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REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 189-206 RACISMO PRISIONAL: CRÍTICA ÀS POLÍTICAS CARCERÁRIAS NO EXTERMÍNIO DE CORPOS NEGROS NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS PRISON RACISM: CRITICISM TO PRISON POLICIES IN THE EXTERMINATION OF BLACK BODIES IN BRAZIL AND UNITED STATES Em memória ao George Floyd (Black lives matter) Artigo recebido em 07/10/2020 Revisado em 24/11/2020 Aceito para publicação em 28/11/2020 Arménio Alberto Rodrigues Doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia.&. Cursou disciplina de Direito Público e Privado na Universidade de Coimbra, nas disciplinas de Direito da Segurança social e Direito de Propriedade Industrial. Atualmente, terminando o curso em Governança global no programa EU-South American School- FGV Jean Monnet Centre of Excellence. Autor do livro: a dimensão global do tráfico humano. Membro do Grupo de pesquisa em políticas públicas e Direito Administrativo- LEDAC. Membro e ativista dos direitos humanos na Associação Moçambicana dos Advogados Cristão. Atualmente trabalha com o Direito Constitucional e Internacional. Possui graduação em Direito pela Universidade Zambeze (2016). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos fundamentais em África, direitos humanos; decisões políticas do Estado, processo de constitucionalização dos países africanos e tráficos de pessoas. RESUMO: O presente artigo aborda de forma crítica a instrumentalização da prisão, enquanto um instrumento manipulado pela branquitude, no controle dos corpos negros, viabilizado pelo discurso da criminologia ontológica, em países como Brasil e EUA, o que tem surtido efeitos nefastos no extermínio da população negra. Nestes termos, o artigo procura relacionar o fenômeno da escravidão vivenciada no continente africano, que também foi instrumentalizada para a captura dos escravos, e o silenciamento dos líderes políticos, que reivindicavam contra os atos escravocratas da supremacia branca. Hodiernamente, a prisão continua cumprindo a mesma função racista institucional, o que tem contribuído com a exploração da força de trabalho e extermínio negro, enfim, a marginalização da população negra, à qual é negada o exercício da cidadania, sendo impedida do desenvolvimento da autonomia e a negação de vários direitos constitucionais em virtude do racismo ocasionado pelo sistema prisional. Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 190-206 PALAVRAS CHAVES: Racismo Prisional; Escravidão no continente africano; exploração e extermínio negro; Cidadania negra. ABSTRACT: This article addresses critically the instrumentalization of prison, as an instrument manipulated by whiteness, without control of black bodies, made possible by the discourse of ontological criminology, in countries such as Brazil and the USA, which has had harmful effects on the extermination of the black population. In these terms, the article seeks to relate the phenomenon of slavery experienced in the African continent, which was also instrumentalized for the capture of slaves, and the silencing of political leaders, who claimed against the white supremacist acts of slavery. Today, the prison continues to fulfill the same racist institutional function, which has contributed to the exploitation of the workforce and black extermination, and marginalization of black population, for whom is denied the exercise of citizenship, being forbidden from the development of autonomy and denied various constitutional rights due to racism caused by the prison system. KEYWORDS: Prison Racism; Slavery on the African continent; black exploration and extermination; Black citizenship. SUMÁRIO: Introdução. 1 Uma perspectiva histórica do sistema prisional europeu e a escravidão na África. 2 Políticas carcerárias no brasil e racismo. 3 A instrumentalização racial da prisão e o sistema de justiça. 4 Capitalismo, privatizações das prisões e o racismo. 5 O recente caso: George de Floyd. 6 A negação da cidadania aos corpos negros pela prisão. 