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Freddie Mercury e a Aids

2021, Diversidade e Educação

Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 257 FREDDIE MERCURY E A AIDS: ANÁLISE DA CINEBIOGRAFIA “BOHEMIAN RHAPSODY” FREDDIE MERCURY Y EL SIDA: ANÁLISIS DE LA CINEBIOGRAFÍA “BOHEMIAN RHAPSODY” FREDDIE MERCURY AND AIDS: ANALYSIS OF THE “BOHEMIAN RHAPSODY” CINEBIOGRAPHY Ítalo Fernandes1 Ricardo Desidério2 RESUMO Hoje, na contemporaneidade, observamos que as vivências sexuais de homens com HIV/AIDS que fazem sexo com homens, permanece pautada em tabus, estereótipos e desinformação, causando nessa população, desconforto e negação para viver sua sexualidade. Neste sentido, este texto tem por objetivo refletir sobre “Bohemian Rhapsody”, uma cinebiografia de Freddie Mercury, lançada no Brasil, em novembro de 2018. Essa produção pode ser analisada enquanto produto histórico, possibilitando discussões acerca de suas vivências nas relações com a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Freddie, conviveu com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e morreu em 1991, vítima de uma broncopneumonia depois de interromper seu tratamento. Para desvelar o mundo-vida de Freddie Mercury, elegeu-se a metodologia qualitativa na perspectiva da Educação Audiovisual da Sexualidade. Contudo, verifica-se que o filme problematiza questões a partir da temática HIV/AIDS, em que pessoas eram estigmatizadas e marginalizadas, motivo este, que levou o próprio Freddie Mercury a esconder sua sorologia na época. PALAVRAS-CHAVE: Freddie Mercury. HIV/AIDS. Educação Audiovisual da Sexualidade. 1 Pedagogo. Mestre em Educação Sexual pela Unesp/Araraquara. E-mail: pro_italo@outlook.com Pedagogo. Doutor em Educação Sexual pela Unesp/Araraquara. Professor Adjunto do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Paraná, UNESPAR/Campus de Apucarana. Líder do GPED/UNESPAR CNPq. E-mail: contatodesiderio@hotmail.com. 2 Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.257-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 258 RESUMEN Hoy, en la época contemporánea, observamos que las vivencias sexuales de hombres con VIH / SIDA que tienen sexo con hombres, permanece basada en tabúes, estereotipos y desinformación, provocando en esta población, malestar y negación para vivir su sexualidad. En este sentido, este texto tiene como objetivo reflexionar sobre "Bohemian Rhapsody", una película biográfica de Freddie Mercury, estrenada en Brasil en noviembre de 2018. Esta producción puede ser analizada como un producto histórico, posibilitando discusiones sobre sus vivencias en relación al Síndrome de Adquirido. Inmunodeficiencia (SIDA). Freddie, vivía con el Virus de la Inmunodeficiencia Humana (VIH) y falleció en 1991, víctima de una bronconeumonía tras interrumpir su tratamiento. Para dar a conocer el mundo de la vida de Freddie Mercury, se eligió la metodología cualitativa desde la perspectiva de la Educación Audiovisual de la Sexualidad. Sin embargo, parece que la película problematiza cuestiones basadas en la temática del VIH / SIDA, en las que las personas eran estigmatizadas y marginadas, motivo que llevó al propio Freddie Mercury a ocultar su serología en ese momento. PALABRAS-CLAVE: Freddie Mercury. VIH/SIDA. Educación Audiovisual de Sexualidad. ABSTRACT Today, in contemporary times, we observe that the sexual experiences of men with HIV/AIDS who have sex with men, remains based on taboos, stereotypes and misinformation, causing this population, discomfort and denial to live their sexuality. In this sense, this text aims to reflect on "Bohemian Rhapsody", a biopic by Freddie Mercury, released in Brazil in November 2018. This production can be analyzed as a historical product, enabling discussions about their experiences in relation to the Syndrome of Acquired Immunodeficiency (AIDS). Freddie, lived with the Human Immunodeficiency Virus (HIV) and died in 1991, victim of a bronchopneumonia after interrupting his treatment. To unveil Freddie Mercury's life-world, the qualitative methodology was chosen from the perspective of Audiovisual Education of Sexuality. However, it appears that the film problematizes issues based on the HIV/AIDS theme, in which