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Cinesofia: a sétima arte em devaneio

2022, Cinesofia: a sétima arte em devaneio

A necessidade de se pensar o cinema do ponto de vista da filosofia está vinculada à urgência de reconquista do sentido mais fundamental do filme na vida contemporânea. Decorridos mais de um século depois da invenção do cinema, é possível dizer, sem maiores rodeios, que o filme, de um modo geral, caiu nos últimos tempos em uma espécie de crise. É como se, passados mais de cem anos das primeiras experiências cinematográficas, a pergunta pela essência do cinema se fizesse mais urgente do que nunca.

Cinesofia a sétima arte em devaneio Ulisses Razzante Vaccari Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Organizadores) Cinesofia: a sétima arte em devaneio Ulisses Razzante Vaccari Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Organizadores) Cinesofia: a sétima arte em devaneio Marília/Oficina Universitária São Paulo/Cultura Acadêmica 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC UNESP - campus de Marília Diretora Dra. Claudia Regina Mosca Giroto Vice-Diretora Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso Conselho Editorial Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente) Adrián Oscar Dongo Montoya Célia Maria Giacheti Cláudia Regina Mosca Giroto Marcelo Fernandes de Oliveira Marcos Antonio Alves Neusa Maria Dal Ri Renato Geraldi (Assessor Técnico) Rosane Michelli de Castro Parecerista: Prof.ª Dr.ª Yanet Aguilera Viruéz Franklin de Matos - Professora Adjunta do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Ficha catalográfica Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC C574 Cinesofia : a sétima arte em devaneio / Ulisses Razzante Vaccari, Thiago Kistenmacher Vieira, Gabriel Debatin (organizadores). – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2022. 337 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5954-221-5 (Impresso) ISBN 978-65-5954-222-2 (Digital) DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2 1. Cinema - Filosofia. 2. Cinema e linguagem. 3. Cinema - Estética. 4. Arte e filosofia. I. Vaccari, Ulisses Razzante. II. Vieira, Thiago Kistenmache. III. Debatin, Gabriel. CDD 791.4301 Copyright © 2022, Faculdade de Filosofia e Ciências Editora afiliada: Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília Sumário PREFÁCIO Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin -------------------------------------------------------------------- 7 A AURA E O CINEMA, DE BENJAMIN A ADORNO Rodrigo Duarte; Willian Vasconcellos ------------------------------------------- 11 POLITIZAÇÃO E DESPOLITIZAÇÃO NO CINEMA BRASILEIRO: ENTRE ESTÉTICA E COSMÉTICA DA FOME Anderson Kaue Plebani ------------------------------------------------------------ 31 FEBRE DO RATO: POR UMA POIESIS MARGINAL Pedro Fernandes Galé -------------------------------------------------------------- 41 NOTAS SOBRE HERMENÊUTICA, CINEMA E DOCUMENTÁRIO Gustavo Silvano Batista ------------------------------------------------------------ 61 FANTASIA E VOYEURISMO NARRATIVO EM VERTIGO: OS LAÇOS ENTRE CINEMA E STANLEY CAVELL Andrea Cachel; Lunielle Bueno --------------------------------------------------- 73 CETICISMO EM CINEMA E ABSURDO: UMA LEITURA CAMUSIANA DO FILME MELANCOLIA Thiago Kistenmacher Vieira ------------------------------------------------------- 101 A (DES)MONTAGEM DO SENTIDO: O CINEMA ENTRE ARTE E TÉCNICA Gabriel Debatin --------------------------------------------------------------------- 129 O PRISIONEIRO E O PAJÉ: UM OSCAR E DOIS GENOCÍDIOS Claudia Pellegrini Drucker -------------------------------------------------------- 157 CINEMA CANADENSE E MICROPOLÍTICA DO DESEJO: UM EXERCÍCIO CARTOGRÁFICO DO FILME LUK’LUK’L, DE WAYNE WAPEEMUKWA (2018) Abrahão Costa Andrade; Caio Felipe Varela Martins ------------------------- 189 O PROBLEMA DA NATUREZA ÉTICA DO GÊNERO DOCUMENTÁRIO Henrique Franco Morita ----------------------------------------------------------- 211 UMA NAVE ENTRE DOIS MUNDOS: APONTAMENTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICOS SOBRE E LA NAVE VA, DE FELLINI Márcio Benchimol Barros ---------------------------------------------------------- 227 CONTRA A POLITIZAÇÃO DO CINEMA Ulisses Razzante Vaccari ------------------------------------------------------------ 239 ENSAIO DE ORQUESTRA E O MAESTRO: COMENTÁRIO INTRODUTÓRIO Ubirajara Rancan de Azevedo Marques ------------------------------------------ 261 O APELO DO NEGATIVO E A JUSTIÇA: A MOSTRAÇÃO ELÁSTICA DA HERMENÊUTICADE-MUNDO PELO NÃO-FAZER CINEMA Rafael Teixeira Santos --------------------------------------------------------------- 281 A DINÂMICA FORMATIVA DE HÁBITOS E CRENÇAS: UMA INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICO‘NOITES DE CABÍRIA’ Renata Silva Souza ------------------------------------------------------------------ 317 INTERDISCIPLINAR A PARTIR DO FILME 6| Prefácio A necessidade de se pensar o cinema do ponto de vista da filosofia está vinculada à urgência de reconquista do sentido mais fundamental do filme na vida contemporânea. Decorridos mais de um século depois da invenção do cinema, é possível dizer, sem maiores rodeios, que o filme, de um modo geral, caiu nos últimos tempos em uma espécie de crise. É como se, passados mais de cem anos das primeiras experiências cinematográficas, a pergunta pela essência do cinema se fizesse mais urgente do que nunca. Uma das questões muito levantada recentemente se refere à invenção das chamadas plataformas de streaming, como Netflix, Mubi e outras, que, para além de simplesmente reproduzirem filmes no conforto das residências burguesas, passaram também a produzir filmes. Diante deste fato, perguntou-se efetivamente se essas novas produções não acarretariam uma transformação na essência mesma do filme, já que seu lançamento não necessitaria mais da sala de cinema, mas apenas do aparelho situado na residência do espectador. Em última análise, é possível dizer que, a partir dessa transformação, o cinema deixou para trás sua própria história, tendo abandonado a projeção em grandes salas e em grandes telas, apinhadas de espectadores sedentos pela projeção. Marco dessa transformação – da tela para a TV – foi o lançamento de The Irishman [O Irlandês], de Martin Scorsese, em 2019, exclusivamente por meio da plataforma Netflix. Longe de se referir apenas à forma do filme, tal transformação atinge o cinema naquilo que ele possui de mais essencial: sua linguagem. O fato https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p7-10 |7 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) de o filme não ser mais produzido para a sala de cinema e para a tela de cinema altera consideravelmente seu modo próprio de comunicação. De algum modo, o espectador das salas de cinema predispunha-se a dedicar sua atenção ao filme durante toda a transmissão e, por mais que houvesse aqui e acolá certas distrações, a obra de arte era apreendida e fruída pelo público em sua totalidade. Com os filmes produzidos por plataformas de streaming e reproduzidos nos aparelhos domésticos (televisores, computadores, tablets e celulares), já não se pode dizer o mesmo. Detentor do pequeno poder conferido pelo controle remoto, pelo mouse ou pela tela de toque, o espectador defronta-se constantemente com a possibilidade de interromper o curso da película que, muitas vezes, é assistida ao longo de muitos intervalos de tempo, aprofundando e ao mesmo tempo correspondendo a uma incapacidade de concentração, que muitos filósofos atribuem à própria estrutura da vida moderna e pós-moderna. Diante desse cenário, não é exagero supor que o cinema atual veja-se aos poucos obrigado a satisfazer essa necessidade de uma nova linguagem criada por essas plataformas. Mesmo os filmes que escapam à chamada indústria cultural se verão aos poucos adaptados a esse novo formato, que tende a se tornar definitivo em eras pandêmicas, como a nossa. Em vez da concentração e do exercício da reflexão, o novo formato tende a propiciar narrativas fragmentárias, carentes de uma unidade mais profunda e mais filosófica. Nesse sentido, já não se distingue mais entre o cinema e a chamada série, que se estende novelisticamente em episódios a perder de vista, tendo como objetivo prender o espectador o maior tempo possível diante da tela sem que lhe sobre tempo para pensar e refletir. Se o filme se reduz aos poucos à tela doméstica e privada, ao formato da série e mesmo ao hábito da rede social, como dizer que ainda há cinema, tal como ele surgiu no final do século XIX? Para respondê-lo minimamente, cumpre antes colocar a questão: o que é, afinal, o cinema? Em que consiste afinal sua linguagem e como ela se relaciona com sua forma específica, da montagem? O que a história do cinema, passando pelos seus mais variados representantes, desde seu surgimento até hoje, nos ensina? Eis as indagações que levaram à organização do presente livro, constituído de ensaios das mais distintas 8| Cinesofia: a sétima arte em devaneio tendências, todas elas ligadas, no entanto, ao pano de fundo mais abrangente da filosofia. Mesmo que um ou outro ensaio proponha uma análise mais empírica de um determinado filme, seus autores jamais traem sua proveniência e sua formação filosófica, buscando sempre transcender a simples análise técnica dos elementos da película. É nesse sentido que se optou pelo título Cinesofia: a sétima arte em devaneio (?), apontando assim ironicamente para a tarefa do filósofo que – por que não? –, por vezes, consiste em deslocar a lógica própria das coisas, conferindo-lhes um olhar, digamos, às avessas. É possível, e mesmo provável, que as questões acima tenham como alvo não apenas o cinema e a obra de arte de forma geral, mas a própria vida atual. Ao nos perguntarmos sobre os efeitos da tecnologia no cinema, pressupomos que já esteja de algum modo respondida a questão dos efeitos da tecnologia sobre nossas vidas. Caso seja possível de algum modo identificar que a vida represada em redes sociais de fato tenha acarretado mudanças consideráveis sobre nossa percepção, então invariavelmente nossas formas de representação da realidade também deverão alterarse consideravelmente. Na verdade, é inevitável que assim o seja. Essa inevitabilidade, porém, não implica que não se possa pensar sobre essas transformações. A filosofia, nesse sentido, propõe-se a realizar essa tarefa, que consiste no questionamento de uma das principais formas de expressão da humanidade, escolhida há algum tempo como a forma por excelência de reflexão sobre suas ações, decisões e características mais essenciais. Nesse sentido, torna-se possível afirmar que, em certa medida, o cinema, no seu auge, substituiu outras formas correntes de reflexão e representação, como a poesia, a literatura, o teatro e as artes plásticas, tendo se tornado a forma de dramatização predominante das culturas ocidentais pós-modernas. Mesmo o filósofo viu-se muitas vezes obrigado a recorrer ao cinema em busca da compreensão universal de sua época e de seu tempo. Não é, pois, exagero, supor que o cinema constituiu por muito tempo uma ferramenta epistemológica de extrema importância para o filósofo (e mesmo para o cientista), contrariando o antigo preconceito racionalista segundo o qual a arte não produz episteme. Assim como as culturas ocidentais aprenderam muito sobre si com os quadros renascentistas, por exemplo, |9 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) também a humanidade dos grandes centros urbanos, impulsionada pelos avanços da industrialização avançada, viu-se contemplada nos filmes os mais diversos possíveis, desde Metropolis, de Fritz Lang, passando pelo Grande Ditador de Charles Chaplin, até as produções hollywoodianas mais recentes. Quando, porém, essa forma específica de representação entra em declínio, é novamente função do filósofo pensar não mais apenas com o filme, mas sobre o filme; sobre suas especificidades, sua linguagem, sua comunicabilidade, enfim, sua essência. É também nesse sentido que se deve entender a intenção de reunir os presentes textos deste volume em torno de um questionamento propriamente filosófico sobre o cinema, naquilo que decidimos chamar por cinesofia. Gostaríamos aqui, de agradecer imensamente aos autores e autoras que gentilmente se dispuseram a devanear filosoficamente sobre a sétima arte, seja contribuindo com reflexões mais históricas, mais técnicas ou mais autorais. Ulisses Razzante Vaccari Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin 10 | A aura e o cinema, de Benjamin a Adorno Rodrigo DUARTE 1 Willian VASCONCELLOS 2 A AURA E O CINEMA EM BENJAMIN Como é amplamente sabido, Walter Benjamin, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, aponta para o caráter transitório da arte frente aos mecanismos tecnológicos ascendentes à época.3 Um de seus intuitos era o de promover, partindo do materialismo histórico dialético, uma análise no tocante às possibilidades de emancipação do proletariado a partir de sua relação com a arte. Como sugere Renato Franco, Benjamin buscou se aproximar da análise feita por Marx, “que foi capaz de estabelecer minuciosamente a dinâmica do capitalismo e de até mesmo demonstrar 1 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG / Belo Horizonte / MG / Brasil. E-mail: rodrigoantonioduarte@gmail.com 2 Professor na rede pública do estado de Minas Gerais. E-mail: willianvasconcellos@yahoo.com.br. 3 Utilizamos nesse artigo a segunda versão alemã do ensaio que foi a primeira considerada por Benjamin como pronta para publicação e levava em conta alguns questionamentos levantados por Adorno e Horkheimer após lerem a primeira versão. Essa versão foi traduzida para o francês por Pierre Klossowski e, após sofrer algumas interferências de Max Horkheimer, foi publicada na revista do instituto de pesquisa social de Frankfurt que, em virtude da ascensão de Hitler em 1933, encontrava-se, então, sediado em Nova York nos Estados Unidos. https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p11-30 | 11 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) como o seu desenvolvimento implicaria na formação das condições materiais que o levariam a sua própria destruição” (FRANCO, 2010, p. 18). A máxima de Marx presente no Manifesto do partido comunista, para quem “a burguesia produz, antes de mais nada, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis” (MARX; ENGELS, 2008, p. 29), parece guiar toda a análise de Benjamin. Neste sentido, o ensaio é sobretudo uma investigação acerca da relação entre a arte e a política no interior das mudanças advindas dos meios de reprodução tecnológica. O texto possuí uma divisão interna no que diz respeito às especificidades estéticas das obras de arte: a arte tradicional e a arte de reprodutibilidade técnica. Benjamin se reporta, em sua análise, à reprodutibilidade de elementos imagéticos desde a Antiguidade, com a cunhagem de moedas, na Lídia, por exemplo. Para ele, também o aperfeiçoamento da técnica de litografia não deixou de ter um impacto na recepção de imagens por parte de um público ampliado. Mas, com o advento da fotografia, a relação entre o ser humano e os artefatos artísticos mudou drasticamente, fator esse que foi determinante na divisão proposta por Benjamin no tocante à percepção estética. O elemento indispensável às artes anteriores à fotografia seria o hic et nunc, ou seja, o seu aqui e agora. Para ser fruída, essa arte dependia da inserção dos indivíduos num determinado lugar numa determinada temporalidade, fosse na interpretação orquestral da nona sinfonia de Beethoven no Sidney Opera House, fosse frente ao Juízo Final, de Michelangelo, na capela Sistina. Neste sentido, tais obras de arte estariam ainda em estreita ligação com o ritual, tendo em vista a superioridade de seu valor de culto frente ao seu valor de exposição. Segundo Benjamin, a obra de reprodução técnica, ao contrário, não depende do hic et nunc. Ela vai ao encontro das massas, de modo que não existe uma relação de autoridade entre um artefato autêntico frente às suas reproduções, até porque, nesse caso, não se pode falar nem de original, nem de cópias, seja nas exposições simultâneas das fotografias de Sebastião Salgado, seja nas várias exibições em todo o mundo de O encouraçado Potemkin de Sergei Eisenstein. Dito de outro modo, não há como existir uma sobrevalorização do filme ou da foto autêntica sobre suas 12 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio cópias: o caráter de exposição é a própria essência da obra na era de sua reprodutibilidade técnica. É sobre o fato de uma presumida autenticidade, presente nas obras de arte tradicionais, que se ancora a tradição. O que, segundo Benjamin, é abalado nas artes com o advento da reprodutibilidade técnica é a autoridade da coisa, o seu peso enquanto tradição: A técnica de reprodução, assim se pode formular de modo geral, destaca o reproduzido da esfera da tradição. Na medida em que multiplica a reprodução, coloca no lugar de sua ocorrência única sua ocorrência em massa. E, na medida em que permite à reprodução ir ao encontro daquele que a recebe em sua respectiva situação, atualiza o que é reproduzido (BENJAMIN, 2014, p. 23). Para Benjamin, a tradição seria o eixo da crise que a humanidade vivia naquele momento. O abalo dessa estaria em estreita conexão com a ascensão dos movimentos de massa da década de 30 e o principal medium responsável por este abalo seria o cinema. Dito de outro modo, o cinema seria o agente que minaria um dos fundamentos de uma profunda crise social e cultural pautada na reafirmação da tradição. A renovação da humanidade, que deveria partir dos movimentos de massa, necessitaria da liquidação do valor da tradição na herança cultural para dar prosseguimento ao processo revolucionário. Como é igualmente bem conhecido, pode-se entender essa relação entre arte reprodutível e tradição a partir do conceito de aura, de modo que, de acordo com Benjamin, “o que desaparece na época da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura” (BENJAMIN, 2014, p. 23). Que se recorde que Benjamin designa aura do seguinte modo: Um estranho tecido fino de espaço e tempo: aparição única de uma distância, por mais próxima que esteja. Em uma tarde de verão, repousando, seguir os contornos de uma cordilheira no horizonte ou um ramo, que lança sua sombra sobre aquele que descansa – isso significa respirar a aura dessas montanhas, desse ramo (BENJAMIN, 2014, p. 28-29). | 13 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Partindo dessa designação, é possível perceber que a aura está em estreita conexão com o ritual de fruição de um determinado momento num determinado lugar. Benjamin entende que a arte de reprodução técnica dessacraliza a arte, ou seja, desvincula-a dos contextos voltados ao ritual — característicos da arte tradicional — e se torna cada vez mais a reprodução de uma obra de arte voltada para a reprodutibilidade e, consequentemente, para a recepção por parte de público massivo. No instante de perda da aura na obra, a função social da arte se voltaria a uma práxis política em detrimento da prática ritualística. Segundo Bruna Della Torre, “a noção de aura está diretamente ligada à noção de mito no pensamento benjaminiano e é análoga ao que Marx demonstra ser o núcleo irracional do capitalismo” (DELLA TORRE, 2017, p. 42). Deste modo, a aura é o resquício de uma experiência mágica frente a um mundo cada vez mais racionalizado, semelhante àquilo que Marx formulou como sendo o fetichismo da mercadoria, a experiência mística por excelência do capitalismo. Nas palavras de Marx: “Uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intrincada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos” (MARX, 2017, p. 146). A aura é, portanto, uma experiência mística que tem, no entanto, a sua base na concretude material. O seu declínio estaria inserido na superação dialética de um mundo mistificado pelo capital. O cinema seria, no pensamento benjaminiano, a arte não aurática por excelência e, por extensão, o principal veículo de articulação da prática política das massas. Vale ressaltar que o conceito de massas para Benjamin é diferente daquele que Adorno utiliza no seu texto O fetichismo da música e a regressão da audição (1938) e posteriormente na Dialética do Esclarecimento (1947). Enquanto Benjamin parece se referir ao proletariado soviético em seu devir histórico de dar o próximo passo da humanidade rumo ao comunismo; Adorno parece chamar de massa o público característico da cultura de massas, ou seja, o público submetido ao processo de reificação pelas mercadorias estéticas que promovem uma falsa reconciliação da humanidade com o mundo. 14 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio ADORNO E A CRÍTICA AO MEIO TECNOLÓGICO Numa conhecida carta de 18 de março de 1936, Adorno discorda de pontos cruciais do ensaio benjaminiano. Para ele, faltou dialética na análise feita por Benjamin das obras anteriores às artes de reprodutibilidade técnica, assim como, faltou ênfase na negatividade frente à análise do cinema. Contudo, Adorno não descartou pura e simplesmente o conceito de aura, usando-o em diversos momentos de sua obra4. Ele tampouco considerava o teor aurático um elemento fundamental em certos contextos artísticos, como, por exemplo, no âmbito da música e da arte pictórica. Vale lembrar a afirmação enfática de Adorno na carta supracitada de que “a música de Schönberg com certeza não é aurática” (ADORNO, 2012, p. 212). Além de afirmar que sempre busca denunciar isso a partir do elemento de idealismo nas obras, Adorno também reconhece nessa carta que a aura está em declínio, tal como colocado por Benjamin. Sua posição muda na medida em que ele tem contato com a cultura industrializada em seus anos de exílio nos Estados Unidos: nesse contexto, o elemento aurático passa a ser manipulado tecnicamente visando o engodo das massas. Na Dialética do Esclarecimento, obra escrita em conjunto com Max Horkheimer e lançada pela primeira vez em 1944, os autores procuram mostrar como o esclarecimento, pensado inicialmente a partir de uma noção genérica e primitiva, busca superar os mitos da antiguidade e como, na contemporaneidade, este mesmo esclarecimento se torna dialeticamente mito de si próprio. Segundo os autores, o esclarecimento nunca teria se desvinculado do mito, assim como o mito sempre possuiu o elemento de esclarecimento: “Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que dá, na mitologia. Todo conteúdo, ele o recebe dos mitos, para destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na órbita do mito” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 23). Neste movimento, o esclarecimento é enfim alcançado, mas o que ele traz não é a emancipação da humanidade, e sim a barbárie dos campos de concentração. Contudo, este movimento de mitificação do esclarecimento 4 Cf. ADORNO (1986b, p. 104), ADORNO (2018, p. 62), ADORNO (2020a, passim), ADORNO (2006, passim), dentre outras obras. | 15 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) não o torna supérfluo. Pelo contrário, deve-se resguardar a “possibilidade de ‘rememoração da natureza no sujeito’ como caminho para, pelo menos, se iniciar um processo de reversão do esclarecimento unilateral, com o objetivo de torná-lo ‘dialético’, consciente de sua relação com aquilo que ele não é” (DUARTE, 2002, p. 33). Nessa chave de leitura, a própria tese acerca da indústria cultural é uma tese sobre como a cultura se tornou dialeticamente indústria cultural e, consequentemente, um veículo de controle e dominação. Tal como a inversão do esclarecimento em mito, a cultura sempre teve um caráter mercadológico em seu bojo; mas, no capitalismo tardio, o caráter mercadológico se torna seu componente mais essencial. Neste sentido, concordamos com a afirmação de Della Torre (2017, p. 14): “a indústria cultural não é um adjetivo, um atributo de uma ou outra mercadoria cultural. A ideia não é classificar os bens culturais segundo este critério específico”. Trata-se, sobretudo, de um sistema de mediação das manifestações culturais que as coloca dentro da lógica mercadológica quase como que um mito da sua própria essência artística e libertadora. Dentro desse sistema, em que pesem importantes transformações na sua base tecnológica desde o seu surgimento até hoje, o cinema é visto como o carro-chefe da cultura de massas. E, enquanto sistema, a indústria cultural só funciona integrando o indivíduo ao processo totalizante de consumo. Por isso, não se deve tratar o cinema isoladamente em Adorno. Como ele mesmo afirma em Notas sobre o Filme de 1966, “não há estética do filme, nem que seja puramente tecnológica, que não contenha em si a sua própria sociologia” (ADORNO, 1986b, p. 104). Por um lado, o cinema poderia ser crítico frente à violência de subjugar os indivíduos aos processos de reificação e integração, por outro, não é difícil perceber esse processo em filmes de super-heróis, ligados ao mesmo universo fictício que insere as pessoas no âmbito de consumo não somente de todos os filmes desse âmbito, mas também de artigos diversos como camisetas, action figures, comic-books, etc. Outro problema de procurar entender o cinema isoladamente em trabalhos específicos de Adorno é que isso pode levar a conclusões equivocadas, uma vez que, tanto na Dialética do Esclarecimento quanto 16 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio em Minima Moralia, o cinema é “remetido ao inferno” por Adorno, para fazer uma referência a já citada carta de 1936. Contudo, em alguns textos dos anos 60, ele reconhece o possível estatuto de arte deste meio, ainda que com algumas ressalvas. Defendemos que ambos os momentos são complementares na medida em que sejam compreendidos dentro de um escopo mais amplo da obra de Adorno. Um fato importante a ser mencionado é que, quando escreveu as obras que condenam o cinema, Adorno se encontrava exiliado nos Estados Unidos, justamente no coração da “fábrica de sonhos”. Comentadores como Miriam Hansen (HANSEN, 2012) e Mateus Araújo Silva (ARAÚJO SILVA, 1999) sugerem que este fator é decisivo para entender que as críticas feitas por Adorno naquele momento podem ser compreendidas como críticas feitas ao cinema hollywoodiano em específico. Essa hipótese é bastante plausível, visto que, a própria obra de Adorno sofre uma significativa radicalização nos seus anos de exílio, quando ele se depara com a comercialização da cultura em seu estágio mais avançado. Outro fator bastante relevante (e inusitado), como aponta David Jenemann (JENEMANN, 2007), é que Adorno e Horkheimer tinham planos de apresentar um roteiro para Jack Warner da Warner Brothers. O filme levaria o nome Below the Surface e trataria da famosa Escala F presente no projeto de 1950 em que Adorno participou, intitulado A Personalidade Autoritária (ADORNO, 2019). Compreendemos que o problema de Adorno não era com o cinema em geral, mas sim, com as potencialidades que ele trazia para submeter o indivíduo ao sistema de manipulação e controle da indústria cultural. Na própria carta supracitada, Adorno menciona que, numa passagem pelos ateliês de Neubabelsberg5, ele ficou impressionado com “quão pouco de montagem e todas as técnicas avançadas que você [Benjamin] ressalta é efetivamente utilizado; antes, a realidade sempre é construída com apego infantil ao mimético e depois ‘fotografada’” (ADORNO, 2012, p. 212). Seu incômodo foi o de perceber que tudo aquilo que poderia constituir o cinema enquanto arte emancipatória, como descrito por Benjamin, era renegado pelos próprios meios encarregados da produção cinematográfica. 5 Em 1938 Neubabelsberg se tornou Babelsberg, o maior distríto de Potsdam, capital do estado alemão Brandenburg. Adorno se refere ao Studio Babelsberg fundado em 1912, o estúdio de cinema em grande escala mais antigo do mundo. | 17 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Como mencionado, o cinema aparece em alguns textos de Adorno dos anos 60 enquanto possibilidade emancipatória dentro do escopo das artes no plural. No texto Notas sobre o filme, Adorno retoma a discussão com Benjamin: Inseparável desse caráter de mercadoria é a essência reacionária de qualquer realismo estético hoje, tendencialmente voltado para o reforço afirmativo da superfície visível da sociedade e que repele como romântico o querer ir além dessa fachada. Todo significado que se empreste ao filme através da câmera já violaria a lei dela e atentaria contra o tabu de Benjamin, inventado com a expressa intenção de radicalizar para além do radical Brecht e, talvez, secretamente para libertar-se dele (ADORNO, 1986b, p. 104-105). Trata-se de expor novamente o déficit dialético, alegado por Adorno, para com o tratamento da arte de reprodutibilidade técnica em Benjamin. Contudo, aqui o problema não mais aparece sem uma proposição que viabilizaria o cinema enquanto meio emancipatório às tendências de reificação e integração. O significado que se pudesse emprestar ao filme estaria dependente do realismo estético que lhe é inerente, o que já seria um atentando contra a autonomia da obra de arte. Nesse sentido, como proceder sem cair no mero documentarismo? Tal como estabelecido pelos formalistas soviéticos, a resposta para tal dilema, em Adorno, estaria na montagem. Mas, não se trata de qualquer montagem, e sim de uma montagem que não se imiscui, sem acréscimo de intenção, nos detalhes. Os formalistas soviéticos acreditavam que a montagem possuía a capacidade de criar significações a partir da estrutura dialética do pensamento. De duas imagens sempre surge uma terceira significação enquanto consequência de um monólogo interior. Adorno eleva essa problemática ao nível de desistência da atribuição de sentido, propondo o desenvolvimento de uma dialética com ênfase na não identidade, a qual resguardaria o momento mimético a partir de uma montagem incerta quanto ao seu efeito. 18 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Podemos pensar essa colocação de Adorno a partir de uma experiência de Lev Kuleshov de 1919 conhecida como “efeito Kuleshov”6. Trata-se de um pequeno filme com seis planos: prato de comida/rosto de um homem; criança brincando/rosto de um homem; caixão/rosto de um homem. Quem viu o filme concordou que o ator Mosjukin interpretava com suas expressões faciais, respectivamente: desejo, ternura e tristeza. Mas o plano do rosto de Mosjukin usado nos três momentos era exatamente o mesmo. Trata-se de conceber a relação entre imagens a partir de um movimento dialético: de duas imagens sempre nasce uma terceira significação. O Efeito Kuleshov se tornou um dos fundamentos para a montagem invisível que seria apropriada pelo naturalismo hollywoodiano na decupagem clássica. Adorno defende que, diante dessas possibilidades abertas pela relação entre imagens, a significação deve ser incerta quanto ao seu efeito. Em outras palavras, não se trata de manipular o espectador a sentir uma determinada emoção, tal como desejo, ternura e tristeza exemplificados no experimento de Kuleshov, mas sim, deixar em aberto a significação que o confronto entre as imagens pode sintetizar. Isso se dá a partir da desistência da intenção em atribuir sentido, algo que, no nível da recepção, prioriza o monólogo interior em relação às manipulações de emoções sempre idênticas. No texto A arte e as artes, uma palestra proferida na Academia Berlinense das Artes em 23 de julho de 1966, Adorno analisa a fronteira entre as artes e sua relação com a arte, no singular. Neste texto, o autor afirma: Ela [a arte] não pode permanecer o que um dia foi. Tanto quanto com isso também sua relação com seu gênero é dinamizada, podese depreender do seu mais tardio gênero, o cinema. Não ajuda a questão sobre se o cinema é ou não arte. De um lado, como Benjamin foi o primeiro a reconhecer no seu trabalho sobre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o cinema chega mais perto de si próprio onde elimina irrevogavelmente o atributo da aura que ocorria em toda a arte anterior a ele, a aparência de uma transcendência incorporada por meio do nexo (ADORNO, 2018, p. 62-63). 6 Disponível em: https://youtu.be/DwHzKS5NCRc. Acesso em: 16 abr. 2021. | 19 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Nessa citação fica novamente explícito que Adorno concorda com a premissa de Benjamin de que o desenvolvimento do cinema se encontra justamente no momento de declínio da aura. Adorno aponta que o cinema não somente pode superar a sujeição em criar uma forma degenerada de aura, como esse é seu princípio formal mais importante. De outro lado, a recusa da aura já é por si só “um princípio de estilização estético” (ADORNO, 2018, p. 63). Numa argumentação muito próxima ao texto de 1966, Adorno afirma que os elementos extraestéticos do filme são, por si só, doadores de sentido. Mas, diferentemente do que ele apontou naquele texto, em que a solução para o problema estaria numa montagem que não se imiscui nas coisas, aqui Adorno afirma: “enquanto o cinema, em função de sua legalidade imanente, gostaria de se ver livre de seu elemento artístico – quase como se ele contradissesse seu princípio artístico – ele é, ainda nessa rebelião, arte, e a amplia” (ADORNO, 2018, p. 63). COMPONDO PARA OS FILMES Um texto ainda pouco discutido no Brasil, talvez em virtude da falta de uma tradução para o português, é o livro Composing For The Films ou Compondo para os filmes, escrito juntamente com Hanns Eisler. O livro foi escrito em 1944 e lançado pela primeira vez em 1947 nos Estados Unidos, indicando a autoria apenas de Eisler. Adorno encontrava-se exilado nos Estados Unidos à época, e devido ao movimento macartista, optou por não reconhecer a coautoria naquele momento. A intuição de Adorno não estava errada, pois Eisler foi obrigado a deixar os Estados Unidos um ano após o lançamento do livro. O reconhecimento da coautoria veio somente em 1969, na ocasião de lançamento da segunda edição do livro na Alemanha ocidental. Miriam Hansen (2012, p. 208-209) procura estabelecer uma discussão pertinente à estética do filme em Adorno, sem com isso cair na dicotomia entre cultura de massa e arte moderna. Para tal, ela admite que as reflexões sobre a estética do filme em Adorno são inseparáveis de suas análises sobre a função social, econômica e ideológica do filme. A autora compreende que essa discussão pode ser dividida em três fases distintas: a 20 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio primeira seria a partir de 1925, quando Adorno começou a escrever para o jornal vienense Musikblätter des Anbruch, até o começo dos anos 30, quando o partido nazista ganha força, até ser eleito em 1933. A segunda fase diz respeito ao tempo de exílio de Adorno, tanto em Oxford, onde ele ficou até 1938, quanto nos Estados Unidos, onde permaneceu até 1949. A terceira e última fase diz respeito ao retorno à Alemanha após a segunda guerra mundial até sua morte em 1969. Para Hansen, o livro Composing For The Films se enquadra na terceira fase pelo fato de que somente em 1969 Adorno reconheceu sua co-autoria. Como indica Della Torre (2019, p. 479), Composing For The Films “não é um livro muito conhecido e raramente é associado à obra de Adorno”. Nosso intuito aqui será o de demonstrar como o livro se enquadra na obra mais ampla de Adorno de forma a complementar e enriquecer seus escritos, principalmente em relação à terceira fase de Adorno, tal como formulou Hansen. Já na primeira introdução, os autores tratam de compreender o local do cinema dentro do sistema da indústria cultural, o que por si só já é um fator digno de nota, uma vez que, em 1944 quando a obra foi redigida, o livro em que o conceito de indústria cultural se torna amplamente conhecido ainda não tinha sido lançado oficialmente. A primeira vez que o termo “indústria cultural” apareceu foi num ensaio de Horkheimer intitulado Neue Kunst und Massenkultur (HORKHEIMER, 1988) ou Nova arte e cultura de massa, mas é na Dialética do Esclarecimento, escrita por Adorno e Max Horkheimer, que o termo se consolida: “os capítulos sobre a indústria cultural e sobre o anti-semitismo, que não constavam no planejamento oficial, foram incorporados ao longo da redação da obra, que em 1944 circulou, em forma mimeografada, entre os colegas do instituto, sob o título de ‘Fragmentos Filosóficos’ até ser publicada em 1947, sob o título definitivo de Dialética do Esclarecimento” (DUARTE, 2002, p. 25-26). Nesse sentido, tendo em vista que “indústria cultural” não era ainda um conceito amplamente debatido, a mera constatação do uso desse conceito já indica o seu profundo envolvimento em questões teóricas que dizem respeito àquilo que ele estava desenvolvendo há época e que viria a se desdobrar nas décadas seguintes. | 21 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Vale lembrar que, no tocante à intenção, pelo menos de Adorno, o livro escrito a quatro mãos com Eisler apresenta uma atitude diferente da de muitos dos seus textos que tratam do cinema, sendo que, segundo o testemunho de Wiggershaus, Composing for the films estaria no espírito de um desenvolvimento posterior planejado no momento da redação da Dialética do esclarecimento – que nunca chegou a ocorrer –, no qual seriam ressaltados os possíveis aspectos positivos da indústria cultural. Segundo Wiggershaus: “Longas partes”, constava numa sentença na edição mimeografada de 1944, deixada de lado na versão em livro, “desenvolvidas há muito tempo, precisam ainda de uma última redação. Nelas virão à tona também os aspectos positivos da cultura de massas”. (Sobre aspectos positivos da cultura de massas e sobre o desenvolvimento de formas positivas da cultura de massas era também a Composição para o filme, que Adorno entre 1942 e 1945 escreveu juntamente com Hanns Eisler, o qual obteve nos inícios dos anos 40, enquanto docente da New School for Social Research, financiamento da Rockfeller Foundation para um projeto sobre música para o cinema) (WIGGERHAUS, 1988, p. 360). Em Composing For The Films, Adorno e Eisler introduzem brevemente o conceito de indústria cultural, a partir de algumas das operações que são amplamente discutidas na Dialética do Esclarecimento: “De todos os media da indústria cultural, o filme, como o mais abrangente, mostra mais claramente essa tendência ao amalgama. O desenvolvimento e a integração de seus elementos técnicos – imagens, palavras, som, roteiro, atuação e fotografia – têm paralelo com certas tendências sociais ao amalgama de valores da cultura tradicional que se tornaram mercadorias”7 (ADORNO; EISLER, 2007, p. xxxvi). Nessa mesma introdução, os autores também indicam algo preponderante para a compreensão do cinema em torno de conceitos tradicionais relacionados à arte: 7 Utilizamos para citações à edição em inglês referenciada na bibliografia, sendo que, todas as traduções são de responsabilidade dos autores. 22 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio A velha distinção entre arte séria e arte popular, entre arte inferior e arte autônoma refinada, não mais se aplica. Toda arte, como um meio de preencher o tempo de lazer, se tornou entretenimento, embora absorva materiais e formas da arte autônoma tradicional como parte do chamado “patrimônio cultural” (ADORNO; EISLER, 2007, p. xxxvi). Tal afirmação encontra ecos numa passagem das Minima Moralia de 1951. No aforismo intitulado “O lobo como vovozinha”, Adorno afirma que os “apologistas do filme” utilizam o argumento do consumo de massa para proclamar o cinema enquanto arte popular. Esse argumento é parcialmente falso e serve ao objetivo de se propor independente em relação às normas da arte autônoma, dispensando o cinema de sua responsabilidade estética. Certamente os filmes comerciais encontram traços da arte popular, tal como da arte autônoma, mas o que é conservado por esses é justamente o elemento de falsidade da arte popular. Adorno utiliza o exemplo de uma mãe que, para acalmar uma criança, narra um conto fictício no qual os bons são recompensados e os maus castigados. Esse exemplo seria análogo à arte popular. O produto cinematográfico, ao absorver a falsidade da arte popular, também seria análogo a um conto infantil; contudo, um conto que promove “a justiça de qualquer ordem e lugar para ensiná-los de novo, e mais fundo, a temer” (ADORNO, 2008, p. 199-202). O exemplo serve para mostrar que, além de promover o medo e a resignação, a indústria cultural também fomenta a infantilização dos espectadores. Podemos também compreender a supracitada passagem do Composing For The Films a partir do texto “A Indústria Cultural”, baseado em conferências radiofônicas de 1962. Nesse texto, Adorno afirma que, sobre a formulação do conceito de indústria cultural, se tratava do problema da cultura de massa, mas, para excluir de antemão a interpretação de que se trata de uma cultura surgida espontaneamente das massas, uma forma contemporânea de cultura popular, ele e Horkheimer optaram por usar o a expressão indústria cultural. Em comparação, sobre a cultura popular, Adorno afirma: “Ora, dessa arte a indústria cultural se distingue radicalmente” (ADORNO, 1986a, p. 92). | 23 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Em uma passagem de Notas sobre o filme, de 1966, Adorno afirma que um filme que almeja ser emancipado precisa “procurar seu potencial mais fecundo em outros meios fortemente afins, como por certo a música” (ADORNO, 1986b, p. 105). Não é exagero afirmar que o livro escrito com Eisler seria uma tentativa de jogar luz a essa questão de modo crítico. Entre outras colocações, os autores fazem um elogio ao uso das formas breves na composição musical para o cinema no livro. Pedro Aspahan nos dá um exemplo contemporâneo desse uso de formas breves no cinema: Em 2001, cineasta português Pedro Costa realizou um pequeno curta sobre o casal Straub-Huillet a partir das sobras do material do longa Onde jaz o seu sorriso (2001, 104’). O curta incorporou o título da peça de Anton Webern, Seis Bagatelas, e utiliza também sua música, adotando, de certa maneira, a sua forma, estruturandose em cenas breves do casal que trabalha na montagem do filme Sicilia! (1998, 66’). As cenas são intercaladas por trechos da música em tela branca. No trecho visto, Straub dialoga com Huillet, fazendo uma crítica à ideia de que “qualquer leitura seja uma tradução”, e defende que “o que há de difícil na leitura de um texto é lê-lo realmente”. Talvez seja esse o trabalho que eles propõem na relação com suas referências tanto textuais quanto musicais: lê-los realmente (ASPAHAN, 2017, p. 84-85). Quando critica os “maus hábitos” no uso de música nos filmes, em específico a discrição (unobtrusiveness), Adorno e Eisler atentam para o fato de que raramente as músicas são levadas em conta no momento de escrita do roteiro. Nesse sentido, a música não é tratada em sua potencialidade específica. Deixando ao diretor a escolha do que melhor pode sonorizar aquilo que está sendo mostrado, a música torna-se apenas um elemento discreto nos filmes. Diante disso, os autores indicam: “A inserção da música deve ser planejada junto com o roteiro, e a questão de saber se o espectador deve estar atento à música é uma questão para ser decidida em cada caso de acordo com os requerimentos dramáticos do roteiro” (ADORNO; EISLER, 2007, p. 6). No capítulo “função e dramaturgia”, Adorno e Eisler mencionam uma cena em que a música atua de forma planejada junto ao filme. 24 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Não sabemos se foi o caso de o roteirista tomar conhecimento prévio da música, mas, certamente exemplifica como a trilha sonora pode alterar completamente o sentido da cena: Uma cena de No man’s Land, um filme pacifista de Victor Trivas, datado de 1930: Um carpinteiro alemão recebe a ordem de mobilização de 1914. Ele tranca seu armário de ferramentas, tira sua mochila, e, acompanhado pela sua esposa e filho, cruza a rua em direção ao quartel. Vários grupos semelhantes são mostrados. A atmosfera é melancólica, o passo é vacilante, sem ritmo. A música sugerindo uma marcha militar é introduzida suavemente. Conforme fica mais alta, o andar dos homens torna-se mais rápido, mais rítmico, mais coletivamente unificado. A mulher e a criança também assumem uma atitude militar, e mesmo os bigodes dos soldados começam a eriçar. Segue-se um triunfante crescendo. Intoxicados pela música, os homens mobilizados, prontos para matar e morrer, marcham para dentro dos quarteis. Então, a imagem escurece (ADORNO; EISLER, 2007, p. 15). Trata-se do filme Niemandsland8. A música, composta pelo próprio Hanns Eisler, orienta a cena para o aspecto crítico, que poderia, sem ela, sugerir chauvinismo ou adesão ao belicismo. A transformação de indivíduos aparentemente inofensivos em bárbaros beligerantes só pode ser efetivamente compreendida com o recurso à música. Adorno e Eisler estão argumentando em prol da primazia do objeto, ou seja, de que o uso dos materiais deve se dar de acordo com a exigência interna da obra. Eles também defendem que os recursos tecnológicos não devem ser usados nos filmes em todas as circunstâncias a bel-prazer, pois a primazia deve ser do objeto e não do sujeito. A tecnologia precisa, portanto, ser uma exigência intrínseca da obra. É importante ressaltar que os autores reconhecem que a tecnologia possui a capacidade de abrir espaços ilimitados para a arte no futuro. Isso dialoga bastante com as discussões sobre o Novo Cinema Alemão do Notas sobre o filme, em que Adorno critica os especialistas do “cinema de papai” que possuem atrás de si o poder do capital, a rotina 8 É possível assistir ao filme no Youtube. Disponível em: https://youtu.be/S-4XhNMWoyw. Acesso em: 16 abr. 2021. | 25 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) técnica e especialistas altamente treinados. Contrário a isso, em referência ao Novo Cinema Alemão, Adorno afirma que seria nos traços daquilo que é comparativamente sem jeito, sem conhecimento, incerto quanto ao seu efeito, que residem as possibilidades de um cinema emancipado (ADORNO, 1986b, p. 100-101). O desenvolvimento tecnológico dos media é usado pela indústria cultural enquanto padrão para se excluir tudo o que não tenha sido previamente apreendido e mastigado e “que atua analogamente ao ramo dos cosméticos quando elimina rugas dos rostos, obras que não dominam inteiramente sua técnica e que, por isso, deixam passar algo de incontrolado, têm seu lado libertador” (ADORNO, 1986b, p. 101). A crítica de Adorno se direciona a um modelo específico de montagem cinematográfica que se convencionou chamar de decupagem clássica. Trata-se do padrão utilizado por Hollywood, o qual busca produzir o ilusionismo e deflagrar o mecanismo de identificação. Segundo Ismail Xavier, a decupagem clássica é caracterizada pelo seu “caráter de sistema cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente sedimentado na evolução histórica, de modo a resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair o máximo rendimento dos efeitos da montagem e ao mesmo tempo torná-la invisível” (XAVIER, 2018, p. 32). Esse procedimento busca promover a identificação do espectador mediante a montagem lisa, que não cria estranhamento, como se os eventos se desenvolvessem na tela tal como se desenvolvem na vida real. A decupagem clássica é amplamente utilizada para fins de lucratividade, por parte das grandes produtoras, e de manipulação e controle, no nível da recepção. Pode-se afirmar que o que está em jogo na decupagem clássica é a criação de uma falsa aura, no sentido benjaminiano. Em Composing For the Films, os autores estabelecem diversas críticas ao modo como o som é apropriado pela imagem nesse sentido estritamente comercial, mas não se limitam a isso. Destarte, salta aos olhos a referência a Walter Benjamin: A fusão direta de dois media de origens históricas tão diferentes não faria muito mais sentido do que os roteiros cinematográficos idiotas nos quais um cantor perde a sua voz para em seguida recuperá-la de modo a oferecer um pretexto para esgotar todas as possibilidades 26 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio do som fotografado. Tal síntese limitaria as imagens em movimento aos casos acidentais nos quais ambos os meios de alguma maneira coincidem, isto é, no domínio da sinestesia, a magia dos humores, a semi-escuridão e a intoxicação. Em resumo, o cinema seria confinado aos conteúdos expressivos nos quais, conforme mostrou Walter Benjamin, são basicamente incompatíveis com a reprodutibilidade técnica. Os efeitos nos quais imagem e música podem ser diretamente unidas são inevitavelmente do tipo que Benjamin chamou ‘aurático’ - na verdade, eles são formas degeneradas da ‘aura’, na qual o encantamento do aqui e agora é tecnicamente manipulado (ADORNO; EISLER, 2007, p. 48). Benjamin, ao tratar da montagem no cinema, afirma que seu caráter de constante aperfeiçoamento, sua perfectibilidade, significaria renunciar ao valor de eternidade, valor esse que pode ser exemplificado pelas obras realizadas na Grécia antiga — algumas delas com reconhecimento que perdura até hoje. A eternidade estaria ligada essencialmente à experiência aurática. Adorno e Eisler afirmam que a união entre imagem e som provocam o efeito de sinestesia, ou seja, a combinação de sensações diferentes numa só impressão. Este efeito, diferentemente daquilo que Benjamin indicou, aproxima o cinema muito mais de uma intoxicação do que de uma emancipação frente à tradição. A decupagem clássica faz o uso do feitiço da imagem e som integrados enquanto forma de criar um aqui e agora manipulado tecnicamente. Ele, ao invés de renunciar à aura, faz justamente o contrário, ele cria uma forma degenerada de aura. Isso é feito, como afirmamos, intencionando a lucratividade e controle pelos grandes estúdios. Num texto datado de 26 de maio de 1969 intitulado “Resignação”, Adorno questiona a separação entre teoria e práxis na política. Essa palestra também dialoga com a famosa Tese 11 das teses sobre Feuerbach de Karl Marx: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa e transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007, p. 535). Essa passagem foi interpretada por algumas tradições marxistas enquanto um apelo para a valorização da práxis em detrimento da teoria. É dessa | 27 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) interpretação que Adorno discorda: para ele, é o próprio pensamento que conserva a possibilidade de mudança: Nele o momento utópico é tão mais forte quanto menos se objetualize em utopia – também esse um sintoma regressivo –, sabotando com isso sua realização. O pensamento aberto aponta para além de si mesmo. Sendo ao seu modo uma conduta, uma configuração da práxis, ele é mais afim à práxis transformadora que um comportamento que simplesmente obedeça a práxis (ADORNO, 2020b, p. 281). Com a ressalva de que a escrita do texto supracitado foi movida por um evento bastante específico, a saber, o contexto político que levou à interrupção de uma das aulas de Adorno por um grupo de manifestantes na Universidade de Frankfurt onde Adorno lecionava em abril de 1969, em Composing For The Films, Adorno e Eisler já apontam para a necessidade de valorização da teoria frente às possibilidades práticas de um cinema emancipado: “criticismo teórico dos fundamentos não deve ser mal usado como uma carta de indulgência em relação à prática” (ADORNO; EISLER, 2007, p. 79). A questão discutida se refere ao uso de músicas nos filmes sem com isso criar o efeito de sinestesia, de ilusão enganadora no espectador: Ter uma visão clara da verdadeira natureza das causas do presente mal e se recusar a indulgir na ilusão de que o sistema pode ser mudado por correções graduais não significa necessariamente que se deva desistir de todos os esforços para trazer à tona um melhor estado de coisas. Esses esforços não são suficientes para emancipar um filme musical, mas podem dar ideia de como um filme musical se parece (ADORNO; EISLER, 2007, p. 79). Tal como para Benjamin, não existe uma análise estética em Adorno que se separe das análises políticas, econômicas e ideológicas. A própria práxis não pode ser separada de seu elemento teórico crítico: a própria reflexão já é de algum modo práxis. A tarefa dessa reflexão, no que diz respeito às possibilidades de um cinema emancipado, reside na utopia, em se ter uma ideia de como as composições fílmicas emancipadas se parecem. 28 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio É no elemento crítico que se pode vislumbrar possibilidades que jogam luz a um cinema mais humano e autônomo com relação aos imperativos de integração no sistema da indústria cultural. Diante disso, a abertura para aquilo que escapa aos ditames de integração da indústria cultural, sem contudo renega-la, surge no interior da crítica e não à sua margem. 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Tradução de Victor Hugo Klagsbrunn. São Paulo: Expressão popular, 2008. WIGGERSHAUS, Rolf. Die Frankfurter Schule: Geschichte, Theoretische Entwicklung, Politische Bedeutung. Munique: dtv Wissenschaft, 1988. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018. 30 | Politização e despolitização no cinema brasileiro: entre estética e cosmética da fome Anderson Kaue PLEBANI 1 POLITIZAÇÃO DO CINEMA E EZTETYKA DA FOME Duas diretrizes guiam Walter Benjamin em sua investigação sobre o cinema no ensaio A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. Primeiro, em relação às artes em geral, cinema incluso, que elas devem ser avaliadas por categorias estéticas impossíveis de serem apropriadas pelo fascismo. Segundo, sendo o cinema um produto da era da reprodutibilidade técnica, ele tem como “tarefa histórica” conciliar o descompasso trazido pelo modo como a técnica se emancipou do humano (BENJAMIN, 1987, p. 174). O filme documentário Triunfo da vontade, de 1934, que propagandeia o partido do Nacional Socialismo é um exemplo do que Benjamin pensava pela estetização da política. Já os filmes de Charles Chaplin são um exemplo de uma politização da arte. Pensado desde uma preocupação política, o cinema brasileiro também possui exemplares dignos 1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil. E-mail: akplebani@hotmail.com https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p31-40 | 31 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) de confirmar uma estética que põe em curso a revolucionária politização da arte cinematográfica. O cinema chega ao Brasil cedo. Desde o fim do século XIX, filmagens são rodadas nestas terras. Um cinema propriamente brasileiro, contudo, é algo que tardou algumas décadas para se dar. Pois sendo a tecnologia e a indústria cinematográfica um produto estrangeiro, de expoente europeu e estadunidense, era natural que as produções brasileiras se restringissem a reproduzir tais modelos. No início, a originalidade do cinema brasileiro consistia apenas nos cenários e costumes exóticos garantidos por estas terras. Foi adiada assim a data em que se consegue afirmar maneira autêntica de captar as terras, o povo e a voz brasileira. É apenas na década de 1950 que um dos mais famosos movimentos cinematográficos autenticamente brasileiros surge: o Cinema Novo. Esse movimento mostra ao público um Brasil com personagens fortes enfrentando condições sociais fragilizadas.2 As particularidades do Brasil não são manifestadas nas matas exuberantes ou nas características ímpares dos povos indígenas, mas nas contradições internas a um país colonizado. Coloca-se o espectador nativo em exposição com sua própria situação. “Exposição”, aliás, é um conceito caro à tentativa de reinvenção das categorias estéticas feita por Benjamin em sua tentativa de formular uma estética opositora ao fascismo. Quando o filósofo se utiliza da distinção entre valor de culto e valor de exposição para enfatizar a modificação na história da produção e percepção da arte, o filósofo atribui ao valor de culto uma relação ritualística e de perpetuação da tradição. Esse valor leva a uma produção e percepção de arte estéril em potencial emancipatório (BENJAMIN, 1987, p. 173-174). Já o valor expositivo da arte ganha todo um peso político e revolucionário na tese benjaminiana. Isso porque a percepção voltada diretamente para a arte exposta em sua materialidade imediata é a que melhor viabiliza o caráter político de manifestação da realidade, atributo inclusive que estaria 2 Filmes icônicos do movimento: Agulha no Palheiro, rodado em 1953 e dirigido por Alex Viany; Rio 40 Graus, de 1955, por Nelson Pereira dos Santos; Bahia de Todos os Santos, 1960, Trigueirinho Neto; Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1963, Glauber Rocha; Os Fuzis, 1963, Ruy Guerra; e Vidas Secas, 1963, adaptação dirigida por Nelson Pereira dos Santos. 32 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio garantido pela fidelidade da captação audiovisual.3 Contudo, esse atributo não impede que o cinema seja apropriado por uma postura ritualística. No caso dos filmes do Cinema Novo, constata-se que são carregados, estilística e tematicamente, por um valor de exposição. Um recurso textual que facilita a sobreposição entre esse movimento cinematográfico e o motivo político e revolucionário é o manifesto Eztetyka da Fome, de Glauber Rocha. O documento surge mais como expressão de um movimento em curso do que, necessariamente, como um panfleto ou protocolo. A arte, o Brasil e a política são eixo central do manifesto e do próprio Cinema Novo. Para escapar de uma “arte de mentiras”, o movimento incorpora em sua própria estética, i.e., em seu modo de sensibilizar e de se fazer compreender, as condições mundanas do brasileiro, a fim de tornar o espectador nativo consciente da contradição intrínseca a sua existência particular. Escapar do “sonho frustrado da universalização” – ou como diria Benjamin: admitir a impossibilidade de expor o todo em um – é “despertar do ideal estético adolescente”, segundo Rocha (1981a, p. 29). Tem-se assim uma estética comprometida com o choque provocado pela exposição do imediato concreto a um espectador absorvido pela colonização. Aqui é possível notar a influência das teses benjaminianas sobre a categoria estética do choque. Segundo o filósofo, o choque no cinema se dá quando o filme interrompe a associação de ideias do espectador, de modo a atentar para o que se desenrola na película. Peguemos alguns exemplos. Ao filmar as favelas cariocas em Rio 40 Graus, em 1955, Nelson Pereira dos Santos não teme expor a situação precária das moradias do morro ou evidenciar a segregação racista. O choque é sentido pelo público, ao ponto de o filme ser censurado.4 A entrada radical dos conteúdos sociopolíticos fornece os primeiros impulsos para o Cinema Novo. Quando as lentes se voltam 3 “[...] um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade” (BENJAMIN, 1987, p. 187). 4 “[Foi] o coronel Geraldo de Meneses Cortes, chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, que mandou proibir o filme em todo o território nacional. E justificou a censura: os termômetros oficiais da cidade nunca atingiram quarenta graus – no máximo, tinham marcado 30,7 graus – o diretor além de mentiroso era comunista, e o filme, um achincalhe imperdoável com a imagem da capital federal” (SCHWARCZ, 2015, p. 419-420). | 33 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) para os sertões, como se dá por exemplo em Deus e o Diabo na Terra do Sol, tal conteúdo guiado para o choque também organiza a própria maneira de se filmar: a câmera deve tremer junto ao terreno acidentado; deve perambular como o moribundo; deve sofrer de cortes abruptos junto à violência captada. Mais do que um manifesto técnico em prol de uma maneira cinematográfica, Eztetyka da Fome também exprime uma característica da identidade brasileira. O manifesto propõe uma postura artística que assuma de partida a característica colonizada e explorada dos povos da América Latina para propor então um modo de fazer cinema que se valha dessa identidade. Nem no seu conteúdo nem na sua forma o Cinema Novo vem para agradar o paladar colonizador. Bem pelo contrário, tematizando a situação precária de parcelas do povo brasileiro, esse cinema era ser incômodo para a indústria cinematográfica predominante. Rocha afirma que “por esta definição”, de um cinema acasalado com a verdade da situação pobre do Brasil, “o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração” (ROCHA, 1981a, p. 32). Ao pontuar a característica nevrálgica do Cinema Novo, fala da importância da fome para esse cinema. “Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” (ROCHA, 1981a, p. 30). Vale mencionar que o trágico típico desse cinema não é exclusivo ao Brasil ou aos países da América Latina. Como o próprio autor relembra, pertence a todo povo colonizado as condições precárias e a intrínseca necessidade de elas mesmas serem denunciadas em maneira compreensível (ROCHA, 1981a, p. 32). A reinterpretação crítica que Rocha faz de sua própria Eztetyka alguns anos após a leitura de seu manifesto, passa a reclamar um abandono inclusive de qualquer estética comprometida com uma razão preestabelecida. “As vanguardas do pensamento não podem mais se dar ao sucesso inútil de responder à razão opressiva com a razão revolucionária”, diz o cineasta em 1971, e continua: “[a] revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de 34 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio todos os fenômenos que é a pobreza” (ROCHA, 1981b, p. 219-220). Se foi um projeto racional que legou aos colonizados a sua fome, então uma arte emancipatória deve evidenciar os limites da razão. Nesse sentido, não é de surpreender que Rocha compreenda a arte revolucionária como uma mágica que desencante a racionalidade europeia, “[...] uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade absurda” (ROCHA, 1981b, p. 221). Embora tenha um tom místico, o crucial aqui é sua potência crítica. Peter Bürger oferece uma noção de crítica da qual as vanguardas artísticas se fazem valer: “[a] crítica não é concebida como juízo, que contrapõe abruptamente sua própria verdade à não verdade da ideologia”, ou seja, uma razão contra outra, “mas como produção de conhecimentos. A crítica procura separar a verdade e a não verdade da ideologia” (BÜRGER, 2012, p. 31). Se a ideologia se cristaliza ao ponto de tornar a pobreza invisível, esta invisibilidade se dissemina para a própria produção artística. A necessidade de incorporar uma “anti-razão” na produção cinematográfica se dá justamente como ruptura a qualquer ideologia que possa se contrapor à comunicação das tensões oriundas da pobreza, e tão logo ocultá-las no processo de produção. DESPOLITIZAÇÃO DO CINEMA E COSMÉTICA DA FOME Embora o Cinema Novo tenha obtido prestígio artístico no Brasil e notoriedade internacional, o movimento cinematográfico teve vida breve.5 Ao decorrer da década de 1970, o movimento passa a ser dissolvido dentro do cinema brasileiro, de maneira que suas características centrais se espalham por correntes diversas, ficando menos perceptíveis e finalmente, enquanto movimento centralizado, encontra seu fim nessa mesma década (VIEIRA, 2000). Curiosamente, o fim do Cinema Novo coincide com o advento do período pós-vanguardista. Momento marcado pela completa 5 No Brasil, um dos frutos mais prodigiosos do Cinema Novo foi a criação da produtora e distribuidora estatal Embrafilme. No exterior, além de alguns de seus filmes receberem nomeações em festivais renomados, como foi o caso de Cannes, teve ainda o poder de influenciar a criação de movimentos, como por exemplo o Cinema Novo Alemão, que tem como expoentes cineastas de prestígio, a exemplo de Werner Herzog, Edgar Reitz e Alexander Kluge. | 35 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) assimilação da liberdade estilística reclamada durante os movimentos de vanguarda, mas agora quase completamente esvaziado do seu valor político ou revolucionário. No fim dos anos 1990 e no início dos anos 2000 se repara o retorno de alguns temas e cenários caros ao Cinema Novo. É o caso de Central do Brasil, rodado em 1998 por Walter Salles, que resgata o sertão; também de Cidade de Deus, gravado em 2002, dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, que outra vez leva as câmeras às favelas do Rio de Janeiro. Contudo, o sucesso de bilheteria desses filmes precisa ser contrastado com uma perspicaz crítica feita por Ivana Bentes. A crítica identifica um momento no qual as produções cinematográficas que evocam temas relativos às fragilidades sociopolíticas não emulam mais o potencial revolucionário e emancipatório contido na estética do Cinema Novo. Agora, esses filmes se dirigem muito mais para a satisfação dos gostos de uma fruição contemplativa e politicamente neutralizante, do que para efetivamente expor o espectador às contradições pertinentes àqueles cenários. Bentes reconhece nesse fenômeno um processo de transformação do cinema, que vai de uma estética politicamente comprometida com a realidade para uma mera contemplação parasitária da “fome” desses cenários, esteticamente distanciada do contexto captado e muito mais comprometida com os estilos cinematográficos inaugurados no estrangeiro (BENTES, 2007). Assim, porquanto as décadas de 1960 e 1970 foram ricas para as vanguardas, as décadas sequentes justamente testemunharam a plena decadência de seus propósitos e uma consequente reorganização da instituição arte. “Passamos da ‘estética’ à ‘cosmética’ da fome, da ideia na cabeça e da câmera na mão (um corpo-a-corpo com o real) ao steadcam, a câmera que surfa sobre a realidade [...]” (BENTES, 2007, p. 245). É verdade que o exemplificado cinema da década de 1990 e 2000 resgata os mesmos ambientes antes expostos por um cinema pretensamente revolucionário. Mas agora eles são produzidos novamente para uma percepção que vê na arte o valor de culto. Já o estilo empregado promove um desprendimento com o contexto retratado. O espectador parece residir em um domínio superior à terra que ali se assenta em seca e acidentes, para deslizar por cima dela (BENTES, 2007). É preciso dizer que esta postura 36 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio ritualística de fruição da arte pertence justamente ao espectador que, no manifesto de Glauber Rocha, era denunciado como o colonizador, a saber, a estética europeia clássica. Estética que, como Benjamin interpreta, se sustenta porquanto é conservado o distanciamento entre o espectador e o conteúdo da obra, porquanto a expressão artística se veste de um caráter aurático e inacessível. No modo de ser aurático da obra de arte, defende Benjamin, esta nunca está destacada de sua função de culto, i.e., de ser parte de um ritual. Esse caráter ritualístico não precisa estar necessariamente atrelado a um comportamento religioso, como se pode observar com a noção secularizada de culto ao belo. O movimento de teorizar a arte pela arte, surge justamente em simultâneo à invenção da fotografia, que abala o senso ritualístico que envolve as artes. É apenas com as condições materiais advindas da reprodutibilidade técnica da obra de arte que, pela primeira vez, a arte se emancipa de seu “caráter parasitário do ritual” (BENJAMIN, 1987, p. 171). Mas a potência que o cinema tem de exposição do real não precisa ser necessariamente acatada pelas produções cinematográficas. Por isso uma câmera desprendida da terra pode captar o cenário dos sertões, por exemplo, de maneira cômoda para o espectador do século XXI. Conforme Bentes, a entrada do sertão nessa estética cosmetizada faz desse cenário “palco e museu a ser ‘resgatado’ na linha de um cinema histórico-espetacular ou ‘folclore-mundo’ pronto para ser consumido por qualquer audiência” (BENTES, 2007, p. 245). Voltamos àquela tipificação da identidade brasileira como item de curiosidade, mas agora o exótico é sua fome, sua violência, sua pobreza. Quando se refere ao filme Cidade de Deus, e à temática da favela, o tom da crítica de Bentes não muda: “é um filme-sintoma da reiteração de um prognóstico social sinistro: o espetáculo consumível dos pobres se matando entre si” (BENTES, 2007, p. 252). Retrata-se ali uma favela em território autônomo da cidade à qual está inserida. “Em momento algum se pode supor que o tráfico de drogas se sustenta e desenvolve (arma, dinheiro, proteção policial) porque tem uma base fora da favela. Esse fora não existe no filme” (BENTES, 2007, p. 252). Nessa favela espantalho, não há porosidade, nada escapa nem entra nela. Sugere-se que a favela esteja encerrada em si mesma. | 37 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) É possível sobrepor aqui a distinção que Walter Benjamin faz entre os conceitos de alegoria e símbolo. Grosso modo, a diferenciação entre símbolo e alegoria diz da natureza da obra de arte e do modo como se relaciona com ela tanto o produtor quanto contemplador da arte. No caso do símbolo, temos uma noção de relação orgânica com a arte. “[O] belo formaria com o divino um todo contínuo” (BENJAMIN, 2016, p. 170). Símbolo é um conceito oriundo da teologia embora não necessariamente ligado à religião, em todo caso, sempre aspira a integrar o plano sensível a um suposto plano suprassensível (BENJAMIN, 2016, p. 169-170). A obra simbólica, em sua condição material e sensorial, dá acesso a uma ideia universal e perfeita, integrando coisa e ideia de maneira orgânica e totalizante. E é precisamente assim que a favela retratada na Cidade de Deus aparece: orgânica, encerrada em si mesma, ensejando uma contemplação distanciada e exaustiva. Já com o conceito de alegoria Benjamin tensiona um modo fragmentário de se produzir e fruir obra de arte. “[P]ara resistir à queda na contemplação absorta, o alegórico tem de encontrar formas sempre novas e surpreendentes” (BENJAMIN, 2016, p. 195). Se tomarmos como exemplo Rio 40 Graus, observa-se uma favela narrada desde vários depoimentos, em uma construção quase documental, onde diversas características do contexto são expostas, literalmente, em percepções fragmentadas. Não há uma só narrativa que preencha por completo as lacunas deixadas entre os cortes. Nesse modelo alegórico, cabe ao espectador o encargo de fazer a junção dos depoimentos e de interpretá-los a cada vez de sua própria maneira. Há um natural convite à reflexão, há um cinema que provoca o espectador ao exercício da interpretação. Aquele aspecto partilhado pelo Cinema Novo, de provocar o espectador à interpretação e reflexão, volta a dar espaço no cinema brasileiro contemporâneo a uma contemplação distanciada. Os filmes mencionados na crítica da cosmetização da fome, ao mesmo tempo que se vendem como conscientes da “realidade” que retratam, garantem ao espectador a comodidade de uma contemplação meramente simbólica. Essa falsa reflexividade pertence de maneira genérica à arte da pósvanguarda, ou, como o teórico de cinema Robert Stam enuncia, à arte 38 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio “pós-moderna”. Ela não deixa de abordar os temas caros a um pensamento crítico e reflexivo. Ela “tende a ser reflexiva [...], porém cuja reflexividade é, quando muito, politicamente ambígua”; e, fazendo ressonância aos termos de Bentes, continua Stam: “[o]s meios de comunicação de massas parecem ter canibalizado a teoria da reflexividade para os seus próprios propósitos ‘culinários’” (STAM, 2008, p. 218-219). Pensado em contraposição aos motivos do Cinema Novo, agora o cinema brasileiro retorna aos critérios estéticos do estrangeiro, critérios que já se encontram disseminados também no gosto do próprio espectador brasileiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em transcrição de conversa com figuras importantes do cinema mundial, Glauber Rocha arriscava um presságio: “[d]entro de cem anos ninguém mais ouvirá falar de James Bond, e, no entanto, haverá filas nos museus para se ver Chaplin, da mesma forma que há filas hoje para ver Picasso no Museu de Barcelona” (ROCHA, 1981, p. 198). Quanto às filas para assistir Chaplin, no momento é algo pouco crível, mas pode ser que venha a se tornar realidade dentro dos próximos cinquenta anos a completar a profecia de Rocha; a respeito das últimas sequências de James Bond, todavia, essas podemos afirmar que continuam atraindo multidões e rendendo lucratividades milionárias. É irrecusável que, em comparação às vanguardas dos anos 1960 e 1970, há uma diferença essencial na maneira como o cinema contemporâneo de grande bilheteria se relaciona com a política. Aquelas pensavam a política de modo completamente revolucionário e utópico, tão logo, parece natural que a arte seja introduzida neste cenário como uma alavanca para alcançar o estágio social desejado. Após a virada pósmoderna, a crença em utopias ficou abalada não só no escopo artístico, mas no domínio político e intelectual também. Testemunhar o fracasso das vanguardas alinhadas aos ideais revolucionárias não significa que a relação entre cinema e política em geral tenha fracassado. Parece mais produtivo pensar que se constata aí o fim de um modo de operar o fator político | 39 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) dentro do domínio cinematográfico. Uma relação que agora ocorre ou espera por novos modos de efetivação – e também de reflexão. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. A Origem do Drama Trágico Alemão. Tradução de João Barrento. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. BENTES, Ivana. Sertões e Favelas no Cinema Brasileiro Contemporâneo: estética e cosmética da fome. Revista ALCEU, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 242-255, 2007. BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. Tradução de José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2012. ROCHA, Glauber. Assim se faz a Revolução no Cinema. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981. ROCHA, Glauber. Eztetyka da Fome. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981a. p. 28-33. ROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981b. p. 217-220. SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. STAM, Robert. Teoria do Cinema: a poética e a política do pós-moderno. In: GUINSBURG, J.; BARBOSA, Ana Mae Barbosa (org.). O Pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 215-226. VIEIRA, J. L. Chanchada e Estética do Lixo. Contracampo: Brazilian Journal of Communication, Rio de Janeiro, n. 05, p. 169-182, 2000. Disponível em: https:// periodicos.uff.br/contracampo/article/view/17318. Acesso: 02 abr. 2021. 40 | FEBRE DO RATO: por uma POIESIS marginal Pedro Fernandes GALÉ 1 Tudo que sinto estia / a cidade (mesmo assim) / encharca / minha vida de olhos / o pensamento fica / um soslaio defunto / neste abrigo (Adriano Menezes, “Marquise”, Os dias, p. 23). Esse texto é dedicado à memória do irmão Adriano Menezes, poeta. E dos bons! Amigo do desbunde! Quando, recebido o convite dos organizadores, uma proposta para escrever sobre filosofia e cinema, não foram poucos os apuros e reticências diante da empresa. Não pudemos abandonar certa desconfiança dos conectivos que se multiplicam diante da prosa filosófica; um tipo muito em voga de reflexão estética parece cometer toda sorte de abusos em relação às obras de arte diante da autorização supostamente concedida por um aparentemente inofensivo “e”. Tentou-se organizar nessas linhas 1 Pós-doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar / São Carlos / SP / Brasil. E-mail: pedrofgale@gmail.com. https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p41-60 | 41 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) um esforço de abarcar um regime filmográfico que flerta com um caráter poético ou poetizante. Portanto, diante de uma cisma em relação ao abuso das conexões ditas filosóficas, propomos ainda uma camada mais, a da poesia. Sem esquecer que no mais das vezes, em sua vertente lírica, a poesia se coloca de maneira transgressora em relação à prosa filosófica e suas apropriações. Se pensarmos com Wallace Stevens, isso se deve ao próprio lugar ocupado pela poesia e sua relação com o lugar ocupado pela filosofia: Se definirmos poesia como uma visão extraoficial do ser, isto a coloca em contraste com a filosofia [assumindo que a verdade filosófica pode ser dita a visada oficial] e, ao mesmo tempo, estabelece uma relação entre ambas. Em filosofia nós tentamos abarcar a verdade através da razão. E isso é obviamente uma afirmação de conveniência. Se dissermos que em poesia tentamos abarcar a verdade pela imaginação, isso é, também, uma afirmação de conveniência. (STEVENS, 1951, p. 41). Tomaremos a via que se nos apresenta pela possibilidade de uma abordagem extraoficial, poética, daquilo que vamos tratar, ainda que sob o risco constante que o conectivo “e” impõe à obtenção de um objeto. Quer tratemos de cinema, quer tratemos de poesia, é natural que se tema diante da feliz promessa de oficialidade filosófica, ela traz em si uma ameaça, ainda que a contragosto. A questão em torno do objeto (cinema ou poesia) e da ferramenta (filosofia) se repropôs diversas vezes, sem que encontrássemos um equilíbrio possível, a saída, que pode ser considerada apenas uma patifaria a mais, foi a de buscar as intersecções entre cinema e poesia em uma obra cinematográfica que se deixe observar dessa maneira. Buscando mais do que pensar o cinema a partir da filosofia, cabe-nos pensar o poeta, como lugar, como tópica e como agente do pensamento a partir de uma figuração em cinema que é ao menos uma mera afirmação de conveniência. Em tempos onde a falta de sensibilidade, e todo seu apelo sistemático, pode servir de base para estruturas teoréticas que fazem com que toda sorte de objeto, produto ou obra, se veja amparada por elementos que se não lhe são estranhos, é necessário que se tome a via da sensibilidade, ainda que também fadada ao equívoco, essa via permite que pensemos o nosso objeto 42 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio em sua dignidade, em sua singularidade. Tomar da história do pensamento filosófico elementos para que se possa abordar “filosoficamente” um filme é tarefa inglória, pois a arte, ainda que sem grandes sacralidades, não deixa de apresentar-se de modo refratário a tal jugo oficial e filosófico. A tangente adotada aqui, longe de ser isenta de problemas, é a de buscar discursos poéticos ou de poetas que nos tragam à baila alguma sorte de reflexão que sirva, ainda que sem qualquer sorte de oficialidade, para que localizemos lugares e tópicas cujo regime de conveniência seja mobilizado por um filme. Isso se tentará fazer sem que nos forcemos a encaixes forçados ou reduções da sorte obra = sistema. Respeitaremos os regimes de conveniência fornecidos pela história da poesia, mais do que a verdade tida por oficial e filosófica. Sem pensar nas consequências de tal jogo de aparência livre entre a obra e o pensamento, e sua matriz poética, um texto, como este que aqui se pretende desenvolver, seria um móvito, um natimorto que se apresentaria ao mundo já arruinado e sem vida. O esforço que move essas linhas é impreciso e pode até mesmo não passar de um clamor à imaginação de viés anacrônico: o de que observemos uma obra do modo mais nu possível, sem as lentes da crítica ou o aparato das estéticas. Essas linhas buscam a insurgência do discurso artístico, ou ainda poético, em relação às grandes arapucas armadas pela estética, filosofia da arte e suas crias, como certa vez escreveu a magnífica Marina Tsvetáeva: Para o filósofo [o mundo real] é motivo de pergunta, para o poeta, de resposta. (Nunca acreditem nas perguntas dos poetas!...) (TSVETÁEVA, 2017, p. 42). É claro que nesse esforço, retomamos a imagem do Poeta Torquato Tasso, ao final da tragédia de Goethe: “Assim se agarra / O barqueiro ao rochedo que será / o fim de sua vida, o seu destino” (GOETHE, 1999, p. 160). Destinada e até mesmo agarrada ao seu próprio fracasso, a estratégia que propomos aqui é a de abarcar um filme que já traz em si uma carga desafiadora a toda sorte de esquema: Febre do Rato, de Cláudio Assis. A escolha, confessamos, não se deu de modo gratuito, mas totalmente consciente. Nessa obra, para além de toda a insurgência que os filmes do diretor pernambucano costumam apresentar, o tratamento central repropõe ainda um problema a mais, o do elemento poético. Seria simples | 43 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) deslocar todo o esforço cinematográfico para o ambiente da poesia, outra arte por vezes insurgente em relação aos esquemas filosóficos. Febre do rato se faz num registro que é poético, não apenas por sua personagem central ser um poeta, ou assim chamado poeta, mas pelo jogo de imagens, por sua temporalidade, pela ausência de cor e movimentos de seus quadros diante de uma realidade dada que, se não busca subvertê-la, não a aceita. A película indica reclamar para si uma poética que parece se afastar dos meios já célebres de sua feitura e clamar para si uma abordagem imaginativa e imagética do ser, da verdade e de seus movimentos. Cafés literários, oficinas do saber e toda sorte de proposição da poética oficial em seus regimes específicos, ainda que inconformada, não aparecem como possibilidade de redenção ao poeta e em relação ao poético. Em consonância com o lugar escolhido como locação ao elemento poético, o próprio enredo do filme se coloca como que afastado de toda culpa e comiseração, burguesa ou cristã, que parecem permear nossos filmes acerca de tudo que é considerado marginal e periférico. Retomando uma tópica muito antiga, o poeta de Claudio Assis, Zizo (Irandir Santos), é marginal, é daqueles que, nas palavras de Horácio, Demócrito não expurgaria do Hélicon, o monte consagrado a Apolo e às musas, ele não é são (Epístola aos Pisões, versos 295-296). O poeta louco que encerra a arte poética de Horácio é uma tópica reincidente no âmbito do pensar a poesia. A película nos traz um poeta que marginal, brasileiro e do século XX (ou XXI?), não deixa de remontar um lugar já conhecido entre os antigos, foi em torno da figura do poeta louco e, digamos, marginalizado que se encerraram as linhas de sua célebre carta aos Pisões, passagem que reproduzo na íntegra por ser das mais saborosas: Feito aquele que sofre de sarna ou de régia doença / ou de delírio fanático ou de irascível Diana, / quem é sensato receia e evita tocar o poeta / louco; crianças o atiçam e incautos o seguem. / Quando versos sublimes arrota nas suas errâncias, / feito um passarinheiro que atento aos melros um dia / cai num poço ou fosso, pode esganar-se “Socorro, / concidadãos!”: ninguém se preocupa em prestar uma ajuda. / Mas se alguém se preocupa em dar a mão ou a corda, / “Quem é que sabe se não desceu ali por vontade, / sem querer ser salvo?”, diria: assim é que narro / como enterrou-se o 44 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio poeta sículo. Empédolcles quis ser / tido por deus imortal e frio pulou no fervente / Etna. Façam justiça! Que possam morrer os poetas; / ao salvar quem recusa, você parece assassino. / Esta não é a primeira vez, nem, se for retirado, / vira humano e deixa de amor pela morte famosa. / Nem sabemos a causa de tantos versos, quem sabe / se ele mijou nas cinzas paternas, pisou inda impuro / num bidental funesto; por certo pirou e igual urso / quando rompe a grade posta à frente da jaula / nosso recitador afugenta cultos e incultos. Quem ele agarra, de fato prende e mata em leituras: / sanguessuga só larga a pele se farto de sangue. (HORÁCIO, 2020, p. 71-73). O diretor parece tomar o lugar de Demócrito, seu poeta vai na direção de suas musas de modo a não saber da causa de seus versos, arrota versos; “Podem calar as bocas oficias, diz o poeta Zizo, mas nunca a poesia; e minha boca é pura poesia, safada, mas poesia, entremelada, mas poesia, arrotada, e mesmo assim poesia.” A tomada de partida nos coloca diante de uma tópica, a do poeta intuitivo, ingênuo que faz seus versos como que emanando de uma fonte trivial e ao mesmo tempo oculta. Mas no jogo de imagens do diretor recifense, as questões se sobrepõem, o poema, de matriz oral se apresenta diante de um mundo que não deixa de nos violentar com sua beleza e perigo, regressivo ou progressivo, esse mundo se impõe diante de uma poética das imagens que nos coloca em constante desarme em relação a qualquer sorte de categorização. A tópica clássica se insere no balançar tropical, no mangue, nos barracos, atestando, diante de toda a distância, a efetividade desse topos romano. O poeta, no Recife de 2010, se apaixona por Eneida (Nanda Costa). Ama o poema e a mulher que o leva por nome. Sua Eneida, filha de “Hippie fora de época”, e não de Vergílio, é o que inspira alguns versos. O fora de época se atualiza, vira época em procedimento que, longe de epifanias, parecia acenar para o que estava por vir. Mas o poeta louco e apaixonado, de libido descontrolada, também é vitimado por uma busca de um fazer poético envolto por lodo, ratos, bibocas e margens. Desnudando o espectador de seus referenciais mais óbvios. É como se o filme de Claudio | 45 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Assis chamasse para si uma visada que atuasse de modo análogo à proposta de Waly Salomão diante das obras de Hélio Oiticica: Para iniciar a corrida são necessários dois ou três pressupostos básicos: tomar uma boa talagada de inconformismo cultural-éticopolítico-cultural, evitar a arapuca armada do folclore e destravar a armadilha preparada pelo esteticismo. Para poder penetrar genuinamente – o genuíno não sendo nenhuma raiz encontrável mas o resultado sintético das pedras de tropeços iniciáticas – no Buraco quente e chegar até o lendário boteco Só Para Quem Pode. (SALOMÃO, 2015, p. 11). É claro que a paisagem de Zizo, personagem central de Febre do rato, não é a dos morros cariocas, mas o mangue das periferias de Recife, aqui retratado sem os traços de comiseração catártica que tanto parece agradar uma corrente do engajamento inamovível tão caro a algumas “escolas” do cinema brasileiro. A periferia que Claudio Assis nos apresenta em preto e branco é um lugar onde ainda caberia certo desbunde, certo arrefecimento de normas sociais já caducas em muitos dos circuitos libertários da zona oeste paulista ou zona sul carioca, mas aquilo que se expressaria em verbo e consumo na ladeira do baixo Augusta, ganha aqui ação e poesia sob um visual inconstantemente iluminado. Longe do engajamento prosaico, a Febre nos arrebata pelo seu esforço de poetização visual. O poeta Zizo é a encarnação do elemento poético, caótico e marginal que se coloca como que fora de lugar e ao mesmo tempo embutido para dentro de uma paisagem que não faz mais que reafirmar o elemento necessário e poético da negação. Pensar esse elemento marginal é pensar na relação dos poetas e das poéticas com um mundo que não faz muito gritou em agonia. Para que não entremos nessa caracterização desarmados, deitemos os olhos no livro que introduziu os leitores mais genéricos no universo da dita poesia marginal. No ano de 1975, Heloisa Buarque de Hollanda lançou a coletânea 26 poetas hoje, aquela que seria uma grande coletânea de poesia à época; em sua introdução, a organizadora nos deu certos critérios para que compreendamos o que se entendeu como poesia marginal: 46 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Se agora a poesia se confunde com a vida, as possibilidades de sua linguagem naturalmente se desdobram e se diversificam na psicografia do absurdo cotidiano, na fragmentação de instantes aparentemente banais, passando pela anotação do momento político” (HOLLANDA, 1998, p. 11). Febre do rato de 2010 parece ser uma espécie de canto final de um mundo que já não existe mais. Um mundo onde conjuravam os mangues de recife, poetas marginais dos anos 60 e elementos musicais em nada óbvios. O cartaz, à época do lançamento filme já bem anunciava: “Agora é só poesia”. Mas que poesia? A poesia de edital e coletâneas que não fazem mais que reafirmar nossos vícios estéticos e pretensões grandiloquentes? Não, como já gritava o grande poeta Waly Salomão, o esteticismo parece estar longe do filme e da carga de poesia que dele emana. Aliás, perguntado sobre o âmbito estético de sua arte, o diretor Claudio Assis, no site Revista de cinema (2011), responde de modo a não sobrar dúvidas: “Não sou esteta coisa nenhuma! Eu sou um guerreiro. Um guerreiro que se junta a outros guerreiros, e, juntos, fazemos cinema. Não tem nada de esteta.” O diretor é mais um a tentar “destravar a armadilha preparada pelo esteticismo”. Sem as perversas e perseverantes chaves da estética, ou ainda, do esteticismo, como abordar o filme em questão? Não faltaram à época de lançamento do filme (meados de 2012) entrevistas onde o diretor reafirmava seu vínculo com a poesia marginal dos anos 60 em diante. Talvez, a chave mais incisiva de tentativa de entender uma obra e não cair no esteticismo ou no criticismo seja a de entendê-la diante de um chamamento de certo universo poético que parece marcar esse filme-poema e seus ritmos. O tempo do filme nos permite certas relações; o ontem a que o filme pertence conjura temporalidades que reúnem quase meio século (dos anos 1960 à primeira década do século XXI), um mundo no qual o Febre do rato ainda era possível. Parece válido entender o filme com os olhos da poesia deste ontem, pois se trata de algo que envolve a poesia de um momento anterior e de difícil demarcação, onde nem éramos tão felizes, mas sabíamos. A matriz poética dos versos desse poeta à margem, do mangue e da cidade, permanece ligada a uma temporalidade difusa, dançam juntos os | 47 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) anos 70, o Manguebeat e as engenhocas de um tempo que se apresenta em seus objetos, a oficina do poeta é o caos, algo informe e atravessado de coisas propensas a gerar seus frutos. Vejamos o poema de abertura, numa transcrição que pode ser imprecisa: O satélite à volta do mundo – abismo de coisas medonhas – pessoas que ladram seu sono – enfeites de cores errantes – cálida e vizinha e princesa – magra em sua sana loucura – grita de alegre subúrbio – chora de medo planeta – metida em sais bem curtas – bonecas, ladrões, pernetas. – Mundo abismo, grande mundo, – logo ali por trás do mangue – descansa a insônia, a faca, – o serrote, o trabalho, o sexo