7 A escravidão no passado e prisão no presente. Conclusão. Referências. INTRODUÇÃO O último Anuário de Segurança Pública no Brasil de 2019 registra o aumento do encarceramento dos condenados transitados em julgado e presos provisórios, especialmente o encarceramento feminino, em que mulheres negras representam 63% deste contingente carcerário sob o controle prisional. De acordo com os dados INFOPEN 2018, o Sistema de Informações Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro, vinculado ao Ministério da Justiça, demonstra que o encarceramento feminino vem registrando números alarmantes, no tocante Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 ao REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 191-206 recrudescimento emergente das mulheres, particularmente as negras, que são presas por razões de tráfico de drogas. Numa análise comparativa do encarceramento da população negra nos Estados Unidos, vislumbram-se os mesmos dilemas do racismo prisional, que se repete em mesma proporcionalidade. No entanto, os EUA são um dos países com maior índice de população carcerária no mundo, estimada em 2,6 bilhões de pessoas, cuja percentagem maior abrange a população negra, que representa 37% dos presos nos presídios americanos. Sendo que as pessoas negras nos EUA abrangem cerca de 13% da população, pois os homens negros são encarcerados seis vezes mais se comparados com o homem branco, e cada vez mais propensos à aplicação de pena capital. A partir desses dados, urge compreender o fenômeno do racismo prisional realizado por meio de controle dos corpos negros, amparados pelo sistema de justiça criminal que opera sob as estruturas e infraestruturas funcionais seletivas, segregatícias, exploratórias, e que atua como arma de reafirmação da supremacia racial branca, dinamizando o extermínio da população negra nos países multirraciais como Brasil e Estados Unidos marcados pela massificação do racismo estrutural e institucional imbricado nas relações sociais cotidianas. O presente artigo tem como objetivo discutir o fenômeno do racismo prisional, a partir de uma abordagem histórica, correlatando à escravidão vivida no continente africano, para a atual compressão simbólica do discurso racista e a função da prisão, enquanto tecnologia eficiente no aniquilamento da população negra, sob perspectiva de uma análise social e jurídica, com foco no atual papel da justiça criminal seletiva, que manuseia as armas para recrutar os corpos negros para encarceramento, partindo da leitura das fragilizadas políticas carcerárias do Brasil e dos Estados Unidos como o campo e objeto da presente análise. A pesquisa foi conduzida principalmente com base bibliográfica, embasada na consulta teórica em volta do tema e conduzida mediante uma abordagem empírica, com base nos atuais dados e registros documentais sobre as políticas carcerárias nos países mencionados. 1 UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DO SISTEMA PRISIONAL EUROPEU E A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA A prisão como um instituto punitivo era desconhecida na África, ou seja, o modelo de justiça punitiva na África, na idade pré-colonial, era centrado na vítima e não no acusado. Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 192-206 Baseava-se na compensação ou na indenização da vítima pelos prejuízos causados a ela, e não numa política voltada para o encarceramento de corpo humano. Pelo menos até o século XIV, antes da penetração europeia no continente africano, inexistiam estabelecimentos prisionais com caráter de privação de liberdade e isolamento da pessoa em um ambiente de encaixotamento marcado pela dor e desumanidade. (SARKIN, 2008) Com a invasão europeia nos séculos XV-XIX, foi importado para o continente africano um modelo de justiça prisional que foi um instrumento de dominação, exploração e subjugação racial, atrelado ao tráfico negreiro, no Atlântico e posteriormente no Índico, que confinava os corpos africanos em lugares precários, desumanos e insalubres. E consequentemente, dinamizou o sistema de produção capitalista europeia, baseada na mão de obra barata de pessoas escravizadas que eram capturadas e mantidas sob o controle prisional da força imperial colonial europeia e depois traficadas para outros países europeus e americanos. (SARKIN, 2008) Por outro lado, a prisão na África, entre os séculos XVI-XIX, foi instrumento para o silenciamento dos presos políticos que se contrapunham ao sistema colonial opressor, diferentemente de outros condenados brancos, que dispunham de direitos mínimos, como: alimentação, vestimentas e assistência médica, entre outros direitos necessários para a custódia de infratores brancos na prisão. Todavia, os africanos eram homens selvagens, inumanos, biologicamente aptos para suportar toda barbárie posta pelo colonizador. Sendo que estes não gozavam das mesmas condições para serem civilizados e, muitos menos, ressocializados. Neste âmbito, a prisão serviu para reafirmar o poder da supremacia branca contra os corpos negros, reforçando mecanismo de recrutamento de escravos e o silenciamento dos presos políticos que se manifestavam contrariamente ao sistema segregatício e escravocrata dominante. (MANDELA,1994) Porém, é imprescindível a apreciação histórica de como os presos políticos, que