Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody”
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FREDDIE MERCURY E A AIDS: ANÁLISE DA CINEBIOGRAFIA
“BOHEMIAN RHAPSODY”
FREDDIE MERCURY Y EL SIDA: ANÁLISIS DE LA CINEBIOGRAFÍA
“BOHEMIAN RHAPSODY”
FREDDIE MERCURY AND AIDS: ANALYSIS OF THE “BOHEMIAN
RHAPSODY” CINEBIOGRAPHY
Ítalo Fernandes1
Ricardo Desidério2
RESUMO
Hoje, na contemporaneidade, observamos que as vivências sexuais de homens com
HIV/AIDS que fazem sexo com homens, permanece pautada em tabus, estereótipos e
desinformação, causando nessa população, desconforto e negação para viver sua
sexualidade. Neste sentido, este texto tem por objetivo refletir sobre “Bohemian
Rhapsody”, uma cinebiografia de Freddie Mercury, lançada no Brasil, em novembro de
2018. Essa produção pode ser analisada enquanto produto histórico, possibilitando
discussões acerca de suas vivências nas relações com a Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida (AIDS). Freddie, conviveu com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV)
e morreu em 1991, vítima de uma broncopneumonia depois de interromper seu
tratamento. Para desvelar o mundo-vida de Freddie Mercury, elegeu-se a metodologia
qualitativa na perspectiva da Educação Audiovisual da Sexualidade. Contudo, verifica-se
que o filme problematiza questões a partir da temática HIV/AIDS, em que pessoas eram
estigmatizadas e marginalizadas, motivo este, que levou o próprio Freddie Mercury a
esconder sua sorologia na época.
PALAVRAS-CHAVE: Freddie Mercury. HIV/AIDS. Educação Audiovisual da
Sexualidade.
1
Pedagogo. Mestre em Educação Sexual pela Unesp/Araraquara. E-mail: pro_italo@outlook.com
Pedagogo. Doutor em Educação Sexual pela Unesp/Araraquara. Professor Adjunto do Curso de Pedagogia
da Universidade Estadual do Paraná, UNESPAR/Campus de Apucarana. Líder do GPED/UNESPAR
CNPq. E-mail: contatodesiderio@hotmail.com.
2
Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. l, p.257-271, Jan./Jun. 2021.
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RESUMEN
Hoy, en la época contemporánea, observamos que las vivencias sexuales de hombres con
VIH / SIDA que tienen sexo con hombres, permanece basada en tabúes, estereotipos y
desinformación, provocando en esta población, malestar y negación para vivir su
sexualidad. En este sentido, este texto tiene como objetivo reflexionar sobre "Bohemian
Rhapsody", una película biográfica de Freddie Mercury, estrenada en Brasil en noviembre
de 2018. Esta producción puede ser analizada como un producto histórico, posibilitando
discusiones sobre sus vivencias en relación al Síndrome de Adquirido. Inmunodeficiencia
(SIDA). Freddie, vivía con el Virus de la Inmunodeficiencia Humana (VIH) y falleció en
1991, víctima de una bronconeumonía tras interrumpir su tratamiento. Para dar a conocer
el mundo de la vida de Freddie Mercury, se eligió la metodología cualitativa desde la
perspectiva de la Educación Audiovisual de la Sexualidad. Sin embargo, parece que la
película problematiza cuestiones basadas en la temática del VIH / SIDA, en las que las
personas eran estigmatizadas y marginadas, motivo que llevó al propio Freddie Mercury
a ocultar su serología en ese momento.
PALABRAS-CLAVE: Freddie Mercury. VIH/SIDA. Educación Audiovisual
de Sexualidad.
ABSTRACT
Today, in contemporary times, we observe that the sexual experiences of men with
HIV/AIDS who have sex with men, remains based on taboos, stereotypes and
misinformation, causing this population, discomfort and denial to live their sexuality. In
this sense, this text aims to reflect on "Bohemian Rhapsody", a biopic by Freddie
Mercury, released in Brazil in November 2018. This production can be analyzed as a
historical product, enabling discussions about their experiences in relation to the
Syndrome of Acquired Immunodeficiency (AIDS). Freddie, lived with the Human
Immunodeficiency Virus (HIV) and died in 1991, victim of a bronchopneumonia after
interrupting his treatment. To unveil Freddie Mercury's life-world, the qualitative
methodology was chosen from the perspective of Audiovisual Education of Sexuality.