people were stigmatized and marginalized, a reason that led Freddie Mercury himself to hide his serology at the time. KEYWORDS: Freddie Mercury. HIV/AIDS. Audiovisual Education of Sexuality. *** Introdução A vivência da sexualidade passou por avanços e retrocessos ao longo dos anos que são imprescindíveis para a compreensão das relações amorosas e sexuais na contemporaneidade (SANTOS, 2021). As práticas afetivo-sexuais são pautadas em valores, regras e códigos que normatizam comportamentos, fixando um modelo a ser seguido. Todos os sujeitos que, ao longo da história, apresentaram condutas desviantes da regra foram taxados como aberrações, pervertidos, doentes e até pecadores. Nesta Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.256-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 259 trajetória, a igreja corroborou no processo de instituir hábitos e costumes considerados aceitáveis, naturais e universais. Entretanto, estudos apontam que as maneiras diversas de experienciar a sexualidade sempre existiu e se firmou nas relações do espaço doméstico da família (CHAUÍ, 1984). É, então, relevante considerarmos que a família é primeira matriz de sentidos que a criança conhece – são os sentidos e significados apreendidos no seio dela que a criança carrega consigo para a sua adolescência, juventude e vida adulta. É no espaço doméstico que se estabelecem os vínculos afetivos que têm papel fundamental na criação, fundamentação e formação da personalidade do sujeito. É a família que tem o poder de instituir o certo e o errado e é dessa forma que valores e tabus estimulam a fixação da repressão sexual (CHAUÍ, 1984). Na obra de Chauí (1984) intitulada “Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida”, a autora define que a repressão sexual pode ser considerada como um conjunto de interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidas histórica e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade, pois, como inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado por diferentes sociedades (e particularmente pela nossa) como uma torrente impetuosa e cheia de perigos – estar “perdido de amor”, “cair de amores”, ser “fulminado pela paixão”, beber o “filtro de amor”, receber as “flechadas do amor”, “morrer de amor” (CHAUÍ, 1984, p. 9). Assim, o “não-dito” que se faz presente nas relações humanas, assume, no cenário contemporâneo, o poder pedagógico e formativo de educar o sujeito para vivenciar sua sexualidade. Portanto, para contextualizar você, que nos acompanha na leitura deste texto, o mesmo objetivou compreender o mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). “Bohemian Rapsody”: a cinebiografia de Freddie Mercury Antes de iniciarmos a apresentação da cinebiografia “Bohemian Rapsody”, se faz necessário dizer que não é nosso intento discutirmos a fidedignidade da obra. Para isto, teríamos que buscar especulações jornalísticas e críticas cinematográficas que não são elegíveis para a construção deste estudo. Portanto, passamos agora, a descrever o filme enquanto produto cultural de intenção informativa e de entretenimento. Baseado na história de vida de Freddie Mercury (cujo nome de batismo era Farrokh Bulsara), a cinebiografia “Bohemian Rapsody”, produzido pela 20th Century Fox, tem Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.257-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 260 como diretores Bryan Singer e Dexter Fletcher. A estreia no Brasil ocorreu em 1 de novembro de 2018 e foi distribuído em território nacional pela Fox Film do Brasil. Classificado na categoria musical, apresenta de maneira sucinta o mundo-vida de um dos maiores artistas do mundo do rock. Vocalista da banca Queen, Freddie Mercury (interpretado por Rami Malek) tinha como estrutura familiar o modelo nuclear, composto por seu pai, sua mãe, e sua irmã mais nova. A cinebiografia do artista não é rica em detalhes sobre as fases de sua vida pessoal, pois o foco é a trajetória do cantor em sua relação com a música e a banda. No entanto, em poucas cenas foi possível observarmos que desde pequeno, ele recebeu uma educação pautada nos princípios de uma família tradicional, tendo que conviver com as premissas estabelecidas de papéis sociais de