16º Congresso Brasileiro de Assistentes
Sociais
Tema: “40 anos da “Virada” do Serviço Social”
Brasília (DF, Brasil), 30 de outubro a 3 de novembro de 2019
Eixo: Serviço Social, Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional
Sub-Eixo: Ênfase em Trabalho Profissional
JUDICIALIZAÇÃO DAS DEMANDAS SOCIAIS: REFLEXÕES ACERCA DA
INTERVENÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NO ESPAÇO SOCIOJURÍDICO
Karina da Silva Rocca1
Keli Regina Dal Prá2
Regina Célia Tamaso Mioto3
Carolina Rodrigues Costa4
Resumo: O artigo apresenta o debate da judicialização das demandas sociais no âmbito da
seguridade social. O texto é um ensaio teórico, que versa sobre o Estado, Sistema de Justiça,
Judicialização e Família. Objetiva analisar o “fenômeno” da judicialização no âmbito das demandas
sociais postas à Vara de Família da Comarca de Florianópolis e a intervenção do Serviço Social neste
espaço sócio ocupacional.
Palavras-chave: Estado. Sistema de Justiça. Judicialização. Família. Sociojurídico.
Abstract: The article presents the debate on the judicialization of social demands in the social security
field. The text is a theoretical essay, which the debate on the State, Justice System, Judicialization
and Family. Its purpose is to analyze the "phenomenon" of the judicialization in the context of the
social demands placed on the Family Court of the District of Florianopolis and the intervention of the
Social Service in this space occupational partner.
Introdução
Considerando a importância do debate acerca da crescente intervenção do Poder
Judiciário nas demandas sociais, torna-se desafiante tecer reflexões que situem o contexto
da judicialização e, sobretudo, compreender como o Serviço Social vem sendo chamado a
intervir junto às famílias com ações processuais em andamento, principalmente a partir de
demandas que compõem o tripé da seguridade social (assistência social, saúde, previdência
social). Nesta temática, diversas questões são transversalizadas ao passo que podemos
identificar as refrações da questão social5 no âmbito das relações sociais, os conflitos que
permeiam estas famílias e quais políticas públicas esta população vem tendo acesso ou
1
Estudante
de
Graduação,
Universidade
Federal
de
Santa
Catarina,
E-mail:
karina.rocca12@gmail.com.
2
Professor com formação em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina, E-mail:
karina.rocca12@gmail.com.
3
Professor com formação em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina, E-mail:
karina.rocca12@gmail.com.
4
Profissional de Serviço Social, Tribunal de Justiça de Santa Catarina, E-mail:
karina.rocca12@gmail.com.
5
“A questão social se expressa pelo conjunto de desigualdades sociais engendradas pelas relações sociais
constitutivas do capitalismo contemporâneo.” (YASBEK, 2008, p.5).
2
não. É neste cenário que as assistentes sociais realizam suas intervenções, num espaço
institucional contraditório e hierarquizado como o Judiciário, em que a responsabilização e
culpabilização acabam, por vezes, compondo o conjunto de diretrizes do Estado.
O presente trabalho busca analisar o “fenômeno” da judicialização no âmbito das
demandas sociais postas à Vara de Família da Comarca de Florianópolis, ao passo que
vislumbra discutir as particularidades da intervenção do Serviço Social neste espaço sócio
ocupacional.
As problematizações acerca do tema fazem parte de uma pesquisa mais ampla
intitulada: “As Representações ao Sistema de Justiça Catarinense, a partir do Ministério
Público e de seu Prosseguimento no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no que se
Refere à Efetivação dos Direitos Sociais Básicos no Âmbito da Família e Infância” que tem
financiamento através da Chamada Universal MCTIC/CNPq n.º 28/2018.
