FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Expediente, Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
ISSN 2177-4994
Editora Chefe :
Elena Moraes Garcia
Conselho Editorial Docente :
Dirce Eleonora Solis
James Bastos Arêas
Luiz Eduardo Bicca
Marly Bulcão L. Britto
Rafael Haddock-Lobo
Rosa Maria Dias
Veronica Damasceno
Conselho Editorial Discente :
Ana Flávia Costa Eccard
Diogo Carreira Fortunato
Luiz Eduardo Nascimento
Marcelo José D. Moraes
Rafael Medina Lopes
Roberta Ribeiro Cassiano
Victor Dias Maia Soares
Capa Ensaios Filosóficos, Volume 6- outubro/2012 :
Jorge Polo
Endereço :
Ensaios Filosóficos – Revista de Filosofia
Campus Francisco Negrão de Lima
Pavilão João Lyra Filho
R. São Francisco Xavier, 524, 9º andar, Sala 9007
Maracanã – Rio de Janeiro – Rj – Cep 20550-900
www.ensaiosfilosoficos.com.br
efrevista@gmail.com
Índice, Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Índice
Editorial por Roberta Ribeiro Cassiano .................................................................. pág.04
“Antinomias e Sistema em Kant e Hegel” por Diogo Ferrer .................................. pág. 08
“Maquiavel e as relações entre ética e política” por Marcia do Amaral .............. pág. 25
“A arte como exílio da condição humana:Uma análise ético-política da estética
contemporânea” por Georgia Cristina Amitrano.................................................... pág. 38
“O intelectual que nasceu de uma piada: o filósofo” por Barbara Botter ............. pág. 57
“Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a
incondicionalidade soberana” por Fernando Fragozo ........................................ pág. 71
“Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do
conhecimento” por Guilherme Müller Junior .......................................................pág. 83
“A dupla intencionalidade da recordação iterativa na fenomenologia husserliana” por
Adriano Negris ..................................................................................................... pág. 102
“Descartes e Sartre: a questão da liberdade” por Osvaldino Marra Rodrigues e Elnora
Gondim................................................................................................................. pág. 113
“Da grande saúde em Nietzsche” por Bruno Wagner Santana............................. pág. 129
“Hannah Arendt: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo” por José João Neves
Barbosa Vicente.................................................................................................... pág. 144
Entrevista com Rosa Dias .................................................................................... pág. 156
Editorial, Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Editorial
É com enorme alegria que o corpo editorial da Revista Ensaios Filosóficos torna
abertos os artigos selecionados para compor a sexta edição de nossa publicação. Com
ainda maior contentamento anunciamos a continuidade e, mais do que isso, o
fortalecimento da ideia que guia este trabalho desde o seu início, a abertura de um
espaço amplo e multímodo para o debate filosófico. Procuramos sempre oferecer
acolhimento aos diálogos e convívios tão ricos e tão próprios ao exercício da filosofia,
buscando não impor a limitação dos artigos a uma corrente ou linha de pesquisa,
permitindo assim que os próprios problemas explorados pelos autores evidenciem as
proximidades e tensões existentes entre si. Por esta razão, esperamos que a sexta edição
da Revista Ensaios Filosóficos, esta que oferecemos agora a nossos leitores, possa
constituir material de inquietação e questionamento, fazendo com que as pesquisas e
leituras, usualmente tão solitárias, possam ganhar voz em suas apropriações e releituras.
Desejamos que o trabalho editorial seja um veículo destas tensões e diálogos, sem
deixar de agradecer enormemente aos autores e colaboradores, sem os quais esta
publicação não seria viável.
Compõem nossa publicação dez artigos, dentre os quais um artigo internacional
escrito por Diogo Ferrer, professor associado da Universidade de Coimbra, intitulado
Antinomias e sistema em Kant e Hegel. A partir da publicação do texto acima referido,
afirmamos nossa intenção de promover o diálogo entre a Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, instituição a que nossa publicação é vinculada, com instituições brasileiras e
internacionais, além de reafirmar nossa disposição para promover o diálogo filosófico
entre comunidades lusófonas, com as quais guardamos parentescos que certamente vão
além do idioma.
Além do artigo internacional, mantivemos constantemente presente na Revista
Ensaios Filosóficos uma entrevista com professores e profissionais da filosofia. A partir
destas entrevistas esperamos estabelecer diálogos que ultrapassem, tanto quanto nos for
possível, certo formalismo acadêmico diante do qual há coisas que nunca são ditas, sem
deixarem de ser, no entanto, da maior importância. Algumas destas coisas nos são aqui
apresentadas com a doçura e gentileza que tão precisamente caracterizam a figura de
Rosa Maria Dias, professora do departamento de filosofia da Universidade do Estado do
Editorial, Ensaios Filosóficos, Volume VI - outubro/2012
Rio de Janeiro, roteirista do filme Dias de Nietzche em Turim, trabalho em conjunto
com Júlio Bressane, além de autora de diversos ensaios sobre o referido filósofo, dentre
os quais se destacam os livros Nietzsche, a vida como obra de arte e Amizade Estelar
Schopenhauer, Wagner e Nietzsche. Esperamos dividir com nossos leitores um pouco
da amável e tenaz convivência filosófica com nossa entrevistada que nós, alunos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pudemos experimentar em suas aulas e
conferências.
Além destes, contamos com nove artigos de professores e estudantes de filosofia
sobre temas diversos, os quais evidenciam, diante do agrupamento na unidade que
constitui a Revista, suas relações e aberturas. O primeiro destes artigos aqui apresentado
é de autoria do mestrando da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Adriano
Negris, intitulado A dupla intencionalidade da recordação iterativa na fenomenologia
husserliana, artigo que se ocupa da abordagem fenomenológica de Edmund Husserl
sobre a questão do tempo, explicitando diversos aspectos desta importante corrente
filosófica contemporânea.
Em seguida apresentamos o artigo da professora da Universidade Federal do
Espírito Santo, Barbara Botter: O intelectual que nasceu de uma piada: o filósofo. Em
seu texto a autora explora as nuances de uma anedota contada por Platão no Teeteto
segundo a qual Tales, o primeiro filósofo, é alvo da risada de uma criada de Trácia ao
cair em um buraco tentando observar o céu. A observação seguinte à piada, a de que ela
se aplica a todos que se ocupam da filosofia, ressoa na tentativa da autora de encontrar
ali um fio condutor adequado para uma compreensão mais ampla da atividade filosófica
ela mesma, um caminho para o interior da questão sobre o que caracteriza a filosofia, a
questão das questões.
O terceiro artigo presente em nossa sexta edição, Da grande saúde em Nietzsche,
é escrito por Bruno Wagner Santana, mestre em filosofia e professor-tutor em filosofia
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Nele nossos leitores encontrarão
discussões acerca do tema exposto no título a partir da filosofia de Nietzsche em
articulação com o conceito central de vontade de potência e outros temas centrais do
pensamento deste egrégio filósofo.
Segue-se a este um artigo escrito a quatro mãos por Elnora Gondim e Osvaldino
Rodrigues, ambos professores da Universidade Federal do Piauí. O texto, intitulado
Editorial, Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Descartes e Sartre: a questão da liberdade aborda, a partir do tema eleito, as críticas
direcionadas pelo filósofo existencialista francês à Descartes, permitindo assim uma
visualização mais ampla daquilo que está em jogo em cada um destes projetos
filosóficos e do profícuo diálogo entre duas emblemáticas abordagens da questão
clássica acerca da liberdade.
Além destes, contamos com um artigo do professor Fernando Fragozo, professor
associado da Escola de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de Professor colaborador do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em seu
artigo o autor procura reconstruir os principais elementos da conferência de Jacques
Derrida denominada O ‘mundo’ das Luzes por vir (Exceção, cálculo e soberania). No
referido texto, Derrida retorna a Husserl e Kant para discutir a crise da razão e o ideal
das luzes, problemáticas centrais do pensamento de nossa época e divisor de águas na
história recente da filosofia. Em seu artigo Razão e desconstrução: Derrida entre a
soberania incondicional e a incondicionalidade soberana, Fragozo nos oferece uma
dimensão da profundidade deste debate e convida ao questionamento das diretrizes
clássicas do exercício filosófico.
Em seguida contamos com o texto de Georgia Amitrano, professora da
Universidade Federal de Uberlândia, A arte como exílio da condição humana: uma
análise ético-política da estética contemporânea. O texto trabalha na interface de duas
disciplinas da filosofia comumente distintas para explicitar a função política e ética da
obra de arte, bem como sua função criadora capaz de “desempenhar uma determinada
função criadora, que envolve tanto a sua originalidade quanto as relações entre homem e
mundo, homem e homem”, nas palavras da autora.
Apresentamos também o artigo de Guilherme Müller Junior, doutor em filosofia,
intitulado Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do
conhecimento. No referido artigo o autor questiona a limitação da apropriação da
filosofia de David Hume segundo sua caracterização como ceticismo e empirismo
epistemológicos e a própria limitação do pensamento de Hume a uma teoria do
conhecimento. Para tal o autor propõe um deslocamento e uma abordagem do
pensamento de Hume a partir da questão: “como funciona o seu pensamento em função
do problema que ele coloca?”.
Editorial, Ensaios Filosóficos, Volume VI - outubro/2012
Por fim, integrando o grupo dos dez artigos que compõem a sexta edição da
Revista Ensaios Filosóficos, apresentamos ao público os artigos do doutorando João
José Vicente, Hannah Arendt: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo e, por
último, o artigo da professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Márcia do Amaral, Maquiavel e as relações entre ética e política. No penúltimo artigo
de nossa publicação encontramos uma revisita a elementos centrais da teoria política de
Hannah Arendt, pensadora cujo trabalho nos lança em ausência de condições de
distinguir entre uma teoria política e uma filosofia propriamente dita. Em seu texto o
autor procura oferecer um guia diante da constatação de Arendt segundo a qual certos
acontecimentos políticos contemporâneos desafiam todas as nossas categorias de análise
forçando assim o pensamento e descobrir uma nova maneira de lidar com eles. Já o
último artigo aqui presente, conforme dito, de autoria da professora Márcia do Amaral,
aborda a relação entre ética e política a partir de uma revisita a teoria política que,
segundo a autora, “provocou mais reações de protestos ao longo do tempo”, a de
Nicolau Maquiavel.
Assim convidamos nosso leitor a fazer e refazer os percursos de pensamento
adotados e explicitados pelos autores dos artigos acima apresentados, ansiando que o
nosso trabalho de editoração e publicação da Revista Ensaios Filosóficos, agora em sua
sexta edição, não seja mais do que a abertura da possibilidade de diálogos e de visões
complexas e sempre agregadoras desta a que servimos com toda a nossa paixão e
empenho, a filosofia.
Roberta Ribeiro Cassiano
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
Diogo Ferrer 1
Resumo
O presente artigo começa por estudar o significado sistemático do capítulo da
Antinomia da razão na Crítica da Razão Pura de Kant. Especial importância é
dada à afirmação de Kant, nesse capítulo, de que a antinomia é uma
demonstração indireta da idealidade dos fenômenos. O estudo da antinomia da
razão pura permite concluir que a concepção tripartida do sistema da razão
teórica kantiana, dividida em sensibilidade, entendimento e razão, pode ser
entendida como um resultado necessário do problema levantado pela antinomia
da razão pura. Pretende-se, assim, introduzir uma leitura dialética da Crítica da
Razão Pura. Mostra-se em seguida que a Ciência da Lógica de Hegel assume
justamente a antinomia como base da autodiferenciação interna da razão, pela
qual nesta se produz o seu negativo, a experiência. O projecto lógico-dialético
de Hegel consiste, assim, numa maior explicitação e sistematização de
possibilidades abertas pela crítica kantiana. Esta explicitação e sistematização
por Hegel do programa antinômico da razão kantiana tem como consequência a
necessidade de abandonar as distinções kantinanas entre analítico e sintético,
entre a priori e a posteriori. Abriu também, por outro lado, o caminho para
uma mais radical dialética da razão.
Palavras-chave: Kant, Hegel, antinomia, sistema, razão pura, lógica, dialética,
experiência.
Abstract
The present article begins estudying the systematic meaning of the chapter
about the reason Antinomy in the Critique of Pure Reason by Kant. Special
importance is given to the affirmation of Kant, in this chapter, that the
antinomy is an indirect demonstration of ideality of phenomena. The study of
the antinomy of pure reason allows concluding that the tripartite conception of
the system of kantian theorical reason, divided into sensibility, understanding
and reason, can be understood as a necessary result of the problem that is posed
by the antinomy of pure reason. Thus it is intended to introduce a dialectical
reading of the Critique of Pure Reason. It is shown then that the Science of
1
Diogo Ferrer é Professor Associado da Universidade de Coimbra. E-mail:ferrer.diogo@gmail.com. Uma
versão inicial deste texto foi apresentada em conferência no Departamento de Filosofia da UNESP, em
Marília, SP, Agosto de 2011. Agradeço ao Prof. Ubirajara Rancan de Azevedo a recepção em Marília.
Uma versão alemã foi apresentada em Mainz, Outubro de 2011, no III. Multilateralen Kant-Kolloquium:
Kant und das antinomische Denken – Kant et la pensée antinomique – Kant and Antinomical Thinking.
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
Logic by Hegel assumes exactly the antinomy as internal base of selfdifferentiation of reason, whereby, in it, is produced its negative, the
experience. The logical-dialectical project by Hegel consists, then, in a bigger
explicitation and systematization of possibilities opened up by the kantian
critical. This explicitation and systematization by Hegel of the antinomical
program of kantian reason has, as its consequence, the necessity of abandoning
the kantian distinctions between analytical and synthetic, between a priori and
a posteriori. It has opened up, in the other hand, the path to an even more
radical dialectic of reason.
1.
A unidade da Crítica da Razão Pura
Na Crítica da Razão Pura, Kant se propõe realizar não só uma crítica, como
também estabelecer um sistema da razão. Para o tema deste artigo, a relação entre
antinomias e sistema em Kant e Hegel, não importará entrar na questão, que pode surgir
a respeito de diferentes passagens da obra, sobre se a crítica é já parte integrante do
sistema da razão, ou se é a preparação ou a propedêutica para ele. Serão suficientes para
já as afirmações de Kant de que a Crítica da Razão Pura fornece os materiais bem
como o plano arquitetônico do sistema da razão humana.
Segundo Kant, na razão pura, “cada parte faz falta para o conhecimento das
restantes, e não há lugar para nenhum acrescento contingente ou grandeza
indeterminada de completude que não tenha os seus limites determinados a priori”.2 A
razão, por isso, “é comparável a uma esfera, cujo diâmetro pode ser indicado com
certeza a partir da curvatura da superfície”.3 Estas afirmações não são isoladas, mas
pertencem a uma série de outras semelhantes ou com o mesmo significado na Crítica da
Razão Pura. A primeira questão que se levanta a esta tese sobre a unidade da Crítica da
Razão Pura é qual a necessidade de a razão ser um sistema assim organizado? Não é,
afinal, a experiência a pedra de toque não só da verdade, como até mesmo já do
significado de qualquer conhecimento? Porque não é a razão também uma construção
empírica, sujeita à mudança e a acrescentos não previstos em algum plano, como é
“[…] ein jeder Teil bei der Kenntnis der übrigen vermißt werden kann, und keine zufällige
Hinzusetzung, oder unbestimmte Größe der Vollkommenheit, die nicht ihre a priori bestimmte Grenzen
habe, stattfindet” (B 860-861) (AA III, 539). Utilizarei a seguinte edição: Immanuel Kant, Kritik der
reinen Vernunft, ed. J. Timmermann, Felix Meiner, Hamburg, 1988. As citações da Crítica da Razão
Pura serão feitas a partir do texto da segunda edição da obra, apenas com a indicação “B”, seguida da
indicação páginação da edição da Academia. A tradução dos excertos citados é minha.
3
“Unsere Vernunft […] muß […] mit einer Sphäre verglichen werden, deren Halbmesser sich aus der
Krümmung des Bogens […] mit Sicherheit angeben läßt” (B 790) (AA III, 497).
2
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
típico da experiência? Porque há de todo um plano arquitetônico rígido da razão? A
resposta de Kant, como é bem conhecido, é que é impossível fundamentar a validade
universal e necessária do conhecimento científico e moral sobre juízos de experiência.
Não sendo, por isso, a fundamentação da razão na experiência uma opção viável, essa
fundamentação tem de ser, “por assim dizer, [um]a auto-gestação do nosso
entendimento (incluindo a razão)”.4
Os princípios da razão que permitem a síntese da experiência não são “um
hábito que surge da experiência e das suas leis e, assim, não são regras meramente
empíricas, ou seja, contingentes em si [mesmas]”.5 Kant confirma, logo no início da
Lógica Transcendental, que a completude sistemática do entendimento deriva do fato de
que este está totalmente separado da sensibilidade. “O entendimento puro separa-se
inteiramente não só de tudo o que é empírico, mas também de toda a sensibilidade. Por
isso, ele é uma unidade que subsiste e se basta a si mesma, e que não pode ser
aumentada por nenhum acrescento vindo de fora”.6 E a partir desta separação,
denominada justamente “crítica”, do entendimento (em conjunto com a razão) em
relação a tudo o que não lhe pertence, o sistema das suas regras e princípios deve ser
organizado segundo uma ideia que “fornece a sua completude e articulação”.7 A razão
é, por conseguinte, faculdade de princípios, i.e., fundante e auto-fundada. A razão é a
faculdade que realiza inferências porque tem a capacidade de dar regras, que devem ser
antes denominadas ‘princípios’, que determinam o pensamento somente a partir de si
próprio, sem recurso a nenhuma outra faculdade.
A razão pura é, por conseguinte,
uma faculdade totalmente auto-contida que se deve poder explicitar integralmente a si
mesma a partir dos seus próprios princípios.
A quarta seção do capítulo sobre a Antinomia da Razão Pura enuncia, então,
uma espécie de ‘saber absoluto’ da filosofia transcendental. Kant insiste aí justamente
no ponto em questão. Segundo este capítulo, todos os “problemas transcendentais da
“so zu sagen, die Selbstgebärung unseres Verstandes (samt der Vernunft)” (B 793) (AA III, 499).
“eine aus Erfahrung und deren Gesetzen entspringende Gewohnheit, mithin bloß empirische, d.i. an sich
zufällige Regeln” (B 793) (AA III, 499).
6
“Der reine Verstand sondert sich nicht allein von allem Empirischen, sondern so gar von aller
Sinnlichkeit völlig aus. Er ist also eine vor sich selbst beständige, sich selbst gnugsame, und durch keine
äußerliche hinzukommende Zusätze zu vermehrende Einheit” (B 89-90) (AA III, 83).
7
B 90 (AA III, 83). Sobre o “conceito generativo de sistema” em Kant v. G. Zöller, “Systembegriff und
Begriffssystem in Kants Transzendentalphilosophie”, in H. F. Fulda – J. Stolzenberg, Architektonik und
System in der Philosophie Kants, Felix Meiner, Hamburg, 2001, 53-72, especialmente 63-65. Sobre a
questão do sistema como estruturação interior da razão veja-se também P. König, “Das wahre System der
Philosophie bei Kant”, in H. F. Fulda – J. Stolzenberg, op. cit. 41-52, esp. 47-50.
4
5
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
razão pura têm de poder ser resolvidos”.8 A razão tem uma capacidade incondicionada
de resolver os seus próprios problemas, porque na filosofia transcendental, assim como,
aliás, na matemática e na moral, “a resposta tem de surgir das mesmas fontes de onde
surge a pergunta”.9 Não há, nas questões da razão pura, a possibilidade de apelar a uma
finitude radical da razão humana como motivo de alguma impossibilidade de um
integral conhecimento de si mesma.
2.
O choque das Antinomias e a “aparente humilhação” da razão
O mesmo capítulo onde é estabelecida de modo mais claro esta necessária
capacidade da razão de dar resposta integral às suas próprias questões expõe também,
por outro lado, as denominadas Antinomias da Razão Pura, onde são apresentados os
problemas aparentemente irresolúveis para a razão.
Dentro da Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura, a Antinomia tem
a particularidade de ser o capítulo que trata das ideias que fazem referência ao mundo
empírico, isto é, que “podem pressupor o seu objeto […] como dado, e a questão que
delas surge diz respeito somente à prossecução da síntese”.10 Consistem, como é bem
conhecido, em primeiro lugar, no problema dos limites da extensão do todo dos
fenômenos no espaço e no tempo; questionam, em seguida, os limites da composição de
cada fenômeno; tratam ainda, em terceiro lugar, da existência de um começo possível
para as séries de determinação dentro do todo dos fenômenos; e, por fim, da existência
de um ser necessário como fundamento da série dos fenômenos.11
As ideias cosmológicas, que conduzem a razão aos seus limites últimos no que
toca às questões do incondicionado da divisão ou da extensão materiais, reivindicam
uma relação muito determinada com os objetos da experiência, mas, segundo Kant
argumenta,12 a resposta às questões que são próprias a estas ideias não poderia ser
encontrada nem porventura entre as coisas em si mesmas, nem em alguma experiência
“Von den transzendentalen Aufgaben der reinen Vernunft, in so fern sie schlechterdings müssen
aufgelöset werden können” (B 504) (AA III, 330).
9
“… weil die Antwort aus denselben Quellen entspringen müß, daraus die Frage entspringt” (B 504) (AA
III, 330).
10
“daß sie Ihren Gegenstand […] als gegeben voraussetzen können, und die Frage, die aus ihnen
entspringt, betrifft nur den Fortgang dieser Synthesis” (B 506-507) (AA III, 331-332).
11
Para uma apresentação e discussão das antinomias, incluindo referências críticas, cf. H. E. Allison,
Kant’s Transcendental Idealism, Yale U. P., New Haven / London, 2004, pp. 366-384.
12
B 507.
8
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
concreta. Por um lado, estas questões ideais da cosmologia não dizem respeito às coisas
em si mesmas, porquanto se está a tratar da completude dos fenômenos da experiência
possível. Na verdade, as coisas em si não parecem suscetíveis de sistema ou de
universalidade como totalidade, posto que estes sejam propriedades do sujeito ou da
razão. Mas, por outro lado, as antinomias tampouco dizem respeito a alguma
experiência, uma vez que não se pergunta por nenhuma experiência in concreto, mas
quer pelo seu todo, quer pelo seu começo, ou o fim das séries da sua determinação. Não
se tratando nas antinomias nem de coisas em si mesmas, nem de fenômenos, só resta
tratar-se de um assunto interno da própria razão.
As antinomias requerem então, uma solução pela razão. Na sua qualidade de
faculdade autônoma que se dá princípios a si mesma, e ainda mais se tratando de um
problema doméstico da razão, esta, na sua própria casa, tem de poder decidir. A questão
pertence à ideia, ou seja, é conceitual, e, nestas condições, conforme Kant enuncia,
“precisamente o mesmo conceito que nos coloca em posição de perguntar, tem de nos
tornar inteiramente aptos a responder à questão, na medida em que o objeto não se
encontra fora do conceito”.13 A razão tem de funcionar neste ponto como que
analiticamente, ou seja, tem de produzir o seu conteúdo determinado a partir do seu
próprio conceito. Em geral, as questões da razão pura são de tipo analítico, porque é o
próprio conceito da razão que permite dar resposta às questões sobre o sistema e o seu
plano.
Mas, tal como ela mesma o exige, finalmente só perante as antinomias, cuja
responsabilidade não pode ser atribuída a nenhum outro fator, nem à experiência, nem
às coisas em si mesmas, mas unicamente a si própria, a razão, como é sabido, não
encontra nenhum meio de decidir entre as argumentações contraditórias acerca das
questões cosmológicas. Kant acentua bem o que está em causa, referindo-se à “aparente
humilhação”14 da razão, impotente para responder às suas próprias exigências.
“weil eben derselbe Begriff, der uns in den Stand setzt zu fragen, durchaus uns auch tüchtig machen
muß, auf diese Frage zu antworten, indem der Gegenstand außer dem Begriffe gar nicht angetroffen wird”
(B 505) (AA III, 331).
14
“… dem Scheine einer demutsvollen Selbsterkenntnis” (B 509) (AA III, 333).
13
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
3.
A solução dialética das Antinomias e a unidade sistemática da Crítica
Perante isto, o plano da razão tem de ser elaborado (ou talvez se deva dizer,
como que reelaborado), de tal modo que a capacidade absoluta da razão de resolver às
suas próprias questões não seja posta em causa. Para isso, as argumentações que levam
às dificuldades insanáveis devem ser declaradas “ilusões transcendentais”,15 porque
partem certamente de pressupostos errados, e descobre-se que toda a disputa é “acerca
de coisa nenhuma”.16 E Kant argumenta que se a oposição entre tese e antítese for
considerada não uma oposição contraditória, mas dialética, não há um verdadeiro
impasse para o sistema, e a dificuldade pode ser superada.
Por razões lógicas que são fáceis de compreender, e que não cabe agora analisar,
na oposição dialética, em contraste com a oposição contraditória, tese e antítese podem
ser ambas falsas ou ambas verdadeiras.17 A condição para que isso seja possível é,
conforme o caso, ou que os conceitos em causa não se apliquem de todo aos fenômenos,
e podem então por isso mesmo ser ambos falsos a respeito destes. Ou então, a condição
é que haja uma distinção de planos, entre fenômeno e noúmeno, e os conceitos em causa
podem ser ambos verdadeiros, conquanto sejam aplicados a coisas diferentes.18 No
primeiro caso, não há contradição porque os conceitos não se aplicam aos fenômenos, e
são ambos falsos. No segundo caso, não há contradição na medida em que um conceito
se aplica aos fenômenos, o oposto às coisas em si, e podem ser ambos verdadeiros.
Como Hegel comentará,19 perante uma alternativa exclusiva ou… ou…, como é o caso
nas antinomias, a dialética responde nem uma coisa nem outra, mas uma terceira, que
corresponde a uma alteração de perspectiva sobre o conceito em causa. A alternativa
aparentemente exclusiva é falsa, porque não se aplica de todo, como tal, ao conceito ou
“transzendentale[r] Schein” (B 532) (AA III, 346).
“um nichts” (B 529) (AA III, 345).
17
Cf. B 532 (AA III, 346).
18
Segundo a análise crítica de W. Malzkorn, Kants Kosmologie-Kritik. Eine formale Analyse der
Antinominenlehre (Walter de Gruyter, Berlin / New York, 1999) a tese de Kant é que as antinomias são
resolúveis porque “die Vernunft (im weiteren Sinne) ist nicht strukturell antinomisch; sie gerät nur
dadurch in die Antinomienproblematik, daß die Urtelskraft einen Fehler in der Anwendung von
Vernunftfunktionen und Vernunftgrundsätzen, d.i. eine ‘transzendentale Subreption’ begeht. Dieser
Fehler besteht gerade darin, Vernunftfunktionen und -grundsätze gemäß der ‘natürlichen’, aber falschen
Erkenntnisvoraussetzung des transzendentalern Realismus unrechtmäßig anzuwenden” (op. cit. 111). As
insuficiências formais que o autor encontra nas demonstrações das teses e antíteses apresentadas por Kant
(cf. op. cit. 315-316) não são importantes para este estudo. Veja-se a nota 21 infra.
19
Cf. G. W, F. Hegel, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, in Werke, ed. E. Moldenhauer –
K. M. Michel, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1970, p. 19.
15
16
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
ao universo dos fenômenos. O universo dos objetos tem de ser dividido em fenômenos e
coisas em si.
Mas é fundamental para a ideia e o plano da razão que mesmo perante a ilusão
autoinflingida o sistema se mantenha, e a ilusão transcendental tenha uma função
positiva e estável dentro dele. Duas conclusões resultam daqui. Em primeiro lugar, por
força da oposição dialética encontrada nas questões internas da razão, o plano do
sistema tem de ser elaborado de maneira a incluir, nos termos de Kant, “todo um
sistema de ilusões e miragens”.20 Kant insiste em que a ilusão em que se funda a
antinomia não é contingente ou mutável, mas tem uma causa bem conhecida e é
sistemática, tem princípios, não é ocasional. É fundamental que se trate de uma
sistemática da ilusão, dotada de princípios e capaz, por isso, de estruturar toda uma
divisão da doutrina lógica dos elementos, a Dialética transcendental. Só a
sistematização da ilusão permitirá manter a coerência do quadro.21
A segunda conclusão a retirar desta necessidade de manter a ideia do sistema
perante a frustração do isolamento da razão, é que a ilusão não é, em última instância,
“Schein” (ilusão), mas “Erscheinung” (fenômeno). É o próprio Kant que faz ressaltar
esta relação entre a ilusão transcendental da razão e a idealidade dos fenômenos: “a
antinomia da razão pura nas suas ideias cosmológicas resolve-se ao mostrar-se que é
meramente dialética e uma controvérsia acerca de uma ilusão, que surge porque se
aplicou aos fenômenos a ideia da totalidade absoluta, ideia que vale somente como
condição das coisas em si.” E desta antinomia, fazendo-se dela um “uso crítico e
doutrinal”, pode-se, então, “demonstrar indiretamente a idealidade transcendental dos
fenômenos”.22
“ein ganzes System von Täuschungen und Blendwerken” (B 739) (AA III, 468). Kant aparece aqui
como o redescobridor da dialética na modernidade, que reintegra assim a lógica. A tese defendida por
Kant, de que a dialética é inerente à razão, irá tornar possível a transformação da concepção da razão e
também da realidade, conforme realizada pelos seus sucessores.
21
Veja-se J. Luchte, Kant’s Critique of Pure Reason. A Reader’s Guide, Continuum, London / New
York, 2007, 118, 121.
22
“So wird demnach die Antinomie der reinen Vernunft bei ihren kosmologischen Ideen gehoben,
dadurch, daß gezeigt wird, sie sei bloß dialektisch und ein Widerstreit eines Scheins, der daher entspringt,
daß man die Idee der absoluten Totalität, welche nur als eine Bedingung der Dinge an sich selbst gilt, auf
Erscheinungen angewandt hat […]. Man kann aber auch umgekehrt aus dieser Antinomie einen wahren,
zwar nicht dogmatischen, aber doch kritischen und doktrinalen Nutzen ziehen: nämlich die
transzendentale Idealität der Erscheinungen dadurch indirekt zu beweisen […]” (B 534-535) (AA III,
347). Para uma avaliação desta demonstração indireta do idealismo transcendental, veja-se S. Gardner,
Kant and the Critique of Pure Reason, Routledge, London / New York, pp. 111-113, 249-255. Sobre a
solução das antinomias, v. ib. pp. 247-248. Como se encontra noutros comentadores, também P. Guyer
20
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
Neste sentido, a antinomia tem um lugar central na arquitetônica da razão. Em
primeiro lugar, a oposição dialética é, afinal, a condição de possibilidade do sistema da
razão transcendental. Além disso, deve observar-se que a própria autonomia da razão
como faculdade de princípios depende da dialética, “porque se os fenômenos forem
coisas em si mesmas, então não há salvação para a liberdade”23; e, sem liberdade, não se
pode falar tampouco de razão autônoma.
Assim, em virtude da antinomia dialética da razão, pode-se considerar
finalmente completo o plano sistemático da razão pura crítica. A razão não pode
conhecer os seus objetos como coisas em si mesmas, mas somente como fenômenos.
Mas a contradição em geral ou, segundo Kant, a oposição dialética, só pode ser
solucionada por uma distinção de aspectos ou relações sob os quais o objeto
aparentemente contraditório é considerado. E, neste caso, o objeto é a própria razão.
Assim, a ocorrência da antinomia como um sistema de ilusão a partir de princípios, isto
é, como produto da razão, requer a distinção de planos em que o objeto é considerado,
uma divisão dos seus objetos que reflete uma divisão da própria razão. Esta distinção de
planos resulta na divisão interior da razão em faculdade de ideias e de conceitos, que
requer também a sua segunda divisão em sensibilidade e razão. Daqui emerge a
conhecida tripartição da razão.24 A contradição da razão só se resolve na medida em que
lhe seja atribuído também, além da atividade espontânea que lhe é própria, um momento
de passividade, que corresponde à sensibilidade. Ao entendimento fica, por seu lado,
reservado o momento da atividade da razão que renuncia, por assim dizer, à ideia de
completude incondicionada, de modo a poder realizar a síntese com a sensibilidade.
Estas distinções podem ser designadas também como divisão da razão em razão e
entendimento e entre razão e sensibilidade. Observa-se aqui que o termo ‘razão’ é
utilizado em três sentidos diferentes, para corresponder às diferentes divisões, de tal
põe em causa o valor das demonstrações de Kant nas antinomias na Crítica da Razão Pura (cf. P. Guyer,
Kant and the Claims of Knowledge, Cambridge U. P., Cambridge, 1987, p. 413). Conclui, no entanto, que
“the antinomies do not in fact necessitate the denial that things are really temporal and spacial, though
they may certainly show that there are limits on what we could confirm about the spatiality and
temporality of things” (ib. p. 387). Crítico da posição de Guyer e mais favorável quanto ao interesse das
antinomias no que se refere à fundamentação do idealismo transcendental é Allison (op. cit., pp. 393395). Da perspectiva que assumimos não é tanto a validade formal ou outra das demonstrações, mas o seu
significado histórico-filosófico, como momento de redescoberta moderna da dialética e abertura de
possibilidades para o pensamento posterior.
23
“denn, sind Erscheinungen Dinge an sich selbst, so ist die Freiheit nicht zu retten” (B 564) (AA III,
366).
24
Para uma apresentação da “signification profonde du plan de la Critique de la raison pure”, pela qual a
tripartição da razão deriva directamente das necessidades da crítica à metafísica racionalista, veja-se L.
Ferry, Kant. Une lecture des trois «Critiques», Bernard Grasset, Paris, 2006, pp. 30-34.
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
modo que a razão é, nas duas divisões apontadas, simultaneamente o todo e uma parte.
Esta plurivocidade não deve ser entendida como um mero equívoco, mas como
resultado do carácter orgânico que o seu próprio plano arquitetônico confere à razão. A
dupla função do termo – como todo e como parte – deriva da “completude do plano” da
obra, completude que “se deve atribuir à natureza de uma razão pura especulativa, que
contém uma verdadeira articulação, onde tudo é órgão”.25
Pelas razões enunciadas, os sucessores e continuadores de Kant no Idealismo
Alemão, como Fichte ou Hegel, nunca entenderam a tão celebrada limitação da razão
crítica como uma simples recuperação do empirismo, como uma ligação contingente
entre empirismo e racionalismo, ou como uma necessidade de apelar à experiência para
resolver as questões que a razão se mostra incapaz de decidir. Não se trata de uma
simples extensão das fontes de conhecimento em relação à razão, nem tampouco de
acrescentar à razão, por agregação, outra faculdade, a sensibilidade. A tese defendida é
que é a referida “natureza especulativa” e orgânica da razão que produz, a partir do seu
próprio plano e ordenação doméstica, as divisões indispensáveis à solução dos seus
problemas de conhecimento. Nada pertence à razão (em sentido mais vasto, incluindo a
sensibilidade), que não esteja sujeito à mediação autônoma da razão (em sentido estrito,
incluindo o entendimento e a faculdade das ideias). Isto quer dizer que ao limitar-se a si
própria, a razão, por um lado, situa a posição do objeto numa faculdade limitante,
limítrofe, ou exterior, a sensibilidade e, por outro, estabelece uma autorreferência.
Assim, em primeiro lugar, pela sua separação em relação à sensibilidade, a razão
pode referir-se ao objeto que ela não põe a partir de si mesma. Em segundo lugar, pela
sua distinção (ou autodistinção) em relação ao entendimento, a razão se refere e confere
princípios ao uso dos seus próprios conceitos. O momento imediato da doação dos
objetos é entregue à sensibilidade que, por isso, é intuitiva, ao passo que a razão é
somente faculdade da mediação ou, na terminologia que Hegel irá adotar, de
automediação.
Em geral, da análise da função da antinomia na Crítica da Razão Pura, pode
retirar-se a conclusão de que se os fenômenos fossem coisas em si não haveria solução
para a contradição da razão ou, mais corretamente, a razão não estaria sujeita à ilusão
“der Natur einer reinen spekulativen Vernunft beizumessen ist, die einen wahren Gliederbau enthält,
worin alles Organ ist” (B XXXVII) (AA III, 22).
25
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
transcendental e, por isso, tão pouco à aparente contradição. Assim, de um modo ou de
outro, se não houvesse antinomia, ou oposição dialética, não haveria distinção entre
fenômenos e coisas em si e, em consequência, não haveria sistema da razão. A
antinomia é, nestas condições, a condição de possibilidade da razão como sistema e,
poderá acrescentar-se, da própria função do sujeito no conhecimento. Na medida em
que requer a idealidade do espaço e do tempo, o sistema não pode dispensar a oposição
dialética.
Dando um salto terminológico, e talvez com outra aplicação, poderia formularse a questão nos termos do Fichte tardio, onde se encontra a mesma tese de que o
sistema da razão depende de que seja possível conciliar dois sentidos aparentemente
opostos da razão. Esta é simultaneamente negada – ou limitada, pelo limite que lhe é
imposto como a intuição sensível – e reafirmada – na sua autonomia e sistematicidade
integrais, que se manifestam como conceito e ideia da razão: “o inconceitualizável é
posto pela negação do conceito; mas, justamente para que possa ser negado, o conceito
tem de ser posto”.26 Generalizando, podemos falar de uma estrutura dialética em que a
razão estabelece uma relação com a intuição na medida em que o conceito se reafirma
na sua própria negação.
4.
O projeto hegeliano de uma antinomia generalizada da razão
Se a leitura feita até aqui é aceitável segundo os termos da Crítica de Kant, o
projeto sistemático de Hegel passa por uma maior explicitação, sistematização e retirada
de algumas consequências a partir das possibilidades abertas pela crítica kantiana. Na
doutrina das antinomias da razão e da sua ligação com a ordenação do sistema da razão
pura segundo Kant, encontra-se uma das chaves mais importantes para a compreensão
do sistema de Hegel. Poderíamos enunciá-la muito esquematicamente, e de um modo
que não é essencialmente diferente daquilo que se encontrou em Kant, com a tese de
que o princípio da intuição é derivado da limitação do conceito. Esta limitação deve
obedecer a dois parâmetros principais: (a) a limitação pode ser logicamente tratada
como uma negação; e (b) trata-se de uma autolimitação. A tese, apresentada sem a
26
Cf. J. G. Fichte, Die Wissenschaftslehre. 2. Vortrag im Jahre 1804, ed. R. Lauth et al., Felix Meiner,
Hamburg, 1986, p. 36: “also wird durch diese Evidenz grade das Unbegreifliche, als Unbegreifliches, und
schlechthin nur als Unbegreifliches, und nichts mehr gesetzt; gesetzt durch die Vernichtung des absoluten
Begriffes, der eben deßwegen, damit er nur vernichtet werden könne, gesetzt sein muß.”
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
devida mediação, pode parecer tudo menos kantiana. Mas deve-se perguntar se não é
autorizada pelo modo como Kant apresenta a diferenciação entre entendimento e
sensibilidade na Crítica da Razão Pura.
No seu plano da razão, Kant não desenvolve muito diretamente a diferença entre
entendimento e sensibilidade. Enuncia principalmente que “os conceitos não pertencem
à intuição e à sensibilidade, mas ao pensar e ao entendimento”27 e, em seguida, reforça a
mesma ideia: “o entendimento foi acima explicado apenas negativamente: como uma
faculdade de conhecimento não-sensível.”28 E, por outro lado, acentua ainda mais esta
possibilidade de definir conceito e sensibilidade por meio de uma relação negativa entre
os dois ao sublinhar que a divisão da razão, quanto a isto, é exaustiva: “não há, além da
intuição, nenhuma outra maneira de conhecer, a não ser por conceitos”.29 Temos, assim,
uma diferença por negação de uma faculdade em relação à outra e, por outro lado,
também uma exaustividade da determinação, conforme é requerido pelo plano
sistemático, onde cada parte deve estar completamente determinada a partir das outras.
E ainda, do mesmo modo, a radical heterogeneidade na diferença entre sensibilidade e
conceito, que é o ponto essencial da filosofia crítica, deve ser interpretada a partir desta
determinação de uma pela negação do outro e inversamente.
Como é bem conhecida, a ligação entre negação, antinomia e sistema é o ponto
central do pensamento de Hegel. Este compreendeu que, dada a presença inseparável da
antinomia no plano arquitetônico da razão, e dado o princípio, ainda kantiano, de que “a
razão pura não se ocupa com mais nada a não ser consigo mesma,”
30
nada parece
impedir que se considere a intuição como derivada diretamente da própria antinomia da
razão.
Hegel vai explorar de modo generalizado o fato de que a construção da Crítica
da Razão Pura abre a possibilidade de que o limite interno da razão, ou seja, a sua
carência de determinação objetiva posta a nu pelas antinomias, possa coincidir com o
seu limite externo, isto é, a sua relação com a intuição. A tese geral é a de que a
diferença crítica entre entendimento e sensibilidade, enquanto determinação externa da
“die Begriffe nicht zur Anschauung und Sinnlichkeit, sondern zum Denken und Verstande gehören” (B
89) (AA III, 83).
28
“Der Verstand wurde oben bloß negativ erklärt, durch ein nichtsinnliches Erkenntnisvermögen” (B 92)
(AA III, 85) [sublinhados meus].
29
“Es gibt aber, außer der Anschauung, keine andere Art zu erkennen, als durch Begriffe” (B 93) (AA III,
85) [sublinhados meus].
30
“die reine Vernunft in der Tat […] mit nichts als sich selbst beschäftigt ist” (B 708) (AA III, 448).
27
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
razão, não é mais do que um reflexo da dialética interna da razão pura, como sua
determinação interna. Se para Hegel, seguindo o dito de Espinosa, “toda a determinação
é negação”, então a determinação interna não é diferente da determinação externa.
Segundo a Ciência da Lógica, em geral “ser-em-si e ser-para-outro são inicialmente
diversos; mas o mesmo que algo é em si, ele tem também em si e, inversamente, o que
ele é como ser para outro, ele é também em si, – esta é a identidade do ser em si e do ser
para outro […]; o algo é, ele mesmo, um e o mesmo de ambos os momentos [i.e. o serem-si e o ser-para-outro], eles estão por isso nele, inseparavelmente”.31 Compreende-se,
neste excerto, porque a dialética hegeliana causa resistência a muitos leitores. No
entanto, a ideia de que algo é constituído – pelo menos no que toca à sua determinação
cognoscitiva – por aquilo que o diferencia das outras coisas, não é uma tese
incompreensível. Se esta definição, como uma definição ontológica de base, for
aplicada também à razão, pode retirar-se a conclusão de que a razão é a unidade daquilo
que ela é em si mesma com o que ela é para o seu outro, outro que, como vimos, só
pode ser dado ao conceito como a intuição.
Em geral, o sistema de Hegel depende desta ligação da constituição ou
determinação interna com a diferenciação ou determinação externa. O ser próprio de
cada coisa, seja ela real ou ideal, concreta ou abstrata, é constituído por aquilo que ela
não é. Isto tem como consequências, por um lado, a possibilidade de tratar toda a teoria
do conhecimento e a própria ontologia, como uma lógica – neste ponto, de acordo ainda
com o idealismo kantiano. A negação é um operador que pode ser manipulado
inteiramente pelo pensar lógico e dispensa, por isso, o conteúdo material dado pela
intuição. Feita, assim, a economia da intuição por meio da sua integração na negação ou
na antinomia própria da razão, a lógica transcendental passa a ocupar o domínio inteiro
da razão pura.
A totalidade do sistema pode ser traçado então por meios exclusivamente
lógicos, desde que seja assegurada uma condição principal, a saber, que esta lógica seja,
em todas as suas determinações e a cada passo, uma lógica antinômica. Ou seja, a
condição para a eliminação da presença da intuição no plano da razão pura é que
“Ansichsein und Sein-für-Anderes sind zunächst verschieden; aber daß etwas dasselbe, was es an sich
ist, auch an ihm hat und umgekehrt, was es als Sein-für-Anderes ist, auch an sich ist, - dies ist die
Identität des Ansichseins und Seins-für-Anderes [ ...]; das Etwas selbst [ist] ein und dasselbe beider
Momente [d.h. des Ansichseins und des Sein-für-Anderes], sie also ungetrennt in ihm sind” (Hegel
Wissenschaft der Logik. Die Lehre vom Sein (1832), ed. H.-J. Gawoll, Felix Meiner, Hamburg, 1990, p.
