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00 Revista Ensaios Filosoficos Volume VI

FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Expediente, Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 ISSN 2177-4994 Editora Chefe : Elena Moraes Garcia Conselho Editorial Docente : Dirce Eleonora Solis James Bastos Arêas Luiz Eduardo Bicca Marly Bulcão L. Britto Rafael Haddock-Lobo Rosa Maria Dias Veronica Damasceno Conselho Editorial Discente : Ana Flávia Costa Eccard Diogo Carreira Fortunato Luiz Eduardo Nascimento Marcelo José D. Moraes Rafael Medina Lopes Roberta Ribeiro Cassiano Victor Dias Maia Soares Capa Ensaios Filosóficos, Volume 6- outubro/2012 : Jorge Polo Endereço : Ensaios Filosóficos – Revista de Filosofia Campus Francisco Negrão de Lima Pavilão João Lyra Filho R. São Francisco Xavier, 524, 9º andar, Sala 9007 Maracanã – Rio de Janeiro – Rj – Cep 20550-900 www.ensaiosfilosoficos.com.br efrevista@gmail.com Índice, Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Índice Editorial por Roberta Ribeiro Cassiano .................................................................. pág.04 “Antinomias e Sistema em Kant e Hegel” por Diogo Ferrer .................................. pág. 08 “Maquiavel e as relações entre ética e política” por Marcia do Amaral .............. pág. 25 “A arte como exílio da condição humana:Uma análise ético-política da estética contemporânea” por Georgia Cristina Amitrano.................................................... pág. 38 “O intelectual que nasceu de uma piada: o filósofo” por Barbara Botter ............. pág. 57 “Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana” por Fernando Fragozo ........................................ pág. 71 “Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento” por Guilherme Müller Junior .......................................................pág. 83 “A dupla intencionalidade da recordação iterativa na fenomenologia husserliana” por Adriano Negris ..................................................................................................... pág. 102 “Descartes e Sartre: a questão da liberdade” por Osvaldino Marra Rodrigues e Elnora Gondim................................................................................................................. pág. 113 “Da grande saúde em Nietzsche” por Bruno Wagner Santana............................. pág. 129 “Hannah Arendt: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo” por José João Neves Barbosa Vicente.................................................................................................... pág. 144 Entrevista com Rosa Dias .................................................................................... pág. 156 Editorial, Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Editorial É com enorme alegria que o corpo editorial da Revista Ensaios Filosóficos torna abertos os artigos selecionados para compor a sexta edição de nossa publicação. Com ainda maior contentamento anunciamos a continuidade e, mais do que isso, o fortalecimento da ideia que guia este trabalho desde o seu início, a abertura de um espaço amplo e multímodo para o debate filosófico. Procuramos sempre oferecer acolhimento aos diálogos e convívios tão ricos e tão próprios ao exercício da filosofia, buscando não impor a limitação dos artigos a uma corrente ou linha de pesquisa, permitindo assim que os próprios problemas explorados pelos autores evidenciem as proximidades e tensões existentes entre si. Por esta razão, esperamos que a sexta edição da Revista Ensaios Filosóficos, esta que oferecemos agora a nossos leitores, possa constituir material de inquietação e questionamento, fazendo com que as pesquisas e leituras, usualmente tão solitárias, possam ganhar voz em suas apropriações e releituras. Desejamos que o trabalho editorial seja um veículo destas tensões e diálogos, sem deixar de agradecer enormemente aos autores e colaboradores, sem os quais esta publicação não seria viável. Compõem nossa publicação dez artigos, dentre os quais um artigo internacional escrito por Diogo Ferrer, professor associado da Universidade de Coimbra, intitulado Antinomias e sistema em Kant e Hegel. A partir da publicação do texto acima referido, afirmamos nossa intenção de promover o diálogo entre a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, instituição a que nossa publicação é vinculada, com instituições brasileiras e internacionais, além de reafirmar nossa disposição para promover o diálogo filosófico entre comunidades lusófonas, com as quais guardamos parentescos que certamente vão além do idioma. Além do artigo internacional, mantivemos constantemente presente na Revista Ensaios Filosóficos uma entrevista com professores e profissionais da filosofia. A partir destas entrevistas esperamos estabelecer diálogos que ultrapassem, tanto quanto nos for possível, certo formalismo acadêmico diante do qual há coisas que nunca são ditas, sem deixarem de ser, no entanto, da maior importância. Algumas destas coisas nos são aqui apresentadas com a doçura e gentileza que tão precisamente caracterizam a figura de Rosa Maria Dias, professora do departamento de filosofia da Universidade do Estado do Editorial, Ensaios Filosóficos, Volume VI - outubro/2012 Rio de Janeiro, roteirista do filme Dias de Nietzche em Turim, trabalho em conjunto com Júlio Bressane, além de autora de diversos ensaios sobre o referido filósofo, dentre os quais se destacam os livros Nietzsche, a vida como obra de arte e Amizade Estelar Schopenhauer, Wagner e Nietzsche. Esperamos dividir com nossos leitores um pouco da amável e tenaz convivência filosófica com nossa entrevistada que nós, alunos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pudemos experimentar em suas aulas e conferências. Além destes, contamos com nove artigos de professores e estudantes de filosofia sobre temas diversos, os quais evidenciam, diante do agrupamento na unidade que constitui a Revista, suas relações e aberturas. O primeiro destes artigos aqui apresentado é de autoria do mestrando da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Adriano Negris, intitulado A dupla intencionalidade da recordação iterativa na fenomenologia husserliana, artigo que se ocupa da abordagem fenomenológica de Edmund Husserl sobre a questão do tempo, explicitando diversos aspectos desta importante corrente filosófica contemporânea. Em seguida apresentamos o artigo da professora da Universidade Federal do Espírito Santo, Barbara Botter: O intelectual que nasceu de uma piada: o filósofo. Em seu texto a autora explora as nuances de uma anedota contada por Platão no Teeteto segundo a qual Tales, o primeiro filósofo, é alvo da risada de uma criada de Trácia ao cair em um buraco tentando observar o céu. A observação seguinte à piada, a de que ela se aplica a todos que se ocupam da filosofia, ressoa na tentativa da autora de encontrar ali um fio condutor adequado para uma compreensão mais ampla da atividade filosófica ela mesma, um caminho para o interior da questão sobre o que caracteriza a filosofia, a questão das questões. O terceiro artigo presente em nossa sexta edição, Da grande saúde em Nietzsche, é escrito por Bruno Wagner Santana, mestre em filosofia e professor-tutor em filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Nele nossos leitores encontrarão discussões acerca do tema exposto no título a partir da filosofia de Nietzsche em articulação com o conceito central de vontade de potência e outros temas centrais do pensamento deste egrégio filósofo. Segue-se a este um artigo escrito a quatro mãos por Elnora Gondim e Osvaldino Rodrigues, ambos professores da Universidade Federal do Piauí. O texto, intitulado Editorial, Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Descartes e Sartre: a questão da liberdade aborda, a partir do tema eleito, as críticas direcionadas pelo filósofo existencialista francês à Descartes, permitindo assim uma visualização mais ampla daquilo que está em jogo em cada um destes projetos filosóficos e do profícuo diálogo entre duas emblemáticas abordagens da questão clássica acerca da liberdade. Além destes, contamos com um artigo do professor Fernando Fragozo, professor associado da Escola de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em seu artigo o autor procura reconstruir os principais elementos da conferência de Jacques Derrida denominada O ‘mundo’ das Luzes por vir (Exceção, cálculo e soberania). No referido texto, Derrida retorna a Husserl e Kant para discutir a crise da razão e o ideal das luzes, problemáticas centrais do pensamento de nossa época e divisor de águas na história recente da filosofia. Em seu artigo Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana, Fragozo nos oferece uma dimensão da profundidade deste debate e convida ao questionamento das diretrizes clássicas do exercício filosófico. Em seguida contamos com o texto de Georgia Amitrano, professora da Universidade Federal de Uberlândia, A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea. O texto trabalha na interface de duas disciplinas da filosofia comumente distintas para explicitar a função política e ética da obra de arte, bem como sua função criadora capaz de “desempenhar uma determinada função criadora, que envolve tanto a sua originalidade quanto as relações entre homem e mundo, homem e homem”, nas palavras da autora. Apresentamos também o artigo de Guilherme Müller Junior, doutor em filosofia, intitulado Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento. No referido artigo o autor questiona a limitação da apropriação da filosofia de David Hume segundo sua caracterização como ceticismo e empirismo epistemológicos e a própria limitação do pensamento de Hume a uma teoria do conhecimento. Para tal o autor propõe um deslocamento e uma abordagem do pensamento de Hume a partir da questão: “como funciona o seu pensamento em função do problema que ele coloca?”. Editorial, Ensaios Filosóficos, Volume VI - outubro/2012 Por fim, integrando o grupo dos dez artigos que compõem a sexta edição da Revista Ensaios Filosóficos, apresentamos ao público os artigos do doutorando João José Vicente, Hannah Arendt: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo e, por último, o artigo da professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Márcia do Amaral, Maquiavel e as relações entre ética e política. No penúltimo artigo de nossa publicação encontramos uma revisita a elementos centrais da teoria política de Hannah Arendt, pensadora cujo trabalho nos lança em ausência de condições de distinguir entre uma teoria política e uma filosofia propriamente dita. Em seu texto o autor procura oferecer um guia diante da constatação de Arendt segundo a qual certos acontecimentos políticos contemporâneos desafiam todas as nossas categorias de análise forçando assim o pensamento e descobrir uma nova maneira de lidar com eles. Já o último artigo aqui presente, conforme dito, de autoria da professora Márcia do Amaral, aborda a relação entre ética e política a partir de uma revisita a teoria política que, segundo a autora, “provocou mais reações de protestos ao longo do tempo”, a de Nicolau Maquiavel. Assim convidamos nosso leitor a fazer e refazer os percursos de pensamento adotados e explicitados pelos autores dos artigos acima apresentados, ansiando que o nosso trabalho de editoração e publicação da Revista Ensaios Filosóficos, agora em sua sexta edição, não seja mais do que a abertura da possibilidade de diálogos e de visões complexas e sempre agregadoras desta a que servimos com toda a nossa paixão e empenho, a filosofia. Roberta Ribeiro Cassiano FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Antinomias e Sistema em Kant e Hegel Diogo Ferrer 1 Resumo O presente artigo começa por estudar o significado sistemático do capítulo da Antinomia da razão na Crítica da Razão Pura de Kant. Especial importância é dada à afirmação de Kant, nesse capítulo, de que a antinomia é uma demonstração indireta da idealidade dos fenômenos. O estudo da antinomia da razão pura permite concluir que a concepção tripartida do sistema da razão teórica kantiana, dividida em sensibilidade, entendimento e razão, pode ser entendida como um resultado necessário do problema levantado pela antinomia da razão pura. Pretende-se, assim, introduzir uma leitura dialética da Crítica da Razão Pura. Mostra-se em seguida que a Ciência da Lógica de Hegel assume justamente a antinomia como base da autodiferenciação interna da razão, pela qual nesta se produz o seu negativo, a experiência. O projecto lógico-dialético de Hegel consiste, assim, numa maior explicitação e sistematização de possibilidades abertas pela crítica kantiana. Esta explicitação e sistematização por Hegel do programa antinômico da razão kantiana tem como consequência a necessidade de abandonar as distinções kantinanas entre analítico e sintético, entre a priori e a posteriori. Abriu também, por outro lado, o caminho para uma mais radical dialética da razão. Palavras-chave: Kant, Hegel, antinomia, sistema, razão pura, lógica, dialética, experiência. Abstract The present article begins estudying the systematic meaning of the chapter about the reason Antinomy in the Critique of Pure Reason by Kant. Special importance is given to the affirmation of Kant, in this chapter, that the antinomy is an indirect demonstration of ideality of phenomena. The study of the antinomy of pure reason allows concluding that the tripartite conception of the system of kantian theorical reason, divided into sensibility, understanding and reason, can be understood as a necessary result of the problem that is posed by the antinomy of pure reason. Thus it is intended to introduce a dialectical reading of the Critique of Pure Reason. It is shown then that the Science of 1 Diogo Ferrer é Professor Associado da Universidade de Coimbra. E-mail:ferrer.diogo@gmail.com. Uma versão inicial deste texto foi apresentada em conferência no Departamento de Filosofia da UNESP, em Marília, SP, Agosto de 2011. Agradeço ao Prof. Ubirajara Rancan de Azevedo a recepção em Marília. Uma versão alemã foi apresentada em Mainz, Outubro de 2011, no III. Multilateralen Kant-Kolloquium: Kant und das antinomische Denken – Kant et la pensée antinomique – Kant and Antinomical Thinking. Antinomias e Sistema em Kant e Hegel Logic by Hegel assumes exactly the antinomy as internal base of selfdifferentiation of reason, whereby, in it, is produced its negative, the experience. The logical-dialectical project by Hegel consists, then, in a bigger explicitation and systematization of possibilities opened up by the kantian critical. This explicitation and systematization by Hegel of the antinomical program of kantian reason has, as its consequence, the necessity of abandoning the kantian distinctions between analytical and synthetic, between a priori and a posteriori. It has opened up, in the other hand, the path to an even more radical dialectic of reason. 1. A unidade da Crítica da Razão Pura Na Crítica da Razão Pura, Kant se propõe realizar não só uma crítica, como também estabelecer um sistema da razão. Para o tema deste artigo, a relação entre antinomias e sistema em Kant e Hegel, não importará entrar na questão, que pode surgir a respeito de diferentes passagens da obra, sobre se a crítica é já parte integrante do sistema da razão, ou se é a preparação ou a propedêutica para ele. Serão suficientes para já as afirmações de Kant de que a Crítica da Razão Pura fornece os materiais bem como o plano arquitetônico do sistema da razão humana. Segundo Kant, na razão pura, “cada parte faz falta para o conhecimento das restantes, e não há lugar para nenhum acrescento contingente ou grandeza indeterminada de completude que não tenha os seus limites determinados a priori”.2 A razão, por isso, “é comparável a uma esfera, cujo diâmetro pode ser indicado com certeza a partir da curvatura da superfície”.3 Estas afirmações não são isoladas, mas pertencem a uma série de outras semelhantes ou com o mesmo significado na Crítica da Razão Pura. A primeira questão que se levanta a esta tese sobre a unidade da Crítica da Razão Pura é qual a necessidade de a razão ser um sistema assim organizado? Não é, afinal, a experiência a pedra de toque não só da verdade, como até mesmo já do significado de qualquer conhecimento? Porque não é a razão também uma construção empírica, sujeita à mudança e a acrescentos não previstos em algum plano, como é “[…] ein jeder Teil bei der Kenntnis der übrigen vermißt werden kann, und keine zufällige Hinzusetzung, oder unbestimmte Größe der Vollkommenheit, die nicht ihre a priori bestimmte Grenzen habe, stattfindet” (B 860-861) (AA III, 539). Utilizarei a seguinte edição: Immanuel Kant, Kritik der reinen Vernunft, ed. J. Timmermann, Felix Meiner, Hamburg, 1988. As citações da Crítica da Razão Pura serão feitas a partir do texto da segunda edição da obra, apenas com a indicação “B”, seguida da indicação páginação da edição da Academia. A tradução dos excertos citados é minha. 3 “Unsere Vernunft […] muß […] mit einer Sphäre verglichen werden, deren Halbmesser sich aus der Krümmung des Bogens […] mit Sicherheit angeben läßt” (B 790) (AA III, 497). 2 FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 típico da experiência? Porque há de todo um plano arquitetônico rígido da razão? A resposta de Kant, como é bem conhecido, é que é impossível fundamentar a validade universal e necessária do conhecimento científico e moral sobre juízos de experiência. Não sendo, por isso, a fundamentação da razão na experiência uma opção viável, essa fundamentação tem de ser, “por assim dizer, [um]a auto-gestação do nosso entendimento (incluindo a razão)”.4 Os princípios da razão que permitem a síntese da experiência não são “um hábito que surge da experiência e das suas leis e, assim, não são regras meramente empíricas, ou seja, contingentes em si [mesmas]”.5 Kant confirma, logo no início da Lógica Transcendental, que a completude sistemática do entendimento deriva do fato de que este está totalmente separado da sensibilidade. “O entendimento puro separa-se inteiramente não só de tudo o que é empírico, mas também de toda a sensibilidade. Por isso, ele é uma unidade que subsiste e se basta a si mesma, e que não pode ser aumentada por nenhum acrescento vindo de fora”.6 E a partir desta separação, denominada justamente “crítica”, do entendimento (em conjunto com a razão) em relação a tudo o que não lhe pertence, o sistema das suas regras e princípios deve ser organizado segundo uma ideia que “fornece a sua completude e articulação”.7 A razão é, por conseguinte, faculdade de princípios, i.e., fundante e auto-fundada. A razão é a faculdade que realiza inferências porque tem a capacidade de dar regras, que devem ser antes denominadas ‘princípios’, que determinam o pensamento somente a partir de si próprio, sem recurso a nenhuma outra faculdade. A razão pura é, por conseguinte, uma faculdade totalmente auto-contida que se deve poder explicitar integralmente a si mesma a partir dos seus próprios princípios. A quarta seção do capítulo sobre a Antinomia da Razão Pura enuncia, então, uma espécie de ‘saber absoluto’ da filosofia transcendental. Kant insiste aí justamente no ponto em questão. Segundo este capítulo, todos os “problemas transcendentais da “so zu sagen, die Selbstgebärung unseres Verstandes (samt der Vernunft)” (B 793) (AA III, 499). “eine aus Erfahrung und deren Gesetzen entspringende Gewohnheit, mithin bloß empirische, d.i. an sich zufällige Regeln” (B 793) (AA III, 499). 6 “Der reine Verstand sondert sich nicht allein von allem Empirischen, sondern so gar von aller Sinnlichkeit völlig aus. Er ist also eine vor sich selbst beständige, sich selbst gnugsame, und durch keine äußerliche hinzukommende Zusätze zu vermehrende Einheit” (B 89-90) (AA III, 83). 7 B 90 (AA III, 83). Sobre o “conceito generativo de sistema” em Kant v. G. Zöller, “Systembegriff und Begriffssystem in Kants Transzendentalphilosophie”, in H. F. Fulda – J. Stolzenberg, Architektonik und System in der Philosophie Kants, Felix Meiner, Hamburg, 2001, 53-72, especialmente 63-65. Sobre a questão do sistema como estruturação interior da razão veja-se também P. König, “Das wahre System der Philosophie bei Kant”, in H. F. Fulda – J. Stolzenberg, op. cit. 41-52, esp. 47-50. 4 5 Antinomias e Sistema em Kant e Hegel razão pura têm de poder ser resolvidos”.8 A razão tem uma capacidade incondicionada de resolver os seus próprios problemas, porque na filosofia transcendental, assim como, aliás, na matemática e na moral, “a resposta tem de surgir das mesmas fontes de onde surge a pergunta”.9 Não há, nas questões da razão pura, a possibilidade de apelar a uma finitude radical da razão humana como motivo de alguma impossibilidade de um integral conhecimento de si mesma. 2. O choque das Antinomias e a “aparente humilhação” da razão O mesmo capítulo onde é estabelecida de modo mais claro esta necessária capacidade da razão de dar resposta integral às suas próprias questões expõe também, por outro lado, as denominadas Antinomias da Razão Pura, onde são apresentados os problemas aparentemente irresolúveis para a razão. Dentro da Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura, a Antinomia tem a particularidade de ser o capítulo que trata das ideias que fazem referência ao mundo empírico, isto é, que “podem pressupor o seu objeto […] como dado, e a questão que delas surge diz respeito somente à prossecução da síntese”.10 Consistem, como é bem conhecido, em primeiro lugar, no problema dos limites da extensão do todo dos fenômenos no espaço e no tempo; questionam, em seguida, os limites da composição de cada fenômeno; tratam ainda, em terceiro lugar, da existência de um começo possível para as séries de determinação dentro do todo dos fenômenos; e, por fim, da existência de um ser necessário como fundamento da série dos fenômenos.11 As ideias cosmológicas, que conduzem a razão aos seus limites últimos no que toca às questões do incondicionado da divisão ou da extensão materiais, reivindicam uma relação muito determinada com os objetos da experiência, mas, segundo Kant argumenta,12 a resposta às questões que são próprias a estas ideias não poderia ser encontrada nem porventura entre as coisas em si mesmas, nem em alguma experiência “Von den transzendentalen Aufgaben der reinen Vernunft, in so fern sie schlechterdings müssen aufgelöset werden können” (B 504) (AA III, 330). 9 “… weil die Antwort aus denselben Quellen entspringen müß, daraus die Frage entspringt” (B 504) (AA III, 330). 10 “daß sie Ihren Gegenstand […] als gegeben voraussetzen können, und die Frage, die aus ihnen entspringt, betrifft nur den Fortgang dieser Synthesis” (B 506-507) (AA III, 331-332). 11 Para uma apresentação e discussão das antinomias, incluindo referências críticas, cf. H. E. Allison, Kant’s Transcendental Idealism, Yale U. P., New Haven / London, 2004, pp. 366-384. 12 B 507. 8 FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 concreta. Por um lado, estas questões ideais da cosmologia não dizem respeito às coisas em si mesmas, porquanto se está a tratar da completude dos fenômenos da experiência possível. Na verdade, as coisas em si não parecem suscetíveis de sistema ou de universalidade como totalidade, posto que estes sejam propriedades do sujeito ou da razão. Mas, por outro lado, as antinomias tampouco dizem respeito a alguma experiência, uma vez que não se pergunta por nenhuma experiência in concreto, mas quer pelo seu todo, quer pelo seu começo, ou o fim das séries da sua determinação. Não se tratando nas antinomias nem de coisas em si mesmas, nem de fenômenos, só resta tratar-se de um assunto interno da própria razão. As antinomias requerem então, uma solução pela razão. Na sua qualidade de faculdade autônoma que se dá princípios a si mesma, e ainda mais se tratando de um problema doméstico da razão, esta, na sua própria casa, tem de poder decidir. A questão pertence à ideia, ou seja, é conceitual, e, nestas condições, conforme Kant enuncia, “precisamente o mesmo conceito que nos coloca em posição de perguntar, tem de nos tornar inteiramente aptos a responder à questão, na medida em que o objeto não se encontra fora do conceito”.13 A razão tem de funcionar neste ponto como que analiticamente, ou seja, tem de produzir o seu conteúdo determinado a partir do seu próprio conceito. Em geral, as questões da razão pura são de tipo analítico, porque é o próprio conceito da razão que permite dar resposta às questões sobre o sistema e o seu plano. Mas, tal como ela mesma o exige, finalmente só perante as antinomias, cuja responsabilidade não pode ser atribuída a nenhum outro fator, nem à experiência, nem às coisas em si mesmas, mas unicamente a si própria, a razão, como é sabido, não encontra nenhum meio de decidir entre as argumentações contraditórias acerca das questões cosmológicas. Kant acentua bem o que está em causa, referindo-se à “aparente humilhação”14 da razão, impotente para responder às suas próprias exigências. “weil eben derselbe Begriff, der uns in den Stand setzt zu fragen, durchaus uns auch tüchtig machen muß, auf diese Frage zu antworten, indem der Gegenstand außer dem Begriffe gar nicht angetroffen wird” (B 505) (AA III, 331). 14 “… dem Scheine einer demutsvollen Selbsterkenntnis” (B 509) (AA III, 333). 13 Antinomias e Sistema em Kant e Hegel 3. A solução dialética das Antinomias e a unidade sistemática da Crítica Perante isto, o plano da razão tem de ser elaborado (ou talvez se deva dizer, como que reelaborado), de tal modo que a capacidade absoluta da razão de resolver às suas próprias questões não seja posta em causa. Para isso, as argumentações que levam às dificuldades insanáveis devem ser declaradas “ilusões transcendentais”,15 porque partem certamente de pressupostos errados, e descobre-se que toda a disputa é “acerca de coisa nenhuma”.16 E Kant argumenta que se a oposição entre tese e antítese for considerada não uma oposição contraditória, mas dialética, não há um verdadeiro impasse para o sistema, e a dificuldade pode ser superada. Por razões lógicas que são fáceis de compreender, e que não cabe agora analisar, na oposição dialética, em contraste com a oposição contraditória, tese e antítese podem ser ambas falsas ou ambas verdadeiras.17 A condição para que isso seja possível é, conforme o caso, ou que os conceitos em causa não se apliquem de todo aos fenômenos, e podem então por isso mesmo ser ambos falsos a respeito destes. Ou então, a condição é que haja uma distinção de planos, entre fenômeno e noúmeno, e os conceitos em causa podem ser ambos verdadeiros, conquanto sejam aplicados a coisas diferentes.18 No primeiro caso, não há contradição porque os conceitos não se aplicam aos fenômenos, e são ambos falsos. No segundo caso, não há contradição na medida em que um conceito se aplica aos fenômenos, o oposto às coisas em si, e podem ser ambos verdadeiros. Como Hegel comentará,19 perante uma alternativa exclusiva ou… ou…, como é o caso nas antinomias, a dialética responde nem uma coisa nem outra, mas uma terceira, que corresponde a uma alteração de perspectiva sobre o conceito em causa. A alternativa aparentemente exclusiva é falsa, porque não se aplica de todo, como tal, ao conceito ou “transzendentale[r] Schein” (B 532) (AA III, 346). “um nichts” (B 529) (AA III, 345). 17 Cf. B 532 (AA III, 346). 18 Segundo a análise crítica de W. Malzkorn, Kants Kosmologie-Kritik. Eine formale Analyse der Antinominenlehre (Walter de Gruyter, Berlin / New York, 1999) a tese de Kant é que as antinomias são resolúveis porque “die Vernunft (im weiteren Sinne) ist nicht strukturell antinomisch; sie gerät nur dadurch in die Antinomienproblematik, daß die Urtelskraft einen Fehler in der Anwendung von Vernunftfunktionen und Vernunftgrundsätzen, d.i. eine ‘transzendentale Subreption’ begeht. Dieser Fehler besteht gerade darin, Vernunftfunktionen und -grundsätze gemäß der ‘natürlichen’, aber falschen Erkenntnisvoraussetzung des transzendentalern Realismus unrechtmäßig anzuwenden” (op. cit. 111). As insuficiências formais que o autor encontra nas demonstrações das teses e antíteses apresentadas por Kant (cf. op. cit. 315-316) não são importantes para este estudo. Veja-se a nota 21 infra. 19 Cf. G. W, F. Hegel, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, in Werke, ed. E. Moldenhauer – K. M. Michel, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1970, p. 19. 15 16 FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 ao universo dos fenômenos. O universo dos objetos tem de ser dividido em fenômenos e coisas em si. Mas é fundamental para a ideia e o plano da razão que mesmo perante a ilusão autoinflingida o sistema se mantenha, e a ilusão transcendental tenha uma função positiva e estável dentro dele. Duas conclusões resultam daqui. Em primeiro lugar, por força da oposição dialética encontrada nas questões internas da razão, o plano do sistema tem de ser elaborado de maneira a incluir, nos termos de Kant, “todo um sistema de ilusões e miragens”.20 Kant insiste em que a ilusão em que se funda a antinomia não é contingente ou mutável, mas tem uma causa bem conhecida e é sistemática, tem princípios, não é ocasional. É fundamental que se trate de uma sistemática da ilusão, dotada de princípios e capaz, por isso, de estruturar toda uma divisão da doutrina lógica dos elementos, a Dialética transcendental. Só a sistematização da ilusão permitirá manter a coerência do quadro.21 A segunda conclusão a retirar desta necessidade de manter a ideia do sistema perante a frustração do isolamento da razão, é que a ilusão não é, em última instância, “Schein” (ilusão), mas “Erscheinung” (fenômeno). É o próprio Kant que faz ressaltar esta relação entre a ilusão transcendental da razão e a idealidade dos fenômenos: “a antinomia da razão pura nas suas ideias cosmológicas resolve-se ao mostrar-se que é meramente dialética e uma controvérsia acerca de uma ilusão, que surge porque se aplicou aos fenômenos a ideia da totalidade absoluta, ideia que vale somente como condição das coisas em si.” E desta antinomia, fazendo-se dela um “uso crítico e doutrinal”, pode-se, então, “demonstrar indiretamente a idealidade transcendental dos fenômenos”.22 “ein ganzes System von Täuschungen und Blendwerken” (B 739) (AA III, 468). Kant aparece aqui como o redescobridor da dialética na modernidade, que reintegra assim a lógica. A tese defendida por Kant, de que a dialética é inerente à razão, irá tornar possível a transformação da concepção da razão e também da realidade, conforme realizada pelos seus sucessores. 21 Veja-se J. Luchte, Kant’s Critique of Pure Reason. A Reader’s Guide, Continuum, London / New York, 2007, 118, 121. 22 “So wird demnach die Antinomie der reinen Vernunft bei ihren kosmologischen Ideen gehoben, dadurch, daß gezeigt wird, sie sei bloß dialektisch und ein Widerstreit eines Scheins, der daher entspringt, daß man die Idee der absoluten Totalität, welche nur als eine Bedingung der Dinge an sich selbst gilt, auf Erscheinungen angewandt hat […]. Man kann aber auch umgekehrt aus dieser Antinomie einen wahren, zwar nicht dogmatischen, aber doch kritischen und doktrinalen Nutzen ziehen: nämlich die transzendentale Idealität der Erscheinungen dadurch indirekt zu beweisen […]” (B 534-535) (AA III, 347). Para uma avaliação desta demonstração indireta do idealismo transcendental, veja-se S. Gardner, Kant and the Critique of Pure Reason, Routledge, London / New York, pp. 111-113, 249-255. Sobre a solução das antinomias, v. ib. pp. 247-248. Como se encontra noutros comentadores, também P. Guyer 20 Antinomias e Sistema em Kant e Hegel Neste sentido, a antinomia tem um lugar central na arquitetônica da razão. Em primeiro lugar, a oposição dialética é, afinal, a condição de possibilidade do sistema da razão transcendental. Além disso, deve observar-se que a própria autonomia da razão como faculdade de princípios depende da dialética, “porque se os fenômenos forem coisas em si mesmas, então não há salvação para a liberdade”23; e, sem liberdade, não se pode falar tampouco de razão autônoma. Assim, em virtude da antinomia dialética da razão, pode-se considerar finalmente completo o plano sistemático da razão pura crítica. A razão não pode conhecer os seus objetos como coisas em si mesmas, mas somente como fenômenos. Mas a contradição em geral ou, segundo Kant, a oposição dialética, só pode ser solucionada por uma distinção de aspectos ou relações sob os quais o objeto aparentemente contraditório é considerado. E, neste caso, o objeto é a própria razão. Assim, a ocorrência da antinomia como um sistema de ilusão a partir de princípios, isto é, como produto da razão, requer a distinção de planos em que o objeto é considerado, uma divisão dos seus objetos que reflete uma divisão da própria razão. Esta distinção de planos resulta na divisão interior da razão em faculdade de ideias e de conceitos, que requer também a sua segunda divisão em sensibilidade e razão. Daqui emerge a conhecida tripartição da razão.24 A contradição da razão só se resolve na medida em que lhe seja atribuído também, além da atividade espontânea que lhe é própria, um momento de passividade, que corresponde à sensibilidade. Ao entendimento fica, por seu lado, reservado o momento da atividade da razão que renuncia, por assim dizer, à ideia de completude incondicionada, de modo a poder realizar a síntese com a sensibilidade. Estas distinções podem ser designadas também como divisão da razão em razão e entendimento e entre razão e sensibilidade. Observa-se aqui que o termo ‘razão’ é utilizado em três sentidos diferentes, para corresponder às diferentes divisões, de tal põe em causa o valor das demonstrações de Kant nas antinomias na Crítica da Razão Pura (cf. P. Guyer, Kant and the Claims of Knowledge, Cambridge U. P., Cambridge, 1987, p. 413). Conclui, no entanto, que “the antinomies do not in fact necessitate the denial that things are really temporal and spacial, though they may certainly show that there are limits on what we could confirm about the spatiality and temporality of things” (ib. p. 387). Crítico da posição de Guyer e mais favorável quanto ao interesse das antinomias no que se refere à fundamentação do idealismo transcendental é Allison (op. cit., pp. 393395). Da perspectiva que assumimos não é tanto a validade formal ou outra das demonstrações, mas o seu significado histórico-filosófico, como momento de redescoberta moderna da dialética e abertura de possibilidades para o pensamento posterior. 23 “denn, sind Erscheinungen Dinge an sich selbst, so ist die Freiheit nicht zu retten” (B 564) (AA III, 366). 24 Para uma apresentação da “signification profonde du plan de la Critique de la raison pure”, pela qual a tripartição da razão deriva directamente das necessidades da crítica à metafísica racionalista, veja-se L. Ferry, Kant. Une lecture des trois «Critiques», Bernard Grasset, Paris, 2006, pp. 30-34. FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 modo que a razão é, nas duas divisões apontadas, simultaneamente o todo e uma parte. Esta plurivocidade não deve ser entendida como um mero equívoco, mas como resultado do carácter orgânico que o seu próprio plano arquitetônico confere à razão. A dupla função do termo – como todo e como parte – deriva da “completude do plano” da obra, completude que “se deve atribuir à natureza de uma razão pura especulativa, que contém uma verdadeira articulação, onde tudo é órgão”.25 Pelas razões enunciadas, os sucessores e continuadores de Kant no Idealismo Alemão, como Fichte ou Hegel, nunca entenderam a tão celebrada limitação da razão crítica como uma simples recuperação do empirismo, como uma ligação contingente entre empirismo e racionalismo, ou como uma necessidade de apelar à experiência para resolver as questões que a razão se mostra incapaz de decidir. Não se trata de uma simples extensão das fontes de conhecimento em relação à razão, nem tampouco de acrescentar à razão, por agregação, outra faculdade, a sensibilidade. A tese defendida é que é a referida “natureza especulativa” e orgânica da razão que produz, a partir do seu próprio plano e ordenação doméstica, as divisões indispensáveis à solução dos seus problemas de conhecimento. Nada pertence à razão (em sentido mais vasto, incluindo a sensibilidade), que não esteja sujeito à mediação autônoma da razão (em sentido estrito, incluindo o entendimento e a faculdade das ideias). Isto quer dizer que ao limitar-se a si própria, a razão, por um lado, situa a posição do objeto numa faculdade limitante, limítrofe, ou exterior, a sensibilidade e, por outro, estabelece uma autorreferência. Assim, em primeiro lugar, pela sua separação em relação à sensibilidade, a razão pode referir-se ao objeto que ela não põe a partir de si mesma. Em segundo lugar, pela sua distinção (ou autodistinção) em relação ao entendimento, a razão se refere e confere princípios ao uso dos seus próprios conceitos. O momento imediato da doação dos objetos é entregue à sensibilidade que, por isso, é intuitiva, ao passo que a razão é somente faculdade da mediação ou, na terminologia que Hegel irá adotar, de automediação. Em geral, da análise da função da antinomia na Crítica da Razão Pura, pode retirar-se a conclusão de que se os fenômenos fossem coisas em si não haveria solução para a contradição da razão ou, mais corretamente, a razão não estaria sujeita à ilusão “der Natur einer reinen spekulativen Vernunft beizumessen ist, die einen wahren Gliederbau enthält, worin alles Organ ist” (B XXXVII) (AA III, 22). 25 Antinomias e Sistema em Kant e Hegel transcendental e, por isso, tão pouco à aparente contradição. Assim, de um modo ou de outro, se não houvesse antinomia, ou oposição dialética, não haveria distinção entre fenômenos e coisas em si e, em consequência, não haveria sistema da razão. A antinomia é, nestas condições, a condição de possibilidade da razão como sistema e, poderá acrescentar-se, da própria função do sujeito no conhecimento. Na medida em que requer a idealidade do espaço e do tempo, o sistema não pode dispensar a oposição dialética. Dando um salto terminológico, e talvez com outra aplicação, poderia formularse a questão nos termos do Fichte tardio, onde se encontra a mesma tese de que o sistema da razão depende de que seja possível conciliar dois sentidos aparentemente opostos da razão. Esta é simultaneamente negada – ou limitada, pelo limite que lhe é imposto como a intuição sensível – e reafirmada – na sua autonomia e sistematicidade integrais, que se manifestam como conceito e ideia da razão: “o inconceitualizável é posto pela negação do conceito; mas, justamente para que possa ser negado, o conceito tem de ser posto”.26 Generalizando, podemos falar de uma estrutura dialética em que a razão estabelece uma relação com a intuição na medida em que o conceito se reafirma na sua própria negação. 4. O projeto hegeliano de uma antinomia generalizada da razão Se a leitura feita até aqui é aceitável segundo os termos da Crítica de Kant, o projeto sistemático de Hegel passa por uma maior explicitação, sistematização e retirada de algumas consequências a partir das possibilidades abertas pela crítica kantiana. Na doutrina das antinomias da razão e da sua ligação com a ordenação do sistema da razão pura segundo Kant, encontra-se uma das chaves mais importantes para a compreensão do sistema de Hegel. Poderíamos enunciá-la muito esquematicamente, e de um modo que não é essencialmente diferente daquilo que se encontrou em Kant, com a tese de que o princípio da intuição é derivado da limitação do conceito. Esta limitação deve obedecer a dois parâmetros principais: (a) a limitação pode ser logicamente tratada como uma negação; e (b) trata-se de uma autolimitação. A tese, apresentada sem a 26 Cf. J. G. Fichte, Die Wissenschaftslehre. 2. Vortrag im Jahre 1804, ed. R. Lauth et al., Felix Meiner, Hamburg, 1986, p. 36: “also wird durch diese Evidenz grade das Unbegreifliche, als Unbegreifliches, und schlechthin nur als Unbegreifliches, und nichts mehr gesetzt; gesetzt durch die Vernichtung des absoluten Begriffes, der eben deßwegen, damit er nur vernichtet werden könne, gesetzt sein muß.” FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 devida mediação, pode parecer tudo menos kantiana. Mas deve-se perguntar se não é autorizada pelo modo como Kant apresenta a diferenciação entre entendimento e sensibilidade na Crítica da Razão Pura. No seu plano da razão, Kant não desenvolve muito diretamente a diferença entre entendimento e sensibilidade. Enuncia principalmente que “os conceitos não pertencem à intuição e à sensibilidade, mas ao pensar e ao entendimento”27 e, em seguida, reforça a mesma ideia: “o entendimento foi acima explicado apenas negativamente: como uma faculdade de conhecimento não-sensível.”28 E, por outro lado, acentua ainda mais esta possibilidade de definir conceito e sensibilidade por meio de uma relação negativa entre os dois ao sublinhar que a divisão da razão, quanto a isto, é exaustiva: “não há, além da intuição, nenhuma outra maneira de conhecer, a não ser por conceitos”.29 Temos, assim, uma diferença por negação de uma faculdade em relação à outra e, por outro lado, também uma exaustividade da determinação, conforme é requerido pelo plano sistemático, onde cada parte deve estar completamente determinada a partir das outras. E ainda, do mesmo modo, a radical heterogeneidade na diferença entre sensibilidade e conceito, que é o ponto essencial da filosofia crítica, deve ser interpretada a partir desta determinação de uma pela negação do outro e inversamente. Como é bem conhecida, a ligação entre negação, antinomia e sistema é o ponto central do pensamento de Hegel. Este compreendeu que, dada a presença inseparável da antinomia no plano arquitetônico da razão, e dado o princípio, ainda kantiano, de que “a razão pura não se ocupa com mais nada a não ser consigo mesma,” 30 nada parece impedir que se considere a intuição como derivada diretamente da própria antinomia da razão. Hegel vai explorar de modo generalizado o fato de que a construção da Crítica da Razão Pura abre a possibilidade de que o limite interno da razão, ou seja, a sua carência de determinação objetiva posta a nu pelas antinomias, possa coincidir com o seu limite externo, isto é, a sua relação com a intuição. A tese geral é a de que a diferença crítica entre entendimento e sensibilidade, enquanto determinação externa da “die Begriffe nicht zur Anschauung und Sinnlichkeit, sondern zum Denken und Verstande gehören” (B 89) (AA III, 83). 28 “Der Verstand wurde oben bloß negativ erklärt, durch ein nichtsinnliches Erkenntnisvermögen” (B 92) (AA III, 85) [sublinhados meus]. 29 “Es gibt aber, außer der Anschauung, keine andere Art zu erkennen, als durch Begriffe” (B 93) (AA III, 85) [sublinhados meus]. 30 “die reine Vernunft in der Tat […] mit nichts als sich selbst beschäftigt ist” (B 708) (AA III, 448). 27 Antinomias e Sistema em Kant e Hegel razão, não é mais do que um reflexo da dialética interna da razão pura, como sua determinação interna. Se para Hegel, seguindo o dito de Espinosa, “toda a determinação é negação”, então a determinação interna não é diferente da determinação externa. Segundo a Ciência da Lógica, em geral “ser-em-si e ser-para-outro são inicialmente diversos; mas o mesmo que algo é em si, ele tem também em si e, inversamente, o que ele é como ser para outro, ele é também em si, – esta é a identidade do ser em si e do ser para outro […]; o algo é, ele mesmo, um e o mesmo de ambos os momentos [i.e. o serem-si e o ser-para-outro], eles estão por isso nele, inseparavelmente”.31 Compreende-se, neste excerto, porque a dialética hegeliana causa resistência a muitos leitores. No entanto, a ideia de que algo é constituído – pelo menos no que toca à sua determinação cognoscitiva – por aquilo que o diferencia das outras coisas, não é uma tese incompreensível. Se esta definição, como uma definição ontológica de base, for aplicada também à razão, pode retirar-se a conclusão de que a razão é a unidade daquilo que ela é em si mesma com o que ela é para o seu outro, outro que, como vimos, só pode ser dado ao conceito como a intuição. Em geral, o sistema de Hegel depende desta ligação da constituição ou determinação interna com a diferenciação ou determinação externa. O ser próprio de cada coisa, seja ela real ou ideal, concreta ou abstrata, é constituído por aquilo que ela não é. Isto tem como consequências, por um lado, a possibilidade de tratar toda a teoria do conhecimento e a própria ontologia, como uma lógica – neste ponto, de acordo ainda com o idealismo kantiano. A negação é um operador que pode ser manipulado inteiramente pelo pensar lógico e dispensa, por isso, o conteúdo material dado pela intuição. Feita, assim, a economia da intuição por meio da sua integração na negação ou na antinomia própria da razão, a lógica transcendental passa a ocupar o domínio inteiro da razão pura. A totalidade do sistema pode ser traçado então por meios exclusivamente lógicos, desde que seja assegurada uma condição principal, a saber, que esta lógica seja, em todas as suas determinações e a cada passo, uma lógica antinômica. Ou seja, a condição para a eliminação da presença da intuição no plano da razão pura é que “Ansichsein und Sein-für-Anderes sind zunächst verschieden; aber daß etwas dasselbe, was es an sich ist, auch an ihm hat und umgekehrt, was es als Sein-für-Anderes ist, auch an sich ist, - dies ist die Identität des Ansichseins und Seins-für-Anderes [ ...]; das Etwas selbst [ist] ein und dasselbe beider Momente [d.h. des Ansichseins und des Sein-für-Anderes], sie also ungetrennt in ihm sind” (Hegel Wissenschaft der Logik. Die Lehre vom Sein (1832), ed. H.