gênero3. Ainda na infância, foi praticante de boxe e estudou em colégio interno para que pudesse se tornar um “bom” rapaz, pois, segundo seu pai, era rebelde e desobediente. Já, na vida adulta, Freddie é pressionado por sua mãe nas relações intrafamiliares. Quando saía à noite, ela sempre perguntava se seus encontros eram com garotas. Inclusive, foi em uma dessas suas saídas noturnas que ele conheceu sua amada Mary Austin (interpretada por Lucy Boynton). Iniciam um relacionamento afetivo-sexual que se estendeu concomitante à sua entrada na banda batizada de “Queen”. O sucesso das apresentações da banda em bares e festas noturnas impulsionou a gravação do primeiro disco. Foi após uma dessas apresentações que Freddie recebeu um telefonema de uma gravadora convidando a banda para não só assinar um contrato, como realizar também uma turnê. O êxito da banda é disseminado por se considerarem um grupo de desajustados que cantam para os invisíveis. Com uma construção musical ousada e um vocalista autointitulado escandaloso, o Queen alça novos patamares. É nesse cenário, que durante as turnês da banda, Freddie Mercury experiencia vivências homossexuais. Em suas relações com outros homens, ele se envolveu com Paul Prenter (interpretado por Allen Leech) e Jim Hutton (interpretado por Aaron McCusker). Freddie manteve suas relações amorosas e sexuais na esfera do privado, como também o seu diagnóstico reagente para o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Os únicos a saberem foram seus parceiros de banda – numa revelação feita num ensaio para a grande 3 Os papeis sociais de gênero são comportamentos associados a masculinidades e feminilidades. Logo, “haveria apenas um modo adequado, legitimo, normal de masculinidade e de feminilidade e uma única forma sadia e normal de sexualidade, a heterossexualidade” (LOURO, 2013, p. 45). Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.256-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 261 e esperada apresentação do “Queen” no Live Aid de 1985, que se tratava de um festival de rock para arrecadar fundos a fim de erradicar a fome na África. “Bohemian Rapsody” conta com cenas que desvelam o que houve de mais íntimo no mundo-vida de Freddie Mercury, como olhares entre homens que possibilitam uma interpretação dos seus desejos, flertes e paqueras, mesmo que de longe e antes de assumir sua bissexualidade; uma estética corporal e o transvestir, que causou grande impacto na música da década de 1980/1990; vivências na esfera dos vícios e da boemia; provocações da mídia acerca da sua sexualidade; indícios da infecção por HIV; o momento do diagnóstico; a ressignificação das relações com seus companheiros de banda e com sua família e suas novas experiências afetivo-sexuais. Neste sentido, a cinebiografia na dimensão de produto audiovisual é capaz de nos educar, pois conforme nos aponta Silva (2020, p. 356) “o realismo das imagens e sons em movimento se aproxima muito do que as pessoas encontrariam na realidade e, por isso, é reconhecido como uma verdade”. Para o autor, assim como o cinema, a família, os amigos, a cidade, a escola, a igreja e a própria mídia, os vídeos possibilitam, através de sua projeção oral e figurativa das coisas, uma educação por meio dos valores atribuídos a cada uma dessas coisas que são/estão inseridas no mundo, o que nos permite apreender suas características mais detalhadas e importantes (SILVA, 2020, p. 357). Logo, pensar numa aproximação do uso de vídeos para compreensão do mundovida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e da AIDS nos leva refletir que, o filme é um artefato cultural que possibilita ao espectador um envolvimento com a trama, refletindo e incitando uma discussão sobre cada tema em questão, sendo um recurso pedagógico rico para atingir todas as etapas do conhecimento, ampliando as possibilidades de estabelecer relações para pensar de outro modo o presente que se vive (FISCHER, 2007). Método Este estudo é caracterizado por uma pesquisa qualitativa, do tipo documental, que teve por objetivo refletir sobre “Bohemian Rhapsody”, uma cinebiografia de Freddie Mercury, lançada no Brasil, em novembro de 2018. O presente artigo apresenta reflexões a partir da temática