travaram lutas ferrenhas contra o sistema opressor colonial escravocrata, foram silenciados pela arma da prisão institucionalizada desde os primórdios da dominação colonial na África e que até aos dias atuais continua sendo usada e justificada pelas teorias criminais que alimentam o encarceramento em massa dos corpos negros, através do exercício do poder político hegemônico que faz da prisão um patrimônio institucional para o genocídio. O Nelson Mandela é o retrato histórico do silenciamento prisional manuseado pelo sistema de justiça da época, a qual manipulava e controlava as tecnologias prisionais como forma de evitar as reivindicações contra o sistema racial segregatício na África do Sul. Porém, vários presos políticos que se manifestavam contra a segregação racial e todo tipo de Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 193-206 dominação na África do Sul e em outras colônias portuguesas na África austral, foram mantidos cativos e mortos por supostos crimes políticos mascarados pelo poder dominante. (MANDELA, 1995) Nos Estados Unidos, o mesmo drama político do controle tecnológico prisional pesou sob Ângela Davis. O poder hegemônico criou uma imagem monstruosa dessa ativista política que sempre lutou e reivindicou os direitos civis dos negros, assim foi tida como terrorista e arrolada como uma das dez pessoas mais procuradas pela Polícia Federal Americana. Ainda na análise da escravidão e da prisão no continente africano,1 pode-se mencionar o sofisma do discurso da reabilitação e reintegração por via da prisão, que em regra, não abarcava o contingente populacional negro africano, concebido como incivilizável, de pessoas despidas de alma, comparadas aos animais, como foi categorizado pelo sistema colonizador, que fez da prisão um instrumento de opressão racial baseada em caraterísticas fenotípicas. Em vista disso, não se cogita em nenhum momento, separar a relação entre a escravidão e os racimos, que gozam de imbricamento social e que devem ser compreendidos de forma holística na contemporaneidade. (SARKIN, 2008) O racismo, compreende uma discriminação sistêmica, contra determinados grupos sociais em razão da sua cor de pele, etnia, religião ou raça. Que coloca um grupo em situações socialmente desvantajosas em detrimento de outros com caraterísticas dissemelhantes. Desse modo, o racismo reveste diferentes dimensões: estrutural, institucional e individual, portanto, a faceta discriminatória, assume diferentes compressões discursivas, que em cada processo histórico deve ser observado criticamente, olhando para os novos paradigmas sociais de dominação e segregação, que orientam os indivíduos, as instituições políticas e jurídicas, que atuam simbolicamente na impressão dos atos racistas, manuseados para reprimir certos grupos e classe sociais. (ALMEIDA, 2018) O racismo e a escravidão gozam das mesmas facetas socioculturais, em que o primeiro emerge do último, ou seja, o racismo se configura como sustentáculo ou supedâneo da neoescravidão, isto é, o mecanismo de perpetuação dos atos escravocratas. Porém, o que muda são as operações e estruturas lógicas sociais, enquanto suas legitimações jurídicas e 1 SARKIN, Jeremy. Prisões na África: uma avaliação da perspectiva dos direitos humanos. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 9, p. 22-51, dez. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452008000200003&lng=pt&nrm=iso> Acesso em: 18 de março de 2020. Sarkin faz alusão em seu artigo, demostrando como o sistema prisional foi instrumentalizado na era colonial na África para satisfazer o apetite capitalista europeu. Entretanto, o pano de fundo do seu artigo é demonstrar as violações de direitos humanos na África. Portanto, o mesmo não deixa de retratar o papel da prisão na época. Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 194-206 institucionais permanecem inertes. O poder é epicentro desta relação que controla o sistema de justiça e política governamentais, atrelada ao discurso criminológico de guerras contra as drogas entre outros relacionados à ontologia criminal. Hodiernamente, nos países multirraciais como Brasil e Estados Unidos, o encarceramento em massa da população negra é justificado pelo discurso de combate ao crime de tráfico de drogas, entre outros discursos da ontologia do crime. Neste contexto, vale lembrar o discurso instaurado pelo Presidente norte americano Richard Nixon, na década de 1970, quando declarou guerra contra as drogas. No entanto, como se sabe, os supostos criminosos de drogas são, por excelência, pessoas pobres e negras, o que leva a entender que esta guerra representa, simbolicamente, uma guerra contra essa população negra, que é