-J. Gawoll, Felix Meiner, Hamburg, 1990, p. 116. (Gesammelte Werke 21, p. 108) 31 FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 também a analítica seja eliminada em favor da dialética, a qual passa a ocupar, por fim, a esfera tripartida inteira da razão kantiana. A razão está em si própria dividida, e esta divisão é uma autonegação que gera, em todos os seus momentos, o oposto, isto é, o não-conceitual que, à boa maneira kantiana, corresponde ao real conforme fornecido pela síntese da experiência. Por isso Hegel nos diz, na Introdução à Fenomenologia do Espírito, que a dialética é a experiência da razão. “Este movimento dialético que a consciência faz nela mesma, tanto no seu saber quanto no seu objeto […] é propriamente aquilo a que se chama experiência”.32 Se se deixar neste momento de parte a diferença entre consciência e razão que só se tornará importante um pouco mais abaixo, verifica-se que a dialética ocorre na própria consciência na medida em que se encontra diferenciada entre si mesma (“o seu saber”) e o seu outro (“o seu objeto”). Esta diferenciação que a consciência traz em si é, por um lado, dialética, por outro, denomina-se a experiência. A experiência externa da razão é, também, a sua antinomia interna. A terminologia é sem dúvida distante da kantiana, mas permanece a ideia de base de que a intuição, elemento fundamental da síntese da experiência, não é diferente da oposição interna do eu – seja ele tomado como razão ou como consciência. 5. Consequências sistemáticas da concepção hegeliana da antinomia da razão Como salta à vista, esta posição hegeliana tem algumas consequências que muito a distanciam de Kant. As principais teses da Introdução à Crítica da Razão Pura ficam abaladas por esta reconstituição do sistema. A primeira consequência da posição hegeliana é que, sendo o conteúdo inteiro pertença da dialética lógica, e não um acréscimo ao conceito a partir do diverso da intuição, tem de desaparecer a distinção entre juízos analíticos e sintéticos. A referida analiticidade dos problemas da razão são também, afinal, problemas sintéticos. O conteúdo é acrescentado como resultado da negação dialética de cada conceito e pela unidade conceitual com o seu oposto. Como acima se referiu, o “algo” é a unidade do ser em si com o ser para outro. O novo “Diese dielektische Bewegung, welche das Bewußtsein an ihm selbst, sowohl an seinem Wissen, als in seinem Gegenstände ausübt […] ist eigentlich dasjenige, was Erfahrung genannt wird” (Hegel, Phänomenologie des Geistes, ed. H.-F. Wessels – H. Clairmont, Felix Meiner, Hamburg, 1988, p. 66 (Gesammelte Werke 9, p. 60) 32 Antinomias e Sistema em Kant e Hegel conteúdo conceitual “algo” é gerado pela unidade dos opostos “ser em si” e “ser para outro”. Ou, no conhecido exemplo do começo da Ciência da Lógica, o conteúdo do conceito do “devir” corresponde à unidade dos conceitos opostos de “ser” e de “nada”. Cada conceito é produzido por unidade de determinações opostas. O mesmo se passa na dialética transcendental de Kant, onde o conceito original, por exemplo, uma ideia cosmológica, produz a partir de si, dir-se-ia, analiticamente, conceitos opostos. Por outro lado, o resultado, ou seja, a diferenciação dos objetos em fenômenos e coisas em si, é um resultado que não estava contido no conceito inicial, e por isso pode ser dito sintético, não obstante seja encontrado sem recurso a nenhum diverso da intuição, mas à própria antinomia do conceito. Em geral, segundo Hegel, o conceito resultante de uma divisão dialética de um conceito tanto pode ser considerado analítico como sintético, consoante a perspectiva adotada. “O método do conhecer absoluto é, por isso, analítico […] na medida em que encontra a determinação ulterior do seu universal inicial única e exclusivamente neste […]. Mas é sintético, na medida em que o seu objeto […] se mostra como um outro, por meio da determinidade que ele tem na sua própria imediatez e universalidade. […] Deve chamar-se dialético a este momento do juízo, tanto analítico quanto sintético, pelo qual o universal inicial se determina, a partir de si próprio, como o outro de si mesmo”.33 Posto que é o próprio conceito que se nega antinomicamente e divide, não faz sentido distinguir entre conhecimento ou juízo analítico e sintético. Uma segunda consequência desta concepção é que, não havendo diverso da intuição para ser sintetizado pelo entendimento, mas estando o elemento material da síntese já dado pela dialética, desaparece a diferença entre conhecimento a priori e a posteriori. A propósito da aplicação por Kant desta distinção à crítica da metafísica, Hegel considera que a Ciência da Lógica contém “a verdadeira crítica da metafísica – uma crítica que não a considera segundo as formas abstratas do a priori versus a posteriori, mas no seu conteúdo próprio”.34 Hegel considera que a Ciência da Lógica é “Die Methode des absoluten Erkennens ist insofern analytisch [,...] daß sie die weitere Bestimmung ihres anfänglichen Allgemeinen ganz allein in ihm findet [...]. Sie ist aber ebensosehr synthetisch, indem ihr Gegenstand [...] durch die Bestimmtheit, die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat, als ein Anderes sich zeigt. [...] Dieses sosehr synthetische als analytische Moment des Urteils, wodurch das anfängliche Allgemeine aus ihm selbst, als das Andere seiner sich bestimmt, ist das Dialektische zu nennen” (Hegel, Wissenschaft der Logik. Die Lehre vom Begriff (1816), ed. H.-J. Gawoll, Felix Meiner, Hamburg, 1994, p. 291 (Gesammelte Werke 12, p. 242) 34 “die wahrhafte Kritik derselben,—eine Kritik, die sie nicht nach der abstrakten Form der Apriorität gegen das Aposteriorische, sondern sie selbst in ihrem besondern Inhalte betrachtet” (Hegel, Wissenschaft 33 FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 a verdadeira crítica da metafísica, não porque, como Kant, mostre que as teses desta não têm aplicação a nenhum objeto da experiência possível e carecem, por isso, de qualquer determinação objetiva. Para Hegel, basta a demonstração de que os conceitos da metafísica são contraditórios em si mesmos. Não é necessária a referência à questão da possível existência empírica dos seus objetos, uma vez que a síntese dos princípios e categorias lógicas com o domínio empírico segue vias totalmente diversas da crítica kantiana, como se verá. Entretanto, até que se esclareça esta questão, observe-se que, porquanto a experiência está integrada no conceito, como o seu negativo que produz a sua divisão interna, a diferença entre a priori e a posteriori se torna abstrata. Consultar a experiência ou consultar a razão não são, doravante, fontes opostas de conhecimento. Isto não significa que a experiência desapareça, na sua especificidade própria, como um mero produto da antinomia do conceito e da sua resolução. Hegel defende que ela é, pelo contrário, preservada em todo o seu alcance. A determinação do lugar da experiência na lógica dialética de Hegel depende de uma terceira consequência da posição hegeliana, consequência que já ficou enunciada acima, a saber, a substituição do diverso da sensibilidade pela negação inerente ao conceito. Esta consequência implica a transformação mais profunda do conceito de razão trazida pela perspectiva de Hegel. Segundo este, a experiência, conforme referimos acima, é uma propriedade da consciência, estudada na Fenomenologia do Espírito, a qual é denominada por isso também “ciência da experiência da consciência”, mas não da lógica propriamente dita. A síntese da experiência não está, por isso, referida na Ciência da Lógica, senão a título de exemplo ou acrescento exterior. Os conceitos produzidos pela negação e pela antinomia generalizada da lógica dialética não mais se organizam então de acordo com a sua relação com a apercepção transcendental, nem são regras de síntese do diverso segundo os princípios orientadores da razão. Os conceitos, como é sabido, organizamse, segundo Hegel, numa série dialética de desenvolvimento, onde uns derivam dos outros. Eles são já parte do conteúdo que a experiência da consciência encontrará também na natureza física e no espírito, tomam parte na síntese do conhecimento empírico, mas isto não pertence ainda ao âmbito da lógica. Em todos os domínios da vigência dos seus princípios, seja a nível ideal, real empírico ou outro, a razão não mais pode ser uma estrutura completa de síntese de experiência, mas é, segundo Hegel, um der Logik. Die Lehre vom Sein (1812), ed. H.-J. Gawoll, Felix Meiner, Hamburg, 1990, p. 51 (Gesammelte Werke 21, p. 49). Antinomias e Sistema em Kant e Hegel processo de desenvolvimento de conteúdo real a partir de conceitos mais abstratos, ou de realidades mais complexas a partir das mais simples. Se, como Kant, se definir o significado de um conceito como a sua “relação ao objeto”,35 então o significado, segundo a concepção hegeliana, é a negação do conceito na sua idealidade em geral, porque é esta negação da pura idealidade do conceito que constitui a relação ao objeto. A conclusão da Lógica hegeliana é a tese de que a realidade pode ser objeto da filosofia uma vez negada, por razões da sua antinomia interna, toda a esfera ideal do conceito. O real, tratado na Filosofia da Natureza e na Filosofia do Espírito sucede então, na ordenação da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, à ideia absoluta com a qual culmina a Ciência da Lógica. O real é a “exterioridade do conceito” e a sua ordenação reproduz e reconduz, pela dialética interna dessa mesma exterioridade, a razão até si mesma nas diferentes dimensões que a realidade pode assumir. 6. Conclusão histórico-filosófica Como conclusão, gostaria de sugerir que a interpretação da antinomia de Kant como estreitamente ligada à arquitetônica do sistema teve consequências históricofilosóficas importantes. Kant não considerou a antinomia, evidentemente, conforme diferentes passagens atestam, como uma ameaça à construção do sistema da razão pura crítico-transcendental. Pelo contrário. Encarou-a, como tentei mostrar, como uma condição de possibilidade do sistema. Sem a idealidade dos fenômenos, que ela implica, não haveria universalidade e necessidade, porquanto só a síntese da experiência confere ao objeto as características necessárias à universalidade e necessidade das ciências da natureza. Entendeu o sistema como um “sistema de investigação”, e até mesmo que a crítica lhe é tão essencial que dela depende a própria “existência da razão”.36 Os seus continuadores julgaram dever retirar conclusões mais radicais sobre o significado da antinomia da razão. Entenderam-na, a saber, como a indicação da necessidade ou da inevitabilidade de integrar o negativo, ou a negatividade na razão. A chamada “tripla completação 35 36 do Idealismo Alemão” “Beziehung auf Objekte” (B 185) (AA III, 138). “Existenz der Vernunft” (B 766). (“dreifache Vollendung des Deutschen FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Idealismus”37) corresponde a outras tantas vias de integração do negativo numa razão de tipo pós-metafísico. Fichte tentou levar a antinomia da razão até às suas últimas consequências, demonstrando que a solução da contradição só pode ser paga ao preço da incompletude do sistema ou, inversamente, que a tentativa de uma completação do sistema é sempre contraditória. Hegel construiu uma razão capaz de assumir em si toda a carga da negatividade do real, e de conduzi-la a uma permanente reconciliação promovida pela razão. Schelling, por fim, encontrou como fundamento da existência da razão uma irracionalidade que o conduziu aos caminhos de uma mitologia da razão. Depois das antinomias, o negativo passou a fazer parte da razão e não mais a abandonou. Daqui até à dialética da “Aufklärung” e à denúncia generalizada da razão como o seu oposto, a dominação, foi um passo. 37 Segundo o título e a interpretação do Idealismo Alemão de W. Janke, Die dreifache Vollendung des Deutschen Iodealismus. Schelling, Hegel und Fichtes ungeschriebene Lehre, Rodopi, Amsterdam – New York, 2009. Sobre a interpretação geral do Idealsmo Alemão, cf. pp. 8-24. Maquiavel e as relações entre ética e política Maquiavel e as relações entre ética e política Marcia do Amaral1 Resumo O objetivo deste artigo é revisitar uma discussão muito em voga nos últimos tempos: as relações entre a Ética e a Política. Esta discussão se dará no âmbito da teoria maquiaveliana. O realismo anti-utopista, a rejeição à Ética Cristã, a constituição de uma ética laica, o estabelecimento de um novo conceito de "virtu", a subordinação da ética à política, serão assuntos tratados aqui. Palavras-chave: Maquiavel. Ética. Política. Virtu. Abstract The purpose of this article is to revisit a discussion very in vogue in recent times: the relationship between Ethics and Politics. This discussion will take place in the context of the Machiavellian theory. The anti-utopian realism, rejection of the Christian Ethics, the constitution of a secular ethics, the establishing of a new concept of "virtu", the subordination of ethics to politics are subjects that will be addressed here. Keywords: Machiavelli. Ethical. Political. Virtu. Um Estado cujo povo não tenha sido corrompido é fácil de governar; onde existe a igualdade não se pode instituir a monarquia, e onde ela falta não se pode fundar uma república. (Comentários, I, 55) 1 Marcia do Amaral é Professora Doutora adjunta da UERJ. E-mail: amaral.marcia@uol.com.br AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 1. Aviso prévio O pensamento maquiaveliano é, sem dúvida alguma, no âmbito da teoria política, o que provocou mais reações de protestos ao longo do tempo. Durante séculos e por inúmeras pessoas, foi difundido o mito do maquiavelismo enquanto atitude imoral, traiçoeira, astuciosa, que devia a todo custo ser repudiada. Maquiavel, entre outros qualificativos, foi tachado de ferrenho defensor da monarquia absoluta, de ateu, de pagão e de fazer a apologia do crime. Não só suas ideias foram condenadas, mas esta condenação recaiu também sobre sua pessoa. Em nossa linguagem comum, por exemplo, é freqüente o uso da expressão "maquiavélico(a)" como atributo daquelas pessoas cínicas, ardilosas, traiçoeiras, que para atingir seus fins se valem dos artifícios da mentira e da má-fé. Chegou-se até a atribuir, de uma maneira infundada, a Maquiavel a frase: "Os fins justificam os meios". A lenda do perverso maquiavelismo atingiu tal magnitude que, na Inglaterra foi cunhada a expressão "Old Nick" (velho Nick), para designar o próprio diabo, numa clara referência ao primeiro nome de Maquiavel. Em síntese, o maquiavelismo tornou-se a representação mais acabada do mal e o mais intrigante é a força deste mito que já dura quatro séculos.2 Podemos dizer que um dos motivos pelos quais isto aconteceu deve-se ao fato de que Maquiavel faz parte do grupo de pensadores de quem todo mundo já ouviu falar, mas que ninguém conhece efetivamente o teor de suas obras. O agravante, para o pensamento maquiaveliano, é que a maioria dos que ouviram falar nele, mas não o conhecem cultivam um pré-julgamento negativo acerca de suas ideias, cuja origem é, obviamente o senso comum, ou mais pontuadamente, a leitura de uma única obra do autor, a mais polêmica, O Príncipe. A criação desta mística perversa de justificador de arbitrariedades e violências que, aos poucos, deformou para sempre o pensamento maquiaveliano resulta ou do desconhecimento acerca do todo de sua obra ou de uma leitura descontextualizada da mesma. Sabemos muito bem que toda fúria crítica que recai sobre o pensamento maquiaveliano advém da leitura e interpretação d'O Príncipe. Os comentadores de Maquiavel são implacáveis nas retaliações que fazem ao autor d'O Príncipe, mas, 2 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Maquiavel. A Lógica da Força. São Paulo, Ed. Moderna, 1993. (Coleção Logos), p. 9. Maquiavel e as relações entre ética e política muitos deles se "esquecem" de dar um passo adiante, no sentido de examinar as outras obras do autor. O que fica registrado na História é o Maquiavel do imoralismo político d'O Príncipe, um escândalo. Mas, o fato curioso sobre esta lenda e que passa completamente desapercebido à grande maioria dos detratores de Maquiavel, é que quando da primeira apresentação ao público d'O Príncipe, nenhum escândalo aconteceu. Nenhuma reprovação pública, debate público ou mesmo um protesto formal. Cópias manuscritas desta obra circularam entre estudiosos e amigos de Maquiavel sem promoverem maiores reações, o que nos leva a crer que ela estava em perfeita consonância com o tipo de prática política da época. Mas, esta situação inicial que poderíamos, até certo ponto, qualificar de desinteresse pela obra3 se transformará totalmente. Denúncias feitas pelo Cardeal inglês Reginald Pole, horrorizado com a péssima influência das ideias de Maquiavel sobre Thomas Cromwell (chanceler da Inglaterra no reinado de Henrique VIII), acusam o primeiro de ateísmo, satanismo, crueldade e despotismo. Aí começa a desfiguração do pensamento maquiaveliano, que sofre ainda com os ataques dos jesuítas que, interessados em recolocar o Estado sob a autoridade da Igreja, convencem o Papa Paulo IV a colocar as obras de Maquiavel no índex (1559)4. Sobre as críticas mordazes dirigidas à Maquiavel, o que se pode observar é que, de uma maneira geral, elas se baseiam exclusivamente na leitura d'O Príncipe, e uma leitura feita, quase sempre de má-fé, tendenciosa, recortando frases do texto para citálas descontextualizadamente, deturpando as ideias do autor. Estas tentativas sistemáticas de desvirtuar as ideias de Maquiavel e de denegrir sua própria pessoa vêm até o século XIX. A partir daí o que se tem procurado não é nem denegri-lo nem louvá-lo, mas sim, avaliar criticamente sua obra, examinando-a em sua inteireza e não apenas um único tratado. Além disso, há toda uma preocupação em contextualizá-la historicamente, pois ela está calcada não só na História Antiga de Roma, completamente vasculhada pelo autor, mas também na observação empírica do momento histórico por ele vivido. 3 "O próprio Maquiavel, provavelmente, dele se desinteressara, desapontado com a indiferença com que 'O Príncipe' teria sido recebido por Lourenço de Médici." ESCOREL, Lauro. Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel. Brasília, Ed. UnB., 1979, p. 61. Lembrando que Maquiavel dedicou esta obra à Lourenço. 4 O Papa inclui as obras de Maquiavel no índex em 1559 e essa decisão é confirmada no Concílio de Trento em 1564. AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Mas, quais seriam então, na própria obra de Maquiavel, as características que abririam espaço para tanta polêmica, para tamanha reação opositora? 2. Características do pensamento maquiaveliano Essas reações de repulsa com relação às teses de Maquiavel podem ser explicadas a partir da compreensão de duas características essenciais, que marcam todo seu pensamento e que vem na contracorrente do pensamento antigo e medieval: O realismo e o estabelecimento de uma ética laica. O realismo extremo impresso em toda sua obra rompe com uma tradição oriunda ainda da Grécia Antiga – a da construção de utopias políticas5 – , para descrever não como o homem deve agir, ou como deve ser o governo, mas sim, como o homem age de fato e como, de fato, é o governo. Para tanto, Maquiavel observa os fatos, atém-se ao estudo histórico principalmente da Antigüidade, sobretudo da Roma Antiga. Esse levantamento histórico leva o autor a uma constatação bastante radical de que os homens sempre agiram pela via da corrupção e da violência. Antes mesmo de Hobbes, que afirmava que, em estado de natureza o homem é mau, Maquiavel já constatava a propensão do homem ao mal, ao erro e, por isso, ao analisar a ação política sua opção foi pela descrição da verdade efetiva6, não se preocupando em ocultar o que se faz e não se costuma dizer. Vale ressaltar que um dos elementos que confere unidade à obra maquiaveliana é sua concepção absolutamente pessimista do homem: "... é necessário que quem estabelece a forma de um Estado e promulga as suas leis, parta do princípio de que todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade sempre que haja ocasião."7 Para Maquiavel, ao contrário do que afirmava Aristóteles, o homem não é um animal social. Seus instintos são claramente antissociais: egoísta, ambicioso, invejoso, traiçoeiro, feroz e vingativo, o homem só pratica o bem ou se submete à lei movido pela necessidade de sobrevivência. 5 Como exemplos de utopias políticas temos "A República " de Platão, "A Cidade de Deus" de Santo Agostinho, "A Cidade do Sol" de Thomas Campanella, "Utopia" de Thomas More, "A Nova Atlântida" de Bacon, etc. 6 Para bem compreender o pensamento maquiaveliano devemos nos reportar ao primeiro parágrafo do capítulo XV d'O Príncipe. 7 MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília, Ed. UnB., 1982, Livro I, Cap. III, p.29. Maquiavel e as relações entre ética e política Sem dúvida alguma a postura realista, anti-utopista de toda a obra maquiaveliana, preocupada em apresentar a "verittà effettuale delle cose", que o leva a considerar o homem naquilo que ele realmente é, tal qual se apresenta, rompe com toda a tradição do pensamento medieval cristão. A segunda característica marcante do pensamento maquiaveliano é a rejeição completa ao legado ético cristão da Medievalidade e a constituição de uma moral laica de base naturalista. Isto vai nos levar à secularização da política, movimento de ruptura com o pensamento político medieval que vinculava política à religião, à Igreja. É, por romper estes laços da política com a religião que Maquiavel entrou para a história como o fundador da ciência política. Foi ele o primeiro pensador a tomar a política e analisá-la como uma categoria autônoma. Este é o ponto crucial do pensamento maquiaveliano, pois deu ensejo ao surgimento de outro problema: o problema das relações entre ética e política, em torno do qual tradicionalmente gira a controvérsia histórica entre os defensores de Maquiavel e seus adversários. Do ponto de vista ético, Maquiavel foi tachado por seus detratores, de defensor do imoralismo político posto a serviço do despotismo, posteriormente este atributo foi modificado e ele passou a ser considerado um amoralista, por considerarem alguns, que o problema moral não tinha lugar na sua concepção de política. Maquiavel seria o símbolo da política pura. Mas, se bem observarmos o Maquiavel d'O Príncipe e principalmente o Maquiavel dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio8, podemos claramente perceber que há uma ética imbrincada no pensamento político maquiaveliano, só que esta é uma ética laica segundo a qual as ações individuais não são julgadas pelo seu coeficiente intrínseco de moralidade, mas pelo efeito político que podem produzir diante de determinada situação de fato. Esta é uma postura muitíssimo diferente, é uma postura de ruptura com a tradição da moral cristã que se apóia em uma concepção de bem e mal, de justo e injusto, cujos conteúdos preexistem já fixados, não dependendo do exame das situações dadas. A ética proposta por Maquiavel não admite a existência de uma hierarquia de valores a priori, a partir dos quais nossas ações serão julgadas. A nova ética analisa as 8 Em português esta obra, Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, aparece com o título Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 ações tendo em vista suas consequências, seus resultados. A ação política será julgada em função de sua utilidade para a comunidade, ou seja, o critério para a avaliação da ação política é sua utilidade para o grupo social. Desta forma, será moral toda ação que visar o bem da comunidade. Aqui surge um grande problema: A ética, desta maneira constituída, ou seja, estabelecida na prática, a partir das relações efetivas entre os homens, de certa forma, pode vir a legitimar o recurso ao mal, à violência, à guerra, à tortura, à morte, etc. para resguardar a harmonia e o bem estar da sociedade. Daí as inúmeras críticas desfavoráveis ao pensamento de Maquiavel. Mas, estas críticas, que muitas vezes embaçam o verdadeiro sentido deste pensamento, chegando a deformarlhe o conteúdo, o fazem desvinculando-o tanto da vida pessoal de seu autor, quanto do cenário social, político e econômico da Europa, mais precisamente da Itália dos séculos XV e XVI em que ele viveu. Temos que ter presente que Maquiavel é um político9 que escreve para responder aos problemas políticos do momento histórico em que vive, numa Itália completamente fracionada em pequenos principados governados tiranicamente por casas reinantes sem nenhuma tradição dinástica ou ainda de direitos contestáveis, que viviam em guerra internamente e que ainda eram completamente vulneráveis a invasões externas. Esse panorama fluido e mutável, de um país dividido em múltiplos Estados, contrasta com a situação da maior parte dos países da Europa ocidental, já unificados10. Esta situação política de ilegitimidade do poder, fracionamento territorial e político, ausência de um Estado central, vulnerabilidade externa, instabilidade permanente, desordem é o problema para o qual Maquiavel buscará soluções n'O Príncipe. Sua preocupação central é com a constituição de um governo forte capaz de unificar a Itália, daí O Príncipe apresentar-se como um verdadeiro manual para governantes, pois contém rememoramentos de como conquistar Estados e conservá-los sob seu domínio. Devemos lembrar que estas lições ou estes conselhos de Maquiavel, que podem causar escândalo no círculo familiar, eram direcionados aos governantes, e ele nada mais fazia do que lembrar-lhes os processos já em uso corrente e corroborados pela tradição. 9 Maquiavel foi Segundo Chanceler da República de Florença. Império Germânico, França e Espanha que são ameaça constante aos frágeis principados italianos, disputando a posse de vários de seus territórios. 10 Maquiavel e as relações entre ética e política Se lembrarmos, [...], que tais governantes eram os Médicis, os Borgia, os Orsini, os Papas Alexandre e Júlio então teremos justificado o próprio Maquiavel, que certamente só pôs em letra de forma o que aprendera nos exemplos de tais homens, e da sua experiência na Chancelaria de Florença.11 Maquiavel, no entanto, não é autor de uma só obra. Se n'O Príncipe ele expõe suas ideias de cunho eminentemente absolutistas, defendendo a constituição de um Estado monárquico-unitário forte, cujo poder estaria concentrado nas mãos de um déspota, nos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio e no Discurso sobre a Reforma do Estado de Florença podemos nos deparar com outro Maquiavel. Um Maquiavel republicano, defensor da constituição de um governo com a participação efetiva do povo, ao qual considera mais sábio, mais prudente e mais constante que o príncipe. A figura do Maquiavel defensor do despotismo é bem conhecida, mas a figura do Maquiavel republicano, foi quase que completamente ofuscada pela repercussão d'O Príncipe. Mas, podemos dizer que há sim dois "Maquiavéis" e a explicação para a existência de um Maquiavel monarquista e um Maquiavel republicano é de certa forma muito simples. Maquiavel defende a Monarquia ou Principado como forma de governo adequada ao momento de fundação de um novo Estado ou adequada ao momento de reorganização de um Estado decadente, que precisa da liderança de um governante firme e decidido que conduza o povo.12 A forma Republicana, no entanto é a mais adequada ao momento posterior da fundação ou reestruturação do Estado, pois o governo que é feito com a participação do povo tem a chance de errar menos e, um povo livre da tirania é capaz de encontrar forças e motivação para conquistar o mundo. Por isso, a melhor forma de governo para Maquiavel, ao contrário do que a maioria de seus detratores pensa é a república. 3. 11 Relações entre ética e política Guimarães, Torrieri in MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo, Hemus Livraria Ed. Ltda., s.d., p. 7. Maquiavel estabelece como axioma fundamental de seu pensamento a presença, à origem de todo Estado, de uma figura do "fondatore" ou "ordinatore", ao qual incumbe a missão de dar "forma" à "matéria" que o povo representa. ESCOREL, L. Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1979, p.86. 12 AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Como já foi dito anteriormente, a grande polêmica que envolve o pensamento maquiaveliano, diz respeito às relações entre ética e política estabelecidas pelo autor. Maquiavel, como um típico homem do Renascimento, construiu sua filosofia política partindo da rejeição completa ao legado ético cristão, formulando suas idéias de uma maneira absolutamente antitética à tradição medieval. A filosofia cristã, legada pela Idade Média ao Renascimento, concebia o homem como um ser temporal, de vocação social, dotado, porém, de uma destinação extraterrena, isto é, como um ser que vive naturalmente em sociedade, subordinado à lei positiva, mais que deve, antes de mais nada, obedecer à lei natural, colocada acima da própria autoridade do Estado, e que este não deve contrariar, pois ela emana da própria lei eterna.13 Maquiavel não reconhece esta subordinação do Estado a valores espirituais, valores transcendentes. Não reconhece também que o homem possua direitos naturais, anteriores à constituição da sociedade. Ao contrário, em estado de natureza, o homem vive nivelado aos animais, desconhecendo quaisquer noções de bem ou de mal, de justiça ou injustiça. Desta forma, antecipando a filosofia política de Hobbes, Maquiavel afirma que a moral e a justiça não preexistem ao Estado, mas dele resultam em obediência às condições e exigências sociológicas. Tanto a moral quanto a justiça são subprodutos sociais, nascidos do instinto de conservação e da necessidade do Estado de manter a ordem social. As normas éticas, como também as leis positivas, a educação e a religião, são meios a que recorre o Estado para instaurar coercitivamente bons costumes na sociedade, para dirigir no sentido do bem comum o egoísmo individual ou para dar forma de moralidade e justiça à fundamental amoralidade da maioria.14 O que se verifica, portanto, em Maquiavel é que não há nenhum antagonismo entre moral e política e, também não há nenhuma distinção entre moral privada e moral pública, pois ambas coincidem num mesmo objetivo, que é o bem da comunidade, ou 13 14 ESCOREL, Lauro. Op. Cit. , p. 93. Idem, ibdem. , p. 95. Maquiavel e as relações entre ética e política pelo menos o bem do príncipe, o que significa o bem do Estado. Os problemas entre moral e política só surgem quando determinados objetivos políticos exigem a adoção de medidas condenáveis pela consciência moral, em nome de valores ou princípios que transcendem a jurisdição temporal do Estado. Para entendermos melhor esta questão temos que observar a distinção apresentada pelo autor entre "ação virtuosa" e "ação moral". Ação moral é toda ação manifestamente útil à comunidade, ação imoral é aquela que só tem em vista a satisfação de interesses privados e egoísticos. A virtú, ou a ação virtuosa não consiste, de modo algum, em agir segundo uma ideia abstrata de bem, desinteressando-se de suas repercussões práticas. A virtú consiste em saber aproveitar a occasione proporcionada pela "fortuna", avaliando, de uma maneira consciente a situação e as possibilidades de ação, para em seguida escolher os meios mais adequados para transformar em realidade a decisão tomada. Estamos diante de um novo conceito de virtú que nada tem em comum com o conceito medieval de submissão do homem à vontade de Deus, renúncia ao mundo terreno e glorificação do mundo contemplativo. Segundo Maquiavel, o homem virtuoso é aquele que enfrenta os maiores perigos, suporta e vence as adversidades. A virtú tem o direito de lançar mão de todas as armas possíveis para sobrepujar a "fortuna" (destino). O homem virtuoso não é aquele que se submete a razões superiores ou que confia à uma justiça abstrata ou a Deus ou ainda às suas orações a solução dos conflitos que trava com o mundo, mas é aquele que ajusta as suas ações, que observa as suas capacidades e age com obstinação. Será bem sucedido aquele que conseguir agir segundo as exigências do momento, segundo as peculiaridades de cada situação de fato. Ora com prudência, ora com ímpeto, ora com violência, ora com arte, ora com paciência, ora com impaciência. Em outras palavras, o indivíduo deve agir segundo a necessidade, que em última instância é criada pelos fatos concretos. Para Maquiavel, não há uma conduta a priori boa ou a priori má. Ao encarar a política como uma técnica, o julgamento das ações do governante só pode se dar a posteriori, em função de sua eficácia na prática, seja ela conquistar o poder, conservar o poder ou promover o bem coletivo. O conceito maquiaveliano de virtú prescinde, de modo absoluto, de qualquer critério moral de avaliação do comportamento humano. O que importa para ele é AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 observar se determinada ação era adequada à situação dada e se ela alcançou a finalidade desejada. Em última instância, a virtú pode ser considerada como a capacidade pessoal de afirmar nossa liberdade frente à fortuna, frente ao destino. Não obstante, nada impede que a ação virtuosa possa também revestir-se de moralidade e, para tanto, seu autor deve agir eficazmente segundo exigir a ocasião, mas visando a realizar o bem da comunidade e não o prazer egoísta de seu bem pessoal. Apesar de ser um pessimista no que diz respeito ao que seja o ser humano, Maquiavel acredita na existência de indivíduos dotados de uma virtú superior, capazes de agir moralmente, isto é, indivíduos capazes de sobrepor o bem comum ao próprio bem, consagrando-se integralmente ao bem da pátria.15 Lembrando, porém, que a esmagadora maioria dos homens não tem outro propósito em mente senão a satisfação de seus interesses particulares, desprovida que é de virtú e de moralidade. Daí a necessidade da lei (e das sanções) como elemento educativo da sociedade, fazendo com que o próprio indivíduo sacrifique seu egoísmo em função da observância dos interesses do grupo social a que pertence, a ponto de conceber como bem próprio o bem coletivo. Em síntese, a concepção moral maquiaveliana não admite a existência de um Bem ou um Mal preexistentes a definir os atos humanos, mas admite a existência de atos bons ou maus conforme observem ou não o bem da coletividade. Portanto, a Moral em Maquiavel perde sua autonomia e sua transcendência e é integralmente absorvida pela Política. A antinomia que, desde a Antigüidade existiu entre Moral e Política resolveu-se a favor desta última. Maquiavel concebe a atividade política como uma atividade completamente situada fora dos limites da Moral, que tem leis e regras próprias. Ao fazer isto, ele corta para sempre as amarras de subordinação teológica e moral, com que a Idade Média atara o poder temporal e recusa-se a reconhecer qualquer valor superior à autoridade do Estado, fonte suprema da justiça e da moral. 4. 15 O preço da inovação ESCOREL, Lauro. Op. Cit., p. 99. Maquiavel e as relações entre ética e política A concepção maquiaveliana da política como uma atividade autônoma e soberana, completamente afastada das questões religiosas, avessa e independente com relação à tradição da moral cristã, criadora de sua própria ética empírica e utilitarista, cujo valor de virtude pode ser resumido na frase: agir segundo as exigências do momento, utilizando-se de quaisquer recursos que concorram, com eficácia para a manutenção do bem coletivo; por estabelecer uma completa separação entre Política e Ética, privilegiando a primeira e tomando a segunda como seu subproduto, apresenta-se, sem sombra de dúvida, como arrojada inovação frente ao pensamento político anterior. Por assim ser, angaria inúmeros opositores. A forte oposição teórica ao pensamento maquiaveliano se sustenta exatamente no princípio de que o homem, em sua natureza, possui valores extra políticos, e que estes valores são de uma hierarquia espiritual superior e por isso, a política e, em conseqüência o Estado devem se submeter a estes critérios éticos que são absolutos e transcendentes.16 Estamos diante da histórica contraposição existente entre uma ética de valores transcendentes e as exigências da prática política. E, para melhor compreendermos este dualismo, assim como os dilemas de consciência do homem íntegro temos que ter presente o fato de que coexistem em nós, tanto as imposições práticas da vida do Estado, e isto quer dizer, tudo que envolva a conquista e manutenção do poder, quanto os valores transcendentes da ética cristã da salvação, que cobra do homem o sacrifício de todas as vantagens mundanas e das glórias terrenas, cujo preço seja a violação de quaisquer desses valores transcendentes. Ficamos assim divididos entre os imperativos da ética cristã e as exigências da competição política ou da defesa do Estado. Observando a postura dos governantes dos vários principados nos quais a Itália estava dividida e observando a postura corrompida dos mais altos mandatários da Igreja, Maquiavel, de uma maneira radical, registra o fim do antagonismo entre Ética e Política, ao romper, em definitivo, com uma ética de valores transcendentes à realidade histórica do Estado. Ética esta que se imporia ao governante, que, ou bem governaria segundo as exigências do mundo concreto, ou bem obedeceria aos imperativos de valores transcendentes. Já que muitas vezes, agir segundo o imperativo ético leva ao insucesso político, pois a atividade política, por sua dinâmica, "impõe aos que a praticam uma maleabilidade adequada aos imperativos da realidade histórica, uma capacidade de 16 Ver ESCOREL, Lauro. Op. Cit. p. 102. AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 adaptação e improvisação proporcional às variações freqüentes da situação de fato a enfrentar."17 Observando de perto a realidade da prática política de seu tempo, Maquiavel descreve os fatos. Opta por não ser um homem cindido. E isto torna seu pensamento inaceitável para todos, ou pelo menos para quase todos. O compromisso com a verdade, com a descrição da prática política naquilo que ela é, sem maquiagem, talvez tenha mostrado a Maquiavel a impossibilidade de equacionar os problemas advindos da relação entre uma ética constituída "a priori" e a prática política. Talvez Maquiavel tenha percebido que, em se tratando de prática política, a postulação de valores éticos constituídos "a priorísticamente" e, neste caso, valores éticos cristãos, só dificultam as tomadas de decisões por parte do governante. Mas isto é pura especulação, o fato é que o pensamento maquiaveliano reflete, de uma maneira extremamente fiel as tendências fundamentais de sua época: a formação embrionária, através da constituição dos principados italianos, das monarquias absolutas, que postulavam a realização da prática política de característica secular e a decadência da moral tradicional, cujo bastião era a Igreja Católica, corrompida em seus valores, a mercê de críticas violentas quanto às suas práticas. Apesar de ter sido extremamente criticado durante quatro séculos, o mérito de Maquiavel, sem dúvida alguma, encontra-se no fato de ter, de uma maneira bastante aguda, posto a nu, a prática política. O fato de haver estabelecido uma discussão sobre o problema político sem mascará-lo através de subterfúgios doutrinários ou mesmo através de construção utópica, fez com que Maquiavel lançasse as bases da Ciência Política Moderna. Os críticos e opositores de Maquiavel afirmam que seu erro fundamental encontra-se na não-postulação de um substrato ético transcendente a regular a conduta humana, mas aos nossos olhos, a postulação de uma única ética, aquela vinculada às necessidades do Estado, é tão absurda quanto a aceitação da existência de duas éticas: uma que rege a vida privada e outra que rege a vida pública. A postura maquiaveliana é radical? Sim, é uma postura extremamente radical, mas talvez seja ela menos hipócrita do que as postulações que defendem a tese da existência de uma ética a reger a vida do homem comum e outra ética a reger a vida do homem público, do governante. 17 ESCOREL, Lauro. Op. Cit. p. 104. Maquiavel e as relações entre ética e política Bibliografia ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Maquiavel. A Lógica da Força. São Paulo: Ed. Moderna, 1993, (Coleção Logos). ESCOREL, Lauro. Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1979. GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 3ª ed., 1978. HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Lisboa: Editorial Presença Ltda., 1982. LARIVAILLE, Paul. A Itália no tempo de Maquiavel: Florença e Roma. Coleção A Vida Cotidiana. São Paulo: Companhia da Letras, 1988. MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982. ___________________ O Príncipe. São Paulo: Hemus Livraria Editora Ltda., s.d. QUIRINO, Célia Galvão e SOUZA, M. Tereza Sadeck R. de Souza. (org.). O Pensamento Político Clássico. São Paulo: T. A. Queiroz Editor Ltda., 1980. AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea Georgia Cristina Amitrano1 Resumo O presente artigo aponta para a possibilidade de se encontrar na arte e no artista um exílio em face da minimização da condição humana, entendendo tal minimização como consequência de uma certa conceituação de homem, advinda, em boa parte, dos fenômenos ético-políticos que caracterizam nossos tempos sombrios. Em face do quadro desenhado, pretendo observar as atitudes estéticas – para além da arte formal ou meramente representativa — em uma análise mais enfática do espaço ético e político no qual determinados movimentos estéticos e certos artistas estão inseridos, partindo de duas pressuposições contíguas: (i) por um lado, uma das funções da obra de arte estaria diretamente relacionada a um agir voltado à ação política e à ética; (ii) por outro, a expressão artística emergiria como uma estrutura de linguagem capaz de desempenhar uma determinada função criadora, que envolve tanto a sua originalidade quanto as relações entre homem e mundo, homem e homem. Formulando um diálogo entre diferentes autores, aponto, portanto, para a criação como uma possibilidade de recusa da minimização da condição humana e, consequentemente, como uma possibilidade de resistência frente às barbáries contemporâneas. Palavras-chave: ‘ético político’; ‘condição humana’; transgressão; estética; ‘arte engajada’. Abstract In this paper, it aims points to the possibility of finding in the art and artist an exile for minimization of the human condition, considering it as consequence by certain conception of man, which arises in large part by ethical-political phenomena that characterize our dark times. In face of the drew framework, I intend to observe the aesthetic attitudes — beyond formal art or art merely representative — since a more emphatic analyze of ethical and political space in which some aesthetics movements and artists are included, grounding on two contiguous assumptions that are: (i) on the one hand, one of the functions of the work of art is directly related to an act focused on political and ethical action; (ii) on the other, the artistic expression arises as an language framework enable to performing certain creative task, which involves both its originality and the relationships between man and world, man and man. By formulating a dialogue between different authors, I point out to the creation as a possibility of refuse of minimization of human condition and furthermore as a possibility of resistance against contemporary barbarism. 