Apresenta-se um recorte desta pesquisa mais ampla, que se caracteriza como
ensaio teórico, resultado de revisão bibliográfica que resgata o debate sobre o Estado,
Sistema de Justiça, Judicialização e Família, bem como o material coletado no estágio em
Serviço Social realizado no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
Nesta direção, o texto está organizado de forma a contemplar, primeiramente, a
discussão acerca do Estado, destacando a concepção materialista dialética desta categoria
relevante para compreensão da totalidade do Sistema de Justiça. Após este tópico, nos
propusemos fomentar um resgate teórico sobre a judicialização, conceituando tal
“fenômeno” e situando suas dimensões no âmbito das famílias e das demandas sociais. Por
fim buscamos estabelecer uma discussão sobre as intervenções da profissão realizadas no
contexto sócio jurídico, traçando conexões sobre o exercício profissional nas Varas de
Família a partir da experiência de estágio realizada no TJSC.
Considerações acerca do Estado e Sistema de Justiça
A fim de compreendermos a dimensão política institucional a qual o presente
trabalho situa-se é necessário que tomemos como horizonte inicial a estrutura organizativa
do sistema de justiça brasileiro. Preliminarmente, é conveniente resgatar a noção histórica
imbuída na categoria Estado, tendo em vista identificar a concepção que o trabalho priorizou
para fundamentar suas reflexões, considerando que o sistema de justiça abarca o contexto
amplo da instituição estatal, de forma a lhe conferir direcionamento político e ideológico.
Cabe destacar que as concepções acerca da conceituação desta categoria estão longe de
serem homogêneas, possuindo diversas interpretações que divergem entre si; tampouco
serão definições dotadas de “verdade absoluta” assim como assevera Pereira (2009, p.7),
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ao afirmar que o Estado “além de ser um conceito complexo, é um fenômeno histórico e
relacional”.
Ao propor fomentar uma discussão acerca da judicialização das demandas sociais
no âmbito da Vara da Família, tomamos como fundamental retomar o entendimento marxista
a respeito de Estado, a fim de situar conceitualmente esta categoria de natureza complexa e
contraditória. Também julgamos relevante estabelecer diálogos com a perspectiva
gramsciana, a qual tem por matriz de sua fundamentação o materialismo crítico dialético,
possibilitando uma densa análise sobre a sociedade e as interfaces com a esfera pública.
Inicialmente, Marx identificou a categoria Estado como uma expressão alienada da
sociedade civil, apontando o ser humano como essencialmente comunitário. Esta
concepção foi se complexificando ao passo que os movimentos históricos foram
transformando a sociedade, e o autor aperfeiçoando suas pesquisas teóricas analíticas.
Deste modo, o autor irá se debruçar sobre a análise da superestrutura jurídico política que
se edifica sobre a infraestrutura econômica, estabelecendo cada vez mais a crítica sobre o
conceito de Estado. (BATISTA, 2016)
O Estado vai assim tornar-se a forma política de organização da burguesia, que
toma posse, se apropria, para assegurar a exploração econômica do proletariado. A
democracia não será mais então vista como uma verdade em si, mas denunciada
como uma representação ideológica, a ideologia jurídica do “Estado de direito”,
como a forma que toma a supremacia econômica e política da classe burguesa nas
sociedades capitalistas modernas. (HERRERA, 2011, p.75)
Conforme a teoria marxista, o Estado e as relações jurídicas “não podem ser
explicados por si mesmo, nem pela chamada evolução geral do espírito humano: estas
relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência” (MARX 1979
apud VASCONCELOS; SILVA; SCHMALLER, 2013). Desta maneira, o pensador
considerava que as relações sociais, assim como a representação do Estado, tinham sua
gênese na materialidade e na concretude da realidade do modo de produção vigente.
Podemos destacar ainda que o Estado, enquanto categoria histórica insere-se num campo
de disputa, ao passo que carrega a função de “manutenção da ordem social” (MARX, 1999,
p. 15 apud VASCONCELOS; SILVA; SCHMALLER, 2013). Esta perspectiva fundamenta-se
na ideia de que a estrutura estatal não está desvinculada da reprodução social de classes,
sobretudo pela sua função social de representação dos interesses comuns. Todavia, tais
interesses não dizem respeito apenas a uma classe, em razão do Estado ser uma
“instituição constituída e dividida por interesses diversos, tendo como principal tarefa
administrar esses interesses, mas sem neutralidade” (PEREIRA, 2009, p.9).