HIV/AIDS, a partir da perspectiva da educação audiovisual da Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.257-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 262 sexualidade desenvolvida por Silva (2015, 2020), que estabelece uma proposta metodológica de análise ao estudo de imagens e sons, “partindo de uma cultura audiovisual (iniciada com o cinema, passando pela televisão até as novas tecnologias da cultura do upload) que nos leve a compreensão das diferenças e aproximações de linguagens entre o vídeo e o cinema, assim como a pedagogia do vídeo e seus fins educativos” (SILVA, 2020, p. 355). Para compreender o mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e da AIDS, a partir da cinebiografia “Bohemian Rapsody”, elegemos quatro apontamentos a serem preenchidos pelo pesquisador. No primeiro passo, o pesquisador define seu “produto”; já no segundo passo, o pesquisador deve manter o padrão de descrição deste material que será analisado; no terceiro passo, o pesquisador apresenta, no formato de transcrição, as narrativas, seguindo as premissas da sequenciação dos fatos; e por fim, no quarto passo o pesquisador vai em busca de sistematizar os elementos: “personagens, narrativas e suas intencionalidades” (SILVA, 2020). Contudo, mesmo se estabelecendo tais orientações, o autor afirma que [...] o olhar atendo ao material não se limita apenas em uma ou duas únicas exibições. É preciso assistir várias vezes e em momentos não contínuos também. Essa não continuidade nas exibições, contribui para uma nova percepção não identificada ou observada anteriormente, por isso, as pausas são muito importantes. Assista o vídeo na íntegra uma ou duas vezes. Faça leituras que complementarão sua fundamentação teórica. Depois assista novamente, talvez até fragmentando partes do material (SILVA, 2020, p.366). Com isso, será possível perceber o quanto as transcrições, assim como os planos de sequência do vídeo são importantes para detalhes muitas vezes não observados num primeiro momento (SILVA, 2020). QUADRO 1 – Informações sobre a cinebiografia “Bohemian Rapsody” Vídeo Tema central Sinopse Bohemian Rapsody O mundo-vida de Freddie Mercury Bohemian Rhapsody é uma celebração a banda Queen, a sua música e seu extraordinário vocalista Freddie Mercury. O filme mostra o sucesso meteórico da banda através de suas canções icônicas e som revolucionário, a quase implosão quando o estilo de vida de Mercury sai do controle e o reencontro triunfal na Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.256-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” Personagem(ns) principal(is) Contexto Duração 263 véspera do Live Aid, onde Mercury, agora enfrentando uma doença fatal, comanda a banda em uma das maiores apresentações da história do rock. Durante esse processo, foi consolidado o legado da banda que sempre foi mais como uma família, e que continua a inspirar os amantes de música até os dias de hoje. Diversos. Entre eles: Freddie Mercury; Mary Austin; Jim Hutton; Paul Prenter. O mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e da AIDS. 132’ Fonte: Os autores. Análise compreensiva das cenas do mundo-vida de Freddie Mercury na interface com a AIDS A cinebiografia de Freddie Mercury “Bohemian Rapsody” trouxe inúmeras e significativas provocações acerca do comportamento do artista em seu mundo-vida e, principalmente, nos permitiu contextualizar diversos aspectos da sua trajetória de vida. Entretanto, nossa pretensão neste momento está voltada para a análise compreensiva das suas vivências da sexualidade na interface com a AIDS. Sendo assim, selecionamos e detalhamos as cenas a seguir de acordo com nosso intento. Ou seja, utilizamos cenas fragmentadas sequenciais, que abordaram a temática deste estudo. Como estratégia estética, elencamos categorias de análise, aqui agrupadas em dois eixos temáticos (O mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e O mundo-vida de Freddie Mercury na interface do HIV/AIDS). Da mesma maneira que fizemos uso da transcrição da narrativa; dos planos da produção audiovisual e suas intencionalidades para fundamentar o processo de análise compreensiva. O mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade No decorrer da