encaixotada pelo encarceramento prisional e que objetivo final é o seu extermínio e exploração da força de trabalho, que opera através da lógica discursiva criminológica e funcional, assentada na manipulação prisional enquanto instrumento de imposição de ideologias e objetivos racistas. (GONÇALVES, 2015) A instrumentalização racial da instituição prisional e outras agências da justiça criminal vislumbram-se como instrumento apropriado pela branquitude racista para imposição da dor, marginalização, subjugação e exploração econômica, viabilizada pela política das crescentes privatizações das prisões que perpetuam os atos escravocratas, senão o racismo camuflado, o sucedâneo semântico e ontológico da escravidão, imposta no passado, e atualmente facilitada pelo domínio institucional da justiça criminal manipulada pela classe hegemônica dominante, a qual envia os corpos negros à prisão. E, por conseguinte, os aniquila ainda vivos, distante de serem incluídos no âmbito da cidadania social. 2 POLÍTICAS CARCERÁRIAS NO BRASIL E RACISMO Dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 demostram, de forma inequívoca, o Brasil como a terceira maior população prisional do mundo, superada pelos Estados Unidos, com mais de 2,1 milhões de presos, e China2, com mais 1,6 milhões de pessoas encarceradas. Os números no Brasil totalizam aproximadamente o universo de 726.354 de presos, 75% dos quais são pessoas negras, e no tocante às prisões femininas, 2 Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ano 13. 2019. Disponível <http://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/13-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/> Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 em: REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 195-206 estima-se no total 63% representada por mulheres negras. Porém, estas informações coadunam com as informações do INFOPEN 2018. A legitimação carcerária no Brasil não passa da mesma velha retórica sofismática de guerra contra as drogas, valendo-se da funcionalização seletiva do sistema de justiça criminal, que criminaliza e encarcera os corpos negros através de regras taxonômicas baseadas nas caraterísticas fenotípicas de determinados grupos, especialmente os melanodérmicos, que ao longo da história foram enxergados como corpos ontologicamente criminosos, e que podem ser reforçados por visão Lombrosiana, que pautou por taxonomização de certos grupos sociais, aptos para o crime. (ANDRADE, 1995) As políticas carcerárias no Brasil não constituem uma preocupação central do Estado, uma vez que estes espaços são ocupados por pessoas naturalmente criminosas, caracterizadas e estratificadas pelos fenótipos que lhe são biologicamente inerentes, que despreocupam o Estado na sua atuação. Presídios no Brasil são lugares que registram índices preocupantes de mortes, doenças contagiosas, linchamentos em massa, entre vários outros fenômenos que atentam a dignidade humana dos presos e que podem ser comprovados pelo relatório da ONU. Todavia, mesmo sem a legitimação normativa constitucional inerente à pena de morte no sistema brasileiro, as execuções e os maus-tratos continuam matando estes grupos, que, na maior parte, saem doentes, infectados por doenças crônicas como AIDS, cancro, tuberculose, etc. E que após o cumprimento da pena, a corporeidade desses indivíduos já se demostra colapsada. De toda sorte, este dilema camuflado constitui uma forma de aniquilação ou genocídio da população negra. Tendo em vista o dilema da inércia do Estado, no âmbito da efetivação dos direitos humanos nos estabelecimentos prisionais, vislumbra-se que isto não passa de uma ação proposital e um instrumento apropriado para elites racistas perpetuarem a escravidão, o genocídio e o silenciamento. No entanto, é de se estranhar e questionar, o descompromisso político do Estado, de não efetivação dos direitos humanos nos estabelecimentos prisionais compostos pela maioria da população negra, que permanece em ambiente marcado pela dor, excluída do corpo social e do exercício da cidadania social plena e ativa, que é legitimada pela política penal vigente, que reprime o crime através da imposição continuada da dor. E que, por outro lado, se vale da posição de poder e controle penal, para engendrar os atos racistas e genocida. No dizer de Anna Flauzina, sobre a justiça seletiva, racista e genocida que nutre o extermínio da população negra, o sistema penal é realmente um projeto que trabalha Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 196-206 flagrantemente para o extermínio da população negra, valendo-se de várias dimensões institucionais. (FLAUZINA, 2006). A prisão constitui um instrumento