However, it appears that the film problematizes issues based on the HIV/AIDS theme, in
which people were stigmatized and marginalized, a reason that led Freddie Mercury
himself to hide his serology at the time.
KEYWORDS: Freddie Mercury. HIV/AIDS. Audiovisual Education of
Sexuality.
***
Introdução
A vivência da sexualidade passou por avanços e retrocessos ao longo dos anos que
são imprescindíveis para a compreensão das relações amorosas e sexuais na
contemporaneidade (SANTOS, 2021). As práticas afetivo-sexuais são pautadas em
valores, regras e códigos que normatizam comportamentos, fixando um modelo a ser
seguido. Todos os sujeitos que, ao longo da história, apresentaram condutas desviantes
da regra foram taxados como aberrações, pervertidos, doentes e até pecadores. Nesta
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trajetória, a igreja corroborou no processo de instituir hábitos e costumes considerados
aceitáveis, naturais e universais. Entretanto, estudos apontam que as maneiras diversas de
experienciar a sexualidade sempre existiu e se firmou nas relações do espaço doméstico
da família (CHAUÍ, 1984).
É, então, relevante considerarmos que a família é primeira matriz de sentidos que
a criança conhece – são os sentidos e significados apreendidos no seio dela que a criança
carrega consigo para a sua adolescência, juventude e vida adulta. É no espaço doméstico
que se estabelecem os vínculos afetivos que têm papel fundamental na criação,
fundamentação e formação da personalidade do sujeito. É a família que tem o poder de
instituir o certo e o errado e é dessa forma que valores e tabus estimulam a fixação da
repressão sexual (CHAUÍ, 1984). Na obra de Chauí (1984) intitulada “Repressão sexual:
essa nossa (des)conhecida”, a autora define que
a repressão sexual pode ser considerada como um conjunto de
interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidas histórica
e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade, pois, como
inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado por diferentes
sociedades (e particularmente pela nossa) como uma torrente impetuosa
e cheia de perigos – estar “perdido de amor”, “cair de amores”, ser
“fulminado pela paixão”, beber o “filtro de amor”, receber as “flechadas
do amor”, “morrer de amor” (CHAUÍ, 1984, p. 9).
Assim, o “não-dito” que se faz presente nas relações humanas, assume, no cenário
contemporâneo, o poder pedagógico e formativo de educar o sujeito para vivenciar sua
sexualidade. Portanto, para contextualizar você, que nos acompanha na leitura deste texto,
o mesmo objetivou compreender o mundo-vida de Freddie Mercury na interface da
sexualidade e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS).
“Bohemian Rapsody”: a cinebiografia de Freddie Mercury
Antes de iniciarmos a apresentação da cinebiografia “Bohemian Rapsody”, se faz
necessário dizer que não é nosso intento discutirmos a fidedignidade da obra. Para isto,
teríamos que buscar especulações jornalísticas e críticas cinematográficas que não são
elegíveis para a construção deste estudo. Portanto, passamos agora, a descrever o filme
enquanto produto cultural de intenção informativa e de entretenimento.
Baseado na história de vida de Freddie Mercury (cujo nome de batismo era Farrokh
Bulsara), a cinebiografia “Bohemian Rapsody”, produzido pela 20th Century Fox, tem
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como diretores Bryan Singer e Dexter Fletcher. A estreia no Brasil ocorreu em 1 de
novembro de 2018 e foi distribuído em território nacional pela Fox Film do Brasil.
Classificado na categoria musical, apresenta de maneira sucinta o mundo-vida de um dos
maiores artistas do mundo do rock.
