do povo se levantar contra a ordem pública e realizar atos como os ocorridos na Paraíba. Apesar dessa recusa, o governo de Pernambuco, em dezembro de 1874, determina a expulsão dos jesuítas Onoratti e Aragnetti, os quais serão presos, sendo que alguns populares tentam impedir a decisão, porém sem sucesso. Após a expulsão dos jesuítas, as autoridades se esforçam para capturar, julgar e prender criminalmente os envolvidos na sedição, sendo que 34 indivíduos foram julgados e absolvidos, entre os quais o padre Calixto. O fato que chama atenção é o nome de Ibiapina não estar presente na lista dos envolvidos, mas para esse fato o deputado geral Sr. Tarquínio de Souza, em discurso na Assembleia Geral, afirma: “O vigário de Campina Grande fez o que outros muitos padres tem feito, o que fez o Dr. Padre Ibiapina, esse distinto sacerdote, que também foi incluído no processo de sedição, e que só não foi pronunciado: porque a sua prisão podia trazer sérias dificuldades a ordem pública” (JORNAL DO COMMERCIO, 14 /04/1875, capa). Meses depois na mesma Assembleia Geral, o Sr. Leandro Bezerra diz: “A gana do governo contra o clero foi tanta, e tanto desejou dar caráter religioso ao movimento do norte, que dalli vierão telegramas oficiais, dizendo que o padre Ibiapina achava-se a frente dos sediciosos, e nem sei mesmo porque não o envolverão em algum processo” (JORNAL DO COMMERCIO, 30/06/1875, p. 2). Como se percebe o próprio governo temia que a população se levantasse em 761 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X defesa do referido sacerdote e assim colocasse de novo as províncias do norte em efervescência. O governo preferiu não correr esse risco. Em novembro de 1875 o padre Ibiapina chega à vila de Triunfo/PE. O próprio Ibiapina em carta endereçada a uma Irmã da Caridade na Paraíba, escreve: “E com alguns dias mais passarei eu com direção a Baixa-Verde, que está com a Casa de Caridade em desmantelo e há outras razões poderosas em favor da Religião que ali vai sofrendo. Não me demorarei por ahi, visto a pressa com que vou” (LIMA, 2014, p. 292). Se percebe uma certa preocupação para se chegar rápido ao lugar, um dos motivos é algum fato na Casa de Caridade, porém o que seriam “razões poderosas em favor da Religião”, algum fato referente a Questão Religiosa? Ou sobre os jesuítas? Ou outro fato novo? Ainda sobre esse assunto o padre Francisco Sadoc, outro biógrafo de Ibiapina, se apoiando no relato da Irmã Vitória de Santa Júlia Ibiapina, residente na Casa de Caridade de Triunfo, afirma que a Casa “estava sofrendo oposições e contrariedades, bastantes para em breve desmoronar-se” (ARAÚJO, 1996, p. 315). A referida Irmã não dá maiores explicações sobre essas oposições existentes, porém em Triunfo estava o Frei Estevão que era capuchinho, contrário à adoração das imagens dos santos e que foi enviado pelo governo. Recaiu sobre o mesmo a acusação que era maçom, o referido Frei se retira de Triunfo em Outubro e Ibiapina chega em meados de Novembro. Apesar de não terem se encontrado, percebemos que existia uma disputa em torno da fidelidade dos devotos. Durante essa missão é feita a leitura da Carta Pastoral, a respeito da libertação do Bispo Dom Frei Vital que estava preso desde janeiro de 1874. E Ibiapina aproveita para mais uma vez atacar a maçonaria. No final de 1875, Ibiapina adoece e se retira junto com alguns fiéis para Santa Fé/PB. No ano seguinte o envolvimento do padre ainda era notícia: “Si como se propalou, teve o padre Ibiapina parte activa no movimento que deu-se em 1873 n’aquelas paragens, é porque fervoroso catholico e longe do theatro da luta episcopal, deixou-se arrastar pelo inquebrantável zelo religioso” (BRAZIL AMERICANO, 26/02/1876, p. 2). O referido fragmento afirma a participação de Ibiapina no movimento um tempinho depois que as coisas foram resolvidas, e que a culpa maior caiu para alguns leigos sendo o nome de Ibiapina citado nos autos, mas não pesou nenhuma acusação formal contra ele. Fontes 762 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A Família Maçônica: Jornal dedicado aos interesses da Maçonaria, da civilização e da humanidade. nº 15, Ano III, Rio de Janeiro. 16/12/1874. A Pátria – Folha da Província do Rio de Janeiro, 05/11/1873, nº 242. A Nação: Jornal Político, Commercial e Literário (RJ), 02/04/1875, ed. 65. ____________________________________________, 23/02/1875, ed. 61. ____________________________________________, 23/03/1875, ed. 61. ____________________________________________, 27/11/1874, ed. 264. ____________________________________________, 28/11/1874, ed. 265. ____________________________________________, 30/12/1874, ed. 288. Brazil Americano: Publicação Semanal (RJ), 26/02/1876, ed. 28, ano II. Diário do Rio de Janeiro, 27/08/1873, nº 235. Jornal A Província: Orgão do Partido Liberal (PE), 16/12/1874, ed. 468. Jornal do Commercio, 14/04/1875, ed. 13. ___________________, 30/06/1875, ed. 180. O Apostolo (RJ), 22/02/1874, ed. 22, ano 9. Bibliografia ARAÚJO, Francisco Sadoc. Padre Ibiapina, peregrino da Caridade. São Paulo. Paulinas, 1996. CARVALHO, Ernando Luiz Teixeira de. A missão Ibiapina. Passo Fundo: Bertheir, 2008. COMBLIN, Joseph Jules. Padre Ibiapina. – São Paulo: Paulus, 2011. BEZERRA, Osicleide de Lima. Trabalho, pobreza e caridade: as ações do padre Ibiapina nos sertões do Nordeste. / Osicleide de Lima Bezerra. Tese. UFRN, Natal/RN, 2010. LIMA, Danielle Ventura Bandeira de. Devoção e santidade nas casa de caridade: a idealização mariana do Pe Ibiapina. / Danielle Ventura Bandeira de Lima. Tese. PUC-GO, Goiânia/GO, 2014. SOUTO MAIOR, Armando, 1926 -. Quebra-Quilos: lutas sociais no outono do Império/ Armando Souto Maior. – São Paulo: Ed. Nacional; [Brasília]: INL; [Recife]: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1978. 763 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X O Caminho do Direito e o Sagrado no Ilê Asé Sogbô Aganjú da Yalorixá Zefinha de Aganjú Wellington Ricardo Felix dos Santos* Resumo: Este artigo tem como tema o caminho do direito e o sagrado no Ilê Asé Sogbó Aganjú da Yalorixá Zefinha de Aganjú, é um estudo de cunho epistemológico sobre o Candomblé. O Ilê Asé Sogbô Aganjú está localizado no Município de Garanhuns – Pernambuco – Brasil. Trata-se de território que traz consigo a ideologia e rituais nos Ilês de Candomblé, como sua própria identidade através da linguagem tanto verbal quanto corporal, também nas suas zuelas, vestimentas, nos rituais de passagem e suas divindades, representadas pelos Exus, Pombogira, até os Orixás. Em meio a está explanação surge a indagação: Como país dito “laico”, ainda hoje a intolerância religiosa é tão presente no meio social? Nessa perspectiva dar-se-a uma discursão teórica sobre o caminho do direito e o sagrado na Religião de Matriz Africana, mais precisamente o Candomblé. O campo metodologico deu através da revisão bibliográfica, na busca de dialogar dentro da Religião de Matriz Africana no meio urbano, que almeja o respeito no exercício da cidadania. Sendo à mesma resguardada perante a Constituição brasileira de 1988, o direito de ir e vir manifestando sua fé abertamente, seus preceitos, representações nas simbologias. Assim, como os outros segmentos religiosos são contemplados e reconhecido pela Constituição brasileira de 1988, no que refere-se a Resolução nº 36/55. A ONU em 1981, já havia proclamada a Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e Discriminação com base em Religião ou Crença, reconhecendo dessa forma os povos da Religião de Matriz Africana, contudo grande são os desafios apresentados ao longo dos anos, principalmante com as perseguições religiosas, violência física e simbólica, vem colocando a Religião de Matriz Africana em situações de vulnerabilidade. Dessa forma, este artigo buscou realizar uma breve explanação sobre o espaço onde a cultura dos negros escravizados permaneceu guardada, preservada e transmitida. Palavras-chaves: Candomblé. Direito. Ilê Asé Sogbô Aganjú. Considerações Iniciais A construção deste artigo tem como base o percurso histórico da Religião de Matriz Africana, mais precisamente o Candomblé que veio sendo transpassada ao longo da história, SANTOS, Wellington Ricardo Felix dos. Mestrando do Programa de Mestrado Profissional em Culturas Africanas, da Diáspora, e dos Povos Indígenas – PROCADI, pela Universidade de Pernambuco – UPE / Campus Garanhuns – PE. * 764 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X permintindo assim uma agregação de costumes e elementos culturais para o processo de construção do Brasil, vindo a ser incorporada pelos primeiros negros escravizados do século XVI, desde a culinária, idiomas bem como, a musicalidade e expressões de movimentos de danças. Diante dessa percepção, a população negra notabilizou-se através da produção de sua religiosidade viva e dinâmica, onde com sua complexidade o Candomblé, ainda hoje, ou mais do que nunca, vem sofrendo perseguições há décadas no Brasil. É dentro dessa contextualização que deparamos com alguns aspectos que almejamos abordar através deste artigo, do direito e o sagrado no Ilê Asé Sogbó Aganjú da Yalorixá Zefinha de Aganjú, localizado no Município de Garanhuns – PE, perante as questões tradicionais da religião de Matriz Africana que ao longo do tempo foram fixando e se adaptando em territórios urbanos. Através do percurso histórico, com a vinda dos negros escravizados para o Brasil no século XVI, vem com eles uma nova cultura e hábitos, sendo agregados com a cultura já existente no Brasil, colaborando com o processo de hibridação695 cultural. Fenômeno este que no processo histórico-social existe desde que o homem começou a se deslocar e ter contato com outros povos. O campo religioso da época diferenciava das culturas africanas, enquanto a uma buscava a sociabilidade como uma maneiro de grande importância, a religião dos negros escravizados trazia consigo tradições tanto da África Central quanto da África Ocidental, partindo assim a origem de uma gama de diversidade que foram sendo agregadas ao logo dos tempos, como as crenças, os rituais, a mitologia, se apresentando através da aprendizagem adquirida no Brasil [...] (SAMPAIO, 2001, p.6). O que em outras palavras podemos compreender é que a Religião de Matriz Africana, mais precisamente o Candomblé vem a ser uma forma de representatividade identitária dos negros escravizados que perpetuam na constução ao longo da história brasileira. Essas Canclini (2019), traz os termos hibridação, sincretismo. Nós aqui usaremos o termo hibridação. É o diálogo do passado com o presente, o encontro do antigo com o novo. O autor em questão, acredita que as movimentações evolutivas socioculturais, agregam entre se para a partir desta concepção a originar novas práticas permeando entre as estruturas e os objetivos. 695 765 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X identidades em seu processo de afirmação, sofrem grandes alterações provocadas pela globalização. Que ao logo do tempo, ao se fundir com o sincretismo das religiões europeias, e, assim, incorporando novos elementos de outras crenças, originando desta forma às Religiões de Matrizes Africanas, como é o caso do Candomblé, Umbanda, Xangô, o Catimbó entre outras. É importante ressaltar que atualmente o campo religioso vem sofrendo adaptações em sua construção social, cultural em todo o país, perpetuando a Religião Católica como a tradicional e a Religião de Matriz Africana como minoritária perante a sociedade. Transformações Historial das Religiões de Matriz Africana As religiões de matriz africana se tornam ao longo do tempo de fundamental importância para a socialização, agregando diferentes culturas da África teve assim sua participação na construção da história do Brasil. Partindo desta ideia nações como Angola, Beni e Congo agregaram muito de sua cultura para o país, onde cada uma delas com sua singularidade diante dos cultos em contato com os Orixás orientavam de acordo com seus preceitos e fundamentos. Com base tanto nas tradições da África Ocidental como na Central, os preceitos religiosos estão presentes tanto em suas ações de vida quanto nos momentos de celebração dos rituais. Permeando assim, o surgimento de diversas representações simbolicas, ritualisticas, perante as crenças tradicionais vindas de outros continentes e aprendidas no Brasil (SAMPAIO, 2001, p.6). Regidas pelos Orixás, a Religião de Matriz Africana, tem como responsáveis às entidades como os Caboclos, Exus, Mestres, Eres, e é claro os Orixás (seres da natureza) tendo em suas resposabilidades o equilibrio do mundo. Ou seja, o Candomblé vem a ser de Matriz Africana tendo consigo os fundamentos prioritário o respeito a natureza, ao “sangue verde”, pois tudo inicia-se pelas folhas, pelas ervas; é a fonta vital, o alicerce dos Terreiros, dos Ilês, dos Barracões, das Casas de Axés para as realizações desde os Ebós, sacudimentos, assentamentos de Santos, iniciação dos filhos e filhas de Santo, ou seja, esta presente em todos os movimentos ritualisticos. O século XVIII, por exemplo, viu a produção mineira dominar junto ao regime das grandes plantações; o século XIX, o desenvolvimento da 766 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X urbanização; enfim, a miscigenação e a ascensão do mulato modificaram, pouco a pouco, a antiga estratificação de castas, no fim do Império (BASTIDE, 1971, p.30). É através deste processo histórico, com a participação dos negros escravizados, ou seja, a mão de obra escrava que inicio o processo de desenvolvimento urbano, permitindo um acúmulo financeiro através dos ciclos econômicos do açúcar, do gado, da mineração, do café. Ainda dentro do processo histórico e cultural a relação do religioso torna-se o primeiro espaço de culto aos deuses africanos surge no pátio das senzalas, apesar de sofrerem com as proibições dos senhores de escravos e seus feitores. As manifestações também estiveram muito presente nos quilombos, estruturadas na reorganização das nações, alocados em novos meios biogeográficos, e por vezes estabelecendo o intercâmbio com os povos indígenas locais, o que provocou a incorporação de novos elementos espirituais, culinários e fitoterápicos. Com tamanhas agregações religiosas e culturais, alguns preceitos da Religião de Matriz Africana são agregados no seio das irmandades negras católicas, mantendo o oculto sob o manto dos Santos Católicos dissimulando suas divindades bem como também seu cunho abolicionista. As irmandades religiosas, com o apoio da Igreja Católica, atuavam com a separação das etnias africanas. Dessa forma, deu origem à respeitável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Sra. Das Portas do Carmo, constituída pelos negros escravizados de Angola, fundando assim, em 1685 a Igreja de Nossa Sra. do Rosário do Pelourinho, também conhecida como a Igreja do Rosário dos Pretos. Já os negros escravizados daomeanos – gêges, os mesmos pertenciam a nação Ketô, conglomeravam na devoção de Nosso Sr. Bom Jesus das Necessidades e Redenção dos Homens Pretos, do século 18, a Igreja, também conhecida como a Capela do Corpo Santo, localizada na cidade Baixa, Salvador – BA. Originando, portanto, duas fraternidades, são elas: a das mulheres, devotas de Nossa Senhora da Boa Morte; e a dos homens que devotos de Nosso Senhor dos Martírios (VERGE, 1985, p.28). Diante do processo de colonização, os europeus ao chegar na África com sua 767 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X concepção do cristianismo se depararam com um leque de deuses cultuados. Onde os colonizadores acreditavam em apenas um deus, fundada em preceitos religiosos que estavam escritos na Bíblia, não tinha mais nada a ser revelado, apenas realizar o cumprimento e vivenciar o que já havia sido escrito. Sendo totalmente diferente da fé dos negros escravizados com sua religião africana, onde todos os dias existiam novas manifestações com revelações atuais, onde cada nação possuía sua liberdade de culto e assim, seguiam seus deuses de acordo com as revelações. Nessa linha de pensamento, Cappelli (2010), a injustiça que os negros escravizados viviam sua fé aos Orixás escondidos, transpassando simbolicamente a representatividade dos Orixás aos Santos Católicos. Fica claro que em nenhum momento os negros escravizados negaram ou começaram a praticar a fé dos colonizadores, no caso à Religião Católica, como é sabido que muito ainda hoje alastram dentro do sincretismo religioso. Mais que na verdade eles, os negros escravizados acolheram à ajuda através de novos deuses, devido as condições que estavam, ou seja, escravizados, em terra desconhecida. Revertendo a concepção de que os negros escravizados praticavam a fé Católica devido ao medo que eles tinham dos colonizadores, mais o que aconteceu na verdade foi uma ampliação da fé, pois, eles tinham o entendimento de diferenciar os Orixás dos Santos cristãos, e em seu entendimento concluíram que tanto os Orixás quanto os Santos cristãos trabalhavam de formas distintas para auxiliá-los em seus desígnios do cotidiano. A identidade negra se conserva através da Religião de Matriz Africana, vindo a fundir-se com outras Religiões, tais como as europeias sofreu uma transformação, passando a agregar novos elementos de outras crenças, originando assim às Religiões Afro-brasileiras, ou seja, o Candomblé, Umbanda, Xangô, o Catimbó entre outras. Atualmente sendo vistas como parte agregadas a cultura brasileira. A construção identitária, que o processo de território dar-se como o papel de pertencimento, ou seja, a formação das irmandades registra-se os grupos étnicos a elas pertencentes, pois, apartir das configurações dos grupos étnicos e religiosos o poder das elites constituído na figura do Estado, tinha como identificar os grupos e seus respectivos territórios. As nações africanas tinha sua estruturação como base na Religião Católica a partir da sua conversão, contudo as características marcantes da Religião de Matriz Africana estava presente no sincretismo, permitindo assim, de certo modo uma aceitação social, onde as tradições africanas pudessem se expressar com visibilidade e fora da clandestinidade e, 768 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sobretudo, permitiam a formação de ampla teia de apoio e amparo tanto aos negros escravizados quanto aos negros libertos. Compreendemos que o esquecimento do “outro” e sua alteridade pode revelar o não reconhecimento de sua identidade e até significar uma afloração de feridas que serão cada vez mais evidenciadas e marcadas na construção de uma sociedade democrática. As nações africanas foram de fundamental importância na luta da libertação e na abolição, através da compra da alforria e com estratégias coordenadas na busca de resgatar e libertar os negros escravizados, tendo Antônio Bento como líder (ROLNIK, 1997; QUINTÃO, 2007). Não se tratando apenas da identificação permanente dos Ilês de Candomblés, mais do processo de adaptação que vinheram passando ao longo do tempo. Onde a Religião de Matriz Africana, como o Candomblé foram agregando novos elementos de diversas nações trazidas pela acestralidade em seus fundamentos, rituais, segredos que somente os Voduns, Inkices e Orixás poderiam transmitir para os seus Babas e Yas. Sendo possível identificar a partir de suas nações de procedência ritualísticas tais como: Angola, Ketu, Ijesá, Jeje e Efon. Através dos preceitos, dos segredos, veio se consolidando dentro dos rituais de Candomblé, agregando e preservando toda a sua ancestralidade e decendência africana, no Brasil através da missigenação das diversas nações dos negros escravizados, ao longo da história o Candomblé na verdade é uma Religão de Matriz Africana, e dentro desse fenômeno histórico, a Religião Candomblé passa a ser vista como uma instituição que está ligada de questões religiosas, sociais e culturais, uma vez que a mesma é cosntituida com seus próprios segredos, fundamentos, movimentos ritualisticos, tudo seguindo as orientações desde os Exus, aos Caboclos, Mestres e os Orixás696, sendo eles os que dão sentido a existência do Asé do Ilê, Terreiro, Barracão, Roça ou Casa de Santo. O Candomblé segue um caminho hierarquico, na busca de manter os segredos, fundamentos, cultura, conceito da nossa fé, estando sempre dentro do processo identitário afrobrasileiro. Dessa forma temos como líberes o Babá ou a Ya (Babalorixá/Yalorixá), estes são os que fazem à ponte aos Orixás, aos nossos ancestrais. Por ser uma religião afro-brasileira, alguns antropólogos defende a ideia que o Candomblé foi constituído na Bahia sendo considerado como um ato de resistência cultural na 696 Jagum (2013), define o Orixá (do Iorubá Òrìṣà) são divindades da religião Iorubá representados pela natureza. Olodumaré os enviaram para o processo da geração do mundo, logo em seguida tinha a função de ensinar a humanidade a viver no planeta. 