de excelência não somente de silenciamento, porém uma verdadeira artilharia sistemática de aniquilamento da população negra. As recentes imagens da prisão de Abu Ghraib, sob o comando dos EUA, atestam fielmente os massacres dos corpos negros, de como são alvos de vingança branca racista, que lincha, tortura, abusa, marginaliza os corpos negros. (RIAL, 2007) 3 A INSTRUMENTALIZAÇÃO RACIAL DA PRISÃO E O SISTEMA DE JUSTIÇA As diferenças, de raça, classe e etnia são categorias que permitem a distribuição de poderes existentes na sociedade. O controle das categorias dissemelhantes, em razão de caraterísticas fenotípicas, são fatores desta legitimação da opressão social, pois, há uma relação de solidariedade de grupos com traços semelhantes, o que gera pactos narcísicos que combatem os grupos opostos, neste caso, a população negra, que é a principal vítima desta solidariedade branca malévola. (ANDRADE, 1995) As instituições públicas ou estatais não estão inumes a estas categorizações sociais que funcionam à luz de parâmetros sociais herdados e reproduzidos, o que faz com que em lugares habitados por diferentes grupos multirraciais, alguns sejam oprimidos ou discriminados pelo grupo hegemônico. Esta premissa pode ser evidenciada na forma como os negros assumem poderes menos relevantes na esfera política, uma vez que não podem assumir posição de controle. O que acaba viabilizando e reafirmando a supremacia racial branca nestes espaços, no controle sobre os corpos negros, através da instituição prisional, amparada por estrutura de argumentação criminológica, baseada na ontologização do crime. O controle e reafirmação da hegemonia contra a população negra, especialmente nos países como Brasil e Estados Unidos, é sustentado, em primeiro lugar, pela força institucional que se encontra apoderada ou apropriada como um patrimônio da branquitude e, neste contexto, não se pode perder de vista o papel da instituição prisão, enquanto máquina comandada pela branquitude política que decide quem é traficante e quem é mero usuário; quem é o agressor e o mero infrator. Portanto, a distribuição de poderes desiguais, permite que o grupo hegemônico decida os destinos das categorias fenotípicas dissemelhantes. Nas palavras de Ângela Davis, que lembra o passado do povo afro-americano que teve que enfrentar a prisão da escravidão e, hodiernamente, a escravidão da prisão, ou por outra, Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 197-206 Davis3 realça como a prisão, tem sido instrumentalizada para aniquilar a população negra nos Estados Unidos mediante linchamentos e imposição de pena capital, que configura nova forma de opressão contra os copos negros. (DAVIS,2009) Neste processo, há o que designamos a instrumentalização patrimonialista hegemônica da prisão, que opera como um mecanismo de apropriação indevida da prisão, que consubstancia no controle e gerenciamento e administração pública das prisões para que esta satisfaça os apetites racistas da branquitude. A instrumentalização racial da prisão tem o sustentáculo nas teorias contemporâneas criminológicas, que naturalizam a tipificação criminal, engendrando a seletividade e segregação que atuam no meandro de um judiciário imparcial, munido de armas ideológicas racistas que a permite no manuseamento da política penal, podendo determinar os limites da moldura penal, com base em critérios parciais, isentos de neutralidade jurídica para com determinados grupos fenotípicos, os privando, deste modo, do exercício da cidadania, assim como o exercício de plena autonomia individual e coletiva . 4 CAPITALISMO, PRIVATIZAÇÕES DAS PRISÕES E O RACISMO O capitalismo, enquanto sistema econômico, político de acumulação e de geração de lucro, foi baseado na exploração de mão de obra de pessoas escravizadas desde seus primórdios, o que alimentou os grandes interesses imperialistas, o mesmo teve que subjugar, através de argumentos liberais, amparado pelo darwinismo social e a própria teoria da seleção natural, enquanto modelo de exploração capitalista, que justificou a dominação dos menos adaptáveis à natureza. (RODNEY,1982) Com a Revolução Industrial entre os séculos XVIII e XIX houve o aumento da procura de mão de obra e, neste período, a escravidão na África marcou o ápice de recrudescimento da exploração escrava. A prisão, atualmente, não exerce pura e exclusivamente o papel de controle e distribuição da dor sobre corpos negros presos, mediante a manipulação do sistema de justiça, todavia, a prisão tem liame lucrativo, dinamizado pela privatização das prisões, que não apenas controlam os corpos negros, mas alimentam a estrutura de produção de lucro através dos corpos encarcerados, como ocorre hoje nos Estados 3 Ângela Davis, em Democracia de abolição propõe uma teoria abolicionista da instituição prisão, observando criticamente o papel da prisão enquanto elemento estrutural que ampara o racismo e todas as formas de eliminação de raça. Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 198-206 Unidos, entre outros sistemas, que transformam o prisioneiro na força em produção exploratória. A mercantilização da força do trabalho dos presos vem crescendo na cadeia mercantil, a qual se apodera dos corpos encarcerados como mão de obra barata, usada como meio econômico do capital, ou seja, dos agentes corporativos. Correlatos à massificação da privatização das prisões no mundo, vem alterando significativamente o compromisso jurídico da reabilitação dos detentos e reintegração social, para uma política mercadológica e econômica com base nesses corpos capturados, reforçada pela ideologia racista que também mortifica e coisifica estes corpos no âmbito econômico. Vale lembrar que nos países multirraciais, como Brasil e Estados Unidos, a maior percentagem dos presos é de pessoas negras, marginalizadas pelo poder hegemônico, estruturalmente racista que, consequentemente, encarcera estes corpos sob as justificações criminológicas de guerra às drogas. O sistema de locação de mão de obra, que passou a vigorar no Sul dos Estados Unidos com aprovação de Black Laws, permitia que os presos fossem alugados ou arrendados por preços ínfimos desproporcionais ao trabalho servil que realizavam nas fazendas das elites brancas. O que fez com que com muitos negros livres fossem transformados em criminosos e, consequentemente, prisioneiros para atender as necessidades econômicas da elite racista dominante, agora preocupada com a exploração da mão de obra. (DAVIS, 2009). Ângela Davis ressalta que o sistema prisional nos Estados Unidos foi usado para maximização de lucro, por meio de exploração de mão de obra carcerária do povo negro, que enriqueceu a elite econômica branca dos Estados Unidos. (DAVIS, 2009) 5 O RECENTE CASO: GEORGE DE FLOYD A recente história traz a trágica morte do afro-americano, George de Floyd, sufocado por um policial branco, numa abordagem policial em que fora suspeito de fazer uso de notas falsas num supermercado na cidade de Minneapolis (EUA). Uma situação em que, por mais de cinco minutos, o policial ajoelhava-se sobre o pescoço de Floyd, o qual por sua vez implorava pela vida, dizendo ao policial que já não podia respirar, e este, sem piedade, continuou movido por sentimentos racistas e genocidas. Este ato cruel é o reflexo de uma construção social histórica que nutre o sistema penal, cumprindo a função da vigilância dos corpos negros e que tem como alvo a aniquilação Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 199-206 da população negra. Por um lado, o corpo policial e por outro, a máquina judiciária que continua combatendo e marginalizando a população negra nos EUA. Outro aspecto refere-se à aplicação da pena capital pelos órgãos administrativos da justiça nos Estados Unidos, um fenômeno preocupante que tem se mostrado tendencialmente racial e desproporcional aos presos brancos, como demostram as estatísticas relatadas por Erwin Chemerinsky. Este chega à conclusão de que há cinco vezes mais chances de um negro ser condenado a pena capital que um branco, ressaltando ainda que, para os mesmos tipos penais, as pessoas negras recebem penas com molduras penais mais elevadas, em detrimento das pessoas brancas, fato este verificado em várias sentenças nas quais os presos negros são condenados a 68.5 meses e os brancos, nos mesmos delitos, a 44.7 meses. (CHEMERINSKY,1995) Muitos casos comprovam o racismo prisional e judiciário no âmbito da administração das penas no sistema de justiça norte-americana, como aponta Erwin Chemerinsky ao fazer alusão à desproporcionalidade de penas de morte no tocante às pessoas negras. O autor faz uma análise do Estado do Alabama, onde os negros correspondem a 24 % da população e 43% corresponde à população branca. Todavia, 117 dos casos sobre a execução da pena capital diz respeito às pessoas negras. Na Filadélfia a população negra corresponde a 19% e estudos realizados na mesma cidade demonstraram que 26 pessoas negras foram executadas mediante a aplicação da pena capital, originada da decisão de um único juiz, sendo que as penas de morte abarcavam 92% a população negra. (CHEMERINSKY,1995) Um estudo realizado por Dallas Times Herald, no período de 1977 a 1984, constatou o universo de 11.425 casos de execução de pena capital. O autor chegou à conclusão de que o homicídio cometido contra uma pessoa branca potencializa três vezes mais a