116. (Gesammelte Werke 21, p. 108)
31
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
também a analítica seja eliminada em favor da dialética, a qual passa a ocupar, por fim,
a esfera tripartida inteira da razão kantiana. A razão está em si própria dividida, e esta
divisão é uma autonegação que gera, em todos os seus momentos, o oposto, isto é, o
não-conceitual que, à boa maneira kantiana, corresponde ao real conforme fornecido
pela síntese da experiência.
Por isso Hegel nos diz, na Introdução à Fenomenologia do Espírito, que a
dialética é a experiência da razão. “Este movimento dialético que a consciência faz nela
mesma, tanto no seu saber quanto no seu objeto […] é propriamente aquilo a que se
chama experiência”.32 Se se deixar neste momento de parte a diferença entre
consciência e razão que só se tornará importante um pouco mais abaixo, verifica-se que
a dialética ocorre na própria consciência na medida em que se encontra diferenciada
entre si mesma (“o seu saber”) e o seu outro (“o seu objeto”). Esta diferenciação que a
consciência traz em si é, por um lado, dialética, por outro, denomina-se a experiência. A
experiência externa da razão é, também, a sua antinomia interna. A terminologia é sem
dúvida distante da kantiana, mas permanece a ideia de base de que a intuição, elemento
fundamental da síntese da experiência, não é diferente da oposição interna do eu – seja
ele tomado como razão ou como consciência.
5.
Consequências sistemáticas da concepção hegeliana da antinomia da
razão
Como salta à vista, esta posição hegeliana tem algumas consequências que muito
a distanciam de Kant. As principais teses da Introdução à Crítica da Razão Pura ficam
abaladas por esta reconstituição do sistema. A primeira consequência da posição
hegeliana é que, sendo o conteúdo inteiro pertença da dialética lógica, e não um
acréscimo ao conceito a partir do diverso da intuição, tem de desaparecer a distinção
entre juízos analíticos e sintéticos. A referida analiticidade dos problemas da razão são
também, afinal, problemas sintéticos. O conteúdo é acrescentado como resultado da
negação dialética de cada conceito e pela unidade conceitual com o seu oposto. Como
acima se referiu, o “algo” é a unidade do ser em si com o ser para outro. O novo
“Diese dielektische Bewegung, welche das Bewußtsein an ihm selbst, sowohl an seinem Wissen, als in
seinem Gegenstände ausübt […] ist eigentlich dasjenige, was Erfahrung genannt wird” (Hegel,
Phänomenologie des Geistes, ed. H.-F. Wessels – H. Clairmont, Felix Meiner, Hamburg, 1988, p. 66
(Gesammelte Werke 9, p. 60)
32
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
conteúdo conceitual “algo” é gerado pela unidade dos opostos “ser em si” e “ser para
outro”. Ou, no conhecido exemplo do começo da Ciência da Lógica, o conteúdo do
conceito do “devir” corresponde à unidade dos conceitos opostos de “ser” e de “nada”.
Cada conceito é produzido por unidade de determinações opostas. O mesmo se passa na
dialética transcendental de Kant, onde o conceito original, por exemplo, uma ideia
cosmológica, produz a partir de si, dir-se-ia, analiticamente, conceitos opostos. Por
outro lado, o resultado, ou seja, a diferenciação dos objetos em fenômenos e coisas em
si, é um resultado que não estava contido no conceito inicial, e por isso pode ser dito
sintético, não obstante seja encontrado sem recurso a nenhum diverso da intuição, mas à
própria antinomia do conceito.
Em geral, segundo Hegel, o conceito resultante de uma divisão dialética de um
conceito tanto pode ser considerado analítico como sintético, consoante a perspectiva
adotada. “O método do conhecer absoluto é, por isso, analítico […] na medida em que
encontra a determinação ulterior do seu universal inicial única e exclusivamente neste
[…]. Mas é sintético, na medida em que o seu objeto […] se mostra como um outro, por
meio da determinidade que ele tem na sua própria imediatez e universalidade. […] Deve
chamar-se dialético a este momento do juízo, tanto analítico quanto sintético, pelo qual
o universal inicial se determina, a partir de si próprio, como o outro de si mesmo”.33
Posto que é o próprio conceito que se nega antinomicamente e divide, não faz sentido
distinguir entre conhecimento ou juízo analítico e sintético.
Uma segunda consequência desta concepção é que, não havendo diverso da
intuição para ser sintetizado pelo entendimento, mas estando o elemento material da
síntese já dado pela dialética, desaparece a diferença entre conhecimento a priori e a
posteriori. A propósito da aplicação por Kant desta distinção à crítica da metafísica,
Hegel considera que a Ciência da Lógica contém “a verdadeira crítica da metafísica –
uma crítica que não a considera segundo as formas abstratas do a priori versus a
posteriori, mas no seu conteúdo próprio”.34 Hegel considera que a Ciência da Lógica é
“Die Methode des absoluten Erkennens ist insofern analytisch [,...] daß sie die weitere Bestimmung
ihres anfänglichen Allgemeinen ganz allein in ihm findet [...]. Sie ist aber ebensosehr synthetisch, indem
ihr Gegenstand [...] durch die Bestimmtheit, die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat,
als ein Anderes sich zeigt. [...] Dieses sosehr synthetische als analytische Moment des Urteils, wodurch
das anfängliche Allgemeine aus ihm selbst, als das Andere seiner sich bestimmt, ist das Dialektische zu
nennen” (Hegel, Wissenschaft der Logik. Die Lehre vom Begriff (1816), ed. H.-J. Gawoll, Felix Meiner,
Hamburg, 1994, p. 291 (Gesammelte Werke 12, p. 242)
34
“die wahrhafte Kritik derselben,—eine Kritik, die sie nicht nach der abstrakten Form der Apriorität
gegen das Aposteriorische, sondern sie selbst in ihrem besondern Inhalte betrachtet” (Hegel, Wissenschaft
33
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
a verdadeira crítica da metafísica, não porque, como Kant, mostre que as teses desta não
têm aplicação a nenhum objeto da experiência possível e carecem, por isso, de qualquer
determinação objetiva. Para Hegel, basta a demonstração de que os conceitos da
metafísica são contraditórios em si mesmos. Não é necessária a referência à questão da
possível existência empírica dos seus objetos, uma vez que a síntese dos princípios e
categorias lógicas com o domínio empírico segue vias totalmente diversas da crítica
kantiana, como se verá. Entretanto, até que se esclareça esta questão, observe-se que,
porquanto a experiência está integrada no conceito, como o seu negativo que produz a
sua divisão interna, a diferença entre a priori e a posteriori se torna abstrata. Consultar
a experiência ou consultar a razão não são, doravante, fontes opostas de conhecimento.
Isto não significa que a experiência desapareça, na sua especificidade própria,
como um mero produto da antinomia do conceito e da sua resolução. Hegel defende que
ela é, pelo contrário, preservada em todo o seu alcance. A determinação do lugar da
experiência na lógica dialética de Hegel depende de uma terceira consequência da
posição hegeliana, consequência que já ficou enunciada acima, a saber, a substituição
do diverso da sensibilidade pela negação inerente ao conceito. Esta consequência
implica a transformação mais profunda do conceito de razão trazida pela perspectiva de
Hegel. Segundo este, a experiência, conforme referimos acima, é uma propriedade da
consciência, estudada na Fenomenologia do Espírito, a qual é denominada por isso
também “ciência da experiência da consciência”, mas não da lógica propriamente dita.
A síntese da experiência não está, por isso, referida na Ciência da Lógica, senão
a título de exemplo ou acrescento exterior. Os conceitos produzidos pela negação e pela
antinomia generalizada da lógica dialética não mais se organizam então de acordo com
a sua relação com a apercepção transcendental, nem são regras de síntese do diverso
segundo os princípios orientadores da razão. Os conceitos, como é sabido, organizamse, segundo Hegel, numa série dialética de desenvolvimento, onde uns derivam dos
outros. Eles são já parte do conteúdo que a experiência da consciência encontrará
também na natureza física e no espírito, tomam parte na síntese do conhecimento
empírico, mas isto não pertence ainda ao âmbito da lógica. Em todos os domínios da
vigência dos seus princípios, seja a nível ideal, real empírico ou outro, a razão não mais
pode ser uma estrutura completa de síntese de experiência, mas é, segundo Hegel, um
der Logik. Die Lehre vom Sein (1812), ed. H.-J. Gawoll, Felix Meiner, Hamburg, 1990, p. 51
(Gesammelte Werke 21, p. 49).
Antinomias e Sistema em Kant e Hegel
processo de desenvolvimento de conteúdo real a partir de conceitos mais abstratos, ou
de realidades mais complexas a partir das mais simples.
Se, como Kant, se definir o significado de um conceito como a sua “relação ao
objeto”,35 então o significado, segundo a concepção hegeliana, é a negação do conceito
na sua idealidade em geral, porque é esta negação da pura idealidade do conceito que
constitui a relação ao objeto. A conclusão da Lógica hegeliana é a tese de que a
realidade pode ser objeto da filosofia uma vez negada, por razões da sua antinomia
interna, toda a esfera ideal do conceito. O real, tratado na Filosofia da Natureza e na
Filosofia do Espírito sucede então, na ordenação da Enciclopédia das Ciências
Filosóficas, à ideia absoluta com a qual culmina a Ciência da Lógica. O real é a
“exterioridade do conceito” e a sua ordenação reproduz e reconduz, pela dialética
interna dessa mesma exterioridade, a razão até si mesma nas diferentes dimensões que a
realidade pode assumir.
6.
Conclusão histórico-filosófica
Como conclusão, gostaria de sugerir que a interpretação da antinomia de Kant
como estreitamente ligada à arquitetônica do sistema teve consequências históricofilosóficas importantes. Kant não considerou a antinomia, evidentemente, conforme
diferentes passagens atestam, como uma ameaça à construção do sistema da razão pura
crítico-transcendental. Pelo contrário. Encarou-a, como tentei mostrar, como uma
condição de possibilidade do sistema. Sem a idealidade dos fenômenos, que ela implica,
não haveria universalidade e necessidade, porquanto só a síntese da experiência confere
ao objeto as características necessárias à universalidade e necessidade das ciências da
natureza. Entendeu o sistema como um “sistema de investigação”, e até mesmo que a
crítica lhe é tão essencial que dela depende a própria “existência da razão”.36 Os seus
continuadores julgaram dever retirar conclusões mais radicais sobre o significado da
antinomia da razão. Entenderam-na, a saber, como a indicação da necessidade ou da
inevitabilidade de integrar o negativo, ou a negatividade na razão. A chamada “tripla
completação
35
36
do
Idealismo
Alemão”
“Beziehung auf Objekte” (B 185) (AA III, 138).
“Existenz der Vernunft” (B 766).
(“dreifache
Vollendung
des
Deutschen
FERRER, D. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Idealismus”37) corresponde a outras tantas vias de integração do negativo numa razão de
tipo pós-metafísico.
Fichte tentou levar a antinomia da razão até às suas últimas consequências,
demonstrando que a solução da contradição só pode ser paga ao preço da incompletude
do sistema ou, inversamente, que a tentativa de uma completação do sistema é sempre
contraditória. Hegel construiu uma razão capaz de assumir em si toda a carga da
negatividade do real, e de conduzi-la a uma permanente reconciliação promovida pela
razão. Schelling, por fim, encontrou como fundamento da existência da razão uma
irracionalidade que o conduziu aos caminhos de uma mitologia da razão. Depois das
antinomias, o negativo passou a fazer parte da razão e não mais a abandonou. Daqui até
à dialética da “Aufklärung” e à denúncia generalizada da razão como o seu oposto, a
dominação, foi um passo.
37
Segundo o título e a interpretação do Idealismo Alemão de W. Janke, Die dreifache Vollendung des
Deutschen Iodealismus. Schelling, Hegel und Fichtes ungeschriebene Lehre, Rodopi, Amsterdam – New
York, 2009. Sobre a interpretação geral do Idealsmo Alemão, cf. pp. 8-24.
Maquiavel e as relações entre ética e política
Maquiavel e as relações entre ética e política
Marcia do Amaral1
Resumo
O objetivo deste artigo é revisitar uma discussão muito em voga nos últimos
tempos: as relações entre a Ética e a Política. Esta discussão se dará no âmbito
da teoria maquiaveliana. O realismo anti-utopista, a rejeição à Ética Cristã, a
constituição de uma ética laica, o estabelecimento de um novo conceito de
"virtu", a subordinação da ética à política, serão assuntos tratados aqui.
Palavras-chave: Maquiavel. Ética. Política. Virtu.
Abstract
The purpose of this article is to revisit a discussion very in vogue in recent
times: the relationship between Ethics and Politics. This discussion will take
place in the context of the Machiavellian theory. The anti-utopian realism,
rejection of the Christian Ethics, the constitution of a secular ethics, the
establishing of a new concept of "virtu", the subordination of ethics to politics
are subjects that will be addressed here.
Keywords: Machiavelli. Ethical. Political. Virtu.
Um Estado cujo povo não tenha sido corrompido
é fácil de governar; onde existe a igualdade não
se pode instituir a monarquia, e onde ela falta não
se pode fundar uma república. (Comentários, I, 55)
1
Marcia do Amaral é Professora Doutora adjunta da UERJ. E-mail: amaral.marcia@uol.com.br
AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
1.
Aviso prévio
O pensamento maquiaveliano é, sem dúvida alguma, no âmbito da teoria
política, o que provocou mais reações de protestos ao longo do tempo. Durante séculos
e por inúmeras pessoas, foi difundido o mito do maquiavelismo enquanto atitude imoral,
traiçoeira, astuciosa, que devia a todo custo ser repudiada. Maquiavel, entre outros
qualificativos, foi tachado de ferrenho defensor da monarquia absoluta, de ateu, de
pagão e de fazer a apologia do crime. Não só suas ideias foram condenadas, mas esta
condenação recaiu também sobre sua pessoa.
Em nossa linguagem comum, por exemplo, é freqüente o uso da expressão
"maquiavélico(a)" como atributo daquelas pessoas cínicas, ardilosas, traiçoeiras, que
para atingir seus fins se valem dos artifícios da mentira e da má-fé. Chegou-se até a
atribuir, de uma maneira infundada, a Maquiavel a frase: "Os fins justificam os meios".
A lenda do perverso maquiavelismo atingiu tal magnitude que, na Inglaterra foi cunhada
a expressão "Old Nick" (velho Nick), para designar o próprio diabo, numa clara
referência ao primeiro nome de Maquiavel. Em síntese, o maquiavelismo tornou-se a
representação mais acabada do mal e o mais intrigante é a força deste mito que já dura
quatro séculos.2
Podemos dizer que um dos motivos pelos quais isto aconteceu deve-se ao fato de
que Maquiavel faz parte do grupo de pensadores de quem todo mundo já ouviu falar,
mas que ninguém conhece efetivamente o teor de suas obras. O agravante, para o
pensamento maquiaveliano, é que a maioria dos que ouviram falar nele, mas não o
conhecem cultivam um pré-julgamento negativo acerca de suas ideias, cuja origem é,
obviamente o senso comum, ou mais pontuadamente, a leitura de uma única obra do
autor, a mais polêmica, O Príncipe.
A criação desta mística perversa de justificador de arbitrariedades e violências
que, aos poucos, deformou para sempre o pensamento maquiaveliano resulta ou do
desconhecimento acerca do todo de sua obra ou de uma leitura descontextualizada da
mesma. Sabemos muito bem que toda fúria crítica que recai sobre o pensamento
maquiaveliano advém da leitura e interpretação d'O Príncipe. Os comentadores de
Maquiavel são implacáveis nas retaliações que fazem ao autor d'O Príncipe, mas,
2
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Maquiavel. A Lógica da Força. São Paulo, Ed. Moderna, 1993.
(Coleção Logos), p. 9.
Maquiavel e as relações entre ética e política
muitos deles se "esquecem" de dar um passo adiante, no sentido de examinar as outras
obras do autor. O que fica registrado na História é o Maquiavel do imoralismo político
d'O Príncipe, um escândalo.
Mas, o fato curioso sobre esta lenda e que passa completamente desapercebido à
grande maioria dos detratores de Maquiavel, é que quando da primeira apresentação ao
público d'O Príncipe, nenhum escândalo aconteceu. Nenhuma reprovação pública,
debate público ou mesmo um protesto formal. Cópias manuscritas desta obra circularam
entre estudiosos e amigos de Maquiavel sem promoverem maiores reações, o que nos
leva a crer que ela estava em perfeita consonância com o tipo de prática política da
época. Mas, esta situação inicial que poderíamos, até certo ponto, qualificar de
desinteresse pela obra3 se transformará totalmente. Denúncias feitas pelo Cardeal inglês
Reginald Pole, horrorizado com a péssima influência das ideias de Maquiavel sobre
Thomas Cromwell (chanceler da Inglaterra no reinado de Henrique VIII), acusam o
primeiro de ateísmo, satanismo, crueldade e despotismo. Aí começa a desfiguração do
pensamento maquiaveliano, que sofre ainda com os ataques dos jesuítas que,
interessados em recolocar o Estado sob a autoridade da Igreja, convencem o Papa Paulo
IV a colocar as obras de Maquiavel no índex (1559)4.
Sobre as críticas mordazes dirigidas à Maquiavel, o que se pode observar é que,
de uma maneira geral, elas se baseiam exclusivamente na leitura d'O Príncipe, e uma
leitura feita, quase sempre de má-fé, tendenciosa, recortando frases do texto para citálas descontextualizadamente, deturpando as ideias do autor.
Estas tentativas sistemáticas de desvirtuar as ideias de Maquiavel e de denegrir
sua própria pessoa vêm até o século XIX. A partir daí o que se tem procurado não é nem
denegri-lo nem louvá-lo, mas sim, avaliar criticamente sua obra, examinando-a em sua
inteireza e não apenas um único tratado. Além disso, há toda uma preocupação em
contextualizá-la historicamente, pois ela está calcada não só na História Antiga de
Roma, completamente vasculhada pelo autor, mas também na observação empírica do
momento histórico por ele vivido.
3
"O próprio Maquiavel, provavelmente, dele se desinteressara, desapontado com a indiferença com que
'O Príncipe' teria sido recebido por Lourenço de Médici." ESCOREL, Lauro. Introdução ao Pensamento
Político de Maquiavel. Brasília, Ed. UnB., 1979, p. 61. Lembrando que Maquiavel dedicou esta obra à
Lourenço.
4
O Papa inclui as obras de Maquiavel no índex em 1559 e essa decisão é confirmada no Concílio de
Trento em 1564.
AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Mas, quais seriam então, na própria obra de Maquiavel, as características que abririam
espaço para tanta polêmica, para tamanha reação opositora?
2.
Características do pensamento maquiaveliano
Essas reações de repulsa com relação às teses de Maquiavel podem ser
explicadas a partir da compreensão de duas características essenciais, que marcam todo
seu pensamento e que vem na contracorrente do pensamento antigo e medieval: O
realismo e o estabelecimento de uma ética laica.
O realismo extremo impresso em toda sua obra rompe com uma tradição
oriunda ainda da Grécia Antiga – a da construção de utopias políticas5 – , para descrever
não como o homem deve agir, ou como deve ser o governo, mas sim, como o homem
age de fato e como, de fato, é o governo.
Para tanto, Maquiavel observa os fatos, atém-se ao estudo histórico
principalmente da Antigüidade, sobretudo da Roma Antiga. Esse levantamento histórico
leva o autor a uma constatação bastante radical de que os homens sempre agiram pela
via da corrupção e da violência. Antes mesmo de Hobbes, que afirmava que, em estado
de natureza o homem é mau, Maquiavel já constatava a propensão do homem ao mal, ao
erro e, por isso, ao analisar a ação política sua opção foi pela descrição da verdade
efetiva6, não se preocupando em ocultar o que se faz e não se costuma dizer.
Vale ressaltar que um dos elementos que confere unidade à obra maquiaveliana
é sua concepção absolutamente pessimista do homem: "... é necessário que quem
estabelece a forma de um Estado e promulga as suas leis, parta do princípio de que
todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade sempre que haja
ocasião."7 Para Maquiavel, ao contrário do que afirmava Aristóteles, o homem não é um
animal social. Seus instintos são claramente antissociais: egoísta, ambicioso, invejoso,
traiçoeiro, feroz e vingativo, o homem só pratica o bem ou se submete à lei movido pela
necessidade de sobrevivência.
5
Como exemplos de utopias políticas temos "A República " de Platão, "A Cidade de Deus" de Santo
Agostinho, "A Cidade do Sol" de Thomas Campanella, "Utopia" de Thomas More, "A Nova Atlântida"
de Bacon, etc.
6
Para bem compreender o pensamento maquiaveliano devemos nos reportar ao primeiro parágrafo do
capítulo XV d'O Príncipe.
7
MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília, Ed. UnB., 1982,
Livro I, Cap. III, p.29.
Maquiavel e as relações entre ética e política
Sem dúvida alguma a postura realista, anti-utopista de toda a obra
maquiaveliana, preocupada em apresentar a "verittà effettuale delle cose", que o leva a
considerar o homem naquilo que ele realmente é, tal qual se apresenta, rompe com toda
a tradição do pensamento medieval cristão.
A segunda característica marcante do pensamento maquiaveliano é a rejeição
completa ao legado ético cristão da Medievalidade e a constituição de uma moral
laica de base naturalista. Isto vai nos levar à secularização da política, movimento de
ruptura com o pensamento político medieval que vinculava política à religião, à Igreja.
É, por romper estes laços da política com a religião que Maquiavel entrou para a história
como o fundador da ciência política. Foi ele o primeiro pensador a tomar a política e
analisá-la como uma categoria autônoma.
Este é o ponto crucial do pensamento maquiaveliano, pois deu ensejo ao
surgimento de outro problema: o problema das relações entre ética e política, em torno
do qual tradicionalmente gira a controvérsia histórica entre os defensores de Maquiavel
e seus adversários.
Do ponto de vista ético, Maquiavel foi tachado por seus detratores, de defensor
do imoralismo político posto a serviço do despotismo, posteriormente este atributo foi
modificado e ele passou a ser considerado um amoralista, por considerarem alguns, que
o problema moral não tinha lugar na sua concepção de política. Maquiavel seria o
símbolo da política pura. Mas, se bem observarmos o Maquiavel d'O Príncipe e
principalmente o Maquiavel dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio8,
podemos claramente perceber que há uma ética imbrincada no pensamento político
maquiaveliano, só que esta é uma ética laica segundo a qual as ações individuais não
são julgadas pelo seu coeficiente intrínseco de moralidade, mas pelo efeito político que
podem produzir diante de determinada situação de fato. Esta é uma postura muitíssimo
diferente, é uma postura de ruptura com a tradição da moral cristã que se apóia em uma
concepção de bem e mal, de justo e injusto, cujos conteúdos preexistem já fixados, não
dependendo do exame das situações dadas.
A ética proposta por Maquiavel não admite a existência de uma hierarquia de
valores a priori, a partir dos quais nossas ações serão julgadas. A nova ética analisa as
8
Em português esta obra, Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, aparece com o título Comentários
sobre a primeira década de Tito Lívio.
AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
ações tendo em vista suas consequências, seus resultados. A ação política será julgada
em função de sua utilidade para a comunidade, ou seja, o critério para a avaliação da
ação política é sua utilidade para o grupo social. Desta forma, será moral toda ação que
visar o bem da comunidade. Aqui surge um grande problema: A ética, desta maneira
constituída, ou seja, estabelecida na prática, a partir das relações efetivas entre os
homens, de certa forma, pode vir a legitimar o recurso ao mal, à violência, à guerra, à
tortura, à morte, etc. para resguardar a harmonia e o bem estar da sociedade. Daí as
inúmeras críticas desfavoráveis ao pensamento de Maquiavel. Mas, estas críticas, que
muitas vezes embaçam o verdadeiro sentido deste pensamento, chegando a deformarlhe o conteúdo, o fazem desvinculando-o tanto da vida pessoal de seu autor, quanto do
cenário social, político e econômico da Europa, mais precisamente da Itália dos séculos
XV e XVI em que ele viveu.
Temos que ter presente que Maquiavel é um político9 que escreve para
responder aos problemas políticos do momento histórico em que vive, numa Itália
completamente fracionada em pequenos principados governados tiranicamente por
casas reinantes sem nenhuma tradição dinástica ou ainda de direitos contestáveis, que
viviam em guerra internamente e que ainda eram completamente vulneráveis a invasões
externas. Esse panorama fluido e mutável, de um país dividido em múltiplos Estados,
contrasta com a situação da maior parte dos países da Europa ocidental, já unificados10.
Esta situação política de ilegitimidade do poder, fracionamento territorial e
político, ausência de um Estado central, vulnerabilidade externa, instabilidade
permanente, desordem é o problema para o qual Maquiavel buscará soluções n'O
Príncipe. Sua preocupação central é com a constituição de um governo forte capaz de
unificar a Itália, daí O Príncipe apresentar-se como um verdadeiro manual para
governantes, pois contém rememoramentos de como conquistar Estados e conservá-los
sob seu domínio. Devemos lembrar que estas lições ou estes conselhos de Maquiavel,
que podem causar escândalo no círculo familiar, eram direcionados aos governantes, e
ele nada mais fazia do que lembrar-lhes os processos já em uso corrente e corroborados
pela tradição.
9
Maquiavel foi Segundo Chanceler da República de Florença.
Império Germânico, França e Espanha que são ameaça constante aos frágeis principados italianos,
disputando a posse de vários de seus territórios.
10
Maquiavel e as relações entre ética e política
Se lembrarmos, [...], que tais governantes eram os Médicis, os Borgia, os
Orsini, os Papas Alexandre e Júlio então teremos justificado o próprio
Maquiavel, que certamente só pôs em letra de forma o que aprendera nos
exemplos de tais homens, e da sua experiência na Chancelaria de Florença.11
Maquiavel, no entanto, não é autor de uma só obra. Se n'O Príncipe ele expõe
suas ideias de cunho eminentemente absolutistas, defendendo a constituição de um
Estado monárquico-unitário forte, cujo poder estaria concentrado nas mãos de um
déspota, nos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio e no Discurso sobre a
Reforma do Estado de Florença podemos nos deparar com outro Maquiavel. Um
Maquiavel republicano, defensor da constituição de um governo com a participação
efetiva do povo, ao qual considera mais sábio, mais prudente e mais constante que o
príncipe.
A figura do Maquiavel defensor do despotismo é bem conhecida, mas a figura
do Maquiavel republicano, foi quase que completamente ofuscada pela repercussão d'O
Príncipe. Mas, podemos dizer que há sim dois "Maquiavéis" e a explicação para a
existência de um Maquiavel monarquista e um Maquiavel republicano é de certa forma
muito simples. Maquiavel defende a Monarquia ou Principado como forma de governo
adequada ao momento de fundação de um novo Estado ou adequada ao momento de
reorganização de um Estado decadente, que precisa da liderança de um governante
firme e decidido que conduza o povo.12 A forma Republicana, no entanto é a mais
adequada ao momento posterior da fundação ou reestruturação do Estado, pois o
governo que é feito com a participação do povo tem a chance de errar menos e, um povo
livre da tirania é capaz de encontrar forças e motivação para conquistar o mundo. Por
isso, a melhor forma de governo para Maquiavel, ao contrário do que a maioria de seus
detratores pensa é a república.
3.
11
Relações entre ética e política
Guimarães, Torrieri in MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo, Hemus Livraria Ed. Ltda., s.d., p. 7.
Maquiavel estabelece como axioma fundamental de seu pensamento a presença, à origem de todo
Estado, de uma figura do "fondatore" ou "ordinatore", ao qual incumbe a missão de dar "forma" à
"matéria" que o povo representa. ESCOREL, L. Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel.
Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1979, p.86.
12
AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Como já foi dito anteriormente, a grande polêmica que envolve o pensamento
maquiaveliano, diz respeito às relações entre ética e política estabelecidas pelo autor.
Maquiavel, como um típico homem do Renascimento, construiu sua filosofia política
partindo da rejeição completa ao legado ético cristão, formulando suas idéias de uma
maneira absolutamente antitética à tradição medieval.
A filosofia cristã, legada pela Idade Média ao Renascimento, concebia o
homem como um ser temporal, de vocação social, dotado, porém, de uma
destinação extraterrena, isto é, como um ser que vive naturalmente em
sociedade, subordinado à lei positiva, mais que deve, antes de mais nada,
obedecer à lei natural, colocada acima da própria autoridade do Estado, e que
este não deve contrariar, pois ela emana da própria lei eterna.13
Maquiavel não reconhece esta subordinação do Estado a valores espirituais,
valores transcendentes. Não reconhece também que o homem possua direitos naturais,
anteriores à constituição da sociedade. Ao contrário, em estado de natureza, o homem
vive nivelado aos animais, desconhecendo quaisquer noções de bem ou de mal, de
justiça ou injustiça. Desta forma, antecipando a filosofia política de Hobbes, Maquiavel
afirma que a moral e a justiça não preexistem ao Estado, mas dele resultam em
obediência às condições e exigências sociológicas.
Tanto a moral quanto a justiça são subprodutos sociais, nascidos do instinto de
conservação e da necessidade do Estado de manter a ordem social.
As normas éticas, como também as leis positivas, a educação e a religião, são
meios a que recorre o Estado para instaurar coercitivamente bons costumes
na sociedade, para dirigir no sentido do bem comum o egoísmo individual ou
para dar forma de moralidade e justiça à fundamental amoralidade da
maioria.14
O que se verifica, portanto, em Maquiavel é que não há nenhum antagonismo
entre moral e política e, também não há nenhuma distinção entre moral privada e moral
pública, pois ambas coincidem num mesmo objetivo, que é o bem da comunidade, ou
13
14
ESCOREL, Lauro. Op. Cit. , p. 93.
Idem, ibdem. , p. 95.
Maquiavel e as relações entre ética e política
pelo menos o bem do príncipe, o que significa o bem do Estado. Os problemas entre
moral e política só surgem quando determinados objetivos políticos exigem a adoção de
medidas condenáveis pela consciência moral, em nome de valores ou princípios que
transcendem a jurisdição temporal do Estado.
Para entendermos melhor esta questão temos que observar a distinção
apresentada pelo autor entre "ação virtuosa" e "ação moral". Ação moral é toda ação
manifestamente útil à comunidade, ação imoral é aquela que só tem em vista a
satisfação de interesses privados e egoísticos. A virtú, ou a ação virtuosa não consiste,
de modo algum, em agir segundo uma ideia abstrata de bem, desinteressando-se de suas
repercussões práticas. A virtú consiste em saber aproveitar a occasione proporcionada
pela "fortuna", avaliando, de uma maneira consciente a situação e as possibilidades de
ação, para em seguida escolher os meios mais adequados para transformar em realidade
a decisão tomada. Estamos diante de um novo conceito de virtú que nada tem em
comum com o conceito medieval de submissão do homem à vontade de Deus, renúncia
ao mundo terreno e glorificação do mundo contemplativo.
Segundo Maquiavel, o homem virtuoso é aquele que enfrenta os maiores
perigos, suporta e vence as adversidades. A virtú tem o direito de lançar mão de todas as
armas possíveis para sobrepujar a "fortuna" (destino). O homem virtuoso não é aquele
que se submete a razões superiores ou que confia à uma justiça abstrata ou a Deus ou
ainda às suas orações a solução dos conflitos que trava com o mundo, mas é aquele que
ajusta as suas ações, que observa as suas capacidades e age com obstinação. Será bem
sucedido aquele que conseguir agir segundo as exigências do momento, segundo as
peculiaridades de cada situação de fato. Ora com prudência, ora com ímpeto, ora com
violência, ora com arte, ora com paciência, ora com impaciência. Em outras palavras, o
indivíduo deve agir segundo a necessidade, que em última instância é criada pelos fatos
concretos.
Para Maquiavel, não há uma conduta a priori boa ou a priori má. Ao encarar a
política como uma técnica, o julgamento das ações do governante só pode se dar a
posteriori, em função de sua eficácia na prática, seja ela conquistar o poder, conservar o
poder ou promover o bem coletivo.
O conceito maquiaveliano de virtú prescinde, de modo absoluto, de qualquer
critério moral de avaliação do comportamento humano. O que importa para ele é
AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
observar se determinada ação era adequada à situação dada e se ela alcançou a
finalidade desejada.
Em última instância, a virtú pode ser considerada como a
capacidade pessoal de afirmar nossa liberdade frente à fortuna, frente ao destino.
Não obstante, nada impede que a ação virtuosa possa também revestir-se de
moralidade e, para tanto, seu autor deve agir eficazmente segundo exigir a ocasião, mas
visando a realizar o bem da comunidade e não o prazer egoísta de seu bem pessoal.
Apesar de ser um pessimista no que diz respeito ao que seja o ser humano, Maquiavel
acredita na existência de indivíduos dotados de uma virtú superior, capazes de agir
moralmente, isto é, indivíduos capazes de sobrepor o bem comum ao próprio bem,
consagrando-se integralmente ao bem da pátria.15 Lembrando, porém, que a esmagadora
maioria dos homens não tem outro propósito em mente senão a satisfação de seus
interesses particulares, desprovida que é de virtú e de moralidade.
Daí a necessidade da lei (e das sanções) como elemento educativo da sociedade,
fazendo com que o próprio indivíduo sacrifique seu egoísmo em função da observância
dos interesses do grupo social a que pertence, a ponto de conceber como bem próprio o
bem coletivo.
Em síntese, a concepção moral maquiaveliana não admite a existência de um Bem ou
um Mal preexistentes a definir os atos humanos, mas admite a existência de atos bons
ou maus conforme observem ou não o bem da coletividade. Portanto, a Moral em
Maquiavel perde sua autonomia e sua transcendência e é integralmente absorvida pela
Política.
A antinomia que, desde a Antigüidade existiu entre Moral e Política resolveu-se
a favor desta última. Maquiavel concebe a atividade política como uma atividade
completamente situada fora dos limites da Moral, que tem leis e regras próprias. Ao
fazer isto, ele corta para sempre as amarras de subordinação teológica e moral, com que
a Idade Média atara o poder temporal e recusa-se a reconhecer qualquer valor superior à
autoridade do Estado, fonte suprema da justiça e da moral.
4.
15
O preço da inovação
ESCOREL, Lauro. Op. Cit., p. 99.
Maquiavel e as relações entre ética e política
A concepção maquiaveliana da política como uma atividade autônoma e
soberana, completamente afastada das questões religiosas, avessa e independente com
relação à tradição da moral cristã, criadora de sua própria ética empírica e utilitarista,
cujo valor de virtude pode ser resumido na frase: agir segundo as exigências do
momento, utilizando-se de quaisquer recursos que concorram, com eficácia para a
manutenção do bem coletivo; por estabelecer uma completa separação entre Política e
Ética, privilegiando a primeira e tomando a segunda como seu subproduto, apresenta-se,
sem sombra de dúvida, como arrojada inovação frente ao pensamento político anterior.
Por assim ser, angaria inúmeros opositores. A forte oposição teórica ao pensamento
maquiaveliano se sustenta exatamente no princípio de que o homem, em sua natureza,
possui valores extra políticos, e que estes valores são de uma hierarquia espiritual
superior e por isso, a política e, em conseqüência o Estado devem se submeter a estes
critérios éticos que são absolutos e transcendentes.16
Estamos diante da histórica contraposição existente entre uma ética de valores
transcendentes e as exigências da prática política. E, para melhor compreendermos este
dualismo, assim como os dilemas de consciência do homem íntegro temos que ter
presente o fato de que coexistem em nós, tanto as imposições práticas da vida do
Estado, e isto quer dizer, tudo que envolva a conquista e manutenção do poder, quanto
os valores transcendentes da ética cristã da salvação, que cobra do homem o sacrifício
de todas as vantagens mundanas e das glórias terrenas, cujo preço seja a violação de
quaisquer desses valores transcendentes. Ficamos assim divididos entre os imperativos
da ética cristã e as exigências da competição política ou da defesa do Estado.
Observando a postura dos governantes dos vários principados nos quais a Itália
estava dividida e observando a postura corrompida dos mais altos mandatários da Igreja,
Maquiavel, de uma maneira radical, registra o fim do antagonismo entre Ética e Política,
ao romper, em definitivo, com uma ética de valores transcendentes à realidade histórica
do Estado. Ética esta que se imporia ao governante, que, ou bem governaria segundo as
exigências do mundo concreto, ou bem obedeceria aos imperativos de valores
transcendentes. Já que muitas vezes, agir segundo o imperativo ético leva ao insucesso
político, pois a atividade política, por sua dinâmica, "impõe aos que a praticam uma
maleabilidade adequada aos imperativos da realidade histórica, uma capacidade de
16
Ver ESCOREL, Lauro. Op. Cit. p. 102.
AMARAL, M. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
adaptação e improvisação proporcional às variações freqüentes da situação de fato a
enfrentar."17 Observando de perto a realidade da prática política de seu tempo,
Maquiavel descreve os fatos. Opta por não ser um homem cindido. E isto torna seu
pensamento inaceitável para todos, ou pelo menos para quase todos.
O compromisso com a verdade, com a descrição da prática política naquilo que
ela é, sem maquiagem, talvez tenha mostrado a Maquiavel a impossibilidade de
equacionar os problemas advindos da relação entre uma ética constituída "a priori" e a
prática política. Talvez Maquiavel tenha percebido que, em se tratando de prática
política, a postulação de valores éticos constituídos "a priorísticamente" e, neste caso,
valores éticos cristãos, só dificultam as tomadas de decisões por parte do governante.
Mas isto é pura especulação, o fato é que o pensamento maquiaveliano reflete, de uma
maneira extremamente fiel as tendências fundamentais de sua época:
a formação
embrionária, através da constituição dos principados italianos, das monarquias
absolutas, que postulavam a realização da prática política de característica secular e a
decadência da moral tradicional, cujo bastião era a Igreja Católica, corrompida em seus
valores, a mercê de críticas violentas quanto às suas práticas.
Apesar de ter sido extremamente criticado durante quatro séculos, o mérito de
Maquiavel, sem dúvida alguma, encontra-se no fato de ter, de uma maneira bastante
aguda, posto a nu, a prática política. O fato de haver estabelecido uma discussão sobre o
problema político sem mascará-lo através de subterfúgios doutrinários ou mesmo
através de construção utópica, fez com que Maquiavel lançasse as bases da Ciência
Política Moderna.
Os críticos e opositores de Maquiavel afirmam que seu erro fundamental
encontra-se na não-postulação de um substrato ético transcendente a regular a conduta
humana, mas aos nossos olhos, a postulação de uma única ética, aquela vinculada às
necessidades do Estado, é tão absurda quanto a aceitação da existência de duas éticas:
uma que rege a vida privada e outra que rege a vida pública.
A postura maquiaveliana é radical? Sim, é uma postura extremamente radical,
mas talvez seja ela menos hipócrita do que as postulações que defendem a tese da
existência de uma ética a reger a vida do homem comum e outra ética a reger a vida do
homem público, do governante.
17
ESCOREL, Lauro. Op. Cit. p. 104.
Maquiavel e as relações entre ética e política
Bibliografia
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Maquiavel. A Lógica da Força. São Paulo: Ed.
Moderna, 1993, (Coleção Logos).
ESCOREL, Lauro. Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel. Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 1979.
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Civilização Brasileira, 3ª ed., 1978.
HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Lisboa: Editorial Presença Ltda.,
1982.
LARIVAILLE, Paul. A Itália no tempo de Maquiavel: Florença e Roma. Coleção A
Vida Cotidiana. São Paulo: Companhia da Letras, 1988.
MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.
___________________ O Príncipe. São Paulo: Hemus Livraria Editora Ltda., s.d.
QUIRINO, Célia Galvão e SOUZA, M. Tereza Sadeck R. de Souza. (org.). O
Pensamento Político Clássico. São Paulo: T. A. Queiroz Editor Ltda., 1980.
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
A arte como exílio da condição humana:
uma análise ético-política da estética contemporânea
Georgia Cristina Amitrano1
Resumo
O presente artigo aponta para a possibilidade de se encontrar na arte e no artista
um exílio em face da minimização da condição humana, entendendo tal
minimização como consequência de uma certa conceituação de homem,
advinda, em boa parte, dos fenômenos ético-políticos que caracterizam nossos
tempos sombrios. Em face do quadro desenhado, pretendo observar as atitudes
estéticas – para além da arte formal ou meramente representativa — em uma
análise mais enfática do espaço ético e político no qual determinados
movimentos estéticos e certos artistas estão inseridos, partindo de duas
pressuposições contíguas: (i) por um lado, uma das funções da obra de arte
estaria diretamente relacionada a um agir voltado à ação política e à ética; (ii)
por outro, a expressão artística emergiria como uma estrutura de linguagem
capaz de desempenhar uma determinada função criadora, que envolve tanto a
sua originalidade quanto as relações entre homem e mundo, homem e homem.
Formulando um diálogo entre diferentes autores, aponto, portanto, para a
criação como uma possibilidade de recusa da minimização da condição
humana e, consequentemente, como uma possibilidade de resistência frente às
barbáries contemporâneas.
Palavras-chave: ‘ético político’; ‘condição humana’; transgressão; estética;
‘arte engajada’.
Abstract
In this paper, it aims points to the possibility of finding in the art and artist an
exile for minimization of the human condition, considering it as consequence
by certain conception of man, which arises in large part by ethical-political
phenomena that characterize our dark times. In face of the drew framework, I
intend to observe the aesthetic attitudes — beyond formal art or art merely
representative — since a more emphatic analyze of ethical and political space
in which some aesthetics movements and artists are included, grounding on
two contiguous assumptions that are: (i) on the one hand, one of the functions
of the work of art is directly related to an act focused on political and ethical
action; (ii) on the other, the artistic expression arises as an language framework
enable to performing certain creative task, which involves both its originality
and the relationships between man and world, man and man. By formulating a
dialogue between different authors, I point out to the creation as a possibility of
refuse of minimization of human condition and furthermore as a possibility of
resistance against contemporary barbarism.
1
Georgia Cristina Amitrano é Professora Doutora do Instituto. de Filosofia da Universidade Federal de
Uberlândia/(UFU) e professora do PPGFIL-UFU. E-mail:georgiaamitrano@gmail.com
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
Key-Words: ‘ethical-political’; ‘human condition’; transgression; aesthetic;
‘engaged art’.
Introdução
O século XX é marcado por um pensamento pautado na certeza de que o
universo
brota
cada
vez
mais
manifestamente
como
ordem,
liberdade
e,
consequentemente, como ‘consciência de si’. Ora, esse manifestar do universo é
concebido, pelo homem, como um progresso. Em outros termos, haveria um caráter
evolutivo que direcionaria a humanidade a um conhecimento pleno de si e,
consequentemente, à total liberdade. Tal progresso apontado pode ser entendido como o
‘progresso do Espírito’ apregoado por Hegel, o qual se apresenta como um contínuo que
se concluirá atravessando a ‘história dos homens’. A filosofia, destarte, emerge como o
saber supremo, aquele que conjuga todos os demais, totalizando em si todas as obras.
Como destaca Hegel, é nessa filosofia puramente imanentista, na qual a história tudo
ensina, que o Espírito Objetivo se realiza. Ademais, é preciso compreender que a
história não se fecha em sua circunscrição; antes, se realiza como progresso das
civilizações, do homem e do indivíduo. O ‘vir-a-ser’ das diferentes aventuras humanas
não é senão a ‘história do Espírito universal’, que se desenvolve e se realiza por etapas
contínuas até alcançar a plena posse e ‘consciência de si mesmo’. Este progresso
intensificado faz crer que o homem saiu de sua minoridade e que agora — dono de si —
é capaz de construir um lugar digno no qual sua condição humana se realize
cabalmente.
Contudo, o referido progresso intensificado parece se encontrar em um terrível
paradoxo, haja vista o fato de que, ao se racionalizar o mundo, fixou-se um término para
a existência no fim do devir histórico, como se realmente houvesse fim. A profecia de
uma razão histórica gerou uma espécie de ‘idolatria do real’. Esta ‘paixão da razão’
excomungou a criatividade humana, afastando o homem de seu processo criador.
Encerrada no acontecimento, a ‘idolatria do real’ aprisiona o mundo na história, ao
mesmo tempo em que o guia. É a um só tempo pedagógica e conquistadora,
soerguendo-se em um império ideológico no qual a profecia da razão histórica e da
liberdade humana acabam soterradas sob o manto do ‘princípio de autoridade’.