Vocalista da banca Queen, Freddie Mercury (interpretado por Rami Malek) tinha
como estrutura familiar o modelo nuclear, composto por seu pai, sua mãe, e sua irmã mais
nova. A cinebiografia do artista não é rica em detalhes sobre as fases de sua vida pessoal,
pois o foco é a trajetória do cantor em sua relação com a música e a banda. No entanto,
em poucas cenas foi possível observarmos que desde pequeno, ele recebeu uma educação
pautada nos princípios de uma família tradicional, tendo que conviver com as premissas
estabelecidas de papéis sociais de gênero3. Ainda na infância, foi praticante de boxe e
estudou em colégio interno para que pudesse se tornar um “bom” rapaz, pois, segundo
seu pai, era rebelde e desobediente. Já, na vida adulta, Freddie é pressionado por sua mãe
nas relações intrafamiliares. Quando saía à noite, ela sempre perguntava se seus encontros
eram com garotas. Inclusive, foi em uma dessas suas saídas noturnas que ele conheceu
sua amada Mary Austin (interpretada por Lucy Boynton). Iniciam um relacionamento
afetivo-sexual que se estendeu concomitante à sua entrada na banda batizada de “Queen”.
O sucesso das apresentações da banda em bares e festas noturnas impulsionou a
gravação do primeiro disco. Foi após uma dessas apresentações que Freddie recebeu um
telefonema de uma gravadora convidando a banda para não só assinar um contrato, como
realizar também uma turnê. O êxito da banda é disseminado por se considerarem um
grupo de desajustados que cantam para os invisíveis. Com uma construção musical
ousada e um vocalista autointitulado escandaloso, o Queen alça novos patamares. É nesse
cenário, que durante as turnês da banda, Freddie Mercury experiencia vivências
homossexuais. Em suas relações com outros homens, ele se envolveu com Paul Prenter
(interpretado por Allen Leech) e Jim Hutton (interpretado por Aaron McCusker). Freddie
manteve suas relações amorosas e sexuais na esfera do privado, como também o seu
diagnóstico reagente para o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Os únicos a
saberem foram seus parceiros de banda – numa revelação feita num ensaio para a grande
3
Os papeis sociais de gênero são comportamentos associados a masculinidades e feminilidades. Logo,
“haveria apenas um modo adequado, legitimo, normal de masculinidade e de feminilidade e uma única
forma sadia e normal de sexualidade, a heterossexualidade” (LOURO, 2013, p. 45).
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e esperada apresentação do “Queen” no Live Aid de 1985, que se tratava de um festival
de rock para arrecadar fundos a fim de erradicar a fome na África.
“Bohemian Rapsody” conta com cenas que desvelam o que houve de mais íntimo
no mundo-vida de Freddie Mercury, como olhares entre homens que possibilitam uma
interpretação dos seus desejos, flertes e paqueras, mesmo que de longe e antes de assumir
sua bissexualidade; uma estética corporal e o transvestir, que causou grande impacto na
música da década de 1980/1990; vivências na esfera dos vícios e da boemia; provocações
da mídia acerca da sua sexualidade; indícios da infecção por HIV; o momento do
diagnóstico; a ressignificação das relações com seus companheiros de banda e com sua
família e suas novas experiências afetivo-sexuais. Neste sentido, a cinebiografia na
dimensão de produto audiovisual é capaz de nos educar, pois conforme nos aponta Silva
(2020, p. 356) “o realismo das imagens e sons em movimento se aproxima muito do que
as pessoas encontrariam na realidade e, por isso, é reconhecido como uma verdade”.
Para o autor,
assim como o cinema, a família, os amigos, a cidade, a escola, a igreja
e a própria mídia, os vídeos possibilitam, através de sua projeção oral e
figurativa das coisas, uma educação por meio dos valores atribuídos a
cada uma dessas coisas que são/estão inseridas no mundo, o que nos
permite apreender suas características mais detalhadas e importantes
(SILVA, 2020, p. 357).
Logo, pensar numa aproximação do uso de vídeos para compreensão do mundovida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e da AIDS nos leva refletir que, o
filme é um artefato cultural que possibilita ao espectador um envolvimento com a trama,
refletindo e incitando uma discussão sobre cada tema em questão, sendo um recurso
pedagógico rico para atingir todas as etapas do conhecimento, ampliando as
possibilidades de estabelecer relações para pensar de outro modo o presente que se vive
(FISCHER, 2007).