769 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X busca da preservação étnico afro-descendente dos antigos negros escravizados. É preciso lembrar que o Candomblé nasce, também, com sua ligação ao catolicismo, uma vez que os negros escravizados buscava reconstruir a África através dessa religião, os mesmos sentiram a necessidade de participar da sociedade brasileira, por meio da conversão à religião dominantemente, ou seja, o catolicismo como a única forma que possibilitaria sua sobrevivência. Segundo Prandi (2006) em seus estudos, o Candomblé era tida como a religião de negros e mulatos que se formavá numa reação à segregação racial em uma sociedade tradicional, contudo, em meados de 1960, a Religião do Candomblé passou a se oferecer aos outros seguimentos da população não-africana. Prandi relata que foi em São Paulo que o Candomblé passou por um período da história brasileira, onde as antigas tradições encontraram condições econômicas para a reprodução e, assim, se mutiplicar pelo sul do país, o Candomblé se deparou em condições sociais, culturais e, principalmente, econômicas para o renascimento em um novo território. Prandi (2006) explana ainda que foi apartir daí que o Candomblé passou a ganhar clientela, ou seja, pessoas passaram a procurar a religião com a intenção de trabalhos mágicoreligiosos no qual através do jogo de búzios, é possível identificar qual o Orixá que rege o orí697 da pessoa, e, assim, seguindo as orientações das Yalorixás ou dos Babalorixás sobre os banhos, ebós , oferendas etc, vindo, ainda, a participar/assistir das festas e colaborar com seus gastos, 698 dessa maneira o cliente não estaria comprometido com a religião diretamente. O cliente se destaca a partir da necessidade de buscar ajuda nos Ilês, através de consultas com algumas entidades, tais como: Exu, Pombogira, Mestres, Pretos (as) velhos (as), assim como ao realizar oferendas aos mesmos e aos Orixás; gerando um vericidade dos acontecimentos ocorridos no Ilê e no meio religioso, permeando o reconhecimento no meio social. Bem como, é através da clientela que provém, em alguns terreiros, a manutenção e despesas necessarias para as atividades sacrificiais (PRANDI, 2006, p. 6). 697 Orí: cabeça. Ebós: É são trabalhos ritualísticos de origem africana com diversas finalidades, à exemplo de limpeza da pessoa, retirando todas e quaisquer má influência, energia negativa; sendo neste rito a sacralização ou não de animais. Para saber mais acesse: <http://www.juntosnocandomble.com.br/2011/06/ebo-significadocompleto.html>. 698 770 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X É a partir dessa transformação ocorrida no Candomblé, que deram legitimação social através do processo de africanização, que a cultura negra passou ao longo dos tempos. Contudo, é importante ressaltar que este processo não acontece de maneira igual em cada local, ou seja, cada região, o Candomblé passou por transformações, na busca da sua tradição com o processo de reaprendizado desde a língua, os mitos e os ritos que foram aos poucos se perdendo. Um ponto de fundamental importância é que o Candomblé veio crescendo no Brasil, e que aos poucos, está se desvinculando do catolicismo. Sendo através dos Candomblés baianos das nações Keto e Angola, foram as principais responsavéis pela expansão no Brasil, desse modo, sendo encontrado em todas as Regiões do país. Ao constituir o primeiro Ilê de Candomblé como um modelo para o conjunto das Religiões dos Orixás, com os seus ritos, mitologias, panteões que, ainda hoje, são predominantes praticados. Prandi (2006) afirma que o Candomblé Angola, por mais que tenha adotado os Orixás, onde os mesmos são dinvidades da nação Nagô, sendo agregado muito das concepções ritualísticas de origem Yorubá699. Desempenhando, dessa forma, um papel de grande importância no surgimento de religiões afro-brasileiras tais como: Catimbó, Xangó, Pajelança, Vodu entre outras. Contudo, vale ressaltar que foi a Religião da Umbando que ganho seu reconhecimento, espaço entre o Rio de Janeiro e São Paulo em meados do século 20. Com novas visões e dinâmicas internamente, o sentido da Religião de Matriz Africana passa a gerar uma grande convivência entre grupos, permitindo novos surgimentos dentro dos valores éticos, culturais, sociais e comportamentais que veio erriquecendo ao longo do tempo no contexto patrimonial socio-cultural do país. Trajetória das Políticas Públicas e a perseguição a Religião de Matriz Africana Para começarmos a pensar o direito ao sagrado, a prática religiosa dos adeptos de Religião de Matriz Africana é necessário pensar exatamente o contrário, quando historicamente as leis no Brasil foram mecanismo de proibição, criminalização, silenciamento dessas religiões, já que podemos facilmente confundir a história desses sagrados, com a dos povos que compõem sua matriz cultural, dos negros escravizados perseguidos, foram alvos de políticas públicas para sua extinção em vários sentidos, inclusive no religioso. 699 Yorubá: Possui diversos significados/representações. Neste caso trata de um dos maiores grupos étnicolinguísticos da África Ocidental, tendo aproximadamente 30 milhões de pessoas em toda a Região. Para saber mais acesse: <https://escola.britannica.com.br/artigo/ioruba/487841>. 771 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X No Brasil desde o princípio de sua história colonial com Portugal, e desse com outras colônias sob seu domínio, mostrou que as questões religiosas eram fundamentais para garantia e manutenção das conquistas. A Igreja Católica se torna uma das peças centrais da máquina colonial, inclusive, em forte parceria com o Estado, no que diz respeito a elaboração de políticas para expansão da fé cristã e demonização de qualquer outra perspectiva que fuja a lógica católica. Por essa linha destacamos as Ordenações Filipinas, que foram as primeiras leis que regeram o Brasil enquanto extensão de Portugal. Como nesse período o saber estava intimamente ligado à igreja, pode-se dizer que o catolicismo influenciou consideravelmente esses ordenamentos. Por ele, escravos eram obrigados a se converterem e recebiam após o batismo um nome cristão, também se proibia qualquer manifestação cultural-religiosa de africanos e descendentes, assim como criminalizava a feitiçaria. (PAES, 2011) As Ordenações Filipinas, foram modelo de direito no Brasil até meados de 1916 (PAES, 2011), e entre seu estabelecimento até a constituição de 1824 não houve alterações no que diz respeitos a religião no Brasil. E mesmo com o surgimento do país tupiniquim com a proclamação da independência e a primeira constituição, a de 1824, no que diz respeito as religiões que existiam no Brasil de então se estabeleceu o catolicismo como religião oficial do Império, dispondo sobre todas as outras a condição de cultos domésticos. Enquanto no seu Código Criminal todas as religiões não oficiais estavam proibidas, dispondo no seu Art. 276, que “celebrar em casa, ou edificio, que tenha alguma forma exterior de Templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra religião, que não seja a do Estado.” (BRASIL, 1830) estariam sujeitos as penalidades da lei. Somente na Constituição de 1891, a primeira da proclamanda República dos Estados Unidos do Brasil, aparece algo substacial para essa relação com a religião. Esse ordenamento estabelecia o estato laico, separando a Igreja do Estado e proclamando a liberdade religiosa no país. (PAULY, 2004). Por outro lado, em 1890 se estabele o Código Penal que em seus artigos matinham a criminalização de manifestações de magia, curandeirismo e a prática do espiritimo. Giumbelli (2008), essas caracteristicas apresentadas nos artigos estavam em consonancia com as práticas das religiões de matriz africana, bem como do espitismo Kardecista que começa a aparecer por essas terras. Logo, podemos perceber a perseguição, disciminação e criminalização das religões que não fossem cristãs. Essa mesma orientação constitucional para o Estado laico, perdura até a Constituição 772 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Republicana atual (1988) porém algumas políticas também perpeturam as perseguições as religiões fora da lógica cirstã, como exemplo, basta pensarmos a Carta de 1937, do estabelecimento no governo de Getulio Vargas, da ditadura do Estado Novo, lá o texto garante a laicidade do Estado e leberdade religiosa, porém é nesse mesmo momento que se incia uma grande perseguição a Religião de Matriz Africana, em nome da moral e principios cristãos. De acordo com Costa (2009), fica ainda mais evidente quando pensamos o Código Penal de 1940, que matinha a criminalização do curandeirismo e estabelecia o crime de chalantanismo, apresentando como caracteriscas a essas práticas “Art. 283, Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível [...], Já no Art. 284, Exercer o curandeirismo: I prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio e ou III - fazendo diagnósticos.” (BRASIL, 1940) Fica evidente quais religiões se tornaram alvos dessas leis. Podemos seguramente dizer que tais prática legais se mantém até a atualidade, mesmo que pós Constituição de 1988, a liberdade religiosa tenha sido mais respeitada, e o Estado venha se assumindo como laico em vários posicionamentos, o que vemos são manifestações de intolerância, de perseguição, de demonização das religiões fora da lógica cristã, a prova disso se dá ao termos uma bancada católica-evangelica nas câmaras. Ao ser ilustrado quando pensamos que até 1976 no Brasil havia a obrigação de registro em delegacias policiais para as Religiões de Matriz Africana, para permissão que suas festas podessem acontecer, além de pagamento de taxas as delegacias, bem como da obrigação de suas lideranças, Babas e/ou ìyawó, de se submeterem a exames de saninade mental periodicamente. (COSTA, 2009) Por fim, precisamos ter em mente que muitas outras políticas públicas foram criadas, implicitamente, para sileciar as Religiões de Matrizes Africanas, como aponta o trabalho de Márcio Glauberto (2011) “Mapa da Intolerância Religiosa: violação ao direito de culto no Brasil” que dispõem sobre essa perseguição legal as religiões, e alerta para leis com outros direcionamentos mas que funcional como silenciadores, destruidores das religões negras no Brasil. Em contra partida ao exposta anteriormente o Brasil tem se empenhado, através da luta de movimentos sociais, ações partidarias, e de outras entidades ao combate as intolerâncias religiosas, nesse sentido a Carta Magna de 1988, em seu Art. 5º, garante a liberdade de crença e de não crença, bem como a liberdade de expressar seus pensamentos dentro do limete da lei. Outra coisa muito importante considerada por a Contituição foi a garantia que o Estado não 773 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X interferirá nas questões religiosas. (BRASIL, 1988) Essas garantias, se respeitadas, coloca as entidades religiosas numa condição de segurança para sua existência. Mesmo com os contras apresentados nos parágrafos anteriores. Glauberto (2011), ressalta a existência de diversos tratados internacionais que em seus ordenamentos tem por finalidade a liberdade e respeito as religiões, bem como a diversidade cultural, seria o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Contudo, sabemos que não só um ordenamento jurídico que garante o respeito, mas uma construção, baseada principalmente na educação doméstica e escolar, para a eleminação de tantas intolerâncias. Ilê Asé Sogbô Aganjú e o Direito ao Sagrado O percurso da construção histórica do Ilê Asé Sogbô Aganjú, surge através do relato da Yalorixá 700 Zefinha de Aganjú701, onde a mesma nos conta que o primeiro Babalorixá702 no Município de Garanhuns, deu-se através de dos pais de “Pai Fernando de Oyá Ygbalé Gun703”, como o seu primeiro Ilê da Nação Jeje704, localizado na Rua Manuel Clemente, bairro Santo Antônio. Vindo logo em seguida ser transferido para a Rua Severiano Peixoto, também localizado no mesmo bairro. Com o falecimento do Babalorixá Fernando de Oyá Ygbalé Gun, não houve sucessão do Ilé , e assim, sendo o mesmo encerrado. Contudo, os (as) Yaôs706, bem como os Ogãs707, as 705 Ekedes , os (as) Ebômis , Abiãs , dentre outros passaram a fazer parte da mão da Yalorixá 708 709 710 700 Jagum (2013), o termo Yalorixá é matriarca, sacerdote feminino, cargo mais alto da Religião de Matriz Africana. 701 Aganjú: É uma das qualidades do Orixá Xangô, tendo como representação um vulcão, pois é uma das qualidades do Orixá mais forte, explosivo. 702 Jagum (2013), apresenta como definição para Babalorixá sendo o patriarca, sacerdote masculino, cargo mais alto da Religião de Matriz Africana. Oyá Ygbalé (Ìgbàlè) Gun: É a digina, ou seja, o nome de iniciação do filho de Santo, sendo este filho de Iansã, Oyá Ìgbàlè é uma das qualidades de Iansã, neste caso tem por significado Significa a Senhora da Floresta Sagrada dos Ancestrais. Para saber mais acesse: <https://ocandomble.com/2008/09/11/qualidades-de-oya-iansa/>. Parés (2018), apresenta a Nação Jeje no Candomblé Jeje, é o culto aos Voduns do Reino do Daomé levados para o Brasil pelos africanos escravizados em várias regiões da África Ocidental e África Central. Essas divindades são da rica, complexa e elevada Mitologia Fon. Ilê: casa, terreiro, barracão, roça. Iaô: é a denominação dos filhos-de-santo já iniciados, que ainda não completaram o período de sete anos da iniciação. Jagum (2013), Ogã é uma patente do sexo masculino do Ilê escolhido pelo Orixá para ser responsável por algum cargo/função de grande importância dentro do Ilê, o mesmo não incorpora, porém tem influência espiritual. Jagum (2013), explica que Ekede Ebômi do sexo feminino, que não entra em transe e tem funções de auxílio ao orixá, tendo como obrigações principais vesti-lo, cuidar de suas roupas, dançar com ele, estar permanentemente ao seu lado quando entra em transe, atendendo a seus pedidos, enxugando o suor do rosto de seu "filho" durante a 703 704 705 706 707 708 774 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Zefinha de Aganjú – Ilê Asé Sogbó Aganjú, por ser a Yalorixá mais antiga e filha da mão do “Pai Fernando de Oyá Ygbalé Gun”. Sendo atualmente o Ilê de Candomblé “aberto” mais antigo no Município de Garanhuns – PE. É importante ressaltarmos que todos os Ilês, Terreiros, Roça, Barracão “abertos”, ou seja, que funcionam seguem todos os instrumentos de funcionamento desde o alvará obtido pelas Prefeituras, como a inscrições nas Associações de Religiões afro-brasileiras (Matriz Africana), seguindo assim os regimentos de cada estado que o mesmo faça parte. Isso ocorre porque muito acreditam que sua existência é tida como um meio financeiro, uma atividade econômica. Considerações Finais A construção deste artigo nos leva por caminhos da história da Religião de Matriz Africana, neste caso o Candomblé. Religião está rica de sentimentos, de manifestações, representações socioculturais que ao longo do tempo foi passando por processo de ressignificação, e assim agregando novos valores culturais de outras religiões, e culturas já existentes aqui no Brasil. Nesse campo a Religião de Matriz Africana vem construindo uma resistência árdua em meio a tantas perseguições, e a intolerância religiosa declarada, bem como étnico-racial. Foi nesse percurso histórico que o Brasil constituiu sua nação, através da exploração de negros escravizados de África trazem consigo todos os seus costumes, tradições, religiosidade e assim, agregando à cultura já existente no Brasil. Não sendo diferente o processo de inserção da religiosidade de Matriz Africana e Afrobrasileiras, nesse percurso temos a Religião do Candomblé, esta rica em seus preceitos, fundamentos, segredos ritualísticos vem sofrendo constantemente perseguições declaradas. Perseguição esta inaceitável a partir do momento em que na Constituição brasileira, assim como nas Resoluções pelas quais foram aprovadas na Assembléia Geral, como é o caso da 36/55, onde a mesma exclui todas e quaisquer forma de intolerância e discriminação que tenha base seja na Religião ou na crença. Assim como está estabelecido no Art. 5º da Constituição dança. Para saber mais acesse:< http://jornalismo.iesb.br/2015/08/16/babalorixa-explica-o-significado-das-cores-eroupas-candomble/>. Jagum (2013), Ebômis é o título de senioridade que se dá a quem já tenha dado a "obrigação" de sete anos ou às pessoas que não entram em transe e se iniciam no candomblé, como é o caso dos Ogãs e das Ekedes.. Abiã, é o indivíduo que ainda não passou pela cerimônia de iniciação, propriamente dita, mas que já "deu" (realizou) o borí pré-iniciático. 709 710 775 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X brasileira, os direitos fundamentais à liberdade religiosa dos cidadãos. Podemos concluir a grandiosidade e riqueza cultural inserida no Brasil, mas também percebemos a necessidade dá população começarem a enxergar e a respeitar as diferenças, as culturas e religiosidades dos outros. Em um país tão miscigenado, é inaceitável tamanha crueldade, quando tratamos da intolerância religiosa, da perseguição sofrida brutalmente com as Religiões de Matriz Africana e seus adeptos. Por mais que esteja garantida na Constituição brasileira de 1988, o direito a liberdade religiosa, é marcante e presente a criminalização em um país dito “laico”. A realidade é totalmente outra, é notório que o país ainda está preso ao período da escravidão, entranhado à uma sociedade racista, preconceituosa e a discriminatória, fazendo ligações há tudo que vem dos negros não presta. Assim, acontece também com a Religião de Matriz Africana por originarem dos negros escravizados é uma religião marginalizada em todos os aspectos. Para se manter viva e presenta tanto a religiosidade negra quanto a cultura negra vem se disfarçando, se ressignificando para sua sobrevivência nos dias atuais. Vale realçar que a declaração sobre os direitos as pessoas pertencentes ou étnicas, religiosas e linguísticas minoria nacional, busca da anular de qualquer forma de intolerância e discriminação que esteja ou não ligada à Religião de Matriz Africana, a Organização das Nações Unidas em 1981, deixa bem claro ao assegurar que todas as religiões, convicções fazem parte da construção social e cultural na vida das pessoas que a professam, sendo às mesmas protegidas e respeitadas de forma integra pelo Estado. É papel do Estado sua atuação na prática da laicidade, gerando uma reformulação do mesmo na busca de que seja aplicado sua real função e papel perante a sociedade. Referências BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. 