Nesta toada, as contribuições gramscianas objetivaram ampliar a análise marxista
acerca do Estado, pois ainda que buscasse defender o caráter classista do poder estatal,
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Gramsci observou que algumas demandas das classes subalternas aos poucos foram sendo
incorporadas pelo Estado, demarcando de fato este espaço contraditório de disputa. Assim,
foi desenvolvido pelo autor o conceito de bloco histórico sob a perspectiva da
indissociabilidade das esferas constitutivas da realidade social, configurando-se como uma
“unidade entre a natureza e o espírito, entre vida e política (estrutura e superestrutura),
unidade dos contrários e dos distintos” (GRAMSCI, 1968 apud VASCONCELOS; SILVA;
SCHMALLER, 2013). Em síntese, Potyara Pereira (2009, p.10) identifica que “no contexto
capitalista, coexistem, nessa arena, interesses tanto dos representantes do capital, em se
reproduzir e se ampliar à custa do trabalho, quanto dos trabalhadores, em partilhar da
riqueza acumulada e influir no bloco no poder”.
Ao pensarmos o lugar que a justiça brasileira ocupa na esfera social, não podemos
secundarizar a reflexão que o próprio Poder Judiciário configura-se como parte estruturante
do Estado, carregando suas diretrizes e, sobretudo, caracterizando-se como um terreno
contraditório em que cada vez mais vem intervindo nas relações sociais. Pode-se então,
compreender que ele faz parte da superestrutura político-jurídica e ideológica contribuindo
para a reprodução do modo de produção econômico vigente, e ao mesmo tempo alimentado
por ele (BISNETO, 2011).
No contexto institucional, as contradições presentes no Poder Judiciário podem ser
identificadas de diversas formas. Partindo da concepção de que a legitimidade do campo
jurídico vincula-se a um projeto de Estado de Direito, é fundamental observar as quais
interesses o Poder Judiciário se inclina e a quem se destina, visto que nem mesmo este
espaço se isenta de correlação de forças. Justiça para quê e para quem?
É neste sentido que o Poder Judiciário se configura como a própria materialização
das diretrizes do Estado, estando este subordinado aos ditames de sua natureza
contraditória e reguladora. Trata-se, portanto de uma instituição legitimada pelo modelo de
sociedade vigente, operacionalizando suas ações como órgão legal e mediatizador da
resolução de conflitos de diversas ordens. Nesta direção, “as instituições não são meras
formas organizativas e operacionais da sociedade, são também aparelhos econômicos,
políticos ou ideológicos, que podem conduzir à exploração, à dominação e à mistificação.”
(BISNETO, 2011, p.65)
Ao identificarmos que o Estado brasileiro bem como sua forma operativa que é a
Justiça não são dotados de neutralidade e imparcialidade, podemos reconhecer que as
demandas sociais que se expressam neste âmbito são produzidas em instâncias
anteriores, no campo das relações sociais e das políticas sociais, ocasionando assim a
interferência direta do Estado na dinâmica de vida dessas famílias. Sejam por questões de
ordem familiar, sejam por impulso das reivindicações do âmbito das políticas sociais, a
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judicialização merece destaque no que tange seu crescente protagonismo na sociedade
contemporânea. Tem-se percebido, conforme se expressa na literatura, que o aumento
desmesurado de demandas sociais judicializadas são provenientes da ampliação do
acesso à justiça para efetivação dos direitos constitucionalmente garantidos, no entanto,
tais ações são transversalizadas pela ausência de respostas do Estado (na esfera
legislativa e executiva) perante as pautas da população. É neste aspecto que se
encontram as problematização do item a seguir.