Método
Este estudo é caracterizado por uma pesquisa qualitativa, do tipo documental, que
teve por objetivo refletir sobre “Bohemian Rhapsody”, uma cinebiografia de Freddie
Mercury, lançada no Brasil, em novembro de 2018. O presente artigo apresenta reflexões
a partir da temática HIV/AIDS, a partir da perspectiva da educação audiovisual da
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sexualidade desenvolvida por Silva (2015, 2020), que estabelece uma proposta
metodológica de análise ao estudo de imagens e sons, “partindo de uma cultura
audiovisual (iniciada com o cinema, passando pela televisão até as novas tecnologias da
cultura do upload) que nos leve a compreensão das diferenças e aproximações de
linguagens entre o vídeo e o cinema, assim como a pedagogia do vídeo e seus fins
educativos” (SILVA, 2020, p. 355).
Para compreender o mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e
da AIDS, a partir da cinebiografia “Bohemian Rapsody”, elegemos quatro apontamentos
a serem preenchidos pelo pesquisador. No primeiro passo, o pesquisador define seu
“produto”; já no segundo passo, o pesquisador deve manter o padrão de descrição deste
material que será analisado; no terceiro passo, o pesquisador apresenta, no formato de
transcrição, as narrativas, seguindo as premissas da sequenciação dos fatos; e por fim, no
quarto passo o pesquisador vai em busca de sistematizar os elementos: “personagens,
narrativas e suas intencionalidades” (SILVA, 2020).
Contudo, mesmo se estabelecendo tais orientações, o autor afirma que
[...] o olhar atendo ao material não se limita apenas em uma ou duas
únicas exibições. É preciso assistir várias vezes e em momentos não
contínuos também. Essa não continuidade nas exibições, contribui para
uma nova percepção não identificada ou observada anteriormente, por
isso, as pausas são muito importantes. Assista o vídeo na íntegra uma
ou duas vezes. Faça leituras que complementarão sua fundamentação
teórica. Depois assista novamente, talvez até fragmentando partes do
material (SILVA, 2020, p.366).
Com isso, será possível perceber o quanto as transcrições, assim como os planos de
sequência do vídeo são importantes para detalhes muitas vezes não observados num
primeiro momento (SILVA, 2020).
QUADRO 1 – Informações sobre a cinebiografia “Bohemian Rapsody”
Vídeo
Tema central
Sinopse
Bohemian Rapsody
O mundo-vida de Freddie Mercury
Bohemian Rhapsody é uma celebração a banda
Queen, a sua música e seu extraordinário
vocalista Freddie Mercury. O filme mostra o
sucesso meteórico da banda através de suas
canções icônicas e som revolucionário, a quase
implosão quando o estilo de vida de Mercury
sai do controle e o reencontro triunfal na
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Personagem(ns) principal(is)
Contexto
Duração
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véspera do Live Aid, onde Mercury, agora
enfrentando uma doença fatal, comanda a
banda em uma das maiores apresentações da
história do rock. Durante esse processo, foi
consolidado o legado da banda que sempre foi
mais como uma família, e que continua a
inspirar os amantes de música até os dias de
hoje.
Diversos. Entre eles: Freddie Mercury; Mary
Austin; Jim Hutton; Paul Prenter.
O mundo-vida de Freddie Mercury na interface
da sexualidade e da AIDS.
132’
Fonte: Os autores.
Análise compreensiva das cenas do mundo-vida de Freddie Mercury na interface
com a AIDS
A cinebiografia de Freddie Mercury “Bohemian Rapsody” trouxe inúmeras e
significativas provocações acerca do comportamento do artista em seu mundo-vida e,
principalmente, nos permitiu contextualizar diversos aspectos da sua trajetória de vida.
Entretanto, nossa pretensão neste momento está voltada para a análise compreensiva das
suas vivências da sexualidade na interface com a AIDS.
Sendo assim, selecionamos e detalhamos as cenas a seguir de acordo com nosso
intento. Ou seja, utilizamos cenas fragmentadas sequenciais, que abordaram a temática
deste estudo. Como estratégia estética, elencamos categorias de análise, aqui agrupadas
em dois eixos temáticos (O mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade
e O mundo-vida de Freddie Mercury na interface do HIV/AIDS). Da mesma maneira que
fizemos uso da transcrição da narrativa; dos planos da produção audiovisual e suas
intencionalidades para fundamentar o processo de análise compreensiva.
O mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade
No decorrer da cinebiografia “Bohemian Rapsody”, a sexualidade de Freddie
Mercury vai ganhando corpo e forma. Logo no início da sua trajetória, ele é apresentado
ao telespectador como um homem jovem que aparentemente sofre bullying nas suas
relações interpessoais pela sua aparência. Mas, quando nosso olhar se dirige para questões
da sua sexualidade, é na família que esses abusos se iniciam. A mãe de Freddie é a
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primeira (no sentido sequencial do filme) a praticar pressão psicológica sobre ele. Ela, o
considera já “grande demais” para não ter apresentado nenhuma garota à família.
Aqui, ao discorrermos sobre essa passagem, podemos afirmar que estudos
evidenciam (SCABELLO E BRUNS, 2004; LIPOVETSKY, 2004) o poder que os
familiares exercem sobre os membros que convivem no interior doméstico como capaz
de influenciar suas crias e, como consequência, estabelecer relações de (des)educação no
processo de desenvolvimento do sujeito e na formação de sua personalidade
A respeito dessas relações nos espaços intrafamiliares, deve-se pensar que os
tempos hipermodernos instituíram novas nuances cotidianas ao sujeito. A fim de
compreender essas novas relações, revisitamos autores como Scabello e Bruns (2004) em
artigo intitulado “O mosaico da família atual: espelho da sociedade contemporânea”. Para
as autoras, as marcas dessa sociedade favorecem uma mudança de paradigmas, uma vez
que, por elevação dos níveis de individualidade, se estabelece “a superficialidade e um
sentimento de esvaziamento de afeto e de segurança nas relações afetivo-sexuais”
(Scabello e Bruns, 2004, p. 138).
Nessa perspectiva, os planos abaixo ilustram momentos do envolvimento amoroso
e sexual de Freddie com Mary.
Plano 1
Plano 2
Uma relação que perde o encantamento dos envolvidos quando, devido às turnês
da banda, ele passa mais tempo fora de casa do que ao lado de sua amada. Durante esse
período, Freddie começa a questionar seus desejos, suas vontades, pois considera não
estar vivendo com autenticidade. Nesse momento, a cinebiografia passa a desvelar suas
relações homoafetivas. Comportamento que se torna evidente nos planos sequência a
seguir (planos 3 a 10).
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Plano 3
Plano 4
Plano 5
Plano 6
Plano 7
Plano 8
Plano 9
Plano 10
265
Ao longo do filme, Freddie Mercury assume sua bissexualidade e passa a ter
vivências autênticas consigo mesmo, ou seja, por uma perspectiva amatuzziana dessas
experiências. Para o autor, “a autenticidade, inicialmente, aponta para algo que está além
da fachada, além daquilo que eu devo ser, além do que os outros esperam de mim, além
daquilo que simplesmente agrada os outros” (AMATUZZI, 2016, p. 96).
Dessa perspectiva, as vivências da sexualidade de Freddie ganham espaço na
trama, evidenciando comportamentos sexuais de risco. Nas cenas elencadas para análise
vemos relações com diversos parceiros sem que, em nenhum desses momentos, haja a
combinação do prazer com a prevenção (planos 3, 4, 5, 6, 7 e 8).
São essas evidências que corroboram a dissertação de Fernandes (2021), intitulada
“A sexualidade de homens com HIV/AIDS que fazem sexo com homens”, pois, no intuito
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de compreender essas vivências, os sete relatos dos colaboradores do estudo realizado
foram convergentes na busca pelo prazer quando lhes foi instituído o silêncio como
prática de Educação Sexual, combinada ao não uso e/ou abandono de métodos
preventivos. Assim, Freddie, como esses homens, estavam expostos às Infecções
Sexualmente Transmissíveis (IST) e, em particular, ao HIV/AIDS. A exemplo dessa
vulnerabilidade, descrevemos a transcrição4 das narrativas das cenas 12 e 13.