e o sangue – abismo mundo escuro – profundo buraco – lateja o fardo de tuas ruas, – lateja o grito ruminante – gritos de não! Mundo e abismo. Gritos de não para o meu abismo mundo! Não cabe aqui julgar a qualidade dos versos, embora ela exista, mas o registro poético sob a luz de uma imagem em preto e branco que da cidade vai ao rio, do rio às barracas e palafitas. Esses versos, de ritmo inegável, fazem a vez de proêmio. Ainda que a forma de apresentar um regime poético a partir de imagens seja intimamente ligada ao que a voz da personagem nos faz ouvir, elas se apresentam como indicação do caráter do que vamos ver, fica claro que as imagens não estão lá para que se ilustre os versos, menos ainda podemos pensar que os versos são frutos das imagens. A relação entre os dois regimes, o imagético e discursivo, se desdobra no tempo e em suas sucessões e se avolumam mutuamente, sobrepondo-se um ao outro num regime que parece indicar mais que a participação de um no outro. Suas relações se colocam de modo indireto e pregnante. A cilada posta, já nos primeiros momentos é a de submeter a imagem ao discurso e o discurso à imagem. O registro da imagem é aqui não o de apresentar, de mostrar, muito menos o de ocultar, simular; ele se apresenta ligado a uma força rítmica, com sua dinâmica e sua força imaginativa repropondo imaginativamente a verdade de sua ambientação. O registro dos versos desse proemio não é o da significação positiva de algum lugar, algum regime de verdade social; 48 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio ele também é ritmo. O que conduz o espectador é um deslocamento não somente do centro à margem, mas uma margem que se construiu como a palafita frente ao rio e como a poesia frente ao regime poético estabelecido. Os versos de Zizo ao início já nos inserem numa poética ligada ao que se convencionou chamar de poesia marginal, que poderia ecoar como anacrônica hoje, mas que comunga de uma tonalidade em comum com poetas do passado recente, também eles ditos malditos a seu tempo. Não são versos que busquem qualquer sorte de autonomia ou outra carga inerente a um objeto estético que serviria aos delírios de estetas e cartorários do pensamento. Já de saída o filme nos apresenta o seu poeta, em seu conteúdo: o poema; e em sua forma: a imagem de Zizo em sua oficina. Nesse breve proêmio já nos colocamos diante de uma imagem bem delimitada em seus contornos. Ele parece escancarar uma figura do imaginário poético, o poeta marginal, maldito. Um poeta que pode se espraiar por qualquer momento de nossa história cultural, um poeta que já não se veria amparado pela seleção canônica. Um dos caminhos possíveis, aqui, é o de observar, à contraluz, o lugar dessa marginalidade diante do artigo de Haroldo de Campos, Contexto de uma vanguarda, que buscava demarcar certos territórios: A poesia concreta fala a linguagem de hoje. Livra-se do marginalismo artesanal, da elaborada linguagem discursiva e da alienação metafórica que transformam a leitura de poesia em nosso tempo [...] num anacronismo de salão, donde o abismo entre poeta e público, tantas vezes deplorado em termos sentimentais e pouco objetivos” (CAMPOS, A.; CAMPOS, H; PIGNATARI, 2006, p. 210). Heloisa Buarque de Hollanda não foi surda a esse tipo de restrição aplicada pelas vanguardas, notou a tensa relação entre a vanguarda concretista e os poetas que pululavam à margem: “Faz-se clara a recusa tanto da literatura classicizante quanto das correntes experimentais de vanguarda que, ortodoxamente, se impuseram de forma controladora e repressiva no nosso panorama literário” (HOLLANDA, 1998, p. 11). | 49 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Gritos de insurgência contra as vanguardas já se faziam ouvir à época: “Se a vanguarda de hoje, escrevia Torquato Neto em 1972, é sempre a retaguarda de amanhã, o que será da retaguarda de hoje? Não é uma tristeza?” (NETO, 1982, p. 255). Mas não é somente na chave de uma recusa diante das vanguardas que podemos compreender a poesia dita marginal. Há uma postura de ligação direta do poeta e sua localidade, seu lugar e seu público, se dá em talagadas rápidas, “o flash cotidiano e o corriqueiro muitas vezes irrompem no poema quase em estado bruto e parecem predominar sobre a elaboração da matéria vivenciada” (HOLLANDA, 1998, p. 10). Se pensarmos no regime imaginativo em relação à verdade, em poesia não é sempre possível tratar das exclusões de modo imperativo; não devemos buscar um regime de exclusão que nos inclua. A imaginação poética, quando produtiva, não nos permite a clara demarcação de territórios de dentro e de fora. Demarcar a própria marginalidade é tarefa sempre inglória e infrutífera. Ao ambiente da poesia não é dado excluir. Lembremos de Roberto Piva: “Não devemos excluir autoritariamente, como censor barato, nem os que se dizem marginais e não são e nem os que pensam ser marginais e são escriturários” (PIVA, 2008, p. 188). O lugar, a cidade é o ponto que nos dá a estabilidade diante de uma temporalidade anacrônica ou difusa. Zizo tenta ocupar, a partir das margens e dos dejetos nela depositados, os espaços disponíveis. Faz, com um maquinário anacrônico, o seu jornal ou fanzine Febre do Rato, em sua oficina antiga, sob a égide de um pôster de Bakunin, seu tempo é o das máquinas desengonçadas, barulhentas e dotadas de beleza rítmica, como os sons da prensa que nos apresentam os créditos iniciais. O poeta ocupa, ou busca ocupar, seus espaços. O poeta, aqui retratado, é do tipo comum num certo passado, que se manifesta em diversas frentes. Faz lambe-lambes, filmes em superoito e grafitos. Tudo emanando de uma mesma e impulsiva imaginação. Tudo que emana dele é ou vem a ser poesia e ganha o mundo em sua objetificação. Nas palavras de Torquato Neto: “Isso também tem a ver com a poesia, mãe das artes & manhas em geral: antes ocupar o espaço e logo em seguida poetar conforme for. Na gaveta, baratas e velharias. Poesia não” (NETO, 1982, p. 180). Zizo parece encarnar esse apanágio e 50 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio trazer à baila seus versos (compostos pelo roteirista Hilton Lacerda) e tudo que se liga a eles. Há algo de errático em seus versos, que vão do poema de ocasião a toda uma gama de assuntos poéticos dos mais usuais, como o amor e a própria poesia. Parece ser no marginalismo artesanal, cujos ruídos da prensa aparentam materializar, que o diretor inseriu sua narrativa. Algo que na demarcação de território do movimento concretista se colocava diante dos problemas basilares da poesia e de sua ação no mundo. Longe de ser uma figura tranquilamente incensada no imaginário literário e cultural brasileiro, a figura a qual o filme se dedica não é isenta de problematizações. O que a Febre do rato nos apresenta é também um poeta estorvo, que gostaríamos, por vezes, de nos livrar. Marginal e indigesto, inconveniente e ingênuo, um poeta artesanal traz à baila seus gritos de não. Se quem decide acerca da marginalidade em poesia são aqueles que formam, ano após ano, o cânone de nossa poesia, o lugar da marginalidade se torna coisa mais complexa. A crítica incorporou em seu panteão autores que, se pensarmos na questão do marginalismo artesanal, foram ou ainda são considerados de margem, de fora, sem lugar no edifício da história da poesia nacional. Roberto Piva, expoente também inconveniente (e ausente da coletânea de Heloisa Buarque de Hollanda) e indigesto, ganha edições no início de nosso século amparadas por textos de crítica oriundos da academia que ele tanto desprezara; a poesia, por vezes hipervalorizada, de Ana Cristina Cesar ganhou uma edição pela editora Cia das Letras. Talvez, com o passar dos anos, foram os concretistas e suas lições que – mais por incompreensão do que por uma leitura precisa que buscasse as fissuras desse edifício e soubesse de algum modo apreciá-lo – foram lançados à margem, ainda que longe do caráter artesanal que parecia marcar a assim chamada produção marginal, geração do mimeógrafo. Sob o signo de Hélio Oiticica, nossos heróis são os marginais e isso, por vezes, ofusca o brilho mais próprio da poesia. Mas devemos lembrar as palavras de Waly Salomão, ainda uma vez mais: | 51 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) É fácil o conservador dizer ‘romantismo’ pura e simplesmente e descartar o contexto da época. Seja marginal, seja herói se reveste de um caráter épico. Não era um romantismo inofensivo porque tinha uma agressividade política oposta aos esquadrões da morte. Com a malandragem do morro, Hélio Oiticica aprendeu da ambiguidade sinuosa. Nada pode ser julgado de uma forma maniqueísta, preto no branco. (...) Não era romantismo decorativo dizer Seja marginal, seja herói; tinha um tremendo potencial ofensivo no Brasil sob ditadura militar. Ácido corrosivo. (SALOMÃO, 2015, p. 43-44, grifos do autor). Não devemos ceder ao maniqueísmo e indicar um local desgarrado e desgraçado à corrente concretista, muito atenta aos movimentos da poesia nacional, e vaticinar qualquer sorte de erro da parte deles em não valorizar os artesãos da palavra. O Paideuma concreto era outro. Mas ainda que nos submetamos à tentação de sucumbir diante desse maniqueísmo, devemos nos lembrar que são os concretistas que abrem o volume Os últimos dias de Paupéria, de Torquato Neto, organizado por Waly Salomão. E na visão do próprio Hélio Oiticica, a coisa se colocava, no ano de 1972, nos seguintes termos: “Torquato, Waly, Ivan, Haroldo de Campos & conctretos, &tc. Assim mesmo! Afluência sadia: sarro legal. Sei que lutam para conseguir fazerproduzir algo nesse país” (NETO, 1982, p. 273). Ser marginal virou tópica entre alguns poetas, que longe de serem romanticamente ingênuos, fizeram seus versos diante de tal empresa. Há um fundo comum entre eles, uma retomada do modernismo, convencionado quase que a posteriori, paradoxalmente nos corredores e bibliotecas da Universidade de São Paulo, que clamava, na voz de Oswald de Andrade, “contra o gabinetismo, a palmilhação dos climas. A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros” (ANDRADE, 2017, p. 32). É na expressão dessa “retomada da contribuição mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação poética do coloquial como fator de inovação e ruptura com o discurso nobre e acadêmico” (HOLLANDA, 1998, p. 11) que um novo vigor se estabelece entre os versos de alguns dos poetas chamados marginais e a oposição ao gabinete, à cátedra. Talvez o mais virulento deles tenha sido 52 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Roberto Piva, marginal entre os marginais, que de sua pena indócil deixou o seguinte registro em A máquina de matar o tempo de 1962: Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes. Procuramos amigos que não sejam sérios: os macumbeiros, os loucos confidentes, imperadores desterrados, freiras surdas, cafajestes com hemorroidas e todos que detestam os sonhos incolores da poesia das Arcadas. Nós sabemos muito bem que a ternura dos lacinhos é um luxo protozoário. Sede violentos como uma gastrite. Abaixo as borboletas douradas. Olhai o cintilante conteúdo das latrinas (PIVA, 2005, p. 139). Nessa colagem que é Zizo, personagem na qual se sobrepõem o próprio diretor do filme, Torquato Neto, Waly Salomão, Roberto Piva entre outros, o que emana dessa multifacetada e coerente amálgama é uma sorte de marginalidade que se faz partícipe de uma realidade da qual não tenta fugir. À margem e sem qualquer sorte de reconhecimento dos representantes da poesia oficial, ou dos filmes oficiais e ligados ao bom gosto imperativo, ele segue a vomitar seus versos e segue a se enterrar em seus buracos. Não quer ser salvo! Quer apenas gritar não! Zizo não é idealizado, não deixa de ser inconveniente, saliente e artesanal. Um poeta maldito ou um maldito poeta? A resposta pouco importa, assim como a qualidade dos versos que ele reproduz em cena. O filme mostra o poeta como condição, como inconformado, como alguém que das beiradas aponta suas farpas ao centro e que com isso só se faz perder. O poeta passa a ser incapaz de ocupar outro lugar a não ser o de poeta. Lembremos das palavras de Marina Tsvetáeva: “A arte não paga suas vítimas. Ela nem as conhece. É o patrão quem paga os operários, não a máquina. Eles podem apenas deixá-la sem mão. Quantos poetas mancos eu vi! Com mãos perdidas para qualquer outro trabalho” (TSVETÁEVA, 2017, p. 183). É no acompanhar calmo entre os becos, entre os barracos de uma silhueta feminina, que somos apresentados à figura do poeta em ação, sobre seu carro Zizo ecoa seus versos prosaicos e faz perceber sua verve escandalosa, quase hiperbólica diante de um público, também ele marginal, que parece se encantar com os dizeres daquele performático autor que entrega suas folhas. A apresentação das imagens parece ela mesma indicar, | 53 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) no caminhar da moça entre os barracões, algo que não deixa de lembrar o modo de persuasão de Waly Salomão: Um estilo enviesado é o que vou abusar aqui, uma conversa entrecortada igual ao labirinto das quebradas dos morros cariocas, zigue-zague entre a escuridão e a claridade. Lama, foguete, saraivada de balas, ricochete de bala, vala a céu aberto, prazer esplendor, miséria. [...] (SALOMÃO, 2015, p. 11). Não vamos aqui acompanhar os passos do poeta fictício no decorrer do enredo, menos ainda acompanhar as outras personagens na sua apresentação e interação com Zizo. O texto que aqui se apresenta não possui em nenhum grau a pretensão de um esforço crítico. Em cinema, segundo Torquato Neto, “se o espectador é um voyeur o crítico é um tarado completo” (NETO, 1982, p. 36), nossa tara aqui é a poesia e seu lugar em Febre do rato. Com suas imagens de beleza indiscutível, como o grupo de jovens no meio do qual a atriz Mariana Nunes, como Rosângela, dança ao som do teclado de seu amigo-amante entre amantes, de caráter poético que conduz o voyeur e o tarado a uma série de regozijos, interessados e desinteressados, que também nos fazem perceber o apelo plástico da dança, da música, embora o registro seja ele também poético, uma poesia que se estabelece no ritmo, no tempo da imagem. O silêncio de Pazinho (Matheus Nachtergaele) por vezes ensurdecedor e o fogo contido, ainda que incisivo, diante de seu amor e sua libido (que tem Vanessa [Tânia Granussi], mulher trans, como objeto, não único, mas privilegiado) trazem ao espectadorvoyeur uma temporalidade imagética que é poética em sua afirmação. Os marginais ou marginalizados são mostrados aqui sem a comiseração tão usual ao nosso cinema. O elemento expiatório dá lugar ao elemento poético, ainda que transposto à imagem. O registro pode ser considerado poético, se pensarmos com Octavio Paz: Ser ambivalente, a palavra poética é plenamente o que é – ritmo, cor, significado – e, ainda assim, é outra coisa: imagem. A poesia converte a pedra, a cor, a palavra e o som em imagens. [...] O ser imagens, e o estranho poder que têm para suscitar no ouvinte ou no espectador constelações de imagens, torna poemas todas as obras de arte (PAZ, 2003, p. 22-23). 54 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio O filme se converte em poema por sua autêntica chave poetizante, suas imagens se fazem valer poeticamente pelo caráter poético de abordagem imaginativa da realidade. O filme se coloca como que um retrato, que poderia à época de sua estreia, parecer inverossímil. O interessante é que hoje, uma década diante, ele se mostra premonitório. Longe de uma estética da fome, o filme se lança naquilo que é, esteticamente, regressivo. O elemento à margem, enquanto lugar e prática poética, é móbile de uma gama de imagens poéticas que vão da luz estourada que aos poucos nos mostra o rio e suas pontes, ao escuro tanque de água no quintal do poeta que serve de ambiente luxurioso nas relações sexuais de plástica imagética de beleza ímpar. Os retratados no filme, marginais, num sentido preciso, gozam sua existência desordenada. É gente que se diverte, se une, parecendo trazer à imagem, uma vez mais o grito de Piva: “Só a desordem nos une. Ceticamente, barbaramente, sexualmente” (2005, p. 141). Todas as personagens do filme de Claudio Assis são parte e obedecem ao ritmo desse poema imagético chamado Febre do rato. Há bastante sexo no filme, ele parece datado de um momento distópico, anterior a certas mudanças, Zizo parece saber que “A poesia é a mais fascinante orgia ao alcance do homem.” (PIVA, 2008, p. 188). Mas sabe também que escreve em um momento em que “Os poetas deixaram de ser bruxos / pra serem broxas. / Fantasmas-eunucos deste teatro / de Sombras que é a / sociedade Industrial, / bibelôs de consumo devidamente / etiquetados & vacinados / contra a Raiva” (PIVA, 2008, p. 183). Os gritos de não de Zizo e seus asseclas se dirigem a essa caretice, que à época já mobilizava os arautos da culpa burguesa, do bom gosto, do esteticismo, dos pentecostais e da direita xucra que hoje tomou o poder. O filme gritou, passou para um regime poético e de verossimilhança que ganhou ainda mais força depois de um fatídico 2018. “Qual é o significado desse milagre?” Perguntava Marina Tsvetáeva. “Que não existe atraso na arte, que a própria arte é em si adiantamento, independente do que se alimenta ou do que ressuscita” (TSVETÁEVA, 2017, p. 85). O filme retoma, ressuscita e assim aponta para o futuro. Retomar certo desbunde, em 2010, por exemplo, soa hoje como um grito de um mundo que se fez deixar de se ouvir. A presença quase que hiperbólica | 55 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) de um poeta anárquico e sua ressonância entre seus pares parece coisa distante e é a partir dessa distância adquirida que Febre do rato ganha força, fala-se no filme de uma cheia que a tudo consumirá, brinda-se a ela ao final do filme. Hoje, de um triste 2021, podemos dizer que a cheia chegou. O louvor aos hábitos condenáveis, o sexo inimputável de culpa, o dançar das curvas femininas, nus frontais de toda sorte, à época pouco transgressores, são hoje retratos de um ontem que se deixou morrer. Não é coincidência que o arco temporal do filme, entre a Semana Santa e a Semana da Pátria, apresente duas matrizes do nosso modo calhorda de operar: a religião e o patriotismo. Ou ainda, como tão bem se configura hoje nos dizeres incrustrados nos círculos de poder: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O lugar à margem, reservado à desordem, é hoje mais amplo. Foi aberta a caixa de Pandora (a imagem é de Leon Kossovitch), o mundo volta a ser perigoso ao poeta, toda nudez será castigada. Já se apercebia indícios dessa mudança, como nos apontou Jorge Coli, em 2017: Ora, as mentalidades mudaram muito rapidamente e a exposição [Histórias da Sexualidade, no MASP] começa no momento exato em que o moralismo no Brasil vem animado por uma histeria sem precedentes, vinculando-se a um futuro político de prognóstico aterrador. (COLI, 2017). Escrito já diante da realização desse prognóstico, o texto que aqui se apresenta não pode deixar de revelar-se surpreso com o ganho de verossimilhança que o filme de Claudio Assis ganhou nesse intervalo de uma década. O poema se fez real. “Os versos são nossos filhos. Nossos filhos mais velhos que nós, por que vivem mais, além de nós. Mais velhos do que nós, pois vêm do futuro” (TSVETÀEVA, 2017, p. 102). O poeta morre por agitar, num desfile de 7 de setembro, seus seguidores e seguidoras. Diante de armas, canhões, soldados, algo que à época soava um pouco anos 70, Zizo começa por agitar bandeiras que desbundam a bandeira nacional. Parecia anacrônico, tanto o desbunde, quanto a figura macabra do exército nacional. Já não havia censura e ressoávamos todos os versos de Chico Buarque “A gente agora já não tinha 56 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio medo / no tempo da maldade acho que a gente nem era nascido” (João e Maria). Já dávamos como favas contadas o momento em que viveram os poetas de fanzine e reproduzíamos, como Heloisa Buarque de Hollanda, no posfácio à reedição dos 26 poetas hoje, o fato de que “com o tempo a gente se esquece do que foi a convivência com um estado de exceção” (HOLLANDA, 1998, p. 261). O poeta, sob os gritos de Vanessa, “ele é somente um poeta, larga ele!”, é lançado por policiais truculentos, com indicativos de tortura, desacordado, ao rio: “nu em sete de setembro, né, porra! Tu vai ver o que é bom pra tosse!”, diz o meganha. Ratos tomam a cena. É esse poeta que Febre do rato, em seu viés também poético e premonitório, nos apresenta. Inofensivo diante da liberdade, caricato em um mundo normal, volta ser estorvo nas exceções de nosso Estado. O poeta retomava, a partir de imagens de petas e poemas do passado, em 2010, “o ethos de uma geração traumatizada pelos limites impostos à sua experiência social e pelo cerceamento de suas possibilidades de expressão e informação” (HOLLANDA, 1988, p. 257). Voltamos, muitos, à margem. O que nem sempre é uma escolha. O poeta de Claudio Assis ganha hoje nova conotação: ele escreveu, ou ainda viveu no âmbito da ficção, para hoje. Aquilo que o filme tinha de distópico, fruto de sobreposições temporais das mais diversas, numa temporalidade difusa em seus produtos, decalcou-se num hoje trágico que não deixa de ser, em seu ethos, anacrônico e distópico. Daí o poder dessa poesia que vem não se sabe de onde, daí a necessidade de mijar nas cinzas de nossos pais, como o poeta louco de Horácio. O ontem se emplacou em nosso cenário de modo a deixar a todos paralisados, nos faltam hoje os gritos de não, que diante do anacronismo nosso de cada dia se faz ecoar em cada um de nós. Um filme de ontem pra hoje, que já nasceu extemporâneo para tornar-se de atualidade inconteste, como sói acontecer com a poesia, que por vezes é contemporânea de seu futuro. Esse Poeta passa a ser marginal de um tipo que não se quer ver, o louco de Arte poética, passa a ser cada vez mais como os leprosos, “Feito aquele | 57 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) que sofre de sarna ou de régia doença” (sendo sarna um nome amplo para doenças cutâneas, na língua de Horácio, que poderia incluir até mesmo a lepra). Podemos saltar da Roma de Horácio para o modernismo Brasileiro para compreendermos ainda uma camada mais dessa marginalidade. O leproso lançado à margem não deixou de figurar em textos de nossos poetas do começo do século XX. Há uma “reportagem” de Raul Bopp, “Caminho de Pirapora”, uma das mais impressionantes peças de nosso modernismo em que os leprosos, esses marginais que ninguém quer ver, dizem ao poeta: “A polícia nos persegue em toda parte. Trata de nós como de cão furioso. De carabina embalada. A gente sai enxotado de uma cidade. Quando chega-se noutra, é a mesma coisa. É a sina de sempre. Tudo tem medo de nós” (BOPP, 2013, p. 160). Hoje, num contexto onde todos podem ser marginalizados, a partir de um centro cafona e retrógrado, anacrônico e inverossímil, tememos que a realidade dos marginais de Raul Bopp se coloque diante de nós: “Para eles só havia de real e positivo, sempre, onde quer que fossem, aquele espantalho de farda: a polícia.” (BOPP, 2013, p. 161). De Bopp ao BOPE muito se perdeu! Outono de 2021. REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropofágico e outros textos. São Paulo: Cia das Letras, 2017. ASSIS, Claudio. Claudio de Assis continua indomável. [Entrevista cedida a] Júlio Bezerra. Revista de CINEMA, [s. l.], 15 dez. 2011. Disponível em: http://revistadecinema.com. br/2011/12/claudio-assis-continua-indomavel/. Acesso: 10 set. 2021. BOPP, Raul. Poesia completa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo. Teoria da poesia concreta. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006. COLI, Jorge. Mostra do Masp sobre sexualidade supõe que qualquer nu liga-se ao sexo. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 nov. 2017. 58 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio GOETHE, Johann Wolfgang von. Torquato Tasso. João Barrento (trad.). Lisboa: Relógio d’água, 1999. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998. HORÁCIO. Arte poética. Guilherme Gontijo Flores (trad.). Belo Horizonte: Autêntica, 2020. MENEZES, Adriano. Os dias. Belo Horizonte: Scriptum livros, 2004. NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. São Paulo: Max Lemonad, 1982. PAZ, Octavio. El arco y la lira. Cidade do México: Fondo de cultura económica, 2003. PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião. São Paulo: Globo, 2005. (Obras reunidas, v. 1). PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno. São Paulo: Globo, 2008. (Obras reunidas, v. 3). SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? São Paulo: Cia das letras, 2015. STEVENS, Wallace. The necessary angel. Nova Iorque: Vintage books, 1951. TSVETÁEVA, Marina. O poeta e o tempo. Aurora F. Bernardini (trad.). Belo Horizonte: Âyné, 2017. | 59 60 | Notas sobre hermenêutica, cinema e documentário Gustavo Silvano BATISTA 1 A relevância filosófica da experiência da obra de arte tem sido tema de ampla discussão nas mais diversas orientações da filosofia contemporânea. Na tentativa de problematizar e situar a relação com as mais diversas expressões artísticas contemporâneas, filósofos das mais diferentes correntes lidam com as questões relacionadas às obras de artes, não mais circunscritas a concepções estéticas ou ontológicas, ou ainda no horizonte de elucidações históricas dos processos artísticos, mas antes partindo da análise da própria natureza da obra de arte, considerando os próprios processos que compõe e também estão circunscritos à obra como modo de ser da própria obra, para além dos processos de criação, composição e exposição, comumente considerados. Trata-se, portanto, da indicação das próprias repercussões das obras como elementos filosoficamente relevantes, para além daquilo que acontece no âmbito dos museus, academias e galerias de arte. Tal posicionamento apresenta consequências relevantes para a própria concepção de arte vinculada a objetos, 1 Professor de Filosofia da Universidade Federal do Piauí – UFPI / Teresina / PI. E-mail: gustavosilvano@ufpi. edu.br https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p61-72 | 61 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Entre essas correntes, a hermenêutica filosófica também se dedica a pensar as obras de arte, situando-a no âmbito de discussões ontológicas. Deste modo, mesmo inserindo a discussão sobre a arte no horizonte das questões hermenêuticas, tal reflexão também encontra repercussão no âmbito da estética e da filosofia da arte, oferecendo novas questões e possibilidades de pensar a própria experiência enquanto linguísticointerpretativa, ou seja, como hermenêutica. Pensando especificamente no pensamento de Hans-Georg Gadamer, tanto as observações da natureza das obras, quanto o exame das experiências que perpassam o contato com as mesas, estão inseridos no processo hermenêutico básico e mais amplo, no qual o questionamento-chave é alcançado na pergunta sobre o compreender. Em outras palavras, Gadamer também se ocupa do compreender tal como acontece efetivamente na relação com a obra de arte, vislumbrando neste âmbito – da relação com as artes – um momento fundamental tanto para a hermenêutica filosófica quanto para a filosofia da arte. Dizendo de outro modo, Gadamer reconhece, no horizonte da própria experiência básica do ser humano no mundo, enquanto seres históricos, situados e finitos, a experiência da obra de arte como um horizonte no qual também podemos enxergar um caminho de discussão do sentido das coisas em geral, mesmo que esse sentido seja tomado na perspectiva hermenêutica, ou seja, como um componente efetivo e prático. Assim sendo, é a experiência da obra de arte que promove, do ponto de vista da filosofia hermenêutica, um aspecto hermenêutico fundamental tanto para os sujeitos quanto para a própria arte. Como afirma o próprio Gadamer, é a arte que revela muito singularmente à experiência a questão fundamental do ser humano; e de tal modo que não se levanta contra ela nenhuma resistência ou objeção. Uma obra de arte é como um modelo. Ela é, por assim dizer, irrefutável (GADAMER, 2002, p. 155). 62 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Nesta perspectiva, Gadamer lembra-nos que a experiência da obra de arte se dá a cada encontro, mesmo que cada experiência seja única e, por conseguinte, o compreender aconteça sempre de modo distinto. Tal aspecto – ou seja, o encontro do sujeito com a arte – possibilita apontar a experiência da arte como um evento único e efetivo, ou seja, interpretativo. Diversos aspectos próprios das obras, tais como a história, composição, recepção, representação, comercialização, entre outros, são fundamentais para a compreensão da própria obra enquanto obra, isto é, de sua condição processual, disseminada e comunicada a cada encontro, seja de qual ordem for. Neste sentido, Gadamer identifica como hermenêutico o caráter performático da obra enquanto um processo no qual a obra encontra novos sujeitos e novos caminhos, em suma, novas repercussões. Tal caráter indica uma postura de recepção e repercussão das obras, experimentada pelo autor, pelo público, pelos especialistas ou ainda historiadores da arte, tendo em vista a performance da própria obra, em sua condição histórico-efetiva-finita, sempre dialogando com a efetividade das novas demandas de sentido. Neste sentido, para Gadamer o que está em jogo não é tanto o objeto artístico, mas antes a condição de imagem (Bild), tema relevante e central da primeira parte de Verdade e Método,2 ainda que presente em diversos momentos da história da estética filosófica. Deste modo, pensar a obra de arte enquanto obra torna-se, para Gadamer, um caminho para desedimentar o sentido comumente dado à própria natureza da obra, muitas vezes pensada enquanto um objeto artístico. Gadamer busca analisar a sua condição mais básica, pensada enquanto imagem (Bild), mesmo tal imagem tenha uma composição material fundamental para sua própria efetividade, independente do lugar onde está situada. Assim, a hermenêutica de Gadamer compreende a questão da experiência da obra de arte diretamente ligada à sua condição de imagem, e não mais à sua condição de objeto. Este horizonte possibilita também pensarmos novas formas de arte, como o cinema, no qual parece haver um descolamento entre a condição de objeto e a imagem própria, advindo do objeto. O 2 Gadamer dedica-se a pensar, na segunda seção da primeira parte, intitulada A ontologia da obra de arte e seu significado hermenêutico, a valência ontológica da imagem (Bild). Cf. Gadamer (1997, p. 193-205). | 63 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) que significa dizer que a imagem cinematográfica está ligada a certos materiais ou digitais que compõem o filme, mas tais materiais não estão diretamente vinculados à imagem, como acontece no quadro. A imagem cinematográfica passa por uma máquina que gera sua performance. Deste modo, pensar hermeneuticamente a imagem cinematográfica significa também considerar a natureza da imagem e sua relação com o desenvolvimento da ciência e tecnologia. Assim, no surgimento do cinema, no final do século 19, momento que Flávia Cesarino Costa considera como o “primeiro cinema”, novas questões surgem, imersas em um momento histórico reconhecido como “uma era de predominância da imagem” (COSTA, 2005, p. 17). Não se trata mais de considerar apenas o paradigma da imagem, tendo em vista o quadro fixo na parede. Os desenvolvimentos da técnica moderna possibilitaram um outro tipo de arte, em grande medida compatível com a sociedade industrial de massa, possibilitando assim novas experiências de arte. O ensaio decisivo de Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, ocupa-se essencialmente da fotografia e do cinema como modelos artísticos que trazem questões atuais não somente para a estética, mas também sobre o próprio momento histórico no qual surgem: a sobrevivência da obra de arte diante dos avanços da sociedade moderna industrial e burguesa. Um novo passo é percebido na relação com a obra de arte: a transformação técnica - e moderna - da própria atividade do artista e da recepção do público, ao mesmo tempo prática e efetiva. Modificou-se tanto a natureza das novas obras, não somente no âmbito da fotografia e cinema, mas também as novas formas de arte e concepções artísticas posteriores com suas repercussões, em um sentido mais abrangente, nas salas de exibição, galerias e museus, expondo a própria natureza de sua condição audiovisual. O que, por conseguinte, transformou também a própria relação com as obras de artes anteriores à modernidade. Neste horizonte, o cinema parece trazer uma experiência artística que problematiza a própria estética moderna, à medida que evidencia elementos filosóficos ainda não pensados suficientemente. Tal percepção, notadamente vista em Benjamin, em sua teorização inaugural do cinema, 64 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio acaba se desdobrando ao decorrer da história da filosofia contemporânea, onde podemos visualizar poucos momentos nos quais o cinema aparece como uma questão.3 O próprio Gadamer, em um dos raros momentos que fala sobre Benjamin, questiona-se sobre essa condição nova que a fotografia e o cinema proporcionam: O que é que faz de uma imagem, de uma poesia, uma obra de arte, de modo a ter uma presença absoluta? Seguramente, não se trata do fragor estrepitante da constante maré de informações que nos assolam e acompanham a época da reprodutibilidade. Para falar com Benjamin (ou contra ele?), ameaça, pelo contrário, a aura da obra de arte, ameaçando dissolvê-la (GADAMER, 2012, p. 320). Em um certo sentido, Gadamer percebe uma estreita relação entre uma obra fortemente marcada pelos desdobramentos da técnica moderna e industrial como imagem (é o caso da fotografia e do cinema) e as obras de arte mais convencionais, como por exemplo, o quadro. Ambas são produzidas e reproduzidas tecnicamente. Contudo, segundo Benjamin, a técnica moderna e seus aparatos reprodutivos questionam o caráter aurático das obras, ou seja, o seu caráter único, produzido uma só vez pela técnica manual do artista, concepção que aparece no texto de 1936 e que vai se modificando ao decorrer de outros textos benjaminianos. De qualquer forma, a técnica moderna se coloca de modo definitivo nas técnicas artísticas contemporâneas, não sendo mais possível ignorá-la. O que significa lidar com novas questões no horizonte filosófico do lidar com as obras de arte. No caso do cinema, assim como na fotografia, como nos lembra Flusser, “trata-se de imagem produzida por aparelhos” (FLUSSER, 2011, p. 23). A reprodução possibilita a não diferenciação das cópias materiais em relação ao ‘original’, mas, ao contrário da experiência da imagem-quadro, onde há um original a ser tomado como um objeto de apreciação e culto, a imagem cinematográfica também apresenta algum nível de aura. Ou seja, parece que a relação entre imagem e aura também se coloca como uma 3 Cito especialmente como exemplos mais atuais de tematização do cinema como questão própria da filosofia os esforços teóricos dos filósofos Gilles Deleuze, Giorgio Agamben, Paul Virilio, Gianni Vattimo e Jacques Rancière. | 65 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) questão para Benjamin, à medida que levamos a sério a própria condição técnica das atuais obras. Neste sentido, o cinema, mesmo não tendo seu caráter aurático preservado como o que acontece em um quadro, possibilita, em termos hermenêuticos, uma experiência de sentido efetivo, já que coloca em questão não somente o produto final, ou seja, o rolo de filme projetado em uma máquina de uma sala de cinema, mas também sua própria constituição. Trata-se de olhar também a natureza do próprio filme, dependente não somente do aparato técnico, mas também de um trabalho de equipe que opera e interagem com as máquinas, a saber, diretores, atores, produtores, críticos, público, etc, ao contrário do trabalho do pintor, visto muitas vezes como um trabalho solitário, manual e, por vezes, genial, reservado ao ateliê, no desdobramento de uma técnica humana transfigurada em desenhos, tintas, telas, pincéis, etc. Ao compararmos, por exemplo, o trabalho do artista plástico com o trabalho do diretor de cinema e sua equipe, perceberemos uma mudança significativa não só no protagonismo de técnicas, instrumentos e aparelhos, mas também na própria experiência da obra enquanto obra, repercutindo de modo massivo. Contudo, ainda que essa condição de reprodutibilidade técnica transforme o estatuto da imagem, de um ponto de vista crítico, Gadamer nos lembra que a estrutura representativa, própria da experiência da arte, permanece atuante: há um profundo encontro entre sujeitos e obras, mesmo que, em um primeiro momento, sejam mediadas por técnicas modernas. Nestes encontros – pensados como experiências hermenêuticas – há uma espécie de fusão dos horizontes dos sujeitos e objetos-obra, permitindo uma difusão de sentidos diversos, diferentes dos moldes da arte clássica. Cito Gadamer: Ali não perguntamos tanto o que dela surge ou o que se mostra. Dizemos, ao contrário, “vem” à fala. Tanto dizemos isso no caso do quadro e da imagem, quanto no caso da linguagem e sua copiosidade poética. Ali, fazemos uma experiência. Esse ‘fazer’ não significa propriamente que fazemos alguma coisa, mas antes que algo se nos abre quando conseguimos compreender retamente 66 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio alguma coisa. De modo algum significa, portanto, que pela leitura ou pela ação introduzimos algo que não esteja ali dentro. Ao contrário, pela leitura sacamos algo que está ali dentro e de tal modo que isso vem para fora. É assim a experiência da arte. Não é mera recepção de algo. Ao contrário, nós próprios adentramos e nela nos fundimos (GADAMER, 2012, p. 335). Ao pensarmos, junto com Gadamer, a relação entre hermenêutica e cinema como uma experiência de sentido que nos preenche, mas nunca se esgota. Já que acontecem diálogos efetivos e intermináveis em obras de arte e sujeitos, em termos de uma fusão de horizontes, não poderíamos ignorar um aspecto próprio do cinema, que pode ser entendido como a natureza documental própria de toda e qualquer obra. Assim, a hermenêutica filosófica aponta para um aspecto – histórico-efetivo – do próprio cinema, enquanto uma questão que se coloca no horizonte da realização e análise dos documentários. Mesmo considerando uma distinção técnica comum entre cinema ficcional e documentário, uma questão hermenêutica parece se colocar de modo mais profundo. Há um horizonte de questionamento da própria natureza do fazer cinematográfico, como um momento no qual o sentido é colocado como questão persistente: ou seja, pensa-se a produção de sentido de um filme a partir de seu roteiro, argumento, imagens, edição, produção, exibição e repercussão em diversos níveis: da crítica especializada ao indivíduo que se desloca até uma sala de cinema e consome os filmes de modo recreativo. O que significa dizer que os filmes, enquanto narrativas cinematográficas, não são alheios ao seu momento histórico de produção e exibição, mas, em alguma medida, estão profundamente marcados pela natureza documental inerente às produções. Conforme afirma Bill Nichols, Todo filme é um documentário. Mesmo a mais extravagante das ficções evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que fazem parte dela. Na verdade, poderíamos dizer que existem dois tipos de filmes: 1. Documentários de satisfação de desejos e 2. Documentários de representação social”. Os documentários de satisfação de desejos são o que normalmente chamamos de ficção. Esses filmes expressam de forma tangível | 67 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) nossos desejos e sonhos, nossos pesadelos e terrores. [...] Tais filmes transmitem verdades, se assim quisermos. São filmes cujas verdades, cujas ideias e pontos de vista podemos adotar como nossos ou rejeitar. Oferecem-nos mundos a serem explorados e contemplados. (NICHOLS, 2005, p. 26). Por outro lado, os documentários de representação social são o que normalmente chamamos de não-ficção. Esses filmes representam de forma tangível aspectos de um mondo que já ocupamos e compartilhamos. Tornam visível e audível, de maneira distinta, a matéria de que é feita a realidade social, de acordo com a seleção e a organização realizadas pelo cineasta. Expressam nossa compreensão sobre o que a realidade foi, é e o que poderá vir a ser (NICHOLS, 2005, p. 26-27). Mesmo havendo a distinção de tipos de documentários, há ainda um vínculo profundo com a situação histórica, ou seja, todo filme faz uma referência básica ao momento de realização. Ainda neste sentido, nas palavras de Fernão Pessoa Ramos, “ao contrário da ficção, o documentário estabelece asserções ou proposições sobre o mundo histórico” (RAMOS, 2013, p. 22). Essa relação é um aspecto central e relevante para a hermenêutica filosófica, à medida que possibilita elucidar características representativas que não se limitam à própria obra, mas que estão em jogo em torno da obra, especialmente em sua repercussão histórico-efetiva. Assim, a pergunta que se coloca, do ponto de vista da hermenêutica filosófica, é o quanto de documental está efetivamente presente nos filmes, sejam estes ficcionais ou documentários. Tal pergunta, em seu sentido filosófico, abre um horizonte de questionamento que não renuncia o caráter situado da própria obra, especialmente seu caráter performático, mas também não se limita aos aspectos estéticos circunscritos à obra e sua constituição. Poderíamos ainda pensar a questão do sentido a partir da própria estrutura representativa presente nos filmes-obras, comum aos processos 68 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio comunicativos midiáticos tal como se apresentação da chamada cultura pósmoderna.4 Nesta perspectiva, Jay Ruby destaca a seguinte caracterização, fortemente documental que, a nosso ver, marca fundamentalmente as produções cinematográficas contemporâneas; e que surge como um horizonte de questionamento hermenêutico: Em um nível mais profundo, nós estamos nos afastando da noção positivista de que o sentido reside no mundo e os seres humanos devem se esforçar para descobrir a realidade inerente e objetivamente verdadeira das coisas. Esta filosofia positivista levou muitos cientistas sociais, bem como documentaristas e jornalistas, a esconderem-se e a esconder seus métodos a pretexto de objetividade (...). Nós estamos começando a reconhecer que o ser humano constrói e impõe sentido ao mundo. Nós criamos a ordem. Não a descobrimos. Nós organizamos uma realidade que é significante para nós. É em torno destas organizações da realidade que cineastas constroem filme (RUBY, 1977, p.5). Deste modo, um novo sentido de representação, que não se limita a relação de significação entre um sujeito cognoscente e um objeto a ser conhecido, é assumido, do ponto de vista da tematização hermenêutica do cinema, especialmente o cinema documentário – de representação social. O que se evidencia é o processo de produção de sentido que não está somente na decifração ou análise do objeto, mas na relação do objeto com o sujeito, sua performance5 e seu entorno. Em termos midiáticos, o sujeito contemporâneo não é um ente meramente passivo, que recebe informações acerca do mundo que está ao seu redor e que, ao mesmo tempo ele faz parte. Há, no seguimento do domínio técnico das relações, uma interação cada vez mais presente e especializada, proliferando novos sentidos, ou simplesmente sua insuficiência, em consonância ou conflito com as mais diversas informações 4 Cf. Vattimo (1996). 5 Gadamer nos recorda que a experiência da arte, seja qual for o tipo, sempre é marcada por um jogo (Spiel) no qual o espectador, diante de uma obra, a compreende porque está em relação, ou seja, a obra é objeto do sujeito, mas também o sujeito é afetado pela obra. Há, em um certo sentido, um encontro, uma fusão de horizontes entre intérprete e obra. Cf. Gadamer (1985, p. 40). | 69 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) e experiências proporcionadas pela proliferação das imagens, especialmente na relação com a internet. Por esse ângulo, como diz Vattimo, [...] a intensificação dos fenômenos comunicativos – o aumento de circulação das informações até a simultaneidade da reportagem televisiva em direto não é apenas um aspecto entre outros da modernização, mas seja de algum modo o centro e o próprio sentido deste processo (VATTIMO, 1989, p. 22). Tal momento é fundamental para entendermos não somente a produção cinematográfica recente – e em particular a produção documental – mas a própria experiência filosófica de nosso tempo nos filmes. É neste sentido que se afirma a necessidade de pensar o documentário, enquanto imagem, vislumbrando a estrutura hermenêutico-representacional própria de cada filme em sua relação não somente com os produtores e personagem, mas com os espectadores em geral. Do ponto de vista hermenêutico, o caráter documental do cinema documentário remete a uma composição própria da imagem, munida de muitas camadas de tempos, espaços, hiatos e sentidos gerais e particulares, enquanto apreensão e repercussão de momentos de realidade registrados no filme, o que, por conseguinte, como filme, torna-o estruturalmente abertos a novas possibilidades de sentido, para além do processo de produção, o qual considera como relevantes especialmente os significados fornecidos pela relação entre sujeitos, obra audiovisual e representações sociais comunicadas no próprio filme. Ao tomar como questão o documentário, em seus mais diversos vínculos – espaços, tempos, histórias, narrativas, sujeitos, etc. –, podemos pensá-lo como uma possibilidade de experiências de sentido em imagens mediadas e comunicadas nos filmes e seus encontros com a comunidade que ainda resiste na sociedade da comunicação de massa. É o que podemos, em certo sentido, perceber quando um documentário repercute na esfera da produção nacional, tanto no âmbito da crítica especializada, como na experiência audiovisual dos espectadores, representando um determinado aspecto do mundo real e social. 70 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Neste sentido, focar na experiência hermenêutica do cinema documentário não significa apenas pensar nos efeitos provocados nos sujeitos, mas na própria forma de realização dos filmes enquanto imagens documentais, seus argumentos e situação histórica, tanto do ponto de vista do processo de produção, quanto no processo de exibição e repercussão. Tal perspectiva se desdobra na complexa relação com o real, seus sujeitos e situações, provocando assim novas possibilidades de sentido para os filmes. Por isso, toda relação com os filmes é, em um certo sentido, hermenêutica pois sempre há um encontro entre sujeitos e imagens que, por conseguinte, provoca efeitos diversos no horizonte histórico efetivo no qual todos estamos desde já inseridos. Conforme afirma Fernão Ramos, “existem documentários com os quais concordamos, documentários dos quais discordamos, documentários que aplaudimos e documentário que abominamos” (RAMOS, 2013, p. 29); independe da relação, há performance e, por isso, somos de fato atingidos suas repercussões. Ou seja, somos efetivamente afetados à medida que há algum nível de mediação de sentido para além do próprio filme, no horizonte de suas imagens. REFERÊNCIAS COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. GADAMER, Hans-Georg. Palavra e Imagem – “O quão verdadeiro, o mesmo tanto ente”. In: GRONDIN, Jean. (org.). O pensamento de Gadamer. São Paulo: Paulus, 2012. p. 311-355. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Petrópolis: Vozes, 2002. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2013. | 71 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) RUBY, Jay. The Image Mirrored: reflexivity and the documentary film. Journal of the University Film Association, Illinois, v. 29, n. 4, p. 3-11, 1977. VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio d’Agua, 1989. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 72 | Fantasia e voyeurismo narrativo em Vertigo: os laços entre cinema e ceticismo em Stanley Cavell Andrea CACHEL1 Lunielle BUENO 2 INTRODUÇÃO A discussão acerca das relações entre imagem, linguagem e realidade no campo da arte foi realizada em vários momentos da história da filosofia, comportando distintas nuances e perspectivas. O cinema, contudo, é uma linguagem artística relativamente recente, sendo os debates referentes ao seu estatuto e consequências ainda um vasto campo de possibilidades a serem exploradas. Nesse sentido, um olhar mais detido acerca dessa linguagem e, sobretudo, concernente ao modo como a imagem fílmica 1 Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina - UEL / Londrina / PR / Brasil. E-mail: andreacachel@gmail.com 2 Mestranda na Pós-Graduação de História Social da Universidade Estadual de Londrina – UEL / Londrina / PR / Brasil. E-mail: luniellebueno@gmail.com https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p73-100 | 73 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) relaciona-se com a realidade, na interface entre os meios que articula, permite-nos ponderar também sobre algumas categorias fundamentais da estética. Nesse contexto de debates, a obra de Stanley Cavell destaca-se por conectar a discussão acerca da natureza do cinema com a tentativa humana de escapar do solipsismo e do ceticismo em relação ao mundo exterior resultantes da filosofia da representação. Autor de 53 longas-metragens ao longo de uma carreira de mais de cinco décadas, iniciada no cinema mudo em 1922 e que seguiu até seu falecimento em 1980, Alfred Hitchcock é um dos cineastas mais explorados pela obra cavelliana. Presente na sua filosofia em diversos artigos e livros tais com o The World Viewed (1979), North by Northwest (1981a), Falling in Love Again (2005), Pursuits of Hapiness (1981b), Ending the waiting game: a reading of Beckett’s endgame (1976), Hitchcock aparece na obra de Cavell muitas vezes como exemplo do modo pelo qual o cinema diria respeito e abordaria as implicações do ceticismo moderno. Com uma carreira caracterizada por filmes hoje bastante cultuados pela crítica cinematográfica3, Hitchcock tem um estilo marcado pelo movimento de câmera-observadora, simulando o olhar de um espectador voyeur, e pelas sequências que progressivamente maximizam o medo em seus espectadores. Muitas dessas características são lidas por Cavell como uma forma de explorar as questões relativas à oscilação entre a busca por conexão com a realidade e a fuga dessa conexão. Vertigo (Um Corpo que Cai), particularmente, é um dos filmes de Hitchcock de maior destaque na obra cavelliana e aquele que permite que 3 É já desde o média metragem (68 min.) O Inquilino (The Lodger, de 1927) que Hitchcock abraça o gênero do suspense, que o consagraria, mais tarde rendendo-lhe a alcunha de “mestre do suspense”. Sua carreira é caracterizada por filmes hoje bastante cultuados pela crítica cinematográfica, tais como Os 39 Degraus (The 39 Steps, de 1935), Rebecca, a Mulher Inesquecível (Rebecca, de 1940) e O Homem que Sabia Demais (The Man Who Knew Too Much, ambas as versões, de 1934 e 1956). Merecem, ainda, destaque especial aquelas películas que entraram para o cânone de verdadeiras obras primas, produzidas todos no período americano, como Festim Diabólico (Rope, 1948), Pacto Sinistro (Strangers on a Train, 1951), Disque M para Matar (Dial M for Murder, 1954), este usando a tecnologia 3D que estava em voga na época, Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), Intriga Internacional (North by Northwest, 1959), Psicose (Psycho, 1960), este um projeto pessoal que o diretor financiou às suas próprias expensas, e Os Pássaros (The Birds, 1963). Não se pode ignorar, também, a profunda influência que Alfred Hitchcock passou a exercer no meio cinematográfico a partir do culto que lhe estabeleceram os críticos da revista Cahiers Du Cinéma, ligados ao movimento francês da Nouvelle Vague, especialmente na pessoa de François Truffaut, que com o “mestre do suspense” realizou uma série de entrevistas durante as décadas de 1950 e 1960, resultantes no livro Hitchcock/Truffaut: Entrevistas (TRUFFAUT, 1986), cuja primeira edição é de 1967. 74 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio o problema do isolamento do homem e da perda da sua presença para o mundo, tal como compreendido por Cavell, seja explorado em várias nuances. Trata-se do filme de Hitchcock que traz de modo muito evidente a questão da relação entre o espectador e a câmera, retratando tanto a privacidade como a vulnerabilidade do personagem, mas também desse voyeur que é o expectador. Nesse contexto, nossa intenção aqui neste texto é expor alguns debates que Cavell realiza sobre Vertigo, ampliando, quando possível, a análise dos assuntos explorados por esse autor para além das cenas mencionadas por ele, a fim de tanto apresentarmos uma discussão mais pormenorizada deste filme, como uma investigação acerca da própria abordagem cavelliana sobre o cinema, em especial da relação que estabelece entre cinema e ceticismo. CINEMA E CETICISMO EM STANLEY CAVELL: O MUNDO COMO ESPETÁCULO Cavell faz um uso amplo de “ceticismo”, na medida em que, para o americano, reconhecer traços céticos em determinado autor independe de ser seu ceticismo antecedente ou consequente, tampouco diz respeito à sua filiação explícita à tradição cética propriamente dita. Como Conant observa, a análise cavelliana identifica o ceticismo como um espaço dialético, e não (apenas) como uma posição no interior dele. O ceticismo, desse modo, representaria um horizonte “com o qual os filósofos se engajariam mesmo enquanto procuram uma maneira estável de responder à pergunta do cético na afirmativa e não (como o próprio cético faz) na negativa” (CONANT, 2012, p. 3). E é tendo em vista esse âmbito amplo de compreensão – essa leitura segundo a qual os implicados nessa esfera em que determinadas problemáticas são estabelecidas consistem em filósofos que ilustram o ceticismo moderno – que Cavell ressalta o atrelamento entre o percurso da modernidade filosófica e o surgimento da fotografia e do cinema como linguagens artísticas. Mais que resultado de desenvolvimentos técnicos que permitiram a captação mecânica da imagem e a projeção dessas imagens em movimento, o advento dessas linguagens e a importância que adquirem no cenário cultural diriam respeito a um problema que seria o escopo do | 75 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) ceticismo filosófico, tanto do ponto de vista de sua afirmação como da tentativa de sua superação: A fotografia não poderia ter se imposto tão imediata e universalmente à mentalidade Europeia (inclusive à Americana) sem que essa mentalidade já não tivesse imediatamente reconhecido na fotografia uma manifestação de algo que já lhe acontecera. O que sucedeu à essa mentalidade foi sua queda no ceticismo junto com seus esforços para se recuperar dessa queda, conforme os eventos estão registrados na filosofia de maneira muito variada, em Descartes e Hume e Kant e Emerson e Nietzsche e Heidegger e Wittgenstein (CAVELL, 2018, p. 141-142). Assim, o que se expressa esteticamente e que culmina no desejo de captação do instante e da presenticidade reproduziria um anseio relacionado diretamente a uma perda e à melancolia a ela alusiva, as quais explicariam também a importância adquirida pelo ceticismo na Idade Moderna, e que dariam o sentido da procura por um novo meio, aquele que pudesse garantir a presença-ausência do observador, enquanto síntese da tentativa, por um lado, de recuperar aquilo que foi perdido, e, por outro, de negar ilusoriamente a perda desse objeto. Em outras palavras, o advento da fotografia e do cinema encontraria no ceticismo moderno a sua condição de possibilidade, sendo o cinema uma forma de consolidar o modo como o ceticismo entende o conhecimento, a saber, já como algo que pressupõe o afastamento entre sujeito e mundo: É como se a projeção do mundo explicasse nossas formas de desconhecimento e nossa incapacidade de saber. A explicação não é tanto que o mundo está passando por nós, mas que somos deslocados de nossa habitação natural dentro dele, colocados a uma certa distância dele. A tela supera nossa distância fixa; faz com que o deslocamento pareça nossa condição natural (CAVELL, 1979, p. 41). Em The Claim of Reason (1999), Cavell analisa com maior profundidade os problemas abordados pelo ceticismo, ponderando tanto os seus equívocos quanto o que ele revelaria de verdadeiro em relação ao 76 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio homem moderno. E, nesse contexto de abordagem, mobiliza sua leitura não ortodoxa das Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, sobremaneira sua compreensão peculiar acerca de noção de critério deste autor.4 Indica, a partir dessa perspectiva de discussão, como o foco excessivo na busca de certeza – do ceticismo, como tendência dominante da filosofia moderna, com repercussões também em parte da filosofia contemporânea – revela uma perda de conexão entre sujeito e mundo que o filósofo tenta superar postulando novas formas de fundamentar essa conexão, supondo ser possível uma relação com o mundo e com o ordinário que possibilite a revelação de sua estrutura, de suas condições de possibilidade (CAVELL, 1979, p. 101-102). Tendo como influência também a filosofia de Heidegger5, Cavell destaca que o advento da Modernidade teria resultado em uma vivência da subjetividade que se estabelece como isolamento, e, do ponto de vista da relação entre esse sujeito isolado e o mundo que o circunda, o ceticismo moderno evidenciaria um percurso de busca de reconexão, por um lado, mas, por outro, de evitação, de recusa de reconhecimento da finitude e da contingência da vida humana (CAVELL, 1979, p. 165-166). Em virtude do isolamento, da quebra da sua conexão com o mundo (uma conexão que não passaria pela certeza, tampouco pela fundamentação de uma base inquestionável), restaria ao homem recolocar sempre a questão da sua presença para o mundo. O filósofo moderno materializaria essa necessidade verdadeira, mas recusaria a aceitação dos laços instáveis pautados nas nossas formas de vida e nas relações necessárias que estabelecemos na nossa linguagem (mas que não se assentariam em algum fundamento lógico anterior), rejeitaria aceitar a responsabilidade que o ato de afirmar algo comporta, a universalidade que não se funda na certeza. Buscaria olhar o mundo de fora, como se as limitações da linguagem e da condição humana fossem decorrentes apenas de uma posição pragmática ou ordinária, à qual poderia se contrapor a situação do filósofo, supostamente capaz ter “vistas do mundo”, relacionar-se com ele sem estar imerso (CAVELL, 1979, p. 430-431). Amálgama de uma série de influências, a análise cavelliana sobre o cinema pressupõe uma concepção da fotografia pensada a partir do seu 4 Para um aprofundamento desse tema, Cf. Conant (2005); Hammer (2002); Mulhall (2003, 2006). 5 Para uma melhor análise da influência heideggeriana em Cavell, ver: TECHIO, 2020. | 77 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) automatismo, das possibilidades deste meio, tendo em vista a inexistência de mediação subjetiva na transferência das marcas que presentificam o real, além de sua capacidade de nos conferir uma independência da mediação da nossa memória para o estabelecimento da nossa presença no mundo.6 O automatismo mecânico da fotografia consolidaria um percurso mais amplo nas artes visuais, em que, ao mesmo tempo que se evidencia a clara destinação da obra para o observador, tenta-se superar, normalmente por assimilação, a referência da imagem ao olhar desse espectador (CAVELL, 1979, p. 22). Um percurso existente na pintura desde a segunda metade do século XVIII7, sendo o advento da fotografia decisiva não para que os pintores abandonassem o realismo, mas tão somente para que eles recusassem a semelhança, havendo a partir deste momento novas tentativas de produção de automatismos. A fotografia, particularmente, teria o potencial de assegurar nossa presença-ausência na imagem, representando, nesse contexto, uma espécie de memória do presente, que assegura decisivamente o que estaria em jogo no modernismo artístico, a busca por reproduzir um olhar cândido, de não tornar a subjetividade do observador um anteparo para a percepção do mundo (CAVELL, 1979, p. 42). O cinema é entendido, nesse cenário, a partir de sua base fotográfica e do que ela implica, e tendo como pressuposto a ideia de que esse seu meio é essencialmente realista. Por realismo, contudo, Cavell não concebe uma referência direta aos fatos8, mas sim a ideia de que, em virtude da natureza da fotografia, do seu automatismo, os fotogramas em movimento 6 Como Cavell reconhece, um dos pontos de partida das suas análises sobre o cinema é a obra de Bazin Ontologia da Imagem Fotográfica (BAZIN, 1991, p. 19-26). Vale ressaltar que outros comentadores e críticos também apresentam análises importantes em relação ao tema, especialmente ponderando aspectos como a inserção ou não da fotografia no âmbito das artes representativas, bem como o sentido do suposto automatismo que comporta. Kendall Walton (1984), por exemplo, afirma que a fotografia tem um poder de efetividade propiciado pela sua transparência, a ausência da necessidade do domínio de uma convenção para que haja a compreensão (p. 263). Scruton (1995), por outro lado, relativiza o papel da fotografia como arte justamente por essa ausência de código. A leitura do modernismo artístico como processo que decorreria de um percurso de desteatralização nas artes visuais é proveniente da influência decisiva que a obra de Fried exerce em Cavell. Nesse sentido, ver: FRIED (1980, 1998, 2008). 7 8 Cavell reconhece a influência de Bazin na ideia da realidade como meio do cinema, embora ressalte a sua discordância em relação a alguns pontos da teoria do francês. Além do Ontologia da Imagem Fotográfica, esse assunto aparece na obra de Bazin em vários dos seus artigos, dentre os quais O Mito do Cinema Total (BAZIN, 1991, p. 27-32), Teatro e Cinema (1991, p. 123-165), A evolução da linguagem cinematográfica (1991, p. 66-81), bem como em O Realismo Cinematográfico e a Escola Italiana da Libertação (1991, p. 233-257). Central também para o desenvolvimento do pensamento cavelliano é a obra de Panofsky sobre a natureza do cinema (1997). 78 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio expostos em uma tela criam uma imagem de mundo, que gera convicção. Tal convicção não deriva de uma suposta essência documental do cinema, mas sim daquilo que está em jogo em todo o processo que visa eliminar os efeitos do observador na obra, garantindo a sua presença-ausência e restituindo, assim, a conexão do sujeito com o real, quando a sua subjetividade não é mais obstáculo para a percepção do instante, do caráter de presente daquilo que se apresenta a nós. Ilusoriamente, o cinemático, enquanto um aprofundamento das possibilidades do meio fotográfico, nos permitiria ter um acesso ao real, ao presente, ao instantâneo. E, dada a própria natureza da nossa relação perdida com o real – o fato de que também essa relação não se dá com base em um fundamento certo e inquestionável – produziria “magicamente” uma convicção, minimizando momentaneamente a melancolia que o ceticismo moderno encarnaria. Ao mesmo tempo, o cinema seria a imagem em movimento do ceticismo por realizar algo que o filósofo moderno anseia, conforme mencionamos, a saber, além de restituir nossa conexão com o mundo, supor que essa conexão possa se dar tomando-se o mundo de um ponto de vista exterior, sem que seja preciso assumir a precariedade da nossa posição imersa nele, os limites da nossa linguagem, da nossa própria condição humana (CAVELL, 1979, p. 188-189). Um outro aspecto é bastante importante para a compreensão da ideia de que o cinema seria uma imagem em movimento do ceticismo, qual seja, a capacidade que ele possuiria, segundo o filósofo americano, de ilusoriamente nos permiti*r vermos sem sermos vistos. Esse autor, no prefácio do The World Viewed, reconhece, além das influências de Bazin, Panofsky, Heidegger e Michael Fried, a importância que teve em suas reflexões a leitura da Carta a d’Alembert, de Rousseau (1979, p. xxii-xxiii). Fruto de uma disputa que envolveu Rousseau e D’Alembert, o texto diz respeito ao verbete Genebra, do volume da Enciclopédia publicado em 1757, em que o enciclopedista defende a importância do teatro e sua finalidade social, a saber, o aperfeiçoamento dos costumes e dos gostos dos espectadores. Rousseau, cidadão genebrino, posiciona-se contra os enciclopedistas e contra o teatro na Carta (1993), negando que a linguagem teatral possa ter a função de aperfeiçoamento moral dos cidadãos, mas indicando, por outro lado, haver nela uma peculiar relação entre artista e público | 79 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) propiciada pela invisibilidade daquele que observa, a qual permite a identificação com a obra e a reflexão sobre si mesmo. A partir desta leitura, Cavell teria percebido que também no cinema há uma relação especular do sujeito com o mundo e sobretudo consigo mesmo. Assim, essa discussão mostraria como no teatro e no cinema vemos sem sermos vistos, ponderando qual a atratividade desse mecanismo, o que ele representa do ponto de vista de se permitir uma autoanálise isenta de culpa e vergonha. Essa possibilidade de ver sem ser visto seria fundamental para o homem moderno e estaria envolvida diretamente naquilo que o americano entende como o ceticismo sobre as outras mentes.9 Mais que o teatro, o cinema seria uma linguagem capaz de sugerir a realização desse anseio. Isso porque comportaria a promessa de termos acesso às condições da percepção propriamente ditas, sem a necessidade de princípios intermediários entre os domínios da subjetividade e o da realidade, desse modo, dando vazão a uma dupla possibilidade: a da preservação da privacidade do indivíduo e a da publicidade do mundo. No centro dessa capacidade estaria o seu automatismo, não só compreendido a partir da autonomia em relação à agência humana, viabilizada pelos aparatos técnicos implicados na produção cinematográfica, mas especialmente entendido como o potencial de simular um mundo comum, apreensível imediatamente e com isenção de dúvidas quanto à sua existência, algo que seria semelhante à tentativa filosófica de ter acesso às condições da visão e dos objetos: Desejar ver o mundo em si mesmo é pretender ter acesso às condições da visão. Nossa situação tornou-se tal que nosso modo natural de percepção é ver, sentindo-se não visto. Não olhamos tanto para o mundo, mas para um mundo além do “eu”. São as nossas fantasias, agora quase totalmente frustradas e fora de controle, que não são vistas e devem ser mantidas invisíveis. Como se não pudéssemos mais esperar que alguém pudesse compartilhá-las — no exato momento em que elas estão chegando às ruas, menos privadas que nunca. Portanto, estamos cada vez menos em posição de nos enlaçar com o mundo (CAVELL, 1979, p. 101-102). 9 O debate em torno do ceticismo sobre as outras mentes é desenvolvido por Cavell na Parte IV, do The Claim of Reason, em que está em jogo também mostrar que o não ser visto é parte fundamental da recusa do reconhecimento e da fantasia da linguagem privada (1999, p. 329-496). E na sua análise da obra de Shakespeare, particularmente da peça Rei Lear, esse autor aprofunda essa discussão sobre a culpa e a vergonha (CAVELL, 2003). 80 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Dado esse contexto de abordagem, o qual expusemos muito rapidamente aqui tendo em vista os limites e o escopo deste texto, e que diz respeito à ontologia do cinema cavelliana, sobremodo o entendimento de que a relação do espectador com os filmes espelha de algum modo certos aspectos da compreensão da filosofia tradicional moderna sobre o conhecimento e sobre a subjetividade, o filme Vertigo comporta elementos que ilustram pontos essenciais da visão do americano sobre o cinemático e sobre o escopo do modernismo artístico de modo geral. Como já mencionamos, ao dramatizar o isolamento humano, a busca de conexão, a dificuldade desse contato, Vertigo espelha a própria dinâmica daquilo que o ceticismo teria de verdadeiro, bem como a possibilidade de seus descaminhos. Permite, além disso, uma auto-observação, na medida em que insere o espectador de um ponto de vista invisível, porém completamente mobilizado na produção de sentido do filme. Como veremos na próxima seção, representa, para Cavell, uma discussão sobre os limites entre uma subjetividade que busca a confirmação do seu eu para o mundo e aquela que o perde e que resulta em solidão. Revela, especialmente, o voyeurismo como meio do filme, meio esse que Hitchcock declara tão brilhantemente nesse filme, seja a partir do seu conteúdo, seja de sua forma. FANTASIA E ISOLAMENTO EM VERTIGO Vertigo é ambientado em São Francisco, cidade californiana dos Estados Unidos, e conta a história de John Ferguson ou Johnny/Scottie, como o chamam seus amigos, interpretado por James Stewart. Scottie é um detetive aposentado compulsoriamente por sofrer de acrofobia, fato apresentado já na primeira sequência da obra: em uma perseguição policial pelos telhados da cidade, escorrega e fica pendurado em uma calha, não conseguindo salvar um amigo de trabalho da morte. Tal vertigem é testada no filme a partir da interpelação de um antigo amigo e colega de faculdade de Scottie, Gavin Elster (na interpretação de Tom Helmore), que, após anos sem contato algum, pede ao detetive aposentado, em nome da amizade de longa data, que investigue sua esposa, Madeleine, concebida por Kim Novak. A suspeita de Gavin é de que uma mulher já morta, Carlotta Valdés, está possuindo sua esposa e que tal possessão tem incutido | 81 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) pensamentos suicidas nela. Acompanhamos uma narrativa de dissociações psíquicas: a desse detetive, que no cumprimento de seu dever, tornar-se-á obcecado pela mulher que segue, e a da própria Madeleine, que acredita ser uma outra, a Carlotta Valdés já falecida. Como um detetive, ele segue a mulher misteriosa e a observa apaixonadamente, até ser testemunha de sua tentativa de suicídio na Baía de São Francisco. Scottie a salva e, pela primeira vez, alcança o objeto de sua paixão, estabelecendo, a partir desse ponto, um romance com Madeleine. Esta, porém, continua a perseguir a obsessão de Carlotta Valdés, o suicídio – que finalmente realiza em uma cena marcante na torre de uma pequena igreja situada em um vilarejo de estilo espanhol próximo de São Francisco. Scottie testemunha parcialmente este suicídio, pois está preso nas escadas da torre pela vertigem que o acomete, e apenas observa impotente, por uma das janelas, o corpo da amada precipitado em direção à morte. Após um breve julgamento, que o absolve, e um período de convalescença psíquica que o deixa imóvel e mudo em uma cadeira, Scottie retoma sua vida. Mas ainda obcecado por Madeleine, de um modo comparável ao que ocorria entre esta e Carlotta, ele encontra na rua uma mulher parecidíssima com a falecida amada. Tenta, por isso, reencarnar Madeleine nessa outra mulher, Judy, comprando-lhe roupas iguais às usadas por sua amante e, ainda não satisfeito, ajeitando-lhe o cabelo para que assuma a mesma cor e penteado da amada. Scottie diz interessar-se por Judy, mas seu comportamento é oposto: quer eliminar a mulher que encontrou para nela moldar o objeto de sua obsessão – o que, finalmente, apenas pode terminar em tragédia. Segundo Cavell, trata-se de um filme que nos apresenta uma vertigem em relação à nossa verticalidade, além de retratar o poder de uma fantasia que rompe com a conexão como mundo externo: Inicialmente, Vertigo aparenta ser [um filme] sobre a impotência de um homem frente ao seu desejo ou imbuído da tarefa de sustentálo. Talvez, em segundo plano, seja sobre a precariedade da própria verticalidade de modo geral. Porém, acaba por ser sobre o poder específico da fantasia de um homem de não apenas renunciar à realidade – consequência tão ampla quanto o mar –, mas de despender cada instante de sua energia para uma alteração privada da realidade (CAVELL, 1979, p. 86). 82 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio A discussão acerca da impotência de Scottie para sustentar seu desejo e do poder da fantasia, conectam-se, no contexto da filosofia de Cavell, com a relação entre filosofia e ceticismo, além de evidenciar a capacidade que tem o cinema de nos permitir vermos sem sermos vistos, ou seja, de acompanharmos uma dramatização de uma incapacidade da subjetividade de sair de si mesma e reconhecer a existência do outro e do próprio mundo externo, o que no fundo diz respeito ao nosso próprio drama face à objetividade. Em um texto apresentado no Fórum Sobre Psiquiatria e Humanidades (CAVELL, 1987), em Washington, Cavell estabelece uma análise a respeito da relação entre Filosofia e Psicanálise, segundo a qual o diálogo entre ambas, no fundo, diz respeito à verdade do ceticismo. Após abordar a questão da originalidade ou não da psicanálise e da capacidade de que determinados anseios da filosofia sejam assumidos exclusivamente por esta, e, além disso, destacar as oposições de Heidegger e Wittgenstein à filosofia moderna, portanto, a capacidade de que a própria filosofia assuma a crítica ao ceticismo moderno, Cavell se pergunta acerca do que seria perdido se a filosofia ou a psicanálise fossem eliminadas do cenário cultural. E diz que o que acabaria seria a questão quanto a se minha vida confirma ou nega minha presença para o mundo e para os outros, isso representando, em linhas gerais e em seu nome mais antigo, o ceticismo. Nesse sentido, destaca que perder o conhecimento da possibilidade humana do ceticismo é renunciar à questão do próprio humano, como teria sido analisado no The Claim of Reason. Tendo a sociedade contemporânea entrado em um caminho de ceticismo radical, desde Descartes e Shakespeare, de acordo com Cavell o advento da psicanálise seria como o lugar, talvez o último, em que a psiqué humana como tal é abordada. E, embora algumas de suas questões – Até que ponto as histórias dos pacientes são fantasia ou realidade? Serão somente fantasias ou fantasias vinculadas à realidade? – se coloquem muitas vezes no âmbito restrito do sentido que a filosofia da representação deu ao problema da conexão entre homem e mundo, fato é que esses temas explorariam aquilo que o ceticismo tem de verdadeiro: essa busca de conexão, a própria possibilidade de que um olhar sobre a subjetividade traga a saída para a confirmação da realidade. | 83 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Vertigo, nesse contexto, teria como pano de fundo, ao abordar o desejo e a própria incapacidade do homem de o sustentar, precisamente essa discussão cética (e, claro, psicanalítica) por excelência. Estaria implícita neste filme a dramatização da busca da conexão com o mundo e, por outro lado, a própria possibilidade de uma desconexão completa com ele. Cavell observa, no The World Viewed, que interpretar a fantasia como algo que diz respeito necessariamente a um mundo fora da realidade seria ler de modo incorreto a teoria de Freud. Também a psicanálise freudiana, como vimos acima, embora recorrendo em alguns dos erros da filosofia da representação, estaria interessada na possibilidade de redirecionarmos o poder da fantasia para o estabelecimento de uma relação com o mundo e com os outros sujeitos. Cavell destaca, no âmbito desse debate, que renunciar à fantasia seria abrir mão da nossa convicção no mundo e que, portanto, é antes pontuar os limites entre a capacidade de estabelecermos o liame entre a fantasia que revigora nossa conexão com o mundo e aquela que perde o ponto chave de uma crítica ao isolamento do homem moderno. Vertigo colocaria no centro do seu enredo justamente esse tema, explorando as consequências do fechamento de uma mente em torno de uma fantasia vigorosa, apresentando, assim, a dualidade resultante na mistura entre o mundo do eu e o mundo externo, e, retratando, dessa forma, o poder que a convicção tem de produzir uma apropriação privada do mundo (CAVELL, 1979, p. 85-86). Logo na abertura do filme, o olho feminino, antes de encontrar a câmera, emana formas espiraladas e coloridas. Além de lembrar as experimentações da Optical Art, essas imagens apresentam a relação espectatorial do filme ao unir e brincar com as noções de olhar e vertigem (formas essas que se repetem ao longo do filme no cabelo da mulher do quadro, Carlotta Valdés; no coque de Madeleine quando a imita; nas flores compradas Figura 1- Abertura de Saul Bass. Olho da atriz por Madeleine, que são as mesmas do Kim Novak. quadro, as quais os botões ainda estão Vertigo, 1958, 1m02s. com suas pétalas espiraladas e unidas; e, 84 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio não menos importante, na escada da torre da Igreja). A verticalidade, somada ao espiral presente no filme todo, leva à perda do mundo e perda de si no mundo. A ilusão e a realidade que estão sempre em jogo nas cenas verticais, como a da queda do colega de trabalho, da amada Madeleine, dele na cova em seu sonho e, por fim, de Judy, são expressões do fechamento de si no mundo fantasioso. A percepção do real e do imaginário é bastante tênue e o espectador é induzido a ter a sensação de vertigem o tempo todo, sem perceber se o que ocorre na tela diz respeito ao mundo exterior ou apenas ao espaço interno dos personagens. Mais particularmente, Vertigo faz um retrato da fantasia destrutiva associada à objetificação da mulher pelo homem. Ao contrário do mito de Pigmaleão, que, apaixonado por uma estátua, a transforma em mulher, James Stewart interpreta um personagem que transforma sua companheira em pedra, como a leitura de Cavell ressalta em The World Viewed (1979, p. 86). Vertigo dramatiza a transformação da mulher real, enquanto idealizada, em pedra, o que se reflete na atuação propositadamente inexpressiva de Kim Novak. Vemos a construção de uma estátua, de um objeto a ser adorado, independente da vontade que a mulher possa expressar. A visita de Madeleine ao cemitério da Misión Dolores, quando a personagem entra em uma espécie de transe, quase que sonâmbula ao encarar o túmulo de Carlotta, explora a inflexibilidade cenográfica (túmulos, roupas cinzas, olhar melancólico, enquadramento distante) e ressalta sua beleza solitária, apresentada entre lápides cinzentas e flores avermelhadas, construindo um tipo de fêmea misteriosa e melancólica. Por outro lado, na sequência após Scottie salvar Madeleine da tentativa de suicídio na Baía de São Francisco, mostra-se uma flexibilidade em relação ao acesso à mulher que se | 85 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) moldou, na fantasia, ao seu desejo (enquadramento próximo, nudez, cabelo despenteado, ambiente intimista). A personagem feminina acorda enrolada num lençol, nua, na cama dele, segundo Cavell imbuída de uma flexibilidade “nunca vista ou interpretada por qualquer uma das heroínas de Hitchcock” (CAVELL, 1979, p. 86). Percebemos que essa flexibilidade é um cenário artificial e idealizado, construído por uma mente obsessiva na realização de seus desejos íntimos. Scottie representa aqui o mito de Pigmaleão ao contrário, como dito, tentando moldar o seu objeto de desejo, o que exige a flexibilidade da mulher amada no plano idealizado e, ao mesmo tempo, sua objetificação e inflexibilidade no plano real, ambas perspectivas, no fundo, resultado da própria vertigem que o personagem masculino tem em relação à realidade. A abordagem da manipulação da imagem de Kim Novak pelos dois principais personagens masculinos é outro ponto chave de tal objetificação. Elster/Helmore e Scottie/Stewart manipulam as personagens de Kim Novak a fim de que elas sejam sempre outras. Tanto Elster quanto Scottie, então, transformam Judy, por exemplo, no que eles querem que ela seja, reduzindo-a a uma mera imagem, o que o diretor de Vertigo representa através de espelhos.10 Tal recurso, ao mostrar tanto o objeto quanto seu reflexo, reforça a ideia da existência de dois componentes. Logo na primeira vez que Scottie vê Judy/Madeleine, um espelho mostra seu reflexo na saída do restaurante onde ela jantava com o seu esposo fictício, Elster. Depois o mesmo acontece na porta da loja de flores, quando Madeleine está comprando o buquê, e, depois, em seu quarto de hotel quando ela – já como Judy – encontra Scottie novamente. Mais tarde no filme, o mesmo recurso cenográfico é usado na cena da loja de roupas, enquanto compram o terno cinza idêntico ao de Madeleine, além de após a transformação de Judy no banheiro de seu apartamento, quando Scottie percebe que Judy e Madeleine são a mesma pessoa após colocar o colar para saírem para jantar. Particularmente, na cena da loja de roupas, o espelho representa todas as etapas dessa manipulação fantasiosa da mulher desejada. Quando Esse desejo de Scottie por “recriar uma imagem sexual impossível” e “querer dormir com uma morta”, em um caso de “pura necrofilia”, como declarava Hitchcock (TRUFFAUT 1986, p. 246), é também parte desse universo interno de Scottie que é mostrado o tempo todo entre a realidade e o imaginário do personagem e de nós, espectadores. 10 86 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Judy percebe que Scottie pretende vesti-la com o mesmo terno cinza de sua falecida amante, ela foge para o canto da sala, ao lado de um espelho. Scottie vai atrás dela, e Judy, que está com o corpo voltado para o espelho, parece ser esmagada por Scottie e pelo seu reflexo. Figura 2- Inflexibilidade Cenográfica. Madeleine. Figura 3- O jogo de espelhos com Judy. Vertigo, 1958, 42m37s; 21m23s; 26m19s e 24m11s. Na cena, a mulher (Judy/Madeleine) está mais próxima do espelho que o homem, criando a sequência homem-mulher e mulher-homem, como se a mesma fosse prensada contra o espelho, encurralada pela situação e, principalmente, pelo homem da relação. Scottie, naquele momento, eliminou Judy, esmagou-a contra o espelho, ignora totalmente sua personalidade e vontades, busca somente pelo reflexo que ainda não está presente no espelho e que corresponderia ao seu ideal. Tenta a empurrar para dentro do espelho, para a imagem ideal e fantasiosa que alimenta sua obsessão. Mas é preciso destacar que, seguindo as observações do próprio Cavell (1979, p. 86), Scottie não é, propriamente, um anti-herói. Sua questão principal é a força da fantasia e do desfiguramento da identidade, ou melhor, os efeitos que podem resultar da força mal direcionada da fantasia. Sua vertigem diz respeito, portanto, a uma incapacidade de integrar mundo interior e mundo exterior e sua manipulação das personagens de Kim Novak aborda o poder da convicção, ou sua tentativa de sozinha, construir um mundo coerente. Essa fantasia privada, que se isola do mundo real, a aproxima do fundamentalismo e da idolatria religiosa, na medida em que produz, pela força da convicção que dela resulta, um mundo apartado da realidade. É nesse sentido que a análise cavelliana sustenta que Hitchcock retratou algo que nem Freud abordou, a saber, a fantasia de um Deus | 87 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) transcendente. Por isso Hitchcock colocaria freiras e igrejas nas zonas que explora nos filmes, retratando, precisamente, essa proximidade entre os poderes da fantasia e a superstição religiosa: A queda final de Kim Novak, na torre, é disparada pela aparição súbita de uma freira. O mundo de Stewart desaba no ponto mais alto de uma igreja, a partir da qual, na realização do seu desejo, ele reverterá a direção de sua vertigem e mergulhará em direção ao seu amor. A heroína de Hitchcock é, por assim dizer, uma freira excomungada; de modo que, do jeito que ela está, já se vê mais dela do que o normal. Quando, ao hábito de uma freira, Hitchcock acrescenta saltos altos (como em A Dama Oculta), temos um reconhecimento claro de voyeurismo, que não é apenas um de seus assuntos especiais (explícito em Janela Indiscreta e Psicose), mas um tom dominante de sua narrativa como um todo (mais flagrante nos filmes com Tippi Hedren, nos quais espionamos toda a sua vida interior). O voyeurismo é uma borda retraída da fantasia; sua exigência de privacidade mostra sua perversidade. A publicidade moderna é sua herdeira; sua condição de publicidade oculta sua perversidade. O voyeurismo narrativo é a maneira de Hitchcock declarar o meio do filme, cuja condição é que seus personagens sejam vistos de um estado invisível (CAVELL, 1979, p. 87). A cena final, a morte de Judy em virtude do movimento imprevisto de uma freira, consistiria simbolicamente na representação dessa dinâmica, dessa superstição em que consiste o amor idealizado de Scottie pela já morta Madeleine. Não por outro motivo, Scottie a partir daí inverte a direção de sua vertigem, que passa a apontar para o alto da torre da Igreja, representando a mudança de uma vertigem relacionada ao mundo exterior para a referente aos seus sentimentos. Além disso, representaria simbolicamente o próprio voyeurismo narrativo enquanto meio do filme em Hitchcock. Isso porque a direção deste cineasta privilegiaria uma composição, também no âmbito formal, que ressalta a característica do ceticismo moderno de exigir uma total privacidade e, diz Cavell na passagem acima, por isso, perversa. Vertigo, como destacado, representa uma fantasia que exige essa privacidade e, por isso, destrói a conexão saudável com o mundo. Não apenas Scottie dá vazão a essa perversidade, 88 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio mas é o próprio espectador que se encontra nessa posição de privacidade e publicidade em relação ao filme construído por Hitchcock. Seu mundo é público e privado, ele o vê sem ser visto. CETICISMO E O MEDIUM DO FILME EM VERTIGO Que o voyerismo narrativo seja uma expressão de Hitchcock sobre o meio do filme, é algo relacionado à possibilidade do cinema, enquanto também linguagem, de representar a própria ideia de um mundo total, a possibilidade de ver sem ser visto, ou de ser visto de um estado invisível, privado. Esse voyerismo narrativo determina também o modo pelo qual a câmera se insere em Vertigo, bem como diz respeito a todo um conjunto de intencionalidades expressadas por meio da produção de um mundo, como veremos nesta seção. No The World Viewed, Cavell destaca que quando fala a respeito da câmera a define pela sua causa final, ou seja, envolve tudo que está entre o mundo diante dela e a projeção na tela: Frente à câmera, digamos, existe um prédio branco. Se o que aparece na tela é um edifício branco instável, borrado ou deformado, ou dois edifícios idênticos passando um pelo outro, isso não é prova de uma projeção desfocada? A menos que, talvez, isso nos leve a acreditar que o prédio está tremendo ou está sujeito à deformação, como em um desenho animado, ou que é capaz de autolocomoção e autoduplicação espontânea (CAVELL, 1979, p. 187). Além disso, observa que há uma espécie de espera metafísica entre o que foi produzido e o resultado propriamente dito (CAVELL, 1979, p. 185).11 Sendo assim, que haveria um mistério na própria relação de causalidade entre ambos, entre aparência e realidade. Nesse contexto, afirma que Hitchcock é um cineasta conhecido por conseguir fazer uma espécie de previsão metafísica dessa conexão. Isso porque, complementa, talvez “O filme vira do avesso nossas convicções epistemológicas: a realidade é conhecida antes que suas aparições sejam conhecidas. O mistério epistemológico é se, e como, você pode prever a existência da realidade a partir do conhecimento da aparência. O mistério fotográfico é que você pode conhecer tanto a aparência quanto a realidade, mas que, no entanto, uma é imprevisível da outra” (CAVELL, 1979, p. 185-186). 11 | 89 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Hitchcock só produza o que possa ser previsível em termos de resultado, ou seja, aquilo cujas consequências do seu estilo ele possa explorar. No entanto, dentro dessa abertura metafísica, o mistério do cinema é a construção de uma significação de um mundo que misteriosamente, pelo menos para o expectador, aparece. Nesse contexto, Cavell ressalta que a câmera se mostra a partir de seus objetos, do mundo que projeta.12 O que deve se afirmar por meio das possibilidades técnicas comportadas pelo cinema é, então, os objetos da filmagem, o mundo construído e projetado na tela.13 Hitchcock, mesmo diante de um controle do estilo, teria o mérito justamente de manter a transparência da imagem, possibilitar que o cinema seja um fazer-ver aquilo que está diante dos nossos olhos: De um lado, o montante e o tipo de informação técnica que poderiam ser considerados relevantes excedem o que qualquer um de nós pode conhecer. De outro, as únicas questões técnicas a que nos remetemos como relevantes à experiência de ver filmes particulares, que é aquilo que nos interessa, estão diante de seus olhos. É possível ver onde uma tomada começa e termina, se um enquadramento é aberto, médio ou fechado. Saber se a câmera está se movendo para trás ou para frente, ou para os lados, se uma figura aproxima-se do campo de visão da câmera ou se esta move-se para focalizar aquela. Podemos não saber como Hitchcock consegue o efeito da escada distorcida em Vertigo, mas é possível ver que ele conseguiu. Então, qual é a realidade por trás da ideia de que há sempre algo técnico que não se conhece e forneceria a chave para a experiência? (CAVELL, 1979, p. xxi -xxii). Porém, Cavell explicita sua compreensão de que a projeção de um mundo na tela, essa espécie de linguagem sempre em terceira pessoa, não exclui os traços de subjetividade dos criadores do cinema. Como os elementos sintáticos e lexicais de uma linguagem comportariam a “A câmera pode, é claro, tirar uma foto de si mesma, digamos, em um espelho. Mas isso não a faz adentrar mais em si mesma do que eu quanto à minha subjetividade quando digo ‘eu estou falando essas palavras agora’. Quero que as palavras aconteçam comigo, minha fala torna o seu significado pessoal” (Ibidem, p. 127). 