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Nesse sentido, a intensificação do progresso, deste crescente da história acabou
vinculada a uma igualmente intensificada ilusão de autonomia e, consequentemente, a
uma ausência de liberdade real. A civilização ocidental conheceu, nesses últimos cento
e cinquenta anos, não uma ‘ratio evoluída’ que trouxe consigo a felicidade humana;
antes, deparou-se com o domínio e a hostilidade do homem para com o homem, os
quais progressivamente têm se ampliado em eficiência. Em outros termos, a
implementação irreprimida e legitimada das conquistas da lógica e de uma filosofia
amparada unicamente na racionalidade sistêmica nem se apresentam como uma
regressão incidental na senda do progresso, nem como uma datada “epidemia” da
violência que exige a vigilância constante sobre nossa liberdade. Tais conquistas,
ademais, quiseram se amparar em um olhar biológico, sociológico, psicológico e
criminológico, de modo a subjugar os homens pelos homens. É, infelizmente, no apogeu
da civilização que se criam tempos sombrios para a humanidade.
Ora, é inegável o fato de que, nos últimos tempos, o homem erigiu Estados
balizados no terror e no genocídio, tendo por álibi para o seu crime a própria filosofia,
que transformou ‘assassinos em juízes’. O apelo humanista, tão presente nos séculos
XIX e XX, parece ter esquecido o homem em face da condição imposta pela
modernidade, a qual, ao prometer um lar acolhedor e um estreitamento entre os
indivíduos, criou uma falsa ‘solidariedade’ comum. Em todo caso, o apelo humanista
tornou-se um engodo para o próprio homem, fazendo-se de casa de detenção, na qual é
o sujeito seu principal detento. O que de fato ocorre é que a razão lógica, levada ao
extremo, acabou por edificar um reino de dor e sofrimento, no qual o conceito de
homem perdeu o sentido de sua conditio e instituiu-se uma hostilidade racionalizada e
legitimada entre o opressor e o oprimido. O exemplo mais evidente se encontra nas
práticas totalitárias, as quais eliminam com qualquer ideal de política e verdadeira
noção de poder, sendo, desse modo, um dos principais corroboradores da legitimação da
violência, do assassinato e, consequentemente, da minimização da condição humana.
A despeito de uma série de análises que permeiam a minimização de nossa
conditio — principalmente as que focam as análises estritamente ético-políticas — é
possível vislumbrar um pensamento filosófico que opere uma digressão estética no que
concerne à referida questão política. Afinal, pensadores como Albert Camus,
empreendendo um estudo mais minucioso da arte engajada, e Hannah Arendt, em uma
análise epidérmica das questões estéticas, percebem na atitude estética uma relação
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
intrínseca com a reflexão do âmbito político. Em outros termos, seja no prazer
‘desinteressado’, nos quais os juízos estéticos aparecem análogos aos juízos políticos,
como alude Arendt, seja, como afirma Camus, no simultâneo aceite e recusa do real
embutido na obra de arte, é a tragicidade do mundo que aparece. É neste ponto que a
criação artística se torna assaz importante, na medida em que a arte, em sua atitude
transgressora e enquanto possibilidade de ser concebida como signo de verdade, aparece
como ‘abertura’ possível para se representar e, quiçá, construir para fora dos horrores a
que a humanidade se encontra subjugada. Quando os indivíduos conseguem falar sobre
o acontecimento, isto é, quando se tornam capazes de criar o real, estes não apenas
refletem o mundo, mas o constroem como sendo único e legítimo. Escapam, assim, de
uma relação de sujeitamento, e entram na posição do observador-criador, daquele que
restaura a alteridade, a diferença e ultrapassa os limites. Este seria, portanto, o lugar da
resistência, da construção do humano diante da ‘epidemia’ que atola nossos tempos
sombrios.
À vista do apresentado, parece que a questão da minimização da condição
humana, consequência de uma conceituação de homem, e advinda, enquanto tal, dos
fenômenos políticos que caracterizam nossos tempos sombrios, pode encontrar na arte e
no artista um exílio. Este é o ponto a partir do qual quero apontar para a revolta estética,
pressupondo que a expressão artística aparece como uma estrutura de linguagem capaz
de desempenhar uma determinada função criadora — a qual envolva não apenas a
originalidade da atitude artística, mas também, as relações entre homem e mundo,
homem e homem. Tal questão, destarte, aponta para a função criadora da arte como
possibilidade de esta se apresentar também como instauradora de bases éticas;
desempenhando, desse modo, uma atividade importante no que concerne à Política. Não
há dúvida que determinadas obras de arte são capazes, dentre outras coisas, de atuar
para além da simples representação e criatividade pura, circunscrevendo, no estilo
artístico, uma reflexão e uma denúncia da miséria na qual a condição humana se
encontra. É a partir de um diálogo, formulado por mim, entre o pensamento estético de
Albert Camus e o pensamento de Gilles Deleuze e Georges Bataille que aponto para a
criação como uma possibilidade de recusa da minimização da condição humana e,
consequentemente, possibilidade de resistência frente às barbáries contemporâneas. Em
outras palavras, é em vista de uma aísthesis, de certa ‘mágica da Existenz’, como alude
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Arendt, que a arte se torna uma possibilidade de abertura e resistência em uma era tão
sombria.
Desenvolvimento
A Arte como Fabricante de Universos: A Transgressão do Real
O inferno só tem um tempo, a vida um dia recomeça.Talvez a história tenha
um fim, nossa tarefa, no entanto, não é terminá-la, mas criá-la à imagem
daquilo que doravante sabemos ser verdadeiro. A arte, pelo menos, nos
ensina que o homem não se resume apenas à história. [...] Os revoltados que
querem ignorar a natureza e a beleza são condenados a banir da história que
desejam construir a dignidade do trabalho e da existência. Todos os grandes
reformadores tentam construir na história o que Shakespeare, Cervantes,
Molière e Tolstoi souberam criar: um mundo sempre pronto a satisfazer a
fome de liberdade e de dignidade que existe no coração de cada homem. Sem
dúvida, a beleza não faz revoluções. Mas chega um dia em que as revoluções
têm necessidade dela.2
Segundo Hannah Arendt, é pela obra que o homo faber, o ‘fabricador de
objetos’, rompe com o anonimato no qual se encontrava imergido enquanto simples
animal laborans. Afinal, conquanto o trabalho apareça como uma atividade infinda, a
obra ou fabricação tem tanto um início quanto um fim já determinados; terminando com
um resultado palpável e durável, a saber: o objeto de uso. Ao fabricar objetos de uso, o
homem não apenas constrói o mundo, mas também, e principalmente, inaugura a
identidade humana. Identidade esta que se dá, dentre outras coisas, na duração do objeto
criado. É pela atividade da obra ou da fabricação que o homem tece o mundo humano,
dando, assim, formas às coisas, e, quando prontas, essas mesmas coisas fabricadas
tornam-se novos condicionantes para o homem. Ora, dentre as coisas que sustentam a
identidade do homem no mundo, a obra de arte se destaca, haja vista sua característica
de suma duração e ausência de utilidade. “Dada a sua eminente permanência, as obras
2
CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 316317.
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; [ademais], a
fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar”3.
Nada revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar
não-mortal de seres mortais. [...] É como se a estabilidade humana
transparecesse na permanência da arte de sorte que certo pressentimento de
imortalidade [...] adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e
ser escutado, escrever e ser lido4.
É justamente pelo fato de não possuir utilidade aparente que a obra de arte
consome-se no seu próprio clarão, pois sua função é aparecer para revelar o ‘belo’.
“Enquanto que a objetividade de todos os objetos de que nos rodeamos repousa em
terem uma forma através da qual aparecem, apenas as obras de arte são feitas para o fim
único do aparecimento”5..
Em outras palavras, na reificação6 da obra de arte ocorre algo pra além de uma
transformação. De fato o que se verifica é uma transfiguração, uma metamorfose que
ultrapassa os limites da utilidade para o horizonte do sentido. Ora, se a fonte da obra de
arte está na capacidade de pensar, então a reificação verificada na obra de arte emerge
não do instante do pensamento, mas, isto sim, da transformação do pensamento em
realidade através das mãos do homem, do artista neste caso. As obras de arte, desse
modo, são, eminentemente, fruto do pensamento, sem, contudo, abandonarem sua
existência de coisa. O artista, portanto, não copia o real, mas o cria, construindo para
além do pensamento dado. Nesse sentido, remeto-me mais uma vez a Picasso, já que em
suas pinturas com motivo de natureza morta, tais como violino com uvas e violino e
guitarra, ele opera uma disfunção; transfigurando os objetos, cria obras de arte.
Destarte, as telas criadas perduram como obra do pensamento do artista, as quais
rompem com os limites da instrumentalidade de objetos, incorporando-os em uma outra
forma, e encontrando um sentido cuja ocorrência se dá na própria obra criada.
3
ARENDT, Hannah. A Condição Humana . Trad. Roberto Raposo; Posfácio de Celso Lafer. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 181.
4
Ibidem.
5
ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.
263.
6
Reificação significa, no processo de alienação, o momento em que a característica de ser uma “coisa” se
torna típica da realidade objetiva. O termo é utilizado por marxistas como Lukács. A pesar de Hannah
Arendt não ser marxista, ela se encontra situada dentro de uma linguagem de época, da qual,
principalmente, seus amigos da escola de Frankfurt são partícipes.
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Consoante Gombrich:
Se pensarmos num objeto, digamos, um violino, ele não se apresenta ao olho
de nossa mente tal como o vemos com os olhos de nosso corpo. Podemos
pensar e, de fato, pensamos em seus vários aspectos ao mesmo tempo. [...]
Alguns deles destacam-se tão claramente que sentimos poder tocá-los ou
manipulá-los. E, no entanto, essa estranha mistura de imagens representa
mais do violino ‘real’ do que qualquer instantâneo ou pintura meticulosa
poderia jamais conter7.
Ora, a atitude estética, portanto, em face de uma apropriação específica do real,
torna-se capaz de apresentar, e quiçá construir uma nova dimensão para a humanidade.
Inscrita a partir de uma reflexão trágica do mundo e da existência, essa atitude
entendida como artística busca direcionar o homem a uma nova forma de olhar8 e
ausculta deste mundo e deste real apropriados. Isto se faz possível, justamente, através
da transgressão a qual a obra estética está sujeita. Ademais, esta atitude transgressora,
metamórfica e transfigurada acaba, observando Camus, apresentando-se como arte
revoltada. Afinal, consoante Arendt, ‘o artista parece o único indivíduo que resta na
sociedade de massas’, e a ‘poesia’, cujo material é a linguagem, é a mais humana e a
menos mundana das obras fabricadas pelo homem. Não é a toa que Arendt escolhe
Rilke para ilustrar o clamor das chamas presente na obra de arte.
Do brilho indescritível da transformação/
Tais criações: Sensação! Confiança!/
Nós sofremo-la frequentemente: as flamas transformam-se em cinzas; /
Ainda, na arte: as flamas vêm da poeira. /
É aqui mágico. No reino de um período/
A palavra comum parece levantada acima de… /
No entanto, é realmente como a chamada do macho/
Que chama a pomba fêmea invisível9.
À vista disso, podemos apontar para a atitude estética; isto é, para obra e artista
como representantes de uma ação e de um modelo de recusa. Por um lado, (i) o artista
7
GOMBRICH, E. H. História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Círculo do Livro, 1972. p. 456.
Distingue-se, aqui, o “ver” como função do olho, do “olhar”, como objeto da função escópica. Se a luz
se propaga em linha reta, ela também refrata, se difunde, inunda. Há diversidades essenciais que escapam
ao campo da visão, não estando na linha reta, diz Lacan, mas no ponto luminoso, no ponto de irradiação,
que também é o ponto de transbordamento da íris, descrita como uma taça. Tal efeito, grosso modo, tira o
olhar do campo balizado pelo modelo cartesiano da visão, ou seja, arranca o olhar da consciência. O
sujeito perde a noção do que vê. E o que vê se perde na indefinição causada pelo estilhaçamento
luminoso; ou seja, se perde na indecibilidade do olhar. Por isso, o que se quer ver nunca está onde se olha.
Nesse ponto a visão é dominada por uma espécie de cegueira luminosa em que o ato de ver perde toda a
função ao submeter-se às investidas do desejo liberadas pelo olhar na função escópica.
9
Poema intitulado Mágica, de R.M. Rilke.
8
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
aparece como aquele que, consoante Camus, possui a paixão pela unidade, fazendo
desta a motivação mais genuína da consciência revoltada. Paradoxalmente, tal paixão é
contraditória, visto o ato de criação se dar, simultaneamente no aceite e na recusa da
realidade dada: “o homem [como já referido] recusa o mundo como ele é, sem desejar
fugir dele”10. Por outro lado, (ii) a obra de arte aparece como aquela que possui sua
essência na eterna correção. Em outras palavras, a expressão estética, a aísthesis
proclamada atua como uma textura de ideias, cujos questionamentos dependem, para
além da apreciação de gosto, da própria expressão a qual a estética, como possibilidade
ético-político, se propõe. A inovação desta análise “aisthetica” consiste, portanto, em
reconhecer que mundo não está no singular e que tampouco o real dado é a última
palavra. A criação artística, assim, tanto permite ao homem marcar o mundo com seu
próprio selo quanto o faz perceber o rosto do outro como uma experiência que cria o
mundo político11. Afinal, na revolta suscita-se o sentimento no qual “o homem se
transcende no outro”12
Há, decerto, na atitude estética um deslocamento, no qual a criação artística sai
de seu campo estritamente específico, o ‘belo’, para uma atmosfera expandida nas
diferentes relações humanas. Em outras palavras, há a passagem da obra de arte do seu
campo estético para o ético-político, concomitante, à passagem do animal laborans para
o homo faber. Ora, se é na atividade da obra que o homem tece o mundo humano, então,
pode-se afirmar que é na criação artística que o homem traduz sua condição política.
A despeito desta conotação política da arte aqui apregoada, faz-se mister apontar
para o fato de ser comum certo reducionismo de algumas interpretações acerca do tema,
as quais insistem em tentar delimitar temporalmente certa arte política, fazendo da
mesma uma atitude de protesto e panfleto na luta contra ditaduras específicas do século
XX. É nesse sentido que, em vista de aísthesis proclamada, urge apontar para a arte e
para o artista, apresentando-os como estruturas de resistência; isto é, como participes de
um movimento engajado que de modo algum panfleta em nome de qualquer ideologia,
mas, isto sim, reconstrói o mundo a partir da tensão premente da criação e recusa do
10
CAMUS, Albert. O Homem Revoltado, p. 299
Cf. CURTIS, Kimberley F. Our Sense of the Real: Aesthetic Experience and Arendtian Politics. New
York: Cornell University Press, 1999.
12
‘Transcender no outro’ deve ser entendido como ter o outro por espelho de si mesmo, resguardando,
contudo, este mesmo outro como singular. (Cf. CAMUS, O Homem Revoltado). Ademais, o sentido de
transcendência aqui proposto está para fora de qualquer faculdade que dirija os objetos para fora do
mundo. O transcendental referido é o sujeito a um empirismo superior. (Cf DELEUZE, G. Diferença e
Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2006).
11
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
mesmo. É para além da importância das poéticas revolucionárias e contestatórias que o
sentido ético-político da arte se revela, apontando para outras contextualizações tanto
mais complexas quanto diversificadas.
Para fora de fixar a práxis estética em uma hermenêutica da atividade crítica e
do ‘fazer-criado’, é fundamental entender a torrente da própria atividade no instante que
esta inunda os vales do seu ‘escrever-se’ e ‘propagar-se’ na Modernidade. É nesse
sentido que é possível traçar paralelos entre este pensamento da aísthesis encontrado em
Arendt e Camus com o de outros pensadores, de modo a defender a ideia de arte como
fabricante de universos, capaz não somente de representar o real, mas também de
transgredi-lo e, de certo modo, alterá-lo. Consoante Camus, “a bem dizer, a exigência da
revolta é em parte uma exigência estética”13. Ou seja, a criação artística aparece como
engajamento e revolta, ou, pelo menos, em seu estado primitivo, como um
questionamento, uma enunciação do conteúdo da revolta.
Engajamento, Arte e Transgressão: As dobras da linguagem
A busca da verdade é a aventura própria do involuntário [...] O ato de pensar
não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única
criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio
pensamento. [...] O signo sensível nos violenta: mobiliza a memória, põe a
alma em movimento; mas a alma, por sua vez, impulsiona o pensamento, lhe
transmite a pressão da sensibilidade, força-o a pensar a essência como a única
coisa que deva ser pensada. Assim, as faculdades entram em um exercício
transcendente em que cada uma afronta e encontra seu limite: a sensibilidade,
que apreende o signo, a alma, a memória, que o interpreta; o pensamento,
forçado a pensar a essência. Com justa razão pode Sócrates dizer: sou o
Amor mais que o amigo, sou o Amante; sou a arte mais que a filosofia; sou a
coação e a violência, mais que a boa vontade14.
As práticas artísticas desempenham um importante papel na partição do
perceptível à medida que suspendem as coordenadas da experiência sensível e
remarcam a rede de relações entre espaços e tempos, sujeitos e objetos, o comum e o
singular. Há um campo simbólico construído sobre frases escritas, mãos de mármore,
13
CAMUS, A. O Homem Revoltado, p. 293.
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Trad. Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1987, p. 94.96.100.
14
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
tintas e pincéis que, dispostos como ferramentas sobre a mesa, evidenciam o excesso e
remetem às relações entre homem e mundo. A metáfora da obra de arte como
ferramenta do pensamento é justamente o limite ‘transposicional’ de espaço e do tempo,
o qual possibilita certas relações independentes entre si. A arte, portanto — em uma
hermenêutica que se espalha no exceder —, surge como forma expressiva sobre a qual
se medita e se discorre a partir do ‘intraduzível’ e do ‘caótico’. E é no emergir desta
atividade estética que a arte delimita sua existência visível e sua práxis, evidenciando o
mundo através de sua expressividade. Ora, conquanto a dita arte política, isto é a arte
panfletária e ideológica se ocupa do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto
— acreditando possuir a competência para verificar a qualidade das coisas, para falar
das propriedades do espaço e dos possíveis no tempo —, a criação artística, como obra
engajada e transcendente, não captura a política e as vicissitudes humanas por sua
vontade, isto é, pelo pensamento de um povo como obra de arte; ao contrário, ela
emerge como um recorte dos tempos e espaços, do visível e do invisível, da palavra e do
sonoro que, sem definir um tempo e um lugar exatos, provoca a recusa do mundo e
denuncia aquilo que lhe falta.
É nesse sentido que o olhar estético da criação se estende ao pensamento de
Gilles Deleuze, para quem a arte é possuidora do grau mais elevado de verdade;
apresentando-se, desse modo, como um signo15 maior que, contrapondo-se aos
demais16, explicita sua superioridade perante a materialidade dos signos que rodeiam o
mundo do pensamento. Ora, justamente por contrapor-se, a arte compreende todos os
15
Para Deleuze, signos não devem ser entendidos como na afirmação linguística de Ferdinand de
Saussure, segundo o qual ‘signos são constituídos de um símbolo e pelo sinal, integrando a significação
das formas linguísticas e, assim, constituindo a essência da linguagem’. Deleuze é contrário à afirmação
saussuriana do primado do significante sobre o significado. Para ele, signos são objetos de um
aprendizado temporal e estão para ser decifrados. São estruturas específicas e constituem a matéria de
diferentes mundos. Cada indivíduo, cada objeto isolado constitui um lugar próprio que o difere dos
demais. Os signos forçam o pensamento e tiram-no de um pretenso lugar natural. Na gênese do ato de
pensar está a violência dos signos sobre o pensamento que “são o que força o pensamento a pensar em seu
exercício involuntário e inconsciente, isto é, transcendental”. (MACHADO, Roberto. Deleuze e a
filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 169).
16
Deleuze hierarquiza os signos desde os mais frívolos até os mais verdadeiros, aqueles capazes de
apreender toda a essência e desvelar-se enquanto verdade. São quatro os mundos dos signos encontrados
por Deleuze, o primeiro é o da mundanidade, depois os signos do Amor. O terceiro mundo dos signos é o
das impressões ou qualidades sensíveis: são, segundo Deleuze, “signos materiais”, e dizem respeito à
memória. Por fim, último mundo dos signos, aquele que apreende seu sentido numa essência ideal, o
mundo da Arte.
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demais signos; integrando-os, quebra a opacidade que fazia com que estes não
aparentassem colorido. A arte, desse modo, ultrapassa o nível da interpretação, partindo
do material ao ideal de modo a encontrar uma essência maior, haja vista expressar-se
sem contingências, isto é, sem a materialidade ou a subjetividade. Por conseguinte,
apresenta-se singularmente e se encontra liberta das armadilhas do objeto e das tramas
da subjetividade. A arte, portanto, constitui a verdadeira unidade, aquilo que une o signo
ao sentido.
À vista disso, Deleuze vislumbra certo poder na arte, o qual apresenta pelo
menos três qualidades superiores aos demais signos, a saber: “a imaterialidade; a
essencialidade absoluta do sentido; a perfeita adequação signo-sentido”17. Para Deleuze,
portanto, a arte é a “diferença última e absoluta”18, apresentando-se, destarte, como
“diferença interna, diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o
mundo, diferença, que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós”19, pois
sem ela não nos mostraríamos, não nos revelaríamos. Afinal, cada sujeito possui seu
próprio mundo, sendo isto o que constitui a própria diferença. Os mundos, vale lembrar,
são tanto singulares quanto diferentes, e pertencem a particulares. Estes mundos,
ademais, se expressam dentro do sujeito e nunca fora dele. Para Deleuze, “o mundo
envolvido na essência é sempre um começo do mundo geral, um começo do universo,
um começo radical e absoluto”20. Um começo que é sempre recomeço. Um eterno
retorno de diferenças únicas ou singulares. Uma perpétua recriação, que define o
nascimento do tempo. Tempo que sempre é redescoberto, e que revela “seu estado puro
contido nos signos da arte”21. É diante de tal afirmação que a arte aparece como o que
permite a redescoberta do tempo enredado na essência. E é o sujeito, enquanto artista,
aquele capaz de redescobrir o tempo no instante de seu nascimento.
Ora, o artista, então, é aquele capaz de conduzir o tempo e o mundo para recriar
tanto o real quanto a si mesmo. Em outras palavras, a obra artística é fruto de uma ação
do pensamento. Não se trata, portanto, do aproveitamento de um dado saber; antes, o
artista, para além de ser um ‘fabricador de objetos’, é capaz de realizar a práxis artística
como modelo de pensamento, tendo a competência, dentre outras coisas, de equacionar
17
MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia, p. 176.
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos, p. 41.
19
Ibidem, p. 42.
20
Ibidem
21
Ibidem, p. 43
18
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
ética com estética, fazendo dessa ética mais que uma disciplina de conduta, a própria
‘natureza humana’. Dirige seu olhar tanto para o sensível quanto para a razão e intuição
deste mundo que o cerca; torna-se, assim, consciente de que todos os tempos históricos
coexistem no agora da ‘humanidade’ e nos tempos internos de cada indivíduo. A criação
artística apresenta-se, assim, como o êxtase pelo qual o indivíduo-artista observa-se,
transforma-se e constrói uma nova realidade em sua obra. É no criar que o artista abre a
possibilidade de expressar o ético e o político esteticamente. O par ético-estético
transmuta e metamorfoseia não somente o indivíduo-artista, mas também e, talvez
principalmente, o mundo que contempla a obra de arte construída.
A capacidade criativa, a produção exercida pelo artista emerge como a aparição
de uma diferença. Em outras palavras, a criação estética aparece com a construção de
algo que não podia ser simplesmente deduzido a partir do real dado. O verdadeiro artista
e a verdadeira ‘obra de arte’ são coisas raras; o criador não é encontrado no homem
comum; e, como alude Deleuze, ‘ter uma ideia é uma espécie de festa’. O que se
pretende nesta análise é apontar para o ato da criação como algo capaz de apreender do
visível, o invisível, bem como para o criador-artista como aquele capaz de realizar um
novo tipo de discurso do mundo e do real. A práxis estética torna-se, destarte, a
possibilidade de uma re-construção do mundo. Enquanto processo e experiência, a
criação ultrapassa as fronteiras meramente da forma-imagem ou do objeto resultante.
A obra de arte, desse modo, desperta no artista a função transgressora, haja vista
a transgressão ser, como alude Bataille, um movimento da poesia que se abre ao “nãosaber”, uma espécie de êxtase e erotismo capaz de vislumbrar o impossível, recusando e
criando simultaneamente o real. À vista disso, faz-se mister salientar que para Bataille
há no trabalho uma forma de regulação econômica dos fluxos, apresentando-se,
portanto, não apenas como uma tentativa de controle dos gastos, mas antes, como uma
estrutura normatizante que se impõe contra o excesso. É nesse sentido que determinadas
atitudes se sobressaem, visto serem capazes de romper com a norma instituída; isto é, há
certas formas de ação que desempenham uma função transgressora, as quais se põem
frente a toda “lei” que subsista apenas como estrutura de normatização e minimização
da condição humana. Logo, pode-se aferir que, para se escapar de uma vida medíocre e
sistêmica, é necessário transgredir e exacerbar. Decerto, das várias formas de vazão que
existem, tais como a embriaguez, o riso, o erotismo, a angústia e o sacrifício, encontrase a poesia. Em outras palavras existe a arte, o artista e sua obra, os quais aparecem
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
como expressões transgressoras da norma, pois, para fora do ato criativo e do produto a
ser contemplado, tanto criador quanto obra criada emergem como elementos aptos a
levarem o indivíduo a exceder seus limites e vislumbrar para além do possível.
Essa reflexão empreendida acerca da atitude estética é visível em seu aspecto
engajado no pensamento de Albert Camus. Afinal, por mais que a função da obra de
arte resida na criação do mundo e na contestação da realidade apregoada, há um refletir
manifesto na atitude estética que, em um primeiro momento, se apresenta
necessariamente como negação e recusa22 a todo um estratagema social que aparece ao
artista como corrompido desde suas bases. Esse ato refletido, para Camus, denomina-se,
como já salientado, de revolta. E esse ‘revoltar-se’ leva a expressão artística a uma
atitude entendida como ética23, pois, em sua transgressão da realidade, é capaz de
provocar no homem comum algum tipo de reação contra o tédio de sua própria
existência. Nesse sentido, Camus está em plena sintonia com Deleuze, haja vista
apontar par a criação artística como um equacionamento entre ética e estética. Contudo,
na ambientação da revolta é necessária uma forma de arte mais específica, visto não ser
qualquer expressão artística capaz de supor, ou mesmo atuar no âmbito da dimensão
ética. Logo, há modalidades estéticas capazes de transgredir e, por conseguinte, recusar
e resistir a um mundo normatizado e pré-instituído. A este tipo específico de arte,
denominamos arte ‘engajada’. Ou seja, há, como já salientado, uma expressão artística
que não panfleta em nome deste ou daquele modelo determinado de sociedade, mas, isto
sim, age de forma crítica e denunciatória contra toda estrutura social que impele o
homem a uma vida medíocre, normatizada e impessoal.
Ora, acatando-se a atitude estética [artística] como possibilidade de transgressão
e ruptura, deve-se, então, conhecer aquele que é sua causa24; isto é, o homem-artista,
esta criatura que se recusa ser o que aparentemente é, visto revoltar-se contra sua
própria condição. Ou seja, o artista engajado deve ser entendido como aquele que se
posiciona contra a acomodação e mediocridade, as quais pretendem encerrá-lo em uma
vida medíocre. Seu grito resistente objeta a forma pela qual sua existência é erigida, o
22
Entendendo recusa e negação não como renúncia, mas, contrariamente, como o primeiro passo para
firmar-se a condição humana. Nega-se e recusa-se uma ordem, um sistema, uma ação, para se poder
afirmar e assentir o fato de ser homem. Em outras palavras, a recusa e a negação, no sentido camusiano
diz respeito a um prenúncio da própria afirmação.
23
Uma postura ética baseada na questão aristotélica, isto é, voltada para uma virtude.
24
Causa é utilizada no mesmo sentido de Giambattista Vico, para quem, verdade e fato ou o verdadeiro e
o feito são entendidos com sendo o mesmo; podendo um ser convertido no outro. Isto quer dizer que só
pode ser conhecida de maneira indubitável aquilo que o próprio sujeito cognoscente faz, cria ou produz.
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
que o leva a redesenhar sua própria condição de existir, glorificando-se na beleza
expressiva que a arte evoca. O artista, destarte, surge como quem não tolera o real. No
entanto, ninguém pode prescindir dele [real]. Logo, esse criador por excelência oscila
em uma linha tênue, na qual razão e imaginação se misturam. Segundo Albert Camus, a
criação artística deve ser entendida como “exigência de unidade e recusa do mundo”25,
pois o verdadeiro criador rejeita o mundo, justamente, por perceber que nele há uma
carência, isto é, falta-lhe algo. Sendo assim, cabe a estes operários das penas, brochuras
e pincéis lhe dar um fim, um télos. Na revolta, o criador não banaliza suas ações com
puros assentimentos ou renúncias; a arte por ele realizada possui por finalidade última
compreender este mundo que surge de tempos em tempos, moldar-lhe uma face e, não
simplesmente julgá-lo.
A expressão artística revoltada, portanto, emerge como um eco de razão e de
recusa. Sua inserção política não se dá nas mensagens e tampouco na maneira pela qual
são representadas as estruturas, os conflitos ou as identidades sociais. A expressão
artística, em uma estética da revolta, ecoa política e eticamente em virtude da distância
mesma que toma; sublinhando o mundo, tenciona o real não apenas no conjunto das
estruturas estéticas forjadas; antes, na percepção e criação de um espaço-tempo
específico. A arte, neste aspecto, insurge como configuração de um espaço, como a
delimitação de uma esfera específica de experiência, encontrando-se tanto à disposição
dos objetos “comuns” quanto dos sujeitos a quem se reconhece na capacidade de
designar esses objetos. As relações éticas vinculadas nesta práxis abarcam vários
segmentos no campo estético, haja vista que, independente de uma obra final, cria seu
sentido na relação que mantém com a produção de subjetividade. Tal qual o homem que
pensa não poder realizar pensamentos de não-significação, pois estes já pressupõem um
significado, também a obra de arte não pode ser a do não sentido, pois ela já possui
sentido no simples fato de existir.
Decerto, o que importa não é o ‘objeto’, a obra manufaturada; antes, é o
movimento o que desperta tanto razão quanto recusa. Este movimento que a obra de arte
encena, possibilita certa compreensão das estruturas que estão em embate, criando um
binômio dialético sem síntese do interdito e da transgressão. A obra de arte enquanto
25
CAMUS, Albert. O Homem Revoltado, p. 291.
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
estrutura de recusa do real torna-se, por conseguinte, a vivência do excesso, o ‘mal’26
pontuado por Bataille; contudo, a recusa proclamada não é absoluta, haja vista nela o
real se harmonizar, ganhar a densidade e a unidade almejadas. Ora, na obra de arte,
principalmente na literatura, ao se suspender a realidade, a figura do transgressor se
fortalece, de modo a transformar-se em mito justamente pelo enfrentamento da morte.
Exemplo claro está na admiração por Jean Genet27. O escritor francês fascina como o
transgressor emoldurado pela escrita. Na busca da ‘santidade pelo mal’, Genet adota a
invocação poética como meio de transfiguração de sua vida repleta de signos de
corrupção e decadência. Bataille afirma que somente no mal esculpimos os traços
efetivamente humanos de nossa fisionomia. Afinal, é no mal que se quebra a integridade
social, se transborda o erotismo e, através da recusa e criação do real, se alcança o
impossível. Nesse sentido, a obra de Sade pode ser lida como o grau supremo e mais
acabado de sua manifestação. Não é em vão que Camus afirma que na “festa da razão”
implementada por Saint-Just, a Revolução Francesa guilhotinou o único poeta de seu
tempo28.
A obra de arte, a expressão do artista é assim um espaço não-representativo no
qual a linguagem subsiste dobrada sobre si mesma, sem sujeito e sem adereços29. É,
portanto, pura transgressão. Mas, dentre todas as obras, pode-se dizer que é na literatura
que o tempo não se perde: é resgatado como na recherche de Proust; este retorna como
outro que não o marcado pelo ponteiro do relógio. Ademais, no romance, a morte é
adiada. A literatura emerge, então, como um mecanismo para burlar a realidade cruel, a
finitude, haja vista o romancista em suar obras, como já afirmara Camus, ser capaz de
viver inúmeras vezes, tantas quanto as suas personagens. A obra literária, destarte,
tematiza o vazio primordial, aquele donde as palavras ainda não nasceram. Em outros
termos, a transgressão literária, em seu excesso e exacerbação, reflete o mundo e torna26
Em A Literatura e o Mal, Bataille analisa as obras de Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, William
Blacke, Sade, Proust, Kafka e Jean Genet. Parcialmente publicados na revista Critique, nos anos que se
seguiram a Primeira Guerra Mundial, estes estudos oferecem o sentido que tinha a literatura para Bataille.
Para ele, a literatura é comunicação, impondo tanto uma lealdade quanto uma moral rigorosa. Não é
inocente. “A literatura é o essencial ou não é nada. O ma l — uma forma penetrante do Mal — de que ela
é a expressão tem para nós, creio eu, o valor soberano”.
27
Para Jean-Paul Sartre, por exemplo, os textos de Genet eram pistas para descobrir como um
desclassificado, sem nenhuma tradição cultural, conseguiu produzir uma literatura tão complexa e bela,
que o levou a ser considerado um dos maiores escritores da França.
28
29
CAMUS, Albert. O Homem Revoltado, p. 291.
Cf. (FOUCAULT, 1999).
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
se profética; apontando sempre para mais dura realidade e crueza, a falta de sentido a
priori da existência. Basta olhar os romances de Dostoievski. Contudo, para enxergar a
dobra da palavra, deve-se saber que “a verdade não se entrega a quem não a busca até
ao delírio”30.
Ora, é justamente neste âmbito, no qual transgressão e revolta se entrelaçam nas
dobras do signo da arte que se pode falar de determinados movimentos estéticos e certos
artistas. A partir da segunda metade do século XIX e primeira do século XX,
determinados movimentos estéticos surgiram como expoentes de uma atitude de revolta.
Ou seja, determinados modelos de expressão artística31 foram capazes de se insurgir
contra o jugo de uma realidade que aposta na minimização da condição humana, na
norma e no conformismo. Tais movimentos, em verdade, construíram um diálogo com o
mundo, o qual, por se encontrar inapreensível ao homem, não dá respostas concretas.
Neste diálogo, no lugar de se buscar uma raison d’étre para a existência do homem, um
sentido a priori, efetivou-se, através da transgressão e recusa, uma denúncia do
processo de extermínio da individualidade humana e a, concomitante, extinção de sua
singularidade.
À vista disso, percebe-se que, a despeito das questões de gosto que envolvem a
obra de arte, não foi raro percebermos que muitas das novas posturas morais ou éticas
que se instauraram no decorrer destes cem anos sofreram demasiada influência destes
movimentos de uma estética revoltada. Afinal, a expressão artística inserida como
recusa, em sua ação transgressora não se apresentou tão somente como ‘mero’ reflexo
ou representação de uma sociedade circunscrita em seu tempo; antes, a arte revoltada
denotou, em sua atitude de transgressão, um modelo de ação capaz de denunciar a
realidade imposta pela sociedade ocidental vigente que, além de acatar a miséria da
condição humana, a tem valorado enquanto virtude e necessidade.
Conclusão
A estética aqui pontuada apresenta-se como um movimento que engendra uma
atitude ética no espaço político, que possui sua realização plena em um universo de
30
Cf. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Suely Santos. Porto Alegre: LP & M, 1989.
31
Alguns autores costumam denominar muitos desses movimentos de vanguardas.
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
representações que exprimem uma filosofia da experiência e do vivido. Em outros
termos, opera-se uma ‘conversão estética’ na política, visto ser possível, através da arte,
dar uma outra forma a este mundo insólito e corruptor. Com efeito, no desdobrar dos
conteúdos estéticos, há uma tensão geradora do caos sensível, a qual, justamente pelo
seu caráter tensional, acaba ressacralizando e ‘ressensualizando’ esta época em que o
sujeito se encontra carente na minimização de sua conditio. Esta expressão estética é
tanto modalizada quanto compassada, de modo a transformar-se, intimamente, na recusa
lúcida que ‘des-oculta’ o indivíduo de seu sujeitamento. Talvez por esta razão mesma, a
vida tenda, doravante, no seu eco de razão e de recusa, a estetizar-se cada vez mais.
Diante do exposto, certos artistas e determinados movimentos estéticos
realizaram com maestria sua função transgressora e tentaram dar ao mundo um sentido
que se oculta na normatização mecanicista da vida cotidiana. Apresentando-se como
críticos da sociedade ocidental vigorante, esses artistas construíram suas obras artísticas
para além da reflexão sobre o Real, não apenas representando as relações do homem
com o mundo, mas também, e principalmente, traduzindo-as, questionando e, por vezes,
as renovando. Dentre esses revoltados dos pincéis e das penas, alguns podem ser
citados, como Rimbaud, Lautréamont, Oscar Wilde, Artaud, os Expressionistas e os
Surrealistas, dentre outros.
Contudo, é importante salientar que, simultaneamente ao fato de se encontrar
revoltada, este mesma arte engajada — a qual é objeto de recusa e transgressão — pode
ser incorporada ao sistema que se ergue sobre os escombros dos antigos. Tal evento,
decerto, acaba por fazer da atitude estética não mais denúncia transgressora, mas, isto
sim, modelo de aceite e manipulação. Ou, esvaziada de qualquer conteúdo, obra de arte
irrefletida. Em ambos os casos, a revolta estética perde seu caráter revoltado, sendo
normatizada e normatizante.
Enfim, nos resta Camus, que para além do filósofo da ética e da política, foi ele
mesmo um artista engajado. Em O Estrangeiro, ecoa a transgressão da qual a revolta é
partícipe. Nas palavras de Meursault:
Nada, nada tinha importância e eu sabia bem por quê. Do fundo do meu
futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através
dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro
igualava, à sua passagem, tudo que me haviam proposto nos anos, não mais
A arte como exílio da condição humana: uma análise ético-política da estética contemporânea
reais que eu vivia. [...], que me importava o seu Deus [...], já que um só
destino devia eleger-me a mim próprio [...]. Todos eram privilegiados. [...]
Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me
desejar que houvesse muitos espectadores no dia de minha execução e que
me recebessem com gritos de ódio32.
Logo tudo estaria consumado e o grito repetido de Meursault se refletiria no
mesmo espelho criativo com o qual o artista espia o mundo. Na arte como revolta,
sanciona-se uma sentença: na desrazão prenhe do universo, resta ao homem recusar o
vácuo pelo qual caminha a existência. E, se deveras há apenas um problema filosófico
sério, o ‘suicídio’, então talvez o artista saiba respondê-lo.
É possível imaginar Camus ou Arendt olhando a litogravura de Munch33,
espiando esta caricatura de homem que se espanta com o grito de outro. Afinal, estes
dois homens de tempos sombrios não se furtam de, ao fim de tudo, optarem pela
aísthesis. Ambos escolhem a arte como saída. Apóio-me, por fim, em Hannah Arendt e
em sua ideia de que é no juízo de gosto, no ato desinteressado, que se lida com o
particular. Não há dúvida, reconhecer o rosto do outro é uma experiência aisthética que
cria o mundo político, possibilitando, assim, uma posição que supera a condicionalidade
histórica que, decerto, ainda pode ser conhecida como a dos tempos sombrios.
Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo; Posfácio de Celso
Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Suely Santos. Porto Alegre: LP & M,
1989
______. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva,
1992.
32
33
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999, pp. 124-126..
Pintor expressionista norueguês, autor do célebre quadro O Grito (1893), que mostra, em toda sua
fealdade, um rosto retorcido de uma pessoa que escuta um grito. Münch descreveu assim a experiência
que o levou a pintar sua obra-prima: “Caminhava eu com dois amigos pela estrada, então o sol pôs-se; de
repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me no muro, inexplicavelmente cansado.
Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde preto-azulado. Os meus amigos continuaram a
andar, enquanto eu ficava para trás tremendo de medo e senti o grito enorme, infinito, da natureza”.
AMITRANO, G.C. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record,
1999.
______. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996.
CURTIS, Kimberley F. Our Sense of the Real: Aesthetic Experience and Arendtian
Politics. New York: Cornell University Press, 1999.
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São
Paulo: Graal, 2006
______. Proust e os Signos. Trad. Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1987.
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
Trad. Salma Tannus. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GOMBRICH, E. H. História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Círculo do Livro,
1972
MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
O intelectual que nasceu de uma piada:
o filósofo
Barbara Botter1
Resumo
O objetivo do nosso artigo é fornecer uma idéia do “gênio filosófico” de
acordo com o pensamento dos antigos. Não sendo possível fornecer uma
descrição, iremos percorrer o caminho do mito para chegar a nossa meta. O
artigo está dividido em três partes. Em primeiro lugar, iremos apresentar
uma interpretação da função do mito na Republica de Platão. Em seguida,
iremos contar a anedota de Tales narrada por Sócrates no Teeteto de Platão,
para então fornecer, na última parte, um retrato do filósofo.
Palavras chave: mito, filósofo, símbolo.
Estratto
L’obiettivo del nostro articolo è quello di fornire uma idea del
temperamento próprio di quella “strana” figura intellettuale que é il filosofo,
per lo meno secondo La visione degli antichi. Non essendo possibile dare
uma descrizione, raggiungeremo la meta percorrerendo la strada del mito.
L’articolo è suddivido in ter parti. Dapprima presenteremo uma
interpretazione della funzione del mito nella Repubblica di Platone; in
seguito, raccontereno l’aneddoto di Talete di Mileto presente nel Teeteto di
Platone. Infine, cercheremo di tracciare um ritratto del filosofo.
Parole chiave: mito, filosofo, símbolo.
O mito e sua função na República de Platão
É difícil definir com precisão a função do mito em Platão, e ainda mais
difícil é apontar para aquilo que o filósofo entende com o termo mythos, visto que
sem dúvida o sentido desta palavra é mais abrangente que o sentido da tradução
português do termo: “mito”. Em alguns diálogos o termo mythos é contraposto ao
termo logos, ao passo que em outros o mesmo termo se encontra como sinônimo
de discurso racional utilizado para esclarecer um fenômeno físico ou biológico.
Ademais temos casos em que a palavra mythos em Platão tem o rigor de validade
como discurso que mostra determinada realidade, apesar de não ter a mesma
exatidão de uma explicação epistêmica. Para os nossos fins, não é preciso
pormenorizar a noção de mythos no interior dos escritos do filósofo grego, basta
ter em mente uma noção geral da palavra: qualquer conto, história ou descrição,
1
Barbara Botter é Professora da UFES. E-mail: barbarabotter@gmail.com
O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo
conveniente na explicação de um fenômeno, ou na apresentação de determinado
acontecimento.
Entretanto, não é o sentido do termo em si que suscita o nosso interesse
aqui, mas sim sua função nos diálogos de Platão, especialmente, na República.
Como escreve Marcus Reis Pinheiros2, Platão neste diálogo destaca o poder de
persuasão do mito, ao ponto que o ato de contar mitos para as crianças se torna
uma etapa fundamental ao longo do processo educativo. Na parte final do livro II
da República, Sócrates persuade “as mães e as amas-seca a contar para as
crianças e a moldar (plattein) as almas delas com mitos muito mais do que seus
corpos com as mãos”3. As mães e as amas devem contar histórias (mythoi) às
crianças para “modelar suas almas”.
A passagem citada se encontra ao longo da descrição do tipo de educação
mais proveitoso pelo guardião, sendo esta constituída de dois momentos: a
ginástica pelo corpo e a musiké pela alma. O termo musiké inclui não apenas
música, mas também poesia, visto que Sócrates destaca que na musiké sempre há
logos. Especificando qual é o tipos de logos mais apropriado à educação dos
guardiões, o grupo social do qual serão escolhidos os guardiões perfeitos, Sócrates
distingue logoi verdadeiros e logoi falsos. Como diz Pinheiro, citando Platão, “os
falsos são mitos que como um todo são falsos, mas há alguma verdade neles
também”4.