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Como resultado dos embates/debates internos e da reconfiguração das forças políticas no Anglicanismo no Brasil, em 2018, é aprovado o casamento igualitário entre pessoas do mesmo sexo, ainda que em um cenário de crescente discurso autoafirmado como conservador nos segmentos políticos e religiosos. Palavras-chave: Anglicanismo; Sexualidade; Rupturas. O presente trabalho se constitui em uma análise sobre as reconfigurações institucionais e das políticas sexuais no anglicanismo na região Nordeste do Brasil. Para tanto, enfocamos os eventos que se dão na Catedral Anglicana da Santíssima Trindade por ser o centro das principais discussões e disputas políticas-sexuais dentro do Anglicanismo no Brasil desde o começo do século XXI sobre o acesso ou não de pessoas não heterossexuais aos rituais da ordenação e do casamento. Essas discussões levaram a três cisões da Diocese Anglicana do Recife-DAR, em 2002, 2005 e 2017, a qual a Catedral era filiada. Esses conflitos, como se demonstrará adiante, vão além da Catedral ou do Anglicanismo no Brasil, mas imbricam uma série de relações políticas locais, nacionais e internacionais que se mostraram bastante dinâmicas. Carrara (2015), a partir da sua leitura quanto às políticas sexuais propostas por Weeks (1989), entende que é pela via jurídica, mediada pela ação da sociedade civil organizada – Mestre em Antropologia Social (2020) pela Universidade Federal de Alagoas. Atualmente é Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Alagoas. * 779 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X particularmente o movimento LGBT, feminista, pelos direitos humanos - e a intervenção do Estado, no caso brasileiro em especial do judiciário, que uma série de direitos são debatidos, reivindicados e conquistados. Nesse cenário de mudanças as religiões são instigadas a (re)pensar suas posições e, surgem uma série de reações que vão desde o acolhimento institucional, surgimento das “igrejas inclusivas” e a organização de ministérios relacionados à diversidade nas denominações evangélicas, até a organização de novas frentes de restauração da heterossexualidade dentro das igrejas e da atuação política contra esses direitos. Assim, em um contexto de crescente visibilidade da causa LGBT e suas conquistas de direitos, o Anglicanismo se coloca frente a essas questões. Também, a ordenação de um bispo homossexual nos Estados Unidos em 2003 foi o estopim das reações no cenário anglicano, mobilizando os mais variados grupos dentro da instituição e levando-os a revisitar suas posições teológicas, políticas, sociais e morais. A ruptura de 2002 e o surgimento da Igreja Episcopal Carismática do Brasil Frente à visibilidade dos debates sobre a inclusão de LGBT ́s nas igrejas cristãs no começo dos anos 2000 e os movimentos de ação/reação que se desenvolvem em plano institucional, político e até jurídico, o Anglicanismo no Nordeste se posicionou fortemente, tendo destaque no debate nacional e, mesmo internacional, no interior da Comunhão Anglicana. Esse destaque, porém, precisa ser considerado à luz das relações políticas locais, das disputas envolvendo as lideranças dentro das comunidades, além de projetos individuais de prestígio e autoridade religiosa. Segundo a interpretação propagada dentro da Diocese Anglicana do Recife (DAR), o cerne que iria iniciar a gestação das rupturas de 2002 e 2005 seria a substituição primeiro bispo da Diocese, Dom Edmund Sherill, em 1984. O então titular da diocese tinha como plano fazer com que o Revdo. Paulo Garcia, que ele havia colocado como Deão (presbítero responsável) da Catedral Anglicana da Santíssima Trindade e que tinha feito um trabalho de expansão da igreja entre os brasileiros, fosse eleito como novo bispo. Com a eleição de Dom Clóvis em 1984, esses planos foram frustrados. Ainda assim, Revdo. Paulo Garcia mantém seu prestígio e sua atuação junto à Catedral. Segundo relata o atual bispo diocesano da DAR-IEAB, Dom João Câncio, Revdo. Paulo Garcia tinha uma postura centralizadora que o fazia “dono da Catedral”. Enfatizou que o bispo de então chegava 780 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X a ser impedido de frequentar o tempo ao critério do seu líder. Cristiany Queiroz (2004), dá a dimensão de como era vista a atuação do reverendo por alguns segmentos da Catedral como uma figura desagregadora e que teria lançado a diocese a divisão interna sem ter uma base teológica consistente, mas apenas por uma questão de poder e prestígio pessoal. Na eleição subsequente, em 1997, Dom Robinson Cavalcanti tornou-se bispo diocesano da DAR-IEAB. Conforme relato de bastidor o então bispo e Paulo Garcia teriam um acordo mútuo, firmado em um encontro realizado na cidade de Paudalho, Pernambuco. Segundo esse acordo, Paulo Garcia daria seu apoio a Robinson Cavalcanti que, uma vez eleito, renunciaria em favor do primeiro. Ambos integravam o ramo evangélico do Anglicanismo no Nordeste, vindos originalmente do Presbiterianismo e do Luteranismo, respectivamente. Uma vez que o acordo não foi comprido, abriu-se espaço a hostilidade aberta entre as partes. Em entrevista, um interlocutor informou que a construção da igreja em Boa Viagem, atual sede da DAR, aconteceu pelo fato de o bispo Dom Robinson Cavalcanti ser impedido de frequentar a Catedral da Santíssima Trindade. Ele aponta para as “coincidências” da vida, pois segundo ele o templo de Boa Viagem construído para servir de Catedral do bispo impedido de frequentar a catedral oficial acabou cumprindo seu destino, ainda que anos mais tarde. Assim sendo, em 2002, a Diocese Anglicana do Recife (DAR), ligada à Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), perdeu sua maior congregação local (a Catedral da Santíssima Trindade) para a Igreja Episcopal Carismática do Brasil (IECB). Na ocasião, Revdo. Paulo Garcia, o deão da Catedral (que liderou a ruptura) afirmou contundentemente que sua saída da IEAB era motivada pela “liberdade exagerada” que a mesma concedia aos homossexuais. A mídia local deu ampla cobertura ao conflito institucional trazendo falas e explicações dos principais atores envolvidos no embate: o deão cismático da Catedral (Paulo Garcia) e seu opositor e antes aliado, o bispo anglicano local (Robinson Cavalcanti). (SOARES, 2002) Paulo Garcia fazia questão de frisar que não estava abdicando do seu posto de líder espiritual da Catedral da Santíssima Trindade, nem da eclesiologia anglicana, e nem muito menos de sua vertente “episcopaliana”, afinal continuaria realizando suas atividades de pastor da Catedral, agora filiado a Igreja Episcopal Carismática do Brasil (IECB), extremamente semelhante na linguagem, gestos, culto e teologia a IEAB, pelo menos na percepção dos leigos. Cristiany Queiroz (2004) explora essa tensão entre os dois grupos, de um lado os episcopais carismáticos e do outro os episcopais anglicanos. Enquanto se escuta um tom bastante acusatório do grupo que seguiu ligado a DAR quanto a postura do Revdo. Paulo 781 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Garcia do grupo que o seguiu, não se percebe o mesmo no que tange às suas práticas e teologia. A grande acusação é de um rompimento motivado por questões pessoais, da quebra da tradição, representado, entre outros sinais, pela reforma do prédio antigo da Catedral e a descaracterização de sua arquitetura. Mas ainda que a autora, a partir dos dados e falas de campo, expresse que episcopais carismáticos tenham práticas religiosas que cultivem um apelo sentimental maior e que tenham posturas mais próximas a grupos pentecostais e neopentecostais, enquanto que os episcopais anglicanos teriam uma postura mais tradicional e racionalistas frente a teologia e prática. Porém, nas falas dos interlocutores de Queiroz, assim como naquelas que colhi em campo, não vejo um questionamento quanto ao fato de esses grupos separados seguirem, ao menos em seus pontos fundamentais, enquanto anglicanos. A ruptura de 2005 e o embate entre “liberais” e “ortodoxos” Para que se possa compreender a crise de relacionamento entre Dom Robinson Cavalcanti e a IEAB que levou a uma nova ruptura na DAR em 2005, é preciso considerar a sua postura frente a Carta Pastoral sobre Sexualidade Humana de 1997 (IEAB, 1997). Esta carta trata sobre as perspectivas de interpretação bíblica com relação à homossexualidade e de como isso vinha repercutindo no interior da Comunhão Anglicana desde a Conferência de Lambeth realizada em 1988. A liderança recifense foi a única a não a assinar. A crise é retomada, quando em 2003 a Igreja Episcopal dos Estados Unidos elege o homossexual assumido Gene Robinson para bispo da diocese de New Hampshire e a Diocese de New Westminster no Canadá aprova a benção para uniões homossexuais. A IEAB se pronuncia a respeito referendando a decisão das Igrejas dos Estados Unidos e do Canadá apontando as dificuldades que essas decisões traziam no cenário anglicano local e internacional. Dom Robinson Cavalvanti, discordando da postura adotada pela IEAB frente às decisões tomadas pelas Igrejas dos Estados Unidos e do Canadá, não apenas promove ações no interior de sua diocese a fim demarcar uma postura dissonante, como passa a se articular de forma independente com outros setores conservadores da igreja dentro e fora do país. A postura combativa de Dom Robinson Cavalcanti, líder do grupo, se dá devido a sua visão negativa sobre a homossexualidade e disso da participação de homossexuais como lideranças na igreja. Sua postura no que concerne a homossexualidade, é de apresentá-la como doença que necessite de tratamento – quer psicológico, quer espiritual. Em sua obra Libertação e Sexualidade (1990), e em outros tantos artigos que circulam pela internet em especial no site 782 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X da Igreja Anglicana-Diocese do Recife (http://anglicanadr.com.br/) e da Revista Ultimato (www.ultimato.com.br), ele expressa esse ponto de vista. Para ele: A leitura das Sagradas Escrituras nos leva a afirmar certos parâmetros básicos, [...], quanto à sexualidade. Diferentemente de meros costumes ou tradições, esses padrões quando rompidos, possuem uma dimensão patológica, de riscos, de danos, de negatividade, em si mesmos. (CAVALCANTI, 1990, p. 26) Assim, o referido bispo, elenca uma lista de padrões de comportamento sexual que feririam essa ética cristã e teriam uma dimensão patológica. Logo depois da necrofilia e da zoofilia, está o “homossexualismo”. Sendo assim: “Deus destinou o ser humano à realização com o sexo oposto. O homossexualismo, ou atração pelo mesmo sexo, fere esse padrão.” (CAVALCANTI, 1990, p. 27). A fala de Robinson Cavalcanti caminha na direção clara de associar a homossexualidade a práticas classificadas como “outros transtornos da preferência sexual” (CID 10. F65.8), ainda que desde pelo menos 1995, a OMS, tenha retirado a homossexualidade dessa lista e o termo “homossexualismo” tenha sido superado. É preciso ter em vista que grupos religiosos cristãos apresentam os mais variados posicionamentos sobre sexualidade a partir de diferentes perspectivas. Sendo assim, Jurkewicz (2005) identifica no cristianismo três posicionamentos base quanto à homossexualidade: 1. oposição absoluta, encontrada principalmente nos grupos que interpretam a homossexualidade como antinatural e pecaminosa. Ainda assim muitos desses grupos falam em um acolhimento dessas pessoas no sentido de que estas reconheçam seu erro, peçam ajuda e a partir desse ponto mudem seu comportamento, em um processo que muitas vezes envolve um tratamento de ordem física e espiritual; 2. comportamento aceitável, ainda que essa orientação sexual seja considerada como inferior, colocando a abstinência como uma opção para aqueles que não conseguem se ajustar ao estilo de vida heterossexual; 3. aceitação, considerando a homossexualidade em patamar de igualdade com a heterossexualidade, valorizando e reafirmando valores ligados ao afeto e manutenção da conjugalidade, entendendo como pecado não a homossexualidade em si, mas a exploração dos parceiros, fenômeno que pode ocorrer também nas relações heterossexuais. 783 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X A participação de Dom Robinson Cavalcanti “juntamente com outros cinco bispos num Ofício de Confirmação, na Diocese de Ohio, nos Estados Unidos sem o convite ou o conhecimento do bispo diocesano local”, se configura “numa total violação à constituição e aos cânones da TEC (Igreja Episcopal dos Estados Unidos)” conforme o então bispo primaz do Brasil, Dom Orlando Santos de Oliveira em carta-aberta de 17 de março de 2004. Em artigo-resposta publicado a 21 de março do mesmo ano, Dom Robinson propõe que “se há, (...) um impasse tanto canônico quanto teológico e moral, resta uma solução negociada por um grande acordo político, no qual a minoria ortodoxa elimina a opção pelo cisma e a maioria liberal elimina a solução pelas sanções” (IEAB, 2004), chegando a afirmar a necessidade de uma “refundação” do Anglicanismo nos Estados Unidos, com a criação de uma Província não territorial em contraposição a província estabelecida. Diante do acirramento das tensões e do estabelecimento da supervisão episcopal pela IEAB ante a DAR, Dom Robinson convoca o Concílio Diocesano e envia carta a Dom Gregory Venable, bispo primaz da Igreja Anglicana do Cone Sul da América (IACSA), na Argentina, pedindo asilo canônico, ainda que a IACSA não tivesse autoridade e atuação no Brasil. Diante da aceitação por parte do bispo argentino do asilo a DAR, a IEAB, através de seu bispo primaz, escreve ao Arcebispo de Cantuária, expondo-lhe seu ponto de vista e o que a levou a tomar tais decisões. Dom Robinson se coloca como perseguido político pela IEAB em carta endereçada ao arcebispo de Cantuária, o que é rebatido pela IEAB. Em 2005, com a expulsão de Dom Robinson, após Processo Canônico (IEAB, 2005) movido pela IEAB, chega ao final os conflitos. Dom Robinson funda a Igreja AnglicanaDiocese do Recife, que se coloca como defensora de pretensos valores tradicionais do Anglicanismo e contra o que ele entende ser uma postura liberalizante que a IEAB adota. A exclusão da DAR-IEAB de Dom Robinson Cavalcanti e daqueles que o apoiavam, que posteriormente fundaram a Igreja Anglicana-Diocese do Recife, a perda de templos e fiéis em nível local “resolve” momentaneamente a crise. Muitos templos que ficaram com o grupo dissidente foram reavidos pela DAR-IEAB após um processo judicial de mais de 10 anos, dentre esses templos o de Boa Viagem, atual Catedral do Bom Samaritano. Dom Robinson Cavalcanti que tinha liderança tão destacada entre esses anglicanos conservadores foi brutalmente assassinado em 2012. À época acreditava-se que o grupo 784 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X dissidente poderia voltar a DAR, mas isso não aconteceu. Logo levantaram-se outros líderes já preparados para dar continuidade aos trabalhos que mantiveram o grupo coeso. Chama a atenção, nos dois casos, que os grupos que se entendem como conservadores ou ortodoxos são expulsos ou rompem com a Igreja instituída, criticam a visão liberal da IEAB e seu alinhamento com a igreja estadunidense. Aqui questões políticas e de ordem econômica são levantadas. Quando se discutir eventos mais recentes, muitos desses argumentos serão novamente trazidos à tona e analisados mais aprofundadamente. Soares (2008) adota um modelo de análise focada no conceito de drama social, descrevendo a cisão da DAR ocorrida entre os anos de 2003 a 2005 através das fases de separação ou ruptura; crise e intensificação da crise; ação remediadora; e reintegração preconizadas por Victor Turner (2005). O autor opta por esse caminho, indicando, inclusive, que esse seria um drama inconcluso, estando a quarta fase em aberto. Todavia, ele avalia que: No contexto do conflito anglicano iniciado em 2003 e ora em curso, tudo faz crer que a fase/estágio final se concluirá ainda este ano de 2008; seja porque as fases anteriores já se consumaram a essa altura, seja porque 2008 no calendário anglicano mundial, desde há muito tempo, havia sido previsto para a realização da Conferência Episcopal da Lambeth, que é realizada a cada década. (SOARES, 2008, p. 13) Discordo da visão de Soares, a partir dos movimentos da Comunhão Anglicana pós2008 e pelas falas que recolhi em campo. As rupturas de 2002 e 2005 eram ainda assunto muito presente quando estava em campo. Os debates sobre a legitimação do casamento igualitário não arrefeceram ou geraram uma reestruturação ainda definitiva. Os eventos que serão trazidos a seguir deixam claro que essas tensões e os desdobramentos desse processo iniciado no começo do século XXI ainda seguiam em aberto. A ruptura de 2017 como final do processo Pouco menos de 10 anos após a ruptura da DAR, as discussões sobre sexualidade dentro do Anglicanismo seguem acontecendo. Marco nesse processo é o Sínodo Ordinário da IEAB realizado em novembro de 2013 na cidade do Rio de Janeiro. Ao final deste Sínodo houve a convocação de um Sínodo Extraordinário a se realizar em 2016 e também ficou 785 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X decidido que seria realizada uma série de estudos nas dioceses quanto à questão de Gênero e Sexualidade. Para tanto, esses encontros se utilizam do método denominado Indaba. Conforme um dos sítios eletrônicos da IEAB, Indaba é uma palavra de origem africana que significa “roda de diálogo”. Nesses encontros se permite aos seus participantes um debate em condições de igualdade e liberdade de expressão para partilhem seus pontos de vista na busca de consensos para o bem comum. Logo, esse método de estudo e debate de temas variados, geralmente polêmicos, quer ser um espaço aberto para a discussão de pontos de vista opostos, a partir de diferentes posicionamentos, para que a partir de um processo de entendimento mútuo se chegue a um consenso. Esses encontros foram realizados durante o ano de 2014, contando com a presença de representantes de grupos com visões opostas no que se refere ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Como resultado foi editado uma revista de pouco mais de 40 páginas intitulado “Documentos Indaba: Famílias e Diversidade Sexual”, buscando fazer uma síntese do que foi discutido nos encontros e com uma série de artigos de teólogos que lideraram os encontros. Em culminância desses estudos e a fim de se preparar para o Sínodo Extraordinário, a Diocese Anglicana do Recife realiza um Concílio Diocesano entre os dias 26 e 29 de maio de 2016, na Paróquia do Bom Samaritano, Boa Viagem, Recife. Neste Concílio a sinalização da DAR é de aprovação do casamento igualitário. No Sínodo Extraordinário de 2016, se aprovam a nova Constituição e os novos Cânones Gerais da IEAB. A proposta da adoção da neutralidade de gênero na liturgia oficial é aprovada, no entanto a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo causa grande discussão entre os participantes e não obtém êxito. Dada a falta de consenso, o bispo primaz da IEAB, Dom Francisco Silva, convoca um Grupo de Trabalho sobre “Gênero, Sexualidades e Direitos” constituído por um bispo, três leigos e mais dois religiosos. As dioceses de Recife e São Paulo se destacam na composição desse GT. O objetivo do grupo é manter um canal de discussão entre os diferentes grupos e elaborar material que subsidie a base da igreja na discussão. Assim, o tema que parece ficar em suspenso até a realização do novo Sínodo, previsto para 2017, deixa no ar para alguns setores um quê de certeza. Em novembro de 2016, na cidade do Recife, baseada na Catedral Anglicana da Santíssima Trindade é fundada a “Aliança das Comunidades Anglicanas na IEAB”. O grupo é capitaneado pelos clérigos da Catedral da Santíssima Trindade e pelo bispo aposentado da 786 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X DAR, Dom Sebastião Gameleira. Pode-se afirmar que o grupo surge em oposição às discussões que viam em curso dentro da IEAB sobre as questões de sexualidade e pelo entendimento que o próximo Sínodo Extraordinário da IEAB teria sido convocado para aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Aliança declara o compromisso com a “unidade da Igreja”, não se entendendo como um grupo de oposição à posição majoritária dentro da DAR, mas propõe um caminho para o diálogo. Por fim, apelando para o triple: Bíblia, Tradição e Razão – componente clássico para o modelo de interpretação anglicano –, recorre também a “experiência do povo cristão” ou o que se ele denomina de “sensus fidelium” (senso dos fiéis). Frente a essa reação conservadora e a repercussão negativa dentro da IEAB, a Câmara Episcopal emite em 02 de dezembro de 2016 uma mensagem à Igreja no Brasil condenado o que eles entendem ser atitudes cismáticas pelo grupo formador da Aliança a partir da Diocese Anglicana do Recife. A carta é assinada por todos os bispos que estão em exercício e foi divulgada através do site do Sistema Nacional de Informação Anglicano. Em meio ao tom de reprimenda e acusação de rompimento da obediência devida às instâncias superiores, são evocados oito princípios que constituem o ethos anglicano, dentre eles, destaco o da “Inclusividade” e a “Promoção e garantia dos Direitos Humanos”, que sempre são retomados quando se levanta o polêmico tema das homossexualidades dentro da