12 13 “Os longos e lentos vaivéns que Godard realiza na cena do diálogo em O Desprezo são claramente uma declaração original e profunda da presença da câmera. Mas, por esse fato, eles também são um testemunho da câmera sobre os personagens, sobre sua distância e conexão simultâneas, sobre o vasto deserto da familiaridade fatigante” (Ibidem, p. 131). 90 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio intencionalidade do falante, a forma de organização das “frases visuais” seria a portadora das intenções do cineasta: Digo, com efeito, que todo e qualquer gesto de câmera pode, ou não, significar algo, e todo corte e ritmo de cortes, [assim como] todo enquadramento e modulações do mesmo – algo determinado pela natureza do filme ou pelo contexto específico na ocorrência do gesto em um filme particular. Nomeio de automatismos tais possibilidades do meio físico de um filme. Eles são os portadores das intenções do cineasta – tais como os elementos sintáxicos e lexicais de uma língua. Ao contrário dos falantes de um idioma, os cineastas conseguem, não meramente, construir, por assim dizer, novas sentenças, mas novos elementos de sentenças. Essa intencionalidade dos automatismos fílmicos dita a perspectiva a partir da qual uma compreensão razoável de um filme deve proceder (CAVELL, 1979, p. 186-187). Assim, o cineasta imprime sua subjetividade no modo como organiza um mundo, por meio de cortes, do ritmo que imprime, etc., de forma que por automatismo Cavell não entende a mera reprodução mecânica de uma imagem a partir de um roteiro. Bons diretores, afirma, significam mais – com mais completude, mais particularidade, mais sutileza – enquanto gestos de maus diretores são vazios (CAVELL, 1979, p. 188). Há uma completa responsabilidade do artista em relação às intenções que projeta, como devem os humanos se responsabilizar pelas intenções que causam suas ações no mundo. A realidade fotografada e projetada no fundo decorre dos arranjos das sucessões pelas quais a realidade é projetada, exibida, destaca. No cinema, em algum momento os vários graus de movimento nas sucessões projetadas terão que ser minimizados, pelo menos os movimentos da câmera e dos seus objetos. E o modo como deve haver essa constituição de uma unidade na multiplicidade é a determinação de uma significação, dentre outras possíveis. Ou seja, é a constituição de um mundo contingente, que passará a ser existente na tela (CAVELL, 1979, p. 202).14 “A vivacidade em si sugere que o que somos mostrados na tela é sempre apenas um dentre um número infinito de visões igualmente possíveis, que nada que a câmera faz pode sair do círculo de visualização. Estamos sempre do lado de fora; não há visão perfeita ou mais significativa” (Ibidem, p. 202). 14 | 91 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Segundo Cavell, “esse é um dos significados do giro de 360 graus que a câmera dá em torno do casal abraçado, em Vertigo” (CAVELL, 1979, p. 202), cuja significação é determinável apenas a partir de uma análise específica e particular do filme. Para Cavell, esse é um automatismo e seu sentido não pode ser dado de modo abstrato e geral. De algum modo, embora qualificado como automatismo, trata-se do espaço de autonomia do artista, a expressão do seu próprio estilo. Especificamente no caso do uso da câmera, Cavell afirma que, em Vertigo, esse giro coloca o casal num casulo, o que representa a fantasia do homem, a qual não pode ser compartilhada pela mulher. A sucessão das imagens do homem não é realmente vista nem apenas imaginada, nem simplesmente lembrada por ele. São projeções e sucessões da realidade que ele ordena, (organiza, decreta): “Elas não procedem de uma posição fora do mundo cuja perspectiva é, em princípio, compartilhável; elas não implicam o mundo como um todo, mas selecionam fragmentos dele, cuja implicação é somente para o personagem” (CAVELL, 1979, p. 203). Embora tendo os personagens enlaçados e encasulados pelo giro, a expressão da câmera representa a impossibilidade de encontro. Vertigo seria uma declaração do fim do romance e o modo como Hitchcock pensou a determinação dos movimentos sucessivos nesse giro completo da câmera visa tornar isso evidente.15 Em outras palavras, não é só na temática abordada que se expressa o tema cético presente no filme, mas também na manipulação dos seus meios físicos, na exploração das possibilidades do seu automatismo. O chamado dolly zoom, inaugurado exatamente em Vertigo, em que a câmera se desloca, para frente ou para trás, enquanto o zoom movimentase na direção oposta, representa também a constituição de uma linguagem própria e que no filme tem em vista a potencialização dos sintomas de vertigem. O objeto focado pela câmera não se desloca e nem muda seu Cavell (2005, p. 159), analisando o filme Aconteceu Naquela Noite, de Capra, observa que uma tomada em que o personagem se afasta, de costas para a câmera (away from us), potencializa a significação de uma vulnerabilidade, privacidade, ou mesmo autorreflexão no espectador. Este movimento fílmico, normalmente localizado na cena final, capturaria um isolamento, sentimento de esperança, um abandono do passado, vulnerabilidade, privacidade e contemplação, encontrando seu ápice quando a tomada envolve um casal, afastando-se de nós, nos deixando de fora do seguimento da trama do resgate matrimonial e indicando um começo, um limite que foi ultrapassado. Ou seja, temos aqui um movimento de câmera que visa transmitir uma mensagem de possibilidade de encontro e de reconhecimento do outro, mensagem essa oposta à transmitida pelo giro completo da câmera em Vertigo. 15 92 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio tamanho, porém o fundo tem seu enquadramento ampliado ou diminuído, o que significa a impossibilidade de convergência entre o mundo interno e externo de Scottie. Esse efeito aparece logo na cena de abertura, durante a perseguição, e na escadaria da torre da igreja, antes da primeira morte de Madeleine. Scottie olha para baixo e percebe o solo apertar-se no quadro, como se este estivesse chegando mais perto. Em ambos os casos, psicologicamente seu mundo está diminuindo, está ficando mais estreito, e será facilmente dominado pela obsessão. Na terceira vez em que a técnica é aplicada, porém, o efeito é inverso: o solo parece ampliar-se, como se Scottie estivesse cada vez mais longe dele. Isso acontece na segunda sequência da escadaria da torre da igreja, quando Scottie arrasta Judy para o local a fim de revelar-lhe a farsa que descobriu. Por isso, o campo de visão, dessa vez, amplia-se: ele está livre de sua obsessão e também de sua vertigem – tanto que, momentos depois, aproxima-se da janela da torre do sino pela qual Judy acabara de cair sem experimentar qualquer vertigem. Vale lembrar também que Hitchcock é um dos grandes mestres do travelling e Vertigo traz esse recurso associado principalmente às personagens de Kim Novak no filme. A cada movimento de sua câmera em torno dela, a sensação de desconhecimento acerca do que pensam e sentem suas personagens é visível na composição cinematográfica. Somada aos travellings, temos a aproximação aparente da câmera, que também é importante na construção emocional das personagens, diluindo ou aumentando a carga psicológica em relação à sequência anterior. Isso é visível nos close-ups em Kim Novak e, após a morte de Madeleine, nas tomadas de plano aberto em mulheres que parecem com ela pelas roupas, tipo físico e cor de cabelo. Esses movimentos de câmera têm a função de ressaltar tanto a objetificação e o desejo de Scottie em relação a ela, quanto o mistério que aumenta o desejo e a fantasia do personagem. Ademais, Cavell observa (1979, p. 201), afirmando seguir Bazin neste ponto, que a tela no cinema tem uma função muito diferente da que ela tem na pintura, na medida em que no cinema ela se relaciona tanto com o que ela inclui como com o que ela exclui, ou seja, com o seu extracampo. O extracampo cumpre uma função narrativa, eis que ideias apresentadas na tela serão trabalhadas fora das vistas do espectador – o que | 93 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) pode ser usado como uma técnica para criar suspense ou terror, deixando que a imaginação do espectador crie aquilo que a câmera não mostra. Em Vertigo, por exemplo, há um momento em que Madeleine retorna ao hotel no qual Carlotta Valdés viveu. Scottie a segue, e pergunta à senhora que trabalha na recepção quem é a ocupante do quarto de esquina, descobrindo que se trata mesmo de Carlotta. Então, ele pede à senhora que não comente ou revele sua presença ali, ao que a recepcionista replica dizendo que ela não esteve ainda no hotel naquele dia. Nesse momento, tanto Scottie quanto o espectador ficam intrigados, pois Madeleine de fato entrou no hotel. A senhora da recepção convida então o detetive a acompanhá-la até o quarto de Carlotta, e é nesse momento que o extracampo opera: o que encontraremos? Madeleine? Ou o fantasma de Carlotta? Pela manipulação da linguagem Hichcock faz o espectador ver na tela o que não está lá, algo que também evidencia o fato de que, embora o cinema tenha como base a fotografia, não devemos compreendê-lo como realista no sentido de uma mera reprodução da realidade, mas sim em relação à sua possibilidade de significar um mundo. No caso de Vertigo o mundo significado é tanto interno como externo e representa a própria questão, para Cavell, da possibilidade ou não de que a vida interna reforce nossa conexão com o mundo externo. Mais especificamente, Vertigo apresenta na tela uma fantasia que responde negativamente a essa questão. Outra forma de marcar através das inflexões da linguagem cinematográfica as intenções do artista, sobre o qual Cavell tece alguns comentários, especialmente em sua aplicação nos filmes de Hitchcock, e mais particularmente em Vertigo, é o uso da cor e a sua relação com uma temporalidade que resulta das imagens sucessivas unificadas. A forma predominante de unificação do tempo na fotografia, para Cavell, consistiria no passado, sendo o uso do preto e branco, no fundo, uma remissão a essa forma de unificação. Pontuar o drama visual a partir de um contraste entre preto e branco, por sua vez, seria uma herança da pintura para a fotografia, uma forma de dar um significado individual (não meramente simbólico) a um gesto: “Quando isso acontece, a teatralidade e o realismo não são, como podemos supor agora, opostos; antes, a aceitação da teatralidade é, então, uma condição de aceitarmos uma obra como representação da realidade 94 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio humana” (CAVELL, 1979, p. 90). A sociedade moderna – fruto tanto de Maquiavel como de Rousseau e Marx – institui o sujeito e, ao mesmo tempo o isolamento (CAVELL, 1979, p. 93-101). Como contraponto, o drama era a forma de superar esse isolamento, pelo reconhecimento. Com a superação dos usos desse drama visual, a pintura e escultura tiveram que abrir mão da figuratividade para continuar a contemplar a abordagem das questões humanas, agora sem o contraste dramático. O cinema, entretanto, não podendo abrir mão da figuratividade, experimenta novas formas de trazer à tona o reconhecimento, seja pelo ponto de vista das temáticas que usa, seja pela exploração dos limites de sua própria linguagem. O uso de cores, de modo geral, segundo Cavell, é uma forma de não teatrizar. Rompe-se a relação com o passado, na medida em que o mundo composto no cinema pela cor é, no geral, o mundo do futuro imediato.16 Vertigo, entretanto, é, para esse autor, um grande exemplo da combinação de fantasia e simbolismo da cor, ou seja, parece comportar elementos de expressão de uma temporalidade que não apenas a do futuro imediato, além de recepcionar certos aspectos de uma dramatização da qual resulta o reconhecimento e de comportar uma particularização da imagem capaz de propiciar também seu realismo.17 Como destaca Rothman (2012, p. 201-202), a cor que representa a fantasia, os sonhos, a memória, para Hitchcock, é o verde, ao qual se contrapõe à realidade do vermelho e marrom. Em Vertigo, segundo Rothman, o verde representa o amor ideal.18 Na cena já citada, em que Scottie, após salvar Madeleine da sua tentativa de suicídio e consumar Segundo Cavell (1979, p. 94-101), as cores podem ser usadas como elementos que unem o mundo da fantasia com a projeção de um futuro. Bergman utiliza do preto e do branco para indicar que o futuro é antigo, datado. Antonioni utiliza a cor e a perspectiva limpa, na esteira de uma estética surrealista, como artifício temporal e de representação da prevenção da arbitrariedade ou desordem humana. O uso de cores leves por Godard, por sua vez, reflete nosso gosto e desejo de transformar nossas convicções amorosas em pornografia leve. 16 17 Ver MAKKAI (2013), um exemplo declarado de leitura de Vertigo na perspectiva de discussão de cor em Cavell. Para esse comentador, o exemplo mais marcante do uso do verde no sentido de evasão pode ser encontrado em Os Pássaros, na cena em que a personagem da Jessica Tandy faz a sua mais terrível descoberta na fazenda do Fawcett (ROTHMAN. 2012, p. 202). Nessa cena, o simbolismo abstrato dessa descoberta é representando pelo verde: a pick-up que traz Jessica Tandy à fazenda é verde, estaciona na frente de um trator verde. Dentro do quarto, destroçada pelos pássaros, está uma colcha verde, e Fawcett já no chão, morto, sem os olhos. Abalada, a senhora vivida por Jessica Tandy sai da casa, entra novamente em seu veículo verde e atravessa o campo verde que circunda a fazenda. 18 | 95 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) seu amor idealizado, há uma clara troca entre as cores verde e vermelha. O apartamento guarda algumas tonalidades terrosas, especialmente na cortina marrom (que terá ficado verde, mais à frente, quando Madeleine visitar o apartamento pela segunda vez). Scottie, porém, já usa uma blusa verde, coloração associada à idealidade, indicando que realizou (ou está próximo de realizar) sua fantasia. Madeleine, de outro lado, foi completamente despida, e o anfitrião oferece-lhe um robe vermelho para que ela vista – isto é, ela passará a ser dominada pela cor característica de Scottie. No mesmo sentido, quando encontra Judy, ela veste verde, o que representa que estamos diante novamente da obsessão fantasiosa de Scottie. Além disso, não por acaso, como também observa Rothman, na cena em que Judy se transforma em Madeleine sob o olhar de Scottie, o verde permeia o ambiente para representar a idealização desse amor, de uma mulher fantasiada. Ademais, é importante destacar que outras cores também são exploradas na película com função simbólica. Em contraste ao movimento pendular entre o vermelho (cor associada à Scottie) e o verde (associada à Madeleine e Judy) de fantasia sexual e realização do desejo, os tons amarelos e azuis explorados no filme são geralmente associados à realidade, à sanidade e ao Figura 4- Azul-Amarelo: Mindy e Scott; Vermelho-Verde: equilíbrio mental e emocional e Madeleine/Judy e Scott. Vertigo, 1958, 5m13; 87m26s; aparecem, em grande parte das 18m11s; 50m24s; 100m32s; 115m46s. cenas, associados à Midge, exnoiva de Scottie. Seu apartamento, suas vestes, seus objetos são amarelos e, após a morte de Madeleine, a paleta de cores exploradas no cenário, roupas de Midge e de Scottie no hospital psiquiátrico é o azul. Sinteticamente, então, temos a exploração de dois pares de cores complementares, que 96 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio cambiam entre o sujeito que deseja e o objeto de desejo, vermelho e verde, e a cor da mulher real e a sanidade, amarelo e azul. Hitchcock revela-se no mundo que projeta. É nesse mundo projetado que deve ser reconhecida a sua intencionalidade, implícita em suas frases visuais. Seus movimentos de câmera, seu uso das cores, a possibilidade que ele confere ao espectador de ser voyeur de uma fantasia que também é a sua, são marcantes em Vertigo, como mostramos. Uso de cor, posicionamentos de câmera, articulação da trama que constitui a tela na sua relação com o extracampo, todos esses recursos são formas de explorar os limites do automatismo, enquanto meio do filme. Embora Cavell não pretenda discutir esse problema à luz do clássico debate entre realismo e formalismo19, o que deixa estabelecido é o fato de compreender que o cineasta projeta um mundo capaz de criar uma conexão (ainda que momentânea, fantasiosa) entre o espectador e a realidade, em virtude do próprio automatismo. Seguindo sua leitura, segundo a qual é um tema cético que está indicado nesse filme, podemos dizer, ademais, que também o medium de Vertigo revela esse ceticismo. Seus tons, seus ângulos, sua perspectiva ressaltam, portanto, a discussão sobre o liame entre fantasia e realidade e a busca da confirmação da nossa presença para o mundo. CONSIDERAÇÕES FINAIS: FANTASIA E VOYEURISMO NARRATIVO EM VERTIGO A análise cavelliana acerca de Vertigo converge com o modo como compreende a relação entre filme e expectador. Se a modernidade nos legou a subjetividade, também fez dela resultar o isolamento. A arte a partir desse ponto assume a tarefa de buscar uma reconexão entre sujeito e mundo. O cinema, nesse contexto, é uma linguagem artística privilegiada, “As categorias de sucessão e projeção estão entre as mais enfatizadas no que ouvi e li sobre a estética do cinema. Em particular, elas envolvem o que muitos consideram ser a questão básica do assunto, ou seja, se é a possibilidade de cortar de uma imagem para outra (um sentido de sucessão) ou a possibilidade de projeção contínua de uma imagem diferente (alterada por profundidade de foco ou pelo movimento da câmera) que é a essência do cinema. Não me obriguei a ponderar a experiência e a filosofia que levaram, por exemplo, Eisenstein a optar pela montagem e Bazin pela continuidade; nem pesquisei exemplos suficientes de um e de outro para estabelecer minha opinião sobre o assunto. Minha desculpa para minha ignorância sobre essa questão é que tenho uma hipótese sobre isso, a saber, que ela não é uma questão” (CAVELL, 1979, p. 73). 19 | 97 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) na medida em que a base dessa arte é imbuída de um realismo peculiar, dado seu automatismo. É assim, um mundo que se projeta na tela, e, tal qual a nossa relação com o “mundo real”, é nas inflexões da linguagem que vemos a subjetividade do cineasta exposta. Vertigo, para Cavell, aborda o percurso e as consequências de uma fantasia que resulta na perda do mundo, na dúvida. E isso se expressa não apenas na temática abordada, mas na forma como a narrativa é construída. A genialidade de Hitchcock nesse caso é fazer do espectador um cúmplice de Scottie, já que com ele o espectador compartilha essa fantasia de uma linguagem privada, ao mesmo tempo supostamente pública. O espectador se vê privadamente, ao mesmo tempo em que se conecta com um mundo público. O voyeurismo narrativo é uma declaração de Hitchcock sobre o meio do filme, nos diz Cavell. No caso de Vertigo, é também a nossa própria fantasia, a nossa questão cética de nos validarmos para o mundo e talvez nos perdermos no percurso, que está projetada na tela. REFERÊNCIAS BAZIN, André. O Cinema: ensaios. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1991. CAVELL, Stanley. Ending the waiting game: a reading of Beckett’s Endgame. In: CAVELL, Stanley. Must We Mean What We Say? a book of essays. Cambridge: Cambridge University Press, 1976. p. 115-162. CAVELL, Stanley. The World Viewed: reflections on the ontology of film. Cambridge: Harvard University Press, 1979. CAVELL, Stanley. North by Northwest. Critical Inquiry, Chicago, v. 7, n. 4, p. 761776, 1981a. CAVELL, Stanley. Pursuits of happiness. Cambridge: Harvard University Press, 1981b. CAVELL, Stanley. Freud and Philosophy: A Fragment. 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Acesso em: 31 out. 2018. 100 | Cinema e absurdo: uma leitura camusiana do filme MELANCOLIA Thiago Kistenmacher VIEIRA 1 “Le temps destruit tout” (filme Irréversible) A filmografia do diretor dinamarquês Lars von Trier inspira profícuas discussões e, por isso, pode ser submetida à diversas análises. Seus filmes versam sobre temas complexos e intrinsecamente humanos, tais como a depressão, a angústia, o desespero, o vazio etc. Problemas religiosos, psicológicos, sociológicos, artísticos e filosóficos encontram-se presentes em sua obra. O diretor, em alguns momentos, chegou a declararse leitor de Dostoiévski2, que, como se sabe, tratou, à sua maneira, de questionamentos acerca do sentido da vida e, de certa forma, do absurdo. O escritor russo e o absurdo com o qual se preocupou foram também amplamente discutidos pelo filósofo argelino Albert Camus, também leitor declarado de Dostoiévski. Nosso artigo, portanto, busca abordar o 1 Doutorando pela Universidade de São Paulo – USP / São Paulo / SP / Brasil. E-mail: tkv1986@gmail.com 2 Cf. por exemplo: TRIER, 2015. https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p101-128 | 101 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) filme Melancolia (2011) e esmiuçá-lo apoiado em uma leitura camusiana, especialmente a partir da obra filosófica Le Mythe de Sisyphe (1942). A justificativa desse caminho se impõe pelo fato de que o filme, a contar com sua trama e personagens, em alguma medida, parece manifestar o absurdo. E esse é o conceito-chave de Camus no supracitado livro. Mais do que isso: os personagens, sobretudo Justine, em virtude de suas maneiras, pode aventar uma aproximação com o Sísifo, ou seja, com o herói absurdo exposto por Camus. Sendo assim, é possível indagar-nos: pode-se atinar, ali, o absurdo e/ou o herói absurdo que o filósofo define em sua obra? Melancolia, neste filme, nomeia um planeta que, gradualmente, parece se aproximar da Terra. A expectativa de uma colisão é o que desencadeia a entropia existencial vivida pelos personagens. Mas, esse evento é o pano de fundo da obra. Logo, é pertinente ressaltar que o longa-metragem não se ocupa apenas com o fim do mundo. Isso se dá, a nosso ver, por duas razões. A primeira delas é porque algumas das cenas iniciais prenunciam o final. A segunda é devido ao desfecho sendo já revelado no começo da obra. Parece claro, por esse ângulo, que o escopo é salientar o comportamento dos personagens diante da iminência de um desfecho trágico. Nas palavras do diretor: “Em Melancolia, é interessante ver como os personagens que acompanhamos reagem conforme o planeta se aproxima da Terra” (TRIER, 2011, tradução nossa). Por conseguinte, o foco da narrativa dirige-se não simplesmente ao choque entre os planetas, mas à forma com que cada uma das pessoas se defronta com essa possibilidade. É precisamente à custa disso que o referido filme pode levar-nos a uma reflexão filosófica partindo do absurdo camusiano. Se esse absurdo nasce de uma relação existente entre o ser humano, o mundo e a comparação desses dois (VICENTE; CONTIJO, 2011, p. 2), ou, como o próprio Camus aponta, ao enfatizar que o absurdo “Não é nem um nem outro dos elementos comparados. Nasce de sua confrontação” (CAMUS, 1942, p. 50, tradução nossa), essa é a situação apresentada em Melancolia. Nessa película, dispomos de um confronto direto entre o ser humano e seu universo. Daí a conclusão de que a ameaça do encontro entre os planetas, ou o absurdo, nada teria de significativo desde que não estivesse vinculada às reações humanas, que percebem a absurdidade do que testemunham. “Para dizer que a vida é 102 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio absurda, a consciência precisa estar viva” (CAMUS, 1951, p. 19, tradução nossa), adverte Camus em L’homme revolte (1951). No que concerne à estrutura do filme, temos que, na primeira parte, o diretor trata majoritariamente de Justine (Kirsten Dunst)3, uma mulher notadamente melancólica e indiferente a tudo que a cerca. Na segunda, é dada maior importância à Claire (Charlotte Gainsburg), uma mulher que, de forma muito diversa da irmã Justine, é deveras apegada ao filho, ao marido e à sua propriedade. Nota-se, então, uma explícita dissemelhança entre elas. Há, contudo, um terceiro personagem marcante: John (Kiefer Sutherland), o marido de Claire. Ele, a despeito de surgir quase como coadjuvante, não é menos relevante, posto que, apresentando-se tanto na primeira quanto na segunda parte, sugere suficiente familiaridade com algumas das considerações camusianas relativas ao absurdo. Pensando nisso, o artigo será dividido em três partes, antes da conclusão. Nelas, analisaremos cada um dos personagens e aquilo que expressam, em correspondência a três exemplos da obra Le Mythe de Sisyphe, procurando defender que Justine não representa o herói absurdo, mas sua antítese – mesmo que, a princípio, possa figurar como o seu exato oposto –, que Claire corresponde à irreconciliada, e John, ao suicida. Mas, afinal, o que é o absurdo em Camus? Para não nos debruçarmos sobre as longas discussões que cercam este objeto, é válido dizer que o absurdo, em sua filosofia, é a tomada de consciência que o sujeito humano tem da falta de sentido do mundo. Numa explicitação bastante sintética: “absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo” (CAMUS, 1942, p. 46, tradução nossa). Esforçar-se para interpretar a existência como um todo; buscar dar sentido a algo que, tudo indica, não tem nenhum; ou, ainda, tentar saciar um “apetite de absoluto e de unidade”, afora notar a “irredutibilidade deste mundo a um princípio racional e razoável” (CAMUS, 1942, p. 75, tradução nossa), tendo ciência de que não é factível conciliá-las. Por conseguinte, há uma “coisa apenas: 3 Justine é uma personagem de Marquês de Sade. Em sua obra, “Justine, então, é personificadora da virtude ou dos princípios cristãos, tais como benevolência, castidade, solidariedade e justiça, mas ainda assim acaba sempre envolvida, inocentemente, em delitos, homicídios e depravações” (SOUZA; DOURADO; BARRETO, 2011, p. 2). E, para Arielo, “O diretor [Lars von Trier] chegou a comentar numa entrevista em 2003, o desejo de adaptar a Justine de Sade para o cinema, mas a ideia não se concretizou, pelo menos até o presente momento” (ARIELO, 2013, p. 23). | 103 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) essa espessura e essa estranheza do mundo, isto é o absurdo” (CAMUS, 1942, p. 31, tradução nossa), define Camus. Outra questão se coloca: quem é o herói absurdo? Ora, para o pensador argelino, o herói absurdo é aquele que está consciente de sua condição absurda. Para ele, ainda que nada tenha sentido claro, está tudo bem. É a própria luta contra a rocha que empurra eternamente para o alto do cume, e que volta a rolar para baixo – o mito de Sísifo – que basta para formar seu mundo, ainda que absurdo. E isso é suficiente para preencher seu coração (CAMUS, 1942, p. 168). Diante dessas considerações, façamos a seguinte pergunta: à luz desses conceitos, quando é que, no filme, o absurdo pode – ou não – ser captado? Ora, o absurdo pode ser notado exatamente no “silêncio irracional do mundo”, que surge no instante em que Justine, Claire ou John buscam decifrar o fenômeno que os amedronta; e/ou nos momentos em que os três reparam possuir apenas explicações insuficientes. Destarte, o drama do trio ilustra a factibilidade da experiência absurda. Sendo assim, podemos nos perguntar: há, nessa película, a presença do herói absurdo? Algum dos personagens pode ser equiparado a ele? Antes de partirmos para as análises dos personagens, é importante salientar que, se em Le Mythe de Sisyphe, Camus tomou o absurdo como ponto de partida, assim também o faremos no presente texto. É isso, aliás, que os definirá. Afinal, quando se descobre o absurdo, é essa descoberta que “deve dirigir seus atos posteriores” (BARRETO, 1971, p. 48). Para Thomas Nagel, quando alguém se depara ou acha-se numa situação absurda, esse alguém “geralmente tentará mudá-la, modificando suas aspirações ou tentando entrar em um acordo com a realidade ou removendo-se inteiramente da situação” (NAGEL, 1971, p. 718, tradução nossa). Vejamos como os personagens respondem a este evento. JUSTINE: ANTÍTESE DO HERÓI ABSURDO (?) Justine é a protagonista do filme que, em determinadas cenas, aparenta constatar algum absurdo naquilo que a rodeia. Não podemos 104 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio definir precisamente quando isso realmente se dá. Nem é simplório distinguir pontualmente quando o sentimento do absurdo bateu em seu rosto, como diria Camus (1942, p. 26-27). No entanto, traços outros são suficientemente cristalinos para que possamos compreender Justine – partindo do pressuposto que ela se depara com o absurdo – como identificada à antítese do herói absurdo estabelecido por Camus. A razão de compreender-se Justine dessa forma está baseada na perspectiva de que a personagem, a princípio, parece, como seria o caso do herói absurdo, mais resistente à pena que a ela foi imposta. Sucede-se que, se o herói absurdo enfrenta sua pena por afeição à vida, não é o que ocorre com Justine. Além do que, no que tange aos exemplos oferecidos por Camus em sua obra – o ator, o conquistador, Don Juan etc., Justine, a nosso ver, é a personagem que, diferentemente de Claire e John, parece não se aproximar de nenhum daqueles exemplos, salvo, de forma controversa, do herói absurdo. Assim que o filme se inicia, deparamo-nos com uma cena de aparência onírica: Justine está entre pássaros que caem mortos do céu, um cavalo – Abraham – tomba, e ela, com seu vestido de noiva, caminha sofregamente devido às raízes que a agarram. O que isso pode simbolizar? É possível ler a cena da seguinte maneira: mesmo em face de um mundo sem sentido, cruel e que não apresenta qualquer redenção, é inevitável que ela permaneça presa a ele, pois é plausível que não exista outro melhor. Mas caracteriza também a dificuldade que a personagem tem para prosseguir vivendo, “caminhando” normalmente no mundo. Ademais, não há controle sobre a hora em que as cortinas desse espetáculo absurdo da vida serão fechadas. Não somos nós que decidimos pelo fim, salvo se cedermos ao suicídio, que seria anular essa tensão absurda, a qual só se encerra com a morte (CAMUS, 1942, p. 51). Mas, Justine não segue por esta via radical. Aquelas raízes prendem-na à Terra e a impedem de se lançar no precipício do não-ser. Sua conduta, por isso, é assaz trágica, todavia, em situação nenhuma, objetivamente suicida. Entretanto, não é por não querer matarse que ela possui apreço pela existência. Quando de sua chegada ao castelo no qual se realizará sua cerimônia de casamento, Justine, antes de entrar, observa o céu e pergunta qual é a estrela que se destaca entre as demais. John, como astrônomo, responde ser | 105 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Antares, a principal estrela na constelação de Escorpião. Apesar da réplica, ela não se mostra convencida. Cabe-nos atentar para a aproximação que se pode fazer com a gravura Melencolia I (1514), de Albrecht Dürer. Nela, a ilustre figura é feminina. Não há dúvidas, a julgar por sua postura, que se trata de uma mulher melancólica – aliás, seu vestido nos lembra o de Justine, citado acima. Ao fundo da gravura de Dürer, vê-se um astro que prenuncia alguma aproximação – tendo, na dianteira, o título da gravura, Melencolia I. Isso, uma vez mais, sinaliza alguma afinidade entre a obra do artista alemão e o filme de Lars von Trier. A figura, acrescido a isso, apresenta aquele astro como a chegada de algo não passível de cálculo, previsão e controle pelo instrumento que a sorumbática jovem conserva em sua mão direita – um compasso –, nem pelas outras ferramentas que vemos aos seus pés – é o caso do poliedro, dos pregos, do serrote, da ampulheta e da esfera. A placa com os números, que se apresenta acima de sua cabeça, é mais um desses utensílios que, seja dito de passagem, permitem alguma comparação com o espírito científico de John, como veremos adiante. A despeito dos nexos teoricamente admissíveis entre a obra de Dürer e a de Lars von Trier, como apontou Keith Moxey, “o significado de Melencolia I está, em última instância, e necessariamente, além de nossa capacidade de definição (MOXEY, 1994, p. 93, tradução nossa). Portanto, nossa aproximação com a película aqui examinada também se baliza por esses limites. No trecho do livro em que desenvolve aquilo que denominou muros absurdos, Camus elabora raciocínios que nos remetem diretamente à cena em que Justine, após abandonar por alguns minutos sua celebração de casamento, se dirige até o pátio da mansão na qual realiza-se a festa e contempla o céu. Ali, se depara novamente com as estrelas, com um céu negro, belo e silencioso, que transmite a aura de mistérios indecifráveis à compreensão humana. Eis um dos muros absurdos que desafiam nossos assaltos (CAMUS, 1942, p. 38) – aqui, presumivelmente, estamos próximos a uma pista que nos indica o absurdo incipiente que passa a surgir na percepção de Justine. Levando em consideração essa bela cena, destaca-se o subsequente pensamento de Camus: “No fundo de toda beleza jaz algo de desumano, e essas colinas, a doçura do céu, esses desenhos de árvores, eis que nesse minuto perdem o sentido ilusório com os quais nos 106 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio revestimos, doravante mais distantes que um paraíso perdido” (CAMUS, 1942, tradução nossa). É assim que Justine se vê: distante, retirada do mundo. Tendo em vista suas ações, suas maneiras, pressupomos que ela sente “essa espessura e essa estranheza do mundo” (CAMUS, 1942, p. 31) visivelmente absurda. Há algo estranho no céu e Justine não pode elucidar. Ou seja, essas barreiras zombam de todas as investidas humanas. Lembrando o filósofo argelino: “viver sob esse céu sufocante ordena que saiamos disso ou ali ficamos” (CAMUS, 1942, p. 48-49, tradução nossa). Essa “estranheza”, que Justine revela melancolicamente, pode ser reconhecida na parte em que, chorando, após conversar com o noivo e com a irmã no escritório de seu cunhado, vê algumas obras de arte expostas em uma estante, que contém livros e catálogos abertos exibindo pinturas. Essa reflexão nos importa porque as obras com as quais nos deparamos, considerando seus temas, cores, formas, ilustram a percepção de mundo da personagem. Porque, quando Justine percebe as obras ali dispostas, em claro sinal de contrariedade, ela passa a substituir as obras de arte expostas por outras que julga mais apropriadas. Afinal, os melancólicos, nos termos de Lars von Trier, “preferem música e arte que contenham um toque de melancolia” (TRIER, 2011, tradução nossa). Assim, Justine troca uma pintura suprematista de Kazimir Malevich – entre elas o trabalho intitulado Suprematist Painting: Eight Red Rectangles – que exibe formas geométricas em cores puras, pela tela Jagers in de Sneeuw, do renascentista flamengo Pieter Bruegel, a qual expõe caçadores afadigados regressando de uma caçada, pelo visto, pouco frutífera – tal pintura, a propósito, brota na tela após o primeiro minuto, na abertura do filme. As cores, que, em Malevich, eram puras, vivas – vermelho, lilás, amarelo e preto contra um fundo branco – cedem lugar ao cinza do céu, ao branco da neve espessa e ao tom escuro das árvores despidas de folhas. Ato contínuo, ela afasta gravuras menores difíceis de serem discernidas pelas obras de John Everett Millais. À esquerda, deparamo-nos com a tela The Woodsman Daughter e, à direita, com o quadro intitulado Ophelia. O primeiro, em que pese o colorido e a representação de uma cena inocente – o menino Gerald, filho de um escudeiro, oferece frutas à Maud, filha do lenhador ao fundo –, tem, em conformidade com o catálogo da Tate Gallery (PARROT, 1984, p. 86), um | 107 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) fim trágico. Isso porque, anos depois, ambos mantêm uma relação amorosa impossível de resultar em casamento por causa da diferença de seus estratos sociais e, como dessa relação proibida uma criança é concebida, Maud afoga-a em uma piscina. Como consequência desse ato, enlouquece. Justine, em seguida, recorre novamente às pinturas de Pieter Bruegel, quando, em um local da estante agora vago, apresenta-nos a tela Het Luilekkerland (1567) – a terra dos preguiçosos e glutões. O que se vê é um soldado, um clérigo e um agricultor empanturrados. Pois, onde vivem, tudo está disposto em abundância. Capões e galinhas voam já assados; nos jardins, há salsichas e as casas estão abarrotadas de tortas. Porém, os versos encontrados na gravura que inspirou a tela, como aponta o registro do Metropolitan Museum of Art, tecem críticas ao vício e, assim, lê-se: “Ser preguiçoso, comer muito, e fazer o que você quer, essas são três coisas que estão erradas... Até agora esta terra não era conhecida por ninguém, exceto pelos imprestáveis que a descobriram primeiro, e que podem ser encontrados próximos à forca” (ORENSTEIN; SELLINK apud LEBEER, 1969, p. 256, tradução nossa). Evoquemos a pompa da festa de casamento de Justine, os comensais, as mesas dispostas, enfim, a festividade que a circunda. E, como o artista quem sabe estivesse se opondo arduamente ao vício da preguiça e da gula (LEBEER, p. 257), Justine, por motivos muito seus, também se nos afigura como alguém que possui sérias reservas com relação àquele ambiente no qual se encontra inserida. Um casamento, aponta Trier, é um ritual. Perante isso, pergunta: “Mas há alguma coisa além do ritual?”. E responde que, para Justine, não há (TRIER, 2011, tradução nossa). Isso, ainda de acordo com as reflexões do diretor, se dê “Talvez porque os melancólicos apostem mais alto do que apenas em um pouco de cerveja e música. Isso parece tão falso.”4 Portanto, se os rituais são falsos, e “de nada valem, isso serve para todas as coisas (TRIER, 2011, tradução nossa). Justine, então, encontra-se num profundo vácuo de sentido, a despeito de todo o regozijo dos convidados e da opulenta celebração. 4 Interessa-nos mencionar que Gaby, mãe de Justine e Claire, pensa o mesmo. Nas palavras da experiente senhora: “Eu não estava na igreja, não acredito em casamentos. Claire... a quem sempre considerei uma garota sensata, organizou esta festa extraordinária! ‘Até que a morte os separe, para toda a eternidade’. Justine e Michael... Só quero dizer uma coisa: desfrutem enquanto durar. Eu, particularmente, odeio casamentos” (MELANCOLIA, 2011). 108 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Ao lado da referida pintura de Bruegel, avista-se, em escala menor do que as restantes, a gravura de William Blake – A Negro hung alive by the Ribs (1792) –, que representa um homem negro que, até então vivo, revela-se pendurado pelas costelas. E a agonia da personagem vai sendo estampada em imagens. A outra tela que Justine resolve expor é Davide com testa di Golia (1610), de Caravaggio. Além da imagem sombria e dramática falar por si só, como sublinha o historiador da arte Michael Kitson, a famosa tela do pintor barroco sugere que o jovem David seria o próprio artista em sua juventude e que, a cabeça que é mostrada decapitada por ele, a qual segura em sua mão esquerda, representaria Caravaggio em sua maturidade (KITSON, 1967, p. 100). Esse ponto nos interessa porque, bem como Justine, essa interpretação da imagem se aproxima da personagem de Lars von Trier da seguinte forma: Justine pode ser vista como algoz, porque “no começo” – e as cenas ora exploradas encontram-se no início da primeira parte da obra –, “ela está brincando com tudo de forma improvisada, porque se sente tão acima das coisas que pode tirar sarro disso” (TRIER, 2011, tradução nossa), mas mostra-se também como vítima, porquanto deseja pôr termo a toda estupidez, ansiedade e dúvida pelas quais é acometida, mas que percebe não ser possível resolver (TRIET, 2011). É o protagonismo da melancolia, quando toda esperança é vã e seu efeito é representado pelas novas telas, agora lúgubres. Em outra obra de arte, dispomos de um dos últimos trabalhos do pintor sueco Carl Fredrik Hill, intitulada Brølende hjort. Nela, um cervo ruge, e seus chifres assemelham-se aos galhos das árvores antes pintadas por Hill. Essa pintura também nos surpreende porque a tela em questão foi pintada durante os anos de sofrimento que Hill enfrentava. Acometido por depressão e alucinações, sua obra passa a tomar um rumo completamente diverso. Como resultado, as telas, que, no início de sua produção, ostentavam paisagens um tanto coloridas, com árvores, perdem espaço para uma criação deveras soturna, como no modelo do cervo rugindo.5 5 O cervo, que vemos na pintura de Hill, à exceção todos os significados de que está coberto ao longo da história, pode também significar melancolia, sensibilidade. Hans Baldung, que, vale destacar, estudou com Albrectht Dürer, autor da gravura Melencolia I, antes mencionada, utilizou esse símbolo em sua pintura intitulada Allegorische Frauengestalt, de 1529. Nela, uma mulher – representando a contrapartida da alegoria da música, | 109 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Conforme aludido anteriormente, ainda na cena da primeira parte do filme na qual Justine está no escritório, uma das obras a surgir é Ophelia, de John Everett Millais (1851 – 1852), que, inspirado na obra shakespeariana Hamlet, apresenta uma jovem cantando suavemente enquanto afunda nas águas até anular-se por completo.6 A semelhança da tela com a cena em que Justine sobressai disposta sobre as águas é evidente, como detectamos na imagem abaixo. Figura 5- Ophelia, de John Everett Millais, e Justine, deitadas sobre a água. Fonte: https://flavorwire.files.wordpress.com/ - http://interdigitized.com/ Vê-se que, é guiado pela obra de Millais que Trier concebeu a cena na qual Justine, deitada da mesma maneira que Ophelia, esboça uma tentativa de se unir àquilo que não compreende. É razoável apontá-la como que empenhando-se para resolver, ainda que não deliberadamente, o que Camus denominou “divórcio”. Justine deita-se passivamente sobre a água. Com efeito, é válido admitir que ela, em duas cenas, irrompe como aquela que, experimentando o divórcio existente entre ela e o mundo, se aplica em anulá-lo, ou amainá-lo. Vimos isso na cena acima e em outra imagem posterior, já na segunda parte do filme. Nela, a personagem está deitada sobre as pedras, nua, e olhando sedutoramente para o planeta Melancolia. Não estaria ela buscando algo como uma “união”, de modo a contrariar também pintada por Baldung –, enquanto olha-se no espelho e mira uma caveira, pisa em uma cobra e, ao fundo, dois cervos parecem observar a cena (Cf. DUBE, 1980. p. 103). 6 A cena é descrita no ato IV, cena VII, em Hamlet, de Shakespeare, em discurso da Rainha Gertrudes. Eis o que enuncia a rainha: “Um salgueiro reflete na ribeira / cristalina sua copa acinzentada. / Para aí foi Ofélia sobraçando / grinaldas esquisitas de rainúnculas, / margaridas, urtigas e de flores / de púrpura, alongadas, a que os nossos / campônios chamam nome bem grosseiro, / e as nossas jovens ‘dedos de defunto’ [...] / Seus vestidos se abriram, sustentando-a / por algum tempo, a qual uma sereia, / enquanto ela cantava antigos trechos, / sem revelar consciência da desgraça, / como criatura ali nascida e feita / para aquele momento. Muito tempo, / porém, não demorou, sem que os vestidos / se tornassem pesados de tanta água / e que de seus cantares arrancassem / a infeliz para a morte lamacenta” (SHAKESPEARE, [197-?], IV, VII, p. 124-125). 110 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio esse sentimento do divórcio, este subproduto da constatação do fenômeno absurdo? É viável pressupor que sim. Jean-René Moret, ao comentar o absurdo em Albert Camus, assinala que “o homem gostaria de se unir ao mundo, à natureza, mas o simples fato de fazer um julgamento sobre este ponto marca-o como distinto do mundo ao seu redor” (MORET, 2015, p. 2, grifos nossos, tradução nossa). Esta questão se coloca porque o “absurdo essencialmente é um divórcio”, e este desponta quando os elementos presentes entram em confronto, em outros termos, o humano com seu mundo, vários detalhes alvitram que Justine, com tal ação, empenha-se na busca do apaziguamento desse combate que se dá entre ela e seu universo, ação cujo sucesso eliminaria sua condição de “estrangeira”. Esta é a sensação que nos assalta ao contemplarmos a cena pelas lentes camusianas. Donde ela se colocar em uma posição oposta àquela do herói absurdo, dado que este, ao contrário, sustenta o absurdo “constantemente com um esforço solitário, porque sabe que nessa consciência e nessa revolta de cada dia ele testemunha sua única verdade, que é o desafio” (CAMUS, 1942, p. 80, tradução nossa). Este desafio, aliás, é o nó que aparentemente Justine anseia desfazer. Se o herói absurdo é visceralmente um ser de afirmação, é sensato classificar Justine como um personagem de negação. Essa constatação está baseada em dois pontos basilares, sendo um deles intrínseco à sua própria vida e outro voltado ao seu exterior. Primeiramente, ela enjeita o casamento, a festa que se seguiu, o emprego, as propostas de Tim, o estagiário – o jovem com quem tem uma egoística relação sexual no dia de seu casamento –, e mesmo às exortações da irmã para que apresentasse um comportamento digno de uma solenidade como aquela. Eis os pontos de negação referentes à vida particular da jovem. Tudo isso é demasiadamente sem valor porque absurdo. Em segundo lugar, Justine nega que exista vida após a morte; rejeita a ideia de que a vida na Terra seja boa; e parece ter o desejo de extinguir o divórcio entre ela e o universo, como vimos acima. Mas, há outro fator a ser apreciado: Justine não recusa tudo isso porque no fundo quer dizer “sim” à vida, ou porque se revolta com sua condição insignificante (CAMUS, 1942, p. 166). Ela assim o faz porque, para além de “apática diante do inexorável final de todos nós” (ARIELO, 2013, p. | 111 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) 35), Justine é alguém que, no fundo, o despreza. E, como enfatiza Camus, “Não há destino que não possa ser superado com o desprezo” (CAMUS, 1942, p. 166, tradução nossa). Esse é o método de Justine. Entretanto, ao contrário de Sísifo, ela despreza não apenas a sua condenação a uma vida sem sentido, como também a existência em sua totalidade. O próprio Trier, em entrevista, acentuou que os melancólicos, como Justine, “não têm nada a perder” (TRIER, 2011, tradução nossa) e que “esse foi o germe de Melancolia (TRIER, tradução nossa). Se Justine deve ser reputada como a personagem da negação, é porque, mesmo que tenha reconhecido o absurdo, ela, em alguma medida, consentiu com ele, mas objetou à necessária confrontação empreendida e reconhecida pelo herói absurdo (MORET, 2015, p. 2), tão essencial à sua condição de herói. Apesar disso, no segundo capítulo do filme, as crises de Justine podem ser entendidas como suas “noites de Getsêmani”, e que, em Camus (1942, p. 166), são aqueles momentos em que a rocha venceu. Essas noites instituem as ocasiões em que o indivíduo, antes lúcido, deixa-se levar aos abismos escavados pelas tribulações que enfrenta, quando repara que a pedra voltou à planície e que será preciso levá-la novamente até o cume da montanha. Mas Justine é alguém que demonstra lucidez ante o fato. Exemplo disso é que, próximo do final da película, ela, ao dialogar com Claire, busca responder aos tormentos de sua irmã e arremata: “Se você acha que eu tenho medo desse planeta [Melancolia], você é muito estúpida” (MELANCOLIA, 2011). A resposta pode ser entendida nos seguintes termos: Justine reconhece que a pedra voltou ao sopé da montanha e decide que não vale a pena empurrá-la de volta. Outrossim, ela tem ciência de que o absurdo se encerra com a morte, conquanto, não comete suicídio, porque não crê em outra vida, como enfatizado num dos diálogos que tem com Claire. Desse modo, é-nos outorgada a razoabilidade de alegar que Justine é uma personagem trágica no sentido que Camus atribui à Sísifo, pois que ela também dispõe da consciência de sua condição (CAMUS, 1942, p. 166). Contudo, ela não representa o herói absurdo, como pode-se concluir com base em uma leitura mais apressada. Porque, se Justine não comete suicídio, ainda que tenha plena ciência do absurdo que encara, age como se fosse uma suicida. 112 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Essa posição fica mais límpida quando do contraste, mais uma vez, entre ela e Claire. Se Justine carece de esperanças e, independentemente disso, não se desespera (CAMUS, 1942, p. 91), Claire, por seu turno, faz o oposto: entra em pânico e procura nutrir alguma esperança. Para Camus, “O contrário do suicida é, precisamente, o condenado à morte” (CAMUS, 1942, p. 79, tradução nossa). Esse é o enunciado que nos permite dizer que, diferentemente de Sísifo, Justine não se insurge contra a sua pena e, por isso, age como uma suicida7, ao passo que sua irmã Claire se mostra apenas como uma condenada à morte. Outro indicativo conveniente, e que ilustra a imagem de Justine como antítese do herói absurdo, é o trecho do filme em que ela maldiz a Terra. É oportuno frisar que, para o herói absurdo, na pele de Sísifo, a Terra é preferível ao mundo dos mortos. Nada pode ser comparado a este mundo do aqui e do agora. E foi por isso que Sísifo, quando pôde novamente “rever a face deste mundo, provar a água e o sol, as pedras aquecidas e o mar, não quis mais retornar à sombra infernal” (CAMUS, 1942, p. 164, tradução nossa). Justine, bem diferente disso, chega a afirmar que “A Terra é má” e que “Ninguém sentirá falta dela”. Mas Sísifo não julgava ser a Terra tão má assim e, contradizendo a afirmativa de Justine, sentiu falta dela. Inicialmente, tem-se a impressão de que Justine se aproxima da figura do herói absurdo8, porque ela, talvez, indique possuir a lucidez de que o fim que se aproxima com o planeta Melancolia é parte de sua condenação. Ocorre que, tal concepção é rapidamente rechaçada ao lembrarmos que, antagonicamente ao herói absurdo, que despreza os deuses, odeia a morte e tem paixão pela vida (CAMUS, 1942, p. 164), Justine se porta de outra 7 É legitimo estabelecer notar semelhanças, entre Justine e Mersault, o principal personagem do romance L’Étranger (1942), também de Albert Camus, e que tratou da questão do absurdo a partir da literatura. No entanto, há, entre ambos, uma disparidade substancial: ao passo que Justine aparenta divisar um alívio na concussão entre os planetas e o consequente extermínio da vida na Terra, Mersault, por outro lado, ao se aproximar de sua condenação à morte, reage furiosamente. Assim, Mersault é um personagem que se identifica ao herói absurdo, enquanto Justine, como estamos buscando demonstrar, é melhor compreendida como sua antítese. 8 Aqui podemos lembrar de Mersault, o herói absurdo do livro L’Étranger, publicado no mesmo ano que Le Mythe de Sisyphe. Afinal, sua conduta, no que se refere à indiferença, se assemelha a de Justine. Entretanto, há uma diferença significativa entre Justine e Mersault. Ao passo que a primeira vê na existência um mal que pode ser suprimido com o choque entre os planetas e não reage ante a aniquilação vindoura, o segundo se revolta quando sabe que pagará com a vida pelo crime por ele perpetrado. | 113 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) forma. Malgrado sua indiferença aos deuses, ela não é apaixonada pela vida e, por isso, não odeia a morte. Então, o que inferimos disso é que Justine representa a antítese do herói absurdo. Além disso, se Claire é diferente da irmã Justine, ela tampouco representa o herói absurdo, já que se nos apresenta como a irreconciliada, que não para de se interrogar ao mesmo tempo em que não vê sua condição como suficiente para preencher sua vida. CLAIRE, A IRRECONCILIADA Se, em Justine, não podemos fixar o ponto em que ela se depara com o absurdo, no caso de Claire, suspeitamos que o absurdo lhe tenha sido apresentado no instante em que ela decide pesquisar sobre a rota do planeta Melancolia e se certifica de que, em contraposição ao que enunciou John, o planeta está, de fato, em rota de colisão com a Terra. Mencionamos que Claire se distancia de Justine, ou que figura como o oposto dela. Afinal, se, para a segunda, a “Terra é má” e o seu ocaso terá como efeito positivo erradicar suas angústias, a primeira tem como aspiração prender-se à vida com todas as suas forças. Mesmo porque “Ela tem algo a perder. Por exemplo, uma criança” (TRIER, 2011, tradução nossa). É claro que isso não nos permite asseverar que Claire corresponda ao herói absurdo. Ela morrerá irreconciliada, mas, não é por isso que devamos aproximá-la de Sísifo. A razão dessa constatação é que, quando Claire, hipoteticamente, distingue o absurdo, ao avesso do exemplar camusiano, que tem no desafio (CAMUS, 1942, p. 80) o significado de sua vida, ela investe naquilo que o filósofo denomina por “salto”. É visível que Claire não se conforma com a ideia de que a vida seja somente na Terra. Sendo uma personagem o tempo todo aflita, e profundamente consumida pela possibilidade do choque entre os planetas, sua atitude é buscar um subterfúgio. Isso é ouvido em parte da amarga conversa travada entre as duas irmãs. Ei-la: 114 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Justine: Tudo o que sei é... a vida na Terra é má. Claire: Então talvez haja vida em outro lugar. Justine: Mas não há. Claire: Como sabe? Justine: Porque eu sei das coisas. Claire: Não estaria imaginando? Justine: Eu sei que estamos sozinhos. Claire: Não acho que você possa saber isso. (MELANCOLIA, 2011). Neste trecho, há três pontos singulares a serem percebidos, além da notória dissemelhança no que toca à reação de ambas ao mesmo episódio. A primeira delas manifesta a miserável esperança de Claire, de que, quiçá, possa haver vida em outro lugar. A perspectiva de que a vida seja apenas aqui e agora é um fardo – como se vê em seu comportamento – quase impossível de ser aturada. O problema adicional que podemos apreender desta fala deriva do que Camus formula sobre os posicionamentos de Chestov e Kierkegaard. Com relação a Chestov, lê-se que, “ao cabo de suas análises apaixonadas [...] ele [Chestov] não diz: ‘Eis o absurdo’, mas sim: ‘Eis Deus: é a ele que convém nos remetermos, mesmo se ele não corresponde a nenhuma das nossas categorias racionais” (CAMUS, 1942, p. 55, tradução nossa). No que se refere à Kierkegaard, Camus cita o “salto na fé” que o filósofo dinamarquês executa ao proclamar que “É na sua falha que o crente encontra seu triunfo” (CAMUS, 1942, p. 59, tradução nossa). Mediante tais alusões, podemos ver como elas estão diretamente unidas àquilo que transcorre com Claire, pois ela, bem como ambos os pensadores analisados pelo filósofo argelino, vê algo de metafísico ali onde racionalidade estanca ao topar com o absurdo. Em razão disso, ela tenta “saltar” duas vezes. A primeira tentativa se dá quando, face ao absurdo, Claire não declara “Eis Deus”9, como Chestov, mas pondera que “Então talvez haja vida em outro lugar.” A segunda investida vem após Justine anunciar: “Eu sei que estamos A palavra “Deus” é citada apenas quatro vezes ao longo de todo o filme. E não para se referir à entidade divina em si ou para pedir sua intervenção, mas unicamente como força de expressão. 9 | 115 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) sozinhos”. Então, tendo já frustrada sua primeira tentativa de “suicidarse filosoficamente”, para falarmos a linguagem de Camus, Claire tenta de novo. E, face a inflexibilidade da irmã melancólica, pondera: “Não acho que você possa saber isso” (MELANCOLIA, 2011). Aqui, Claire canaliza “sua inteligência para criar um mundo irreal onde o problema do absurdo possa ser ignorado” (BARRETO, 1971, p. 50). Defronte ao seu insucesso argumentativo, ela sente que seu triunfo decerto esteja nessa última ponderação. Verifica-se que ambos os esforços sofrem ataques da irmã e é possível que, na ocasião em que Claire imaginava poder respirar um pouco mais aliviada, Justine a tenha puxado de volta ao domínio dos sufocantes muros absurdos. Sem resposta, Claire permanece irreconciliada com o mundo e com os eventos que se lhe apresentam. Somado ao que foi dito acima, nos é permitido enfatizar que Claire é aquela que procura a esperança que Camus chama de “esquiva”. Escreve ele que a “Esperança de uma outra vida que é preciso ‘merecer’, ou truque daqueles que vivem não pela própria vida, mas por alguma grande ideia que a ultrapassa, sublima, lhe dá um sentido e a trai” (CAMUS, 1942, p. 23, tradução nossa). Relativamente ao consolo pretendido por Claire, é arriscado assegurar se, em seu íntimo, ela conservou ou não tal esperança. Ela gostaria desse consolo, mas é obstada pela irmã e, assim, segue sua saga irreconciliada, porque sujeitos como ela são os que, “sem concluir, se interrogam sempre” (CAMUS, 1942, p, 21, tradução nossa). É isso que se desempenha em Claire, porque apresenta-se de modo diferente da irmã, que se comporta de outro modo, pois indica mesmo desejar o fim da existência na Terra; e de John, seu marido, que efetivamente se mata. Se admitirmos que Claire não cessa suas interrogações, é impraticável procurar saber se ela morre com ou sem esperança numa vida posterior. Isso em virtude de ela não tecer nenhum comentário após as considerações de Justine, que se empenhou em frustrar sua reconciliação. Mas, suponhamos que Claire, em seu íntimo, tenha sido vencida pelas assertivas da irmã e morre sem fé, o que, de certo modo, a reconciliaria com a existência do aqui e do agora. Se assim ocorre, não é exagero dizer que Claire foi influenciada por Justine. Aqui, afora Justine ter testemunhado que “a vida na Terra é má” e, por conseguinte, reforçar sua imagem de 116 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio antítese do herói absurdo, é ela quem impede – ou almeja impedir – que sua irmã dê os saltos tratados anteriormente. O resultado inevitável dessa avaliação é conceber que Claire teria tido mais forças para empurrar a rocha novamente ao cume da montanha se, porventura, enxergasse lá em cima a outra vida que indicou desejar. Decerto, só assim, para ela, esse desafio absurdo pudesse valer a pena ser enfrentado. Isso não é o que vemos em tela quando assistimos as cenas finais do longa em questão. Nelas, Claire está ainda inteiramente apegada à vida. A respeito disso, como nos lembra Camus, “No apego de um homem à sua vida há algo mais forte que todas as misérias do mundo. O juízo do corpo tem o mesmo valor que o do espírito, e o copo recua diante do aniquilamento” (CAMUS, 1942, p. 22, tradução nossa). Não é por menos que Claire, agarrada ao filho – e ao instrumental da trágica ópera Tristan und Isolde, de Richard Wagner –, tenha corrido para todos os lados10 no intuito de encontrar um abrigo que a protegesse do fim iminente: é o corpo recuando diante do aniquilamento. Em um diálogo estabelecido mais ao final da película, na ocasião em que Claire sente que não há saída, propõe à irmã que, na hora da colisão, estejam todos juntos, talvez bebendo vinho. Nisso, Justine, ironicamente, pergunta se Claire não desejaria também cantar. E, assim, recomenda que cantem a Nona Sinfonia de Beethoven. A ironia aqui é bastante ácida, visto que a magnum opus do músico alemão tem, entre suas influências, o poema An die Freude (1785), de Schiller, que, além de motivar o quarto movimento da sinfonia, encerra uma visão de paz, esperança e irmandade entre os seres humanos. Se, como apontamos, Justine não representa o herói absurdo, Claire tampouco. Ela morre irreconciliada, e não de bom grado (CAMUS, 1942, p. 80) como sua irmã. De resto, existe, entre elas, outro contraste vital. De maneira oposta a Justine, Claire busca dar dois “saltos” na fé. Ela anseia por uma consolação, mas é tolhida por Justine. Acontece que o herói absurdo proposto por Camus não buscaria isso. Não procuraria realizar nenhum No campo de golfe sobre o qual corre Claire, com seu filho, vemos um buraco cuja bandeira exibe o número 19. No entanto, como se sabe, os buracos dos campos de golfe, conforme o padrão, somam 18 buracos. (Cf. CRUZ; ALVIM, 2016, p. 9-10). Este é um pormenor realmente intrigante, até porque John, durante a festa de casamento, salienta esse número quando conversa com Claire. E, algum tempo depois, ao conversar com Justine, ele pergunta à cunhada sobre o número de buracos que há no campo de golfe, ao que Justine responde corretamente, dizendo ter 18. No entanto, não será possível nos determos sobre essa estimulante particularidade. 10 | 117 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) “salto”, porque tal herói imediatamente catalogaria esse “salto” como aquilo que Camus, fundamentado em Kierkegaard, nomeou “suicídio filosófico”, ou “razão humilhada” (CAMUS, 1942, p. 70, tradução nossa). Isto posto, distintivamente do herói absurdo, Claire é uma irreconciliada apenas na medida em que não consegue se reconciliar com o mundo através da fé em outra vida. Afinal, a fé numa vida suprassensível legitimaria qualquer agrura mundana. Outro aspecto importante de ser registrado é que, durante o longametragem, acometida pelo desespero, Claire compra pílulas com as quais poderia cometer suicídio e dar cabo de sua aflição.11 Isso acontece porque, em que pese as manifestações positivas de seu marido John, Claire suspeita de que elas não sejam autênticas. Teme que ele esteja escondendo as verdadeiras informações quanto à possibilidade de colisão do planeta Melancolia com a Terra. Sendo assim, não seria problemático sustentar que Claire fica exatamente entre Justine e John. Não somente no que diz respeito à sua postura na trama, cuidando da irmã, que, por vezes, perturba o relacionamento do casal, mas também no tocante às suas reações na presença do que temos considerado por absurdo. Pode-se amparar essa concepção na consciência de que, se Justine é aquela que não crê que exista vida após a morte, Claire chega perto de acreditar nisso; e, se John decidese pelo suicídio, Claire chega perto de fazer o mesmo. É pelas discussões respeitantes à Claire que começamos a vislumbrar o problema do suicídio, com o qual a personagem se depara em diversos momentos. Mas o suicida mesmo, neste âmbito, é melhor representado pelo astrônomo John. Quando a referida personagem busca os comprimidos para seu possível suicídio, nos deparamos com o recorte de uma obra de arte: The Garden of Earthly Delights (1515), de Hieronymus Bosch. Nela, um detalhe chama nossa atenção: um homem que, em meio a tantas belezas naturais – ou “delícias terrenas” –, encontra-se em pose que denuncia sua melancolia, sua introspecção. Isso em muito se assemelha à conduta de Justine na primeira parte do filme, que, entre as belezas naturais que os arredores do castelo onde ela se encontra exibe, coloca-se em cena também de forma introspectiva. 11 118 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio JOHN, O SUICIDA Nosso terceiro personagem está, indubitavelmente, muito distante do herói absurdo – que suporta sua condição –, pois comete suicídio e põe fim ao dilema absurdo. Assim sendo, o problema desta última análise consiste em investigar o porquê desse ato. As atitudes de John, quando averiguadas sob o prisma de Le Mythe de Sisyphe, categorizam-no de duas maneiras: sendo astrônomo, ele é o homem da ciência e, ao mesmo tempo, aquele que confessa. Por isso, à medida que o Sísifo de Camus prefere empurrar a rocha, John é propositalmente esmagado por ela, pois mata-se. Atentemos para as causas. Por ser um homem da ciência, mais especificamente um astrônomo, não é de se estranhar que John estivesse, face a face com a possibilidade de colisão de Melancolia com a Terra, desejando prescrutar ainda mais o funcionamento dos planetas, das galáxias, enfim, do cosmos em sua totalidade. Vê-se tal empreendimento na segunda parte do filme, quando a proximidade do planeta Melancolia é mais detidamente trabalhada. Mas, ao ampararmo-nos no que nos é inspirado por Camus, somos conduzidos ao juízo de que, no fundo, há algo a mais: ali está oculta a busca por ultrapassar as fronteiras do mero conhecer. Além da compreensão por si mesma, há, no ser humano, uma “nostalgia da unidade” (CAMUS, 1942, p. 73, tradução nossa). Vimos, em John, que essa “nostalgia de unidade” foi mortalmente ferida e, em função disso, ele foi acometido por uma impressão avassaladora. Esse “apetite de absoluto [que] ilustra o movimento essencial do drama humano” (CAMUS, 1942, p. 34, tradução nossa) é o que a ciência ambiciona resolver. E é precisamente alicerçado nessa ciência, na qual John deposita toda sua confiança, e também esperança, que ele pretende remediar o drama de sua esposa Claire. Notemos o que registrou Camus: Compreendo que posso apreender os fenômenos e enumerálos a partir da ciência, nem por isso posso apreender o mundo. Quando eu tiver seguido todo o seu relevo com o dedo, não saberei muito mais sobre ele. E vocês querem que eu escolha entre uma descrição certa, mas que nada me ensina, e hipóteses que pretendem me ensinar, mas que são incertas (CAMUS, 1942, p. 38, tradução nossa). | 119 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Aqui o filósofo fala ao astrônomo, ou seja, a afirmação de Camus pode ser aplicada a John. Isso porque, em certa altura da trama, John, em diálogo com Claire, que demonstra desespero frente à possibilidade do fim do mundo, arremata: “Querida, você deve confiar em um cientista” (MELANCOLIA, 2011). Nesta ocasião, John exibe uma espécie de otimismo lógico. E, assim, o marido procura convencer a esposa de suas hipóteses, as quais considera como certas. Mais tarde, quando John propõe um brinde à vida, Claire se assusta e pergunta: “À vida? O que quer dizer com ‘à vida’? Você disse que ficaria tudo bem” (MELANCOLIA, 2011). E John revela: “... estou dizendo que quando se lida com a ciência e cálculos dessa magnitude, deve-se contar com uma margem de erro.” Apesar de todo o estudo e minúcias do conhecimento, há sempre algo que não pode ser apreendido. É isso que John aparenta testemunhar com sua fala, porquanto, nessa parte, identificamos que seu “salto”, impulsionado pela ciência, acabou por leválo a aterrissar num buraco que desvendou seu engano. Mesmo assim, John procura confortar Claire mostrando-lhe o selo com o qual marcou o mundo (CAMUS, 1942, p. 34): com sua perícia em astronomia. Ele garante que Melancolia está “se afastando de nós a mais de 96 mil km/h” (MELANCOLIA, 2011). Este selo, não obstante, será impiedosamente arrancado quando o planeta Melancolia começar a contrariar todas as suas previsões e seguir imperturbável na direção da Terra. Verifica-se, desta forma, que, na medida em que sua compreensão do mundo pôde ser reduzida a termos científicos, John aparentava serenidade. Possivelmente porque, como aponta Camus, “Um mundo que se pode explicar mesmo com parcas razões é um mundo familiar” (CAMUS, 1942, p. 20, tradução nossa). E isso aplaca os ânimos excitados. Sua esposa chega a mencionar que John estava muito tranquilo com relação àquilo tudo. Todavia, chega o tempo em que ele detecta que suas previsões foram refutadas e seus estudos desdenhosamente ignorados pela cega e inflexível indiferença do universo. Eis a origem do seu tormento. O divórcio, até então resolvido, surge inexorável. Se antes John acreditava poder explicar o mundo, agora, com o planeta Melancolia se avizinhando, seu universo torna-se “privado de ilusões” (CAMUS, 1942, 120 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio p. 20, tradução nossa). Não há mais exílio. E John, por sua profissão, seu telescópio, suas pesquisas, personifica rigorosamente o confronto da racionalidade e da ciência com a irredutibilidade do mundo – lembremos dos instrumentos que a jovem da gravura de Dürer tem à sua disposição e que, presumivelmente, não foram suficientes para antecipar a vinda do astro que, a princípio, vem em direção da Terra. John, imerso em um contexto de iminente catástrofe total, apocalíptico – vale lembrar que, na Bíblia, é o livro de João, ou John, em inglês, que anuncia o Apocalipse –, e atormentado como aparenta estar a jovem de Dürer, reflete a debilidade da ciência frente a implacável apatia do universo, que, em pouco tempo, reduzirá suas conclusões científicas a poeira estelar. Sua fortaleza, outrora tida como intransponível, revelou-se quebradiça e expôs a absurdidade representada pelo “divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário...” (CAMUS, 1942, p. 20, tradução nossa). Imediatamente, o homem da ciência vê-se impotente, porque a carga que o absurdo exerceu sobre sua franzina musculatura científica mostrou-se demasiadamente onerosa. Em oposição completa ao herói absurdo, John representa seu fracasso, e põe termo a sua vida, uma vez que, a princípio, “o suicídio é uma solução para o absurdo” (CAMUS, 1942, p. 21). Ou, como lemos em L’homme revolté, “O suicídio significaria o fim dessa confrontação e o raciocínio absurdo considera que apenas poderia subscrevê-lo negando suas próprias premissas” (CAMUS, 1951, p. 18, tradução nossa). Mas, eventualmente, há outra questão. Como aponta Onfray, assim, o sujeito pode convencer-se de que o absurdo chega a seu termo, ainda que, paradoxalmente, ao cometer suicídio, ao contrário de anular o absurdo da vida, ele “o afirma, aumenta sua força e seu poder”, e também porque “O suicídio é tão absurdo quanto o absurdo que ele afirma negar” (ONFRAY, 2012, p. 272). Com isso, o suicida encerra o absurdo para si, e apenas para si. Chegamos à segunda classificação desse personagem: John é o que confessa. Mas, por que o suicídio é uma confissão? Ora, porque “Matar-se, de certo modo, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos” (CAMUS, 1942, p. 20, tradução nossa). John foi superado pela vida e atesta não ser possível entendê| 121 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) la. É legítimo assegurar que também foi superado pela “irredutibilidade desse mundo a um princípio racional e razoável” (CAMUS, 1942, p. 75, tradução nossa). Desta forma, o astrônomo perde sua lucidez exatamente quando se exige que o herói absurdo a preserve. Uma indagação pode surgir: por que John não é, como sua esposa Claire, um irreconciliado? Porque, se o irreconciliado é o mesmo que, “sem concluir, se interroga sempre”, não é a situação de John. Ele conclui. E, após sua conclusão, opta pelo suicídio. Mas podemos nos perguntar: John não é também uma antítese do herói absurdo, como verificamos em Justine? E a questão é legítima. Ocorre que John não pode ser apontado como a antítese do herói absurdo porque ele, assim como o herói absurdo, não quer a morte. Nisso, ambos concordam. Diferente de Justine, que, se não se suicida, aguarda apática pela colisão do planeta Melancolia com a Terra, John desejava viver, mas o desejava em um mundo que pudesse ser racionalmente esquadrinhado, cientificamente deslindado, algo que o herói absurdo não busca. Sua razão de ser, de viver, era a ciência. Sobre tal alicerce, John dispunha de satisfatórias razões para permanecer no mundo, pois este se lhe afigurava como familiar. E quando a ciência se mostrou imprecisa, decidiu pelo fim. Invalidar a ciência, que, para John, é o que justifica sua existência, seria análogo a remover, do mundo adorado pelo herói absurdo, ou seja, Sísifo, o mar e o calor do sol (CAMUS, 1942, p. 164), que justificam sua vida. Justine, no que lhe concerne, não tinha nenhuma razão para viver; não adorava a ciência – mesmo que ela pudesse tudo prever e/ou controlar – e tampouco adorava o mar e o calor do sol. Em suma, não havia, para Justine, nada que a conectasse à vida, diferente de John, devido à ciência, ou de Sísifo, com a beleza deste mundo. Se John detivesse as características do herói, ao contrário de cometer suicídio, leria a poesia por detrás do espetáculo apocalíptico prestes a irromper, como o faria o herói absurdo. Na letra de Camus: “A conclusão última do raciocínio absurdo é, com efeito, a rejeição do suicídio e a manutenção dessa confrontação desesperada entre a interrogação humana e o silêncio do mundo” (CAMUS, 1951, p. 18, tradução nossa). Além do que, ao contrário do herói absurdo, John não esgotou tudo (CAMUS, 1942, p. 80) nem viveu “em toda intensidade a vida que [lhe] estava reservada” 122 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio (BARRETO, 1971, p. 53), como o faz o herói absurdo, que não busca na ciência a explicação do mundo, já que sabe da sua imperícia. Destarte, John, que antes brindou à vida, em vez de admirar a “visão espetacular” (MELANCOLIA, 2011), que ele próprio comunicou ao avistar o planeta Melancolia, preferiu o suicídio em um estábulo. À GUISA DE CONCLUSÃO Sustidos nas reflexões acima propostas, convém-nos assegurar que a leitura do filme Melancolia, empreendida sob uma leitura camusiana, responde à pergunta colocada inicialmente: podemos ver o herói absurdo encarnado em algum dos personagens? A resposta, como fizemos notar, é negativa. O herói absurdo não nos é apresentado nesse longa-metragem de Lars von Trier. A razão disso é que nenhum dos três sujeitos discutidos suporta a tensão procedente do absurdo e, cada um à sua maneira, responde a ele desfavoravelmente, o que não corresponde ao herói absurdo, uma vez que este último, perante o fenômeno em questão, não o rechaça, mas o afirma. É seguro atestar que, se o herói absurdo está ausente, o absurdo, por sua vez, está presente todo o tempo. Esse elemento figura como um personagem oculto, como uma fantasmagoria por detrás da trama que dirige todos esses conflitos. É ele que guia conversas e embates. Após termos nos detido sobre Justine, observamos que ela é a primeira que pretende anular o divórcio que há entre sua pessoa e o mundo. Esse esforço é representado na cena em que, nua, ela parece intentar uma fusão à Terra de modo a buscar invalidar essa separação. Ademais, para levantar outra hipótese, arriscamos dizer que Justine é também quase uma suicida. Por isso, vale a reflexão: dado seu comportamento, sua concepção da Terra como má etc., teria ela cometido suicídio caso a aproximação do planeta Melancolia não representasse o fim? É provável. Tudo nos leva a crer que ela não põe termo à própria vida somente porque sabe que já está condenada. Talvez seja exatamente por isso que Justine, sendo notoriamente a mais melancólica, é a única dos três que não se aproxima pragmaticamente do suicídio. Ela é a que melhor lida com o fim, possivelmente por desejá-lo. | 123 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Disso decorre que, longe de retratar o herói absurdo, encarna sua antítese, porque anseia pelo fim daquilo que o primeiro ratifica: a vida na Terra, a despeito de todas as angústias que ela implica. Lars von Trier confirma nossa hipótese: “Ela [Justine] anseia por naufrágios e morte súbita” (TRIER, 2011, grifo nosso, tradução nossa). Claire é a personagem que se empenha em neutralizar o divórcio entre ela e o mundo procurando dar não apenas um, mas dois saltos metafísicos. Ela anseia, quando busca acalentar a ideia de uma vida após a morte, unir aquilo que está separado. Isto é, ela e seu universo. Claire não tolera o desamparo. É a personagem que, sucumbindo à desolação resultante do sentimento absurdo, também flerta com o suicídio, mas, irreconciliada que é, termina seus dias a indagar-se (CAMUS, 1942, p. 21). Vimos, assim, que Claire não se assemelha ao herói absurdo devido a duas questões: ela tenta dar dois saltos metafísicos que o herói absurdo tomaria por suicídio filosófico; e, por não resistir à aflição que o absurdo implica, Claire cogita o suicídio, o que contradiz em essência a conduta do herói absurdo, que ama a vida, malgrado carência de sentido. Mas, acrescentemos uma terceira: o sujeito absurdo é aquele que, sem contrapor-se à realidade do absurdo, “nada faz pelo eterno”, pois “prefere sua coragem e sua razão” (CAMUS, 1942, p. 95, tradução nossa), ao contrário de Claire, que prefere o eterno em detrimento de sua coragem e sua razão. John, o terceiro personagem, amargando o divórcio entre ele e seu mundo, esforça-se em aplacá-lo por intermédio da ciência, de conceitos e previsões. É nisso que o astrônomo se apoia, como numa busca para suprimir essa divisão insustentável. A ciência era o que lhe dava a sensação de familiaridade. Mas, quando suas hipóteses se revelaram incorretas, John confessa que foi superado pela vida, confessa que não a entende, e decide suicidar-se. Eis as características que mostram John como alguém profundamente contrastante com o herói absurdo, porque não anui à “irredutibilidade desse mundo a um princípio racional e razoável” (CAMUS, 1942, p. 75, tradução nossa), o que o herói absurdo assimila como uma tensão necessária; e, por isso, opta pelo suicídio, o que demonstra sua predileção ao nada a um mundo indiferente aos seus esforços racionais e científicos. 124 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Antes de concluir, é válido pontuar brevemente a existência de um quarto personagem: o pequeno Leo, filho de John e Claire. Não nos detivemos sobre a presença do menino porque sua atuação não demonstra qualquer inquietação no que tange à aproximação de Melancolia. Sabemos que Leo está invadido por uma mentalidade lúdica com relação à existência – isso é manifesto, para darmos um exemplo, quando ele, ao lado de sua tia Justine, carinhosamente apelidada “Steelbreaker”, constrói uma caverna “mágica” com galhos de árvores com a finalidade de protegêlos de Melancolia. O absurdo, para ele, não é uma realidade, haja vista a inconsciência momentânea de sua frágil condição. Por esse motivo, nos arriscamos a dizer que, para Leo, não há absurdo. E isso difere cabalmente de seus próximos, que, ao meditarem sobre o fim, foram atingidos por um tormento – “começar a pensar é começar a ser sabotado” (CAMUS, 1942, p. 19). Vimos, dessa maneira, no que esse tormento culminou para todos os que pensaram de forma mais complexa. Diferentemente do herói absurdo, em nenhuma oportunidade vemos nenhum desses três personagens serem mais fortes que a rocha (CAMUS, 1942, p. 165). Partindo de uma analogia direta ao escrito de Camus, Justine é a que prefere ficar na planície e deixar que a rocha naturalmente a esmague; Claire é a que só aceitaria empurrar a rocha até o cume na hipótese de que lá houvesse um paraíso suprassensível; e John, por seu turno, é aquele que faz questão de soltar a rocha e posicionar-se embaixo dela a fim de trucidar a si mesmo. Nota-se, por fim, que, além de contemplar o absurdo, presença constante no filme, os três são, sobretudo, vítimas dele. Extremamente diferentes do Sísifo, nenhum acolhe a existência ou transforma em regra de vida aquilo que antes era convite para a morte (CAMUS, 1942, p. 90). Se, no comentário de Barreto, “Desde o momento em que [Sísifo] constata o absurdo da vida pode começar a ser feliz” (1971, p. 65), em Melancolia vemos o contrário. Ninguém ali é superior à sua pena ou acredita que “A própria luta para chegar ao cume é suficiente para encher o coração homem” (CAMUS, 1942, p. 168, tradução nossa). Eles queriam demais. Queriam mais do que a irredutibilidade do mundo nos convida a apreciar. Logo, é impossível imaginá-los felizes. | 125 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) REFERÊNCIAS ARIELO, Flávia. O Mal em Anticristo de Lars von Trier: considerações sobre o mal, a teodiceia e o gnosticismo. 2013. 143 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2013. BARRETO, Vicente. Camus: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1971. CAMUS, Albert. Le Mythe de Sisyphe: essai sur l’absurde. Paris: Gallimard, 1942. CAMUS, Albert. L’homme revolté. Paris: Gallimard, 1951. CRUZ, Nina Velasco; ALVIM, Luíza Beatriz A. M. O uso de música e de imagens com movimentos mínimos em Melancolia. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Minas Gerais, v. 10, n. 2, p. 1-20, ago. 2016. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21283/11571. Acesso em: 20 mar. 2021. 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Acesso: 18 jan. 2021. | 127 128 | A (des)montagem do sentido: o cinema entre arte e técnica Gabriel DEBATIN 1 No interior das discussões sobre arte em geral, o cinema ocupa um lugar privilegiado. Talvez nunca, em toda a história da humanidade, um gênero de manifestação artística tenha se tornado tão popular e, certamente em função disso, tão versada da parte da crítica – não só a dita especializada, mas de toda a sua audiência, daqueles que de diferentes formas se ocupam do e com o cinema. Tal popularização da recepção do cinema é inegavelmente muito complexa em suas razões, e as diferentes correntes de pensamento poderiam atribuir a ela as mais diferentes causas e razões. A indústria cultural adorniana, por exemplo, parece fornecer explicações bastante razoáveis, sobretudo do ponto de vista sociológico e econômico, às razões de ser que trouxeram o cinema ao quotidiano da humanidade. Mas esse âmbito de abordagens não nos direciona ao cerne da relação do cinema com a nossa época, porque o fundamento da arte cinematográfica, assim como o das outras artes, não se encontra facilmente em suas causas materiais, pelo que para orientar-se adequadamente à 1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil. E-mail: gabrieldebatin@gmail.com https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p129-156 | 129 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) questão é preciso situar-se para além até mesmo de suas causas formais: é preciso perguntar-se pela sua essência. A pergunta pela essência do cinema, se quiser nos responder sobre sua relação com nosso momento histórico, deve ser guiada simplesmente pelo fenômeno do cinema, ou seja, pelo modo como o cinema se manifesta como tal, suspendendo-se tudo aquilo que lhe é externo, ou mais formalmente, aquilo que não se dá por si só, não sendo próprio ao seu modo de acontecer. Mover-nos-emos, então, pelo ambiente fenomenológico, inquerindo, através de como o cinema é, pelo “é” do cinema. A fenomenologia, como método filosófico de investigação, sempre entende o fenômeno sobre o qual cada investigação se debruça como um evento de mostração de sentido, como uma manifestação ontológica de onde provém qualquer possibilidade de entendimento, compreensão e interpretação. Aqui nos ateremos a uma abordagem fenomenológica do cinema, que procurará perguntar-se pelo fenômeno que o cinema constitui, e, portanto, do sentido que dele mesmo emana, abstraindo pré-julgamentos ou concepções que já tenhamos desenvolvido sobre ele. Poder-se-ia, é claro, perguntar-se fenomenológico-hermeneuticamente pelo sentido mostrado por um filme em especial. Mas o cinema, como gênero artístico integral – por mais que seja internamente fragmentário – é ele mesmo um fenômeno, um evento que veio a ser em nossa época – entendida aqui em sentido amplo, desde a inauguração da Pós-Modernidade (assumindo a divisão historiográfica como aquela fornecida por Gianni Vattimo, Richard Rorty ou Lyotard), até os tempos hodiernos, cada vez mais fragmentados, incertos, sem fundamentos em todos os âmbitos da experiência humana, quer individual, quer social. E o que sabemos do cinema de antemão, antes de qualquer formulação mais complexa? Sabemos, e disso não temos a menor pretensão de duvidar, que o cinema é uma arte. E também sabemos que só pôde ter lugar devido ao desenvolvimento técnico da humanidade, que pôde gerar as condições tecnológicas para reproduzir movimento. Originalmente é daí que lhe vem o nome: κίνημα é o termo grego para “movimento”. Foi tornado possível inicialmente pela invenção do cinematógrafo, literalmente um “gravador de movimento”, que fornece material para a montagem – pondo de modo 130 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio muito simples, aquele processo em que as imagens em movimento (e, por derivação, também em repouso) são organizadas, concatenadas, editadas, formando um filme. Assim, de saída iniciamos a discussão que aqui se apresenta considerando este fato: de que o cinema é (uma) arte própria da PósModernidade, o que equivale a chamar de Contemporaneidade, a nossa época, que é assinalada por um crescente domínio da técnica. Para além do fato de o cinema ter sido tornado materialmente possível com o advento da Idade Contemporânea e seu “progresso tecnológico”, é sobremaneira importante sua afinidade à nossa época, por articular-se visceralmente com nosso momento histórico, manifestando e tornando evidente o próprio modo como a humanidade acontece: desde os maiores dilemas da humanidade e das suas organizações sociais às questões existenciais mais íntimas e fundamentais, mas também ao outro polo, àquilo que é supérfluo, frívolo, duvidoso e enganoso (como a própria Pós-Modernidade é em muitos aspectos): as questões que “fazem sentido” para nossa época, assinalada justamente pela falta de univocidade e pelo suspense das certezas, sempre se encontram narradas, das mais diferentes formas, perspectivas e abordagens, nos filmes. Quer nos dramas, nas tragédias e nas comédias, nas ficções hollywoodianas e nas obras cult, o cinema põe o sentido em questão: uma primeira demonstração disso está no fato de que um filme, qualquer filme, é sempre um todo de sentido, ainda que incompleto, suspenso ou oculto; até mesmo o cinema nonsense dialeticamente se enquadra aí. Se o cinema corresponde tão bem às questões de nossa época, também corresponderá à questão mais importante de nosso tempo: a questão da técnica – e com ela, também a da arte. Estabelecidos esses termos preliminares da discussão que aqui se presenta, o referencial teórico que naturalmente se conduz neste ambiente via fenomenologia é o heideggeriano. Arte e técnica foram questões cruciais para Heidegger ao longo da maior parte, quiçá totalidade, de sua produção filosófica. Ateve-se longamente tanto à questão da técnica como modode-ser da Contemporaneidade quanto sobre a arte manifestada através das mais variadas modalidades artísticas – contudo, sempre dando preferência para as clássicas, deixando muito evidente sua predileção pela poesia. | 131 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Todavia, o cinema como tal sempre foi evitado por Heidegger, que não se ateve à sua natureza e às suas particularidades – com efeito, Heidegger nunca escreveu propriamente sobre cinema. Nós nos deteremos, então, não apenas numa revisitação de conceitos próprios da filosofia heideggeriana, mas nos direcionaremos ao seu limite, na tentativa de explorar pontos que ela não alcançou. Por conta disso, o presente texto não servirá ao leitor como revisão de literatura sobre o tema, salvo introduções necessárias aos conceitos pertinentes à questão da técnica e da arte em Heidegger. Portanto, o fenômeno em questão aqui, o cinema, não será tratado com relevante respaldo bibliográfico, mas se procurará pensá-lo de modo mais independente e provisório – daí a natureza mais ensaística do presente texto. Entretanto, em vistas de que o presente ensaio possua um todo de sentido, não poderíamos pular etapas e prosseguir sem tornar claras, no interior da corrente de pensamento em que nos movemos, as duas linhas em cuja intersecção se encontra o cinema, a arte e a técnica. Procederemos então a uma brevíssima, porém necessária à unidade textual, introdução dos temas no horizonte do pensamento heideggeriano para, então, podermos nos encontrar em algumas lacunas (intencionais?) que Heidegger deixou a respeito do cinema em seu entrave entre arte e técnica. No entanto, na tarefa que nos compete no presente trabalho, dado seus muitos limites, inclusive de dimensões, não é possível desdobrar como se gostaria as muitas reflexões filosóficas sobre o cinema que são aqui evocadas. Consciente de sua condição, o presente texto pretende apenas dar um primeiro passo em direção à questão do cinema. HEIDEGGER E A TÉCNICA Na conferência A questão da técnica, proferida em 1953, mas publicada em 1959, Heidegger investiga a essência da técnica moderna, vendo nela o modo-de-ser que perfaz o período contemporâneo. O que mais importa no tocante aos objetivos do presente ensaio consiste precisamente nisso: que a técnica é o modo como o ser mesmo, ontologicamente, se dá na época atual. 