1 Georgia Cristina Amitrano é Professora Doutora do Instituto. de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia/(UFU) e professora do PPGFIL-UFU. E-mail:georgiaamitrano@gmail.com A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea Key-Words: ‘ethical-political’; ‘human condition’; transgression; aesthetic; ‘engaged art’. Introdução O século XX é marcado por um pensamento pautado na certeza de que o universo brota cada vez mais manifestamente como ordem, liberdade e, consequentemente, como ‘consciência de si’. Ora, esse manifestar do universo é concebido, pelo homem, como um progresso. Em outros termos, haveria um caráter evolutivo que direcionaria a humanidade a um conhecimento pleno de si e, consequentemente, à total liberdade. Tal progresso apontado pode ser entendido como o ‘progresso do Espírito’ apregoado por Hegel, o qual se apresenta como um contínuo que se concluirá atravessando a ‘história dos homens’. A filosofia, destarte, emerge como o saber supremo, aquele que conjuga todos os demais, totalizando em si todas as obras. Como destaca Hegel, é nessa filosofia puramente imanentista, na qual a história tudo ensina, que o Espírito Objetivo se realiza. Ademais, é preciso compreender que a história não se fecha em sua circunscrição; antes, se realiza como progresso das civilizações, do homem e do indivíduo. O ‘vir-a-ser’ das diferentes aventuras humanas não é senão a ‘história do Espírito universal’, que se desenvolve e se realiza por etapas contínuas até alcançar a plena posse e ‘consciência de si mesmo’. Este progresso intensificado faz crer que o homem saiu de sua minoridade e que agora — dono de si — é capaz de construir um lugar digno no qual sua condição humana se realize cabalmente. Contudo, o referido progresso intensificado parece se encontrar em um terrível paradoxo, haja vista o fato de que, ao se racionalizar o mundo, fixou-se um término para a existência no fim do devir histórico, como se realmente houvesse fim. A profecia de uma razão histórica gerou uma espécie de ‘idolatria do real’. Esta ‘paixão da razão’ excomungou a criatividade humana, afastando o homem de seu processo criador. Encerrada no acontecimento, a ‘idolatria do real’ aprisiona o mundo na história, ao mesmo tempo em que o guia. É a um só tempo pedagógica e conquistadora, soerguendo-se em um império ideológico no qual a profecia da razão histórica e da liberdade humana acabam soterradas sob o manto do ‘princípio de autoridade’. AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Nesse sentido, a intensificação do progresso, deste crescente da história acabou vinculada a uma igualmente intensificada ilusão de autonomia e, consequentemente, a uma ausência de liberdade real. A civilização ocidental conheceu, nesses últimos cento e cinquenta anos, não uma ‘ratio evoluída’ que trouxe consigo a felicidade humana; antes, deparou-se com o domínio e a hostilidade do homem para com o homem, os quais progressivamente têm se ampliado em eficiência. Em outros termos, a implementação irreprimida e legitimada das conquistas da lógica e de uma filosofia amparada unicamente na racionalidade sistêmica nem se apresentam como uma regressão incidental na senda do progresso, nem como uma datada “epidemia” da violência que exige a vigilância constante sobre nossa liberdade. Tais conquistas, ademais, quiseram se amparar em um olhar biológico, sociológico, psicológico e criminológico, de modo a subjugar os homens pelos homens. É, infelizmente, no apogeu da civilização que se criam tempos sombrios para a humanidade. Ora, é inegável o fato de que, nos últimos tempos, o homem erigiu Estados balizados no terror e no genocídio, tendo por álibi para o seu crime a própria filosofia, que transformou ‘assassinos em juízes’. O apelo humanista, tão presente nos séculos XIX e XX, parece ter esquecido o homem em face da condição imposta pela modernidade, a qual, ao prometer um lar acolhedor e um estreitamento entre os indivíduos, criou uma falsa ‘solidariedade’ comum. Em todo caso, o apelo humanista tornou-se um engodo para o próprio homem, fazendo-se de casa de detenção, na qual é o sujeito seu principal detento. O que de fato ocorre é que a razão lógica, levada ao extremo, acabou por edificar um reino de dor e sofrimento, no qual o conceito de homem perdeu o sentido de sua conditio e instituiu-se uma hostilidade racionalizada e legitimada entre o opressor e o oprimido. O exemplo mais evidente se encontra nas práticas totalitárias, as quais eliminam com qualquer ideal de política e verdadeira noção de poder, sendo, desse modo, um dos principais corroboradores da legitimação da violência, do assassinato e, consequentemente, da minimização da condição humana. A despeito de uma série de análises que permeiam a minimização de nossa conditio — principalmente as que focam as análises estritamente ético-políticas — é possível vislumbrar um pensamento filosófico que opere uma digressão estética no que concerne à referida questão política. Afinal, pensadores como Albert Camus, empreendendo um estudo mais minucioso da arte engajada, e Hannah Arendt, em uma análise epidérmica das questões estéticas, percebem na atitude estética uma relação A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea intrínseca com a reflexão do âmbito político. Em outros termos, seja no prazer ‘desinteressado’, nos quais os juízos estéticos aparecem análogos aos juízos políticos, como alude Arendt, seja, como afirma Camus, no simultâneo aceite e recusa do real embutido na obra de arte, é a tragicidade do mundo que aparece. É neste ponto que a criação artística se torna assaz importante, na medida em que a arte, em sua atitude transgressora e enquanto possibilidade de ser concebida como signo de verdade, aparece como ‘abertura’ possível para se representar e, quiçá, construir para fora dos horrores a que a humanidade se encontra subjugada. Quando os indivíduos conseguem falar sobre o acontecimento, isto é, quando se tornam capazes de criar o real, estes não apenas refletem o mundo, mas o constroem como sendo único e legítimo. Escapam, assim, de uma relação de sujeitamento, e entram na posição do observador-criador, daquele que restaura a alteridade, a diferença e ultrapassa os limites. Este seria, portanto, o lugar da resistência, da construção do humano diante da ‘epidemia’ que atola nossos tempos sombrios. À vista do apresentado, parece que a questão da minimização da condição humana, consequência de uma conceituação de homem, e advinda, enquanto tal, dos fenômenos políticos que caracterizam nossos tempos sombrios, pode encontrar na arte e no artista um exílio. Este é o ponto a partir do qual quero apontar para a revolta estética, pressupondo que a expressão artística aparece como uma estrutura de linguagem capaz de desempenhar uma determinada função criadora — a qual envolva não apenas a originalidade da atitude artística, mas também, as relações entre homem e mundo, homem e homem. Tal questão, destarte, aponta para a função criadora da arte como possibilidade de esta se apresentar também como instauradora de bases éticas; desempenhando, desse modo, uma atividade importante no que concerne à Política. Não há dúvida que determinadas obras de arte são capazes, dentre outras coisas, de atuar para além da simples representação e criatividade pura, circunscrevendo, no estilo artístico, uma reflexão e uma denúncia da miséria na qual a condição humana se encontra. É a partir de um diálogo, formulado por mim, entre o pensamento estético de Albert Camus e o pensamento de Gilles Deleuze e Georges Bataille que aponto para a criação como uma possibilidade de recusa da minimização da condição humana e, consequentemente, possibilidade de resistência frente às barbáries contemporâneas. Em outras palavras, é em vista de uma aísthesis, de certa ‘mágica da Existenz’, como alude AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Arendt, que a arte se torna uma possibilidade de abertura e resistência em uma era tão sombria. Desenvolvimento A Arte como Fabricante de Universos: A Transgressão do Real O inferno só tem um tempo, a vida um dia recomeça.Talvez a história tenha um fim, nossa tarefa, no entanto, não é terminá-la, mas criá-la à imagem daquilo que doravante sabemos ser verdadeiro. A arte, pelo menos, nos ensina que o homem não se resume apenas à história. [...] Os revoltados que querem ignorar a natureza e a beleza são condenados a banir da história que desejam construir a dignidade do trabalho e da existência. Todos os grandes reformadores tentam construir na história o que Shakespeare, Cervantes, Molière e Tolstoi souberam criar: um mundo sempre pronto a satisfazer a fome de liberdade e de dignidade que existe no coração de cada homem. Sem dúvida, a beleza não faz revoluções. Mas chega um dia em que as revoluções têm necessidade dela.2 Segundo Hannah Arendt, é pela obra que o homo faber, o ‘fabricador de objetos’, rompe com o anonimato no qual se encontrava imergido enquanto simples animal laborans. Afinal, conquanto o trabalho apareça como uma atividade infinda, a obra ou fabricação tem tanto um início quanto um fim já determinados; terminando com um resultado palpável e durável, a saber: o objeto de uso. Ao fabricar objetos de uso, o homem não apenas constrói o mundo, mas também, e principalmente, inaugura a identidade humana. Identidade esta que se dá, dentre outras coisas, na duração do objeto criado. É pela atividade da obra ou da fabricação que o homem tece o mundo humano, dando, assim, formas às coisas, e, quando prontas, essas mesmas coisas fabricadas tornam-se novos condicionantes para o homem. Ora, dentre as coisas que sustentam a identidade do homem no mundo, a obra de arte se destaca, haja vista sua característica de suma duração e ausência de utilidade. “Dada a sua eminente permanência, as obras 2 CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 316317. A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; [ademais], a fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar”3. Nada revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar não-mortal de seres mortais. [...] É como se a estabilidade humana transparecesse na permanência da arte de sorte que certo pressentimento de imortalidade [...] adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido4. É justamente pelo fato de não possuir utilidade aparente que a obra de arte consome-se no seu próprio clarão, pois sua função é aparecer para revelar o ‘belo’. “Enquanto que a objetividade de todos os objetos de que nos rodeamos repousa em terem uma forma através da qual aparecem, apenas as obras de arte são feitas para o fim único do aparecimento”5.. Em outras palavras, na reificação6 da obra de arte ocorre algo pra além de uma transformação. De fato o que se verifica é uma transfiguração, uma metamorfose que ultrapassa os limites da utilidade para o horizonte do sentido. Ora, se a fonte da obra de arte está na capacidade de pensar, então a reificação verificada na obra de arte emerge não do instante do pensamento, mas, isto sim, da transformação do pensamento em realidade através das mãos do homem, do artista neste caso. As obras de arte, desse modo, são, eminentemente, fruto do pensamento, sem, contudo, abandonarem sua existência de coisa. O artista, portanto, não copia o real, mas o cria, construindo para além do pensamento dado. Nesse sentido, remeto-me mais uma vez a Picasso, já que em suas pinturas com motivo de natureza morta, tais como violino com uvas e violino e guitarra, ele opera uma disfunção; transfigurando os objetos, cria obras de arte. Destarte, as telas criadas perduram como obra do pensamento do artista, as quais rompem com os limites da instrumentalidade de objetos, incorporando-os em uma outra forma, e encontrando um sentido cuja ocorrência se dá na própria obra criada. 3 ARENDT, Hannah. A Condição Humana . Trad. Roberto Raposo; Posfácio de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 181. 4 Ibidem. 5 ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 263. 6 Reificação significa, no processo de alienação, o momento em que a característica de ser uma “coisa” se torna típica da realidade objetiva. O termo é utilizado por marxistas como Lukács. A pesar de Hannah Arendt não ser marxista, ela se encontra situada dentro de uma linguagem de época, da qual, principalmente, seus amigos da escola de Frankfurt são partícipes. AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Consoante Gombrich: Se pensarmos num objeto, digamos, um violino, ele não se apresenta ao olho de nossa mente tal como o vemos com os olhos de nosso corpo. Podemos pensar e, de fato, pensamos em seus vários aspectos ao mesmo tempo. [...] Alguns deles destacam-se tão claramente que sentimos poder tocá-los ou manipulá-los. E, no entanto, essa estranha mistura de imagens representa mais do violino ‘real’ do que qualquer instantâneo ou pintura meticulosa poderia jamais conter7. Ora, a atitude estética, portanto, em face de uma apropriação específica do real, torna-se capaz de apresentar, e quiçá construir uma nova dimensão para a humanidade. Inscrita a partir de uma reflexão trágica do mundo e da existência, essa atitude entendida como artística busca direcionar o homem a uma nova forma de olhar8 e ausculta deste mundo e deste real apropriados. Isto se faz possível, justamente, através da transgressão a qual a obra estética está sujeita. Ademais, esta atitude transgressora, metamórfica e transfigurada acaba, observando Camus, apresentando-se como arte revoltada. Afinal, consoante Arendt, ‘o artista parece o único indivíduo que resta na sociedade de massas’, e a ‘poesia’, cujo material é a linguagem, é a mais humana e a menos mundana das obras fabricadas pelo homem. Não é a toa que Arendt escolhe Rilke para ilustrar o clamor das chamas presente na obra de arte. Do brilho indescritível da transformação/ Tais criações: Sensação! Confiança!/ Nós sofremo-la frequentemente: as flamas transformam-se em cinzas; / Ainda, na arte: as flamas vêm da poeira. / É aqui mágico. No reino de um período/ A palavra comum parece levantada acima de… / No entanto, é realmente como a chamada do macho/ Que chama a pomba fêmea invisível9. À vista disso, podemos apontar para a atitude estética; isto é, para obra e artista como representantes de uma ação e de um modelo de recusa. Por um lado, (i) o artista 7 GOMBRICH, E. H. História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Círculo do Livro, 1972. p. 456. Distingue-se, aqui, o “ver” como função do olho, do “olhar”, como objeto da função escópica. Se a luz se propaga em linha reta, ela também refrata, se difunde, inunda. Há diversidades essenciais que escapam ao campo da visão, não estando na linha reta, diz Lacan, mas no ponto luminoso, no ponto de irradiação, que também é o ponto de transbordamento da íris, descrita como uma taça. Tal efeito, grosso modo, tira o olhar do campo balizado pelo modelo cartesiano da visão, ou seja, arranca o olhar da consciência. O sujeito perde a noção do que vê. E o que vê se perde na indefinição causada pelo estilhaçamento luminoso; ou seja, se perde na indecibilidade do olhar. Por isso, o que se quer ver nunca está onde se olha. Nesse ponto a visão é dominada por uma espécie de cegueira luminosa em que o ato de ver perde toda a função ao submeter-se às investidas do desejo liberadas pelo olhar na função escópica. 9 Poema intitulado Mágica, de R.M. Rilke. 8 A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea aparece como aquele que, consoante Camus, possui a paixão pela unidade, fazendo desta a motivação mais genuína da consciência revoltada. Paradoxalmente, tal paixão é contraditória, visto o ato de criação se dar, simultaneamente no aceite e na recusa da realidade dada: “o homem [como já referido] recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele”10. Por outro lado, (ii) a obra de arte aparece como aquela que possui sua essência na eterna correção. Em outras palavras, a expressão estética, a aísthesis proclamada atua como uma textura de ideias, cujos questionamentos dependem, para além da apreciação de gosto, da própria expressão a qual a estética, como possibilidade ético-político, se propõe. A inovação desta análise “aisthetica” consiste, portanto, em reconhecer que mundo não está no singular e que tampouco o real dado é a última palavra. A criação artística, assim, tanto permite ao homem marcar o mundo com seu próprio selo quanto o faz perceber o rosto do outro como uma experiência que cria o mundo político11. Afinal, na revolta suscita-se o sentimento no qual “o homem se transcende no outro”12 Há, decerto, na atitude estética um deslocamento, no qual a criação artística sai de seu campo estritamente específico, o ‘belo’, para uma atmosfera expandida nas diferentes relações humanas. Em outras palavras, há a passagem da obra de arte do seu campo estético para o ético-político, concomitante, à passagem do animal laborans para o homo faber. Ora, se é na atividade da obra que o homem tece o mundo humano, então, pode-se afirmar que é na criação artística que o homem traduz sua condição política. A despeito desta conotação política da arte aqui apregoada, faz-se mister apontar para o fato de ser comum certo reducionismo de algumas interpretações acerca do tema, as quais insistem em tentar delimitar temporalmente certa arte política, fazendo da mesma uma atitude de protesto e panfleto na luta contra ditaduras específicas do século XX. É nesse sentido que, em vista de aísthesis proclamada, urge apontar para a arte e para o artista, apresentando-os como estruturas de resistência; isto é, como participes de um movimento engajado que de modo algum panfleta em nome de qualquer ideologia, mas, isto sim, reconstrói o mundo a partir da tensão premente da criação e recusa do 10 CAMUS, Albert. O Homem Revoltado, p. 299 Cf. CURTIS, Kimberley F. Our Sense of the Real: Aesthetic Experience and Arendtian Politics. New York: Cornell University Press, 1999. 12 ‘Transcender no outro’ deve ser entendido como ter o outro por espelho de si mesmo, resguardando, contudo, este mesmo outro como singular. (Cf. CAMUS, O Homem Revoltado). Ademais, o sentido de transcendência aqui proposto está para fora de qualquer faculdade que dirija os objetos para fora do mundo. O transcendental referido é o sujeito a um empirismo superior. (Cf DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2006). 11 AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 mesmo. É para além da importância das poéticas revolucionárias e contestatórias que o sentido ético-político da arte se revela, apontando para outras contextualizações tanto mais complexas quanto diversificadas. Para fora de fixar a práxis estética em uma hermenêutica da atividade crítica e do ‘fazer-criado’, é fundamental entender a torrente da própria atividade no instante que esta inunda os vales do seu ‘escrever-se’ e ‘propagar-se’ na Modernidade. É nesse sentido que é possível traçar paralelos entre este pensamento da aísthesis encontrado em Arendt e Camus com o de outros pensadores, de modo a defender a ideia de arte como fabricante de universos, capaz não somente de representar o real, mas também de transgredi-lo e, de certo modo, alterá-lo. Consoante Camus, “a bem dizer, a exigência da revolta é em parte uma exigência estética”13. Ou seja, a criação artística aparece como engajamento e revolta, ou, pelo menos, em seu estado primitivo, como um questionamento, uma enunciação do conteúdo da revolta. Engajamento, Arte e Transgressão: As dobras da linguagem A busca da verdade é a aventura própria do involuntário [...] O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. [...] O signo sensível nos violenta: mobiliza a memória, põe a alma em movimento; mas a alma, por sua vez, impulsiona o pensamento, lhe transmite a pressão da sensibilidade, força-o a pensar a essência como a única coisa que deva ser pensada. Assim, as faculdades entram em um exercício transcendente em que cada uma afronta e encontra seu limite: a sensibilidade, que apreende o signo, a alma, a memória, que o interpreta; o pensamento, forçado a pensar a essência. Com justa razão pode Sócrates dizer: sou o Amor mais que o amigo, sou o Amante; sou a arte mais que a filosofia; sou a coação e a violência, mais que a boa vontade14. As práticas artísticas desempenham um importante papel na partição do perceptível à medida que suspendem as coordenadas da experiência sensível e remarcam a rede de relações entre espaços e tempos, sujeitos e objetos, o comum e o singular. Há um campo simbólico construído sobre frases escritas, mãos de mármore, 13 CAMUS, A. O Homem Revoltado, p. 293. DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Trad. Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 94.96.100. 14 A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea tintas e pincéis que, dispostos como ferramentas sobre a mesa, evidenciam o excesso e remetem às relações entre homem e mundo. A metáfora da obra de arte como ferramenta do pensamento é justamente o limite ‘transposicional’ de espaço e do tempo, o qual possibilita certas relações independentes entre si. A arte, portanto — em uma hermenêutica que se espalha no exceder —, surge como forma expressiva sobre a qual se medita e se discorre a partir do ‘intraduzível’ e do ‘caótico’. E é no emergir desta atividade estética que a arte delimita sua existência visível e sua práxis, evidenciando o mundo através de sua expressividade. Ora, conquanto a dita arte política, isto é a arte panfletária e ideológica se ocupa do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto — acreditando possuir a competência para verificar a qualidade das coisas, para falar das propriedades do espaço e dos possíveis no tempo —, a criação artística, como obra engajada e transcendente, não captura a política e as vicissitudes humanas por sua vontade, isto é, pelo pensamento de um povo como obra de arte; ao contrário, ela emerge como um recorte dos tempos e espaços, do visível e do invisível, da palavra e do sonoro que, sem definir um tempo e um lugar exatos, provoca a recusa do mundo e denuncia aquilo que lhe falta. É nesse sentido que o olhar estético da criação se estende ao pensamento de Gilles Deleuze, para quem a arte é possuidora do grau mais elevado de verdade; apresentando-se, desse modo, como um signo15 maior que, contrapondo-se aos demais16, explicita sua superioridade perante a materialidade dos signos que rodeiam o mundo do pensamento. Ora, justamente por contrapor-se, a arte compreende todos os 15 Para Deleuze, signos não devem ser entendidos como na afirmação linguística de Ferdinand de Saussure, segundo o qual ‘signos são constituídos de um símbolo e pelo sinal, integrando a significação das formas linguísticas e, assim, constituindo a essência da linguagem’. Deleuze é contrário à afirmação saussuriana do primado do significante sobre o significado. Para ele, signos são objetos de um aprendizado temporal e estão para ser decifrados. São estruturas específicas e constituem a matéria de diferentes mundos. Cada indivíduo, cada objeto isolado constitui um lugar próprio que o difere dos demais. Os signos forçam o pensamento e tiram-no de um pretenso lugar natural. Na gênese do ato de pensar está a violência dos signos sobre o pensamento que “são o que força o pensamento a pensar em seu exercício involuntário e inconsciente, isto é, transcendental”. (MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 169). 16 Deleuze hierarquiza os signos desde os mais frívolos até os mais verdadeiros, aqueles capazes de apreender toda a essência e desvelar-se enquanto verdade. São quatro os mundos dos signos encontrados por Deleuze, o primeiro é o da mundanidade, depois os signos do Amor. O terceiro mundo dos signos é o das impressões ou qualidades sensíveis: são, segundo Deleuze, “signos materiais”, e dizem respeito à memória. Por fim, último mundo dos signos, aquele que apreende seu sentido numa essência ideal, o mundo da Arte. AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 demais signos; integrando-os, quebra a opacidade que fazia com que estes não aparentassem colorido. A arte, desse modo, ultrapassa o nível da interpretação, partindo do material ao ideal de modo a encontrar uma essência maior, haja vista expressar-se sem contingências, isto é, sem a materialidade ou a subjetividade. Por conseguinte, apresenta-se singularmente e se encontra liberta das armadilhas do objeto e das tramas da subjetividade. A arte, portanto, constitui a verdadeira unidade, aquilo que une o signo ao sentido. À vista disso, Deleuze vislumbra certo poder na arte, o qual apresenta pelo menos três qualidades superiores aos demais signos, a saber: “a imaterialidade; a essencialidade absoluta do sentido; a perfeita adequação signo-sentido”17. Para Deleuze, portanto, a arte é a “diferença última e absoluta”18, apresentando-se, destarte, como “diferença interna, diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença, que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós”19, pois sem ela não nos mostraríamos, não nos revelaríamos. Afinal, cada sujeito possui seu próprio mundo, sendo isto o que constitui a própria diferença. Os mundos, vale lembrar, são tanto singulares quanto diferentes, e pertencem a particulares. Estes mundos, ademais, se expressam dentro do sujeito e nunca fora dele. Para Deleuze, “o mundo envolvido na essência é sempre um começo do mundo geral, um começo do universo, um começo radical e absoluto”20. Um começo que é sempre recomeço. Um eterno retorno de diferenças únicas ou singulares. Uma perpétua recriação, que define o nascimento do tempo. Tempo que sempre é redescoberto, e que revela “seu estado puro contido nos signos da arte”21. É diante de tal afirmação que a arte aparece como o que permite a redescoberta do tempo enredado na essência. E é o sujeito, enquanto artista, aquele capaz de redescobrir o tempo no instante de seu nascimento. Ora, o artista, então, é aquele capaz de conduzir o tempo e o mundo para recriar tanto o real quanto a si mesmo. Em outras palavras, a obra artística é fruto de uma ação do pensamento. Não se trata, portanto, do aproveitamento de um dado saber; antes, o artista, para além de ser um ‘fabricador de objetos’, é capaz de realizar a práxis artística como modelo de pensamento, tendo a competência, dentre outras coisas, de equacionar 17 MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia, p. 176. DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos, p. 41. 19 Ibidem, p. 42. 20 Ibidem 21 Ibidem, p. 43 18 A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea ética com estética, fazendo dessa ética mais que uma disciplina de conduta, a própria ‘natureza humana’. Dirige seu olhar tanto para o sensível quanto para a razão e intuição deste mundo que o cerca; torna-se, assim, consciente de que todos os tempos históricos coexistem no agora da ‘humanidade’ e nos tempos internos de cada indivíduo. A criação artística apresenta-se, assim, como o êxtase pelo qual o indivíduo-artista observa-se, transforma-se e constrói uma nova realidade em sua obra. É no criar que o artista abre a possibilidade de expressar o ético e o político esteticamente. O par ético-estético transmuta e metamorfoseia não somente o indivíduo-artista, mas também e, talvez principalmente, o mundo que contempla a obra de arte construída. A capacidade criativa, a produção exercida pelo artista emerge como a aparição de uma diferença. Em outras palavras, a criação estética aparece com a construção de algo que não podia ser simplesmente deduzido a partir do real dado. O verdadeiro artista e a verdadeira ‘obra de arte’ são coisas raras; o criador não é encontrado no homem comum; e, como alude Deleuze, ‘ter uma ideia é uma espécie de festa’. O que se pretende nesta análise é apontar para o ato da criação como algo capaz de apreender do visível, o invisível, bem como para o criador-artista como aquele capaz de realizar um novo tipo de discurso do mundo e do real. A práxis estética torna-se, destarte, a possibilidade de uma re-construção do mundo. Enquanto processo e experiência, a criação ultrapassa as fronteiras meramente da forma-imagem ou do objeto resultante. A obra de arte, desse modo, desperta no artista a função transgressora, haja vista a transgressão ser, como alude Bataille, um movimento da poesia que se abre ao “nãosaber”, uma espécie de êxtase e erotismo capaz de vislumbrar o impossível, recusando e criando simultaneamente o real. À vista disso, faz-se mister salientar que para Bataille há no trabalho uma forma de regulação econômica dos fluxos, apresentando-se, portanto, não apenas como uma tentativa de controle dos gastos, mas antes, como uma estrutura normatizante que se impõe contra o excesso. É nesse sentido que determinadas atitudes se sobressaem, visto serem capazes de romper com a norma instituída; isto é, há certas formas de ação que desempenham uma função transgressora, as quais se põem frente a toda “lei” que subsista apenas como estrutura de normatização e minimização da condição humana. Logo, pode-se aferir que, para se escapar de uma vida medíocre e sistêmica, é necessário transgredir e exacerbar. Decerto, das várias formas de vazão que existem, tais como a embriaguez, o riso, o erotismo, a angústia e o sacrifício, encontrase a poesia. Em outras palavras existe a arte, o artista e sua obra, os quais aparecem AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 como expressões transgressoras da norma, pois, para fora do ato criativo e do produto a ser contemplado, tanto criador quanto obra criada emergem como elementos aptos a levarem o indivíduo a exceder seus limites e vislumbrar para além do possível. Essa reflexão empreendida acerca da atitude estética é visível em seu aspecto engajado no pensamento de Albert Camus. Afinal, por mais que a função da obra de arte resida na criação do mundo e na contestação da realidade apregoada, há um refletir manifesto na atitude estética que, em um primeiro momento, se apresenta necessariamente como negação e recusa22 a todo um estratagema social que aparece ao artista como corrompido desde suas bases. Esse ato refletido, para Camus, denomina-se, como já salientado, de revolta. E esse ‘revoltar-se’ leva a expressão artística a uma atitude entendida como ética23, pois, em sua transgressão da realidade, é capaz de provocar no homem comum algum tipo de reação contra o tédio de sua própria existência. Nesse sentido, Camus está em plena sintonia com Deleuze, haja vista apontar par a criação artística como um equacionamento entre ética e estética. Contudo, na ambientação da revolta é necessária uma forma de arte mais específica, visto não ser qualquer expressão artística capaz de supor, ou mesmo atuar no âmbito da dimensão ética. Logo, há modalidades estéticas capazes de transgredir e, por conseguinte, recusar e resistir a um mundo normatizado e pré-instituído. A este tipo específico de arte, denominamos arte ‘engajada’. Ou seja, há, como já salientado, uma expressão artística que não panfleta em nome deste ou daquele modelo determinado de sociedade, mas, isto sim, age de forma crítica e denunciatória contra toda estrutura social que impele o homem a uma vida medíocre, normatizada e impessoal. Ora, acatando-se a atitude estética [artística] como possibilidade de transgressão e ruptura, deve-se, então, conhecer aquele que é sua causa24; isto é, o homem-artista, esta criatura que se recusa ser o que aparentemente é, visto revoltar-se contra sua própria condição. Ou seja, o artista engajado deve ser entendido como aquele que se posiciona contra a acomodação e mediocridade, as quais pretendem encerrá-lo em uma vida medíocre. Seu grito resistente objeta a forma pela qual sua existência é erigida, o 22 Entendendo recusa e negação não como renúncia, mas, contrariamente, como o primeiro passo para firmar-se a condição humana. Nega-se e recusa-se uma ordem, um sistema, uma ação, para se poder afirmar e assentir o fato de ser homem. Em outras palavras, a recusa e a negação, no sentido camusiano diz respeito a um prenúncio da própria afirmação. 23 Uma postura ética baseada na questão aristotélica, isto é, voltada para uma virtude. 24 Causa é utilizada no mesmo sentido de Giambattista Vico, para quem, verdade e fato ou o verdadeiro e o feito são entendidos com sendo o mesmo; podendo um ser convertido no outro. Isto quer dizer que só pode ser conhecida de maneira indubitável aquilo que o próprio sujeito cognoscente faz, cria ou produz. A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea que o leva a redesenhar sua própria condição de existir, glorificando-se na beleza expressiva que a arte evoca. O artista, destarte, surge como quem não tolera o real. No entanto, ninguém pode prescindir dele [real]. Logo, esse criador por excelência oscila em uma linha tênue, na qual razão e imaginação se misturam. Segundo Albert Camus, a criação artística deve ser entendida como “exigência de unidade e recusa do mundo”25, pois o verdadeiro criador rejeita o mundo, justamente, por perceber que nele há uma carência, isto é, falta-lhe algo. Sendo assim, cabe a estes operários das penas, brochuras e pincéis lhe dar um fim, um télos. Na revolta, o criador não banaliza suas ações com puros assentimentos ou renúncias; a arte por ele realizada possui por finalidade última compreender este mundo que surge de tempos em tempos, moldar-lhe uma face e, não simplesmente julgá-lo. A expressão artística revoltada, portanto, emerge como um eco de razão e de recusa. Sua inserção política não se dá nas mensagens e tampouco na maneira pela qual são representadas as estruturas, os conflitos ou as identidades sociais. A expressão artística, em uma estética da revolta, ecoa política e eticamente em virtude da distância mesma que toma; sublinhando o mundo, tenciona o real não apenas no conjunto das estruturas estéticas forjadas; antes, na percepção e criação de um espaço-tempo específico. A arte, neste aspecto, insurge como configuração de um espaço, como a delimitação de uma esfera específica de experiência, encontrando-se tanto à disposição dos objetos “comuns” quanto dos sujeitos a quem se reconhece na capacidade de designar esses objetos. As relações éticas vinculadas nesta práxis abarcam vários segmentos no campo estético, haja vista que, independente de uma obra final, cria seu sentido na relação que mantém com a produção de subjetividade. Tal qual o homem que pensa não poder realizar pensamentos de não-significação, pois estes já pressupõem um significado, também a obra de arte não pode ser a do não sentido, pois ela já possui sentido no simples fato de existir. Decerto, o que importa não é o ‘objeto’, a obra manufaturada; antes, é o movimento o que desperta tanto razão quanto recusa. Este movimento que a obra de arte encena, possibilita certa compreensão das estruturas que estão em embate, criando um binômio dialético sem síntese do interdito e da transgressão. A obra de arte enquanto 25 CAMUS, Albert. O Homem Revoltado, p. 291. AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 estrutura de recusa do real torna-se, por conseguinte, a vivência do excesso, o ‘mal’26 pontuado por Bataille; contudo, a recusa proclamada não é absoluta, haja vista nela o real se harmonizar, ganhar a densidade e a unidade almejadas. Ora, na obra de arte, principalmente na literatura, ao se suspender a realidade, a figura do transgressor se fortalece, de modo a transformar-se em mito justamente pelo enfrentamento da morte. Exemplo claro está na admiração por Jean Genet27. O escritor francês fascina como o transgressor emoldurado pela escrita. Na busca da ‘santidade pelo mal’, Genet adota a invocação poética como meio de transfiguração de sua vida repleta de signos de corrupção e decadência. Bataille afirma que somente no mal esculpimos os traços efetivamente humanos de nossa fisionomia. Afinal, é no mal que se quebra a integridade social, se transborda o erotismo e, através da recusa e criação do real, se alcança o impossível. Nesse sentido, a obra de Sade pode ser lida como o grau supremo e mais acabado de sua manifestação. Não é em vão que Camus afirma que na “festa da razão” implementada por Saint-Just, a Revolução Francesa guilhotinou o único poeta de seu tempo28. A obra de arte, a expressão do artista é assim um espaço não-representativo no qual a linguagem subsiste dobrada sobre si mesma, sem sujeito e sem adereços29. É, portanto, pura transgressão. Mas, dentre todas as obras, pode-se dizer que é na literatura que o tempo não se perde: é resgatado como na recherche de Proust; este retorna como outro que não o marcado pelo ponteiro do relógio. Ademais, no romance, a morte é adiada. A literatura emerge, então, como um mecanismo para burlar a realidade cruel, a finitude, haja vista o romancista em suar obras, como já afirmara Camus, ser capaz de viver inúmeras vezes, tantas quanto as suas personagens. A obra literária, destarte, tematiza o vazio primordial, aquele donde as palavras ainda não nasceram. Em outros termos, a transgressão literária, em seu excesso e exacerbação, reflete o mundo e torna26 Em A Literatura e o Mal, Bataille analisa as obras de Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, William Blacke, Sade, Proust, Kafka e Jean Genet. Parcialmente publicados na revista Critique, nos anos que se seguiram a Primeira Guerra Mundial, estes estudos oferecem o sentido que tinha a literatura para Bataille. Para ele, a literatura é comunicação, impondo tanto uma lealdade quanto uma moral rigorosa. Não é inocente. “A literatura é o essencial ou não é nada. O ma l — uma forma penetrante do Mal — de que ela é a expressão tem para nós, creio eu, o valor soberano”. 27 Para Jean-Paul Sartre, por exemplo, os textos de Genet eram pistas para descobrir como um desclassificado, sem nenhuma tradição cultural, conseguiu produzir uma literatura tão complexa e bela, que o levou a ser considerado um dos maiores escritores da França. 28 29 CAMUS, Albert. O Homem Revoltado, p. 291. Cf. (FOUCAULT, 1999). A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea se profética; apontando sempre para mais dura realidade e crueza, a falta de sentido a priori da existência. Basta olhar os romances de Dostoievski. Contudo, para enxergar a dobra da palavra, deve-se saber que “a verdade não se entrega a quem não a busca até ao delírio”30. Ora, é justamente neste âmbito, no qual transgressão e revolta se entrelaçam nas dobras do signo da arte que se pode falar de determinados movimentos estéticos e certos artistas. A partir da segunda metade do século XIX e primeira do século XX, determinados movimentos estéticos surgiram como expoentes de uma atitude de revolta. Ou seja, determinados modelos de expressão artística31 foram capazes de se insurgir contra o jugo de uma realidade que aposta na minimização da condição humana, na norma e no conformismo. Tais movimentos, em verdade, construíram um diálogo com o mundo, o qual, por se encontrar inapreensível ao homem, não dá respostas concretas. Neste diálogo, no lugar de se buscar uma raison d’étre para a existência do homem, um sentido a priori, efetivou-se, através da transgressão e recusa, uma denúncia do processo de extermínio da individualidade humana e a, concomitante, extinção de sua singularidade. À vista disso, percebe-se que, a despeito das questões de gosto que envolvem a obra de arte, não foi raro percebermos que muitas das novas posturas morais ou éticas que se instauraram no decorrer destes cem anos sofreram demasiada influência destes movimentos de uma estética revoltada. Afinal, a expressão artística inserida como recusa, em sua ação transgressora não se apresentou tão somente como ‘mero’ reflexo ou representação de uma sociedade circunscrita em seu tempo; antes, a arte revoltada denotou, em sua atitude de transgressão, um modelo de ação capaz de denunciar a realidade imposta pela sociedade ocidental vigente que, além de acatar a miséria da condição humana, a tem valorado enquanto virtude e necessidade. Conclusão A estética aqui pontuada apresenta-se como um movimento que engendra uma atitude ética no espaço político, que possui sua realização plena em um universo de 30 Cf. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Suely Santos. Porto Alegre: LP & M, 1989. 31 Alguns autores costumam denominar muitos desses movimentos de vanguardas. AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 representações que exprimem uma filosofia da experiência e do vivido. Em outros termos, opera-se uma ‘conversão estética’ na política, visto ser possível, através da arte, dar uma outra forma a este mundo insólito e corruptor. Com efeito, no desdobrar dos conteúdos estéticos, há uma tensão geradora do caos sensível, a qual, justamente pelo seu caráter tensional, acaba ressacralizando e ‘ressensualizando’ esta época em que o sujeito se encontra carente na minimização de sua conditio. Esta expressão estética é tanto modalizada quanto compassada, de modo a transformar-se, intimamente, na recusa lúcida que ‘des-oculta’ o indivíduo de seu sujeitamento. Talvez por esta razão mesma, a vida tenda, doravante, no seu eco de razão e de recusa, a estetizar-se cada vez mais. Diante do exposto, certos artistas e determinados movimentos estéticos realizaram com maestria sua função transgressora e tentaram dar ao mundo um sentido que se oculta na normatização mecanicista da vida cotidiana. Apresentando-se como críticos da sociedade ocidental vigorante, esses artistas construíram suas obras artísticas para além da reflexão sobre o Real, não apenas representando as relações do homem com o mundo, mas também, e principalmente, traduzindo-as, questionando e, por vezes, as renovando. Dentre esses revoltados dos pincéis e das penas, alguns podem ser citados, como Rimbaud, Lautréamont, Oscar Wilde, Artaud, os Expressionistas e os Surrealistas, dentre outros. Contudo, é importante salientar que, simultaneamente ao fato de se encontrar revoltada, este mesma arte engajada — a qual é objeto de recusa e transgressão — pode ser incorporada ao sistema que se ergue sobre os escombros dos antigos. Tal evento, decerto, acaba por fazer da atitude estética não mais denúncia transgressora, mas, isto sim, modelo de aceite e manipulação. Ou, esvaziada de qualquer conteúdo, obra de arte irrefletida. Em ambos os casos, a revolta estética perde seu caráter revoltado, sendo normatizada e normatizante. Enfim, nos resta Camus, que para além do filósofo da ética e da política, foi ele mesmo um artista engajado. Em O Estrangeiro, ecoa a transgressão da qual a revolta é partícipe. Nas palavras de Meursault: Nada, nada tinha importância e eu sabia bem por quê. Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo que me haviam proposto nos anos, não mais A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea reais que eu vivia. [...], que me importava o seu Deus [...], já que um só destino devia eleger-me a mim próprio [...]. Todos eram privilegiados. [...] Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia de minha execução e que me recebessem com gritos de ódio32. Logo tudo estaria consumado e o grito repetido de Meursault se refletiria no mesmo espelho criativo com o qual o artista espia o mundo. Na arte como revolta, sanciona-se uma sentença: na desrazão prenhe do universo, resta ao homem recusar o vácuo pelo qual caminha a existência. E, se deveras há apenas um problema filosófico sério, o ‘suicídio’, então talvez o artista saiba respondê-lo. É possível imaginar Camus ou Arendt olhando a litogravura de Munch33, espiando esta caricatura de homem que se espanta com o grito de outro. Afinal, estes dois homens de tempos sombrios não se furtam de, ao fim de tudo, optarem pela aísthesis. Ambos escolhem a arte como saída. Apóio-me, por fim, em Hannah Arendt e em sua ideia de que é no juízo de gosto, no ato desinteressado, que se lida com o particular. Não há dúvida, reconhecer o rosto do outro é uma experiência aisthética que cria o mundo político, possibilitando, assim, uma posição que supera a condicionalidade histórica que, decerto, ainda pode ser conhecida como a dos tempos sombrios. Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo; Posfácio de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Suely Santos. Porto Alegre: LP & M, 1989 ______. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1992. 32 33 CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999, pp. 124-126.. Pintor expressionista norueguês, autor do célebre quadro O Grito (1893), que mostra, em toda sua fealdade, um rosto retorcido de uma pessoa que escuta um grito. Münch descreveu assim a experiência que o levou a pintar sua obra-prima: “Caminhava eu com dois amigos pela estrada, então o sol pôs-se; de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me no muro, inexplicavelmente cansado. Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde preto-azulado. Os meus amigos continuaram a andar, enquanto eu ficava para trás tremendo de medo e senti o grito enorme, infinito, da natureza”. AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999. ______. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996. CURTIS, Kimberley F. Our Sense of the Real: Aesthetic Experience and Arendtian Politics. New York: Cornell University Press, 1999. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2006 ______. Proust e os Signos. Trad. Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus. São Paulo: Martins Fontes, 1999. GOMBRICH, E. H. História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Círculo do Livro, 1972 MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990. BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 O intelectual que nasceu de uma piada: o filósofo Barbara Botter1 Resumo O objetivo do nosso artigo é fornecer uma idéia do “gênio filosófico” de acordo com o pensamento dos antigos. Não sendo possível fornecer uma descrição, iremos percorrer o caminho do mito para chegar a nossa meta. O artigo está dividido em três partes. Em primeiro lugar, iremos apresentar uma interpretação da função do mito na Republica de Platão. Em seguida, iremos contar a anedota de Tales narrada por Sócrates no Teeteto de Platão, para então fornecer, na última parte, um retrato do filósofo. Palavras chave: mito, filósofo, símbolo. Estratto L’obiettivo del nostro articolo è quello di fornire uma idea del temperamento próprio di quella “strana” figura intellettuale que é il filosofo, per lo meno secondo La visione degli antichi. Non essendo possibile dare uma descrizione, raggiungeremo la meta percorrerendo la strada del mito. L’articolo è suddivido in ter parti. Dapprima presenteremo uma interpretazione della funzione del mito nella Repubblica di Platone; in seguito, raccontereno l’aneddoto di Talete di Mileto presente nel Teeteto di Platone. Infine, cercheremo di tracciare um ritratto del filosofo. Parole chiave: mito, filosofo, símbolo. O mito e sua função na República de Platão É difícil definir com precisão a função do mito em Platão, e ainda mais difícil é apontar para aquilo que o filósofo entende com o termo mythos, visto que sem dúvida o sentido desta palavra é mais abrangente que o sentido da tradução português do termo: “mito”. Em alguns diálogos o termo mythos é contraposto ao termo logos, ao passo que em outros o mesmo termo se encontra como sinônimo de discurso racional utilizado para esclarecer um fenômeno físico ou biológico. Ademais temos casos em que a palavra mythos em Platão tem o rigor de validade como discurso que mostra determinada realidade, apesar de não ter a mesma exatidão de uma explicação epistêmica. Para os nossos fins, não é preciso pormenorizar a noção de mythos no interior dos escritos do filósofo grego, basta ter em mente uma noção geral da palavra: qualquer conto, história ou descrição, 1 Barbara Botter é Professora da UFES. E-mail: barbarabotter@gmail.com O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo conveniente na explicação de um fenômeno, ou na apresentação de determinado acontecimento. Entretanto, não é o sentido do termo em si que suscita o nosso interesse aqui, mas sim sua função nos diálogos de Platão, especialmente, na República. Como escreve Marcus Reis Pinheiros2, Platão neste diálogo destaca o poder de persuasão do mito, ao ponto que o ato de contar mitos para as crianças se torna uma etapa fundamental ao longo do processo educativo. Na parte final do livro II da República, Sócrates persuade “as mães e as amas-seca a contar para as crianças e a moldar (plattein) as almas delas com mitos muito mais do que seus corpos com as mãos”3. As mães e as amas devem contar histórias (mythoi) às crianças para “modelar suas almas”. A passagem citada se encontra ao longo da descrição do tipo de educação mais proveitoso pelo guardião, sendo esta constituída de dois momentos: a ginástica pelo corpo e a musiké pela alma. O termo musiké inclui não apenas música, mas também poesia, visto que Sócrates destaca que na musiké sempre há logos. Especificando qual é o tipos de logos mais apropriado à educação dos guardiões, o grupo social do qual serão escolhidos os guardiões perfeitos, Sócrates distingue logoi verdadeiros e logoi falsos. Como diz Pinheiro, citando Platão, “os falsos são mitos que como um todo são falsos, mas há alguma verdade neles também”4. Dada a aproximação entre a infância e a alma desejante, sendo a alma desejante a única que é realmente desenvolvida na criança5, é possível pensar aos mitos numa forma parecida aos fantasmas enviados pelo intelecto para a alma que deseja, de modo que ela possa alcançar “alguma verdade”6. No Timeu 70-73, Platão informa que junto da alma imortal e divina situada na cabeça, o corpo é moradia também para a parte mortal da alma, constituída de uma parte melhor, capaz de escutar e auxiliar a razão, e de uma parte pior, totalmente surda à razão. 