Dada a aproximação entre a infância e a alma desejante, sendo a alma
desejante a única que é realmente desenvolvida na criança5, é possível pensar aos
mitos numa forma parecida aos fantasmas enviados pelo intelecto para a alma que
deseja, de modo que ela possa alcançar “alguma verdade”6. No Timeu 70-73,
Platão informa que junto da alma imortal e divina situada na cabeça, o corpo é
moradia também para a parte mortal da alma, constituída de uma parte melhor,
capaz de escutar e auxiliar a razão, e de uma parte pior, totalmente surda à razão.
2
Pinheiro 2003, p. 127. Na primeira parte de nosso artigo utilizaremos a preciosa contribuição de Marcus
Reis Pinheiro, Formas de interpretar “mito” em Platão e na contemporaneidade, <Boletim do CPA>,
Campinas n. 15, 2003, a qual apresenta de forma clara e persuasiva a função do mito na Republica de
Platão.
3
Plat. Rep. 377c.
4
Pinheiro 2003, p. 129; Plat. Rep. 377a5-6.
5
Cf. Brisson 1994, p. 103.
6
Pl. Timeu 71a-e.
BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
A primeira é a parte que “participa da coragem e da ardor”7, a segunda é a parte
desejante, incapaz de prestar atenção a outras coisas que não sejam imagens e
simulacros8. Para evitar que a alma desejante consiga subjugar a outra sub-espécie
da alma, entregando assim o homem aos prazeres descontrolados, o intelecto deve
encontrar uma maneira de entrar em contato com a alma desejante, o animal
policéfalo da República, para educá-la até onde isso for possível. Para tanto, o
intelecto envia “como em um espelho” para a sede física da alma desejante, o
fígado, os fantasmas, os quais ora assustam, ora apaziguam a alma desejante que
“apesar de incapaz de atentar para raciocínios, pode assim alcanças, na medida
em que lhe é possível, alguma verdade”9.
Acredito que temos aqui importantes passagens para entender a função dos
discursos falsos em Platão, os quais incluem os mitos, os fantasmas, e as “boas
mentiras”10. Apesar do conteúdo dos mitos, dos fantasmas ou das mentiras não
apresentar uma realidade, suas enunciações produzem no ouvinte certo tipo de
comportamento, reputado por Platão como uma atitude correta. Isso significa que,
como observa justamente Pinheiro11, os mitos têm como objetivo aquele de
persuadir seu ouvinte moldando a alma dele de tal modo que ela produz o
comportamento desejado. A verdade do mito, do fantasma ou da mentira boa não
é a correspondência com a realidade, mas sua funcionalidade. Assim como no
caso das boas mentiras na passagem 414c da Republica o mito é o jeito
encontrado por Platão para modelar a alma do ouvinte e condicionar seu modo de
pensar. A maneira como o mito molda a alma não difere do modo como o escultor
molda a matéria plástica, por exemplo, o mármore em vista da produção de uma
estátua.
Continua Sócrates,
Você não sabe que o princípio de toda obra é o mais importante,
especialmente para alguém jovem e gentil? Pois é então que mais
ainda um typos é moldado (plattô) e colocado sobre (enduô) ele,
qualquer typos que se queira imprimir em cada jovem12.
7
Pl. Timeu 70a.
Pl. Timeu 70e-71a; Cf. Desclos 2001/2002, p. 11.
9
Pl. Timeu 71a-e.
10
Pl. Rep. 382D, 389b, 415a.
11
Pinheiro 2003, p. 129.
12
Pl. Rep. 377b.
8
O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo
O que Sócrates quer dizer aqui é que a impressão desejada (um typos
específico) é moldada na alma através do mito. O verbo grego plattô que está na
raiz do termo português “plástico”, indica propriamente a habilidade que um
agente externo tem de moldar uma matéria e a capacidade de um material de ser
moldado, quer dizer, de assumir formas diferentes de acordo com as influências
que padece. Sócrates está aqui assumindo a idéia que a alma é uma substância
capaz de ser afetada pelas influências externas, ao ponto que ela se comporta de
acordo com o molde que foi impresso nela. Devido à influência exercida pelo
mito, a alma “veste” (enduô) desde a infância uma segunda natureza, da qual
depois não consegue facilmente se despir ou desvencilhar13. Assim sendo, a alma
agirá de acordo com o typos que vestiu quando jovem. Acreditamos que Platão na
Republica tenha esclarecido abundantemente a função que ele atribui ao mito,
destacando a força que este tipo de conto tem no ato de influenciar o modo de
pensar dos ouvintes.
O ingresso triunfal da filosofia: uma piada
Passando agora para a segunda parte da nossa apresentação, acreditamos
que seja legitimo afirmar que a filosofia ingressou no mundo ocidental com uma
piada, ou para ser mais caridosos com um mito, só que o sentido deste mito está
num equilíbrio instável entre o irônico e o serio. E foi exatamente através deste
mito que foi “moldada” a alma de muitas gerações a respeito do “gênio” do
filósofo e do sentido da filosofia.
Afinal, quem é o filosofo? Quando ele nasceu? Será que nasceu de uma
piada?
No Teeteto, Platão descreve o que aconteceu com o celebre filosofo
Tales14:
Foi o caso de Tales, quando observava os astros; porque olhava para
o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa
rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava
conhecer o que passava no céu, mas não via o que estava junto dos
próprios pés.
Essa pilheria se aplica a todos os que vivem para a filosofia”.15
13
A imagem da alma capaz de vestir uma segunda natureza, sua natureza moral, será utilizada mais tarde
por Aristóteles. Ver o livro VII da Ética Nicomaqueia.
14
A história de Tales é citada também por Esopo e Diógenes Laertius.
BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Eis o primeiro filósofo, Tales de Mileto, o protótipo do filosofo, o
“protofilosofo”. Nasceu no século VII a.C., viveu entre os séculos VII e VI a.C., e
foi o fundador da escola de Mileto, uma cidade da Jônia, na Ásia Menor. Segundo
a tradição, ele foi o primeiro físico grego, o primeiro investigador da natureza,
porque foi o primeiro a tratar o problema da origem do mundo e da transformação
e conservação de todas as coisas, mas, por enquanto, não somos interessados à
teoria de Tales. O que nos interessa é o sentido da anedota que o filosofo Platão
faz contar por o filosofo Sócrates no dialogo Teeteto16.
Tales, em certa noite, caminhando com os olhos voltados para o céu, ou
seja, ao observar as estrelas, tropeçou e caiu num poço, ao que uma jovem criada
da Trácia, que presenciou o acidente, se riu dele dizendo: tu pretendes conhecer as
coisas do céu, mas não percebes o que estás sob os teus pés. Então ela chamou o
filósofo de pessoa distraída para as coisas práticas da vida e perdido em
pensamentos abstratos. O sentido do mito parece evidente já a uma primeira
leitura: trata-se de uma reflexão auto irônica dos filósofos sobre se mesmos. O
filósofo é uma pessoa perdida em pensamentos abstratos e longe do viver
cotidiano (... Tales havia os olhos voltados para o céu ..., sublinha Sócrates). Por
isso, ele não se dá conta do que está sob os seus pés. Assim foi que o Tales
tropeçou e caiu num poço. Ele aparece, portanto, não apenas uma pessoa distraída,
mas também ridícula. Hoje também é comum, no meio social de negar à filosofia
o estatuto de um saber verdadeiro sobre a vida. Considera-se alienado aquele que
se volta para questões filosóficas. Chega-se a tal descrédito que a atitude de quem
pensa parece própria a uma pessoa desligada17.
A historia que vê como protagonista o filosofo Tales é peculiar: o filosofo
é estimado ridículo pelo fato de cair num poço. Ademais, quem repara o
acontecido e zomba dele é uma criada, isto é, uma pessoa alheia a qualquer
ciência, uma pessoa que muito dificilmente está interessada na cultura. A anedota
parece dizer que a sabedoria pratica do povo é bem mais útil que a sabedoria
abstrata do filósofo. Não é à toa que a historia tem como protagonista aquele que é
considerado o primeiro filósofo, querendo assim indicar que o “pecado original”
15
Platão, Teeteto 174a.
Ver Mancini, Battistin, Marini 2002, vol. 1, Dall'Antichità alla fine del Medioevo, unità 1.
17
Hünhe 2006, p. 33.
16
O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo
passa depois para a tradição filosófica inteira. Com efeito, Sócrates conclui: “Essa
pilheria se aplica a todos os que vivem para a filosofia”.
Como observa Leda Miranda Hüne, ao ridicularizar o filosofo se pretende
valorizar o homem da ação, do cálculo, da tecnologia, da economia. Na
comparação, quem quer pensar no sentido das coisas é alguém que não tem senso
prático, astúcia para enfrentar o lance das vendas, das trocas, dos prazeres.
Alguém que vive distante do mundo dos negócios e da vida ativa da cidade. E o
fato do pensador estabelecer distanciamento com o real imediato passa no mundo
social por marginalidade18. O filosofo é uma pessoa que tem afinidade com a
sabedoria, tem amor ao saber, e por isso corre o risco de não ser entendido; e tanto
mais ele tem sucesso na sabedoria, tanto menos as pessoas comuns o entendem e
o apreciam.
É preciso observar que Sócrates, ao narrar a história, não se mostra
incomodado pela reação da criada, e tampouco se sente ofendido como se sua
dignidade de filósofo estivesse sido manchada. Muito pelo contrário, é ele mesmo
que declama o acontecido pelo seu interlocutor Teodoro, de maneira tal que o
jovem possa reconhecer o verdadeiro jeito de proceder da filosofia, a qual
despreza a superficialidade do mundo cotidiano, as fofocas da praça, a esperteza
do povo, seu interesse pelo dinheiro e pelo poder. A postura do filósofo merece
ser elogiada, diz com dignidade Sócrates, pois é a postura própria do homem que
saboreou o prazer vida e tomou a devida distância com o nível mercenário da
sociedade19.
Sócrates não parece querer desmentir a critica da rapariga, mas confirmála: pelo fato de conseguir manter certa afinidade e aproximação com o sentido das
coisas e com as realidade mais elevadas, a filosofia pode tornar verdadeiramente
feliz o ser humano, pois consegue desviar o olhar do sujeito das coisas terrestres
para elevá-lo até a altura dos deuses. A felicidade é, de acordo com Platão e com
os gregos em geral, uma forma de “boa vida”, mas não no sentido subjetivo de
bom para mim (embora também inclua este aspecto), mas de verdadeiramente
bom, o que implica a noção de virtude, que permite a apreensão do verdadeiro
bem.
18
19
Cf. Hünhe 2006, pp. 33-35.
Platão, Teeteto 175e-176a.
BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
O ideal de vida aqui imaginado pelos filósofos é sem duvida cheio de
fascinação e de sugestão, porém, não está ausente de insidias cuidadosamente
ocultadas para além do brilho das palavras. Entre outras coisas, a falta de
reconhecimento da finitude humana e o perigo de cair em uma racionalidade
focada em si mesma, a qual se acredita onipotente.
As interpretações da anedota do Teeteto
A queda do proto-filósofo num poço é a prefiguração de um destino que
ameaça o pensamento filosófico em todas as épocas20.
Tertuliano um filósofo cristão dos séculos II-III d.C., retomou a anedota de
Platão e conferiu uma interpretação desfavorável à razão filosófica. O filosofo
pagão, neste caso Tales, dá uma importância demasiada ao logos e esquece a
palavra de Cristo. Na anedota que conta Tertuliano não há uma criada Trácia que
dá uma risada do filósofo, e sim um pensador egípcio. Isso pelo fato que os
primeiros padres cristãos indicaram a origem egípcia e não grega da sabedoria e
das ciências. Os pensadores judaicos e os padres cristãos consideram a sabedoria
dos gregos uma sabedoria inferior à sabedoria egípcia.
Na modernidade, o filosofo inglês Francis Bacon aproveita da anedota de
Tales para mostrar que a técnica e a ciência prática são bem mais úteis do que o
saber abstrato e teórico dos primeiros filósofos gregos.
A queda de Tales se tornou também o símbolo do esquecimento que levará
o filósofo a se perder, às vezes, num racionalismo abstrato e fechado. Sócrates e
Platão não aproveitam o ensinamento que se esconde atrás as palavras da criada
de Trácia, pois estão persuadidos que para conhecer o homem na profundidade da
sua essência é preciso ignorar o lado mais concreto e passional dele para se
concentrar na função própria do homem: o bom uso da razão21.
20
Para uma breve resenha das interpretações da anedota, ver Mancini, Battistin, Marini 2002, vol. 1,
Dall'Antichità alla fine del Medioevo, unità 1.
21
Com isso não queremos reduzir Platão a um pensador puramente metafísico, perdido no mundo das
Ideias, como se quiséssemos concentrar o pensamento platônico ao conteúdo do Fedon e ignorando os
outros diálogos. Estamos apenas descrevendo em uma forma muito geral um dos caminhos que a filosofia
antiga abriu para o pensamento e a reflexão filosófica posterior.
O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo
Como escreve Hans Blumemberg22, com a tomada de posição de Sócrates
e Platão a filosofia cai em uma possível armadilha: a determinação da virtude
através da sabedoria, ou pior a redução da virtude à sabedoria.
O acidente ocorrido a Tales perde sua conotação divertida e pode se tornar
um problema serio. A aposta em jogo é grande: o perigo que a filosofia, desde sua
origem, manifeste desinteresse ou mesmo desprezo pela vida do cotidiano para se
colocar à busca das coisas supremas e de um conhecimento que desafia a
sabedoria divina.
O sintoma deste desvio se faz presente também naquelas interpretações da
anedota do Teeteto platônico que se declaram mais favoráveis à filosofia dos
antigos gregos, como é o caso da leitura que Nietzsche realiza na obra A filosofia
na época trágica dos gregos.
No século XIX o filosofo Friederich Nietzsche retoma a historia de Tales,
mas fornece uma interpretação totalmente diferente daquela de Tertulliano ou de
Bacon e bem mais propícia para o destino da filosofia grega antiga. “Exatamente
graças à Tales”, afirma Nietzsche:
... é possível aprender como procedeu a filosofia, em todos os tempos,
quando queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpondo
as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela salta para diante: a
esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente, o
entendimento calculador arqueja em seu encalço e busca esteios
melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual sua
companheira mais divina já chegou.
Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre
rodopiando pedras; o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele,
usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante,
ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro,
a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir
fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes
isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a
transpor o regato. O que, então, leva o pensamento filosófico tão
rapidamente a seu alvo? Acaso ele se distingue do pensamento
calculador e mediador por seu voo mais veloz através de grandes
espaços? Não, pois seu pé é alçado por uma potência alheia, alógica, a
fantasia. Alçado por esta, ele salta adiante, de possibilidade em
possibilidade, que por um momento são tomadas por certezas; aqui e
ali, ele mesmo apanha certeza em vôo. Um pressentimento genial as
mostra a ele e adivinha de longe que nesse ponto há certezas
demonstráveis. Mas, em particular, a fantasia tem o poder de captar e
iluminar como um relâmpago as semelhanças. Mais tarde, a reflexão
vem trazer seus critérios e padrões e procura substituir as semelhanças
por igualdades, as contigüidades por causalidades23.
22
23
Cf. Blumemberg 1988, p. 27.
Nietzsche, 1972, p. 37, tradução do autor.
BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
A visão de Nietzsche é uma visão romântica da filosofia. A filosofia
alcança mais rapidamente o fim graças à genialidade das suas intuições. Contudo,
é o desinteresse para a vida pessoal e propriamente humana que leva o filosofo a
se ocupar dos eventos que, segundo o filósofo Nietzsche, mais merecem a sua
atenção, a saber, os eventos maravilhosos e divinos. O perigo de a filosofia
esquecer o homem em carne e ossos se concretizou bem além de Sócrates e
Platão.
O fato de que não seja imediato e, às vezes tampouco possível, alcançar o
ponto de vista filosófico a partir do mundo da vida cotidiana, faz com que a
filosofia às vezes “seja algo privado de sentido” (Heidegger)24. Na anedota de
Platão, é evidente que o filósofo não entende a razão da risada da criada e a
“risada” que o filósofo dá como resposta à postura da jovem de Trácia é privada
de sentido. De certa forma, ambos não sabem o que estão fazendo: a criada não
sabe o que é a filosofia e o filósofo não entende a razão pela qual ele aparece
ridículo diante do olhar do povo.
O que é certo é que se desenvolveu no seio da tradição filosófica uma
impostação metafísica que se torna alvo de derrisão diante da sociedade. E não se
trata apenas de um vezo de Sócrates ou de Platão. Kant, por sua vez, se sentirá
obrigado a tomar certa distância da arbitrariedade das vivencias humanas para
fundamentar a validade universal do imperativo moral. E diríamos, sem com isso
querer desconhecer a profundidade e importância da ética kantiana, que há algo
“irônico” (no sentido da ironia da criada de Trácia) no imperativo kantiano.
E do possível destino profetizado na risada da espirituosa criada (“ ….
Essa pilheria se aplica a todos os que vivem para a filosofia ...”) tampouco
escapa a fenomenologia de Husserl, no seu ato de recusar qualquer peculiaridade
antropológica25.
De acordo com as palavras de Cucci26, o lugar no qual Tales tropeça é
significativo. Simbolicamente, o poço bem se presta a simbolizar uma parte do
sujeito que corre o risco de passar despercebida pelo filosofo. De acordo com
Cucci, o poço representa a profundeza da psique. Consoante com esta linha
24
Estas palavras de Heidegger são mencionadas por Blumemberg 1988, p. 159.
H. Blumemberg, Poetik und Hermeneutik, Bd. VII, 14 ss., in G. Cucci 2008, p. 126, n. 8.
26
Cucci 2008, p. 126.
25
O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo
interpretativa é possível destacar duas perspectivas antitéticas no interior da piada
contada por Sócrates: a razão versus a risada; o céu versus a profundeza; a
essência versus a existência encarnada; o universal versus o particular; o sábio
versus a criada.
Há também outro detalhe indicativo no incidente ocorrido a Tales.
Blumemberg e Berger observam que a criada era de origem trácia. A
Trácia, como se sabe, é o lugar do rito de Dioniso. Dioniso representa, de acordo
com Nietzsche, um lado importante da civilização grega. O nome do deus está
relacionado ao culto do júbilo sem limite, da dança descontrolada, do instinto livre
e quase violento27.
Na risada da criada trácia não há apenas a exibição de um caso divertido,
protagonizado por um intelectual perdido na esperança de descobrir quantos anjos
sentam na ponta de uma agulha, ou a medir matematicamente a pata de uma pulga
ou a observar o zumbido de uma mosca, como diz Erasmo de Roterdã no Elogio
da Loucura. O episodio de Tales foi lido como uma vingança da parte profunda e
imprevisível do sujeito contra quem pretende reduzir o homem à pureza da
razão28.
Esta possível interpretação do mito de Platão não nasceu com
Blumemberg nem com Nietzsche. Em um instigante ensaio Montaigne já detectou
a peculiaridade do caso ocorrido a Tales e a advertência contida nele29. Em seus
Ensaios Montaigne agradece a rapariga da Trácia, a qual, reparado que Tales está
perdido em reflexões abstratas, coloca na frente dele um obstáculo, de modo que o
filósofo tropeça e cai. De acordo com a leitura de Montaigne, trata-se aí de um
aviso, de modo que o filósofo não esqueça que pode observar o céu só após ter
respondido às questões que estão mais próximas dos seus pés. De certa forma,
segundo a leitura de Montaigne, a criada adverte o filósofo da importância de
voltar os olhos para si mesmo antes de procurar as coisas que estão no céu.
27
Cf. M. Pohlenz, L'uomo greco, Firenza 1986, pp. 104-105, mencionado por Cucci 2008, p. 127.
A redução do homem à racionalidade parece representar o objetivo de Sócrates no Crito, especialmente
46b e no Mênon 89b: “E se passamos às coisas que pertencem à alma, tudo que nela deve ser bom
depende da própria razão”.
29
M. de Montaigne, Saggi, II 12, Firenze, 1965, p. 552, mencionado por Cucci 2008, p. 126.
28
BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Se o filósofo não aceitar sua essência encarnada e a corporeidade de seu
lado emocional, correrá o risco de perder ao mesmo tempo sua capacidade de
ironizar, se tornando sem querer objeto de derrisão.
O mesmo perigo foi frisado por Erasmo de Rotterdam, o qual ao longo da
obra Elogio da Loucura declara de ter medo daqueles filósofos que nutrem a
ilusão de estar na posse da totalidade das explicações, saltando para além dos
particulares concretos e dos detalhes30. Assim sendo, a advertência disfarçada na
risada da rapariga, além de tornar ridícula a presunçosa vaidade do filósofo, que
esqueceu sua natureza corporea, introduz um procedimento filosófico que terá
muita fortuna a partir de Sócrates: a ironia.
Querendo exemplificar, podemos caracterizar a ironia socrática como uma
critica decidida e espirituosa dirigida contra quem toma a sua própria postura em
uma maneira demasiadamente seria e esquece as humildes, mas preciosas,
palavras da criada.
A risada eclode na forma de uma critica do povo diante de uma sabedoria
excessivamente precisa e abstrata e, por isso, incapaz de discutir a realidade do
mundo cotidiano. Se a filosofia não presta ouvido à sugestão mascarada na risada
da criada corre o risco de se tornar coisa de lunático, um saber inútil, uma evasão
capaz de construir raciocínios coerentes e até mesmo elegantes, porém, incapaz de
se situar no mundo.
Não obstante, a situação dramática que acabamos de descrever é uma das
armadilhas em que a filosofia, por sua natureza, corre o risco de cair, mas não é
seu destino natural.
A filosofia é coisa seria, trabalhosa, requer esforço de compreensão, mas
não para penetrar o estratosférico Iperuranio dos conceitos abstratos, ou a
obscuridade dos compêndios dos filósofos. A filosofia está ciente que há muitas
mais coisas para indagar entre o céu e a terra do que acima do céu. A tarefa da
filosofia é aquela de entender, na medida do possível, o mundo complexo em que
vivemos, cuja compreensão é fonte de problemas pelo fato que as idéias
emprestadas da ciência, do mundo dos negócios ou mesmo dos dogmas teológicos
não ajudam a interpretá-lo. A filosofia exige uma análise reflexiva da experiência
30
Erasmo de Rotterdam, Elogio della follia, Milano 1989, p.103, mencionado por Cucci 2008, p. 128.
O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo
cotidiana, o desmonte de conceitos que são transmitidos, muitas vezes repetidos, e
interiorizados no âmbito da linguagem.
É verdade que posições como aquelas descritas acima, que visam a certo
estranhamento do mundo real, estão presentes na filosofia desde a Antiguidade,
porém, a filosofia não se reduz a isso. No livro O Mundo de Sofia, Jostein Gaarder
expõe uma situação figurativa para ilustrar o que é a filosofia e o ser filósofo. Ele
nos trás o exemplo de um mágico que retira de sua cartola um coelho que
simboliza o mundo. Na base dos pelos de coelho existem “bichinhos
microscópicos”, são os homens, ou seja, as pessoas que estão costumadas com o
mundo em que vivem e que só enxergam o comum. As pessoas comuns estão
acomodadas no conforto da pelagem do coelho, aceitando as coisas como são. O
filósofo, por sua vez, sobe da base para as pontas dos pelos do coelho em busca do
incomum31.
A filosofia não é o jeito encontrado pelo homem para fugir da realidade e
se esconder no mundo estratosférico das Idéias. O ato de filosofar é uma reflexão,
uma volta da consciência sobre si mesma a partir da experiência da vida. Como
diz Michel Focault:
Mas o que é o filosofar hoje em dia – quero dizer – a atividade
filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio
pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até
onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já
sabe?32.
O filósofo recusa a visão cotidiana de um mundo de rotina onde tudo
funciona mecanicamente, assim como recusa o modo redutor, esquematizador que
o cientista tem de lidar com o real.
(...) É preferível pensar sem disto ter consciência, de uma maneira
desagregada e ocasional, isto é, participar de uma concepção de
mundo imposta mecanicamente pelo ambiente exterior ou é preferível
elaborar a própria concepção de mundo de uma maneira crítica e
consciente e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio
cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente
na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não
aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria
personalidade?33
In “Elaboração de atividade de filosofia. Atividades de introdução à filosofia e filosofia politica”,
Universidade de Santa Maria, RS, 2009, p. 2. Acadêmicos: Ariana, Camila, Lisiane, Mateus, Rafael A. e
Tânia.
32
Focault 1984, p. 58.
33
Gramsci 2006, p. 76, mencionado por Hühne 2006, p. 65.
31
BOTTER, B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Conclusão
A história das interpretações do mito que o filósofo Platão faz contar para
o filósofo Sócrates no Teeteto é um símbolo da filosofia e da relação que a
filosofia tem para com o mundo natural e social. O estudo da filosofia é visto ora
como um estudo de difícil acesso, que fica num campo especializado habitado por
profissionais que se fecham em grupos, muitas vezes, elitistas; ora como um
estudo inútil e supérfluo, visto que não serve para ganhar a vida34.
Não há duvida que a atitude do filósofo não é a mesma do mercenário, o
qual reduz a existência à busca pelos meios para alcançar com sucesso ganhos
financeiros. A atitude do filósofo difere também daquela do homem de ciência, o
qual busca a clareza das respostas por meio de demonstrações racionais
científicas. Ao contrário da ciência, a filosofia é um tipo de saber que sempre
disputa, instiga, põe em discussão e se põe em discussão, questiona os valores e
não oferece respostas prontas. Não cabe ao filosofo dar as últimas respostas sobre
a realidade. A filosofia consiste na produção de argumentos para mostrar que uma
resposta ou é parcial, ou confusa, ou contraditória, ou mesmo errada e por visar a
persuadir o interlocutor do erro cometido e da necessidade de prosseguir na
investigação. A filosofia representa a primazia da busca; para cada resposta
obtida, a filosofia duvida. O conhecimento filosófico não é um estado, o estado da
ciência, o estado da sabedoria dogmática, mas é um processo, uma busca, uma
procura, mais precisamente, o reconhecimento incessante de que a cada
conhecimento obtido uma nova pergunta se abre. Isso não significa que uma
resposta não exista, e sim que deve sempre ser procurada e que sempre será maior
do que nós. O fato de que nós sabemos sobre as coisas foi apontado como o maior
de todos os mistérios. No nosso século, o filosofo da ciência Karl Popper, pensou
no conhecimento como sendo a “maravilha suprema do universo” e o filosofo
alemão Husserl denominou o encontro entre a razão e a realidade como “o enigma
dos enigmas”.
É diante do enigma e da incompreensão frente o mundo incomensurável
ao redor de nós, que eclode uma risada: a filosofia se manifesta quando uma
risada irrompe inesperadamente. Lembramos daquele jovem físico, ao qual
aconteceu de presenciar uma aula do grande filósofo alemão Martin Heidegger
34
Cf. Hühne 2006, pp. 33-34.
O intelectual que nasceu de uma piada: O filósofo
inteiramente devotada à lógica. Após da aula, o jovem físico segurou o respiro por
um instante e com surpresa dos presentes exclamou: Eis a filosofia! Não entendi
uma única palavra, mas isso mesmo é a filosofia!35
Bibliografia
Blumemberg, H., Il riso della donna di Tracia, Bologna: Bollati e Boringhieri,
1988, p.27.
Brisson, L., Platon, le mots et les mythes, Paris: La Découverte 1994.
Cucci, G., Filosofia e Psicologia della persona, <Gregorianum 90, 1, 2009, pp.
123-142.
Desclos, M.-L., É possível ser corajoso e justo sem ser sábio?, Kléos n. 5/6,
2001/2002, pp. 1-27.
Focault, M., História da sexualidade II, O uso dos prazeres, Rio de Jeneiro:
Edições Graal 1984.
Gramsci, A., A concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização
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Hadot, P., O que é a filosofia antiga. Rio de Janeiro: Loyola, 1999.
Heidegger, M., O Caminho do campo. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Editora
Vozes, 1969.
Hühne, L. M., Filosofia. Introdução ao pensar, Rio de Janeiro: UAPÊ 2006.
Jones, P. V., O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense.
Trad. Ana Lia de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Lebrun, G., Por que filósofo? In Estudos CEBRAP São Paulo, 1976. V. 15, p.
148-153. Lyotard, J. F. O Pós-moderno explicado à criança. Lisboa: Dom
Quixote, 1993.
Pinheiro, M. Reis, Formas de interpretar “mito” em Platão e na
contemporaneidade, <Boletim do CPA>, Campinas n. 15, 2003.
Mancini, B.; Battistin, F.; Marini, G. Le domande della filosofia. Milão: La Nuova
Italia, 2002. Vol. 1.
35
O físico em questão era C. F. Von Weizsacker e a anedota é citado por H. Blumemberg 1988, p. 160.
FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Razão e desconstrução:
Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade
soberana
Fernando Fragozo1
Resumo
O objetivo do presente texto é o de reconstituir em suas linhas principais o
argumento central da conferência de Jacques Derrida denominada “O ‘mundo’
das Luzes por vir (Exceção, cálculo e soberania)”, no qual é realizada uma
reflexão sobre a estruturação da racionalidade filosófica a partir da análise do
caráter sistemático, arquitetônico e teleológico dos idealismos transcendentais
de Kant e Husserl, caracterizados pela associação entre “soberania” e
“incondicionalidade”. É contraposto a esse projeto, que é identificado por
Derrida como característico da filosofia desde seus princípios, a racionalidade
plural das ciências que, hoje, já não parece mais possível de ser subsumida, por
analogia, a uma unificação. Por fim, é indicada a necessidade de se repensar o
“acontecimento” como a vinda imprevisível, não calculável e impossível do
“outro”, notadamente no que, hoje, se apresenta como o verdadeiro local de um
problema da razão, a saber, a técnica.
Palavras-chave: Razão, teleologismo, soberania, incondicionalidade,
acontecimento
Résumé
Ce texte vise à reconstituer en ses lignes principales l’argument central de la
conférence de Jacques Derrida « Le ‘monde’ des Lumières à venir (Exception,
calcul et souveraineté) », dans laquelle une réflexion sur la structuration de la
rationalité philosophique est entamée à partir de l’analyse du caractère
systématique, architectonique et téléologique des idéalismes transcendentaux
de Kant et Husserl, caracterisés par l’association, qui est identifiée par Derrida
comme étant caractéristique de la philosophie depuis son origine, entre
« souveraineté » et « inconditionnalité ». La rationalité plurielle des sciences,
qui ne semble plus passible d’être subsumée, par analogie, à une quelconque
unification, est confrontée à ce projet. Enfin, est indiqué le besoin de repenser
« l´événement » comme la venue imprévisible, non calculable et impossible, de
« l´autre », surtout dans ce que, aujourd’hui, se présente comme le vrai lieu
d’un problème de la raison, a savoir la technique.
Mots-clés: Raison, téléologisme, souveraineté, inconditionnalité, événement
1
Fernando Fragozo é professor associado da Escola de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da UFRJ e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ.
E-mail:ferfra3@gmail.com
Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana
Em agosto de 2002, por ocasião da abertura do XXIX Congresso da Associação
das Sociedades de Filosofia de Língua Francesa, realizado em Nice, cujo tema era
“Futuro da razão, devir das racionalidades”,2 Jacques Derrida proferiu uma conferência
intitulada “O ‘mundo’ das Luzes por vir (Exceção, cálculo e soberania)”, conferência
essa que foi posteriormente publicada em Voyous – Deux essais sur la raison (2003).
Dirigindo-se a uma audiência composta certamente de estudiosos de filosofia de
expressão francesa, mas provavelmente não apenas, Derrida realiza uma incisiva
reflexão sobre a razão, num percurso que visa confrontar o projeto “arquitetônico,
sistemático e unificador” da filosofia – e mais especificamente do idealismo
transcendental, tanto de Kant quanto de Husserl – à existência de razões plurais,
rigorosas, mas não unificáveis ou unificantes, tais como se apresentam e se
apresentaram nesta outra grande vertente ocidental que é a ciência - ou as ciências. A
partir desse confronto, propõe Derrida pensar a possibilidade de uma razão “razoável” e
não apenas “racional” que, de algum modo, saiba se posicionar diante do impensável
que pode se dar na figura do “acontecimento” (événement).
O mote inicial da conferência é a “hipótese”, que teria “vindo” a Derrida,
segundo a qual seria, talvez, necessário “salvar a honra da razão” (2003, p. 167). Uma
“hipótese” que abre imediatamente um abismo de questões que vão gradativamente
constituindo um caminho de questionamento em torno deste conceito, a razão, e de tudo
o que ele significa na tradição de pensamento que então se constituíra na – e constituíra
a – Europa: “A honra da razão é a razão? A honra é razoável ou racional de ponta a
ponta? [...] [P]referir a razão é racional, ou, o que ainda é outra coisa, razoável? O valor
da razão, o desejo de razão, a dignidade da razão são racionais?” (Derrida, 2003, p.
169). E, trazendo para diante da cena um dos autores com os quais pretende dialogar
neste texto, a saber, Kant, Derrida se pergunta se o interesse da razão (Interesse der
Vernunft), esse interesse do qual fala Kant na primeira Crítica, pode ser “inscrito”
justamente sob a “autoridade da razão”: é ele, esse interesse, de algum modo
“racional”?
Derrida lembra que, para Kant, “a razão humana é, por natureza, arquitetônica”
(2003, p. 169), num trecho de Kant que merece ser citado por inteiro, na medida em que
atinge o cerne da questão que Derrida quer levantar. Diz Kant: “A razão humana é, por
2
Avenir de la raison, devenir des rationanalités.
FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
natureza, arquitetônica, isto é, considera todos os conhecimentos como pertencentes a
um sistema possível, e, por conseguinte, só admite princípios que, pelo menos, não
impeçam qualquer conhecimento dado de coexistir com outros num sistema” (2001, p.
438).3 Ora, o que Derrida propõe é que a ameaça a essa pretensa “vocação
arquitetônica” da razão não viria das antinomias da dialética transcendental, mas, antes,
das “racionalidades plurais” que se apresentam nas diversas ciências, cada qual tendo
sua “região ontológica”, “sua necessidade, seu estilo, sua axiomática, suas instituições,
sua comunidade, e sua historicidade próprias” (2003, p. 170). De fato, diante de sua
multiplicidade heterogênea e de seus processos constitutivos e metodológicos
diferenciados (“paradigma”, “epistémé”, “corte epistemológico”), segundo o “setor de
objetos” e a história setorial a cada vez em questão, a ciência se revela, hoje, mais como
um mosaico plural e não unificável (o que leva Derrida a falar de as ciências, no plural)
do que como uma unidade que possa ser articulada num todo inter-relacionado
analogicamente. Pluralidade de saberes e conhecimentos que, em sua “heterogeneidade
intraduzível, sem analogia”, coloca em questão aquela “idéia reguladora da razão” que,
como “mundo”, unificaria a experiência a partir de um “como se” que postularia a
unidade para poder revelá-la (Derrida, 2003, p. 171).4
Neste sentido, se essas “racionalidades plurais” põem em questão a “vocação
arquitetônica e unificadora” da razão, não é justamente essa a questão que tem de ser
posta? Na verdade, a questão é diferentemente posta por Derrida: se “a autoridade
magistral e dominadora [maîtresse et maîtrisante] da arquitetônica” é acatada, não
correm essas diversas racionalidades o risco de se verem subsumidas ao que de fato não
pode subsumi-las? Nas palavras de Derrida, que invertem a questão e propõem ver o
risco em outro lugar:
Não é então em nome destas racionalidades heterogêneas, de sua
especificidade e de seu futuro, de sua história, de suas ‘luzes’, que é preciso
pôr em questão a autoridade magistral e dominadora da arquitetônica e,
assim, de um certo ‘mundo’, de uma unidade da Idéia reguladora de mundo
que antecipadamente a autoriza? (2003, p. 171).
3
4
No original, A474 B502.
Ver, por exemplo, o §V da Introdução da Crítica da faculdade de julgar.
Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana
Trata-se, então – e esse é o eixo central do texto –, de questionar o conceito de
“mundo” e tudo o que o liga, como “Idéia reguladora”, à possibilidade de uma
“autoridade magistral e dominadora” da razão, razão essa que é pensada como
arquitetônica, sistemática e unificadora não apenas no idealismo transcendental de Kant
mas também no de Husserl – e, nesse último caso, a atenção de Derrida se voltará para a
conferência pronunciada por Husserl, em 1935, em Viena, denominada A crise da
humanidade europeia e a filosofia.
“Salvar a honra da razão”, portanto, o mote inicial da conferência, se vê assim
encaminhado para um outro horizonte de questionamento que não aquele que, de início,
pareceria constituir o problema a ser pensado e que é assim apresentado por Derrida:
Filosofia enlutada, [...] ou bem porque o mundo estaria em vias de perder a
razão, quiçá de se perder como mundo, ou bem porque a própria razão, a
razão como tal estaria em vias de se tornar ameaçadora; ela seria um poder,
ela teria o poder de ameaçar a si própria, de perder o sentido e a humanidade
do mundo (2003, p. 173).
Diagnóstico catastrófico, seja pelo mundo que perde a razão, seja pela razão que
perde o sentido do mundo e de sua “humanidade”... Diagnóstico que ecoa aquele
apresentado por Husserl em 1935 e que Derrida propõe justamente pensar em outros
termos:
Talvez devamos pelo contrário tentar pensar outra coisa que não uma crise.
Talvez estejamos enfrentando algum sismo mais e menos grave, outra coisa
que não uma crise da razão, além de uma crise da ciência e da consciência,
além de uma crise da Europa, além de uma crise filosófica que seria, para
retomar um título de Husserl, uma crise da humanidade europeia (2003, p.
174).
Em 1935, Husserl se propõe – objetivo explícito apresentado na primeira frase
de sua conferência – a “suscitar um novo interesse pelo tema, tantas vezes tratado, da
crise européia”, lançando uma “nova luz” a essa crise a partir do desenvolvimento da
“ideia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da humanidade européia” (2008, p.
317). Assim, o que está em jogo no texto de Husserl é a tentativa de, partindo de uma
FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
constatação central (“as nações europeias estão doentes, a própria Europa, diz-se, está
em crise” (Husserl, 2008, p. 318)), elaborar o correspondente diagnóstico e, se possível,
encaminhar a cura, já que, diz Husserl, “há também para as comunidades, para os povos
e para os estados, [...] uma diferença entre saúde e doença” (2008, p. 317).
O desenvolvimento da “ideia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da
humanidade europeia” constitui-se assim no cerne da conferência – e é esse
desenvolvimento que visa aclarar o diagnóstico proposto. Um diagnóstico fatal, não
apenas no sentido do desastre, mas também e principalmente pelo desastre se dar como
fado, como destino – o que levará Derrida a falar de “fatalidade de uma patologia
transcendental”, tal qual uma “doença da razão” (2003, p. 175). Porque o que está em
jogo no diagnóstico de Husserl, propõe Derrida, é justamente da ordem de uma doença
auto-imunitária: a razão, por si mesma, produz o veneno que pode destruí-la.
De fato, na narrativa proposta por Husserl, a “humanidade europeia” é entendida
como aquela que inaugura “uma nova forma de práxis”, a saber, “a ideia infinita (no
sentido kantiano) de uma tarefa infinita como theoria, como atitude teorética” (Derrida,
2003, p. 176). Uma tal inauguração teria se dado por uma “conversão de atitude”
(Umstellung) (Husserl, 2008, p. 329), que geraria “uma postura humana” peculiar, para
a qual o que interessa é a “verdade pura e incondicionada” (Husserl, 2008, p. 336). Diz
Husserl, a respeito do nascimento da Filosofia na Grécia:
Apodera-se dos homens o fervor de uma consideração e de um conhecimento
do mundo que se afasta de todo e qualquer interesse prático e que, no círculo
fechado das suas atividades cognitivas e nos tempos a elas consagrados, nada
mais almeja que pura teoria (2008, p. 333).
Tal seria o sentido da tarefa infinita da razão que, enquanto theoria, enquanto
razão científica universal, “Ciência greco-europeia” ou Filosofia (Husserl, 2008, p.
332), gera um “novo espírito”. Contudo, como aponta Derrida, para Husserl, “é
precisamente esse ideal de uma ‘nova forma de práxis’ [...] que produz esse mal
amnésico que se chama objetivismo” (Derrida, 2003, p. 177). Husserl vai assim chamar
atenção para o perigo que ronda o “caminho da filosofia” – não apenas o irracionalismo
que tomava conta da Europa de modo avassalador, mas também um certo “racionalismo
Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana
ingênuo”, que se mostra como um irracionalismo, que é gerado no seio mesmo do
processo racionalizante e cujo nome é “objetivismo” (Husserl, 2008, p. 341). Como diz
Derrida:
Husserl o sabe e o diz: a ingenuidade objetivista não é um simples acidente.
Ela é produzida pelo próprio progresso das ciências e pela produção de
objetos ideais que, como de si mesmos, por sua iterabilidade e sua estrutura
necessariamente técnica, velam ou relegam ao esquecimento sua origem
histórica e subjetiva. Em seu próprio progresso, a razão científica produz
espontaneamente a crise (2003, p. 178).
Ao aprofundar essa análise de Husserl, Derrida revela o que está por detrás desse
diagnóstico: a multiplicação de saberes especializados, de “ontologias regionais”,
coloca justamente em risco a pretensa e idealizada unidade teleológica da razão:
Esse efeito irracionalista se parece também com um devir das lógicas e das
racionalidades plurais, e assim a um futuro da razão que resiste à unidade
teleológica da razão, ou seja, a essa ideia de tarefa infinita que supõe, pelo
menos como seu horizonte, uma totalização organizada das verdades
(Derrida, 2003, p. 179 – grifo do autor).
Ora, a teleologia, ou o teleologismo, fortemente marcante e presente no
idealismo transcendental, tanto de Kant quanto de Husserl, é justamente o que, para
Derrida “limita ou neutraliza o acontecimento/evento” (2003, p. 180). Em outras
palavras, na medida em que há teleologia, na medida em que o que pode se apresentar
como “irrupção imprevisível e incalculável” é ordenado sob uma historicidade prédeterminada, sua “alteridade singular e excepcional” é neutralizada, subsumida aos
possíveis previsíveis do próprio processo teleológico. Nesse sentido, diz Derrida, “o
teleologismo parece sempre inibir ou suspender, até mesmo contradizer a
acontecialidade do que vem” (2003, p. 180) – e não se trata, para Derrida, apenas do
teleologismo mais geral da razão ou do projeto ideal de uma racionalidade geral e
universal. Trata-se também das teleologias “locais”, que orientam uma configuração
específica (paradigma kuhniano, epistémé foucaultiana) e programam, “por meio de
FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
uma estrutura de espera e antecipação”, o que não pode ser programado, a saber, a
“invenção” que apenas “acontece” quando justamente é imprevisível e incalculável.
Assim, o diagnóstico de Husserl da “doença” europeia aponta para uma doença
da própria razão que, em seu processo teleológico infinito como theoria, por si mesma
se desvirtuaria, nos detalhes do caminho, e perderia sua visão totalizante no
“objetivismo”. Ora, o que Derrida quer apontar, invertendo a questão e, portanto,
reconsiderando tanto a narrativa como o diagnóstico husserliano, é justamente o perigo,
não da pluralização dos procedimentos, conhecimentos, saberes, mas, pelo contrário, da
insistente tentativa de sempre de novo reuni-los sob uma mesma narrativa teleológica e
totalizante que constitui justamente essa visão ideal ou idealizada de uma Europa sede
da razão universal e do próprio devir da humanidade.
A crítica de Derrida dirige-se, portanto, a esse pretenso papel de “arconte de
toda a humanidade”, tal como apresenta Husserl (2008, p. 338), por parte da filosofia e
da Europa, no sentido de pensar o perigo que representa uma tal idealização justamente
para a possibilidade da existência e desdobramento da razão, na pluralidade
desconcertante de suas instituições (no sentido lato do termo) científicas, fruto
certamente de um projeto compreensivo e totalizante que, hoje, teria de ser revisto. A
crítica de Derrida se faz assim justamente em nome da razão – mais especificamente da
pluralidade da razão.