132 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Todos os âmbitos da experiência humana, portanto, são, em diferentes níveis, técnicos, afetados pela técnica. Poderíamos, então, no sentido que aqui se vai aprofundar, dizer que o modo de ser da contemporaneidade é técnico. Todavia, a técnica não se deixa entender apenas em seus efeitos práticos imediatamente sensíveis sob a forma do progresso científico e tecnológico, em sua instrumentalidade. Experimentada por todos hodiernamente em seus resultados tecnológicos, os quais servem o ser humano nas mais variadas funções, processos e produções, a técnica não pode, é claro, deixar de ser qualificada em sua representação instrumental, a tecnologia (HEIDEGGER, 2007, p. 376-377). A técnica, entendida como instrumento, nomeadamente a tecnologia, não pode ser rejeitada como uma adequada expressão da técnica, mas isso ainda não corresponde necessariamente à determinação mais própria, verdadeira, de sua essência. Enquanto “meio para atingir fins”, a técnica moderna se firma legitimamente na instrumentalidade, quer sejam metas concernentes à própria evolução progressiva da técnica, quer ao seu uso por parte do ser humano. Porém, essa objetividade solipsista impede que a essência da técnica venha a lume. Com efeito, o importante para a filosofia de Heidegger não é traçar uma investigação objetiva sobre a técnica – processo já em si técnico, enquanto metafisicamente voltado à objetividade –, senão procurar o modo de abertura do ser no mundo da técnica moderna. Logo, afirma que “a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico” (HEIDEGGER, 2007, p. 376, grifo nosso; KROKER, 2004, p. 45). Heidegger procura, então, retornar às origens da técnica, pensando sua essência em contraste à antiga técnica dos gregos. Etimologicamente, o termo “técnica” advém do grego τεχνικός, do qual deriva o vocábulo τέχνη, possuindo originalmente o sentido de arte, habilidade, destreza (LIDDEL; SCOTT, 1869, p. 1624). Contudo, de acordo com a filologia heideggeriana, possui o mesmo significado de ἐπιστήμη, que significa o conhecer sob o sentido de zelar por algo, compreendendo-o. Τέχνη, então, traduz-se no conhecer da coisa, mais especificamente no aspecto de como produzi-la, e assim relativo à ποίησις – produção. Contudo, τέχνη não é produção, mas sim um saber acerca da produção, de como produzir. Τέχνη, adverte | 133 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Heidegger, também não é um termo utilizado somente para o saber e o fazer manual, próprio do artesão, mas também compete às artes superiores e belas artes. No ato do conhecer-produzir se dá uma explicação das causas do ente, e, enquanto tal, o ato é também um desabrigar – Entbergen –, um des-cobrir, um trazer ao mundo. A τέχνη é, por conseguinte, originalmente um ἀληθεύειν – desvelar, um modo de salvaguardar a verdade. Aquele que está prestes a efetuar um ato técnico no sentido grego, desvelará à sua frente algo que não se produz sozinho, porém capaz de vir a aparecer e ser notado, manifestar-se. A matéria do ente a ser iminentemente produzido é des-coberta em direção à coisa acabada e determinada, especificação que cabe para a técnica manual dos gregos, mas não propriamente para a moderna técnica das máquinas (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Se a essência da técnica moderna não se desvela em sua produção – e, logo, também a pergunta pela essência do cinema não se resolve no uso maquinal do cinematógrafo ou de quaisquer tecnologias posteriores que tenham o mesmo fim –, precisa habitar uma região distinta e mais distante em relação àquela alcançável através de um simples olhar superficial sobre sua questão. O caminho para atingir a compreensão de sua essência depende, portanto, de sua consideração sob o ponto de vista de sua pertença à tradição. Dessarte, sendo plenamente consonante com o modus operandi da metafísica – especialmente pelo culminar do processo de esquecimento do ser –, a técnica moderna deve ser concebida em sua relação direta e singular com o ente e, por decorrência, com seu impacto na omnitude ôntica. Segundo Heidegger (2007, p. 381), O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra em um levar à frente no sentido da ποίησις. O desabrigar imperante na técnica moderna é um desafiar (Herausfordern) que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. Mas o mesmo não vale para os antigos moinhos de vento? Não. Suas hélices que giram, na verdade, pelo vento, permanecem imediatamente familiarizadas ao seu soprar. O moinho de vento, entretanto, não retira a energia da corrente de ar para armazená-la. 134 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio A técnica se firma sobretudo como um desafiar – Herausfordern, também traduzível por provocação – da natureza. O ponto auge do conceito de técnica em Heidegger é precisamente sua provocação violenta à natureza, entendida enquanto totalidade do ente. A provocação técnica constitui, para ele, uma exigência dominadora e exploradora da natureza através dos seus meios de desabrigar. Porém, se a essência da técnica não é algo técnico, o impacto de sua provocação realizada na natureza também não o é. A natureza, enquanto φύσις, aquela que vem à tona como uma vigência auto-instauradora de tudo o que existe, a totalidade do ente, aquela que cresce-e-vige-a-partir-de-si-mesma (HEIDEGGER, 2006a, p. 32), passa a ser essencialmente modificada. Em vista de sua utilidade, a natureza é posta a serviço de sua exploração como fonte de energia, não tendo mais a autonomia de crescer-e-viger-a-partir-de-si-mesma. Sua própria subsistência é controlada e condicionada, dependente da vontade expressa na e através da técnica. Talvez a mais importante característica da técnica, conforme sua conceituação por Heidegger, resida no fato de que o homem da era da técnica se relaciona com a natureza “como um depósito caseiro de reservas de energia” (HEIDEGGER, 2007, p. 386), a qual ilimitadamente é explorada, desde sua amplidão macrocósmica até a ínfima partição subatômica. A natureza, dessa forma requisitada como fundo de energia, é posta a serviço da técnica. Conforme o modo-de-ser da antiga técnica manual, o camponês arava o solo, semeava a semente e cultivava seu alimento; mas agora o campo agrícola é posto como uma indústria de alimentação motorizada. A técnica põe – stellt – a natureza para si, um pôr que sempre tende para um extrair e um explorar. O desabrigar que domina a técnica moderna tem o caráter do pôr no sentido do desafio [Herausfordern, provocação]. Este acontece pelo fato de a energia oculta na natureza ser explorada, do explorado ser transformado, do transformado ser armazenado, do armazenado ser novamente distribuído, e do distribuído renovadamente ser comutado. Explorar, transformar, armazenar e distribuir são modos de desabrigar (HEIDEGGER, 2007, p. 382). | 135 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) A natureza posta como fonte de energia permanentemente disponível é des-coberta pela exploração técnica daí decorrente. Uma vez tendo-se mostrado como possuidora de energia em si contida, disponível à provocação da técnica para ser explorada, a natureza não se torna absolutamente vazia, sem energia, e por isso nunca é abandonada pela vontade da técnica. Ela é tomada como um fundo de reserva ilimitado, o qual após ter fornecido energia se recupera e se recoloca no papel de fornecedor. O modo-de-ser da essência da técnica, dessa forma compreendido, é totalmente afim à ideia de reciclagem, tão defendida nos círculos de debates de pensamento ecológico (CASANOVA, 2006, p. 155). A questão heideggeriana, entretanto, não atribui à técnica uma correspondência à reciclagem somente no que compete à reutilização de bens de consumo, mas à natureza integral, à totalidade do ente continuamente abusada. Assim, o distribuído passa a ser renovadamente comutado, não se encerrando em um processo único e finito, pois aquilo que já foi explorado é novamente requisitado, renovando-se a cada vez o processo de exploração da natureza. A demanda provocativa da técnica tenta incessantemente saciar-se, seja qual for sua necessidade material – alimento (vegetal e animal), bens de consumo para a sociedade, combustível (energia propriamente dita), material bélico, e inclusive o ser humano consta na lista. Se a natureza, como totalidade do ente, tem sua essência alterada pela demanda provocativa da técnica, também o ser humano, como partícipe da totalidade – embora sendo o ente sui generis que compreende ser – passa a ser modificado. Fato é que o império da técnica não conhece limites, nem os antropológicos, nem os cosmológicos – seja a nível planetário ou subatômico. A requisição da técnica, assim, atinge o ser humano, arrastando-o para longe de sua essência, desumanizando-o. Dentre as causas da crise do humanismo instaurada há décadas, talvez séculos, na cultura contemporânea, o filósofo italiano Gianni Vattimo assinala – aqui em boa consonância com o conceito heideggeriano – a técnica como uma das principais e mais profundas, sobretudo por mostrar o enraizamento da crise em suas bases ontológicas, como prefigurado por Heidegger. 136 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Ora, è proprio in connessione con la tecnica che, per lo più, si parla oggi di crisi dell’umanismo. La tecnica appare come la causa di un generale processo di disumanizzazione, che comprende sia l’oscurarsi degli ideali umanistici di cultura a favore di una formazione dell’uomo centrata sulle scienze e sulle abilità produttive razionalmente dirette, sia, sul piano dell’organizzazione sociale e politica (VATTIMO, 1998, p. 41-42).2 Nesse contexto da técnica desumanizante, é sobremaneira ressaltado por Vattimo o conceito heideggeriano de Ge-stell – im-posição.3 A técnica moderna, em seus efeitos ontológicos sobre a totalidade do ente, põe a natureza em vista de sua utilidade de exploração. O pôr evidencia o gesto técnico de requisição da natureza: a totalidade do ente é tão requisitada como fundo de reserva que se presenta como posta, colocada, para a requisição. A definição de Ge-stell é clara em Heidegger: “significa a reunião daquele pôr que o homem põe, isto é, desafia [provoca] para desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência [Bestand, fundo de reserva]” (HEIDEGGER, 2007, p. 282, colchetes nossos). A totalidade do ente, a natureza im-posta como fundo de reserva, 2 Ora, é propriamente em conexão com a técnica que, no mais das vezes, fala-se hoje de crise do humanismo. A técnica aparece como a causa de um processo geral de desumanização, que compreende seja o obscurecer-se dos ideais humanísticos da cultura a favor de uma formação do homem centrada nas ciências e nas habilidades produtivas racionalmente diretas, seja no plano da organização social e política (Tradução nossa). 3 O termo Ge-stell deriva do verbo germânico stellen, que significa pôr, colocar. Assim, a tradução literal de Ge-stell é consonante com “aquilo que foi posto”, embora o uso gramatical da estrutura verbal que Heidegger procura enfatizar com o seu uso é o caráter pretérito da colocação técnica. A tradução de Ge-stell para as línguas latinas é, contudo, bastante controversa e não encontra um porto comum. A tradução de Marco Aurélio Werle de A questão da técnica, utilizada neste ensaio, prefere o termo armação, assim como também o faz Marco Antônio Casanova e Zeljko Loparic (Cf. HEIDEGGER, 2007, passim; Cf. também CASANOVA, 2006, p. 156-157; LOPARIC, 1996, passim). Ernildo Stein se decide por seguir a corrente de tradução francesa, a qual opta pelo termo arraisonnement – arrazoamento (Cf. HEIDEGGER, 2006b, p. 47, nota de rodapé; Cf também TROTIGNON, 1965, p. 103). Manuel de Castro e Idalina Azevedo, na tradução de A origem da obra de arte, bem como os tradutores dos Ensaios e Conferências, preferem se valer da alternativa do termo com-posição (Cf. HEIDEGGER, 2010, p. 163; HEIDEGGER, 2012a, p. 23). Há ainda aqueles que, como André Duarte, preferem a utilização do termo dispositivo para traduzir Ge-stell, dado que o termo, assim como composição, conserva em sua estrutura o pôr, consonante ao stellen original (Cf. DUARTE, 2010, p. 142-143, nota de rodapé n. 38). Todavia, preferimos nos valer aqui da opção de Vattimo para a tradução de Ge-stell, a saber, im-posizione – im-posição –, dado que, além de o termo deixar explícito o caráter de pôr do conceito, distingue-se com um sentido de violência em relação a termos como armação, arrazoamento, com-posição e dispositivo, que parecem ser mais análogos à constituição da montagem cinematográfica, como será tratado adiante.. Im-posição, por outro lado, em toda a sua carga semântica, é plenamente consonante com a definição heideggeriana do termo, enfatizando o caráter de requisição da Terra e o seu impelir por parte da técnica, tornando ainda explícito o ato de pôr a natureza, subjugando-a à sua vontade (HEIDEGGER, 2007, p. 385). (Cf. VATTIMO, 1998, p. 179). | 137 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) é des-coberta pela provocação técnica de modo que apenas enquanto inserida nessa relação se mostra a totalidade do ente no período pósmoderno, caracterizando-o como era da técnica. Por mais que se procure rejeitá-la juntamente com suas consequências, não há como escapar de seu império histórico-destinalmente constituído, ao qual a humanidade, por causa dele em crise, pertence. Essa imposição exploradora acontece também e propriamente no ser humano, pelo que este se encontra no âmago essencial da Ge-stell, na dualidade de se instituir ao mesmo tempo como seu agente explorador e alvo de exploração. A figura humana passa a ser um meio de expressão da im-posição técnica, de forma que seu destino na era do ápice da metafísica é assumir seu papel de requisitor-provocador da natureza como fundo de reserva (CASANOVA, 2006, p. 157; HEIDEGGER, 2007, p. 387). Enquanto parte integrante da natureza, um ente em meio à totalidade, também o ser humano é explorado tecnicamente, inclusive quando considerado no âmbito da ciência anatômico-biológica, em suas projeções sociais, culturais, políticas e antropológicas: são campos em que o ser humano é posto como objeto de “estudo”, não como um fenômeno a ser refletido, meditado, pensado (conforme o sentido do termo no vocabulário heideggeriano), mas como fonte de informação, como algo a ser classificado, rotulado, categorizado – tudo aquilo que é necessário para o exercício do domínio. As ramificações do existir na era da técnica procuram pôr o homem não como objeto de compreensão, mas como fundo de reserva a ser explorado, tanto de conhecimento a ser extraído, quanto de energia a ser empregada. Deve-se citar nesse contexto o ser humano tal como pensado por Ernest Jünger, sob o modo-de-ser da figura do trabalhador, que converte vida em energia, modo como a técnica usa o ser humano para seus interesses – os quais, em Jünger, culminam numa mobilização total da sociedade em vistas de sua própria destruição através da guerra (JÜNGER, 1990, 2002). A determinação metafísica do homem como sujeito em relação ao ente compreendido na qualidade de objeto é ultrapassada em sua culminância técnica. Não em uma ultrapassagem do tipo que passa a lhe conferir uma determinação essencialmente diferente, mas como o atingir 138 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio o ápice de sua própria essência, com o sentido de desenvolvimento tão caro à própria técnica. O ente, não mais objeto da percepção e da consideração do sujeito, é fundo de reserva para a requisição de energia. Igualmente do ponto de vista da subjetividade a relação é ultrapassada: o ser humano, antigo sujeito parcialmente senhor do ente, agora é requisitor, imagem que consuma seu domínio total. Sujeito e objeto se convertem em requisitor e fundo de reserva, aprofundando o sentido histórico-destinal de dominação do ente. Essa interação que a técnica exerce com a essência do humano é, prima facie, nitidamente negativa do ponto de vista heideggeriano. Se a técnica corrompe o dar-se original do humano e da natureza, não mais deixando-os viger e crescer a partir de si mesmos, ocultando maximamente o ser em seu esquecimento do ente, é certo, para Heidegger, que ela precisa ser superada.4 De acordo com o filósofo, o ser humano, requisitor do fundo de reserva que é a natureza, também é conduzido para o caminho do requisitado, sendo um dentre os entes que a compõe, provocado pela estrutura im-positiva da técnica. “A essência da técnica moderna conduz o homem para o caminho daquele desabrigar por onde o real, em todos os lugares mais ou menos captável, torna-se subsistência [fundo de reserva]” (HEIDEGGER, 2007, p. 388, colchetes nossos). A determinação essencial da técnica moderna reside, sobretudo, pela “condução do homem a um caminho”; no caminho, o ente vige como fundo de reserva dominado pela requisição da Ge-stell. Mas enquanto “condução do homem”, não compete ao ente a determinação, o qual vem apenas e de antemão determinado. “Conduzir o homem a um caminho” depende do destino historial do ser, o determinante originário de todo desvelamento. “Conduzir por um “O segundo Heidegger verá nele [no esquecimento do ser – “Seinsvergessenheit”], sobretudo, a consequência do destino da metafísica ocidental: ao submeter o ser à perspectiva da racionalidade (“nada é sem razão”), a metafísica teria apagado o mistério original do ser, seu surgimento gratuito, sem um porquê. Essa metafísica da racionalidade encontraria sua realização na essência da técnica: nela, o ser não passaria de um dado disponível e compatibilizável. Heidegger está à espreita de outra compreensão do ser, menos imperial, menos regida pelo “princípio de razão”. Seu pensamento visa, dessa maneira, preparar um novo começo e a ‘superar’ assim o pensamento metafísico, que tende a sujeitar o ser à perspectiva do homem ao exigir que ele preste contas. Essa hermenêutica prolonga a visada de SZ [Sein und Zeit – Ser e Tempo] no sentido de que seu propósito é destacar os pressupostos da concepção metafísica do ser, em nome de outro pensamento, mais original, mais atento ao surgimento do ser” (GRONDIN, 2012, p. 52, colchetes nossos). 4 | 139 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) caminho significa em nossa língua: enviar [schicken]. Denominamos aquele enviar que recolhe e que primeiramente leva o homem para o caminho do desabrigar como sendo o destino [Geschick]” (HEIDEGGER, 2007, p. 388, grifo do autor, colchetes nossos). Assim sendo, parece legítimo afirmar que, conforme Heidegger, a técnica e sua Ge-stell são caracterizadas como parte do destino do ser, da história – Geschichte. O velamento do ser característico da tradição é, no entanto, condição para um possível posterior desvelamento, para o acontecimento de ἀλήθεια. Como parte do destino historial do ser, especificamente situada ao final e auge da metafísica, a Ge-stell técnica completa o velamento do ser pela tradição, e assim prepara caminho para sua superação, para o desvelamento que só pode ocorrer onde há um velamento originário. Do oculto pela técnica clama o apelo originário do ser. HEIDEGGER E A ARTE Em uma clara contraposição ao domínio que a técnica exerce sobre a natureza, a arte se apresenta como um âmbito de salvaguarda não só da natureza, mas também do ser e do seu sentido. No que compete à concepção heideggeriana de arte, o texto fundamental para o desenvolvimento da referida tese é A origem da obra de arte, de 1936, que aborda fenomenologicamente a questão filosófica da arte, a partir de um propósito nitidamente crítico à tradição metafísica que a precede. É notório ao longo de todo o texto o debate de Heidegger com a tradição estética, sobretudo com os idealistas alemães, mais especificamente com Hegel e Schelling; assume, contudo, uma postura não tanto heterodoxa no tocante a Hölderlin, que completa o trio filosófico ao entorno do qual se situam as raízes do idealismo alemão, compreendendo seu surgimento com a publicação d’O mais antigo programa do idealismo alemão, de 1796, cuja (in) certeza sobre a autoria flutua sobre os três modernos ora mencionados. Embora em discussão direta com determinadas filosofias precedentes, Heidegger estabelece um novo âmbito para a consideração do artístico, dotando sua abordagem com critérios fenomenológicos, revestidos, em 140 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio última instância, por elementos específicos de sua ontologia. Em vista de elaborar seu pensamento sobre a arte, partimos de uma das maiores máximas do texto, na qual Heidegger afirma que: “a arte é um pôr-emobra da verdade do ser”. “Mas até agora arte tinha a ver com o belo e beleza e não com a verdade” (HEIDEGGER, 2010, p. 87). O enfoque dado pelo filósofo é por decerto diferente daquele conferido pela tradição metafísica através da estética, alterando o âmbito de consideração do artístico do belo para a verdade. Tal mudança de domínio conceitual se poderia aqui, não obstante, chamar de destruição da estética, na esteira da destruição da ontologia operada desde Ser e Tempo, de 1927. Ademais, não se trata de realizar uma análise sobre como aquele que presencia o evento da obra de arte frui esteticamente de sua beleza, objeto da tradição estética moderna, tanto porque, dentre os vários motivos da recusa desta empresa, estaria como plano de fundo necessariamente uma relação entre o sujeito que frui da beleza da obra e a própria obra, como objeto da fruição, e, como sabido, toda a produção filosófica de cunho fenomenológico pretende manter-se distante do binômio metodológico-conceitual sujeito-objeto. Com efeito, a verdade que é posta-em-obra na arte não se dá no plano da evidência acessada pelo sujeito através de uma estabilidade objetiva do ente, noção em si caracteristicamente metafísica, nem mesmo de um ponto de vista metafisicamente mais explícito – e clássico –, como adequação do intelecto à coisa, ὀμοίωσις – concordância – em sua origem platônico-aristotélica, convertida na adequatio da tradição medieval. Assim, numa assertiva marcadamente fenomenológica, disserta Heidegger (2010, p. 207): A verdade é o desvelamento do ente enquanto ente. A verdade é a verdade do ser. A beleza não aparece junto desta verdade. Quando a verdade se põe na obra, ela aparece. O aparecer é – como este ser da verdade na obra e como obra – a beleza. Assim, o belo pertence ao acontecer-se apropriante da verdade. Nota-se, aqui, que para Heidegger o momento do dar-se da verdade que ocorre na obra de arte se posiciona anteriormente ao dar-se de sua beleza, de forma mais originária, devendo constituir, portanto, a esfera primeira de consideração da obra. Tanto porque não é no belo que a arte | 141 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) encontra sua essência, mas no acontecimento apropriante – o Ereignis, mais desenvolvido em outros lugares do corpus heideggeriano – da verdade que se dá na abertura do ente, do qual a beleza certamente participa, porém não como essência original e originante da obra. A beleza, sustenta Heidegger, é o produto das belas-artes e pertence ao domínio da estética, metafisicamente constituído – e, portanto, tecnicamente caracterizado. Já o acontecimento da verdade é muito mais original que o do belo, porque é o próprio desvelamento do ente que a obra de arte essencialmente opera (HEIDEGGER, 2010, p. 87-89; DUARTE, 2008, p. 25-26). É de importante consideração ressaltar aqui a diferença que se delimita no foco do conceito de verdade em A origem da obra de arte em relação a Ser e Tempo, em que o encontro com os entes se tornava possível devido à abertura constituinte do Dasein, do ser-aí. Em contrapartida, no texto de 1936 a verdade da obra de arte passa a ser considerada a partir de outro ente peculiar, nem Dasein, nem um ente que habita o plano dos utensílios, pré-determinados pelas formas comportamentais do Dasein. A verdade como desdobramento das possibilidades de ser do Dasein abre espaço para o pôr-se em obra da verdade, como acontecimento de verdade (DUQUE-ESTRADA, 1999, p. 74; HEIDEGGER, 2012b, p. 611) . Tamanho é o deslocamento da noção de verdade operada em A origem da obra de arte em relação a Ser e Tempo que a obra de arte, em seu pôr-em-obra da verdade, abre de modo inaugural o ser do ente, revela-o – não o Dasein. Em oposição à estética, o sujeito aqui é desconsiderado, e, em conformidade com o método fenomenológico, atenta-se ao acontecimento da obra de arte tal e qual ele se mostra, à medida que se mostra. Trata-se de um dos aspectos ontológicos da obra de arte que Heidegger expressa ao tomar como exemplo um quadro de Vincent van Gogh, no qual se encontra retratado um utensílio costumeiro, um par de sapatos de camponesa, dentre tantos outros sapatos pintados por van Gogh. Sabe-se, conforme Ser e Tempo, que o instrumento é em seu uso, cujo modo-de-ser é sua manuseabilidade – Zuhandenheit –, conceito que sem esforços serviria para suportar o modo-de-ser próprio do par de sapatos. Mas o quadro de van Gogh dá à experiência algo distinto de um utensílio compreendido em seu uso, porque o par de sapatos pintado não está disponível para o 142 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio uso, Zuhandenheit, nem está propriamente presente, subsistindo dentre os demais entes, Vorhandenheit: “o ser-utensílio do utensílio vem muito mais para o seu aparecer somente e através da obra e na obra” (HEIDEGGER, 2010, p. 87). O ser-sapato do sapato é revelado pela obra, não pela sua manuseabilidade ou presença de fato. Ao modo de ser próprio do utensílio retratado/desvelado na obra de arte, Heidegger chama de confiabilidade – Verläßlichkeit. A confiabilidade é muito mais original do que o utensílio considerando em sua serventia ou simples subsistência, porque é apenas em razão de sua confiabilidade que a serventia do utensílio encontra sentido, dispondo-se à camponesa em sua pré-compreensão, confiando-se a ela (HEIDEGGER, 2010, p. 87). A confiabilidade expressa pelo par de sapatos do quadro de van Gogh tem muito mais a dizer sobre a camponesa – que não está retratada na pintura – do que propriamente sobre o par de sapatos. A entrega da camponesa ao seu labor, efetuado com o auxílio dos sapatos, e sua serena segurança ante a ordem do Mundo – Welt – e da providência da Terra – Erde – expressa o que Heidegger chama de confiabilidade. O que acontece no quadro de van Gogh é o desvelar de um utensílio através do qual a camponesa se fia à Terra e se mantém segura em seu Mundo (COSTA, 2016, p. 201). “A partir deste pertencer que abriga, o próprio utensílio surge para seu repousar-em-si” (HEIDEGGER, 2010, p. 81). A confiabilidade indica precisamente o elo de sentido indissolúvel e intimamente ligados entre Mundo e Terra. Em virtude desta [confiabilidade] e através deste utensílio a camponesa é admitida no apelo silencioso da Terra. Em virtude da confiabilidade do utensílio está certa do seu mundo. Para ela e para os que estão com ela e são à sua maneira, Mundo e Terra somente estão aí dessa maneira: no utensílio (HEIDEGGER, 2010, p. 83). A noção de Terra é ausente em Ser e Tempo, aproximando-se apenas do conceito de natureza, embora não seja exatamente a mesma ideia expressa através de cada um dos termos (HEIDEGGER, 2012b, p. 203). Por Terra, Heidegger não pretende indicar o planeta em que estamos situados, nem um simples aglomerado de matéria, mas aquilo capaz de | 143 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) abrigar o que, enquanto tal, revela-se. Dessarte, a Terra vige como aquela que abriga o desabrochar do ente enquanto ente. Assim que “o vento áspero”, “a umidade e a fartura do solo”, “a noite que vem caindo”, “o grão amadurecente” e “o ermo terreno não-cultivado do solo invernal” são reunidos por Heidegger em sua análise fenomenológica do quadro de van Gogh sob o “apelo silencioso da Terra”, onde os sapatos da camponesa vigoram enquanto sapatos (HEIDEGGER, 2010, p. 81). O conceito heideggeriano de Terra é fortemente assinalado por uma retomada grega: a φύσις dos gregos antigos, enquanto natureza, é aquela que vigora se abrindo e se fechando por si mesma. A obra de arte opera precisamente uma espécie de mobilização da natureza, da φύσις grega (WERLE, 2011, p. 97). Contudo, é ainda mais importante ressaltar aqui, no ínterim deste ensaio, que, por mais que se procure desvelar aquela que abriga o próprio desvelar do ente, a Terra, através das mais precisas intromissões calculantes técnico-científicas, ela de modo incessante permanece essencialmente indecifrável, alheia a qualquer tentativa de apreensão totalizante, domesticação, dominação. A intromissão calculante que se opera em relação à Terra é por ela rechaçada, de forma que sua defesa é retrair-se em si mesma, fechando-se. Distintamente, o movimento que a obra de arte faz em relação à Terra é de elaborá-la, não de violentá-la, mostrando-a, trazendo-a ao aberto como aquela que se mantém fechada, sem empreender qualquer tentativa de dominação. A pedra pesa e manifesta o seu peso. Mas ao nos confrontarmos com seu peso ele se recusa ao mesmo tempo a qualquer penetrar nele. Tentemos isso quebrando o rochedo, então ele nunca mostra nos seus pedaços um interior e um aberto. Imediatamente a pedra se retira, de novo, para o mesmo abafamento do peso e do maciço de seus pedaços. Tentemos conceber isso de outro modo, colocando a pedra sobre a balança, então só trazemos o peso ao cálculo de quanto pesa. Talvez essa determinação bem exata da pedra permaneça um número, mas o peso como tal nos escapou (HEIDEGGER, 2010, p. 115). 144 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio A Terra rechaça qualquer intromissão nela, sem permitir que a impertinência calculante da Técnica a domine. Embora os êxitos científicotecnológicos ilustrem certo progresso e domínio, exercido e explorado até o nível subatômico, não passam de “impotência da vontade”, nas palavras de Heidegger (2010, p. 117). Assim, a Terra é aquela que, em sua essência, mantém-se fechada. Somente no obrar da obra de arte não se opera violência contra a Terra, permitindo que ela seja ressaltada apenas enquanto Terra, trazendo-a ao aberto do modo como ela é, em sua essência, como aquela que se mantém fechada. Por outro lado, enquanto a Terra permanece fechada-em-si, “Mundo é a abertura manifestante das amplas vias de decisões simples e essenciais no destino de um povo histórico” (HEIDEGGER, 2010, p. 121). A obra de arte abre um mundo, instala um sentido e o mantém em abertura, como faz nitidamente outro exemplo dado pelo filósofo, o templo grego, sem necessidade de especificações de sua localização ou da divindade à qual é consagrado. O templo é uma obra arquitetônica, que, em seu erguer-se, envolve a figura do deus, e faz com que ele no templo se torne presente. Para o grego antigo, os principais momentos de sua vida adquirem sentido ao entorno do templo, que assim abre o mundo daquele povo histórico. Pela obra de arte é aberta e mantida uma totalidade de sentido. A ideia de mundo já é bastante conhecida desde Ser e Tempo, em que o Dasein apenas é porque é-no-mundo, sendo essa uma de suas características existenciais constitutivas, um existencial em que vige a totalidade de significação com as quais o Dasein está continuamente familiarizado (HEIDEGGER, 2012b, p. 197). Todavia, em A origem da obra de arte, Mundo é a abertura que manifesta as decisões simples e essenciais de um povo histórico. O fenômeno da obra-templo mostra a Terra enquanto Terra, ressalta-a através de sua edificação sobre o fundamento rochoso, seu brilho e luminosidade, realça o ser-Terra da Terra: a tempestade que sobre ela se abate, a extensão do Céu e as trevas da Noite, a árvore e a grama, a serpente e o grilo, o touro e a águia. Tudo aquilo que os gregos denominavam φύσις. Mas também o mundo dos gregos antigos depende do templo: enquanto abrigo do deus que reside no âmbito daquele recinto sagrado, os principais momentos da vida do povo histórico em questão | 145 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) adquirem sentido ao seu entorno: nascimento e morte, bênção e maldição, vitória e ignomínia, perseverança e queda, referências fenomenológicas mencionadas por Heidegger que constituem somente algumas daquelas que constituem a totalidade do mundo daquele povo histórico, que em torno à obra-templo tem seu mundo aberto e garantido (HEIDEGGER, 2010, p. 101-103). Mundo não é a mera união das coisas existentes, contáveis ou incontáveis, conhecidas ou desconhecidas. Mundo também não é uma moldura apenas imaginada e representada em relação à soma do existente. O mundo mundifica sendo mais do que o que se pega e percebe, com o que nos acreditamos familiarizados. Mundo nunca é um objeto que fica diante de nós e pode ser visto. Mundo é o sempre inobjetivável, ao qual ficamos sempre subordinados enquanto as vias de nascimento e morte, bênção e maldição nos mantiverem arrebatados pelo ser. Onde acontecem as decisões mais essenciais de nossa história, que por nós são aceitas e rejeitadas, não compreendidas e de novo questionadas, aí o mundo mundifica (HEIDEGGER, 2010, p. 109-111, grifo do autor). Ressaltando-se a diferença estabelecida entre A origem da obra de arte e Ser e Tempo no tocante à concepção de mundo, não é, aqui, o Dasein que possui um mundo como estrutura ontológica constitutiva, mas é a obra de arte que abre um Mundo e o faz permanecer vigorando. É precisamente nesse contexto que Heidegger utiliza o exemplo do templo grego, em que estão abertas as conexões fundamentais do povo histórico ao qual a obra-templo originariamente pertence (DUARTE, 2008, p. 26). Assim como dito acima, também o templo faz ressaltar a Terra em que ele está inserido, concomitantemente enquanto mantém o Mundo daquele povo aberto. Já no quadro de van Gogh se percebeu a ambivalência da obra na confiabilidade, que retrata um utensílio que pertence à Terra e que no mundo da camponesa está abrigado. Se são as próprias obras de arte que abrem o Mundo histórico do povo a quem pertencem, é conclusão imediata que o lugar próprio da obra na filosofia da arte heideggeriana nunca é o museu, mas deve estar inserida no contexto histórico próprio em que foi criada. Caso a obra de arte seja 146 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio privada de seu mundo, já não é mais dotada da mesma profundidade ontológica que originalmente, embora possa ainda efetivamente existir, sem ter materialmente desaparecido. A obra de arte, assim, assume uma característica epocal: apenas em sua época e em seu contexto ela está apta a abrir o horizonte ontológico que lhe é essencial, o âmbito da confiabilidade. Dessituada de seu mundo, a obra de arte já não mundifica; tolhida de sua íntima relação com a Terra, já não lhe propicia a mostração original. É, portanto, a um duplo aspecto a que está sujeito o acontecimento da obra de arte, cujo evento de verdade é um desvelar-se – Mundo – a partir do ocultamento de que provém – Terra. Elaborar a Terra e instalar um Mundo são dois aspectos essenciais da obra de arte, que se co-pertencem. “Mundo e Terra são essencialmente diferentes um do outro e, contudo, nunca separados. O mundo fundamenta-se sobre a Terra e a Terra irrompe enquanto mundo” (HEIDEGGER, 2010, p. 121). São essas considerações que nos permitem chegar, junto com Heidegger, à sua tese fundamental no tocante à ontologia da obra de arte: ela é acontecimento da verdade a partir da disputa – Streit – entre Mundo e Terra. Através da obra de arte a Terra é ressaltada no Mundo histórico em que homens e povos continuamente se encontram, à medida que é sobre a Terra que homens e povos fundam seu respectivo Mundo. A disputa se estabelece na tensão criada pelo Mundo, que essencialmente é aquele que abre, em relação à Terra, que é quem se mantém continuamente fechada-em-si. A Terra não pode passar sem o aberto do Mundo, para ela própria, como Terra, aparecer na livre afluência do seu fechar-se-em-si. O Mundo, por seu lado, não pode desfazer-se da Terra, para ele, como amplitude vigente e via de todo destino essencial, fundamentar-se em algo decisivo (HEIDEGGER, 2010, p. 123). Na obra de arte, essa disputa – que não é criada por ela, uma vez que a antecede – não é apaziguada, mas, pelo contrário, instigada, fazendo com que a disputa permaneça enquanto disputa. Ora, se a obra faz a Terra | 147 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) viger enquanto Terra – que se mantém permanentemente fechada-em-si – ao mesmo tempo em que instala um Mundo – aquele que abre o mundo histórico dos povos –, é, por decorrência, na obra de arte que a tensão entre Terra e Mundo se dá de forma mais acentuada, consumando a disputa. O CINEMA COMO FENÔMENO TÉCNICO E ARTÍSTICO Ora, uma vez que é evidente por si a natureza artística do cinema, nunca esteve no escopo deste trabalho pôr em questão se em algum sentido o cinema se afastaria da qualidade de ser uma modalidade artística por excelência – simplesmente propor tal questão já seria incorrer no equívoco de ferir o bom senso, o entendimento ordinário do que é um fato. Da mesma forma, também não é possível afirmar que o cinema não tenha sido tornado possível na era da técnica – o que não corresponde a imediatamente defender que ele seja essencialmente técnico. O problema se encontra então em como pensar o cinema como arte no seio da técnica, sendo claro à mente, pelo exposto até o momento, que a arte se constitui como um verdadeiro oásis diante da dominação técnica da natureza e do ser humano. Uma primeira questão a ser posta no cruzamento de conceitos até aqui apresentados pode ser encontrada visando caracterizar o cinema em sua relação com a técnica. Sabemos já que as condições de possibilidade do cinema como tal foram tornadas possíveis apenas na contemporaneidade, quando o avanço tecnológico permitiu materialmente, de formas cada vez mais elaboradas, a reprodução imagética do movimento. No entanto, é possível aplicar ao cinema aqueles atributos que Heidegger diagnosticou como essenciais ao dar-se da técnica na época contemporânea? De saída podemos nos pôr a pensar a relação que o cinema estabelece com a natureza, a φύσις, em paralelo com o modo com que a poderosa gama de relações que a técnica mantém com ela. Conforme o acima elaborado, a técnica continuamente se põe a explorar e exaurir recursos da natureza, pondo-a como um fundo de reservas sempre disponível ao seu ímpeto dominador. O cinema, contudo, não extrai coisa alguma da natureza. Ela não é posta a seu serviço, e dela coisa alguma é 148 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio retirada. No entanto, ela é “enquadrada” pelas câmeras – no uso, porém não bem no sentido, de um dos possíveis termos de tradução do alemão Ge-stell, bastante utilizado pelos tradutores de Heidegger e que aqui são competentes para referimo-nos ao cinema (Cf. nota de rodapé número 3). Mas esse enquadramento não insere a natureza num nexo de exploração e domínio por parte do cinema, como a técnica opera em relação a tudo aquilo que há. Pelo contrário, o que o cinema faz é mostrar a natureza e o humano através deste seu peculiar enquadramento. Aqui vemos, então, não só uma exclusão do cinema de qualquer argumento que veja no cinema uma força exploradora da natureza, mas também seu acertado “enquadramento” no campo da arte, onde ao invés de domínio encontramos um horizonte de mostração, uma “clareira” (Lichtung), como Heidegger preferiria dizer. O cinema é um horizonte de mostração de sentido – um ambiente ontológico onde se origina sentido. O cinema, entendido como fenômeno, sempre traz algo à mostração, a partir da (des) montagem de sentido que ele sempre opera; cada filme mostra sempre seu sentido, mas entendido não enquanto obra fílmica individual, porém em sua totalidade, o sentido que o cinema mostra é o sentido de sua época histórica, expressão autêntica da constituição própria do nosso tempo. De fato, quando trazemos o cinema ao pensamento, e com ele toda e qualquer experiência fílmica, temos à mente sempre uma representação da φύσις, ou, para entrar propriamente no campo vocabular de A origem da obra de arte, da própria Terra. No movimento reproduzido pela montagem nos filmes se vê sempre e apenas a Terra mostrada, e é claro também o ser humano, à medida que este também participa do vigorar da Terra. A Terra, no ensaio de Heidegger em questão, se apresenta como aquela que, enquanto tal, revela-se. A obra de arte mostra a Terra ao revelá-la “naturalmente” por sua constituição. O cinema não se encontra em posição diferente: a produção fílmica sempre deixa em evidência “aquela que, enquanto tal, revela-se”. Como uma espécie de amplificação artística da fotografia, pois, ao captar o movimento (e, portanto, também o repouso enquanto repouso) via montagem, subsumindo também e dentre outras a própria arte fotográfica, a experiência fílmica se atém à | 149 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) mostração dos espaços e do tempo – sem querer entrar em temas kantianos ou deleuzianos, permanecendo no horizonte fenomenológico, onde espaço e tempo legitimamente podem ser concebidos como âmbitos em que se dá mostração: constituem horizontes de instauração da clareira do ser, uma vez que tanto o espaço quanto o tempo se apresentam como âmbitos em que, a cada vez, os entes vêm a ser. Até mesmo as mais recentes produções da indústria cinematográfica, que se valem de complexos processos de digitalização, virtualização e simulação da realidade, executam uma muito peculiar μίμησις do movimento; no entanto, o virtual/digital não se encontra fora do domínio da Terra, que não se limita ao entes fisicamente materiais, mas se estende para todos os âmbitos em que se revela algo enquanto tal. Em sua mostração da Terra, o cinema não exerce de modo algum a violência própria da técnica, permitindo que a Terra vigore por si mesma enquanto si mesma. Mais do que isso, o cinema ressalta a Terra, mostrando-a a seu próprio modo. Assim como as outras modalidades artísticas, o cinema traz, pelo foco da câmera, à visibilidade aquilo que a Terra é por e enquanto si mesma. Por outro lado, talvez seja um pouco mais complexa e menos óbvia a relação que o cinema enquanto modalidade artística estabelece com o conceito de Mundo, que, assim como a Terra, é manifestado na e pela produção cinematográfica. Isso porque o filme sempre opera uma “produção de sentido”. Se Mundo é aquela dimensão em que é aberta e mantida uma totalidade de sentido – Heidegger, como vimos, acrescentaria: para um povo histórico –, o cinema faz isso através da montagem, uma de suas mais essenciais dimensões. Para além de simples edição, arranjo de imagens sucessivas em diferentes planos, a montagem monta o sentido – e também o desmonta, desconstruindo e reconstruindo sentido nos mais diferentes âmbitos. No tocante à montagem, recordamos aqui brevemente o soviete Sergei Eisenstein, grande teórico do cinema. Nas palavras de Gilles Deleuze (1985, p. 44), 150 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Eisenstein não para de lembrar que a montagem é o todo do filme. Mas por que o todo é justamente o objeto da montagem? Do começo ao fim de um filme, algo muda, algo mudou. Entretanto, este todo, este tempo ou esta duração, parece poder ser apreendido só indiretamente, em relação às imagens-movimento que o exprimem. A montagem é essa operação que tem por objeto as imagens-movimento para extrair delas o todo, a ideia, isto é, a imagem do tempo. Pondo à parte certos desdobramentos filosóficos próprios do pensamento de Deleuze nem tanto implícitos nessa passagem, poderíamos muito bem aqui diferenciar-nos de sua linguagem e dizer que a montagem corresponde à criação e manutenção de sentido. O que o filósofo francês chama de todo, de ideia, pensamos aqui em termos de sentido, de conteúdo hermenêutico-existencial elaborado pela arte, que no vocabulário heideggeriano de A origem da obra de arte se aproxima consideravelmente daquele âmbito que é criado pela noção de Mundo, e ampliado pela sua disputa originária com a Terra. Propomos, então, que o cinema, e por fazer parte dele qualquer filme, como uma totalidade de sentido, possa ser entendido como uma forma de elaborar Mundo. E com isso algumas implicações filosóficas surgem. A primeira é aquela que nos vem quando recordamos, conforme o exposto, que Mundo é uma dimensão de sentido epocal de e para um povo histórico. E o cinema não fica distante dessa caracterização conceitual, uma vez que, como já dito, o cinema foi tornado possível na contemporaneidade, época da técnica, e que sua experiência nos marca a todos, em diferentes níveis, muito provavelmente até mais do que aquele impacto que chega a nós hoje daquelas modalidades artísticas clássicas, como a poesia e o teatro – que se analisarmos estão sempre contidas na produção cinematográfica, de forma ainda mais alargada do que, por exemplo, a ópera, a qual muitos estetas da tradição apontaram como manifestação artística sui generis por conseguir reunir (quase) todas as demais. Sendo como vimos, se a obra de arte só tem seu pleno sentido se inserida em seu contexto histórico, devido seu caráter essencialmente | 151 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) epocal, só assim podemos entender o cinema: como manifestação artística de nossa época, da época da técnica. O cinema, então, abre-nos Mundo, Mundo que nos é dado na época da técnica – que violenta a Terra, que aniquila Mundo. O cinema se encontra, assim, imbricado na dialética do sentido e sem-sentido, da arte e da técnica. Essa tendência do cinema de às vezes montar sentido e às vezes desmontá-lo é plenamente conforme nossa época, em que a cada vez mais todos os âmbitos da experiência humana se fragmentam, perdem-se no abismo, no sem-fundamento – a razão, a lógica, o ser, enfim, todos os referenciais estáveis a que a tradição filosófica ocidental sempre se valeu para justificar a estabilidade do pensamento agora caducaram. Apesar do fato de o cinema acontecer apenas na época da técnica e por conta dela, o seu status artístico supera as suas circunstâncias histórico-epocais advindas de suas condições técnicas de possibilidade, não exercendo as mesmas provocações da técnica em relação ao todo do ente, à natureza. E o fenômeno do cinema dá isso à percepção muito claramente, uma vez que todas aquelas características impositivas da técnica, como a exploração da natureza que a põe a seu serviço, o enquadramento de tudo aquilo que existe como um fundo de reserva a ser incansavelmente explorado, aquela tendência a tudo dominar e inserir em seu nexo provocativo, não são aplicáveis ao fenômeno do cinema. Em verdade, o cinema exerce exatamente o contrário da técnica: ele não violenta a natureza, mas mostra a Terra; ele não põe o ser humano em um nada de sentido próprio do processo niilista, mas abre um Mundo de sentido e nos mantém em seu aberto. Plenamente consonante à conceituação de Heidegger da arte, o cinema manifesta a confiabilidade própria do artístico. A experiência fílmica proporciona, com efeito, uma “mostração confiável”, no sentido da confiabilidade heideggeriana aqui utilizado. O cinema mostra em grande relevo a disputa entre Terra e Mundo, uma disputa que não anula esses âmbitos, mas que os ressalta de diferentes modos. Qualquer filme, nada obstante, pode ser integralmente analisado através de uma série de noções bastante análogas a Terra e Mundo – analogias que Heidegger não descarta, mas, pelo contrário, deixa em aberto, a fim de que seus 152 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio conceitos possam funcionar como uma espécie de ampliação ontológica de tais noções: espaço e tempo, matéria e forma, φύσις e sentido. A montagem, como essência do cinema, funciona precisamente como a amarra que une tais díades, a própria disputa que Terra e Mundo travam entre si que constituem a essência do artístico. Numa cena de filme, por exemplo, a imagem resultante da montagem remete diretamente à Terra, mostrando uma perspectiva dos entes que a compõem – não violentandoos ou explorando-os, mas permitindo que eles venham ao aberto, sejam mostrados, tornem-se fenômeno –, enquanto como que “por detrás” das imagens, no λόγος de toda e qualquer cena, o sentido do filme vai sendo estruturado pela montagem, que assim se irrompe como Mundo. A montagem, no entanto, enquanto o todo do cinema, não se mantém apenas atrelada à caracterização conceitual do cinema enquanto arte, mas também do cinema enquanto fruto da técnica: como há pouco dissemos, Ge-stell. Os principais termos utilizados para traduzir o vocábulo alemão Ge-stell muito curiosamente (e talvez não por acaso) também se aplicam à montagem, e muito frequentemente se os encontra como seus sinônimos e correlatos próximos: composição, armação, enquadramento, disposição. E como a própria filosofia de Heidegger nos ensina, os termos utilizados para a tradução de um termo nunca são escolhidos arbitrariamente, mas sempre indicam uma interpretação do ser da coisa significada pela palavra. E não nos parece ser nem um pouco diferente no que compete à montagem cinematográfica. Parece haver uma relação dialética da montagem enquanto técnica no sentido heideggeriano: ao mesmo tempo em que faz sentido aplicar os termos que caracterizam a Ge-stell à montagem, a montagem não é Gestell, no sentido de uma im-posição provocante da natureza. A montagem é como se fosse uma composição que não compõe, uma armação que não arma, um enquadrar que não enquadra. Põe, mas não impõe. Mostra, não explora. Elabora, não violenta. A montagem parece então operar uma espécie de Verwindung da Gestell, uma superação-distorção, ou ainda uma aceitação-aprofundamento, como Heidegger sugeriu aos tradutores franceses dos seus Ensaios e | 153 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Conferências, onde o termo aparece algumas vezes.5 A Verwindung, ao contrário da Aufhebung hegeliana, não comporta os traços de uma superação que mantém o superado em seu ir além, não visa um τέλος, nem pretende efetuar um rompimento crítico com o que supera: distorce, aceitando sua determinação enquanto aprofunda seu sentido. Não parece equivocado supor que talvez o elemento artístico do cinema opere para remir o seu elemento técnico. A montagem, enquanto superação-distorção da Ge-stell, desmonta o ímpeto dominador da técnica, de onde se originam as condições de possibilidade do cinema. Por tudo aquilo que é manifesto no cinema, aquilo que vem à tona, o sentido que dele emana, pode-se enxergar a técnica a serviço da arte, que, por sua vez, opera na contramão da técnica, salvaguardando o que por ela é destruído. De forma muito peculiar, portanto, o cinema manifesta muito bem o verso de Hölderlin frequentemente retomado por Heidegger no tocante à superação da técnica: “onde há perigo cresce o que nos salva” (HEIDEGGER, 2007, p. 391; HÖLDERLIN, 1995, p. 395). É do perigo da técnica que nos vem o cinema como arte, ao mesmo passo que é da arte cinematográfica que nos é dada a possibilidade de atribuir um novo sentido à técnica. Dessa forma a própria técnica, através da arte que ela curiosamente propicia, parece ser capaz de criar novas condições de mostração de sentido, subvertendo sua própria lógica, onde o nada de sentido impera. E a cada vez parece mais possível que de fato seja na arte 5 Quel che sappiamo dalle indicazioni che Heidegger ha dato ai traduttori francesi di Vorträge und Aufsätze, dove il termine [Verwindung] è usato in un saggio in cui si tratta della Überwindung, del superamento, della metafisica, è che esse indica un oltrepassamento che ha in sé i tratti dell’accettazione e dell’approfondimento. D’altra parte, il significato lessicale della parola nel vocabolario tedesco contiene due altre indicazioni: quella della convalescenza (eine Krankheit verwinden: guarire, rimettersi da una malattia) e quella della (dis)torsione (un significato abbastanza marginale, legato a winden, torcere, e al significato di alterazione deviante che possiede, tra gli altri, il prefisso ver). Al senso della convalescenza è legato anche quello di “rassegnazione”: non si verwindet solo una malattia, ma si verwindet anche una perdita, un dolore. [Aquilo que sabemos das indicações que Heidegger deu aos tradutores franceses de Vorträge und Aufsätze, onde o termo é usado em um ensaio em que se trata da Ueberwindung, do superamento, da metafísica, é que isso indica um ultrapassamento que tem em si os traços da aceitação e do aprofundamento. De outra parte, o significado lexical da palavra no vocabulário alemão contém duas outras indicações: aquela da convalescência (eine Krankheit verwinden: curar, recuperar-se de uma doença) e aquela da (dis)torção (um significado bastante marginal, ligado a winden, torcer, e ao significado de alteração desviante que possui, dentre outros, o prefixo ver). Ao sentido da convalescência é ligado também aquele de “resignação”; não verwindet apenas uma doença, mas se verwindet também uma perda, uma dor]. (VATTIMO, 1998, p. 180, tradução nossa). 154 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio que possamos encontrar a redenção para nossa época, sobretudo quando recorremos a uma arte tão popular como o cinema. REFERÊNCIAS CASANOVA. Marco Antônio. Nada a caminho: impessoalidade, niilismo e técnica na obra de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. COSTA, Solange Aparecida de Campos. Heidegger e a verdade: uma leitura dos sapatos da camponesa de van Gogh. Peri, Santa Catarina, v. 08. n. 01, p. 194-213, 2016. DELEUZE, Gilles. Cinema: A imagem-movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. DUARTE, André. Heidegger e a obra de arte como acontecimento historial-político. Artefilosofia, Ouro Preto, v. 3, n. 5, p. 23-34, jul. 2008. DUARTE, André. Vidas em Risco: Crítica do Presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. DUQUE-ESTRADA, Paulo César. Sobre a obra de arte como acontecimento da verdade. 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Ambos apresentam uma cinematografia despojada, seja por recrutarem atores em experiência prévia, seja quando a floresta amazônica é retratada em preto e branco, seja quando um campo de extermínio constitui um pano de fundo intencionalmente desfocado, ubíquo e distante ao mesmo tempo. O pano de fundo de um é o rastro de destruição deixado pelo ciclo da borracha na Amazônia colombiana, nas fronteiras com Brasil e Peru. A execução em fornos crematórios no complexo de Auschwitz ficava 1 Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil. E-mail: claudia.drucker@ufsc.br https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p157-188 | 157 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) a cargo de integrantes dos Sonderkommandos (destacamentos especiais), eles mesmos detentos que ajudavam a operar a engrenagem do extermínio. Ambos os enredos são determinados por genocídios.2 Os protagonistas de ambos os filmes se encontram em aporias e se veem, por razões diferentes, empurrados para fora da comunidade humana cada vez mais. A seguir, pretendo elaborar perguntas sobre a aproximação e o afastamento possíveis entre o modo como esta situação-limite é tratada, mas incluindo também questões de recepção. REIVINDICANDO A MORTE PRÓPRIA: O FILHO DE SAUL No complexo dos seis campos de extermínio ligados a Auschwitz, alguns detentos considerados pela administração mais fortes e saudáveis foram selecionados para ajudar a levar a cabo a “solução final”, ou seja, o plano de exterminar todos os judeus da Europa e, quiçá, do planeta, só formulado explicitamente em 1942. A rotina dos destacados consistia em ajudar os recém-chegados aos campos a se despir, para o que os nazistas diziam ser um simples processo de “desinfecção” anterior ao seu emprego como trabalhadores do campo. Em seguida, sua tarefa era levar as vítimas para dentro das câmaras de gás, lacrá-las, abrir as portas depois de o veneno fazer efeito, empilhar os cadáveres, levá-los para os fornos crematórios e depois dispersar as cinzas, fora do campo, no rio Sola, um afluente do Vístula. Depois, os SK recolhiam tudo o que fosse de interesse nas roupas e bagagens que os envenenados deixavam para trás, e incineravam o resto. Recebiam algumas recompensas, como alojamentos e alimentação superiores aos dos outros prisioneiros. Estavam também em desvantagem, justamente por dominar em detalhes o maior segredo dos campos de extermínio. Eram ainda mais vigiados que os outros presos, com os quais só se misturavam na antessala das câmaras de gás, e estavam sujeitos a extermínios periódicos. Dentro da literatura de testemunho, 2 Embora o termo “genocídio” seja relativamente recente e tenha surgido especificamente para explicar a “solução final” nazista para a questão judaica, ele pode ser projetado sobre o passado. O Oxford English Dictionary credita ao jurista judeu polonês Rafael Lemkin a cunhagem do termo em 1994. Será preciso voltar a esse ponto. Provisoriamente, seja dito que a destruição física e cultural de povos inteiros, em escala desproporcional ao necessário para assegurar a satisfação de um interesse econômico, pode ser definida como, seja anterior ou posterior ao shoá. 158 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio também os SK formam um grupo à parte, por responder por uma coleção pequena de póstumos. Em Auschwitz-Birkenau, depois da libertação, foram encontrados, em espaços bem largos de tempo, cinco escritos que estavam enterrados (CALMANN-LÉVY, 2005). São todos de autoria de integrantes judeus dos Sonderkommandos. A maioria de destacados era de judeus, embora houvesse alguns prisioneiros russos ou membros de outras etnias racialmente discriminadas. Até hoje, os relatos e opiniões sobre os Sonderkommandos são vagos ou negativos, inclusive por parte de historiadores e intérpretes importantes. O mais conhecido dentre estes, Primo Levi, descreve os destacados como “corvos de forno crematório”, colaboradores de alma destruída (LEVI, 2016, p. 42). Em seu último livro, Os afogados e os sobreviventes, Levi se baseia em parte no médico húngaro Miklos Nyiszli, também detento cuja vida foi poupada para que trabalhasse como assistente de Mengele. No nono capítulo das suas memórias, Nyiszli de fato reconta uma partida de futebol entre SS e SK, cuja nota macabra foi justamente a semelhança com qualquer jogo alegre e animado em uma cidade pacata (NYISZLI, 2011). O historiador Raul Hilberg, em sua obra de referência, refere-se apenas e de passagem ao episódio do levante malsucedido das “equipes de detentos encarregadas da remoção (das câmaras de gás) e incineração dos cadáveres” de 7 de outubro de 1944 (HILBERG, 2003, p. 1045-1047). A divulgação dos escritos dos SK contribui para um nuançamento da nossa opinião sobre essas pessoas. Os escritos preservados pelas cinzas não só confirmaram o funcionamento da máquina do extermínio, mas revelaram também facetas desconhecidas dos detentos que trabalharam nela, inclusive sua liderança na revolta de outubro de 1944, mas também as diferenças individuais entre os SK em termos de motivação e caráter. Decerto não faltaram oportunistas entre eles, interessados apenas em sobreviver mais um dia, ou em comer um pouco melhor, mas também houve os resignados, e até os que viram um propósito superior em continuar vivo, como conhecer o que se passava para testemunhar quando a guerra acabasse. O filho de Saul é compreensível como um ensaio sobre a ambiguidade desses homens, preparado pela publicação dos seus escritos. Talvez mais anos atrás fosse considerado um filme ofensivo, que tornaria os judeus | 159 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) cúmplices do próprio extermínio. Lazlo Nemes não esconde feitos terríveis, mas está claramente preocupado com ressaltar a diversidade e a possível humanidade que restou mesmo entre brutos. O capítulo XIX das memórias de Nyiszli foi, a meu ver, o ponto de partida para a versão dramática da vida dos SK, embora eu não possa sustentar essa suspeita apelando para alguma entrevista do diretor do filme ou para a crítica. Nyiszli conta ter sido chamado por um SK em pânico, pois algo inédito acontecera: uma jovem de uns quinze anos não tinha morrido em decorrência do gás tóxico. O médico a reanima, mas sabe que é inútil. Ele pede ao SS encarregado da equipe, Oberscharführer Mussfeld, que a empregue em um bloco afastado do crematório, junto com as outras trabalhadoras do campo. O Oberscharführer hesita por um momento: se ela fosse mais madura para compreender o valor do silêncio, talvez pudesse ser poupada. Por fim, ordena a outro oficial que a mate com um tiro na nuca. O que impressiona Primo Levi, ao mencionar o episódio nas suas próprias memórias, é a comoção que o caso particular da menina causou. Nyiszli enfatizam que todos queriam ajudar, como se fosse sua própria filha, e até o oficial hesita em executá-la. Ao que Levi acrescenta que tais fatos espantam porque se opõem à imagem que temos do homem sempre de acordo consigo mesmo, coerente, monolítico: “piedade e brutalidade podem coexistir no mesmo indivíduo e no mesmo instante” (LEVI, 2016, p. 43). Assim também Nemes cria um protagonista, o húngaro Saul Ausländer (“estrangeiro”, em alemão), que encontra entre as vítimas de envenenamento um jovem agonizante que pode ou não ser seu filho. É um dia de outubro de 1944, durante o auge da limpeza racial na Hungria, o que explica não só o recrutamento de SK húngaros, mas também a atividade frenética das câmaras de gás. Uma das vítimas do grupo que Saul acabara de levar à câmara sobreviveu ao Zyklon B e é levada à presença de um oficial nazi. Este sufoca o garoto e ordena uma autópsia para que as causas da sua sobrevivência sejam conhecidas. Os SK entre si mencionam que isso só tinha acontecido uma vez, com uma moça, no que vejo uma alusão a Primo Levi e Miklos Nyiszli. A partir daí, Saul fica obcecado pela necessidade de dar um enterro judaico ao cadáver, pois a lei mosaica proíbe todas as formas de violação do corpo, vivo ou morto. O primeiro rabino 160 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio que consulta lhe diz, de forma realista, que ele deve se contentar com o que é possível fazer pelos mortos: rezar. Saul já não dá mais ouvidos a nenhum cálculo de sobrevivência. Tudo o que faz para colaborar com os planos dos colegas de cárcere ou estorvá-los é, daí por diante, incidental. O que importa é o plano suicida de enterrar o menino fora do campo, na presença de um rabino. O assunto do filme é a transformação desencadeada naquele que talvez seja o pai. Na segunda metade do filme, centrada na revolta de 7 de outubro de 1944, o desfecho do protagonista se define. Há hoje um grupo de filmes sobre crianças em meio ao shoá, de gosto bastante duvidoso, por sinal, como A vida é bela, Olga, A menina que roubava livros e O menino do pijama listrado.3 São filmes de pouca preocupação com a veracidade histórica, em que as questões específicas relativas ao shoá se transformam em pano de fundo. Roberto Benigni admitiu em entrevista que A vida é bela pretendeu ser uma atualização de O garoto e O grande ditador, de Chaplin: “Ele [o filme] deveria ter se chamado O garoto ditador ou O grande garoto” (BENIGNI, 1998). Ao contrário, em O filho de Saul o menino é quase um desconhecido do próprio pai (pois se trata de uma criança ilegítima e criada longe do pai). O menino, cujo nome não sabemos, só é visto nu, fora de foco, ou dentro de um saco. Ele é apenas o que o campo fez dele: um quase-humano. Trazê-lo de volta desse estado, nem que seja post mortem, ou até precisamente enquanto morto, mediante o ritual tradicional de enterro, passa a ser a obsessão de Saul. Para o diretor, a trama está mais próxima à Antígona. Antígona se preocupa com o que vai acontecer com o espírito de seu irmão Polinice, se o seu corpo não for sepultado da forma correta. Saul nunca é apresentado como um homem versado em assuntos religiosos. Ele parece nem saber o kadish, a oração fúnebre, de cor. Mas Nemes afirma: “nos dois casos, mais do que indivíduos são assassinados; sua cultura é destruída”. O campo de extermínio é um lugar onde as pessoas são queimadas “como se nunca tivessem um passado. [...] Saul dá a essa criança uma história, uma narrativa 3 Usarei a palavra “Holocausto” (com maiúscula) ou “holocausto” (com minúscula) exclusivamente em citações. Embora durante anos muitos judeus tenham nomeado assim o extermínio durante o terceiro império nazista, existe um desconforto crescente com as conotações religiosas do termo, que acarretam a insinuação de um sacrifício ou purificação devidas a Deus. Contudo, a intenção dos nazistas não foi a de sacrifício ritual. Cf. Evans (1989, p. 142). | 161 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) (story) de modo que há algo muito universal ou muito humano nisso” (NEMES, 2015). A obsessão em dar aos mortos um enterro tradicional se mostra o único ponto em comum indiscutível entre ambos os personagens. É questionável se a inocência de Antígona diante da maldição que se abate sobre sua família levanta dilemas semelhantes ao de um detento no campo. Além disso, dar o enterro apropriado a Polinice é um ato religioso. A cultura a ser preservada não é um fim em si mesma, no sentido tem um fundamento transcultural. Antígona dá satisfações aos deuses enquanto Creonte dá ao Estado, para quem Polinice é um traidor, de modo que o embate com Creonte não é o que se visa em primeiro lugar. Se o enterro redime o morto e os vivos (sua cultura) nas condições específicas do campo, a interpretação precisa ser outra. A missão que Saul se propôs é, de alguma forma, escolher os termos da morte, restituindo a humanidade a outrem e, no processo, a sua própria. O filho de Saul pode ser tomado quase como uma investigação sobre como um indivíduo ainda pode recobrar certo grau mínimo de livre-arbítrio. Novamente, quer o diretor esteja consciente disso ou não, o seu caminho foi preparado por uma discussão prévia. Debatese em filosofia se a morte é experimentável, e se não for, uma filosofia da morte não é possível, assim como o inescrutável também não pode ser tematizado. Mas alguns reivindicam que a prerrogativa humana de saber que se vai morrer é da maior importância. A experiência da própria morte é a decisão de viver ou morrer ou, no mínimo, a oportunidade de se relacionar com a sua aproximação. Os protagonistas de ambos os filmes chegaram à beira da morte. Karamakate se define como um homem oco, que espelha o “homem-concha”, mas no sentido em que é o último do seu povo. Embora ele tenha desprezado os nativos que escolheram se aculturar a vida toda, o isolamento não é garantia de autopreservação, pois uma cultura inteira não vive quando resta apenas um dos seus representantes. Em Ser e tempo, em uma discussão sobre estruturas apriorísticas de constituição da existência, Heidegger distingue entre a morte de outrem, a morte vivida e interpretada pelo público, e a morte própria, vivida de modo intransferível por mim. A morte pública e impessoal não é apreendida de modo adequado a um ente que existe e não apenas é do mesmo modo que as coisas. A morte compreendida pelo indivíduo que subitamente se dá 162 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio conta da sua mortalidade é a realização da sua iminência. Vivemos nossas vidas, porém, sem experimentar essa iminência. Não se está sugerindo aqui que a morte se torne um pensamento fixo – mesmo porque isso geralmente leva a patologias. A morte é sempre uma possibilidade. Heidegger cita Johannes von Templ: basta que o homem nasça para ser velho o suficiente para morrer (HEIDEGGER, 1977, p. 326). Incorporar a possibilidade da morte ao cotidiano surte um efeito único. Uma das estruturas constituintes do ser-aí é o ser-para-a-morte. Sem entrar na discussão erudita sobre possibilidades de interpretação, vou me limitar a apontar que ele nomeia a possibilidade de subitamente dar-se um estranhamento diante de uma vida que parecia “infinita” justamente porque uniforme e homogênea. Tudo o que parecia definido como se para sempre desmorona. Nossas certezas se mostram frágeis e transitórias diante da possibilidade de um dia se acabarem. Mais ainda, o que aparece nesse momento é que, de alguma forma, a existência sempre foi assim, sujeita a abalos profundos nas nossas crenças mais arraigadas e inconscientes. Viver a possibilidade da morte própria, é, portanto, exatamente o mesmo que viver a possibilidade da vida própria: uma vida que se sabe sujeita a desmoronamentos e ressignificações. O caminho para não mais se deixar dominar por significados já estabelecidos e acatados, que fazem a vida parecer fadada ao eterno presente, não é não deixar a vida, literalmente, mas viver como alguém que sabe que vai morrer. Quando o ser-aí não se relaciona com a própria morte, é porque se toma a si mesmo como “subsistência”. Uma vida em que não é possível o despertar para a iminência da morte é uma vida “achatada” reduzida a uma dimensão de presente uniforme e homogêneo, como os filósofos imaginam que seja a morte. Uma vida-morte, portanto, ou pelo menos uma vida menos viva. Cotidianamente, pois Heidegger não estava pensando em nada parecido com o terror ao escrever essas linhas, como seria possível “roubar a morte de outrem”? Imagino que seria um processo consentido, como quando alguém não assume a responsabilidade por lidar com a própria contingência e indeterminação. Pedir que outrem lhe diga como deve morrer pode ser tratar a própria morte como o ponto final de uma vida vivida como que de fora para dentro, a partir de representações públicas | 163 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) e impessoais de quem sou. No campo, não se trata de um processo consentido ou metafórico. Não que exista anestesiamento pela rotina. No campo, existe o anestesiamento pelo terror. O poder exercido no campo só é total se retirar do detento a experiência da sua própria morte. OS NAUFRAGADOS DO RIO YARÍ O desafio proposto a Ciro Guerra é criar um protagonista indígena distante de clichês. O desafio dramático que Nemes se propôs é conceder profundidade interior e simpatia a personagens brutalizados no grau mais alto possível, mesmo que vítimas eles também. Ainda assim, há convergências consideráveis. O abraço da serpente também fala de submergidos. A floresta devastada também carrega os seus próprios quase-homens ou chullachaquis, que precisam viver com o fardo de ter testemunhado um horror. No entanto, encontrar uma tese artística nítida em O abraço da serpente talvez seja menos fácil. A exibição das inúmeras formas como a presença dos brancos foi nociva na Amazônia ocupa a maior parte dos episódios. Por mais graves que sejam essas denúncias, não são nada que já não conheçamos de relatos históricos e jornalísticos. Não são nada que em alguma medida não continue a existir até hoje, quando a sobrevivência física do indígena e a preservação da sua cultura continuam ameaçadas. Mesmo quando o assassinato de indígenas é posto na ilegalidade, seu desenraizamento continua avançando. Nenhum de nós pode negar algum nível de conhecimento dessa situação. Mas o horror da colonização interna do nosso continente não foi suficiente para criar uma tradição de reflexão e um estilo narrativo, donde a tarefa de Guerra ser, ao contrário da tese do ineditismo do holocausto, mais difícil do que a de Nemes. Para desenvolver esta afirmação, vou me valer em parte de uma crítica à tradição iniciada por Hannah Arendt sobre a novidade radical do shoá. Aqui, novamente temos uma boa dose de credibilidade histórica. O fio narrativo é dado pelo personagem Karamakate, um pajé da tribo ficcional dos cohuianos, e suas viagens em busca da yakruna. Esta planta fictícia remete às espécies que estão na base de alguns cultos da 164 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio floresta, como o arbusto Psychotria viridis (chacrona ou rainha) e o cipó Banisteriopsis caapi (mariri ou jagube), que são compostos para produzir a bebida ayahuasca. Karamakate empreende duas viagens com dois cientistas brancos em um espaço do que parecem ser três ou quatro décadas. Quando jovem, Karamakate é procurado por Manduca, o assistente de um certo Theodor von Martius. Seu nome mistura os de Carl Friedrich Philip von Martius, naturalista alemão, e Theodor Koch-Grünberg, etnólogo alemão que realmente escreveu um livro intitulado Dois anos entre os índios: viagens no Noroeste do Brasil, 1903-1905. Theo vê na yakruna a última esperança de cura de sua doença grave, e Karamakate aceita guia-lo até ela, movido pela esperança de reencontrar sua tribo, que é a guardiã da yakruna e que ele acredita extinta. Décadas mais tarde, Karamakate encontra Evan, um botânico ficcional de Boston, que lembra Richard Evans Schultes pelo seu interesse em plantas alucinógenas. Por motivos diferentes, ambos os cientistas procuram a mesma planta sagrada. Grande parte do filme é composta por imagens da viagem rio acima, quando as sinuosidades são como a serpente sagrada que dá nome ao filme. O percurso importa tanto quanto o ponto de chegada, de vários modos. Nas várias estações da viagem se mostram, uma por uma, todas as aflições impostas pelos brancos: a escravização dos nativos, a destruição de suas culturas e memórias, a catequização forçada das crianças, os conflitos de fronteira entre Peru e Colômbia e o encerramento subsequente de tribos inteiras dentro de uma espécie de campo de concentração, a trapaça dos brancos nas transações comerciais com os nativos e a exploração desordenada – e, em última instância, suicida – da floresta. Mesmo quando os indígenas não são aniquilados fisicamente, são destruídos de outras formas. Os missionários católicos que adotam as crianças indígenas órfãs demonizam a sua cultura de origem, e punem quem preserva a sua recordação. Com a ruína da missão, os órfãos passam a viver no pior dos dois mundos, já que não há retorno à condição nativa. Temos aqui a porção de denúncia do filme: tudo isso aconteceu deste modo ou ainda mais cruelmente, mas nem por isso o filme pode ser descrito adequadamente como realista. As duas viagens se espelham durante o filme inteiro. A primeira viagem pouco afeta os viajantes. Karamakate reforça suas suspeitas sobre | 165 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) os brancos, e as nossas suspeitas que o seu afastamento da tribo é tanto em função da sua crença em ser o último quanto uma condenação generalizada dos brancos e dos indígenas que concluíram tratados de paz com aqueles. Tudo em von Martius reforça a sua convicção sobre o egoísmo, o belicismo e a impiedade do branco – que não consegue se refrear nem para salvar a própria vida. Von Martius tampouco muda muito ao longo do trajeto. Ele é consistente na intenção de manter sua neutralidade científica – por exemplo, quando avalia que seria melhor que os índios não retenham a bússola, para não esquecer seus próprios sistemas de orientação. A sua é uma ética da não-interferência, digna e respeitável, mas também jamais realmente sintonizada com a floresta, como mostra a sua incapacidade de seguir o tratamento médico prescrito por Karamakate quando exige pedir permissão à floresta para matar. Theo nunca esteve completamente na floresta, pois só pensa na família, nos colegas e no lar. Ele prova o caapi, que não surte nenhum efeito sobre ele, nem sequer o efeito vulgar da intoxicação que corrompe os remanescentes dos cohuianos. Com o americano, as coisas se passam de outro modo. Os anos de isolamento de Karamakate trouxeram esquecimento e insegurança. Ele já não ouve a língua da floresta e não lembra os conhecimentos da sua tribo. Ele precisa que o branco lhe traga a folha de coca e lhe recorde como prepará-la, de modo a potencializar seu efeito, como mambe. O americano decifra o mapa que desenhou para reencontrar o último pé de yakruna, e faz com que tanto as lembranças doloridas como a lembrança do conhecimento da floresta regressem. De novo, Karamakate encontra uma vantagem em se associar a um branco em quem não confia, agora porque encontra no americano alguém capaz de resgatar o conhecimento que já esqueceu. Entristecido pela perda da memória e pelo próprio sentimento de já ter se transformado em uma sombra oca de si mesmo, um chullachaqui, faz nova viagem rio acima em busca da última flor da yakruna. Trata-se de uma interpretação autoral do mito do chullachaqui, que se refere a um espírito guardião da floresta. Como o curupira do mito brasileiro, o chullachaqui tem pés invertidos que lhe dá o poder de desorientar os caçadores (MAMANI, 2018, p. 109-110). No roteiro cinematográfico, 166 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Karamakate chama os fotografados chullachaquis, tomados como duplos esvaziados. As limitações de Evan impedem que se separe do seu gramofone, porque a música é sua única forma de chegar perto do mundo dos sonhos. Ele espera que a yakruna o torne capaz de sonhar. Não que Karamakate confie plenamente que essa seja sua motivação, pois ele vê “dois”, duas pessoas ao mesmo tempo. O americano manifesta inicialmente um interesse puramente científico no conhecimento da yakruna. Mais tarde, revela interesse na capacidade da yakruna de purificar a seiva da seringueira. A tensão dramática se dá quando o americano revela sua dupla face, de branco em busca de uma vantagem bélica (o látex de qualidade superior) e de homem angustiado pela incapacidade de sonhar. Como Karamakate reagirá? Perdoará o americano e lhe permitirá sonhar por meio da yakruna, ou não? Ele porá em prática o que dissera a von Martius décadas antes, a saber, que o conhecimento é uno e deve ser partilhado? O homem branco está, finalmente, pronto a ser abraçado pela serpente e ver o mundo com os olhos da floresta? As dificuldades de conclusão de uma tal trama já se mostram. O enredo deve ser compreensível apenas se as relações entre os personagens forem mediadas pelas referências ao mito e à floresta. No entendimento do roteirista, a serpente é o elo entre os deuses e os homens, o que permitiu que eles descessem trazendo o conhecimento dos cohuianos sobre a floresta. Mas os brancos só conservam, do caapi, a experiência da intoxicação. Para eles, a serpente não é o rio, nem o elo entre o céu e a terra, como é para os cohuianos (em um dos mitos registrados por KochGrünberg, a serpente gigantesca Nyoko cresce tanto que se transforma na Via Láctea) (KOCH-GRÜNBERG, 1927, p. 268-271). A serpente não é o testemunho do que havia antes de a terra e os homens existirem. Será impossível discutir se o uso que o roteiro faz do ciclo de mitos da serpente é adequado etnologicamente. Artisticamente, há no filme uma fusão inextricável de sonho, psicodelia e revelação espiritual. Desse ponto de vista, Ciro Guerra está muito mais sozinho do que, digamos, Lazlo Nemes. Existe uma tradição de estudos científicos muito maior no caso do shoá e, | 167 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) inclusive, uma tradição cinematográfica.4 Em relação ao surgimento de um estilo poético que incorpore o mito e ao mesmo tempo a lógica ocidental, tudo é muito mais difícil. Os dois cientistas brancos só conseguem obter “alucinações” sem importância veritativa. Mas o artista nascido nessa parte do mundo também enfrenta desafios estilísticos que os seus colegas europeus não enfrentam. De qualquer modo que queiramos entender o mito da serpente e a revelação da yakruna, já merece um elogio qualquer filme que consiga se contrapor às representações clichê do nativo americano, desde o nobre selvagem até o bruto, que são as representações do colonizador. O recurso às religiões da ayahuasca não implica, por si só, o conhecimento das culturas indígenas, mas Guerra tenta evitar também o holismo indeterminado da Nova Era, como o de Avatar, de James Cameron – no fundo uma atualização do nobre selvagem que o mistura com todas as culturas xamânicas conhecidas. O final ambíguo de O abraço da serpente talvez seja mestiço, ao projetar no nativo uma resposta ao seu próprio malestar com o poderio da técnica e da sociedade administrada. É possível que, no final inconclusivo de O abraço da serpente, haja antes uma recusa a tomar o encontro como mais do que realmente é. Temos uma espécie de encontro entre o nativo e o branco, para que o último finalmente compreenda a sabedoria indígena e a perpetue. Contudo, uma iluminação tardia é incapaz de compensar por toda devastação já perpetrada e ainda por ser perpetrada, e o herdeiro escolhido pode não ser o ideal. Se o mérito de O filho de Saul está em uma tese forte, quer se concorde ou não com ela, sobre a possibilidade de apropriar-se da própria morte mesmo nas condições mais degradantes, o encontro da última flor da yakruna com o homem branco pode mudar o mundo, ou não mudar nada. As redenções de Evan e Karamakate são psicodélicas e refratárias a qualquer tradução filosófica. Não sabemos se a “viagem” resulta na aceitação resignada do homem branco como o herdeiro possível do conhecimento indígena. Mesmo depois de extinta a yakruna, o mundo conhecerá o poder do abraço da serpente? E qual o valor disso, se a Amazônia continua sendo 4 O filho de Saul foi aprovado como obra e como documento inclusive por Claude Lanzman, cujo Shoah é a grande referência para se filmar os campos. Cf. Lanzmann (2015). 168 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio o cenário de uma luta desigual, sem que nenhum Exército Vermelho venha libertar os nativos? UMA ANÁLISE CINEPOLÍTICA Talvez nenhum outro filme de um diretor iniciante jamais tenha sido tão aclamado, se Nemes for considerado estreante no formato longametragem, já que dirigiu o curta-metragem Türelem, de 2007 (INTERNET MOVIE DATABASE). O preterimento de O abraço da serpente dividiu a recepção hispanofalante. Enquanto parte da crítica colombiana ressaltou que a indicação, por si só, foi um marco histórico, outros não se satisfizeram. É o caso de Julio Cabrera, filósofo argentino radicado no Brasil, que será meu interlocutor principal nesta seção. Para ele, o mérito de O abraço da serpente é não recorrer aos elementos que caracterizam um filme feito para ganhar o Oscar. Filmes que envolvem crianças com o shoá têm um histórico de boa aceitação. Em suma, não nos enganemos: o objetivo último do filme húngaro não é mostrar como Saul conseguirá, finalmente, enterrar o corpo do menino no campo de concentração. O objetivo último do filme é ganhar o Oscar de melhor película estrangeira (CABRERA, 2016). Não há como saber se o diretor fez um cálculo para ganhar o Oscar. Em arte, só casos muito gritantes de tentativa de manipulação intelectual e afetiva são discerníveis, em meio a proposições que podem ser consideradas falhas por motivos honestos ou semi-honestos. Restanos reconhecer a qualidade retórica no cinema como dado inescapável, assim como o direcionamento das premiações de festivais e concursos. Como separar critérios cinematográficos e extracinematográficos para escolher o melhor filme, quando o cinema é a mais retórica das artes? Em outros textos, Cabrera concorda que é possível haver, por exemplo, bom cinema de entretenimento, caso se entenda que o entretenimento é um componente legítimo do cinema. Os filmes de Steven Spielberg se encontram nessa categoria (CABRERA, 1999). Acrescento que já nasceu também como meio de comoção das massas, de modo que negar-lhe este | 169 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) componente como espúrio ou acidental me parece um desejo vão. A noção de um cinema puro, no estilo de uma “beleza livre” e autônoma, ou de toda estética puramente formal, me parece totalmente questionável em se tratando de cinema – será impossível entrar em detalhes aqui. Assim, suporei que uma das razões de ser legítimas do cinema é provocar um efeito sobre o espectador. Se o Oscar gosta de filmes que mostram o sofrimento de crianças, especialmente em meio ao shoá, isso não exclui a possibilidade de um filme bom ou ótimo sobre esse tema. O abraço da serpente não é inevitavelmente melhor porque não satisfaz as expectativas da Academia, nem O filho de Saul é inevitavelmente pior porque o faz. O que importa, em qualquer caso, é que o Oscar não seja o único caminho para o julgamento favorável ou desfavorável a uma obra, ainda que seja ingênuo negar o seu peso. A posição de Cabrera deve ser entendida dentro de um contexto mais amplo de buscar um pensamento autoral e não colonizado por uma hierarquia possível entre genocídios. Novamente, a questão não é se o cinema é uma forma de retórica, mas se esta é uma retórica justa. No mínimo, é inegável que O filho de Saul pertence a um debate já bastante estabelecido. Seu diretor, mesmo vindo de um país europeu semiperiférico, se insere perfeitamente dentro de um debate recorrente desde a revelação dos campos de extermínio. Mais ainda, para Cabrera a colonização é encobridora e deturpadora da linguagem. Os intelectuais e os artistas participam dessa deturpação. A literatura sobre o shoá é muito vasta. A escolha de um interlocutor, não-especialista, sobre este assunto precisa ser justificada. Parece inegável que o shoá ocupa um lugar muito especial na nossa consciência moral (se deveria ser assim é o que está em questão). O shoá é o caso exemplar de perseguição, destruição e tortura de um povo. O cinema colaborou muito para sedimentar esse senso comum moral, mas os intelectuais também fizeram a sua parte. Nesse ensaio, estou interessada em um debate especificamente sul-americano. Não me refiro tanto à existência de, por exemplo, especialistas brasileiros, ou residentes no Brasil, na Segunda Guerra mundial e na reflexão europeia sobre ela, mesmo que alguns dentre eles sejam muito respeitáveis. Há uma diferença considerável entre 170 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio conhecer bem as obras que já foram escritas e ter uma opinião justificada e legítima sobre elas, pois o debate sobre o nazismo marcou todas as reflexões morais desde então nos países centrais, e, por conseguinte aqui entre nós. Para Cabrera, a busca de um esclarecimento sobre como falar do shoá também nos concerne no segundo sentido. Mais importante, limitar-se a ser um “especialista em especialistas” é endossar uma certa narrativa. A atitude de conhecer e preservar o que outros disseram já é ela mesma uma tomada de posição, pois ou supõe a neutralidade do especialista, ou não a supõe, mas aceita determinada interpretação dos fatos. Supondo que isso seja verdade, a distinção entre especialistas e polemistas vai ser aceita aqui, e a alegação de Cabrera de que o genocídio indígena nas Américas pode ser lido exatamente com as mesmas categorias será discutida. Vejamos como Cabrera a sustenta no caso particular da discussão sobre o shoá, que ele chama holocausto (CABRERA, 2017, p. 193-243). Ele escolhe discutir diretamente com o pensador espanhol Reyes Mate (2003). Não vou tentar situar Reyes Mate dentro do debate. Basta que Cabrera o considere um bom sistematizador da tese da singularidade do shoá. Nos julgamentos de Nuremberg, o shoá não foi tomado como a maior atrocidade que os nazistas cometeram, se comparado à própria guerra de expansão do terceiro império (MARGALIT, 1996, p. 67). O antissemitismo do regime era conhecido, mas não foi entendido como determinante. Na década seguinte, surgiram as primeiras tentativas de fazer do shoá uma chave de leitura do nazismo. Dentro do meu conhecimento, isso aconteceu pela primeira vez em 1950, quando Hannah Arendt sugeriu que o domínio total é o objetivo do governo totalitário, seja de direita ou esquerda (e de fato ele torna essas categorias obsoletas) (ARENDT, 2005). Mais tarde, em Origens do totalitarismo, a análise foi aprofundada e de tal modo que as teses com que Cabrera discute são formuladas, com grau maior ou menor de detalhe. Eis porque vou me referir principalmente a Arendt. Poderia ser mostrado que todos os tropos que caracterizam o que Cabrera chama a tese da singularidade absoluta já se encontram esboçados no capítulo 3 da terceira parte de Origens do totalitarismo, e principalmente na seção intitulada “O domínio total” (ARENDT, 1989, p. 439-510). | 171 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) O primeiro estágio do domínio exercido pelos campos é a supressão da pessoa jurídica, e o segundo, a supressão da pessoa moral. O totalitarismo rebaixa o cidadão ao animal natural desprovido de proteção legal. Ou melhor, o interno no campo é menos que um animal, pois a legislação nazista relativa aos animais é, de modo não surpreendente, uma das mais avançadas do seu tempo. O poder total sobre as vítimas do campo só foi alcançado mediante a retirada progressiva de direitos, culminando na negação da cidadania mais básica. Além disso, a falta de explicação, a expectativa constante do pior e as mudanças repentinas de ordens são outras estratégias destinadas a abalar qualquer resquício de estabilidade e, portanto, de vida humana no campo. Chegado esse ponto, a vítima está exposta a qualquer tratamento, resignando-se. A eficácia do poder total explica como os detentos, muitíssimo mais numerosos que os guardas, não se livraram deles. Fazendo de Saul um exemplo, não se trata de, ao final, decidir se ele se torna um homem bom. O filme é antes uma afirmação de como não somos “monolíticos” e como podemos alternar instantes de baixeza com outros – no caso, o gesto de resistência – sem deixarmos de ser a mesma pessoa. Para além de não ser monolítico, Saul já declara estar morto. “Já estar morto” pode dar a entender que a liquidação dos húngaros já está quase terminada, e com ela a necessidade de SKs para operar as câmaras e os fornos em ritmo acelerado. Pode significar que ele sabe que vai ser punido por abandonar seu posto de trabalho (quando vai em busca de um rabino) e que a aproximação do Exército vermelho já é conhecida no campo (e por isso as operações de ocultamento do extermínio já começaram). Quando Saul se proclama já morto, refere-se ao fato de não ter oposto resistência até então, por ter deixado que as regras do campo determinassem completamente a sua vida, por ter querido sobreviver só mais um dia. Para Arendt, o campo suprime a liberdade e espontaneidade em níveis tão inéditos que inviabiliza o uso de teorias morais prévias, baseadas na possibilidade da escolha moral. A imprevisibilidade e o sadismo dos comandantes dificultam até o oportunismo, embora de forma alguma o inviabilizem. 172 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Nos últimos sessenta anos, portanto, ganhou força de convencimento a noção de que os campos de extermínio tiveram nos judeus sua razão de ser, e que a compreensão dos campos é indispensável para a discussão do nazismo. Contudo, acontecimentos e teorias anteriores não oferecem padrões de comparação e compreensão. Essa é a tese da singularidade. Há algumas variantes suas, mas interessa-nos o sumário aceito por Cabrera, que adota a tese da tripla singularidade: “moral, histórica e epistêmica”. Cito: O argumento da singularidade parece poder ser resumido da seguinte forma: (1) O Holocausto foi feito, objetivamente, com especial crueldade e cinismo, não por razões pragmáticas ou ideológicas, mas matando por matar, não como um meio para outra coisa, mas como um fim. O nazismo estava interessado em terminar gradualmente com a humanidade de suas vítimas, em reduzi-las a mortos-vivos, a nada, à não-existência radical (Singularidade moral). (2) O holocausto foi feito de maneira sistemática e engenhosa, como um aparelho racional e frio de destruição, apoiado pelo e pela população, incluindo seus intelectuais. Foi uma fabricação burocrática de cadáveres, de extermínio totalmente racional, como trabalho de engenharia, um grande aparato racional da morte, altamente planejado, racionalizado e realizada de forma sistemática e eficiente (Singularidade histórica). (3) O holocausto é ininteligível para as nossas categorias de pensamento habitual, incluindo as jurídicas, e para nossas formas de comunicação linguística (Singularidade epistêmica) (CABRERA, 2017, p. 198).5 Trata-se de desdobrar as formulações dentro de cada um dos argumentos e rebatê-los. A singularidade moral significa que o extermínio teve motivações distintivas inéditas. Para os que a sustentam, o shoá foi, pela primeira vez, um fim em si mesmo. Em qualquer situação de conflito inter-étnico, a minoria sempre gozou das opções da fuga, assimilação ou conversão. A escalada do antissemitismo, segundo o relato famoso de Hilberg, é: primeiro a conversão foi exigida, depois a emigração e por fim, quando esta se mostrou impraticável (mas não só por isso), o extermínio. A conversão se mostrou inútil diante da concepção do judeu como raça 5 Tradução minha, novamente respeitando o uso original das maiúsculas e minúsculas. | 173 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) inimiga, o mesmo podendo ser dito da assimilação. A racionalidade clássica da guerra dita o cessamento das hostilidades quando o inimigo recua para dentro de suas próprias fronteiras. Mas o regime nazista considerou vital concentrar todos os judeus que o exército conseguiu alcançar nos países invadidos, e enviá-los por trem para os campos. Teria feito o mesmo com todos os judeus do mundo. O movimento nazista transformou a luta fatal entre raças em princípio supremo, pelo menos para efeitos da sua face pública, a propaganda. 