2 Pinheiro 2003, p. 127. Na primeira parte de nosso artigo utilizaremos a preciosa contribuição de Marcus Reis Pinheiro, Formas de interpretar “mito” em Platão e na contemporaneidade, <Boletim do CPA>, Campinas n. 15, 2003, a qual apresenta de forma clara e persuasiva a função do mito na Republica de Platão. 3 Plat. Rep. 377c. 4 Pinheiro 2003, p. 129; Plat. Rep. 377a5-6. 5 Cf. Brisson 1994, p. 103. 6 Pl. Timeu 71a-e. BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 A primeira é a parte que “participa da coragem e da ardor”7, a segunda é a parte desejante, incapaz de prestar atenção a outras coisas que não sejam imagens e simulacros8. Para evitar que a alma desejante consiga subjugar a outra sub-espécie da alma, entregando assim o homem aos prazeres descontrolados, o intelecto deve encontrar uma maneira de entrar em contato com a alma desejante, o animal policéfalo da República, para educá-la até onde isso for possível. Para tanto, o intelecto envia “como em um espelho” para a sede física da alma desejante, o fígado, os fantasmas, os quais ora assustam, ora apaziguam a alma desejante que “apesar de incapaz de atentar para raciocínios, pode assim alcanças, na medida em que lhe é possível, alguma verdade”9. Acredito que temos aqui importantes passagens para entender a função dos discursos falsos em Platão, os quais incluem os mitos, os fantasmas, e as “boas mentiras”10. Apesar do conteúdo dos mitos, dos fantasmas ou das mentiras não apresentar uma realidade, suas enunciações produzem no ouvinte certo tipo de comportamento, reputado por Platão como uma atitude correta. Isso significa que, como observa justamente Pinheiro11, os mitos têm como objetivo aquele de persuadir seu ouvinte moldando a alma dele de tal modo que ela produz o comportamento desejado. A verdade do mito, do fantasma ou da mentira boa não é a correspondência com a realidade, mas sua funcionalidade. Assim como no caso das boas mentiras na passagem 414c da Republica o mito é o jeito encontrado por Platão para modelar a alma do ouvinte e condicionar seu modo de pensar. A maneira como o mito molda a alma não difere do modo como o escultor molda a matéria plástica, por exemplo, o mármore em vista da produção de uma estátua. Continua Sócrates, Você não sabe que o princípio de toda obra é o mais importante, especialmente para alguém jovem e gentil? Pois é então que mais ainda um typos é moldado (plattô) e colocado sobre (enduô) ele, qualquer typos que se queira imprimir em cada jovem12. 7 Pl. Timeu 70a. Pl. Timeu 70e-71a; Cf. Desclos 2001/2002, p. 11. 9 Pl. Timeu 71a-e. 10 Pl. Rep. 382D, 389b, 415a. 11 Pinheiro 2003, p. 129. 12 Pl. Rep. 377b. 8 O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo O que Sócrates quer dizer aqui é que a impressão desejada (um typos específico) é moldada na alma através do mito. O verbo grego plattô que está na raiz do termo português “plástico”, indica propriamente a habilidade que um agente externo tem de moldar uma matéria e a capacidade de um material de ser moldado, quer dizer, de assumir formas diferentes de acordo com as influências que padece. Sócrates está aqui assumindo a idéia que a alma é uma substância capaz de ser afetada pelas influências externas, ao ponto que ela se comporta de acordo com o molde que foi impresso nela. Devido à influência exercida pelo mito, a alma “veste” (enduô) desde a infância uma segunda natureza, da qual depois não consegue facilmente se despir ou desvencilhar13. Assim sendo, a alma agirá de acordo com o typos que vestiu quando jovem. Acreditamos que Platão na Republica tenha esclarecido abundantemente a função que ele atribui ao mito, destacando a força que este tipo de conto tem no ato de influenciar o modo de pensar dos ouvintes. O ingresso triunfal da filosofia: uma piada Passando agora para a segunda parte da nossa apresentação, acreditamos que seja legitimo afirmar que a filosofia ingressou no mundo ocidental com uma piada, ou para ser mais caridosos com um mito, só que o sentido deste mito está num equilíbrio instável entre o irônico e o serio. E foi exatamente através deste mito que foi “moldada” a alma de muitas gerações a respeito do “gênio” do filósofo e do sentido da filosofia. Afinal, quem é o filosofo? Quando ele nasceu? Será que nasceu de uma piada? No Teeteto, Platão descreve o que aconteceu com o celebre filosofo Tales14: Foi o caso de Tales, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que passava no céu, mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilheria se aplica a todos os que vivem para a filosofia”.15 13 A imagem da alma capaz de vestir uma segunda natureza, sua natureza moral, será utilizada mais tarde por Aristóteles. Ver o livro VII da Ética Nicomaqueia. 14 A história de Tales é citada também por Esopo e Diógenes Laertius. BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Eis o primeiro filósofo, Tales de Mileto, o protótipo do filosofo, o “protofilosofo”. Nasceu no século VII a.C., viveu entre os séculos VII e VI a.C., e foi o fundador da escola de Mileto, uma cidade da Jônia, na Ásia Menor. Segundo a tradição, ele foi o primeiro físico grego, o primeiro investigador da natureza, porque foi o primeiro a tratar o problema da origem do mundo e da transformação e conservação de todas as coisas, mas, por enquanto, não somos interessados à teoria de Tales. O que nos interessa é o sentido da anedota que o filosofo Platão faz contar por o filosofo Sócrates no dialogo Teeteto16. Tales, em certa noite, caminhando com os olhos voltados para o céu, ou seja, ao observar as estrelas, tropeçou e caiu num poço, ao que uma jovem criada da Trácia, que presenciou o acidente, se riu dele dizendo: tu pretendes conhecer as coisas do céu, mas não percebes o que estás sob os teus pés. Então ela chamou o filósofo de pessoa distraída para as coisas práticas da vida e perdido em pensamentos abstratos. O sentido do mito parece evidente já a uma primeira leitura: trata-se de uma reflexão auto irônica dos filósofos sobre se mesmos. O filósofo é uma pessoa perdida em pensamentos abstratos e longe do viver cotidiano (... Tales havia os olhos voltados para o céu ..., sublinha Sócrates). Por isso, ele não se dá conta do que está sob os seus pés. Assim foi que o Tales tropeçou e caiu num poço. Ele aparece, portanto, não apenas uma pessoa distraída, mas também ridícula. Hoje também é comum, no meio social de negar à filosofia o estatuto de um saber verdadeiro sobre a vida. Considera-se alienado aquele que se volta para questões filosóficas. Chega-se a tal descrédito que a atitude de quem pensa parece própria a uma pessoa desligada17. A historia que vê como protagonista o filosofo Tales é peculiar: o filosofo é estimado ridículo pelo fato de cair num poço. Ademais, quem repara o acontecido e zomba dele é uma criada, isto é, uma pessoa alheia a qualquer ciência, uma pessoa que muito dificilmente está interessada na cultura. A anedota parece dizer que a sabedoria pratica do povo é bem mais útil que a sabedoria abstrata do filósofo. Não é à toa que a historia tem como protagonista aquele que é considerado o primeiro filósofo, querendo assim indicar que o “pecado original” 15 Platão, Teeteto 174a. Ver Mancini, Battistin, Marini 2002, vol. 1, Dall'Antichità alla fine del Medioevo, unità 1. 17 Hünhe 2006, p. 33. 16 O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo passa depois para a tradição filosófica inteira. Com efeito, Sócrates conclui: “Essa pilheria se aplica a todos os que vivem para a filosofia”. Como observa Leda Miranda Hüne, ao ridicularizar o filosofo se pretende valorizar o homem da ação, do cálculo, da tecnologia, da economia. Na comparação, quem quer pensar no sentido das coisas é alguém que não tem senso prático, astúcia para enfrentar o lance das vendas, das trocas, dos prazeres. Alguém que vive distante do mundo dos negócios e da vida ativa da cidade. E o fato do pensador estabelecer distanciamento com o real imediato passa no mundo social por marginalidade18. O filosofo é uma pessoa que tem afinidade com a sabedoria, tem amor ao saber, e por isso corre o risco de não ser entendido; e tanto mais ele tem sucesso na sabedoria, tanto menos as pessoas comuns o entendem e o apreciam. É preciso observar que Sócrates, ao narrar a história, não se mostra incomodado pela reação da criada, e tampouco se sente ofendido como se sua dignidade de filósofo estivesse sido manchada. Muito pelo contrário, é ele mesmo que declama o acontecido pelo seu interlocutor Teodoro, de maneira tal que o jovem possa reconhecer o verdadeiro jeito de proceder da filosofia, a qual despreza a superficialidade do mundo cotidiano, as fofocas da praça, a esperteza do povo, seu interesse pelo dinheiro e pelo poder. A postura do filósofo merece ser elogiada, diz com dignidade Sócrates, pois é a postura própria do homem que saboreou o prazer vida e tomou a devida distância com o nível mercenário da sociedade19. Sócrates não parece querer desmentir a critica da rapariga, mas confirmála: pelo fato de conseguir manter certa afinidade e aproximação com o sentido das coisas e com as realidade mais elevadas, a filosofia pode tornar verdadeiramente feliz o ser humano, pois consegue desviar o olhar do sujeito das coisas terrestres para elevá-lo até a altura dos deuses. A felicidade é, de acordo com Platão e com os gregos em geral, uma forma de “boa vida”, mas não no sentido subjetivo de bom para mim (embora também inclua este aspecto), mas de verdadeiramente bom, o que implica a noção de virtude, que permite a apreensão do verdadeiro bem. 18 19 Cf. Hünhe 2006, pp. 33-35. Platão, Teeteto 175e-176a. BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 O ideal de vida aqui imaginado pelos filósofos é sem duvida cheio de fascinação e de sugestão, porém, não está ausente de insidias cuidadosamente ocultadas para além do brilho das palavras. Entre outras coisas, a falta de reconhecimento da finitude humana e o perigo de cair em uma racionalidade focada em si mesma, a qual se acredita onipotente. As interpretações da anedota do Teeteto A queda do proto-filósofo num poço é a prefiguração de um destino que ameaça o pensamento filosófico em todas as épocas20. Tertuliano um filósofo cristão dos séculos II-III d.C., retomou a anedota de Platão e conferiu uma interpretação desfavorável à razão filosófica. O filosofo pagão, neste caso Tales, dá uma importância demasiada ao logos e esquece a palavra de Cristo. Na anedota que conta Tertuliano não há uma criada Trácia que dá uma risada do filósofo, e sim um pensador egípcio. Isso pelo fato que os primeiros padres cristãos indicaram a origem egípcia e não grega da sabedoria e das ciências. Os pensadores judaicos e os padres cristãos consideram a sabedoria dos gregos uma sabedoria inferior à sabedoria egípcia. Na modernidade, o filosofo inglês Francis Bacon aproveita da anedota de Tales para mostrar que a técnica e a ciência prática são bem mais úteis do que o saber abstrato e teórico dos primeiros filósofos gregos. A queda de Tales se tornou também o símbolo do esquecimento que levará o filósofo a se perder, às vezes, num racionalismo abstrato e fechado. Sócrates e Platão não aproveitam o ensinamento que se esconde atrás as palavras da criada de Trácia, pois estão persuadidos que para conhecer o homem na profundidade da sua essência é preciso ignorar o lado mais concreto e passional dele para se concentrar na função própria do homem: o bom uso da razão21. 20 Para uma breve resenha das interpretações da anedota, ver Mancini, Battistin, Marini 2002, vol. 1, Dall'Antichità alla fine del Medioevo, unità 1. 21 Com isso não queremos reduzir Platão a um pensador puramente metafísico, perdido no mundo das Ideias, como se quiséssemos concentrar o pensamento platônico ao conteúdo do Fedon e ignorando os outros diálogos. Estamos apenas descrevendo em uma forma muito geral um dos caminhos que a filosofia antiga abriu para o pensamento e a reflexão filosófica posterior. O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo Como escreve Hans Blumemberg22, com a tomada de posição de Sócrates e Platão a filosofia cai em uma possível armadilha: a determinação da virtude através da sabedoria, ou pior a redução da virtude à sabedoria. O acidente ocorrido a Tales perde sua conotação divertida e pode se tornar um problema serio. A aposta em jogo é grande: o perigo que a filosofia, desde sua origem, manifeste desinteresse ou mesmo desprezo pela vida do cotidiano para se colocar à busca das coisas supremas e de um conhecimento que desafia a sabedoria divina. O sintoma deste desvio se faz presente também naquelas interpretações da anedota do Teeteto platônico que se declaram mais favoráveis à filosofia dos antigos gregos, como é o caso da leitura que Nietzsche realiza na obra A filosofia na época trágica dos gregos. No século XIX o filosofo Friederich Nietzsche retoma a historia de Tales, mas fornece uma interpretação totalmente diferente daquela de Tertulliano ou de Bacon e bem mais propícia para o destino da filosofia grega antiga. “Exatamente graças à Tales”, afirma Nietzsche: ... é possível aprender como procedeu a filosofia, em todos os tempos, quando queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpondo as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela salta para diante: a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente, o entendimento calculador arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual sua companheira mais divina já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre rodopiando pedras; o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato. O que, então, leva o pensamento filosófico tão rapidamente a seu alvo? Acaso ele se distingue do pensamento calculador e mediador por seu voo mais veloz através de grandes espaços? Não, pois seu pé é alçado por uma potência alheia, alógica, a fantasia. Alçado por esta, ele salta adiante, de possibilidade em possibilidade, que por um momento são tomadas por certezas; aqui e ali, ele mesmo apanha certeza em vôo. Um pressentimento genial as mostra a ele e adivinha de longe que nesse ponto há certezas demonstráveis. Mas, em particular, a fantasia tem o poder de captar e iluminar como um relâmpago as semelhanças. Mais tarde, a reflexão vem trazer seus critérios e padrões e procura substituir as semelhanças por igualdades, as contigüidades por causalidades23. 22 23 Cf. Blumemberg 1988, p. 27. Nietzsche, 1972, p. 37, tradução do autor. BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 A visão de Nietzsche é uma visão romântica da filosofia. A filosofia alcança mais rapidamente o fim graças à genialidade das suas intuições. Contudo, é o desinteresse para a vida pessoal e propriamente humana que leva o filosofo a se ocupar dos eventos que, segundo o filósofo Nietzsche, mais merecem a sua atenção, a saber, os eventos maravilhosos e divinos. O perigo de a filosofia esquecer o homem em carne e ossos se concretizou bem além de Sócrates e Platão. O fato de que não seja imediato e, às vezes tampouco possível, alcançar o ponto de vista filosófico a partir do mundo da vida cotidiana, faz com que a filosofia às vezes “seja algo privado de sentido” (Heidegger)24. Na anedota de Platão, é evidente que o filósofo não entende a razão da risada da criada e a “risada” que o filósofo dá como resposta à postura da jovem de Trácia é privada de sentido. De certa forma, ambos não sabem o que estão fazendo: a criada não sabe o que é a filosofia e o filósofo não entende a razão pela qual ele aparece ridículo diante do olhar do povo. O que é certo é que se desenvolveu no seio da tradição filosófica uma impostação metafísica que se torna alvo de derrisão diante da sociedade. E não se trata apenas de um vezo de Sócrates ou de Platão. Kant, por sua vez, se sentirá obrigado a tomar certa distância da arbitrariedade das vivencias humanas para fundamentar a validade universal do imperativo moral. E diríamos, sem com isso querer desconhecer a profundidade e importância da ética kantiana, que há algo “irônico” (no sentido da ironia da criada de Trácia) no imperativo kantiano. E do possível destino profetizado na risada da espirituosa criada (“ …. Essa pilheria se aplica a todos os que vivem para a filosofia ...”) tampouco escapa a fenomenologia de Husserl, no seu ato de recusar qualquer peculiaridade antropológica25. De acordo com as palavras de Cucci26, o lugar no qual Tales tropeça é significativo. Simbolicamente, o poço bem se presta a simbolizar uma parte do sujeito que corre o risco de passar despercebida pelo filosofo. De acordo com Cucci, o poço representa a profundeza da psique. Consoante com esta linha 24 Estas palavras de Heidegger são mencionadas por Blumemberg 1988, p. 159. H. Blumemberg, Poetik und Hermeneutik, Bd. VII, 14 ss., in G. Cucci 2008, p. 126, n. 8. 26 Cucci 2008, p. 126. 25 O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo interpretativa é possível destacar duas perspectivas antitéticas no interior da piada contada por Sócrates: a razão versus a risada; o céu versus a profundeza; a essência versus a existência encarnada; o universal versus o particular; o sábio versus a criada. Há também outro detalhe indicativo no incidente ocorrido a Tales. Blumemberg e Berger observam que a criada era de origem trácia. A Trácia, como se sabe, é o lugar do rito de Dioniso. Dioniso representa, de acordo com Nietzsche, um lado importante da civilização grega. O nome do deus está relacionado ao culto do júbilo sem limite, da dança descontrolada, do instinto livre e quase violento27. Na risada da criada trácia não há apenas a exibição de um caso divertido, protagonizado por um intelectual perdido na esperança de descobrir quantos anjos sentam na ponta de uma agulha, ou a medir matematicamente a pata de uma pulga ou a observar o zumbido de uma mosca, como diz Erasmo de Roterdã no Elogio da Loucura. O episodio de Tales foi lido como uma vingança da parte profunda e imprevisível do sujeito contra quem pretende reduzir o homem à pureza da razão28. Esta possível interpretação do mito de Platão não nasceu com Blumemberg nem com Nietzsche. Em um instigante ensaio Montaigne já detectou a peculiaridade do caso ocorrido a Tales e a advertência contida nele29. Em seus Ensaios Montaigne agradece a rapariga da Trácia, a qual, reparado que Tales está perdido em reflexões abstratas, coloca na frente dele um obstáculo, de modo que o filósofo tropeça e cai. De acordo com a leitura de Montaigne, trata-se aí de um aviso, de modo que o filósofo não esqueça que pode observar o céu só após ter respondido às questões que estão mais próximas dos seus pés. De certa forma, segundo a leitura de Montaigne, a criada adverte o filósofo da importância de voltar os olhos para si mesmo antes de procurar as coisas que estão no céu. 27 Cf. M. Pohlenz, L'uomo greco, Firenza 1986, pp. 104-105, mencionado por Cucci 2008, p. 127. A redução do homem à racionalidade parece representar o objetivo de Sócrates no Crito, especialmente 46b e no Mênon 89b: “E se passamos às coisas que pertencem à alma, tudo que nela deve ser bom depende da própria razão”. 29 M. de Montaigne, Saggi, II 12, Firenze, 1965, p. 552, mencionado por Cucci 2008, p. 126. 28 BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Se o filósofo não aceitar sua essência encarnada e a corporeidade de seu lado emocional, correrá o risco de perder ao mesmo tempo sua capacidade de ironizar, se tornando sem querer objeto de derrisão. O mesmo perigo foi frisado por Erasmo de Rotterdam, o qual ao longo da obra Elogio da Loucura declara de ter medo daqueles filósofos que nutrem a ilusão de estar na posse da totalidade das explicações, saltando para além dos particulares concretos e dos detalhes30. Assim sendo, a advertência disfarçada na risada da rapariga, além de tornar ridícula a presunçosa vaidade do filósofo, que esqueceu sua natureza corporea, introduz um procedimento filosófico que terá muita fortuna a partir de Sócrates: a ironia. Querendo exemplificar, podemos caracterizar a ironia socrática como uma critica decidida e espirituosa dirigida contra quem toma a sua própria postura em uma maneira demasiadamente seria e esquece as humildes, mas preciosas, palavras da criada. A risada eclode na forma de uma critica do povo diante de uma sabedoria excessivamente precisa e abstrata e, por isso, incapaz de discutir a realidade do mundo cotidiano. Se a filosofia não presta ouvido à sugestão mascarada na risada da criada corre o risco de se tornar coisa de lunático, um saber inútil, uma evasão capaz de construir raciocínios coerentes e até mesmo elegantes, porém, incapaz de se situar no mundo. Não obstante, a situação dramática que acabamos de descrever é uma das armadilhas em que a filosofia, por sua natureza, corre o risco de cair, mas não é seu destino natural. A filosofia é coisa seria, trabalhosa, requer esforço de compreensão, mas não para penetrar o estratosférico Iperuranio dos conceitos abstratos, ou a obscuridade dos compêndios dos filósofos. A filosofia está ciente que há muitas mais coisas para indagar entre o céu e a terra do que acima do céu. A tarefa da filosofia é aquela de entender, na medida do possível, o mundo complexo em que vivemos, cuja compreensão é fonte de problemas pelo fato que as idéias emprestadas da ciência, do mundo dos negócios ou mesmo dos dogmas teológicos não ajudam a interpretá-lo. A filosofia exige uma análise reflexiva da experiência 30 Erasmo de Rotterdam, Elogio della follia, Milano 1989, p.103, mencionado por Cucci 2008, p. 128. O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo cotidiana, o desmonte de conceitos que são transmitidos, muitas vezes repetidos, e interiorizados no âmbito da linguagem. É verdade que posições como aquelas descritas acima, que visam a certo estranhamento do mundo real, estão presentes na filosofia desde a Antiguidade, porém, a filosofia não se reduz a isso. No livro O Mundo de Sofia, Jostein Gaarder expõe uma situação figurativa para ilustrar o que é a filosofia e o ser filósofo. Ele nos trás o exemplo de um mágico que retira de sua cartola um coelho que simboliza o mundo. Na base dos pelos de coelho existem “bichinhos microscópicos”, são os homens, ou seja, as pessoas que estão costumadas com o mundo em que vivem e que só enxergam o comum. As pessoas comuns estão acomodadas no conforto da pelagem do coelho, aceitando as coisas como são. O filósofo, por sua vez, sobe da base para as pontas dos pelos do coelho em busca do incomum31. A filosofia não é o jeito encontrado pelo homem para fugir da realidade e se esconder no mundo estratosférico das Idéias. O ato de filosofar é uma reflexão, uma volta da consciência sobre si mesma a partir da experiência da vida. Como diz Michel Focault: Mas o que é o filosofar hoje em dia – quero dizer – a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já sabe?32. O filósofo recusa a visão cotidiana de um mundo de rotina onde tudo funciona mecanicamente, assim como recusa o modo redutor, esquematizador que o cientista tem de lidar com o real. (...) É preferível pensar sem disto ter consciência, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, participar de uma concepção de mundo imposta mecanicamente pelo ambiente exterior ou é preferível elaborar a própria concepção de mundo de uma maneira crítica e consciente e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?33 In “Elaboração de atividade de filosofia. Atividades de introdução à filosofia e filosofia politica”, Universidade de Santa Maria, RS, 2009, p. 2. Acadêmicos: Ariana, Camila, Lisiane, Mateus, Rafael A. e Tânia. 32 Focault 1984, p. 58. 33 Gramsci 2006, p. 76, mencionado por Hühne 2006, p. 65. 31 BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Conclusão A história das interpretações do mito que o filósofo Platão faz contar para o filósofo Sócrates no Teeteto é um símbolo da filosofia e da relação que a filosofia tem para com o mundo natural e social. O estudo da filosofia é visto ora como um estudo de difícil acesso, que fica num campo especializado habitado por profissionais que se fecham em grupos, muitas vezes, elitistas; ora como um estudo inútil e supérfluo, visto que não serve para ganhar a vida34. Não há duvida que a atitude do filósofo não é a mesma do mercenário, o qual reduz a existência à busca pelos meios para alcançar com sucesso ganhos financeiros. A atitude do filósofo difere também daquela do homem de ciência, o qual busca a clareza das respostas por meio de demonstrações racionais científicas. Ao contrário da ciência, a filosofia é um tipo de saber que sempre disputa, instiga, põe em discussão e se põe em discussão, questiona os valores e não oferece respostas prontas. Não cabe ao filosofo dar as últimas respostas sobre a realidade. A filosofia consiste na produção de argumentos para mostrar que uma resposta ou é parcial, ou confusa, ou contraditória, ou mesmo errada e por visar a persuadir o interlocutor do erro cometido e da necessidade de prosseguir na investigação. A filosofia representa a primazia da busca; para cada resposta obtida, a filosofia duvida. O conhecimento filosófico não é um estado, o estado da ciência, o estado da sabedoria dogmática, mas é um processo, uma busca, uma procura, mais precisamente, o reconhecimento incessante de que a cada conhecimento obtido uma nova pergunta se abre. Isso não significa que uma resposta não exista, e sim que deve sempre ser procurada e que sempre será maior do que nós. O fato de que nós sabemos sobre as coisas foi apontado como o maior de todos os mistérios. No nosso século, o filosofo da ciência Karl Popper, pensou no conhecimento como sendo a “maravilha suprema do universo” e o filosofo alemão Husserl denominou o encontro entre a razão e a realidade como “o enigma dos enigmas”. É diante do enigma e da incompreensão frente o mundo incomensurável ao redor de nós, que eclode uma risada: a filosofia se manifesta quando uma risada irrompe inesperadamente. Lembramos daquele jovem físico, ao qual aconteceu de presenciar uma aula do grande filósofo alemão Martin Heidegger 34 Cf. Hühne 2006, pp. 33-34. O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo inteiramente devotada à lógica. Após da aula, o jovem físico segurou o respiro por um instante e com surpresa dos presentes exclamou: Eis a filosofia! Não entendi uma única palavra, mas isso mesmo é a filosofia!35 Bibliografia Blumemberg, H., Il riso della donna di Tracia, Bologna: Bollati e Boringhieri, 1988, p.27. Brisson, L., Platon, le mots et les mythes, Paris: La Découverte 1994. Cucci, G., Filosofia e Psicologia della persona, <Gregorianum 90, 1, 2009, pp. 123-142. Desclos, M.-L., É possível ser corajoso e justo sem ser sábio?, Kléos n. 5/6, 2001/2002, pp. 1-27. Focault, M., História da sexualidade II, O uso dos prazeres, Rio de Jeneiro: Edições Graal 1984. Gramsci, A., A concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Hadot, P., O que é a filosofia antiga. Rio de Janeiro: Loyola, 1999. Heidegger, M., O Caminho do campo. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Editora Vozes, 1969. Hühne, L. M., Filosofia. Introdução ao pensar, Rio de Janeiro: UAPÊ 2006. Jones, P. V., O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. Trad. Ana Lia de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Lebrun, G., Por que filósofo? In Estudos CEBRAP São Paulo, 1976. V. 15, p. 148-153. Lyotard, J. F. O Pós-moderno explicado à criança. Lisboa: Dom Quixote, 1993. Pinheiro, M. Reis, Formas de interpretar “mito” em Platão e na contemporaneidade, <Boletim do CPA>, Campinas n. 15, 2003. Mancini, B.; Battistin, F.; Marini, G. Le domande della filosofia. Milão: La Nuova Italia, 2002. Vol. 1. 35 O físico em questão era C. F. Von Weizsacker e a anedota é citado por H. Blumemberg 1988, p. 160. FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana Fernando Fragozo1 Resumo O objetivo do presente texto é o de reconstituir em suas linhas principais o argumento central da conferência de Jacques Derrida denominada “O ‘mundo’ das Luzes por vir (Exceção, cálculo e soberania)”, no qual é realizada uma reflexão sobre a estruturação da racionalidade filosófica a partir da análise do caráter sistemático, arquitetônico e teleológico dos idealismos transcendentais de Kant e Husserl, caracterizados pela associação entre “soberania” e “incondicionalidade”. É contraposto a esse projeto, que é identificado por Derrida como característico da filosofia desde seus princípios, a racionalidade plural das ciências que, hoje, já não parece mais possível de ser subsumida, por analogia, a uma unificação. Por fim, é indicada a necessidade de se repensar o “acontecimento” como a vinda imprevisível, não calculável e impossível do “outro”, notadamente no que, hoje, se apresenta como o verdadeiro local de um problema da razão, a saber, a técnica. Palavras-chave: Razão, teleologismo, soberania, incondicionalidade, acontecimento Résumé Ce texte vise à reconstituer en ses lignes principales l’argument central de la conférence de Jacques Derrida « Le ‘monde’ des Lumières à venir (Exception, calcul et souveraineté) », dans laquelle une réflexion sur la structuration de la rationalité philosophique est entamée à partir de l’analyse du caractère systématique, architectonique et téléologique des idéalismes transcendentaux de Kant et Husserl, caracterisés par l’association, qui est identifiée par Derrida comme étant caractéristique de la philosophie depuis son origine, entre « souveraineté » et « inconditionnalité ». La rationalité plurielle des sciences, qui ne semble plus passible d’être subsumée, par analogie, à une quelconque unification, est confrontée à ce projet. Enfin, est indiqué le besoin de repenser « l´événement » comme la venue imprévisible, non calculable et impossible, de « l´autre », surtout dans ce que, aujourd’hui, se présente comme le vrai lieu d’un problème de la raison, a savoir la technique. Mots-clés: Raison, téléologisme, souveraineté, inconditionnalité, événement 1 Fernando Fragozo é professor associado da Escola de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ. E-mail:ferfra3@gmail.com Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana Em agosto de 2002, por ocasião da abertura do XXIX Congresso da Associação das Sociedades de Filosofia de Língua Francesa, realizado em Nice, cujo tema era “Futuro da razão, devir das racionalidades”,2 Jacques Derrida proferiu uma conferência intitulada “O ‘mundo’ das Luzes por vir (Exceção, cálculo e soberania)”, conferência essa que foi posteriormente publicada em Voyous – Deux essais sur la raison (2003). Dirigindo-se a uma audiência composta certamente de estudiosos de filosofia de expressão francesa, mas provavelmente não apenas, Derrida realiza uma incisiva reflexão sobre a razão, num percurso que visa confrontar o projeto “arquitetônico, sistemático e unificador” da filosofia – e mais especificamente do idealismo transcendental, tanto de Kant quanto de Husserl – à existência de razões plurais, rigorosas, mas não unificáveis ou unificantes, tais como se apresentam e se apresentaram nesta outra grande vertente ocidental que é a ciência - ou as ciências. A partir desse confronto, propõe Derrida pensar a possibilidade de uma razão “razoável” e não apenas “racional” que, de algum modo, saiba se posicionar diante do impensável que pode se dar na figura do “acontecimento” (événement). O mote inicial da conferência é a “hipótese”, que teria “vindo” a Derrida, segundo a qual seria, talvez, necessário “salvar a honra da razão” (2003, p. 167). Uma “hipótese” que abre imediatamente um abismo de questões que vão gradativamente constituindo um caminho de questionamento em torno deste conceito, a razão, e de tudo o que ele significa na tradição de pensamento que então se constituíra na – e constituíra a – Europa: “A honra da razão é a razão? A honra é razoável ou racional de ponta a ponta? [...] [P]referir a razão é racional, ou, o que ainda é outra coisa, razoável? O valor da razão, o desejo de razão, a dignidade da razão são racionais?” (Derrida, 2003, p. 169). E, trazendo para diante da cena um dos autores com os quais pretende dialogar neste texto, a saber, Kant, Derrida se pergunta se o interesse da razão (Interesse der Vernunft), esse interesse do qual fala Kant na primeira Crítica, pode ser “inscrito” justamente sob a “autoridade da razão”: é ele, esse interesse, de algum modo “racional”? Derrida lembra que, para Kant, “a razão humana é, por natureza, arquitetônica” (2003, p. 169), num trecho de Kant que merece ser citado por inteiro, na medida em que atinge o cerne da questão que Derrida quer levantar. Diz Kant: “A razão humana é, por 2 Avenir de la raison, devenir des rationanalités. FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 natureza, arquitetônica, isto é, considera todos os conhecimentos como pertencentes a um sistema possível, e, por conseguinte, só admite princípios que, pelo menos, não impeçam qualquer conhecimento dado de coexistir com outros num sistema” (2001, p. 438).3 Ora, o que Derrida propõe é que a ameaça a essa pretensa “vocação arquitetônica” da razão não viria das antinomias da dialética transcendental, mas, antes, das “racionalidades plurais” que se apresentam nas diversas ciências, cada qual tendo sua “região ontológica”, “sua necessidade, seu estilo, sua axiomática, suas instituições, sua comunidade, e sua historicidade próprias” (2003, p. 170). De fato, diante de sua multiplicidade heterogênea e de seus processos constitutivos e metodológicos diferenciados (“paradigma”, “epistémé”, “corte epistemológico”), segundo o “setor de objetos” e a história setorial a cada vez em questão, a ciência se revela, hoje, mais como um mosaico plural e não unificável (o que leva Derrida a falar de as ciências, no plural) do que como uma unidade que possa ser articulada num todo inter-relacionado analogicamente. Pluralidade de saberes e conhecimentos que, em sua “heterogeneidade intraduzível, sem analogia”, coloca em questão aquela “idéia reguladora da razão” que, como “mundo”, unificaria a experiência a partir de um “como se” que postularia a unidade para poder revelá-la (Derrida, 2003, p. 171).4 Neste sentido, se essas “racionalidades plurais” põem em questão a “vocação arquitetônica e unificadora” da razão, não é justamente essa a questão que tem de ser posta? Na verdade, a questão é diferentemente posta por Derrida: se “a autoridade magistral e dominadora [maîtresse et maîtrisante] da arquitetônica” é acatada, não correm essas diversas racionalidades o risco de se verem subsumidas ao que de fato não pode subsumi-las? Nas palavras de Derrida, que invertem a questão e propõem ver o risco em outro lugar: Não é então em nome destas racionalidades heterogêneas, de sua especificidade e de seu futuro, de sua história, de suas ‘luzes’, que é preciso pôr em questão a autoridade magistral e dominadora da arquitetônica e, assim, de um certo ‘mundo’, de uma unidade da Idéia reguladora de mundo que antecipadamente a autoriza? (2003, p. 171). 3 4 No original, A474 B502. Ver, por exemplo, o §V da Introdução da Crítica da faculdade de julgar. Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana Trata-se, então – e esse é o eixo central do texto –, de questionar o conceito de “mundo” e tudo o que o liga, como “Idéia reguladora”, à possibilidade de uma “autoridade magistral e dominadora” da razão, razão essa que é pensada como arquitetônica, sistemática e unificadora não apenas no idealismo transcendental de Kant mas também no de Husserl – e, nesse último caso, a atenção de Derrida se voltará para a conferência pronunciada por Husserl, em 1935, em Viena, denominada A crise da humanidade europeia e a filosofia. “Salvar a honra da razão”, portanto, o mote inicial da conferência, se vê assim encaminhado para um outro horizonte de questionamento que não aquele que, de início, pareceria constituir o problema a ser pensado e que é assim apresentado por Derrida: Filosofia enlutada, [...] ou bem porque o mundo estaria em vias de perder a razão, quiçá de se perder como mundo, ou bem porque a própria razão, a razão como tal estaria em vias de se tornar ameaçadora; ela seria um poder, ela teria o poder de ameaçar a si própria, de perder o sentido e a humanidade do mundo (2003, p. 173). Diagnóstico catastrófico, seja pelo mundo que perde a razão, seja pela razão que perde o sentido do mundo e de sua “humanidade”... Diagnóstico que ecoa aquele apresentado por Husserl em 1935 e que Derrida propõe justamente pensar em outros termos: Talvez devamos pelo contrário tentar pensar outra coisa que não uma crise. Talvez estejamos enfrentando algum sismo mais e menos grave, outra coisa que não uma crise da razão, além de uma crise da ciência e da consciência, além de uma crise da Europa, além de uma crise filosófica que seria, para retomar um título de Husserl, uma crise da humanidade europeia (2003, p. 174). Em 1935, Husserl se propõe – objetivo explícito apresentado na primeira frase de sua conferência – a “suscitar um novo interesse pelo tema, tantas vezes tratado, da crise européia”, lançando uma “nova luz” a essa crise a partir do desenvolvimento da “ideia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da humanidade européia” (2008, p. 317). Assim, o que está em jogo no texto de Husserl é a tentativa de, partindo de uma FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 constatação central (“as nações europeias estão doentes, a própria Europa, diz-se, está em crise” (Husserl, 2008, p. 318)), elaborar o correspondente diagnóstico e, se possível, encaminhar a cura, já que, diz Husserl, “há também para as comunidades, para os povos e para os estados, [...] uma diferença entre saúde e doença” (2008, p. 317). O desenvolvimento da “ideia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da humanidade europeia” constitui-se assim no cerne da conferência – e é esse desenvolvimento que visa aclarar o diagnóstico proposto. Um diagnóstico fatal, não apenas no sentido do desastre, mas também e principalmente pelo desastre se dar como fado, como destino – o que levará Derrida a falar de “fatalidade de uma patologia transcendental”, tal qual uma “doença da razão” (2003, p. 175). Porque o que está em jogo no diagnóstico de Husserl, propõe Derrida, é justamente da ordem de uma doença auto-imunitária: a razão, por si mesma, produz o veneno que pode destruí-la. De fato, na narrativa proposta por Husserl, a “humanidade europeia” é entendida como aquela que inaugura “uma nova forma de práxis”, a saber, “a ideia infinita (no sentido kantiano) de uma tarefa infinita como theoria, como atitude teorética” (Derrida, 2003, p. 176). Uma tal inauguração teria se dado por uma “conversão de atitude” (Umstellung) (Husserl, 2008, p. 329), que geraria “uma postura humana” peculiar, para a qual o que interessa é a “verdade pura e incondicionada” (Husserl, 2008, p. 336). Diz Husserl, a respeito do nascimento da Filosofia na Grécia: Apodera-se dos homens o fervor de uma consideração e de um conhecimento do mundo que se afasta de todo e qualquer interesse prático e que, no círculo fechado das suas atividades cognitivas e nos tempos a elas consagrados, nada mais almeja que pura teoria (2008, p. 333). Tal seria o sentido da tarefa infinita da razão que, enquanto theoria, enquanto razão científica universal, “Ciência greco-europeia” ou Filosofia (Husserl, 2008, p. 332), gera um “novo espírito”. Contudo, como aponta Derrida, para Husserl, “é precisamente esse ideal de uma ‘nova forma de práxis’ [...] que produz esse mal amnésico que se chama objetivismo” (Derrida, 2003, p. 177). Husserl vai assim chamar atenção para o perigo que ronda o “caminho da filosofia” – não apenas o irracionalismo que tomava conta da Europa de modo avassalador, mas também um certo “racionalismo Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana ingênuo”, que se mostra como um irracionalismo, que é gerado no seio mesmo do processo racionalizante e cujo nome é “objetivismo” (Husserl, 2008, p. 341). Como diz Derrida: Husserl o sabe e o diz: a ingenuidade objetivista não é um simples acidente. Ela é produzida pelo próprio progresso das ciências e pela produção de objetos ideais que, como de si mesmos, por sua iterabilidade e sua estrutura necessariamente técnica, velam ou relegam ao esquecimento sua origem histórica e subjetiva. Em seu próprio progresso, a razão científica produz espontaneamente a crise (2003, p. 178). Ao aprofundar essa análise de Husserl, Derrida revela o que está por detrás desse diagnóstico: a multiplicação de saberes especializados, de “ontologias regionais”, coloca justamente em risco a pretensa e idealizada unidade teleológica da razão: Esse efeito irracionalista se parece também com um devir das lógicas e das racionalidades plurais, e assim a um futuro da razão que resiste à unidade teleológica da razão, ou seja, a essa ideia de tarefa infinita que supõe, pelo menos como seu horizonte, uma totalização organizada das verdades (Derrida, 2003, p. 179 – grifo do autor). Ora, a teleologia, ou o teleologismo, fortemente marcante e presente no idealismo transcendental, tanto de Kant quanto de Husserl, é justamente o que, para Derrida “limita ou neutraliza o acontecimento/evento” (2003, p. 180). Em outras palavras, na medida em que há teleologia, na medida em que o que pode se apresentar como “irrupção imprevisível e incalculável” é ordenado sob uma historicidade prédeterminada, sua “alteridade singular e excepcional” é neutralizada, subsumida aos possíveis previsíveis do próprio processo teleológico. Nesse sentido, diz Derrida, “o teleologismo parece sempre inibir ou suspender, até mesmo contradizer a acontecialidade do que vem” (2003, p. 180) – e não se trata, para Derrida, apenas do teleologismo mais geral da razão ou do projeto ideal de uma racionalidade geral e universal. Trata-se também das teleologias “locais”, que orientam uma configuração específica (paradigma kuhniano, epistémé foucaultiana) e programam, “por meio de FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 uma estrutura de espera e antecipação”, o que não pode ser programado, a saber, a “invenção” que apenas “acontece” quando justamente é imprevisível e incalculável. Assim, o diagnóstico de Husserl da “doença” europeia aponta para uma doença da própria razão que, em seu processo teleológico infinito como theoria, por si mesma se desvirtuaria, nos detalhes do caminho, e perderia sua visão totalizante no “objetivismo”. Ora, o que Derrida quer apontar, invertendo a questão e, portanto, reconsiderando tanto a narrativa como o diagnóstico husserliano, é justamente o perigo, não da pluralização dos procedimentos, conhecimentos, saberes, mas, pelo contrário, da insistente tentativa de sempre de novo reuni-los sob uma mesma narrativa teleológica e totalizante que constitui justamente essa visão ideal ou idealizada de uma Europa sede da razão universal e do próprio devir da humanidade. A crítica de Derrida dirige-se, portanto, a esse pretenso papel de “arconte de toda a humanidade”, tal como apresenta Husserl (2008, p. 338), por parte da filosofia e da Europa, no sentido de pensar o perigo que representa uma tal idealização justamente para a possibilidade da existência e desdobramento da razão, na pluralidade desconcertante de suas instituições (no sentido lato do termo) científicas, fruto certamente de um projeto compreensivo e totalizante que, hoje, teria de ser revisto. A crítica de Derrida se faz assim justamente em nome da razão – mais especificamente da pluralidade da razão. Mas não apenas. Porque o que está em jogo para Derrida é não apenas a inversão da reflexão sobre o perigo que eventualmente ameaçaria o “mundo”, o “nosso” mundo, a saber, a proliferação das “racionalidades heterogêneas”, mas também e principalmente o que se apresenta por meio do confronto entre a “razão arquitetônica, sistemática e unificadora” e essas racionalidades plurais (confronto esse que transparece nas antinomias kantianas da razão e nessa resistência à unificação chamada por Husserl de “objetivismo” e de “naturalismo”). Ora, o que se apresenta por meio desse confronto é uma necessária e incontornável transação permanente (uma aporia) entre “dois lados” da razão, que Derrida assim nomeia como o condicional e o incondicional, o cálculo e o incalculável (2003, p. 208). O seguimento da análise da conferência de Husserl permitirá a Derrida descortinar o horizonte de questões que assim se apresentam. De fato, o diagnóstico Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana husserliano para a crise da razão – e, portanto, da Europa – aponta para uma saída, uma saída “heróica”, um “heroísmo da razão”, “Fênix de uma nova interioridade de vida e de uma nova espiritualidade”, que resgate a “essência do próprio Racionalismo” e desperte a razão de sua “alienação/extraneação” (Veräusserlichung) no objetivismo e no naturalismo (Husserl, p. 349). Com acuidade, Derrida questiona se esse “heroísmo da razão” diz respeito à razão, e se a fé na razão “é, de ponta a ponta, uma coisa racional – arrazoada ou razoável (raisonnée ou raisonnable)” (2003, p. 183). E a resposta é “sim”: Por que esse heroísmo da decisão responsável permanece, para Husserl, um heroísmo da razão? Não é porque a fé na razão superaria a razão. É porque a razão teórica é antes de tudo e finalmente, para ele como para Kant, de ponta a ponta, como tarefa prescritiva e normativa, uma razão prática, outros diriam uma metafísica da vontade livre (2003, p. 184). Ora, lembra Derrida, para Kant, a “subordinação da razão especulativa à razão prática é uma hierarquia irreversível” na medida em que o que está em jogo é o “interesse” da razão que, no caso da razão especulativa é apenas condicionado (nur bedingt) enquanto que, no caso da razão prática, é incondicionado (unbedingt) (2003, p. 188). Para Derrida, a incondicionalidade é, portanto, como “última verdade de um ‘interesse da razão’”, o que une, de forma subordinada, a razão prática à razão teórica (Derrida, 2003, p. 187). Nesse sentido, o tema da incondicionalidade surge duplamente na conferência de Husserl: em primeiro lugar, na medida em que a função arcôntica do filósofo é justamente marcada pela busca da “verdade incondicionada” (Derrida, 2003, p. 187; Husserl, 2008, p. 326) e, em segundo lugar, porque a tarefa prescritiva da filosofia como theoria é fundamentalmente uma práxis, cuja “razão de ser” é seu próprio interesse incondicionado. Essa análise da conferência de Husserl empreendida por Derrida tem assim o objetivo de pontuar as questões e estruturas centrais do texto husserliano que assinalam os tópicos que Derrida quer destacar na reflexão sobre a razão e seu devir. São assim destacados, por um lado, o teleologismo marcante do idealismo transcendental e, por outro, a incondicionalidade que o “sustenta”, tanto como “princípio absoluto da razão pura” quanto como “última verdade de um ‘interesse da razão’” (Derrida, 2003, p. 187). Em um resgate pontual de um “momento” que considera “quase inaugural” na FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 República de Platão, a saber, o diálogo a respeito da “ideia do Bem” (idea tou agathou) no Livro VI, Derrida aponta para a “filiação genealógica”, a “filiação panoramicamente europeia e filosófica” (2003, p. 194), da questão da analogia, do incondicional (anhypotheton), da causa suprema que dá o poder e a potência de conhecer, do poder soberano tanto da ideia do Bem como do sol, que reinam, cada um sobre seu reinado (mundo visível inteligível e mundo visível sensível), visando assim mostrar essa indissociabilidade “estrutural”5 da filosofia (do entendimento que esta tem da racionalidade) entre “a exigência de soberania em geral” e “a exigência incondicional do incondicionado” – uma indissociabilidade que parece, diz Derrida, “para sempre irredutível” (2003, p. 195). Ora, é justamente essa aliança, essa configuração teleológica incondicionada que Derrida quer questionar – e aqui cabe citá-lo mais longamente na exposição detalhada do que propõe: Tratar-se-á para mim de perguntar se, ao pensar o acontecimento/evento (événement), o vir, o advir/futuro (avenir) e o devir (devenir) do acontecimento, não é possível e em verdade necessário subtrair a experiência do incondicional, o desejo e o pensamento, a exigência da incondicionalidade, a própria razão e a justiça da incondicionalidade, a tudo o que se ordena em sistema a esse idealismo transcendental e à sua teleologia. Em outras palavras, se há uma chance de acordar o pensamento do acontecimento incondicional a uma razão outra que não aquela da qual acabamos de falar, a saber, a razão clássica do que se apresenta ou anuncia sua apresentação segundo o eidos, a idea, o ideal, a Ideia reguladora ou, o que aqui corresponde ao mesmo, o telos (2003, p. 189). O que significa propor a dissociação dessas duas exigências da razão. Uma dissociação que, pergunta-se Derrida, não seria justamente fiel “a um dos dois pólos da racionalidade, a saber, a essa postulação de incondicionalidade”? (2003, p. 196). Em nome de uma incondicionalidade radical, em nome da própria incondicionalidade, a postulação de Derrida visa ao que, nesta associação entre a soberania e o incondicional ainda permanece condicionado, a saber, à própria associação. Posição, portanto, que corresponde, por assim dizer, a levar a sério a exigência de incondicionalidade de um dos “pólos” da razão. Radicalizar e aprofundar o pensamento sobre esse “pólo” 5 O termo não é de Derrida. Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana consistirá então em pensar, “em nome da razão” (2003, p. 196), a possibilidade de “distinguir, ali mesmo onde isso parece impossível, entre, de um lado, a compulsão ou a auto-posição de soberania [...] e, de outro, essa postulação de incondicionalidade que se encontra tanto na exigência crítica quanto na exigência [...] desconstrutora da razão” (Derrida, 2003, p. 196). Nesse sentido, Derrida propõe uma definição da “desconstrução”: ... a desconstrução, se algo assim existisse, seria a meu ver, antes de mais nada, um racionalismo incondicional que não renuncia nunca, precisamente em nome das Luzes por vir, no espaço a abrir de uma democracia por vir, a suspender de modo argumentado, discutido, racional, todas as condições, as hipóteses, as convenções e as pressuposições, a criticar incondicionalmente todas as condicionalidades, inclusive aquelas que fundam ainda a ideia crítica, a saber, a do krinein, da krisis, da decisão e do juízo binário ou dialético (2003, p. 197). Incondicionada passa a ser então a postulação da incondicionalidade, que leva a uma crítica/desconstrução constante e atenta do que se constitui ou pode se constituir em soberania. Soberania incondicionada do incondicionado – tal parece ser a proposta da postulação derridiana, o que, evidentemente, se apresenta como um paradoxo, “tão difícil ou improvável que pareça, tão im-possível até” (Derrida, 2003, p. 197). E por isso Derrida enfatiza o fato de tratar-se de uma postulação e não de um princípio ou um uma axiomática, já que a postulação é da ordem da demanda, do desejo ou da exigência imperativa, e não da ordem da “autoridade principesca e potente do primeiro, da arkhè ou da presbeia” (no caso do “princípio”), nem diz respeito a uma “escala comparativa e logo calculável dos valores e avaliações” (como é o caso de uma axiomática) (2003, p. 196). O que está em jogo é um “outro pensamento do possível [...] e de um impossível que não seria apenas negativo” (Derrida, 2003, p. 197). Neste sentido, a questão passa justamente por repensar o “acontecimento”, a ordem do possível e do impossível, o advir do que vem6, em sua imprevisibilidade. Im-previsibilidade que O que, em francês, encontra uma “ligação semântica” particular, parcialmente traduzível para o português, entre futuro, devir, vir, vinda, acontecimento/evento, advento (avenir, devenir, venir, venue, événement) (Derrida, 2003, p.197). 6 FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 aponta para o caráter de algum modo visível, pré-visível do que vem, que, em sua prévisão a partir de algum horizonte que já o torna presente, apresentável, o neutraliza em sua irrupção (Derrida, 2003, p. 197). E Derrida acrescenta: “Onde quer que haja horizonte e onde se vê vir a partir de uma teleologia e do horizonte ideal [...], essa idealidade terá antecipadamente neutralizado o acontecimento” (2003, p. 198). Ora, se é mister considerar que “não haveria nem ciência, nem linguagem, nem técnica [...], nem experiência em geral, sem a produção de alguma idealidade” (Derrida, 2003, p.198), a questão é justamente pensar essa “neutralização” do acontecimento que toda idealidade realiza, pois um “acontecimento” com esse nome é, para Derrida, o “outro” impossível, imprevisível, inapresentável – monstruoso, portanto. E, propõe Derrida, o que pode de algum modo ser reapropriado (a questão é justamente o “próprio”) por uma idealidade teleológica, por uma narrativa que dê continuidade ao que “aconteceu”, não seria de fato um “acontecimento”: esse é inapreensível e inapropriável e, assim, diz Derrida, “um acontecimento ou uma invenção são apenas possíveis como im-possíveis” (2003, p. 198). O que Derrida tem em vista nessa questão é tanto a necessidade de pensar o “acontecimento” do “outro” inapropriável, quanto o perigo de que a pesquisa e o questionamento se vejam submetidos e submissos a algum controle político, militar, técnico-econômico ou capitalístico – a relação entre saber e poder se apresentando, para Derrida, com uma estanqueidade intransponível: do mesmo modo que nenhum poder [...] saberá justificar com razão o controle ou a limitação de uma pesquisa científica, de uma busca da verdade, de um questionamento crítico ou desconstrutivo [...], tampouco nenhum saber enquanto tal, nenhuma razão teórica [...] poderá fundar uma responsabilidade e uma decisão de modo contínuo” (2003, p.199). Para Derrida, uma decisão enquanto tal, digna desse nome, apenas engaja a responsabilidade na medida em que não pode ser programada ou prevista. Ela tem sempre algo de “louco”, o que, diz Derrida, “estou consciente, comporta um risco muito grave” (2003, p. 199). E, para Derrida, “o verdadeiro local de um problema da razão hoje” é o da técnica, do “próprio do homem”, do “próprio do corpo vivo” (2003, p. 200) Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana e a “metonímia” contemporânea de “todas as urgências que nos assaltam” (Derrida, 2003, p. 200) é justamente a questão da clonagem – evidente local no qual a questão da razão, do acontecimento, do outro, do possível e do impossível, do poder, da decisão e da responsabilidade se colocam à prova, de modo radical. E se a questão sobre a clonagem mobiliza toda a conceituação proposta na conferência, toda a revisão conceitual, toda a racionalidade e a razoabilidade da razão – que, para não se perder de si mesma, não se perder a ponto de ter apenas a sua honra salva, deve, tal qual um imperativo, ser racional e razoavelmente repensada –, é porque ela mobiliza, em modo paroxístico, a reflexão sobre o acontecimento, o outro e o devir, de um modo tal que a associação estrutural entre soberania e incondicionalidade, marcante na exigência racional da filosofia, a rigor, não permite pensar. O que é, sem dúvida, como aponta Derrida, o que precisa urgentemente ser pensado. Referências bibliográficas: DERRIDA, J. “Le ‘monde’ des Lumières à venir (Exception, calcul et souveraineté)”. In: Voyous – Deux essais sur la raison. Paris: Galilée, 2003. HUSSERL, E. “A crise da humanidade européia e a filosofia”. In: A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental – uma introdução à filosofia fenomenológica. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Phainomenon/Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2008. Disponível em http://www.lusosofia.net/textos/husserl_edmund_crise_da_humanidade_europeia_filosofia.pdf KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento Guilherme Müller Junior1 Resumo: O empirismo de Hume não se esgota em uma teoria do conhecimento, nem em um ceticismo. O Tratado da Natureza Humana apresenta uma fulguração conceitual e uma imagem do pensamento que estão para além das determinações que a história da filosofia lhes atribuiu. Seu empirismo se desenvolve no plano problemático das relações. Hume desenvolve um complexo conceitual que se articula em três momentos coexistentes: relações, paixões e artifícios. Na confluência, ou transfusão, das relações e das paixões encontra-se a dinâmica dos artifícios, da invenção. Palavras-chave: Empirismo; relações; paixões; artifícios; invenção. Abstract: The Hume’s empiricism can not be reduced to either a theory of knowledge or to skepticism. A Treatise of Human Nature presents a conceptual fulguration and an image of thought that lie beyond the place it traditionally occupies in the history of philosophy. His empiricism unfolds on the problematic realm of relations. Hume engenders a conceptual complex that is then articulated around three coexistent points, namely: relations, passions, and artifice. It is in the confluence, or transfusion, of relations and passions that the dynamics of artifices, of inventions, is to be found. Key-words: Empiricism; relations; passions; artifices; invention. O que é a filosofia de David Hume? Embora seja simples essa pergunta não é fácil de ser respondida, ou pelo menos não deveria ser. É hábito associar o nome de Hume ao ceticismo e ao empirismo entendido como teoria do conhecimento. É tal hábito legítimo? Em quê ele se sustenta? Tanto no caso do ceticismo quanto do empirismo entendido como teoria do conhecimento, há razões suficientes para se sustentar tal hábito, sobretudo razões de História da Filosofia. Entretanto, como se sabe, a História da Filosofia não cessa de colocar referenciais, eixos de orientação e de filiação para fixar o devir quase sempre difuso do pensamento. Desse modo, se seguirmos o devir do pensamento, no lugar da História da Filosofia, seremos levados a entender que a filosofia tem o seu próprio devir, faz uma história que não se confunde 1 Guilherme Müller Junior é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: guilherme.m.jr@hotmail.com Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento com a História que dela fazem. No lugar de uma pergunta sobre a definição da filosofia de Hume, propõe-se aqui a seguinte pergunta: como funciona o seu pensamento em função do problema que ele coloca? É assim que pretendemos nos colocar no devir filosófico propriamente humeano, ao invés de nos perdermos em falsos problemas históricos que lhes são estranhos. Não encontramos outro caminho, já que Hume, extremamente sensível ao seu tempo, parece ter escrito o Tratado da natureza humana (1739-1740) exasperadamente contra o seu tempo2. Para abordarmos sua filosofia é necessário acompanhar as linhas do seu movimento a partir do campo problemático que traça e de onde provém. Ao fazer isso pretendemos nos distanciar das interpretações hegemônicas que Hume sofreu, bem como dos hábitos que condicionam as atuais interpretações. Atentando para seu campo problemático, para aquilo que ele reivindica por direito, veremos emergir uma filosofia singular que não se define como um ceticismo nem como um empirismo vulgar entendido como teoria do conhecimento. Hume, com efeito, parece não se preocupar tanto com o conhecimento e seus problemas (origem, possibilidade e legitimidade), mas sim com o problema das relações (origem, possibilidade e legitimidade) e isso muda tudo. Tentaremos mostrar neste artigo as razões que nos levaram a assim entendê-lo3. Hume é um desses poucos pensadores que define todo um pensamento, que concentra toda uma filosofia, em apenas uma frase: “O homem é uma espécie inventiva” (Hume, 2001. p. 524). Essa assertiva soa como conclusiva, quase no final do seu texto, mas ressoa também desde o início, como se estivesse sempre presente, como 2 É bem conhecida a sensação de estranheza e antipatia de Hume em relação ao seu tempo, e do seu tempo com ele: “Em um primeiro momento, sinto-me assustado e confuso com a solidão desesperadora em que me encontro dentro da minha filosofia; imagino-me como um monstro estranho e rude que, por incapaz de se misturar e se unir à sociedade, foi expulso de todo relacionamento com os outros homens e largado em total abandono e desconsolo. De bom grado, aproximar-me-ia da multidão à procura de abrigo e calor; mas não consigo convencer a mim mesmo a me juntar a ela, tendo tal deformidade. Clamo a outros para que se juntem a mim, para formarmos um grupo à parte; mas ninguém me dá ouvidos. Todos mantêm distância, temendo a tempestade que se abate sobre mim de todos os lados. Expus-me à inimizade de todos os metafísicos, lógicos, matemáticos e mesmo teólogos; como me espantar, então, com os insultos que devo sofrer? Declarei que desaprovo seus sistemas; como me surpreender se expressarem seu ódio a meu próprio sistema e minha pessoa?” (Hume, 2001, pp. 296-297). Sabe-se que a publicação do Tratado foi um completo fracasso, pois quando não ignorado foi muito mal recebido. Para adequá-lo ao seu tempo, Hume publicou três obras distintas intituladas Investigações (sobre o entendimento humano, sobre as paixões e sobre os princípios da moral), correspondentes às três partes do Tratado (do Entendimento, das Paixões e da Moral). Contudo, com o objetivo de tornar sua filosofia acessível ao seu tempo, Hume praticamente reescreveu todo o Tratado nessas três obras, sacrificando parte da riqueza e da potência da sua obra original. 3 Este artigo expõe, em linhas gerais, os problemas e as hipóteses de nossa Dissertação de Mestrado em Filosofia intitulada Relações, paixões e artifícios. O empirismo de David Hume, defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, em outubro de 2003. MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 um grito mudo que inspira o seu pensamento e que aguarda apenas um momento para vir à tona. Eis o que Hume reivindica de direito ao longo de todo o Tratado: a invenção. Desde o início, até o final, a problemática que ele enfrenta e desenvolve é tão somente essa: o homem como espécie inventiva. Não é o homem meramente um sujeito do conhecimento, mas antes uma espécie inventiva. Esse grito projeta uma imagem do pensamento, um modo singular de pensar que inspirará sua criação conceitual. É precisamente nesta imagem que nos localizaremos, bem como nos problemas e nas questões por ela suscitadas. Seu empirismo se definirá, assim, pelo desenvolvimento dessas questões, pelas implicações desses problemas. Cabe, então, para além de um mero comentário ou análise, tirar conseqüências dessa filosofia para o pensamento; ver, para além dos preconceitos da História da Filosofia, o que pode essa filosofia. É exatamente neste ponto que vemos a precisão dos trabalhos de Gilles Deleuze sobre Hume, com os quais nos aliamos. Deleuze não o trata como mais um filósofo fixado ou localizado cronologicamente na história da filosofia, mas procuram entendê-lo precisamente onde a História da Filosofia o impediu, o apagou; precisamente ali onde ela não foi capaz de acompanhá-lo. A História da Filosofia mais ou menos absorveu, digeriu o empirismo. Ela o definiu numa relação de inversão com o racionalismo: haverá ou não nas idéias alguma coisa que não esteja nos sentidos ou no sensível? Ela fez do empirismo uma crítica do inatismo, do a priori. Mas o empirismo sempre teve outros segredos. E são esses que Hume eleva ao mais alto grau, que exibe em plena luz, em sua obra extremamente difícil e sutil. (Deleuze, 1974. p. 59) O empirismo de Hume, tentaremos mostrar, não se define inteiramente como uma teoria do conhecimento. Não há dúvidas de que o problema do conhecimento se colocará. Entretanto, não é esse a verdadeira questão dessa filosofia, pois mesmo esse problema é consequência de um outro, ainda anterior, que permaneceu ignorado. Foi precisamente o plano problemático que Hume traçou, e de onde provém o seu empirismo, que a História da Filosofia não acompanhou, ou antes, o substitui por falsos problemas. Veremos se o problema das invenções, no lugar do conhecimento, pode nos levar a entender esses outros segredos. Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento O empirismo só é definível a partir do campo problemático que ele instaura. Esse campo problemático caracteriza-se, em grande parte, pelo problema das relações. O empirismo humeano não esgota seus contornos em uma “origem sensível das ideias”. Sem dúvida nenhuma as ideias derivam da impressão sensível4, da sensibilidade, mas o que dizer das relações? Hume, com vistas no problema das relações, subdivide as percepções do espírito (impressões e ideias), em simples e complexas5. As impressões e ideias simples são aquelas que não admitem nenhuma separação ou distinção, pois são consideradas unidades em si mesmas, iguais ao simples dado sensível. As ideias complexas são aquelas que admitem separação e distinção na medida em que são compostas de ideias simples. As impressões e ideias complexas são implicações ou operações realizadas a partir das ideias simples, tais como a união de uma ou mais desses termos simples6. É assim que Hume começa a vislumbrar o problema das relações, ao constatar que as impressões e ideias complexas são derivadas de operações a partir das ideias simples. O cerne do problema das relações está, portanto, nessas operações a partir das ideias simples, isto é, no momento em que as ideias simples se tornam complexas, compostos de relações. A simplicidade de uma ideia consiste na sua indivisibilidade, e tal propriedade resulta da origem sensível da ideia. Impressões simples só podem produzir ideias simples. Ora, uma ideia simples é indivisível justamente por resultar de uma impressão sensível, que é simples por natureza7. Impressões de sensações produzem apenas ideias simples, em virtude da natureza das sensações. Assim sendo, as impressões de sensação conferem simplicidade às ideias e como tais são as primeiras ideias, as mais originais. Com efeito, Hume dedica poucas passagens sobre a “origem sensível das ideias”, sobre a distinção simples entre impressões e ideias. Tal distinção se complica, e torna-se complexa, na medida em que ele encaminha sua investigação em direção às relações. Nessas primeiras distinções, entre impressões e ideias simples, Hume descreve apenas a origem sensível do espírito, a origem dos dados que compõem o estado primitivo do espírito. Denominamos esse momento de primeiro sentido da experiência, a experiência entendida como sensibilidade pura e simples. 4 Cf. Hume, 2001. p. 25. Cf. Ibid. p. 26. 6 Cf. Ibid. pp. 27-28. 7 Cf. Ibid. pp. 26-27. 5 MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 O que dizer das relações? O espírito, nesse primeiro sentido da experiência, é precisamente igual ao dado sensível, ele não passa de uma coleção de ideias distintas, fluxos de percepções sem ordenação ou regularidade, nada além ou aquém. A sensibilidade, o primeiro sentido da experiência, só nos fornece o dado atual, aquilo que está imediatamente dado e presente aos sentidos, ou seja, impressões e ideias simples. Vejamos um célebre exemplo8: o sol nascerá amanhã? Não encontramos na impressão ou ideia de “hoje”, a impressão ou ideia de “amanhã”. Sim, pois o “amanhã” não está dado “hoje”. Dizer de “hoje” “amanhã” constitui uma ultrapassagem do que está atualmente dado pela sensibilidade (“hoje”), no entanto, não se cessa de fazer isso. Ora, é precisamente isso que faz das relações um problema. A relação de ambos os termos não está dada na imediatez da sensibilidade, portanto não nasce nela. Se não há nas ideias simples nada além da experiência sensível, das impressões de sensação, é justamente porque elas são simples átomos sensíveis. Assim sendo, as relações não podem ser derivadas desse puro dado sensível, desse primeiro sentido da experiência, já que as impressões simples só produzem ideias simples. Mas é precisamente aí que as relações encontrarão sua matéria prima, seu meio de proveniência, na medida em que as ideias complexas são compostas de ideias simples. As relações nascem em outro lugar, provém de uma outra experiência. O lugar, esse meio de proveniência das relações, Hume o nomeia de imaginação9. Esse sim é, talvez, o momento mais importante desse empirismo, precisamente onde ele traçará seu campo problemático e de onde partirá. As ideias, todas elas, encontram-se na imanência da imaginação, onde algo de fato começa a acontecer. Nela as ideias são absolutamente livres, exteriores e radicalmente diferentes entre si. A liberdade da imaginação se expressa por uma total ausência de hierarquia entre as ideias, por uma total neutralidade. Não há nenhuma ideia que seja mais compreensiva, extensiva ou profunda, já que todas gozam da inocência que define o estatuto da imaginação10. É assim que nela todas as ideias simples podem se separar ou 8 Cf. Hume, 2004. p. 54. Cf. Ibid. pp.32-35. 10 Logo no início do Tratado Hume estabelece a primeira diferença entre a imaginação e a memória. Enquanto a memória é a potência da ideia de se repetir no espírito conforme o seu vínculo com a impressão que lhe deu origem; a imaginação, por sua vez, é a potência da ideia de se repetir em si mesma, sem nenhum vínculo. Enquanto que as ideias da memória são extensões de uma impressão originária, as ideias da imaginação são puras ideias em si. Na imaginação as ideias perdem toda a extensão, pois nela as ideias são puras, desvinculadas de sua impressão correspondente, livre e neutra, esquecida da sua origem, “tornando-se uma perfeita ideia”. Hume, 2001. pp. 32-33. 9 Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento se unir a todas as outras, ao acaso, na medida em que nenhuma ideia implica ou compreende uma outra, necessariamente11. Qualquer mundo é aí possível, pois já que as ideias não se unem por necessidade ou natureza, pela mesma razão elas não se excluem. Eis a neutralidade que define a imaginação, cujo princípio instaurador é o da diferença e exterioridade radicais. Hume assim o estabelece: Em primeiro lugar, já observamos que todos os objetos diferentes são distinguíveis, e que todos os objetos distinguíveis são separáveis pelo pensamento e imaginação. Podemos aqui acrescentar que essas proposições são igualmente verdadeiras em seu sentido inverso: todos os objetos separáveis são também distinguíveis, e todos os objetos distinguíveis são também diferentes. (Hume, 2001. p. 42. Grifos nossos). As consequências disso para o pensamento das relações são profundas. É na imaginação que as ideias ganharão um movimento próprio, é nessa imanência de pura diferença que as ideias se encontrarão. A imaginação é concebida como uma potência das ideias de se unir e de se separar de forma absolutamente livre, ela é definida como a imanência dessa pura diferença, e o seu princípio não é outro senão o da diferença radical12. Deleuze encontrou nesse princípio a força singular do empirismo de Hume: “A originalidade de Hume, uma das originalidades de Hume, provém da força com que afirma: as relações são exteriores aos seus termos” 13 . Com efeito, as ideias são exteriores entre si, já que são distinguíveis e separáveis na imaginação. O princípio da diferença das ideias instaura a exterioridade (“... já observamos que todos os objetos diferentes são distinguíveis, e que todos os objetos distinguíveis são separáveis...”), e consequentemente a liberdade da imaginação. É na imaginação que as ideias se relacionam de forma livre e delirante, é a partir da exterioridade das ideias que as relações se compõem. Isso implica em dizer que as relações não estão dadas desde sempre, já que as ideias são exteriores entre si; assim como também não são fornecidas pela experiência sensível, pois estas só fornecem ideias simples. As relações, portanto, só podem ser derivadas de um determinado processo na imaginação, no modo como se encontram e se experimentam na exterioridade que passa entre elas. A exterioridade das 11 Cf. Ibid. p. 34-35 Cf. Hume, 2001. p. 34. 13 Deleuze, 1974. p. 60. Encontramos uma análise mais detalhada a respeito da exterioridade das relações em Empirismo e Subjetividade. pp. 110-113. 12 MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 ideias instaura, desse modo, a possibilidade da experiência das próprias ideias, é ela que possibilita o processo de composição das relações. Assim, a pergunta empirista estará disposta nos seguintes termos: dada a possibilidade das relações na exterioridade das ideias, como são elas compostas? Que processo é esse que tem como meio de proveniência uma imanência de diferença radical, a imaginação? Como da diferença e exterioridade das ideias emergem as relações? É desse modo que se define o problema das relações, e é essa problemática que confere ao empirismo de Hume uma imagem singular do pensamento, cujo princípio é o da diferença e exterioridade das ideias. Essa imagem se expressa por um modo próprio de pensar as relações. Na filosofia de Hume a relação não interioriza os termos nela dispostos, pois é preciso lembrar que, embora relacionadas, as ideias permanecem distinguíveis e separáveis na imaginação14. A relação não se encontra interiorizada em nenhum dos seus termos, bem como não decorre da natureza desses termos; ela se estabelece na exterioridade, fora dos termos, e lá permanece. Desse modo, a relação não é constituída pela natureza ou essência dos termos, nem é composta por um termo em particular. A relação não depende, assim, dos seus respectivos termos, ela não se constitui na interiorização ou na subordinação de um pelo outro, dado que um termo não é interior ao outro. No empirismo de Hume não há termo que seja mais compreensivo, extensivo ou mais profundo, de modo que se possa interiorizar ou subordinar um termo por outro. Os termos, ou seja, as ideias, não possuem extensão lógica na imaginação15. Assim, um termo não depende nem deriva necessariamente do outro, e ambos (uma relação) não constituem uma interioridade no todo que formam nem na ideia (complexa) da qual participam16. Pode-se dizer, nesse sentido, que as ideias são essências vazias de atributos, já que nelas não estão inscritos as suas respectivas naturezas, segundo as quais as relações deveriam se constituir. É necessário afirmar, portanto, que as ideias da imaginação são essências neutras. Enfim, neste modo de pensar não há termo que seja responsável pela relação, pela interioridade ou necessidade de uma relação. A imaginação, não se pode esquecer, neutraliza as ideias colocando-as em um plano horizontal, sem hierarquia. As ideias, os termos, se encontram na exterioridade que 14 Conforme aquilo que dispõe o princípio da diferença e exterioridade das ideias que instaura a imaginação. Cf. Hume, 2001, p. 42. A imaginação é uma potência ilimitada de separação e união das ideias. Cf. Ibid. pp. 34.35. 15 Ver nota 10. Hume estabelecerá outras distinções entre memória e imaginação derivadas da primeira. Cf. Ibid. Livro 1, Parte 3, Seção 5. 16 Cf. Deleuze, 1974. p. 60. Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento passa entre elas, em um plano neutro. A relação não está nos termos, não é dada pelos termos, ela está fora deles. É tudo o que decorre do princípio inegociável de distinção e separabilidade das ideias, que instaura a imaginação como um plano de experiência das ideias. Esse empirismo apresenta assim a irredutível diferença, heterogeneidade e exterioridade dos termos, e consequentemente a irredutível exterioridade das relações, pois essas não estão dadas nos termos, não estão prontas no mundo. Elas não são objetos de conhecimento ou de desvelamento. As relações são produtos de um processo preciso, de um devir, pois se os termos são exteriores e heterogêneos, se eles não derivam ou dependem mutuamente uns dos outros, as relações entre eles não estão dadas, não estão prontas. As relações serão, portanto, aquilo que está por ser produzido, aquilo que está em devir. É exatamente isto que configura um problema: as relações não estão dadas previamente no mundo, seja esse epistemológico, estético, moral, cultural, político ou jurídico. Ora, um mundo é composto por relações, porém, estas mesmas relações não estão dadas desde sempre, não esperam ser desveladas ou conhecidas, como se estivessem inscritas na natureza ou essência das coisas, sejam elas subjetivas ou objetivas. Desse modo, o problema irá se constituir na tarefa de produzi-las, ou, ainda, de inventar um mundo. As relações, um mundo, são constituídas a partir da exterioridade dos termos, são produtos de um processo: a invenção. A diferença e exterioridade das ideias e dos termos inspiram a necessidade de inventar, de compor as relações. Esse processo inventivo é objeto de investigação da filosofia de Hume e ele a descreve ao longo de todo o Tratado. Ele procura descrever o devir prático desse processo, a dinâmica dos elementos que a compõem. Hume procura fazer uma ciência desse processo ao qual nomeia de ciência da natureza humana 17. A filosofia de Hume, o seu empirismo, procura desenvolver uma ciência do homem, mas sob condições muito especiais. É necessário precisar, ainda que de forma incipiente, o sentido de natureza humana em Hume. Essa não desempenha nenhum papel a priori, de constituinte e condicionante de si mesma, tal como uma substância subjetiva. Ela própria é constituída, é produto daquele processo inventivo acima referido. Melhor dizendo: ela é o próprio processo, enquanto potência inventiva. A ciência da natureza humana não pretende, assim, expor os atributos do homem, o seu 17 Cf. Hume, 2001. Introdução e p. 305. MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 ser, o a priori que o constituiria, mas os movimentos próprios que o constituem como processo. Essa filosofia, nesse sentido, procura descrever o processo das invenções, a dinâmica e o plano problemático onde esse processo se instaura. Hume não procura investigar essa natureza em si, mas os princípios que constituem o processo dessa natureza, que produzem essa natureza. Esses princípios não fundam uma natureza humana prévia, não são princípios de uma subjetividade, na medida em que, em si mesmos, não constituem uma natureza18. Eles constituem, antes de qualquer coisa, princípios imanentes de uma experiência na qual emerge a própria subjetividade. Com efeito, a própria subjetividade, bem como a natureza humana, não constituem uma anterioridade, mas se constituem como produtos ou, mais precisamente, como processo. Não percamos de vista a frase de Hume, na qual afirma que “o homem é uma espécie inventiva” (Hume, 2001. p. 524). Hume descreve a natureza humana naquilo que lhe é peculiar, a potência inventiva, inventiva inclusive e especialmente de sua própria natureza. Eis o que caracteriza o problema essencial desenvolvido no Tratado. Como já foi dito, as invenções se constituem na produção das relações, na composição das relações. Sendo as relações o produto de um processo preciso, e considerando ainda que não decorrem da natureza dos termos, elas são, antes de tudo, implicações de outros princípios19. A ciência da natureza humana deverá expor o funcionamento desses princípios, o efeito desses princípios, a saber, a composição mesma das relações. A esses princípios Hume nomeia de “princípios de conexão ou associação” (Hume, 2001. p. 34-35), aos quais ele dedica o primeiro livro do Tratado, onde desenvolve a dinâmica das relações e toda a sua problemática. Ele elenca três formas possíveis de associação: causalidade, semelhança e contigüidade. Elas constituem as possibilidades de regulação, os modos possíveis de conectar uma ideia a outra, pois uma relação é aquilo que nos faz passar ou conectar uma ideia a outra, o que nos faz associar uma impressão ou ideia dadas atualmente pelos sentidos com uma outra impressão ou ideia não dadas. Tais princípios estabelecem as formas segundo as quais a imaginação pode ser regrada, retirada do seu estado primitivo de indeterminação e neutralidade, estabelecem uma ordem que não é da natureza da imaginação. No entanto, nesse primeiro livro, Hume trabalha apenas com funcionamento lógico das relações, Deleuze assim coloca a questão de Hume: “A questão de que Hume tratará é a seguinte: como o espírito devém uma natureza humana?” (2001, p. 12). 19 É esse o entendimento de Deleuze. Cf. 2001, p. 13-18. 18 Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento com as condições lógicas de possibilidade das relações. Nesse primeiro momento é apresentado apenas o sistema do Entendimento. Tal sistema e os princípios de associação só compõem o momento lógico da composição das relações, conferem apenas a forma lógica às relações. Entretanto, a filosofia de Hume não se esgota em seu primeiro livro, pois seu empirismo não se define apenas pelo funcionamento lógico das relações no sistema do Entendimento. Embora seja o livro mais comentado, por ter desenvolvido problemas que influenciou os movimentos da História da Filosofia, como a sua famosa crítica à ideia de causalidade e de conexão necessária, ele não define inteiramente o empirismo humeano. Essa limitação hegemônica constitui a linha interrompida do empirismo. A filosofia de Hume ficou, desse modo, limitado apenas ao seu primeiro momento, localizado e definido pelo sistema do Entendimento e seus princípios. Porém, como bem disse Deleuze20, o empirismo sempre guardou outros segredos, e são esses segredos que Hume expõe; são essas novas potências que ele desenvolve e que fazem do empirismo uma filosofia singular. Com efeito, Hume está preocupado com todos os movimentos das invenções, com todos os elementos que compõem a dinâmica das invenções. O primeiro livro apresenta as condições lógicas de possibilidade das relações, mostra como toda relação é formalmente composta. O sistema do Entendimento expõe tão somente o funcionamento dos princípios lógicos das relações, mostra como elas são constituídas apenas quanto à forma, como as relações, em geral, são constituídas. Porém o Entendimento é incapaz de explicar como elas se constituem em particular. Ele não constitui, no seu funcionamento, o conteúdo qualitativo das relações, ou seja, o sentido próprio de cada relação. O Entendimento é incapaz de expor a diferença, a singularidade de uma relação. A amplitude da composição das relações não encontra o seu acabamento apenas no seu funcionamento lógico, nem de longe. Desse modo, cabe a outro elemento e a outros princípios que não os do Entendimento a tarefa de dar um sentido às relações. Eis que se apresenta o segundo momento da filosofia de Hume: os princípios da paixão. A esse tema Hume dedica o segundo livro do Tratado intitulado “Das Paixões”. Cabe às Paixões, aos movimentos passionais, a tarefa de conferir um sentido às relações, de instaurar um valor que singulariza uma relação. É nos princípios das Paixões que as 20 Cf. Deleuze, 1974. p. 59. MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 relações são estendidas para além da sua forma lógica e impregnadas por um conteúdo singular. Os princípios do Entendimento tornam as relações possíveis apenas quanto à forma, e os princípios da Paixão conferem uma diferença, um sentido que lhe é essencial. A essência de uma relação não está no início, tal como já visto, mas no meio, no processo. Isso decorre do fato de que o sentido de uma relação não se explica suficientemente pelos princípios do Entendimento, ou seja, tais princípios não explicam por que uma ideia se relaciona especialmente com uma outra. A razão e o sentido de uma relação não estão somente na sua forma lógica. Limitar-se ao Entendimento é desconhecer a grandeza e a força do empirismo humeano. As Paixões funcionam qualitativamente, elas instauram qualidades às relações. Veremos esses movimentos na dinâmica relacional das paixões com os princípios de associação, na qualificação das associações pelas paixões: Os princípios que favorecem a transição entre as ideias concorrem aqui com os que agem sobre as paixões; e, unindo-se em uma única ação, os dois conferem à mente um duplo impulso. A nova paixão, portanto, deve surgir com uma violência proporcionalmente maior, e a transição até ela deve se tornar igualmente mais fácil e natural. (Hume, 2001. p. 318.Grifos nossos) Ambos os princípios se “transfundem”, para usar o mesmo termo de Hume21. O duplo impulso do qual Hume nos fala é essa transfusão, as atualizações lógicas do entendimento atravessados pelas paixões. É esse movimento duplo dos princípios de associação e das paixões que expõe a dinâmica própria das invenções, é ele que compõe a preocupação central do empirismo de Hume. Essa filosofia só pode ser compreendida nesse movimento duplo, no jogo do Entendimento com os movimentos passionais. É apenas nessa dinâmica que a composição das relações encontra inteiramente o seu acabamento, o seu sentido. Hume é ainda mais explícito: (...) o que constitui uma clara evidência de que existe uma transição de afetos juntamente com a relação de ideias, já que toda a mudança na relação produz uma mudança proporcional na paixão. Assim, uma parte do sistema anterior, concernente à relação de ideias, é uma prova suficiente da outra parte, concernente à relação de impressões; ela própria está fundada de maneira tão 21 Cf. Hume, 2001. p. 324. Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento evidente na experiência que seria perda de tempo fornecer provas adicionais. (Hume, 2001, p. 340. Grifos nosso) É preciso frisar que toda ideia deriva de uma impressão correspondente, e tais impressões, como bem estabelece Hume, são também paixões22. Desse modo, toda e qualquer ideia, seja simples ou complexa, de sensação ou de relação, deriva de uma paixão correspondente. As ideias, sejam elas quais forem, são imagens das impressões, das paixões. Só há ideia em razão das paixões. As relações de ideias se constituem naquele duplo impulso, são mistos lógico-passionais, pois ambos os princípios se auxiliam mutuamente. Como vimos na passagem acima, em toda relação de ideias está implicado uma relação de paixões. Os princípios de associação e de paixão constituem assim séries convergentes. Esta convergência constitui a prática das relações, pois só há relação quando as paixões se irradiam na associação lógica dos princípios do Entendimento, e estes, por sua vez, expressam as paixões. Ambos os princípios se “transfundem”, implicando relações ordenadas e qualificadas que definem a natureza humana: A natureza humana se compõe de duas partes principais, requeridas para todas as suas ações, ou seja, os afetos e o entendimento; e certamente os movimentos cegos daqueles, sem a direção deste, incapacitam o homem para a sociedade. (Hume, 2001.p. 533) Nesse jogo, ou nessa dança, relações são produzidas, mundos são inventados. É esse jogo e essa dança, e não outros, que esse empirismo pretende jogar e dançar. Qual é o cenário de tal jogo e de tal dança? Qual é a atmosfera desse movimento duplo? Essas questões se referem ao plano de experiência no qual as relações são compostas. Essa experiência, em Hume, não se localiza nem se desenvolve na subjetividade, ou na objetividade, menos ainda na correlação de ambos. É precisamente aí que Hume se diferenciará do empirismo ordinário entendido como teoria do conhecimento, já que sujeito e objeto não são pressupostos de sua filosofia, pois basta atentar para sua crítica “As percepções que entram com mais força e violência podem ser chamadas de impressões; sob esse termo incluo todas as nossas sensações, paixões e emoções, em sua primeira aparição à alma. Denomino ideias as pálidas imagens dessas impressões no pensamento (...)”. (Hume, 2001. p. 25). Sobre a anterioridade das impressões: Cf. Ibid. p. 28, 29 e 31. 22 MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 à identidade pessoal e à existência externa 23. A experiência das relações, o plano no qual o duplo movimento as constituem é, uma vez mais, a imaginação, onde tudo encontra seu solo de instauração24. É o que se passa a investigar. Hume inventa uma filosofia das ficções. Libera e instaura um plano ficcional para o pensamento. O mundo nunca foi tão povoado e impregnado pela imaginação. Hume constitui o solo do pensamento e da filosofia com toda a potência ficcional da imaginação. (...) consideremos o caso de um homem que se encontra dentro de uma gaiola de ferro pendente de uma alta torre. Ao olhar para o precipício embaixo dele, esse homem não pode se impedir de tremer, embora saiba que está perfeitamente seguro e que não cairá, pois tem experiência de que o ferro que o sustenta é sólido, e as ideias da queda, dos ferimentos e da morte derivam somente do costume e da experiência. (Hume, 2001. p. 181) Eis um exemplo do movimento duplo, do duplo impulso. Encontramos na passagem acima, talvez, toda a inspiração empirista da filosofia de Hume. Inspiração essa que implica na instauração de um plano, ou de um meio de experiência, onde confluem duas séries de princípios: os princípios de associação e os da paixão. Essas duas séries de princípios constituem dois sistemas distintos: o sistema do entendimento e o das paixões. Embora distintos ambos são confluentes, ou análogos nas palavras de Hume25. Mesmo separados e constituindo dois sistemas distintos, entendimento e paixão coexistem, compondo um único movimento. Devemos considerar esse duplo movimento do entendimento e das paixões como sendo unívoco e simultâneo. A continuação da citação anterior mostrará esse movimento com mais detalhe: As circunstâncias da altura e da queda têm tal impacto sobre esse homem que sua influência não pode ser destruída pelas circunstâncias contrárias da sustentação e da solidez, que entretanto deveriam dar a ele uma perfeita segurança. A imaginação se deixa levar por seu objeto e desperta uma paixão proporcional a este. A paixão incide novamente sobre a imaginação e aviva a 23 Cf. Ibid. Livro I, Parte II, Seção VI e Parte IV, Seção VI. “A memória, os sentidos e o entendimento são todos, portanto, fundados da imaginação, ou na vividez de nossas ideias”. (Hume, 2001. p. 298). 25 “O mais notável de tudo isso é que esses fenômenos confirmam fortemente o sistema anterior, concernente ao entendimento, e por conseguinte também o sistema presente, concernente às paixões – já que os dois são análogos”. (Ibid. p. 354. Grifos nosso). 