Mas não apenas. Porque o que está em jogo para Derrida é não apenas a inversão
da reflexão sobre o perigo que eventualmente ameaçaria o “mundo”, o “nosso” mundo,
a saber, a proliferação das “racionalidades heterogêneas”, mas também e principalmente
o que se apresenta por meio do confronto entre a “razão arquitetônica, sistemática e
unificadora” e essas racionalidades plurais (confronto esse que transparece nas
antinomias kantianas da razão e nessa resistência à unificação chamada por Husserl de
“objetivismo” e de “naturalismo”). Ora, o que se apresenta por meio desse confronto é
uma necessária e incontornável transação permanente (uma aporia) entre “dois lados”
da razão, que Derrida assim nomeia como o condicional e o incondicional, o cálculo e o
incalculável (2003, p. 208).
O seguimento da análise da conferência de Husserl permitirá a Derrida
descortinar o horizonte de questões que assim se apresentam. De fato, o diagnóstico
Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana
husserliano para a crise da razão – e, portanto, da Europa – aponta para uma saída, uma
saída “heróica”, um “heroísmo da razão”, “Fênix de uma nova interioridade de vida e de
uma nova espiritualidade”, que resgate a “essência do próprio Racionalismo” e desperte
a razão de sua “alienação/extraneação” (Veräusserlichung) no objetivismo e no
naturalismo (Husserl, p. 349). Com acuidade, Derrida questiona se esse “heroísmo da
razão” diz respeito à razão, e se a fé na razão “é, de ponta a ponta, uma coisa racional –
arrazoada ou razoável (raisonnée ou raisonnable)” (2003, p. 183). E a resposta é “sim”:
Por que esse heroísmo da decisão responsável permanece, para Husserl, um
heroísmo da razão? Não é porque a fé na razão superaria a razão. É porque a
razão teórica é antes de tudo e finalmente, para ele como para Kant, de ponta
a ponta, como tarefa prescritiva e normativa, uma razão prática, outros diriam
uma metafísica da vontade livre (2003, p. 184).
Ora, lembra Derrida, para Kant, a “subordinação da razão especulativa à razão
prática é uma hierarquia irreversível” na medida em que o que está em jogo é o
“interesse” da razão que, no caso da razão especulativa é apenas condicionado (nur
bedingt) enquanto que, no caso da razão prática, é incondicionado (unbedingt) (2003, p.
188). Para Derrida, a incondicionalidade é, portanto, como “última verdade de um
‘interesse da razão’”, o que une, de forma subordinada, a razão prática à razão teórica
(Derrida, 2003, p. 187). Nesse sentido, o tema da incondicionalidade surge duplamente
na conferência de Husserl: em primeiro lugar, na medida em que a função arcôntica do
filósofo é justamente marcada pela busca da “verdade incondicionada” (Derrida, 2003,
p. 187; Husserl, 2008, p. 326) e, em segundo lugar, porque a tarefa prescritiva da
filosofia como theoria é fundamentalmente uma práxis, cuja “razão de ser” é seu
próprio interesse incondicionado.
Essa análise da conferência de Husserl empreendida por Derrida tem assim o
objetivo de pontuar as questões e estruturas centrais do texto husserliano que assinalam
os tópicos que Derrida quer destacar na reflexão sobre a razão e seu devir. São assim
destacados, por um lado, o teleologismo marcante do idealismo transcendental e, por
outro, a incondicionalidade que o “sustenta”, tanto como “princípio absoluto da razão
pura” quanto como “última verdade de um ‘interesse da razão’” (Derrida, 2003, p. 187).
Em um resgate pontual de um “momento” que considera “quase inaugural” na
FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
República de Platão, a saber, o diálogo a respeito da “ideia do Bem” (idea tou agathou)
no Livro VI, Derrida aponta para a “filiação genealógica”, a “filiação panoramicamente
europeia e filosófica” (2003, p. 194), da questão da analogia, do incondicional
(anhypotheton), da causa suprema que dá o poder e a potência de conhecer, do poder
soberano tanto da ideia do Bem como do sol, que reinam, cada um sobre seu reinado
(mundo visível inteligível e mundo visível sensível), visando assim mostrar essa
indissociabilidade “estrutural”5 da filosofia (do entendimento que esta tem da
racionalidade) entre “a exigência de soberania em geral” e “a exigência incondicional
do incondicionado” – uma indissociabilidade que parece, diz Derrida, “para sempre
irredutível” (2003, p. 195).
Ora, é justamente essa aliança, essa configuração teleológica incondicionada que
Derrida quer questionar – e aqui cabe citá-lo mais longamente na exposição detalhada
do que propõe:
Tratar-se-á para mim de perguntar se, ao pensar o acontecimento/evento
(événement), o vir, o advir/futuro (avenir) e o devir (devenir) do
acontecimento, não é possível e em verdade necessário subtrair a experiência
do incondicional, o desejo e o pensamento, a exigência da
incondicionalidade, a própria razão e a justiça da incondicionalidade, a tudo o
que se ordena em sistema a esse idealismo transcendental e à sua teleologia.
Em outras palavras, se há uma chance de acordar o pensamento do
acontecimento incondicional a uma razão outra que não aquela da qual
acabamos de falar, a saber, a razão clássica do que se apresenta ou anuncia
sua apresentação segundo o eidos, a idea, o ideal, a Ideia reguladora ou, o
que aqui corresponde ao mesmo, o telos (2003, p. 189).
O que significa propor a dissociação dessas duas exigências da razão. Uma
dissociação que, pergunta-se Derrida, não seria justamente fiel “a um dos dois pólos da
racionalidade, a saber, a essa postulação de incondicionalidade”? (2003, p. 196). Em
nome de uma incondicionalidade radical, em nome da própria incondicionalidade, a
postulação de Derrida visa ao que, nesta associação entre a soberania e o incondicional
ainda permanece condicionado, a saber, à própria associação. Posição, portanto, que
corresponde, por assim dizer, a levar a sério a exigência de incondicionalidade de um
dos “pólos” da razão. Radicalizar e aprofundar o pensamento sobre esse “pólo”
5
O termo não é de Derrida.
Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana
consistirá então em pensar, “em nome da razão” (2003, p. 196), a possibilidade de
“distinguir, ali mesmo onde isso parece impossível, entre, de um lado, a compulsão ou a
auto-posição de soberania [...] e, de outro, essa postulação de incondicionalidade que se
encontra tanto na exigência crítica quanto na exigência [...] desconstrutora da razão”
(Derrida, 2003, p. 196).
Nesse sentido, Derrida propõe uma definição da “desconstrução”:
... a desconstrução, se algo assim existisse, seria a meu ver, antes de mais
nada, um racionalismo incondicional que não renuncia nunca, precisamente
em nome das Luzes por vir, no espaço a abrir de uma democracia por vir, a
suspender de modo argumentado, discutido, racional, todas as condições, as
hipóteses, as convenções e as pressuposições, a criticar incondicionalmente
todas as condicionalidades, inclusive aquelas que fundam ainda a ideia
crítica, a saber, a do krinein, da krisis, da decisão e do juízo binário ou
dialético (2003, p. 197).
Incondicionada passa a ser então a postulação da incondicionalidade, que leva a
uma crítica/desconstrução constante e atenta do que se constitui ou pode se constituir
em soberania. Soberania incondicionada do incondicionado – tal parece ser a proposta
da postulação derridiana, o que, evidentemente, se apresenta como um paradoxo, “tão
difícil ou improvável que pareça, tão im-possível até” (Derrida, 2003, p. 197). E por
isso Derrida enfatiza o fato de tratar-se de uma postulação e não de um princípio ou um
uma axiomática, já que a postulação é da ordem da demanda, do desejo ou da exigência
imperativa, e não da ordem da “autoridade principesca e potente do primeiro, da arkhè
ou da presbeia” (no caso do “princípio”), nem diz respeito a uma “escala comparativa e
logo calculável dos valores e avaliações” (como é o caso de uma axiomática) (2003, p.
196).
O que está em jogo é um “outro pensamento do possível [...] e de um impossível que não seria apenas negativo” (Derrida, 2003, p. 197). Neste sentido, a
questão passa justamente por repensar o “acontecimento”, a ordem do possível e do
impossível, o advir do que vem6, em sua imprevisibilidade. Im-previsibilidade que
O que, em francês, encontra uma “ligação semântica” particular, parcialmente traduzível para o
português, entre futuro, devir, vir, vinda, acontecimento/evento, advento (avenir, devenir, venir, venue,
événement) (Derrida, 2003, p.197).
6
FRAGOZO, F. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
aponta para o caráter de algum modo visível, pré-visível do que vem, que, em sua prévisão a partir de algum horizonte que já o torna presente, apresentável, o neutraliza em
sua irrupção (Derrida, 2003, p. 197). E Derrida acrescenta: “Onde quer que haja
horizonte e onde se vê vir a partir de uma teleologia e do horizonte ideal [...], essa
idealidade terá antecipadamente neutralizado o acontecimento” (2003, p. 198).
Ora, se é mister considerar que “não haveria nem ciência, nem linguagem, nem
técnica [...], nem experiência em geral, sem a produção de alguma idealidade” (Derrida,
2003, p.198), a questão é justamente pensar essa “neutralização” do acontecimento que
toda idealidade realiza, pois um “acontecimento” com esse nome é, para Derrida, o
“outro” impossível, imprevisível, inapresentável – monstruoso, portanto. E, propõe
Derrida, o que pode de algum modo ser reapropriado (a questão é justamente o
“próprio”) por uma idealidade teleológica, por uma narrativa que dê continuidade ao
que “aconteceu”, não seria de fato um “acontecimento”: esse é inapreensível e
inapropriável e, assim, diz Derrida, “um acontecimento ou uma invenção são apenas
possíveis como im-possíveis” (2003, p. 198).
O que Derrida tem em vista nessa questão é tanto a necessidade de pensar o
“acontecimento” do “outro” inapropriável, quanto o perigo de que a pesquisa e o
questionamento se vejam submetidos e submissos a algum controle político, militar,
técnico-econômico ou capitalístico – a relação entre saber e poder se apresentando, para
Derrida, com uma estanqueidade intransponível:
do mesmo modo que nenhum poder [...] saberá justificar com razão o
controle ou a limitação de uma pesquisa científica, de uma busca da verdade,
de um questionamento crítico ou desconstrutivo [...], tampouco nenhum saber
enquanto tal, nenhuma razão teórica [...] poderá fundar uma responsabilidade
e uma decisão de modo contínuo” (2003, p.199).
Para Derrida, uma decisão enquanto tal, digna desse nome, apenas engaja a
responsabilidade na medida em que não pode ser programada ou prevista. Ela tem
sempre algo de “louco”, o que, diz Derrida, “estou consciente, comporta um risco muito
grave” (2003, p. 199). E, para Derrida, “o verdadeiro local de um problema da razão
hoje” é o da técnica, do “próprio do homem”, do “próprio do corpo vivo” (2003, p. 200)
Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana
e a “metonímia” contemporânea de “todas as urgências que nos assaltam” (Derrida,
2003, p. 200) é justamente a questão da clonagem – evidente local no qual a questão da
razão, do acontecimento, do outro, do possível e do impossível, do poder, da decisão e
da responsabilidade se colocam à prova, de modo radical.
E se a questão sobre a clonagem mobiliza toda a conceituação proposta na
conferência, toda a revisão conceitual, toda a racionalidade e a razoabilidade da razão –
que, para não se perder de si mesma, não se perder a ponto de ter apenas a sua honra
salva, deve, tal qual um imperativo, ser racional e razoavelmente repensada –, é porque
ela mobiliza, em modo paroxístico, a reflexão sobre o acontecimento, o outro e o devir,
de um modo tal que a associação estrutural entre soberania e incondicionalidade,
marcante na exigência racional da filosofia, a rigor, não permite pensar. O que é, sem
dúvida, como aponta Derrida, o que precisa urgentemente ser pensado.
Referências bibliográficas:
DERRIDA, J. “Le ‘monde’ des Lumières à venir (Exception, calcul et souveraineté)”.
In: Voyous – Deux essais sur la raison. Paris: Galilée, 2003.
HUSSERL, E. “A crise da humanidade européia e a filosofia”. In: A crise das ciências
européias e a fenomenologia transcendental – uma introdução à filosofia
fenomenológica. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Phainomenon/Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, 2008. Disponível em
http://www.lusosofia.net/textos/husserl_edmund_crise_da_humanidade_europeia_filosofia.pdf
KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Relações, paixões e artifícios:
Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
Guilherme Müller Junior1
Resumo: O empirismo de Hume não se esgota em uma teoria do
conhecimento, nem em um ceticismo. O Tratado da Natureza Humana
apresenta uma fulguração conceitual e uma imagem do pensamento que estão
para além das determinações que a história da filosofia lhes atribuiu. Seu
empirismo se desenvolve no plano problemático das relações. Hume
desenvolve um complexo conceitual que se articula em três momentos
coexistentes: relações, paixões e artifícios. Na confluência, ou transfusão, das
relações e das paixões encontra-se a dinâmica dos artifícios, da invenção.
Palavras-chave: Empirismo; relações; paixões; artifícios; invenção.
Abstract: The Hume’s empiricism can not be reduced to either a theory of
knowledge or to skepticism. A Treatise of Human Nature presents a conceptual
fulguration and an image of thought that lie beyond the place it traditionally
occupies in the history of philosophy. His empiricism unfolds on the
problematic realm of relations. Hume engenders a conceptual complex that is
then articulated around three coexistent points, namely: relations, passions, and
artifice. It is in the confluence, or transfusion, of relations and passions that the
dynamics of artifices, of inventions, is to be found.
Key-words: Empiricism; relations; passions; artifices; invention.
O que é a filosofia de David Hume? Embora seja simples essa pergunta não é
fácil de ser respondida, ou pelo menos não deveria ser. É hábito associar o nome de
Hume ao ceticismo e ao empirismo entendido como teoria do conhecimento. É tal
hábito legítimo? Em quê ele se sustenta? Tanto no caso do ceticismo quanto do
empirismo entendido como teoria do conhecimento, há razões suficientes para se
sustentar tal hábito, sobretudo razões de História da Filosofia. Entretanto, como se sabe,
a História da Filosofia não cessa de colocar referenciais, eixos de orientação e de
filiação para fixar o devir quase sempre difuso do pensamento. Desse modo, se
seguirmos o devir do pensamento, no lugar da História da Filosofia, seremos levados a
entender que a filosofia tem o seu próprio devir, faz uma história que não se confunde
1
Guilherme Müller Junior é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: guilherme.m.jr@hotmail.com
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
com a História que dela fazem. No lugar de uma pergunta sobre a definição da filosofia
de Hume, propõe-se aqui a seguinte pergunta: como funciona o seu pensamento em
função do problema que ele coloca? É assim que pretendemos nos colocar no devir
filosófico propriamente humeano, ao invés de nos perdermos em falsos problemas
históricos que lhes são estranhos. Não encontramos outro caminho, já que Hume,
extremamente sensível ao seu tempo, parece ter escrito o Tratado da natureza humana
(1739-1740) exasperadamente contra o seu tempo2. Para abordarmos sua filosofia é
necessário acompanhar as linhas do seu movimento a partir do campo problemático que
traça e de onde provém. Ao fazer isso pretendemos nos distanciar das interpretações
hegemônicas que Hume sofreu, bem como dos hábitos que condicionam as atuais
interpretações. Atentando para seu campo problemático, para aquilo que ele reivindica
por direito, veremos emergir uma filosofia singular que não se define como um
ceticismo nem como um empirismo vulgar entendido como teoria do conhecimento.
Hume, com efeito, parece não se preocupar tanto com o conhecimento e seus problemas
(origem, possibilidade e legitimidade), mas sim com o problema das relações (origem,
possibilidade e legitimidade) e isso muda tudo. Tentaremos mostrar neste artigo as
razões que nos levaram a assim entendê-lo3.
Hume é um desses poucos pensadores que define todo um pensamento, que
concentra toda uma filosofia, em apenas uma frase: “O homem é uma espécie
inventiva” (Hume, 2001. p. 524). Essa assertiva soa como conclusiva, quase no final do
seu texto, mas ressoa também desde o início, como se estivesse sempre presente, como
2
É bem conhecida a sensação de estranheza e antipatia de Hume em relação ao seu tempo, e do seu
tempo com ele: “Em um primeiro momento, sinto-me assustado e confuso com a solidão desesperadora
em que me encontro dentro da minha filosofia; imagino-me como um monstro estranho e rude que, por
incapaz de se misturar e se unir à sociedade, foi expulso de todo relacionamento com os outros homens e
largado em total abandono e desconsolo. De bom grado, aproximar-me-ia da multidão à procura de abrigo
e calor; mas não consigo convencer a mim mesmo a me juntar a ela, tendo tal deformidade. Clamo a
outros para que se juntem a mim, para formarmos um grupo à parte; mas ninguém me dá ouvidos. Todos
mantêm distância, temendo a tempestade que se abate sobre mim de todos os lados. Expus-me à
inimizade de todos os metafísicos, lógicos, matemáticos e mesmo teólogos; como me espantar, então,
com os insultos que devo sofrer? Declarei que desaprovo seus sistemas; como me surpreender se
expressarem seu ódio a meu próprio sistema e minha pessoa?” (Hume, 2001, pp. 296-297). Sabe-se que a
publicação do Tratado foi um completo fracasso, pois quando não ignorado foi muito mal recebido. Para
adequá-lo ao seu tempo, Hume publicou três obras distintas intituladas Investigações (sobre o
entendimento humano, sobre as paixões e sobre os princípios da moral), correspondentes às três partes do
Tratado (do Entendimento, das Paixões e da Moral). Contudo, com o objetivo de tornar sua filosofia
acessível ao seu tempo, Hume praticamente reescreveu todo o Tratado nessas três obras, sacrificando
parte da riqueza e da potência da sua obra original.
3
Este artigo expõe, em linhas gerais, os problemas e as hipóteses de nossa Dissertação de Mestrado em
Filosofia intitulada Relações, paixões e artifícios. O empirismo de David Hume, defendida na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, em outubro de 2003.
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
um grito mudo que inspira o seu pensamento e que aguarda apenas um momento para
vir à tona. Eis o que Hume reivindica de direito ao longo de todo o Tratado: a invenção.
Desde o início, até o final, a problemática que ele enfrenta e desenvolve é tão somente
essa: o homem como espécie inventiva. Não é o homem meramente um sujeito do
conhecimento, mas antes uma espécie inventiva. Esse grito projeta uma imagem do
pensamento, um modo singular de pensar que inspirará sua criação conceitual. É
precisamente nesta imagem que nos localizaremos, bem como nos problemas e nas
questões por ela suscitadas. Seu empirismo se definirá, assim, pelo desenvolvimento
dessas questões, pelas implicações desses problemas.
Cabe, então, para além de um mero comentário ou análise, tirar conseqüências
dessa filosofia para o pensamento; ver, para além dos preconceitos da História da
Filosofia, o que pode essa filosofia. É exatamente neste ponto que vemos a precisão dos
trabalhos de Gilles Deleuze sobre Hume, com os quais nos aliamos. Deleuze não o trata
como mais um filósofo fixado ou localizado cronologicamente na história da filosofia,
mas procuram entendê-lo precisamente onde a História da Filosofia o impediu, o
apagou; precisamente ali onde ela não foi capaz de acompanhá-lo.
A História da Filosofia mais ou menos absorveu, digeriu o empirismo. Ela o
definiu numa relação de inversão com o racionalismo: haverá ou não nas
idéias alguma coisa que não esteja nos sentidos ou no sensível? Ela fez do
empirismo uma crítica do inatismo, do a priori. Mas o empirismo sempre
teve outros segredos. E são esses que Hume eleva ao mais alto grau, que
exibe em plena luz, em sua obra extremamente difícil e sutil. (Deleuze, 1974.
p. 59)
O empirismo de Hume, tentaremos mostrar, não se define inteiramente como uma teoria
do conhecimento. Não há dúvidas de que o problema do conhecimento se colocará.
Entretanto, não é esse a verdadeira questão dessa filosofia, pois mesmo esse problema é
consequência de um outro, ainda anterior, que permaneceu ignorado. Foi precisamente o
plano problemático que Hume traçou, e de onde provém o seu empirismo, que a
História da Filosofia não acompanhou, ou antes, o substitui por falsos problemas.
Veremos se o problema das invenções, no lugar do conhecimento, pode nos levar a
entender esses outros segredos.
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
O empirismo só é definível a partir do campo problemático que ele instaura.
Esse campo problemático caracteriza-se, em grande parte, pelo problema das relações.
O empirismo humeano não esgota seus contornos em uma “origem sensível das ideias”.
Sem dúvida nenhuma as ideias derivam da impressão sensível4, da sensibilidade, mas o
que dizer das relações? Hume, com vistas no problema das relações, subdivide as
percepções do espírito (impressões e ideias), em simples e complexas5. As impressões e
ideias simples são aquelas que não admitem nenhuma separação ou distinção, pois são
consideradas unidades em si mesmas, iguais ao simples dado sensível. As ideias
complexas são aquelas que admitem separação e distinção na medida em que são
compostas de ideias simples. As impressões e ideias complexas são implicações ou
operações realizadas a partir das ideias simples, tais como a união de uma ou mais
desses termos simples6. É assim que Hume começa a vislumbrar o problema das
relações, ao constatar que as impressões e ideias complexas são derivadas de operações
a partir das ideias simples. O cerne do problema das relações está, portanto, nessas
operações a partir das ideias simples, isto é, no momento em que as ideias simples se
tornam complexas, compostos de relações. A simplicidade de uma ideia consiste na sua
indivisibilidade, e tal propriedade resulta da origem sensível da ideia. Impressões
simples só podem produzir ideias simples. Ora, uma ideia simples é indivisível
justamente por resultar de uma impressão sensível, que é simples por natureza7.
Impressões de sensações produzem apenas ideias simples, em virtude da natureza das
sensações. Assim sendo, as impressões de sensação conferem simplicidade às ideias e
como tais são as primeiras ideias, as mais originais. Com efeito, Hume dedica poucas
passagens sobre a “origem sensível das ideias”, sobre a distinção simples entre
impressões e ideias. Tal distinção se complica, e torna-se complexa, na medida em que
ele encaminha sua investigação em direção às relações. Nessas primeiras distinções,
entre impressões e ideias simples, Hume descreve apenas a origem sensível do espírito,
a origem dos dados que compõem o estado primitivo do espírito. Denominamos esse
momento de primeiro sentido da experiência, a experiência entendida como
sensibilidade pura e simples.
4
Cf. Hume, 2001. p. 25.
Cf. Ibid. p. 26.
6
Cf. Ibid. pp. 27-28.
7
Cf. Ibid. pp. 26-27.
5
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
O que dizer das relações? O espírito, nesse primeiro sentido da experiência, é
precisamente igual ao dado sensível, ele não passa de uma coleção de ideias distintas,
fluxos de percepções sem ordenação ou regularidade, nada além ou aquém. A
sensibilidade, o primeiro sentido da experiência, só nos fornece o dado atual, aquilo que
está imediatamente dado e presente aos sentidos, ou seja, impressões e ideias simples.
Vejamos um célebre exemplo8: o sol nascerá amanhã? Não encontramos na impressão
ou ideia de “hoje”, a impressão ou ideia de “amanhã”. Sim, pois o “amanhã” não está
dado “hoje”. Dizer de “hoje” “amanhã” constitui uma ultrapassagem do que está
atualmente dado pela sensibilidade (“hoje”), no entanto, não se cessa de fazer isso. Ora,
é precisamente isso que faz das relações um problema. A relação de ambos os termos
não está dada na imediatez da sensibilidade, portanto não nasce nela. Se não há nas
ideias simples nada além da experiência sensível, das impressões de sensação, é
justamente porque elas são simples átomos sensíveis. Assim sendo, as relações não
podem ser derivadas desse puro dado sensível, desse primeiro sentido da experiência, já
que as impressões simples só produzem ideias simples. Mas é precisamente aí que as
relações encontrarão sua matéria prima, seu meio de proveniência, na medida em que as
ideias complexas são compostas de ideias simples. As relações nascem em outro lugar,
provém de uma outra experiência.
O lugar, esse meio de proveniência das relações, Hume o nomeia de
imaginação9. Esse sim é, talvez, o momento mais importante desse empirismo,
precisamente onde ele traçará seu campo problemático e de onde partirá. As ideias,
todas elas, encontram-se na imanência da imaginação, onde algo de fato começa a
acontecer. Nela as ideias são absolutamente livres, exteriores e radicalmente diferentes
entre si. A liberdade da imaginação se expressa por uma total ausência de hierarquia
entre as ideias, por uma total neutralidade. Não há nenhuma ideia que seja mais
compreensiva, extensiva ou profunda, já que todas gozam da inocência que define o
estatuto da imaginação10. É assim que nela todas as ideias simples podem se separar ou
8
Cf. Hume, 2004. p. 54.
Cf. Ibid. pp.32-35.
10
Logo no início do Tratado Hume estabelece a primeira diferença entre a imaginação e a memória.
Enquanto a memória é a potência da ideia de se repetir no espírito conforme o seu vínculo com a
impressão que lhe deu origem; a imaginação, por sua vez, é a potência da ideia de se repetir em si mesma,
sem nenhum vínculo. Enquanto que as ideias da memória são extensões de uma impressão originária, as
ideias da imaginação são puras ideias em si. Na imaginação as ideias perdem toda a extensão, pois nela as
ideias são puras, desvinculadas de sua impressão correspondente, livre e neutra, esquecida da sua origem,
“tornando-se uma perfeita ideia”. Hume, 2001. pp. 32-33.
9
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
se unir a todas as outras, ao acaso, na medida em que nenhuma ideia implica ou
compreende uma outra, necessariamente11. Qualquer mundo é aí possível, pois já que as
ideias não se unem por necessidade ou natureza, pela mesma razão elas não se excluem.
Eis a neutralidade que define a imaginação, cujo princípio instaurador é o da diferença e
exterioridade radicais. Hume assim o estabelece:
Em primeiro lugar, já observamos que todos os objetos diferentes são
distinguíveis, e que todos os objetos distinguíveis são separáveis pelo
pensamento e imaginação. Podemos aqui acrescentar que essas proposições
são igualmente verdadeiras em seu sentido inverso: todos os objetos
separáveis são também distinguíveis, e todos os objetos distinguíveis são
também diferentes. (Hume, 2001. p. 42. Grifos nossos).
As consequências disso para o pensamento das relações são profundas. É na
imaginação que as ideias ganharão um movimento próprio, é nessa imanência de pura
diferença que as ideias se encontrarão. A imaginação é concebida como uma potência
das ideias de se unir e de se separar de forma absolutamente livre, ela é definida como a
imanência dessa pura diferença, e o seu princípio não é outro senão o da diferença
radical12. Deleuze encontrou nesse princípio a força singular do empirismo de Hume:
“A originalidade de Hume, uma das originalidades de Hume, provém da força com que
afirma: as relações são exteriores aos seus termos”
13
. Com efeito, as ideias são
exteriores entre si, já que são distinguíveis e separáveis na imaginação. O princípio da
diferença das ideias instaura a exterioridade (“... já observamos que todos os objetos
diferentes são distinguíveis, e que todos os objetos distinguíveis são separáveis...”), e
consequentemente a liberdade da imaginação. É na imaginação que as ideias se
relacionam de forma livre e delirante, é a partir da exterioridade das ideias que as
relações se compõem. Isso implica em dizer que as relações não estão dadas desde
sempre, já que as ideias são exteriores entre si; assim como também não são fornecidas
pela experiência sensível, pois estas só fornecem ideias simples. As relações, portanto,
só podem ser derivadas de um determinado processo na imaginação, no modo como se
encontram e se experimentam na exterioridade que passa entre elas. A exterioridade das
11
Cf. Ibid. p. 34-35
Cf. Hume, 2001. p. 34.
13
Deleuze, 1974. p. 60. Encontramos uma análise mais detalhada a respeito da exterioridade das relações
em Empirismo e Subjetividade. pp. 110-113.
12
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
ideias instaura, desse modo, a possibilidade da experiência das próprias ideias, é ela que
possibilita o processo de composição das relações. Assim, a pergunta empirista estará
disposta nos seguintes termos: dada a possibilidade das relações na exterioridade das
ideias, como são elas compostas? Que processo é esse que tem como meio de
proveniência uma imanência de diferença radical, a imaginação? Como da diferença e
exterioridade das ideias emergem as relações? É desse modo que se define o problema
das relações, e é essa problemática que confere ao empirismo de Hume uma imagem
singular do pensamento, cujo princípio é o da diferença e exterioridade das ideias. Essa
imagem se expressa por um modo próprio de pensar as relações.
Na filosofia de Hume a relação não interioriza os termos nela dispostos, pois é
preciso lembrar que, embora relacionadas, as ideias permanecem distinguíveis e
separáveis na imaginação14. A relação não se encontra interiorizada em nenhum dos
seus termos, bem como não decorre da natureza desses termos; ela se estabelece na
exterioridade, fora dos termos, e lá permanece. Desse modo, a relação não é constituída
pela natureza ou essência dos termos, nem é composta por um termo em particular. A
relação não depende, assim, dos seus respectivos termos, ela não se constitui na
interiorização ou na subordinação de um pelo outro, dado que um termo não é interior
ao outro. No empirismo de Hume não há termo que seja mais compreensivo, extensivo
ou mais profundo, de modo que se possa interiorizar ou subordinar um termo por outro.
Os termos, ou seja, as ideias, não possuem extensão lógica na imaginação15. Assim, um
termo não depende nem deriva necessariamente do outro, e ambos (uma relação) não
constituem uma interioridade no todo que formam nem na ideia (complexa) da qual
participam16. Pode-se dizer, nesse sentido, que as ideias são essências vazias de
atributos, já que nelas não estão inscritos as suas respectivas naturezas, segundo as quais
as relações deveriam se constituir. É necessário afirmar, portanto, que as ideias da
imaginação são essências neutras. Enfim, neste modo de pensar não há termo que seja
responsável pela relação, pela interioridade ou necessidade de uma relação. A
imaginação, não se pode esquecer, neutraliza as ideias colocando-as em um plano
horizontal, sem hierarquia. As ideias, os termos, se encontram na exterioridade que
14
Conforme aquilo que dispõe o princípio da diferença e exterioridade das ideias que instaura a
imaginação. Cf. Hume, 2001, p. 42. A imaginação é uma potência ilimitada de separação e união das
ideias. Cf. Ibid. pp. 34.35.
15
Ver nota 10. Hume estabelecerá outras distinções entre memória e imaginação derivadas da primeira.
Cf. Ibid. Livro 1, Parte 3, Seção 5.
16
Cf. Deleuze, 1974. p. 60.
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
passa entre elas, em um plano neutro. A relação não está nos termos, não é dada pelos
termos, ela está fora deles. É tudo o que decorre do princípio inegociável de distinção e
separabilidade das ideias, que instaura a imaginação como um plano de experiência das
ideias.
Esse empirismo apresenta assim a irredutível diferença, heterogeneidade e
exterioridade dos termos, e consequentemente a irredutível exterioridade das relações,
pois essas não estão dadas nos termos, não estão prontas no mundo. Elas não são
objetos de conhecimento ou de desvelamento. As relações são produtos de um processo
preciso, de um devir, pois se os termos são exteriores e heterogêneos, se eles não
derivam ou dependem mutuamente uns dos outros, as relações entre eles não estão
dadas, não estão prontas. As relações serão, portanto, aquilo que está por ser produzido,
aquilo que está em devir. É exatamente isto que configura um problema: as relações não
estão dadas previamente no mundo, seja esse epistemológico, estético, moral, cultural,
político ou jurídico. Ora, um mundo é composto por relações, porém, estas mesmas
relações não estão dadas desde sempre, não esperam ser desveladas ou conhecidas,
como se estivessem inscritas na natureza ou essência das coisas, sejam elas subjetivas
ou objetivas. Desse modo, o problema irá se constituir na tarefa de produzi-las, ou,
ainda, de inventar um mundo. As relações, um mundo, são constituídas a partir da
exterioridade dos termos, são produtos de um processo: a invenção. A diferença e
exterioridade das ideias e dos termos inspiram a necessidade de inventar, de compor as
relações. Esse processo inventivo é objeto de investigação da filosofia de Hume e ele a
descreve ao longo de todo o Tratado. Ele procura descrever o devir prático desse
processo, a dinâmica dos elementos que a compõem. Hume procura fazer uma ciência
desse processo ao qual nomeia de ciência da natureza humana 17.
A filosofia de Hume, o seu empirismo, procura desenvolver uma ciência do
homem, mas sob condições muito especiais. É necessário precisar, ainda que de forma
incipiente, o sentido de natureza humana em Hume. Essa não desempenha nenhum
papel a priori, de constituinte e condicionante de si mesma, tal como uma substância
subjetiva. Ela própria é constituída, é produto daquele processo inventivo acima
referido. Melhor dizendo: ela é o próprio processo, enquanto potência inventiva. A
ciência da natureza humana não pretende, assim, expor os atributos do homem, o seu
17
Cf. Hume, 2001. Introdução e p. 305.
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
ser, o a priori que o constituiria, mas os movimentos próprios que o constituem como
processo. Essa filosofia, nesse sentido, procura descrever o processo das invenções, a
dinâmica e o plano problemático onde esse processo se instaura. Hume não procura
investigar essa natureza em si, mas os princípios que constituem o processo dessa
natureza, que produzem essa natureza. Esses princípios não fundam uma natureza
humana prévia, não são princípios de uma subjetividade, na medida em que, em si
mesmos, não constituem uma natureza18. Eles constituem, antes de qualquer coisa,
princípios imanentes de uma experiência na qual emerge a própria subjetividade. Com
efeito, a própria subjetividade, bem como a natureza humana, não constituem uma
anterioridade, mas se constituem como produtos ou, mais precisamente, como processo.
Não percamos de vista a frase de Hume, na qual afirma que “o homem é uma espécie
inventiva” (Hume, 2001. p. 524). Hume descreve a natureza humana naquilo que lhe é
peculiar, a potência inventiva, inventiva inclusive e especialmente de sua própria
natureza. Eis o que caracteriza o problema essencial desenvolvido no Tratado.
Como já foi dito, as invenções se constituem na produção das relações, na
composição das relações. Sendo as relações o produto de um processo preciso, e
considerando ainda que não decorrem da natureza dos termos, elas são, antes de tudo,
implicações de outros princípios19. A ciência da natureza humana deverá expor o
funcionamento desses princípios, o efeito desses princípios, a saber, a composição
mesma das relações. A esses princípios Hume nomeia de “princípios de conexão ou
associação” (Hume, 2001. p. 34-35), aos quais ele dedica o primeiro livro do Tratado,
onde desenvolve a dinâmica das relações e toda a sua problemática. Ele elenca três
formas possíveis de associação: causalidade, semelhança e contigüidade. Elas
constituem as possibilidades de regulação, os modos possíveis de conectar uma ideia a
outra, pois uma relação é aquilo que nos faz passar ou conectar uma ideia a outra, o que
nos faz associar uma impressão ou ideia dadas atualmente pelos sentidos com uma outra
impressão ou ideia não dadas. Tais princípios estabelecem as formas segundo as quais a
imaginação pode ser regrada, retirada do seu estado primitivo de indeterminação e
neutralidade, estabelecem uma ordem que não é da natureza da imaginação. No entanto,
nesse primeiro livro, Hume trabalha apenas com funcionamento lógico das relações,
Deleuze assim coloca a questão de Hume: “A questão de que Hume tratará é a seguinte: como o
espírito devém uma natureza humana?” (2001, p. 12).
19
É esse o entendimento de Deleuze. Cf. 2001, p. 13-18.
18
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
com as condições lógicas de possibilidade das relações. Nesse primeiro momento é
apresentado apenas o sistema do Entendimento. Tal sistema e os princípios de
associação só compõem o momento lógico da composição das relações, conferem
apenas a forma lógica às relações. Entretanto, a filosofia de Hume não se esgota em seu
primeiro livro, pois seu empirismo não se define apenas pelo funcionamento lógico das
relações no sistema do Entendimento. Embora seja o livro mais comentado, por ter
desenvolvido problemas que influenciou os movimentos da História da Filosofia, como
a sua famosa crítica à ideia de causalidade e de conexão necessária, ele não define
inteiramente o empirismo humeano. Essa limitação hegemônica constitui a linha
interrompida do empirismo. A filosofia de Hume ficou, desse modo, limitado apenas ao
seu primeiro momento, localizado e definido pelo sistema do Entendimento e seus
princípios. Porém, como bem disse Deleuze20, o empirismo sempre guardou outros
segredos, e são esses segredos que Hume expõe; são essas novas potências que ele
desenvolve e que fazem do empirismo uma filosofia singular. Com efeito, Hume está
preocupado com todos os movimentos das invenções, com todos os elementos que
compõem a dinâmica das invenções.
O primeiro livro apresenta as condições lógicas de possibilidade das relações,
mostra como toda relação é formalmente composta. O sistema do Entendimento expõe
tão somente o funcionamento dos princípios lógicos das relações, mostra como elas são
constituídas apenas quanto à forma, como as relações, em geral, são constituídas. Porém
o Entendimento é incapaz de explicar como elas se constituem em particular. Ele não
constitui, no seu funcionamento, o conteúdo qualitativo das relações, ou seja, o sentido
próprio de cada relação. O Entendimento é incapaz de expor a diferença, a
singularidade de uma relação. A amplitude da composição das relações não encontra o
seu acabamento apenas no seu funcionamento lógico, nem de longe. Desse modo, cabe
a outro elemento e a outros princípios que não os do Entendimento a tarefa de dar um
sentido às relações.
Eis que se apresenta o segundo momento da filosofia de Hume: os princípios da
paixão. A esse tema Hume dedica o segundo livro do Tratado intitulado “Das Paixões”.
Cabe às Paixões, aos movimentos passionais, a tarefa de conferir um sentido às relações,
de instaurar um valor que singulariza uma relação. É nos princípios das Paixões que as
20
Cf. Deleuze, 1974. p. 59.
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
relações são estendidas para além da sua forma lógica e impregnadas por um conteúdo
singular. Os princípios do Entendimento tornam as relações possíveis apenas quanto à
forma, e os princípios da Paixão conferem uma diferença, um sentido que lhe é
essencial. A essência de uma relação não está no início, tal como já visto, mas no meio,
no processo. Isso decorre do fato de que o sentido de uma relação não se explica
suficientemente pelos princípios do Entendimento, ou seja, tais princípios não explicam
por que uma ideia se relaciona especialmente com uma outra. A razão e o sentido de
uma relação não estão somente na sua forma lógica. Limitar-se ao Entendimento é
desconhecer a grandeza e a força do empirismo humeano.
As Paixões funcionam qualitativamente, elas instauram qualidades às relações.
Veremos esses movimentos na dinâmica relacional das paixões com os princípios de
associação, na qualificação das associações pelas paixões:
Os princípios que favorecem a transição entre as ideias concorrem aqui com
os que agem sobre as paixões; e, unindo-se em uma única ação, os dois
conferem à mente um duplo impulso. A nova paixão, portanto, deve surgir
com uma violência proporcionalmente maior, e a transição até ela deve se
tornar igualmente mais fácil e natural. (Hume, 2001. p. 318.Grifos nossos)
Ambos os princípios se “transfundem”, para usar o mesmo termo de Hume21. O
duplo impulso do qual Hume nos fala é essa transfusão, as atualizações lógicas do
entendimento atravessados pelas paixões. É esse movimento duplo dos princípios de
associação e das paixões que expõe a dinâmica própria das invenções, é ele que compõe
a preocupação central do empirismo de Hume. Essa filosofia só pode ser compreendida
nesse movimento duplo, no jogo do Entendimento com os movimentos passionais. É
apenas nessa dinâmica que a composição das relações encontra inteiramente o seu
acabamento, o seu sentido. Hume é ainda mais explícito:
(...) o que constitui uma clara evidência de que existe uma transição de afetos
juntamente com a relação de ideias, já que toda a mudança na relação produz
uma mudança proporcional na paixão. Assim, uma parte do sistema anterior,
concernente à relação de ideias, é uma prova suficiente da outra parte,
concernente à relação de impressões; ela própria está fundada de maneira tão
21
Cf. Hume, 2001. p. 324.
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
evidente na experiência que seria perda de tempo fornecer provas adicionais.
(Hume, 2001, p. 340. Grifos nosso)
É preciso frisar que toda ideia deriva de uma impressão correspondente, e tais
impressões, como bem estabelece Hume, são também paixões22. Desse modo, toda e
qualquer ideia, seja simples ou complexa, de sensação ou de relação, deriva de uma
paixão correspondente. As ideias, sejam elas quais forem, são imagens das impressões,
das paixões. Só há ideia em razão das paixões. As relações de ideias se constituem
naquele duplo impulso, são mistos lógico-passionais, pois ambos os princípios se
auxiliam mutuamente. Como vimos na passagem acima, em toda relação de ideias está
implicado uma relação de paixões. Os princípios de associação e de paixão constituem
assim séries convergentes. Esta convergência constitui a prática das relações, pois só há
relação quando as paixões se irradiam na associação lógica dos princípios do
Entendimento, e estes, por sua vez, expressam as paixões. Ambos os princípios se
“transfundem”, implicando relações ordenadas e qualificadas que definem a natureza
humana:
A natureza humana se compõe de duas partes principais, requeridas para
todas as suas ações, ou seja, os afetos e o entendimento; e certamente os
movimentos cegos daqueles, sem a direção deste, incapacitam o homem para
a sociedade. (Hume, 2001.p. 533)
Nesse jogo, ou nessa dança, relações são produzidas, mundos são inventados. É
esse jogo e essa dança, e não outros, que esse empirismo pretende jogar e dançar. Qual é
o cenário de tal jogo e de tal dança? Qual é a atmosfera desse movimento duplo? Essas
questões se referem ao plano de experiência no qual as relações são compostas. Essa
experiência, em Hume, não se localiza nem se desenvolve na subjetividade, ou na
objetividade, menos ainda na correlação de ambos. É precisamente aí que Hume se
diferenciará do empirismo ordinário entendido como teoria do conhecimento, já que
sujeito e objeto não são pressupostos de sua filosofia, pois basta atentar para sua crítica
“As percepções que entram com mais força e violência podem ser chamadas de impressões; sob esse
termo incluo todas as nossas sensações, paixões e emoções, em sua primeira aparição à alma. Denomino
ideias as pálidas imagens dessas impressões no pensamento (...)”. (Hume, 2001. p. 25). Sobre a
anterioridade das impressões: Cf. Ibid. p. 28, 29 e 31.
22
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
à identidade pessoal e à existência externa 23. A experiência das relações, o plano no
qual o duplo movimento as constituem é, uma vez mais, a imaginação, onde tudo
encontra seu solo de instauração24. É o que se passa a investigar.
Hume inventa uma filosofia das ficções. Libera e instaura um plano ficcional
para o pensamento. O mundo nunca foi tão povoado e impregnado pela imaginação.
Hume constitui o solo do pensamento e da filosofia com toda a potência ficcional da
imaginação.
(...) consideremos o caso de um homem que se encontra dentro de uma gaiola
de ferro pendente de uma alta torre. Ao olhar para o precipício embaixo dele,
esse homem não pode se impedir de tremer, embora saiba que está
perfeitamente seguro e que não cairá, pois tem experiência de que o ferro que
o sustenta é sólido, e as ideias da queda, dos ferimentos e da morte derivam
somente do costume e da experiência. (Hume, 2001. p. 181)
Eis um exemplo do movimento duplo, do duplo impulso. Encontramos na
passagem acima, talvez, toda a inspiração empirista da filosofia de Hume. Inspiração
essa que implica na instauração de um plano, ou de um meio de experiência, onde
confluem duas séries de princípios: os princípios de associação e os da paixão. Essas
duas séries de princípios constituem dois sistemas distintos: o sistema do entendimento
e o das paixões. Embora distintos ambos são confluentes, ou análogos nas palavras de
Hume25. Mesmo separados e constituindo dois sistemas distintos, entendimento e
paixão coexistem, compondo um único movimento. Devemos considerar esse duplo
movimento do entendimento e das paixões como sendo unívoco e simultâneo. A
continuação da citação anterior mostrará esse movimento com mais detalhe:
As circunstâncias da altura e da queda têm tal impacto sobre esse homem que
sua influência não pode ser destruída pelas circunstâncias contrárias da
sustentação e da solidez, que entretanto deveriam dar a ele uma perfeita
segurança. A imaginação se deixa levar por seu objeto e desperta uma paixão
proporcional a este. A paixão incide novamente sobre a imaginação e aviva a
23
Cf. Ibid. Livro I, Parte II, Seção VI e Parte IV, Seção VI.