Freddie: Paul, paixão. Eu quero dar uma festa.
Paul: Tá. Quem você quer convidar?
Freddie: Pessoas. Eu quero que você balance a árvore dos esquisitos e
convide quem cair no chão. Anões, gigantes, mágicos, guerreiros zulus,
contorcionistas, engolidores de fogo e padres. Porque a gente vai
precisar se confessar.
Freddie: Meus queridos, chegou a hora de ficar completamente
bêbados.
Como forma de sistematizar o entrelaçamento da sexualidade de Freddie Mercury
com o HIV/AIDS, apresentamos as cenas que explicitam suas vivências na interface com
o vírus e a doença.
O mundo-vida de Freddie Mercury na interface do HIV/AIDS
As vivências do mundo-vida de Freddie Mercury na interface do HIV/AIDS são
fiéis ao processo de identificação dos sintomas, da tensão dos testes, sendo seguido do
momento de se tornar conhecedor do diagnóstico e antes da autoaceitação, a presença
intermitente de sentimento de impotência, de medo, de dor, de sofrimento, de negação
(FERNANDES, 2021). Os planos apresentados sob os números 18 e 19 se referem ao
efeito sintomático do vírus já presente no corpo de Freddie Mercury.
Plano 18
4
Plano 19
Transcrição dos autores.
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No intuito de possibilitar uma melhor compreensão das cenas que seguem,
apresentamos a transcrição5 da narrativa das cenas 20 e 21, pois trata-se de uma
reportagem midiática que estava apresentando a AIDS ao mundo.
Plano 20
Plano 21
TV: Todo dia em São Francisco dois homens recebem a triste notícia
que você tem AIDS e que não tem cura. Desde que os médicos franceses
e americanos isolaram o vírus em 1983 as pesquisas começaram em
ritmo acelerado. O método utilizado pelo vírus para destruir o sistema
imunológico foi descoberto, mas a cura ainda deve demorar anos. Um
grande avanço foi um novo exame de sangue que deve garantir que
ninguém contraia AIDS por transfusão de sangue...
A respeito dessa propagação de conhecimento e informações sobre o vírus do
HIV/AIDS na mídia, Barata (2006) analisou em sua dissertação “A primeira década da
AIDS no Brasil: O Fantástico apresenta a doença ao público (1983 a 1992)” a forma
pejorativa que a doença adentrou os lares brasileiros. Entretanto, seria um equívoco de
nossa parte não elucidar o estudo de Silva (2012) “Aids na cibercultura: a midiatização
da doença nas redes sociais online do Ministério da Saúde”, que exerceu um papel
fundamental na disseminação de saberes reforçando a importância da prevenção antes do
tratamento.
Outro ponto que nos chamou a atenção foram as cenas que se sucederam a ele
assistindo essa matéria televisiva (planos 22 até a 25). Freddie Mercury aparentemente
convive com o sentimento da dúvida, da incerteza e do medo do diagnóstico positivo.
Plano 22
5
Plano 23
Transcrição dos autores.
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Plano 24
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Plano 25
Entretanto, em uma consulta médica para saber o resultado de seus exames,
Freddie Mercury é tomado por um discurso médico nada acolhedor:
Médico: Freddie, levamos um tempo para trazer você de volta porque
estou com os resultados dos exames que você fez algumas semanas
atrás. Os resultados só chegaram agora e eles não são bons. Eles
indicam que você tem o vírus do HIV, portanto você é HIV positivo.
Está entendendo? O procedimento é que há tratamentos disponíveis,
eles não são extremamente eficientes Freddie, mas tomara que
apareçam novos tratamentos nos próximos meses e nos próximos anos.
Mas até o momento, apesar dos tratamentos é bem provável, inevitável
que você desenvolva a AIDS6.
Partindo desse discurso, podemos afirmar o quanto é falho e sem humanidade o
momento do diagnóstico. Neste sentido, Agreli (2017) apontou em sua tese, “A inclusão
da diversidade sexual na Universidade”, a necessidade da inserção da temática da
sexualidade nos espaços formativos em níveis superiores, uma vez que independente da
área escolhida pelo estudante que está em processo de formação universitária para atuação
futura no mercado de trabalho, ele irá lidar cotidianamente com relações interligadas a
questões de sexualidade. Deste exemplo, a falta desse processo formativo no curso de
Medicina, por exemplo, proporcionou uma prática profissional despreparada para lidar
com questões humanitárias. Trata-se é claro de uma necessidade formativa não só
pertinente as áreas da saúde, mas todas as formações.