24 Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento ideia. Essa ideia vívida exerce uma nova influência sobre a paixão, aumentando sua força e violência. Dessa maneira, a fantasia e os afetos, sustentando-se mutuamente, fazem que todo o conjunto tenha uma grande influência sobre ele. (Hume, 2001. p. 181-182.Grifos nossos) Assim, o encontro das paixões com os princípios de associação contribui para compor a situação descrita. Quanto ao lugar desse encontro, Hume é claro: a imaginação. Os afetos e a imaginação mantêm uma união estreita, uma cumplicidade nos seus movimentos26. O empirismo de Hume, desse modo, descreve um meio de experiência no ponto onde procede, precisamente, o encontro dessas duas séries de princípios que compõem a situação determinada. Paixão e Entendimento podem ser vistos como dois sistemas separados, mas devem ser entendidos como um único movimento, pois ambos funcionam na imaginação, simultaneamente. Paixões e associações compõem uma única dinâmica, embora cada um possua, respectivamente, seus próprios campos problemáticos. É exatamente isso que nos possibilita tratar de um separadamente do outro. Contudo, não tratar do encontro de ambos (movimento duplo) é não abordar o problema essencial do empirismo de Hume, é não compreender o sentido verdadeiramente empirista de sua filosofia. A natureza humana se compõe de duas partes principais, requeridas para todas as suas ações, ou seja, os afetos e o entendimento (...). Mas podemos considerar separadamente os efeitos resultantes das operações de cada uma dessas duas partes que compõem a mente. (Hume, 2001. p. 533) Separar a investigação dos dois sistemas constitui apenas uma estratégia metodológica, que deve ser corrigida pela relação de um com o outro. A separação procede à decomposição de um movimento, que de fato é um só, simples e indivisível. O próprio Hume nos autoriza uma tal atitude: Pode-se conceder aos filósofos morais a mesma liberdade concedida aos filósofos naturais; estes últimos muito freqüentemente consideram um movimento qualquer como composto e consistindo em duas partes separadas, embora ao mesmo tempo reconheçam que, em si mesmo, esse movimento é simples e indivisível. (Hume, 2001. p. 533-534) 26 Cf. Hume, 2001. p. 460. MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 A dinâmica e a problemática dessa confluência, dessa transfusão, constitui um dos temas centrais do desenvolvimento filosófico no Tratado da Natureza Humana. Essa filosofia é composta, portanto, por dois momentos: o Entendimento, que poderemos chamar de momento lógico, e as Paixões, que poderemos chamar de momento passional. Deleuze coloca esse problema da seguinte maneira: Se é verdade que a associação é necessária para tornar possível toda a relação em geral, cada relação em particular de modo algum é explicada pela associação. (Deleuze, 2001. p. 116) O Entendimento, os princípios de associação, compõe apenas a forma lógica das relações, já que não explica o conteúdo, o valor próprio de cada relação. A razão de uma relação não está inteiramente na sua forma lógica, mas na passionalidade nela implicada. Só as paixões explicam a singularidade de uma relação, só elas compõem a sua essencialidade. Vejamos o que Deleuze ainda diz: Se os princípios de associação explicam que as ideias se associam, somente os princípios da paixão podem explicar que sobretudo uma ideia e não outra esteja associada a tal outra ideia em tal momento. (Deleuze, 2001. p. 117) Trata-se, então, de compreender o desenvolvimento filosófico do empirismo de Hume pela importância de um dos elementos decisivos para o seu empirismo: as Paixões. O componente das Paixões leva o empirismo humeano para além das interpretações hegemônicas que sofreu, ao longo da História da Filosofia. A temática das Paixões traça contornos e instaura um sentido próprio e singular para esta filosofia. Ao dirigirmos nossa atenção para ela vemos emergir traços do empirismo que o elevam a novas potências. Posto tudo isso, cabe ainda uma questão: ao conferir sentido às relações, pela ressonância das paixões nos princípios do entendimento, o que é precisamente produzido? Sabe-se que essa é a dinâmica das invenções, o movimento propriamente inventivo. Conceber as relações como exteriores aos seus termos inspira a necessidade Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento incessante de compor relações, ou seja, de inventar. Hume dá um nome a essas invenções, cria um conceito que traça contornos para essa atividade. As relações, por serem exteriores aos termos, não estão dadas na natureza, não são atributos intrínsecos à natureza. Elas são produtos que ultrapassam o mero dado sensível, que dizem mais do que está dado na natureza. Porém, as relações se compõem nesse mesmo dado, em um movimento imanente ao dado, sob a influência daquele movimento duplo. Esse é o caráter próprio das invenções. No entanto, elas não são aleatórias, pois respondem a uma necessidade precisa. Artifício é o conceito que Hume talha para dizer o que as invenções produzem especificamente. Pois o que é inventado é exatamente aquilo que não está dado na natureza. O movimento duplo das paixões e da associação, formador do conjunto que compõe as relações, produz uma extensão artificial. Para esse tema Hume dedica todo o último livro, o terceiro, intitulado “Da Moral”. Nesse livro Hume descreve a dinâmica dos artifícios e de suas invenções, uma vez que o descrito é exatamente as invenções humanas, o homem como espécie inventiva, capaz de inventar o seu mundo. A moral, a cultura, o jurídico, a política e a própria história são os elementos que constituem o mundo das invenções humanas, a invenção de uma ordenação, de sua própria natureza. O mundo é assim uma fulguração de artifícios na imanência do jogo dos princípios de associação e de paixão. Esse mundo não passa de artifício, e a ciência da natureza humana pretende descrever os seus caminhos e a sua problemática, as condições práticas desse itinerário. Tomando como exemplo o mundo das instituições humanas, especialmente as leis que constituem um mundo jurídico e também social, Hume diz o seguinte: A sociedade é absolutamente necessária ao bem-estar dos homens; e essas leis são igualmente necessárias à sustentação da sociedade. Sejam quais forem as restrições que elas possam impor às paixões humanas, na realidade são frutos dessas paixões, sendo apenas um meio mais artificial e refinado de satisfazê-la. Nada é mais vigilante e inventivo que nossas paixões; e nada é mais evidente que a convenção para observar essas regras. A natureza, portanto, confiou essa tarefa inteiramente à conduta humana; não pôs na mente nenhum princípio original peculiar que nos determinasse a realizar um conjunto de ações, já que outros princípios de nossa estrutura e constituição são suficientes para nos guiar até elas. (Hume, 2001. p. 565. Grifos nossos) MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 As leis, portanto, são extensões artificiais das paixões, da potência inventiva das paixões. Como dito por Hume, não há um destino ou um atributo intrínseco à espécie humana que determine a sua constituição de um modo específico. Não se sabe, a priori, que forma artificial as paixões tomarão A sociedade não é um dado natural, uma expressão da essência do homem. Nem mesmo o seu destino está inscrito, previamente, nos movimento dos artifícios humanos, tal como uma lei da história. Não se sabe, previamente, se será esta ou aquela forma que tomará a sociedade, se esta se organizará em um Estado ou não. O Estado não é uma forma necessária em si mesma, é apenas mais uma ficção, mais um artifício, e como tal merece suspeita e investigação. A forma não é dada anteriormente, mas sim a força, as paixões, pois como já se sabe são elas anteriores às ideias. O Estado é uma ideia, cuja impressão correspondente, isto é, seu meio de experiência, merece ser investigada. O homem está entregue às suas paixões, e é por elas e através delas que ele inventa seu mundo27. Mais uma vez, fica claro a cumplicidade e intimidade das paixões e das ideias, pois uma ideia é a imagem de uma paixão. Não há nada mais instável e imprevisível que uma paixão, por isso se impõe a tarefa de inventar artifícios que lhes confiram alguma estabilidade. Tais artifícios compõem os mundos humanos, porém, tais mundos só existem em razão das paixões, são frutos das paixões28. O empirismo, compreendido nessa perspectiva, não se definirá como uma mera teoria do conhecimento, mas como uma filosofia da gênese das invenções. É esse o sentido de investigação, de inquérito, próprios do espírito que anima a disposição filosófica de Hume: qual foi o processo, quais impressões que deram proveniência a determinadas ideias e relações? Em quais condições lógico-passionais um determinado mundo, seja epistemológico, moral, político, jurídico ou cultural, emergiu? Sendo assim, enfim, nos é autorizado a perguntar: como surgiu, e em quais condições, o Como diz belamente Deleuze sobre Hume: “Se as ideias se associam, isso ocorre em função de um objetivo ou de uma intenção, de uma finalidade que só a paixão pode conferir à atividade do homem. É por ter paixões que o homem associa suas ideias”. 2001, p. 63. 28 Até mesmo a razão, entidade suprema do Iluminismo tão em voga na época de Hume, aos seus olhos não passa de um artifício, uma vassala das paixões, que justamente por isso merece desconfiança: “A razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas.” 2001, p. 451. Sobre a suspeita acerca da razão: “Não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo.” Ibid. p. 452. Para o empirismo não há fins racionais, já que os fins são colocados pelas paixões. A razão não passa de uma faculdade subalterna que ajusta meios em conformidade a fins determinados pelas paixões. É exatamente em virtude disso que se deve desconfiar da razão, já que ela esconde, muitas vezes, paixões inconfessáveis sob a máscara de entidade suprema. 27 Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento homem como sujeito de conhecimento? Eis a sua distância das filosofias do conhecimento. Hume não se pergunta pelo fundamento ou pelos limites do conhecimento, como se isto estivesse inscrito na natureza do homem. O homem é uma espécie inventiva, uma potência. As relações não estão dadas, esperando serem conhecidas por uma representação acurada da mente. Nada está dado, desde sempre, como se a natureza e os mundos estivessem prontos, esperando o desvelamento das suas essências. Não há nada mais incompatível com a imagem do pensamento empirista humeano. As relações, os artifícios, as invenções, não são objetos nem produtos do conhecimento, mas de práticas complexas que envolvem princípios lógicos e passionais. Mesmo a sociedade, o mundo social que reúne todos esses outros mundos, enquanto tal, emerge de um tal complexo. Portanto, é na dinâmica e confluência das relações, das paixões e dos artifícios que Hume desenvolve sua filosofia, uma filosofia das invenções, visto que inventar é absolutamente necessário, absolutamente vital, em virtude da exterioridade das ideias e dos termos. A exterioridade dos termos possibilita e instaura o plano da experiência no qual as relações emergem, e estas, por sua vez, permanecem na exterioridade na qual foi produzida. Nunca se sai do plano dessa experiência, pois esta nunca cessa de ser feita. A exterioridade das ideias é irredutível e insuperável, assim como a diferença. Aquilo que foi unido pode ser separado, isto é, as ideias não são incluídas na relação de forma necessária, como se a relação decorresse da natureza delas. A própria necessidade é uma relação exterior aos termos, ou ainda, é ela uma ficção29. É o que resulta, uma vez mais, do princípio da diferença e separação das ideias. Os artifícios são, na condição de tarefa, aquilo que está incessantemente por fazer e sendo feito. Enquanto produtos são eles objetos de uma investigação, de um inquérito. Talvez se possa, nessa perspectiva, entender Hume como um percursor daquilo que em Nietzsche e mais tarde em Foucault será chamado de método genealógico. Os mundos, por mais sérios, verdadeiros, universais e necessários que possam parecer, não passam de ficções. São também, em razão disso, aquilo que é necessário desconfiar. 29 As observações de Hume sobre a ideia de conexão necessária nos levam a assim concluir. Cf. Hume, 2001. Livro I, Parte III, Seção XIV. Ou nas Investigações sobre o entendimento humano, Seção 7. MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles. Hume. In: CHÂTELET, François (org.). História da Filosofia. Ideias, Doutrinas; trad. Guido de Almeida, vol. 4, O Iluminismo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 59-70. ___________. Empirismo e Subjetividade; trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2001. HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora UNESP, 2004. ____________. Tratado da Natureza Humana; trad. Déborah Danowski. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001. NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 A dupla intencionalidade da recordação iterativa na fenomenologia husserliana Adriano Negris1 Resumo O objetivo do presente texto é apresentar uma perspectiva da abordagem fenomenológica realizada por Edmund Husserl sobre a questão do tempo. Para cumprir a tarefa proposta, acompanharemos a análise de Husserl sobre a relação existente entre uma temporalidade mundana e a consciência subjetiva do tempo. O resultado dessa investigação pretende demonstrar como a questão do tempo deve ser pensada a partir da temporalidade do ego transcendental, a qual se desvela através da ideia de fluxo de consciência na dupla intencionalidade da recordação iterativa. Palavras-chave: Tempo, Fenomenologia, Dupla intencionalidade da recordação iterativa. Abstract The central goal of this paper is to present an overview of the phenomenological approach taken by Edmund Husserl on the question of time. To accomplish the task at hand, we will follow the analysis of Husserl on the relationship between a worldly temporality and subjective consciousness of time. The result of this research aims to show how the issue of time should be considered from the temporality of the transcendental ego, which is revealed through the idea of stream of consciousness in double intentionality recall iterative. Key-words: Time, Phenomenology, Intentionality double iterative recall. O que é o tempo? De início, a questão apresentada parece simplória devido à familiaridade que temos na lida com o tempo, pois o agir cotidiano é essencialmente marcado pela temporalidade. Contudo, essa pré-compreensão do tempo nos possibilita responder a questão fundamental: o que é o tempo? A constatação feita por Agostinho no Livro XI das Confissões2 revela a profunda aporia que permeia o tema. Na Adriano Negris é graduando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail: adrianonegris@gmail.com 2 “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente”. In: Santo Agostinho – Vida e Obra, Coleção Os Pensadores. Tradução: J. Oliveira Santos, S.J e A. Ambrósio de Pina, SJ. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000, p. 322. 1 NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 investigação sobre o tempo, Edmund Husserl vai realizar uma abordagem fenomenológica sobre a relação de pertinência entre o tempo objetivo (tempo mundano) e a consciência subjetiva do tempo, excluindo quaisquer suposições, afirmações e convicções a respeito do tempo objetivo para que se entenda o tempo como realidade imanente aos atos intencionais. O presente trabalho tem a intenção de acompanhar a tarefa fenomenológica de Husserl, notadamente a análise da temporalidade do ego transcendental que se desvela na idéia de fluxo de consciência na dupla intencionalidade da recordação iterativa. Antes de iniciarmos o desenvolvimento do escopo aqui traçado, convém estabelecermos o horizonte no qual o tema da temporalidade vai se mostrar na fenomenologia de Husserl. Para tanto, elegemos como fio condutor a própria noção de temporalidade do ego transcendental exposta por Husserl. O ego transcendental pode ser encarado como uma síntese performática que incessantemente vai articulando vivências e ao mesmo tempo abrindo possibilidades de constituição da consciência juntamente com seus objetos. Ao realizar uma reflexão sobre a dinâmica dos atos intencionais, observamos que tanto o próprio ato como seus campos correlatos se dão, necessariamente, dentro de um horizonte temporal. Isso ocorre porque os atos intencionais se constituem mediante percepção, lembrança ou imaginação que corresponde, respectivamente, a um presente, passado e futuro. Nesse sentido, as vivências intencionais são inegavelmente temporais. Tendo em vista essa compreensão, Husserl vai realizar a descrição da experiência temporal do ego transcendental. Numa primeira aproximação, podemos apontar que existe um tempo que marca a percepção de algo como algo e um tempo inerente ao perceber. Em outras palavras, o que se quer dizer é que a percepção sempre atual dos atos intencionais e seus correlatos estão estreitamente ligados a uma consciência interna do tempo. Assim, há uma temporalidade marcada por uma identificação que possibilita a consciência apreender a identidade de determinado objeto. Essa temporalidade objetiva corresponde à ordem cronológica do tempo (passado, presente e futuro), concebida mediante uma atitude natural em relação ao mundo. Por outro lado, a síntese que compõe o ego transcendental não é uma instância atemporal, ela possui uma consciência interna do tempo, que deve ser compreendida a partir de uma experiência contínua do tempo – um fluxo temporal -, A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana que suprime a pretensa autonomia das dimensões temporais objetivas – passado, presente e futuro. A temporalidade objetiva permite identificar um objeto tal como ele se mostra no ato de perceber. Mas a cada perceber, a cada ato intencional, o objeto se mostrará de modo perfilado, já que a percepção fixa “atomicamente” a realidade. Então, como é possível a aparição de um objeto na sua identidade mesma – na sua idealidade – tendo em vista a incessante alteração de perspectiva deste mesmo objeto provocada pela percepção? É justamente a consciência interna do tempo que abarca, num só fluxo, todos os modos possíveis de mostração de um objeto, permitindo-nos apontar sua idealidade na experiência particular da percepção. Dessa maneira, a consciência interna do tempo é uma síntese temporal que incessantemente articula um fluxo de vivências e permite abarcar e articular os momentos temporais constantes na ordem objetiva do tempo (passado, presente e futuro). Assim sendo, em que sentido a reflexão fenomenológica de Husserl aponta para idéia de fluxo de consciência como base de toda experiência temporal do ego transcendental? Husserl inicia sua abordagem acerca da consciência interna do tempo a partir do fenômeno da duração da sensação de um objeto temporal. Como sabemos, o ato intencional abre um campo de mostração no qual seus objetos (ou conteúdos) se constituem de maneira ideal no interior do próprio horizonte descerrado pela intencionalidade. Quando um conteúdo é dado no horizonte da relação intencional verificamos que este mesmo objeto se apresenta com uma duração – seja ele se alterando ou se mantendo. Segundo Husserl, essa consciência de duração de um objeto tem que ser originária, pois a experiência de uma percepção que dura é condição de possibilidade da sensação de que algo dura. Em outros termos, a duração da sensação tem que ser originária porque não poderia haver uma representação derivada da duração. Então, se a duração da sensação acena para uma temporalidade mais originária, devemos, agora, investigar como se dá a duração de um objeto temporal. Os objetos temporais, afirma Husserl, são aqueles “que não são apenas unidades no tempo, mas que contêm também em si mesmo extensão temporal” 3. Além da extensão temporal (duração), eles se constituem numa multiplicidade de dados e 3 HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Tradução, introdução e notas: Pedro M. S. Alves. Lisboa: Casa da Moeda, 1994, p.56. NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 apreensões imanentes porque não são dados fora de uma relação intencional. Mas no interior das relações intencionais, como se dá a diferenciação temporal desses objetos? A distinção temporal (algo que se apresenta como passado, presente e futuro) não é fornecida pela qüididade dos objetos temporais, uma vez que o surgimento desses objetos já pressupõe uma experiência temporal para que eles sejam temporalmente distintos. Nesse sentido, notamos que a temporalidade é o modo de acontecimento dos atos intencionais, tendo em vista que a experiência temporal é compreendida de maneira cooriginária aos atos intencionais, suas vivências e aos próprios conteúdos vivenciais. A duração dos objetos temporais também coloca em evidência outros fenômenos que a ela estão associados, a saber: o decurso temporal e a retenção. A gênese de um objeto temporal deve ser encarada como um marco temporal (ponto-fonte), um início. A partir desse início, notamos que o objeto preenche sua duração. Para que haja a constituição desse objeto é necessário que suas fases se sucedam umas as outras de modo que as anteriores não se percam por completo, nem que haja uma superposição continua de fases. A cada fase de um objeto que se dá num momento “agora”, que deve retrair-se de maneira modificada para que suas fases posteriores possam surgir continuamente. Para explicar o acontecimento da retenção destacamos o seguinte exemplo mencionado por Husserl: Quando, por exemplo, soa uma melodia, o som individual não desaparece completamente com o cessar do estímulo ou então com o movimento dos nervos por ele excitados. Quando soa o novo som, o precedente não desaparece sem deixar rastro, senão nós seríamos mesmo incapazes de notar as relações entre sons consecutivos; nós teríamos, em cada instante, um som, eventualmente, no intervalo de tempo entre o toque de dois sons, uma pausa vazia, nunca, porém, a representação de uma melodia. Por outro lado, não basta ficarmos com esta permanência das representações de som na consciência. Se elas permanecessem sem modificação, teríamos nós então, em vez de melodia, um acorde de sons simultâneos, ou antes uma amalgama desarmônica de sons, tal como a obteríamos se todos os sons já soados tocassem simultaneamente4 Por meio da descrição do soar de uma melodia Husserl demonstra que quando um som se dá num determinado ponto temporal, ele paulatinamente se afasta deste ponto inicial, mas ao mesmo tempo algo é retido enquanto ocorre o afastamento. Na 4 Idem, 1994, p.45 e 46. A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana retenção tem-se uma consciência do som que se foi e da duração que ele preenche. Quando o som acaba, resta ainda a consciência do som e da duração do som, que permanece de maneira alterada, revelando o decurso do som (decurso temporal). Nesse contexto, o decurso temporal é marcado pelo movimento de distanciamento paulatino; algo que vai se afastando de um ponto para outro. A consciência do decurso temporal é capaz de deixar à vista o fato que a duração é o modo de aparição de um objeto temporal e, ao mesmo tempo, realçar que essa aparição se dá na unidade de um fluxo constante. Segundo Husserl, o fenômeno do decurso “é uma continuidade de mutações constantes, que forma uma unidade inseparável – inseparável em extensões que pudessem ser por si e indivisível em fases que pudessem ser por si, em pontos da continuidade. Os fragmentos que extraímos abstractivamente podem ser apenas no decurso total e do mesmo modo as fases, os pontos da continuidade do decurso” 5. Diante das observações realizadas por Husserl, depreendemos a necessidade de se pensar a temporalidade de algo a partir da idéia de fluxo dinâmico que vai incessantemente articulando passado, presente e futuro. Toda a experiência de objetos tem lugar em um fluxo de experiências onde cada momento presente – momento em que algo se apresenta originariamente, na percepção, como objeto mesmo – leva em sí, retidas em certa medida, as experiências passadas que por sua vez antecipa ou projeta as possíveis experiências futuras a partir do efetivamente experimentado. Com isso verificamos que não se pode falar da consciência de objetos sem ter em conta ao mesmo tempo a consciência do horizonte em que necessariamente se encontra todo objeto de que se tem experiência. O contexto de um objeto é também um contexto temporal formado pelas lembranças passadas e as futuras experiências possíveis, imaginadas. Até o presente momento tentamos reconstruir o caminho percorrido por Husserl na descrição do fenômeno da duração dos objetos temporais e o próprio movimento retencional constitutivo desses objetos na imanência da dinâmica do fluxo de consciência. A partir deste ponto, o referido percurso vai servir de alicerce para explicar o processo de recordação dos objetos temporais e, em última instância, a dupla intencionalidade da recordação iterativa. 5 Idem, 1994, p.60. NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 O ato de percepção de um objeto está estritamente ligado ao fenômeno de retenção continua de suas fases em relação a um ponto-agora – tido como um marco temporal. As fases de um objeto vão se doando à percepção (ponto-agora) e, de maneira subseqüente, aos poucos vão se escoando para um “passado-agora” que se retém modificado para a apreensão de uma nova fase necessária à constituição do objeto temporal. Na retenção temos a sensação de duração que se esvai e que se manifesta por meio do ato intencional da percepção. Segundo Husserl, “caracterizamos a recordação primária ou retenção como uma cauda de cometa, que se agrega à respectiva percepção. Disso deve ser inteiramente distinguida a recordação secundária, a recordação iterativa” 6 . Mas, o que afinal caracteriza a recordação iterativa? Na retenção o conteúdo do percebido se mantém como uma intensidade atenuada, porém, na recordação iterativa, o que ocorre é a presentificação de algo que não está mais presente no agora. Com a recordação iterativa, o ponto-agora (pontofonte) é preenchido por um recordado, por um passado que vem à tona num presente, tornando-se um presente presentificado, mas não realmente presente, não percepcionado, não primariamente dado e intuído. Apesar da recordação presentificar algo passado, ela própria se constitui por meio de protensões e retenções que vão proporcionar a dação de um objeto duradouro. Husserl nos diz: A recordação iterativa é, ela própria, recordação iterativa originariamente constituída e, depois, mesmo agora passada. Constrói-se, ela própria, através de um continuo de protodados e retenções e constitui (ou melhor: reconstitui), em unidade com eles, uma objetividade duradoura imanente ou transcendente (segundo ela esteja imanente ou transcendentemente dirigida). A retenção, pelo contrário, não produz nenhuma objectividade duradoura (nem original nem reprodutivamente), mas apenas retém na consciência o produzido e imprime-lhe o caráter de ‘mesmo agora passado’ 7 Quando observamos o modo pelo qual a recordação iterativa se dá, notamos que a recordação manifesta-se num ponto-agora, num presente. Nesse momento “agora” a percepção não vai dar ensejo a constituição originária de um objeto temporal, que se mantém pelo meio retencional de suas fases. Na recordação iterativa a percepção 6 7 Idem, 1994, p.67. Idem, 1994, p.68. A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana presentifica um objeto que se encontra num ponto temporal distinto do ponto-agora, representando um “agora” que não é dado. Para destacar a oposição entre percepção e recordação, vale citar a interessante passagem do §17º das Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo: Se chamamos, porém, percepção ao acto em que reside toda origem, que constitui originalmente, então a recordação primária é percepção. Porque apenas na recordação primária vemos o que é passado, apenas nela se constitui o passado e, sem dúvida, re-presentativamente, mas antes de modo presentativo. O mesmo-agora-sido, o antes em oposição ao agora, pode ser directamente visto apenas na recordação primária; é sua essência trazer esta novidade e peculiaridade à intuição directa, primária, extactamente como é a essência da percepção do agora trazer directamente o agora à percepção. Pelo contrário, a recordação iterativa, tal como a fantasia, oferece-nos a simples presentificação; ela é como que a mesma consciência que o acto-do-agora e o acto-do-passado, criadores de tempo, como que a mesma, mas contudo modificada (HUSSERL, 1994, p. 72). A recordação iterativa presentifica um determinado objeto temporal e todas as suas fases e retenções que lhes são inerentes num presente-agora, revelando uma consciência de sucessão tal como é dada na consciência originariamente doadora. Na recordação iterativa podemos repetir essa consciência de sucessão originária, no qual presentificando-a, acabamos por recordá-la. E, como afirma Husserl, a presentificação de uma vivência acha-se a priori no domínio da liberdade, pois podemos voluntariamente recordar de algo quantas vezes desejarmos. Agora sabemos que a recordação iterativa é dotada de um caráter voluntário, tendo em vista que presentificamos algo que foi efetivamente vivenciado pelo ego transcendental. Pela recordação, podemos “recolher” o conteúdo de uma vivência intencional que já tenha sido experimentada em determinada posição temporal e presentifica-lá a partir de um “ponto-agora” da percepção. A questão que se apresenta neste ensejo é a seguinte: como um objeto reproduzido pela recordação iterativa ganha a propriedade de algo passado? Como podemos afirmar que um determinado conteúdo vivencial reproduzido pela recordação é um passado? O que nos permite dizer que algo recordado é passado? Para responder tais indagações, Husserl menciona que é importante distinguir, em cada presentificação, a reprodução da consciência em que o NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 objeto duradouro passado é originariamente constituído e aquilo que se anexa a reprodução como constitutivo para consciência de passado, de presente ou de futuro. Para que questão possa ser elucidada é imprescindível pensarmos na idéia de fluxo de consciência. Aliás, só caminhamos para um desenlace do problema se a consciência da recordação for observada de maneira imanente ao fluxo de consciência. Isto porque a unidade do fluxo de consciência é uma continuidade de mutações constantes, que forma uma unidade inseparável, de modo não podemos vislumbrá-la em fases que pudessem ser por si ou em fases que pudessem ser por si, em pontos da continuidade. Como alerta Husserl, “os fragmentos que extraímos abstractivamente podem ser apenas no decurso total e do mesmo modo as fases, os pontos da continuidade do decurso” 8. Então, o que significa a dupla intencionalidade da recordação? Quando recordamos, mediante o uso da liberdade, efetivamente experimentamos algo que foi verdadeiramente vivenciado em outro ponto temporal diverso do pontoagora no qual a recordação se dá. Esta constatação não é suficiente para apontar o objeto da recordação como passado. Mas o que ocorre para que possamos ter consciência do passado na recordação? A recordação presentifica um objeto, repetindo todas suas fases de constituição e a retenção que lhe é pertinente. Quando ocorre a recordação, ela se dá na imanência de um fluxo temporal no qual não somente a recordação vivida aparece, mas todo o fluxo temporal é colocado em jogo, de maneira que todo o fluxo temporal é recordado até o ponto temporal onde a recordação está em desenvolvimento. Assim, Husserl explica que: A recordação está num fluxo constante, porque a vida da consciência está num fluxo constante e não se une numa cadeia apenas membro após membro. Pelo contrário, todo o novo reage sobre o antigo, a sua intenção antecipativa preenche-se e determina-se com isto, o que dá à reprodução um colorido determinado. Na dinâmica do fluxo de consciência, a recordação contém uma intencionalidade que se volta para (re)constituição do objeto temporal, no qual a presentificação do 8 Idem, 1994, p.60. A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana objeto é dada mediante um retorno completo a todo fluxo temporal para chegar até o ponto do presente em que se manifesta a recordação. Por outro lado, como o fluxo não pode ser estático, ele constantemente se articula como abertura para apreensão de novas vivências. Por ser uma síntese em fluxo, todos os objetos que surgem na consciência de um agora são influenciados pelas vivências anteriores que se deram ao longo do fluxo e, de tal maneira, que todo o novo reage sobre o antigo. O novo aponta para novamente para o novo, o qual se determina, ao entrar em cena, e modifica as possibilidades reprodutivas do antigo. Essa retroação ao longo da cadeia temporal e o movimento de protensão – ambos imprescindíveis para presentificação do recordado – forma a dupla intencionalidade da recordação. O objeto recordado ganha tons de algo passado porque o ato de recordar, que se dá num presente, retorna todo fluxo de consciência e com isso influencia o recordado. O presentificado na recordação adquiri o caráter de passado justamente porque do ponto agora, influenciado pelos eventos da cadeia temporal, se dá com um matiz diferenciado, pois o que foi originariamente constituído e que agora se reconstitui pela recordação está em incessante processo de obscurecimento. Os conteúdos das vivências que se deram num passado não são alterados pela presentificação da recordação. Contudo, o modo como a vivência se dá na presentificação é nitidamente diferenciado, não só porque está temporalmente afastado do ponto agora, mas também porque o modo de aparecer do conteúdo recordado está influenciado por todas as vivências que se deram ao longo do fluxo de consciência até o ponto agora. Nesse sentido, Husserl explica que “o poder retroactivo retrocede ao longo da cadeia, porque o passado reproduzido traz o caracter de passado e uma intenção indeterminada, referida a uma certa posição temporal em relação ao agora”9. Diante das lições de Husserl, depreendemos que apenas na unidade do fluxo de consciência se constitui a unidade temporal do objeto recordado e a própria unidade do fluxo. O que a dupla intencionalidade revela é o incessante movimento do fluxo, no qual impõe sempre um movimento para frente, lançando-se sempre para o novo e simultaneamente resgatando-se por meio da retroação às vivencias anteriormente experimentadas. Cada fase do fluxo traz consigo não um ponto isolado do decurso, mas o rastro intencional de todas as fases anteriores. 9 Idem, 1994, p.83. NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 A análise da dupla intencionalidade deixa transparecer a unidade incindível do fluxo de consciência como a própria constituição do ego transcendental. Os atos intencionais, as vivências e seus conteúdos correspondentes só surgem na imanência do fluxo de consciência, no qual sempre aberto para o novo e que também está em constante processo de resgate de si mesmo por meio de suas vivências. Entretanto, essa intencionalidade do fluxo não aparece como algo intuitivo de modo que pudéssemos concretizá-la objetivamente. A constante fluência do ponto-agora não tem qualquer individuação, não detém nenhuma posição temporal fixa, sendo uma incessante atualidade que flui sem durar. Desse modo, é necessário que essa dinâmica intencional fique resguardada num fundo não aparente para que os objetos intencionais constituídos na sua imanência possam aparecer em primeiro plano. Não é por outro motivo que Husserl vai chamar a atenção para o fato de que a intencionalidade do fluxo é uma intuição não-intuitiva, “vazia”, sendo seu objeto a cadeia temporal objetiva dos acontecimentos e que constitui a obscura vizinhança do que iterativamente recordado de modo atual. De modo mais explícito Husserl esclarece: Não há primeiro plano sem fundo. O lado que aparece nada é sem o lado inaparente. Assim também na unidade da consciência do tempo: a duração reproduzida é o primeiro plano, as intenções de inserção (da duração no tempo) tornam consciente um fundo temporal. E, de um certo modo, isto continua na constituição da temporalidade do próprio (objecto) duradouro, com o seu agora, o seu antes e o seu depois10 Com as considerações expostas acima, pretendemos destacar como a reflexão fenomenológica husserliana sobre o tempo nos conduz a idéia de fluxo de consciência, explicitada neste trabalho por meio da dupla intencionalidade da recordação iterativa. Para finalizar, consideramos interessante citar um trecho do livro Introdução à Fenomenologia (SOKOLOWISKI), que sintetiza a própria noção da unidade de fluxo de consciência como origem da temporalidade do ego transcendental: A forma do presente vivo assim move-se ruidosa, automática e constantemente, nem mais rápida nem mais lenta, sempre a par da realidade da experiência temporal. Ela é o pequeno motor no coração da temporalidade. 10 Idem, 1994, p.84. A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana Porque é a origem do tempo, é de algum modo fora do tempo (como também do espaço), e ainda experimenta diferenciação e sucessão, de um tipo próprio a si mesma. É simultaneamente permanente e fluente, o stehendströmende Gegenwart, como Husserl a denomina. Ela alterna e ajunta, flui e prende, abre e fecha, como fogo e a rosa que são um (T.S.Eliot, Little Gidding, ad finem). Ela é o lugar das mais básicas partes e todos presenças e ausências, identidades em multiplicidades, aquelas que são pressupostas por todas as formas mais complexas constituídas em nível mais elevado na experiência. Esse presente vivo esta também na origem de nossa própria identidade-de-si como agentes de consciência de verdade e ação, mas porque está na nossa origem ela é pré-pessoal. Ela funciona anonimamente. Não poderíamos fazer nada para mudá-la ou fazê-la mais lenta ou acelerada. Não está em nosso poder. Não controlamos nossas origens. Ela apenas se mantém no alvoroço de seus próprios termos. E ainda somos identificáveis com ela; ela é “nossa”, como nossa origem e base.11 Bibliografia HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Tradução, introdução e notas: Pedro M. S. Alves. Lisboa: Casa da Moeda, 1994. _________________. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Tradução: Maria Gorete Lopes e Souza. Porto: Rés, 2001. Lyotard, Jean-François. A Fenomenologia. Coimbra: Edições 70, 2008. Santo Agostinho – Vida e Obra. In: Coleção Os Pensadores. Tradução: J. Oliveira Santos, S.J e A. Ambrósio de Pina, SJ. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000. SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008. SOKOLOWISKI, R. Introdução a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004. 11 SOKOLOWISKI, R. Introdução a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004, p.152 a 153. Descartes e Sartre: a questão da liberdade Descartes e Sartre: a questão da liberdade Osvaldino Marra Rodrigues1 Elnora Gondim2 Resumo O objetivo do presente artigo é apontar, quanto á questão da liberdade, as críticas de Sartre em relação a Descartes. Para tanto, entre ambas as teorias, vamos contemplar que existem temas que se encontram imiscuídos, são eles: 1) a questão do Cogito; 2) a questão de Deus; 3) a questão do dualismo. Palavras-chave: Descartes, Sartre, liberdade, vontade, erro, Deus Abstract The purpose of this paper is to point out the criticism, on the question of freedom, Sartre in relation to Descartes. To this end, between the two theories, we consider that there are issues that are mixed, they are: 1) the issue of Cogito, 2) the question of God, 3) the question of dualism. Keywords: Descartes, Sartre, freedom, will, error, God Introdução A liberdade é um dos conceitos fundamentais nas teorizações filosóficas. São poucos os filósofos que não trataram dessa problemática em alguma de suas obras, seja para criticar as teorias anteriores ou para, de alguma forma, resgatá-las. É sob essa ótica que objetivamos apontar as criticas que Sartre teceu à teoria de Descartes quanto à questão da liberdade. Para tanto, será enfatizada que a filosofia sartreana concentra sua atenção, ou intencionalidade, numa criteriosa análise fenomenológica do conceito do Eu, estabelecendo, dentre outras coisas, uma crítica atinente ao subjetivismo oriundo do pensamento cartesiano. Nessa perspectiva, será realçada a importância do pensamento de Descartes como algo fundamental para que se entenda a questão da liberdade relacionada à subjetividade, porquanto; 1 Osvaldino Marra Rodrigues é Mestre em Filosofia pela UFPI e professor da PARFOR/UFPI. E-mail: dinomarra@gmail.com 2 Elnora Gondim é Doutora em Filosofia pela PUC-RS e professora de Filosofia na UFPI. E-mail: elnoragondim@yahoo.com.br RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Descartes' claim to certainty about his thought and existence is central to his general program in epistemology. He wants to answer skepticism, and he wants to do so within foundationalism, the view that all our knowledge begins with some self-evident beliefs which are not evidenced by any others but yet provide our justification for all the rest we know. MARKIE, Peter. The Cogito and its Importance. IN: The Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P.1543 Sob essa ótica, Descartes foi um marco considerável em se tratando da questão da subjetividade instaurando-lhe um espaço e, assim: Descartes again presents the immediate inference from his thought to his existence, and he says that his knowledge is not deductive but a simple intuition of the mind. His point again seems to be that his knowledge of his thought is intuitive since it involves his grasping a self-evident, noninferred premise, and his knowledge of his existence is intuitive since it involves his immediately inferring that he exists from the simultaneously intuited premise that he thinks. MARKIE, Peter. The Cogito and its Importance. IN: The Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P.154..4 Com tal ênfase dada à intuição intelectual, o pensamento cartesiano fornece um poder incomensurável ao Eu e, em contrapartida, à liberdade da razão humana. E tal pensamento, ao ser publicizado, originou teorias filosóficas que têm como foco a subjetividade. Dessa forma: Nossa Tradução: “Afirmação de Descartes sobre a certeza do seu pensamento e da existência é fundamental para o seu programa geral na epistemologia. Ele quer responder ao ceticismo, e ele quer fazê-lo conforme o fundacionismo, a visão de que todo o nosso conhecimento começa com algumas crenças auto-evidentes, que não estão comprovadas por quaisquer outras, mas ainda fornece a nossa justificação para todo o resto que conhecemos”. MARKIE, Peter. The Cogito and its Importance. IN: The Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P.154.. 4 Nossa Tradução: “Descartes apresenta novamente a inferência imediata de seu pensamento à sua existência, e ele diz que seu conhecimento não é dedutivo, mas uma intuição simples da mente. Seu ponto mais uma vez parece ser que o seu conhecimento de seu pensamento é intuitivo, uma vez que envolve uma premissa auto-evidente, não inferida, e seu conhecimento de sua existência é intuitivo, uma vez que, imediatamente, envolve a sua inferência que ele existe a partir da premissa de que, simultaneamente intuída, ele pensa.” MARKIE, Peter. The Cogito and its Importance. IN: The Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P.146. 3 Descartes e Sartre: a questão da liberdade According to his biographer, Baillet, within a few years of Descartes' death it was no more possible to count the number of his disciples than the stars of the sky or the grains of sand on the seashore.^ There is no doubt that, despite official persecution, Descartes' philosophy and science rapidly made many converts. In Holland Cartesian ideas penetrated the universities at an early date; the newly founded University of Breda was Cartesian from the beginning. In France Cartesians labored under various official bans in the universitie sand religious orders, and committed Cartesians were excluded from the Academy of Sciences; nonetheless Cartesian views circulated freely in more informal settings such as the salons of Paris. Moreover, even in the universities professors were able to devise strategies for spreading Cartesian ideas while technically complying with official bans; either they taught Descartes' ideas without mentioning him by name or they ascribed them to other philosophers, such as Aristotle. JOLLEY, Nicholas. The Recepcion of Descartes’ Philosophy. IN: The Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P. 416 Portanto, é plausível afirmar que com a teoria de Descartes foi aberto um campo filosófico novo tornando-se, assim, injustificável não se fazer apelo ao papel da razão enquanto subjetividade ao se fazer menção aos temas referentes, por exemplo, ao conhecimento. Por conseguinte, a contemporaneidade tem um débito incomensurável pertinente ao pensamento cartesiano. Sartre, o outro filósofo que examinaremos, embora de maneira distinta, pode ser considerado um exemplo de tal fenômeno. Ele, pela repercussão de suas palavras, foi o teórico mais lido5 e discutido no seu tempo. Poucos pensadores obtiveram, em vida, o reconhecimento público que Sartre conquistou6. Lido por jovens, homens e mulheres comuns, acadêmicos, políticos e religiosos, sua palavra sempre causava rupturas, incômodos, mal-estar e, também, um alento de esperança – foi o primeiro filósofo plenamente incorporado ao mundo midiático. Tal aspecto tem como motivo o fato de que a teoria de Sartre tem um claríssimo fio condutor, a questão da liberdade. Isso é constatado desde a década de 30, com as obras L´imagination (1936), La transcendance de l’ego (1937) e o romance La Nausée (1938), até o monumental L´idiot de la famille, três volumes publicados entre os anos de 1971 a 1972 pela Gallimard. L´etre et le neant, por exemplo, publicado em 1943, é, mais precisamente, um ensaio de fundamentação ontológica da liberdade, mas ontologia fenomenológica. 5 Certamente não pelas obras filosóficas capitais, Ser e Nada e Crítica da razão dialética, mais restritas ao meio acadêmico – embora os acadêmicos tivessem, à época, considerável influência na sociedade, talvez mais que hoje, pois as pessoas, cansadas de tantas discussões inócuas, deixaram os acadêmicos com suas eternas disputas a si mesmos, com suas vozes que ressoam solitárias nos desertos inabitados. Mas Sartre teve a felicidade de dominar vários gêneros literários, esses sim, objetos de calorosas discussões. 