igreja e que é relacionado também à questão de gênero e defesa da mulher. Em carta-resposta endereçada aos seus colegas bispos, redigida em sua carta de 04 de dezembro de 2016, publicizada em 10 de dezembro de 2016 pelo site da Aliança Anglicana, Dom Sebastião apresenta uma defesa da própria existência da Aliança enquanto agrupamento válido dentro da IEAB. Em seu texto, ele questiona o papel da autoridade episcopal, que no Anglicanismo deveria se distinguir dos moldes do episcopado monárquico católico. Ele ainda defende que o texto de fundação da Aliança em nada fere os princípios de unidade e diversidade dentro da IEAB e que a leitura feita pelas lideranças da IEAB estaria “vendo pretensões onde não existem”. Além disso, reforça o “sensus fidelium” como medida no que tange às respostas da igreja aos desafios do presente. Desse modo, a partir do argumento do senso dos fiéis, Dom Armando Gameleira sustenta que se o grosso de fiéis não está preparado para aceitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, não haveria motivo pelo qual aprovar tal prática. Dentro da IEAB a repercussão 787 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X apresentada pelas lideranças da igreja indica que a interpretação quanto a esse movimento é que ele é visto como o gérmen de um novo cisma que poderia se formar. Em resposta às movimentações da Aliança, Dom João Câncio (PEIXOTO, 2017) expede uma portaria ordenando que: (1) os clérigos que assinaram a petição de formação da Aliança retirem seus nomes; (2) seja removido o site da Aliança e as redes sociais; (3) a manifestação individual dos membros, através de uma carta, em que cada um reafirme seus votos de ordenação; e, (4) que estes clérigos permaneceriam na IEAB, independentemente das decisões que possam vir a ser tomadas em futuro sínodo da igreja (que será realizado em 2018). Por fim, um prazo de dez dias é dado para que se tomem essas medidas. Em reação a portaria diocesana, a Catedral Anglicana da Santíssima Trindade, convoca uma assembleia geral dos membros e decide pela sua saída da DAR-IEAB. Outras comunidades anglicanas em Recife e em outros estados do Nordeste também rompem com a DAR, no entanto, não formam uma nova denominação, mantendo relações entre si. A agora Paróquia Anglicana da Santíssima Trindade, independente da DAR, se pronuncia poucos dias depois, no dia 25 de janeiro de 2017. No texto é reafirmada que a Aliança das Comunidades Anglicanas da IEAB não é uma organização de cunho cismático, mas tão somente uma associação de anglicanos que buscam expor um determinado ponto de vista e que desejavam amadurecer alguns aspectos das temáticas que são atuais na vida da igreja. Mais adiante, afirma-se que esse tema de debate tão acalorado, debate esse que vai além da questão local, refere-se à sexualidade humana. Apontando para um entendimento tradicional sobre a temática da celebração do casamento entre pessoas do mesmo, do risco da adoção desse rito para a unidade da igreja e o questionamento do porque esse debate se faz tão presente na atualidade e de forma tão apaixonada frente a outros desafios como a pobreza e a violência, que ficariam relegados a um segundo planos. Ainda é reafirmado o clima de acirramento de ânimos na DAR e o perigo de desintegração dessa diocese diante da divisão que esse tema tem causado divisão na igreja. Para a Aliança Anglicana o debate sobre a homossexualidade tem ido muito além do que a tradição cristã e anglicana e a exegese bíblica comportariam. Citando o documento final da Conferência de Lambeth de 1988, onde se afirmam valores tradicionais sobre o casamento e a manutenção de relações sexuais unicamente no matrimônio heterossexual, aponta que a prática da homossexualidade seria “incompatível com as Escrituras”. Avalia que há um 788 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X superdimensionamento desse debate na igreja e suas consequências de divisão e excomunhões mútuas entre diferentes Igrejas Anglicanas pelo mundo. Considerações Finais Nesse contexto, o papel do Estado, no caso brasileiro, do judiciário, se destaca na medida em que ele vai encabeçar as decisões sobre sexualidade e direitos e, a partir desse dado ativam uma série de respostas religiosas. No Legislativo, segmentos ligados às igrejas evangélicas, trazem à tona a insatisfação de grupos que se autodenominam conservadores e reivindicam o que entendem como valores tradicionais. Vê-se assim, o crescimento de um movimento político de cunho conservador que coloca em xeque as conquistas até então alcançadas pelos movimentos LGBT. A DAR e a IEAB vão se colocar em um forte debate interno que levará a posições antagônicas fortes, culminando em duas rupturas, em 2002 e 2005. O reconhecimento das orientações não heterossexuais e o acesso às celebrações públicas da ordenação e do casamento se colocam como os principais elementos em disputa, que vão balizar a discussão acerca do lugar da diversidade no ethos anglicano. A criação da Aliança Anglicana, em 2016, grupo que se opõe ao casamento igualitário que se coloca em discussão em nível local-nacional, engendra não o início, mas a continuidade de um conflito que estava adormecido, mas não morto. Afirmo isto em contraposição a Soares (2008) para quem os conflitos de 2002 e 2005 haviam chegado ao seu fim. Entendo que os eventos que se passaram entre o final de 2016 e início de 2017 dão continuidade àqueles ocorridos a pouco mais de uma década. A discussão se mostrava cada vez mais viva na medida em que o debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo se colocava na DAR. Antigos argumentos são advogados por novos atores, velhas cenas tomam outros cenários e o enredo das disputas por poder tendo a sexualidade como foco se colocam mais uma vez no cenário anglicano. A ruptura da Catedral Anglicana da Santíssima Trindade se coloca, provavelmente, como o término deste conflito institucional no Anglicanismo brasileiro. Com a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2018 pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil há a saída dos grupos opositores, que se configuram em novas institucionalidades, uma vez que se opõe a essa prática. Já no cenário internacional, o Anglicanismo está em processo de reconfiguração e ainda não uma definição dos rumos que serão tomados. 789 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Bibliografia CÂMARA EPISCOPAL. Mensagem da Câmara Episcopal aos Fiéis e ao Clero da IEAB. Carta da Câmara Episcopal sobre atitudes cismáticas na IEAB. Pelotas/RS, 2016. 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Esse ano, tivemos como tema “Genocídios na História: passados, presentes, e futuros”, e, ao longo dos últimos três dias, debatemos variados temas da História, da historiografia, bem como da atual conjuntura política que o Brasil se encontra. Nesse meu primeiro ano de Universidade Federal de Alagoas, eu gostaria de deixar aqui a minha felicidade de estar participando de um grupo de professores daqui da UFAL, bastante engajados e que vem se posicionando perante essa conjuntura que a gente vive, e uma outra felicidade de estar coordenando essa presente mesa, com convidados que eu admiro já de longa data. Convidados que através das suas profissões foram referências não só para mim, mas para muitos dessa nova geração de historiadores, convidados, também, que integram a rede de historiadores negros e negras, o que é importante colocar aqui. A existência dessa rede, que vem dessa esteira das lutas dos movimentos sociais, sobretudo, do movimento social negro brasileiro, pontua uma questão que é crucial para a gente agora, que são as ações afirmativas, e aqui eu gostaria de lembrar, particularmente, dos dez anos da Lei de 711 Mesa de Encerramento do 12º Encontro Nacional de História e 1º Encontro Internacional de História da UFAL - "Genocídios na História: passados, presentes, futuros". 10/09/2021. 792 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Cotas, que se aproximam, agora, em 2022. A Lei de Cotas que possibilitou a entrada de gerações, e gerações, de alunos negros e negras nas Universidades e Institutos Federais, bem como de estudantes indígenas, e essa é uma das políticas que a gente tem um passo muito importante, ano que vem, em direção a sua defesa, principalmente, pelos ataques que a gente vem sofrendo nos últimos anos. Então, eu gostaria de, antes de apresentar a mesa, rapidamente, dizer que a Universidade Federal de Alagoas tem uma tradição de diálogo com os intelectuais negros, e com as lideranças do movimento negro, e, atualmente, eu tenho a honra e a oportunidade de estar coordenando o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, núcleo esse que foi fundado há quarenta e um anos. Estiveram aqui na UFAL, estiveram aqui na Serra da Barriga, em Alagoas: Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Januário Garcia, Hamilton Cardoso, Beatriz Nascimento, Joel Rufino dos Santos, e, se a gente fosse colocar o nome de todos e todas que estiveram aqui, ficaríamos alguns minutos. É a partir desse núcleo, que faz parte do curso de História da UFAL durante muito tempo, no início com o professor Zezito de Araújo e, mais recentemente, com a professora Clara Suassuna, e, também, com outros coordenadores como a professora Lígia Correia, de Letras, e o professor Moisés Santana, que hoje está em Pernambuco, que se possibilitou que a Universidade Federal de Alagoas fosse uma das três primeiras universidades a implementar as Ações Afirmativas e a política de cotas, ainda em 2003, com a entrada no vestibular em 2004 e 2005. É válido lembrar que, naquela época, a gente conseguiu aprovar um programa de Ações Afirmativas, onde se colocou 60% das vagas para mulheres e 40% para homens, então se apontou o recorte de gênero. Teríamos várias histórias sobre isso, mas eu quis fazer esse recorte para lembrar da importância de defender as Ações Afirmativas, e um pouco da tradição de diálogo que o curso de História da UFAL tem com esses intelectuais e lideranças negras. Então, é com muita honra que eu queria iniciar a mesa três: “Epistemicídio e silenciamento do passado: combatendo o racismo historiográfico”, e eu vou apresentar brevemente os convidados porque o currículo dos três são amplos. O Professor Flávio Gomes atua como professor permanente do Programa de Pós-graduação em História comparada e História Social, no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor colaborador do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e tem publicado livros, coletâneas, e artigos em periódicos nacionais e estrangeiros, 793 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X atuando nas áreas de Brasil Colonial e pós-colonial, Escravidão, Amazônia, Fronteiras, Campesinato e Pós-emancipação. O professor Álvaro Pereira do Nascimento é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, campus Nova Iguaçu, faz parte do corpo docente permanente dos programas de Pós-graduação em História e do Programa de Pósgraduação interdisciplinar em Humanidades digitais da mesma universidade, seus temas e objetivos de pesquisa preferidos são: Escravidão, Pós-abolição, História da Baixada Fluminense, História da África, Cidadania, História Militar e Ensino de História, e, por fim, Ynaê Lopes dos Santos, professora adjunta do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, realiza pesquisas na área de História da América, com ênfase em escravidão moderna e relações étnico-raciais nas Américas, atuando, principalmente, nos seguintes temas: Escravidão, América Ibérica, Formação dos Estados Nacionais, Cidades Escravistas, Relações étnico-raciais e Ensino de História, e, atualmente, faz parte do Comitê Executivo da BRASA. Esse é o currículo resumido dos nossos convidados, e eu gostaria de iniciar, portanto, com a professora Ynaê. Professora Ynaê, Boa noite! Seja bem-vinda e muito obrigado por aceitar o convite para estar aqui com a gente! Y. L.: Boa noite, Danilo! Boa noite a todos, a todas e a todes! É um prazer enorme estar aqui nessa mesa, com essa mesa, esses professores que foram referências, e são até hoje, tanto que eu estou aqui conversando com a minha bibliografia. É um prazer enorme, o Flávio esteve na minha banca, enfim, o Álvaro também acompanhou parte do meu doutorado, e agora a gente tem até uma relação de compadrio, então é algo muito importante estar aqui, muito prazeroso, sobretudo, para falar sobre esse tema que eu acho que é um tema urgente e que já passou do tempo. Ao mesmo tempo que eu acho que ele é urgente, tem uma parte que fala “ah, mas a gente ainda está falando sobre isso?” Sim! A gente ainda está falando sobre isso e, infelizmente, acho que a gente ainda vai falar por um bom tempo sobre isso, mas que bom que a gente ainda pode também utilizar a tecnologia em favor disso, para que a gente possa falar cada vez mais e para mais pessoas. Eu vou começar a minha fala da mesma forma que eu começo, e tenho começado, os semestres para os meus alunos da UFF, que não chegam mais tão empolgados como chegavam a um tempo atrás porque a gente está vivendo uma situação muito delicada com a pandemia, com as situações de vulnerabilidade, e com o desmantelamento das Universidades, e, eu vou falar isso, nunca foi tão difícil ser historiador, assim como professor de história, mas também nunca foi tão importante. Então a gente precisa, também, se apoderar 794 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X desse lugar que muitos de nós escolhemos estar, porque é um lugar fundamental e um lugar de disputa. A gente está aqui para disputar sentidos de Brasil, sentidos de História, e eu acho que estamos vivendo um momento muito crucial nesse sentido porque a gente está dentro do “olho do furacão”, em uma crise profunda das Instituições Brasileiras, da própria ideia de República, de cidadania, do que é liberdade, dos projetos de Brasil que estão sendo colocados em prática, enfim, a gente está disputando, inclusive, a bandeira nacional, então é uma disputa árdua, profunda, que obriga a recuperar, no mínimo, a nossa trajetória enquanto República. Logo, é uma tarefa e tanto, mas, ao mesmo tempo, a gente precisa fazer com que esse debate aconteça, com que essas disputas, de fato, possam trazer benefícios, que, ao meu entender, só podem ser traduzidos em uma experiência mais democrática, e, para mim, a democracia só existe quando há uma luta antirracista efetiva, então é esse bolo de coisas que a gente precisa estar trabalhando junto. Acho que o tema dessa mesa é um convite, uma provocação para, justamente, pensar nos limites que a historiografa brasileira tem e teve, mesmo uma historiografia um pouco mais progressista em relação, ao que eu considero, e não só eu, acredito que o que eu estou dizendo vai ser dito, também, pelos meus colegas professores e por um grupo significativo de historiadores, muitos deles historiadores negros, o racismo é um limite para historiografia brasileira. Infelizmente, o racismo ainda é um pilar a partir do qual a própria construção do saber histórico se dá. A gente tem acompanhado, nos últimos tempos, uma profunda, e, por um lado, interessante, discussão e debates em relação, por exemplo, a derrubada das estátuas, os personagens que de certa maneira materializam episódios vinculados a genocídios de populações não-brancas, sejam ameríndias, sejam africanas, ou negras, de escravização, e há um debate em relação à eficácia ou a legitimidade, ou não, desse movimento. Eu já fui perguntada, algumas vezes, sobre o que eu acho, e eu digo abertamente, sem problema nenhum, eu sou a favor desse movimento, porque eu acho que a gente não está, efetivamente, pensando no que esses homens representaram nos séculos XVI, XVII, XVIII, XVI, mas na história que se decidiu contar a partir da vida, da biografia desses homens, e a gente está falando, basicamente, efetivamente, de homens brancos que estiveram envolvidos, todos eles, nos processos de escravização e de mortandade das populações não-brancas. Então, mais do que a história 795 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X efetiva desses homens, o que está em jogo são sentidos de Brasil, sentidos de projetos de nação, que insistem em referendar a história brasileira a partir desses personagens, a partir dessas figuras. Eu estava agora a pouco tempo, e foi até curioso porque o Danilo mencionou um depoimento que o Januário Garcia deu para Comissão Nacional da Verdade em 2015, quando ele narrava como havia sido o processo da Marcha Contra a Farsa da Abolição, uma marcha que aconteceu no dia 11 de março de 1988, em comemoração aos cem anos da abolição, na verdade, uma comemoração crítica, que tinha como objetivo principal questionar a falta de equidade de condições para as populações negras no pós-abolição, mostrando que a assinatura da Lei Áurea não significou uma inserção efetiva da população negra nessa sociedade de classes, pelo menos não de uma forma equânime, de uma forma que de fato pudesse melhorar as condições de vida dessa população. Nesse testemunho, ele fala justamente do momento em que ele e outras lideranças do movimento negro estavam negociando, isso no Rio de Janeiro, com as lideranças do Exército qual seria o percurso que seria feito, porque, em princípio, o percurso da organização da marcha seria da Cinelândia até o monumento do Zumbi dos Palmares, passando pelo panteão do nosso patrono do Exército brasileiro, Duque de Caxias. O coronel, enfim, ele não lembra ao certo qual era a patente do representante do exército, disse que o ideal seria que a marcha acontecesse da Candelária para Cinelândia, e não da Candelária para a estátua do Zumbi, e a resposta que o Januário deu, junto com outras lideranças do movimento, foi que a marcha caminharia até onde o racismo do Exército Brasileiro permitisse, e ela para, efetivamente, na barricada que é feita em frente ao monumento de Duque de Caxias, que é um homem cuja história é diretamente atravessada pelo processo de genocídio, de dizimação da população negra e indígena do Brasil no século XIX. Isso aconteceu no mesmo ano em que foi promulgada a nossa atual Constituição, uma Constituição que é muito progressista por um lado, que engloba uma série de questões e direitos civís do próprio debate racial, e talvez seja a Constituição mais progressista que a gente tem, mas ao mesmo tempo uma Constituição que, de forma abrasileirada, foi discutida por um grupo de parlamentares, majoritariamente, brancos, e de homens brancos, se eu não me engano, eram 40 mulheres parlamentares e 10 parlamentares negros, em um número total de 557, então, a presença não chega nem a 10% no caso das mulheres e, enfim, eu não vou nem 796 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X fazer a conta no caso da população negra, o que mostra que mesmo em uma perspectiva progressista, e, ainda bem, porque a gente ainda tem que, hoje em 2021, lutar para que essa Constituição seja preservada, essa Constituição esbarra nos limites que o racismo impõe na história brasileira, que são limites, continuamente, escolhidos. O que eu acho fundamental pontuar é que no Brasil essa questão vai ter uma importância maior para quem está pensando a produção do saber histórico, e essa produção do saber histórico é muito poderosa, porque a gente sabe que quem controla o passado, de certa forma, controla o presente, e projeta o futuro, então o controle do passado não é só uma disputa de percepções e de interpretações, são projetos de poder que estão em jogo, apostar em um passado que reverencia figuras específicas, que reverencia narrativas específicas, e que silencia, sistematicamente, a participação da população negra e da população indígena é referendar, é escolher a todo momento, um país racista. A única forma de mudar isso é se engajado em uma luta antirracista, uma luta que vale dizer, e eu gosto muito de uma passagem do livro da Robin DiAngelo, que é uma estudiosa da luta antirracista nos Estados Unidos, em que ela diz que o antirracismo não é um estado, não é algo que você alcança, são momentos da vida em que você pode experimentar porque a estrutura é racista, se a estrutura é racista, a única forma de você ser contra o racismo é você ter consciência da estrutura e se movimentar contrariamente a ela, e não é sempre que você consegue fazer isso, sobretudo a população branca, que é a população que experimenta os privilégios criados pelo sistema de poder que é o racismo. Então fazer esse exercício, do ponto de vista historiográfico, é, efetivamente, revisitar toda a história do Brasil, e é, de novo, uma tarefa hercúlea, mas uma tarefa necessária que, em partes, professores como o Álvaro e como o Flávio Gomes já fazem a muito tempo, mas uma história que, é curioso, muitas vezes entra dentro da caixa da história negra, como se a história, a Revolta da Chibata, por exemplo, ou a questão quilombola, ou o movimento da Imprensa Negra não fossem a história do Brasil. Então, mesmo quando há um movimento de historiadores nesse sentido, muitas vezes é de historiadores negros, e isso é muito importante neste momento que a gente está discutindo os dez anos da lei de cotas no país. O que a lei de cotas traz além de um debate interessante sobre o racismo? Porque a gente tem a polêmica até do racismo reverso quando vai falar da lei de cotas, traz, a meu ver, o que é mais poderoso, pessoas que vão ter novos olhares sobre o mundo, dentro da universidade. 