Judicialização das demandas sociais: a família em foco
Sob o objetivo de contextualizar o “fenômeno” da judicialização no cenário brasileiro
atual, torna-se fundamental identificarmos que se trata de resultado de um processo
histórico, o qual vincula a intervenção do judiciário à regulamentação das relações sociais,
bem como, sua interferência na dinâmica familiar e até mesmo utilizando-se como
ferramenta de mediações ao acesso de direitos constitucionalmente legítimos e adquiridos
historicamente. Desta forma, é possível destacar que,
O processo de judicialização das questões até então tidas como exclusivas ou
predominantemente atribuídas aos Poderes políticos, é um processo histórico
compatível com os preceitos da ordem constitucional contemporânea, característico
do Estado Constitucional possuidor de uma Carta Fundamental que ostenta tantos
direitos como a brasileira. (LEAL; ALVES, 2014, p.14)
Vianna (1999) compreende o fenômeno da judicialização como um processo de
influência do Direito na contemporaneidade não restrito aos Poderes da República, todavia,
como parte transversal à regulação de questões que eram até então eminentemente
privadas, caracterizando como uma intromissão da esfera jurídica na organização da vida
social. Assim, a realidade brasileira nos possibilita analisar a constitucionalização dos
direitos sociais como um marco teórico e fático para o movimento que se denomina
judicialização das demandas sociais.
As demandas que chegam até o Poder Judiciário são atravessadas por questões
que envolvem o acesso à justiça, bem como as particularidades de âmbito familiar das
refrações da questão social. Assim, os determinantes socioeconômicos-culturais que são
parte constitutiva das relações estabelecidas por uma sociedade perversamente desigual,
irão permear diretamente as demandas atendidas pelo Judiciário (FÁVERO 2009, p.7),
bem como as influências familiares e as particularidades de cada caso. Nesta direção, “é
imprescindível considerar que “o caso” em estudo, não é “um caso”, ou seja, ele tem sua
condição singular, todavia a sua construção é social, histórica, cultura.” (FÁVERO 2009,
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p.5).
As ações judiciais que tramitam nas Varas de Família referem-se a pedido de
alimentos (provisórios ou definitivos); pensão; separação judicial consensual ou litigiosa;
investigação de paternidade; reconhecimento da multiparentalidade; divórcio litigioso;
anulação e nulidade de casamento; pedidos de tutela e curatela (provisórias ou
definitivas); processo de interdição; dissolução de união estável; pedido e transferência de
guarda. Diante destas demandas, torna-se fundamental ampliar nossas concepções
acerca das famílias, as compreendendo como sujeitos que se inserem em diversas
realidades sociais e possuem particularidades, as quais dialogam com a esfera
macrossocial e com os movimentos histórico-culturais de determinado período.
Nessa direção, entendemos famílias como espaços que sintetizam relações
contraditórias, conflitivas e complexas, ou seja, representam um reflexo de
transformações históricas, socioeconômicas e culturais. Consideramos ainda que a
intervenção da esfera pública na família deve levar em conta a correlação entre a
necessidade de aprofundamento do conhecimento da realidade social vivenciada
por estas famílias e seu direito à privacidade, em articulação com a proteção de
direitos e não com a perspectiva punitiva. Ocorre, porém que esse entendimento
colide com a lógica binária dos processos judiciais e a busca pela verdade na
perspectiva culpabilizante e inquisitorial, típicas dos processos judiciais da Vara da
Família. (GOIS; OLIVEIRA, p. 15)
Para além das demandas familiares judicializadas, é possível destacar que as
políticas sociais estão em constante presença nestes espaços, ao passo que é recorrente
a necessidade de articulação com a rede socioassistencial para desvelar a imediaticidade
das realidades, viabilizando assim conexões com a trajetória dessas famílias.