“A memória, os sentidos e o entendimento são todos, portanto, fundados da imaginação, ou na vividez
de nossas ideias”. (Hume, 2001. p. 298).
25
“O mais notável de tudo isso é que esses fenômenos confirmam fortemente o sistema anterior,
concernente ao entendimento, e por conseguinte também o sistema presente, concernente às paixões – já
que os dois são análogos”. (Ibid. p. 354. Grifos nosso).
24
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
ideia. Essa ideia vívida exerce uma nova influência sobre a paixão,
aumentando sua força e violência. Dessa maneira, a fantasia e os afetos,
sustentando-se mutuamente, fazem que todo o conjunto tenha uma grande
influência sobre ele. (Hume, 2001. p. 181-182.Grifos nossos)
Assim, o encontro das paixões com os princípios de associação contribui para
compor a situação descrita. Quanto ao lugar desse encontro, Hume é claro: a
imaginação. Os afetos e a imaginação mantêm uma união estreita, uma cumplicidade
nos seus movimentos26. O empirismo de Hume, desse modo, descreve um meio de
experiência no ponto onde procede, precisamente, o encontro dessas duas séries de
princípios que compõem a situação determinada. Paixão e Entendimento podem ser
vistos como dois sistemas separados, mas devem ser entendidos como um único
movimento, pois ambos funcionam na imaginação, simultaneamente. Paixões e
associações compõem uma única dinâmica, embora cada um possua, respectivamente,
seus próprios campos problemáticos. É exatamente isso que nos possibilita tratar de um
separadamente do outro. Contudo, não tratar do encontro de ambos (movimento duplo) é
não abordar o problema essencial do empirismo de Hume, é não compreender o sentido
verdadeiramente empirista de sua filosofia.
A natureza humana se compõe de duas partes principais, requeridas para
todas as suas ações, ou seja, os afetos e o entendimento (...). Mas podemos
considerar separadamente os efeitos resultantes das operações de cada uma
dessas duas partes que compõem a mente. (Hume, 2001. p. 533)
Separar a investigação dos dois sistemas constitui apenas uma estratégia
metodológica, que deve ser corrigida pela relação de um com o outro. A separação
procede à decomposição de um movimento, que de fato é um só, simples e indivisível.
O próprio Hume nos autoriza uma tal atitude:
Pode-se conceder aos filósofos morais a mesma liberdade concedida aos
filósofos naturais; estes últimos muito freqüentemente consideram um
movimento qualquer como composto e consistindo em duas partes separadas,
embora ao mesmo tempo reconheçam que, em si mesmo, esse movimento é
simples e indivisível. (Hume, 2001. p. 533-534)
26
Cf. Hume, 2001. p. 460.
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
A dinâmica e a problemática dessa confluência, dessa transfusão, constitui um
dos temas centrais do desenvolvimento filosófico no Tratado da Natureza Humana.
Essa filosofia é composta, portanto, por dois momentos: o Entendimento, que
poderemos chamar de momento lógico, e as Paixões, que poderemos chamar de
momento passional. Deleuze coloca esse problema da seguinte maneira:
Se é verdade que a associação é necessária para tornar possível toda a relação
em geral, cada relação em particular de modo algum é explicada pela
associação. (Deleuze, 2001. p. 116)
O Entendimento, os princípios de associação, compõe apenas a forma lógica das
relações, já que não explica o conteúdo, o valor próprio de cada relação. A razão de uma
relação não está inteiramente na sua forma lógica, mas na passionalidade nela
implicada. Só as paixões explicam a singularidade de uma relação, só elas compõem a
sua essencialidade. Vejamos o que Deleuze ainda diz:
Se os princípios de associação explicam que as ideias se associam, somente
os princípios da paixão podem explicar que sobretudo uma ideia e não outra
esteja associada a tal outra ideia em tal momento. (Deleuze, 2001. p. 117)
Trata-se, então, de compreender o desenvolvimento filosófico do empirismo de
Hume pela importância de um dos elementos decisivos para o seu empirismo: as
Paixões. O componente das Paixões leva o empirismo humeano para além das
interpretações hegemônicas que sofreu, ao longo da História da Filosofia. A temática
das Paixões traça contornos e instaura um sentido próprio e singular para esta filosofia.
Ao dirigirmos nossa atenção para ela vemos emergir traços do empirismo que o elevam
a novas potências.
Posto tudo isso, cabe ainda uma questão: ao conferir sentido às relações, pela
ressonância das paixões nos princípios do entendimento, o que é precisamente
produzido? Sabe-se que essa é a dinâmica das invenções, o movimento propriamente
inventivo. Conceber as relações como exteriores aos seus termos inspira a necessidade
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
incessante de compor relações, ou seja, de inventar. Hume dá um nome a essas
invenções, cria um conceito que traça contornos para essa atividade. As relações, por
serem exteriores aos termos, não estão dadas na natureza, não são atributos intrínsecos à
natureza. Elas são produtos que ultrapassam o mero dado sensível, que dizem mais do
que está dado na natureza. Porém, as relações se compõem nesse mesmo dado, em um
movimento imanente ao dado, sob a influência daquele movimento duplo. Esse é o
caráter próprio das invenções. No entanto, elas não são aleatórias, pois respondem a
uma necessidade precisa.
Artifício é o conceito que Hume talha para dizer o que as invenções produzem
especificamente. Pois o que é inventado é exatamente aquilo que não está dado na
natureza. O movimento duplo das paixões e da associação, formador do conjunto que
compõe as relações, produz uma extensão artificial. Para esse tema Hume dedica todo o
último livro, o terceiro, intitulado “Da Moral”. Nesse livro Hume descreve a dinâmica
dos artifícios e de suas invenções, uma vez que o descrito é exatamente as invenções
humanas, o homem como espécie inventiva, capaz de inventar o seu mundo. A moral, a
cultura, o jurídico, a política e a própria história são os elementos que constituem o
mundo das invenções humanas, a invenção de uma ordenação, de sua própria natureza.
O mundo é assim uma fulguração de artifícios na imanência do jogo dos princípios de
associação e de paixão. Esse mundo não passa de artifício, e a ciência da natureza
humana pretende descrever os seus caminhos e a sua problemática, as condições
práticas desse itinerário.
Tomando como exemplo o mundo das instituições humanas, especialmente as
leis que constituem um mundo jurídico e também social, Hume diz o seguinte:
A sociedade é absolutamente necessária ao bem-estar dos homens; e essas
leis são igualmente necessárias à sustentação da sociedade. Sejam quais
forem as restrições que elas possam impor às paixões humanas, na realidade
são frutos dessas paixões, sendo apenas um meio mais artificial e refinado de
satisfazê-la. Nada é mais vigilante e inventivo que nossas paixões; e nada é
mais evidente que a convenção para observar essas regras. A natureza,
portanto, confiou essa tarefa inteiramente à conduta humana; não pôs na
mente nenhum princípio original peculiar que nos determinasse a realizar
um conjunto de ações, já que outros princípios de nossa estrutura e
constituição são suficientes para nos guiar até elas. (Hume, 2001. p. 565.
Grifos nossos)
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
As leis, portanto, são extensões artificiais das paixões, da potência inventiva das
paixões. Como dito por Hume, não há um destino ou um atributo intrínseco à espécie
humana que determine a sua constituição de um modo específico. Não se sabe, a priori,
que forma artificial as paixões tomarão A sociedade não é um dado natural, uma
expressão da essência do homem. Nem mesmo o seu destino está inscrito, previamente,
nos movimento dos artifícios humanos, tal como uma lei da história. Não se sabe,
previamente, se será esta ou aquela forma que tomará a sociedade, se esta se organizará
em um Estado ou não. O Estado não é uma forma necessária em si mesma, é apenas
mais uma ficção, mais um artifício, e como tal merece suspeita e investigação. A forma
não é dada anteriormente, mas sim a força, as paixões, pois como já se sabe são elas
anteriores às ideias. O Estado é uma ideia, cuja impressão correspondente, isto é, seu
meio de experiência, merece ser investigada. O homem está entregue às suas paixões, e
é por elas e através delas que ele inventa seu mundo27. Mais uma vez, fica claro a
cumplicidade e intimidade das paixões e das ideias, pois uma ideia é a imagem de uma
paixão. Não há nada mais instável e imprevisível que uma paixão, por isso se impõe a
tarefa de inventar artifícios que lhes confiram alguma estabilidade. Tais artifícios
compõem os mundos humanos, porém, tais mundos só existem em razão das paixões,
são frutos das paixões28.
O empirismo, compreendido nessa perspectiva, não se definirá como uma mera
teoria do conhecimento, mas como uma filosofia da gênese das invenções. É esse o
sentido de investigação, de inquérito, próprios do espírito que anima a disposição
filosófica de Hume: qual foi o processo, quais impressões que deram proveniência a
determinadas ideias e relações? Em quais condições lógico-passionais um determinado
mundo, seja epistemológico, moral, político, jurídico ou cultural, emergiu? Sendo
assim, enfim, nos é autorizado a perguntar: como surgiu, e em quais condições, o
Como diz belamente Deleuze sobre Hume: “Se as ideias se associam, isso ocorre em função de um
objetivo ou de uma intenção, de uma finalidade que só a paixão pode conferir à atividade do homem. É
por ter paixões que o homem associa suas ideias”. 2001, p. 63.
28
Até mesmo a razão, entidade suprema do Iluminismo tão em voga na época de Hume, aos seus olhos
não passa de um artifício, uma vassala das paixões, que justamente por isso merece desconfiança: “A
razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e
obedecer a elas.” 2001, p. 451. Sobre a suspeita acerca da razão: “Não é contrário à razão eu preferir a
destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo.” Ibid. p. 452. Para o empirismo não há fins
racionais, já que os fins são colocados pelas paixões. A razão não passa de uma faculdade subalterna que
ajusta meios em conformidade a fins determinados pelas paixões. É exatamente em virtude disso que se
deve desconfiar da razão, já que ela esconde, muitas vezes, paixões inconfessáveis sob a máscara de
entidade suprema.
27
Relações, paixões e artifícios: Hume e o empirismo para além da teoria do conhecimento
homem como sujeito de conhecimento? Eis a sua distância das filosofias do
conhecimento. Hume não se pergunta pelo fundamento ou pelos limites do
conhecimento, como se isto estivesse inscrito na natureza do homem. O homem é uma
espécie inventiva, uma potência. As relações não estão dadas, esperando serem
conhecidas por uma representação acurada da mente. Nada está dado, desde sempre,
como se a natureza e os mundos estivessem prontos, esperando o desvelamento das suas
essências. Não há nada mais incompatível com a imagem do pensamento empirista
humeano. As relações, os artifícios, as invenções, não são objetos nem produtos do
conhecimento, mas de práticas complexas que envolvem princípios lógicos e passionais.
Mesmo a sociedade, o mundo social que reúne todos esses outros mundos, enquanto tal,
emerge de um tal complexo. Portanto, é na dinâmica e confluência das relações, das
paixões e dos artifícios que Hume desenvolve sua filosofia, uma filosofia das invenções,
visto que inventar é absolutamente necessário, absolutamente vital, em virtude da
exterioridade das ideias e dos termos. A exterioridade dos termos possibilita e instaura o
plano da experiência no qual as relações emergem, e estas, por sua vez, permanecem na
exterioridade na qual foi produzida. Nunca se sai do plano dessa experiência, pois esta
nunca cessa de ser feita. A exterioridade das ideias é irredutível e insuperável, assim
como a diferença. Aquilo que foi unido pode ser separado, isto é, as ideias não são
incluídas na relação de forma necessária, como se a relação decorresse da natureza
delas. A própria necessidade é uma relação exterior aos termos, ou ainda, é ela uma
ficção29. É o que resulta, uma vez mais, do princípio da diferença e separação das ideias.
Os artifícios são, na condição de tarefa, aquilo que está incessantemente por
fazer e sendo feito. Enquanto produtos são eles objetos de uma investigação, de um
inquérito. Talvez se possa, nessa perspectiva, entender Hume como um percursor
daquilo que em Nietzsche e mais tarde em Foucault será chamado de método
genealógico. Os mundos, por mais sérios, verdadeiros, universais e necessários que
possam parecer, não passam de ficções. São também, em razão disso, aquilo que é
necessário desconfiar.
29
As observações de Hume sobre a ideia de conexão necessária nos levam a assim concluir. Cf. Hume,
2001. Livro I, Parte III, Seção XIV. Ou nas Investigações sobre o entendimento humano, Seção 7.
MÜLLER, G. J. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Referências bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Hume. In: CHÂTELET, François (org.). História da Filosofia.
Ideias, Doutrinas; trad. Guido de Almeida, vol. 4, O Iluminismo. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1974. p. 59-70.
___________. Empirismo e Subjetividade; trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora
34, 2001.
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da
moral, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
____________. Tratado da Natureza Humana; trad. Déborah Danowski. São Paulo:
Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
A dupla intencionalidade da recordação iterativa na fenomenologia
husserliana
Adriano Negris1
Resumo
O objetivo do presente texto é apresentar uma perspectiva da abordagem
fenomenológica realizada por Edmund Husserl sobre a questão do tempo. Para
cumprir a tarefa proposta, acompanharemos a análise de Husserl sobre a
relação existente entre uma temporalidade mundana e a consciência subjetiva
do tempo. O resultado dessa investigação pretende demonstrar como a questão
do tempo deve ser pensada a partir da temporalidade do ego transcendental, a
qual se desvela através da ideia de fluxo de consciência na dupla
intencionalidade da recordação iterativa.
Palavras-chave: Tempo, Fenomenologia, Dupla intencionalidade da
recordação iterativa.
Abstract
The central goal of this paper is to present an overview of the
phenomenological approach taken by Edmund Husserl on the question of time.
To accomplish the task at hand, we will follow the analysis of Husserl on the
relationship between a worldly temporality and subjective consciousness of
time. The result of this research aims to show how the issue of time should be
considered from the temporality of the transcendental ego, which is revealed
through the idea of stream of consciousness in double intentionality recall
iterative.
Key-words: Time, Phenomenology, Intentionality double iterative recall.
O que é o tempo? De início, a questão apresentada parece simplória devido à
familiaridade que temos na lida com o tempo, pois o agir cotidiano é essencialmente
marcado pela temporalidade. Contudo, essa pré-compreensão do tempo nos possibilita
responder a questão fundamental: o que é o tempo? A constatação feita por Agostinho
no Livro XI das Confissões2 revela a profunda aporia que permeia o tema. Na
Adriano Negris é graduando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
E-mail: adrianonegris@gmail.com
2
“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me
fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada
sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente”. In:
Santo Agostinho – Vida e Obra, Coleção Os Pensadores. Tradução: J. Oliveira Santos, S.J e A. Ambrósio
de Pina, SJ. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000, p. 322.
1
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
investigação sobre o tempo, Edmund Husserl vai realizar uma abordagem
fenomenológica sobre a relação de pertinência entre o tempo objetivo (tempo mundano)
e a consciência subjetiva do tempo, excluindo quaisquer suposições, afirmações e
convicções a respeito do tempo objetivo para que se entenda o tempo como realidade
imanente aos atos intencionais. O presente trabalho tem a intenção de acompanhar a
tarefa fenomenológica de Husserl, notadamente a análise da temporalidade do ego
transcendental que se desvela na idéia de fluxo de consciência na dupla intencionalidade
da recordação iterativa.
Antes de iniciarmos o desenvolvimento do escopo aqui traçado, convém
estabelecermos o horizonte no qual o tema da temporalidade vai se mostrar na
fenomenologia de Husserl. Para tanto, elegemos como fio condutor a própria noção de
temporalidade do ego transcendental exposta por Husserl.
O ego transcendental pode ser encarado como uma síntese performática que
incessantemente vai articulando vivências e ao mesmo tempo abrindo possibilidades de
constituição da consciência juntamente com seus objetos. Ao realizar uma reflexão
sobre a dinâmica dos atos intencionais, observamos que tanto o próprio ato como seus
campos correlatos se dão, necessariamente, dentro de um horizonte temporal. Isso
ocorre porque os atos intencionais se constituem mediante percepção, lembrança ou
imaginação que corresponde, respectivamente, a um presente, passado e futuro. Nesse
sentido, as vivências intencionais são inegavelmente temporais. Tendo em vista essa
compreensão, Husserl vai realizar a descrição da experiência temporal do ego
transcendental.
Numa primeira aproximação, podemos apontar que existe um tempo que marca
a percepção de algo como algo e um tempo inerente ao perceber. Em outras palavras, o
que se quer dizer é que a percepção sempre atual dos atos intencionais e seus correlatos
estão estreitamente ligados a uma consciência interna do tempo. Assim, há uma
temporalidade marcada por uma identificação que possibilita a consciência apreender a
identidade de determinado objeto. Essa temporalidade objetiva corresponde à ordem
cronológica do tempo (passado, presente e futuro), concebida mediante uma atitude
natural em relação ao mundo. Por outro lado, a síntese que compõe o ego transcendental
não é uma instância atemporal, ela possui uma consciência interna do tempo, que deve
ser compreendida a partir de uma experiência contínua do tempo – um fluxo temporal -,
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
que suprime a pretensa autonomia das dimensões temporais objetivas – passado,
presente e futuro.
A temporalidade objetiva permite identificar um objeto tal como ele se mostra
no ato de perceber. Mas a cada perceber, a cada ato intencional, o objeto se mostrará de
modo perfilado, já que a percepção fixa “atomicamente” a realidade. Então, como é
possível a aparição de um objeto na sua identidade mesma – na sua idealidade – tendo
em vista a incessante alteração de perspectiva deste mesmo objeto provocada pela
percepção? É justamente a consciência interna do tempo que abarca, num só fluxo,
todos os modos possíveis de mostração de um objeto, permitindo-nos apontar sua
idealidade na experiência particular da percepção. Dessa maneira, a consciência interna
do tempo é uma síntese temporal que incessantemente articula um fluxo de vivências e
permite abarcar e articular os momentos temporais constantes na ordem objetiva do
tempo (passado, presente e futuro). Assim sendo, em que sentido a reflexão
fenomenológica de Husserl aponta para idéia de fluxo de consciência como base de toda
experiência temporal do ego transcendental?
Husserl inicia sua abordagem acerca da consciência interna do tempo a partir do
fenômeno da duração da sensação de um objeto temporal. Como sabemos, o ato
intencional abre um campo de mostração no qual seus objetos (ou conteúdos) se
constituem de maneira ideal no interior do próprio horizonte descerrado pela
intencionalidade. Quando um conteúdo é dado no horizonte da relação intencional
verificamos que este mesmo objeto se apresenta com uma duração – seja ele se
alterando ou se mantendo. Segundo Husserl, essa consciência de duração de um objeto
tem que ser originária, pois a experiência de uma percepção que dura é condição de
possibilidade da sensação de que algo dura. Em outros termos, a duração da sensação
tem que ser originária porque não poderia haver uma representação derivada da
duração. Então, se a duração da sensação acena para uma temporalidade mais originária,
devemos, agora, investigar como se dá a duração de um objeto temporal.
Os objetos temporais, afirma Husserl, são aqueles “que não são apenas unidades
no tempo, mas que contêm também em si mesmo extensão temporal” 3. Além da
extensão temporal (duração), eles se constituem numa multiplicidade de dados e
3
HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Tradução,
introdução e notas: Pedro M. S. Alves. Lisboa: Casa da Moeda, 1994, p.56.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
apreensões imanentes porque não são dados fora de uma relação intencional. Mas no
interior das relações intencionais, como se dá a diferenciação temporal desses objetos?
A distinção temporal (algo que se apresenta como passado, presente e futuro) não é
fornecida pela qüididade dos objetos temporais, uma vez que o surgimento desses
objetos já pressupõe uma experiência temporal para que eles sejam temporalmente
distintos. Nesse sentido, notamos que a temporalidade é o modo de acontecimento dos
atos intencionais, tendo em vista que a experiência temporal é compreendida de maneira
cooriginária aos atos intencionais, suas vivências e aos próprios conteúdos vivenciais.
A duração dos objetos temporais também coloca em evidência outros fenômenos
que a ela estão associados, a saber: o decurso temporal e a retenção. A gênese de um
objeto temporal deve ser encarada como um marco temporal (ponto-fonte), um início. A
partir desse início, notamos que o objeto preenche sua duração. Para que haja a
constituição desse objeto é necessário que suas fases se sucedam umas as outras de
modo que as anteriores não se percam por completo, nem que haja uma superposição
continua de fases. A cada fase de um objeto que se dá num momento “agora”, que deve
retrair-se de maneira modificada para que suas fases posteriores possam surgir
continuamente. Para explicar o acontecimento da retenção destacamos o seguinte
exemplo mencionado por Husserl:
Quando, por exemplo, soa uma melodia, o som individual não desaparece
completamente com o cessar do estímulo ou então com o movimento dos
nervos por ele excitados. Quando soa o novo som, o precedente não
desaparece sem deixar rastro, senão nós seríamos mesmo incapazes de notar
as relações entre sons consecutivos; nós teríamos, em cada instante, um som,
eventualmente, no intervalo de tempo entre o toque de dois sons, uma pausa
vazia, nunca, porém, a representação de uma melodia. Por outro lado, não
basta ficarmos com esta permanência das representações de som na
consciência. Se elas permanecessem sem modificação, teríamos nós então,
em vez de melodia, um acorde de sons simultâneos, ou antes uma amalgama
desarmônica de sons, tal como a obteríamos se todos os sons já soados
tocassem simultaneamente4
Por meio da descrição do soar de uma melodia Husserl demonstra que quando
um som se dá num determinado ponto temporal, ele paulatinamente se afasta deste
ponto inicial, mas ao mesmo tempo algo é retido enquanto ocorre o afastamento. Na
4
Idem, 1994, p.45 e 46.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
retenção tem-se uma consciência do som que se foi e da duração que ele preenche.
Quando o som acaba, resta ainda a consciência do som e da duração do som, que
permanece de maneira alterada, revelando o decurso do som (decurso temporal). Nesse
contexto, o decurso temporal é marcado pelo movimento de distanciamento paulatino;
algo que vai se afastando de um ponto para outro. A consciência do decurso temporal é
capaz de deixar à vista o fato que a duração é o modo de aparição de um objeto
temporal e, ao mesmo tempo, realçar que essa aparição se dá na unidade de um fluxo
constante. Segundo Husserl, o fenômeno do decurso “é uma continuidade de mutações
constantes, que forma uma unidade inseparável – inseparável em extensões que
pudessem ser por si e indivisível em fases que pudessem ser por si, em pontos da
continuidade. Os fragmentos que extraímos abstractivamente podem ser apenas no
decurso total e do mesmo modo as fases, os pontos da continuidade do decurso” 5.
Diante das observações realizadas por Husserl, depreendemos a necessidade de
se pensar a temporalidade de algo a partir da idéia de fluxo dinâmico que vai
incessantemente articulando passado, presente e futuro. Toda a experiência de objetos
tem lugar em um fluxo de experiências onde cada momento presente – momento em que
algo se apresenta originariamente, na percepção, como objeto mesmo – leva em sí,
retidas em certa medida, as experiências passadas que por sua vez antecipa ou projeta as
possíveis experiências futuras a partir do efetivamente experimentado. Com isso
verificamos que não se pode falar da consciência de objetos sem ter em conta ao mesmo
tempo a consciência do horizonte em que necessariamente se encontra todo objeto de
que se tem experiência. O contexto de um objeto é também um contexto temporal
formado pelas lembranças passadas e as futuras experiências possíveis, imaginadas.
Até o presente momento tentamos reconstruir o caminho percorrido por Husserl
na descrição do fenômeno da duração dos objetos temporais e o próprio movimento
retencional constitutivo desses objetos na imanência da dinâmica do fluxo de
consciência. A partir deste ponto, o referido percurso vai servir de alicerce para explicar
o processo de recordação dos objetos temporais e, em última instância, a dupla
intencionalidade da recordação iterativa.
5
Idem, 1994, p.60.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
O ato de percepção de um objeto está estritamente ligado ao fenômeno de
retenção continua de suas fases em relação a um ponto-agora – tido como um marco
temporal. As fases de um objeto vão se doando à percepção (ponto-agora) e, de maneira
subseqüente, aos poucos vão se escoando para um “passado-agora” que se retém
modificado para a apreensão de uma nova fase necessária à constituição do objeto
temporal. Na retenção temos a sensação de duração que se esvai e que se manifesta por
meio do ato intencional da percepção. Segundo Husserl, “caracterizamos a recordação
primária ou retenção como uma cauda de cometa, que se agrega à respectiva percepção.
Disso deve ser inteiramente distinguida a recordação secundária, a recordação iterativa”
6
. Mas, o que afinal caracteriza a recordação iterativa?
Na retenção o conteúdo do percebido se mantém como uma intensidade
atenuada, porém, na recordação iterativa, o que ocorre é a presentificação de algo que
não está mais presente no agora. Com a recordação iterativa, o ponto-agora (pontofonte) é preenchido por um recordado, por um passado que vem à tona num presente,
tornando-se
um
presente
presentificado,
mas
não
realmente
presente,
não
percepcionado, não primariamente dado e intuído. Apesar da recordação presentificar
algo passado, ela própria se constitui por meio de protensões e retenções que vão
proporcionar a dação de um objeto duradouro. Husserl nos diz:
A recordação iterativa é, ela própria, recordação iterativa originariamente
constituída e, depois, mesmo agora passada. Constrói-se, ela própria, através
de um continuo de protodados e retenções e constitui (ou melhor:
reconstitui), em unidade com eles, uma objetividade duradoura imanente ou
transcendente (segundo ela esteja imanente ou transcendentemente dirigida).
A retenção, pelo contrário, não produz nenhuma objectividade duradoura
(nem original nem reprodutivamente), mas apenas retém na consciência o
produzido e imprime-lhe o caráter de ‘mesmo agora passado’ 7
Quando observamos o modo pelo qual a recordação iterativa se dá, notamos que
a recordação manifesta-se num ponto-agora, num presente. Nesse momento “agora” a
percepção não vai dar ensejo a constituição originária de um objeto temporal, que se
mantém pelo meio retencional de suas fases. Na recordação iterativa a percepção
6
7
Idem, 1994, p.67.
Idem, 1994, p.68.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
presentifica um objeto que se encontra num ponto temporal distinto do ponto-agora,
representando um “agora” que não é dado. Para destacar a oposição entre percepção e
recordação, vale citar a interessante passagem do §17º das Lições para uma
fenomenologia da consciência interna do tempo:
Se chamamos, porém, percepção ao acto em que reside toda origem, que
constitui originalmente, então a recordação primária é percepção. Porque
apenas na recordação primária vemos o que é passado, apenas nela se
constitui o passado e, sem dúvida, re-presentativamente, mas antes de modo
presentativo. O mesmo-agora-sido, o antes em oposição ao agora, pode ser
directamente visto apenas na recordação primária; é sua essência trazer esta
novidade e peculiaridade à intuição directa, primária, extactamente como é a
essência da percepção do agora trazer directamente o agora à percepção. Pelo
contrário, a recordação iterativa, tal como a fantasia, oferece-nos a simples
presentificação; ela é como que a mesma consciência que o acto-do-agora e o
acto-do-passado, criadores de tempo, como que a mesma, mas contudo
modificada (HUSSERL, 1994, p. 72).
A recordação iterativa presentifica um determinado objeto temporal e todas as
suas fases e retenções que lhes são inerentes num presente-agora, revelando uma
consciência de sucessão tal como é dada na consciência originariamente doadora. Na
recordação iterativa podemos repetir essa consciência de sucessão originária, no qual
presentificando-a, acabamos por recordá-la. E, como afirma Husserl, a presentificação
de uma vivência acha-se a priori no domínio da liberdade, pois podemos
voluntariamente recordar de algo quantas vezes desejarmos.
Agora sabemos que a recordação iterativa é dotada de um caráter voluntário,
tendo em vista que presentificamos algo que foi efetivamente vivenciado pelo ego
transcendental. Pela recordação, podemos “recolher” o conteúdo de uma vivência
intencional que já tenha sido experimentada em determinada posição temporal e
presentifica-lá a partir de um “ponto-agora” da percepção. A questão que se apresenta
neste ensejo é a seguinte: como um objeto reproduzido pela recordação iterativa ganha a
propriedade de algo passado? Como podemos afirmar que um determinado conteúdo
vivencial reproduzido pela recordação é um passado? O que nos permite dizer que algo
recordado é passado? Para responder tais indagações, Husserl menciona que é
importante distinguir, em cada presentificação, a reprodução da consciência em que o
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
objeto duradouro passado é originariamente constituído e aquilo que se anexa a
reprodução como constitutivo para consciência de passado, de presente ou de futuro.
Para que questão possa ser elucidada é imprescindível pensarmos na idéia de
fluxo de consciência. Aliás, só caminhamos para um desenlace do problema se a
consciência da recordação for observada de maneira imanente ao fluxo de consciência.
Isto porque a unidade do fluxo de consciência é uma continuidade de mutações
constantes, que forma uma unidade inseparável, de modo não podemos vislumbrá-la em
fases que pudessem ser por si ou em fases que pudessem ser por si, em pontos da
continuidade. Como alerta Husserl, “os fragmentos que extraímos abstractivamente
podem ser apenas no decurso total e do mesmo modo as fases, os pontos da
continuidade do decurso” 8. Então, o que significa a dupla intencionalidade da
recordação?
Quando recordamos, mediante o uso da liberdade, efetivamente experimentamos
algo que foi verdadeiramente vivenciado em outro ponto temporal diverso do pontoagora no qual a recordação se dá. Esta constatação não é suficiente para apontar o objeto
da recordação como passado. Mas o que ocorre para que possamos ter consciência do
passado na recordação? A recordação presentifica um objeto, repetindo todas suas fases
de constituição e a retenção que lhe é pertinente. Quando ocorre a recordação, ela se dá
na imanência de um fluxo temporal no qual não somente a recordação vivida aparece,
mas todo o fluxo temporal é colocado em jogo, de maneira que todo o fluxo temporal é
recordado até o ponto temporal onde a recordação está em desenvolvimento. Assim,
Husserl explica que:
A recordação está num fluxo constante, porque a vida da consciência está
num fluxo constante e não se une numa cadeia apenas membro após membro.
Pelo contrário, todo o novo reage sobre o antigo, a sua intenção antecipativa
preenche-se e determina-se com isto, o que dá à reprodução um colorido
determinado.
Na dinâmica do fluxo de consciência, a recordação contém uma intencionalidade
que se volta para (re)constituição do objeto temporal, no qual a presentificação do
8
Idem, 1994, p.60.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
objeto é dada mediante um retorno completo a todo fluxo temporal para chegar até o
ponto do presente em que se manifesta a recordação. Por outro lado, como o fluxo não
pode ser estático, ele constantemente se articula como abertura para apreensão de novas
vivências. Por ser uma síntese em fluxo, todos os objetos que surgem na consciência de
um agora são influenciados pelas vivências anteriores que se deram ao longo do fluxo e,
de tal maneira, que todo o novo reage sobre o antigo. O novo aponta para novamente
para o novo, o qual se determina, ao entrar em cena, e modifica as possibilidades
reprodutivas do antigo. Essa retroação ao longo da cadeia temporal e o movimento de
protensão – ambos imprescindíveis para presentificação do recordado – forma a dupla
intencionalidade da recordação. O objeto recordado ganha tons de algo passado porque
o ato de recordar, que se dá num presente, retorna todo fluxo de consciência e com isso
influencia o recordado. O presentificado na recordação adquiri o caráter de passado
justamente porque do ponto agora, influenciado pelos eventos da cadeia temporal, se dá
com um matiz diferenciado, pois o que foi originariamente constituído e que agora se
reconstitui pela recordação está em incessante processo de obscurecimento. Os
conteúdos das vivências que se deram num passado não são alterados pela
presentificação da recordação. Contudo, o modo como a vivência se dá na
presentificação é nitidamente diferenciado, não só porque está temporalmente afastado
do ponto agora, mas também porque o modo de aparecer do conteúdo recordado está
influenciado por todas as vivências que se deram ao longo do fluxo de consciência até o
ponto agora. Nesse sentido, Husserl explica que “o poder retroactivo retrocede ao longo
da cadeia, porque o passado reproduzido traz o caracter de passado e uma intenção
indeterminada, referida a uma certa posição temporal em relação ao agora”9.
Diante das lições de Husserl, depreendemos que apenas na unidade do fluxo de
consciência se constitui a unidade temporal do objeto recordado e a própria unidade do
fluxo. O que a dupla intencionalidade revela é o incessante movimento do fluxo, no qual
impõe sempre um movimento para frente, lançando-se sempre para o novo e
simultaneamente resgatando-se por meio da retroação às vivencias anteriormente
experimentadas. Cada fase do fluxo traz consigo não um ponto isolado do decurso, mas
o rastro intencional de todas as fases anteriores.
9
Idem, 1994, p.83.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
A análise da dupla intencionalidade deixa transparecer a unidade incindível do
fluxo de consciência como a própria constituição do ego transcendental. Os atos
intencionais, as vivências e seus conteúdos correspondentes só surgem na imanência do
fluxo de consciência, no qual sempre aberto para o novo e que também está em
constante processo de resgate de si mesmo por meio de suas vivências. Entretanto, essa
intencionalidade do fluxo não aparece como algo intuitivo de modo que pudéssemos
concretizá-la objetivamente. A constante fluência do ponto-agora não tem qualquer
individuação, não detém nenhuma posição temporal fixa, sendo uma incessante
atualidade que flui sem durar. Desse modo, é necessário que essa dinâmica intencional
fique resguardada num fundo não aparente para que os objetos intencionais constituídos
na sua imanência possam aparecer em primeiro plano. Não é por outro motivo que
Husserl vai chamar a atenção para o fato de que a intencionalidade do fluxo é uma
intuição não-intuitiva, “vazia”, sendo seu objeto a cadeia temporal objetiva dos
acontecimentos e que constitui a obscura vizinhança do que iterativamente recordado de
modo atual. De modo mais explícito Husserl esclarece:
Não há primeiro plano sem fundo. O lado que aparece nada é sem o lado
inaparente. Assim também na unidade da consciência do tempo: a duração
reproduzida é o primeiro plano, as intenções de inserção (da duração no
tempo) tornam consciente um fundo temporal. E, de um certo modo, isto
continua na constituição da temporalidade do próprio (objecto) duradouro,
com o seu agora, o seu antes e o seu depois10
Com as considerações expostas acima, pretendemos destacar como a reflexão
fenomenológica husserliana sobre o tempo nos conduz a idéia de fluxo de consciência,
explicitada neste trabalho por meio da dupla intencionalidade da recordação iterativa.
Para finalizar, consideramos interessante citar um trecho do livro Introdução à
Fenomenologia (SOKOLOWISKI), que sintetiza a própria noção da unidade de fluxo
de consciência como origem da temporalidade do ego transcendental:
A forma do presente vivo assim move-se ruidosa, automática e
constantemente, nem mais rápida nem mais lenta, sempre a par da realidade
da experiência temporal. Ela é o pequeno motor no coração da temporalidade.
10
Idem, 1994, p.84.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
Porque é a origem do tempo, é de algum modo fora do tempo (como também
do espaço), e ainda experimenta diferenciação e sucessão, de um tipo próprio
a si mesma. É simultaneamente permanente e fluente, o stehendströmende
Gegenwart, como Husserl a denomina. Ela alterna e ajunta, flui e prende,
abre e fecha, como fogo e a rosa que são um (T.S.Eliot, Little Gidding, ad
finem). Ela é o lugar das mais básicas partes e todos presenças e ausências,
identidades em multiplicidades, aquelas que são pressupostas por todas as
formas mais complexas constituídas em nível mais elevado na experiência.
Esse presente vivo esta também na origem de nossa própria identidade-de-si
como agentes de consciência de verdade e ação, mas porque está na nossa
origem ela é pré-pessoal. Ela funciona anonimamente. Não poderíamos fazer
nada para mudá-la ou fazê-la mais lenta ou acelerada. Não está em nosso
poder. Não controlamos nossas origens. Ela apenas se mantém no alvoroço
de seus próprios termos. E ainda somos identificáveis com ela; ela é “nossa”,
como nossa origem e base.11
Bibliografia
HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo.
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SOKOLOWISKI, R. Introdução a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004.
11
SOKOLOWISKI, R. Introdução a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004, p.152 a 153.
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
Osvaldino Marra Rodrigues1
Elnora Gondim2
Resumo
O objetivo do presente artigo é apontar, quanto á questão da liberdade, as
críticas de Sartre em relação a Descartes. Para tanto, entre ambas as teorias,
vamos contemplar que existem temas que se encontram imiscuídos, são eles: 1)
a questão do Cogito; 2) a questão de Deus; 3) a questão do dualismo.
Palavras-chave: Descartes, Sartre, liberdade, vontade, erro, Deus
Abstract
The purpose of this paper is to point out the criticism, on the question
of freedom, Sartre in relation to Descartes. To this end, between the
two theories, we consider that there are issues that are mixed, they are: 1) the
issue of Cogito, 2) the question of God, 3) the question of dualism.
Keywords: Descartes, Sartre, freedom, will, error, God
Introdução
A liberdade é um dos conceitos fundamentais nas teorizações filosóficas. São
poucos os filósofos que não trataram dessa problemática em alguma de suas obras, seja
para criticar as teorias anteriores ou para, de alguma forma, resgatá-las. É sob essa ótica
que objetivamos apontar as criticas que Sartre teceu à teoria de Descartes quanto à
questão da liberdade. Para tanto, será enfatizada que a filosofia sartreana concentra sua
atenção, ou intencionalidade, numa criteriosa análise fenomenológica do conceito do
Eu, estabelecendo, dentre outras coisas, uma crítica atinente ao subjetivismo oriundo do
pensamento cartesiano.
Nessa perspectiva, será realçada a importância do pensamento de Descartes
como algo fundamental para que se entenda a questão da liberdade relacionada à
subjetividade, porquanto;
1
Osvaldino Marra Rodrigues é Mestre em Filosofia pela UFPI e professor da PARFOR/UFPI.
E-mail: dinomarra@gmail.com
2
Elnora Gondim é Doutora em Filosofia pela PUC-RS e professora de Filosofia na UFPI.
E-mail: elnoragondim@yahoo.com.br
RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Descartes' claim to certainty about his thought and existence is central to his
general program in epistemology. He wants to answer skepticism, and he
wants to do so within foundationalism, the view that all our knowledge
begins with some self-evident beliefs which are not evidenced by any others
but yet provide our justification for all the rest we know. MARKIE, Peter.
The Cogito and its Importance. IN: The Cambridge Companion to Descartes.
New York : Cambridge University Press 1992. P.1543
Sob essa ótica, Descartes foi um marco considerável em se tratando da questão
da subjetividade instaurando-lhe um espaço e, assim:
Descartes again presents the immediate inference from his thought to his
existence, and he says that his knowledge is not deductive but a simple
intuition of the mind. His point again seems to be that his knowledge of his
thought is intuitive since it involves his grasping a self-evident, noninferred
premise, and his knowledge of his existence is intuitive since it involves his
immediately inferring that he exists from the simultaneously intuited premise
that he thinks. MARKIE, Peter. The Cogito and its Importance. IN: The
Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University
Press 1992. P.154..4
Com tal ênfase dada à intuição intelectual, o pensamento cartesiano fornece um
poder incomensurável ao Eu e, em contrapartida, à liberdade da razão humana. E tal
pensamento, ao ser publicizado, originou teorias filosóficas que têm como foco a
subjetividade. Dessa forma:
Nossa Tradução: “Afirmação de Descartes sobre a certeza do seu pensamento e da existência é
fundamental para o seu programa geral na epistemologia. Ele quer responder ao ceticismo, e ele
quer fazê-lo conforme o fundacionismo, a visão de que todo o nosso conhecimento começa com algumas
crenças auto-evidentes, que não estão comprovadas por quaisquer outras, mas ainda fornece a nossa
justificação para todo o resto que conhecemos”. MARKIE, Peter. The Cogito and its Importance. IN: The
Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P.154..
4
Nossa Tradução: “Descartes apresenta novamente a inferência imediata de seu pensamento à sua
existência, e ele diz que seu conhecimento não é dedutivo, mas uma intuição simples da mente. Seu ponto
mais uma vez parece ser que o seu conhecimento de seu pensamento é intuitivo, uma vez que envolve
uma premissa auto-evidente, não inferida, e seu conhecimento de sua existência é intuitivo, uma vez que,
imediatamente, envolve a sua inferência que ele existe a partir da premissa de que,
simultaneamente intuída, ele pensa.” MARKIE, Peter. The Cogito and its Importance. IN: The
Cambridge Companion to Descartes. New York : Cambridge University Press 1992. P.146.
3
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
According to his biographer, Baillet, within a few years of Descartes' death it
was no more possible to count the number of his disciples than the stars of
the sky or the grains of sand on the seashore.^ There is no doubt that, despite
official persecution, Descartes' philosophy and science rapidly made many
converts. In Holland Cartesian ideas penetrated the universities at an early
date; the newly founded University of Breda was Cartesian from the
beginning. In France Cartesians labored under various official bans in the
universitie sand religious orders, and committed Cartesians were excluded
from the Academy of Sciences; nonetheless Cartesian views circulated freely
in more informal settings such as the salons of Paris. Moreover, even in the
universities professors were able to devise strategies for spreading Cartesian
ideas while technically complying with official bans; either they taught
Descartes' ideas without mentioning him by name or they ascribed them to
other philosophers, such as Aristotle. JOLLEY, Nicholas. The Recepcion of
Descartes’ Philosophy. IN: The Cambridge Companion to Descartes. New
York : Cambridge University Press 1992. P. 416
Portanto, é plausível afirmar que com a teoria de Descartes foi aberto um campo
filosófico novo tornando-se, assim, injustificável não se fazer apelo ao papel da razão
enquanto subjetividade ao se fazer menção aos temas referentes, por exemplo, ao
conhecimento. Por conseguinte, a contemporaneidade tem um débito incomensurável
pertinente ao pensamento cartesiano. Sartre, o outro filósofo que examinaremos, embora
de maneira distinta, pode ser considerado um exemplo de tal fenômeno. Ele, pela
repercussão de suas palavras, foi o teórico mais lido5 e discutido no seu tempo. Poucos
pensadores obtiveram, em vida, o reconhecimento público que Sartre conquistou6. Lido
por jovens, homens e mulheres comuns, acadêmicos, políticos e religiosos, sua palavra
sempre causava rupturas, incômodos, mal-estar e, também, um alento de esperança – foi
o primeiro filósofo plenamente incorporado ao mundo midiático. Tal aspecto tem como
motivo o fato de que a teoria de Sartre tem um claríssimo fio condutor, a questão da
liberdade. Isso é constatado desde a década de 30, com as obras L´imagination (1936),
La transcendance de l’ego (1937) e o romance La Nausée (1938), até o monumental
L´idiot de la famille, três volumes publicados entre os anos de 1971 a 1972 pela
Gallimard. L´etre et le neant, por exemplo, publicado em 1943, é, mais precisamente,
um ensaio de fundamentação ontológica da liberdade, mas ontologia fenomenológica.
5
Certamente não pelas obras filosóficas capitais, Ser e Nada e Crítica da razão dialética, mais restritas
ao meio acadêmico – embora os acadêmicos tivessem, à época, considerável influência na sociedade,
talvez mais que hoje, pois as pessoas, cansadas de tantas discussões inócuas, deixaram os acadêmicos
com suas eternas disputas a si mesmos, com suas vozes que ressoam solitárias nos desertos inabitados.
Mas Sartre teve a felicidade de dominar vários gêneros literários, esses sim, objetos de calorosas
discussões.
6
Entre os franceses, é possível que apenas Voltaire, dados os limites da época, conquistou a simpatia e
antipatia comparáveis às de Sartre.
RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Em outras palavras, para Sartre não há um “por trás”, uma essência das coisas.
Para ele, “As aparições que manifestam o existente não são interiores nem exteriores:
equivalem-se entre si, remetem todas as outras aparições e nenhuma é privilegiada” (SN
15). Sartre sustentou que “o dualismo do ser e do aparecer não pode encontrar situação
legal na filosofia”7 (SN 15). Em outro prisma, a “aparência não esconde a essência, mas
a revela: ela é a essência [apparence ne cache pas l'essence, elle la révèle: elle est
l'essence] (SN 16; EN 12). No entanto, uma ontologia é necessário um parti pris
transfenomenal, pois o “fenômeno de ser exige a transfenomenalidade do ser” (SN 20).