cinebiografia “Bohemian Rapsody”, a sexualidade de Freddie Mercury vai ganhando corpo e forma. Logo no início da sua trajetória, ele é apresentado ao telespectador como um homem jovem que aparentemente sofre bullying nas suas relações interpessoais pela sua aparência. Mas, quando nosso olhar se dirige para questões da sua sexualidade, é na família que esses abusos se iniciam. A mãe de Freddie é a Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.257-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 264 primeira (no sentido sequencial do filme) a praticar pressão psicológica sobre ele. Ela, o considera já “grande demais” para não ter apresentado nenhuma garota à família. Aqui, ao discorrermos sobre essa passagem, podemos afirmar que estudos evidenciam (SCABELLO E BRUNS, 2004; LIPOVETSKY, 2004) o poder que os familiares exercem sobre os membros que convivem no interior doméstico como capaz de influenciar suas crias e, como consequência, estabelecer relações de (des)educação no processo de desenvolvimento do sujeito e na formação de sua personalidade A respeito dessas relações nos espaços intrafamiliares, deve-se pensar que os tempos hipermodernos instituíram novas nuances cotidianas ao sujeito. A fim de compreender essas novas relações, revisitamos autores como Scabello e Bruns (2004) em artigo intitulado “O mosaico da família atual: espelho da sociedade contemporânea”. Para as autoras, as marcas dessa sociedade favorecem uma mudança de paradigmas, uma vez que, por elevação dos níveis de individualidade, se estabelece “a superficialidade e um sentimento de esvaziamento de afeto e de segurança nas relações afetivo-sexuais” (Scabello e Bruns, 2004, p. 138). Nessa perspectiva, os planos abaixo ilustram momentos do envolvimento amoroso e sexual de Freddie com Mary. Plano 1 Plano 2 Uma relação que perde o encantamento dos envolvidos quando, devido às turnês da banda, ele passa mais tempo fora de casa do que ao lado de sua amada. Durante esse período, Freddie começa a questionar seus desejos, suas vontades, pois considera não estar vivendo com autenticidade. Nesse momento, a cinebiografia passa a desvelar suas relações homoafetivas. Comportamento que se torna evidente nos planos sequência a seguir (planos 3 a 10). Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.256-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” Plano 3 Plano 4 Plano 5 Plano 6 Plano 7 Plano 8 Plano 9 Plano 10 265 Ao longo do filme, Freddie Mercury assume sua bissexualidade e passa a ter vivências autênticas consigo mesmo, ou seja, por uma perspectiva amatuzziana dessas experiências. Para o autor, “a autenticidade, inicialmente, aponta para algo que está além da fachada, além daquilo que eu devo ser, além do que os outros esperam de mim, além daquilo que simplesmente agrada os outros” (AMATUZZI, 2016, p. 96). Dessa perspectiva, as vivências da sexualidade de Freddie ganham espaço na trama, evidenciando comportamentos sexuais de risco. Nas cenas elencadas para análise vemos relações com diversos parceiros sem que, em nenhum desses momentos, haja a combinação do prazer com a prevenção (planos 3, 4, 5, 6, 7 e 8). São essas evidências que corroboram a dissertação de Fernandes (2021), intitulada “A sexualidade de homens com HIV/AIDS que fazem sexo com homens”, pois, no intuito Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.257-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 266 de compreender essas vivências, os sete relatos dos colaboradores do estudo realizado foram convergentes na busca pelo prazer quando lhes foi instituído o silêncio como prática de Educação Sexual, combinada ao não uso e/ou abandono de métodos preventivos. Assim, Freddie, como esses homens, estavam expostos às Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e, em particular, ao HIV/AIDS. A exemplo dessa vulnerabilidade, descrevemos a transcrição4 das narrativas das cenas 12 e 13. Freddie: Paul, paixão. Eu quero dar uma festa. Paul: Tá. Quem você quer convidar? Freddie: Pessoas. Eu quero que você balance a árvore dos esquisitos e convide quem cair no chão. Anões, gigantes, mágicos, guerreiros zulus, contorcionistas, engolidores de fogo e padres. Porque a gente vai precisar se confessar. Freddie: Meus queridos, chegou a hora de ficar completamente bêbados. Como forma de sistematizar o entrelaçamento da sexualidade de Freddie Mercury com o HIV/AIDS, apresentamos as cenas que explicitam suas vivências na interface com o vírus e a doença. O mundo-vida de Freddie Mercury na interface do HIV/AIDS As vivências do mundo-vida de Freddie Mercury na interface do HIV/AIDS são fiéis ao processo de identificação dos sintomas, da tensão dos testes, sendo seguido do momento de se tornar conhecedor do diagnóstico e antes da autoaceitação, a presença intermitente de sentimento de impotência, de medo, de dor, de sofrimento, de negação (FERNANDES, 2021). Os planos apresentados sob os números 18 e 19 se referem ao efeito sintomático do vírus já presente no corpo de Freddie Mercury. Plano 18 4 Plano 19 Transcrição dos autores. Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.256-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 267 No intuito de possibilitar uma melhor compreensão das cenas que seguem, apresentamos a transcrição5 da narrativa das cenas 20 e 21, pois trata-se de uma reportagem midiática que estava apresentando a AIDS ao mundo. Plano 20 Plano 21 TV: Todo dia em São Francisco dois homens recebem a triste notícia que você tem AIDS e que não tem cura. Desde que os médicos franceses e americanos isolaram o vírus em 1983 as pesquisas começaram em ritmo acelerado. O método utilizado pelo vírus para destruir o sistema imunológico foi descoberto, mas a cura ainda deve demorar anos. Um grande avanço foi um novo exame de sangue que deve garantir que ninguém contraia AIDS por transfusão de sangue... A respeito dessa propagação de conhecimento e informações sobre o vírus do HIV/AIDS na mídia, Barata (2006) analisou em sua dissertação “A primeira década da AIDS no Brasil: O Fantástico apresenta a doença ao público (1983 a 1992)” a forma pejorativa que a doença adentrou os lares brasileiros. Entretanto, seria um equívoco de nossa parte não elucidar o estudo de Silva (2012) “Aids na cibercultura: a midiatização da doença nas redes sociais online do Ministério da Saúde”, que exerceu um papel fundamental na disseminação de saberes reforçando a importância da prevenção antes do tratamento. Outro ponto que nos chamou a atenção foram as cenas que se sucederam a ele assistindo essa matéria televisiva (planos 22 até a 25). Freddie Mercury aparentemente convive com o sentimento da dúvida, da incerteza e do medo do diagnóstico positivo. Plano 22 5 Plano 23 Transcrição dos autores. Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.257-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” Plano 24 268 Plano 25 Entretanto, em uma consulta médica para saber o resultado de seus exames, Freddie Mercury é tomado por um discurso médico nada acolhedor: Médico: Freddie, levamos um tempo para trazer você de volta porque estou com os resultados dos exames que você fez algumas semanas atrás. Os resultados só chegaram agora e eles não são bons. Eles indicam que você tem o vírus do HIV, portanto você é HIV positivo. Está entendendo? O procedimento é que há tratamentos disponíveis, eles não são extremamente eficientes Freddie, mas tomara que apareçam novos tratamentos nos próximos meses e nos próximos anos. Mas até o momento, apesar dos tratamentos é bem provável, inevitável que você desenvolva a AIDS6. Partindo desse discurso, podemos afirmar o quanto é falho e sem humanidade o momento do diagnóstico. Neste sentido, Agreli (2017) apontou em sua tese, “A inclusão da diversidade sexual na Universidade”, a necessidade da inserção da temática da sexualidade nos espaços formativos em níveis superiores, uma vez que independente da área escolhida pelo estudante que está em processo de formação universitária para atuação futura no mercado de trabalho, ele irá lidar cotidianamente com relações interligadas a questões de sexualidade. Deste exemplo, a falta desse processo formativo no curso de Medicina, por exemplo, proporcionou uma prática profissional despreparada para lidar com questões humanitárias. Trata-se é claro de uma necessidade formativa não só pertinente as áreas da saúde, mas todas as formações. Todavia, Freddie não aceitou ser frágil diante da situação. Conviveu sim com o diagnóstico reagente para o HIV/AIDS no âmbito do privado e íntimo, revelando somente a Jim, seu parceiro à época e aos integrantes da banda que considerava serem sua família (planos 26 a 29). 