Todavia, Freddie não aceitou ser frágil diante da situação. Conviveu sim com o
diagnóstico reagente para o HIV/AIDS no âmbito do privado e íntimo, revelando somente
a Jim, seu parceiro à época e aos integrantes da banda que considerava serem sua família
(planos 26 a 29).
6
Transcrição dos autores.
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Plano 26
269
Plano 27
Plano 28
Plano 29
Freddie: Antes de vocês saírem podem me dar um segundo?
Bryan: Tá, o que que foi?
Freddie: Eu peguei.
Bryan: Pegou o quê?
Freddie: AIDS. Eu quis que soubessem por mim
Bryan: Freddie, eu lamento muito.
Freddie: Bryan, para. Nem vem. Por enquanto isso fica entre nós. Ouviram? Só
nós. Então por favor, se algum de vocês, fizer escândalo, olhar de cara feia, ou
pior ainda, me entediar sentindo pena, vai ser pura perda de tempo. Tempo, que
poderia ser usado fazendo música, que é só o que eu quero fazer com o tempo
que eu ainda tenho. Eu não tenho tempo para ser a vítima deles. O garoto
propaganda da AIDS, o modelo de advertência deles. Não. Eu decido quem eu
sou. E eu vou ser exatamente o que o eu nasci pra ser. Um artista, que dá ao
público aquilo que ele mais quer. Tocar os céus. Freddie Fodão Mercury.
Bryan: Você é uma lenda Freddie.
Freddie: Pode apostar que eu sou. Nós somos todos lenda. Mas você tem razão,
eu sou uma lenda7.
No entanto, partindo da perspectiva da educação audiovisual da sexualidade,
proposta por Silva (2015, 2020), que estabelece uma possibilidade metodológica de
análise ao estudo de imagens e sons, em seu guia, o autor afirma que um filme sempre
possibilita encontrar elementos para refletirmos a partir de suas intencionalidades.
Logo, pensar sobre o filme “Bohemian Rapsody” é estabelecer uma conexão entre
os dois eixos temáticos (O mundo-vida de Freddie Mercury na interface da sexualidade e
7
Transcrição dos autores.
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Doi: 10.14295/de.v9i1.12924
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Freddie Mercury e a AIDS: análise da cinebiografia “Bohemian Rhapsody”
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O mundo-vida de Freddie Mercury na interface do HIV/AIDS) e indagarmos conforme
nos aponta Silva (2020) “que relações fazer entre esse material/produto”?
Considerações Finais
A cinebiografia de Freddie Mercury “Bohemian Rapsody” nos apresentou a
estrela do mundo do rock, desvelando não somente uma vida pautada no sucesso e na
ostentação, mas vivências autênticas de um sujeito que em meio às suas fragilidades e
vulnerabilidades assumiu sua responsabilidade pelo diagnóstico de HIV/AIDS ainda na
década de 1980-1990.
Não podemos deixar de retomar os motivos aparentes que o inibiram de desvelar
sua bissexualidade, como sua sorologia positiva para HIV. O estigma da
homossexualidade acrescido da marginalização dos sujeitos que convivem com a doença
foram cruciais para que não revelasse ao mundo sua condição.
Portanto, é emergente que, mesmo em um cenário de conservadorismo religioso
e político, não nos tornemos cúmplices e negligentes para com nossos/as filhos/as e/ou
estudantes, pois eles/as clamam por uma prática educativa que seja capaz de orientá-los/as
e instrui-los/as a tomarem as decisões assertivas e positivas diante das questões
contemporâneas da sexualidade. As matrizes de sentidos, família, escola e religião devem
manter diálogos inclusivos acerca da saúde de nossas crianças, adolescentes e jovens.
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Recebido em abril de 2021.
Aprovado em junho de 2021.
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