6 Entre os franceses, é possível que apenas Voltaire, dados os limites da época, conquistou a simpatia e antipatia comparáveis às de Sartre. RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Em outras palavras, para Sartre não há um “por trás”, uma essência das coisas. Para ele, “As aparições que manifestam o existente não são interiores nem exteriores: equivalem-se entre si, remetem todas as outras aparições e nenhuma é privilegiada” (SN 15). Sartre sustentou que “o dualismo do ser e do aparecer não pode encontrar situação legal na filosofia”7 (SN 15). Em outro prisma, a “aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência [apparence ne cache pas l'essence, elle la révèle: elle est l'essence] (SN 16; EN 12). No entanto, uma ontologia é necessário um parti pris transfenomenal, pois o “fenômeno de ser exige a transfenomenalidade do ser” (SN 20). Esse fundamento é a consciência – palavra sinonímia para cogito. Contudo, Sartre tece críticas ao modelo de pensamento cartesiano, porquanto: “O erro ontológico do racionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto se define pela primazia da existência sobre a essência, não poderia ser substância” (SN 28). Em outras palavras, Sartre concentra sua atenção, ou intencionalidade, numa criteriosa análise fenomenológica do conceito do eu, estabelecendo uma crítica atinente ao subjetivismo oriundo de Descartes, mais precisamente, a entificação do eu, ou seja, o pensamento cartesiano tinha como pressuposto que o eu é um ente não posicional que independe da consciência fática. No entanto, para Sartre, seria a consciência fática o correto ponto de partida, não o cogito entificado cartesiano. I- Descartes e Sartre: uma abordagem Sob a ótica quanto à questão da liberdade, em se tratando da filosofia de Descartes e Sartre, tomaremos como referências determinados temas que se encontram imiscuídas, são eles: 1) a questão do Cogito; 2) a questão de Deus; 3) a questão do dualismo. Pelo menos a filosofia assumida por Sartre, calcada na fenomenologia, que é “um nominalismo” (SN 16). 7 Descartes e Sartre: a questão da liberdade 1- A questão de Deus Quanto à questão de Deus, quando Descartes discorre sobre o problema da liberdade, ele o relaciona com o erro e, nesse sentido, sempre delega ao homem as responsabilidades por isso. Para Sartre: A liberdade cartesiana se junta aqui à liberdade cristã, que é uma falsa liberdade: o homem cartesiano, assim como o homem cristão são livres para o Mal, não para o Bem, para o Erro, não para a Verdade. SARTRE, La Liberté Cartésienne,, p. 75 8 Nessa perspectiva, na Quarta Meditação, onde se encontra a problemática do erro de juízo, Descartes exime Deus do erro afirmando que Nele não poderia haver nenhum engano ou imperfeição, pois Ele é perfeito. Entretanto, como explicar o erro? Por que Deus deixaria que o erro existisse? Para responder isso, Descartes afirma: “o erro não é uma pura negação, isto é, uma simples carência ou falta de alguma perfeição que me não é devida, mas antes é uma privação de algum conhecimento que parece que eu deveria possuir”. Sob essa ótica, nota-se a presença de dois tipos de males: 1) o mal de negação. É algo que advém da falta de alguma coisa proveniente da natureza. Tal aspecto, no entanto, não significa um erro de Deus, porquanto Ele é perfeito e cria cada coisa da melhor maneira possível. Assim, não podemos julgá-lo, porque desconhecemos os seus pensamentos, já que a inteligência divina é infinita e a nossa finita. 2) o mal da privação. Este consiste na falta de algum conhecimento que o indivíduo deveria ter. Ele é de responsabilidade do homem, mais explicitamente, das faculdades do juízo que são: a vontade e o entendimento. Essas são concebidas por Deus e, por esse motivo, são perfeitas. No entanto, é por causa do uso indevido de tais faculdades que o homem falha. SARTRE, La Liberté Cartésienne,, p. 75 – Et la li e té a tésie e ejoi t i i la li e té h étie e, ui est u e fausse li e té : l’ho e a tésie e, l’ho e h étie so li es pou le Mal, o pou le Bie , pou l’E eu , o pou la Vé ite . 8 RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Assim, a faculdade da vontade, por exemplo, pode ser concebida como a semelhança do homem com o Criador, porque é de extensão infinita e, portanto, indica a liberdade de ação, o livre arbítrio. O entendimento, por sua vez, é de extensão menor do que a vontade. Ele é a faculdade das ideias claras e distintas. Tanto a vontade quanto o entendimento são faculdades perfeitas. O entendimento, por sua vez, é suficiente para que o homem tenha o discernimento do bem ou do mal. Então, se o homem usar perfeitamente as faculdades do juízo, mantendo a vontade nos limites do entendimento, não há erro. Em outras palavras, usando prudentemente as faculdades, o homem evita o erro, porquanto as faculdades são perfeitas em sua natureza, imperfeito é o uso que se faz delas e daí provém o erro que é de responsabilidade do ser humano. Em outras palavras, quando Descartes postula à questão da vontade ilimitada três aspectos são relacionados a ela: 1) a liberdade, porquanto vontade ou o poder de decisão consiste em deliberações que o sujeito pode tomar; 2) Deus, porquanto, sendo a vontade muito extensa, ela lembra que o homem traz a imagem e semelhança de Deus; 3) a vontade tem a possibilidade de se exercitar, por si só, sem nenhum constrangimento exterior. Portanto, em ampla medida, o problema da liberdade, em Descartes, está diretamente relacionado com as temáticas que tratam de Deus e da vontade. Nessa perspectiva, a questão do erro isenta Deus de qualquer responsabilidade, por contrapartida, libera o homem do constrangimento de Deus. Assim sendo, o livre arbítrio cartesiano tem como característica fundamental isentar Deus da possibilidade do erro e, ao fazer isso, Descartes reconhece a liberdade do homem. No entanto, a liberdade do homem, sob essa ótica, está relacionada ao erro. Para demonstrar isso, nada melhor do que a definição de vontade que diz: Somente no fato de podermos fazer uma coisa ou não a fazer (ou seja, afirmar ou negar, perseguir ou fugir), ou, antes, somente no fato de, para afirmar ou negar, fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agirmos de tal modo que não sentimos que nenhuma força exterior nos constrange a isso.9 9 DESCARTES, René. Meditações metafísicas, p. 89. Descartes e Sartre: a questão da liberdade Em outras palavras, nem a faculdade do entendimento nem Deus podem constranger a vontade. No entanto: De forma que esta indiferença que sinto, quando não sou impelido mais para um lado do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e mais faz parecer um defeito no conhecimento do que uma perfeição na vontade, pois, se sempre conhecesse claramente o que é verdadeiro e o que é bom, eu jamais teria dificuldade em deliberar qual juízo e qual escolha deveria fazer; e, assim, seria inteiramente livre, sem jamais ser indiferente.10 Portanto, para Descartes, quando a vontade é perfeita, ela tem uma relação tanto com o entendimento quanto com Deus e isso se daria não por coerção, mas pelo fato da evidência e da certeza nas idéias claras e distintas. Assim, quando há o erro, isso tem como causa o homem, porquanto ele, nesse caso, é livre. No entanto, quando a verdade é alcançada, a vontade tem uma inclinação relacionada a Deus. Nessa perspectiva, a liberdade do homem, mesmo relacionada ao erro, já deixa margem para se pensar em um ser despojado de Deus e capaz de assumir às suas próprias responsabilidades. Em tal afirmação pode-se, plausivelmente, anteceder uma ênfase no recurso de Descartes à subjetividade quando afirma: “aquele que possui a vontade firme e confiante de usar sempre a razão o melhor que lhe é possível, e praticar nas suas ações o que julga ser o melhor, é verdadeiramente sábio, tanto quanto a sua natureza permite que o seja.” 11 Sob essa ótica, quanto à questão da vontade, Descartes instaura um espaço para a liberdade e para a subjetividade. Assim, a liberdade e a indiferença são opostos, mais especificamente, “a liberdade não comporta indiferença”12. Ela é relacionada com a decisão, com a ação referente ao bem julgar. Porém, a palavra indiferença não aparece, univocamente, nas traduções das Meditações: 10 11 DESCARTES, René. Meditações metafísicas, p. 90. DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1989. P. 22. Ca ta ao pad e Mesla d, edigida e 9 de feve ei o de 1 : Co sidé ée a tio s de la volo té, pe da t u’elles s’a o plisse t, la li e té ’i pli ue 12 aucune indifférence [...]” (Bridoux, 1996, p. 1177). ai te a t dans les RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 A palavra indifférent aparece no texto francês em um lugar onde, no texto latino, a palavra indifferens não aparece. O texto francês afirma que “para ser livre não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou outro de dois contrários”. O texto latino, ao contrário, diz que “para que eu seja livre, não é necessário que eu possa me mover para ambos os lados”. Em outras palavras, o texto latino trata do poder de escolher entre duas alternativas contrárias (denominemo-lo de poder dos contrários), enquanto que o texto francês trata da indiferença em relação à escolha entre dois lados opostos. O que é significado pela indiferença? Não há nenhuma definição da palavra quando ela aparece nessa sentença. Mas ela não pode ter nenhum outro significado além do que é explicado poucas linhas depois, quando a palavra 13 indifférence traduz a palavra latina indifferentia Portanto, no texto latino: O que Descartes considera como não necessário à liberdade humana, isto é, como não constitutivo da essência da liberdade, é o poder de escolher entre dois contrários. In utramque partem ferri posse reformula e repete em diferentes palavras idem vel facere vel non facere posse – uma frase da sentença anterior. Essa frase diz respeito ao poder de fazer ou não fazer alguma coisa, o poder ou a habilidade de escolher uma ou outra de duas alternativas. A liberdade então, em 1641, não pressupõe um poder dos contrários, mas consiste somente em não ser constrangido: ela é o movimento espontâneo em direção a alguma coisa E na tradução francesa das Meditações: O que Descartes considera como não necessário à liberdade humana, isto é, como não constitutivo de sua essência, o que ele dissocia da liberdade, é o estado de indiferença ou hesitação ou equilíbrio causado pela ignorância. Ao fazer essa mudança, o texto francês, publicado em 1647, deixa em aberto para o leitor pensar se o poder dos contrários é necessário à liberdade – algo que o original latino tinha explicitamente negado.14 13 BEYSSADE, Michelle. A Doutrina da Liberdade de Descartes: diferenças entre os textos francês e latino da Quarta Meditação, P. 227. 14 BEYSSADE, Michelle. A Doutrina da Liberdade de Descartes: diferenças entre os textos francês e latino da Quarta Meditação, P. 227. Descartes e Sartre: a questão da liberdade No entanto, Sartre, por exemplo, afirma que Descartes tem duas formas de tratar a liberdade: Assim, encontramos em Descartes, sob a aparência de uma doutrina unitária, duas diferentes teorias da liberdade, uma que considera este poder de compreender e julgar que é a sua e outra que deseja simplesmente salvar a autonomia do homem diante do sistema rigoroso de idéias15. 2 - A questão do Cogito O tipo de liberdade cartesiana que parece ser intimamente ligada ao entendimento faz do homem um Eu que pensa. Isso “consiste, seguramente, em ser consciente”16 Em outras palavras, a teoria do Cogito prioriza a subjetividade, ou seja, é com Descartes que aparece um Eu fundante. Nesse sentido, os objetos passam a ser objetos para um sujeito a partir de um sujeito. E, segundo Heidegger: “Até Descartes, tinha valor de ‘sujeito’ qualquer coisa que subsistisse por si mesma; mas agora o Eu torna-se um sujeito peculiar, um sujeito em relação ao qual todas as outras coisas se determinam agora como tais”17. É sob esse aspecto que a teoria do Cogito influenciou grande parte dos filósofos. Portanto, não é aleatoriamente que Sartre afirma a superioridade ontológica do Cogito. No entanto, o autor de O Ser e O Nada tece críticas consideráveis quanto à questão da liberdade tratada por Descartes, porquanto “admitindo a idéia de mundo é que Sartre consegue atribuir ao cogito uma dimensão existencial que não se encontrava em Descartes”18. Assim, embora Sartre concorde com a teoria cartesiana de que a consciência subjetiva é uma atividade exclusivamente humana e que esse deve ser o autêntico ponto de partida do filosofar, quanto ao aspecto do Cogito como substância, Sartre acredita que aí há um salto, porquanto “O problema é mais saber como podemos passar da SARTRE, La Liberté Cartésienne, p. 63 – (“Aussi trouvons-nous chez Descartes, sous l’apparence d’une doctrine unitaire, deux théories assez différentes de la liberté, selon qu’il considère cette puissance de comprendre et de juger qui est sienne ou selon qu’il veut simplement sauver l’autonomie de l’homme en face du système rigoureux des idées”.) 15 “Être conscient, c’est assurément penser et réfl échir sur sa pensée [...]” (Bridoux, 1996, p. 1359). HEIDEGGER, Que é uma coisa?, Cap. I., § 18, f, β 18 BORNHEIM, 2007, p.19 16 17 RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 consciência não-tética de si, que é o ser da consciência, para o conhecimento reflexivo que se fundamenta nela“19. Com isso, Sartre rejeita um Ego para a consciência e o substitui pela noção de intencionalidade. Assim, o autor de O Ser e O Nada constata que não pode conceber uma substancialidade para a consciência. Portanto, “Se a consciência não tem um Ego ao nível de imediatez e da não-reflexibilidade, ela não deixa de ser pessoal. Ela é pessoal, porque, apesar de tudo, ela é reenvio a si”20. Em outras palavras, o que Sartre denomina de presença de si mesma se localiza na consciência irrefletida. No entanto, nesse aspecto não há dualismo, porquanto não há uma consciência separada de um objeto; Dito de outro modo, a presença a si é ao mesmo tempo, numa certa medida, separação de si. Mas, ao mesmo tempo que esta separação de si, como a unidade da consciência é absolutamente obrigatória, visto que não estamos no plano do sujeito e do objeto, visto que apreendemos as coisas no imediato, esta separação é ao mesmo tempo unidade (p. 106). Mas tal consciência não implica, somente, a consciência de si mesma, porquanto; “a consciência implica em seu ser um ser não-consciente e transfenomenal”21. E é nesse sentido que Sartre afirma que “a consciência sempre pode ultrapassar o existente, não em direção a seu ser, mas ao sentido desse ser”22. Assim, a consciência tem como característica “transcender o ôntico rumo ao ontológico”23. Sob essa ótica, convém ressaltar que a preocupação de Sartre é em deixar claro que não há nenhum conteúdo a priori na consciência. Ela é liberdade absoluta. Não há, portanto, nenhum inatismo tal como visto na teoria cartesiana. Descartes inclui Deus como consciência (na verdade, como a fonte da consciência). No entanto, Sartre concorda com Descartes que a realidade objetiva da subjetividade humana não existe tendo como origem algo exterior a ela mesma, porque a capacidade de autoconhecimento é essencial para a experiência consciente. Ambos concordam que tais razões delimitam o alcance da compreensão humana. Tal aspecto é inegável e se 19 SARTRE, 1994b, p.100. (IBID, p. 101) 21 (SN, p. 34) 22 (SN, p. 35) 23 (SN, p. 35) 20 Descartes e Sartre: a questão da liberdade encontra presente na filosofia de Descartes. Para tanto, Descartes utiliza a sua própria capacidade de auto-consciência para chegar ao Cogito e afirma: Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua industria em enganar-me sempre. Não há, pois dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu penso ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito. (DESCARTES, 1973, p. 100) E Descartes complementa: O pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo, isto é certo; Mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso, pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. [...] nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa; isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. (DESCARTES, 1973, p. 102). 3- A questão do Dualismo É fundamental para a experiência da consciência o Eu que faz o 'pensar'. No entanto, o Eu cartesiano parece existir em um sentido segundo o qual transcende os seus próprios pensamentos. É sob essa ótica que o “Eu” cartesiano tem sido motivo de muitas críticas como, por exemplo, as de Sartre. Este mesmo considerando o autoconhecimento como ponto fundamental para a consciência e admitindo que a consciência pode conhecer e conhecer a si mesma, no entanto ela é em si um algo mais do que isso, Sartre não concebe que existam pensamentos contidos em um Eu no sentido cartesiano, porquanto, para Sartre, o pensamento ou a consciência não pode ser concebidos como substância ou natureza, pois “ela (consciência) é mais do que RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 conhecimento voltado para si.”24. Consciência, para o autor de Ser e Nada, é algo relacionada com a liberdade. Portanto, ela não pode ser dirigida por um Eu transcendente. Não há, para Sartre, um Eu transcendente que, através dele, a consciência seja derivada. Segundo afirma Sartre: Realmente, o absoluto, aqui, não é resultado de construção lógica no terreno conhecimento, mas sujeito da mais concreta das experiências. E não é relativo a tal experiência, porque é essa experiência. É também um absoluto não-substancial. O erro ontológico do racionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto se define pela primazia da existência sobre a essência, não poderia ser substancia. A consciência nada tem de substancial, é pura “aparência”, no sentido de que só existe na medida que aparece. Mas, precisamente por ser pura aparência, um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre aparência e existência, a consciência pode ser considerada o absoluto. (SN, p. 28) No entanto, para Descartes, pelo contrário, a estrutura ontológica da consciência é determinada pela relação entre "substância" pensante. Sartre, por sua vez, rejeita o Eu cartesiano, porquanto em Descartes a ideia de consciência é relacionada à afirmação de que o sujeito pensante é diferente do mundo físico. Assim, "eu existo" (como mente) e "existem coisas distintas de mim mesmo" (objetos físicos). Sartre, por outro lado, tenta superar o dualismo cartesiano de pensamento e de corpo relacionando a consciência subjetiva ao mundo objetivo através da intencionalidade. Esta é definida como uma atividade que envolve o mundo da facticidade objetiva, porquanto “Toda a consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objeto, e ela esgota-se nesta posição mesma: tudo quanto há de intenção na minha consciência atual está dirigido para o exterior.”25. No entanto, somente dessa forma, isso não se esgota, porquanto: “Ao mesmo tempo, a consciência não é consciência só das coisas externas, mas também de si mesma; pois uma consciência ignorante de si seria uma consciência inconsciente, o que é absurdo. Por isso, não basta “que eu possa afirmar que esta mesa existe em si – mas sim que ela existe para mim.”26. 24 (SN, p. 22) (SN, p. 22) 26 (SN, p. 23) 25 Descartes e Sartre: a questão da liberdade Nesse movimento, há uma atividade consciente (ser-para-si) ao contrário do caráter estático do mundo factual (ser-em-si). O movimento do ser-para-si é relacionado com a liberdade. O ser-para-si é livre ao contrário do ser-em-si. Portanto, as diferenças, quanto à questão da liberdade, em ampla medida, entre a filosofia de Descartes e a de Sartre são relacionados às suas respectivas concepções de auto-identidade. Considerações finais Sartre, de certo modo, aponta a importância de um tipo de centralidade na teoria cartesiana. A citação seguinte, que trata sobre a subjetividade, nos mostra tal perspectiva: “Não pode nela haver, no ponto de partida, outra verdade que essa: eu penso, logo eu sou, é a verdade absoluta da consciência se alcançando a si mesma.”27. No entanto, Sartre, diferentemente de Descartes, afirma: Mas a subjetividade que nós atingimos a título de verdade não é uma subjetividade rigorosamente individual, pois nós demonstramos que no cogito não se descobriria somente a si mesmo, mas também os outros. Pelo eu penso, contrariamente à filosofia de Descartres, contrariamente à filosofia de Kant, nós nos atingimos a nós mesmos em face do outro, e o outro é tão certo para nós quanto nós mesmos. Assim, o homem que se atinge diretamente pelo cogito descobre também todos os outros, e ele os descobrirá como a condição de sua existência . SARTRE, Jean-Paul. L’existencialisme est un humanisme. Présentation et notes par Arlette Elkaïm-Sartre. France: Folio/Essais (gallimard),1996. p. 58 . Nessa perspectiva, Descartes usa a própria capacidade de auto-consciência para chegar ao Cogito. Ele inclui Deus como fonte da consciência e Sartre afirma que na concepção de Descartes: “Assim, sendo Deus fonte de todo ser e de toda positividade, esta positividade, esta plenitude de existência que é um julgamento verdadeiro não poderá ter sua fonte em mim que sou nada, mas somente nele”28 SARTRE, Jean-Paul. L’existencialisme est un humanisme. Folio/Essais (gallimard),1996. p. 56 SARTRE, La Liberté Cartésienne, p. 70 – (“Ainsi, Dieu étant source de tout être et de toute positivité, cette positivité, ce plénum d’existence qu’est un jugement vrai ne saurait avoir sa source en moi qui suis néant, mais en lui”.) 27 28 RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 É nesse sentido que Descartes define a consciência como uma extensão de Deus. Entretanto, para Sartre, a consciência é um ser-para-si, livre, porquanto: Deus, que é plenitude infinita de ser, não poderá conceber nem regrar o Nada. Ele pôs em mim o positivo; ele é o autor responsável por tudo o que em mim é. Mas por minha finitude e meus limites, por minha face de sombra, eu escapo dele. Se eu conservo uma liberdade de indiferença, é por relação a isso que eu não conheço ou que conheço mal, as idéias truncadas, mutiladas, confusas. Para todos estes nadas, eu mesmo como nada, eu posso dizer não: eu posso não me decidir a agir, a afirmar. Já que a ordem das verdades existe fora de mim, o que vai me definir como29 Esse não é o caso de Descartes, porquanto para ele reside na consciência o lugar próprio da auto-identidade, enfoque que não se diferencia de um sujeito que pensa. E é nesse aspecto que o sentido da consciência em Sartre é o oposto de Descartes, porquanto para o autor de O Ser e O Nada a consciência é a liberdade, é o nada. Portanto, a rejeição de Sartre em relação ao Eu cartesiano centra-se na ideia sartreana de consciência intencional. Com tal mecanismo, Sartre pensa superar a dicotomia sujeito / objeto de Descartes, porquanto para a filosofia cartesiana a ideia de consciência se baseia na afirmação de que o sujeito pensante é fundamentalmente diferente do mundo físico objetivo. Para Descartes a liberdade não é ontologicamente problemática. Liberdade, para ele é autonomia racional. Sartre, por outro lado, tenta erradicar qualquer distinção entre o Eu e o mundo. Para tanto, Sartre rejeita a consciência de algo como substância. A consciência, para ele, não é, somente, uma atividade mental. Ela é uma atividade vazia. No entanto, para Sartre, toda consciência transcende em si a fim de atingir o seu objeto e o Nada é a causa da consciência. Então, nesse sentido, a consciência intencional e o mundo objetivo são co-extensivos: Assim, Sartre tenta SARTRE, La Liberté Cartésienne, p. 70 – (“(...) car Dieu, qui est plénitude infinie d’être, ne saurait concevoir ni régler le Néant. Il a mis en moi le positif ; il est l’auteur responsable de tout ce qui en moi est. Mais par ma finitude et mês limites, par ma face d’ombre, je me détourne de lui. Si je conserve une liberté d’ indifference, c’est par rapport à ce que je ne connais pas ou ce que je connais mal, aux idées tronqquées, mutilées, confuses. A tous ces néants, néant de mois-même, je puis dire ‘non’ : je puis ne pas me décider à agir, à affirmer. Puisque l’ordre des vérités existe en dehors de moi, ce qui va me définir comme autonomie, ce n’est pás l’invention créatrice, c’est le refus. C’est en refusant jusqu’à ce que nous ne puissions plus refuser que nous sommes libres”.) 29 Descartes e Sartre: a questão da liberdade unificar a consciência subjetiva e o mundo por meio da atividade vazia e transcendente, ou seja, através da intencionalidade. Portanto, embora as diferenças, as teorias de Descartes e de Sartre não são irreconciliáveis. Ambas concordam que: 1) a consciência subjetiva é uma atividade exclusivamente humana; 2) a capacidade de auto-conhecimento é fundamental para a experiência consciente; 3) a realidade objetiva não se pode pensar em um sentido consciente. Bibliografia BEAUFRET, J. Introdução às filosofias da existência. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Duas Cidades, 1976. BEYSSADE, Michelle. A Doutrina da Liberdade de Descartes: diferenças entre os textos francês e latino da Quarta Meditação. IN: ANALYTICA, Rio de Janeiro, vol 13 nº 2, 2009, p. 225-242 BORNHEIM, G. A. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 1971. ______.O idiota e o espírito objetivo. Porto Alegre: Globo, 1980. BRIDOUX, A. (org.). Carta ao padre Mesland, redigida em 9 de fevereiro de 1645. IN: Oeuvres et lettres. Paris: Gallimard, 1423. DESCARTES, R. Meditações, São Paulo: Abril Cultural, 1973. _____________-. Princípios da Filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1989 HEIDEGGER, M. Être et temps. Trad. François Vezin. Paris: Gallimard, 1986. ______________. A coisa. In: ______. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002. JOLLEY, Nicholas. The Recepcion of Descartes’ Philosophy. IN: The Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P. 416. RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 MARKIE, Peter. The Cogito and its Importance. IN: The Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P. 146. SARTRE, J.-P. Crítica da Razão Dialética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ______. La Liberté Cartésienne. Paris: Gallimard, 1947. ______. O Ser e o Nada. Ensaio de ontologia fenomenológica Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. _______. L’ Être et lê néant – Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 1994. ______. Présentation des Temps Modernes. Paris: Gallimard, 1948. ______. L’existencialisme est un humanisme. Présentation et notes par Arlette ElkaïmSartre. France: Gallimard, 1996. Da grande saúde em Nietzsche Da grande saúde em Nietzsche Bruno Wagner Santana1 Resumo Ora, como compreender a articulação que Nietzsche propõe entre saúde e doença a partir do que nomeou por grande saúde? Nesta, como excesso, transbordamento de forças, pode equivaler a perigo, de modo a que plenitude e dor não se tornem termos excludentes? Como plenitude e ocaso, excesso e finitude2 podem conjugar-se? Como Nietzsche articula o conceito da grande saúde, onde doença e saúde se permutam, com o conceito de vontade de potência, excesso de forças? Eis o objetivo de nossa proposta de pesquisa, um estudo aprofundado que, sob o enfoque de tais questões, consiste em apreender o que Nietzsche entendeu por plenitude a partir da grande saúde. Palavras-chave: saúde; doença; grande saúde; vontade de potência; finitude. Rèsumé Comment comprendre l’articulation que Nietzsche proposait entre la santé et la maladie à partir de la grande santé? Dans celle-ci, comment l’excès et le débordement des forces peuvent être correspondant au danger, de façon que la plénitude et la douleur ne deviennent pas de termes contradictoires? Comment la plénitude et le couchant, l’excès et la finitude peuvent se conjuguer? Comment Nietzsche articule le concept de la grande santé au concept de la volonté de puissance? Voici l’objectif de notre article, que consiste en mieux comprendre ce que Nietzsche voulait dire d’une plénitude à partir de la grande santé. Mots-clés: santé; maladie; grande santé; volonté de puissance; finitude. Em diversos momentos Nietzsche apresenta o tema da grande saúde correlacionando-o a um sentimento de excesso, de plenitude, de uma potência em transbordamento: Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é ainda longo o caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que não pode dispensar a própria doença como meio e anzol para o conhecimento, (...) até a amplidão e refinamento interior que vem da abundância, (...) até o excesso de forças plásticas (...) que é precisamente a marca da grande saúde3 Bruno Wagner D’Almeida de Souza Santana é doutorando em filosofia pela PUC-RIO. E-mail: brunowagnersou@yahoo.com.br 1 3 NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. “Prólogo”, §4. SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 No §382 da Gaia Ciência, Nietzsche se refere à grande saúde como um estado de “transbordante abundância e potência” em que o espírito se torna capaz de brincar com um mundo “pleno de perigos”4; num fragmento póstumo de 1885, Nietzsche se refere a “essa enorme saúde que não busca nem mesmo evitar a doença, esse excesso mesmo de forças plásticas”5. Ora, como compreender a articulação que Nietzsche propõe entre saúde e doença a partir do que nomeou por grande saúde? Nesta, como excesso, transbordamento de forças, pode equivaler a perigo, de modo a que plenitude e dor não se tornem termos excludentes? Como plenitude e ocaso, excesso e finitude6 podem conjugar-se? Como Nietzsche articula o conceito da grande saúde, onde doença e saúde se permutam, com o conceito de vontade de potência, excesso de forças? Eis o objetivo de nossa proposta de pesquisa, um estudo aprofundado que, sob o enfoque de tais questões, consiste em apreender o que Nietzsche entendeu por plenitude a partir da grande saúde. 1. Segundo Nietzsche, visto de dentro o mundo se apresenta como vontade de poder7, o que quer dizer que é enquanto atividade em vias de expansão ―e não de conservação ou adaptação8― que a vida acontece. Em sua dimensão básica, a vida não atua negativamente, mas de forma inteiramente ativa, positiva, ou seja, se exerce violentando, ofendendo, explorando e destruindo9 com vistas a um acúmulo cada vez maior de força10. “O aspecto geral da vida não é (...) a fome, mas antes a riqueza, a exuberância, até mesmo o absurdo esbanjamento”11. 4 NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. §382. NIETZSCHE, F. Fragments posthumes. Août-septembre de 1885. 40 [66]. 6 NIETZSCHE. Assim Falava Zaratustra. “Prólogo”, §1; “Dos três males”, §1. 7 NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, §36. 8 NIETZSCHE. Genealogia da Moral II, §12; Gaia Ciência, §349; Além do Bem e do Mal, §13; Fragments Posthumes, automne 1885- automne 1886, 2[63]. 9 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, II, §11. 10 Fragments Posthumes, printemps 1888, 14 [81]. 11 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, IX, §14. Gaia Ciência, §349. Além do Bem e do Mal, §259. 5 Da grande saúde em Nietzsche E sabes bem o que é o mundo para mim? (...) O mundo: um monstro de força, sem começo nem fim; uma força presente por toda parte, una e múltipla como um jogo de forças e de ondas de força, acumulando-se sobre um ponto se elas diminuem em outro; um mar de forças em tempestade e em fluxo perpétuo (...); – queres um nome para esse universo? ― Esse mundo, é o mundo da vontade de potência – e nenhum outro mais! E vós mesmos, vós sois também essa vontade de potência – e nada mais que isso!12 Logo, todos os estados, sentidos e significados que buscam conservar-se expressariam antes uma vontade de oposição à vontade potência, uma vontade de contrapor-se ao caráter de não-fixidez e transitoriedade que caracteriza a vida, pois tudo o que vive ― inclusive o homem, que equivocadamente julgou que a consciência era o grau mais elevado da evolução orgânica ― cresce, luta, se metamorfoseia, fortalece-se ou perece, de modo a que a morte se faz uma possibilidade imanente à própria vida enquanto jogo permanente de forças que superabundam13. Com isso, correlacionada a essa superabundância de forças, a grande saúde nos convoca a um risco, a um perigo, qual seja, o perigo de um mundo que já não porta nenhum sentido em si. Não é o pessimismo (...) que representa o grande perigo (...) mas a absurdez de todo acontecimento. A interpretação moral tornou-se caduca assim como a interpretação religiosa (...). Mas a verdadeira grande angústia é essa: o mundo não tem mais nenhum sentido.14 Como suportar um mundo que já não porta consigo nenhum sentido a priori? Diante da ausência de sentidos absolutos, Nietzsche irá traçar uma relação entre superabundância, dor, saúde e trágico, problematizando dessa maneira a relação costumeira feita entre dor e carência e sugerindo a idéia de que o sofrimento em alguns casos – em especial no caso dos gregos – pode advir não de uma fraqueza, porém de um alto grau de sensibilidade que por sua vez decorre de uma plenitude, de uma superabundância que faz do homem saudável, forte, nobre, um homem também mais exposto a situações de risco e ocasos diversos, a desorganizações, perdas, desgastes e perigos. 12 Fragments Posthumes, juin-juillet 1885, 38 [12]. Fragments Posthumes, juin-juillet 1885. 37 [4]. 14 Fragments Posthumes, août-septembre 1885, 39 [15]. 13 SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 O mais rico em plenitude de vida, o deus e o homem dionisíaco, pode permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e todo luxo de destruição, decomposição, negação; nele o mau, sem sentido e feio parece como que permitido em virtude de um excedente de forças geradoras, fertilizadoras, capaz de transformar todo deserto em exuberante pomar.15 E de que modo o trágico faz aparição nessa correlação que faz Nietzsche? De modo a que a dor não constitua para o homem forte nenhum motivo de desencantamento perante a vida, nem mesmo justificativa para que se ergam cultos e hinos de glória à dor e ao sofrimento16; não, não se trata disso, mas de nos tornarmos capazes de viver com alegria os riscos que a vida implica sem que para isso tenhamos que extirpar o antagonismo presente em tudo que vive e cresce, assim como também perece e se fortifica – ainda que isso muitas vezes nos acarrete feridas e experiências nem sempre tão agradáveis, efeitos de uma guerra17. “Já não admiramos os dentistas que extraem os dentes para que eles não doam mais...”18 É somente ao preço de um enfrentamento que nos tornamos dignos de uma vida grande19. Essa inter-relação entre superabundância, dor, saúde e trágico fica mais explícita na “Tentativa de Autocrítica” feita por Nietzsche para o Nascimento da Tragédia: “Uma questão fundamental é a relação dos gregos com a dor, seu grau de sensibilidade (...), aquela questão de se realmente o seu cada vez mais forte anseio de beleza, (...) brotou da carência, da privação, da melancolia, da dor.”20; Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados (...)? Há um pessimismo da fortitude? Uma propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma transbordante saúde, a uma plenitude da existência? Há talvez um sofrimento devido à própria superabundância? (...) O que significa, justamente entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais valorosa, o mito trágico?21 15 NIETZSCHE. Gaia Ciência, §370. NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, §293. 17 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, Prólogo; I, §8. 18 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos. V, §1. 19 Ibid. V, §3. 20 NIETZSCHE. Nascimento da Tragédia, “Tentativa de autocrítica”, §4. 21 NIETZSCHE. Nascimento da Tragédia, “Tentativa de autocrítica”, §1. 16 Da grande saúde em Nietzsche Num fragmento póstumo de 1887, Nietzsche afirma que, diante do enigma da existência, diante de uma natureza que é indiferente ao homem, e que por isso mesmo é grande e bela, os espíritos heróicos são aqueles capazes, por um excesso de força, de se auto-afirmarem na crueldade trágica, duros o bastante para experimentar o sofrimento como um prazer, com alegria22. O herói trágico acena assim necessariamente para uma tensão e para a auto-afirmação de si nessa tensão, pois é justamente aquele que se glorifica em luta, e não há luta ― caráter fundamental da vida23 ― sem que haja tensão; o herói trágico é aquele que é capaz de suportar como um prazer superior as mais dolorosas superações, as mais torturantes contradições e sofrimentos presentes em seu trajeto24. Não possuindo nem centro nem fundamento25, a vontade de potência guardaria, para Nietzsche, uma relação primordial com uma certa indeterminabilidade. Segundo Michel Haar, seria uma espécie de grau zero, espécie de caráter informe devido a um excesso de possibilidades, de forças em luta, o que tornaria possível à vontade de potência adquirir o sentido de um permanente auto-ultrapassamento26 (seja em seu caráter ativo, ao afirmar a vida, seja em seu caráter reativo, ao negar a vida, vingá-la, recusá-la). Ora, mas que relação se esboça aí, entre o excesso, superabundância de forças em disputa, e um sem-fundamento, abismo?27 Segundo a direção tomada pela força (progressão ou reação), segundo a resposta (“sim” ou “não”) às condições impostas pela vida, no seio da vontade de potência se desdobram dois tipos de força: ativa, ascendente, nobre, ou reativa, decadente, escrava.28 Forte, ascendente, nobre seria a vontade capaz de “espiritualizar”29, de dar direção30 as suas próprias forças – que são nelas mesmas divergentes – sem recusá-las. Na Genealogia da Moral, momento em que Nietzsche se propôs colocar em questão o 22 Fragments Posthumes, automne 1887, 10 [168]. Fragments Posthumes, octobre 1885-octobre 1886, 2 [205]. 24 NIETZSCHE. Nascimento da Tragédia. §24. 25 HAAR, M. Nietzsche et la Métaphysique. p.25. 26 Ibid. p.28. 27 NIETZSCHE. Assim falava Zaratustra, “O Convalescente”. 28 NIETZSCHE. Genealogia da Moral. I, §7, §10. 29 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos. V, §1. 30 No aforismo §521 de Humano, Demasiado Humano Nietzsche afirma que Grandeza significa: dar direção. 23 SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 valor dos valores31 usados pelo homem para nomear a vida, os valores nobres aparecem como tendo por base uma constituição física poderosa, uma saúde florescente, transbordante32, plena, caracterizada por um excesso de forças plásticas33 ― o que significa dizer que os valores nobres não procuram se vingar da vida enquanto vontade de poder, enquanto manifesta por forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas34, que não se guiam por um ideal de conservação, mas justamente se afirmam nessa dimensão em que a vida na sua totalidade se caracteriza por ser ação, movimento e luta35, requerendo para tanto a capacidade de experienciar transformações, ascensões e ocasos permanentes. Já a moral escrava, por outro lado, expressaria uma força fraca, negativa, decadente, pois nela a vida tomada enquanto transitoriedade, vontade de potência, valeria apenas como ponte para outra existência36. Na tentativa de abolir a falta de sentido para o sofrimento37, o tipo fraco irá tratar a vida como um erro38, buscando mesmo negá-la. No homem decadente a vitalidade fisiológica encontra-se assim diminuída39, pois ali onde o instinto de vida pulsa intensamente, ali ele só enxerga erro, dor, sensualidade, multiplicidade, ilusão – sensações contra as quais ele buscará erigir e fixar valores “absolutos”, norteando-se de tal modo por um ideal de conservação, ideal que busca preservar-se a qualquer custo da transitoriedade que caracteriza a vida. O tipo ascético, expressão dessa vontade fraca, desse homem decadente, expressaria segundo Nietzsche a condição doentia do homem, frustrada, sofredora: o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera.40 No entanto, e por outro lado, Nietzsche chega a afirmar em outro momento que haveria como que um estado de doença primeiro que caracterizaria a condição humana de uma maneira geral, e que só a partir dessa doença primeira o asceta como tal poderia tornar-se doente. 31 NIETZSCHE. Genealogia da Moral. Prólogo, §6. Ibid. I, §7. 33 Ibid. I, §10. É interessante notar que Nietzsche se refere a um “excesso de forças plásticas” já em 1874, mais especificamente na Segunda Consideração Extemporânea, §1; e que no §4 do prólogo de Humano, Demasiado Humano ele afirme ser o “excesso de forças plásticas” justamente a marca da grande saúde. 34 NIETZSCHE. Genealogia da Moral. II, §12. 35 Ibid. I, §13. 36 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, III, §11. 37 Ibid. II, §7. 38 Ibid. III, §11. 39 Ibid. III, §11. 40 Ibid. III, §13. 32 Da grande saúde em Nietzsche Qual a origem dessa condição doentia [do asceta]? Pois o homem é mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro animal, não há dúvida – ele é o animal doente: de onde vem isso? (...) – como não seria um tão rico e corajoso animal também mais exposto ao perigo, o mais longo e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?41 Vemos aí se desenharem dois sentidos para um mesmo termo –“doença”. No primeiro sentido, “doença” refere-se ao tipo asceta, reativo, manifesto pelo “Não” que o caracteriza42; entenda-se, o asceta é doente por “recusar”, por rejeitar a vida enquanto vir-a-ser, expansividade, enquanto vontade de potência. Já o segundo sentido refere-se ao tipo nobre, tipo que se caracteriza por portar-se diante da vida de modo afirmativo; o nobre é aquele que diz “Sim” a si mesmo e à vida na sua inteireza, capaz de tomar a inconstância e indeterminação da vida como meios possíveis para que nele a vida se intensifique ainda mais, para que a coragem nele aumente. O tipo nobre é aquele para quem até no ferimento se acha o poder curativo43. Nesse segundo sentido, “doença” não caracterizaria aquele positivo “grau zero” da vontade de potência, de que fala Michel Haar? Aquele excesso de forças, ao invés de uma falta de forças? Não seria esse mesmo grau zero a dimensão que possibilitaria o deslocamento de perspectivas44, característica daqueles que conquistam a “grande saúde”? Se a vida porta consigo uma desarmonia insolúvel45, isso não nos parece advir pelo fato de lhe ser inerente uma falta, uma negatividade, mas, pelo contrário, advém do fato da vida, segundo Nietzsche, ser excesso, vontade de potência. Logo, conquistar a grande saúde implicaria uma “conquista” da transitoriedade, um “saber” do movimento de ascensão e queda de todos os valores diante da vida; conquistar a grande saúde implicaria assim também saber perdê-la. No entanto, perder a saúde nesse caso não seria o mesmo que deixar de ser “saudável”, pois, no que diz respeito à grande saúde, a doença advém como privilégio daquele que é forte o bastante para oferecer-se à vida, à 41 Ibid. III, §13. Chamemos atenção para o fato de que nem todo “não”, nem toda atitude negativa corresponde a um ato próprio do asceta. O momento em que Nietzsche faz uma análise acerca do “sim” e do “não”, o primeiro caracterizando a moral nobre e o segundo caracterizando a moral escrava, diz respeito mais propriamente à “Primeira Dissertação” da Genealogia da moral, momento em que o problema do ideal ascético, que apenas aparecerá na “Terceira Dissertação”, sequer é colocado. 43 NIETZSCHE.Crepúsculo dos Ídolos. Prólogo. 44 NIETZSCHE. Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, §1. 45 NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. I, §32. 42 SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 aventura da vida, daquele que por uma transbordante saúde é capaz de brincar com o perigo46, e não daquele que busca preservar-se da vida a qualquer custo. Nossa hipótese é a de que, relacionada à vontade de potência, referida portanto a um nível imoral, fisiológico, a grande saúde decorre de um grande acontecimento47 ― a ausência de valores absolutos ― o que por sua vez convoca o homem a viver num mundo pleno de perigos48, o perigo de um mundo que já não traz consigo nenhum sentido em si49 e que se comporta por uma pujança de forças em luta50, fartura de um combate que não tem por aspiração nenhum estado durável51. Por conseqüência, não poderia haver também nenhuma saúde em si52, mas antes uma grande saúde, aquela que é capaz de afirmar-se sem subterfúgios perante uma vida que é transitoriedade permanente, deslocamento perpétuo de perspectivas e construções de sentido que se dão não por uma falta, mas por um excesso de forças, o que logo torna todo vivente também mais exposto ao perigo iminente de constantes novos combates53, vitórias e ocasos. 2. É partindo da saúde, das riquezas e superabundância de forças54, que Nietzsche nos convoca a pensar a grande saúde, e não a partir da doença e da fraqueza, haja vista que para Nietzsche, em termos gerais, a doença já seria conseqüência e não causa de um declínio55. É, portanto, partindo do conceito de vontade de potência que buscaremos investigar o cerne do problema que a grande saúde coloca. Embora nos Fragmentos póstumos a “vontade de potência” já apareça no final de 187656, é apenas em “De mil e um fitos”, de Assim Falava Zaratustra, que ela aparece pela primeira vez publicada. A vontade de potência aí aparece ligada à questão dos valores, do sentido, e este por sua vez aparece interligado à necessidade que tem o 46 Ibid. Prólogo,§4. Gaia Ciência,§382. NIETZSCHE. Gaia Ciência. §343. 48 NIETZSCHE. Gaia Ciência. §382. 49 Fragments Posthumes, août-sptembre 1885. 39 [15]. 50 Fragments Posthumes, août 1885-août 1886. 2 [205]. 51 Fragments Posthumes, août 1887. (250) 10 [138] 52 NIETZSCHE. Gaia Ciência. §120. 53 NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal. §276. Crepúsculo dos Ídolos. IX, §17. 54 NIETZSCHE. Gaia Ciência. prólogo, §2. 55 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos. IX, §33. 56 Fragmentos póstumos, final de 1876 – verão de 1877, 23 [63]. 