6 A ideologia racial da luta de morte entre raças distintas, segundo Arendt e outros, foi o ingrediente específico que o nazismo acrescentou ao antigo antissemitismo. A noção de que a violência era preventiva e reativa não poderia ser mobilizada contra populações inofensivas tecnologicamente. O eugenismo das Américas visou antes o negro, como em Nina Rodrigues. O indígena não foi entendido como raça, mas o negro sim, dada uma tradição de pensamento racial pseudocientífico como o de Gobineau. Mas a perspectiva de uma luta entre forças iguais nesse continente tanto não é minimamente crível que raras vezes foi enunciada. O romance O presidente negro, de Monteiro Lobato é um exemplo de exceção, ao descrever a supostainevitabilidade de um confronto final, só que nos EUA. (LOBATO, 1926). Assim, a tese da singularidade histórica é aceita em parte. A racionalidade burocrática da solução final pode ter sido inédita, mas o “matar por matar” esteve presente na colonização das Américas. A estrutura montada para aniquilar os judeus da Europa consumiu recursos indispensáveis em tempos de guerra, e o rendimento econômico dos detentos nunca foi a razão de ser dos campos. Os campos só podem ser justificados pelo imperativo da aniquilação de um povo válido de si e por si mesmo. Alguns exemplos do sentido anti-estratégico da solução final, do ponto de vista bélico, se encontram em Hilberg: quando a malha ferroviária teve de ser usada para o deslocamento de tropas para o front e para a 6 Se é verdade que se pode debater se a luta inevitável das raças foi a convicção pessoal fundadora de todos os escalões superiores nazistas, também é verdade que a propaganda escolheu como alvo o judeu como inimigo necessário e justificador. Sobre o teor do racismo nazista e suas variantes, como a sugestão de que Hitler considerava o judeu um tipo espiritual e não biológico, uma “comunidade de espírito” Cf. Heinsohn (2000, p. 424). 174 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio concentração de judeus, ambos os usos receberam prioridade (HILBERG, 1985, p. 5-28). No entanto, a expansão territorial da colonização norte-americana também pode, segundo Cabrera, se abrigar sob essa rubrica. Os colonos não visavam riquezas que não imaginavam haver naquelas terras. A expansão, segundo Cabrera, foi um fim em si mesma (CABRERA, 2017, p. 222). Citando Bartolomé de las Casas e outros cronistas, Cabrera nos mostra o que há muito esteve diante dos nossos olhos: o alto grau de sadismo empregado em expedições que não poderiam ser descritas como de castigo ou reparação por nenhuma ofensa (CABRERA, 2017, p. 203-204). Sublinha-se, no caso dos campos de concentração, que lá a morte é certa, e ao mesmo tempo totalmente imprevisível. Ela pode ser decretada na ausência de todo motivo perceptível. Um capricho pode salvar ou matar um detento. Para constatar que o mesmo aconteceu neste continente, basta ler os cronistas. O argumento da racionalidade calculadora que envolveu a violência não resiste à leitura dos cronistas da colonização, que, concordo, deveríamos conhecer no mínimo tão bem quanto conhecemos a história da Segunda Guerra Mundial. A brutalidade empregada excedeu em muito o estritamente necessário para os objetivos visados. A eficiência calculadora que permitiu aos nazistas fabricar o máximo de cadáveres no menor tempo e com os menores custos pode ter estado ausente neste continente, mas, segundo Cabrera, isto decorre apenas do fato de que ela não era necessária nas Américas, onde se podia matar o colonizado sem a necessidade de escondê-lo (a justificativa já estava dada pelo imperativo da conversão ao cristianismo). Mais importante, o elemento de negação da humanidade é tão presente no genocídio colonizador quanto no nazista, ou até mais do que nele. Os judeus se viram aos poucos privados do seu status de cidadãos iguais ou quase iguais aos alemães arianos, até chegar ao estado de coisa da qual um oficial poderia dispor deles como quisesse, ao sabor do menor capricho. Segundo Cabrera, pode-se sustentar que o rebaixamento foi maior ainda aqui. A propósito de um relato de Bartolomé de las Casas, comenta: “não se dava de comer aos judeus, mas, que eu saiba, nenhum judeu serviu de comida” (aos cachorros do colonizador espanhol ou português) (CABRERA, 2017, p. 206). Novamente, pode-se retrucar | 175 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) que o corpo das vítimas do holocausto também foi “comido” por meio da comercialização de suas partes, embora com menor dor física (mas como medir esta?). De qualquer modo, não se trata de estabelecer quem sofreu mais. A premissa duvidosa é que o rebaixamento moral da vítima é mais grave do que a retirada, desde o nascimento, do seu estatuto civil e moral. Não se pode falar sequer em degradação quando a humanidade da vítima já é retirada desde o começo: O extermínio indígena foi executado contra seres que nem sequer tiveram a oportunidade de “perder a sua humanidade”, pura e simplesmente porque esta nunca lhes foi concedida. Nas minas de ouro e prata e nas perseguições nas florestas, os nativos eram mortos-vivos preocupados apenas com a sua sobrevivência e em um estado pré-humano ao que jamais foram “degradados”, pois, ao olhar do invasor, já tinham nascido nele. Não foi necessário, portanto, qualquer exercício de razão para exterminar indígenas, nem foi preciso desenvolver uma tecnologia de morte sofisticada para livrar-se dos cadáveres; porque ninguém se importava com eles; eles poderiam ser jogados tranquilamente para os cães comerem (CABRERA, 2017, p. 223). Se entendo o argumento, a tese dos intelectuais europeus da singularidade moral do shoá se baseia na noção de que o rebaixamento súbito é mais doloroso do que uma vida inteira de aviltamentos. A recusa desde o começo pode não ser menos grave do que o rebaixamento, seja porque ninguém realmente fica anestesiado diante do sofrimento, seja porque nessa tese pode estar embutida certa crença europeia no merecimento do sofrimento. A tese do anestesiamento diante do sofrimento renovado é bastante questionável. É possível que os intelectuais europeus não tenham se sensibilizado diante de vidas passadas inteiras em estado de aviltamento por desconfiar que ou a capacidade de sofrimento dos não europeus é menor e mais embrutecida, seja pelo hábito de sofrer e de provocar sofrimento. Quem não foi degradado, no sentido em que nunca teve “grau” que pudesse ser negado, ou não sofreram demasiado por não conhecer nada melhor, ou não se importaram (essa é a suspeita) com o sofrimento brutal infligido por eles mesmos a seus inimigos. Mas aqui estamos no terreno da suposição, 176 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio seja de uma crueldade sem limites de algumas sociedades pré-colombianas, seja de os intelectuais europeus no fundo desconfiarem que a colonização foi horrível, mas se exerceu por pessoas também más. Só podemos, como faz Cabrera, mostrar o tratamento diferenciado dado a momentos diversos de horror. No caso de Arendt, é vã toda esperança de encontrar um tratamento equitativo dado a europeus brancos e outros povos. Embora Arendt descreva o imperialismo como uma das origens do totalitarismo, de modo algum o tratamento dado aos povos colonizados é semelhante ao dado aos judeus. Recordemos sentenças como: “o abismo entre os povos ocidentais e o resto do mundo” não é primariamente um abismo de riqueza, mas é causado pela sua “falta de educação e de know-how e competência geral” (ARENDT, 1989, p. 151). Trata-se de uma resposta um tanto tecnocrática, dada a sua aposta no saber técnico como passaporte para a saída do imperialismo. A inocência dos judeus sempre foi enfatizada por ela, e eles não foram vítimas do nazismo por qualquer atitude sua, como por exemplo a incompetência de impedir que se difundisse e radicalizasse. Mas os povos subdesenvolvidos são, antes de tudo, os povos incompetentes. A incompetência, evidentemente, não exclui a inocência quando se trata de sociedades complexas, cujos membros desempenham muitos papeis. Uma situação pode aparecer como fruto da opressão para uma pessoa ou da incompetência para outra: não faltou nada em termos de puro conhecimento para que os judeus soubessem que estavam diante de inimigos mortais. Se houvesse negacionismo, as razões devem ser buscadas em outro lugar. Assim, em favor de Cabrera, seria possível concordar que já desde Arendt temos uma indiferenciação entre as teses da singularidade histórica e moral do shoá. A alegação de que o shoá não tem precedentes sempre combina as duas abordagens. Sem precedentes, para Cabrera, também significa mais abrangente, ou, simplesmente, pior: menos compreensível, menos justificável, menos merecido. A escala de crueldade, ou seja, uma escala moral, depende de uma compreensão histórica, porque se pode ou relativizar os sofrimentos dos não-brancos e não-educados, ou pronunciálos como iguais aos dos internos nos campos de extermínio. É preciso | 177 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) concordar que, se a tese da singularidade histórica do shoá significa que essa operação foi “sem precedentes” (do ponto de vista do sofrimento infligido), então é “enormemente controversa” (CABRERA, 2017, p. 199). Como o sofrimento humano não é mensurável, a tese do maior sofrimento sempre é complementada por outras formas de singularização. Se não faz sentido uma competição para definir quem sofreu mais, ou que sofrimento foi mais importante, faz sentido comparar “registros”; [S]e não faz sentido comparar horrores, faz, sim, comparar registros de horrores, quando algumas das histórias são mais insistentemente apresentadas e escondem ou nos fazem esquecer outros horrores diante dos quais teríamos o dever de nos sensibilizar também, além de tentar entender suas relações mútuas. Quando a insistência na singularidade de um horror minimiza a singularidade dos outros, isso é logicamente significativo e requer um reajuste simbólico (CABRERA, 2017, p. 222). Seria preciso, na continuação, um esforço rumo ao ajuste simbólico, só que este ajuste não consiste só no igualamento. A alegação de que o shoá foi, em si mesmo, unicamente único foi rejeitada. Não sobra a possibilidade de que tanto o shoá como a sua abordagem tenham sido únicos, cada um a seu modo. O caráter singular do shoá é antes constituído pela reação a ele. Uma conclusão de Cabrera é que a ignorância histórica está ancorada no umbiguismo, ou seja, na cegueira para outrem e seus problemas. Compreensão moral e histórica, de fato, caminham juntas. Walter Benjamin (que Cabrera não cita) deu o mote a essa transformação não só por confirmar que a história é escrita pelos vencedores, o que se soube desde sempre, como também pela tese sobre a filosofia da história de que é preciso escrever a história do ponto de vista dos vencidos. Faz parte da sensibilidade moral contemporânea reivindicar a visibilidade do oprimido como um passo inicial indispensável, donde a explosão da temática do “reconhecimento” e da visibilidade ou invisibilidade a que os oprimidos estão submetidos. O que Cabrera acrescenta à discussão sobre o reconhecimento é que não basta afirmar a sua igualdade. O status que o shoá adquiriu na cultura contemporânea, e inclusive na cultura filosófica 178 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio mediana, termina por ofuscar ativamente os outros genocídios. A meu ver, a sua proposta é de rebaixamento, no sentido em que os intelectuais do shoá foram instados a retirar a tese da singularidade e a hierarquia embutida nela como pré-requisitos do igualamento. De fato, no seu texto a terceira forma de singularidade atribuída ao shoá é até mais importante no que se trata de estabelecer, no nível do “registro”, a prioridade hierárquica do shoá e a decorrente invisibilidade de outros genocídios. Será necessário voltar a este ponto, mas a direção geral do argumento já está clara. Em vez de ocupar o lugar mais alto pela civilização e pela moralidade, agora o europeu ocupa o lugar mais alto em uma lista de sofrimentos. Se não foi um sofrimento maior, é pelo menos o mais revelador e o mais instigante – só que todas essas afirmações se tornaram questionáveis. Para concluir essa seção, parece-me que Cabrera trata a vitória de O filho de Saul como mais um sintoma de que a arte e a ciência produzidas até hoje sobre o shoá têm servido para reafirmar o predomínio europeu. A crítica de Cabrera é que o ineditismo alegado do shoá é discutível tanto em relação ao passado como ao futuro e que intelectuais e artistas, ao insistir na tese do ineditismo, promovem um ofuscamento epistêmico e moral de outros genocídios. Essa hierarquia rebaixa ativamente a importância do extermínio indígena. Para concluir, vou apenas apontar algumas direções desse debate que, a meu ver, poderiam ser escolhidas. Elas não implicam contestar a alegação perfeitamente válida de ignorância histórica e indiferença moral, por parte dos intelectuais do shoá, diante de realidades extra-europeias. Pergunto apenas se, apesar disso, ou apesar de si mesmos, eles interessam a nós. Primeiramente, alguns aspectos importantes da tese da singularidade histórica devem ser abordados. Mais do que só um modelo de administração das raças inimigas, o shoá é o capítulo final de um experimento social nunca antes tentado. O campo é uma novidade enquanto o protótipo da futura sociedade nazista planetária. O fato de o antissemitismo ter sido a motivação explícita e real dos campos não impugna a sua adaptabilidade a toda humanidade. Em segundo lugar, deveria ser notado que nem todo | 179 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) intelectual do shoá se põe no lugar da vítima por excelência. Pode haver um desejo de compreensão honesto e bastante aberto ao sofrimento alheio. Foi mencionado acima que existem tendências contemporâneas a levar em conta temas constrangedores para os sobreviventes, como a colaboração forçada no extermínio. O “muçulmano” está no espectro quase oposto ao Sonderkommando. O muçulmano, no jargão dos campos, não é o devoto do Islã.7 O muçulmano é o detento mais passivo, incapaz da menor reação – mesmo que a “reação” dentro do campo possa ser um sentimento ou pensamento invisíveis e privativos. O muçulmano também é um tema tardio na obra de Primo Levi e nos estudos sobre o campo, pelos motivos opostos ao que leva ao interesse pelos “comandos especiais”: ele é o prisioneiro mais indefeso. É aquele que não aprendeu a proporcionar para si mesmo as condições básicas da sua sobrevivência, seja por qual motivo for. Alguns não dominam o idioma, outros não compreendem o funcionamento do campo, nem como conseguir comida, roupas, botas e outros itens básicos. O campo tem necessariamente os seus muçulmanos, pois os meios de subsistência nunca são suficientes para todos. Ao mesmo tempo, os campos não podem ser fechados em vista do seu papel privilegiado no propósito da dominação total. Assim, os muçulmanos precisam ser a maioria, sempre renovada pela chegada de novos detentos pela linha de ferro. Ao retirar o indivíduo da proteção e do olhar de qualquer sistema legal digno desse nome, ele se torna invisível. É impossível saber quem ele é, se está vivo ou morto, no sentido em que o detento está totalmente privado de liberdade. Ele não tem cidadania, direitos e controle sobre a própria vida e a própria morte: “os campos roubaram da morte a condição de desfecho de uma vida realizada [...] provando que, doravante, nada – nem a morte – lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia existido” (ARENDT, 1989, p. 503). O detento do campo de concentração sabe que outros vão ser punidos, se cometer suicídio, de modo que nem essa alternativa lhe resta (ARENDT, 1989, p. 7 Uma explicação para o termo “muçulmano”, recolhida por Agambem, é “homem-concha”, Muschelmann em alemão. Contudo, ele conclui que o nome provém da passividade atribuída pelos ocidentais aos orientais. Cf. Agambem (2008, p. 54, [Homo Sacer III]). 180 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio 503). Toda resistência parece se tornar fútil. Quando o detento abre mão do último resquício de resistência interior e invisível, ele se muçulmaniza. Privado de todo resquício de vida própria, o muçulmano é o último grau entre o morto e o vivo, tanto biológica como moralmente. Os campos “roubaram a própria morte do indivíduo”, não só ao impedirem-no de escolher como quer morrer, mas no sentido em que a distinção entre vida e morte se apaga em uma existência plenamente dominada (ARENDT, 1989, p. 503). O muçulmano habita o “umbral extremo entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano” (AGAMBEM, 2008, p. 55). Nemes parece se inspirar nessas palavras, mesmo que não as tenha lido em primeira mão. Assim, a falta de enterro digno não se afigura mais como a última ofensa entre outras tantas, ainda piores, que a precederam. A insistência de Saul em enterrar o filho dignamente é uma forma de lhe devolver a humanidade retirada pelos nazistas para que o mundo saiba que a criança existiu. No processo de provar que o filho existiu, mediante o enterro decente, Saul também resgata o seu próprio ser-para-a-morte. Uso a noção famosa de Heidegger para sugerir que existe uma quase tese ao modo do primeiro Heidegger, no que diz respeito à possibilidade de nos apropriarmos da nossa morte, mesmo em condições extremas. Assumir a própria morte é assumir as possibilidades desencobertas quando se desperta para a distância entre o presente e o fim – iminente e indeterminado ao mesmo tempo. Deixar ou não que o campo dite não só os termos em que a vida termina, mas também o que é feito com o corpo que fica para trás é aceitar que uma situação fática dite os nossos projetos. Nos seus últimos momentos, resgatar a pessoa moral que o campo aniquilou, por meio do ritual fúnebre, é assumir uma relação pessoal e intransferível com a morte e a vida que resta. Contudo, um projeto de poder total não cabe nos limites hermenêuticos de Ser e tempo. O campo apresenta dilemas tão sádicos e pervertidos aos internos que apaga as fronteiras entre culpados e inocentes. O problema de restituirmos a Saul uma persona moral não é só que um único gesto heroico é incapaz de redimir um número muito maior de gestos torpes. O problema é identificar um discurso e um agente moral legítimo depois de um experimento social como o campo de concentração, em | 181 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) que o humano é forçado a ultrapassar os limites da inumanidade. O filho de Saul, a seu modo, ecoa debates filosóficos recorrentes no pós-guerra, a saber, se o mal testemunhado nos campos não constitui um desafio às nossas categorias filosóficas. A resposta – indireta – de Heidegger foi o anti-humanismo e a renúncia completa a um pensamento que admite a retomada da individualidade perdida. O segundo Heidegger rejeita a vontade, que ele entende como voluntarismo, em nome da lassidão como resposta possível à indigência da noite niilista. A pergunta não é mais se a morte própria é uma possibilidade – nesse caso, O filho de Saul seria um filme “falso”, implausível e não-realista. A noção de domínio total de Arendt também sugere uma inflexão qualitativa no modo como o poder é exercido: a burocracia não é um instrumento neutro quando permite um controle mais preciso e completo de todo comportamento humano. O campo de concentração é o protótipo da sociedade futura. Para refutar na sua versão integral a tese da singularidade histórica (e por versão integral refiro-me às teses de Arendt e a de Giorgio Agamben), seria necessário afirmar a indiferença da racionalidade burocrática por trás do shoá. Inspirados pelo segundo Heidegger, Arendt e Agamben veem uma forma nova de poder que não só não anula as formas de baixa tecnologia como as usadas nas Américas como se somam a elas. A noção de que o aparato burocrático não é neutro não se dirige a negar formas anteriores de poder, mas a somar-se a elas, criando novas camadas de dominação. Talvez a filosofia contemporânea se debata precisamente entre as alternativas da resistência e não-resistência ao mal radical. Agamben tenta evitar a escolha entre voluntarismo e lassidão tendo por modelo precisamente o último Primo Levi. Embora haja outros depoimentos, Levi é o único que, segundo Agamben, se propõe conscientemente a testemunhar em nome dos “afogados”, dos que foram destruídos e chegaram ao fundo. Primo Levi e outros sobreviventes reconhecem que nenhum interno ajudava os muçulmanos na sua descida até o esquecimento. Ao contrário, a incapacidade de se ajudar do muçulmano permite que outro sobreviva sem precisar sequer lhe dedicar um olhar. Sobreviva, indiretamente, às suas custas. Zalmen Levental admite que 182 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio “em 1941-2, todo, rigorosamente todo, indivíduo que vivesse mais de duas semanas não pôde fazê-lo senão vivendo em detrimento de outros” (CALMANN-LÉVY, 2005, p. 103). Em Os afogados e os sobreviventes, ainda mais claramente do que em outras obras, Levi famosamente recusa o papel de porta-voz das vítimas, não porque tenha iludido ou explorado diretamente um muçulmano, mas porque reconhece nele a vítima “integral”. Os únicos inocentes, verdadeiramente, são os que pereceram sem se acomodar de modo algum. Os outros internos habitam uma “zona cinzenta” em que são culpados e inocentes ao mesmo tempo, por conseguirem se adaptar ao horror (LEVI, 2016, p. 27). O muçulmano também é o detento que desperta o maior mal-estar. O fenômeno da “culpa do sobrevivente”, que pode existir de modo independente das ações reais do sobrevivente, já fora observado: ele pode não ter prejudicado o que não sobreviveu, mas se sente culpado por não ter feito mais (por não ter se insurgido, ou por não ter sido solidário), ou simplesmente por não ter morrido. O reconhecimento de não ser a vítima integral já é uma rejeição da posição de vítima privilegiada. Mas esse fenômeno psicológico está associado ao paradoxo do testemunho em Primo Levi. Os sobreviventes fizeram concessões, ou tiveram habilidade ou sorte, os que os poupou de sucumbir. Segundo Levi, os melhores, porque menos adaptados, pereceram todos (LEVI, 2016, p. 65). A testemunha integral vivenciou todas as formas de sofrimento e opressão, até sucumbir. A testemunha integral viu o horror mais de perto, e o sobrevivente só pode testemunhar em seu nome, e cuja credibilidade depende de apresentar-se, precisamente, como uma vítima não-integral. O testemunho da opressão mais profunda é o que não pôde ser dado. O sobrevivente não está no seu lugar nem pode se nomear seu porta-voz. A história dos campos de concentração foi escrita por quem não bateu no fundo e carrega a culpa e a vergonha de sobreviver. Os sobreviventes são as testemunhas possíveis, mas não integrais. Para fazer justiça ao texto de Primo Levi e ao seu tratamento por Giorgio Agamben em O que resta de Auschwitz, muito deveria ser dito, mas a pergunta que nos concerne aqui é a seguinte: como esta reflexão se situa diante da acusação de Cabrera? Na reconstituição de uma cultura | 183 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) sobre o shoá, Cabrera deixou completamente de fora o fenômeno da culpa do sobrevivente. Em seu favor, diga-se que ela pode conviver perfeitamente com a tese da singularidade. A culpa do sobrevivente do shoá por não ter perecido no campo ainda poderia ser vivida como uma culpa “especial”, de sentido mais elevado – a não ser pelo fato de que Levi e Agamben não afirmam nada do gênero. Mais importante, a noção de um biopoder, como descrito por Agamben em toda a série de escritos intitulada Homo sacer, modula a tese que Cabrera chama “da singularidade epistêmica” do shoá, do mesmo modo que Arendt faz quando se refere a uma era nova e desconhecida até hoje. A direção geral do argumento de Cabrera é de rejeição: o fundo do poço moral para a espécie humana já foi atingido há muito tempo. A diferenciação interna entre sofrimento de alta e baixa tecnologia social não só não muda essa realidade como também a mascara. Mas suspeito que tal resposta mostra apenas um abismo de princípio entre as respostas. Chegado esse ponto, parece-me que nos aproximamos de um limite em que cada uma das partes recusa o que a outra considera ser uma evidência. O intelectual do shoá poderia responder que o sofrimento nos campos não foi menor, mas continua sendo qualitativamente distinto, de uma forma que ainda não foi estudada. Para os adeptos da tese da noite profunda do niilismo, o poder está hoje em espiral de diversificação e crescimento (quando atinge novos humanos ou quase humanos como o óvulo, feto, o agonizante, etc.). Cabrera continuaria respondendo que dizê-lo é não assumir que a única novidade real é que europeus tenham sido submetidos a práticas que antes permaneciam fora da Europa, de modo que ser privado de cidadania não é pior de nunca tê-la tido. A reflexão sobre a colonização da Amazônia desde dentro (em que falar de dentro não é nem falar como o europeu, nem como o nativo, mas do que resultou desse encontro) encontra uma dificuldade adicional que consiste não na sua negação direta, mas em um expediente que consiste em lhe dar uma dignidade menor. As circunstâncias particulares do shoá se devem à particularidade de todo evento histórico. Com a referência a Agamben, sustentei que parte da literatura atual sobre os campos consiste hoje em um exercício de equilíbrio entre ouvir 184 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio as queixas legítimas de todos os povos e a pergunta sobre a peculiaridade de novas formas de dominação. Novas formas de dominação nem anulam as antigas, que podem conviver com elas, na verdade até as acentuando. Enquanto a pergunta sobre se formas mais técnicas de dominação são realmente mais perversas e totalizantes (ou apenas surpreendentes porque novas) continua em aberto, Giorgio Agamben tenta equilibrar a tese arendtiana da ruptura histórica e do surgimento do mal radical em 1942 com a desafetação perspicaz de Primo Levi. “O que resta de Auschwitz”, em primeiro lugar, pode ser a pergunta sobre como o memorialista lida com o fato de não ser ele mesmo a maior vítima. Segundo Primo Levi, para cada opressão narrada e reivindicada, existe uma outra mais poderosa, cujo poder se manifesta inclusive na sua invisibilidade. Assim, para usar os termos de Levi, o intelectual (sul-americano ou não) não é o muçulmano, mas o sobrevivente. O filósofo que aponta as vítimas esquecidas até pelos pensadores éticos está recuando um pouco mais na direção da testemunha integral. Contudo, esse discurso, eleaticamente, está fadado a não alcançar nunca o da vítima: assim como Aquiles nunca alcança a tartaruga. A lição de Auschwitz é o paradoxo do testemunho. O abraço da serpente é dedicado a todas as tribos amazônicas que sumiram sem deixar traço. Contudo, não são elas as protagonistas do drama, mas antes o sobrevivente, o pajé de um povo aliciado que por isso mesmo também já se define como uma sombra vazia. A tarefa de Ciro Guerra e de todos os artistas latino-americanos em busca de um estilo próprio consiste em conservar a memória dos que não deixaram traço, mas também em problematizar sua condição de intérprete. O “umbiguismo” espreita sempre, e talvez inexoravelmente. Tomemos o caso de Bartolomé de las Casas, citado por Cabrera como modelo de pensamento ético avançado, ancorado em um cristianismo da igualdade. Em um Memorial de remédios para las Indias, propôs que os índios fossem substituídos por negros trazidos de Castela ou da Guiné. A sua condição prévia de escravos justificaria a troca. Os sofrimentos dos índios foram considerados ofensivos, mas os tormentos dos africanos trazidos para cá foram relativizados com o auxílio do clichê da sua força física e resistência superiores, que dispensavam cuidados (LAS CASAS apud CAMPLANI, 2011). Anos depois arrependeu-se em parte, condenando a | 185 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) guerra santa pela conversão dos africanos exceto por alguns casos lícitos.8 Assim, pode-se falar de um genocídio interatlântico não mencionado no texto de de las Casas e tampouco por pensadores pós-coloniais. É necessário modificar o modo como os estudiosos tratam as relações entre 1492 e 1942, e é possível mostrar a fragilidades de teses claramente eurocêntricas. Mas a literatura sobre o shoá não é monolítica, como o pensamento pós-colonial tampouco é. Nos dois casos fica claro que nossa capacidade para a compaixão e compreensão estão limitadas por fatores diversos, a predileção de uma comunidade de estudo dentre outras não sendo o menos importante deles. REFERÊNCIAS AGAMBEM, Giorgio. O que resta de Auschwitz: O arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. [Homo Sacer III.] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. 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A cartografia de uma obra cinematográfica, pois, também parte do pressuposto de que o filme faz pensar, mas, sobretudo, ela quer marcar os traços, esboçar pontos luminosos, ligar áreas estranhas entre si até poder formar um mapa capaz de dar ao pensamento um objeto: um “fora” onde ele possa ganhar espessura, e dizer-se. O filme que escolhemos perseguir com alguns marcadores e fios de ligação tem um título curioso: Luk’Luk’I. O que é isso? Nos perguntamos no início. Mas, findo o filme, não largamos fácil a mesma pergunta. O que é isso? O que foi isso? O que 1 Professor titular de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba – UFPB / João Pessoa / PB / Brasil. E-mail: andradesimples@gmail.com 2 Professor de Filosofia da Rede Estadual de Educação da Paraíba. E-mail: varelacaiof@gmail.com https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p189-210 | 189 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) isso que acabou de acontecer na tela como um conjunto de situações nos obriga a dizer? O que isso nos enfia goela abaixo a pensar? Logo na primeira cena surge-nos algo não menos intrigante: temos uma cidade noturna em pleno movimento, e apenas o barulho de um cachorro chorando, latindo, a acompanhar. Após isso, aparece um homem levantando de uma cama, vestindo-se, e deixando uma mulher, que continua deitada. O homem a deixa de um modo que quase entendemos ter havido ali, não uma relação sexual entre marido e mulher, mas, no mínimo, uma relação de sexo casual. A mulher, ainda deitada, e já livre do parceiro, faz o sinal da pomba da paz com as mãos contra a luz vermelha que lhe chega em seu quarto penumbroso através de sua janela solitária. O filme mal começa e já nos deparamos com alguns “signos”, isto é, com ofertas de sentidos ainda não simbolizados, ainda não preenchidos com conotações que possam vir a constituir um plano de imanência capaz de circunscrever uma ou várias significações. Há a luz vermelha e há a pomba da paz. Há um homem que sai e uma mulher que fica e, entre os dois, entre a presença e a ausência, há um cão. O signo se torna símbolo do que adiante chamaremos de uma política do desejo, ou melhor, já que o desejo são forças moleculares, chamaremos de uma “micropolítica” de forças contrastantes, entre a ação e a reação, entre a atividade e a reatividade, num espaço de vida fora da subjetividade, porém dentro do corpo vivo de cada um. Pomba da paz + vermelho do sangue: uma paz violenta? O contraste “sígnico” trabalharia, então, para revelar o contraste “simbólico” entre o desejo e a realidade social, o desejo de paz e a violência do social (ou a máquina de transformar desejo em produção material). O plano de imanência se deixaria ver na formação da realidade social como força reativa, e o desejo de romper com essa materialidade reativa da força social como contraparte de algo que se furtaria à continuidade própria do que somos levados a chamar de “realidade”. Esse contraste entre realidade (forças reativas, já constituídas, o ente) e desejo (forças ativas, em vias de se constituir, o ser como devir), entre delírio e condição material da existência, pois, ele perfaria a micropolítica das forças, e o filme em foco, nos interstícios de cada cena, trabalharia para nos mostrar o movimento micropolítico trabalhando em imagens (perceptos 190 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio e afectos), oferecendo-se às operações de pensamento (os conceitos), para usarmos as expressões de Deleuze e Guattari (2010, p. 193). Assim, um homem (em seu boné, um nome escrito: Jesus) joga vídeogame com um amigo. Ao sair do jogo, entra no Facebook e encontra o perfil de seu filho. O homem afirma não o ver ou falar com esse filho há muito tempo. Pede para seu amigo escrever uma mensagem para o filho dizendo que quer encontrá-lo. Que o filho ligue para ele. O homem é viciado em droga injetável e pede para esse seu amigo dez dólares para arranjar o próximo “pico”, afirmando, sob o típico efeito das forças reativas, que será o último. Aqui, mais uma figura da micropolítica antevista: o desejo de ver o filho (ativo) e a fissura de mais um pico (reativo). A fissura seria da ordem de uma sociedade que possui sua estatística de drogados, e da qual aquela figura faz parte. Dizer “será o último” é pôr em cena um certo desejo de largar; mas o vício, assim como a totalidade social, faz o indivíduo sucumbir ao movimento total da máquina de produzir viciados. Ao mesmo tempo, o desejo sadio de rever o filho destila-se por dentro da derrota do indivíduo, como uma afirmação que resistisse à negação, como uma atividade que pulsasse contra a reatividade que o consome. O mapa, nesse ponto, toca o limite tênue entre a liberdade de o indivíduo ser ou não viciado e a sociedade, que produz esses indivíduos “livres”. Daí o desejo de criar linhas de fuga. O amigo do pai drogado, também ele um viciado, ao se drogar, tem uma “viagem” na qual aparece um disco voador que projeta sua luz sobre ele, conotando uma abdução alienígena. Seria, porventura, o desejo de permanecer indivíduo enquanto o escolhido para ser catapultado para além da Terra. Outro homem aparece, em sua casa, na cama, com uma deficiência motora notável. Ele sai com dificuldade sozinho de sua cama para a cadeira de rodas e vai ao shopping onde encontra uma patinadora, que está fazendo suas manobras no meio do local; para-a e pergunta se ela não gostaria de ir, com ele, encontrar um ingresso barato para o jogo (estão acontecendo as olimpíadas de inverno), para assistirem juntos. A moça se nega a ir e tenta vender a ele uma de suas camisas, pois ela afirma ser famosa e precisar vender tais camisas para arrecadar dinheiro. A patinadora encontra-se com uma pessoa que criou o design para sua marca e suas camisetas; ela está insatisfeita com o resultado | 191 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) e afirma que não tem brilho suficiente. Digno de nota é que ela sempre está afirmando ser famosa (e ser mulher), enquanto mostra para o designer seus vídeos patinando pela cidade. O rapaz pede o pagamento pelo seu trabalho e ela diz ter dinheiro, mas reafirma que é famosa e traz muito amor para as pessoas, o rapaz fala que precisa de dinheiro e não de amor, ao que ela diz que amor vale mais do que dinheiro. No meio da conversa passam por ali um grupo de torcedores (do time nacional de Hockey). Os rapazes começam a praticar bullying com ela do lado de fora do local: entre eles uma vidraça. A patinadora decide tomar satisfação com esses rapazes, vai atrás deles e acontece uma briga na qual eles tiram a câmera que ela usa para fazer seus vídeos e a quebram. A patinadora, e não os arruaceiros, é presa por conta da briga ocasionada pelo grupo de torcedores; os policiais alegam conhecê-la; tratam-na como louca e insistem em chamá-la por seu nome de registro (Jeffrey Dawson): ela é uma mulher trans. A tensão social das forças ativas e reativas, a micropolítica do desejo, não cessa de se desdobrar. O cadeirante continua tentando encontrar ingressos para o jogo, com ambulantes na rua, e é na maioria das vezes ignorado, até um daqueles ambulantes dizer que conseguirá os ingressos pra ele, pedindo para segui-lo até um local ermo, onde, fica sugerido, rouba de sua pochete o dinheiro reservado para a compra dos ingressos. O homem (do boné escrito Jesus) consegue, supostamente, já que estamos no estreito limite entre a alucinação e a realidade, marcar com seu filho um encontro para assistir uma das partidas do jogo olímpico, mas ele estava “trabalhando”, tirando um monte de terra de um lugar para colocar em outro, em uma casa, e seu “patrão” o impede de sair mais cedo para o suposto encontro com o filho. A moça da primeira cena compra um presente que, pelo teor (tiaras, brinquedos de loja de 1 dólar), enseja saber tratar-se de uma mãe, cuja filha estaria aniversariando naquele dia. Em outra cena, ela é impedida de ver a filha: tudo indica tratar-se de uma ordem da família ou de algum funcionário de conselho tutelar, alegandose que ela estava bebendo e/ou sendo violenta por conta de um incidente fortuito captado pelo som do celular: alguém esbarra nela e derruba seu aparelho no chão e ela o xinga. 192 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio A partir daí começa a ficar claro para nós que o filme se oferece como um amálgama bem intricado de delírio e realidade; de desejo de estar em outro lugar e obrigação de estar aqui. A micropolítica dá-se como uma luta entre o desejo de afirmação de si de cada um e a máquina social que mói esse desejo. Tal máquina pode ser chamada de várias formas: Estado, capitalismo, sociedade, violência. E necessariamente todas essas formas fazem parte dela. O que Suely Rolnik chama de capitalismo financeirizado pode ser explicado como uma nova forma de regime que se atualiza desde o modo anterior do capitalismo industrial. “O regime capitalista anterior”, diz Rolnik, “precisava de corpos dóceis que se mantivessem sedentários, cada um fixo em seu lugar, disciplinarmente organizados (como os operários da fábrica)” (ROLNIK, 2018, p. 165). Todavia, a tritura do desejo de cada um em sua singularidade progride com as transmutações do próprio regime do capital. “O capitalismo financeirizado necessita de subjetividades flexíveis e ‘criativas’ que se amoldem, tanto na produção quanto no consumo, aos novos cenários que o mercado não para de introduzir” (ROLNIK, 2018, p. 165). O compasso entre o delírio do desejo e a realidade de interdição de sua realização força a plasticidade dos sujeitos. “O regime necessita produzir subjetividades que tenham suficiente maleabilidade para circular por vários lugares e funções, acompanhando a velocidade dos deslocamentos contínuos e infinitesimais de capital e informação” (ROLNIK, 2018, p. 165). O que vemos em Luk’Luk’I é o que nossa autora chamaria de micropolítica ativa e micropolítica reativa, porém travadas simultaneamente, e do lado dos excluídos do capital como parte de sua engrenagem. Diferente da macropolítica que busca a sustentação de um status quo (seja ele à gauche ou à droite), a micropolítica se desenvolve pelos veios do corpo de cada um; seria o desejo que se move e o desejo que se esbarra, a força ativa e a reativa que separa a primeira daquilo que ela pode (DELEUZE, 2018, p. 56): um homem deficiente que deseja um amigo (pra assistir ao jogo, mas mais do que isso); uma mulher mãe que deseja transbordar seu amor pela filha; uma mulher trans que busca a fama como desportista (patinadora) portadora de responsabilidade social: ela ajuda na organização do trânsito; um pai desgarrado que deseja reencontrar-se | 193 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) com o filho; um homem viciado que busca a fuga totalmente completa da realidade (uma abdução). E, em tudo isso, o empecilho causado pela máquina trituradora de desejos: o preconceito com a deficiência; a falta de emprego; a transfobia; o preconceito com a loucura; com o vício; etc. A máquina social, molar, constituída, real, existe contra o desejo que, sufocado e separado do que pode, transforma a atividade produtora de mundos moleculares em meros delírios. Ou dito de outro modo, o delírio se efetiva como tal pela impossibilidade social (material) de realizar-se como um desejo efetivo, que poderia criar milhões de mundos, mas jaz sob a imaterialidade da alucinação. Observemos mais de perto essa dupla máquina, a desejante, que se degenera em delírio; e a de moer desejos, que se degenera em realidade supostamente incontornável do capital vencedor da história. Olhemos essa última máquina, por um momento, pela ótica do preconceito. Que seja, então, evocada a diferenciação feita por Félix Guattari em seu livro escrito em parceria com Suely Rolnik, Micropolítica: cartografias do desejo, sobre a questão da marginalidade e das minorias. “É preciso distinguir as marginalidades e as minorias. Trata-se de uma distinção de método. Na linguagem habitual, podemos dizer que as ‘pessoas-margens’ (marginais) são as vítimas de uma segregação e são cada vez mais controladas, vigiadas, assistidas nas sociedades (ao menos nas desenvolvidas)” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 119). Sabemos do uso que Michel Foucault faria dessa contingência em seu livro Vigiar e punir. “No fundo”, continuam nossos autores, “tudo o que não entra nas normas dominantes é enquadrado, classificado em pequenas prateleiras, em espaços particulares, que podem até mesmo ter uma ideologia teórica particular”: tudo é cercado na vigilância, e tudo está disposto à punição. “Há, portanto, processos de marginalização social à medida que a sociedade se torna mais totalitária, e isso para definir um certo tipo de subjetividade dominante, à qual cada um deve se conformar.” Isso ocorreria “em todos os níveis: desde a roupa que você usa, até suas ambições, suas possibilidades subjetivas práticas”. Isso quanto aos marginais. “As minorias são outra coisa, no sentido de que você pode estar numa minoria querendo estar nessa minoria. Há, por exemplo, minorias sexuais que reivindicam a não participação no modo de 194 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio valores, de expressão da maioria. Podemos imaginar uma minoria que seja tratada como marginal ou um grupo marginal que queira ter a consistência subjetiva e o reconhecimento de uma minoria, por exemplo” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 119). No território fílmico explorado aqui, e uma vez que seu cenário é uma das metrópoles canadenses (Vancouver), a marginalidade como um espaço imposto pelo social denota muito melhor a realidade de tais personagens que, entrementes, não estão fora do que se poderia também chamar de “minorias” (como no caso da transsexual). Nesse terreno movediço, vemos o trabalho micropolítico estender-se na tensão já referida entre o desejo de cada um, como uma espécie de ponto focal na nossa cartografia do plano de imanência que o filme imprime, e a máquina social, azeitada nos corpos dos próprios sujeitos desejantes. O cadeirante, então, reaparece, agora em um bar cuja singularidade consiste em exigir de seus clientes que participem de um jogo de bingo, não se podendo beber um trago a não ser com sua cartela à mão. Nosso cadeirante diz não querer jogar, apenas beber; em contraponto, a funcionária do bar insiste que só pode consumir quem participar do jogo, e pede para a pessoa ao lado ajudá-lo com o preenchimento da cartela, por conta de sua precária condição motora. O jovem e belo homem da mesa ao lado aceita o encargo, ainda que relutante. Nesta cena ainda é mostrado que o cadeirante e o homem da mesa ao lado se conectam, conversam e dão risadas. No final da noite, o cadeirante ganha o bingo, cujo prêmio são nada menos que dois bilhetes de ingresso para a celebração final da olimpíada. Nosso personagem, que tanto desejou esses bilhetes, agora convida para ir com ele ao jogo o novo “amigo”, o companheiro de bar, que ficamos sabendo ser viúvo de um esposo muito amado. O belo viúvo reluta um pouco, mas aceita o convite. Aqui tudo se torna por um momento potência de afirmação. A vida parece abrir-se para novas possibilidades. É nesse clima de potência das forças ativas que a patinadora também reaparece, agora presa. Em sua cela, começa a sonhar acordada. Em sua fantasia, está patinando em um rinque de gelo, com holofotes focados em sua apresentação. Num certo momento ela está apenas com um parceiro que acompanha seus movimentos dançarinos; em outro, está acompanhada de várias mulheres que são apenas “figurantes” de sua apresentação, exaltando | 195 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) pelas margens a sua performance central. O filme subitamente quase se torna um musical. É interessante chamar atenção para um detalhe dessa fantasia glamourosa: a música que acompanha a dança traz na letra a frase: “this is my destiny”. O destino do ser humano seria afirmar-se: deixar que suas forças estejam juntas daquilo que elas podem (DELEUZE, 2018, p. 56), ir até o limite do que pode um corpo. Mas, se a fantasia fala dessa realidade ontológica, a realidade nua e crua grita seus absurdos. A mãe encontra sua filha aniversariante, também em um rinque de patinação, entrega seus presentes, a filha demonstra ter adorado, as duas se abraçam e conversam, a cena se passa como um encontro muito feliz, principalmente para a mãe. Mas tudo indica que essa cena não acontece “de verdade”: é a projeção de um desejo. Da mesma forma, o homem (de boné Jesus) está em um karaokê, o bar está vazio, ele começa a cantar e fazer uma exibição de uma música em cuja letra aparecem as palavras: “I gotta do it my way, or no way at all”. Seu filho aparece em um lugar escuro e ermo do bar, assistindo-o. Eles afinal se encontram e seguem para também assistir ao jogo. Todavia, o homem está aparentemente inquieto muito provavelmente por causa da abstinência de droga. Conversa poucas coisas com seu filho, mas não consegue manter o foco em nenhuma conversa. Súbito pede ao filho dez dólares para comprar algo, que não especifica. Os mesmos dez dólares do começo do filme? O filho, com a carteira cheia de dinheiro, entrega a grana ao pai, que sai sem dar explicações e não assiste o jogo. O homem do desejo de abdução também reaparece. Agora a caminho de uma casa muito bonita e que parece casa de pessoas abastadas. Ele, junto com seu skate, traz um buquê de flores. Somos levados a pensar que aquele teria sido um dia o seu lar. Quando chega, bate à porta, mas ninguém o atende. Tenta de novo, e a mesma coisa acontece. Ele decide dar a volta na casa, olhar se tem alguém. Enquanto arrodeia, passa por uma cozinha: a câmera filma por dentro da casa e mostra flores mortas em um jarro, estas iguais as flores que ele carrega na mão; e uma mulher que suspende a respiração enquanto se esconde dentro da casa, para fazer crer não haver 196 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio ninguém ali. Quando o homem volta à porta da frente, vê-se uma viatura policial. Ele vai novamente tentar bater à porta. Os policiais saem da viatura e perguntam se ele mora nesse local. “Morava”, ele responde. Um dos policiais pergunta: “Pode vir conosco?” e o levam em sua viatura. Nem, de fato, a mãe encontra a filha; nem o pai, o filho, a não ser no mundo do delírio, porém ambos são encontrados pela realidade positiva das decisões judiciais ou pela realidade biológica do vício. E quando, na realidade mesma, sem fantasia, um dos personagens procura reatar seu vínculo com esse real duro, as forças policiais aparecem para mostrar a impossibilidade disso. Na micropolítica entre a máquina desejante e a máquina de estilhaçar desejos, a realidade é responsável pela ironia dos acontecimentos prováveis. O cadeirante aparece novamente em sua cama, assistindo uma reprodução do jogo. Ele está feliz, vendo os casais aparecendo na Kiss Cam (tradição em jogos na América do Norte, quando a câmera foca em casais que, ao aparecerem no telão dentro de um formato de coração, beijem-se para a câmera, sendo ovacionados pelos outros torcedores nas bancadas), e o desejo de estar no meio daqueles casais é tão grande que, nesse momento, ele se vê igualmente com o seu novo amigo, aparecendo na Kiss Cam, eles trocam olhares acanhados e o seu companheiro para júbilo geral o beija. Mas, em seu quarto real, ele está apenas emocionado com o momento vivido somente em imaginação. Ele sai da cama, sobe em sua cadeira de rodas, vai até o corredor, prontamente vestido para a date com o novo amigo, o viúvo bonitão, mas o elevador está quebrado. Resta-lhe, então, duas opções: sair da cadeira, jogar-se no chão e descer as escadas, arrastando-se pela realidade humilhante; ou continuar seu dia fantasiando uma segunda possibilidade, a do desejo que o dignifica. Em certo momento, Luk’luk’I começa a iluminar certos locais de seu terreno e podemos ver mais de perto seus movimentos mais íntimos. Vemos dois principais que, ao serem iluminados, mostram relevos completamente diferentes. Começamos pela mãe, que aparece em uma cena entregando o presente, ainda fechado, para um amigo (provavelmente pai de menina também), nos mostrando que o seu encontro com a filha não teria passado daquilo que Freud alhures chamou de sonho diurno. Após entregar o | 197 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) presente, chama esse amigo para se drogar na casa de outro. Este outro com quem ela se encontrará é o homem de boné (Jesus), que agora entendemos ser ele o pai também da filha dela. Ele, então, confessa estar infectado pelo vírus HIV. Outro relevo iluminado que encontramos é o amigo do cadeirante, que aparece na frente do estádio, com um ingresso na mão, nos mostrando que na verdade eles não chegaram a se encontrar e assistir juntos ao jogo. Logo após, vemos o amigo correndo até a casa do cadeirante, encontrando-o no chão da escadaria de seu prédio e o ajudando. O cadeirante diz ao amigo: Não achei que viria, pensei que estivesse com medo. Também estou com medo, mas vai ficar tudo bem porque podemos ficar com medo juntos. Isso é... tudo está tentando nos impedir, nos dizendo que não podemos, mas por isso é tão especial. Há tantas maneiras de perdermo-nos um do outro. Eu sei, também estou perdido. Que importa quantos amantes a gente tem se nenhum deles pode te dar o universo? O universo é um lugar amedrontador, muito amedrontador, mas a gente pode segurar firme, se nós dois segurarmos bem firme, talvez não percebam quem tem mais a perder. Talvez eu possa te dar... o universo. Ao som desse monólogo, vemos imagens de todos os personagens: o homem de boné Jesus chora enquanto vê uma imagem de seu filho; o homem do desejo de abdução aparece em um espaço aberto onde é afinal abduzido por uma nave extraterreste; o cadeirante é levado para casa nos braços de seu amigo viúvo bonitão; a patinadora aparece nas ruas da cidade, livre, patinando. E temos uma cena final na qual a mãe da menininha, porventura a mesma mulher da cena inicial, do quarto de luz vermelha, com o gesto de pomba da paz, aparece oferecendo-se à prostituição, na rua. Um homem a aborda, pechincha o preço; ela entra no carro; ele agora diz que quer o sexo sem preservativo; ela, então, sobe o preço do programa. No final da cena temos a câmera filmando a rua movimentada da cidade de Vancouver, ao som do sexo entre a mulher e seu cliente. Próximo do êxtase do gozo, escutamos barulhos de socos, engasgos e, afinal, o silêncio eloquente da 198 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio mulher misturado ao som triunfante do orgasmo do cliente, agora um assassino, de fato, e, já que quis o sexo sem camisinha, um novo infectado pelo HIV. O terreno – plano de imanência – ao que tudo indica desvela-se enfim para nós. O desejo nos aparece sob várias formas: do senso comum ao conceito intelectualizado, aqui nos debruçaremos sobre duas principais conceitualizações do desejo: Lacan e Deleuze. Lacan, ao formular em seu Seminário (livro 6): o desejo e sua interpretação, coloca o sujeito como ligado à linguagem, pois é através dela que expressamos nosso ser. O desejo, para Lacan (2016, p. 26), se manifesta “no intervalo, na hiância que separa a pura e simples articulação linguageira da fala daquilo que marca que o sujeito aí realiza algo dele mesmo, algo que não tem alcance, que só tem sentido em relação a essa emissão da fala, algo que é seu ser – o que a linguagem chama com esse nome.” Podemos perceber o desejo, para Lacan, como uma experiência de uma dimensão entre a fala e a realização de algo pelo sujeito, mas esse algo que não se alcança a não ser pelo desejo mesmo. Em Luk’Luk’I vislumbramos essa visão lacaniana quando os desejos dos personagens aparecem em suas fantasias, mas não necessariamente na fala ou na realidade. Outra coisa importante que podemos tomar emprestado de Lacan é o papel de defesa do eu do sujeito. Nosso autor afirma que “o sujeito se defende com seu eu” (LACAN, 2016, p. 28). Mas do que ele se defende? Ele se defende “de seu desamparo e, com esse recurso que a experiência imaginária da relação com o outro lhe dá, constrói algo que, diferentemente da experiência especular, é flexível com o outro”. Ora, o que o sujeito reflete “é ele mesmo como sujeito falante” (LACAN, 2016, p. 28). O desamparo não só se presentifica naqueles que estão à margem, mas também naqueles que estão no centro, e aqui é que vemos a importância da diferença que Rolnik nos mostra entre micropolítica ativa e reativa. Para atentarmos melhor a essa diferença, contudo, devemos, agora, passar pelo terreno do desejo em Gilles Deleuze. Deleuze e Guattari, em seu livro Anti-Édipo (2011) problematizam a questão colocada na psicanálise do desejo como falta, falta de um objeto. Tal problematização se mostra importante por vermos em Luk’Luk’I, de passagem rasteira, que os personagens buscam um objeto que lhes falta em sua realidade (amizade, | 199 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) amor, família), mas, quanto mais adentramos no terreno mais podemos perceber o desejo enquanto uma produção de realidade “outra” de cada um. Se, em Lacan, o eu é quem defende o sujeito, aqui, com Deleuze e Guattari, eu e sujeito são um só, e o que ambos defendem é anterior ao sentimento de falta: não há falta, há produção de outra realidade, porque o que está fora do sujeito é sua pulsão vital, que é uma máquina de inventar e produzir, e não um buraco negro, um oco. Os autores inferem que (2011, p. 42) “[...] se o desejo é falta do objeto real, sua própria realidade está numa ‘essência da falta’ que produz o objeto fantasmático”, esse último seria o objeto que podemos ver da fantasia de cada um, como observamos anteriormente, mas mesmo quando o fantasma é interpretado em toda a sua extensão, não mais como um objeto, mas como uma máquina específica que põe em cena o desejo, essa máquina é apenas teatral, e deixa subsistir a complementaridade do que ela separa: então, a necessidade é que é definida pela falta relativa e determinada do seu próprio objeto, mas também reduplicando a falta, levando-a ao absoluto, fazendo dela uma ‘incurável insuficiência de ser’, ‘uma falta-de-ser que é a vida’. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 42-43). de tal modo que a fantasia se recupera da falta insuflando vida onde não há vida, criando um plano de consistência nas malhas da imanência, que já não se deixa mais fisgar como mera “falta”, mas como produção tanto do que lhe falta quanto do que lhe locupleta. A ser assim, isso nos leva a afirmar que a produção desejante não se reduz à produção da fantasia, pois o fantasma enquanto máquina é definido pela falta, mas uma falta adicionada como um ingrediente presenteado pela formação social, que é aquele “fora” do sujeito acima referido, um fora do sujeito que é o dentro de seu próprio corpo, que é o seu próprio corpo como “corpo sem órgãos”, isto é, como o maciço plástico de si mesmo enquanto pulsão vital e pulsão de morte (ANDRADE, 2020). Deleuze e Guattari (2011, p. 43) afirmam que: 200 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. [...] Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão. com isso, podemos inferir que a produção de cada um dos desejos dos personagens é produção de realidade, e por isso, vemos a realidade daquilo na expressão de cada um: felicidade ao se ver beijando a pessoa amada, emoção ao ver a filha, satisfação ao ver o filho, alívio ao ser abduzido. Por conta de o desejo ser ele mesmo seu objeto, que a imagem fantasmática revela, nós podemos colocar a realidade social capitalística como destruidora de desejo, ou, como dissemos anteriormente, máquina moedora, moedora da própria produção desejante de real de cada um daqueles personagens postos à margem de outras realidades entrementes disponíveis e, entretanto, deles subtraídas. Desta feita, “não é o desejo que exprime uma falta molar no sujeito; é a organização molar que destitui o desejo do seu ser objetivo” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 44). A organização molar, a máquina social moedora, aqui pode ser tomada como a organização material que impõe o lugar daqueles que não se encaixam no centro enquanto produtores e consumidores normais. O lugar deles é a margem. Nos personagens, o desejo não para de produzir suas próprias realidades, e quanto mais adentramos o terreno no qual essa produção é efetuada, mais sentimos que a máquina social sempre funciona como uma tentativa de conter o desejo, paralisá-lo, enquanto o desejo sempre arranja uma forma de deslizar pelos menores buracos ou espaços que existem no social. Nesse sentido, o cadeirante é uma bela metáfora fílmica do que estamos pensando. Quando, de fato, vemos o cadeirante sonhando com um beijo do seu belo homem, não estamos vendo apenas fantasia, mas um “real” que escapa de seu corpo, a felicidade, a emoção do acontecimento que não se atualizou, mas que não deixa de ser, na virtualidade ontológica de seu estofo, uma produção de uma máquina desejante, e, como vemos logo na primeira página da obra Anti Édipo, Deleuze e Guattari começam por dizer (2011, p. 11): “Há tão somente máquinas em toda parte, e sem | 201 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a outra corta”. Podemos decerto pensar que, de alguma forma, a máquina fonte seria o social, a produção material, mas esta é uma assunção completamente errônea; a máquina fonte é, e sempre foi, desejo, e a máquina-órgão, aquela que corta, sempre foi a organização, também porque para organizar precisa cortar, delinear algo, disciplinar. Por não aguentar a produção desejante infinita e caótica, a máquina-órgão, o órgãoestado, órgão-social, órgão-capitalismo arranja meios de cortar, delinear, economizar a produção de desejo, até tornar o ser humano, de modo ideológico, isto é, falso ou unilateral, “um ser da falta”. Mas, “ser da falta” coisa nenhuma, como nos mostra o cadeirante: mesmo amesquinhados pela máquina material, somos, até o fundo de nós mesmos, afirmação de si, força ativa, não separada de si mesma, força capaz de ir até depois do limite do que pode um corpo. O cadeirante, que também tem dificuldade de falar, é a imagem do que pode até mesmo aquele que nada pode: ele deseja, e isso faz a diferença. A pergunta “como isso é possível?” nos aparece, e podemos responder a partir do próprio terreno em que entramos, onde vemos uma produção de desejo que não cessa, mas que é parada por uma política das forças reativas (o próprio mundo e suas organizações), que tenta por todos os meios separar a força ativa daquilo que ela pode. Tomemos dois exemplos que nos ajudarão neste momento: um homem cadeirante que busca uma amizade (como prelúdio de um amor maior), e quer ser visto para além da pena e do desconforto (algo já produzido pela própria máquina social, que precisa de “coitados” para exercer sua caridade samaritana de padres) (DELEUZE, 2018, p. 149); e uma mulher trans, patinadora, que já se supõe famosa, mas deseja o reconhecimento disso e precisa da simples possibilidade de lhe levarem a sério, precisa da não-discriminação. Podemos entender até aqui o desejo como uma produção, que está entre a realização e a linguagem, e uma produção que está sempre em vias, não de se realizar necessariamente, mas sempre de produzir mais realidades dentro de um parâmetro em que temos de relativizar a “única” realidade efetiva, de tal modo que ela possa advir à compreensão, não mais como 202 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio modelo normativo, mas como um delírio entre outros. Com isso em vista, adiantemos uma distinção que logo mais nos será muito útil, aquela que a etimologia não oferece, mas a tarefa do pensamento exige, entre ética e moral. Digamos, então, que a moral está para o bem agir no âmbito do molar, assim como a ética está para o viver bem no âmbito molecular. Mas, não deixemos de acrescentar, também no âmbito micropolítico do molecular existe uma “moral”: justo aquela da micropolítica reativa, que procura separar, dentro do corpo, a força daquilo que ela pode. Jürgen Habermas, em A inclusão do outro (2018) chama-nos a atenção sobre o teor cognitivo da moral, ou seja, o que há de razão, ou, de uma razão cognoscente presente nas regras morais. “As regras morais”, diz ele, “operam de modo autorreferente. Sua força para coordenar a ação comprova-se em dois níveis de interação interconectados”. No primeiro nível, as tais regras “dirigem a ação social de modo imediato ao vincularem a vontade dos atores e orientá-la de uma determinada maneira”. Já no segundo nível, elas regulam as tomadas de posição em caso de conflito. Uma moral não somente diz como os membros da comunidade devem se comportar; ela fornece, ao mesmo tempo, as razões para a resolução consensual dos respectivos conflitos de ação. (HABERMAS, 2018, p. 34). Desta forma, percebemos, na realidade, tanto nossa, quanto em Luk’Luk’I, que a moral tem um papel importante também enquanto personagem, não um personagem só, mas como vários: as pessoas que ignoram o cadeirante ou o ladrão que lhe leva o dinheiro dos bilhetes, os torcedores que fazem bullying com a patinadora, aqueles que impedem a mãe de se encontrar com a sua filha, os policiais (e/ou os pais ou a ex-esposa que o chamam) que prendem o homem do desejo de abdução por querer visitar sua própria mulher (que, por sua vez, deve ter razão de sobras para evitá-lo). Todas essas atitudes partem de uma certa moral aprendida com a própria sociedade. Faz parte também do que leva os sujeitos a posições marginais da sociedade. O que vamos diferir aqui enquanto micropolítica ativa e reativa é a forma com que o sujeito se faz, ou o que o sujeito faz com seu desejo ao | 203 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) confrontar o impulso nômade, molecular, de sua ética da afirmação de si com as barreiras (molares e moleculares) da máquina moral. Agora, com efeito, podemos reencontrarmo-nos com Suely Rolnik, que só aparentemente foi deixada solta lá atrás. Para ela, em sua obra Esferas da Insurreição (2018), existem duas formas de lidar com algo quando acontece alguma coisa que tira o sujeito do eixo. Usaremos de exemplo as barreiras já comentadas aqui, nas quais os personagens de Luk’Luk’I se encontram. Existe uma micropolítica ativa e uma micropolítica reativa que se guiam por bússolas diferentes, a primeira por uma bússola ética; a segunda, por uma bússola moral. Rolnik fala da realidade, e como lidamos com ela, usando a alegoria da obra Caminhando de Lygia Clark, na qual, sobre uma fita de moebius se deve operar um corte; se este corte se dá até o seu fim, a parte cortada se destaca, e se cria mais do mesmo, mas se ao chegar perto do fim se corta em um outro ponto a referida fita, toma-se um caminho diferente, o corte inusitado estará sempre continuando por pontos diversos. Rolnik define a micropolítica ativa como “essa política de desejo”, que é própria, diz ela, de uma subjetividade que habita o paradoxo entre suas duas experiências simultâneas, como sujeito e fora-do-sujeito. Uma subjetividade que consegue sustentar-se na tensão entre as forças que delas emanam, as quais desencadeiam os dois movimentos paradoxais (ROLNIK, 2018, p. 60). Seria o caso, então, de uma subjetividade que está apta a sustentar-se no limite da língua que a estrutura e da inquietação que esse estado lhe provoca, suportando a tensão que a desestabiliza e o tempo necessário para a germinação de um mundo, sua língua e seus sentidos. Entre Lacan e Deleuze, a produção de subjetividade envolve-se, então, na produção de um certo saber. É essa subjetividade que “sabe (extracognitivamente) sem saber (cognitivamente) que corta a superfície nos mesmos pontos”, mas sabe também que isso “não lhe devolveria o equilíbrio, pois a manteria confinada na forma que perdeu seu sentido, cuja 204 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio falência é responsável por sua desestabilização”. As nossas personagens do filme de cujo território vimos desenhando a cartografia vivem, em cada um de seus dramas, essa tensão característica da micropolítica assim delineada. A política de desejo, da qual nos fala Rolnik, leva-nos a pensar sobre o que exploramos do terreno até agora: o desejo é o que leva os personagens a saírem de sua realidade atual, como nômades, mesmo que em alguns momentos não o conseguindo, ou seja, estando como estão atados à malha da realidade social que os comprime. Nômades, todavia, são, sobretudo, aqueles que não emigram, e que fazem de suas viagens uma forma de manter-se no mesmo local (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 55). Vemos personagens que usam da fantasia para se propulsionar, para criar realidades outras, seja para fugir da realidade em que vivem, na margem, seja para furar o próprio real, relativizando-o, não no sentido de amenizar a consciência de sua crueldade, mas no sentido de criar outros mundos possíveis dentro do cerco do mundo real. Enquanto o migrante abandona um meio que deveio amorfo ou ingrato, o nômade é aquele que não parte, não quer partir, que se agarra a esse espaço liso onde a floresta recua, onde a estepe e o deserto crescem, e inventa o nomadismo como resposta a esse desafio (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 55). O devaneio é o nomadismo de quem sofre o deserto da realidade. Ao fazer esse caminho nômade de criação de mundos outros, ampliados, dentro do estreito mundo da realidade mesquinha, a micropolítica ativa é realizada em uma mão dupla, estourando a imanência sem criar transcendências, mas, ao contrário, internando-se mais no tecido do real sob a forma de rizomas, ou seja, de multifacetadas linhas de fuga que variam qualitativamente sem se multiplicar quantitativamente: o fantasma do desejo se torna a contrapartida real contra a realidade factual que se desenrola sob um fantasma não menos alucinado que o primeiro, aquele de que, somente por ter sido elegido como “o real”, seria também inconsútil, definitivo, e absurdamente único. Aqui, nosso crisol. Aqui o ponto focal mais reluzente. O mapa está traçado: “A/B (B→A=C)”. Cada um dos dramas encenados no filme parece | 205 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) cumprir esse mapa de um território que se delineia com esses parâmetros: “A” (a força molar, reativa) barra “B” (a força molecular, ativa); “B” fura (→) por meio da fantasia o bloqueio de “A” e produz (=) “C”, onde “C” é uma multiplicidade, um devir outro. Mas, alcançado esse ponto, a tensão mais pura das micropolíticas desponta ainda mais forte, quando o próprio real é obrigado a ser pensado como uma alucinação, um sonho que, por não ser sonhado por nós, mas por outrem, os donos do establishment, contra nós, reverbera-se facilmente em pesadelo, e nos obriga a agir a reação. Estamos dizendo que o real factual é um sonho sonhado por outrem, enquanto os fantasmas das fantasias desejantes são realidades alternativas tão passíveis de sair do virtual para o atual quanto aquele plano de imanência a que nos acostumamos a chamar, por comodidade, de “realidade” o foi um dia. Tanto em um quanto em outro existe a guia de uma pulsão vital e, digamos, contra-vital, sempre seguindo o corte por pontos diferentes e nunca se repetindo, seguindo uma bússola ética, sempre confrontada, nos meandros macro (molares) e micro (moleculares) por uma moral delimitadora. No que diz respeito à bússola da pulsão vital, Rolnik (2018, p. 65) assegura: Tal bússola orienta as ações do desejo no sentido da criação de uma diferença: uma resposta que seja capaz de produzir efetivamente um novo equilíbrio para a pulsão vital, o que depende de seu poder de atualizá-la em novas formas. Movido internamente por essa micropolítica, “o desejo cumpre sua função de agente ativo da criação de mundos, próprio de uma subjetividade que busca colocar-se à altura do que lhe acontece.” No que diz respeito à ação contra-vital, a moral seria as providências das forças inerciais, do status-quo, forças da reação que, uma vez produzidas, nada mais criam e fazem de tudo para evitar, de qualquer forma, que algo possa vir a ser, de novo, criado. Levada nossa exposição até esse ponto de nosso “mapa”, diríamos nós que a ética estaria do lado da vida, que é desejo e criatividade, enquanto a moral estaria do lado da morte, que é travamento do desejo 206 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio e perpetuação do sempre já dado? Poderia, talvez, vir a ser interessante se o filme Luk’Luk’I nos deixasse nesse ponto algo confortável. Mas o filme, como sói acontecer, tem um fim, e esse fim lança tanta luz para trás, para o todo da narrativa, quanto o começo, com sua intensa luz vermelha, lançava sombras que perseguimos ao continuar assistindo ao filme. E esse fim, absolutamente ambíguo e absolutamente claro em sua ambiguidade, é o que fica como sugestão à tarefa do pensamento. Luk’Luk’I nos lança em meio à violência, social, física e moral, de uma metrópole do capitalismo contemporâneo. A primeira cena nos sinalizou para a imagem da pomba da paz sobre a luz vermelha do abandono social, e é isso que o restante do terreno fílmico, em seu plano de imanência, continuou nos mostrando, quando quatro personagens que lutam diariamente contra o lugar que ocupam no mundo organizado para eles foram confrontados com seus próprios desejos. Enquanto vemos a máquina moedora cortar os fluxos de desejo repetidamente, vemos cada vez mais os desejos aparecendo e se colocando numa posição de produção. Mas, seja a polícia, o Estado, a sociedade ou a moral, por um lado, ou a ética do desejo ativo, por outro, nenhuma dessas instâncias consegue calar a última cena. Nesse ponto, o filme engole a filosofia já feita de Deleuze e Guattari, e faz, ele mesmo, sozinho, e à sua maneira, a sua filosofia. A última cena mostra a realidade do que seria aquela paz violenta que Luk’Luk’I anuncia no começo: a mulher se prostituindo, o cliente pedindo para não usar preservativo e assassinando-a por asfixia durante o coito, mas, antes, também ela aceitando o “programa” sem camisinha, sabendo que tinha contraído HIV do ex-marido, e provavelmente passando o vírus para o cliente maluco, maníaco, bem durante a morte dela. Gostaríamos de dizer que o desejo regido pela micropolítica ativa contagia como um vírus, como uma polinização de criação de diferença, de mundos possíveis; gostaríamos de dizer que a luta do desejo não cessa, por mais forte que a máquina tente moer, sempre pelos buracos e pelas vias possíveis de onde ele vai escapar. Porém o filme barra esse anelo. Ele dá a pensar o seguinte: de nada vale uma micropolítica do desejo ativo, criando alucinações sobre o couro do real, e nos desvelando que esse real mesmo seria a alucinação de outrem, se o real ele próprio não é destruído em vista de um outro tipo de organização | 207 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) social; e se perguntarem por que teríamos de deixar essa organização já assentada, quando há vantagens para muitos em mantê-la, então a resposta do filme é evidente: é preciso fazer ruir a organização molar, porque, do contrário, o próprio molecular é tomado, desde dentro, pelos valores assentados do molar, e, em vez de trabalhar para a afirmação da vida, sua multiplicação, passa a trabalhar para a morte, para perpetuar uma situação insustentável: um desejo de morte passa a ser o núcleo do desejado. Não há subterfúgio. Quando alguém mata uma prostituta, ou quando alguém passa de propósito um vírus; quando alguém é homofóbico ou contrata outrem para tirar um monte de terra de um lugar para pô-lo a dois metros em outro, e chama a isso de “trabalho”, é cada um de nós que está fazendo isso junto. Cumplicidade é crime. Se não trabalhamos para suplantar a sociedade instituída, diz o filme, seremos todos cúmplices da morte, física ou moral, de pessoas que nunca nem sequer uma vez vimos. Quando a ética da pulsão vital é contagiada pela pulsão de morte, há um compromisso moral nisso, e somos nós, agarrados à alucinação de outrem (os capitalistas, no caso contemporâneo, que põem a máquina moedora em funcionamento, enquanto a gente pensa que está desejando “algo” quando deseja um lugar ao sol do mercado), à qual chamamos “realidade”, sem maiores questionamentos, somos nós quem está até o fundo de nós mesmos implicados nesse compromisso. Luk’Luk’I termina nos deixando num silêncio denso que, desbravado, quer nos dizer exatamente isso. Um filme devastador. E é a terra por ele devastada o que, no incômodo de suas articulações imagéticas, aqui apenas cartografadas, nos dá o que pensar e diz o quê que precisa ser pensado: o desprezo pela vida dos outros gera uma cultura de morte, da qual somos, bem facilmente, presas dóceis. REFERÊNCIAS ANDRADE, Abah. Drummond e o acontecimento ontológico. O eixo e a roda: Revista de Literatura Brasileira, Belo Horizonte, v. 29, n. 01, 2020. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad.: M. de T. Barbosa e O. de A. Filho. São Paulo: N-1 Edições, 2018. 208 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad.: B. Prado Jr. e A. A. Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad.: Luiz B. L. Orlandi. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad: P. P. Pelbart e J. Caiafa. São Paulo: Editora 34, 2012. v. 2. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Trad.: D. L. Werle. São Paulo: Ed. Unesp, 2018. LACAN, Jacques. O seminário: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. livro 6. PLATÃO. Parmenide. Trad.: Franco Ferrari. Edição bilingue. Milão: Libri, 2004. ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida descafetinada. São Paulo: N-1 Edições, 2018. | 209 210 | O problema da natureza ética do gênero documentário Henrique Franco MORITA 1 INTRODUÇÃO Convém iniciar as presentes considerações com uma observação e algumas conclusões dela decorrentes: este trabalho pretende expor o problema da relação entre a ética (área de estudo com uma longuíssima tradição na história da filosofia) e o documentário cinematográfico (prática artística quase sem referenciais como tema na tradição filosófica). Daí decorre, entre outras coisas, o seguinte: a) O gênero documentário será aqui abordado na sua relação com o cinema, o que impõe a primeira questão, a saber: “O documentário é um gênero cinematográfico?”; b) Circunscrito ao cinema-documentário, o trabalho tem o condão de mostrar e problematizar a natureza ética desta forma. Portanto, é necessário perguntar: “Qual é a natureza do gênero documentário?”; 1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil. E-mail: henriquemorita@outlook.com https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p211-226 | 211 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) c) Por fim, tendo galgado tais degraus, cabe a questão final: “O documentário possui uma natureza ética?”. Tratando-se de uma incursão introdutória nessa temática, o objetivo do trabalho é mapear o debate. Assim, com modesta ambição, serão discutidos alguns escritos de referência para situar o tema, fazendo considerações críticas ao longo da exposição, quando necessário. Espera-se assim, ao menos, reunir aqui um retrato da problemática das relações entre o documentário e a ética – entre o cinema e a filosofia também, porém não de modo abrangente, uma vez que restrito à não-ficção. O DOCUMENTÁRIO É UM GÊNERO CINEMATOGRÁFICO? Pode parecer que essa pergunta mereça uma resposta afirmativa óbvia e imediata. Dada a gritante evidência dessa afirmação, segundo o olhar de alguns autores, a pergunta pode ainda parecer superficial ou de pouca amplitude. Explico: há quem simplesmente considere que todo o cinema é documentário. E não o faz sem argumentos. Vejamos quais são eles. Para Bill Nichols, em Introduction to documentary (2001, p. 1), “every film is a documentary” [todo filme é um documentário]. Essa afirmação do autor está assentada no argumento de que qualquer produção cinematográfica é inevitavelmente o reflexo das condições em que foi feita, ou seja: o cinema de qualquer tipo, ficcional ou não, é também um documento dos meios de sua época, da cultura de sua época e particularmente das pessoas envolvidas na formulação da sua arte. Assim sendo, de uma perspectiva extremamente ampla, o cinema é documentário em qualquer de suas manifestações, sejam elas ficcionais ou não, em razão da historicidade que qualquer obra de arte, enquanto objeto do mundo material, acaba gravando em si mesma. Iremos voltar a esses argumentos mais à frente. Por ora, seguindo a formulação de Nichols, há então que se dividir a produção cinematográfica quanto ao tema: de um lado, os 1) “documentários” de realização de desejos e, de outro lado, 2) os 212 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio “documentários” de representação social. A lógica de fundo dessa classificação é que as obras cinematográficas se dividem quanto ao nível de comprometimento com a representação social efetiva, ou seja, que as chamadas ficções (na terminologia de Nichols, “wish-fulfillment documentaries”), têm o papel de concretizar a imaginação livremente, enquanto a não-ficção (“social representation documentaries”, segundo Nichols), diferentemente, está ligada à representação do mundo no qual já habitamos, ou seja, do não-imaginado. Para ir mais a fundo na distinção, enquanto ambos os tipos de “documentários” – ficção e não-ficção/realização de desejos e representação social – são sempre histórias trazidas à interpretação de quem as assiste, os “documentários” de não-ficção apresentam essas histórias carregando em particular a expectativa de se fazerem credíveis. Esclarecendo: enquanto as ficções certamente tangenciam a não-ficção e emulam a plausibilidade de suas narrativas como reais, por sua vez as não-ficções não apenas querem a plausibilidade do real nas suas representações como também buscam legitimar-se de credibilidade acerca da narrativa apresentada – possuem, portanto, uma espécie de compromisso com a representação social que fazem perante o público. Nesse sentido, afirma Bill Nichols: Documentaries lend us the ability to see timely issues in need of attention, literally. We see (cinematic) views of the world. These views put before us social issues and current events, recurring problems and possible solutions. The bond between documentary and the historical world is deep and profound. Documentary adds a new dimension to popular memory and social history. (NICHOLS, 2001, p. 2).2 Há alguns problemas conceituais na caracterização de Nichols. O primeiro deles advém da afirmação “todo filme é um documentário”. Isso 2 “Documentários nos fornecem a habilidade de observar questões oportunas que requerem atenção, literalmente. Vemos visões (cinematográficas) do mundo. Tais visões colocam diante de nós questões sociais e eventos atuais, problemas recorrentes e possíveis soluções. O vínculo entre o mundo histórico e o documentário é sensível e profundo. O documentário adiciona uma nova dimensão à memória popular e à história social” (tradução nossa). | 213 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) porque o critério para afirmar essa equivalência entre a ficção e a não-ficção é pouco explorado pelo autor – Nichols gasta muito tempo discutindo aquilo que diferencia o tipo “wish-fulfillment documentaries” e o tipo “social representantion documentaries”, porém deixa de detalhar as razões que aproximam ficção e não-ficção enquanto tipos de “documentário”. A única razão exposta por ele, já replicada aqui no início dessa seção, é a de caráter extremamente geral que afirma que até a mais caprichosa ficção acaba por mostrar as suas raízes com o mundo concreto em que foi feita. Ou seja, recorre-se ao argumento de que toda obra de arte possui um contexto de produção no qual está inserida e, nesse sentido, é documento de uma época. Documento, entretanto, não é documentário. Logo após afirmar que ficção e não-ficção são ambas formas de documentário, Nichols define o que ele vai, de fato, chamar de documentário: justamente a obra nãoficcional de representação social (e o leitor fica sem saber por qual razão exatamente ele iniciou dizendo que “todo filme é um documentário”, se vai ao longo de sua obra chamar de documentário apenas uma parcela dos filmes que existem, qual seja, os de não-ficção). Nichols parece estar, na verdade, querendo chamar atenção para o fato de que qualquer produção cinematográfica é um documento (até mesmo um documento a respeito da vida de um ator ou um diretor, na medida em que é elemento biográfico da carreira profissional de uma pessoa que trabalha com cinema). Assim, a afirmação de que “todo filme é um documentário”, embora eloquente e atraente, se trata ou de um arroubo retórico, ou de uma confusão entre documento e documentário. Sobre essa confusão, diz João Moreira Salles (2005, p. 61): Usei a palavra documento, e não documentário, porque de fato existe uma diferença importante entre uma coisa e outra. Não cabe aqui enveredar pela natureza dos documentos; basta ressaltar que eles possuem a característica essencial de serem índices do mundo real. Os documentos mantêm uma relação de contiguidade com a realidade. A revolução digital está prestes a eliminar as fronteiras entre realidade e simulação, mas enquanto isso não acontece a imagem na tela de Tom Cruise significa uma afirmação incontestável de que Tom Cruise existe no mundo real, e isso independe de toda 214 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio interpretação. Quando ele fala na tela, o “grão de sua voz” é uma consequência direta de ele ter aberto a boca e emitido algum som no passado. Pois bem, todo filme, seja de ficção ou de não-ficção, é um documento e pode ser lido assim. E não seria muito difícil, segundo essa mesma abordagem, avançar uma casa e transformar toda ficção em documentário. Não se pode aqui avançar mais no debate, porém já está claro que há pertinência em questionar se o documentário é um gênero cinematográfico. O que constitui, então, um gênero cinematográfico? Essa profunda questão se liga ao cerne das obras artísticas em geral – na medida em que todas elas fazem algum tipo de referência a gêneros (mesmo quando uma determinada produção se volta contra a classificação ou os pressupostos de um gênero, acaba afirmando a sua existência). Quanto a isso, a Poética de Aristóteles foi uma das primeiras sistematizações grandiosas dos gêneros literários e, certamente, sua influência transcendeu da literatura para todas as artes. A questão aqui em tela é discutida por Luís Nogueira em obra intitulada Gêneros cinematográficos (2010, p. 3). Ali o autor estabelece, em diálogo com os gêneros na história da literatura e da pintura, uma definição de gênero cinematográfico que abrange também o documentário. Eis: “um gênero cinematográfico é uma categoria ou tipo de filmes que congrega e descreve obras a partir de marcas de afinidade de diversa ordem, entre as quais as mais determinantes tendem a ser as narrativas e as temáticas”. Trabalhando com essa concepção, destarte, o autor reconhece ainda três características: 1) o pertencimento a um gênero dependerá da presença de certas características comuns a uma obra em relação a várias outras; 2) a princípio qualquer obra acabará passível de se encaixar em algum gênero; 3) elementos de mais de um gênero podem estar presentes em uma mesma obra. Isso posto, pode-se aceitar o documentário como gênero cinematográfico, justamente na medida em que participa da mesma cultura narrativa dos demais gêneros cinematográficos (levando em consideração, de forma central, que uma película não precisa estar inteiramente inserida num único gênero, como acima foi visto). O gênero, enquanto “categoria classificativa que permite estabelecer relações de semelhança ou identidade entre diversas obras” (NOGUEIRA, | 215 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) 2010, p. 3), se apresenta no cinema a partir da narrativa cinematográfica. Por fim, Luís Nogueira reconhece que todo gênero, ao longo do desenvolvimento de uma forma artística, é uma construção: Assim sendo, poderemos dizer que, no limite, qualquer critério pode servir a instauração de um género. Serão a sua dimensão crítica (a qual determina se o género se institui enquanto tal em função da extensão e relevância do corpus a que dá origem) e o seu potencial epistemológico (isto é, a sua utilidade enquanto instrumento de estudo das formas cinematográficas) a determinar a sua relevância e a sua vigência. No que respeita ao cinema, temos então uma repartição quadripartida essencial, sendo que a estes quatro géneros fundamentais podemos fazer corresponder funções específicas: a ficção [...]; o documentário [...]; o experimental [...]; a animação [...]. Vê-se, assim, que o documentário é um gênero na medida em que é parte essencial da própria identidade do cinema. Identidade essa que é resultado de uma construção vagarosa de uma forma específica de narrativa, ou seja, é a constituição de uma linguagem. Mas então, aceitando que o documentário é um gênero cinematográfico e que, por extensão, porta um conjunto de características estruturantes da linguagem cinematográfica, sabe-se que ele é um gênero entre outros – nesse sentido está igualado aos demais. Podemos, assim, legitimamente, buscar o que o diferencia, buscar a sua especificidade. Somando-se ao que já foi discutido anteriormente, volta-se à distinção entre a ficção e a não-ficção. E é por esse caminho, o da não-ficção, que costumam surgir as peculiaridades do gênero cinematográfico documentário. QUAL É A NATUREZA DO GÊNERO DOCUMENTÁRIO? É aqui que começa realmente, em termos de discussões levantadas em torno da especificidade do documentário, a sua aproximação com a ética. É na relação maiúscula que o documentário tem com a realidade, com o não-ficcional, que reside a ponte dele para dentro do universo das escolhas, dos dilemas, da escassez e dos conflitos, o universo da ética. 216 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Evidentemente, afirmar que o documentário possui uma ligação intrínseca com o real pode fazer a discussão enveredar por infinitos labirintos acerca da natureza do real. Há quem queira desestruturar a forma específica do documentário por conta da mera referência feita agora ao “real”. Fernão Pessoa Ramos, em O que é Documentário? (2002, p. 3), explica e deixa clara a posição e também o equívoco daqueles que buscam diluir a especificidade do documentário (na visão destes o documentário alimentaria ilusões sobre si mesmo, acreditando ter acesso direto ao “real”). A longa passagem de Ramos merece citação direta pela sua perspicácia: Existe uma confluência entre esta visão de uma necessária opacidade no movimento da representação e o eixo ético através do qual o documentário consegue ser pensado hoje. Assumir um campo específico ao documentário, seria assumir a possibilidade de uma representação objetiva, transparente. O raciocínio desenvolvese, mais ou menos, na seguinte linha: 1. parte-se do postulado de que, para alguns, o documentário busca, ou tem como objetivo, estabelecer uma representação do mundo; 2. na medida em que o postulado está estabelecido (“eu posso representar o mundo”, diria necessariamente o documentarista), a ideologia dominante, hoje, sobrepõe facilmente a esta possibilidade o seu caráter especular e falsamente totalizante; 3. a isto segue-se o discurso sobre a necessária fragmentação do saber e da subjetividade que sustenta a representação; 4. e, necessariamente atrelado, surge a saída ética dominante da ideologia contemporânea: a reflexividade como postura correlata ao indispensável recuo do sujeito (pois necessariamente fragmentado, senão imediatamente ideológico) na articulação da representação. Poderíamos dizer: o recuo reflexivo é o ponto cego ideológico da ideologia contemporânea. É o ponto cego onde a ideologia da ética contemporânea não consegue ver-se enquanto tal. Em outras palavras: é ético mostrar o processo de representação; não é ético construir a representação para sustentar a opinião correta (como defendiam Grierson, ou Eisenstein, em um outro parâmetro) [...] Debita-se ao documentário uma certa inocência epistemológica, cometendo-se um duplo erro: 1) analisar o documentário a partir de um discurso inocentemente totalizador e transparente (o que não corresponde à realidade, em função da diversidade estilística que | 217 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) vimos tentando afirmar para o campo); 2) e, mesmo se assim o fosse, ter um parâmetro relativamente pobre para julgá-lo: o parâmetro que gira exclusivamente em torno da ênfase na fragmentação subjetiva como saída ética. O discurso contemporâneo sobre a sobreposição do campo ficcional e do campo documental, na realidade, responde a demandas posicionadas a partir deste “duplo erro” (RAMOS, 2002, p. 3). Para o escopo deste trabalho, é eixo central analisar justamente a natureza específica do documentário, ou seja, sua especificidade. Fazse isso buscando compreender se há e quais são os aspectos éticos dessa especificidade. Nessa esteira, defende-se aqui, na linha de Fernão Pessoa Ramos, e muito distintamente da visão já mostrada em Bill Nichols, que o documentário envolve uma particularidade: a crença compartilhada de que o documentário representa a realidade – de que oferece uma montagem não-ficcional dela. “Montagem não-ficcional” é termo aqui adotado não sem alguma ambiguidade, mas carrega menos na tinta da “realidade”, resguardando o compromisso do documentário com uma narrativa acerca do real percebido. Por isso, grosso modo, o documentário tem sempre um caráter testemunhal, uma vez que todo testemunho é uma narrativa sobre o que foi testemunhado, mas não o próprio testemunhado. Para aprofundarmo-nos na natureza do documentário convém levar em conta algumas outras considerações feitas ainda por Fernão Pessoa Ramos (2002, p. 7). Segundo ele, há três estruturas recorrentes e fundamentais da imagem documentária. São elas: 1) a “tomada” (ou take), ou seja, a presença do sujeito que empunha a câmera (o ato de testemunhar); 2) a mediação da câmera enquanto artefato, ou seja, a mediação de um suporte pelo qual o mundo é filtrado (o modo de armazenar o testemunho, e que vai precisar ser “montado” no processo de edição); e 3) a “dimensão pragmática da imagem”, na medida em que surge uma “relação espectadorial” (a revelação da história capturada perante os outros). Esse último aspecto é aquele que parece mais fundamental, o da relação particular que se estabelece. E isso fica mais evidente se tomarmos um exemplo dado por Ramos como paradigma para pensar a natureza do gênero documentário. 