possibilidade de condenação por pena capital, o que não ocorre se for homicídio em que a vítima é uma pessoa negra. O mesmo sucedeu no Estado da Geórgia, onde 6.5% dos homicídios envolviam as pessoas negras como vítimas, porém há dez vezes mais possiblidade de aplicar a pena de morte se o homicídio for cometido contra uma pessoa branca, já quando a vítima for negra, em casos raros, se aplica a pena de morte. Em países como o Brasil, mesmo com ausência de tipificação legal constitucional sobre pena de morte, no âmbito normativo, não significa necessariamente que os presos ou detentos não estejam sujeitos à pena de morte. Ademais, como foi dito anteriormente, as prisões no Brasil, além de apresentar a superlotação, não dispõem de condições humanas de Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 200-206 saúde e alimentação que ensejem a continuidade da vida digna e segura, segundo as observações de segurança da ONU. Levando em consideração a população encarcerada no Brasil, que diz respeito às pessoas pobres, faveladas e negras, subsome-se que o Estado tem cumprido os seus objetivos de perpetuar a dor e o extermínio sobre estes corpos encarcerados. O recente Relatório da ONU, realizado por Birgit Gerstenberg, demostrou que o Brasil não tem apresentado condições que assegurem a dignidade humana dos presos, trata-se de estabelecimentos prisionais insalubres, sem condições de higiene e repletos de violações graves de direitos humanos, tais como a tortura, chacinas, entre outros atos que atentam contra a vida dos mesmos, fazendo valer, implicitamente, a pena de morte. A seletividade da justiça penal nos Estados Unidos, no âmbito da administração da pena capital, resulta do racismo imbricado nas intuições de justiça criminal que instrumentaliza as agências criminais como máquinas de extermínio de corpos negros, preferencialmente. As estáticas dos números apresentados no sistema americano revelam que existe uma ideologia racista, na seleção dos corpos que devem ser encarcerados. A questão da seletividade penal não constitui um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos e do Brasil, figura na lista dos países que continuam tratando como objetos ou coisificando os corpos negros, por via do aparelho institucional comandado pela branquitude. 6 A NEGAÇÃO DA CIDADANIA AOS CORPOS NEGROS PELA PRISÃO Na visão dogmática do Direito Penal, este constitui um ramo de direito que ocupa a função da última ratio, que traduz a ideia de que o direito penal só é chamado a intervir em última instância, quando outros ramos dos direitos não se demostrem suficientes para dirimir determinado fato jurídico. E neste sentido, a função da pena desdobra-se em várias perspectivas: a prevenção geral e especial negativa; a prevenção geral positiva e negativa; assentes na teoria da retribuição do crime cometido, ademais, a pena cumpre a função da ressocialização do indivíduo. (ADORNO, 1995) A sanção penal manuseada pelo sistema penal cumpre uma função seletiva, propositada aos objetivos e interesses da elite dominante, objetivando o extermínio de um grupo específico. Identifica grupos que serão vedados do direito ao exercício da liberdade. Portanto, o encarceramento em massa, de jovens negros no Brasil e EUA, constitui um fenômeno assustador que inibe aos jovens negros o acesso à educação, participação na vida Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 201-206 política do Estado, acesso ao trabalho, à saúde, entre outros direitos sociais básicos, que não podem ser exercidos por conta das prisões seletivas a estes corpos, que superlotam os estabelecimentos prisionais mantidos em condições precárias de desumanidade. A prisão não constitui apenas um instrumento de extermínio da comunidade negra, socialmente vulnerável e cidadão pobres. Porém, as políticas de encarceramento e imposição contínua da dor, obviamente inviabilizam o exercício da cidadania social, uma vez que jovens negros não podem participar do acesso pleno aos direitos sociais como a educação formal do Estado, pelo fato de corresponderem a uma comunidade ontologicamente perigosa e criminosa, que se encaixa perfeitamente no discurso de guerra contra as drogas. O vencido nesta guerra terá que arcar com o preço, e aí surgem as razões para o controle dos corpos negros, limitados de desenvolver a cidadania e autonomia, enquanto substratos fundamentais da dignidade humana. Além da limitação dos direitos sociais, são limitados os direitos civis e políticos, uma vez que, após a condenação, em alguns Estados americanos, o cidadão não goza do direito ao voto, assim como é vedado ao preso o direito de ser votado. Além do mais, há a questão da ficha suja, que é