47 Da grande saúde em Nietzsche homem de avaliar, de criar valores, pois “nenhum povo poderia viver, se antes não avaliasse o que é bom e o que é mau”57. O problema que se coloca é: se os valores criados por cada povo expressam “a voz da sua vontade de poder”58, como podem ao mesmo tempo estarem remetidos à idéia de que “sem a avaliação, seria vazia a noz da existência”59? Como ‘vontade de poder’, ‘valoração’ e ‘vazio’ podem de alguma maneira se articular? Seria isso possível? O problema está em que por inúmeras vezes Nietzsche definiu a vontade de poder por um sentimento de plenitude, de abundância, e nesse sentido não haveria qualquer espaço para algo que comportasse um ‘vazio’. Se o mundo, a vida (da qual o homem participa), acontece para Nietzsche como por um processo infindo de esbanjamento de forças, como entender essa relação saúde/doença, força/fraqueza, essa duplicidade a que Nietzsche se refere ao falar da grande saúde? Como a vontade de potência, enquanto sentimento de plenitude, pode se articular com esses termos? Em 1888, Nietzsche afirma a esse respeito em Ecce Homo: “A perfeita luz e alegria, mesmo exuberância do espírito, (...) harmoniza-se em mim não só com a mais profunda fraqueza fisiológica, mas até mesmo com um excesso da sensação de dor.”60 Como entender que essa “enorme saúde (...) não procura evitar [nem] mesmo a doença”61? De que modo tais estados encontram-se ligados por uma transbordante abundância e potência62? Em suma, a atual pesquisa propõe a retomada de um problema já posto por Nietzsche em agosto de 1886 ― há talvez um sofrimento devido à própria superabundância? 63 ― para tentar pensá-lo com a ajuda de um tema que lhe foi muito caro, embora pouco explorado pelos estudiosos, o tema da grande saúde. Considerações Finais Uma vez que a vida é demasiado intensa, exuberante, excessiva, violenta, caracterizada fundamentalmente por ser atividade64, como poderíamos fixar valores que NIETZSCHE. Assim Falava Zaratustra, “De mil e um fitos”. p.84. Ibid. p.85. 59 Ibid. p.86. 60 NIETZSCHE. Ecce Homo, I, §1; 61 Fragments Posthumes, août-septembre, 40 [66]. 62 NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. §382. 63 NIETZSCHE. Nascimento da Tragédia, “Tentativa de autocrítica”, §1. 64 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, II, §12. 57 58 SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 nos permitissem definir o que seja a própria vida, encerrando-a num sentido? Onde encontrar repouso e estabilidade em meio a esse turbilhão? Muitos provavelmente se levantariam nessa hora para dizer envaidecidos que ‘Nietzsche’ é a favor do devir, que, para ‘Nietzsche’, bem viver é imiscuir-se no instante e deixar o fluxo da vida nos levar. Ledo engano. Se Nietzsche por um lado foi inteiramente crítico às concepções racionais que buscaram congelar o movimento da vida, sabia ele por outro lado que o homem por si próprio é incapaz de abarcar a vida no seu todo, em toda sua potência; o homem é uma ínfima parte surgida ao acaso na natureza, devendo assim lutar se não quiser ver sua existência ser completamente aniquilada pelas forças da vida, da natureza, do mundo. Esse é um problema que percorre toda a obra de Nietzsche, podendo ser visto desde o Nascimento da Tragédia, por exemplo, em que a dimensão apolínea – caracterizada por formas bem delineadas, harmônicas, equilibradas- está sempre se chocando com a dimensão dionisíaca – caracterizada pela embriaguez, dissolução, indistinção e deformação dos contornos; e, o que é mais importante, se por um lado o apolíneo não pode se abster de confrontar-se com o dionisíaco, este por sua vez não pode ser vivido em estado puro, bruto, pois isso acarretaria a completa aniquilação de toda existência que quisesse manter uma certa unidade e autonomia. Já na Segunda Consideração Extemporânea, esse mesmo problema irá se apresentar do seguinte modo: Nietzsche irá traçar uma distinção entre história e vida, para em seguida tomar parte desta como critério de avaliação da história, o que fica claro já no próprio subtítulo da obra: Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. O problema é: como pôr-se a par da vida? Se por um lado Nietzsche detecta no homem moderno a “doença da história”65 ─ doença que pretende calcular a vida arrogando-se para isso um saber intelectual sobre ela, como se a vida pudesse ser determinada e explicada causalmente em todas as suas dimensões pela ciência da história ─ por outro lado Nietzsche afirma que o homem, ao contrário do animal, não pode viver de maneira inteiramente não histórica: Represente, para tomarmos um exemplo extremo, um homem que não possuísse a força de esquecer e fosse condenado a ver em toda coisa um 65 NIETZSCHE. Ecce Homo, “As Extemporâneas”, §1. Da grande saúde em Nietzsche devir: um tal homem não acreditaria sequer em sua própria existência, não acreditaria mais em si, ele veria tudo se dissolver numa multiplicidade de pontos moventes e perderia o chão nessa torrente do devir: um verdadeiro discípulo de Heráclito, ele terminaria por não ousar levantar sequer um dedo. Toda ação exige o esquecimento, assim como toda vida orgânica exige não somente a luz, mas também a escuridão.66 Determinar o grau em que o passado deverá ser esquecido ou não, isso é algo relativo ao quantum de forças plásticas possui cada indivíduo, povo ou nação; em suma, o que irá determinar essa medida é um problema que em última instância diz respeito ao que Nietzsche entende por saúde: “o elemento histórico e o elemento não histórico são igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de um povo, de uma cultura”.67 Há aí presente uma questão ética que clama por uma medida para a ação. Poderíamos então ser levados a pensar que Nietzsche está obviamente apontando para uma ética do equilíbrio, do ‘caminho do meio’ entre a história e a vida... Mas não é isso que ele afirma na Primeira Consideração Extemporânea: Seria um erro ver uma virtude aristotélica nessa moderação prudente, senão sábia, e nessa mediocritas da coragem: pois essa coragem não é o meio entre dois erros, mas entre uma virtude e um defeito – e é nesse meio entre uma virtude e um defeito que se enraízam todas as características do filisteu.”68 “(...)o meio entre dois vícios não é sempre a virtude, mas bem frequentemente fraqueza, paralisia, impotência. (...) Uma secura e sobriedade extremas, uma sobriedade verdadeiramente famélica, induzem atualmente na massa cultivada o sentimento artificial de serem signos de saúde, (...) eles vêem saúde onde nós apenas vemos debilidade, morbidez e superexcitação onde nós reconhecemos a verdadeira saúde.69 Não estaria Nietzsche desse modo propondo com saúde a positivação de certo desequilíbrio? Isto deveria valer para todos os mortais mais bem logrados de corpo e espírito, que estão longe de colocar seu frágil equilíbrio de “animal e anjo” entre os argumentos contra a existência – os mais finos e lúcidos, como 66 67 NIETZSCHE. Considérations Inactuelles II. §1. Ibid. §1. NIETZSCHE. Considérations Inactuelles I, §8. 69 NIETZSCHE. Considérations Inactuelles I, §11. 68 SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Goethe, como Hafiz, enxergaram nisso até mesmo um estímulo mais para viver70 De uma certa doença? Qual seria a origem dessa condição doentia? Pois o homem é mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado, que qualquer outro animal, não há dúvida (...) como não seria um tão rico e corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?”71 De uma certa falta de sentido? (...) o sacerdote ascético não hesitou em tomar a seu serviço toda a matilha de cães selvagens que existem no homem (...) sempre com o mesmo objetivo, despertar o homem de sua longa tristeza, pôr em fuga ao menos por instantes a sua surda dor, sua vacilante miséria, e sempre sob a coberta de uma interpretação e “justificação” religiosa. Todo excesso de sentimento dessa natureza tem o seu preço, (...) ele torna o doente mais doente.72 A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!”73; ou mesmo a positivação de uma certa impotência? A cisão de um protoplasma em 2 intervém quando a potência não mais é suficiente para dominar as posses adquiridas: a geração é consequência de uma impotência. Lá onde os machos procuram as fêmeas e nelas se propagam, a geração é conseqüência de uma fome74. Mas quem é forte o bastante para isso? 75 70 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, III, §2. Ibid. III , §13. 72 Ibid. III , §20. 73 Ibid. III , §28. 74 Fragments Posthumes, automne 1885- printemps 1886, 1[118]. 75 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, II, 24. 71 Da grande saúde em Nietzsche Referências Bibliográficas ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée, 3 vols., Paris. ANDRÉAS-SALOMÉ, Lou. Fréderic Nietzsche. Paris, Grasset, 1932. COLLI, Giorgio. Après Nietzsche. Paris, Editions de l’Eclat, 1987. _____________. Ecrits sur Nietzsche. Paris, Eclat, 1998. DELEUZE, G. Da comunicação dos acontecimentos, in: “A Lógica do Sentido”. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2006. __________. Nietzsche et la Philosophie. Paris: PUF, 2003. __________. Nietzsche. Paris: PUF, 1965. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a música. Rio de Janeiro, Imago, 1994. FINK, Eugen. Nietzsche. La philosophie de Nietzsche. Paris, Minuit, 1965. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx, in: Nietzsche, Cahiers de Royaumont, Paris, Minuit, 1967. GRANIER, J. Le Problème de la Vérité dans la Philosophie de Nietzsche. 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José João Neves Barbosa Vicente1 Resumo Hannah Arendt apresentou em seu livro Origens do totalitarismo, uma forma nova de se lidar com os acontecimentos políticos contemporâneos que, segundo ela, desafiaram todas as nossas categorias de análise. Assim, este texto procura expor de um modo introdutório, a maneira inédita como esses acontecimentos foram compreendidos pela autora. Palavras-chave: Ruptura. História. Acontecimentos. Causalidade. Estado – nação. Abstract Hannah Arendt presented in its book Origins of the totalitarianism, a new form of dealing with the events contemporary politicians who, according to it, had defied all our categories of analysis. Thus, this text looks for to display in an introductory way, the way as these events were understood by the author. Keywords: Rupture; History; Events; Causality; State - nation. Não é possível recusar, por exemplo, que Origens do totalitarismo de Hannah Arendt é uma obra de difícil classificação. No entanto, não se pode negar, também, que nela a autora narra histórias. Em relação ao povo judeu, ela apresenta a maneira como esse povo veio a ser entendido como supérfluo; narra, também, como milhões de pessoas foram transformadas em um subproduto da revolução industrial, em especial, das políticas do imperialismo. Histórias que, no fundo, apontam de certa forma, um caminho para alienação de um mundo comum, uma situação exacerbada após a Primeira Guerra Mundial pela presença de um grande número de refugiados sem pátria e do peso econômico do desemprego, entre outros fatores. Mas, apesar de narrar histórias, e as duas primeiras partes do livro serem as mais controversas, uma vez que Hannah Arendt faz amplas alegações históricas e sociológicas discutindo o antissemitismo e o imperialismo, e descrevendo diferentes incidentes a partir de diversas fontes, a fim de mostrar como o pensamento racial 1 José João Neves Barbosa Vicente é doutorando em filosofia pela UFBA. E-mail: josebvicente@bol.com.br VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 começou a emergir por toda a Europa, Origens do totalitarismo se diferencia da maioria dos escritos históricos. Ele não é, por exemplo, uma tentativa positiva de contribuir com a história de um povo e de uma cultura no sentido de preserva-los; é uma obra que ataca para analisar e discutir o que historicamente deu errado. Não se trata, portanto, apenas de uma história dos fatos, mas fundamentalmente, de uma genealogia de formas de pensar. Outra questão importante para a compreensão da obra é estar ciente que, assim como o totalitarismo, o antissemitismo e o imperialismo são apresentados em Origens do totalitarismo, como acontecimentos que introduziram rupturas na história humana. São acontecimentos que não podem ser de maneira alguma, relacionados com males antigos e analogias históricas, nem compreendidos por qualquer continuidade ou explicação causal. Pois, de acordo com Hannah Arendt, definitivamente, o curso da história não corresponde a um movimento irresistível à fatalidade. A obra de Hannah Arendt, portanto, não se propõe nem a reconstituir uma sequencia histórica cujo desenvolvimento permitiria explica o totalitarismo do como uma evolução estritamente causal, nem mesmo assediar a genealogia que o explicaria do ponto de vista da história das ideias. O antissemitismo moderno para Hannah Arendt (1972, p.37), entra “no quadro mais amplo do desenvolvimento do Estado-Nação”2. Mas, também, coincide com o declínio desse Estado, afinal, para “que um grupo de pessoas se tornasse antissemitas em um dado país num dado momento histórico dependia exclusivamente das circunstâncias gerais que os levavam a violento antagonismo contra o governo” (Arendt, 1989, p.48.)3 é, de acordo com Hannah Arendt, distinto do ódio ao judeu, de origem religiosa. O Estado – nação, de que a França seria o exemplo “por excelência” como observou Hannah Arendt em sua obra Da revolução (1980), é uma estrutura autônoma formada desde a Revolução Francesa, fortificada durante o século XIX, e que criou um novo modo do ser social. Fruto de vários séculos de monarquia e de despotismo esclarecido, essa estrutura é ambígua, assim como suas consequências. Exigindo direito do homem universais, sempre consideram-se também como soberano e, por consequência, não estando a nenhuma lei a ele superior, o Estado francês mostrou seus paradoxos desde o período revolucionário. Substituiu o “homem” pelo “cidadão” nos próprios artigos da Declaração dos Direitos do Homem, de 1798, e promulgou leis contra os estrangeiros antes de voltar-se contra a aristocracia sob o terror. 3 Por serem ricos e praticamente desinteressados em poder político e mantendo intima relação com as fontes do poder do Estado financiando-o em épocas de crises, os judeus eram invariavelmente identificados com o próprio poder. 2 Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo Dessa forma, a autora distingue o antissemitismo moderno do ódio ao judeu de origem religiosa, rejeitando e denunciando como falsas todas as teorias que o analisam dentro de uma perspectiva de perseguição milenar ou explicando-o pelo mecanismo do bode expiatório4. Como nos lembra L. Dumont (1993, p.142), “a continuidade do antissemitismo desde a Idade Media não explica a sinistra invenção do extermínio, tal como a continuidade da ideologia alemã, está longe de explicar a catastrófica metamorfose nazista”. A tese do bode expiatório segundo Hannah Arendt ilude fundamentalmente a importância do antissemitismo e vai a ponto de afirmar que os próprios judeus pensaram que o antissemitismo era um excelente meio de manter a unidade do povo judeu e de lhe garantir uma vida eterna. Da perspectiva de Hannah Arendt, talvez a primeira a estabelecer uma distinção fundamental entre o antissemitismo pré – totalitário e o antissemitismo totalitário, a teoria de bode expiatório, implica simultaneamente a total contingência da “escolha” dos judeus como vítimas, e a sua total inocência. Recusá-la, significa no fundo, uma recusa da causalidade em história. Para ela, nenhum passado relacionado ao povo judeu explica por que, no século XX, “a ambição totalitária de uma dominação absoluta, que deve ser exercida pelos membros de uma sociedade secreta e com os métodos correspondentes, pode tornar-se um objetivo político sedutor” (Arendt, 1972, p.19). Hannah Arendt demonstra que, contrariamente a uma opinião muito facilmente recebida, esse antissemitismo moderno não é fruto do nacionalismo tradicional, mas que, ao contrário, este se desenvolve à medida que declina o Estado – nação. Os “judeus da corte”, nos séculos XVII e XVIII, graças a seus aportes financeiros, já eram influentes junto à monarquia. Os “Estados – Nações” que surgem depois da Revolução Francesa têm mais necessidades de capitais; em troca de seus empréstimos, são ampliados os direitos dos judeus. Contudo, no fim do século XIX, com o nascimento do imperialismo, os homens de negócios são levados a envolver-se politicamente; os judeus que não participam das colonizações, veem sua influência 4 O bode expiatório nada mais é do que um indivíduo, grupo ou categoria de pessoas usados como objeto de culpa no sistema social. Essa figura fornece mecanismo para dar vazão à raiva, à frustração, ao ressentimento, ao medo e outras emoções que, de outra forma, seriam expressadas de maneira que danificariam a coesão social, contestariam o status quo ou atacariam os grupos dominantes e seus interesses. Imigrantes e MINORIAS, por exemplo, são muitas vezes usados como bodes expiatórios durante épocas de dificuldades econômicas e considerados causa de desemprego e de outros problema sociais. Como resultado, certos aspectos de sistemas sociais que geram crises econômicas, tais como a competição e a exploração capitalista, são ocultados do público e de possível crítica. VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 diminuir. Por fim, no século XX, tanto a comunidade judia quanto o Estado – Nação se desintegram, e os judeus passam a ser alvo de ódio, cada classe da sociedade que, em um momento ou outro, entrava em conflito com o Estado tornava-se antissemita porque os judeus eram o único grupo social que parecia representar o Estado (Arendt, 1972, p.68). O antissemitismo se revelou uma arma de tão grande eficácia que era agitada por diversos escândalos financeiros e pelo mito de uma internacional judaica que manipulava os destinos políticos da terra. Desse antissemitismo político, Hannah Arendt faz questão de destacar com cuidado, o antissemitismo social que acontece não em um grupo separado, mas em um grupo no qual a emancipação se conciliou com a igualdade; quanto mais esta se afirma, mais se aprofunda uma discriminação animada por sentimento da diferença que suscita, “ao mesmo tempo, o ressentimento social contra os judeus e um atrativo particular” (Arendt, 1972, p.127). Nesse caso também, alerta Hannah Arendt, é preciso desconfiar das ideias preconcebidas: não é a sociedade que segrega progressivamente os judeus; eles mesmos, desde o fim do século XVI, afastamse dos grupos sociais e rejeitam a integração em nome de uma eleição superior e mítica do povo judeu. E quando, no século XIX, os primeiros partidos antissemitas denunciam uma peseudo-sociedade secreta judia que desejaria tomar o poder, já é tarde demais. Quanto ao imperialismo5, esse desejo insaciável de expansão e de colonização do Estado – Nação no final do século XIX(mais precisamente, de 1884 até 1914), baseado fundamentalmente no princípio proferido por Cecil Rhodes, “expansão é tudo”, ou “expansão por amor a expansão, expansão sem limite onde nações inteiras eram vistas como simples degraus para a conquista das riquezas e para o domínio de um terceiro país que por sua vez, se tornava mero degrau no infindável processo de 5 O imperialismo é o último estágio do capitalismo, para Hannah Arendt, porém, o imperialismo deve ser considerado o primeiro estágio do domínio político da burguesia e não o último estágio do capitalismo. Tudo começou com uma mudança econômica. Por exemplo, observando a Europa de fins do século XIX, percebe-se um rápido crescimento da produção industrial, de repente, superabundância de capital. A GrãBretanha, a França, a Alemanha e a Bélgica voltaram-se para ultramar a fim de empregar esse capital, ocupando para esse fim novos e vastos territórios. Em menos de vinte anos, o império Britânico a adquiriu 12 milhões de quilômetros quadrados e 66 milhões de almas, a Alemanha 2,5 milhões de quilômetros quadrados e 13 milhões de novos habitantes, a Bélgica 2,3 milhões de quilômetros quadrados e 8,5 milhões de habitantes, ou seja, a “megalomania” dessa política mundial. Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo expansão e de acúmulo de poder, distingue-se de acordo com Hannah Arendt (1989, p.147-48) tanto das conquistas de características nacional antes levadas adiantes por meio de guerras fronteiriças, quanto da política imperialista da verdadeira formação de império, ao estilo de Roma... Nada caracteriza melhor a política de poder da era imperialista do que a transformação de objetivos de interesse nacional, localizados, limitados e, portanto, previsíveis, em busca ilimitada de poder, que ameaça devastar e varrer o mundo inteiro sem qualquer finalidade definida, sem alvo nacional e territorialmente delimitado e, portanto, sem nenhuma direção previsível (Arendt, 1990, pp.147-148.). Essa política imperialista, portanto, que estabelece “a expansão como objetivo permanente e supremo” (Arendt, 1989, p.155.), não constitui, segundo Hannah Arendt, um princípio político: encontra antes as suas raízes na especulação mercantil, no desejo de escoar os excedentes de produção em novos mercados; conseqüência da emancipação política da burguesia. Marca, portanto, a subordinação da política á administração. Uma vez os interesses privados tendo sido transformados em princípios políticos, o poder se reduz, com efeito, a uma dominação pela força, e a exportação de capitais só poderá conduzir à exportação da violência. Concretamente, os pilares da empresa foram o racismo e a burocracia. Ora, para nós, no entanto, o mais importante neste momento é compreender em que sentido Hannah Arendt concebeu aqueles dois acontecimentos, como “Origens” do totalitarismo, sendo que, para ela, não há espaço para uma explicação causal desse fenômeno e muito menos, de uma acusação direta de pensadores ou instituições, como responsáveis pelo surgimento desse regime político6, uma vez que é impossível deduzir de quaisquer elementos passados as causas necessárias de explicação desse Macridis (1982, p.202-206), aponta para pensadores como Nietzsche, com o seu conceito de “Super homem”; Schopenhauer, com o seu conceito de “o mundo é uma idéia minha...”; Platão, com a sua definição do mito como uma “mentira de ouro”; Darwin, com a sua noção de sobrevivência dos mais preparados, etc, como sendo “raízes intelectuais do totalitarismo”; Friedrich (1970) interpreta Rousseau como uma espécie de “pai da filosofia totalitária”; Popper (1987, p.69-88), acentua a influencia das idéias sobre os acontecimentos e acusa os “falsos profetas” Hegel e Marx de terem gerados, respectivamente, Hitler e Stalin. Segundo Popper, “Hegel desenvolveu a teoria histórica e totalitária do nacionalismo”, ou seja, “quase todas as idéias mais importantes do totalitarismo moderno são diretamente herdadas de Hegel”; Kelsen (2000, p.210) responsabiliza Platão, e também afirma de que a Igreja é “o mestre do Estado totalitário em quase todos os seus aspectos”. Enfim, a lista poderia estender-se muito mais. 6 VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 acontecimento, no sentido de que eles tinham inexoravelmente de produzi-lo. A resposta só poderá ser encontrada naquilo que a nossa autora denominou por cristalização. Na conjugação do racismo e do sistema burocrático, na primeira fase do imperialismo, onde terras imensas caíram sob o domínio completo, não da lei, mas do decreto, onde seus nativos eram classificados como cidadãos inferiores na mera base de raça ou cor e que esteve na origem das selvagens matanças de Carl Petters, no Sudoeste Africano Alemão, a dizimação da pacata população do Congo reduzida de 20 milhões para 8 milhões, Hannah Arendt vê um caso de cristalização. Afinal, a “causa” desses massacres residia, portanto, no encontro de duas “causas parciais”, que, inicialmente, não estavam ligadas por nenhuma necessidade intrínseca. Percebe-se que antes da sua conjugação no acontecimento do imperialismo, nem o racismo nem a burocracia teriam podido abrir-se à dedução do imperialismo. A burocracia é certamente o tipo mais complexo e altamente desenvolvido de organização formal. Da forma como foi desenvolvido por Max Weber, por exemplo, o conceito se refere a uma organização na qual o poder é distribuído em uma hierarquia rígida, com nítidas linhas de autoridade. A divisão do trabalho é complexa, o que implica dizer que pessoas se encarregam de tarefas minuciosamente especializadas e trabalham sob regras e expectativas definidas de forma clara, em geral escritas. São mantidos registros por escritos e gerentes se especializam em supervisionar o sistema. O cumprimento dos objetivos da organização tem precedências sobre o bem-estar dos indivíduos, e a racionalidade impessoal é valorizada como base para a tomada de decisões à luz desses objetivos. Portanto, de acordo com Hannah Arendt, o governo totalitário não foi importado da Lua, o que conseqüentemente, faz cair por terra, como sem fundamento, qualquer tentativa de “acusá-la de teorizar um totalitarismo misteriosamente caído do céu” (Chatelet, 1993, p.45.), mas sim, brotou no mundo não totalitário cristalizando elementos que ali encontrou (Arendt, 1993, p.41.). Nesse sentido, o totalitarismo é da perspectiva arendtiana, uma “criação” exclusivamente humana. Isto é, como ela mesma disse: “esse corpo político absolutamente ‘original’ foi planejado por homens e, de alguma forma, está respondendo a necessidades humanas” (Arendt, 1989, p.526.). é um novo tipo de formação política que não tem precedentes e que difere dos outros tipos de Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo tiranias políticas. Para Hannah Arendt, apenas duas marcas registradas caracterizaram as tiranias ao longo dos tempos: de um lado, o poder arbitrário, sem freio das leis, exercido no interesse do governante e contra os interesses dos governados; e de outro, o medo como princípio de ação, ou seja, o medo que o povo tem pelo governante e o medo do governante pelo povo (Arendt, 1990, p.513.). Algo importante a ser salientado é que, nessas tiranias, a pessoa tinha a liberdade de pelo menos, escolher a oposição, uma liberdade limitada sim, pois sabia que corria o risco de ser torturada ou morta; porém, uma liberdade recusada à vítima do sistema totalitário. Pois, o totalitarismo só se contenta, quando eliminar não apenas a liberdade em todo sentido específico, mas a própria fonte da liberdade que segundo Hannah Arendt, está no nascimento do homem e na sua capacidade de começar de novo. Conforme nos lembra Hitler, por exemplo, a missão principal dos Estados Germânicos é cuidar e pôr um paradeiro a uma progressiva mistura de raças. A geração dos nossos conhecidos fracalhões de hoje naturalmente gritará e se queixará de ofensa aos mais sagrados direitos dos homens. Só existe, porém, um direito sagrado e esse direito é, ao mesmo tempo, um dever dos mais sagrados, constituindo em velar pela pureza racial, para, defesa da parte mais sadia da humanidade, tornar possível um aperfeiçoamento maior da espécie humana. O primeiro dever de um Estado nacionalista é evitar que o casamento continue a ser uma constante vergonha para a raça e consagrá-lo como instituição destinada a reproduzir a imagem de Deus e não criaturas monstruosas, meio homem meio macacos. Protestos contra isso estão de acordo com uma época que permite qualquer degenerado reproduzir-se e lançar uma carga de indizíveis sofrimentos sobre os seus contemporâneos e descendentes, enquanto, por outro lado, meios de dividir a procriação são oferecidas à venda em todas as farmácias e até anunciados pelos camelôs, mesmo quando se trata de pais sadios (Hitler, 1983, p.252.). O totalitarismo utiliza, de acordo com Hannah Arendt, da “ideologia” como instrumento essencial para explicar absolutamente e de maneira total o curso da história: “os segredos do passado, as complexidades do presente, as incertezas do futuro” (Arendt, 1989, p.521.). Por um lado, ela forma um sistema de interpretação definitiva do mundo, mostra uma pretensão em explicar tudo, por outro, afirma desde logo o seu VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 caráter irrecusável, infalsificável. Ela é mobilizada para que ninguém jamais comece a pensar, ou pelo menos, como nos lembra Bauman (2000, p.94.), para tornar o pensamento dos indivíduos “impotente, irrelevante e sem influência para o sucesso ou fracasso do poder”. Ela arruína todas as relações com a realidade e constrói um mundo fictício e logicamente coerente. Em lugar das fronteiras e dos canais de comunicação entre os homens individuais, constrói um cinturão de ferro que os cinge de tal forma que é como se a sua pluralidade se dissolvesse em Um-Só-Homem de dimensões gigantesca... Pressionando os homens, uns contra os outros, o terror total destrói o espaço entre eles (Arendt, 1989, p.518.). Desta forma, através de um método perfeitamente original, Hannah Arendt se esforça para analisar esses elementos que se cristalizaram no totalitarismo, onde vê fundamentalmente, um regime perfeitamente novo, de maneira alguma pré – formado ou virtualmente presente em suas “causas”. Por isso o livro Origens do totalitarismo não deve ser considerado como uma história do totalitarismo, mas uma análise em termos históricos dos elementos que cristalizaram no totalitarismo. Além da ruptura, a historiografia arendtiana do totalitarismo é orientada também, por uma outra premissa, a saber, é o evento em sua cristalização presente que ilumina o seu passado, permitindo que se encontrem as suas origens). Tudo isso significa fundamentalmente que, para Hannah Arendt, compreender um acontecimento pressupõe essencialmente, “retraçar” a sua história: anti-semitismo e imperialismo não contêm os germes de um totalitarismo pré – formado, mas o privilégio de retroação permite, no entanto, descobrir aí “elementos” que, “cristalizando” segundo certos eixos, entram em composição dentro das seqüências parcialmente convergentes, e conferem uma relativa inteligibilidade ao inaudito (Chatelet, 1993, p.45.). Ora, é esse retraçar, esse privilégio que tem o pensamento de se retroagir que possibilitou a Hannah Arendt descobrir os elementos do anti-semitismo e do imperialismo, tais como os eurocentrismo, entre outros, que apesar de não serem por Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo separados em si, totalitários, sentimentos antijudaicos, o racismo, a burocracia, a crise dos estados nacionais, o cristalizaram no fenômeno totalitário permitindo assim pensar aqueles dois acontecimentos como “origens” do totalitarismo. É, portanto, nesse sentido, e só nesse sentido, que se pode afirmar que, da perspectiva de Hannah Arendt, o totalitarismo é, de fato, formado por uma amálgama de elementos, ou ainda, que cristalizou elementos de várias proveniências7. Fica claro, também, de que da perspectiva de Hannah Arendt, compreender um acontecimento pressupõe, além de qualquer coisa, “buscar a explicitação e a confirmação dos caminhos que foram seguidos, para que um dado evento viesse a ocorrer” (Bignotto, in: Aguiar, et ali. Org. 2001, p.44.). Portanto, ler e compreender a obra Origens do totalitarismo significa acima de tudo, considerá-la uma obra que não pode ser lida de diante para trás, como uma obra comum, mas sim, uma obra que deve ser lida essencialmente de trás para diante, pois, como disse Hannah Arendt, a respeito dos eventos políticos do nosso tempo, nenhum acontecimento pode ser deduzido do seu passado, ou melhor: “o acontecimento ilumina 7 Em um colóquio recente, realizado em Fortaleza, Ceará em comemoração aos 50 anos da obra Origens do totalitarismo, professor A. Duarte resumiu de um modo claro, a maneira como Hannah Arendt pensou o anti-semitismo e o imperialismo como “origens” do totalitarismo principalmente em sua variante nazista. Por isso, achamos importante transcrevê-lo neste espaço. Para ele, esses dois acontecimentos “só puderam ser pensados como origens a partir do momento em que o próprio passado recebeu sua devida iluminação, derivada do súbito acontecimento de algo novo e inédito na história ocidental: a fabricação em massa da morte de milhões de seres humanos. Assim, foi tomando como ponto de referência a política de extermínio levado a cabo nos campos de concentração que Arendt pôde atribuir um novo sentido a certas condições sociais precedentes, entre as quais enumero as seguintes: a conversão do anti-semitismo tradicional e religioso de mero preconceito social em um potente combustível para a discriminação política legalizada, na medida em que, a partir de meados do século XIX, o anti-semitismo passou então a referir-se à figura do judeu em geral, independentemente de suas atitudes particulares. A identificação, por parte da sociedade civil, entre os judeus e o aparelho do Estado nacional durante o século XIX, daí resultando que estes foram tomados como alvos preferenciais dos conflitos entre sociedade e Estado. A ilusão social de que os judeus eram poderosos politicamente, ao passo que não tinham poder efetivo ou qualquer articulação política própria. A própria autocompreensão dos judeus assimilados, que assumiram sua identidade em termos de um conjunto de características naturais inatas, o que em muito favoreceu a idéia do seu extermínio como solução viável para lidar com a questão judaica. Visto retrospectivamente, o expansionismo imperialista do final do século XIX pôde ser considerado como gerador de condições que foram levadas ao paroxismo nos regimes totalitários, tais como a decadência do Estado – nação e de suas estruturas institucionais; a definição da conquista global de territórios fundada na expansão em nome da expansão como padrão de governo; o racismo como justificativa biológica da dominação de povos; o uso da burocracia como instrumento de dominação política dos povos conquistados, etc. Todos esses fatores contribuíram decisivamente para o sentimento de uma crescente superfluidade dos seres humanos, a qual se agravou durante e após a Primeira Guerra Mundial, que trouxe os fenômenos do desemprego generalizado, da inflação descontrolada e o grande deslocamento geográfico de massas humanas que se viram privadas de um ‘lugar no mundo’, pois destituídas de cidadania, de propriedade privada e de função econômica” (Duarte, in: Aguiar, et ali. Org. 2001, p.64-65.). VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 o próprio passado; jamais pode ser deduzido dele” (Arendt, 1993, p.49.). Essa é certamente, a fórmula essencial para quem quer compreender a obra fundamental de Hannah Arendt; de uma outra maneira, principalmente da maneira como a historiografia moderna propõe compreender os acontecimentos baseada fundamentalmente numa análise causal, seria uma postura essencialmente contraditória com a postura da autora. Ou como muito bem nos lembra O. Aguiar, vale dizer, ao tentar escrever sobre a experiência totalitária, Arendt se viu diante de um “problema epistemológico”, pois essa experiência não podia ser explicada, não se enquadrava nos conceitos tradicionais, não podia ser entendida como culminação de um processo, como desenvolvimento de uma única causa encontráveis no passado. Não era o passado que poderia iluminar e explicar o seu aparecimento. Não se tratava de uma evolução, de algo que podia ser deduzido de uma causa antecedente. A saída que Arendt encontrou foi narrar a experiência. Nessa prática verificou que, ao contrário, o próprio acontecimento ilumina o que o passado pode a ele estar relacionado (Aguiar, 2001, p.203.). Se existe, no entanto, algo em comum entre o Antissemitismo, Imperialismo e o totalitarismo é exatamente não poder ser relacionados com males antigos e analogias históricas que, de acordo com a nossa autora, ocultariam com certeza suas especificidades e devem, portanto, ser totalmente banidos. Assim, é necessário, para a compreensão do pensamento arendtiano, levar sempre em consideração que, o acontecimento ou a ação não conhece nenhuma causa no sentido estrito do termo, tratase na verdade, de recusar o fatalismo e o determinismo. Essa postura não quer dizer, no entanto, opor-se à explicação causal a incapacidade do homem para compreender o seu passado e para agir sobre a sua história futura, nem negar a legitimidade da explicação causal, todavia, significa uma severa crítica à primazia, e mesmo à exclusividade, que lhe é demasiadas vezes concedida pela historiografia moderna. Portanto, se a autora sustenta que o sentido de cada ato, de cada acontecimento, só pode ser revelado por ele próprio, Isso de certo não exclui seja a causalidade seja o contexto em que alguma coisa ocorre... no entanto, causalidade e contexto eram vistos sob uma luz fornecida pelo próprio evento, iluminando um seguimento específico dos Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo problemas humanos; não eram considerados como possuidores de uma existência independente de que o evento seria apenas a expressão mais ou menos acidental, conquanto adequado. Tudo que era dado ou acontecia mantinha sua cota de sentido “geral” dentro dos confins de sua forma individual e aí a revelava, não necessitando de um processo envolvente e engolfante para se tornar significativa (Arendt, 1988, p.96.). O pensamento de Hannah Arendt, nesse sentido, parece concordar-se claramente com o pensamento de Tocqueville, quando este não dá razão às pessoas das letras que veem em todos os lados causas gerais, nem aos homens políticos que consideram que tudo deve ser atribuído a incidentes particulares, Odeio, de minha parte, estes sistemas absolutos, que fazem depender todos os acontecimentos da história de grandes causas primeiras, ligando as umas às outras por uma cadeia fatal, e que suprimem, por assim dizer, os homens da história do gênero humano. Eu os acho limitados em sua pretensa grandeza, e falsos sob seu ar de verdade matemática.(Tocqueville, 1991, p 234). Referências bibliograficas AGUIAR, Odílio alves. 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É autora de "Nietzsche educador" (2003), "Nietzsche e a música" (2005), "Amizade estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche" (2009) e "Nietzsche, vida como obra de arte" (2011). Sobre este último, o professor Evando Nascimento diz que "a força deste trabalho de Rosa Dias, autora de inúmeros e amplamente reconhecidos trabalhos sobre o pensador do Eterno retorno, consiste em ser dotado da capacidade inventiva dos textos a que se refere. Cada categoria é recriada no sentido de percorrer com um novo olhar o jogo das avaliações nietzschianas. Desse modo, abre-se o pensamento para o porvir como transmutação deste nosso tempo de agora, com auxílio da arte. Haveria tarefa mais ambiciosa para qualquer intérprete e pesquisador(a)?" Ensaios Filosóficos: Em primeiro lugar, gostaríamos de agradecer-lhe por esta conversa. É um enorme prazer poder divulgar aos nossos leitores a experiência que tivemos ao longo dos últimos anos estudando ao seu lado. Sua relação com a filosofia parece ser indissociável daquela que a senhora tem com a arte, com o cinema (cabe lembrar aqui o Dias de Nietzsche em Turim (2001), filme roteirizado pela senhora, premiado no Brasil e na Europa). Como a senhora chegou à filosofia e o que a fez manter-se nela? Em muitos momentos, sua trajetória indica uma ultrapassagem dos limites entre filosofia e arte, expressa uma tentativa de abordar a filosofia como arte, a vida como arte. Poderia nos falar um pouco sobre isso? Rosa Dias: Eu também quero agradecer pela conversa. Gostei das questões que me foram colocadas e das palavras sempre carinhosas com as quais vocês se dirigiram a mim. Eu cheguei à filosofia pelas mãos da Marilena Chaui. Ela foi minha professora no Clássico do Colégio Alberto Levy, em São Paulo. Fiz dois anos de filosofia na USP. Nessa Universidade continuei a seguir os seus cursos. Em setembro de 1969, fui para DIAS, R. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Londres por motivos pessoais e políticos e ali meu interesse pela filosofia ganhou força. As conversas com os amigos na casa de Dedé e Caetano, Gil e Sandra com Jorge Mautner e Péricles Cavalcanti duravam às vezes dias inteiros. Foram fundamentais para mim. Foi através dessas conversas que comecei a estudar Nietzsche. Dioniso era sempre evocado. Da Tropicália passei para o cinema. Passar para o cinema não foi difícil, sempre me interessei por cinema, creio mesmo que a máquina desejante que me fez aproximar e me faz viver até hoje com o Julio Bressane é, de certa maneira, o cinema. Sobretudo o cinema experimental que sempre me cativou. Com Julio aprendi e aprendo boa parte do que sei sobre arte e filosofia da imagem. Voltei para o Brasil no final de 1973 e três anos depois em 1976, voltei para a Universidade. Fiz graduação na PUC-RJ e terminei meu curso de mestrado e doutorado no IFCS. Todos esses envolvimentos afetivos me ajudaram a relacionar sempre filosofia/ arte e vida. Hoje me interesso, sobretudo, pela vida como obra de arte. Essa ideia que trabalhei no meu livro Nietzsche, vida como obra de arte me encanta mais do que do que a arte propriamente dita. Mas isso não quer dizer que eu tenha perdido o interesse pela arte. Muito cedo, desde a década de 70, nas minhas primeiras leituras da filosofia de Nietzsche, percebi que ele nos convidava a trabalhar a vida como uma obra de arte. Um ensinamento brota de seus livros: é preciso observar que a ignorância e a negligência nas coisas mais corriqueiras, mais cotidianas foram sempre as causas das “imperfeiçoes terrestres”. EF: Nos tempos atuais, pensar Nietzsche como educador, que é o título do seu livro, pode talvez parecer uma saída. Porém, estaríamos preparados para o pensamento nietzschiano? É possível estar preparado, visto que esse pensamento leva ao extremo a ideia de que devemos exaltar a vida? Rosa Dias: Essa pergunta eu acho que respondi de certo modo na anterior. Nietzsche como educador. Nietzsche é um educador não só para a cultura, mas também para a vida. As exigências que Nietzsche faz para educação, para o ensino da arte e da Entrevista Filosofia na Universidade é ainda hoje muito atual. É preciso ler as Extemporâneas de Nietzsche. São 4 (quatro) livros magníficos. EF: Quem faz seus cursos de estética na UERJ não pode deixar de perceber que a senhora sempre menciona, e traz para as discussões em sala, questões éticas e políticas. Não ficando, portanto, somente na discussão estética. É possível recordar das discussões sobre o ensino de filosofia, em que sua postura era de total apoio à inclusão da filosofia como disciplina obrigatória no Ensino Médio. Quem faz seu curso atualmente não deixa de ser tocado pelas suas palavras, quando a senhora traz para discussão a atitude do governo estadual em querer demolir um prédio histórico e colocar na rua dezenas de indígenas que vivem no local e, assim, acabar com a conhecida aldeia Maracanã. Como a senhora percebe a conjuntura política atual e a sua relação com a filosofia? A impressão que se tem é a de que o filósofo está muito distante dessas questões. Como a senhora percebe isso? Rosa Dias: Hoje a filosofia ganhou um aspecto de solenidade acadêmica, mas ela me parece estar inteiramente afastada da exterioridade. A filosofia cada vez mais está voltada para si mesma, para os textos, os arquivos, os papéis produzidos pelos filósofos. Fazer filosofia hoje é analisar textos. Não se ensina mais a pensar. Nós podemos ver os antropólogos, historiadores, cientistas sociais, psicólogos, pedagogos, voltados para as questões da política e da cultura brasileira e das artes brasileiras, mas os filósofos não. Questões da atualidade estão traçadas nas letras maiúsculas ou minúsculas dos textos dos filósofos. O que está acontecendo agora e que ainda não recebeu o selo das palavras não interessa à filosofia. Quanto à aldeia Maracanã temos de defender a não derrubada do prédio de 1865 e assegurar esse espaço para os índios. Sobretudo reservar o espaço para os índios e suas culturas. EF: Em seu belíssimo livro Amizade Estelar, a senhora apresenta a relação entre Nietzsche, Wagner e Schopenhauer. Ali é evocado um dos mais belos aforismos de DIAS, R. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012 Nietzsche e, quem sabe, o mais honesto olhar já feito por um filósofo acerca da amizade, o aforismo 275 da Gaia Ciência. Como a senhora compreende esse aforismo, à luz das novas formas de relações vistas nas sociedades contemporâneas, em que o individualismo, as relações virtuais e certo tipo de distanciamento entre os indivíduos parecem só aumentar? Rosa Dias: Obrigada pelas palavras carinhosas sobre o meu livro. Essa distância cada vez maior entre os indivíduos, penso que seja irreversível. Infelizmente hoje não dá mais para planejar nada em grupo. Cada um, em primeiro lugar, realizando seus próprios interesses. É a banda do só um, sem ser único, sem mostrar-se original em cada movimento. Indulgentes consigo mesmos, estão todos voltados, não para a criação de si mesmos, mas preocupados em serem intérpretes das opiniões alheias. EF: Nos últimos anos, a senhora voltou seus estudos para o pensamento de Henri Bergson. Gostaríamos de saber como foi esse encontro e, também, que falasse mais sobre a diferença proposta pelo autor entre o homem comum e o artista. Que articulações podem ser feitas entre os pensamentos de Bergson e Nietzsche? Rosa Dias: Podemos fazer muitas articulações entre Nietzsche e Bergson. Embora Bergson não seja um filósofo trágico, ele é um filósofo da plenitude de vida. Isso o aproxima bastante de Nietzsche. Essas palavras não são minhas, mas de um grande estudioso de Bergson, o filósofo francês Jankélévitch. Tenho estudado o livro O riso e a partir desse livro tenho pensado a comicidade no cinema e na literatura. Isso me faz pensar o cinema e a literatura e ainda a relação da filosofia, não só com a filosofia da arte, mas também com as artes. Acho que consigo traçar assim um caminho para a exterioridade. Um caminho que a filosofia abre para a arte.