797 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X No caso específico do curso de História, nós vamos ter historiadores diferentes, que trazem bagagens de lugares sociais, econômicos e políticos distintos, que até então estavam apartados desse universo acadêmico, e que vão olhar para o mundo a partir desse lugar que eles têm, que eles são. Isso vai trazer novas perguntas, que vão fazer com que a gente olhe para o passado de outra maneira, então essa, é de fato, na minha percepção enquanto historiadora pensando, especificamente, essa produção do saber historiográfico, a grande (...) Além de melhorar a qualidade de vida desses jovens negros, assim espero, porque não basta apenas entrar na universidade, tem que ter toda a condição para estar, permanecer e concluir a universidade, e também conseguir um emprego na área, de preferência, e muitas vezes isso não acontece dentro da política de cotas (...) Mas, efetivamente, pensar outros brasis e, mais do que isso, implodir um pouco a ideia da história negra e da história indígena, como se essa história não fosse a história brasileira também. É muito comum, a gente ver dentro de um recorte político, que é, ainda hoje, a principal forma de organizar o currículo brasileiro, sobretudo aquele que é ensinado nas escolas (...) Então, são os marcos políticos que dão o tom e a referência dos conteúdos que são trabalhados, como se fizessem um parêntese para falar da história negra e um parêntese para falar da história indígena, como se isso não fosse história brasileira e como se fosse possível falar da história brasileira sem falar desses personagens que, como a gente bem sabe, foram sistematicamente silenciados. Para não me alongar tanto, porque esse é um exercício que dá para repensar a história brasileira inteira, na verdade, eu acho que essa é a nossa tarefa aqui para repensar o Brasil e projetar um país no qual a diversidade esteja não só nas universidades, mas também no Congresso Nacional, nas grandes empresas, nos cargos altos das grandes empresas, mas também nas escolhas de temas de monografia dos alunos de história, por exemplo, e não tem como fugir muito, a gente está nessa semana pátria do 7 de setembro, a gente está a um ano da comemoração dos duzentos anos da independência do Brasil, e a gente continua aprendendo, e muitas vezes ensinando, e aqui eu estou falando até para além do universo acadêmico, porque na academia já há uma crítica maior a isso, uma história brasileira cuja a soberania nacional, começa e termina no 7 de setembro. 798 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Eu lembro muito dos meus alunos, quando eu dava aula no Ensino Fundamental, pedindo para eu pular a História do Brasil porque eles queriam chegar em episódios da história da humanidade que tivessem guerras, eles queriam isso, disputa, guerra, e eu fiquei pensando “gente! como a gente ensina errado a história do nosso país”, porque é uma história que é ensinada como se fosse profundamente pacífica, cordata, harmoniosa em todos os aspectos, sobretudo o racial. Então, eu acho que seria interessante a gente aproveitar essa grande efeméride que acontecerá ano que vem para repensar o que foi o 7 de setembro, repensar quando começa 1822 e quando ele termina, aonde, quais são os sujeitos que estiveram efetivamente envolvidos nesse processo, na sua pluralidade, porque obviamente você tem parlamentares, você tem o imperador, mas você também tem os escravizados que entraram em uma luta, que em tese, talvez não lhes trouxesse nenhum tipo de benefício. Você tem, inclusive, mulheres negras que participaram da guerra, que coordenaram ações militares, essas histórias não chegam nas escolas, porque foi feito para que elas não chegassem. A historiografia brasileira, e esse é um hiato que a gente precisa superar, o que é ensinado nas escolas e o que a gente pesquisa nas universidades, a gente ainda mantém um epistemicídio sistemático, e eu posso quase colocar a minha mão no fogo que um aluno do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, dificilmente, gosta da história brasileira, porque, justamente, o conflito, que é estrutural da nossa experiência, e o Brasil é um país profundamente violento, é retirado, justamente, para que o racismo continue operando dessa forma silenciosa e contínua em que ele opera a mais de 520 anos, desde que começou essa coisa, que, a partir de 1822, ficou conhecida como Brasil, de forma soberana e nacional. A minha fala é um pouco nesse sentido de chamar os historiadores e os futuros historiadores, os estudantes de história e nós professores, a revisitarmos nossa história a partir dessa necessidade, ao meu ver fundamental, de combater esse epistemicídio, de combater esse silenciamento sistemático das populações não-brancas de todo o processo histórico, e, inclusive, de convidar nossos colegas que mantém o olhar que por um lado é progressista, mas que continua compactuando com esse silenciamento, como se fosse possível fazer um apêndice quando eu estou estudando Ditadura Militar para falar sobre a questão racial, como se fosse possível fazer um apêndice quando eu estou estudando Vargas para falar sobre a Frente Negra, é fundamental e, na verdade, é um convite metodológico sobre a produção de como fazer história e desmontar a estrutura racista que nos ordena. 799 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Era um pouco isso e, enfim, na verdade, eu fiquei até com um pouco de dúvida do que escolher, porque eu poderia falar de qualquer momento da História do Brasil, já que essa é a nossa matriz, a gente tem uma matriz profundamente racista, e acho que a gente está nesse movimento, a gente que está aqui hoje, sobretudo, nessa mesa, de desmontar essa matriz e de tecer outra estrutura, mas para isso é fundamental revisitar o nosso passado. Então, eu vou terminar da mesma forma que eu comecei, está sendo muito difícil ser historiador ou historiadora nesse momento da história do país, mas nunca foi tão necessário que nós tenhamos uma ação crítica, contundente, e antirracista na produção do saber historiográfico. Era isso, obrigada! D. M: Ynaê, muito, muito obrigado pela sua fala! Várias questões aqui na cabeça, o chat já está se movimentando. E aí, rapidamente, eu vou passar a palavra para o professor Álvaro. Professor Álvaro, muito obrigado por aceitar o convite, boa noite! É contigo! Á. N.: Boa noite! Muito boa noite! Obrigada pelo convite! É um prazer estar aqui com esse público, alguns amigos e amigas estão aqui no chat, já conversamos um pouquinho com eles e elas, e é sempre muito importante isso. Também queria falar do meu prazer e da relevância, e agradecer pelo convite que é fundamental (...) e da relevância dessa mesa, temos aqui dois historiadores negros, temos aqui uma historiadora negra, nesse país extremamente racista, onde era algo incomum, e, até hoje, é uma das situações pouco comuns na universidade, e na historigrafia melhor dizendo. Isso não é comum, e agora está se tornando um pouco mais comum porque nós temos grandes historiadoras e grandes historiadores já trabalhando no país como um todo, mas até vinte anos atrás, trinta anos atrás, uma mesa como essa era impraticável, era inviável. Eu lembro que quando eu estava na UNICAMP fazendo o meu mestrado, quando eu entrei estava eu e o Hobson enquanto negros naquela turma, e o Flávio estava iniciando ou terminando o doutorado, se não me falha a memória. Então, vejam que hoje ter uma mesa como essa, com um tema como esse, uma mesa com essa denominação, com esse título, é algo que para mim, que entrei na universidade em 1988 como estudante, é de uma alegria, de uma emoção incontrolável, porque isso não era possível. Eu passei a minha graduação quase toda 800 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X sem ouvir a palavra “racismo”, tanto que uma das coisas que mais me chamou atenção quando eu fui para UNICAMP, é que havia uma linha de pesquisa sobre escravidão e racismo, inclusive, o Flávio foi parte dessa linha, porque não havia esse tipo de instrução. Essa mesa aqui para quem está chegando na Universidade, para quem já esteve lá há um tempinho não era assim, não existia isso. Então ter uma mesa como essa (..) É importante sublinhar a particularidade dela e a total ligação com o título “Epistemicídio e o silenciamento do passado: combatendo o racismo historiográfico”. E aí, eu venho justamente com essa ideia, “Racismo historiográfico existe?” Eu acho que toda vez que a gente analisa as pessoas em um tempo-espaço, em um país de maioria negra como é o nosso, e esses historiadores e historiadoras não observam a ausência de outras pessoas, as desigualdades entre brancos e negros, ou as desigualdades de gênero e sexuais, toda vez que eles tiverem estudando o passado, não pararem para observar isso em nenhum momento, quantas mulheres, se tem mulheres, se tem negros, se tem indígenas, eu penso que é a hora desses historiadores e historiadoras perguntarem se a razão dessas questões é lhe faltarem no início da pesquisa o “por que”. Sabe, naquela hora que a gente se pergunta “Por que eu não pensei nisso?” Eu vou dar algumas dicas, será que foi efeito do racismo estrutural que está dentro de ti? Será que foi fruto do racismo que te engole o tempo todo? O que aconteceu? Você está a fim de dialogar consigo mesmo para saber de onde veio isso? Por que você ficou ausente nesse debate? Eu acho que essa é uma questão importante para a gente começar a dialogar, “Como não vi isso?”, “Como esqueci?” Leva isso a sério! Leva isso muito a sério! Não durma não que tem alguma coisa muita errada aí, ou, possivelmente, o seu orientador ou orientadora nunca te abriu os olhos para isso, o programa de Pós-graduação que você faz parte não toca nesse assunto, não cobra e não acha que isso seja relevante, ou até pode ter “cortado as suas asas” quando você quis discutir o assunto. O que aconteceu nessa história? Leva isso a sério! Isso é importante porque a cobrança já está começando para quem deixou de fazer essa cobrança, ela já está aí. Mas vamos mais a frente, vamos tocar mais o nosso barquinho! Então, eu acho que nós estamos atravessando um período no qual a identidade humana ganhou mais destaque, e os processos identitários tem cobrado maior participação na historiografia. Essa cobrança não é recente, quando as coisas acontecem é porque já tem muita gente lutando há tempos. 801 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Então veja, muitos historiadores estavam cobrando reflexões da historiografia acerca da condição feminina no Brasil na década de 1980, e aí começaram a sair alguns trabalhos como o da Rachel Soihet, os trabalhos da Martha Abreu, e de outras historiadoras que já estavam questionando como era a condição feminina na história, na década de 1980. Isso já estava presente antes, Beatriz Nascimento, uma mulher negra, já estava discutindo essas questões, na historiografia, essas questões já estão sendo cobradas a tempo. No que tange a história dos negros e da África, intelectuais do jornal Quilombo, na década de 1950, já estavam questionando, o questionamento já era uma realidade para aqueles indivíduos que estavam ali na militância, como Abdias Nascimento, e outros, basta você ler no jornal as reivindicações que lá estavam, inclusive, o que hoje é conhecido como cotas, e cotas em todas as áreas. Então, essas questões identitárias não são recentes, e a historiografia agora, eu acho, está começando a se tocar, porque veja, quando as mulheres já estavam na Universidade, na década de 1980 discutindo outras questões, raros e raras eram estudantes negros e negras na graduação, e muito menos na pós-graduação, para realizar qualquer tipo de mudança. A história do negro não ultrapassava a escravidão, o negro no século XX era matéria de antropólogos e sociólogos, não tinham tantos trabalhos que se avolumassem para discutir o assunto sobre o que aconteceu com os negros no pós-abolição ou, enfim, a vida dos negros no século XX, isso ainda estava muito ligado aos trabalhos antropológicos e sociológicos. Nós ficamos muito tempo fora, e a pergunta é “Por que a historiografia não se debruçou sobre o assunto?” As coisas vão começar a explodir um pouco na década de 1980, vai se avolumar na década de 1990, e por aí vai. A política de cotas nas universidades e a resistência de tantos e tantas docentes com a proposta evidenciava um incômodo com a entrada de pessoas vistas como não merecedoras de lá estar por conta de não disputarem em “igualdade” com os demais candidatos, ou seja, não precisa de cotas, todo mundo deve ganhar a mesma nota, aqueles pensamentos já bastante criticados, mas que teimavam de se utilizar para questionar a política de cotas. Isso também se repetiu na política de cotas para Pós-graduação e, até hoje, inclusive, quando a gente tenta propor bolsas para cotistas, há muitos questionamentos na pós-graduação. Se as mulheres já estavam na universidade na década de 1930, eram raros os negros. Eu sempre falo que hoje, olhando as universidades, aqui na Zona Metropolitana do Rio de Janeiro, onde temos treze programas de graduação e Pós-graduação de História, existem, 802 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X aproximadamente, duzentos e poucos professores nos programas de Pós-graduação de História, UFRJ, UFF, UFRRJ, UERJ, PUC, FGV, e tem, aproximadamente, treze professores negros e negras neles. Em uma cidade da Zona Metropolitana, na qual a maioria é de pessoas negras, esse número é um absurdo, eu acho vergonhoso! Porque está indicando que o negócio é muito esquisito, muito esquisito, no mínimo esquisito! Então, a política de cotas foi de extrema importância para quebrar barreiras dentro da universidade, e, até hoje, essa barreira está montada, como eu falei ainda pouco, na questão da pós-graduação. Eu fico pensando que quem está nessas barreiras são professores e professoras brancas e brancos, não são todos, claro! Muitos professores brancos e brancas são extremamente ligados à política de cotas, militam, lutam e bravejam por uma política de cotas ampla. Muitas dessas pessoas, inclusive, mudaram, desde o início dos anos 2000 até hoje em dia, falam “Caramba!”, inclusive, essas pessoas deixaram isso documentado, porque está na mídia, então “Não tem jeito de mudar?!”, quer dizer, houve uma mudança de lado de um grupo que era extremamente contra as cotas e hoje é a favor das cotas. Mas a minha questão é, “Como poderão essas pessoas que são contra as cotas e não encaram a questão racial, criar as suas questões historiográficas, a partir das suas pesquisas, e incluir leituras que incluam pessoas negras na história após o fim da escravidão?” Essa é uma questão que tem haver diretamente com a nossa mesa, porque, inclusive, essas pessoas orientam trabalhos de mestrado e doutorado, e cobram ou não seus orientandos, doutorandos e mestrandos e mestrandas. Entendam que a entrada de negros e negras nas universidades cursa um embate contra as formas de opressão racial vigentes em vários centros de poder, evidenciavam o privilégio, prioritariamente uma elite branca e poderosa, em várias áreas, inclusive nas universidades, inclusive na historiografia, muitas dessas pessoas passaram a rever as suas condições e a participar do processo de mudança, isso tem que ser colocado, e que bom que isso aconteceu, porque antes delas se localizarem nessa posição, muitas dessas pessoas, inclusive as que não mudaram de posição, se perguntaram por que a história dos negros parecia afastada delas, como se a história do negro não fizesse parte delas, e não fizesse parte da história que elas queriam escrever. Mas não se pode negar que essas pessoas brancas, que fazem parte das elites das universidades, são partes envolvidas no poder e na manutenção dos privilégios que o racismo traz. Então, as questões historiográficas devem partir do que nos incomoda no 803 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X presente, no meu ponto de vista, eu acho que a gente tem que começar a criar outras formas de saber como perguntar as coisas. Se, uma vez, os franceses, e os ingleses trouxeram novas questões e novos problemas para historiografia, eu acho que está na hora de olharmos para os nossos umbigos e perguntarmos quais questões, novas questões, podemos trazer a partir de um país no qual as diferenças raciais são fundamentais na sociedade brasileira até os dias atuais. Agora, repito, os europeus, franceses, enfim, criaram uma nova ideia, novas perguntas, novas questões, e novas fontes que todo mundo leu na sua graduação, tá na hora da gente parar com esse eurocentrismo e observarmos, olharmos para os nossos próprios umbigos, e perguntarmos, a partir de um país no qual as diferenças raciais são fundamentais na sociedade até os dias atuais, “como é que a gente faz esses perguntas? “Como é que a gente analisa esse país?” “Como se criam novos problemas?” Isso porque eu estou deixando de falar da população indígena que está sendo massacrada no momento, e o marco temporal que estão querendo impor é, justamente, para estraçalhar parte dessa população, a gente não pode esquecer. Então, eu fico pensando, tem vários pontos que a gente pode (..) O caminho que eu indico é que ao contrário de nós (...) quando forem trabalhar com o seu trabalho de conclusão de curso, seu mestrado, seu doutorado, ao contrário de mirar no trabalho, nos objetivos do seu orientador, ou orientadora, é você partir de questões que te incomodam no presente, assim como outros historiadores já, sempre, pensaram nisso. Nós temos que ter esse diálogo com o presente. Eu fico pensando na história da violência quando e a partir de pessoas negras, imagine os movimentos de revolta que existiram, porém foram diluídos, morreram trinta e cinco mil pessoas no Pará, no que se chama Revolta Regencial. Trinta mil pessoas! Na metade do século XIX, isso não é uma Revolta Regencial, por favor! Uma parte imensa, incrível, da população negra e índigena morreu. Revolta regencial?! Sabe… assim… essas coisas… trinta mil pessoas meu povo! (...) Isso não é uma revoltinha, isso é uma guerra civil, uma guerra incrível nesse processo de construção, de formação a fórceps (...) Nesse processo incrível de construção desse território hoje chamado Brasil, isso não foi à toa. Da mesma forma, eu acho que outras questões poderiam ser usadas, as transformações das tecnologias desenvolvidas e trazidas para o Brasil, naquilo que se chamou Brasil (...) Ou 804 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X trazidas por escravizados africanos, que participaram imensamente da produção aqui no Brasil. Quem é que cultivava arroz? Quem é que trouxe arroz para cá? Como é que se (...) Se já tem pesquisa em relação a extração aurífera, e já tem pesquisas mostrando essa tecnologia que esses indivíduos traziam da região da África setentrional (...) Enfim… assim.... como (...) (barulho de trem) Á. N. Caramba! Tá forte aí?! Á. N.: Tá dando para ouvir, gente? Á. N.: Tá dando para ouvir? D. M.: Apareceu um trem aqui. Á. N.: Ah, é?! (risos) D. M.: Não sei se é alguma carreata. D. M.: Ô, Álvaro? Á. N.: Tô terminando D. M.: Tá bom, tá bom. Á. N.: Então, assim, eu