Outro aspecto importante trata-se da responsabilização familiar, sobretudo pela
ação interventiva do Estado, como anteriormente mencionamos. Segundo Mioto (2010) a
responsabilização possui uma estreita vinculação com a categoria cuidado, ou seja, as
famílias são responsabilizadas em primordial instância pelos cuidados dos seus entes em
qualquer circunstância. A problemática evidencia-se quando refletimos acerca das reais
condições destas famílias de assumirem tais encargos frente às fragilidades das políticas
sociais que compõem a Seguridade Social. Haja vista que as famílias em sua totalidade
necessitam de integral proteção social, a judicialização das demandas sociais situadas no
âmbito familiar, também são um espaço de reflexão acerca do acesso ou não desta
população às políticas sociais. Desse modo, “as políticas sociais públicas só podem ser
pensadas politicamente, sempre referidas a relações sociais concretas e como parte das
respostas que o Estado oferece às expressões da “questão social”, situando-se no
confronto de interesses de grupos e classes sociais.” (YASBEK, 2008, p.4).
Ainda se mostra relevante discutir que estas famílias (dotadas de diversidade,
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complexidade e movimento sócio-histórico) não se restringem em litígios que envolvem
apenas relações de parentesco, mas muito, além disso, inserem-se na materialidade da
reprodução das relações sociais moldadas por uma estrutura perversamente desigual. Em
que pese salientar que a instituição familiar em nada é caracterizada como uma figura
homogênea, pelo contrário, as famílias possuem classe, gênero/sexualidade, raça/etnia e
particularidades que desafiam cada vez as políticas públicas a darem respostas
qualificadas e respeitosas para com suas demandas.
As intervenções do Serviço Social no espaço sócio jurídico encontram-se neste
contexto, as quais se problema no tópico seguinte.
Intervenção do Serviço Social frente às Demandas Sociais Judicializadas
O Poder Judiciário historicamente, como aponta Bento (1999), caracterizou-se por
atuações
pautadas
sobre
as
“disfunções”
dos
sujeitos
que
apresentavam
“desajustamentos” familiares e sociais. Nesse sentido, as primeiras intervenções do poder
público no âmbito público (contexto familiar) serão marcadas pelo viés controlador de
disciplinamento desses sujeitos que, de alguma forma, não correspondiam às normas
estabelecidas pela sociedade. Aqui cabe ressaltar, que este direcionamento rígido do
Poder Judiciário tem foco em ações com a população menos favorecida, com o objetivo
de controle e vigilância da pobreza, carregando também julgamentos morais para com
estas famílias. Sobre a questão do caráter de criminalização da pobreza imbuído no
conceito de Estado Penal6, Wacquant (2003) analisa que serão por meio do aparato
policial e do Judiciário que políticas de controle da ordem irão legitimar a culpabilização
desses sujeitos, desta forma, mais uma vez o caráter de neutralidade e imparcialidade da
justiça é passível de questionamentos.
O que está dado como desafio e possibilidade aos assistentes sociais que atuam
nessa esfera em que o jurídico é a mediação principal - ou seja, nesse lócus onde os
conflitos se resolvem pela impositividade do Estado - é trazer aos autos de um
processo ou a uma decisão judicial os resultados de uma rica aproximação à
totalidade dos fatos que formam a tessitura contraditória das relações sociais nessa
sociedade, em que predominam os interesses privados e de acumulação, buscando,
a cada momento, revelar o real, que é expressão do movimento instaurado pelas
negatividades intrínsecas e por processos contraditórios, mas que aparece como
coleção de fenômenos nos quais estão presentes as formas mistificadoras e
fetichizantes que operam também no universo jurídico no sentido de obscurecer o
que tensiona, de fato, a sociedade de classes. (BORGIANNI, 2013, p. 423)
6
Conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Loïc Wacquant que identifica o aumento excessivo de ações de
disciplinamento da população pobre em detrimento do Estado social de proteção, frente à crise do capital a partir
de 1990.
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O espaço sociojurídico refere-se ao trabalho profissional desenvolvido diretamente
com o Sistema de Justiça, composto por Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria
Pública, Sistema das Medidas de Proteção, Sistema de Execução das Medidas
Socioeducativas, Sistema de Segurança Pública, Sistema Prisional e as redes de defesa,
promoção e proteção do Sistema de garantia de Direitos. (GOIS; OLIVEIRA, 2019).