218 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio O exemplo trazido por ele é o da imagem da morte. Ou, de modo mais específico, a “imagem-câmera da morte real” (RAMOS, 2002, p. 7). É ali que se mostra a radical especificidade do documentário: ou seja, a possibilidade remota que esse gênero fornece de o espectador habitar a circunstância em que foi produzida a imagem-câmera. A chamada “relação espectadorial” (item 3 listado no parágrafo anterior) é justamente o momento no qual o espectador é lançado numa circunstância que foi tomada, captada, pelo documentarista. Circunstância que ele, espectador, assume como real. A imagem da morte, aliás, elucida ainda uma outra característica do documentário. Ele está situado numa “fronteira” entre representação e realidade especialmente na medida em que transborda do ponto de vista ético: a imagem da morte real de alguém é perturbadora, pois é uma contemplação proibida, moralmente reprovada – nela se mistura a fruição da obra de arte com o pressuposto ético da civilização ocidental moderna de que a imagem real da morte de alguém não pode ser objeto de um prazer estético. Nisso o documentário difere da ficção, onde a encenação da morte (por mais que os meios disponíveis possam emular com fidedignidade o acontecimento) deve se dar no nível do encenado. Caso contrário, a película ficcional pula imediatamente para o nível da notícia, ou do descrédito. Quanto à não-ficção, faz parte da sua razão de ser a aproximação dessa linha tênue entre a fruição estética de uma obra e o testemunho de um fato do mundo – essa característica, então, cria sempre uma certa contradição e um incômodo, pois o espectador é capturado pelo acontecimento, colocado diante da superfície tensa do real, mas só tem à sua disposição a fruição estética. Esse desapontamento, esse estar aquém do acontecimento, mas também participar dele, faz emergir e aclarar as tensões éticas do mundo ao qual o documentário se dirige. Quanto à diferença entre a ficção e a não-ficção e uso das imagens intensas, diz Fernão Ramos: Narrativas imagéticas voltadas para explorar a intensidade da presença na circunstância da tomada, não são exclusivas do cinema não-ficcional. Grandes cineastas da narrativa cinematográfica, percebem as potencialidades da tensão do presente que transcorre como presença na tomada, e articulam sua estilística para exponenciar esta intensidade de modo poético. Diretores | 219 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) como Roberto Rossellini ou Jean Renoir, são artistas que têm na intensidade da presença na tomada, um núcleo articulador na construção de seu estilo. Mas é evidentemente na tradição do cinema não ficcional que a dimensão da presença na tomada adquire um campo aberto para abrir suas asas sobre o espectador. O cinema não ficcional é voltado para o instante da tomada, para o transcorrer da duração na tomada e para maneira própria que este transcorrer tem de se constituir em presente, que se sucede na forma do acontecer. Podemos pensar no contra-argumento de que existem cineastas, dentro da tradição não-ficcional, que trabalham com estilos nos quais esta presença não surge na linha de frente. Novamente insistimos sobre o fato de que a constatação de que é possível extrapolar definições e embaralhar fronteiras, não deve impedir uma reflexão mais acurada sobre as características sistêmicas do conjunto das narrativas que denominamos documentárias, ou, de modo mais amplo, não ficcionais (RAMOS, 2002, p. 9). Pode-se perceber, portanto, que há sim plausibilidade em defender uma especificidade do gênero documentário. Em linhas gerais, a sua natureza é captada de forma clara por João Moreira Salles (2005, p. 58): Diante desses filmes, realizador e espectador estabelecem um contrato pelo qual concordam que tais pessoas existiram, e que disseram tais e tais coisas, que fizeram isso e aquilo. São declarações sobre o mundo histórico, e não sobre o mundo da imaginação. Para que o documentário exista é fundamental que o espectador não perca fé nesse contrato. E segue mais adiante, complementando o que foi dito: Aqueles que negam a existência de uma diferença essencial entre ficção e documentário geralmente partem do princípio equivocado de que o documentário, caso existisse, deveria oferecer acesso direto e não contaminado à coisa em si. Como isso não é possível, preferem então declarar que todo filme é ficcional. Estão errados. Manipular o material não significa aproximá-lo da ficção (SALLES, 2005, p. 65-66). 220 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Pelas razões expostas até aqui, então, este trabalho assume a natureza do documentário na sua relação com o real (sem explorar a fundo, entretanto, todas as várias camadas envolvidas nessa complexa apreensão – ou seja, sem negar que o “real” propriamente é alguma outra coisa). Disso decorre que o documentário possui uma relação com a verdade ou, para assumir um ônus bem menor, com a veracidade (é o que expressa “a fé nesse contrato”, nos termos de Salles, acima). Daí se concluir que há, na natureza mesma do documentário, uma implicação ética indissociável: bem entendido, o documentário não surge necessariamente em razão de objetivos éticos ou calcado na defesa de uma perspectiva ética específica – mas ele sempre se faz documentário na medida em que incorpora a ética na relação que produz com o real. O DOCUMENTÁRIO POSSUI UMA NATUREZA ÉTICA? Tanto em On Ethics and Documentary: a real and actual truth [Sobre ética e documentário: uma verdade real e verdadeira] (2006) quanto em What can a philosophy and ethics of communication look like in the context of documentary filmmaking? [Como se parece uma filosofia e uma ética da comunicação no contexto do documentário?] (2014), Garnet C. Butchart afirma três formas clássicas de relacionar o documentário com a ética. São elas: 1) a perspectiva do consentimento do participante; 2) o respeito ao direito dos espectadores de serem informados; 3) o respeito a certas expectativas de objetividade. Sobre o documentário ter um compromisso ético com a objetividade, embora possa servir de descrição a respeito do senso comum quanto ao gênero, essa forma de caracterizar o documentário tende a confundi-lo com o jornalismo. Embora haja uma relação particular entre esses dois universos, o documentário, quanto à sua identidade, não é uma mera descrição objetiva de fatos (aliás, fica em aberto a questão de se o jornalismo por acaso também se amolda a essa descrição um tanto positivista). O documentário possui, é verdade, elementos próximos ao jornalismo, mas habita um campo completamente diverso: é obra montada e costurada de maneira intencional para uma exibição, não exatamente para a informação | 221 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) – o documentário atinge seus méritos menos pela importância do que narra, e mais pela narrativa em si. Como dito por Moreira Salles, comentando a postura do primeiro documentarista da história do cinema, o diretor de Nanook, o esquimó [Nanook of the North] (1922), Robert Flaherty (que era um antropólogo se convertendo em cineasta): “ele [o documentário] não descreve, constrói” (2005, p. 63). O direito dos espectadores, por sua vez, é um tema mais complexo. Haveria uma obrigação ética do documentário/documentarista de municiar os espectadores de maneira proba quanto às informações ali contidas? Ou ainda, haveria uma obrigação ética do documentário/documentarista de mostrar apenas aquilo que correspondesse efetivamente ao acontecido, sem encenar acontecimentos? De certa forma, essas questões repetem o que já foi tratado acima, acerca da objetividade: o documentário, porém, mobiliza justamente as ferramentas do cinema ficcional, que fogem à objetividade, para criar uma relação com a história que irá registrar. Assim, embora seja fundamental que haja crença do público no documentário, essa expectativa não descreve bem a natureza desse cinema. O documentário não existe para satisfazer a sede de realidade dos espectadores. Enquanto forma de se relacionar com um tema, o documentário apresenta uma montagem desse tema e trabalha com as expectativas de veracidade que quer criar. Nesse sentido, o documentário tem um compromisso com o seu próprio olhar, ou ao menos com a construção de um olhar próprio. As expectativas excessivas da audiência podem se dar em razão desse mito da objetividade já abordado anteriormente. Há ainda, por fim, uma terceira dimensão sugerida e majoritariamente adotada em meio a documentaristas interessados na discussão da natureza do documentário: a sua essência ética residiria na relação estabelecida com a pessoa/personagem filmada. Em Directing the documentary (2004), Michael Rabiger dedica um capítulo da obra, na parte em que discute a pré-produção do documentário, para esclarecer as Missions and Permissions [Missões e Permissões] do documentarista. Ali o autor deixa claro que, ao selecionar pessoas e trazê-las para dentro do filme, o documentarista estabelece com elas uma relação ética. 222 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio A ideia central dessa leitura ética do documentário é a do consentimento do participante, como se vê nas palavras de Rabiger (2004, p. 243): Informed consent: To secure informed consent from participants means that you warn them that by publicly showing footage— though not necessarily by taking it—their reputation or even their life can be at risk, sometimes irreparably. Unlike the fiction filmmaker paying actors, the documentarian generally offers no financial compensation, and even if a substantial sum changes hands, there’s little comfort in trying to settle moral obligations with cash. Checkbook documentary is still likely to be exploitation. Where do your responsibilities lie? When do you owe loyalty to the individual and when to larger truths? Is there an accepted code of ethics? How much should you say to participants before they become too alarmed to permit filming? […]. Documentary exists entirely through the voluntary cooperation of participants, so take every care to avoid unnecessary exploitation. Consider what it will cost to do some good in the world, and decide from your participants’ vantage as well as from your own whether a risk is worth it—a lonely calculation if ever there was one.3 A ideia de que os participantes deverão viver com as consequências dos filmes nos quais estão inseridos norteia essa percepção ética. É inegável compreender essa dimensão que perpassa todos os envolvidos na produção da obra cinematográfica, especialmente com relação à gente comum que é tragada para o documentário como objeto do olhar do documentarista, e que perde a sua condição “comum” ao ter sua imagem e sua história 3 “Consentimento informado: Assegurar o consentimento informado dos participantes significa que você os alerte de que ao exibirem-se publicamente na filmagem – embora não necessariamente se aplique apenas a fazerem a gravação – as suas reputações ou ainda as suas vidas podem ser colocadas em risco, às vezes de modo irreparável. Diferentemente do diretor de ficção pagando atores, o documentarista geralmente não oferece nenhuma compensação financeira, e mesmo que uma quantia substancial troque de mãos, há pouco conforto em tentar saudar obrigações morais com dinheiro. Documentário “talão de cheque” é ainda provavelmente uma forma de exploração. Até onde vai sua responsabilidade? Quando você deve lealdade ao indivíduo e quando a verdades maiores? Há um código de ética aceito? Quanto você deve informar aos participantes antes de eles ficarem tão alarmados que decidam não participar do filme? [...]. O documentário existe apenas por conta da cooperação voluntária das pessoas, então cuide para evitar a exploração desnecessária. Considere os custos de fazer o bem para o mundo e decida a partir das vantagens do participante, bem como das suas, se o risco vale a pena – um cálculo solitário, se é que há algum” (tradução nossa). | 223 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) transportadas para a construção da personagem no contexto da obra cinematográfica. Há que se reconhecer, portanto, que há um peso ético a ser considerado e que há etapas na produção do documentário que sempre trarão conflitos éticos perante o documentarista. Entretanto, essa camada complexa da ética entre os envolvidos na produção do filme é uma especificidade do documentário? Para João Moreira Salles a resposta é decididamente positiva, como expressa claramente no texto A dificuldade do documentário (2005, p. 70): O que nós documentaristas temos de lembrar o tempo todo é que a pessoa filmada possui uma vida independente do filme. É isso que faz com que nossa questão central seja de natureza ética. Tentando descrever o que fazemos numa formulação sintética, eu diria que, observada a presença de certa estrutura narrativa, será documentário todo filme em que o diretor tiver uma responsabilidade ética para com seu personagem. A natureza da estrutura nos diferencia de outros discursos não-ficcionais, como o jornalismo, por exemplo. E a responsabilidade ética nos afasta da ficção. Não é possível, no horizonte introdutório deste trabalho, perscrutar mais a fundo. Entretanto, arriscando ir um pouco além do que seria recomendável até aqui, parece que essa última morada ética do documentário na relação entre as partes ali envolvidas não difere propriamente esse gênero dos demais – segundo Moreira Salles, citado acima, “a responsabilidade ética nos afasta da ficção”. Será mesmo que o caráter interpessoal da responsabilidade ética não está similarmente presente no set de filmagem da ficção? Depois da fortíssima repercussão dos abusos cometidos em sets de filmagem, particularmente no contexto norte-americano, pode-se falar numa reviravolta na história do cinema de ficção com a inserção de discussões de natureza ética que vão desde a relação entre atores e diretores (e todas as demais relações paralelas a essa) até a responsabilidade ética das premiações e da alocação de recursos por parte dos estúdios de produção. Me refiro a movimentos como o Me Too, por exemplo. Não se trata aqui de negar que haja uma incidência da ética sobre as práticas que envolvem a produção e a montagem de um documentário, 224 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio mas essa incidência poderá ser também sentida e atestada no contexto do cinema de ficção (o problema da nudez de atrizes no cinema passou a ser cada vez mais candente conforme se fizeram ouvir as atrizes envolvidas em processos abusivos na exposição de seus corpos). É necessário que o cineasta se coloque questões éticas, mas isso não explica de maneira mais profunda a natureza do documentário: essa forma de visualizar as obrigações éticas dos envolvidos se iguala às demais formas, na medida em que expressa a incidência da linguagem dos direitos individuais na seara do cinema de não-ficção, como chama a atenção Garnet C. Butchart (2006, p. 428). São expressões do direito individual as vertentes até aqui discutidas: o consentimento do participante é uma faceta do direito individual de ser protegido no processo de representação; a responsabilidade perante o público é uma faceta do direito individual do espectador de obter informações de maneira proba; a obrigação de objetividade por parte do documentário é uma variante do direito do público de ser bem informado, na medida em que o documentário deve refletir o mundo tal como percebido, sem manipulá-lo. Butchart mostra que essas expectativas giram em torno, mais uma vez, da questão da verdade: a exigência de objetividade na representação se ancora na crença de que a câmera capta uma verdade na cena e que o documentarista deve apresentá-la intocada; também a exigência de que o público seja respeitado em seu direito de saber radica na percepção de que a verdade capturada pode ser manipulada, solicitando transparência com a verdade; e o consentimento do participante envolve a ideia de que há uma verdade do participante e que ela deve ser preservada antes da manipulação do cineasta. Há que se reconhecer, entretanto, que essa associação entre a verdade e a ética, quanto ao documentário, é pouco elucidativa e/ou produtiva. Isso porque, no final do dia, a verdade fica circunscrita a contextos de justificação e a ética se torna uma questão de bom senso: o próprio Michael Rabiger, citado longamente algumas linhas acima, termina sua discussão sobre o consentimento dos participantes com uma reflexão acerca do cálculo entre os interesses do participante, do cineasta e do público: um fardo a ser suportado e mensurado pelo documentarista, com base em seu próprio bom senso. Essa linguagem a procura de uma ética de direitos | 225 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) individuais envolvidos no processo de feitura do documentário sai em busca de critérios éticos que caracterizariam o gênero e termina por afirmar que o gênero será aquilo que o bom senso do documentarista decidir. É importante que se frise, mais uma vez, que esse trabalho não pretende resolver o problema da relação entre ética e documentário, mas apenas apresentá-lo. Como contribuição final, pode ser o caso de retomar o exemplo de Fernão Pessoa Ramos sobre a “imagem-câmera da morte real”. Ao que parece, quando o documentário produz sua fenda na fronteira entre o acontecimento e a fruição estética do acontecido, ele estressa nossas concepções éticas e revela aos espectadores aquilo que eles próprios possuem como pressupostos éticos na recepção do material a eles entregue: a relação entre documentário e ética é inegável nessa experiência de provocação. Algo presente nessa experiência pode estar bem mais próximo da natureza do documentário do que as considerações de códigos de ética da profissão acima aventados e, ao cabo, redundantes. REFERÊNCIAS BUTCHART, Garnet C. On ethics and documentary: a real and actual truth. Communication Theory, Oxford, v.16, n. 4, p. 427-452, 2006. BUTCHART, Garnet C. What can a philosophy and ethics of communication look like in the context of documentary filmmaking? Semiotica, Bad Feilnbach, v. 2014, n. 199, p. 83-96, 2014. NICHOLS, Bill. Introduction to documentary. Bloomington: Indiana University Press, 2001. NOGUEIRA, Luís. Géneros Cinematográficos. Covilhã: Livros Labcom, 2010. RABIGER, Michael. Directing the documentary. Oxford: Elsevier, 2004. RAMOS, Fernão Pessoa. O que é documentário?. São Paulo: Editora SENAC, 2002. SALLES, João Moreira. A dificuldade do documentário. In: MARTINS, José Souza; ECKERT, Cornelia; CAIUBY NOVAES, Sylvia (org.). O imaginário e o poético nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2005. p. 57-71. 226 | Uma nave entre dois mundos: apontamentos históricofilosóficos sobre E LA NAVE VA, de Fellini Márcio Benchimol BARROS 1 Há filmes que começam a mexer com a gente já com o título. E a nave vai. Va benne, ela vai. Mas pra onde? Eis a questão: pra onde? Já com este título, Fellini nos coloca cara a cara com a incerteza, que é um dos ingredientes principais do clima trágico-sufocante-nostálgico que é vivido na sua nave. Esse clima é no fundo uma experiência específica do tempo. É a experiência de um futuro ameaçador vivida a partir de um presente que de repente se tornou estranho. É a experiência de um presente que perdeu sua consistência, e que já quando se apresenta é sentido com saudade, porque tudo nele faz lembrar de um passado feliz pra sempre perdido. É essa experiência do tempo que se traduz na feliz imagem do barco em meio ao oceano infinito, desconhecido, 1 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP / SP / Marília. E-mail: benchimolbarros@gmail.com https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p227-238 | 227 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) imprevisível, perigoso…; a imagem da nave portentosa e segura de si, mas, na verdade, frágil e totalmente incapaz de resistir a um sopro mais forte dos elementos. Nela, homens e mulheres sentem de repente como é esquisita essa sensação de não se ter mais terra firme sob os pés, lembram saudosos da costa tão amada, tão confiável e conhecida, à qual talvez nunca mais voltem, ao mesmo tempo em que seus olhares se concentram nas nuvens ameaçadoras que se adensam no horizonte. Pra onde vai a nave? A pergunta não embaraça minimamente os hóspedes da nave felliniana. Todos eles têm uma resposta imediata, pronta e segura a ela: a nave se dirige à Ilha de Érimo a fim de proceder às exéquias da grande cantora Edmea Tetua, que em suas anotações testamentais havia determinado que suas cinzas deveriam ser solenemente espalhadas na costa de sua ilha natal, aos primeiros alvores da manhã. Mas essa resposta diz muito mais do que eles imaginam. Mais do que a meta, ela revela o significado da travessia: ela é um cortejo fúnebre! Mas quem é, de fato, o(a) finado(a)? É mesmo a diva Tetua? Não, por que ela representa o espírito, o ideal e a essência da troupe inteira. No fundo, eles estão indo a seu próprio enterro – e sabem disso! É a si mesmos que eles choram! Como gente da Ópera, eles bem podiam dizer com Brühnhilde: eu vi o mundo acabar2. Eles estão, de fato, vendo o seu mundo acabar, e não têm a menor ideia do que vai substituí-lo. A nave é um prolongamento desse mundo moribundo, o recria artificialmente, mantendo-o criteriosamente separado de toda influência externa. Encapsulados em seu mundo-barco, os hóspedes continuam a ser quem são e a viver como sempre viveram – mesmo porque não saberiam ser outra coisa nem viver diferentemente. Por isso, aferram-se a esse mundo-barco e de início estão perfeitamente seguros de que ele está totalmente a salvo de qualquer perturbação vinda do exterior. Mas, dia após dia, hora após hora, eles vão percebendo que o isolamento é precário e a segurança ilusória. O incômodo e a violência do mundo exterior não cessam de pressionar as paredes de vidro do mundo-barco. Primeiro é a gaivota, depois são os sérvios, e, por fim, a artilharia austro-húngara. Mas nem com o barco afundando eles se 2 Na verdade, a frase, que deveria encerrar a tetralogia do Anel do Nibelungo, foi suprimida por Wagner, juntamente com toda a ária final de Brühnhilde, a qual, não obstante, não deixou de entrar para a crônica operística como o “final schopenhaueriano” de “O crepúsculo dos Deuses”. 228 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio dignam a abandonar sua redoma: ao invés disso, preferem entoar um canto de guerra operístico! Como se dissessem: que afunde o barco, nosso mundo é a Ópera! A ópera é seu único meio de viver e interpretar até mesmo os canhonaços e o iminente naufrágio! É claro que o mundo da Ópera é apenas uma metáfora, e E la nave va não é a primeira ocasião em que Fellini se utiliza da música e dos músicos para espelhar a sociedade. A primeira, salvo engano, foi no impagável Ensaio de orquestra. Mas ali o todo da orquestra representava a sociedade toda, em suas diferentes subdivisões e estratificações. No filme de 1985, o enfoque já é mais particularizante: uma pequena parcela do universo musical representa uma pequena parcela da sociedade. Mais precisamente, o mundo praticamente encerrado em si mesmo da ópera, com sua proverbial enfatuação, com todos os seus narizes empinados, seus códigos e tradições de adoração e culto das vaidades, representa certa casta aristocrática europeia a que coube a (má) sorte de viver nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial. A rigor, não se trata exatamente de uma verdadeira aristocracia, pois de algo assim havia então apenas reminiscências. Mas podemos pensar nos setores mais arcaicos e tradicionais da alta burguesia, que havia herdado da velha aristocracia não apenas suas fortunas, mas também suas maneiras, valores e visão de mundo. Também esta “aristocracia” via, perplexa, dia após dia e hora após hora, o seu mundo acabar; também ela experimentava com estranheza o presente que a cada dia se tornava mais incompreensível, e, para fugir de um futuro ameaçador, se refugiava em um passado de glória saudosamente venerado, como se isso a pudesse manter a salvo da roda dentada do tempo, que girava cada vez mais rápido. Poder-se-ia talvez dizer que o todo da embarcação representa o todo da sociedade. Pois na nave também existe hierarquia e estratificação. Abaixo da alta burguesia aristocrática-tradicional, representada pelos músicos, comparece ali também a pequena burguesia subserviente e aduladora, representada pelos encarregados da cozinha, da manutenção e administração do barco. Estes, por sua, vez, imperam sobre seus próprios subordinados, com os quais se poderia certamente identificar a classe trabalhadora. Mas mesmo nesta classe há estratificação, e a representação mais contundente | 229 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) e crua de seu estrato inferior, o do proletariado industrial, é dada pelos trabalhadores da caldeira, responsáveis pela manutenção e renovação de toda energia que impulsiona o barco e torna possível a vida dentro dele. A cena da caldeira é realmente antológica. Embora Fellini tenha tomado a sábia decisão de musicá-la apenas com trechos da ópera italiana, é uma cena propriamente wagneriana. Também Wagner, na tetralogia do Anel do nibelungo, quis representar metaforicamente a estratificação social. A classe operária é ali representada pelos nibelungos, povo anão escravizado pelo tirano-anão Alberich, e por ele condenada a trabalhar diuturnamente junto às forjas quentes, para manter sua riqueza e poder. O próprio Alberich representa, evidentemente, a burguesia industrial. Mas há também o mundo dos homens, de onde surge o revolucionário Siegfried, como também o mundo dos deuses, que representa a então existente e efetiva aristocracia. Na cena felliniana da caldeira, os operários-nibelungos encontram-se face a face com os deuses-cantores, divos e divas operísticas, que não se fazem de rogados em demonstrar seus dotes sobre-humanos e divinos, para a aturdida admiração daqueles homens embrutecidos e besuntados de suor, óleo e pó de carvão. Mas já que estamos falando de música, não posso deixar de fazer uma observação histórica: cabe lembrar que, por aquela época, Schönberg já havia realizado suas primeiras experiências atonais, em vista das quais alguém afirmou que, com o compositor austríaco, um mundo desaparecia e outro surgia em seu lugar. Tal afirmação, que a História da música talvez recomende relativizar, tem pelo menos a virtude de expressar o impacto que o atonalismo trouxe para a música. Talvez só se possa compará-lo ao impacto que o ateísmo teve para o pensamento metafísico-religioso, ou que a descoberta do espaço infinito teve para o pensamento astronômico. De fato, a ideia de um espaço sonoro em que não mais existem centros tonais em redor dos quais os outros sons gravitam, e em que todos os doze tons da escala cromática não mais se hierarquizam segundo qualquer princípio harmônico, rompe com séculos, quiçá milênios, de pensamento e prática musicais. Assim é que a incerteza histórica retratada na obra de Fellini tem seu componente musical. Pois por aquela época a música também se viu de repente atônita, se bem que também eufórica, diante do 230 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio mar de possibilidades que se abria diante dela. Os principais compositores dessa época são os pioneiros exploradores desse mar, tão intrépidos como receosos, pois sabiam que a velha bússola não lhes serviria mais para nada. Mas, qualquer que fosse sua atitude diante da nova situação, o certo é que nenhum deles poderia saber para onde ia a nave-música. Porém, para anunciar o novo mundo musical, Fellini não se utiliza de Schönberg, cuja música faria um contraste talvez drástico demais com o restante da trilha sonora, totalmente imersa no princípio tonal. É numa cena quase neutra, silenciosa, calma e misteriosa que de repente o aroma do atonalismo se insinua no universo musical do filme. É quando soa o prelúdio número 6 da primeira coleção de prelúdios para piano de Debussy, chamado Des pas sur la neige (Passos na neve). Único prelúdio verdadeiramente atonal dessa primeira coleção, Des pas sur la neige, por sua atmosfera desolada, solitária e imensamente poética, representa uma passagem quase que imperceptível, embora decidida, ao outro mundo musical, preludiando esse novo mundo como a madrugada calma e silenciosa preludia mais um dia cheio de sons e agitação. Que se avalie a distância que há entre os mundos musicais do tonalismo e do atonalismo pela distância que há entre esse mágico prelúdio e o Clair de lune, também de Debussy, que soa quando se projetam na tela as únicas imagens filmadas de Edmea Tetua! Mas esta experiência de que se estava vivendo na fronteira entre dois mundos deve ter sido realmente bastante comum naquela época. No plano social, os acontecimentos históricos que tiveram lugar nos meses e anos seguintes à fictícia viagem da nave felliniana viriam confirmar de maneira drástica essa sensação. Por um lado, a Primeira Guerra Mundial viria a alterar violentamente a correlação de forças na geopolítica mundial, ensejando um deslocamento do eixo econômico e político da Europa para a América e preparando o terreno para o segundo conflito mundial. Por outro lado, há a Revolução Russa, que acende o alerta vermelho em todo o Ocidente e coloca a classe trabalhadora no centro da cena política, como um novo e importantíssimo protagonista. Ambos os abalos são retratados com maestria na película de Fellini. A deflagração da guerra entra no próprio roteiro do filme, sendo inclusive a causa do próprio naufrágio da nave. Já a entrada do proletariado na cena política e o ímpeto | 231 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) revolucionário infundido planetariamente pela Revolução Russa se veem magistralmente retratados na sequência dos sérvios. Que mais poderia significar a chegada repentina desses hóspedes inesperados, turbulentos, exóticos, semibárbaros e potencialmente violentos, que de repente e aos poucos começam visivelmente a disputar espaço com a aristocrática troupe, senão justamente a ascensão política do proletariado industrial a disputar o espaço da sociedade? Em relação a eles, os nobres músicos têm reações contraditórias: de um lado, o indisfarçável fascínio pela vida transbordante que neles se expressa, dando ensejo inclusive a confraternizações dançantes e investidas românticas. Por outro lado, o horror amedrontado que os obriga a tentativas cada vez mais precárias e ridículas de preservar o seu espaço vital face a todo elemento perturbador externo, estabelecendo limites, mesmo que na forma de frágeis cordões de isolamento, dentro dos quais a sua vida pudesse continuar a ser o que sempre foi. E não falta aos sérvios nem mesmo seu revolucionário, o jovem Mirko, no qual a liberdade poética de Fellini faz condensarem-se as figuras do Siegfried wagneriano – que anuncia o crepúsculo dos deuses ao atirar o fatídico molotov contra a nau inglesa, ao mesmo tempo em que rapta e emancipa sua valquíria, sua Brühnhilde aristocrática – e a do estudante sérvio que, segundo registra a História, assassina o arquiduque Franz Ferdinand, dando início ao primeiro conflito mundial. Mas o contraste entre os dois mundos é retratado também na obra de Fellini por ainda outro aspecto que magicamente se mescla às transformações sócio-políticas e musicais na narrativa felliniana. Tratase da grande transformação por que passa a cultura como um todo com a introdução dos modernos meios de captação e reprodução de som e imagem. As primeiras décadas do século XX não são apenas a preparação para a grande viragem trazida pela guerra e pela Revolução Russa. São também as décadas em que a fotografia se impõe como meio importante de apreensão e documentação do real e em que despontam seus primeiros grandes artistas. É a época em que o filme engatinha e que a gravação sonora deixa de ser mera curiosidade técnica, começando a se afirmar como maneira de fixar performances musicais. É a partir de então que as imagens e sons do mundo começam a perder seu aspecto de impressões fugidias, 232 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio recebendo o selo da permanência e da eternidade; começam a perder sua ancestral e umbilical ancoragem no mundo dos objetos para passar a acumular-se em uma dimensão diáfana e imaterial, mas sempre presente e acessível a qualquer tempo e lugar. Trata-se daquela mesma transformação que Walter Benjamin, em seu clássico texto A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, caracterizou como processo de aniquilação da aura. A essência da aura benjaminiana é o poder absoluto do aqui e agora, que sempre dominou nossa cultura. É a unidade e identidade dos objetos artísticos que estão sempre em um determinado lugar e em mais nenhum outro; é a singularidade irrepetível dos eventos que ocorrem sempre em um determinado momento e não em quaisquer outros. Foi sobre a autoridade milenarmente intocável do aqui e agora que se havia assentado sempre a cultura. Mas a introdução dos meios técnicos de reprodução de som e imagem faziam ruir esse pilar. Com esse acontecimento, teria tido início um processo de volatilização, por assim dizer, da cultura, que abandona seu tradicional enraizamento no mundo concreto dos objetos – e, portanto, no mundo das relações de propriedade e dominação de classe –, para passar a habitar uma atmosfera virtual onde se apinham as miríades imagens e sons eternizados, a espera apenas de um comando para descerem até nós. O que Benjamin descreve é na verdade algo absolutamente conhecido por todos, e, de fato, tão cotidiano e trivial que, por isso mesmo, requer uma construção conceitual abstrata para que possa ser percebido. Essa cultura não-aurática das imagens e sons eternos todos nós a reconhecemos como a nossa cultura, mesmo os que jamais leram Benjamin. Foi dessa cultura que sugamos o leite materno do espírito, foi ela que em grande medida nos formou como entes de cultura. Tão profundamente fomos e somos nutridos por essa cultura das imagens e sons eternos que já a reconhecemos como a nossa mesmo quando se mostra em seus primórdios. Os trabalhos dos primeiros fotógrafos nos parecem muito mais contemporâneos do que obras literárias escritas décadas depois, pois aquelas imagens já pertencem, desde nascença e por natureza, ao mundo do reprodutível, ao imenso cabedal audiovisual que nos rodeia e ao qual podemos sempre ter acesso a qualquer tempo. E note-se que esse tipo de consideração não vale apenas para o terreno da cultura, como também para o da vida. As pessoas | 233 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) retratadas por aquelas primeiras imagens nos parecem muito mais nossas contemporâneas do que as que viveram depois e nunca foram reproduzidas, e muitíssimo mais contemporâneas do que aquelas que viveram antes da invenção dos meios técnicos de reprodução de som e imagem. E essa sensação de proximidade é tanto maior quanto mais perfeitamente a vida mesma é reproduzida no seu fluxo natural; e, nesse aspecto, é claro que o filme e a gravação sonora superam de longe os recursos da fotografia. Todos conhecemos as imagens fotográficas de Nietzsche, Brahms, Verdi, Marx, do imperador D. Pedro II, etc. Já os vimos tantas vezes que já não nos causam qualquer especial comoção. Mas quando em uma plataforma de vídeos da internet temos a oportunidade de ouvir uma gravação ao piano de Mahler ou Brahms, não importando o quão discerníveis sejam os sons musicais, ou quando vemos uma pequena filmagem do Nietzsche já demente no hospital, assistido por sua irmã, temos um sobressalto, pois é quase como se estivéssemos recebendo uma mensagem vinda de outro mundo – talvez o mundo dos espíritos ou dos mortos – ou quase como se estivéssemos realizando um importante achado em um sítio arqueológico de alguma cultura antiga. Ora, o tema da passagem de um mundo da não reprodutibilidade técnica da imagem e do som para o mundo da reprodutibilidade é um dos temas centrais de E la nave va, e talvez seja até mais importante que o da transformação social, se é que se poderia separar um do outro (Benjamin mesmo diria que não…). É natural que seja assim, já que se trata exatamente de uma obra cinematográfica vinda de um autor que nunca deixou de refletir sobre sua própria arte. Já as cenas iniciais do filme rendem homenagem aos inícios da fotografia e da filmagem. No preto-e-branco dessas cenas iniciais, que – em uma primeira alusão ao progresso técnico posterior – suavemente se transforma em colorido, já nesse preto-e-branco, dizia eu, expressa Fellini, com a sensibilidade poética que o caracteriza, sua gratidão, e a de todos os cineastas, aos esforços dos pioneiros da fotografia e do filme, personagens em que muitas vezes a figura do artista mal se distinguia da do técnico, da do inventor e do cientista. Mas nessas cenas iniciais é também de se destacar a atitude das pessoas diante da câmera, não exatamente da câmera de Fellini, mas daquela que, no filme, ali está 234 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio para registrar e eternizar o cerimonial da partida – se bem que em alguns momentos essas duas perspectivas se tornam uma só, e a câmera do filme se confunde com a câmera no filme. Os músicos, autoridades navais e agentes funerários já se curvam à tecnologia e tratam a câmera com o devido respeito e mesmo certa solenidade, como se adivinhassem que aquela era a principal testemunha da cerimônia (no que estavam certos). Já é um féretro totalmente diferente dos do passado, o de Edmea Tetua: ele já acontece para a câmera, já pertence tanto ao aqui e agora quanto à eternidade virtual. O operador da câmera não somente registra o cortejo, mas também o dirige: como um diretor de cinema, ele paralisa a marcha fúnebre, ordena que se retroceda alguns passos e dá o sinal para que ela seja retomada, de modo a permitir que seja filmada convenientemente. Mas, principalmente, é digna de destaque a atitude de alguns dos circunstantes comuns, que nada sabiam de ópera, de cinzas e Edmeas. Para esses, a câmera é quase como uma aparição extraterrestre, uma novidade excitante. De uma forma ou de outra, eles se esforçam para exercer aquilo que Benjamin chamou de o direito de ser filmado, mas, muito mais que isso, querem gozar da festa que é ser filmado. Eles olham diretamente para a câmera, riem, fazem gracejos e acenam para ela. Compreenderam que a câmera não era apenas uma testemunha, e sim um personagem, e mesmo o personagem principal; que o mais importante ali não era o filmado, mas sim o que filma. Olhando para a câmera, eles olham para o futuro. Acenam, não exatamente para a câmera, mas para mim e para aquele(a) que agora me lê, mas também para qualquer um que a qualquer tempo pudesse ter acesso àquelas imagens. Mais ainda do que para o futuro, acenam eles para a eternidade. Durante a viagem, os músicos continuam a ter uma atitude ambígua em relação aos meios técnicos de reprodução. Sem dúvida eles sabem que pertencem a outro mundo, ao mundo pré-reprodutibilidade, e que tudo aquilo que amam pertence também a esse mundo passado. Mas nem por isso recusam a possibilidade que a técnica lhes dá de fixar e rememorar o seu mundo perdido. Usam gravações tanto para o puro deleite artístico como eventualmente para acompanhar suas próprias performances. Claro que para eles isso é apenas um substituto, um instrumento de menor importância, mas mesmo assim não deixam de reconhecer que aquelas | 235 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) gravações preservam algo da essência da música, reconhecem que a música pode sim sobreviver, mesmo quando decodificada nos cilindros rolantes de metal ou inscrita nos sulcos de vinil. Com essa deferência e esse reconhecimento que fazem à técnica, eles nos estendem a mão, e já quase nos inclinamos a vê-los como nossos contemporâneos. Símbolo máximo dessa reconciliação entre passado e futuro é a comovente imagem de Edmea Tetua projetada sobre a tela em meio ao naufrágio. Edmea, espírito e essência da música, sobrevive aos canhões, à guerra, ao naufrágio…, mas sobrevive graças ao filme! Porém, a reconciliação definitiva é reservada para as sequências finais. É então que o próprio Fellini nos convida a também olhar através da câmera, para trás dela, e assim descobrir o mistério que os populares, no momento da partida da nave, tentavam confusamente perscrutar ao encararem a lente que os encarava. E o que descobrimos é o cinema, o cinema encarnado em Cinecittà, com suas gruas, suas plataformas móveis, seus andaimes metálicos, seus canhões de luz, seus microfones direcionais, suas equipes de iluminação e sonoplastia. Quem diria que tudo isso se escondia atrás daquela velha lente de 1914, como o fruto maduro palpitando na semente original? Em Cinecittà, o passado realmente se reconcilia com o futuro, pois é ali que todo o passado é recriado e revivido por meio da técnica mais futurista. O cinema supera a ópera ao realizar mais plenamente a ideia da obra de arte total que sempre fora a meta daquela. A fusão mais perfeita entre texto, imagem, atuação dramática e música, juntamente com as especiais condições de isolamento acústico e iluminação, tudo isso confere ao cinema um poder de ilusão, de “recriação” do real muito mais forte do que o da ópera. Dentro das paredes escuras das salas de cinema os seres humanos podem se entregar de todo o coração e sem receios a esse ancestral e poderoso pendor à ilusão, que no século XIX levava os burgueses engalanados à ópera mas que já devia atuar nos bruxuleantes jogos de sombras das cavernas, muito antes que Platão se lembrasse de transformar esse proto-cinema em matéria filosófica. Mas isso não quer dizer que o cinema tenha substituído a ópera, pois esta continua a existir como sempre existiu, como evento aurático, na linguagem de Benjamin, como evento situado no aqui e agora, e, nessa medida, a rigor, 236 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio sempre irreprodutível, de modo que todas as suas reproduções são apenas cópias imperfeitas, simulacros. Mas quantos de nós teríamos qualquer conhecimento mais concreto da ópera se não fossem esses simulacros? O cinema e a técnica em geral não substituem nem destroem a ópera e nem a cultura do passado, mas a preservam para um futuro que sem dúvida dependerá cada vez mais da reprodução e da técnica. Pela técnica redentora do cinema, a Guerra é revisitada e esteticamente superada, passado e futuro, Verdi e Fellini, dão-se amistosamente as mãos… - “Certo, vá lá, mas e o rinoceronte?” - “Ah sim, o rinoceronte! (Pensei que podia escapar dele…)” Creio que qualquer um que se disponha a falar publicamente sobre E la nave va precisa contar com essa pergunta. Sim, que faz um rinoceronte no meio da trama felliniana? De fato, o rinoceronte é um grande tema, grande e pesado, um tema aliás, que, conforme puderam constatar os hóspedes da nave, não cheira nada bem. Sem querer ter a palavra final sobre essa paquidérmica questão, indico apenas uma possibilidade de pensá-la. Essa possibilidade se constrói a partir de duas referências literárias, as duas convergindo em fazerem referência ao fascismo. Mas quero começar confessando que nunca havia dado demasiada importância para essa aparição insólita no filme de Fellini. Por não poder interpretá-la de nenhuma forma satisfatória, a considerava como apenas um toque de absurdo, tão comum nas obras do maestro, e tão condizente com sua poética. Parece-me agora que estava errado, muito embora apontasse, sem querer, para o lado certo. Penso que a intromissão da enorme besta no filme tem a ver sim com o absurdo, mas, mais especificamente, com uma determinada obra do Teatro do Absurdo, o Rhinoceros, de Eugène Ionesco. Esta inquietante narrativa fantástica gira em torno de uma estranha epidemia que se teria abatido sobre determinada cidade, e em virtude da qual seus habitantes, outrora pacatos e ordeiros cidadãos civilizados, transformavam-se repentinamente em rinocerontes, com a exceção do protagonista, que relutava em permanecer humano. E o pior: todos os demais acostumavam-se à mutação, achando-a, | 237 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) por fim, normal, além de perfeitamente decente e adequada: afinal, se todos estavam se rinocerontizando... É sabido que Ionesco retratava com essa fábula o processo de fascistização das populações, que, rendendo-se à violência e ao encanto imbecilizante do instinto de manada, abandonavam suas características humanas para tornarem-se bestas semi-pré-históricas, incapazes de qualquer sentimento humanizante, bem como de enxergar um palmo além de seu próprio e chifrudo nariz. Deixo a cada um determinar, segundo suas próprias experiências, o quanto a rinocerite de Ionesco seria apenas o produto absurdo de uma mente literária delirante (já se viu coisa semelhante?!). A segunda referência literária é dada por Brecht, com sua conhecida afirmação de que após a Segunda Guerra ninguém devia comemorar a vitória sobre o fascismo como algo de definitivo, pois a cadela que o havia parido já estava novamente no cio. Lembremos então da última cena do filme: ela nos mostra o repórter-narrador em seu bote, junto com o paquiderme, nos informando de que o rinoceronte dá um bom leite. Disso se deduz não apenas que se tratava de uma rinoceronte fêmea, mas também que estava prenhe ou havia acabado de dar à luz, pois do contrário não produziria leite. E eis aí a “resposta”, para quem quiser acreditar nela: a sociedade decadente vai a pique, mas gesta, nas suas mais profundas e irracionais entranhas, o embrião malcheiroso do fascismo, que haveria de vicejar já na década seguinte, especialmente na própria Itália, onde Fellini viveu seus anos de adolescência – mas esse já é tema para Amarccord… 238 | Contra a politização do cinema Ulisses Razzante VACCARI 1 INTRODUÇÃO Assistimos, recentemente, no Brasil e no mundo, a uma radicalização política que, apesar da semelhança com outros períodos da história, possui características próprias. Para além de investigar essa especificidade, nos interessa aqui pensar os efeitos da radicalidade política na arte e, em especial, no cinema, problema que pode ser sintetizado no seguinte questionamento: como a radicalização política pode afetar a arte em geral e o cinema em particular? Tempos radicais em termos de política e de movimentos sociais transformam ou deveriam transformar o modo como os artistas produzem suas obras? Em caso afirmativo, como entender então a obra de arte? Ela deve ser pensada como um reflexo da política, como incitação às revoluções ou, ainda: é possível defender sua autonomia independentemente das convulsões sociais? Tal é a constelação de questões que o presente texto procurará discutir, buscando, sempre que possível, referir a obras de arte em geral e a obras cinematográficas específicas. 1 Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil. E-mail: ulisses_vaccari@hotmail.com. https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p239-260 | 239 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Logo de saída, gostaria de observar que a radicalização política exerce um efeito imediato sobre o ânimo da sociedade, transformando, inevitavelmente, todo conteúdo cultural, social e artístico em conteúdo político. Em tempos de convulsão social, como, por exemplo, períodos que antecedem golpes de Estado, revoluções e revoltas, é mister que produtos culturais-artísticos sem uma visão claramente engajada, que não combatam claramente nenhum preconceito determinado, nenhuma injustiça, nenhuma desigualdade, sejam imediatamente rechaçados como alienados e desinteressantes. Essa exigência popular, expressa muitas vezes pela própria opinião pública, afeta igualmente a animosidade dos artistas, que, buscando fugir do ostracismo, veem-se de certo modo obrigados a acatar as exigências da massa e da opinião pública pela politização e o engajamento. Não seria certamente exagero afirmar que, no Brasil, há uma predileção pelo cinema politizado, desde O pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 1962, passando pelos filmes de Glauber Rocha, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), chegando até a década de 1980 com Pixote, a Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, entre outros. Após uma década inteira dominado pela pornochanchada – a de 1980 –, o cinema político vive um “renascimento” em 1998 com Central do Brasil, de Walter Salles e, nos anos 2000, agora com o revestimento da técnica cinematográfica de expressão norte-americana, como em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e em Tropa de Elite, de José Padilha. Recentemente, observou-se um afinamento da produção cinematográfica dita engajada em filmes tais como Que horas ela volta?, de Anna Muylaert e Bacurau de Kleber Mendonça Filho, ocasionando grande debate nacional por trazerem questões político-sociais a uma linguagem mais próxima da brasilidade, sem precisar recorrer ao aparato técnico e pirotécnico próprio do cinema norte-americano. Por outro lado, filmes não claramente politizados, tais como O Homem das Multidões, de Marcelo Gomes e Cao Guimarães, ou Amarelo Manga, de Cláudio Assis, enfrentaram, desde seu lançamento, o mais amargo silêncio, muito embora tenham levado o cinema nacional a um patamar artístico jamais visto até então. 240 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Como explicá-lo? De onde vem, afinal, essa predileção pelo cinema dito engajado? Uma resposta possível é que o público em geral, incluindo a própria opinião pública nacional, constituída de críticos e jornalistas, é muito mais sensível à política que à arte; que, assim como ocorre no futebol, as paixões se exacerbam quando o tema é política, como se pôde observar na discussão inflamada que envolveu o lançamento de Tropa de Elite, por exemplo, a qual ultrapassou em muito o plano artístico para se envolver no nível de uma política apaixonada e carente de razão. O debate originado por ocasião do lançamento do filme não discutiu o filme nele mesmo, isto é, suas qualidades artísticas, mas focou sobretudo no fato de ele ter trazido à tona uma questão social de primeira ordem, que, segundo o tom geral da opinião pública, seria mais importante. Por outro lado, filmes que não trazem a política à flor da pele, mas que se focam em elementos que a ultrapassam, não possuindo uma visão específica sobre uma “questão social”, são ignorados ou rebaixados à categoria de “interessante”. Ao que tudo indica, um determinado filme ou uma obra de arte só adquire visibilidade quando seu tema é “polêmico”, isto é, quando se torna capaz de exaltar as paixões que, em verdade, já se encontram exaltadas. Consequentemente, especificamente no Brasil, a qualidade artística do filme encontra-se subordinada ao seu nível de engajamento político ou social, de modo que a arte que não engajada tem sua função artística diminuída. O problema, a meu ver grave, refere-se a uma falha da opinião pública, mais profundamente a uma falha da crítica de arte ou de cinema que, visando audiência, acaba por produzir o que o público em geral deseja ler ou escutar. Como este público encontra-se de antemão imerso e inflamado pelas questões políticas nacionais, o cinema sabiamente se alimenta desse fato, visando justamente ganhar visibilidade e obter o lucro. Fazer cinema com tema social, no Brasil, passou a significar não propriamente o engajamento político da arte, mas sua submissão a um mercado específico. O que se espera da crítica, assim, é que ela se eleve do plano das paixões e comprometa-se a analisar o cinema de uma forma neutra, procurando, na obra, o equilíbrio entre a polêmica potencial e a estrutura artística. Somente assim se corrigiria o preconceito corrente que grassa na opinião pública tradicional, que consiste em submeter a arte à política apaixonada. | 241 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Recentemente, no Brasil e no mundo, assistimos a um recrudescimento desse fenômeno, como se pôde acompanhar nos debates em torno de filmes tais como Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, e Coringa, de Todd Phillips. Tanto um como outro vieram à tona em momentos políticos extremamente conturbados de cada país – Bacurau, no Brasil e Coringa, nos Estados Unidos –, o que, a meu ver, deveria ser levado em conta nos debates sobre os filmes. Pelo que se pôde acompanhar, raramente se discute o filme pelo filme, isto é, a qualidade da direção, as opções cênicas, a montagem e a atuação dos atores, preferindo-se sempre desvendar a “mensagem política” por trás do enredo ou a posição política do diretor. Não é preciso dizer que tais juízos têm como efeito ignorar a estrutura estética da obra, o que, em última instância, corresponde a uma distorção do próprio filme, na medida em que o juízo sobre ele está fundado numa redução simplista e ingênua. Tal problema se agrava em tempos politicamente conturbados, como se disse, em que não apenas o público em geral, mas a própria opinião pública encontra-se imersa no oceano dos afetos que inunda a nação como um todo. Bacurau e Coringa, nesse sentido, foram vistos e interpretados invariavelmente como libelos políticos, como conclamações à revolta popular e à conspiração contra um status quo opressivo e dominador. No caso de Bacurau, o filme foi recebido em muitos círculos como uma película de resistência; retrataria, segundo essa interpretação, a resistência armada de uma comunidade do interior do Brasil diante da invasão de um grupo internacional igualmente armado, cujo propósito consistiria em literalmente riscar a cidade do mapa, dizimando seus cidadãos. Os motivos desse grupo internacional, cujos integrantes são falantes do inglês norteamericano, escapam do plot do filme, deixando as analogias ao espectador e à opinião pública que, como se disse, encontra-se inflamada por paixões violentas, sedentas por um posicionamento político. O julgamento do filme por parte do público está assim determinado de antemão, inclusive porque é conhecida publicamente a posição política do diretor. O próprio Kleber Mendonça fez questão de submeter o filme Aquarius, de 2015, à sua posição política pessoal na sua apresentação em Cannes2, predeterminando, assim, 2 Cf. Moraes (2016). 242 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio seu público e o julgamento reservado ao filme. Assim como Adorno referese ao fenômeno da supressão do gosto pela indústria cultural, o mesmo pode ser dito de um filme cuja “posição política” é antecipada pelo próprio diretor, ceifando a liberdade de julgamento dos espectadores e da opinião pública. Nesse sentido, são louváveis as entrevistas de diretores que, diante da sana midiática de definir o “sentido” do filme, apenas embaralha e confunde sua “mensagem”, ou, no máximo, apenas proporciona pistas para que o espectador possa refazer o caminho por si próprio, garantindo assim a liberdade da imaginação, um dos bens mais raros no cenário artístico mundial da atualidade. O caso de Coringa não é diferente. Embora houvesse quem elogiasse a atuação de Joaquin Phoenix, as interpretações se limitaram a uma questão exterior, mas não menos política, de que a grandeza da película estaria no seu combate à ideologia do herói própria dos filmes da Marvel. Ao contrário destes, Coringa seria um bom filme porque traria para as telas o drama da vida dos vilões que, humanizados, não são mais vistos como a encarnação do mal radical. A “mensagem política” do filme, assim, é que, agora, todos os excluídos da chamada democracia, os marginais da cultura e da sociedade, podem se identificar com esse vilão que só é tal justamente porque foi desde sempre excluído. Não há, a meu ver, interpretação mais mecânica, mais simplista do que esta. Se o objetivo consiste em situar o núcleo do cinema no enredo, abstraindo dos elementos propriamente estéticos do filme (o que faz com que a crítica contemporânea seja aristotélica sem o saber), esse enredo, por outro lado, peca por um simplismo que beira a infantilidade. De modo que a única explicação para que a opinião pública eleja esse filme como um grande filme reside no desejo subjetivo de que ele repare uma “injustiça social”, dando voz aos excluídos e estabelecendo a conexão – óbvia, a meu ver –, entre os marginalizados e a loucura recalcada que circula, solitária, pelas ruas repletas de decadência, base de toda revolta popular. Coringa, nesse sentido, sequer teria o mérito da originalidade, pois, nesse quesito, foi precedido por Taxi Driver, de Martin Scorcese, cujo enredo consiste exatamente no estabelecimento dessa relação causal entre a explosão da loucura e da violência gratuita e descontrolada e o recalque | 243 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) dos desejos dos oprimidos, obrigados a viverem como ratos nas grandes metrópoles da segunda metade do século XX. Diante disso, eu gostaria de defender aqui que tal redução da arte e, particularmente do cinema, a uma visão político-social imediata é empobrecedora. A arte ou, ao menos, a qualidade artística de uma obra não pode e não deve ser definida apenas em relação ao seu nível de engajamento político e não deve ser precedida pela posição política do seu diretor ou de sua produção; fazê-lo significa determinar de antemão a crítica e a opinião pública, ceifar a liberdade da imaginação e de julgamento, e, portanto, esvaziar a obra de arte de suas qualidades artísticas. Estas últimas, embora tangencie inevitavelmente temas políticos e se formem em torno deles, devem se incrustar igualmente em outros domínios da vida humana, sejam eles metafísicos, sociológicos, científicos, psicológicos ou mesmo puramente artísticos. À obra de arte deve-se, no mínimo, garantir a possibilidade e o desejo de manter-se num nível puramente estético, de permanecer no âmbito de uma brincadeira ou de um jogo, se este for o caso, ou de se satisfazer com a chamada “bela aparência”, sem que, com isso, seja considerada descompromissada, desinteressada (ou interessante) ou alienada. O caráter político, sendo apenas um dos elementos possíveis da obra de arte, não deve sobrepujar sua qualidade artística, ou ser usado para determiná-la, preponderando, assim, sobre os outros elementos que perfazem e constituem o seu universo. Desde o surgimento da estética e da filosofia da arte na antiguidade grega discute-se o papel da arte, de sua “função” na sociedade e na cultura, tendo os mais diversos pensadores se colocado ora a favor ora contra o engajamento político da arte. Não se trata aqui de tomar um partido na querela, já milenar à época de Platão, mas simplesmente apontar para o fato de que toda redução da arte à sua função política significa o atrelamento da obra a seu tempo imediato e a seus problemas específicos, o que, por outro lado, resulta na perda da dimensão filosófica, universal, atemporal e a-histórica que toda arte e toda crítica, invariavelmente, devem possuir e conservar. Sempre que lemos uma análise de um filme relacionando-o à conjuntura política atual ou procurando ver sua gênese a partir de uma situação política específica, corremos o risco de sobrepor à obra um 244 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio fenômeno meramente empírico, um fato histórico determinado, perdendo de vista, consequentemente, todos os outros elementos que a definem como “arte”. Tão logo este fato empírico ou dado histórico a que a obra foi reduzida desapareçam, desaparecerá igualmente o interesse pela obra, que passará a ser “datada”, como aliás, tornou-se comum na expressão “filme de época”, referindo-se a um certo gênero cinematográfico cujo objetivo consiste apenas em retratar os costumes de uma determinada época. A expressão “filmes de época”, geralmente, é usada em um tom depreciativo e serve, justamente, para rebaixar um determinado filme, retirando dele todas as qualidades artísticas que ele porventura pudesse possuir, o que, evidentemente, revela-se uma injustiça com a obra. Basta pensar em Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrik para convencer-se de que um filme, mesmo ao retratar os costumes de uma época passada, pode ser filosófico. O mesmo ocorre com filmes ditos panfletários. O ENGAJAMENTO POLÍTICO DO CINEMA NO SÉCULO XX Não há dúvida de que esse modo de analisar uma determinada obra de arte, neste caso, um filme ou mesmo o cinema como um todo, está amparado por uma tradição crítica, sobretudo de orientação marxista. Embora as obras do próprio Marx careçam de uma estética, isto é, de uma aplicação de sua teoria buscando pensar a obra de arte na era do capitalismo, seu pensamento fundou uma tradição que se encarregou de estabelecer essa relação. O primeiro a fazê-lo, a saber, utilizar os conceitos de Marx para pensar a estética na modernidade capitalista, foi Georg Lukács, em História e consciência de classe. Não se trata, evidentemente, do primeiro a abordar o tema do engajamento político da arte, mas foi um dos primeiros a pensar as consequências d´O Capital de Marx para uma teoria estética. Com isso, Lukács abre caminho para uma gama de pensadores que, desde o início do século XX, se caracteriza por exigir da arte uma postura politizada, como forma de combate ao status quo opressor e subjugador, geralmente identificado com “o sistema capitalista”. Um dos autores mais conhecidos dessa via aberta por Lukács é Walter Benjamin que também envereda pela questão do fetichismo da mercadoria, procurando pensá-la no domínio da arte e da crítica. Segundo Benjamin, a ideia do fetiche | 245 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) da mercadoria, quando pensada no plano da cultura como um todo, tem como efeito a transformação de todas as relações sociais e humanas em relações fantasmagóricas, isto é, carentes de um fundamento sólido, porque calcadas tão-somente na aparência. Nesse sentido, observa-se um movimento de multiplicação da aparência, que já não exprime uma essência concreta, facilmente identificável, mas uma aparência que se alimenta de si mesma e por si mesma. O III Reich soube apropriar-se desse fenômeno, ao utilizá-lo na política, como forma de propaganda. Fortemente estetizada, a política do nazismo pôde, finalmente, ganhar para si as grandes massas. A obra de arte, nesse cenário, assume uma função importante, de combate aos ilusionismos próprios dessa cultura, conquanto, nela, sobressaia sua função política em detrimento de sua função meramente estética. Eis como Benjamin, em seu conhecido ensaio A obra de arte nos tempos de sua reprodutibilidade técnica, defende a ideia da politização da arte como forma de combate da estetização da política, própria dos regimes fascista e nazista: “Essa é a estetização da política, tal como a pratica o fascismo. A resposta do comunismo é a politização da arte” (BENJAMIN, 1975, p. 34). É sobretudo no cinema que Benjamin deposita a esperança da politização da arte contra a estetização da política. Para mostrá-lo, o filósofo reduz toda a linguagem do cinema à sua função política, ao valorizar nele sua qualidade reprodutível, contrariamente à arte tradicional, não reprodutível, portanto, aurática. É precisamente este o ponto de inflexão no qual a crítica passará a favorecer o lado político da arte e, em especial, do cinema, em detrimento de suas qualidades propriamente artísticas. Este é um momento decisivo para a crítica de cinema, porque é a partir dele que se fará a cisão entre cinema político e apolítico, então, entre o cinema engajado e o cinema desinteressado (ou meramente interessante). É a partir de Benjamin que o cinema apolítico se tornará sinônimo de um cinema não compromissado com os problemas sociais, vertente esta que ganhou fôlego no território nacional, mesmo que os nossos críticos e formadores de opinião não conheçam a fundo a teoria benjaminiana da reprodutibilidade técnica. A bem dizer, o texto de Benjamin tornou-se uma espécie de bíblia dos professores universitários de cinema e jornalismo, de modo que, desde 246 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio o primeiro ano na faculdade, os estudantes aprendem que o texto sobre a reprodutibilidade técnica constitui o texto talvez mais fundamental sobre cinema do século XX, o que, em certo sentido, não deixa de ser verdade. O problema, porém, reside no modo como este texto é ensinado, ou melhor, louvado muito mais por seu caráter panfletário que propriamente por seus valores históricos, sociológicos ou filosóficos. Ensina-se o texto na maior parte das vezes sem se estabelecer a conexão necessária entre ele e o contexto histórico em que o autor o escreveu, por um lado, e sem se estabelecer sua conexão sistemática com o restante dos textos do autor sobre o tema. O conceito da aura, assim, permanece até hoje um enigma metafísico não resolvido, porque não compreendido, bem como escapa dessa forma de ler o texto sua unidade filosófica. Isolado de suas conexões filosóficas mais abrangentes, exalta-se no texto apenas seu grito de desespero, ignorando suas nuances, suas ironias, suas ambiguidades e mesmo as incertezas que subjazem suas teses mais importantes e mais conhecidas, elementos estes deveras importantes para Benjamin. A obra de Benjamin, da qual ecoa com uma força retumbante a exigência de politização da arte, pertence àquelas que não podem ser explicadas sem a referência à sua vida, e esta, por sua vez, só pode ser compreendida no interior do contexto histórico de sua época. Ao fazê-lo, ao buscarmos compreender os motivos que levaram Benjamin a formular assim seu pensamento, talvez possamos relativizar um pouco suas teses, retirando delas a radicalidade exigida por sua época. Da contextualização histórica do seu tempo (algo nem sempre fácil de fazer) derivará necessariamente a compreensão de muitos dos seus postulados filosóficos, como, por exemplo, a necessidade de se proteger contra os grandes temas metafísicos da filosofia, a necessidade de buscar pela matéria em detrimento do espírito, a necessidade de se intitular um materialista histórico, enfim, a necessidade de exigir o engajamento político-revolucionário da arte. Há épocas históricas extremas que exigem da filosofia uma radicalidade próxima à do revolucionário e Benjamin viveu, talvez, no momento mais extremo do século XX, política e socialmente falando. Sua vida foi marcada pelo surgimento da Primeira Guerra Mundial, pela Revolução Russa, pelas empreitadas revolucionárias de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht | 247 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) em Berlim, pelo malogro da República de Weimar e, finalmente, pelo despontar do fascismo na Itália e na Alemanha. Vivenciou o momento em que Hitler se torna chanceler em 1933, quando se despediu definitivamente da Alemanha, vindo a se exilar em Paris para o resto de seus dias, cujo fim trágico foi determinado pelo suicídio em Port-Bou, na fronteira com a Espanha. Diante disso, a pergunta que ressoa não é relativamente às razões de ter Benjamin exigido da arte o engajamento político, mas, pelo contrário, diante de um século a tal ponto explosivo, havia como não exigir da arte um posicionamento político? Como afirma Brecht, como pintar uma natureza-morta num navio que está afundando? Tal ambiente torna compreensível a exigência de engajamento que se faz à arte, condenando sua permanência no âmbito da bela aparência; a exigência de que ela não poderia simplesmente fechar-se sobre si mesma e ignorar o mundo que ruía à sua volta. O tempo histórico tornava não apenas necessário o engajamento da arte, mas imperativo, na medida em que a humanidade viu-se compelida a utilizar todas as forças humanas no combate a uma ameaça real. Nessas forças, a própria arte viu-se incluída, conclamada à luta. Com que direito, afinal, poderia a arte ficar de fora desse esforço universal, que envolveu o mundo como um todo e o todo das forças do mundo no sentido de combater um inimigo comum? Como afirma o próprio Benjamin no ensaio sobre A obra de arte, em meio a um cenário a tal ponto radical, o século XX não poderia tolerar uma “arte pela arte”; uma arte que, fechada sobre si mesma, se alimentasse de um prazer estético tornado tanto mais repugnante devido às condições políticas de um século sombrio. O problema é como a posterioridade conseguiu descontextualizar a exigência de Benjamin para a arte e utilizá-la a bel prazer em todo e qualquer contexto histórico, exigindo sempre da arte um posicionamento político-social. Se, por um lado, podemos compreender os motivos que levaram Benjamin a exigir da arte e do cinema em especial o compromisso com a política, isso, por outro, não implica que essas exigências possam ser estendidas a todos os tempos e a todas as épocas, isto é, à arte de um modo em geral. Tal tentativa, aliás, estaria em contradição com o pensamento do próprio Benjamin, que procurou com todas as suas forças livrar248 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio se das concepções eternas da metafísica. Ele aprendeu que, após Hegel, toda afirmação que vise o absoluto soará dogmática, portanto, que toda afirmação pretensamente atemporal deve ser compreendida historicamente. Ora, o mesmo vale para o tema da arte política que, pungente à época de Benjamin, deve ser em outras épocas flexibilizado, a fim de que o pensamento respire, e assim possa chegar a outros resultados e conquistar novos patamares. Se é perfeitamente compreensível e justificável a exigência feita em algumas épocas de que a arte não pode virar as costas para a práxis, essa exigência não pode possuir pretensões universais e atemporais, como se, a partir de então, toda arte devesse ser reduzida à sua função política. Como diz Adorno em uma crítica feita justamente a Benjamin, a exigência de que a arte deve se politizar precisa ser pensada de uma forma tal que essa exigência não anule a autonomia da arte, conquistada a duras penas ao longo de um árduo processo histórico. Seria preciso, diz Adorno, pensar de que modo a arte pode conservar seu engajamento político sem anular sua liberdade, de modo que ela mantenha-se como arte. Seria preciso pensar uma arte que, ao se engajar, não necessariamente anule com isso suas qualidades estético-artísticas, colocando a própria arte em risco. É por isso que Adorno afirmava ser necessário pensar a arte no interior de uma dialética na qual liberdade e engajamento político não se anulem necessariamente, mas convivam no interior do conceito da arte que, assim, preserva sua autonomia sem abrir mão de sua responsabilidade social. Essa concepção, relativa à arte em geral, permite dar conta da história do cinema em particular, pois ela consegue preservar nele a totalidade de seus momentos históricos específicos, sem reduzi-lo a uma exigência determinada. Quando pensamos o cinema a partir de uma dialética entre engajamento e autonomia conseguimos dar conta dos mais diversos momentos de seu desenvolvimento, em que ele segue por outros domínios do conhecimento humano, sejam eles filosóficos, psicológicos, sociológicos ou meramente estéticos, dependendo do momento histórico ou das condições em que tal ou tal filme foi produzido. Com isso, seria possível mostrar a relevância artística e mesmo justificar filosoficamente filmes não claramente engajados, como Gritos e Sussurros, de Bergman ou mesmo Hannah e suas Irmãs, de Woody Allen, por exemplo, mantendo a | 249 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) afirmação de que constituem o cinema do mesmo modo que o Encouraçado Potemkim, de Eisenstein ou O Grande Ditador, de Chaplin. Esse conceito dialético de arte e de cinema deveria ser absorvido e exercitado pela crítica e pela opinião pública de um modo geral, de modo a elevar no Brasil a discussão estética do cinema, por meio da qual se permitiria no âmbito racional a convivência de manifestações as mais diversas possíveis, sem que um tipo apenas de cinema tivesse predileção baseada apenas no afeto e no sentimento. O ENGAJAMENTO POLÍTICO DA ARTE NOS SÉCULOS XVIII E XX A história da autonomia da arte é antiga e, no plano da filosofia, remonta a Alexander Baumgarten, no século XVIII, como o primeiro filósofo a tentar atribuir à sensibilidade um estatuto de conhecimento. Em sua Aesthetica, Baumgarten procurou desvincular a ideia de que somente a razão é propiciadora de conhecimento. Há, segundo ele, outra fonte de conhecimento, a sensibilidade, geralmente descreditada pela tradição racionalista como o âmbito do confuso e do obscuro. Contrariamente a essa tendência, para Baumgarten, a sensibilidade é geradora de um conhecimento sensível ou estético, que, embora não possua as mesmas características do conhecimento racional, pode ser considerado um conhecimento, por exemplo, quando um pintor estuda uma paisagem para representá-la na tela ou quando um poeta investiga um sentimento visando reproduzi-lo na forma de um poema. Poderíamos acrescentar que também um diretor, ao fazer um filme, proporciona uma forma de episteme do mundo, por meio de sua técnica própria da montagem, da direção, da filmagem, do arranjo das cenas, etc. Baumgarten, com isso, funda uma tradição, peculiar ao pensamento alemão, cujo traço principal constituirá em mostrar por que, afinal, a arte não constitui uma linguagem epistêmica inferior à ciência (ou à moral, ou à política). Ao possuir leis próprias de conhecimento da natureza e da humanidade, a arte, ao lidar especificamente com a sensibilidade, estaria assim no mesmo patamar dos conhecimentos consagrados pela tradição racionalista, muito embora o próprio Baumgarten a denomine gnosiologia inferior (no sentido 250 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio metafísico antigo, segundo o qual a sensibilidade era entendida como a faculdade inferior de conhecimento). Essa concepção de Baumgarten funda, como se disse, uma tradição de origem alemã, cujo objetivo consistirá em mostrar filosoficamente a autonomia da arte e da estética em relação aos outros domínios do conhecimento, sobretudo em relação à ciência e à moral (incluindo a política). Kant será um dos maiores representantes dessa vertente, muito embora ele se diferencie de Baumgarten em um ponto fundamental. A busca pela autonomia do estético, segundo Kant, pressupõe a separação radical da sensibilidade em relação ao âmbito do conhecimento, de modo que não se pode mais afirmar que a sensibilidade gere conhecimento, como Baumgarten ainda sugeria. O domínio do belo, para Kant, funda-se num campo completamente distinto do juízo de conhecimento e do juízo moral, fundando-se em um campo, ou melhor, fazendo um uso das faculdades de um modo inteiramente próprio. Segundo Kant, o belo, embora aparentado com o símbolo da moralidade, por um lado, e almejando a universalidade do conceito, por outro, é de natureza completamente diferente destes, porque seu juízo é desinteressado, isto é, não tem como objetivo determinar o objeto fora do sujeito, como sói acontecer nos outros dois domínios. A característica do juízo de gosto, segundo Kant, consiste no fato de que ele apenas proporciona prazer ou desprazer, não sendo atribuído a ele nenhuma função cognitiva nem edificante. É como se, para Kant, o artista fizesse arte tão somente em virtude do prazer ou do desprazer proporcionado por ela, sem querer, com isso, nada que esteja para além desse domínio. Em Kant, assim, não se encontra nenhum vestígio de nenhum tipo de demanda política endereçada à arte; esta demanda ganhou força sobretudo no século XX, como vimos. Apesar disso, é possível encontrar no próprio século XVIII um ponto de inflexão que, em certa medida, alteraria esses resultados conquistados por Kant. Trata-se da estética de Schiller que, embora tivesse procurado, em muitos de seus estudos propriamente filosóficos, dar continuidade à tentativa de delimitar a estética e a arte em sua autonomia, traz em si uma ambiguidade, sensível já em seu grande interesse por temas políticos relacionados aos acontecimentos da Revolução Francesa. Em certo sentido, não é exagero afirmar que seus | 251 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) estudos filosóficos relacionados à estética são em grande parte motivados pelo ambiente político da França daquele final do século, cujas reviravoltas afetaram consideravelmente também a Alemanha. Seu projeto filosófico mais conhecido, as Cartas sobre a educação estética da humanidade, dificilmente pode ser compreendido sem a referência às atribulações políticas da Europa naquele período específico da história. A tese principal do livro segundo a qual a humanidade deve ser educada esteticamente – o imperativo categórico se torna aqui estético – deriva desse estado de coisas que Schiller deseja reverter. Caso fosse possível demonstrá-lo, então teríamos novamente um exemplo de como a vida, inserida em um contexto histórico peculiar, determina ou pode determinar uma filosofia, como já mostramos no caso de Benjamin, o que é completamente compreensível. Mas, assim como lá, importa não universalizar ou tornar absoluto um pensamento que foi construído no calor de um momento de perigo, marcado por convulsões sociais que mudariam o curso do mundo. É nesse espírito que é preciso compreender a tese de Schiller acerca da educação estética da humanidade. Trata-se de um projeto ambicioso, no qual o autor procura mostrar por que o caminho em direção à liberdade moral e política deve ser trilhado não pela práxis revolucionária, pois esta redundou no Terror de Robespierre, mas por meio do belo da arte, pois só este possui capacidade propriamente formadora. Mas é exatamente aqui que o projeto, apesar de sua beleza intrínseca e densa especulação filosófica, acaba por se manter fiel a essa mesma práxis da qual o filósofo deseja se libertar. Pois, grosso modo, a tese central do projeto de Schiller pode ser compreendida a partir da seguinte sentença: “... para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade” (SCHILLER, 1989, p. 26). Como se vê, o problema candente do pensamento de Schiller consiste não propriamente em pensar a arte ou a estética em si, mas pensar a arte e a estética na medida em que por meio delas é possível “resolver na experiência o problema político”. A sentença, assim, reinsere na arte e na estética uma dificuldade que Kant havia de certo modo resolvido e que pode ser reduzida à tese de que à arte novamente é atribuída uma função, uma responsabilidade, de conduzir a humanidade à liberdade moral e política. Isso significa que, 252 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio com Schiller, o problema volta a ser o mesmo: como sustentar a autonomia da arte e da estética, ou seja, a própria liberdade dessas instâncias, se elas são vistas como meios para se alcançar um fim exterior a elas? Ou: como a arte pode conduzir à liberdade se sua liberdade intrínseca é tolhida em prol de um fim dito superior? Certamente se poderia interpretar a sentença no sentido de que arte e liberdade são irmanadas, de que a arte é filha da liberdade e, portanto, que não há separação possível entre um domínio e outro. Segundo essa interpretação, fazer arte seria por si só exercer a liberdade. Para isso, porém, seria preciso definir o que se entende por liberdade e, quando o fazemos, deparamo-nos com o fato de que, em Schiller, o termo “liberdade” está muito próximo de Kant. Schiller se declarou afinal claramente um seguidor de Kant no período em que se pôs a estudar estética filosófica. Em Kant, porém, o sentido de “liberdade” é sempre moral e, especificamente em Schiller, o termo, além do sentido moral, adquire também uma conotação claramente política, em relação direta com os rumos da Revolução Francesa. Ao afirmar que arte e política são irmanadas, que são conceitos inseparáveis, Schiller, assim, volta a relacionar dois elementos que Kant havia separado, ação esta que se torna tanto mais incompreensível se considerarmos que o ponto de partida de suas investigações filosóficas consistia precisamente em radicalizar o processo de autonomização da estética, iniciado por Baumgarten e por Kant. Schiller, com isso, abre o flanco para um tipo específico de interpretação que, principalmente a partir do século XX, tentará novamente fortalecer esse laço rompido por Kant entre arte, moral e política. Uma dessas interpretações, como vimos, é a de Benjamin que, embora não se refira explicitamente a Schiller no que se refere à fundação de sua teoria, o pressupõe de muitas formas. Mas há outra intepretação que se refere explicitamente a Schiller: a de Jacques Rancière, filósofo francês bastante celebrado no cenário da estética contemporânea, responsável por repensar as conexões possíveis entre arte e política. E, para fazê-lo, Rancière parte de Schiller, na medida em que, tendo fundado o que denomina de “estado estético”, sua teoria é interpretada como expressão de uma prática política própria do momento histórico | 253 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) do fim do século XVIII, no qual foram postas abaixo todas as hierarquias, sejam elas políticas, referentes ao ancien régime, sejam da ordem das ciências e do conhecimento. Do mesmo modo que, no plano político, a Revolução Francesa reivindicou a anulação da classe nobre e fundou na França a era do republicanismo, a estética, no âmbito do pensamento, reivindicou com Schiller a superação do conhecimento científico, de ordem conceitual, como a forma de conhecimento por excelência: “O estado ‘estético’ de Schiller, suspendendo a oposição entre entendimento ativo e sensibilidade passiva, quer arruinar, com uma ideia da arte, uma ideia da sociedade fundada sobre a oposição entre os que pensam e decidem e os que são destinados aos trabalhos materiais” (RANCIÈRE, 2009, p. 66). Ao lado de Benjamin, Rancière figura assim como um dos maiores representantes dessa nova tendência do pensamento estético que, reaproveitando a lufada marxista dos séculos XIX e XX, procura reconectá-lo com sua potencialidade político-revolucionária. Ao correlacionar a revolução executada no plano do pensamento e a outra executada no plano da práxis, Rancière se inscreve como uma espécie de continuador da chamada teoria crítica da escola de Frankfurt, para a qual não há efetivamente separação entre teoria e prática. Pensar, para essa vertente, já constitui em si uma forma de práxis. Como se pode ler em outros de seus livros, trata-se efetivamente de um esforço considerável no sentido de derrubar todas as fronteiras do pensamento, erigidas nos séculos XVII e XVIII. Esta revolução proporcionada por Rancière no âmbito da pura teoria, segundo ele iniciada com o estado estético de Schiller, surge assim como continuidade da revolução política efetivada no plano da práxis. Mas, embora possua traços marxistas, sobretudo em sua formação, Rancière não está ligado de forma tão atávica aos ideais socialistas como Benjamin. Autor de uma dezena de livros, a maioria deles sobre política, estética e filosofia da arte, Rancière se notabilizou com a tese da “partilha do sensível”, em que procura radicalizar a ideia de Benjamin em torno da politização da arte. Enquanto, para este, a exigência do engajamento político da arte fazia-se necessária em um momento histórico determinado, para Rancière, pelo contrário, todo ato estético deve ser em si mesmo 254 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio definido como um ato político e vice-versa. É impossível e, no mínimo, improdutivo, como afirma em outra obra, separar de forma estanque os âmbitos do conhecimento humano, como se a política e a estética, ao contrário do que afirma o século XVIII, fossem regimes completamente autônomos e incomunicáveis entre si. Todo ato político, segundo Rancière, implica uma reestruturação da sensibilidade, do quinhão de espaço e do tempo destinado a cada indivíduo e a cada grupo, do mesmo modo que toda obra de arte procura contestar as divisões políticas estabelecidas e propor outras novas. Em Políticas da Escrita, Rancière se refere a Benjamin para definir sua tese: “Já se falou, a partir de Benjamin, de uma ‘estetização’ moderna da política, que alguns assimilaram a uma espetacularização. Mas a política não se tornou ‘estética’ ou ‘espetacular’ recentemente. Ela é estética desde o início, na medida em que é um modo de determinação do sensível, uma divisão dos espaços – reais e simbólicos – destinados a essa ou àquela ocupação, uma forma de visibilidade e de dizibilidade do que é próprio e do que é comum” (RANCIÈRE, 1995, p. 8). E, em A partilha do sensível, completa: “Existe, portanto, na base da política, uma ‘estética’ que não tem nada a ver com a ‘estetização da política’ própria à era das massas, de que fala Benjamin” (RANCIÈRE, 2009, p. 16). Num sentido diferente de Benjamin, tal tese afirma que é impossível pensar a política sem uma relação com a estética, isto é, uma política pura, que não proponha redimensionamentos na ordem sensível. Assim: “a política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (RANCIÈRE, 2009, p. 59). Trata-se, em última instância, de uma revisitação da ideia do teatro grego como espécie de laboratório de estudos das possibilidades infinitas da recente democracia ateniense, defendida, entre outros, por Jacques Taminiaux. Segundo essa visão, a finalidade do teatro grego, assim como toda arte de um modo geral, está sempre ligada, de uma forma ou de outra, a esse redimensionamento da política, mesmo que, na arte, esse redimensionamento seja pensado apenas no domínio da ficção. O interesse da ficção, sendo assim, não está nele mesmo, mas na hipóstase por meio da qual se pensa e se repensa os dimensionamentos políticos. | 255 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) A imaginação artística ou fantasia perde assim seu estatuto ontológico próprio; sua riqueza está, segundo essa leitura, apenas em sua ligação com uma práxis política, portanto, a uma ligação com um fim exterior. Segundo essa concepção, nunca se imagina por imaginar, mas todo ato imaginativo é em si mesmo político. Embora se pretenda universalista e antirreducionista ao propor a superação das cisões estabelecidas pelo século XVIII entre os saberes, entre arte e política, por exemplo, tal tese acaba justamente redundando em seu oposto, ao afirmar que toda política é estética e que toda arte pretende de algum modo rearranjar as divisões realizadas pelas ações propriamente políticas. CINEMA E LIBERDADE O perigo que ameaça a obra de arte quando esta é submetida a um fato histórico-político determinado é o mesmo que ameaça a filosofia, quando esta se submete a modas da época ou a ideologias partidárias. Arte e filosofia estão aparentadas no pensamento livre; situam-se acima de interesses particulares e individuais. Do mesmo modo que um filósofo não deve se submeter a um partido político, pois comprometido com o pensamento radical, tampouco deve o artista submeter-se a posições políticas, correndo o risco de sacrificar assim a própria arte. No caso específico da arte, seu fundamento é tão-somente a imaginação produtiva, associativa, de modo que a arte não possui propriamente fundamento, a não ser ela própria. Eis o significado da tese iluminista da autonomia da arte, formulada no mesmo século XVIII responsável por formular a estética como disciplina filosófica. Somente espelhando-se em uma atividade em si mesma livre, em uma imaginação completamente destituída de vínculos e interesses, pode uma determinada cultura ou sociedade almejar sua libertação política. Esta jamais se concretiza por meio de uma imaginação subjugada, submetida a conceitos que lhe são exteriores, a fins que lhe são estranhos. Por si só, tal posição garante uma função política para a arte sem que esta precise necessariamente declarar-se engajada. Ao se afirmar que a arte repousa na liberdade, num sentido não propriamente moral, nem político, mas numa liberdade da imaginação em criar o que lhe convém, garante-se a ela o direito de tomar ou não ares político-engajados. Sua “essência”, assim, deixa de ser 256 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio necessariamente a “política”, para residir apenas nela mesma. Do mesmo modo que a essência da imaginação é imaginar, da fantasia, fantasiar, a essência da arte deve ser a própria arte. Longe de constituir um fundamento metafísico determinado, estanque e fixo, a essência, aqui, se torna produto ou efeito da própria atividade imaginativa, restando indeterminado o que esta atividade produzirá como essencial. Isso corresponde a afirmar que a essência da arte deve ser produzida pela própria arte, sem a pretensão de encontrá-la em qualquer outro lugar a não ser nela mesma. Tal concepção remete a uma prática executada por um certo tipo de cinema, que, baseado em verdade numa tradição milenar da arte, pretendeu falar não sobre fatos da vida, como se estes existissem independentemente do cinema, mas falar da vida na medida em que ela se confunde com o próprio cinema. Tal cinema, que tem seu ápice em Jean-Luc Godard, deixa de funcionar como uma linguagem como meio para a transmissão de fins exteriores a si, e se transforma numa linguagem imediata, em metalinguagem, linguagem cinematográfica que tem por objeto a própria linguagem do cinema. Nesse caso, o cinema não está a serviço da representação de um objeto ou de um fato de uma vida que se situa para além da câmera e da representação, mas a representação pela câmera do cinema se torna o próprio objeto do cinema. Trata-se do cinema que imagina o próprio cinema, o cinema que cria sua própria essência, como acontece, por exemplo, ao início do filme O desprezo (Le Mépris), de 1963, cuja cena inicial consiste numa imagem frontal da própria câmera de cinema, que, portanto, está apontada para o espectador, que se vê assim filmado. É a câmera contra a câmera, a câmera filmando a câmera, numa espécie de círculo em que o espectador, geralmente situado fora do filme, se confunde agora com o filme, pois está refletido na própria tela ao mesmo tempo em que a reflete. Ambos os planos – espectador e câmera – se unificam nesse momento em um único e mesmo plano, superando a separação conceitual entre representante e representado, trocando de lugares, mas, ao mesmo tempo, sem se cristalizar no oposto que assumiram. A ideia é simplesmente tornar fluido o lugar, o topos que cada qual ocupou ao longo da história do cinema, numa espécie de transporte infinito e inacabado entre um extremo e outro. Com isso, o filme rompe com a separação tradicional | 257 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) entre forma e conteúdo, sujeito e objeto, inserindo na película e ao mesmo tempo pressupondo o conceito filosófico de reflexão. Como diante de um espelho, o cinema não apenas filma a si próprio, pois isso seria banal e corresponderia ao que conhecemos hoje pelo gênero do making of. Pelo contrário, nessa auto-filmagem, reflete a si mesmo, pensa filosoficamente sobre si e, assim, toma a si mesmo ao mesmo tempo como sujeito e objeto, forma e conteúdo. Nessa autorreferência da reflexão de si, o conteúdo passa a ser a forma e vice-versa, superando também a divisão entre um fora e um dentro, um interior e um exterior, um representante e um representado, pois todos os conceitos são unificados, separados e reunificados na reflexão de si, na livre associação imaginativa, do cinema que reflete o cinema. Deixa de existir com isso a vida fora do cinema, que é completamente absorvida na película, assim como deixa de existir o diretor, o ator, o produtor, como personas fixas e imóveis, que atuam por trás da câmera, separados do filme, para se tornarem personagens de uma trama que é representada no interior do filme e que, ao trabalharem para o filme, ao mesmo tempo atuam no filme. Tal é o que de fato se observa no enredo de O desprezo. O filme trata da vida dos que fazem cinema, daqueles que estão envolvidos na filmagem da Odisseia, de Homero, trazendo para o interior da imagem cinematográfica a vida de cada um, mostrando como ela se mistura e se confunde com a história do cinema e com a produção material do filme. É nesse ponto, nesse ápice da história que se confunde com a narração de si, que o cinema atinge sua máxima liberdade, que ele se afirma não como uma linguagem de veiculação de conteúdo, de representação de um representado, mas como uma linguagem completamente autônoma, tão autônoma que se volta para refletir e pensar a si mesmo. O mesmo procedimento se observa, por exemplo, em filmes de Woody Allen, que se referem constantemente à história do cinema e se alimentam dela. Muitas foram suas tentativas de recriar os ambientes e as tramas dos filmes de Bergman, como em Interiores, por exemplo, filme de 1978 que abandona o espírito satírico-irônico para se aventurar no domínio do trágico e do absurdo da existência humana, assumindo uma forma claramente filosófica. Os próprios filmes de Bergman são caracterizados por sua tessitura filosófica, existencialista, isto é, por uma visada menos 258 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio empírica, menos factual, e mais abstrata. Sua questão é a mesma do teatro grego e de Shakespeare, isto é, desvendar a natureza humana em sua universalidade, despir os personagens de suas roupagens pessoais em busca de seu ethos. Aqui, o enredo importa menos que a dimensão humana dos personagens, trazidos para uma cena trágica. Mesmo que se interprete seus filmes a partir de certa visão política, defendendo que se trata de uma crítica à sociedade sueca em sua configuração burguesa ou elitista, essa visão está submetida à estrutura estética do filme, que supera a visão política, e que se alçou à dimensão fundamental do filme por uma necessidade intrínseca a ela mesma, pelo curso de seu próprio desenvolvimento enquanto obra de arte baseada na imaginação livre e produtiva. O arranjo estético das cenas, em Bergman, adquire uma função superior, livre, autônoma, não por uma determinação exterior da opinião pública ou da crítica de cinema, mas a partir da própria exposição sensível da essência do ser humano. A estética de seus filmes não surge, assim, como produto do acaso ou como capricho do diretor, mas como necessariamente conectada com seu objeto, o ser humano, de modo que a visão que se obtém deste ao longo dos filmes de Bergman não é uma visão abstrata, meramente conceitual, mas uma visão inseparável da forma sensível e estética alcançada pela sequência das imagens de seus filmes. A miséria humana, seus caprichos, a inveja, o ciúme, o ódio, o desprezo, são todas características humanas que só se tornam compreensíveis por meio do modo como o diretor as ordena esteticamente. Em todo caso, a estética, o belo, a aparência, está sempre acima de qualquer outra determinação, e é isso o que, a meu ver, caracteriza sua grandeza. REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. A obra de arte na era de suas técnicas de reprodução. Trad. José Lino Grünnewald. São Paulo: Abril, 1975. MORAES, Camila Ribeiro de; VICENTE, Alex. Equipe de ‘Aquarius’, de Kleber Mendonça Filho, protesta em Cannes. El País, São Paulo, 19 maio 2016. Cultura. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/17/cultura/1463498064_139719.html. Acesso em: 09 jan. 2020. | 259 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009. RANCIÈRE, J. Políticas da Escrita. Trad. Raquel Ramalhete. São Paulo: Editora 34, 1995. SCHILLER, F. A educação estética do homem: numa série de cartas. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1989. 260 | ENSAIO DE ORQUESTRA E O MAESTRO: comentário introdutório1 Ubirajara Rancan de Azevedo MARQUES 2 INTRODUÇÃO Prova d’orchestra,3 de 1978, é obra de Federico Fellini, com duração de pouco mais de 70 minutos. Dyrygent,4 de 1979,5 é obra de Andrzej Wajda, com duração de pouco mais de 90 minutos. No caso de Ensaio de Orquestra, os personagens não têm identificação nominal própria; como de fato ocorre nas orquestras, eles são, ali, identificados com os instrumentos 1 Parte do texto a seguir foi publicada em Alves e Rancan (2021, p. 98-118). 2 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP / SP / Marília. E-mail: ubirajara.rancan@gmail.com. 3 Ensaio de Orquestra não é a única, nem a primeira obra de Fellini para a TV, tendo sido precedida em tal sentido por I clowns; cf. “Prova d’orchestra”. 4 Essa obra de Wajda parece não estar ora comercialmente disponível no Brasil, quer em “DVD”, quer em “Bluray”; pior: não está mais acessível versão dela, legendada em português, existente até pelo menos 20 de agosto de 2020 na plataforma YouTube. Agradeço ao caro colega Prof. Dr. Giovanni Alves a disponibilização da cópia acima indicada. 5 Nos créditos do filme, encontra-se a referência: “FILM POLSKI MCMLXXIX” [“FILME POLONÊS MCMLXXIX”]; já em várias páginas na Internet—inclusive na página dita “oficial” de Andrzej Wajda [http:// www.wajda.pl/en/filmy.html] –, o filme é datado de 1980. Ao que parece, 1979 será o “ano de produção” de O Maestro, ao passo que 1980 – a partir de “24.3.1980”, data da pré-estreia dele –, o ano no qual ele passou a ser exibido; cf. Dyrygent. Disponível em: https://filmpolski.pl/fp/index.php?film=12514 Acesso em: 11 mar. 2021. https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p261-280 | 261 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) que tocam [por exemplo: harpa, piano, fagote], ou com a função que têm [direttore / regente; primo violino / primeiro violino]. Embora assim—e ao contrário do que poderia parecer —, alguns dos personagens do filme, inda que porventura não todos, são vividos por atrizes e atores profissionais, mesmo que não conhecidos do grande público; entre eles: Balduin Baas [o regente], Clara Colosimo [a harpista], Elizabeth Labi [a pianista], Ronaldo Bonacchi [o fagotista].6 No caso de O Maestro, para além de John Gielgud, saudoso grande ator inglês que nele interpreta “John / Jan Lasocki”, personagem-título da película, merece destaque a grande atriz polonesa Krystyna Janda, que no filme é a personagem “Marta”, bem como Andrzej Seweryn, que nele é o também regente “Adam Pietrzyk”. A partir de uma alegoria musical que toma a orquestra como um microcosmo privilegiado de representação da ordem político-social (LE PAVEC, Jean-Pierre. “Cinéma”, Paris, 1980 apud “Dyrygent [The Orchestra Conductor]),7 tanto a obra de Fellini, quanto a de Wajda constroem narrativas e dramatizam situações sobre estrutura e relação de poder. Na verdade, pareceria mesmo demasiado pouco consistente—seja para com os contextos históricos italiano (FUMAGALLI, 1981)8 e polonês de então, seja para com as próprias estruturas e desenvolvimentos de ambos os filmes—que um e outro não estivessem premeditadamente a fazer tal coisa. 6 Tal, com efeito, o elenco identificado pela própria “Rai Movie”, por cuja iniciativa foi produzido Ensaio de Orquestra. Embora assim, diferentes websites identificam vários outros atores que atuaram no filme; cf. “Prova d’orchestra”. Disponível em: https://www.rai.it/raimovie/news/2020/07/Prova-dorchestra-6bc62eb3-719a4f33-914a-426e57fae896.html Acesso em: 25 mar. 2021. 7 Disponível em: http://www.wajda.pl/en/filmy/film23.html. Acesso em: 11 mar. 2021: “Since his film debut Wajda has filmed conflicts between the older and the younger generations. In his early days, he sided with the young. Now, he tends to take the side of maturity. […] In The Orchestra Conductor it is obviously premeditated. This new point of view is emphasised by the fact that John Gielgud not only looks old, but also is known for his advanced age. Although his hero is nearing the grave, both the young female violinist and other members of the orchestra are fascinated by him. […] Like Fellini in The Orchestra Rehearsal, Wajda is not interested in the activity in which the conductor and the orchestra are directly involved: he is not concerned with their music and its quality. The director himself confessed at some point that he didn’t pay much attention to the music, which is not his speciality anyway. What really attracted him about the orchestra was its quality of a social organism in miniature, ideally suited to convey all sorts of metaphors pertaining to society, its organisation, and interpersonal relations in general. It is Poland that he has portrayed in the guise of the orchestra”. 8 Disponível em: http://www.filmselezione.ch/scheda.cfm?tipo=reg&iniz=WAJDA%20ANDRZEJ&start =4&id=60 Acesso em: 23 fev. 2021: “Wajda e Fellini sono assai dissimili. Il secondo deforma la realtà, il primo ne subisce costantemente le tentazioni. Così PROVA D’ORCHESTRA e questo DIRETTORE D’ORCHESTRA seguono strade dissimili. Ma hanno qualcosa in comune: per Wajda, come per Fellini, l’orchestra rappresenta la società. E i rapporti che legano i musicisti tra di loro e con il loro direttore, sono i rapporti che concernono i cittadini, ed loro contatti con il Potere. Con ancora una diversità: a Fellini interessa molto di più l’orchestra che non il direttore”. [...] 262 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Parecendo avaliar o regente em geral como intrinsecamente despótico, Fellini toma o palcoscenico musicale como instância de “prova”; ou seja: lugar e momento de experimentação, investigação, tentativa (DIZIONARIO ETIMOLOGICO ONLINE, c2006),9 e, pois, de oportunidade artística para uma imagem concentrada da [desordenada] ordem político-social então vigente na Itália, a partir de voltas e reviravoltas entre opressores e oprimidos. Partindo também de palco e ensaio como lugar e momento privilegiados de representação dessa mesma ordem, Wajda, porém, ao contrário de Fellini, parece avaliar o regente em geral como não necessariamente ditador, expondo, ao lado do comportamento autoritário de um, o comportamento autoritativo de outro. A partir do mote—em grande medida comum a ambos—que um e outro filme dispõem-se a glosar, Prova d’orchestra e Dyrygent, ecoando-as [de caso pensado ou não], ajustam-se com leituras intelectuais conhecidas desde pelo menos os anos 50 e 60, ou com imagens empregadas nesse mesmo âmbito, já nos anos 30 do século XX. No “§ 13” do “Quaderno” “15” dos Quaderni del carcere,10 por exemplo, Antonio Gramsci lançava mão da seguinte analogia orquestral: Uma consciência coletiva—ou seja: um organismo vivo—só se forma depois que a multiplicidade foi unificada pelo atrito dos indivíduos; nem se pode dizer que o “silêncio” não seja multiplicidade. Uma orquestra que ensaia, cada instrumento por si próprio, dá a impressão da mais horrível cacofonia; não obstante, estes ensaios são a condição para que a orquestra viva como um só “instrumento”. (GRAMSCI PROJECT DIGITAL LIBRARY, c2021). Já em 1960, em Massa e Poder (CANETTI, 2013, p. 395-397), Elias Canetti afirmava: “Inexiste expressão mais manifesta do poder do que a atividade do maestro. […] Alguém que nada soubesse a seu respeito poderia deduzir uma a uma as características do poder a partir 9 Disponível em: https://www.etimo.it/?cmd=id&id=13794&md=70a44b24f140e1e1e602f83c45f56f6a. Acesso em: 15 fev. 2021. Como se poderá verificar pela referência contida na próxima nota, outras passagens dos mesmos Quaderni contêm analogias musicais a partir da “orchestra” e do “direttore d’orchestra”. 10 | 263 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) da contemplação atenta do regente” (CANETTI, 2013, p. 395). Em meio a um conjunto de lições ministradas durante o semestre de inverno de 1961-1962, Theodor Adorno considerava a figura do regente em: “Regente e orquestra. Aspectos sociopsicológicos” (ADORNO, 2009, p. 217-238; especialmente p. 217-229): As ponderações sobre o regente, a orquestra e a relação entre os dois justificam-se, não apenas em função da relevância social de seu papel na vida musical, mas, sobretudo, porque elas formam em si algo semelhante a um microcosmo no qual as tensões da sociedade ressurgem e deixam-se estudar concretamente. (ADORNO, 2009, p. 217). Para o caso de Ensaio..., quando da rebelião de vários músicos da orquestra e das propostas subsequentes de o direttore ser substituído por um metrônomo, ou de dele se prescindir por completo, sem que seu lugar seja ocupado por um substituto mecânico, vale recordar um exemplo de contraposição ao hierarquismo presente na atividade do maestro, incompatível com os cânones da nova ordem revolucionária ali então estabelecida: na União Soviética, entre 1922 e 1933, teve lugar o experimento regular de uma orquestra sinfônica sem regente.11 O grupo tornou-se conhecido pelo acrônimo: “PERSIMFANS”, que, na transposição para o português da expressão original russa que leva a ele, significa: “Primeiro conjunto sinfônico sem regente”.12 Em 2008, algo similar foi recriado na Rússia, embora, parece, não mais a partir dos ideais político-revolucionários da Revolução de 1917, mas por requisitos de ordem artístico-musical.13 Embora, tecnicamente, não seja um caso de falta absoluta de regência, em 2017, um robô conduziu a Orchestra Sinfonica di Lucca e o solista Andrea Bocelli; cf. “ABB’s robot YuMi takes center stage in Pisa, conducts Andrea Bocelli and Lucca Symphony Orchestra”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fohc1QgrQU Acesso em: 24 fev. 2021. Em 2020, nova experiência do gênero teve lugar em concerto nos Emirados Árabes Unidos; cf. “This Robot Conductor Leads Human Orchestra”. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=5JU0R4Zd2To Acesso: 24 fev. 2021. 11 Disponível em: http://www.trivia-library.com/b/history-of-the-greatest-conductorless-orchestra.htm Acesso em: 20 fev. 2021. 12 Cf. “PERSIMFANS”. Disponível em: https://persimfans.com/about/persimfans/ Acesso em: 27 fev. 2021. No registro seguinte, pode-se acompanhar o quarto e último movimento da 9ª. Sinfonia de Beethoven por essa orquestra fundada há 13 anos: “Beethoven 9th by Persimfans (Finale)”. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=nSzPXAUkwLM Acesso: 27 fev. 2021. 13 264 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Afora tais referências, haveria também que lembrar um fato da crônica musical então contemporânea a Fellini e a Wajda: a progressiva notoriedade do regente principal vitalício [desde 1955] da Filarmônica de Berlim, orquestra à frente da qual ele permaneceria por longos 35 anos: Herbert von Karajan. Embora na época [e antes] houvesse outros regentes de destaque à frente de grandes orquestras, nenhum era tão iconizado naqueles tempos quanto Karajan.14 Não se tratando de ora comentar as reflexões de Gramsci, nem as de Canetti, tampouco as de Adorno, sequer o experimento musical soviético acima recordado, ou o possível impacto da imagem de Karajan sobre Fellini e Wajda, tais referências têm por objetivo dimensionar o alcance político-ideológico da alegoria de que se valem Ensaio de Orquestra e O Maestro, procedimento que, por sua vez, não tem a intenção de subrepticiamente afirmar que os diretores de ambas essas películas terão se servido de tais elementos—deste ou daquele; de um ou de todos—para a concepção de seus próprios filmes, algo em si mesmo porventura desnecessário, já pelo fato de que a componente político-ideológica da figura do regente será, por assim dizer [e como apontado por Canetti e por Adorno], mais ou menos intuitiva. ENSAIO DE ORQUESTRA No filme de Fellini, a orquestra é a verdadeira protagonista. Não assim pelo simples fato de estar à frente da grande maioria das cenas, mas por ela representar o elemento em torno do qual a trama inteira se desenvolve. Com efeito, desde a longa parte [metade de toda a obra, aproximadamente] das entrevistas, na qual se mostram as dissensões entre instrumentistas e naipes, até o clímax da revolta própria, desunificada e acéfala, ao qual se segue um curto desfecho reincidente, a orquestra é sempre tutelada, quer pela burocracia sindicalista, quer pelo poder técnico constituído, face aos quais sua própria incompetência, reflexiva e gerencial, não lhe permite auto-organizar-se. Cf. VALENTE, Augusto. Karajan vive!. DW Brasil. 02 abr. 2008. Cultura. Disponível em: https://www. dw.com/pt-br/karajan-os-100-anos-de-um-regente-controverso/a-3218110 Acesso em: 27 fev. 2021. 14 | 265 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) . Quais os personagens de Ensaio de Orquestra? Pela ordem de sua aparição em cena: o copista; a televisão [representada pelo entrevistador, cuja voz é do próprio Fellini, por sinal;15 os músicos da orquestra [nenhum deles em particular] e o regente, havendo ainda o “chefe da orquestra” [“capo orchestra”] e o dirigente sindical. “Copista” e “televisão”, embora ambos componham a cena—aquele de forma visível; esta, ocultamente—, a atuação destes dois personagens será preferencialmente alusiva. Inda que um e outro estejam no tempo presente, o copista torna-se emblema de um passado faustoso, ao passo que a “TV” representará—naqueles anos de crise, também para o cinema —16 a possibilidade de um futuro danoso para a sétima arte. No caso do copista, trata-se de alusão metafórica, que, enaltecendo positivamente a autoridade fisicamente agressiva de um regente do passado,17 recorda uma outra estrutura político-social, também, depois, saudosamente enaltecida pelo maestro de agora. Com isso, talvez se possa desenhar a seguinte configuração: em meio a um presente político-social convulsivo [a realidade daquele momento, na Itália e em boa parte do mundo], a lembrança de um passado faustoso, mas velho – prestes a aposentar-se –, e a perspectiva de um futuro incerto, sem rosto e artisticamente ameaçador. Se assim, o desenrolar da trama, emoldurada pelas figuras do copista“passado” e da televisão -“futuro”, centra-se na convivência-“presente”, alegoricamente representada pela sociabilidade em crise de músicos “PROVA d’orchestra”. In: WIKIPEDIA: the free encyclopedia. [San Francisco, CA: Wikimedia Foundation, 2010]. Disponível em: https://it.wikipedia.org/wiki/Prova_%27orchestra. Acesso: 21 fev. 2021. 15 Cf. PUBBLICATO il dodicesimo volume della “Storia del cinema italiano” dedicato al cinema degli anni “70”. Centro Sperimentale di Cinematografia, Roma. Disponível em: https://www.fondazionecsc.it/ pubblicato-il-dodicesimo-volume-della-storia-del-cinema-italiano-dedicato-al-cinema-degli-anni-70/. Acesso em: 29 jan. 2021. 16 Tratar-se-á aí de licença fílmica de Fellini, uma hipérbole bem a seu gosto, que, porém, pode erradamente levar o espectador incauto a tomá-la como exata referência histórico-biográfica a Arturo Toscanini, cuja imagem é mostrada mais adiante. A propósito de Toscanini, cf. SNORIGUZZI, Francesco. Arturo Toscanini: Primo divo della direzione d’orchestra. L’indro, Italia, 24 mar. 2017. Cultura & Societá. Disponível em: https://www. lindro.it/arturo-toscanini-primo-divo-della-direzione-dorchestra/. Acesso em: 15 fev. 2021. 17 266 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio reunidos num em princípio banal ensaio de orquestra.18 Ou seja: diante da glória perdida, face a um futuro sem projeção, o presente oscila entre nostalgia lamentosa e embate cego. Salvo engano, o filme admitirá as seguintes divisão e desenvolvimento: 1. Um rápido introito, com “copista” e “TV” representando respectivamente “passado” e “futuro”. Nesse introito, ouve-se, na apresentação de créditos, uma cacofonia urbana, típica das grandes cidades, provável alusão à cacofonia político-social do momento; 2. Uma primeira parte, com a apresentação dos músicos que formam o “presente”, tempo do desenrolar da trama, apresentação na qual não faltam imagens e considerações saudosistas, e na qual se vai entrelaçando o tecido da discórdia. Até aqui, tem-se aproximadamente metade do filme; 3. Uma segunda parte, com o início propriamente dito do ensaio, na qual, ao contrário do que normalmente se esperaria, não se vê um regente dirigindo-se a músicos e a falar-lhes de uma obra e da interpretação da mesma [a obra a ser então ensaiada], mas um funcionário e um dirigente sindical que se reportam diretamente a funcionários sindicalizados. Diante dessa impostação burocrático-administrativo-sindical, os músicos reagem em total conformidade para com ela, posicionando-se a respeito da correção ou incorreção trabalhista de a TV realizar entrevistas com eles, sem nenhum pagamento adicional por isso; 4. Separada em duas seções, uma terceira parte do filme, decidida pelo “chefe da orquestra” — decisão que sucede a um absurdo mal-entendido entre regente e dirigente sindical—, leva ao intervalo do ensaio, que, exibindo a simplicidade [e mesmo a simploriedade] musical e intelectual da grande maioria dos músicos da orquestra, mostra igualmente apatia, comodismo, revolucionarismo inconsequente de diferentes grupos dela. Longe de retratar uma pausa de descanso, essa etapa do filme enfatiza os diferentes tipos sociais já antes caracterizados, bem como suas respectivas Vale lembrar algumas licenças de Fellini no que se refere à orquestra, já assim quanto à disposição dos músicos, não exatamente canônica. Entre os instrumentos de corda, notar-se-á a ausência da viola, estando presentes somente o violino, o violoncelo e o contrabaixo [este último em número exagerado para o tamanho do grupo, com nenhum contrabaixista, a propósito, sendo entrevistado]. Relativamente a todo o conjunto, exagerado também o número de trompas. 18 | 267 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) índoles político-ideológicas. Na segunda seção dessa terceira parte de Ensaio..., a nova fala do copista é em determinado momento acompanhada, ao fundo e à esquerda, pelo retrato de Arturo Toscanini, materialização da referência saudosista ao passado, à imagem do líder de outrora, cuja rigidez [problematicamente hiperbolizada por Fellini]19 é enaltecida pelo copista, pelo regente, por alguns músicos;20 5. Uma quarta parte, com a convulsão que se instala, na qual alguns músicos preferem o caminho da autogestão, ao passo que outros, a mera substituição do marcador-de-compasso humano, tão livre quanto imprevisível, pelo marcador-de-compasso mecânico, não livre, mas previsível e controlável. Essa última opção implicará uma escolha anterior, sub-reptícia, pelo mecânico em lugar do livre, assinalando com isso não só um distanciamento do que seria um processo de autogestão, mas apontando para uma radicalização da figura do controlador externo, agora representado pela máxima inflexibilidade de um metrônomo programável. Os que não querem o sistema autogestionário optam por controlar o controlador externo. Sem consenso a respeito, a discórdia termina em tumulto e anomia; 6. Uma quinta e última parte, com a reinstauração da antiga ordem. Após o colapso parcial da estrutura ambiente pelo impacto da bola de demolição contra ela—impacto algumas vezes prenunciado, quase sempre em momentos de efetivo desacordo “social” —, o regente, face ao estupor dos músicos, oferece-lhes o auxílio de sua liderança inicialmente gentil, outra vez convertida, a seguir, em despótico comando. Nas cenas derradeiras, mais incisivamente ditatoriais, já não se veem mais o “chefe da orquestra”, nem o dirigente sindical, cujas figuras tornaram-se perfeitamente supérfluas diante do líder que tudo controla. As frases ditas em alemão pelo regente ao final da história poderão ser uma alusão político-musical a 19 Cf. LA DIGNITÀ di Toscanini contro la violenza fascista. Mediazione Dialogo Relazione, Torino, 14 magg. 2019. Corsi e Ricorsi. Disponível em: http://www.me-dia-re.it/la-dignita-di-toscanini-contro-la-violenzafascista/ Acesso em: 29 jan. 2021. Notar-se-á também que o biotipo do “chefe da orquestra” — biotipo, dir-se-á, caracteristicamente felliniano—, sobretudo quando ele levanta-se para anunciar o intervalo antecipado, aludirá a alguns dos caubóis vividos no cinema por John Wayne. Pense-se em especial no decadente—mas ainda ativo—Rooster Cogburn, de “Justiceiro Implacável” [“Rooster Cogburn”; direção de Stuart Millar], filme de 1975, exibido na Itália como “Torna El Grinta”. 20 268 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Karajan, ou, no limite, uma alusão retórico-política a Hitler, não, decerto, em forma de clamor pela revivescência de uma liderança de tipo nazista,21 mas à lembrança do perigo a que a ruptura social está sempre sujeita. Dito de outro modo: a inviabilidade de um compromisso político maior entre diferentes tendências ideológicas conflitantes pode—outra vez—resultar no desenvolvimento de condições que favoreçam a emergência [ou reemergência] de uma liderança extremista. Tal me parece ser o argumento de Ensaio de Orquestra. As últimas palavras do regente, em italiano, remetendo a uma típica expressão musical – “da capo!” [“do início!”] –, expressão já antes utilizada por ele, levam agora à suspeita de que tudo possa repetir-se, o que conduziria a um renovado sentimento de desesperança. O MAESTRO A respeito de O Maestro como um todo, também de sua relação com a Polônia e com Karol Wojtyla, assim se pronunciou o próprio Wajda: Frustrados como estávamos todos naquela época na Polônia, não sabendo o que fazer, sentíamos no ar um tipo de expectativa por um milagre a ocorrer; talvez um anseio por algum tipo de modelo, especialmente se vindo do Ocidente. Ele seria personificado por um maestro mundialmente famoso, conduzindo um concerto de aniversário na pequena cidade polonesa onde ele havia nascido. Consequentemente, a história tinha de ter lugar numa cidade provinciana, com seus dignitários locais intrusivos e implacáveis. Cf. GRAZZINI, Giovanni; FELLINI, Federico. Intervista sul cinema. Giulianocinema, 2004. Disponível em: http://giulianocinema.blogspot.com.br/2010/07/prova-dorchestra-iii.html. Acesso em: 21 fev. 2021.: “Se dovessi tentare di ricavare un senso da alcune reazioni del pubblico che mi hanno raggiunto o che mi sono state riferite, davvero non saprei più nemmeno io da che parte cominciare per definire il mio film (smarrimento forse salutare, soprattutto come esempio da seguire). Come conciliare infatti la commozione di coloro che a fine film commentavano rammaricati: ‘Che peccato che il film non finisca quando gli orchestrali riprendono a suonare tutti insieme! Ma perché quello si mette improvvisamente a parlare in tedesco? Che c’entra? Che significa?’, con il guizzo demenziale di quel pazzo (perché mi sembra che si debba essere irrimediabilmente pazzi per intendere il film così) che nel guardaroba di un ristorante, mentre stavo infilandomi il cappotto, mi ha sussurrato con bieca soddisfazione: ‘Ho visto il film. Sono con lei. Qui ci vuole lo zio Adolfo!’? Domando costernato: ma è mai possibile che il film si presti a un equivoco così mostruoso? O meglio, che cosa può voler dire, che cosa può testimoniare o rivelare una tale aberrante reazione? Che nel mondo di oggi, sotto il crollo delle sue strutture organizzate, nella cancellazione di tutti i suoi valori e punti di riferimento, ciascuno reagisce alla confusione, al malessere, al male che ci circonda, generalizzando una propria personale patologia e proiettando quindi su quanto ci sta attorno, sia esso un film o un evento, le proprie paure e i propri desideri?” 21 | 269 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Todas as espécies de líderes partidários, criaturas indignas, típicas dos chamados “filmes de inquietação moral”, encontraram seu caminho para a tela. Andrzej Kijowski fez duas importantes alterações no roteiro [do filme]: ele idealizou o inspirador, embora um tanto absurdo, personagem principal – o maestro sagrado, absolutamente dedicado à sua arte e tendo garantida a admiração de seus companheiros. Além disso, Kijowski acrescentou a história do jovem casal cujos problemas conjugais começam quando o marido, ele mesmo um regente, torna-se enciumado face à admiração que sua esposa violinista sente pelo maestro. Depois de Karol Wojtyla ter-se tornado Papa, o ritmo dos acontecimentos acelerou-se repentinamente na Polônia. O “Visitante do Ocidente” não precisava mais ser um monstro. Esperávamos que tal personagem fosse nosso patrono e guia. O sonho já estava lá, mas a probabilidade de uma visita de João Paulo II à Polônia parecia irreal. Rapidamente, o roteiro saiu do controle e o filme começou a evoluir à sua maneira.22 (WAJDA, 2010). Antes da referência a “um maestro mundialmente famoso”, que personificaria um “modelo” ocidental, as palavras de Wajda não permitem com clareza saber se a frustração e a inércia de que ele fala constituem uma alusão ao móbil do roteiro final, ou se formam parte dele. Ambas as possibilidades sendo completamente plausíveis, além de não excludentes— quer do ponto de vista da estrutura dessa narrativa, quer, sobretudo, do ponto de vista do contexto histórico polonês de então—, parece-me que uma e outra devam ser conjuntamente aceitas; ou seja: frustração e inércia apontadas por Wajda serão um dado da sociedade polonesa na época de 22 WAJDA, Andrzej. Dyrygent [The Orchestra Conductor]. c2010a. Disponível em: http://www.wajda.pl/ en/filmy/film23.html. Acesso em: 11 mar. 2021: “Frustrated as we all were at that time in Poland, not knowing what to do, we felt in the air a kind of expectation for a miracle to happen; perhaps a longing for some kind of model, especially if it came from the West. It was to be personified by a world-famous conductor, leading an anniversary concert in the small Polish town where he had been born. Accordingly, the story had to take place in a provincial town, with its obtrusive and ruthless local dignitaries. All sorts of party leaders, unworthy creatures typical of the so-called “films of moral unrest”, found their way onto the screen. Andrzej Kijowski made two important alterations to his script. He devised the awe-inspiring, if slightly absurd, main character - the hallowed maestro, absolutely dedicated to his art and taking the admiration of his companions for granted. Also, Kijowski added the story of the young couple whose marital troubles begin when the husband, a conductor himself, becomes jealous of the admiration which his violinist wife feels for the maestro. After Karol Wojtyla became Pope, the pace of events suddenly accelerated in Poland. The “Visitor-from-the-West” did no longer have to be a monster. We expected such a personage to be our patron and guide. The dream was already there, but the likelihood of a visit by John Paul II to Poland seemed unrealistic. Very quickly the script got out of control and the film began to evolve in its own way”. 270 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio produção do filme, e, por isso mesmo, parte do roteiro de O Maestro. Se assim, a “expectativa por um milagre a ocorrer”, o “anseio por algum tipo de modelo, especialmente se vindo do Ocidente”, uma e outro explicariam a “admiração” dos músicos da orquestra pelo “inspirador, embora um tanto absurdo, personagem principal – o maestro sagrado, absolutamente dedicado à sua arte”, que, fosse outro o momento, poderia não carrear essa mesma “admiração”. Segundo Wajda, o roteirista Andrzej Kijowski “fez duas importantes alterações” no—supõe-se—roteiro original: além da inserção do próprio personagem Lasocki, “a história do jovem casal cujos problemas conjugais começam quando o marido, ele mesmo um regente, torna-se enciumado face à admiração que sua esposa violinista sente pelo maestro”. Tais alterações não serão tão só “importantes”, mas verdadeiramente substanciais, não se concebendo que o roteiro original, qualquer que tenha sido ele, mas sem tais personagens e as histórias que os entrelaçam, pudesse ainda referir-se ao mesmo filme. Com relação à caracterização do personagem principal da trama, que, ao ver de Wajda, será “um tanto absurdo”, ela poderá estar apoiada na sacralidade com que, segundo o próprio diretor do filme, ele é considerado, bem como no fato de Lasocki ser “absolutamente dedicado à sua arte”. Com isso, a “expectativa por um milagre a ocorrer” será negativamente considerada por Wajda, não como “expectativa”, mas como espera por um “milagre”, pela como que intercessão da Providência. Contudo, a sacralidade em pauta não será uma característica autêntica do personagem, só lhe podendo ser, em verdade, indiretamente imputada, tendo-o em verdade sido, e justo pela orquestra, ansiosa “por algum tipo de modelo”, que nele, enfim, encontra. Tampouco uma alienação relativa ao contexto histórico imediato, decorrente de visão esteticista da arte, poderia ser corretamente atribuída a Lasocki, quem, a propósito, nega-se a dirigir a orquestra provincial reforçada com músicos vindos de Varsóvia. Ou seja: ao perceber que a orquestra é outra, não lhe importa a possibilidade de um som esteticamente superior, mas o fato de os músicos com os quais trabalhara terem sido autoritariamente preteridos. Assim, nem sacralidade, | 271 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) nem alienação parecem ser autênticos atributos do personagem, embora sejam componentes da imagem típica do regente de orquestra em geral. As palavras seguintes de Wajda, de “Depois de que Karol Wojtyla tornou-se Papa [...]”, até: “a probabilidade de uma visita de João Paulo II à Polônia parecia irreal [...]”—serão o testemunho confirmatório de uma impressão bastante natural entre pelo menos muitos espectadores de O Maestro; ou seja: a de que, nalguma medida, o personagem de Jan Lasocki remete ao então Sumo Pontífice, o “Papa polonês”. O “modelo” ansiado, “vindo do Ocidente”, o “Visitante do Ocidente”, aquele de quem se esperava fosse “patrono e guia”, eis o maestro, o dirigente, o condutor, tal como, depois, em larga medida, será efetivamente o Papa Wojtyla. Mas a personificação do “modelo” pelo qual se ansiava não é um líder ocidental, mas um que, oriundo de para onde foi, dali tendo partido, dali ausente havia 50 anos, é, a rigor, inda assim, somente “vindo do Ocidente”, não dele originário. Sem poder ser uma remissão metafórica, quase documental a Karol Wojtyla em sua terra [a primeira viagem de João Paulo II à Polônia, transcorrida entre 2 e 10 de junho de 1979,23 não deverá ter ocorrido ao menos até o desenvolvimento de boa parte das filmagens de O Maestro], Jan Lasocki será, retrospectivamente, como que uma alusão avant la lettre à presença do “Papa polonês” em sua própria pátria. Em meio a afirmações importantes sobre o contexto polonês de então, essa apresentação de Wajda a seu próprio filme24 parece conduzir a um mascaramento do interesse e da grandeza da obra. Além da caracterização depreciativa e imprecisa de Lasocki, ele refere-se à relação de Marta e Adam como “a história do jovem casal cujos problemas conjugais começam quando o marido, ele mesmo um regente, torna-se enciumado face à admiração que sua esposa violinista sente pelo maestro”. Não se podendo dizer que assim não pareça ser, O Maestro será bem mais. No filme, com efeito, os “problemas conjugais” de Marta e Adam, o ciúme Cf. VIAGEM apostólica do Papa João Paulo II à Polônia. Vatican, [s. l.], 02 jun. 1979. Disponível em: http:// www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1979/june/documents/hf_jp-ii_spe_19790602_poloniavarsavia-okecie-arrival.html. Acesso em: 11 mar. 2021. 23 No assim chamado “website oficial” de Wajda [“Andrzej Wajda. Official Website of Polish movie diretor”. Disponível em: http://www.wajda.pl/ Acesso em: 23 mar. 2021], a maior parte dos filmes dele é apresentada por um texto seu; cf. “Films by Andrzej Wajda”. Disponível em: http://www.wajda.pl/en/filmy.html. Acesso: 2 mar. 2021. 24 272 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio dele e a admiração dela por Lasocki nada serão além da primeira camada de um tecido mais fundo e mais complexo. No filme, embora nalguns poucos momentos ela se comporte como tal, a orquestra não é coprotagonista direta [embora possa ser dita coprotagonista indireta, por meio de Marta, que a compõe], mas diretamente coadjuvante, função, de resto, proporcional à relação que, como um todo, ela mantém com o protagonista principal da trama, relação caracterizada pela admiração e pelo fascínio. Tendo em conta o equilíbrio dramático da película, a orquestra de O Maestro não poderia mesmo coprotagonizar a história ao lado do personagem com que se mostra afim, tendo de, ao contrário, dividir a cena com o personagem ao qual aos poucos se contrapõe; em tal caso, com Adam Pietrzyk. Essa distinta relevância da orquestra em Ensaio... e em O Maestro é especialmente palpável pelos diferentes objetos visados em cada um deles pelas câmeras inseridas nas tramas: no caso do filme de Fellini, a câmera de uma rede televisiva, nunca mostrada, entrevista os músicos da orquestra, embora também, depois, o regente dela; no caso do filme de Wajda, a câmera, sempre mostrada, registra o desempenho profissional e momentos da vida pessoal do maestro, de quem se prepara um documentário comemorativo dos 50 anos de carreira. Quais os personagens de O Maestro? Pela ordem de sua aparição em cena: Marta, Adam, Lasocki.25 Salvo engano, o filme admitirá a seguinte divisão: 1. Um alentado introito [transcorrido em Nova Iorque]; 2. Uma primeira parte, com o retorno de Marta; 3. Uma segunda longa parte [a maior do inteiro filme], com a chegada de Lasocki; 4. Um curto epílogo. Ao som do início do Primeiro Movimento da “Quinta” de Beethoven, Marta extasia-se com a Nova Iorque que mal começara a ver. Em meio à velha música que a introduz no “novo mundo” – a alteridade emblemática que uma boa cidadã comunista deveria de pronto repelir... –, destaca-se a postura vertical que ela mantém [de pé no carro que a leva, com parte do próprio busto para fora dele, através do teto solar do veículo], quase sempre voltada em direção ao alto. Essa postura é logo depois realçada às avessas Aparecendo nalgumas poucas sequências, pai e filha de Marta não são nomeados, embora, ao voltar de Nova Iorque, Marta chame a filha por “Marysia”, diminutivo de Maria, o que faz supor ela tivesse tal nome. 25 | 273 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) quando a câmera mostra o interior de sua casa polonesa, na qual, estirado horizontalmente no chão, seu marido ouve e rege a mesma sinfonia que acompanhara sua chegada triunfal a Nova Iorque. Num caso, grandiosidade da obra e grandiosidade da megalópole estão em total proporção; noutro, um mundo à parte, interior, que, abstraindo da pequenez circundante e ligando-se à exterioridade por um mero fone de ouvido, está, se tanto, somente em proporção consigo mesmo. Pela leitura que faço do filme, o “introito americano” de O Maestro estará longe de ser um mero “longo passeio turístico por New York, que, exceto pelo encontro de Marta com o maestro, não tem função nenhuma”.26 A razão de ser desse de fato longo introito nova-iorquino do filme é mostrar a Polônia ao encontro do mundo. Não se trata de Marta somente como representação da Polônia contemporânea. Marta, também o deslumbramento de Lasocki havia 50 anos, torna-se Anna, sua própria mãe, paixão de Lasocki, representação, para ele, da Polônia então deixada. O conhecimento de Marta por Lasocki condu-lo a sua revivescência de Anna. A Polônia em busca do mundo, a desoprimir-se [Marta], revive em Lasocki seu vínculo para com ela [Anna]. Quando Marta / Anna / a Polônia diz não poder adiar o próprio retorno, é Lasocki quem já se convenceu a enfim voltar. O retorno de Marta é a volta reflexiva de Lasocki a seu passado distante, cada vez mais presente. Adam não será o Lasocki de antes da própria partida, 50 anos atrás, diante do qual, agora, um outro Lasocki, envolvido com outra Polônia, filha daquela, buscaria acertar as contas consigo mesmo. Houvesse permanecido naquela outra Polônia, Lasocki teria sido o que ora é Adam, encarnação de um Lasocki que não teria partido. Na verdade, O Maestro pode bem ser, num certo sentido, somente ele, Lasocki; se assim, Marta e Adam serão lembranças suas, reencontros seus consigo mesmo [Adam], com a Polônia de agora [Marta] e de outrora 26 CANBY, Vicent. Wadja Directs ‘Orchestra Conductor’. The New York Times, New York, sept. 28, 1980, Section 1, p. 64. Disponível em: https://www.nytimes.com/1980/09/28/arts/wadja-directs-orchestraconductor.html Acesso em: 11 mar. 2021. “For no special reason at all, the film opens in New York City, where Marta is studying on a three-month grant, so we are treated to an extended sight-seeing tour of New York that, except for her meeting with the conductor, serves no function whatsoever”. 274 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio [Anna]. Ou seja: não é necessário que Marta e Adam tenham o mesmo estatuto de efetividade de Lasocki. Em tal caso, a câmera que quase sempre o persegue representará o desejo de tais vivências serem mesmo efetivas, de haver registro que o testemunhe; e o estupor diante da própria suposta demência, esforço elaborado de lucidez [a encenação psicodramática no restaurante], será o ponto mais alto dessa onirização do filme, jogo de aparência e realidade no interior do sonho. Que se obtém com tal interpretação onirizante? Uma coerência histórica que não se resume ao encaixe entre roteiro e realidade presente, mas entre roteiro e realidade almejada. Ou seja: em meio à frustração, à inanição [nas palavras de Wajda: “Frustrados como estávamos todos naquela época na Polônia, não sabendo o que fazer [...]”], Lasocki é a “expectativa por um milagre a ocorrer”. O sonho já é real, mas a realidade ainda não o alcançou [“O sonho já estava lá, mas a probabilidade de uma visita de João Paulo II à Polônia parecia irreal”]. Com Dyrygent, Wajda dá corpo a esse sonho. . Em sua segunda parte, uma das duas cenas que tenho por mais emblemáticas de O Maestro [a outra, a do monólogo final de Marta, será mais à frente comentada] é aquela em que, sentados à mesa de um restaurante, iluminados por um candelabro sobre ela, Marta e Lasocki protagonizam o que me parece ser o momento mais revelador de todo o filme. Tirando-lhe os óculos, como que para re-personalizá-la,27 Lasocki dirige-se a Marta, à sua frente, mas fala a Anna, mãe dela. Embaraçada com o que lhe terá parecido ser um triste episódio de confusão mental de Lasocki, Marta, em duas frases subsequentes, envoltas por expressão facial que a mostra toda cheia de cuidado e ternura, sussurra a Lasocki, Pouco depois da cena de que aqui se trata, vê-se quadro com uma imagem fotográfica de Anna, mãe de Marta, no qual, ao menos ali, ela não porta óculos corretivos. Com isso, a re-personalização sinalizada com a retirada dos óculos de Marta, mesmo sem necessidade, mostra vínculo com a realidade encenada. 27 | 275 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) em polonês, advertindo-o de seu engano. Depois de ouvi-la, o Maestro aquiesce com que ela seja Marta, não Anna: “Yes, I know. I know”. Entre o início da primeira frase e a expressão de Lasocki após a última, o intervalo é de pouco mais de 4 segundos, período em que, tendo-se voltado à realidade aparente [Marta e ele sentados à mesa de um restaurante, iluminados por um candelabro sobre ela], o Maestro retorna à realidade sem aparência própria que ele constrói, na qual, agora, Marta / Anna também opera. Antes de sua declaração final confirmatória—“I know”—, o riso sorridente e autoirônico de Lasocki tanto afasta o quadro de um diagnóstico negativo, quanto anuncia outra dimensão para aquele momento psicodramático. Feita a declaração final confirmatória, porém, o riso sorridente e autoirônico de Lasocki—espécie de garantia suplementar [como se isso lhe importasse] da certeza que ele tem sobre à sua frente estar Marta, não Anna—, tal riso cede a vez para expressão que o remete de volta ao plano de sua fala inicial na cena, pelo que, assim, aqueles pouco mais de 4 segundos formam uma espécie de concessão dramática a afastar uma hipótese narrativa [confusão mental] em desacordo com a autêntica trajetória do filme. Vale notar que as falas de Lasocki em tal cena são todas em inglês, o que, se por um lado presenteia-nos com voz e entonação do próprio John Gielgud, dispensando a dublagem que faria o personagem expressarse em polonês, pareceria estar em desacordo com a autenticidade daquela encenação psicodramática na qual ele dialoga com Anna, que o remeteria a uma época na qual ele ainda não partira da Polônia. Mas quem ali se expressa não é o Lasocki integralmente polonês de 50 anos atrás, mas o de agora, cidadão do mundo cuja língua corrente tornou-se o inglês. Se ele dialogasse com Anna em polonês, isso o faria tomar a Polônia da Guerra Fria pela do entreguerras, a efetivamente confundir Marta com Anna. Fazendo-o em inglês, emblema da celebridade mundial em que se tornou, timbre da plena internacionalização buscada pela Polônia daqueles dias, ele se volta para Anna, Polônia passada, como a dizer-lhe que o futuro— quando quer que venha—não pode ser um retorno nostálgico, como se o período da Guerra Fria, tal uma não-vida, pudesse ser cancelado. Lasocki fala a Anna—mas para que Marta o ouça. 276 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Após a morte de Lasocki, há como que um pré-epílogo entre Marta e seu pai, e, então, o epílogo propriamente dito do filme, entre ela e o marido. O objeto declarado de um e outro é a relação entre Marta e Adam, a Polônia e quem a governa. Diante do sufocamento a que Adam submete Marta, seu pai a aconselha a partir, opção que ela de pronto rejeita. Já o epílogo é dividido em duas partes: numa, dialogal, Marta rechaça a encenação melodramática de Adam; noutra, monológica, ela expõe a perversidade dele, musicalmente travestida. Não houvesse partido, Lasocki seria o Adam que ora se vê. Morto ele, Adam, não mais o Lasocki que não teria ido, é os vários Lasockis que não se tornaram no que poderiam. Correspondentemente, Lasocki, ao partir, torna-se no que os vários Adams não foram, nem poderão ser. Ao voltar, mais do que morto por Adam, Lasocki, por ele traído [Adam nada lhe dissera sobre a orquestra ser reforçada com músicos de Varsóvia], deixase morrer. O que dele resta, conforme o monólogo final de Marta, é a expressão do homem livre, que, livre também para morrer, mata seu outro, deixando-se por ele matar. Lasocki morto, Lasocki redivivo, é Adam quem morre. Em vez de dela outra vez partir, Lasocki parte na Polônia, nela restando. No monólogo final, Marta tira os óculos—como lhos tirara Lasocki, na cena do restaurante—, fala com outra entonação, mostrase especialmente resoluta. A Polônia que ela é, chora menos a morte do “modelo” vindo do Ocidente, do que brinda a mensagem por ele deixada. CONCLUSÃO Em Ensaio de Orquestra, o crescendo que mostra o regente como ríspido, autoritário, déspota, cabe à perfeição para, alegoricamente, exibir e comentar a relação opressiva entre governante e governados, opressor e oprimidos. Embora tal coisa não devesse ter importância nenhuma para Fellini, nem por isso poderá admitir-se que todo e qualquer regente seja um déspota—esclarecido ou não—, ou que o despotismo inera a tal função. Contudo, para efeito da alegoria que ele tinha em mente explorar, ter-lhe-á sido suficiente a hiperbolização universalizadora de traços presentes no | 277 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) modelo escolhido, operação, contudo, como que [falsamente] justificada por um emblemático testemunho local [Toscanini]. No caso de O Maestro, a alegoria é algo mais complexa; ou seja: tem mais dobras. Veem-se dois regentes, um dos quais autoritário, o outro, autoritativo. Este último, tal o primeiro, é polonês, mas com a sintomática diferença de ter passado a maior parte da vida no estrangeiro, onde construiu uma brilhante carreira internacional. Sua volta [cuja camada epidérmica é o faz de conta da ciumeira a um só tempo conjugal e musical de Adam] representa em certa medida o reencontro do ex-agrilhoado com os antigos companheiros de caverna, que nela ainda estão. Em certa medida porque, na verdade, trata-se do reencontro de Lasocki consigo mesmo, com aquilo em que se teria tornado [Adam], houvesse permanecido entre as correntes. Adam—existe? Tanto quanto Lasocki. Qualquer um deles é o outro de si mesmo na engrenagem que busca uma saída—global, dir-se-ia hoje—para a Polônia. Prova d´orchestra será bem mais o reflexo da sensação de aporia em boa parte da sociedade italiana daqueles tempos, do que um momento reflexivo a respeito do então ambiente político do país. Até o ponto em que gli orchestrali possam corresponder a cidadãs e cidadãos da segunda metade dos anos 70, italianas e italianos estarão retratados no filme como, do ponto de vista político, gente demasiado crédula, desarticulada, desesperançosa. O Maestro, por sua vez, não conduzindo a nada de substancialmente distinto em relação a isso, torna mesmo assim possível, parece, enxergar a seguinte moral da história, porventura aplicável também à obra de Fellini: a sociedade polonesa não apresenta uma organização própria pela qual ela seja levada a uma transformação autêntica; vale dizer: uma transformação desprovida de subterfúgios despóticos de variado matiz. De modo positivo: sem um líder carismático, oxalá benfazejo, nada se altera, ou, pior, tudo retrocede, as eventuais vitórias sobre as dissensões sociais sendo estabelecidas pela força destrutiva, não pelo diálogo construtor. Para o caso da sociedade polonesa daqueles dias, um líder assim carismático, segundo Wajda, deveria vir de fora. Como se sabe, João Paulo II—de dentro, mas fora de seu país—tornou-se efetivamente essa liderança, centelha espiritual naquela Polônia pré-Solidariedade, mas já com Lech Walesa, e, pois, quase 278 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio lá. Na Itália, nada houve no gênero; a liderança espiritual do Papa, tão próximo, ali não obteve nenhum resultado político. Quando se conhece algo da história da Itália e da Polônia nos idos dos anos 70, ambos os filmes parecem estar tão fortemente comprometidos com seus respectivos contextos políticos e sociais, que não se torna empresa fácil superar o vigor de tais amarras, neles encontrando aquela fração de atemporalidade que catapulta a obra de arte. Seja como for, ademais do prazer experimentado ao vê-los ou revê-los tanto tempo após produzidos, vale refletir a partir dos alertas que um e outro lançam, já porque, para além da Itália e da Polônia, o mundo inteiro—parte dele, mais; parte dele, menos—continua atado à credulidade, à desarticulação, à desesperança, o que o torna presa sucessiva de governos despóticos ou conjunturas autocráticas. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Introdução à Sociologia da Música. Tradução de Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 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Disponível em: http://www.wajda.pl/ Acesso em: 23 mar. 2021. 280 | O apelo do negativo e a justiça: a mostração elástica da hermenêutica-de-mundo pelo não-fazer Cinema Rafael Teixeira SANTOS 1 INTRODUÇÃO “Meu problema é a objetificação do sujeito, ou então, a desubjetificação do indivíduo (o último é mais a questão para Kant e Goethe); e, de mesmo modo é: a eterna significância do temporal” (SIMMEL, 2010, p. 161, Aforisma 7, tradução nossa) Este texto é um exercício de interpretação. Ele se desdobra, ao mesmo tempo, também como interpretação deste aforisma e do filme como obra assinalada e fática que trataremos adiante – Vertigo – e do papel do cinema como um todo em relação à experiência metafísica. Estes três se interpenetram num todo que é o papel imanente do indivíduo na modernidade (de seu surgir no momento industrial sob a égide do 1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil. E-mail: ensnry@gmail.com https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p281-316 | 281 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Iluminismo até sua manifestação tardia) e seu enredamento necessário, sua autoalienação, dadas as condições do meio. Logo, se o tema em questão é o cinema, ele é – mais além – a própria perspectiva de alienação a partir desse meio, inserido em seu contexto histórico-cutural próprio. Conceitualmente, chegaremos lá, nossa interpretação tem o papel de abarcar – nessa forma – três sentidos, que são apenas inicialmente metafóricos, induzidos no título: a sobreposição – “vertigem/espiral hermenêutica”2 e o apelo do negativo, que realiza o salto para o conceito de Justiça. A título de introdução, os três apresentam a supracitada relação da imanência do individual com o seu meio próprio histórico-cultural, que é tensionado por uma força que advém de sua própria negatividade, mesmo que cada um de seu modo próprio. CINEMA: IMAGENS EM MOVIMENTO COMO A ETERNA SIGNIFICÂNCIA DO TEMPORAL Vertigo (1958) foi produzido em Hollywood3 e dirigido pelo célebre diretor inglês Alfred Hitchcock. Depois de décadas de disputa historiográfica, entre os detentores de seu saber teórico, ele chega a ultrapassar Citizen Kane (1941) e é escolhido pela maioria dos críticos da eminente revista do campo do cinema Sight and Sound, em 2012, como a maior obra cinematográfica de todos os tempos4. Se isto é verdade, devemos deixar claro que, por princípio metodológico – uma hermenêutica que visa o todo –, não o sabemos e não podemos saber de modo algum. Já que, pois, não estamos preocupados com a moda da opinião pública especializada, 2 “Vertigem” e “espiral hermenêutica” não são exatamente o mesmo, mas manifestações – ou modos-deapreender – distintos de um mesmo fenômeno. 3 Situada no estado da Califórnia, é o lar da grande indústria cinematográfica norte-americana até os dias de hoje. 4 “Depois de meio século de monopólio sobre o primeiro lugar, Cidadão Kane estava começando a parecer presunçosamente inviolável. Chame isto de Schadenfreude [satisfação sobre seu infortúnio], mas vamos nos regozijar que o símbolo agora convencional e ritualizado de ‘o maior’ foi finalmente tornado menor do que pretendia ser. A ascensão de Vertigo dificilmente possui a natureza de um coup d’état [golpe de estado]. Empatando no décimo primeiro lugar em 1972, a obra-prima de Hitchcock continuadamente escalou as pesquisas pelas próximas três décadas, e por 2002 era claramente o legítimo herdeiro. Ainda assim, até os ardentes Wellesianos devem se sentir gratificados com a modesta revolução – mesmo que apenas pela prova que os cânones cinematográficos (e as versões da história que eles legitimam) não estão completamente fossilizados” (MATTHEWS, 2018). 282 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio não no sentido de desqualificá-la, mas buscar, além dela, sentidos desta obra assinalada que possam nos remeter não apenas à própria, mas à essência do cinema e à própria interpretação do sentido, esta compreendida formalmente enquanto hermenêutica. Partindo da problematização de Vertigo como obra assinalada a pensaremos diferencialmente e em diálogo com o processo imanente de situação e autoalienação do indivíduo que ela nos oferece. Pois, como na própria constituição interna de Vertigo, encontramos como princípio subjetivo da interpretação-de-si o ser-outro – e a co-produção do simesmo pelo ser-outro. Buscamos compreender a essência do cinema como ela se mostra a partir do diálogo entre estas obras e objetos, estabelecendo até o fim a lógica do sentido que elas implicam. O procedimento nos remete a alguns autores principais. Não esperamos, porém, discutir em pormenores a obra de cada qual, nem sermos fiéis a eles. Muito pelo contrário, é a partir dessa infidelidade originária e malícia do sentido que pretendemos violar seus preceitos. Essa violência hermenêutica não é mero resultado de um ecletismo, de um desejo curioso, mas tem como necessidade pensar o sentido imanente das obras que nos interpelam – e o modo que elas mudam o nosso interpelar o cinema e a própria hermenêutica – contra a simples noção de encaixá-las em um quadro conceitual dado. Se elas são “dignas de serem pensadas”, ou mesmo o próprio cinema como um todo, rendemo-nos à radicalidade hermenêutica. Deixamos claro, já, o distanciamento. A teoria cinematográfica, e sua prática específica e especializada, compreendida enquanto cinefilia (ou apreciação de cinema) – e também como produção de filmes – estas como exemplares seja da mais alta cultura ou da mais popular e cotidiana, necessariamente não compreendem a essência de seu ob-jecto5, o cinema. Isto, pois, já estão pré-vinculadas culturalmente a ele. As mesmas disputas do campo cultural que informam o seu mais-próprio modo-de-tratar, como as que decidem se uma obra – enquanto ob-jeto cultural – tem tal e tal valoração e deva ser aproximado de tal e tal forma, põe-se à frente do caráter de obra da coisa, nunca a deixando 5 Ob-jecto no sentido de Gegen-stand, ou, o que se põe contra o representar teórico, à forma de um anteparo conceitual. | 283 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) repousar nela mesma e, assim, dizer ela mesma o que é. Logicamente, o pôr-se contrário a coisa (culturalmente, aqui) mediante a necessidade recíproca de fazê-la fazendo-se a si (produção), ou, fazendo-se a si – fazêla (apreciação), é a marca da im-possibilidade conceitual da elevação da coisa-ob(jecto) cinematográfica à coisa-obra, no sentido mais amplo de sua dimensão estética, partindo de qualquer ponto que já não seja de antemão o ponto assinalado: a coisa-obra ela mesma. Essa necessidade recíproca já nos põe diante de dois modos-de-apreensão conjugados. Inicialmente, é o primeiro indício de um dos motivos hermenêuticos sobre o qual Vertigo chama tanta atenção: o próprio sentido de vertigem, não como um recurso dramático ou cinematográfico, mas como um companheiro essencial a uma possível lógica do conceito e do sentido. A vertigem, portanto, seria a incapacidade do olhar de encontrar-se estavelmente no olhado, condenando ambos à infinita busca de um pelo outro. Mais propriamente, em relação ao sentido e ao conceito, a vertigem se dá como fato básico da verdade da coisa-ob-jecto: enredados em uma necessidade imanente e recíproca de constituírem-se, sujeito e ob-jecto nunca encontram sua verdade estabelecida um no outro, mas permanecem num movimento espiral em que um peticiona de-terminando o outro de modo cada vez mais elevado. Queremos dizer, para cada avanço temporal, sujeito e ob-jecto apelam à essência do outro, trocando posições entre simesmo e ser-outro, assegurando-se um do outro e arriscando a essência um do outro de modo cada vez mais acentuado e distante – até que a distância torne-se a incapacidade efetiva da constituição de um pelo outro. O movimento espiral-vertiginoso, assim, não encontra seu sentido nele mesmo, mas no ponto central que foge ao olhar e que remete ao início in-finitamente perdido da espiral, onde se supõe que sujeito e ob-jecto eram os mesmos. Porém, é impossível experimentar, dentro deste ponto de vista, a unidade entre sujeito e ob-jecto, pois um surge como a negação do outro, ob-jecto é a contraposição de sujeito. O ponto central da espiral, como seu início, é uma hipótese impossível, mas é esta hipótese que anima todo o movimento. No seu ponto inicial, sujeito e ob-jecto são, enquanto si-mesmo e ser-outro: o mesmo, e a negação do mesmo. É esse paradoxo originário que chamamos de hipótese impossível do sentido, sua necessidade 284 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio é a base do desenrolar temporal enquanto um é produção do outro, produção sempre mais distante, mais arriscada. Ela é impossível para o ponto de vista interno da espiral, mas por isso mesmo, sua impossibilidade cria – ao mesmo tempo – a própria espiral e um outro ponto de vista. A vertigem é a espiral compreendida enquanto movimento. Esse ponto, imóvel, é o que compreende a vertigem como um todo, e é a base para o entendimento da coisa-obra. Essa dialética inesperada da vertigem, apenas delineada até aqui, choca-se diametralmente contra a nossa tentativa aludida inicialmente de realizar uma hermenêutica do cinema a partir da interpretação de Vertigo como obra assinalada. É como se, no trato com a própria coisa, esta resistisse a tentativa de uma delimitação fixa ou mesmo diferencial de seu sentido. Diferencial no modo não apenas do diálogo constante com outras obras, mas que, na relação da visão intuitiva da obra com a interpretação do todo – o cinema propriamente dito –, possa se cultivar uma relação que, embora assistemática, preserve a integridade de uma essência. Tal essência não nos parece ser entregue de forma alguma, ou mesmo está além de qualquer noção formal. E mesmo esta suposta essência não sendo uma estrutura rígida, pensada diferencialmente e a cada vez6 em relação ao todo de sua interpretação, logo em relação ao cinema como apreciação e prática, o mistério da dialética da vertigem que nos iniciamos aqui é justamente repelir cada tentativa diferencial de pensar seu sentido, exigindo assim uma intuição lógica distinta caso queira se tratar de seu movimento peculiar. A interpretação diferencial, porém, é-nos necessária, pois sem ela não seria revelada a própria dificuldade diferencial da coisa e seu caráter peculiar de resisti-la. Um ponto de partida meramente “cultural”, “historiográfico” ou mesmo “antropológico” resultaria no mesmo do que já fora dito, e de modo muito melhor, pela crítica cinéfila especializada. Tal crítica tem seu papel legítimo como curadoria e manutenção da imagem das obras, porém não pode ir além disso, nem é seu papel e vocação. Não tratemos, então, de repeti-los. 6 “A cada vez”, dito temporalmente. Embora não possa ficar explícito, este texto depende, enquanto interpretação do aforisma inicial, da questão temporal implícita no jogo da vertigem e relação sujeito-objeto. | 285 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Esta dissonância, entre a intenção hermenêutica e diferencial (temporal a cada vez em sua relação com o todo), e entre as possibilidades únicas de não-resolução do sentido apresentadas pela dialética da vertigem, enquanto suspensão do sentido no todo, é uma das novidades e dificuldades de se tratar do pensar o cinema em sua apresentação única, como fruto da tecnologia e condição social modernas que se estendem até a contemporaneidade. Já fomos introduzidos, do ponto de vista cultural e tendo em vistas o cinema, a distinção entre coisa-objecto e coisa-obra. A delimitação do tema da vertigem, dentro da lógica do sentido e do conceito, deixa-nos claro que entre a atitude cinéfila ou a produtora de cinema há um vazio gerado pela hipótese impossível de sentido. Ou seja, todo processo apreciativo ou produtivo constitui a si mesmos, mas por uma impossibilidade de compreenderem a totalidade de seu processo até a sua originalidade – impossibilidade esta constitutiva do próprio processo – permanecem fora de seu sentido. Ora, reciprocamente, se a lógica do sentido está na apreensão deste como paradoxo, a lógica do conceito, conversivamente, está em apreendê-lo em seu movimento (vertigem). Daí a supracitada diferença entre espiral hermenêutica e vertigem. Assim, o conceito só pode ser apreendido diferencialmente e relativo-temporalmente na vertigem. A geração (paradoxo) e sua manifestação (vertigem) se co-pertencem intimamente. Essas últimas apreciações são, do ponto de vista filosófico, ontologicamente incompletas, pois apresentam-se apenas como estruturas prévias do sentido conquistadas até aqui não devido à ordem do ser, mas devido à ordem da apresentação. Apresentamos até aqui dissociadamente o indissociável (paradoxo) como mero recurso apresentativo, em relação à forma. Assim, impomos ao texto o mesmo formato de seu conteúdo. Apresentar a estrutura prévia da lógica de seu sentido antes das obras serve aqui como paradoxo gerador da vertigem. Pois não se trata de impor às obras mesmas o que já fora exposto sobre o sentido, mas assegurar nelas o pensamento visto, logo, todo o seguinte pensar deve ser vertiginoso. A mostração das obras deve repetir o escrito e dar-lhe o asseguramento ontológico. Assim, voltamo-nos às obras elas mesmas. 286 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio DO VIÉS DO ESPECTADOR DA IMAGEM À VERTIGEM FACTUAL: VERTIGO (1958) E OS PARADOXOS DA NEGATIVIDADE Vertigo aparece, à primeira mão, como uma história de detetive relativamente simples com um plot twist7 pouco comum. A narrativa pode ser dividida em duas fases principais, com uma breve intermissão, que trataremos a seguir. Inicialmente, conta a história do detetive Scottie (James Stewart) na São Francisco dos anos 50 e seu envolvimento romântico crescente com a bela e refinada, atormentada, Madeleine Elster (Kim Novak). Scottie mostra-se inicialmente sofrendo de acrofobia (medo de alturas), após um evento em que perseguia um bandido pelos telhados de São Francisco e vê um colega detetive cair das alturas. Essa é a primeira superimposição da vertigem que aparece brilhantemente delineada no plano de abertura, como uma série de objetos geométricos parciais superimpostos a um olhar feminino, também parcial. Todo o objeto na vertigem é um objeto parcial, assim como todo sujeito. Essa parcialidade lógica não tem ligação imediata com o sentido psicanalítico, sujeito e objeto são parciais na medida em que não contém integralmente seu sentido, pelo contrário, só se dedicam a uma parte. De mesmo modo, cada visão no cinema é parcial – e isso faz parte de sua essência – suspensa em sua parcialidade. O olhar no cinema é um olhar oblíquo – enviesado – que se dirige a um objeto sempre parcial, que tem seu conceito sempre debastado. Todos os personagens são parciais, as situações, os lugares. Todos se reduzem a algum pequeno número concreto de relações de sentido e causalidade mais ou menos finamente articuladas, que de modo contrário no real seguem-se infinitamente em cadeias – ou seja, apresenta certa integralidade hermenêutica indefinível. O olhar-situação do cinema, ele mesmo parcial, dirige-se sempre a um objeto parcial. É o corte, a tomada. Por si só, essa imageticidade não distingue o cinema da literatura ou teatro, mas é um composto junto com a noção de montagem em sua propriedade, tratando-se de cinema e não de teatro – na medida em que pro-voca a cada vez um olhar específico. Curiosamente, J. Lacan, em 1960, adicionou o “olhar” a lista de “objetos 7 Nome técnico para uma “reviravolta no enredo”, dispositivo narrativo para uma mudança no curso esperado de um enredo a partir de um evento inesperado. | 287 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) parciais” de sua teoria psicanalítica, mas tal fato não têm relação direta com o que chamamos de parcialidade na lógica do sentido e do conceito – de que os conceitos são, a cada vez, imagens transitórias8. Reforçando, a parcialidade do objeto em sua apresentação cinematográfica se compõe de sua imageticidade de modo genérico, e de sua inserção na montagem de modo específico, embora ainda reste distinguir esta montagem do que é advém do teatro e do que advém mais originariamente do próprio cinema. Com isto, retomamos a narrativa de Vertigo. A narrativa se desenvolve a seguir com o abandono do detetive de sua carreira policial em razão de sua incapacidade de trabalhar nas ruas, e de sua indisposição a um trabalho burocrático. Logo, recebe um convite de um antigo colega de faculdade, Gavin Elster, que apresentase em boa condição financeira devido a seu casamento com Madeleine Elster. Para sua surpresa, seu colega pede-lhe seus serviços por um motivo muito incomum. Gavin acredita que sua esposa esteja sendo “possuída” pelo espírito de uma de suas ascendentes, Carlotta Valdéz, e precisa de um detetive para acompanhar seus estranhos desaparecimentos cada vez mais frequentes, para que tenha mais informações sobre como agir, inclusive em relação ao auxílio psiquiátrico. Scottie, inicialmente, recebe o pedido com enorme incredulidade, urgindo a seu colega que a providencie tratamento adequado, e que uma agência de detetives profissionais seria mais adequada do que ele, caso queira persistir nesse caminho. Gavin insiste, e baseia seu argumento em uma suposta “pessoalidade” de sua relação com Scottie, por já tê-lo conhecido antes. Precisa de mais informações, e, se tratando de um suposto “sobrenatural”, precisa de alguém confiável e familiar. DÍADE PELO OLHAR: ERRÂNCIA, ENTÃO, LIBERDADE/FINITUDE Segue-se uma longa sequência sustentada pelo olhar da câmera e pela trilha sonora orquestral, conduzida pela imageticidade visual e textura sonora, com poucos elementos explicitamente figurativos além destes – de 8 Os objetos parciais para J. Lacan não possuem imagem porque se remetem a um sujeito em fantasia da completude. O sujeito-olhar-situação do cinema, como dissemos, já é parcial originariamente, então por isso seu objeto parcial oferece uma imagem. No nosso contexto, essa parcialidade não tem relação com a análise psicanalítica originária da infância. 288 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio certo modo criando uma atmosfera abstrata ou suspensiva. As imagens nos narram em crescendo vertiginoso a descoberta e desenrolar da construção de Madeleine na visão de Scottie, seu encantamento com sua beleza e refinamento mediado pela estranheza e tensão do elemento “sobrenatural” proposto. Nessa sequência, Scottie permanece à distância observando-a, inicialmente num jantar com Gavin e então durante seus “passeios” diários, relevando seu contato com diversos signos representativos da história de Carlotta, tais como: um quadro no museu, uma lápide numa igreja, um antigo casarão transformado em pensão. A sequência é definitivamente interrompida com um incidente, em que Madeleine cai – ou se joga – na baía de São Francisco e é resgatada por Scottie, que estava à espreita. Em seu primeiro encontro real com Madeleine, leva-a desacordada até a sua casa, onde Madeleine, ao acordar, encontra um detetive questionador e estupefato, além de claramente encantado com sua presença. Deixa-o claro ser casada, o que Scottie já sabia obviamente. Enquanto Scottie noticia Gavin ao telefone às escondidas, Madeleine sai furtivamente. Novamente, encontramos Scottie, agora já claramente obcecado pela imagem de Madeleine, realizando seu trabalho e a seguindo, porém, surpreende-se que ela pára em frente a sua casa. Ao fingir recebêla, descobre que ela vinha lhe trazer uma carta pedindo desculpas pelo “incômodo e inconveniente”. Scottie fala de modo atrapalhado que não foi incômodo algum, e que gostaria de “vê-la novamente”. A atuação de James Stewart é um ponto importante aqui. Inicialmente, chama a atenção a diferença de idade entre os protagonistas e cada um de seus respectivos atores. James Stewart tinha 50 anos à época do filme, e representa um detetive no alto de sua meia-idade. Kim Novak (Madeleine), por sua vez, tinha apenas 25 anos de idade, representando Madeleine, que teria 26 anos no filme. A diferença de idade do até agora improvável par romântico pode gritar bastante alto aos movimentos de gênero típicos do início do século XXI como ranço de um machismo cinquentista ultrapassado; como uma demonstração da submissão da mulher mais nova e fetichizada a um homem mais velho, mais independente, psicologicamente e financeiramente; além da rejeição da figura da mulher madura, experiente, independente e empoderada. Seria o caso de uma | 289 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) representação romântica e exaltada da figura da menina-mulher, colocada entre um marido também mais velho, interesseiro e controlador (Gavin Elster) que a tomou por esposa também por sua fortuna, e um outro homem mais velho (Scottie), obcecado por sua figura fetichizada? Dado o que já mencionamos introdutoriamente, tais questionamentos recairiam no âmbito da cultura, seja a própria dos anos cinquenta – da qual pertence o filme – seja quanto a sua recepção possível no início do século XXI, em que, após uma longa luta, os movimentos de gênero tornaram palavras do dia – e de ordem – empoderamento, identidade, e fetichização e objetificação. E, é óbvio que tal translação cultural afeta a visão sobre a experiência cinematográfica, em que a cinefilia se apresenta pré-vinculada culturalmente. Se dissemos que este âmbito cultural não pode ser a porta de entrada, nem o fim último da consideração filosófica do cinema como obra, ele não deve ser ignorado. Por dois motivos sólidos e paradoxais: um – o âmbito cultural que permeia as obras e sua recepção é em si legítimo, e não é possível adentrá-las a partir do Nada; dois – o âmbito cultural que permeia as obras é, por si, o que mais as obscurece (e isso vale para o todo do cinema), pois, embora sendo legítimo em seu lugar próprio, o uso ilegítimo da cultura como remissão à totalidade da coisa e de seu sentido – como fim – é a marca da atitude mais antifilosófica possível. A tarefa em mãos seria, inversamente: um – distinguir a mistura de usos do âmbito da cultura até que seja considerada em seu lugar adequado; dois – adentrar o sentido da obra para além do ruído cultural na medida que considere verdadeiramente não apenas o conteúdo dessa cultura, mas a forma com que se apresenta. Tendo isso em vista, a questão quanto a fetichização da protagonista trata de um ponto esclarecedor, se nos atentarmos ao todo do filme e a construção do personagem Scottie inclusive pela sua atuação. A atuação e o papel de James Stewart mostram propositalmente um homem fraco, inseguro e hesitante, que esconde tais características atrás de um humor irônico. É um personagem vacilante, no roteiro e atuação que não esconde, mas não sabe o que fazer com sua obsessão. Sua fraqueza é bem representada pela sua acrofobia e vertigem, e mesmo suas aparições “fortes” são um 290 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio resquício de sua fraqueza, inicialmente de não ter Madeleine, e então do peso do passado. O que o âmbito cultural pode vir a ver como fetichização com o viés de uma teoria de gênero não pode ter esta mera caracterização como fim, mas serve de forma interessante para adentrar além dele nos sentidos da vertigem que dá nome ao filme. Se, de um lado, a vertigem apresenta a própria transcendência da forma com o qual todo o âmbito cultural tenta se aproximar em estruturações constantes a cada vez vencidas; de outro, a fórmula imanente do que é experimentado apenas superficialmente como fetichização só pode ser encontrada em definitivo na suspensão de sentido originária da vertigem. Logo, a lógica da fetichização encontra-se na lógica do sentido – o paradoxo da vertigem, de sua origem impossível como si-mesmo e ser-outro: o mesmo, e a negação do mesmo (contradição), e do conceito – o todo da espiral, o próprio movimento constante da vertigem, de tentativa fugidia e temporal de encontro de si-mesmo no ser-outro. A vertigem é a arte do desencontro. Assim, começa a esclarecer-se também a estrutura desse âmbito cultural que permeia o cinema por ele mesmo. Se o âmbito cultural se preocupa tanto com a fetichização aqui é porque ela é um tema fundamental para nós, embora não possamos nos contentar com a mera explicação “cultural”, “sociológica” ou mesmo “antropológica”. A vulgar “fetichização” se transforma na dúplice contradição do sentido e abertura temporal-vertiginosa do conceito, na compreensão do cinema enquanto fenômeno imanentemente moderno, tecnológico e industrial. O cinema é a arte do desencontro. Não da desconexão entre som, roteiro, imagem, ou mesmo mero caos; mas da contradição geradora do sentido e da constante abertura de seu conceito, como imagem transitória. Assim, convida – enquanto arte – o seu espectador a desencontrar-se de sua situação real, lançando-o em maio às possibilidades absurdas de seu efetivo diante de seu olhar. Scottie costumava evadir as questões sobre sua ocupação corrente com a simples resposta que estaria “vagueando”9, esse motivo condutor expressa um sentido bastante profundo quando de seu segundo encontro 9 O original é “wandering”, de “to wander”, vaguear sem rumo, casualmente, sem direção, de modo oblíquo, enviesado. | 291 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) com Madeleine, ao despedir-se dela, corre ao seu carro e insiste em perguntar onde ela vai, segue-se o diálogo, iniciando com Madeleine: “– No, I just tought that I’d wander.” “– Oh, that’s what I was going to do.” “– Oh, yes, that’s right. I forgot. That’s your occupation, right?” “– Yeah, well, don’t you think it’s kind of a waste for the two of us…” “– To wander separately?” “– Uh-huh.” “– But only one is a wanderer. Two together are always going somewhere.”10 Pois “apenas um vagueia; juntos, dois estão sempre indo a algum lugar”. Isso, além de explicitar positivamente e poeticamente a narrativa do filme até então, diz muito sobre a trajetória da vertigem, da construção indireta, oblíqua e enviesada do objeto no cinema como imagem parcial, e da fetichização, ou melhor, da objetificação do sujeito e subjetivização do objeto11 que ocorre no cinema como modo moderno de narrar, e que é parte por excelência da narrativa de Vertigo. Assim, o sujeito enredado pelo moderno crê que está sempre vagueando, o que é sua auto-percepção de sua objetificação pelo domínio das coisas e cacofonia da tecnologia, mas não percebe – no mais das vezes – que cada vez mais que se torna objeto, mais subjetiviza seu objeto, de modo correlato. Por isso, na narrativa vertiginosa de obsessão de Vertigo, Scottie é um sujeito fraco, impotente perante as forças de seu objeto, sem se perceber disso até quase o fim, e sem perceber que sua ruína, a de-subjetivação de si é a subjetivação de seu objeto. Essa dialética se espelha em Madeleine, 10 Madeleine: “– Não, eu apenas pensei que eu vaguearia.” Scottie “– Oh, era isso que estava indo fazer.” M. “– Oh, sim, está certo. Eu esqueci. Esta é sua ocupação, certo?” S. “– Sim, bem, não pensa que é um certo desperdício para nós dois…” M. “– Vaguearmos separadamente?” S. “– Aham.” M. “– Mas apenas um vagueia. Juntos, dois estão sempre indo a algum lugar.” VERTIGO, 2006, cap. 14. grifo nosso. 11 Ver aforisma mencionado na introdução. 292 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio que abdicará de sua condição de objeto, para então, como sujeito, desubjetificar-se novamente. Logo, não se trata de uma mera misoginia cinquentista, mas de uma descrição estética do movimento do sujeito e do objeto para além desse pathos cultural. Esse movimento, característico do moderno, torna-se fundamental para o funcionamento do olhar no cinema como um todo, como modo renovado de estruturação das narrativas cujo papel, em grande medida, trespassa efetivamente a mera realidade do cotidiano. Ao “vaguearem juntos” Scottie e Madeleine se encontram numa floresta de sequoias, onde Madeleine apresenta mais um surto “sobrenatural” ao perceber a longevidade das grandes árvores frente a insignificância da duração temporal da vida humana. Scottie insiste em que ela lhe conte o que se passa, e após parecer temporariamente possuída pelo espírito de Carlotta, perde-se do detetive. Segundo a narrativa, Carlotta Valdez teria sido jovem amante de um homem poderoso da região, ao fim do século anterior, teria então sido despossuída, sua filha tomada, e assim teria enlouquecido e se matado, e o espírito de Carlotta faria o mesmo à sua ascendente na mesma idade com que ela se matara. Ao reencontrarem-se em uma região de pedras beirando o mar, Scottie promete estar sempre para protegê-la, como na ocasião da “queda” na baía. Receando estar enlouquecida após o transe, e narrando a visão de sua cova e um vilarejo na Espanha, beijam-se apaixonadamente. Depois de um tempo, Madeleine retorna à casa de Scottie alarmada com o retorno do “sonho” - da visão que tivera em transe – ao narrar o “vilarejo espanhol” com mais detalhes, Scottie se convence que se trata de um vilarejo colonial espanhol ao sul de São Francisco, que provavelmente estava na memória de Madeleine após tê-lo visitado em algum momento específico do qual não se lembrava. A teoria de Scottie era, encontrada a fonte, ele poderia reverter os “sonhos” e transes de Madeleine. Decidem, então, “retornar” ao vilarejo – que havia sido preservado historicamente para parecer o mesmo que no tempo de Carlotta – Madeleine entra em transe novamente, e Scottie promete nunca mais deixá-la, apaixonado e obcecado pela figura de Madeleine. Ambos declaram seu amor, mas Madeleine insiste que “está tarde demais”. Após ela insistir que “há algo | 293 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) que eu deva fazer”, Scottie insiste que “não há nada que ela deva fazer”. Ela corre e se aproxima da igreja, despede-se com um beijo e os dizeres: “não deveria acontecer deste modo (…) Você acredita que eu te amo? (…) Então se você me perder saiba que eu o amo e queria continuar amando-o”. Com isso, corre ao alto da torre da igreja. Scottie a persegue, mas sua acrofobia o faz entrar em vertigem, impedindo-o de atingir o topo. Logo, escuta o grito de Madeleine e têm a visão de seu corpo que caiu. Após isso, deixa o recinto desesperado. Assim se encerra a primeira fase da narrativa, com o crescendo da atração, obsessão e envolvimento entre Scottie e Madeleine. Entre ela e o climático fim, há uma intermissão, que narra a progressiva autopercepção de Scottie de sua de-subjetivização após o aparente fim de seu objeto – o distanciamento vertiginoso que desfaz a própria espiral. Após certo tempo, vemos em um tribunal, que admite que Madeline cometeu suicídio num estado de “perturbação mental”, isenta Gavin Elster de responsabilidade, recrimina – mas não condena – Scottie por ter sido incapaz de impedi-la de efetivar o ato e abandonar a cena do fato em estado de choque, segundo a justiça “uma questão entre ele e sua própria consciência”. Scottie mostrase visivelmente abalado perante o júri. Gavin Elster despede-se dele e diz que vai se mudar para longe e vender todos os seus bens, desculpa-se pelo ocorrido e reforça que sua crença é na morte de Madeleine por meio do espírito de Carlotta. Depois disso encontramos Scottie tendo o que se implica ser uma série recorrente de pesadelos envolvendo Carlotta e os temas sobrenaturais em relação ao desenvolvimento de sua obsessão por Madeleine, repetindo, simetricamente, porém em registro mais grave, o desenvolvimento da fase inicial do filme de seu desenrolar de sua obsessão por Madeleine. Deste modo, encontramos poucas referências figurativas (sem diálogo) além da incrivelmente dissonante trilha sonora, que é acompanhada de superimposição de cores no quadro, além de imagens de Carlotta ao lado dele e Gavin, de um túmulo, o rosto de Scottie e animações indicando a espiral vertiginosa e um buquê de flores se desfazendo. Por fim, no clímax do pesadelo, encontramos quadros em negativo (preto e branco invertidos) que mostram o corpo do próprio Scottie adentrando a escuridão branca. 294 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Essa inversão do negativo, nesses quadros, mostra muito bem a ligação não só plástica12, mas de sentido, da vertigem como fator fisiológico do personagem, bem como ontológico da narrativa, do desespero de encontrarse no ponto de origem da espiral vertiginosa e sentir a negatividade do objeto como a própria negatividade, e do papel da negatividade ontológica na estruturação da espiral vertiginosa como um “conceito aberto”. É da negatividade imanente ao início infinitamente perdido da narrativa e da espiral vertiginosa que se deduz o seu desenvolvimento conceitual como constante passar de si ao outro. Esse passar de si ao outro, essa constante inversão de polos, é o apelo do negativo – da contradição imanente ao sentido – a cada um destes – si-mesmo e ser-outro –, como elemento organizador da vertigem. Adentramos, agora, o crescendo final do filme. Sob o qual a intermissão – para fazer jus ao nome – assemelha-se a uma ironia. Esse crescendo se apropria da ironia da fase anterior, e a joga como uma luz sobre a totalidade da obra, sendo que isso é apenas perceptível apenas quando essa totalidade se efetiva ao fim do filme. Scottie deixa o hospital, após aproximadamente um ano, e inicialmente vaga pelos lugares relativos a história de Carlotta transposta a sua história com Madeleine. Então, vaga pelas ruas até que uma mulher chama a sua atenção, e a segue. O olhar-situação do filme já nos mostrava seu viés, olhar oblíquo em relação às mulheres, nessa fase. Continua seguindo a mulher que o chamou atenção até o singelo quarto onde vivia, no Hotel Empire, que possui uma característica luz neon verde que será explorada pela cinematografia nos momentos seguintes. Quem atende no quarto é Judy Barton (Kim Novak), uma jovem moça solteira que trabalha numa loja próxima. O primeiro encontro de Scottie com Judy e desastrado e acidentado, do alto de sua fraqueza e franqueza pede a Judy para falar com ela, conhecê-la. Explica que não está vendendo nada nem fazendo pesquisas porta a porta. Judy, inicialmente, resiste. Porém, com a insistência de Scottie e após ela “advinhar” sua história de ter conhecido alguém que se parecia com ela e o havia deixado, ela vai progressivamente aceitando o inquérito de Scottie. A frase “porque você me lembra de alguém” Uma relação plástica é onde o meio se deforma sem retorno; numa relação elástica há sempre o retorno ao mesmo. 12 | 295 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) se torna um dos motivos condutores, assim como a trilha sonora, desta fase da obra, comparável ao “vaguear” da fase inicial. Assim como este último é complementado pela fala de Madeleine: “apenas um vagueia; juntos, dois estão sempre indo a algum lugar”; o primeiro tem como resposta de Judy (na cena seguinte) “Isso não é muito lisonjeiro”, repetindo a primeira fase da obra de forma trágico-irônica. Ao fim, Scottie a convida para jantar, e Judy, acaba aceitando na medida que suas intenções contenham apenas isso. Outra frase de Scottie, que como senha o permitiu adentrar o apartamento dela: “porque eu gostaria de saber mais sobre você”. Se poderíamos entender o estranho comportamento de Scottie a partir do trauma da primeira fase e da intermissão, o motivo do comportamento de Judy nos é esclarecido assim que Scottie deixa, ansioso, seu apartamento para buscar o carro e levá-la para jantar. Vemos Judy planejando fazer as malas e deixar a cidade, após uma súbita lembrança, e começa a escrever um bilhete. Nele, junto com a memória, ela narra que assumira o papel da esposa de Gavin ao mando deste, que Scottie havia sido uma testemunha forjada de um “suicídio” que na verdade fora um homicídio, que a mulher de Gavin fora a verdadeira assassinada e que havia sido fácil pois ela vivia reclusa. A história de Carlotta havia sido inventada baseada parcialmente em fatos. Vemos, também, que no episódio da torre, que completa a primeira fase, Gavin joga a sua própria mulher no lugar da falsa Madeleine. Há um grande erro nessa história, que é como ela termina a carta, falando inicialmente sobre Gavin: “– He planned it so well. He made no mistakes.” “– I made the mistake. I fell in love.” “– That wasn’t part of the plan.” “– I’m still in love with you, and I want you so to love me. “– If I had the nerve, I’d stay and lie, hoping that I could make you love me again as I am for myself.”13 13 [Judy]: “– Ele planejou isto tão bem. Ele não cometeu erros.” “– Eu cometi o erro. Eu me apaixonei.” “– Isto não era parte do plano.” “– Eu ainda estou apaixonada por você, e eu quero tanto que você me ame.” “– Se eu tivesse a coragem, eu ficaria e mentiria, esperando que eu pudesse fazer você me amar novamente como eu sou por mim mesma.” Ibid., cap. 26. 