6 Transcrição dos autores. Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.256-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” Plano 26 269 Plano 27 Plano 28 Plano 29 Freddie: Antes de vocês saírem podem me dar um segundo? Bryan: Tá, o que que foi? Freddie: Eu peguei. Bryan: Pegou o quê? Freddie: AIDS. Eu quis que soubessem por mim Bryan: Freddie, eu lamento muito. Freddie: Bryan, para. Nem vem. Por enquanto isso fica entre nós. Ouviram? Só nós. Então por favor, se algum de vocês, fizer escândalo, olhar de cara feia, ou pior ainda, me entediar sentindo pena, vai ser pura perda de tempo. Tempo, que poderia ser usado fazendo música, que é só o que eu quero fazer com o tempo que eu ainda tenho. Eu não tenho tempo para ser a vítima deles. O garoto propaganda da AIDS, o modelo de advertência deles. Não. Eu decido quem eu sou. E eu vou ser exatamente o que o eu nasci pra ser. Um artista, que dá ao público aquilo que ele mais quer. Tocar os céus. Freddie Fodão Mercury. Bryan: Você é uma lenda Freddie. Freddie: Pode apostar que eu sou. Nós somos todos lenda. Mas você tem razão, eu sou uma lenda7. No entanto, partindo da perspectiva da educação audiovisual da sexualidade, proposta por Silva (2015, 2020), que estabelece uma possibilidade metodológica de análise ao estudo de imagens e sons, em seu guia, o autor afirma que um filme sempre possibilita encontrar elementos para refletirmos a partir de suas intencionalidades. Logo, pensar sobre o filme “Bohemian Rapsody” é estabelecer uma conexão entre os dois eixos temáticos (O mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e 7 Transcrição dos autores. Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.257-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 270 O mundo-vida de Freddie Mercury na interface do HIV/AIDS) e indagarmos conforme nos aponta Silva (2020) “que relações fazer entre esse material/produto”? Considerações Finais A cinebiografia de Freddie Mercury “Bohemian Rapsody” nos apresentou a estrela do mundo do rock, desvelando não somente uma vida pautada no sucesso e na ostentação, mas vivências autênticas de um sujeito que em meio às suas fragilidades e vulnerabilidades assumiu sua responsabilidade pelo diagnóstico de HIV/AIDS ainda na década de 1980-1990. Não podemos deixar de retomar os motivos aparentes que o inibiram de desvelar sua bissexualidade, como sua sorologia positiva para HIV. O estigma da homossexualidade acrescido da marginalização dos sujeitos que convivem com a doença foram cruciais para que não revelasse ao mundo sua condição. Portanto, é emergente que, mesmo em um cenário de conservadorismo religioso e político, não nos tornemos cúmplices e negligentes para com nossos/as filhos/as e/ou estudantes, pois eles/as clamam por uma prática educativa que seja capaz de orientá-los/as e instrui-los/as a tomarem as decisões assertivas e positivas diante das questões contemporâneas da sexualidade. As matrizes de sentidos, família, escola e religião devem manter diálogos inclusivos acerca da saúde de nossas crianças, adolescentes e jovens. Referências AGRELI, Milene Soares. A inclusão da diversidade sexual na Universidade. 2017. 176 f. Tese (Doutorado em Psicologia: Processos Culturais e Subjetivação) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2018. AMATUZZI, Mauro Martins. O resgate da fala autêntica na psicoterapia e na educação. 1. ed. Campinas, SP: Alínea, 2016. BARATA, Germana Fernandes. A primeira década da AIDS no Brasil: o Fantástico apresenta a doença ao público (1983 a 1992). 2005. 195 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. BOHEMIAN RAPSODY. Direção: Singer, Bryan. Fletcher, Dexter. Produção: Warner Bros. Estados Unidos da América: 20th Century Fox, 2018. 1 DVD. Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.256-271, Jan./Jun. 2021. Doi: 10.14295/de.v9i1.12924 E-ISSN: 2358-8853 Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody” 271 CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1984. 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