É neste contexto, que a experiência de estágio supervisionado em Serviço Social
na Vara de Família do TJSC pode sugerir diversas inquietações, as quais deram origem a
estes apontamentos. É por meio dos documentos que integram um processo judicial
(pareces sociais, relatórios, laudos e estudos complementares) que as profissionais
desenvolvem uma atuação pautada em orientações, articulações e encaminhamentos à
rede, contatos com a rede familiar e fortalecimento com organizações de defesa dos
direitos sociais (FÁVERO, 2009).
Estas intervenções com as famílias são permeadas diretamente pela natureza
institucional conservadora, anteriormente mencionada, ao passo que “escapar” desta
dinâmica punitivista e responsabilizadora constitui desafios para a categoria profissional
que atua na interface do acesso à justiça. Aqui destacamos que embora a principal
atribuição das profissionais neste espaço seja oferecer subsídios ao magistrado nas
decisões judiciais, o olhar atento para estas demandas torna-se crucial ao situarmos
tamanha responsabilidade das intervenções, que em sua maioria, são determinantes nos
rumos destas famílias.
Diante disto, temos também como grande desafio a efetiva materialização do
Projeto Ético Político da profissão neste espaço de correlação de forças, considerando que
os objetivos institucionais não podem ser confundidos com os objetivos do Serviço Social,
os quais carregam a intencionalidade da ampliação dos direitos sociais sob a perspectiva
da liberdade e justiça social, como versa nosso Código de Ética. (BISNETO, 2011).
O redimensionamento dessa ação profissional na perspectiva crítica significa o
rompimento com uma perspectiva pautada na individualização dos problemas
sociais no momento em que a hegemonia da lógica neoliberal insiste na redução do
papel do Estado no âmbito da proteção social e recoloca a família como instância
máxima de proteção social. Significa também a afirmação do compromisso com os
princípios do Código de Ética da profissão que postula a defesa intransigente dos
direitos humanos, a ampliação e consolidação da cidadania, o posicionamento em
favor da equidade e da justiça social. (MIOTO, 2009, p. 17).
Portanto, a intervenção profissional frente à judicialização das demandas sociais
está atrelada ao direcionamento hegemônico da profissão, exigindo cada vez mais
posicionamentos que desloquem a figura da família do espaço da culpabilização para o
espaço da proteção.
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Indicações conclusivas
A temática da judicialização das demandas sociais tem sido um ponto de pauta nas
discussões da categoria profissional ao passo que este “fenômeno” tem se apresentado com
mais expressividade na sociedade brasileira dos dias atuais. Centrar esforços em desvelar o
universo destas expressões permanece um grande desafio, sobretudo pela relevância e
emergência do tema no que se refere o trabalho com as famílias no espaço sócio jurídico.
Estabelecer conexões com a dimensão do Estado frente às demandas judicializadas
situa o debate num contexto crítico mais amplo, que vai além da perspectiva individualizante
dos “problemas sociais”, mas confere às estas demandas historicidade política. A discussão
acerca das famílias é extensa, todavia o que se pretendeu neste trabalho foi fomentar um
debate no sentido de problematizar, de uma forma geral, o movimento que estas pessoas
vêm fazendo ao recorrer ao Poder Judiciário na busca de resolutividade para suas
demandas.
Assim, ao longo das inquietações buscamos enfatizar o quanto a interventividade do
Estado, sob a forma da justiça, permeia tantas demandas sociais advindas dos litígios
familiares quanto são transversalizadas pelas lacunas da (i)responsabilidade estatal,
tornando nítida a fragilidade das políticas públicas, mesmo com a legitimidade do aparato
legal que regulamenta e garante suas ações. Neste ponto, nos deparamos com a
responsabilização das famílias e culpabilização por suas condições, realidade que surge
como desafio às Assistentes Sociais que lidam cotidianamente com as complexas
demandas familiares no espaço sóciojurídico. Este cenário coercitivo e controlador do
sistema de justiça, determina que o Serviço Social esteja num terreno contraditório e,
sobretudo, que lance mão de estratégias politicamente pautadas na garantia de direitos da
população usuária sob o horizonte da materialização do Projeto Ético Político da profissão.
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