Esse fundamento é a consciência – palavra sinonímia para cogito. Contudo, Sartre tece
críticas ao modelo de pensamento cartesiano, porquanto: “O erro ontológico do
racionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto se define pela primazia da
existência sobre a essência, não poderia ser substância” (SN 28). Em outras palavras,
Sartre concentra sua atenção, ou intencionalidade, numa criteriosa análise
fenomenológica do conceito do eu, estabelecendo uma crítica atinente ao subjetivismo
oriundo de Descartes, mais precisamente, a entificação do eu, ou seja, o pensamento
cartesiano tinha como pressuposto que o eu é um ente não posicional que independe da
consciência fática. No entanto, para Sartre, seria a consciência fática o correto ponto de
partida, não o cogito entificado cartesiano.
I- Descartes e Sartre: uma abordagem
Sob a ótica quanto à questão da liberdade, em se tratando da filosofia de
Descartes e Sartre, tomaremos como referências determinados temas que se encontram
imiscuídas, são eles: 1) a questão do Cogito; 2) a questão de Deus; 3) a questão do
dualismo.
Pelo menos a filosofia assumida por Sartre, calcada na fenomenologia, que é “um nominalismo” (SN
16).
7
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
1- A questão de Deus
Quanto à questão de Deus, quando Descartes discorre sobre o problema da
liberdade, ele o relaciona com o erro e, nesse sentido, sempre delega ao homem as
responsabilidades por isso. Para Sartre:
A liberdade cartesiana se junta aqui à liberdade cristã, que é uma falsa
liberdade: o homem cartesiano, assim como o homem cristão são livres para
o Mal, não para o Bem, para o Erro, não para a Verdade. SARTRE, La
Liberté Cartésienne,, p. 75 8
Nessa perspectiva, na Quarta Meditação, onde se encontra a problemática do
erro de juízo, Descartes exime Deus do erro afirmando que Nele não poderia haver
nenhum engano ou imperfeição, pois Ele é perfeito. Entretanto, como explicar o erro?
Por que Deus deixaria que o erro existisse? Para responder isso, Descartes afirma: “o
erro não é uma pura negação, isto é, uma simples carência ou falta de alguma perfeição
que me não é devida, mas antes é uma privação de algum conhecimento que parece que
eu deveria possuir”. Sob essa ótica, nota-se a presença de dois tipos de males:
1) o mal de negação. É algo que advém da falta de alguma coisa proveniente da
natureza. Tal aspecto, no entanto, não significa um erro de Deus, porquanto Ele é
perfeito e cria cada coisa da melhor maneira possível. Assim, não podemos julgá-lo,
porque desconhecemos os seus pensamentos, já que a inteligência divina é infinita e a
nossa finita.
2) o mal da privação. Este consiste na falta de algum conhecimento que o
indivíduo deveria ter. Ele é de responsabilidade do homem, mais explicitamente, das
faculdades do juízo que são: a vontade e o entendimento. Essas são concebidas por
Deus e, por esse motivo, são perfeitas. No entanto, é por causa do uso indevido de tais
faculdades que o homem falha.
SARTRE, La Liberté Cartésienne,, p. 75 – Et la li e té a tésie e ejoi t i i la li e té h étie e, ui
est u e fausse li e té : l’ho
e a tésie e, l’ho
e h étie so li es pou le Mal, o pou le Bie ,
pou l’E eu , o pou la Vé ite .
8
RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Assim, a faculdade da vontade, por exemplo, pode ser concebida como a
semelhança do homem com o Criador, porque é de extensão infinita e, portanto, indica a
liberdade de ação, o livre arbítrio. O entendimento, por sua vez, é de extensão menor do
que a vontade. Ele é a faculdade das ideias claras e distintas. Tanto a vontade quanto o
entendimento são faculdades perfeitas. O entendimento, por sua vez, é suficiente para
que o homem tenha o discernimento do bem ou do mal.
Então, se o homem usar perfeitamente as faculdades do juízo, mantendo a
vontade nos limites do entendimento, não há erro. Em outras palavras, usando
prudentemente as faculdades, o homem evita o erro, porquanto as faculdades são
perfeitas em sua natureza, imperfeito é o uso que se faz delas e daí provém o erro que é
de responsabilidade do ser humano.
Em outras palavras, quando Descartes postula à questão da vontade ilimitada
três aspectos são relacionados a ela: 1) a liberdade, porquanto vontade ou o poder de
decisão consiste em deliberações que o sujeito pode tomar; 2) Deus, porquanto, sendo a
vontade muito extensa, ela lembra que o homem traz a imagem e semelhança de Deus;
3) a vontade tem a possibilidade de se exercitar, por si só, sem nenhum constrangimento
exterior.
Portanto, em ampla medida, o problema da liberdade, em Descartes, está
diretamente relacionado com as temáticas que tratam de Deus e da vontade. Nessa
perspectiva, a questão do erro isenta Deus de qualquer responsabilidade, por
contrapartida, libera o homem do constrangimento de Deus. Assim sendo, o livre
arbítrio cartesiano tem como característica fundamental isentar Deus da possibilidade do
erro e, ao fazer isso, Descartes reconhece a liberdade do homem. No entanto, a
liberdade do homem, sob essa ótica, está relacionada ao erro. Para demonstrar isso, nada
melhor do que a definição de vontade que diz:
Somente no fato de podermos fazer uma coisa ou não a fazer (ou seja, afirmar
ou negar, perseguir ou fugir), ou, antes, somente no fato de, para afirmar ou
negar, fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agirmos de tal modo
que não sentimos que nenhuma força exterior nos constrange a isso.9
9
DESCARTES, René. Meditações metafísicas, p. 89.
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
Em outras palavras, nem a faculdade do entendimento nem Deus podem
constranger a vontade. No entanto:
De forma que esta indiferença que sinto, quando não sou impelido mais para
um lado do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da
liberdade, e mais faz parecer um defeito no conhecimento do que uma
perfeição na vontade, pois, se sempre conhecesse claramente o que é
verdadeiro e o que é bom, eu jamais teria dificuldade em deliberar qual juízo
e qual escolha deveria fazer; e, assim, seria inteiramente livre, sem jamais ser
indiferente.10
Portanto, para Descartes, quando a vontade é perfeita, ela tem uma relação tanto
com o entendimento quanto com Deus e isso se daria não por coerção, mas pelo fato da
evidência e da certeza nas idéias claras e distintas. Assim, quando há o erro, isso tem
como causa o homem, porquanto ele, nesse caso, é livre. No entanto, quando a verdade
é alcançada, a vontade tem uma inclinação relacionada a Deus.
Nessa perspectiva, a liberdade do homem, mesmo relacionada ao erro, já deixa
margem para se pensar em um ser despojado de Deus e capaz de assumir às suas
próprias responsabilidades. Em tal afirmação pode-se, plausivelmente, anteceder uma
ênfase no recurso de Descartes à subjetividade quando afirma: “aquele que possui a
vontade firme e confiante de usar sempre a razão o melhor que lhe é possível, e praticar
nas suas ações o que julga ser o melhor, é verdadeiramente sábio, tanto quanto a sua
natureza permite que o seja.”
11
Sob essa ótica, quanto à questão da vontade, Descartes
instaura um espaço para a liberdade e para a subjetividade. Assim, a liberdade e a
indiferença são opostos, mais especificamente, “a liberdade não comporta
indiferença”12. Ela é relacionada com a decisão, com a ação referente ao bem julgar.
Porém, a palavra indiferença não aparece, univocamente, nas traduções das Meditações:
10
11
DESCARTES, René. Meditações metafísicas, p. 90.
DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1989. P. 22.
Ca ta ao pad e Mesla d, edigida e
9 de feve ei o de 1
: Co sidé ée
a tio s de la volo té, pe da t u’elles s’a o plisse t, la li e té ’i pli ue
12
aucune indifférence [...]” (Bridoux, 1996, p. 1177).
ai te a t dans les
RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
A palavra indifférent aparece no texto francês em um lugar onde, no texto
latino, a palavra indifferens não aparece. O texto francês afirma que “para ser
livre não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou outro de
dois contrários”. O texto latino, ao contrário, diz que “para que eu seja livre,
não é necessário que eu possa me mover para ambos os lados”. Em outras
palavras, o texto latino trata do poder de escolher entre duas alternativas
contrárias (denominemo-lo de poder dos contrários), enquanto que o texto
francês trata da indiferença em relação à escolha entre dois lados opostos. O
que é significado pela indiferença? Não há nenhuma definição da palavra
quando ela aparece nessa sentença. Mas ela não pode ter nenhum outro
significado além do que é explicado poucas linhas depois, quando a palavra
13
indifférence traduz a palavra latina indifferentia
Portanto, no texto latino:
O que Descartes considera como não necessário à liberdade humana, isto é,
como não constitutivo da essência da liberdade, é o poder de escolher entre
dois contrários. In utramque partem ferri posse reformula e repete em
diferentes palavras idem vel facere vel non facere posse – uma frase da
sentença anterior. Essa frase diz respeito ao poder de fazer ou não fazer
alguma coisa, o poder ou a habilidade de escolher uma ou outra de duas
alternativas. A liberdade então, em 1641, não pressupõe um poder dos
contrários, mas consiste somente em não ser constrangido: ela é o movimento
espontâneo em direção a alguma coisa
E na tradução francesa das Meditações:
O que Descartes considera como não necessário à liberdade humana, isto é,
como não constitutivo de sua essência, o que ele dissocia da liberdade, é o
estado de indiferença ou hesitação ou equilíbrio causado pela ignorância. Ao
fazer essa mudança, o texto francês, publicado em 1647, deixa em aberto para
o leitor pensar se o poder dos contrários é necessário à liberdade – algo que o
original latino tinha explicitamente negado.14
13
BEYSSADE, Michelle. A Doutrina da Liberdade de Descartes: diferenças entre os textos francês e
latino da Quarta Meditação, P. 227.
14
BEYSSADE, Michelle. A Doutrina da Liberdade de Descartes: diferenças entre os textos francês e
latino da Quarta Meditação, P. 227.
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
No entanto, Sartre, por exemplo, afirma que Descartes tem duas formas de tratar
a liberdade:
Assim, encontramos em Descartes, sob a aparência de uma doutrina unitária,
duas diferentes teorias da liberdade, uma que considera este poder de
compreender e julgar que é a sua e outra que deseja simplesmente salvar a
autonomia do homem diante do sistema rigoroso de idéias15.
2 - A questão do Cogito
O tipo de liberdade cartesiana que parece ser intimamente ligada ao
entendimento faz do homem um Eu que pensa. Isso “consiste, seguramente, em ser
consciente”16 Em outras palavras, a teoria do Cogito prioriza a subjetividade, ou seja, é
com Descartes que aparece um Eu fundante. Nesse sentido, os objetos passam a ser
objetos para um sujeito a partir de um sujeito. E, segundo Heidegger: “Até Descartes,
tinha valor de ‘sujeito’ qualquer coisa que subsistisse por si mesma; mas agora o Eu
torna-se um sujeito peculiar, um sujeito em relação ao qual todas as outras coisas se
determinam agora como tais”17. É sob esse aspecto que a teoria do Cogito influenciou
grande parte dos filósofos. Portanto, não é aleatoriamente que Sartre afirma a
superioridade ontológica do Cogito. No entanto, o autor de O Ser e O Nada tece críticas
consideráveis quanto à questão da liberdade tratada por Descartes, porquanto
“admitindo a idéia de mundo é que Sartre consegue atribuir ao cogito uma dimensão
existencial que não se encontrava em Descartes”18.
Assim, embora Sartre concorde com a teoria cartesiana de que a consciência
subjetiva é uma atividade exclusivamente humana e que esse deve ser o autêntico ponto
de partida do filosofar, quanto ao aspecto do Cogito como substância, Sartre acredita
que aí há um salto, porquanto “O problema é mais saber como podemos passar da
SARTRE, La Liberté Cartésienne, p. 63 – (“Aussi trouvons-nous chez Descartes, sous l’apparence
d’une doctrine unitaire, deux théories assez différentes de la liberté, selon qu’il considère cette puissance
de comprendre et de juger qui est sienne ou selon qu’il veut simplement sauver l’autonomie de l’homme
en face du système rigoureux des idées”.)
15
“Être conscient, c’est assurément penser et réfl échir sur sa pensée [...]” (Bridoux, 1996, p. 1359).
HEIDEGGER, Que é uma coisa?, Cap. I., § 18, f, β
18
BORNHEIM, 2007, p.19
16
17
RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
consciência não-tética de si, que é o ser da consciência, para o conhecimento reflexivo
que se fundamenta nela“19. Com isso, Sartre rejeita um Ego para a consciência e o
substitui pela noção de intencionalidade. Assim, o autor de O Ser e O Nada constata
que não pode conceber uma substancialidade para a consciência. Portanto, “Se a
consciência não tem um Ego ao nível de imediatez e da não-reflexibilidade, ela não
deixa de ser pessoal. Ela é pessoal, porque, apesar de tudo, ela é reenvio a si”20. Em
outras palavras, o que Sartre denomina de presença de si mesma
se localiza na
consciência irrefletida. No entanto, nesse aspecto não há dualismo, porquanto não há
uma consciência separada de um objeto;
Dito de outro modo, a presença a si é ao mesmo tempo, numa certa medida,
separação de si. Mas, ao mesmo tempo que esta separação de si, como a
unidade da consciência é absolutamente obrigatória, visto que não estamos no
plano do sujeito e do objeto, visto que apreendemos as coisas no imediato,
esta separação é ao mesmo tempo unidade (p. 106).
Mas tal consciência não implica, somente, a consciência de si mesma,
porquanto; “a consciência implica em seu ser um ser não-consciente e
transfenomenal”21. E é nesse sentido que Sartre afirma que “a consciência sempre pode
ultrapassar o existente, não em direção a seu ser, mas ao sentido desse ser”22. Assim, a
consciência tem como característica “transcender o ôntico rumo ao ontológico”23.
Sob essa ótica, convém ressaltar que a preocupação de Sartre é em deixar claro
que não há nenhum conteúdo a priori na consciência. Ela é liberdade absoluta. Não há,
portanto, nenhum inatismo tal como visto na teoria cartesiana. Descartes inclui Deus
como consciência (na verdade, como a fonte da consciência). No entanto, Sartre
concorda com Descartes que a realidade objetiva da subjetividade humana não existe
tendo como origem algo exterior a ela mesma, porque a capacidade de autoconhecimento é essencial para a experiência consciente. Ambos concordam que tais
razões delimitam o alcance da compreensão humana. Tal aspecto é inegável e se
19
SARTRE, 1994b, p.100.
(IBID, p. 101)
21
(SN, p. 34)
22
(SN, p. 35)
23
(SN, p. 35)
20
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
encontra presente na filosofia de Descartes. Para tanto, Descartes utiliza a sua própria
capacidade de auto-consciência para chegar ao Cogito e afirma:
Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir
sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia
nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me
persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia
sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas pensei alguma coisa. Mas há
algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega
toda a sua industria em enganar-me sempre. Não há, pois dúvida alguma de
que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais
fazer com que eu nada seja, enquanto eu penso ser alguma coisa. De sorte
que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente
todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta
proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes
que a enuncio ou que a concebo em meu espírito. (DESCARTES, 1973, p.
100)
E Descartes complementa:
O pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado
de mim. Eu sou, eu existo, isto é certo; Mas por quanto tempo? A saber, por
todo o tempo em que eu penso, pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu
deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. [...] nada
sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa; isto é, um
espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me
era anteriormente desconhecida. (DESCARTES, 1973, p. 102).
3- A questão do Dualismo
É fundamental para a experiência da consciência o Eu que faz o 'pensar'. No
entanto, o Eu cartesiano parece existir em um sentido segundo o qual transcende os seus
próprios pensamentos. É sob essa ótica que o “Eu” cartesiano tem sido motivo de
muitas críticas como, por exemplo, as de Sartre. Este mesmo considerando o autoconhecimento como ponto fundamental para a consciência e admitindo que a
consciência pode conhecer e conhecer a si mesma, no entanto ela é em si um algo mais
do que isso, Sartre não concebe que existam pensamentos contidos em um Eu no
sentido cartesiano, porquanto, para Sartre, o pensamento ou a consciência não pode ser
concebidos como substância ou natureza, pois “ela (consciência)
é mais do que
RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
conhecimento voltado para si.”24. Consciência, para o autor de Ser e Nada, é algo
relacionada com a liberdade. Portanto, ela não pode ser dirigida por um Eu
transcendente. Não há, para Sartre, um Eu transcendente que, através dele, a consciência
seja derivada. Segundo afirma Sartre:
Realmente, o absoluto, aqui, não é resultado de construção lógica no terreno
conhecimento, mas sujeito da mais concreta das experiências. E não é
relativo a tal experiência, porque é essa experiência. É também um absoluto
não-substancial. O erro ontológico do racionalismo cartesiano foi não ver
que, se o absoluto se define pela primazia da existência sobre a essência, não
poderia ser substancia. A consciência nada tem de substancial, é pura
“aparência”, no sentido de que só existe na medida que aparece. Mas,
precisamente por ser pura aparência, um vazio total (já que o mundo inteiro
se encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre aparência e
existência, a consciência pode ser considerada o absoluto. (SN, p. 28)
No entanto, para Descartes, pelo contrário, a estrutura ontológica da consciência
é determinada pela relação entre "substância" pensante. Sartre, por sua vez, rejeita o Eu
cartesiano, porquanto em Descartes a ideia de consciência é relacionada à afirmação de
que o sujeito pensante é diferente do mundo físico. Assim, "eu existo" (como mente) e
"existem coisas distintas de mim mesmo" (objetos físicos). Sartre, por outro lado, tenta
superar o dualismo cartesiano de pensamento e de corpo relacionando a consciência
subjetiva ao mundo objetivo através da intencionalidade. Esta é definida como uma
atividade que envolve o mundo da facticidade objetiva, porquanto “Toda a consciência
é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objeto, e ela esgota-se
nesta posição mesma: tudo quanto há de intenção na minha consciência atual está
dirigido para o exterior.”25. No entanto, somente dessa forma, isso não se esgota,
porquanto: “Ao mesmo tempo, a consciência não é consciência só das coisas externas,
mas também de si mesma; pois uma consciência ignorante de si seria uma consciência
inconsciente, o que é absurdo. Por isso, não basta “que eu possa afirmar que esta mesa
existe em si – mas sim que ela existe para mim.”26.
24
(SN, p. 22)
(SN, p. 22)
26
(SN, p. 23)
25
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
Nesse movimento, há uma atividade consciente (ser-para-si) ao contrário do
caráter estático do mundo factual (ser-em-si). O movimento do ser-para-si é relacionado
com a liberdade. O ser-para-si é livre ao contrário do ser-em-si. Portanto, as diferenças,
quanto à questão da liberdade, em ampla medida, entre a filosofia de Descartes e a de
Sartre são relacionados às suas respectivas concepções de auto-identidade.
Considerações finais
Sartre, de certo modo, aponta a importância de um tipo de centralidade na teoria
cartesiana. A citação seguinte, que trata sobre a subjetividade, nos mostra tal
perspectiva: “Não pode nela haver, no ponto de partida, outra verdade que essa: eu
penso, logo eu sou, é a verdade absoluta da consciência se alcançando a si mesma.”27.
No entanto, Sartre, diferentemente de Descartes, afirma:
Mas a subjetividade que nós atingimos a título de verdade não é uma
subjetividade rigorosamente individual, pois nós demonstramos que no
cogito não se descobriria somente a si mesmo, mas também os outros. Pelo
eu penso, contrariamente à filosofia de Descartres, contrariamente à filosofia
de Kant, nós nos atingimos a nós mesmos em face do outro, e o outro é tão
certo para nós quanto nós mesmos. Assim, o homem que se atinge
diretamente pelo cogito descobre também todos os outros, e ele os descobrirá
como a condição de sua existência . SARTRE, Jean-Paul. L’existencialisme
est un humanisme. Présentation et notes par Arlette Elkaïm-Sartre. France:
Folio/Essais (gallimard),1996. p. 58
.
Nessa perspectiva, Descartes usa a própria capacidade de auto-consciência para
chegar ao Cogito. Ele inclui Deus como fonte da consciência e Sartre afirma que na
concepção de Descartes: “Assim, sendo Deus fonte de todo ser e de toda positividade,
esta positividade, esta plenitude de existência que é um julgamento verdadeiro não
poderá ter sua fonte em mim que sou nada, mas somente nele”28
SARTRE, Jean-Paul. L’existencialisme est un humanisme. Folio/Essais (gallimard),1996. p. 56
SARTRE, La Liberté Cartésienne, p. 70 – (“Ainsi, Dieu étant source de tout être et de toute positivité,
cette positivité, ce plénum d’existence qu’est un jugement vrai ne saurait avoir sa source en moi qui suis
néant, mais en lui”.)
27
28
RODRIGUES, O. M. GONDIM, E. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
É nesse sentido que Descartes define a consciência como uma extensão de Deus.
Entretanto, para Sartre, a consciência é um ser-para-si, livre, porquanto:
Deus, que é plenitude infinita de ser, não poderá conceber nem regrar o Nada.
Ele pôs em mim o positivo; ele é o autor responsável por tudo o que em mim
é. Mas por minha finitude e meus limites, por minha face de sombra, eu
escapo dele. Se eu conservo uma liberdade de indiferença, é por relação a
isso que eu não conheço ou que conheço mal, as idéias truncadas, mutiladas,
confusas. Para todos estes nadas, eu mesmo como nada, eu posso dizer não:
eu posso não me decidir a agir, a afirmar. Já que a ordem das verdades existe
fora de mim, o que vai me definir como29
Esse não é o caso de Descartes, porquanto para ele reside na consciência o lugar
próprio da auto-identidade, enfoque que não se diferencia de um sujeito que pensa. E é
nesse aspecto que o sentido da consciência em Sartre é o oposto de Descartes,
porquanto para o autor de O Ser e O Nada a consciência é a liberdade, é o nada.
Portanto, a rejeição de Sartre em relação ao Eu cartesiano centra-se na ideia sartreana de
consciência intencional. Com tal mecanismo, Sartre pensa superar a dicotomia sujeito /
objeto de Descartes, porquanto para a filosofia cartesiana a ideia de consciência se
baseia na afirmação de que o sujeito pensante é fundamentalmente diferente do mundo
físico objetivo. Para Descartes a liberdade não é ontologicamente problemática.
Liberdade, para ele é autonomia racional. Sartre, por outro lado,
tenta erradicar
qualquer distinção entre o Eu e o mundo. Para tanto, Sartre rejeita a consciência de algo
como substância. A consciência, para ele, não é, somente, uma atividade mental. Ela é
uma atividade vazia. No entanto, para Sartre, toda consciência transcende em si a fim
de atingir o seu objeto e o Nada é a causa da consciência. Então, nesse sentido, a
consciência intencional e o mundo objetivo são co-extensivos: Assim, Sartre tenta
SARTRE, La Liberté Cartésienne, p. 70 – (“(...) car Dieu, qui est plénitude infinie d’être, ne saurait
concevoir ni régler le Néant. Il a mis en moi le positif ; il est l’auteur responsable de tout ce qui en moi
est. Mais par ma finitude et mês limites, par ma face d’ombre, je me détourne de lui. Si je conserve une
liberté d’ indifference, c’est par rapport à ce que je ne connais pas ou ce que je connais mal, aux idées
tronqquées, mutilées, confuses. A tous ces néants, néant de mois-même, je puis dire ‘non’ : je puis ne pas
me décider à agir, à affirmer. Puisque l’ordre des vérités existe en dehors de moi, ce qui va me définir
comme autonomie, ce n’est pás l’invention créatrice, c’est le refus. C’est en refusant jusqu’à ce que nous
ne puissions plus refuser que nous sommes libres”.)
29
Descartes e Sartre: a questão da liberdade
unificar a consciência subjetiva e o mundo por meio da atividade vazia e transcendente,
ou seja, através da intencionalidade.
Portanto, embora as diferenças, as teorias de Descartes e de Sartre não são
irreconciliáveis. Ambas concordam que: 1) a consciência subjetiva é uma atividade
exclusivamente humana; 2) a capacidade de auto-conhecimento é fundamental para a
experiência consciente; 3) a realidade objetiva não se pode pensar em um sentido
consciente.
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______. L’existencialisme est un humanisme. Présentation et notes par Arlette ElkaïmSartre. France: Gallimard, 1996.
Da grande saúde em Nietzsche
Da grande saúde em Nietzsche
Bruno Wagner Santana1
Resumo
Ora, como compreender a articulação que Nietzsche propõe entre saúde e
doença a partir do que nomeou por grande saúde? Nesta, como excesso,
transbordamento de forças, pode equivaler a perigo, de modo a que plenitude e
dor não se tornem termos excludentes? Como plenitude e ocaso, excesso e
finitude2 podem conjugar-se? Como Nietzsche articula o conceito da grande
saúde, onde doença e saúde se permutam, com o conceito de vontade de
potência, excesso de forças? Eis o objetivo de nossa proposta de pesquisa, um
estudo aprofundado que, sob o enfoque de tais questões, consiste em apreender
o que Nietzsche entendeu por plenitude a partir da grande saúde.
Palavras-chave: saúde; doença; grande saúde; vontade de potência; finitude.
Rèsumé
Comment comprendre l’articulation que Nietzsche proposait entre la santé et
la maladie à partir de la grande santé? Dans celle-ci, comment l’excès et le
débordement des forces peuvent être correspondant au danger, de façon que la
plénitude et la douleur ne deviennent pas de termes contradictoires? Comment
la plénitude et le couchant, l’excès et la finitude peuvent se conjuguer?
Comment Nietzsche articule le concept de la grande santé au concept de la
volonté de puissance? Voici l’objectif de notre article, que consiste en mieux
comprendre ce que Nietzsche voulait dire d’une plénitude à partir de la grande
santé.
Mots-clés: santé; maladie; grande santé; volonté de puissance; finitude.
Em diversos momentos Nietzsche apresenta o tema da grande saúde
correlacionando-o a um sentimento de excesso, de plenitude, de uma potência em
transbordamento:
Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é ainda
longo o caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que não pode
dispensar a própria doença como meio e anzol para o conhecimento, (...) até a
amplidão e refinamento interior que vem da abundância, (...) até o excesso de
forças plásticas (...) que é precisamente a marca da grande saúde3
Bruno Wagner D’Almeida de Souza Santana é doutorando em filosofia pela PUC-RIO.
E-mail: brunowagnersou@yahoo.com.br
1
3
NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. “Prólogo”, §4.
SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
No §382 da Gaia Ciência, Nietzsche se refere à grande saúde como um estado
de “transbordante abundância e potência” em que o espírito se torna capaz de brincar
com um mundo “pleno de perigos”4; num fragmento póstumo de 1885, Nietzsche se
refere a “essa enorme saúde que não busca nem mesmo evitar a doença, esse excesso
mesmo de forças plásticas”5.
Ora, como compreender a articulação que Nietzsche propõe entre saúde e
doença a partir do que nomeou por grande saúde? Nesta, como excesso,
transbordamento de forças, pode equivaler a perigo, de modo a que plenitude e dor não
se tornem termos excludentes? Como plenitude e ocaso, excesso e finitude6 podem
conjugar-se? Como Nietzsche articula o conceito da grande saúde, onde doença e saúde
se permutam, com o conceito de vontade de potência, excesso de forças? Eis o objetivo
de nossa proposta de pesquisa, um estudo aprofundado que, sob o enfoque de tais
questões, consiste em apreender o que Nietzsche entendeu por plenitude a partir da
grande saúde.
1.
Segundo Nietzsche, visto de dentro o mundo se apresenta como vontade de
poder7, o que quer dizer que é enquanto atividade em vias de expansão ―e não de
conservação ou adaptação8― que a vida acontece. Em sua dimensão básica, a vida não
atua negativamente, mas de forma inteiramente ativa, positiva, ou seja, se exerce
violentando, ofendendo, explorando e destruindo9 com vistas a um acúmulo cada vez
maior de força10. “O aspecto geral da vida não é (...) a fome, mas antes a riqueza, a
exuberância, até mesmo o absurdo esbanjamento”11.
4
NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. §382.
NIETZSCHE, F. Fragments posthumes. Août-septembre de 1885. 40 [66].
6
NIETZSCHE. Assim Falava Zaratustra. “Prólogo”, §1; “Dos três males”, §1.
7
NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, §36.
8
NIETZSCHE. Genealogia da Moral II, §12; Gaia Ciência, §349; Além do Bem e do Mal, §13;
Fragments Posthumes, automne 1885- automne 1886, 2[63].
9
NIETZSCHE. Genealogia da Moral, II, §11.
10
Fragments Posthumes, printemps 1888, 14 [81].
11
NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, IX, §14. Gaia Ciência, §349. Além do Bem e do Mal, §259.
5
Da grande saúde em Nietzsche
E sabes bem o que é o mundo para mim? (...) O mundo: um monstro de força,
sem começo nem fim; uma força presente por toda parte, una e múltipla
como um jogo de forças e de ondas de força, acumulando-se sobre um ponto
se elas diminuem em outro; um mar de forças em tempestade e em fluxo
perpétuo (...); – queres um nome para esse universo? ― Esse mundo, é o
mundo da vontade de potência – e nenhum outro mais! E vós mesmos, vós
sois também essa vontade de potência – e nada mais que isso!12
Logo, todos os estados, sentidos e significados que buscam conservar-se
expressariam antes uma vontade de oposição à vontade potência, uma vontade de
contrapor-se ao caráter de não-fixidez e transitoriedade que caracteriza a vida, pois tudo
o que vive ― inclusive o homem, que equivocadamente julgou que a consciência era o
grau mais elevado da evolução orgânica ― cresce, luta, se metamorfoseia, fortalece-se
ou perece, de modo a que a morte se faz uma possibilidade imanente à própria vida
enquanto jogo permanente de forças que superabundam13. Com isso, correlacionada a
essa superabundância de forças, a grande saúde nos convoca a um risco, a um perigo,
qual seja, o perigo de um mundo que já não porta nenhum sentido em si.
Não é o pessimismo (...) que representa o grande perigo (...) mas a absurdez
de todo acontecimento. A interpretação moral tornou-se caduca assim como a
interpretação religiosa (...). Mas a verdadeira grande angústia é essa: o mundo
não tem mais nenhum sentido.14
Como suportar um mundo que já não porta consigo nenhum sentido a priori?
Diante da ausência de sentidos absolutos, Nietzsche irá traçar uma relação entre
superabundância, dor, saúde e trágico, problematizando dessa maneira a relação
costumeira feita entre dor e carência e sugerindo a idéia de que o sofrimento em alguns
casos – em especial no caso dos gregos – pode advir não de uma fraqueza, porém de um
alto grau de sensibilidade que por sua vez decorre de uma plenitude, de uma
superabundância que faz do homem saudável, forte, nobre, um homem também mais
exposto a situações de risco e ocasos diversos, a desorganizações, perdas, desgastes e
perigos.
12
Fragments Posthumes, juin-juillet 1885, 38 [12].
Fragments Posthumes, juin-juillet 1885. 37 [4].
14
Fragments Posthumes, août-septembre 1885, 39 [15].
13
SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
O mais rico em plenitude de vida, o deus e o homem dionisíaco, pode
permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e
todo luxo de destruição, decomposição, negação; nele o mau, sem sentido e
feio parece como que permitido em virtude de um excedente de forças
geradoras, fertilizadoras, capaz de transformar todo deserto em exuberante
pomar.15
E de que modo o trágico faz aparição nessa correlação que faz Nietzsche? De
modo a que a dor não constitua para o homem forte nenhum motivo de
desencantamento perante a vida, nem mesmo justificativa para que se ergam cultos e
hinos de glória à dor e ao sofrimento16; não, não se trata disso, mas de nos tornarmos
capazes de viver com alegria os riscos que a vida implica sem que para isso tenhamos
que extirpar o antagonismo presente em tudo que vive e cresce, assim como também
perece e se fortifica – ainda que isso muitas vezes nos acarrete feridas e experiências
nem sempre tão agradáveis, efeitos de uma guerra17. “Já não admiramos os dentistas que
extraem os dentes para que eles não doam mais...”18 É somente ao preço de um
enfrentamento que nos tornamos dignos de uma vida grande19.
Essa inter-relação entre superabundância, dor, saúde e trágico fica mais explícita
na “Tentativa de Autocrítica” feita por Nietzsche para o Nascimento da Tragédia: “Uma
questão fundamental é a relação dos gregos com a dor, seu grau de sensibilidade (...),
aquela questão de se realmente o seu cada vez mais forte anseio de beleza, (...) brotou
da carência, da privação, da melancolia, da dor.”20;
Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da ruína, do
fracasso, dos instintos cansados e debilitados (...)? Há um pessimismo da
fortitude? Uma propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o
problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma transbordante saúde,
a uma plenitude da existência? Há talvez um sofrimento devido à própria
superabundância? (...) O que significa, justamente entre os gregos da melhor
época, da mais forte, da mais valorosa, o mito trágico?21
15
NIETZSCHE. Gaia Ciência, §370.
NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, §293.
17
NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, Prólogo; I, §8.
18
NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos. V, §1.
19
Ibid. V, §3.
20
NIETZSCHE. Nascimento da Tragédia, “Tentativa de autocrítica”, §4.
21
NIETZSCHE. Nascimento da Tragédia, “Tentativa de autocrítica”, §1.
16
Da grande saúde em Nietzsche
Num fragmento póstumo de 1887, Nietzsche afirma que, diante do enigma da
existência, diante de uma natureza que é indiferente ao homem, e que por isso mesmo é
grande e bela, os espíritos heróicos são aqueles capazes, por um excesso de força, de se
auto-afirmarem na crueldade trágica, duros o bastante para experimentar o sofrimento
como um prazer, com alegria22. O herói trágico acena assim necessariamente para uma
tensão e para a auto-afirmação de si nessa tensão, pois é justamente aquele que se
glorifica em luta, e não há luta ― caráter fundamental da vida23 ― sem que haja
tensão; o herói trágico é aquele que é capaz de suportar como um prazer superior as
mais dolorosas superações, as mais torturantes contradições e sofrimentos presentes em
seu trajeto24.
Não possuindo nem centro nem fundamento25, a vontade de potência guardaria,
para Nietzsche, uma relação primordial com uma certa indeterminabilidade. Segundo
Michel Haar, seria uma espécie de grau zero, espécie de caráter informe devido a um
excesso de possibilidades, de forças em luta, o que tornaria possível à vontade de
potência adquirir o sentido de um permanente auto-ultrapassamento26 (seja em seu
caráter ativo, ao afirmar a vida, seja em seu caráter reativo, ao negar a vida, vingá-la,
recusá-la). Ora, mas que relação se esboça aí, entre o excesso, superabundância de
forças em disputa, e um sem-fundamento, abismo?27
Segundo a direção tomada pela força (progressão ou reação), segundo a resposta
(“sim” ou “não”) às condições impostas pela vida, no seio da vontade de potência se
desdobram dois tipos de força: ativa, ascendente, nobre, ou reativa, decadente,
escrava.28 Forte, ascendente, nobre seria a vontade capaz de “espiritualizar”29, de dar
direção30 as suas próprias forças – que são nelas mesmas divergentes – sem recusá-las.
Na Genealogia da Moral, momento em que Nietzsche se propôs colocar em questão o
22
Fragments Posthumes, automne 1887, 10 [168].
Fragments Posthumes, octobre 1885-octobre 1886, 2 [205].
24
NIETZSCHE. Nascimento da Tragédia. §24.
25
HAAR, M. Nietzsche et la Métaphysique. p.25.
26
Ibid. p.28.
27
NIETZSCHE. Assim falava Zaratustra, “O Convalescente”.
28
NIETZSCHE. Genealogia da Moral. I, §7, §10.
29
NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos. V, §1.
30
No aforismo §521 de Humano, Demasiado Humano Nietzsche afirma que Grandeza significa: dar
direção.
23
SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
valor dos valores31 usados pelo homem para nomear a vida, os valores nobres aparecem
como tendo por base uma constituição física poderosa, uma saúde florescente,
transbordante32, plena, caracterizada por um excesso de forças plásticas33 ― o que
significa dizer que os valores nobres não procuram se vingar da vida enquanto vontade
de poder, enquanto manifesta por forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras
de novas formas34, que não se guiam por um ideal de conservação, mas justamente se
afirmam nessa dimensão em que a vida na sua totalidade se caracteriza por ser ação,
movimento e luta35, requerendo para tanto a capacidade de experienciar transformações,
ascensões e ocasos permanentes. Já a moral escrava, por outro lado, expressaria uma
força fraca, negativa, decadente, pois nela a vida tomada enquanto transitoriedade,
vontade de potência, valeria apenas como ponte para outra existência36. Na tentativa de
abolir a falta de sentido para o sofrimento37, o tipo fraco irá tratar a vida como um
erro38, buscando mesmo negá-la. No homem decadente a vitalidade fisiológica
encontra-se assim diminuída39, pois ali onde o instinto de vida pulsa intensamente, ali
ele só enxerga erro, dor, sensualidade, multiplicidade, ilusão – sensações contra as quais
ele buscará erigir e fixar valores “absolutos”, norteando-se de tal modo por um ideal de
conservação, ideal que busca preservar-se a qualquer custo da transitoriedade que
caracteriza a vida. O tipo ascético, expressão dessa vontade fraca, desse homem
decadente, expressaria segundo Nietzsche a condição doentia do homem, frustrada,
sofredora: o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que
degenera.40
No entanto, e por outro lado, Nietzsche chega a afirmar em outro momento que
haveria como que um estado de doença primeiro que caracterizaria a condição humana
de uma maneira geral, e que só a partir dessa doença primeira o asceta como tal poderia
tornar-se doente.
31
NIETZSCHE. Genealogia da Moral. Prólogo, §6.
Ibid. I, §7.
33
Ibid. I, §10. É interessante notar que Nietzsche se refere a um “excesso de forças plásticas” já em 1874,
mais especificamente na Segunda Consideração Extemporânea, §1; e que no §4 do prólogo de Humano,
Demasiado Humano ele afirme ser o “excesso de forças plásticas” justamente a marca da grande saúde.
34
NIETZSCHE. Genealogia da Moral. II, §12.
35
Ibid. I, §13.
36
NIETZSCHE. Genealogia da Moral, III, §11.
37
Ibid. II, §7.
38
Ibid. III, §11.
39
Ibid. III, §11.
40
Ibid. III, §13.
32
Da grande saúde em Nietzsche
Qual a origem dessa condição doentia [do asceta]? Pois o homem é mais
doente, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro animal, não
há dúvida – ele é o animal doente: de onde vem isso? (...) – como não seria
um tão rico e corajoso animal também mais exposto ao perigo, o mais longo
e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?41
Vemos aí se desenharem dois sentidos para um mesmo termo –“doença”. No
primeiro sentido, “doença” refere-se ao tipo asceta, reativo, manifesto pelo “Não” que o
caracteriza42; entenda-se, o asceta é doente por “recusar”, por rejeitar a vida enquanto
vir-a-ser, expansividade, enquanto vontade de potência. Já o segundo sentido refere-se
ao tipo nobre, tipo que se caracteriza por portar-se diante da vida de modo afirmativo; o
nobre é aquele que diz “Sim” a si mesmo e à vida na sua inteireza, capaz de tomar a
inconstância e indeterminação da vida como meios possíveis para que nele a vida se
intensifique ainda mais, para que a coragem nele aumente. O tipo nobre é aquele para
quem até no ferimento se acha o poder curativo43.
Nesse segundo sentido, “doença” não caracterizaria aquele positivo “grau zero”
da vontade de potência, de que fala Michel Haar? Aquele excesso de forças, ao invés de
uma falta de forças? Não seria esse mesmo grau zero a dimensão que possibilitaria o
deslocamento de perspectivas44, característica daqueles que conquistam a “grande
saúde”? Se a vida porta consigo uma desarmonia insolúvel45, isso não nos parece advir
pelo fato de lhe ser inerente uma falta, uma negatividade, mas, pelo contrário, advém do
fato da vida, segundo Nietzsche, ser excesso, vontade de potência. Logo, conquistar a
grande saúde implicaria uma “conquista” da transitoriedade, um “saber” do movimento
de ascensão e queda de todos os valores diante da vida; conquistar a grande saúde
implicaria assim também saber perdê-la. No entanto, perder a saúde nesse caso não seria
o mesmo que deixar de ser “saudável”, pois, no que diz respeito à grande saúde, a
doença advém como privilégio daquele que é forte o bastante para oferecer-se à vida, à
41
Ibid. III, §13.
Chamemos atenção para o fato de que nem todo “não”, nem toda atitude negativa corresponde a um ato
próprio do asceta. O momento em que Nietzsche faz uma análise acerca do “sim” e do “não”, o primeiro
caracterizando a moral nobre e o segundo caracterizando a moral escrava, diz respeito mais propriamente
à “Primeira Dissertação” da Genealogia da moral, momento em que o problema do ideal ascético, que
apenas aparecerá na “Terceira Dissertação”, sequer é colocado.
43
NIETZSCHE.Crepúsculo dos Ídolos. Prólogo.
44
NIETZSCHE. Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, §1.
45
NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. I, §32.
42
SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
aventura da vida, daquele que por uma transbordante saúde é capaz de brincar com o
perigo46, e não daquele que busca preservar-se da vida a qualquer custo.
Nossa hipótese é a de que, relacionada à vontade de potência, referida portanto a
um nível imoral, fisiológico, a grande saúde decorre de um grande acontecimento47 ― a
ausência de valores absolutos ― o que por sua vez convoca o homem a viver num
mundo pleno de perigos48, o perigo de um mundo que já não traz consigo nenhum
sentido em si49 e que se comporta por uma pujança de forças em luta50, fartura de um
combate que não tem por aspiração nenhum estado durável51. Por conseqüência, não
poderia haver também nenhuma saúde em si52, mas antes uma grande saúde, aquela que
é capaz de afirmar-se sem subterfúgios perante uma vida que é transitoriedade
permanente, deslocamento perpétuo de perspectivas e construções de sentido que se dão
não por uma falta, mas por um excesso de forças, o que logo torna todo vivente também
mais exposto ao perigo iminente de constantes novos combates53, vitórias e ocasos.
2.
É partindo da saúde, das riquezas e superabundância de forças54, que Nietzsche
nos convoca a pensar a grande saúde, e não a partir da doença e da fraqueza, haja vista
que para Nietzsche, em termos gerais, a doença já seria conseqüência e não causa de um
declínio55. É, portanto, partindo do conceito de vontade de potência que buscaremos
investigar o cerne do problema que a grande saúde coloca.
Embora nos Fragmentos póstumos a “vontade de potência” já apareça no final
de 187656, é apenas em “De mil e um fitos”, de Assim Falava Zaratustra, que ela
aparece pela primeira vez publicada. A vontade de potência aí aparece ligada à questão
dos valores, do sentido, e este por sua vez aparece interligado à necessidade que tem o
46
Ibid. Prólogo,§4. Gaia Ciência,§382.
NIETZSCHE. Gaia Ciência. §343.
48
NIETZSCHE. Gaia Ciência. §382.
49
Fragments Posthumes, août-sptembre 1885. 39 [15].
50
Fragments Posthumes, août 1885-août 1886. 2 [205].
51
Fragments Posthumes, août 1887. (250) 10 [138]
52
NIETZSCHE. Gaia Ciência. §120.
53
NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal. §276. Crepúsculo dos Ídolos. IX, §17.
54
NIETZSCHE. Gaia Ciência. prólogo, §2.
55
NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos. IX, §33.
56
Fragmentos póstumos, final de 1876 – verão de 1877, 23 [63].
47
Da grande saúde em Nietzsche
homem de avaliar, de criar valores, pois “nenhum povo poderia viver, se antes não
avaliasse o que é bom e o que é mau”57. O problema que se coloca é: se os valores
criados por cada povo expressam “a voz da sua vontade de poder”58, como podem ao
mesmo tempo estarem remetidos à idéia de que “sem a avaliação, seria vazia a noz da
existência”59?