296 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio O erro de Judy é um pequeno sinal dessa tragédia, o plano seria “perfeito”, Gavin não cometeu erros pois agiu diretamente – e assim egoisticamente – em relação aos impulsos de sua vida. Seu plano é a sua luta para manter as condições de suprimento de seus impulsos, logo, agiu apenas conforme a eles, sua necessidade material e tudo o mais que não sabemos em que sua mulher poderia atrapalhar. Para lembrarmos negativamente da fórmula engessada de Kant do imperativo categórico, ele tomou tudo como um meio, inclusive outros agentes morais como Judy, Scottie e mesmo sua esposa, a verdadeira Madeleine. Porém, não ficamos presos a esta tendência formalista de Kant ao observar a moral – “Tratar o homem como um fim e não como um meio”. O erro de Judy, porém, é o que liberta sua ação da esfera egoísta do suprimento dos impulsos de sua vida, e põe sua vida, como totalidade, mas seguindo a coloração específica da Forma reguladora do amor erótico, em razão de algo que está contido além da imanência de sua individualidade, que a transcende. Logo, se antes o problema era suprir suas necessidades e impulsos de vida de uma jovem mulher trabalhadora com o retorno financeiro do plano de Elster, o plano de Judy teve um “erro”, que o tirou da direção da autogratificação egoísta para um desejo de transcender e tocar um Ideia que está muito além de si, o outro. Mas, assim, com tudo o que dissemos em relação à vertigem, e da de-subjetivação de si perante o outro, fica fácil entender como essa mesma fuga do egoísmo – de pretensa liberdade-para-o-outro –, mediada pela Forma do amor erótico, leva a vida a uma tragédia. Pois essencialmente a tragédia consiste na autodestruição (no caso, na autoalienação) a partir do próprio sentido positivo do desenvolvimento vital. É justamente por seu desejo de ser livre, de que sua vida em totalidade supra uma necessidade que está contida além dela, que ela se perde em relação a si mesmo. Assim, sua vida, mesmo livre, não deixa de ter um destino – trágico – no momento que esta liberdade é, enquanto transcendência – afinada em relação à idealidade que a liberta. Observamos, então, uma dialética trágica que opera duplamente na obra, parte da de-subjetivação do olhar de Scottie como um sujeito enquanto construção de Madeleine como um Objeto-sujeito. Então, na segunda fase, é Scottie o Objeto ativo (enquanto sujeito de-subjetivado, fraco, negativo) | 297 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) que, mediante a Imagem14 do Objeto-sujeito perdido de Madeleine, desubjetiviza Judy como subjeito. O importante é notar que é sempre o polo negativo do objeto que atraí o sujeito em sua positividade trágica. A força ativa reside no negativo do objeto, já que o sujeito, certamente positivo, põe sua positividade em favor de uma expressão trágica de si. O apelo do negativo, enquanto tensão do objeto, aparece nos interstícios do sujeito positivo e trágico, e está aí uma relação indissociável entre tragédia, vertigem e o apelo do negativo. Judy segue então em sua condição erótica de liberdade, com o novo plano, a coragem, de se fazer novamente para Scottie, agora como quem ela é e finalmente poder viver seu amor em sua vida. Logo, procede a aceitar a frágil investida de Scottie e procedem a jantar e então sair no dia seguinte e então. Vemos Scottie novamente capturado por Madeleine, por sua imagem parcial, e em sua obsessão vemos logo a tentativa de Scottie de “recriar” Madeleine. Nessa etapa, em que a tensão da obra se agudiza ao máximo, vemos uma polêmica “força” de Scottie, em sua obsessão pela imagem de Madeleine, forçando e “errando”15 o plano de Judy de fazê-la amá-la como ela é, uma garota simples do interior do Kansas e muito distante do modo refinado com a qual Madeleine se apresentava a Scottie. Além da absoluta performance de Kim Novak como duas mulheres distintamente diferentes, que faz com que nós literalmente vemos duas vezes a mulher16, temos a direção de Hitchcock em canalizar a expressão da atriz – que não era tida como muito artística e apenas sensual em Hollywood. Assim como a diferença de idade, dentre outras peculiaridades, a forma com que Scottie insiste e força Judy a se transformar em Madeleine, se torna muito mais polêmica se considerarmos a expressão hodierna das relações de gênero. Judy não só acaba se submetendo após reiterar que não quer usar tais roupas ou adereços, mas a vemos chorando, ao perceber que seu plano tragicamente a levaria Essa imagem parcial de Scottie retém de Madeleine está associada intrinsecamente com a origem da imagem cinematográfica que pertence à obra, como filme. É como se essa dialética trágica funcionasse enquanto referência ao caráter de filme do filme em que ela nos é apresentada. E também, essa dialética parece funcionar perfeitamente apenas enquanto mostração cinematográfica. 14 Também denota o caráter “errante”, “vagueante” dessa força de Scottie, sua marca de nascença na sua máxima fraqueza em relação à imagem parcial e perdida de Madeleine. 15 16 Referência ao belíssimo título do filme em italiano: “La donna que visse due volte”; “A mulher que foi vista duas vezes”. 298 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio a se tornar Madeleine de novo, entre dois fracassos, o último, ou o de ir embora e deixar Scottie. Ao perceber que nada seria suficiente enquanto Judy, nem mesmo as roupas, mas teria que se transformar completamente em Madeleine, capitula (começando com Scottie): “– Judy, please, it can’t matter to you.” “– If… If I let you change me, will that do it”? “– If I do what you tell me, will you love me?” “– Yes.” “– All right, then, I’ll do it. I don’t care anymore about me.”17 “Eu não me importo mais comigo”. É muito claro que tal apresentação, ainda que numa dimensão estética, geraria uma grande crítica do ponto de vista de nossa cultura de gênero. Já mencionamos nossa resposta a tal indagação possível, que nosso esforço é de trazer a narrativa de um âmbito de apreciação cultural para um ontológico. Não cabe a nós medir o teor de misoginia do que nos é apresentado, mas calibrar a percepção para os fenômenos que se escondem por detrás dessa misoginia, ou mesmo, os fenômenos os quais a misoginia é apenas uma coloração acrescida e não seu fundamento. Então, como dissemos, nesse ponto observamos agudamente a de-subjetivação trágica de Judy. De um lado, sua vida é canalizada para algo totalmente além dela, mas que dialeticamente deixa de ser sua diferença com Scottie (sendo o amor uma forma de viver a diferença com o outro), e passa a ser a sua identidade alienante com Madeleine. De outro lado, é seu esforço de dar-se, de libertar-se do seu egoísmo que, positivamente, a aprisiona no objeto negativo “flutuante” em sua diferença com Scottie, Madeleine. Do lado de Scottie, em toda a força que demonstra para convencer Judy, está a fraqueza, o signo de sua perda original de Madeleine quando, assim como Judy, colocou sua vida como totalidade em favor de Madeleine, que agora o aprisiona como seu objeto. E chega o final: Judy se transforma em Madeleine, aos auspícios de Scottie, tornando-se o simulacro do simulacro que era a primeira 17 [Scottie]: “– Judy, por favor, não pode importar para você.” [Judy] “– Se… Se eu deixá-lo mudar-me, você vai me amar?” [Scottie]: “– Sim.” [Judy] “– Tudo bem, então, eu o farei. Eu não me importo mais comigo” (Ibidem., cap. 29). | 299 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Madeleine falsa. Quando ela sai do banheiro após ter arrumado o cabelo (mudar o modo de prender o cabelo seria o derradeiro modo de resistência) temos uma montagem cinematográfica incrível. Vemos, pelos olhos de Scottie a nova Madeleine, idêntica a anterior, banhada de forma fantasmagórica e antinatural pela luz esverdeada do neon do hotel, que deveria estar distante, mas está próxima na montagem da cena. Ao se abraçarem e beijarem novamente sob a luz verde neon e o furor da trilha sonora orquestral, o próprio quarto de hotel se transmuta, por um instante, no vilarejo colonial onde de fato Scottie viu Madeleine pela última vez. Essa transmutação onírica e fantasmagórica da cena, brilhantemente conduzida pelo diretor como referência íntima àquela cena anterior, vale-se e demonstra, do recurso intrínseco da montagem no cinema com o trunfo da direção do olhar, ou melhor, da capacidade do cinema de interferir no olhar dotador de sentido do espectador e mudar a trajetória desse sentido para alguma remissão inesperada. Isso, somado a outras características do cinema, como seu recorte plástico e imagético de sequências causais num todo finito, ordenado e determinado, põe o cinema, mediante a vida como uma aventura. Tudo parece estar bem. Após o reencontro dos amantes, Judy (enquanto totalmente alienada de si – reeditando o papel de Madeleine sob outro nome) coloca um colar, e Scottie logo percebe que se tratava do colar de Carlotta. Deste modo, deduz a ligação causal entre Judy e Madeleine. Ambos saem, e Judy começa a desconfiar do olhar diabólico de Scottie e do longo desvio que estão fazendo ao sul de São Francisco, onde deveriam jantar. Ao questioná-lo, responde a assustadora afirmação de que haveria algo que precisava fazer, e então estaria livre do passado. Chegam ao vilarejo, e Judy se desespera, Scottie força-a fisicamente a adentrar a torre, e, aos gritos de ambos, questiona-a sobre a verdade do assassinato de Madeleine. A escalada dos andares é difícil, entre a luta corporal com Judy e a acrofobia de Scottie, mas chegam à “cena do crime”: o alto da torre. Scottie continua o inquérito, e ao fim, declara seu antigo amor por Madeleine, que “já fora”. Judy declara que voltara apenas em nome do seu amor por Scottie, que ainda o ama. Mas, não seria suficiente. A frase condutora da cena é da boca de Scottie: “Você não deveria ter 300 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio mantido souveniers de um homicídio. Você não deveria ter sido tão sentimental.” Judy, termina, então, postada próxima a abertura da torre. Repentinamente, vemos surgir da escuridão a imagem de uma freira, que havia escutado vozes. Judy olha para ela, grita, e seu corpo cai da torre. A díade Errância, então, Liberdade/Finitude é aqui manipulada pelo olhar do diretor para se tornar nosso olhar. O bom cinema brinca com esse viés existencial pela imagem. “Apenas dois vão a algum lugar.” (Liberdade e Finitude) E nunca se assiste a um filme sem estar junto a outro olhar despercebido, se é que se assiste então a um filme. Essa própria manipulação gera a vertigem, num sentido metafísico e estético. (Errância) A DIALÉTICA DA IMAGEM COMO A DIDÁTICA DA TRAGICIDADE O título do filme em português, “Um corpo que cai”, remete ao profundo mistério e ambiguidade dessa finalíssima cena. Pois ficamos questionando, e o filme simplesmente termina, porquê Judy caiu, ou mesmo se ela havia se jogado e o motivo disso. São várias as leituras possíveis: uma, mais niilista e casual, e que ela apenas teria se assustado e pateticamente caído; outra, mais simbólica-psicanalítica, que a freira – por sua ligação com a castidade e religiosidade – simbolizaria o espírito de culpa de Judy. Não temos como interpretar essas explicações na coloração específica de cada uma, já que não é nosso papel, mas aventamos uma hipótese fundamental. Tal hipótese, se relaciona com o todo de nossa exposição, com o conceito de vertigem, espiral hermenêutica, apelo do negativo. Se Judy tem a sua liberdade de agir-para-o-outro frustrada pela imagem transitória que é o resquício de Madeleine em Scottie, ela sofre outro fenômeno. Podemos interpretar o filme na progressiva conversão de duas disposições morais da protagonista (enquanto Madeleine falsa, Judy e Madeleine-Judy). Isso deve ser observado de dois lados. Temos a aplicação de duas disposições morais em três estágios de objetificação. Devemos alertar que tais “disposições morais” são só restritamente morais, mas em si se reportam a totalidade de seu conteúdo. Elas são: ser-por-si, buscar a autogratificação dos impulsos de sua vida em relação a um ideal imanente a esta própria | 301 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) vida – egoísmo; ser-para-o-outro, buscar a resolução de um impulso que se encerra num ideal totalmente além dos confins da própria vida, orientar a totalidade da própria vida em relação a um objeto transcendente – liberdade. Já discutimos que, quando essa liberdade é dirigida a outro indivíduo enquanto ideal, a vida recai na lógica de autoalienação trágica18. Agora, enquanto objeto inicial (Madeleine falsa) seu ser-por-si para aplicar o golpe era suficiente, mas progressivamente converte-se em sujeito (Judy) por meio do relacionamento com Scottie. Não na Judy que, com sucesso, aplicou o golpe, mas na Judy que ama que quer ser amada como ela é. Tendo em vistas a imagem residual do objeto inicial e a obsessão de Scottie, seu ser-para-o-outro retorna de forma insuperável para o ser-por-si(-mesmo) da Judy-Madeleine, o ápice de sua alienação. Ao confrontar-se com Scottie no fim, percebe seu próprio objeto como negativo, como o ponto inicial da vertigem em que não há, tecnicamente, espiral – não há um descobrir o outro como transcendente pois não há distância, é imanente – é puro pathos. Isso ocorre devido a uma força estruturante, o apelo do negativo. Acontece, que este apelo tem uma coloração sentimental específica, e esta é a chave para o mistério do corpo que cai. Os franceses possuem nomes únicos para acontecimentos psíquicos – não a se interpretar no sentido psicológico –, sendo um já bastante conhecido, o déjà vu, a estranha sensação de já haver visto algo antes. Porém, há um nome menos conhecido, mas igualmente único: L’appel du vide. Traduzimos e mantemos com estreita correlação ao fenômeno filosófico que apresentamos como “apelo do negativo”, no entanto, ao usar o nome francês não nos referimos imediatamente ao âmbito ontológico que o sustenta, mas os seus imediatos efeito e coloração psíquica. L’appel du vide denota uma sensação, assim como o déjà vu, estranha e intrusiva que é primariamente ligada à situação de alguém em um lugar alto ao olhar a profundidade e o abismo. A sensação é: jogar-se. A ideia de um “chamado”, de um “apelo” do vazio pode parecer macabra, mas não é estranha à filosofia. Nietzsche, com muita propriedade, reportou-a em seu aforisma 146, em Além do Bem e do Mal: “Quem combate monstruosidades deve Ou seja, não queremos dizer que toda a ação livre do egoísmo é trágica. Apenas que a ação livre que toma o outro indivíduo como ideal transcendente é trágica, justamente pelo outro, enquanto indivíduo, não cumprir as exigências de um Ideal puro. A arte, o conhecimento, a religiosidade, são exemplos dessas formas ideais puras. 18 302 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.” (NIETZSCHE, 1992, p. 79, grifo nosso). Aqui, encontramos um reflexo do L’appel du vide e uma chave para sua interpretação filosófica. Pois, a sensação do L’appel du vide é uma sensação que advém repentinamente, como que do Nada – mas não é isso que caracteriza sua negatividade – e rompe intrusivamente com toda a cotidianidade estabelecida. L’appel du vide pode ser usado para descrever outras sensações do mesmo gênero, ligadas às experiências psiquiátricas. Mas, como isso tudo se encaixa? Voltando à Judy, não nos parece estranho que a causa psíquica de sua “queda” seja o appel du vide, que rompa com aquela situação em que estava inserida com Scottie na torre, tendo como âmbito ontológico a tradução do appel du vide em apelo do negativo, na insuportável situação sem-sentido de encontrar-se entre o não-eu e o não-outro. Mostrando uma relação entre dois termos, aquele appel du vide também é um déjà vu, de duas maneiras. Entre a “queda” proposital de Madeleine na Baía de São Francisco e a sua derradeira – e verdadeira – queda, e o seu grito quando Gavin joga a esposa (que teria a intenção de pará-lo pois estava apaixonada por Scottie), e o seu grito quando caí na última vez. Todas estas imagens são sobrepostas no último momento. Não é a toa, já mencionamos, que o título do filme em italiano se traduz: “A mulher que foi vista duas vezes”. A reflexão de Nietzsche nos dá uma última pista para compreender o comportamento de Judy. Temos que ter em mente o que foi dito sobre seus estágios de objetificação e disposição moral. Inicialmente, poderíamos dizer que Judy “pulava” para viver, como no episódio da baía de São Francisco, agia e aplicava o golpe para satisfazer suas necessidades imanentes e egoístas. Depois, ao ter Scottie como seu Ideal, vivia para pular, ou seja, o seu appel du vide, como apelo negativo, apresenta sua maior afirmação da vida e de sua vontade, que, paradoxalmente, a destrói. Judy é a heroína trágica da narrativa, não Scottie. Quando Nietzsche nos alerta em seu aforisma, ele nos alerta sobre o domínio da forma metafísica, ideal e transcendente que tomamos para nós, como nossa Verdade Absoluta e imanente. Justamente, o domínio desse ideal pode nos possuir como o espírito de Carlotta, e | 303 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) levar-nos a autodestruição ou autoalienação trágicas de nossa vontade, mesmo que nossa intenção possa ser “antagonizar” tais ideais. Ou seja, essa tentativa de liberdade apresentada requer – como saídas –, ou uma aceitação da tragicidade imanente à vida, ou um refúgio idealista e ascético nas formas ideias supra-individuais, ou mesmo à negação da tragicidade da vida e vontade e aceitação do real como eterno retorno do mesmo (contra o ciclo próprio da tragédia). Nietzsche, obviamente, não distingue essa relação com o “outro”, explicitado de modo geral na nossa dialética da vertigem, apenas como o “outro indivíduo”, mas mira também as formas ideiais do conhecimento científico, religiosidade, moral, e quiçá a arte, se afinada com estes outros. Das soluções apresentadas anteriormente, a solução do autor do aforisma que interpretamos – Simmel – é a aceitação da tragicidade do âmbito vital, por uma modulação implícita do idealismo ascético, o que, claramente, choca-se com o pensamento de Nietzsche. Mantemos assim, ambas as soluções em aberto. O importante é que Nietzsche, muito antes, diagnosticara e havia dado sua solução à questão. Munidos de ambas interpretações e diagnóstico, percebemos melhor o fim de Judy, o momento trágico em que sua vontade é jogada violentamente contra ela mesma, encerrando sua própria vida na sobreposição de situações (déjà vu), é quando ela sucumbe – ou aceita – sua autoalienação máxima, mediante o domínio conversivo do outro, seu ideal transcendente. A tensão ontológica dessa conversão, do ideal do outro à imanência de si, é o apelo do negativo e sua coloração específica na psique é o appel du vide. O momento em que ela deixa absolutamente de “pular para viver”, e sua vida, em sua totalidade, se concentra num ponto: vive para pular. E foi um pequeno erro, imanente a sua vontade, que a fez ser livre, e ser livre é ter um destino: “– I made the mistake. I fell in love.” “– That wasn’t part of the plan.” (Itálico nosso) Se seguirmos a interpretação simmeliana dessa metafísica, percebemos que neste ponto a interpretação de Nietzsche utilizadanos serve mais como 304 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio de uma forma radical do pensamento de Schopenhauer, e não ainda de uma ruptura como preconizado no Nietzsche tardio. Schopenhauer tira as consequências, pelo menos ao formular o problema moral: o homem plenamente moral não diferencia ele mesmo e os demais; em teoria ou, pelo menos na prática, reconhece a profunda unidade metafísica entre tudo que existe. Diante dessa unidade, a particularização individual é uma aparência enganosa que decorre de concepções subjetivas. Aquela unidade absoluta que está na raiz de nosso Ser não é o fundamento da inexistência de diferenças, mas o reflexo dessa inexistência; falta um fim definitivo a que tais diferenças pudessem se referir. (SIMMEL, 2016, p. 21). Em O conceito e a tragédia da cultura, Simmel não se demora em uma exposição do conceito de tragédia, limitando-se a uma explicação formal e apenas funcional. Dentre os aforismas de Simmel, podemos destacar alguns que tratam diretamente da tragédia em sua essência, e também, em sua visão, dois de seus momentos mais típicos19: a tragédia grega (ou antiga) e a tragédia elisabetana, que encontra seu ápice em Shakespeare. A tragédia contemporânea aparece como uma extensão do que fora prenunciado por Shakespeare, mas isso só é inteligível – em Simmel – se compreendermos a tragédia mediante seu âmbito próprio de interpretação, que é a relação íntima que o trágico mantém com a vida. Embora não tenhamos como detalhar todos os aspectos de sua filosofia da vida, ela fica apresentada nos dois pontos de nosso aforisma inicial: a relação autoalienante sujeitoobjeto (da objetificação do sujeito e de-subjetivação do objeto) desenrolada mediante a relação entre o eterno e o temporal (a eterna significância do temporal), em que, apenas o temporal pode ser eterno – entendido enquanto transcendente. Em O conceito e a tragédia da cultura, o trágico: […] em contraposição ao triste ou ao que destrói a partir de fora – entendemos o seguinte: que as forças aniquiladoras dirigidas contra uma essência brotam das camadas mais profundas desta mesma essência; que com sua destruição já se consuma um destino que estava instalado nela mesma e que o desenvolvimento lógico constitui 19 No sentido de tipo ideal. | 305 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) justamente a estrutura com a qual a essência construiu sua própria positividade. (SIMMEL, 1998, p. 103-104, grifo nosso, – Do Ensaio: “O conceito e a tragédia da cultura”). Isso significa que uma vida se constitui trágica, não de acordo com o uso vulgar de trágico por ter seu destino acentuadamente triste, mas pela sua destruição ser o desenvolvimento positivo dessa própria vida. A vertigem encontra a sua tragédia prenunciada no seu início paradoxal como não-eu e não-outro, na destruição do ciclo mediante a distância alienante, que é de certa forma o retorno e a impossibilidade de permanência no início mencionado. O destino trágico é a negação radical algo que só pode surgir da sua própria afirmação. Nesse sentido, a morte é trágica não no sentido ser triste enquanto negação de uma vida, mas por ser uma possibilidade intrínseca e inevitável do desenvolvimento do homem em sua positividade. É importante frisar que nos referimos à morte como um evento comum à condição humana e não a uma morte específica considerada factualmente, que pode ou não ser trágica – porém, e justamente por isso, a tragédia enquanto narrativa sintetiza a condição humana em sua forma e conteúdo, para além da distração do cotidiano. Isso já nos leva a uma reflexão importante. A determinação fundamental da vida de Simmel – o fato da vida (entendida para além do biológico) conter o seu futuro, transcendendo-se a cada vez em direção a ele – é uma condição de possibilidade de sua interpretação da tragédia na medida em que esta requer que, para que algo seja tragédia, seu destino enquanto negação seja contido no seu desenvolvimento positivo e a determinação fundamental da vida coloca em possibilidade esta de conter o seu destino. O puramente objetivo que está-no-presente não pode ser trágico. Isso se reporta à distensão, à eterna significância do temporal, já que o temporal, em sua temporalidade dialética, se distende até o eterno. O que é diferente do estático, em que abdica do vivo. No entanto, e é necessário para uma compreensão da tragédia, a vida se manifesta na forma relativamente estável do indivíduo, e essa tensão, de estar individualmente e viver temporalmente, é o caso manifesto da tragédia humana. Logo, a tragédia como gênero não é uma construção artificial, mas catalisa em forma e conteúdo essa tensão 306 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio imanente, já que, no mais das vezes, o cotidiano esvazia esse conteúdo. O cinema, enquanto arte e cultura, o resgata. A dialética da vertigem, consequentemente, se situa além na análise lógica formal. A tragédia se apresenta no fato, muito simples, de que existem indivíduos. Em suma, o primeiro ato do drama da cultura espiritual teve lugar no dia em que a corrente contínua da se fixou em individualidades fechadas e perecedoras; o que resulta como paradoxal e verdadeiramente trágico é que a vida, fluxo ininterrupto e perpetuamente móvel, não pode existir e de fato apenas é contínua sob a forma de um eu limitado no espaço, finito no tempo, unificado em torno de um centro imutável que é como o núcleo de uma personalidade. O indivíduo é, portanto, uma parcela da tela da vida isolado no enclave intemporal e rígido de uma forma; e se a individualidade é sempre vivente, a vida é sempre individual: essa é a fatalidade da natureza humana. A aparente incompatibilidade dos dois princípios, em cujo acercamento reside o trágico da existência, resolve-se em uma síntese irredutível e simples que cada um de nós pode experimentar no fundo de si mesmo, e que escapa a análise abstrata do perito em lógica (JANKÉLÉVITCH, 2007, p. 83, tradução nossa). TRÊS AFORISMAS O aforisma 146 do diário de Simmel reforça esta conexão da vida com o trágico: “O desejo apaixonado pela vida pode em si mesmo levar à autodestruição. Pois vem da fundação última de toda existência e leva de volta a ela, sendo que a negação da forma individual reside de fato muito próxima a ele.” (SIMMEL 2010, p. 183, tradução nossa, – Aforisma 146) A vida não só oferece a condição de possibilidade para a tragédia ao poder conter seu futuro, mas a mera afirmação radical e positiva da vida pode levar à autodestruição. Esta forma de autodestruição revela a forma trágica da afirmação da própria vida. O próximo aforisma apresenta a tragédia de maneira similar ao encontrado em O conceito e a tragédia da cultura, mas reforçando sua dualidade de ser um destino que se torna pela necessidade daquele que o | 307 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) engendra e, ao mesmo tempo, o destino que nega a própria possibilidade de seu engendrar: A essência do trágico pode talvez ser descrita assim: que um destino é mirado destrutivamente contra a vontade vital, natureza, sentido e valor de um ser particular – e que ao mesmo tempo este destino é percebido como procedente da profundidade e necessidade deste mesmo ser. (…) A quantidade de tensão necessária pelo que destrói uma vida reside em um elemento de maior profundidade desta mesma vida – esta é a medida do trágico. Isso é muito evidente nas tragédias de Shakespeare. Na tragédia antiga, ao invés da necessidade pessoal formar a base do processo de destruição é a necessidade do destino – correspondendo ao modo antigo de pensar, que geralmente não entendia a definição individual como base metafísica para a vida da pessoa. (…) Na tragédia, uma grande harmonia existe entre o positivo na pessoa e o que destrói o positivo (…) (SIMMEL, 2010, p. 183, tradução e itálico nossos – Aforisma 147). Aqui Simmel vai pensar a tragédia tendo como tipo as duas tradições supracitadas. Adiciona como elementos gerais entre elas que a potencialidade destrutiva necessária é uma função da própria vida, um claro desdobramento do conceito de tragédia; e que existe uma “grande harmonia” entre a potencialidade do destruído e do destruidor. Essa “grande harmonia” ecoa na consideração de uma “tragédia da cultura” pois esta não é menos que a tragédia da síntese, uma busca instável de harmonia entre o sujeito e o espírito objetivado e sua própria destruição pressupõe uma harmonia entre sua positividade e a positividade destrutiva. Precisamos de mais uma consideração, a origem do trágico na vertigem é justamente o desenvolvimento espiral de seu começo, estar perdido entre o não-sujeito e não-objeto é a marca do seu desenvolvimento destinal em espiral, e seu fim é meramente o retorno da espiral num ponto impossível – a distância impossível final resgata a proximidade impossível inicial. A distinção clara marcada entre as duas tradições de tragédia é que, enquanto nas tragédias de Shakespeare a necessidade da destruição é pessoal, nas tragédias antigas um “destino” se colocava além da própria 308 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio pessoa. A partir do moderno o destino coincide com a liberdade. Se formos transpor isto para a tragédia da cultura a pergunta resultante é: a potencialidade destrutiva da tragédia da cultura surge de seus elementos internos, “pessoais”, ou sua necessidade metafísica tem como base um destino abrangente? Dissemos isso pois, tomamos o cinema como cultura, embora como arte seja um ideal absoluto, cada uma de suas manifestações são individuais, temporais e autônomas. O último aforisma que nos interessa repete a estrutura da tragédia, mas aponta a relação desta com a consciência: mediada pela culpa. O mais interessante visto aqui é que vemos que não só a cultura individual se abre como não conclusão, mas como – numa reviravolta – a própria tragédia se mostra como não conclusão ideal – emancipando-se de seu princípio relativo ao conceito central de vida. A relação da tragédia com a culpa nos informa que não só a cultura20 é trágica, nem mesmo apenas a vida, mas a tragicidade se emancipa delas Simmel considera: A essência da tragédia é que a vontade mais profunda de uma pessoa é negada e que tal negação é no sentido mais profundo desejada. Que o herói trágico tão geralmente termine com o suicídio é uma percepção superficial desta constelação, mas ainda um símbolo do que compreende a tragédia em geral. O conceito de culpa que se tende a identificar a essência da tragédia é apenas uma obsoleta e atenuada expressão desse estado de coisas (…) A culpa aparece como a ponte sobre a qual a vontade encontra o fato que esta vontade destrói sua própria base – onde a vontade encontra a si mesma como vontade oposta. Com a culpa o paradoxo do trágico é transposto na consciência para a pessoa, mas seu caráter paradoxal é assim reconhecido. (SIMMEL, 2010, p. 184, tradução nossa – Aforisma 149). Temos aqui muitos elementos para pensar o caso de Vertigo. Como dissemos, não podemos colocar na essência da tragédia de Judy a culpa ou o suicídio, para a essência da tragédia, isso não importa. O que importa 20 Como subproduto da vida. | 309 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) é o seu desenvolvimento vertiginoso que enreda o trágico, que leva a sua máxima vontade corresponder a sua máxima negação. Tanto o suicídio, quanto a culpa, aparecem como mediações do trágico, símbolos que transportam e fazem esclarecer o trágico na consciência a partir dos seus momentos concretos. Mas, se o trágico em si se reporta a esta concretude da vida, e não à vida diretamente, é porque – embora gestado pelo princípio metafísico-formal da vida – ele se emancipou deste e adquiriu a liberdade de se mover entre os conteúdos desta vida. Por raras vezes sentimos – embora a identificamos unicamente – a essência do trágico por meio da metafísica, mas sim na concretude dos nossos conteúdos individuais, mediados por símbolos como a culpa e o suicídio. E muitas vezes confundimos estes últimos com a essência do trágico, por terem sido eles os mensageiros do paradoxo em nós. Isto só reforça o caráter mediador deles e também um outro fenômeno: a emancipação do trágico como algo elevado além da própria vida. Simmel demonstrou a dialética trágica segundo a qual a vida só pode ser apreendida na forma em que não é mais apreendida como vida. Nessas demonstrações, ele usa exemplos extraídos de situações concretas da vida, na qual o fator do conceito é substituído por outros fatores, tanto os necessários quanto os contrários à vida. É nessa dialética trágica que se baseia o ensaio de 1912 “O conceito e a tragédia da cultura” (…) Esse conceito vital de individualidade retoma em outra frase de seu diário, que tem por objeto a tragicidade do amor: “O amor só é despertado na individualidade e se despedaça na insuperabilidade da individualidade.” (…) Aqui, o conceito central da filosofia de Simmel já foi abandonado, e o trágico foi elevado acima da idéia fundamental que acaba retomando, na era pós-idealista, a reivindicação de totalidade do pensamento sistemático sobrepujado, contra o qual aquela idéia inicialmente se insurgiu (SZONDI, 2004, p. 70-71). A relação profunda do Cinema com o trágico é o apelo do negativo, do ponto de vista literal, vê-se o negativo da realidade. O seu conteúdo cultural se coalesce necessariamente nessa forma ontológica. Do ponto de vista da finitude, é uma in-finitude imagética – que se repete. Isso torna nosso olhar enviesado cotidiano em vertigem, como todo fruto da 310 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio metafísica moderna. Porém, a astúcia da repetição da vertigem, nos apenas aponta além da própria metafísica. CONSIDERAÇÕES FINAIS – O OLHAR ENVIESADO EM SUSPENSÃO COMO FIDELIDADE E GRATIDÃO AO RE-VELAR-SE DO SEER21 A palavra viés foi santificada – ou demonizada – como uma das palavras-guia de nossa era. Tal palavra, tendo liberto o seu sentido, aparecenos como uma chave para concluir o pensamento sobre Vertigo, o cinema, e sua relação com o trágico – e ao nosso próprio texto como interpretação, segundo a espiral hermenêutica. De acordo com o mapeamento do jornalista Sérgio Rodrigues22: O português conhece desde meados do século 16 o verbo enviesar, cujo particípio é “enviesado”). Quando devia tudo ao francês “biais” e nada ao inglês “bias”, nosso viés era menos atarefado. Até aproximadamente 20 anos atrás, pouco tinha se afastado do sentido de origem: o de indicar uma trajetória oblíqua, indireta, diagonal. Quando se olhava enviesado para alguém, olhava-se de esguelha, de soslaio – como fazia Capitu, com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, nas palavras de José Dias abraçadas pelo enviesadíssimo Bentinho. O olhar enviesado sempre teve o poder de introduzir entre duas pessoas uma instabilidade, uma desconfiança, uma irritação – até um perigo. Mas o sentido mais básico do adjetivo não continha juízo de valor: era de orientação espacial. No romance “O Senhor Embaixador”, Érico Veríssimo faz o personagem olhar enviesado para um catálogo. (RODRIGUES, 2019, grifo nosso). Assim como a metáfora espacial da “espiral”, o “viés” se apresenta como outra metáfora espacial rica de significado. Pois o cinema tem na espacialidade de sua imageticidade parte de sua essência, completando o Utilizamos o termo Seer, em itálico, para distinguir do ser/Ser; como alusão do pensamento vindouro pósmetafísico. Uma Dádiva que não é existir, nem ser – nem as diferenças entre ambos. 21 O mero uso de um diário de notícias, e coluna de opinião pode soar até macabro. Nossa justificativa é ainda estarmos num campo hermenêutico e era da metafísica. De um lado, diz Heidegger: “Todo questionamento metafísico põe o questionador em questão”. De outro lado da justificativa, diz Scheleiermacher: “Como todo discurso tem uma dupla relação, com a totalidade da linguagem e com o pensar geral de seu autor: assim também toda compreensão consiste em dois momentos; compreender o discurso enquanto extraído da linguagem e compreendê-lo enquanto fato naquele que pensa” (SCHELEIERMACHER, 1998, p. 8). 22 | 311 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) que dissemos, o olhar enviesado do cinema sempre teve o poder de introduzir uma instabilidade, uma desconfiança, uma irritação – até um perigo. O cinema nos controla pois ele controla nosso olhar – e quanto melhor cinema é (mais próximo de sua essência) mais tem esse poder. Porém, essa “interferência” pela qual o cinema controla nosso olhar – obviamente – não é meramente espacial, mas é uma interferência hermenêutica. Vertigo pode muito bem ser considerado filme arquetípico do cinema – e não nos importa se há realmente filmes melhores, deve-se ter – pois traduz e funde o viés cinematográfico, esta irritabilidade e insatisfação (e até mesmo perigo iminente) no seu conteúdo próprio. É como se ele refizesse a ponte metafísica entre a tragédia dialética da vida e a tragicidade em si que – gestada pela primeira – que nos abala em sua concretude. Isso tem a ver com outro sentido da palavra viés, potencialmente escondido no anterior, não o viés plástico do cinema em si, mas o viés trágico que a vida faz sentir na concretude mediada pela forma emancipada do trágico. É o viés da dialética da vertigem. Viés do sujeito em vertigem, viés da busca temporal e eternizada do objeto que passa pela autoalienação. Por fim, enquanto interpretação, que é a nossa atividade, é o viés hermenêutico – agora se aproximando do sentido anglófono, de viés de confirmação de uma verdade ou fato. É óbvio que essa modalidade de viés também necessita ser emancipada do seu uso vulgarizado como, por exemplo, em “viés ideológico”. Pois, o viés hermenêutico, antes de ser um viés de confirmação em que a idealidade de uma posição ou ponto de vista interfere na facticidade absoluta do real, indica esse ponto de vista ele mesmo, indica a própria situação-olhar tal qual ela é. A situação hermenêutica, logo, necessita de um viés, ou recairia numa compreensão absoluta sem compreendor – ou um compreendor igualmente absoluto. O famoso “círculo hermenêutico” – para usar outra rica metáfora espacial – infelizmente padece da mesma fragilidade espacial do círculo: sua linearidade. Tal linearidade recusa parte importante da negatividade trágica do entendimento. Robert Belton faz uma sugestão interessante: O círculo hermenêutico falha ao lidar com o efeito transformador de informações novas ou corrigidas, as quais podem vir de fora do texto tão facilmente como de dentro dele. Quando um intérprete 312 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio vê um detalhe que havia escapado de sua percepção antes, ele é apresentado com uma oportunidade de ver o sentido do todo em outra luz. Quando ele aprende que um artista é um membro de um grupo social ou gênero diferentes, ele pode ser inspirado a mudar a sua opinião sobre o quê uma obra quer dizer. Ele não termina onde começou, assim, a metáfora inadequada de um círculo é substituída pela da espiral, que engloba a acumulação e consideração de gatilhos não-antecipados à novas associações. (BELTON, 2017, p. 18). O viés hermenêutico aqui aparece justamente como esse efeito transformador das informações, que desestabiliza o círculo. Fica clara nossa opção em escolher uma espiral hermenêutica e também diferenciála da vertigem. De fato, considerando a totalidade da própria coisa, ambas são a mesma coisa, mas cada uma se reporta a um âmbito distinto do real. Vertigo, enquanto apresentação imediada de uma tragicidade metafísica recai no âmbito da vertigem; mas, quando considera-se recursivamente que Vertigo é ela mesmo uma obra cultural criada por uma série de manifestações pouco a pouco conexas, que ela mesmo está sujeita à forma mais elementar de tragédia – da cultura, percebemos a necessidade de interpretá-la espiralmente. Esse é o pensamento diferencial que aventamos no início, partimos dele, mergulhamos nos paradoxos da vertigem, e retornamos a ele – não como um círculo, mas em um ponto superior – um fechamento provisório. Uma espiral hermenêutica parece retraçar seu caminho, mas ele na verdade move-se para longe de sua localização prévia para olhar de volta ao objeto cultural em questão de uma perspectiva diferente. O fechamento final nos escapa. Ao contrário, nós temos um fechamento provisório ou “pseudo”-fechamento. O sentido do texto não pode ser determinado pois há um número inesgotável de outras localizações preenchidas com outros objetos cujos contrastes produzem uma estonteante variedade de outras possibilidades interpretativas. O discurso crítico no mundo real está constantemente sendo corrigido pela nossa descoberta de outros textos, para-textos e intertextos, alguns dos quais vão mudar nossas opiniões. (BELTON, 2017, p. 18). | 313 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) A estranha sustentação de nossa hermenêutica-de-mundo – imediatamente espiral, e não circular, tornada tão plástica23 pelo cinema como também ato social e cultural, logo fático, reside negativamente no mesmo modo-de-possibilidades que estrutura o nosso entendimento metafísico: o Princípio de Razão Suficiente. Simplificadamente:“Para tudo há uma razão para que seja ou explique o que seja”. Se o paradoxo do cinema é gerado, inclusive no ato cultural de cada filme, pela busca proposicional de relacionar a experiência em conceitos. O cinema traduz o já sabido apenas esteticamente-metafisicamente, porém como uma ponte instável entre imagem e conceito, vivência de mundo e teorização. De serno-filme e ser-espectador. Servindo além do cinema, mostra: tudo tem uma imagem para que seja e e-ternifique24 o que apenas é. Tal reconhecimento, no âmbito da superação da metafísica, e não mais da dialética moderna, demonstra – no mundo que for – uma terna gratidão ao velamento e fidelidade revelamento do Seer. Uma apresentação de outro âmbito, que reforça a urgência do se pensar o Seer para além de uma necessidade ou curiosidade acadêmica e escolástica, mas é impossível de ser dita adequadamente pelas flutuações da linguagem proposicional, e ainda assim é justificada aqui por resolver (e não suspender) o paradoxo do próprio trágico do filme específico apresentado aqui. Primeiro a representação da dialética da imagem nos leva a uma apresentação da didática do trágico, e é pela própria superação da dialética metafísica da imagem que se pode (mesmo no âmbito proposicional do roteiro) vislumbrar: o que se no nível do Seer é suspensão, no nível do trágico é re-solução – novamente, tornar a estrutura-hermenêutica espiral em uma circularidade virtuosa. O Velamento e Desvelamento do Seer, talvez em um “degrau inferior” se mostre como a Fidelidade e Gratidão de uma Ontologia Social. Por uma incapacidade de linguagem, e estrutura (afetiva-afinativa) de mundo, ambos estão imbricados hermeneuticamente. Uma relação plástica é onde o meio se deforma sem retorno; numa relação elástica há sempre o retorno ao mesmo. 23 24 A Imagem que e-ternifica, torna-se lembrável recursivamente pela sua afinidade ao mundo, à ternura. 314 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Por meio do Apelo do Negativo, o Cinema nos permite simplesmente não-fazer, pela Imagem instável e móvel, de vários modos tortuosos e diferenciais, um fazer-jus a nossa estrutura de interpretação como a Dádiva do Seer. E, ao “fazê-lo”, supera o Eterno Retorno da Metafísica – no sentido de nos depreender de uma estrutura sempre elástica de mundo. O Vislumbre do Seer como des-truição das cisões (Caos), a Justiça (Gerechtigkeit) – o que é a resolução de um salto para além da própria Imagem espelhada como fim do eterno retorno que acaba com a resolução da de-cisão. O verdadeiro normal (Judy) é fazer-jus à sua própria Dádiva, enquanto si mesma. Pular para si, sem que se caia o corpo. Aqui nós tratamos de uma relação entre a ontologia do cinema como imagem em movimento e o modo próprio de interpretação em geral, concluindo que isso também envolve o conteúdo de todo fazer-cinema em sua relação com a tradição literária trágica. Nós partimos do filme concreto Vertigo (1958 – Um corpo que cai), para adentramos uma discussão ontológica sobre a função do cinema na Era da Metafísica, e como esta função revela a possibilidade de uma nova hermenêutica-de-mundo. REFERÊNCIAS BELTON, Robert. J. Alfred Hitchcock’s Vertigo and the Hermeneutic Spiral. Londres: Palgrave Macmillan, 2017. JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Georg Simmel, filósofo de la vida. Trad. Antonia García Castro. Barcelona: Editorial Gedisa, 2007. MATTHEWS, Petter. Vertigo rises: the greatest film of all time? British Film Institute, [S. l.], 2018. Disponível em: https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/polls/greatestfilms-all-time/vertigo-hitchcock-new-number-one. Acesso em: 30 jul. 2019. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. RODRIGUES, Sergio. Era uma vez o viés. Folha de S. Paulo, São Paulo, 04 jul. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2019/07/erauma-vez-o-vies.shtml. Acesso em: 31 jul. 2019. SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. Hermeneutics and Criticism and other writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. | 315 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) SIMMEL, Georg. O conceito e a tragédia da cultura. In: SOUZA, Jessé; ÖELZE, Berthold (ed.). Simmel e a modernidade. Brasilia: Ed. Universidade de Brasilia, 1998. p. 79-108. SIMMEL, Georg. The view of life: four metaphysical essays, with journal aphorisms. Trad. John A. Y. Andrews e Donald N. Levine. Chicago: The University of Chicago Press, 2010. SIMMEL, Georg. Schopenhauer & Nietzsche. Trad. César Benjamin. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2016. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. VERTIGO. Direção: Alfred Hitchcock. Fotografia: Robert Burks. [S. l.]: AVH, 2006. 1 DVD (128 min), cor. Título original: Vertigo. Data original: 1958. 316 | A dinâmica formativa de hábitos e crenças: uma investigação filosófico-interdisciplinar a partir do filme ‘Noites de Cabíria’ Renata Silva SOUZA 1 INTRODUÇÃO Buscamos, neste ensaio, assinalar, a partir do filme ‘Noites de Cabíria’ (1957), dirigido pelo diretor italiano Federico Fellini, reflexões acerca da dinâmica de constituição de hábitos e crenças nos âmbitos individual e coletivo, com ênfase em cenas que ilustram a incessante repetição de hábitos de conduta construídos ao longo de milênios. Em poucas palavras: apoiamo-nos na hipótese segundo a qual ‘Noites de Cabíria’ retrataria uma história sobre as dificuldades em torno do rompimento de hábitos e o papel paradoxal da ilusão e dos sonhos em face de uma realidade brutal e desumanizadora. O filme em questão, é importante ressaltar, recebeu inúmeros prêmios, dentre eles o Palma de ouro de melhor atriz, no Festival de Cannes, para a interpretação de Giulietta Masina, o prêmio David de Donatello de melhor produção e direção – para, respectivamente, Dino 1 Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: renatynhass@ hotmail.com. https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p317-338 | 317 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) de Laurentiis e Federico Fellini -, e o Oscar de melhor filme estrangeiro (STARLING, 1964). AS DIMENSÕES MÍTICAS ABORDADAS NO FILME Já no início do filme, temos contato com a personagem principal, Cabíria, (ou Maria Ciccareli – o nome verdadeiro da personagem na referida película), mulher que personifica e preserva traços marcantemente vivos e encantadores de sua outrora meninice. Ela corre pelos campos acompanhada de seu par amoroso, Giorgio. Entre abraços e carinhos, ambos se encontram à beira do rio Tibre, para o qual, então, ele subitamente a lança. Essa atitude surpreendente é depois explicada: os reais interesses de Giorgio eram os de roubar aquela que o acompanhava em um suposto passeio idílico. Não sabendo nadar, Cabíria se vê em face de um iminente perigo de morte, mas é salva por crianças que a veem em situação de afogamento. A presença de crianças faz-se notar em diversas cenas do filme, nas quais, em nosso entendimento, representa, através de uma dimensão externa, algo que é interno e peculiar à personagem principal. Espécie de metáfora viva, as crianças representam a faceta infantil da própria Cabíria, evidenciada, por exemplo, em sua espontaneidade, receptividade aos sonhos, entusiasmo, inocência e boa-fé, características essas que sustentam – e também colocam em risco, por vezes - a sua existência e integridade. No decorrer do desenvolvimento da película, saberemos que Cabíria é uma prostituta que procura pela realização de um ideal de felicidade, ideal esse atrelado à busca do amor e à sua efetiva consumação nos laços matrimoniais. No entanto, conforme salientado por Fellini (1995, p. 124) “[...] quando se procura o amor, não significa que ele será encontrado. Assim como também nem sempre se recebe de volta o amor que se dá”. Os desdobramentos dessas afirmações são passíveis de serem observados de forma patente durante toda a apresentação da película. Ainda sobre a construção e percepção das características centrais da personagem principal, Fellini ressalta que (1995, p. 123): 318 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio Cabíria é uma figura muito positiva, tem realmente caráter nobre e maravilhoso. Ela não recusa nem os clientes mais mesquinhos e aceita mentiras como verdade. Ela é uma prostituta e a vida não foi boa para com ela, mas mesmo assim Cabíria está sempre em busca da felicidade. Quer mudar sua vida, mas é uma perdedora nata – uma perdedora que depois de cada golpe se levanta e jamais desiste da busca da felicidade. A personagem em questão ganha vida a partir de várias inspirações de relatos baseados em casos reais que impressionaram Fellini. A cena acima explicitada – do quase afogamento de Cabíria -, particularmente, tem como inspiração, segundo o cineasta, “[...] um artigo de jornal sobre uma história semelhante, em que a prostituta, ao contrário de Cabíria, não foi salva” (FELLINI, 1995, p. 123). A primeira cena do filme, aqui mencionada, será, em nosso entendimento, parodiada pelas demais, que decorrerão no fluxo de toda a narrativa da película, indicando que os cenários se modificam, mas o cerne das experiências parece ser o mesmo. Embora Cabíria prometa a si mesma que determinadas situações, como as vividas com Giorgio, jamais acontecerão novamente, damo-nos conta de uma conduta assentada em repetições incessante de padrões, bem como de uma resistência à possibilidade de mudança de hábitos, possibilidade essa capaz de reconciliar a dureza dos fatos brutos da realidade com a necessária ludicidade, própria dos sonhos e da imaginação, em face dos desafios da vida. A repetição incessante das mesmas experiências vivenciadas pela personagem, em contextos aparentemente semelhantes ao de Cabíria, pode provocar no espectador um sentimento de imediata simpatia e autorreconhecimento para com ela, como se de alguma forma ele estivesse em tais experiências, assim como quando se lê uma tragédia grega com mais de 2400 anos e se tem a sensação de espanto e estupefação pelo suspeito incômodo de que pouco mudamos desde então, e de que talvez sejamos ainda os mesmos - embora envoltos em outro cenário de atuação no qual tem lugar o teatro da existência. | 319 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) Embora seja possível elucidar uma série de fatores que poderiam lançar luz sobre as dificuldades relativas à transformação humana, bem como sobre a possiblidade de rompimento efetivo com antigos hábitos, entendemos ser importante salientar as peculiaridades que delineiam e caracterizam o conjunto específico e formador da identidade da personagem principal do nosso filme. Assim, indicaremos elementos plausivelmente envolvidos na conduta de recusa da dureza de alguns dos fatos das vivências mais fundamentais de Cabíria, iniciando com uma reflexão acerca de elementos históricos no âmbito das relações erótico-amorosas, como é o caso, por exemplo, de uma conduta balizada pela busca do amor ideal. Parece ser lícito pensar que o mito do amor ideal, encarnado pelas narrativas míticas de Eros e Psique, e do mito do andrógino, explicitado por Aristófanes no Banquete de Platão, estão ambos espraiados no imaginário humano como um dos elementos fortemente presentes na interação social. A fim de promover um melhor acompanhamento do raciocínio ora proposto, apresentaremos uma breve síntese das narrativas presentes em tais mitos. Em relação ao Mito do andrógino, Aristófanes argumenta que, no início da humanidade, havia três gêneros de humanos: feminino, masculino e o andrógino. Os três gêneros, segundo ele, eram compostos, respectivamente, por quatro pernas e mãos, dois rostos, quatro braços, dois sexos, órgãos duplicados, etc. Em virtude da tentativa desses poderosos seres de desafiarem os deuses, subindo até os céus, Zeus os puniu com a separação de cada ser inteiriço em dois, a fim de torná-los mais fracos. Desde então, após a separação de tais metades, cada qual procura, incessantemente, pela parte perdida. Tal tentativa de regeneração de nossa natureza anterior, representa a origem mítica do amor que, nas palavras de Aristófanes, se assenta na “[...] tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana” (1972, p. 30). No caso de Eros e Psique, trata-se, conforme ressaltado por Brandão (1987), de um mito grego relatado pelo escritor romano Lucio Apuleio (125-170 d.C), relato esse que tem lugar nos livros IV, V e VI de ‘O Asno de Ouro’. Conforme a narrativa, a beleza divinal da mortal Psique provoca a ira de Vênus, deusa da beleza, haja vista que os mortais, encantados por 320 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio aquela, e tomando-a por deusa, começam a prestar-lhe honrarias, ao invés de o fazerem à própria Vênus. Como punição, Vênus confia ao seu filho Eros a tarefa de fazer com que Psique se apaixone pela criatura mais abjeta já existente. Encantado pela beleza daquela que deveria punir, contudo, Eros é picado pela própria seta, terminando por desposar Psique. Para evitar a fúria da mãe, Eros mantêm a relação em segredo, preservando, inclusive, o anonimato do seu rosto e do seu corpo para a própria esposa. Com o tempo, incitada pelas irmãs invejosas, e tomada pela própria curiosidade, Psique busca descobrir a identidade do homem invisível, a ver se aquele com quem dividia o leito era ou não um terrível animal. Na sequência de tais intentos, Psique, iluminando com um candeeiro o rosto do marido, percebe que ele era o próprio deus do amor. Em assim fazendo, extasiada pela beleza de Eros, ela, por descuido, deixa que uma gota de óleo fervente do candeeiro que levava caia sobre o ombro do esposo. Desperto, apercebendo-se da situação, Eros voa para “[...] o alto e desaparece” (APULEIO, 2019, p. 207). Submetida a uma série de provas e sofrimentos impostos por Vênus, Psique consegue reconquistar o marido amado. Nas suas bodas nupciais, Psique é presenteada com a imortalidade pelos deuses do Olimpo, imortalidade que selaria uma união perpétua e feliz entre ambos. Entendemos que dimensões do mito de Eros e Psique e do mito de Andrógino, parecem estar presentes em diversos momentos do desenvolvimento da história de Cabíria, ainda que de forma mais ou menos velada. Nessa esteira, é possível identificar que uma das características patentes da personagem principal, e que nos remete a ambos os mitos, refere-se à sua incessante busca pelo amor ideal. No caso do segundo mito, aqui relatado, entendemos que ele ilustra de modo patente a dimensão da ignorância que a personagem assume ao desconhecer a verdadeira face de seus objetos de desejo, assim como Psique desconhecia a face e a real natureza do seu esposo (BRANDÃO, 1987, p. 229). Pensemos nas cenas em que os mitos apresentados tomam corpo em diversos momentos da narrativa, como, por exemplo, aquele em que Cabíria sai com o conhecido artista Alberto Lazzari, e adentra a sua suntuosa casa, que mais parece um palácio de contos de fadas. Crendo que viverá o seu | 321 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) tão aspirado dia de princesa, à maneira de Psique que goza de uma vida idílica no luxuoso palácio do Deus do amor, Cabíria aprecia as belezas da casa de Lazzari, como os animais exóticos no quarto do artista, as esculturas gregas, a 5ª sinfonia de Beethoven, o mordomo que a tudo atende (à maneira de Zéfiro, vento que servia Eros), bem como o curioso guarda-roupa que, ao ser aberto, faz soar curtas e melodiosas canções. A propósito, no quarto de Lazzari, logo atrás de Cabíria, percebe-se uma escultura do torso de Vênus, o que permite aludir à narrativa mítica. Com a chegada de Jessy, porém, namorada de Alberto, Cabíria é levada a esconder-se no banheiro, dali assistindo, pela fechadura, ao que Apuleio denominara ‘os combates de Vênus’. Fazendo companhia, no banheiro, ao cãozinho do artista, Cabíria é mais uma vez frustrada nos seus intentos e desejos. À maneira de Eros e Psique, as narrativas míticas fazem-se presentes no curso do desenvolvimento histórico humano, se desdobrando em contos de fadas, bem como em narrativas televisivas e cinematográficas que possuem uma estrutura parecida com a dos mitos e da tragédia grega. O próprio Fellini, quando indagado a respeito das motivações e temáticas subjacentes aos seus filmes, intitulava a si mesmo como “[...] contador de contos de fadas” (FELLINI, 1995, p. 98). Essas narrativas míticas, agora desdobradas em contos de fadas, embora modificadas no curso do tempo, seguem, em geral, a seguinte estrutura: Profecia-Preâmbulo – encontro – Erro/fuga – Punição/Busca – Redenção/Salvamento2. Cabe notar, porém, que nem todos os contos de fadas, tampouco os mitos, têm uma estrutura idêntica ao mito de Eros e Psique, pois são inúmeros os contos e mitos nos quais os finais são trágicos3, indicando, assim, uma dificuldade de transformação da personagem principal por eles retratada. A relação entre a história de Cabíria e os mitos em questão fazse também notar pela percepção de que tais narrativas míticas rompem O diagrama ora explicitado é de autoria de Lucia de Souza Dantas, pesquisadora e doutora em Filosofia pela PUC-SP, apresentado na ocasião do curso intitulado ‘Filosofia dos Contos de Fadas’- ministrado pela mesma no primeiro semestre do ano de 2020. Vale a pena ressaltar que a pesquisadora em questão autorizou a utilização do diagrama apresentado em aula para a composição do presente artigo. 2 3 Pensemos, por exemplo, nos contos de fadas de Andersen [1805-1875] que ilustram outros possíveis finais – tristes e trágicos - para os mesmos. Ver, por exemplo, o conto de fadas por ele intitulado ‘Os sapatinhos vermelhos’ (ANDERSEN, 2011). Como ilustração de mitos nos quais há finais trágicos, pensemos no próprio Mito de Narciso, ou mesmo nas próprias tragédias gregas. 322 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio fronteiras de classe social, etnia, nacionalidade, bem como o domínio espaço-temporal, haja vista a atualidade das mesmas na contemporaneidade. Em ‘Noites de Cabíria’, a personagem principal encarna tais imaginários relatados por ambos os mitos, bem como por alguns contos de fadas, nos quais encontramos, por exemplo, a possibilidade de redenção de uma moça pobre e sem recursos a partir do casamento com o príncipe encantado, como é o caso de Cinderela. As dimensões da natureza de relatos míticos, ou dos contos de fadas, trazem à baila a ideia de que as diferenças de classe podem desaparecer com o amor, e, com isso, quem tanto sofreu pode um dia viver uma vida de princesa ou Deusa. Provando que a realidade é bem distante das delícias dos sonhos, Cabíria, mesmo no interior da casa-castelo, é acordada por um cachorro, no banheiro em que, escondida, dormia. Ao sair da casa-castelo, ela contempla, pela última vez, o leito de Lazzari, no qual a bela Jessy estava entregue ao sono – uma espécie de releitura às avessas de Eros e Psique, na qual há uma personagem de fora que a tudo observa, sem, contudo, poder ocupar o lugar da esposa do Amor. Ao sair da casa-Castelo, novamente Cabíria colide com a dureza dos fatos, como quando tenta atravessar uma porta transparente, fechada. O vidro – bem como determinadas situações de vida –, embora transparente, não é percebido como tal, levando Cabíria a com ele colidir diretamente. Então, ela se pergunta: onde é a saída [da casa-castelo]? Como quem dissesse “Onde é a saída do mundo dos sonhos, dos quais me tornei prisioneira?”. DIMENSÃO SOCIAL DE ‘HUMILHADOS E OFENDIDOS’ 4 Em adição aos elementos supracitados, que compõem aspectos do desenvolvimento dos modos de formação e sentimento de uma dada comunidade, soma-se à constituição da identidade da personagem o fato de ela fazer parte, à maneira de um vocabulário dostoeviskiano, de um grupo de ‘humilhados e ofendidos’, uma parcela da sociedade relegada à invisibilidade, ao desamparo, à restrição e ao desprezo. Esse universo dos 4 O título ‘Humilhados e ofendidos’ faz referência a um romance de autoria do literato Russo Fiodor Dostoiévski, publicado no ano de 1861. | 323 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) humilhados e ofendidos é explorado, de forma mais detida por Fellini, por exemplo, na figura da família que compra a casa de Cabíria, e que gera indignação e comoção – nela e em Wanda - pela situação de extrema pobreza que ela encarna. No que tange à cena em questão, Fellini apresenta as seguintes considerações: Uma das cenas mais tristes de todos os meus filmes é o momento em que mostro a família que comprou a casa de Cabíria, enquanto ela se põe, como acredita, a caminho de seu casamento. Ela vê aquela gente como invasora. Ela própria vendeu-lhes a casa, mas agora está como uma criança que disse que sim mas que mudou de ideia. (FELLINI, 1995, p. 61). Essa parcela dos invisibilizados, encarnada, por exemplo, através da figura de Cabíria e de suas colegas de trabalho, ou mesmo da família que compra a casa da primeira, também é explicitada na cena do ‘homem do saco’. A cena em questão retrata, por sua vez, o caso real de um benfeitor caridoso que auxiliava pessoas pobres, geralmente mulheres mais velhas e ex-prostitutas, que moravam como que em ‘cavernas naturais’ situadas em terrenos baldios nos arredores de Roma, oferecendo-lhes alimentos e produtos de necessidades básicas. Segundo Dominique Delouche5, assistente francês de Fellini, o ‘homem do saco’ realmente existia, bem como essas pessoas desprovidas de assistência social mínima, o que chamou a atenção de Fellini acerca dessa figura. Delouche também afirma que as gravações dessas cenas foram feitas no local em que, segundo relatos, o referido homem realmente atuava. A título de curiosidade, indicamos para o fato de que a sequência cênica do ‘homem do saco’, de acordo com o próprio Fellini, inicialmente foi passível de ser apreciada apenas pelo público de Cannes, mas, posteriormente, foi mantida em diversas versões da película (FELLINI, 1995, p. 124). Surpreendentemente, a sequência em questão, como afirmara o próprio Fellini, fora a única, em todo o filme, que a Igreja não aprovara para a exibição ao público italiano, objetando, nas palavras 5 As afirmações em questão foram extraídas de partes de uma entrevista concedida por Dominique Delouche, disponibilizada nos extras do filme ‘Noites de Cabíria’ (2018). 324 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio de Fellini (1995, p. 124), que “[...] era assunto seu [da igreja] ajudar os pobres e famintos. E essa cena daria a impressão de que a Igreja não estava assumindo a sua responsabilidade”. Retomando a nossa análise da sequência cênica supracitada e sua relação com a dimensão daqueles colocados à margem da sociedade, vale lembrar que, no momento em que Cabíria encontra o homem de caridosa alma (o homem do saco), faz com ele um passeio pelas grutas nas quais vivem pessoas de condições paupérrimas de existência. Ela se comove com a situação dessas pessoas, e reconhece uma das figuras que outrora também vivia na prostituição, e que agora via-se privada dos direitos humanos mais fundamentais como alimentação, trabalho e moradia. Embora vivendo uma situação de desamparo, análoga à dessas pessoas, sobrevivendo da vida na prostituição, Cabíria entende que é especial, distinguindo-se delas – sobretudo por possuir uma casa, que, conforme repete orgulhosamente, é ‘provida de água, luz e gás’. A crença de Cabíria de que é diferente das outras pessoas, também humilhadas e ofendidas, com as quais convive, faz-se notar em diversos momentos da narrativa fílmica, embora haja situações específicas nas quais ela toma consciência da sua situação, revoltando-se contra isso. Tal o momento, por exemplo, da visita ao Santuário de Nossa Senhora do Divino Amor, visita motivada, sobretudo, pela realização de prostituição no local, e não pelo fervor religioso de uma fé irrestrita. A Dimensão da repetição cega tem uma variável importante a ser considerada no âmbito dos desvalidos, ou dos ‘humilhados e ofendidos’, como, por exemplo, uma forma de resistir às intempéries da dureza dos fatos. No trecho da cena do Santuário de Nossa senhora do Divino Amor, também nos deparamos com os desvalidos que se apoiam em algo extraterreno, como é o caso da religião, e do apego fervoroso a uma fé sem limites, capaz de servir como bálsamo às restrições e precariedades de um grupo relegado ao anonimato, desdém e desprezo. O santuário é o local no qual (supostos) pecadores e (supostos) não pecadores se encontram, peregrinos, pessoas humildes etc. Contudo, há algo que os une, como a crença numa redenção, ou mesmo uma ficção aprazível, capaz de acolher sonhos e desejos que talvez nunca se concretizem em vida. | 325 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) As dimensões do sonho e da ficção, comungadas nessa cena de prestação de homenagens e pedidos à Virgem Maria, fazem-se também presentes na figura do tio de um dos cafetões que acompanham as prostitutas no percurso do Santuário. Aparentemente, o mesmo tio estaria envolvido com atividades de prostituição e tráfico de drogas. As muletas do tio parecem metaforizar os sonhos, que são muletas, ou mesmo ferramentas, que nos auxiliam a transitar por determinadas situações de difícil travessia. As mesmas muletas que sustentam o tio, porém, também metaforizam os limites da ficção, espécie de ferramenta que, quando dela se é privado, faz despencar o indivíduo rumo ao chão. Nesse sentido, talvez não seja difícil admitir que determinadas formas de apego cego à religião, ou mesmo aos mais doces sonhos e ficções, possam ser encaradas como muletas. Na mesma direção, também Cabíria faz um pedido à Virgem, para que mude de vida, e se frustra ao perceber que nada mudou. Em um lamento tragicômico, ela murmura: “Ainda somos os mesmos, ninguém mudou”. E, repetindo igual murmúrio, acrescenta: “Estamos todos como sempre, como estropiados”. Ao ser indagada por Wanda, amiga sua, a respeito do que esperava, ela diz que irá embora, e venderá tudo para começar nova vida, acrescentando ser diferente de Wanda e dos demais com os quais convivia. Wanda, ao que parece, à maneira das irmãs invejosas de Psique, poderia representar, de forma mais profunda, o convite à conscientização de Cabíria a respeito da sua real condição de vida, bem como a dúvida em relação à real face dos seus pares amorosos, por ela de fato desconhecida. Cabíria ressente-se com a ideia de que milagres não existem, e se abriga na imaginação face à constatação dessa dura verdade, muito embora, conjecturemos, o verdadeiro milagre resida em ser possível habitar o sonho, ainda que de forma fugaz. ELEMENTOS SUBJACENTES À NARRATIVA FÍLMICA A dimensão onírica de toda a narrativa coaduna-se com o preto e branco do filme, no qual as formas se sobrepõem às cores, e no qual, conforme afirma o próprio Fellini (2011), podemos imaginar diferentes tonalidades e intensidades de cores que ali se fazem ausentes. Nas palavras 326 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio de Fellini (2011, p. 140), “[...] as chamadas ‘cores naturais empobrecem a fantasia”. O próprio filme tem inspiração em uma personagem real que Fellini encontra enquanto está filmando ‘A trapaça’. Fellini relata avistar um minúsculo e miserável casebre na aldeia de San Felice, construído, segundo afirmação do próprio diretor, de “[...] pedações de latão e velhas caixas de frutas”. Ao adentrar a casa, ele se espanta com o esmero com que os parcos recursos são organizados. Após a proprietária ficar enfurecida com a ousadia de Fellini, tomando-o por um enviado da prefeitura para a demolição da casa, ela se aproxima aos poucos do set de gravações, travando breves diálogos com Fellini, nos quais, segundo o mesmo, ela alternava: [...] episódios de uma realidade atroz e brutal, de uma vida de inseto, com outros que se via bem que eram inventados a partir de cenas de filmes que havia assistido ou de romances de quadrinhos. Com teimosia, se obstinava em misturá-los, confundindo tudo em razão de uma penosa necessidade de acreditar que sua vida de desgraças era assim, como contava, colorindo-as com ingênuas fantasias sentimentais de uma garotinha ignorante e azarada. (FELLINI, 2011, p. 102-103). Retornando à leitura do filme - à inspiração por ele recebida de episódios da vida real, o que resulta na intensificação dos sonhos que se mesclam com a realidade, formando uma linha tênue entre vida e ficção, e diferentes nuances e graus de embaralhamento entre arte e vida -, Fellini apresenta o ápice da trama com o show de Mágica e espetáculos variados, que incluiriam o hipnotismo e autossugestão. Nesse fragmento de narrativa, é claramente ressaltado o entrelaçamento entre ficção e realidade. Na cena em questão, o mágico hipnotiza Cabíria e a faz vivenciar cenas das suas memórias de infância [uma espécie de mergulho profundo nos anseios coletivos entranhados no indivíduo], apresentando-a ao seu imaginário pretendente - Oscar. O mágico, novamente, trabalha com a temática do amor ideal, trazendo à tona os desejos profundos nutridos por Cabíria – e também por uma coletividade construída ao redor de tal pensamento - em | 327 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) busca da realização de tais ideais, ou mesmo da neutralização de situações oriundas de uma brutal realidade. Ao sair do transe hipnótico, novamente os sonhos se desfazem como uma espécie de um líquido que não se consegue reter nas mãos. Cabíria, mais uma vez transtornada, irada, espera que todos saiam do teatro para não ser, ainda mais, alvo de zombarias. Um dos espectadores a esperava na saída do teatro, apresentando-se a ela como Oscar D’Onoffrio, enfatizando uma dimensão de destinação, pelo fato de ele também se chamar Oscar, o mesmo personagem fictício com o qual Cabíria formara par amoroso durante a sessão de hipnose. Oscar diz entender os sentimentos de Cabíria, apreciando a pureza dos seus sentimentos em relação ao amor. Cabíria, embora oferecendo resistência às palavras aprazíveis de Oscar, vê-se novamente enamorada, outra vez diante da possibilidade de vivenciar o tão desejado sonho. Sabemos, porém, como terminará toda essa trama, na qual o início do filme aparentemente se repete. AS ‘NOITES DE CABÍRIA’ E A CONSTRUÇÃO DE HÁBITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS: UMA BREVE INVESTIGAÇÃO Em narrativas autobiográficas de Fellini, transcritas de diálogos realizados entre ele e Charlotte Chandler, o primeiro assevera que “Nós vivemos muito mais no mundo de nossas imaginações do que na realidade e estamos presos no casulo de nossos hábitos”. (Fellini, 1995, p. 106). No entendimento de Fellini, os hábitos são responsáveis por fazer com que cada um viva “[...] em seu mundo de fantasia” muito embora, ele acrescenta, a consciência de tal condição não esteja clara para a maioria das pessoas (FELLINI, 1995, p. 17). Em face dessa afirmação, caberia as seguintes indagações: 1) O que é um hábito? 2) Como entender a dinâmica constitutiva e formadora de hábitos? As questões propostas serão investigadas a partir de trabalhos do filósofo Charles Sanders Peirce (1839 – 1914). 328 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio A fim de alçar os propósitos ora enunciados, iniciemos pela caracterização que Peirce apresenta da noção de crença, que, como veremos, associa-se estreitamente à de hábito. De acordo com Peirce: “A essência de uma crença é o estabelecimento de um hábito; e crenças diferentes são distinguidas pelos diferentes modos de ação a que dão origem” (CP. 5.3986). O mesmo acrescenta que uma crença pode ser caracterizada a partir dos seguintes traços, a saber: [...] primeiro, é algo de que estamos cientes; segundo, aplaca a irritação da dúvida; e, terceiro, envolve o estabelecimento de uma regra de ação em nossa natureza, ou, digamos, um hábito. Ao aplacar a irritação da dúvida, que é o motivo do pensar, o pensamento relaxa e fica em repouso por um momento ao alcançar a crença. (CP. 5.397, tradução nossa). Na concepção de Peirce, crenças indicam a existência de hábitos, uma tendência à repetição que auxilia agentes no balizamento de suas respectivas condutas presentes e futuras. Em contraste, quando há presença da dúvida genuína, pode ocorrer uma desestabilização de um conjunto de crenças, convidando o indivíduo a atualizá-lo de modo a poder incorporar outros tipos de hábitos. O pensador em questão acrescenta ainda que: “[...] tão logo uma crença é firmemente alcançada, ficamos inteiramente satisfeitos, quer a crença seja verdadeira ou falsa7” (PEIRCE, 2008, p. 45). Em seu trabalho intitulado A fixação da crença8, publicado em 1877, Peirce (2008, p. 43) afirma que “Nossas crenças guiam nossos desejos e moldam nossas condutas”. A fim de analisar e elucidar, de forma mais profunda, os tipos de crenças envolvidos em nossas condutas diárias, ele observou quatro tipos de métodos pelos quais fixamos crenças, a saber: a) por tenacidade; b) por autoridade; c) a priori; d) científico. Apresentaremos, brevemente, os quatro métodos ora aludidos. 6 CP refere-se à obra Collected Papers. O primeiro número diz respeito ao volume, enquanto que o segundo indica o parágrafo. Essa é uma forma usual de referenciar o trabalho em questão. 7 Conforme explicitado pelo próprio Peirce (2008, p. 82), crenças verdadeiras dizem respeito àquelas estabelecidas com base na realidade, enquanto que as crenças falsas se assentariam em ficções. 8 Tradução de Renato Rodrigues Kinouchi. | 329 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) O primeiro método (a), fixação de crenças por tenacidade, encerrase no âmbito de crenças individuais, nas quais há uma espécie de recusa em mudanças de opiniões e condutas. Nas palavras de Peirce (2008, p. 48): Um homem pode passar a vida mantendo sistematicamente fora de vista tudo o que poderia causar uma mudança em suas opiniões [...] Ele [o indivíduo tenaz] não se propõe a ser racional, e na verdade falará, frequentemente com desdém, da fraca e ilusória razão humana. Assim, deixem-no pensar como queira. Tal método expressa um apego bastante contundente à determinada crença, evitando, a qualquer custo, a dúvida, já que ela, conforme explicita Peirce (2008, p.43), é um estado em que experimentamos ‘desconforto e insatisfação’, e são esses mesmos sentimentos que nos impelirão à busca de uma crença que atenue ou cesse o desconforto trazido por uma dúvida genuína. Embora se possa permanecer por bastante tempo confinado às próprias crenças, por vezes limitadoras, como é o caso de crenças tenazes, Peirce (2008, p.48) assinalará que tal método “[...] será incapaz de, na prática, manter seu fundamento. O impulso social está contra ele”. Ainda a respeito da crença fixada pelo método da tenacidade, Ibri (2020, p. 241) assevera que: “[...] uma pessoa ou conjunto de pessoas que assim creem sobrevivem em um mundo que lhes é próprio, privativo, mas que, ao interagir com mente ou mentes que praticam crenças vivas9, conflitam de modo inevitável com elas”. O pensador em questão acrescenta ainda que restaria aos indivíduos tenazes: “[...] alternativamente, isolaremse da rede semiótica que os desafia a conjecturar, figura lógica impensável para a mente tenaz, e viverem sua ficção como se fosse realidade” (IBRI, 2020, p. 241). O segundo método (b), a saber, por autoridade, por seu turno, abrangeria uma escala mais ampla da dinâmica de constituição de uma crença, ultrapassando o domínio puramente individual para o de crenças que abrangeria grupos maiores, envolvendo, por seu turno, a “[....] formação de opinião e o direcionamento de ações coletivas” (GONZALEZ Ibri (2020, p. 237) considera ‘crenças vivas’ aquelas formadas pelo constante diálogo com os eventos do mundo, como é o caso, por exemplo, em seu entendimento, das crenças fixadas através do método científico. 9 330 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio et al. 2018, p. 9). Em poucas palavras, Peirce (2008, p. 49-50) assinala que: “Esse método tem sido, desde os tempos mais remotos, um dos principais meios de manter doutrinas teológicas e políticas corretas, e de preservar seu caráter universal ou católico”. Esse método de fixar crenças, conforme ressalta Ibri (2020, p. 238), “[...] é bastante eficiente no sentido de promover ações de uma coletividade voltada para fins eleitos pela autoridade”. O pensador em questão sugere que pensemos, por exemplo, em instituições nas quais se assentam rígidas hierarquias, como é o caso de organizações militares ou mesmo corporações empresariais (IBRI, 2020, p. 238). Em ambos os exemplos, Ibri ressalta o papel da decisão da autoridade na tomada das decisões e direcionamento coletivo da conduta de grupos de pessoas. O terceiro método (c), a priori, no entendimento de Peirce (2008, p. 53-53): [...] é bem mais intelectual e respeitável do que os outros dois sobre os quais discorremos [tenacidade e autoridade]. Mas suas falhas têm sido mais manifestas. Faz da investigação algo similar ao desenvolvimento do gosto; mas o gosto, infelizmente, é sempre mais ou menos uma questão de moda e, assim, os metafísicos nunca chegaram a fixar qualquer acordo, de modo que o pêndulo das opiniões tem balançado para um lado e para outro [...]. O método em questão, pode-se considerar, está assentado, de acordo Ibri (2020, p. 239-240), na: [...] tendência humana em crer naquilo que pode lhe ser conveniente, cumprindo um certo papel de trazer conforto espiritual a quem crê. Contudo, esse método está longe de conseguir um acordo universal de opiniões, fixando-se por meio de doutrinas que afirmam a realidade de objetos cujo lado externo não pode ser experienciado, permanecendo apenas interiores ao que dele em teoria se declara. Ibri enfatiza que o referido método de fixação de crenças não mantém um diálogo vivo com os fatos do mundo, sendo minada, assim, a possibilidade de verificação da validade das crenças por ele fixadas, através | 331 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) do confronto com a alteridade dos fatos. Para ilustrar tais afirmações, o pensador sugere que pensemos em “[...] todas as metafísicas que afirmam a priori a realidade de objetos que cumprem papel de dar sentido à finitude humana, pelas promessas de atemporalidade de uma vida transcendente a essa onde, também, os ímpios seriam finalmente justiçados. (IBRI, 2020, p. 240). Por fim, o quarto método, científico (d), por seu turno, é caracterizado por Peirce (2008, p. 53-54) da seguinte forma: Para satisfazer nossas dúvidas, por conseguinte, é necessário que se encontre um método pelo qual nossas crenças possam ser causadas por algo em nada humano, mas por alguma permanência externa – por alguma coisa sobre a qual nosso pensar não tenha efeito. [...] A permanência não seria externa, no sentido aqui usado, se sua influência se restringisse a apenas um indivíduo. Tem de ser algo que afete, ou que pudesse afetar, a todo o homem. A partir dessa passagem, podemos aferir que as crenças fixadas por tal método são formadas não a partir de desejos individuais ou mesmo às aspirações subjacentes a determinadas instituições ou doutrinas, mas pelo diálogo com eventos no e do mundo que nos convidam a mudar as nossas crenças e condutas. No entendimento de Peirce, há um estado de coisas no mundo que possui permanência e que independe de nossos desejos ou mesmo da representação que dele se possa fazer, estado esse que ele denominara ‘realidade’10. As crenças fixadas pelo método científico, vale ressaltar, não são tipos de crenças exclusivas de cientistas, mas de todos os seres passíveis de aprenderem com as suas respectivas experiências no mundo. Na mesma direção argumentativa, conforme ressaltado por Ibri (2020, p. 237), “Animais e plantas não podem cristalizar suas condutas, sob pena de perecerem”. Dito de outro modo, outros seres são também capazes de balizar as suas respectivas condutas a partir da alteridade dos fatos. Os eventos no mundo convidam o indivíduo a corrigir a própria conduta, O conceito peirciano de realidade é desenvolvido e analisado com maior detalhamento e profundidade em Ibri (2015), Cap. 2. 10 332 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio afinando sua ação através da alteração de hábitos em face de sua alteridade (GONZALEZ et al. 2018). Há, no entanto, inúmeras razões para que o indivíduo seja incapaz – ou mesmo tenha grandes dificuldades - de constituir uma crença através do método científico, dentre elas podemos destacar a incorporação, de longo prazo, de normas e regras de instituições religiosas, familiares, bem como a incorporação de certas narrativas (como aquelas subjacentes, por exemplo, aos contos de fadas e aos mitos) que, de alguma forma, moldam os modos pelos quais os indivíduos sentem e percebem a si próprios no âmbito de seus contextos de interações. Para tentarmos ilustrar, de forma sintetizada, correlações possíveis entre as formas de fixar crenças com o filme ‘Noites de Cabíria’, pensemos, por exemplo, nos golpes vivenciados pela personagem principal em sua saga pela busca da felicidade – que ela associa ao amor ideal. Os comportamentos de seus pares amorosos podem, em nosso entendimento, ser tomados como fatos no mundo, fatos esses que indicializam certos padrões regulares relativos às suas respectivas crenças e condutas. Esses mesmos comportamentos, vale lembrar, não dependem dos desejos ou mesmo das representações fantasiosas que Cabíria possa deles fazer. No caso de Cabíria, ela vivia fortemente a crença de que o casamento seria capaz de conduzi-la à felicidade e mudança de vida. A aposta cega em tal crença, responsável por fazer com que ela se negasse a considerar qualquer indício em contrário, conduzia Cabíria a hábitos de conduta que a levaram a situações limite de perigo e desamparo econômico e emocional. Esse é o caso, por exemplo, dos constantes roubos de seu dinheiro – realizados pelos seus pares amorosos - e com o seu quase afogamento no rio Tibre. A repetição constante de condutas que negam um dado fato no mundo, por seu turno, evidenciam uma dificuldade patente de mudança de hábitos conduzidos pela aprendizagem com a experiência. A conduta baseada na negação dos fatos, no caso analisado, aproxima-se, sobremaneira, a tipos de crenças fixadas por tenacidade, autoridade, e a priori, por exemplo. Por fim, indicamos que o aparato conceitual peirciano mostra-se profícuo na identificação de hábitos e crenças que subjazem determinas | 333 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) condutas. Conforme aludido pelo próprio Peirce (2008, p. 57): “Às vezes, a força do hábito fará com que um homem se agarre a velhas crenças, mesmo depois de estar em condições de ver que elas não possuem bases corretas”. Entendemos que talvez essa seja uma das principais causas que dificultam, aparentemente, a mudança de conduta não apenas de nossa personagem principal, mas de grande parte da humanidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Parece-nos que um dos argumentos principais do filme transita na hipótese de que a ilusão desempenha um papel importante na dinâmica de manutenção da integridade psíquica – e, por que não, física - dos indivíduos. N’ O livro dos sonhos, de Fellini (2019) (apud ARGENTIERI, 2019, p. 22), livro no qual ele narra e desenha os sonhos que tivera, Fellini afirma que “[...] o ser humano não consegue suportar a realidade por muito tempo”. Tal afirmação parece fundamentar a hipótese de que um dos argumentos possíveis do filme seja uma espécie de elucidação das dimensões positivas da ilusão e do sonho, e uma espécie de elogio à ficção em vida. A ilusão, no caso da narrativa proposta por Fellini em ‘Noites de Cabíria’, parece cumprir um papel paradoxal, como, por exemplo, o da manutenção do desejo de persistência de vida, e de luta pela vida, mas que, contudo, levada ao limite, também pode conduzir à morte, ou a situações de riscos iminentes, pela recusa da perda do encantamento pelo mundo, pelas pessoas, e por si próprio. A dimensão do sonho também aparece inúmeras vezes como nos momentos de fruição artística através da dança, e do maravilhamento sentido em situações ordinárias, como são os casos, por exemplo, em que Cabíria dança o mambo no ponto de prostituição com um rapaz que lá se encontrava, ou mesmo com Alberti Lazzari, momentos esses capazes de suprimir as humilhações e desventuras vividas pela personagem, situações essas, inclusive, em que ela desdenha e enfrenta os olhares de desaprovação à sua roupa, com, dentre outros, o clássico bolero de penas de galinha. Tais momentos, em nosso entendimento, ilustram o poder redentor da 334 | Cinesofia: a sétima arte em devaneio arte, que Fellini afirma acreditar ser “[...] a possibilidade de transformar o fracasso em vitória, a tristeza em alegria”. Sendo a “Arte [...] o [próprio] milagre” (FELLINI, 2019 apud BRUNETTA, 2019, p. 16). Embora a arte possua um poder redentor, assim como o sonho ou a ficção, talvez o grande problema entre o entrelaçamento entre sonho e vida seja a perda dos limites do real, desconsiderando os choques de alteridade que a experiência indica, como a necessidade de reajustar condutas e ideais, em face da possibilidade de aprendizagem com a experiência – o que, como vimos, encarnaria o tipo de possibilidade de aquisição, no vocabulário peirciano, de crenças através do método científico. Embora não negligenciemos o papel da ilusão nas dimensões de sobrevivência individual e coletiva, tida como uma espécie de escudo protetor em face de uma verdade dura e incessante, é forçoso considerar que essa admissão nos lança em um paradoxo irreversível: se, por um lado, a ilusão de um amor ideal correspondido é o que temporariamente salva Cabíria da dor de uma vida limitada à brutalidade de suas vivências cotidianas, por outro, é essa mesma ilusão que, coadunada a diversas dificuldades de ordem da estrutura socioeconômica, aprisiona-a e limita o seu campo de ação. Em suma, trabalhamos a ideia de que há elementos muito antigos da construção coletiva de hábitos que forjam modos de ser, sentir e agir. Há hábitos de sentimento que são difíceis de serem quebrados, ainda que em face da existência da dureza de fatos que nos sugere a necessidade de mudanças de conduta que nos habilitem a viver novas experiências. A conduta de Cabíria em face dos acontecimentos repete-se incessantemente em virtude de um círculo vicioso de hábitos, não apenas no âmbito do individual e amoroso (que, conforme vimos, trata-se também de uma longa construção ao longo do tempo), como também no da repetição de situações produzidas por uma estrutura social. A conduta de repetição da personagem não se limita apenas a ela, mas a uma grande maioria que se vê na pele de Cabíria, e com ela se solidariza, como um reflexo de si próprio no espelho, reconhecendo as mesmas mazelas interiores e coletivas vivenciadas pela personagem principal. Por fim, na cena derradeira, após entregar, pela segunda vez, os seus bens a um falso Deus do Amor, Cabíria ainda se vê envolta em fantasias, | 335 Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira Gabriel Debatin (Org.) metaforizadas pelos felizes jovens que a acompanham em uma caminhada, o que alude à possibilidade de os sonhos ainda cantarem e sorrirem para ela, que, num esforço hercúleo, tenta retribuir com um sorriso emoldurado por prantos contidos e expressão retorcida pela dor. Conforme o título da música de Nino Rota presente na cena final sugere - ‘Ma la vita continua’ -, poderíamos acrescentar que, com a vida, continuam os sonhos e as ilusões. REFERÊNCIAS ARGENTIERI, S. The Filmmaker’s Nightmares. A misleading ‘Master Path’ for the Unconscious mind. In: TOFFETI, S (ed.). The Book of Dreams. New York: Rizzoli, 2019. p. 21-24. ANDERSEN, H. Contos de Hans Christian Andersen. Tradução de Silva Duarte. São Paulo: Paulinas, 2011. APULEIO, L. O asno de ouro. 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Paulo, 2018. | 337 338 | SOBRE O LIVRO CATALOGAÇÃO Telma Jaqueline Dias Silveira CRB 8/7867 NORMALIZAÇÃO Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino CRB - 8/8292 Amanda Andrade Vilela da Silva CAPA E DIAGRAMAÇÃO Gláucio Rogério de Morais PRODUÇÃO GRÁFICA Giancarlo Malheiro Silva Gláucio Rogério de Morais ASSESSORIA TÉCNICA Renato Geraldi FORMATO 16 x 23cm TIPOLOGIA Adobe Garamond Pro Papel Polén soft 70g/m2 (miolo) Cartão Supremo 250g/m2 (capa) TIRAGEM 100 IMPRESSÃO E ACABAMENTO OFICINA UNIVERSITÁRIA Laboratório Editorial labeditorial.marilia@unesp.br 2022 "A necessidade de se pensar o cinema do ponto de vista da filosofia está vinculada à urgência de reconquista do sentido mais fundamental do filme na vida contemporânea. Decorridos mais de um século depois da invenção do cinema, é possível dizer, sem maiores rodeios, que o filme, de um modo geral, caiu nos últimos tempos em uma espécie de crise. É como se, passados mais de cem anos das primeiras experiências cinematográficas, a pergunta pela essência do cinema se fizesse mais urgente do que nunca." ISBN 978-65-5954-221-5