acho que a gente tem que partir dessas questões que incomodam a gente, mas a historiografia brasileira, muitas vezes, não gosta de partir, porque muitas vezes olha e fala, “olha, isso aí é ativismo!”, isso aí (...) Aí fala que é ativismo, que não pode se tornar uma questão objetiva, e esquecem-se basicamente que os historiadores que fundaram os Annales, inclusive, partiram dessa ideia. Então, eu acho que esse tipo de provocação que tem de mudança, ela é fundamental em termos teóricos, porque vai transformar os termos teóricos e metodológicos, essa historiografia que tanto necessitamos sobre a história do negro no Brasil, e 805 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X esse racismo historiográfico que se está pondo, nós precisamos ultrapassar isso. Eu lembro-me de um artigo que escrevi em 2016, e publiquei em 2016, pela revista Estudos Históricos, e não falei nada de muito novo não, o Flávio já tinha feito isso com o Antonio Luigi Negro, já tinha feito isso com, não me recordo se foi antes ou depois, o Petrôneo Domingues, a Silvia Lara (...) Enfim, alguns trabalhos já vinham falando de todo esse questionamento, de como os negros não apareciam, ou foram retirados da história, de como não foram encarados pela historiografia. Então, a minha fala é no sentido de propor algo que tente modificar essa realidade, porque nós temos muito trabalho para fazer, e é fundamental aproveitarmos esse momento, no qual vemos tantas historiadoras, tantos historiadores negros e negras participando na universidade. Obrigado, obrigado! Desculpa aí se me alonguei demais. D. M.: Que isso, Álvaro! A gente que agradece a contribuição. Vou aproveitar o intervalinho e falar pro pessoal que vocês podem deixar perguntas e comentários aqui no chat, que depois da fala do professor Flávio, a gente abre para as perguntas Ok?! Professor Flávio, boa noite! Obrigado por aceitar o convite! É contigo! F. G.: Bom, muito boa noite! Muito obrigado, Danilo, pelo convite generoso! É uma grande honra, saldar Ynaê, o professor Álvaro, é uma alegria enorme estar presente, agora que todos somos (...) nos encontramos nesta situação, ou seja, remota, então é uma felicidade estar aqui. Para mim, é uma felicidade ainda maior porque eu sei que o público aí não é apenas o público da Universidade Federal de Alagoas, é um público bastante amplo. Enfim, ainda mais esse material que fica disponível e muitas vezes alguém vai assistir durante o dia - - vai dizer boa noite e o cara vai assistir durante o dia - -, enfim (...) Porque a minha mãe é Alagoana, a minha mãe é Alagoana, exatamente da região que você fez o seu trabalho, professor Danilo - - eu tive a oportunidade de ler o seu trabalho, que você generosamente me enviou - - (...) Então a minha mãe é alagoana, a minha família é alagoana e paraibana , e a minha mãe - - coincidentemente, eu ainda tenho a minha mãe viva - - a minha mãe tem noventa e três anos noventa e quatro, ela nasceu em - - e ela sempre fala isso - - ela nasceu em vinte e oito, embora tenha sido registrada em vinte e sete, exatamente nessa região aí do Quilombo dos Palmares, dos papa-méis, ela era uma moradora. Então o convite, embora eu já tivesse uma oportunidade em outras situações de ser convidado, também, generosamente, pelo professor Gian Carlo, para estar presente em 806 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X alguns eventos presenciais, por uma série de fatores eu não pude comparecer, e eu fico muito feliz de estar aqui, falando para esse evento organizado pela Universidade Federal de Alagoas. E aí a gente faz uma brincadeira né “Uma das poucas vantagens que o historiador tem quando envelhece, é que nem tudo ele precisa ler, algumas coisas ele só lembra”, a gente não precisa ler, e eu fico imaginando agora os jovens historiadores, Ynaê, por exemplo, se tiver que dar uma aula sobre Diretas Já! Ela vai ter que estudar Diretas Já! Eu e o Álvaro não precisamos, diretamente, estudar sobre Diretas Já! Embora a gente tenha que estudar, a gente pode lembrar também, né, Álvaro?! A gente pode lembrar também o que é que a gente estava fazendo em oitenta e quatro, eu, por exemplo, estava no quartel, enfim. Mas por que eu falei isso? Eu estava lembrando de duas situações, primeiro, a minha última, e eu acho que foi a minha única ida à universidade, não à Alagoas, à Maceió, mas à Universidade Federal de Alagoas, eu não estou me lembrando agora, exatamente, da data, mas foi quando, por exemplo, teve o seminário sobre quilombos e eu - - foi muito legal - - (...) Foi a professora Clara Suassuna, uma das organizadoras, e eu tive a oportunidade de estar ali com o Décio Freitas, o falecido Décio Freitas, o grande historiador de Palmares, que acabou, inclusive, sendo convidado pela Universidade Federal de Alagoas para organizar a documentação de Palmares nos anos oitenta, a gente sabe das histórias aí que ele brigou com quase todo mundo, mas enfim, esse material saiu, publicado, e, na ocasião, eu me lembro da mesa também com Rafael Sanzio, um historiador muito importante, um geógrafo muito importante que tem todo um trabalho de cartografia. Eu estava, na verdade, fazendo essas anotações aqui, eu fiz anotações porque eu vou, de alguma maneira, comentar. Obviamente, a gente tá aqui em um grande diálogo depois dessa apresentação da Ynaê e do Álvaro, me chamando atenção, a própria Ynaê disse, várias maneiras de chegar até uma coisa interessante que a gente podia propor aqui (...) É que talvez uma das discussões muito legais, é que talvez a gente não precisasse estar falando de escravidão e pós-abolição quando a gente fala de racismo historiográfico, talvez isso fosse uma grande coisa - - se a gente tivesse tempo eu ia falar para Ynâe, que ia falar para o Álvaro, que ia falar para mim “Vamos fazer uma combinação?” “Vamos!” “Não vamos falar de racismo e ecravidão,” - Mas como? Se a Ynaê é grande especialista de Escravidão, o Álvaro é grande especialista de Escravidão e Pós-emancipação, eu também conheço um pouco de escravidão, por que aí virou 807 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X uma espécie de o quê? De um único caminho, eu diria até que, às vezes, muitas vezes, das portas dos fundos de entrada dessa presença negra no debate sobre epistemicídio, sobre racismo historiográfico. Então a gente está em um grande debate aqui e eu acabei fazendo essas anotações, que me lembram dessa presença na Universidade Federal (...) Eu acho que foi a única vez que eu estive (...) na Universidade Federal de Alagoas, propriamente dita. (...) Mas eu me lembrei de uma outra presença minha na Universidade Federal de Alagoas, muito importante para a minha vida, muito importante - - por isso que eu fiz essa brincadeira que o historiador, nem tudo ele precisa ler, muita coisa a gente lembra -- foi exatamente em oitenta e seis, em oitenta e seis eu fui à Serra da Barriga. Naquela época, havia um movimento, e eu quero chamar atenção quando a gente fala da historiografia, dos papéis dos movimentos sociais. Na verdade, a pauta dessa historiografia, que está sendo feita - - e que eu já, não sou pioneiro, e nem o Álvaro, a gente já pega esse bastão - - digamos, da primeira metade de mil novecentos e oitenta, é uma pauta dos movimentos sociais. Lamento informar a vocês que o racismo e a luta contra o racismo é o fundamento explicador dessa pauta historiográfica, paradoxalmente, não que nós gostaríamos que o racismo continuasse, mas se não fosse a luta antirracista, por inúmeras gerações, nós não teríamos essa pauta historiográfica. Hoje, nós temos uma pauta historiográfica, uma agenda historiográfica que nós poderíamos tematizar em vários sentidos, e ela é fundamentalmente produzida por essa luta antirracista, e a conexão com essa luta antirracista, esteve no interior da Universidade. Então em 1986, na década de oitenta, tinha um movimento muito interessante, um movimento político que era “Romaria Serra da Barriga”, essas romarias começam por volta de 1983, ou 1984, parece que em 1984 foi a primeira dessas romarias, e aí quando a gente fala disso aqui, e fala de Alagoas, não podemos esquecer de um personagem fantástico, não sei se ele está vendo a gente aqui, mas é um patrimônio também dessa luta que é o Zezito de Araújo, professor aposentado - - não confundir com Joelzito de Araújo, que é um intelectual, cineasta - - Zezito de Araújo, professor da Universidade Federal de Alagoas - - e tinha esses eventos que eram as subidas na Serra da Barriga, e os ônibus partiam de Salvador - - Em 1986, eu estava no meu primeiro ano de graduação - - eu acabei entrando na universidade, acho que talvez semelhante, eu me lembro de ter conversado com o Álvaro, que por uma série de fatores a gente acabou 808 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X entrando um pouco mais velho na universidade, eu mesmo tinha servido ao quartel, tinha ficado um tempo - - (..) A gente (...) Hoje você entrar na universidade com vinte e três anos é entrar velho, porque nossos alunos hoje, e muitos daqui que estão assistindo, estão entrando com dezessete, com dezoito. Eu mesmo fazia uma brincadeira com os meus alunos, a pouco tempo atrás, que todos nós somos personagens do século passado, comecei a fazer essa brincadeira quando dava aula a partir de 2001, agora não posso fazer essa brincadeira porque tem um aluno de dezoito anos que pode dizer “Eu sou desse século professor”. Em noventa e seis eu estava entrando na graduação, e aí eu fui exatamente até Salvador de ônibus e subi a Serra da Barriga pela primeira vez, nesse movimento de jovem subindo - - talvez eu não fosse tão jovem assim - - subindo a serra da Barriga. Foi o maior barato, acabei, tirando uma - - maior barato - - eu entrei em uma fila para tirar uma foto e tinha um sujeito, eu sem saber diretamente quem era o sujeito, sem saber a importância desse sujeito, era o Stokely Carmichael, grande líder do Partido dos Panteras Negras, que subiu a Serra da Barriga também - - era o maior barato, eram os ônibus dali, os ônibus do Olodum, eu fui em um outro - - (...) E eu subi a Serra da Barriga, foi muito importante, depois eu subi (...) só subi depois desse evento que eu falei para vocês aí, que foi, eu vou até lembrar mais ou menos, acho que foi em 2002 que eu, a última vez que eu estive em Maceió, e a única vez que eu estive em Maceió pela Universidade Federal de Alagoas. Então é muito interessante que eu, de alguma maneira, sou fruto desse movimento social, dessa discussão, hoje a gente fala muito pouco em História Intelectual no Brasil, que é mais ou menos conectar determinados autores, conectar a formação de determinados campos de estudo, como eles estão surgindo, quem está trazendo as ideias. É muito legal isso, a gente hoje comenta quem está trazendo Thompson, “A formação da classe operária” é publicado bem depois e é, primeiro, o livro mais importante de Thompson da década de sessenta, mais do que o “Miséria da Teoria”, que é publicado em setenta e oito no Brasil, “Senhores e caçadores” tá entrando pela antropologia. Esse movimento de entender esses autores, essas influências e as conexões da agenda, é isso que eu estou chamando de história intelectual. Às vezes, a gente dá muita pouca importância a isso, quer dizer, tem uma galera fazendo uma coisa muito legal, que é a coisa do Ensino de História, a gente fica perguntando do que se falava de história no Brasil nos anos oitenta, o que se falava, nos anos setenta nas universidades. 809 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Então, eu entrei na universidade em oitenta e seis. Quais eram os temas? Isso não é difícil de saber por que nós teríamos o quê? Nós teríamos as ementas, as pautas, teríamos até as possibilidades de entrevistar velhos professores aposentados, para que eles pudessem falar exatamente o tipo de tema, conteúdo, o que aparece. Eu me lembro de uma entrevista do João Reis, em um livro chamado “Conversas de historiadores” João Reis, sem sombra de dúvidas, um dos mais importantes historiadores brasileiros (...) Nesse livro “Conversas de historiadores” tem um texto que foi feito pela Maria Burke, que é um texto que, de alguma maneira, reproduzia um debate internacional entrevistando, na ocasião, um dos mais importantes historiadores, e aí perguntaram para o João Reis, João Reis que fez um trabalho fundamental para nós historiadores da Escravidão e Pós-emancipação, um trabalho de referência, de inflexão (...) Perguntaram para ele “olha, você estudou na UCSAL em Salvador, e você acabou indo estudar nos Estados Unidos, por que você não veio para USP?” - - está na entrevista Ynaê -- “Por que você não veio para USP”? e o João Reis, o nosso grande João Reis, amigo de todos nós, falou “Bom, naquela época, a USP era para quem era da USP” - - João Reis respondeu isso, está no texto - - “Naquela época, a USP era para quem era da USP”, o que significa pensar isso? o que era propor alguma agenda temática nos anos oitenta?, nos anos setenta? e ainda fazer uma pós-graduação? É isso que a gente está falando, então o tema do Quilombo, eu diria, foi um tema projetado pelos movimentos sociais. Hoje, o historiador, o jovem historiador, pode se preocupar com o Pós-emancipação, com Quilombo, porque ali a gente tem uma vasta historiografia consolidada, fundamentalmente, também por intelectuais negros, professores negros. Mas até os anos sessenta, os anos setenta, início dos anos oitenta, o Quilombo, por exemplo, que era um tema - - eu vou ter que falar sobre o pouquinho do que eu sei porque eu acabei só estudando isso - - O tema do quilombo era um tema militante, era um tema do silêncio historiográfico. Eu cheguei a fazer algumas brincadeiras, mesmo nos anos oitenta, com a vinculação com a Constituinte e a redemocratização, que nós também fomos invisibilizados como negros na redemocratização, mesmo ali, apareciam temas que, por exemplo, nunca houve tantos trabalhos sobre a Alforria no Brasil. Nós fizemos uma contabilização de números de títulos, e eu não estou falando que isso não é um tema importante (...) Sobre Alforria, e irmandade então é um negócio impressionante, chegou um momento que (...) tem uma piada internacional que diz que teve 810 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tanto trabalho sobre retornar, só que os africanos não voltam, essa é uma piada, não é minha não, Tá, Danilo?! É uma piada internacional que tinha um historiador para cada retorno, de tanto trabalho que tinha, e a irmandade, parecia que o africano chegava aqui e o cara colocava, “Olha, tá aqui um cartãozinho meu, se você precisar de um irmão, tem uma na esquina. Ou seja, o tema das revoltas, o tema dos quilombos (...) Então o Brasil recebeu 46% dos africanos que vem para América, significando em torno de 4, 8, 5 milhões de africanos, nós tivemos uma (orc logo) das Américas a ser visto, e uma quantidade de Quilombos, praticamente 350, era um tema do que, era um tema do silêncio, era um tema em que sequer intelectuais, e aí é importante (...) eu quero exatamente, quer dizer, eu quero, (..) eu não posso repetir (...) eu não posso não, eu não devo repetir o que brilhantemente a Ynaê e o Álvaro trouxeram, porque é fundamental nessa questão do racismo historiográfico quando a gente falar de historiografia, a gente também identificar rostos, identificar personagens, falar desses intelectuais. “A historiografia para cá, a historiografia para lá”, Aquela historiografia (...) Quem são? Quem é essa historiografia? Já foi falado né, a gente fez essa brincadeira lá com a USP (..) Quem são os historiadores? Quais eram as preocupações? Tem um trabalho sobre mil novecentos e trinta e dois que é “A chamada revolução”, esses nomes são o maior barato né, a gente, nós que somos professores, a gente já gasta um bom tempo e um bom tempo interessante em sala de aula brincando com esses temas “Revolução de trinta”, “Intentona comunista”, “Revolução Constitucionalista”, isso não é um nome, são apelidos, muito, muito posteriores a esses processos e experiências. Mas a chamada Revolução Constitucionalista de São Paulo, em mil novecentos e trinta e dois, segundo o livro, que já tem bastante tempo, esse livro deve ter uns quinze anos (...) Um livro do Jeziel de Paula, certamente, o Álvaro lembra desse colega lá de Campinas, ele mostra, e acho que isso ainda vale, que a Revolução Constitucionalista de São Paulo, de mil novecentos e trinta e dois, talvez seja um dos temas que têm maior quantidade de títulos na historiografia brasileira, ele contabilizava à quinze anos atrás, cerca de duzentos títulos, entre livros e artigos. E a Revolução Constitucionalista (...) Ano que vem terá noventa anos dela, vamos ter que esperar onze anos para ela ter cem anos. 811 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Eu não me lembro agora, começou a aparecer, sei lá, nós não temos meia dúzia de teses e dissertações sobre o Quilombo de Palmares. Tá legal, eu vou jogar assim, eu vou ser generoso, porque nem sempre a gente consegue acompanhar tudo, talvez a gente tenha uma dúzia de trabalhos, teses, e dissertações voltado para o Quilombo de Palmares. Olha só, um movimento que, inclusive, foi expulso do grande panteão nativista, que uma certa historiografia construiu. Revolta de Beckman é nativista, Revolta dos Mascates em Pernambuco é nativista, as revoltas que tem em Minas Gerais, na verdade, são revoltas fiscais, eu até brinco com os meus alunos “Revolta fiscal, galera. Alguém tá pagando vinte e sete por cento de imposto de renda, quem vai fazer uma revolta fiscal é essa galera que está aí apoiando o presidente atual”, que o cara que tá (...) revolta fiscal (...) e isso tudo foi colocado em um Panteon dos chamados Movimentos da direita, Palmares, foi visto como o quê? Como uma coisa dos escravos. A revolta dos Malês Africanos, ela entra pela primeira vez dentro do chamado período regencial, no livro do José Murilo e, mesmo assim, o José Murilo destaca assim “Olha só, uma revolta de escravos”. Hoje, a gente sabe que tem pelo menos mais quatro, ou cinco revoltas que acontecem, exatamente, nesse período regencial, que a gente vai até, inclusive (...) Que a historiografia coloca o período regencial, e, inclusive, vai indo a partir dele, porque em quarenta e dois a Revolução liberal, não é mais período regencial, mas a historiografia coloca lá, e a gente tem que aprender, pelo menos no vestibular, associar que a Farroupilha é no Sul, que tem duas, e que não é para a não confundir Eu tenho um filho jovem, isso ainda cai como pegadinha, a Cabanada no Pará, quer dizer, olha o ensino de história, o cara quer fazer uma pegadinha com Cabanada no Pará, na verdade a Cabanada é em Pernambuco. O Pará é Cabanagem, e o professor ainda coloca isso. A minha vontade (..) Um dia eu vi isso na prova do meu filho e falei “pô, você tá de brincadeira colocar” (...) Quer dizer, uma pegadinha acaba (...) Ver, como é que é?! Ver a frase errada (...) Quer dizer a Cabanada (...) Olha a preocupação do sujeito de colocar uma pegadinha em um movimento social fantástico, de que (...) de camponeses negros. Minha mãe mesmo conta muito história de que ela viveu naquela região dos chamados negros do mato que ela ainda viu jovem, quer dizer, daquela população ali. Então assim, eu acho que é muito importante esse movimento que a gente está falando de epistemicídio, eu quando vi esse título, eu fiquei meio, eu fiquei meio cabreiro, né?! Porque 812 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X vocês sabem que essa expressão ganhou muita força no debate intelectual, a partir de uma expressão do Boaventura Santos, que, desculpa aí vocês, é chato para caramba!, mas enfim, todo mundo usa e tal, é aquela coisa. Mas ao mesmo tempo, epistemicídio e silêncio do passado (...) Me lembrei agora do Trouillot, tem um livro importantíssimo, agora, traduzido para nós, que é o livro “Silenciando o passado”, do Michel Trouillot, em que ele mostra exatamente essa dimensão do evento de não evento. Você exatamente do que (...) Exatamente diante do que você se expressa, sistematiza como evento, como algo importante, tem o papel também de silêncio sobre outras coisas, na medida em que você foca aquilo. E aí, eu vejo uma reflexão para nós importante, primeiro, por que a gente tem que incorporar os negros ou a população