Como ‘vontade de poder’, ‘valoração’ e ‘vazio’ podem de alguma
maneira se articular? Seria isso possível? O problema está em que por inúmeras vezes
Nietzsche definiu a vontade de poder por um sentimento de plenitude, de abundância, e
nesse sentido não haveria qualquer espaço para algo que comportasse um ‘vazio’. Se o
mundo, a vida (da qual o homem participa), acontece para Nietzsche como por um
processo infindo de esbanjamento de forças, como entender essa relação saúde/doença,
força/fraqueza, essa duplicidade a que Nietzsche se refere ao falar da grande saúde?
Como a vontade de potência, enquanto sentimento de plenitude, pode se articular com
esses termos? Em 1888, Nietzsche afirma a esse respeito em Ecce Homo: “A perfeita
luz e alegria, mesmo exuberância do espírito, (...) harmoniza-se em mim não só com a
mais profunda fraqueza fisiológica, mas até mesmo com um excesso da sensação de
dor.”60
Como entender que essa “enorme saúde (...) não procura evitar [nem] mesmo a
doença”61? De que modo tais estados encontram-se ligados por uma transbordante
abundância e potência62? Em suma, a atual pesquisa propõe a retomada de um problema
já posto por Nietzsche em agosto de 1886 ― há talvez um sofrimento devido à própria
superabundância? 63 ― para tentar pensá-lo com a ajuda de um tema que lhe foi muito
caro, embora pouco explorado pelos estudiosos, o tema da grande saúde.
Considerações Finais
Uma vez que a vida é demasiado intensa, exuberante, excessiva, violenta,
caracterizada fundamentalmente por ser atividade64, como poderíamos fixar valores que
NIETZSCHE. Assim Falava Zaratustra, “De mil e um fitos”. p.84.
Ibid. p.85.
59
Ibid. p.86.
60
NIETZSCHE. Ecce Homo, I, §1;
61
Fragments Posthumes, août-septembre, 40 [66].
62
NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. §382.
63
NIETZSCHE. Nascimento da Tragédia, “Tentativa de autocrítica”, §1.
64
NIETZSCHE. Genealogia da Moral, II, §12.
57
58
SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
nos permitissem definir o que seja a própria vida, encerrando-a num sentido? Onde
encontrar repouso e estabilidade em meio a esse turbilhão? Muitos provavelmente se
levantariam nessa hora para dizer envaidecidos que ‘Nietzsche’ é a favor do devir, que,
para ‘Nietzsche’, bem viver é imiscuir-se no instante e deixar o fluxo da vida nos levar.
Ledo engano. Se Nietzsche por um lado foi inteiramente crítico às concepções racionais
que buscaram congelar o movimento da vida, sabia ele por outro lado que o homem por
si próprio é incapaz de abarcar a vida no seu todo, em toda sua potência; o homem é
uma ínfima parte surgida ao acaso na natureza, devendo assim lutar se não quiser ver
sua existência ser completamente aniquilada pelas forças da vida, da natureza, do
mundo.
Esse é um problema que percorre toda a obra de Nietzsche, podendo ser visto
desde o Nascimento da Tragédia, por exemplo, em que a dimensão apolínea –
caracterizada por formas bem delineadas, harmônicas, equilibradas- está sempre se
chocando com a dimensão dionisíaca – caracterizada pela embriaguez, dissolução,
indistinção e deformação dos contornos; e, o que é mais importante, se por um lado o
apolíneo não pode se abster de confrontar-se com o dionisíaco, este por sua vez não
pode ser vivido em estado puro, bruto, pois isso acarretaria a completa aniquilação de
toda existência que quisesse manter uma certa unidade e autonomia. Já na Segunda
Consideração Extemporânea, esse mesmo problema irá se apresentar do seguinte modo:
Nietzsche irá traçar uma distinção entre história e vida, para em seguida tomar parte
desta como critério de avaliação da história, o que fica claro já no próprio subtítulo da
obra: Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. O problema é: como
pôr-se a par da vida? Se por um lado Nietzsche detecta no homem moderno a “doença
da história”65 ─ doença que pretende calcular a vida arrogando-se para isso um saber
intelectual sobre ela, como se a vida pudesse ser determinada e explicada causalmente
em todas as suas dimensões pela ciência da história ─ por outro lado Nietzsche afirma
que o homem, ao contrário do animal, não pode viver de maneira inteiramente não
histórica:
Represente, para tomarmos um exemplo extremo, um homem que não
possuísse a força de esquecer e fosse condenado a ver em toda coisa um
65
NIETZSCHE. Ecce Homo, “As Extemporâneas”, §1.
Da grande saúde em Nietzsche
devir: um tal homem não acreditaria sequer em sua própria existência, não
acreditaria mais em si, ele veria tudo se dissolver numa multiplicidade de
pontos moventes e perderia o chão nessa torrente do devir: um verdadeiro
discípulo de Heráclito, ele terminaria por não ousar levantar sequer um dedo.
Toda ação exige o esquecimento, assim como toda vida orgânica exige não
somente a luz, mas também a escuridão.66
Determinar o grau em que o passado deverá ser esquecido ou não, isso é algo
relativo ao quantum de forças plásticas possui cada indivíduo, povo ou nação; em suma,
o que irá determinar essa medida é um problema que em última instância diz respeito ao
que Nietzsche entende por saúde: “o elemento histórico e o elemento não histórico são
igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de um povo, de uma cultura”.67
Há aí presente uma questão ética que clama por uma medida para a ação.
Poderíamos então ser levados a pensar que Nietzsche está obviamente apontando para
uma ética do equilíbrio, do ‘caminho do meio’ entre a história e a vida... Mas não é isso
que ele afirma na Primeira Consideração Extemporânea:
Seria um erro ver uma virtude aristotélica nessa moderação prudente, senão
sábia, e nessa mediocritas da coragem: pois essa coragem não é o meio entre
dois erros, mas entre uma virtude e um defeito – e é nesse meio entre uma
virtude e um defeito que se enraízam todas as características do filisteu.”68
“(...)o meio entre dois vícios não é sempre a virtude, mas bem
frequentemente fraqueza, paralisia, impotência. (...) Uma secura e sobriedade
extremas, uma sobriedade verdadeiramente famélica, induzem atualmente na
massa cultivada o sentimento artificial de serem signos de saúde, (...) eles
vêem saúde onde nós apenas vemos debilidade, morbidez e superexcitação
onde nós reconhecemos a verdadeira saúde.69
Não estaria Nietzsche desse modo propondo com saúde a positivação de certo
desequilíbrio?
Isto deveria valer para todos os mortais mais bem logrados de corpo e
espírito, que estão longe de colocar seu frágil equilíbrio de “animal e anjo”
entre os argumentos contra a existência – os mais finos e lúcidos, como
66
67
NIETZSCHE. Considérations Inactuelles II. §1.
Ibid. §1.
NIETZSCHE. Considérations Inactuelles I, §8.
69
NIETZSCHE. Considérations Inactuelles I, §11.
68
SANTANA, B.W. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Goethe, como Hafiz, enxergaram nisso até mesmo um estímulo mais para
viver70
De uma certa doença?
Qual seria a origem dessa condição doentia? Pois o homem é mais doente,
inseguro, inconstante, indeterminado, que qualquer outro animal, não há
dúvida (...) como não seria um tão rico e corajoso animal também o mais
exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os
animais enfermos?”71
De uma certa falta de sentido?
(...) o sacerdote ascético não hesitou em tomar a seu serviço toda a matilha de
cães selvagens que existem no homem (...) sempre com o mesmo objetivo,
despertar o homem de sua longa tristeza, pôr em fuga ao menos por instantes
a sua surda dor, sua vacilante miséria, e sempre sob a coberta de uma
interpretação e “justificação” religiosa. Todo excesso de sentimento dessa
natureza tem o seu preço, (...) ele torna o doente mais doente.72
A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se
estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!”73; ou mesmo
a positivação de uma certa impotência?
A cisão de um protoplasma em 2 intervém quando a potência não mais é
suficiente para dominar as posses adquiridas: a geração é consequência de
uma impotência. Lá onde os machos procuram as fêmeas e nelas se
propagam, a geração é conseqüência de uma fome74.
Mas quem é forte o bastante para isso? 75
70
NIETZSCHE. Genealogia da Moral, III, §2.
Ibid. III , §13.
72
Ibid. III , §20.
73
Ibid. III , §28.
74
Fragments Posthumes, automne 1885- printemps 1886, 1[118].
75
NIETZSCHE. Genealogia da Moral, II, 24.
71
Da grande saúde em Nietzsche
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Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo
Hannah Arendt: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo.
José João Neves Barbosa Vicente1
Resumo
Hannah Arendt apresentou em seu livro Origens do totalitarismo, uma forma
nova de se lidar com os acontecimentos políticos contemporâneos que,
segundo ela, desafiaram todas as nossas categorias de análise. Assim, este texto
procura expor de um modo introdutório, a maneira inédita como esses
acontecimentos foram compreendidos pela autora.
Palavras-chave: Ruptura. História. Acontecimentos. Causalidade. Estado –
nação.
Abstract
Hannah Arendt presented in its book Origins of the totalitarianism, a new form
of dealing with the events contemporary politicians who, according to it, had
defied all our categories of analysis. Thus, this text looks for to display in an
introductory way, the way as these events were understood by the author.
Keywords: Rupture; History; Events; Causality; State - nation.
Não é possível recusar, por exemplo, que Origens do totalitarismo de Hannah
Arendt é uma obra de difícil classificação. No entanto, não se pode negar, também, que
nela a autora narra histórias. Em relação ao povo judeu, ela apresenta a maneira como
esse povo veio a ser entendido como supérfluo; narra, também, como milhões de
pessoas foram transformadas em um subproduto da revolução industrial, em especial,
das políticas do imperialismo. Histórias que, no fundo, apontam de certa forma, um
caminho para alienação de um mundo comum, uma situação exacerbada após a Primeira
Guerra Mundial pela presença de um grande número de refugiados sem pátria e do peso
econômico do desemprego, entre outros fatores.
Mas, apesar de narrar histórias, e as duas primeiras partes do livro serem as mais
controversas, uma vez que Hannah Arendt faz amplas alegações históricas e
sociológicas discutindo o antissemitismo e o imperialismo, e descrevendo diferentes
incidentes a partir de diversas fontes, a fim de mostrar como o pensamento racial
1
José João Neves Barbosa Vicente é doutorando em filosofia pela UFBA.
E-mail: josebvicente@bol.com.br
VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
começou a emergir por toda a Europa, Origens do totalitarismo se diferencia da maioria
dos escritos históricos. Ele não é, por exemplo, uma tentativa positiva de contribuir com
a história de um povo e de uma cultura no sentido de preserva-los; é uma obra que ataca
para analisar e discutir o que historicamente deu errado. Não se trata, portanto, apenas
de uma história dos fatos, mas fundamentalmente, de uma genealogia de formas de
pensar.
Outra questão importante para a compreensão da obra é estar ciente que, assim
como o totalitarismo, o antissemitismo e o imperialismo são apresentados em Origens
do totalitarismo, como acontecimentos que introduziram rupturas na história humana.
São acontecimentos que não podem ser de maneira alguma, relacionados com males
antigos e analogias históricas, nem compreendidos por qualquer continuidade ou
explicação causal. Pois, de acordo com Hannah Arendt, definitivamente, o curso da
história não corresponde a um movimento irresistível à fatalidade. A obra de Hannah
Arendt, portanto, não se propõe nem a reconstituir uma sequencia histórica cujo
desenvolvimento permitiria explica o totalitarismo do como uma evolução estritamente
causal, nem mesmo assediar a genealogia que o explicaria do ponto de vista da história
das ideias.
O antissemitismo moderno para Hannah Arendt (1972, p.37), entra “no quadro
mais amplo do desenvolvimento do Estado-Nação”2. Mas, também, coincide com o
declínio desse Estado, afinal, para “que um grupo de pessoas se tornasse antissemitas
em um dado país num dado momento histórico dependia exclusivamente das
circunstâncias gerais que os levavam a violento antagonismo contra o governo” (Arendt,
1989, p.48.)3 é, de acordo com Hannah Arendt, distinto do ódio ao judeu, de origem
religiosa.
O Estado – nação, de que a França seria o exemplo “por excelência” como observou Hannah Arendt em
sua obra Da revolução (1980), é uma estrutura autônoma formada desde a Revolução Francesa,
fortificada durante o século XIX, e que criou um novo modo do ser social. Fruto de vários séculos de
monarquia e de despotismo esclarecido, essa estrutura é ambígua, assim como suas consequências.
Exigindo direito do homem universais, sempre consideram-se também como soberano e, por
consequência, não estando a nenhuma lei a ele superior, o Estado francês mostrou seus paradoxos desde o
período revolucionário. Substituiu o “homem” pelo “cidadão” nos próprios artigos da Declaração dos
Direitos do Homem, de 1798, e promulgou leis contra os estrangeiros antes de voltar-se contra a
aristocracia sob o terror.
3
Por serem ricos e praticamente desinteressados em poder político e mantendo intima relação com as
fontes do poder do Estado financiando-o em épocas de crises, os judeus eram invariavelmente
identificados com o próprio poder.
2
Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo
Dessa forma, a autora distingue o antissemitismo moderno do ódio ao judeu de
origem religiosa, rejeitando e denunciando como falsas todas as teorias que o analisam
dentro de uma perspectiva de perseguição milenar ou explicando-o pelo mecanismo do
bode expiatório4. Como nos lembra L. Dumont (1993, p.142), “a continuidade do
antissemitismo desde a Idade Media não explica a sinistra invenção do extermínio, tal
como a continuidade da ideologia alemã, está longe de explicar a catastrófica
metamorfose nazista”. A tese do bode expiatório segundo Hannah Arendt ilude
fundamentalmente a importância do antissemitismo e vai a ponto de afirmar que os
próprios judeus pensaram que o antissemitismo era um excelente meio de manter a
unidade do povo judeu e de lhe garantir uma vida eterna.
Da perspectiva de Hannah Arendt, talvez a primeira a estabelecer uma distinção
fundamental entre o antissemitismo pré – totalitário e o antissemitismo totalitário, a
teoria de bode expiatório, implica simultaneamente a total contingência da “escolha”
dos judeus como vítimas, e a sua total inocência. Recusá-la, significa no fundo, uma
recusa da causalidade em história. Para ela, nenhum passado relacionado ao povo judeu
explica por que, no século XX, “a ambição totalitária de uma dominação absoluta, que
deve ser exercida pelos membros de uma sociedade secreta e com os métodos
correspondentes, pode tornar-se um objetivo político sedutor” (Arendt, 1972, p.19).
Hannah Arendt demonstra que, contrariamente a uma opinião muito facilmente
recebida, esse antissemitismo moderno não é fruto do nacionalismo tradicional, mas
que, ao contrário, este se desenvolve à medida que declina o Estado – nação.
Os “judeus da corte”, nos séculos XVII e XVIII, graças a seus aportes
financeiros, já eram influentes junto à monarquia. Os “Estados – Nações” que surgem
depois da Revolução Francesa têm mais necessidades de capitais; em troca de seus
empréstimos, são ampliados os direitos dos judeus. Contudo, no fim do século XIX,
com o nascimento do imperialismo, os homens de negócios são levados a envolver-se
politicamente; os judeus que não participam das colonizações, veem sua influência
4
O bode expiatório nada mais é do que um indivíduo, grupo ou categoria de pessoas usados como objeto
de culpa no sistema social. Essa figura fornece mecanismo para dar vazão à raiva, à frustração, ao
ressentimento, ao medo e outras emoções que, de outra forma, seriam expressadas de maneira que
danificariam a coesão social, contestariam o status quo ou atacariam os grupos dominantes e seus
interesses. Imigrantes e MINORIAS, por exemplo, são muitas vezes usados como bodes expiatórios
durante épocas de dificuldades econômicas e considerados causa de desemprego e de outros problema
sociais. Como resultado, certos aspectos de sistemas sociais que geram crises econômicas, tais como a
competição e a exploração capitalista, são ocultados do público e de possível crítica.
VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
diminuir. Por fim, no século XX, tanto a comunidade judia quanto o Estado – Nação se
desintegram, e os judeus passam a ser alvo de ódio,
cada classe da sociedade que, em um momento ou outro, entrava em conflito
com o Estado tornava-se antissemita porque os judeus eram o único grupo
social que parecia representar o Estado (Arendt, 1972, p.68).
O antissemitismo se revelou uma arma de tão grande eficácia que era agitada por
diversos escândalos financeiros e pelo mito de uma internacional judaica que
manipulava os destinos políticos da terra. Desse antissemitismo político, Hannah Arendt
faz questão de destacar com cuidado, o antissemitismo social que acontece não em um
grupo separado, mas em um grupo no qual a emancipação se conciliou com a igualdade;
quanto mais esta se afirma, mais se aprofunda uma discriminação animada por
sentimento da diferença que suscita, “ao mesmo tempo, o ressentimento social contra os
judeus e um atrativo particular” (Arendt, 1972, p.127). Nesse caso também, alerta
Hannah Arendt, é preciso desconfiar das ideias preconcebidas: não é a sociedade que
segrega progressivamente os judeus; eles mesmos, desde o fim do século XVI, afastamse dos grupos sociais e rejeitam a integração em nome de uma eleição superior e mítica
do povo judeu. E quando, no século XIX, os primeiros partidos antissemitas denunciam
uma peseudo-sociedade secreta judia que desejaria tomar o poder, já é tarde demais.
Quanto ao imperialismo5, esse desejo insaciável de expansão e de colonização
do Estado – Nação no final do século XIX(mais precisamente, de 1884 até 1914),
baseado fundamentalmente no princípio proferido por Cecil Rhodes, “expansão é tudo”,
ou “expansão por amor a expansão, expansão sem limite onde nações inteiras eram
vistas como simples degraus para a conquista das riquezas e para o domínio de um
terceiro país que por sua vez, se tornava mero degrau no infindável processo de
5
O imperialismo é o último estágio do capitalismo, para Hannah Arendt, porém, o imperialismo deve ser
considerado o primeiro estágio do domínio político da burguesia e não o último estágio do capitalismo.
Tudo começou com uma mudança econômica. Por exemplo, observando a Europa de fins do século XIX,
percebe-se um rápido crescimento da produção industrial, de repente, superabundância de capital. A GrãBretanha, a França, a Alemanha e a Bélgica voltaram-se para ultramar a fim de empregar esse capital,
ocupando para esse fim novos e vastos territórios. Em menos de vinte anos, o império Britânico a
adquiriu 12 milhões de quilômetros quadrados e 66 milhões de almas, a Alemanha 2,5 milhões de
quilômetros quadrados e 13 milhões de novos habitantes, a Bélgica 2,3 milhões de quilômetros quadrados
e 8,5 milhões de habitantes, ou seja, a “megalomania” dessa política mundial.
Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo
expansão e de acúmulo de poder, distingue-se de acordo com Hannah Arendt (1989,
p.147-48)
tanto das conquistas de características nacional antes levadas adiantes por
meio de guerras fronteiriças, quanto da política imperialista da verdadeira
formação de império, ao estilo de Roma... Nada caracteriza melhor a política
de poder da era imperialista do que a transformação de objetivos de interesse
nacional, localizados, limitados e, portanto, previsíveis, em busca ilimitada
de poder, que ameaça devastar e varrer o mundo inteiro sem qualquer
finalidade definida, sem alvo nacional e territorialmente delimitado e,
portanto, sem nenhuma direção previsível (Arendt, 1990, pp.147-148.).
Essa política imperialista, portanto, que estabelece “a expansão como objetivo
permanente e supremo” (Arendt, 1989, p.155.), não constitui, segundo Hannah Arendt,
um princípio político: encontra antes as suas raízes na especulação mercantil, no desejo
de escoar os excedentes de produção em novos mercados; conseqüência da
emancipação política da burguesia.
Marca, portanto, a subordinação da política á administração. Uma vez os
interesses privados tendo sido transformados em princípios políticos, o poder se reduz,
com efeito, a uma dominação pela força, e a exportação de capitais só poderá conduzir à
exportação da violência. Concretamente, os pilares da empresa foram o racismo e a
burocracia.
Ora, para nós, no entanto, o mais importante neste momento é compreender em
que sentido Hannah Arendt concebeu aqueles dois acontecimentos, como “Origens” do
totalitarismo, sendo que, para ela, não há espaço para uma explicação causal desse
fenômeno e muito menos, de uma acusação direta de pensadores ou instituições, como
responsáveis pelo surgimento desse regime político6, uma vez que é impossível deduzir
de quaisquer elementos passados as causas necessárias de explicação desse
Macridis (1982, p.202-206), aponta para pensadores como Nietzsche, com o seu conceito de “Super
homem”; Schopenhauer, com o seu conceito de “o mundo é uma idéia minha...”; Platão, com a sua
definição do mito como uma “mentira de ouro”; Darwin, com a sua noção de sobrevivência dos mais
preparados, etc, como sendo “raízes intelectuais do totalitarismo”; Friedrich (1970) interpreta Rousseau
como uma espécie de “pai da filosofia totalitária”; Popper (1987, p.69-88), acentua a influencia das idéias
sobre os acontecimentos e acusa os “falsos profetas” Hegel e Marx de terem gerados, respectivamente,
Hitler e Stalin. Segundo Popper, “Hegel desenvolveu a teoria histórica e totalitária do nacionalismo”, ou
seja, “quase todas as idéias mais importantes do totalitarismo moderno são diretamente herdadas de
Hegel”; Kelsen (2000, p.210) responsabiliza Platão, e também afirma de que a Igreja é “o mestre do
Estado totalitário em quase todos os seus aspectos”. Enfim, a lista poderia estender-se muito mais.
6
VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
acontecimento, no sentido de que eles tinham inexoravelmente de produzi-lo. A
resposta só poderá ser encontrada naquilo que a nossa autora denominou por
cristalização.
Na conjugação do racismo e do sistema burocrático, na primeira fase do
imperialismo, onde terras imensas caíram sob o domínio completo, não da lei, mas do
decreto, onde seus nativos eram classificados como cidadãos inferiores na mera base de
raça ou cor e que esteve na origem das selvagens matanças de Carl Petters, no Sudoeste
Africano Alemão, a dizimação da pacata população do Congo reduzida de 20 milhões
para 8 milhões, Hannah Arendt vê um caso de cristalização. Afinal, a “causa” desses
massacres residia, portanto, no encontro de duas “causas parciais”, que, inicialmente,
não estavam ligadas por nenhuma necessidade intrínseca. Percebe-se que antes da sua
conjugação no acontecimento do imperialismo, nem o racismo nem a burocracia teriam
podido abrir-se à dedução do imperialismo.
A burocracia é certamente o tipo mais complexo e altamente desenvolvido de
organização formal. Da forma como foi desenvolvido por Max Weber, por exemplo, o
conceito se refere a uma organização na qual o poder é distribuído em uma hierarquia
rígida, com nítidas linhas de autoridade. A divisão do trabalho é complexa, o que
implica dizer que pessoas se encarregam de tarefas minuciosamente especializadas e
trabalham sob regras e expectativas definidas de forma clara, em geral escritas. São
mantidos registros por escritos e gerentes se especializam em supervisionar o sistema. O
cumprimento dos objetivos da organização tem precedências sobre o bem-estar dos
indivíduos, e a racionalidade impessoal é valorizada como base para a tomada de
decisões à luz desses objetivos.
Portanto, de acordo com Hannah Arendt, o governo totalitário não foi importado
da Lua, o que conseqüentemente, faz cair por terra, como sem fundamento, qualquer
tentativa de “acusá-la de teorizar um totalitarismo misteriosamente caído do céu”
(Chatelet, 1993, p.45.), mas sim, brotou no mundo não totalitário cristalizando
elementos que ali encontrou (Arendt, 1993, p.41.). Nesse sentido, o totalitarismo é da
perspectiva arendtiana, uma “criação” exclusivamente humana. Isto é, como ela mesma
disse: “esse corpo político absolutamente ‘original’ foi planejado por homens e, de
alguma forma, está respondendo a necessidades humanas” (Arendt, 1989, p.526.). é um
novo tipo de formação política que não tem precedentes e que difere dos outros tipos de
Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo
tiranias políticas. Para Hannah Arendt, apenas duas marcas registradas caracterizaram as
tiranias ao longo dos tempos:
de um lado, o poder arbitrário, sem freio das leis, exercido no interesse do
governante e contra os interesses dos governados; e de outro, o medo como
princípio de ação, ou seja, o medo que o povo tem pelo governante e o medo
do governante pelo povo (Arendt, 1990, p.513.).
Algo importante a ser salientado é que, nessas tiranias, a pessoa tinha a liberdade
de pelo menos, escolher a oposição, uma liberdade limitada sim, pois sabia que corria o
risco de ser torturada ou morta; porém, uma liberdade recusada à vítima do sistema
totalitário. Pois, o totalitarismo só se contenta, quando eliminar não apenas a liberdade
em todo sentido específico, mas a própria fonte da liberdade que segundo Hannah
Arendt, está no nascimento do homem e na sua capacidade de começar de novo.
Conforme nos lembra Hitler, por exemplo,
a missão principal dos Estados Germânicos é cuidar e pôr um paradeiro a
uma progressiva mistura de raças. A geração dos nossos conhecidos
fracalhões de hoje naturalmente gritará e se queixará de ofensa aos mais
sagrados direitos dos homens. Só existe, porém, um direito sagrado e esse
direito é, ao mesmo tempo, um dever dos mais sagrados, constituindo em
velar pela pureza racial, para, defesa da parte mais sadia da humanidade,
tornar possível um aperfeiçoamento maior da espécie humana. O primeiro
dever de um Estado nacionalista é evitar que o casamento continue a ser uma
constante vergonha para a raça e consagrá-lo como instituição destinada a
reproduzir a imagem de Deus e não criaturas monstruosas, meio homem meio
macacos. Protestos contra isso estão de acordo com uma época que permite
qualquer degenerado reproduzir-se e lançar uma carga de indizíveis
sofrimentos sobre os seus contemporâneos e descendentes, enquanto, por
outro lado, meios de dividir a procriação são oferecidas à venda em todas as
farmácias e até anunciados pelos camelôs, mesmo quando se trata de pais
sadios (Hitler, 1983, p.252.).
O totalitarismo utiliza, de acordo com Hannah Arendt, da “ideologia” como
instrumento essencial para explicar absolutamente e de maneira total o curso da história:
“os segredos do passado, as complexidades do presente, as incertezas do futuro”
(Arendt, 1989, p.521.). Por um lado, ela forma um sistema de interpretação definitiva do
mundo, mostra uma pretensão em explicar tudo, por outro, afirma desde logo o seu
VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
caráter irrecusável, infalsificável. Ela é mobilizada para que ninguém jamais comece a
pensar, ou pelo menos, como nos lembra Bauman (2000, p.94.), para tornar o
pensamento dos indivíduos “impotente, irrelevante e sem influência para o sucesso ou
fracasso do poder”. Ela arruína todas as relações com a realidade e constrói um mundo
fictício e logicamente coerente.
Em lugar das fronteiras e dos canais de comunicação entre os homens
individuais, constrói um cinturão de ferro que os cinge de tal forma que é
como se a sua pluralidade se dissolvesse em Um-Só-Homem de dimensões
gigantesca... Pressionando os homens, uns contra os outros, o terror total
destrói o espaço entre eles (Arendt, 1989, p.518.).
Desta forma, através de um método perfeitamente original, Hannah Arendt se
esforça para analisar esses elementos que se cristalizaram no totalitarismo, onde vê
fundamentalmente, um regime perfeitamente novo, de maneira alguma pré – formado
ou virtualmente presente em suas “causas”. Por isso o livro Origens do totalitarismo
não deve ser considerado como uma história do totalitarismo, mas uma análise em
termos históricos dos elementos que cristalizaram no totalitarismo. Além da ruptura, a
historiografia arendtiana do totalitarismo é orientada também, por uma outra premissa, a
saber, é o evento em sua cristalização presente que ilumina o seu passado, permitindo
que se encontrem as suas origens).
Tudo isso significa fundamentalmente que, para Hannah Arendt, compreender
um acontecimento pressupõe essencialmente, “retraçar” a sua história:
anti-semitismo e imperialismo não contêm os germes de um totalitarismo pré
– formado, mas o privilégio de retroação permite, no entanto, descobrir aí
“elementos” que, “cristalizando” segundo certos eixos, entram em
composição dentro das seqüências parcialmente convergentes, e conferem
uma relativa inteligibilidade ao inaudito (Chatelet, 1993, p.45.).
Ora, é esse retraçar, esse privilégio que tem o pensamento de se retroagir que
possibilitou a Hannah Arendt descobrir os elementos do anti-semitismo e do
imperialismo, tais como os eurocentrismo, entre outros, que apesar de não serem por
Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo
separados em si, totalitários, sentimentos antijudaicos, o racismo, a burocracia, a crise
dos estados nacionais, o cristalizaram no fenômeno totalitário permitindo assim pensar
aqueles dois acontecimentos como “origens” do totalitarismo.
É, portanto, nesse sentido, e só nesse sentido, que se pode afirmar que, da
perspectiva de Hannah Arendt, o totalitarismo é, de fato, formado por uma amálgama de
elementos, ou ainda, que cristalizou elementos de várias proveniências7.
Fica claro, também, de que da perspectiva de Hannah Arendt, compreender um
acontecimento pressupõe, além de qualquer coisa, “buscar a explicitação e a
confirmação dos caminhos que foram seguidos, para que um dado evento viesse a
ocorrer” (Bignotto, in: Aguiar, et ali. Org. 2001, p.44.).
Portanto, ler e compreender a obra Origens do totalitarismo significa acima de
tudo, considerá-la uma obra que não pode ser lida de diante para trás, como uma obra
comum, mas sim, uma obra que deve ser lida essencialmente de trás para diante, pois,
como disse Hannah Arendt, a respeito dos eventos políticos do nosso tempo, nenhum
acontecimento pode ser deduzido do seu passado, ou melhor: “o acontecimento ilumina
7
Em um colóquio recente, realizado em Fortaleza, Ceará em comemoração aos 50 anos da obra Origens
do totalitarismo, professor A. Duarte resumiu de um modo claro, a maneira como Hannah Arendt pensou
o anti-semitismo e o imperialismo como “origens” do totalitarismo principalmente em sua variante
nazista. Por isso, achamos importante transcrevê-lo neste espaço. Para ele, esses dois acontecimentos “só
puderam ser pensados como origens a partir do momento em que o próprio passado recebeu sua devida
iluminação, derivada do súbito acontecimento de algo novo e inédito na história ocidental: a fabricação
em massa da morte de milhões de seres humanos. Assim, foi tomando como ponto de referência a política
de extermínio levado a cabo nos campos de concentração que Arendt pôde atribuir um novo sentido a
certas condições sociais precedentes, entre as quais enumero as seguintes: a conversão do anti-semitismo
tradicional e religioso de mero preconceito social em um potente combustível para a discriminação
política legalizada, na medida em que, a partir de meados do século XIX, o anti-semitismo passou então a
referir-se à figura do judeu em geral, independentemente de suas atitudes particulares. A identificação,
por parte da sociedade civil, entre os judeus e o aparelho do Estado nacional durante o século XIX, daí
resultando que estes foram tomados como alvos preferenciais dos conflitos entre sociedade e Estado. A
ilusão social de que os judeus eram poderosos politicamente, ao passo que não tinham poder efetivo ou
qualquer articulação política própria. A própria autocompreensão dos judeus assimilados, que assumiram
sua identidade em termos de um conjunto de características naturais inatas, o que em muito favoreceu a
idéia do seu extermínio como solução viável para lidar com a questão judaica. Visto retrospectivamente, o
expansionismo imperialista do final do século XIX pôde ser considerado como gerador de condições que
foram levadas ao paroxismo nos regimes totalitários, tais como a decadência do Estado – nação e de suas
estruturas institucionais; a definição da conquista global de territórios fundada na expansão em nome da
expansão como padrão de governo; o racismo como justificativa biológica da dominação de povos; o uso
da burocracia como instrumento de dominação política dos povos conquistados, etc. Todos esses fatores
contribuíram decisivamente para o sentimento de uma crescente superfluidade dos seres humanos, a qual
se agravou durante e após a Primeira Guerra Mundial, que trouxe os fenômenos do desemprego
generalizado, da inflação descontrolada e o grande deslocamento geográfico de massas humanas que se
viram privadas de um ‘lugar no mundo’, pois destituídas de cidadania, de propriedade privada e de função
econômica” (Duarte, in: Aguiar, et ali. Org. 2001, p.64-65.).
VICENTE, J.J.N.B. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
o próprio passado; jamais pode ser deduzido dele” (Arendt, 1993, p.49.).
Essa é certamente, a fórmula essencial para quem quer compreender a obra
fundamental de Hannah Arendt; de uma outra maneira, principalmente da maneira como
a
historiografia
moderna
propõe
compreender
os
acontecimentos
baseada
fundamentalmente numa análise causal, seria uma postura essencialmente contraditória
com a postura da autora. Ou como muito bem nos lembra O. Aguiar,
vale dizer, ao tentar escrever sobre a experiência totalitária, Arendt se viu
diante de um “problema epistemológico”, pois essa experiência não podia ser
explicada, não se enquadrava nos conceitos tradicionais, não podia ser
entendida como culminação de um processo, como desenvolvimento de uma
única causa encontráveis no passado. Não era o passado que poderia iluminar
e explicar o seu aparecimento. Não se tratava de uma evolução, de algo que
podia ser deduzido de uma causa antecedente. A saída que Arendt encontrou
foi narrar a experiência. Nessa prática verificou que, ao contrário, o próprio
acontecimento ilumina o que o passado pode a ele estar relacionado (Aguiar,
2001, p.203.).
Se existe, no entanto, algo em comum entre o Antissemitismo, Imperialismo e o
totalitarismo é exatamente não poder ser relacionados com males antigos e analogias
históricas que, de acordo com a nossa autora, ocultariam com certeza suas
especificidades e devem, portanto, ser totalmente banidos. Assim, é necessário, para a
compreensão do pensamento arendtiano, levar sempre em consideração que, o
acontecimento ou a ação não conhece nenhuma causa no sentido estrito do termo, tratase na verdade, de recusar o fatalismo e o determinismo.
Essa postura não quer dizer, no entanto, opor-se à explicação causal a
incapacidade do homem para compreender o seu passado e para agir sobre a sua história
futura, nem negar a legitimidade da explicação causal, todavia, significa uma severa
crítica à primazia, e mesmo à exclusividade, que lhe é demasiadas vezes concedida pela
historiografia moderna. Portanto, se a autora sustenta que o sentido de cada ato, de cada
acontecimento, só pode ser revelado por ele próprio,
Isso de certo não exclui seja a causalidade seja o contexto em que alguma
coisa ocorre... no entanto, causalidade e contexto eram vistos sob uma luz
fornecida pelo próprio evento, iluminando um seguimento específico dos
Hannah Arendt: Antisemitismo, imperialismo e totalitarismo
problemas humanos; não eram considerados como possuidores de uma
existência independente de que o evento seria apenas a expressão mais ou
menos acidental, conquanto adequado. Tudo que era dado ou acontecia
mantinha sua cota de sentido “geral” dentro dos confins de sua forma
individual e aí a revelava, não necessitando de um processo envolvente e
engolfante para se tornar significativa (Arendt, 1988, p.96.).
O pensamento de Hannah Arendt, nesse sentido, parece concordar-se claramente
com o pensamento de Tocqueville, quando este não dá razão às pessoas das letras que
veem em todos os lados causas gerais, nem aos homens políticos que consideram que
tudo deve ser atribuído a incidentes particulares,
Odeio, de minha parte, estes sistemas absolutos, que fazem depender todos os
acontecimentos da história de grandes causas primeiras, ligando as umas às
outras por uma cadeia fatal, e que suprimem, por assim dizer, os homens da
história do gênero humano. Eu os acho limitados em sua pretensa grandeza, e
falsos sob seu ar de verdade matemática.(Tocqueville, 1991, p 234).
Referências bibliograficas
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TOCQUEVILLE, Alex. Lembranças de 1848: as jornadas revolucionarias em Paris.
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Entrevista
Entrevista
Rosa Maria Dias é doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e professora adjunta de Filosofia na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). É autora de "Nietzsche educador" (2003), "Nietzsche e a música"
(2005), "Amizade estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche" (2009) e "Nietzsche,
vida como obra de arte" (2011). Sobre este último, o professor Evando Nascimento diz
que "a força deste trabalho de Rosa Dias, autora de inúmeros e amplamente
reconhecidos trabalhos sobre o pensador do Eterno retorno, consiste em ser dotado da
capacidade inventiva dos textos a que se refere. Cada categoria é recriada no sentido de
percorrer com um novo olhar o jogo das avaliações nietzschianas. Desse modo, abre-se
o pensamento para o porvir como transmutação deste nosso tempo de agora, com
auxílio da arte. Haveria tarefa mais ambiciosa para qualquer intérprete e
pesquisador(a)?"
Ensaios Filosóficos: Em primeiro lugar, gostaríamos de agradecer-lhe por esta
conversa. É um enorme prazer poder divulgar aos nossos leitores a experiência que
tivemos ao longo dos últimos anos estudando ao seu lado. Sua relação com a filosofia
parece ser indissociável daquela que a senhora tem com a arte, com o cinema (cabe
lembrar aqui o Dias de Nietzsche em Turim (2001), filme roteirizado pela senhora,
premiado no Brasil e na Europa). Como a senhora chegou à filosofia e o que a fez
manter-se nela? Em muitos momentos, sua trajetória indica uma ultrapassagem dos
limites entre filosofia e arte, expressa uma tentativa de abordar a filosofia como arte, a
vida como arte. Poderia nos falar um pouco sobre isso?
Rosa Dias: Eu também quero agradecer pela conversa. Gostei das questões que me
foram colocadas e das palavras sempre carinhosas com as quais vocês se dirigiram a
mim.
Eu cheguei à filosofia pelas mãos da Marilena Chaui. Ela foi minha professora
no Clássico do Colégio Alberto Levy, em São Paulo. Fiz dois anos de filosofia na USP.
Nessa Universidade continuei a seguir os seus cursos. Em setembro de 1969, fui para
DIAS, R. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Londres por motivos pessoais e políticos e ali meu interesse pela filosofia ganhou força.
As conversas com os amigos na casa de Dedé e Caetano, Gil e Sandra com Jorge
Mautner e Péricles Cavalcanti duravam às vezes dias inteiros. Foram fundamentais para
mim. Foi através dessas conversas que comecei a estudar Nietzsche. Dioniso era sempre
evocado. Da Tropicália passei para o cinema. Passar para o cinema não foi difícil,
sempre me interessei por cinema, creio mesmo que a máquina desejante que me fez
aproximar e me faz viver até hoje com o Julio Bressane é, de certa maneira, o cinema.
Sobretudo o cinema experimental que sempre me cativou. Com Julio aprendi e aprendo
boa parte do que sei sobre arte e filosofia da imagem.
Voltei para o Brasil no final de 1973 e três anos depois em 1976, voltei para a
Universidade. Fiz graduação na PUC-RJ e terminei meu curso de mestrado e doutorado
no IFCS.
Todos esses envolvimentos afetivos me ajudaram a relacionar sempre filosofia/
arte e vida. Hoje me interesso, sobretudo, pela vida como obra de arte. Essa ideia que
trabalhei no meu livro Nietzsche, vida como obra de arte me encanta mais do que do
que a arte propriamente dita. Mas isso não quer dizer que eu tenha perdido o interesse
pela arte. Muito cedo, desde a década de 70, nas minhas primeiras leituras da filosofia
de Nietzsche, percebi que ele nos convidava a trabalhar a vida como uma obra de arte.
Um ensinamento brota de seus livros: é preciso observar que a ignorância e a
negligência nas coisas mais corriqueiras, mais cotidianas foram sempre as causas das
“imperfeiçoes terrestres”.
EF: Nos tempos atuais, pensar Nietzsche como educador, que é o título do seu livro,
pode talvez parecer uma saída. Porém, estaríamos preparados para o pensamento
nietzschiano? É possível estar preparado, visto que esse pensamento leva ao extremo a
ideia de que devemos exaltar a vida?
Rosa Dias: Essa pergunta eu acho que respondi de certo modo na anterior. Nietzsche
como educador. Nietzsche é um educador não só para a cultura, mas também para a
vida. As exigências que Nietzsche faz para educação, para o ensino da arte e da
Entrevista
Filosofia na Universidade é ainda hoje muito atual. É preciso ler as Extemporâneas de
Nietzsche. São 4 (quatro) livros magníficos.
EF: Quem faz seus cursos de estética na UERJ não pode deixar de perceber que a
senhora sempre menciona, e traz para as discussões em sala, questões éticas e políticas.
Não ficando, portanto, somente na discussão estética. É possível recordar das discussões
sobre o ensino de filosofia, em que sua postura era de total apoio à inclusão da filosofia
como disciplina obrigatória no Ensino Médio. Quem faz seu curso atualmente não deixa
de ser tocado pelas suas palavras, quando a senhora traz para discussão a atitude do
governo estadual em querer demolir um prédio histórico e colocar na rua dezenas de
indígenas que vivem no local e, assim, acabar com a conhecida aldeia Maracanã. Como
a senhora percebe a conjuntura política atual e a sua relação com a filosofia? A
impressão que se tem é a de que o filósofo está muito distante dessas questões. Como a
senhora percebe isso?
Rosa Dias: Hoje a filosofia ganhou um aspecto de solenidade acadêmica, mas ela me
parece estar inteiramente afastada da exterioridade. A filosofia cada vez mais está
voltada para si mesma, para os textos, os arquivos, os papéis produzidos pelos filósofos.
Fazer filosofia hoje é analisar textos. Não se ensina mais a pensar. Nós podemos ver os
antropólogos, historiadores, cientistas sociais, psicólogos, pedagogos, voltados para as
questões da política e da cultura brasileira e das artes brasileiras, mas os filósofos não.
Questões da atualidade estão traçadas nas letras maiúsculas ou minúsculas dos textos
dos filósofos. O que está acontecendo agora e que ainda não recebeu o selo das palavras
não interessa à filosofia.
Quanto à aldeia Maracanã temos de defender a não derrubada do prédio de 1865
e assegurar esse espaço para os índios. Sobretudo reservar o espaço para os índios e suas
culturas.
EF: Em seu belíssimo livro Amizade Estelar, a senhora apresenta a relação entre
Nietzsche, Wagner e Schopenhauer. Ali é evocado um dos mais belos aforismos de
DIAS, R. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Nietzsche e, quem sabe, o mais honesto olhar já feito por um filósofo acerca da
amizade, o aforismo 275 da Gaia Ciência. Como a senhora compreende esse aforismo,
à luz das novas formas de relações vistas nas sociedades contemporâneas, em que o
individualismo, as relações virtuais e certo tipo de distanciamento entre os indivíduos
parecem só aumentar?
Rosa Dias: Obrigada pelas palavras carinhosas sobre o meu livro. Essa distância cada
vez maior entre os indivíduos, penso que seja irreversível. Infelizmente hoje não dá
mais para planejar nada em grupo. Cada um, em primeiro lugar, realizando seus
próprios interesses. É a banda do só um, sem ser único, sem mostrar-se original em cada
movimento. Indulgentes consigo mesmos, estão todos voltados, não para a criação de si
mesmos, mas preocupados em serem intérpretes das opiniões alheias.
EF: Nos últimos anos, a senhora voltou seus estudos para o pensamento de Henri
Bergson. Gostaríamos de saber como foi esse encontro e, também, que falasse mais
sobre a diferença proposta pelo autor entre o homem comum e o artista. Que
articulações podem ser feitas entre os pensamentos de Bergson e Nietzsche?
Rosa Dias: Podemos fazer muitas articulações entre Nietzsche e Bergson. Embora
Bergson não seja um filósofo trágico, ele é um filósofo da plenitude de vida. Isso o
aproxima bastante de Nietzsche. Essas palavras não são minhas, mas de um grande
estudioso de Bergson, o filósofo francês Jankélévitch.
Tenho estudado o livro O riso e a partir desse livro tenho pensado a comicidade
no cinema e na literatura. Isso me faz pensar o cinema e a literatura e ainda a relação da
filosofia, não só com a filosofia da arte, mas também com as artes. Acho que consigo
traçar assim um caminho para a exterioridade. Um caminho que a filosofia abre para a
arte.