negra? Eu concordo exatamente com o que a Ynaê falou, embora a gente tenha que dialogar com isso em vários aspectos e espaços, não se tem historiador ou historiadora branco. Eu não conheço nenhum historiador ou historiadora branco, mas nós somos vários historiadores negros, e a gente tem que ter orgulho disso, porque do ponto de vista político a gente usa isso. Mas o racismo é tão perverso que nos credencia a ser historiadores negros com uma importância, e ao mesmo tempo, nós não nos conhecemos. Ninguém fala assim “tem uma historiadora branca paulista”, “tem um antropólogo branco paulista”, mas tem o antropólogo negro baiano, sacaram isso? E não tem a história branca, nós temos a história negra. Então esse movimento de alargar a nossa capacidade de entender a História do Brasil, contemplando, e aí tem uma dimensão fundamental, por que nós temos que incorporar? porque nós temos que incorporar experiências, incorporar processos, incorporar personagens, é isso que nós historiadores estamos de alguma maneira contaminados, mobilizados, ou seja, ninguém está fazendo uma história do negro porque nós somos negros, porque nós temos supostamente uma capacidade de olhar, a minha capacidade de olhar documento é igual a de qual qualquer outro historiador, e com os meus problemas hoje, com óculos e tal, os mesmos problemas. A minha sensibilidade de olhar não faz com que necessariamente eu (..), necessariamente negra, sacaram isso? Ao mesmo tempo. é muito importante como uma ferramenta política e, ao mesmo tempo, a gente tem que trabalhar isso como o discurso desse racismo historiográfico silencioso, é um racismo historiográfico silencioso, de uma uma (jenga), de uma formação de alunos, que a gente tem que fazer o tempo todo, e é claro, a gente tá “puxando sardinha para nossa brasa” porque nós somos historiadores, eu Ynaê e Álvaro, somo aqui, para começar, historiadores que tratam do século XIX, ou do que vem antes do século 813 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X XIX em tese, então a gente tá muito mais preocupado com as experiências da escravidão, as experiências do pós-emancipação. Esse debate aqui pode mobilizar vários alunos e vários professores para a gente pensar, inclusive, essa inclusão da população negra para outros temas, aí se, por exemplo, as cidades, as cidades brasileiras, modernas-contemporâneas são fundamentalmente cidades reorganizadas a partir das experiências negras, o que não pode ser explicado apenas a partir da história negra da escravidão, embora possa também ser colocada. Então, eu acho muito importante esse “por que incorporar os negros” e aí, eu finalizo o seguinte, para produção do conhecimento histórico, e para os intelectuais negros, ainda tem uma outra questão, porque a gente está lhe dando com o passado, o silenciamento do passado, e aí uma coisa interessante, para nós, o passado não acabou. Para nós, o passado ainda não acabou fundamentalmente, o passado está sendo reinventado, reproduzido, aquela coisa que Gramsci teria dito, a gente continua perdendo do ponto de vista das nossas batalhas, então isso é muito interessante nessa espécie de eixo dialético entre intelectuais negros, historiadores negros, o racismo historiográfico, as temáticas da escravidão, o tema das mulheres, como o Álvaro bem chamou, o tema do pósabolição, tem que ser credenciado de alguma maneira a toda uma geração de movimentos socais, querendo saber exatamente o que acontece com a população negra após o treze de maio de mil oitocentos e oitenta e oito, isso é muito importante, não foi necessariamente -- quando a gente fala de campo de estudo parece que é um grupo de historiadores que pioneiramente resolve em uma mesa de bar, ou em um encontro da ANPUH a vinte anos atrás “pessoal, vamos fazer um estudo sobre pós-abolição?”, -- foi exatamente o quê? essa agenda, essa pauta. Então, dizer isso, não nos menospreza, não nos coloca em uma situação ruim, pelo contrário, chama atenção para papel do presente, o papel da luta antirracista, o papel da luta pela democracia, é isso que está fazendo novas agendas para produção historiográfica do conhecimento. Então, eu queria, mais uma vez, agradecer aqui o convite, vamos dar uma continuidade ao debate, certamente muito quente, e repito, embora eu não esteja falando só para alagoanos e alagoanas, só para o público da Universidade Federal de Alagoas, para mim é uma honra estar dialogando aqui com um evento organizado pela UFAL. Alagoas é a casa da minha mãe. Tá legal?! Obrigado! 814 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X D. M.: Muito obrigado, professor Flávio! Queria registrar aqui que o professor Zezito Araújo está acompanhando, mandou um abraço! Axé! F. G.: Isso! Só ele que não envelhece, mas tudo bem. (risos) D. M: A professora Clara Suassuna também está mandando um abraço e disse que, provavelmente, o evento foi em 2004, ou 2005. F. G.: Tá ótimo! D. M.: O professor Flávio trouxe vários elementos para a gente pensar, assim como o professor Álvaro, e a professora Ynaê, eu só queria, rapidamente, mencionar novamente a importância desse NEAB dos anos 1980, de todas as lideranças que aqui estiveram, e também pontuar a importância que o movimento negro local teve nos anos 1980, através da Associação Cultural do Zumbi, que também fizeram parte o Zezito Araújo e a Vanda Menezes. Então, temos aqui um grupo que era muito articulado junto ao NEAB da UFAL, e que, por exemplo, nos anos 1980, fazia trabalho nas escolas no dia 13 de maio, para desconstruir a representação da abolição enquanto dádiva, o que foi muito importante para a consolidação do NEAB dentro da Universidade Federal de Alagoas. E, a partir disso, fazer a defesa das ações afirmativas, e aí eu deixo aqui a minha referência a todo esse pessoal que passou aqui antes de mim, e antes de muitos que estão aqui agora. E a professora Clara continua professora do curso, participando daqui do evento. Tem alguns projetos da gente entrevistar, inclusive, todas essas lideranças do movimento negro local aqui dos anos 1980 para gente fazer um acervo junto com esse acervo que o NEAB da UFAL tem com fotos, documentações dos anos 1980, em torno da formação da Serra Barriga, e que foi muito importante, inclusive, para criação da Fundação Palmares em 1988. Mas, enfim, a gente tem três perguntas pontuais, eu gostaria de fazer uma primeira para os três. Então vamos logo nessa daqui do Pedro que já está projetada “Professores, entende-se que a 815 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X história teve sua produção com pauta em quesito racial, sem se tratar da escravidão, muito tarde, isso, porque, influenciado por um racismo estrutural se entendia que eram assuntos que não deviam ser analisados pelos historiadores, por se acreditar (a época) serem assuntos subjetivos e não objetivos, que era o que se cobrava a postura do historiador. Vocês acreditam que, até hoje, há essas amarras para a produção do conhecimento racial? Essa seria a primeira pergunta do Pedro Vinicius, vocês gostariam de fazer um bloco de três? Y. L.: É isso que eu ia perguntar, como a gente iria fazer. F. G.: Eu acho que as questões estão bem complexas, grandes, ou seja, legais, e que se a gente for passando, a gente vai acabar perdendo aquela primeira. Y. L.: Eu também concordo. D. M.: Tranquilo! Pode começar, Ynaê? Y. L.: Essa pergunta, na verdade, acho que de certa maneira, o Flávio já respondeu na fala dele, mas sim. A questão é que a gente vive nessa ordenação do racismo, que estrutura todas as instâncias da nossa vida, querendo ou não, tendo consciência disso, ou não. É uma coisa que a gente não escolhe, a gente só escolhe não ser racista, e dentro dessa perspectiva, a produção do saber historiográfico, ela naturaliza a experiência branca como a experiência universal, que, no caso do Brasil, ganha esse eco de História Nacional. Então, como o Flávio falou, a gente não fala “um historiador branco”, porque já está imputado na ideia que o historiador é branco, diferente de quando o historiador é negro, então a exceção da História Política do Brasil, se dá, as vezes, pelos movimentos protagonizados pelas populações negras e ameríndias, mas aí você faz o quê? Você cria uma caixa, digamos assim, historiográfica, coloca essas histórias, e poucas vezes articula essas histórias. E aí, é uma crítica aberta à historiografia política, sem sombra de dúvidas, que precisa se rever, e ser revista, aqui no Brasil, que é, enfim, a negação desses sujeitos na produção da política. Inclusive, perdendo a oportunidade de entender outras formas de se fazer política, porque a política não é só a política que se faz no Congresso Nacional, ou a política que era feita pelos Conselheiros do Estado do Império, a política se faz no cotidiano. A 816 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X gente aprende isso com os gregos, mas, na hora de aplicar aqui na história racista brasileira, a gente não aplica. A experiência em sociedade, é uma experiência de disputas políticas, então estamos todos disputando nos seus lugares sociais, então, obviamente, que a forma como um escravo vai fazer isso, que um escravizado vai fazer isso, não é a mesma forma que um homem negro livre, que também não é a mesma forma que um homem branco pobre, que não é a mesma forma que uma mulher mais abastada, agora, isso não diminui essas experiências. Então, o que a gente precisa efetivamente é complexificar o olhar que a gente tem para história do Brasil, e isso só é possível, de fato, se a gente fizer uma, enfim, uma historiografia antirracista, uma historiografia que entenda, efetivamente, a participação da população não-branca na história brasileira, e isso ainda está longe. O que a gente tem, na verdade, é um movimento significativo dos estudos do Pós-abolição, dos estudos da Escravidão, dos estudos da História Indígena, mas que ficam quase dentro de um “gueto”, que não entram nas grandes (...) eu estava agora estudando, um pouco, sobre a história da República brasileira, porque eu estou analisando um intelectual negro desse período, e é impressionante como a historiografia clássica da história do Brasil não trata do tema racismo é sempre (...) não é um tema. Aí você tem que com muitos trabalhos já feitos, o Flávio tem uma série de livros, o Petrônio tem outros. (...) A gente tem vários historiadores consagrados, eu não estou falando aqui de pessoas que estão começando agora a vida acadêmica, e essas análises continuam consagradas dentro da macroesfera do pensamento sobre a história política brasileira. A gente tem que mudar isso né, seria mais ou menos isso a minha resposta. Á.N.: Eu reitero o que foi dito por, excelente pergunta, inclusive, né?! (...) Eu ainda tenho uma certa esperança porque, não sei se o Flávio concorda comigo, mas a presença de uma juventude de negros e negras, cada vez maior, na graduação e na pós-graduação de História, e negros e negras conscientes da questão racial e do racismo no Brasil, e querendo discutir diversos temas, não somente (...) Em qualquer área, em qualquer momento histórico, Isso me traz uma esperança de que há uma resistência, há uma possibilidade de mantermos essa produção acadêmica e historiográfica, que vão ser muito importantes, assim como a presença dessas pessoas que entraram por cota mexeu com a cabeça de muitos historiadoras e historiadores, e 817 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X aí eu vou seguir o Flávio, não precisa dizer que são pessoas brancas, porque são brancas, assim como essas pessoas foram (...) O trabalho de pesquisa (...) Tem pesquisas historiográficas incríveis que estão modificando a cabeça de muita gente. Ontem mesmo, várias coisas estavam acontecendo, gravação inclusive, participação, estavam nos chamando e não é à toa, é uma questão muito importante na mídia, mas a gente também sabe que esse é um negócio muito rápido. Precisamos aí, um convite que faço, aos jovens e as jovens historiadores, Eu, Flávio, um dia, Ynaê, todos nos aposentaremos, e aí? E o pessoal que está aí se formando, se preparando para assumir esses lugares, para entrar cada vez mais fundo nisso? É fundamental que isso ocorra, porque hoje nós somos treze, aproximadamente, aqui na Zona Metropolitana do Rio, mas daqui a pouco a gente pode ser onze. Na verdade eu não quero isso, eu quero que a gente dobre, veja, na UFF, a Ynaê é a segunda professora negra concursada que eu vejo na UFF, no programa de pós-graduação que deve ter quase sessenta, setenta pessoas, não me lembro mais, não sei quantas pessoas tem hoje. Na Rural, no curso de História, sou eu e mais um. Sem contar a UFRJ, que o Flávio poderá falar mais ainda, o Flávio, que eu saiba, é o primeiro negro concursado que entrou lá, que ficou lá, e que está lá a mais tempo, tem agora a Mônica, do curso de História. Então, para vocês terem noção como a coisa é, se a gente não assumir essas respostas, esse processo pode ser um processo de derrocada, porque esse movimento todo que está aí, de aprovação, de Deus, Pátria e Família, ele é resultado de um processo de mudança que culminou na Reforma trabalhista para as domésticas, e que agora está sendo derrubado cada vez mais com reformas e reformas trabalhistas. Então se nós, respondendo a pergunta (...) continuando a pergunta de Arthur, se nós não tivermos mais negros e negras que se posicionem, e escrevam, e pesquisem sobre a história do negro, novamente, essas questões podem ser ouvidas, vão ser outras, mas, é algo que a gente precisa muito atento daqui em diante. F.G.: Bom, eu vou pegar essa deixa aí, para eu acho até que joga a bola aí de volta, primeiro eu queria dizer pro Álvaro deixar a Ynaê em paz porque já quer aposentar a Ynaê, Álvaro, você vai se aposentar primeiro, vai cuidar de neto e ela vai continuar dando aula. Cara ela é jovem, acabou de entrar agora. E aí, é importante que a Ynaê possa ver, uma coisa que, certamente ela 818 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X vai gostar muito, ver uma geração de jovens negros entrando por ações afirmativas, que não vão precisar estudar, necessariamente, escravidão, porque nós recebemos os alunos brancos para estudar escravidão, só que o nosso colega que não estuda escravidão e pós-abolição não recebe o estudante negro, e quando recebe, quer encaixar o estudante negro em uma prática racial, porque nós estamos falando de formação de historiador. Porque eu tenho que convencer um estudante negro? Falar “Ó, você é negro, precisa estudar o negro”, Então isso, certamente (...) Você queria aposentar a Ynaê, a Ynaê vai ver isso. A Ynaê chegando a quê? A professora emérita, titular, daqui a vinte, vinte e cinco anos ela vai viver essa experiência. A outra coisa que eu não perco a oportunidade de provocar, agora nós temos um termo, que o movimento negro constitui como análise, virou um termo, que agora está se virando contra a gente, o racismo estrutural. Eu já estou chateado com isso porque, primeiro que os movimentos negros lutaram e tem lutado durante anos para mostrar o racismo no Brasil, e, agora, essa categoria fantasticamente elaborada pelo livro do Silvio de Almeida, virou uma espécie de explicação geral, ou seja, não tem racista no Brasil, porque o racismo é estrutural. Qualquer hora está virando peça jurídica, “porque o racismo acontece na universidade, no dia a dia e tal”, ou seja, daqui a pouco as pessoas que mataram o homem negro lá, “ele foi vítima do racismo estrutural. Tem racismo estrutural, mas nós não podemos (...) Eu só não queria perder a oportunidade, eu sei que a pergunta, foi uma pergunta generosa, muito boa, e o uso da palavra racismo estrutural não tem esse sentido. Para responder direito a questão e não repetir o que o Álvaro e a Ynaê falaram, eu diria que é o seguinte, eu acho que nós temos um desafio, nós professores de História da universidade pública, da historiografia, que, aliás, não é um desafio da História do Brasil. Talvez seja um desafio da história da própria América Latina, eu conheço um pouquinho da historiografia da Venezuela (...) Eu queria agora investir para outros lugares (...) A Ynaê conhece a Cubana (...) que é o seguinte, que são as historiografias nacionais, nós temos que implodir as chamadas histórias nacionais. São essas histórias nacionais que tem como espaço de protagonismo a Corte, o Rio de Janeiro, por isso que as chamadas revoltas regenciais são jogadas para a tal história regional, que é um perigo, muitas vezes a pessoa não entende, “Ah, mas você é contra então a história regional?” Não, eu não sou contra a história regional, uma coisa é entender esse campo de estudo história regional, como ele se aplica na chamada terceira geração dos 819 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Annales, um estudo de caso, e como isso serviu de alguma maneira como uma grande armadilha, porque você acaba tendo a história nacional, os principais temas, os principais locais, os principais personagens, e a história regional. Ou seja, a Cabanada, ela é um tema da história do Brasil? não, da história regional, A Cabanagem do Pará, a Balaiada Maranhense, e assim sucessivamente. E são temas o que, vamos pegar só esses três temas aí, é a formação de um campesinato no Brasil, e nós ainda conhecemos muito pouco, se tem uma coisa que nós não sabemos no Brasil é a população livre no Brasil do século XIX, nós não temos um estudo substantivo, que dê conta para gente localizar no mundo Rural e no mundo Urbano, quem é essa população livre no Brasil, porque em uma sociedade escravista, a gente sempre fica com a condição do escravizado e do senhor de escravizado, só que o senhor de escravizado pode ser um homem livre pobre, esse senhor de escravizado pode ser um camponês livre em uma região. Então talvez esse seja o grande desafio, nós implodirmos, eu não sei se foi a Ynaê, ou se foi o Álvaro que utilizou essa expressão, eu gosto muito dela, que é implodir essa imagem de uma História Nacional, que é uma história da Corte do Rio de Janeiro, do século XIX, do café, por exemplo, nós estamos aí em Alagoas, Alagoas era Pernambuco, é até uma piada “melhor parte de Alagoas era quando Alagoas era pernambucana”. Todo mundo sabe a origem da Província de Alagoas, a origem da Província de Alagoas é uma coisa interessante, Pernambuco e Alagoas, mais Pernambuco era o maior produtor de algodão no século XIX, e a gente não fala do algodão, a gente tem que falar do açúcar, tem que falar do ouro. O ouro não exatamente começa em Minas Gerais, que é uma província, o ouro é descoberto no século XVII, Minas Gerais é uma província do século XVIII, então você tem ouro no Sertão da Bahia, você vai ter ouro em Goiás, eu acho que talvez o grande desafio seja justamente implodir essas histórias nacionais, e aí recompor historiografias para pensar. Isso, inclusive, tem até efeitos internacionais, porque eu me lembro de estar com um aluno da Barbara Weinstein, uma professora dos Estados Unidos, ele estava em dúvida sobre Teba, ou ele fazia um tema sobre tráfico de africanos de Moçambique. e ele queria, estava muito interessado na Balaiada, e eu falei pro cara que a Balaiada era fantástica e tal, e ele já estava preocupado com o emprego. Ou seja, o cara vira um professor de história da América Latina nos Estados Unidos, ele vai conseguir fazer um livro nos Estados Unidos sobre Balaiada. Esse livro que ele fizer sobre 820 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Balaiada vai ser traduzido no Brasil? Sacou? Ou seja, como a questão é muito mais ampla, eu não quero repetir a palavra estrutural porque já virou, então eu acho que talvez esse seja o grande desafio, essas formatações historiográficas, essas escolhas, nós temos que implodir essas cronologias. O que a gente aprende hoje como história é, praticamente, a pauta do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, a gente não tem, olha eu brinco com os meus alunos, eu queria dar um curso de História do Brasil meio, deixa o cara de História do Brasil 1, depois eu queria dar um curso de história do brasil 1 e meio, eu tô brincando com as cronologias, história do Brasil 1, “colônia tudo”, mas o Brasil não era, depois do Reino Unido, a unificação do ponto de vista da estrutura colonial, não era mais colônia, então tinha que ser o Brasil e meio? Então você faz um Brasil 1 com 350 anos, um Brasil dois 67 anos, aí depois, inclusive começa uma cronologia (...) Isso eu fui atrás, tem lugares que dão o curso de história hoje nas Universidades públicas que já tem Brasil 6, daqui a pouco você tem lugar com Brasil 7. “Você é contra?” Não, por mim pode ter Brasil 8, o fato é que a cronologia continua. Brasil 1 continua a colônia inteira, o Brasil 2 continua sessenta e sete anos, aí depois começa o quê? esses recortes completamente, o quê? Completamente, convenções da República Velha. Ninguém viveu sobre a República Velha, República Nova, República Madura, são convenções, até o pós-ditadura, a redemocratização, sacou?! Onde eu quero chamar atenção? Eu acho que o nosso papel de historiador vai ter também essas implicações de demolir essas cronologias e ir atrás, inclusive, de experiências e conexões internacionais. Conexões que a gente chama de Atlântica e tudo mais. D. M.: Bom, eu queria agradecer as perguntas que estão chegando aqui no chat, mas pelo adiantamento da hora, eu acredito que, infelizmente a gente não consiga dar conta de todas as perguntas que têm chegado, já percebi que tem alguma invasão em alguma das lives aí atrás, e eu gostaria de saber se a gente pode fazer mais uma e as considerações finais, pode ser?! Pode ser essa do Rafael Torres, “Qual seria a postura, ou os métodos para, em sala de aula (como educador e educando), contornar esse silenciamento que é presente na formação contínua, mas também no exercício da profissão docente?” Aí, eu gostaria de, rapidamente, emendar uma questão que eu gostaria de colocar, já que a gente está falando desses temas, e, já que a gente já citou aqui, Trouillot, “Silenciamentos do Passado” e podemos citar outros autores, outras 821 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X autoras: Quando é que a gente vai começar a ver nas bibliografias das disciplinas de Teoria e Metodologia da História, autores como Trouillot? Ynaê? Y. L.: Bom, obrigada pelas perguntas! A primeira, eu acho que é o nosso grande desafio, na verdade, é como fazer com que a experiência da produção do saber histórico, seja na escola, seja na universidade, de fato, possa derrubar, ou implodir essa perspectiva que é eurocentrada, que é profundamente branca sem se dizer assim, ou seja, que privilegia a história da população branca, como se isso fosse o caminho natural a ser seguido. É isso mesmo que o Flávio falou, a gente continua em 1838, com o IHGB, ( ) e a galera que organizou, muito bem organizado, como que a história brasileira deveria ser contada. Tem que ter (...) Infelizmente, é isso, a gente está nesse momento da história brasileira em que não tem (...) As políticas públicas não estão preocupadas com isso, e muito pelo contrário, o objetivo é que nem, inclusive, tenha escola, não tenha universidade, enfim né, então tem que ter um exercício do professor e da professora em se instrumentalizar, atrás de outros livros, de outras histórias, e eu acho que as biografias, elas são um convite interessante. Porque, muitas vezes, em sala de aula, a história das pessoas, dos alunos se conectam, às vezes, falar de grandes eventos, grandes processos, nem sempre chama atenção dos alunos, mas fazer isso por meio de biografias, de vidas interessantes, e a gente tem várias, agora a gente tem uma produção significativa, acho que nós três aqui temos produções nessa área, nessa pegada, que é trazer a história também na perspectiva um pouco micro-histórica, mas também a partir das biografias de sujeitos negras e negros, que são pouquíssimos, ou nada conhecidos pela historiografia oficial. Eu acho que essa é uma saída interessante, porque isso pode trabalhar com várias camadas desse ensino, que é a identificação positiva de muitos alunos negros em, uma vez na vida, estudar a história de um homem negro, que não seja necessariamente um escravizado, ou uma mulher negra, que não seja necessariamente, uma mulher escravizada, ou que foi uma mulher escravizada que lutou pela liberdade dos seus filhos fazendo uma rede de solidariedade criada depois da Lei do Ventre Livre, enfim, eu acho que existem várias formas, mas isso depende de uma decisão do professor. É isso, a luta antirracista não dá para ser só na verborragia, é ação. É sentar, e, infelizmente, isso, por enquanto. Essa estrutura que a gente vive e está, enfim, parte das ações individuais - - 822 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X eu decidi que eu vou fazer isso na minha sala de aula - , significa que eu vou ter que ler mais, ler outras coisas, e hoje a gente tem uma facilidade, embora os livros sejam uma coisa muito cara ainda, que são esse universo de lives, de palestras, que tem permitido uma produção significativa no meio audiovisual, de documentários que possam ser gratuitamente acionados pelos professores do ensino básico. Então, eu acho que tem que ter esse movimento, ele tem que existir, não é só a gente falando de um movimento antirracista, a gente tem que fazer, porque eu gosto muito dessa coisa que o Flávio disse, de como a ideia de um racismo estrutural pode levar a manutenção desse próprio racismo porque parece que não tem gente, só tem estrutura. Mas estrutura é decisão política, é disso que a gente está falando, eu quando falo de racismo estrutural estou falando de decisão política, de um grupo de pessoas que decide implementar as políticas públicas “xyz”, que tem como objetivo evidente da história brasileira, geralmente, manter discriminação racial, a desigualdade racial, como forma de operar o Brasil. É isso, e aí então a gente tem que fazer uma ação muito grande contrária, mas eu acho que a escola é um dos melhores lugares para que isso aconteça. Se a gente conseguir pegar, quatro, cinco, seis ou dez, meninos e meninas que ouviram a história do João Cândido, ouviram a história do que foi a Imprensa Negra, isso pode mudar a vida, efetivamente, de quatro, cinco ou dez, e, dependendo da escala, milhares de brasileiros, e fazer com que as pessoas se relacionem de outras formas com as suas próprias histórias, porque, em última instância, é disso que a gente está falando. A forma profundamente racista com a qual a história brasileira é contada é para manter essa população que é subalterna, que é discriminada, neste lugar, ponto, é isso. Também tem o jogo de classes, que no Brasil também se mistura com a questão racial, mas o que existe é isso, quem está no poder, e quem não está no poder, quem tem privilégios, e quem paga por esses privilégios. Então é um movimento efetivamente intenso, mas que eu espero que seja feito, e, enfim, torço para que isso aconteça de forma macro, e Danilo, tem que “chamar na chincha”, também, os nossos colegas. Parte dos nossos alunos já fazem isso, já tem esses questionamentos, então, “Como você não estudou Trouillot em Metodologia da História?” “Como você não lê Trouillot quando se fala em Teoria da História, quando se pensa história?” Enfim, vão ler Trouillot nas minhas aulas de América, quando eu falar das relações étnico-raciais nas Américas, e puxo o Trouillot, mas, claro, que uma perspectiva distinta. Então eu acho que a academia tem que se rever, eu não 823 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tenho a menor dúvida em relação a isso, a gente precisa, todos nós que estamos dentro do ambiente acadêmico (...) Quer dizer, a função da academia em um país como o Brasil, com esse percentual muito pequeno de pessoas que podem adentrar a universidade, concluir a universidade, mas ao mesmo tempo um ambiente que forma os professores, eu acho que é fundamental que a gente se reveja e, se possível, dentro dessa comunhão de uma necessidade de repensar as questões raciais no Brasil, trazendo ela, explicitamente, pro lugar que ela tem, que é de centralidade. Ela é um dos pilares do país, então ela precisa estar ali evidente na produção do saber histórico a respeito da história brasileira e das relações que o Brasil estabelece, inclusive, com outros lugares, para que a gente possa, sobretudo, se tudo der certo, e eu queria muito ver isso, porque vai demorar muito para eu me aposentar, Álvaro! Não fiz nem conta para não entrar em desespero. F. G.: Ele quer te aposentar! Quer te aposentar! (risos) Y. L: Né?! e eu não vou, sei lá oitenta, não sei quantos anos (risos) não sei quantas reformas vão ter ainda. Mas eu espero que, de fato, a gente possa implodir isso tudo e pensar a história a partir de outros marcos, de outros sujeitos, de outras perspectivas. Então, é isso gente. Obrigada de novo pelo convite! Obrigada pelas perguntas! E é bom que tenha outras perguntas, eu gosto porque mostra que a gente está aqui resistindo, e disputando lugares, disputando os Brasis possíveis. Obrigada! D. M.: A gente vai ter que fazer a segunda edição dessa mesa presencial! (risos) Á. N: Tomara! D. M: É contigo, Álvaro! Á. N: Bom, em primeiro lugar, Ynaê! Tá certo (risos), não, claro! Por isso que eu falei assim “e um dia Ynaê” (risos), mas eu acho que eu já comecei muito cedo, tem razão, você ainda vai ficar muito tempo aí, como o Flávio falou, e que bom que você vai ficar aí, porque quanto mais 824 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X tempo a gente fica, mais a gente forma, isso é fundamental, e vai ver isso que o Flávio disse, historiador negro pesquisando qualquer outra coisa, eu acho que isso é importante, fundamental também (...) é que a gente está em um momento, o momento também é muito delicado que a gente está vivendo, muito delicado. E aí tem a ver com essa pergunta que foi feita, olha, a primeira coisa que acho que a gente tem que fazer, uma das coisas além do que a Ynaê e o Flávio já falaram, é terminar, o professor ou professora com uma visão essencializada do negro na escola, através do 13 de maio, da capoeira, da feijoada, sabe?! Chama uma mulher para vender acarajé, enfim, aquelas histórias que já conhecemos. Botam outra criança vestida de Saci-Pererê, e essas coisas. Isso é resultado, sobretudo, dessa proposta do Brasil enquanto União das três raças, que foi levada para as escolas públicas, mas a história, é uma história em que negros e indígenas não participam, ou participam sem nomes próprios. Participam como índios e escravos, índios e escravos, índios e escravos, mas quando se fala da liderança, do movimento, de tudo aquilo que a Ynaê estava dizendo, da história política, vira a história que fala dos grandes homens, e, olha que hoje, eu participei recentemente de alguns (bancos) sobre livros didáticos, e os livros didáticos aprovados de 2018 para cá seguem a base Nacional Comum Curricular, aprovada recentemente. Há várias críticas, não tem discussão, mas é interessante dar uma lida dos livros didáticos para observar alguns avanços que existem sobre implementação da lei 10.639 e 11.645, como isso está sendo trazido, desde os livros didáticos da educação infantil, Ensino Fundamental I e Ensino Fundamental II, e do Ensino Médio, e como todos os educadores e educadoras deveriam pegar os livros didáticos de história e lerem aquela parte, aquele manual do professor e da professora, porque, geralmente, o professor e a professora não leem, muitas das vezes, partem direto para os livros didáticos. Isso seria interessante de observar. Eu tô falando assim, já em um diálogo para o Ensino Fundamental I e II, óbvio que não dá para pensar somente no livro didático, nós temos várias ferramentas, produções acadêmicas importantes, e vocês que estão passando pela universidade vão levar, cada uma delas, para, enfim, complementar, questionar, ou corroborar com algum ponto questionador que você tenha, e tem que ter mesmo, em relação ao que há na BNCC. Mas há avanços, eu participei, li e vi, e não pode ser esquecido esse tipo de coisa, então veja, o primeiro fator, do meu ponto de vista, é parar com isso. 825 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X Meu filho está em uma escola municipal, ele é aluno de uma escola municipal, conservadora, muito boa, mas a visão de história que se tem lá é assustadora. Parece que a pessoa não leu o livro que chegou do FNDE, que explica como utilizar aquele livro, porque a pessoa está com a cabeça, esse professor ou professora está completamente envolvido ou envolvida por uma formação que já carrega há décadas, onde história da África e História do Brasil não faziam parte da formação acadêmica. As recentes gerações já começam a ter, nem toda universidade, toda faculdade de história tem isso como uma premissa básica, ensinar a história da África, e ensinar a história do negro no brasil. Aí você fala “Pô, mas precisa ser separado?” Precisa, por incrível que pareça. Esse país é tão racista, que teve que ter uma lei para fazer o óbvio. Falar “Olha, tem que ter a história do negro”, como também, se essa história do negro fosse só do negro, mas os seres, eles se relacionam. com pessoas brancas, indígenas, e por aí vai. Então daí a importância, que Ynaê acabou de dizer, de nós enquanto doutores professores e professoras universitários, termos esses pontos de vistas, esses questionamentos no ensino da graduação, no ensino da Pós-graduação, na orientação da pós-graduação, e, no diálogo com a educação básica. Isso é importantíssimo. Eu sou o cara que antes da pandemia, quase todo mês ia em uma escola da periferia, falar com os estudantes do Ensino Médio, não quero dizer que tenha fazer que nem eu, ir até as escolas, inclusive, tô doido para voltar, mas ter diálogo com os docentes da Educação Básica, e pensarmos e trabalharmos nosso produto acadêmico, nossos textos acadêmicos, pensando na educação básica para contribuir com um diálogo mais produtivo com essa educação. Acho que isso vai ajudar e vai ser bem importante para essa mudança que foi trazida aqui, e, no mais, eu quero, novamente, agradecer o convite, externar o prazer que é estar aqui dividindo a mesa com o Flávio e a Ynaê, com o Danilo, e com todos os colegas que estão aqui, de várias partes do Brasil, pessoas que a gente só via na ANPUH, mas agora nem a ANPUH mais é presencial, o que é triste, por causa da pandemia. Mas em breve, estaremos todos juntos e vai ser bem bacana e bem legal, obrigado pela oportunidade Universidade Federal do Alagoas, e o programa de pós-graduação, que nos convidou e nos permitiu fazer, obrigado! F. G: Bom, eu não tenho muito o que falar, porque eu vou dizer, que, na verdade, agora que eu estou entrando em contato com esse debate que é muito importante, sobre o Ensino de História, porque na verdade são esses programas novos, foi até importante a chamada Lei 826 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X 10.639, é mais um exemplo, e ela vai fazer vinte anos daqui a dois anos, quer dizer, mais uma lei que surge também dos movimentos sociais, da luta antirracista, de intelectuais negros e de conexão. É um debate muito interessante agora, quer dizer, eu diria que eu estou conhecendo agora, e eu fico até meio receoso de vir dizer “Vê isso!”, “Olha aquilo!” Porque a gente já tem um instrumento que produziu, em via de levar para sala de aula, com esse tipo de preocupação, seja como material didático ou paradidático. Eu diria que do ponto de vista do historiador, do historiador que nós formamos na universidade, eu diria para você o seguinte: a história está muito careta, a história está muito careta, muito careta. Teoricamente careta, metodologicamente careta, quer dizer, se você comparar com o pessoal da geografia, o pessoal está botando para frente, está pensando em coisa e misturando, e a história, sabe?!, aqueles campos de história. Aí a pergunta anterior sobre o Trouillot, legal a dica chegar, inclusive, olha a dica aí! Mas a gente tem que ler o Trouillot primeiro, se mirarmos primeiro na questão racial, claro que o Trouillot vai comparar a Revolução de São Domingos, no Haiti, com a Revolução Francesa. A gente poderia estar lendo o Trouillot, na verdade, em teoria da História, não precisava utilizar ele para falar de história da América, História da América colonial ou Haiti, esse é um exemplo muito careta, e outro perigo é essa dimensão prescritiva dos teóricos. A minha geração e a geração do Álvaro aprendeu a decorar esses caras, primeira geração dos Annales, a gente, até hoje, acerta essas bobagens. Primeira geração, segunda geração, terceira geração, “e daí?!” Parece coisa de computador. Então o meu medo é que essas dimensões teóricas que cheguem (...) Porque na verdade, já que você foi falar de Trouillot, o grande barato aí é pensar, são ferramentas para refletir, e aí eu acho - - eu falo um pouco né do meu cotidiano em sala de aula na formação do estudantes - - a coisa também tem a ver com essas mudanças, com essas inflexões historiográficas, e a demonstração empírica do papel do historiador, das fontes, isso é muito interessante, porque a nossa capacidade de fazer perguntas é impressionante, as diferentes agendas, esse é que é o grande barato de você fazer perguntas sobre, e o historiador produzir. Eu sempre brinco com os meus alunos “Cara, se você não gosta de fazer perguntas, você só quer obter a resposta, não faça história, a história não é o lugar das respostas. História é o lugar para quem gosta e quer fazer perguntas." A capacidade que o historiador tem é a de fazer perguntas a qualquer evento, a qualquer processo, misturar situações, é colocar as dimensões do improviso, do provisório em situações. Então essas são as grandes reflexões em um debate como esse, que discute epistemicídio e intelectuais negros. A 827 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X gente fala muito dos intelectuais negros, a gente tem que operar mais esses intelectuais negros, tem que ler de novo Clóvis Moura, tem que “Ai, por quê? Lélia “Ai, por quê?” Beatriz “Ai, por quê?” Clóvis, vocês leram? Vocês leram isso? E como é que vocês conseguem pegar uma categoria desse, ou daquele autor e, não é só porque ele é negro também, ir em direção ao movimento de reatualizar, que é um movimento teórico muito comum? Você pega autores e reatualiza, vê como determinados autores estavam propondo coisas, falando de coisas há 10, 20, 30 anos atrás, porque embora tenham sido reflexões incompletas, inconclusas, a gente pode partir dessa incompletude, dessa inconclusão, para ir mais adiante. Então eu agradeço muito o convite e essa possibilidade de estar na mesa com dois colegas, as falas deles me ajudaram a organizar também as minhas reflexões. Então, é sempre um momento que a gente aprende muito, que a gente é obrigado a ouvir, o professor nunca ouve só fala, então é muito legal você ouvir e ter que falar depois sobre aquilo que você ouviu. A gente só fala, fala, fala e não ouve, até porque os alunos estão cada vez mais silenciosos, com câmeras desligadas e tudo mais, enfim, agradeço muito o convite, Danilo, da Universidade Federal de Alagoas, e o convívio aí com os dois colegas que eu sempre aprendo. D. M: Obrigado, professor! Antes de encerrar o nosso 12° encontro nacional de História da UFAL, eu gostaria de agradecer a todos os monitores que trabalharam para que o evento acontecesse, em particular, o Arthur Davis, que está aqui nos bastidores ajudando a gente. Agradeço também ao professor Elias Veras, que está aqui também nos bastidores ajudando a gente. Agradecer a todo mundo que apresentou trabalho, aos ouvintes, a toda comissão organizadora que fez com que o evento, apesar da conjuntura política, acontecesse, e por fim, quero agradecer novamente ao Flávio, a Ynaê, e ao Álvaro, que em pleno sextou, uma sextafeira a noite, que se fosse no presencial, o pós-mesa seria outra história, (risos), mas que estão aqui , pontualmente, quase nove horas da noite de uma sexta-feira, pós-7 de setembro de 2021, ajudando a gente a refletir sobre os mais variados temas. Bom pessoal, é isso, muito obrigado e a gente se vê, no 13º Encontro de História Nacional do ano que vem, esperamos todos, todas e todes que estão aqui, e que seja presencial! Tchau, pessoal, abraço! Símbolos: (hipótese) hipótese do que se ouviu 828 Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X () Incompreensão de palavras ou segmentos -- -- Comentários que quebram a seqüência temática da exposição: desvio temático (...) Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em determinado ponto. Não no seu início, por exemplo. 829