registrada nos documentos de identificação individual e mesmo depois de ter cumprido a pena, a ficha permanece intacta, demostrando que o indivíduo foi criminoso e, consequentemente, tem ignorado completamente o direito ao esquecimento deste crime. O status deste indivíduo é mantido neste sistema de cadastro nacional, que acresce ainda a questão da limitação de vários outros direitos civis e políticos. Portanto, limita-se a cidadania social e política da população majoritariamente susceptível à prisão. Neste sentido, o sistema prisional consubstancia-se no melhor mecanismo para perpetuar atos racistas e condenar uma comunidade ou um grupo social, que são limitados do direito ao acesso à educação, saúde, por via de encarceramento em massa, o que não difere da escravidão passada que negava às pessoas negras o status de cidadão ou pessoa e, de toda sorte, a escravidão é rejeitada atualmente apenas nos dispositivos legais, embora os resquícios ainda se façam presentes. O encaixotamento em gaiolas abandonadas pelo Estado, não difere da coisificação passada da escravidão. Não se pode falar da cidadania plena de jovens presos e transformados em criminosos perigosos da sociedade racista, tal como é nos EUA e Brasil, onde o racismo institucional e estrutural, viabilizado pela prisão, esbarra nos direitos básicos desta camada social. A cidadania nesta sociedade é representada pela relação de poder dos grupos subintegrados e sobreintergrado, o primeiro diz respeito aos que são excluídos do sistema, esses dificilmente podem ter acesso aos direitos, e o segundo, correlata-se aos grupos em que Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 202-206 a sua posição na sociedade viabiliza o acesso imediato aos direitos, estando na posição de incluídos. E nesta relação, não se pode falar em direitos de cidadania para corpos negros majoritariamente mantidos sob o controle do sistema de justiça criminal. (NEVES, 1994) Diante do silenciamento prisional, o que se chama de racismo prisional, é na verdade um sistema interligado de agência do Estado que corrobora para a marginalização destes corpos que, na lógica prática da vida, não podem escolher o trabalho ou vida profissional, ou outras escolhas importantes da sua vida pessoal. Esses corpos são silenciados em lugares sombrios como as prisões. A limitação do exercício da cidadania de corpos negros jovens e das mulheres negras representa um obstáculo ao desenvolvimento da autonomia individual, que se vê obstaculizada nestes espaços carcerários que não destroem unicamente a integridade física e psicológica destes sujeitos. No entanto, o desenvolvimento da autonomia dos mesmos fica limitado, uma vez que os espaços prisionais são lugares que não dispõem de condições mínimas para o acesso a outros direitos sociais. 7 A ESCRAVIDÃO NO PASSADO E PRISÃO NO PRESENTE No século passado, a escravidão foi legitimada sem nenhum questionamento moral de humanidade, sendo aceita até os anos de 1830, tendo sido normalizada como um fenômeno natural e social de organização social, afirmada por vários teóricos no mundo científico que propagaram a ideia de existência de raças inferiores em razão de outras raças superiores. (GOULD,1996) Uma das teorias que reafirmava a supremacia racial foi o determinismo científico biológico e geográfico, que advogou a exploração econômica e social do povo africano, reduzindo-o a um simples objeto de produção econômica. Portanto, a escravidão foi concebida como mais um fenômeno natural da sociedade, ou seja, a posição dos escravizados africanos merecia este papel social, sendo que, a sua condição biológica era favorável a tratamentos desumanos. (MOORE,2009) O darwinismo social foi imperioso para esta construção da imagem do homem negro ao longo da história, que corroborou com a ideia da sobrevivência dos mais fortes e subjugação dos menos adaptados à natureza. Legitimando o liberalismo econômico que incidiu na subjugação e exploração dos negros na África, entretanto, na contemporaneidade, o racismo é concebido como meras reclamações de pessoas que não têm nada a fazer, tidos Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 203-206 como choramingões e preguiçosos, que gostam do “mi mi mi”, e distante de ser observado como um problema social que precisa ser desfeito. Todas as narrativas racistas e escravocratas sempre foram e são frutos de algo pensado e posto para funcionar socialmente e não um fenômeno natural. Portanto, o racismo amparado pela prisão é um instrumento propício para o genocídio negro. A questão do encarceramento em massa, por meio de gaiolas conhecidas como prisões, ainda está longe de ser observado como máquina de extermínio. Impede o pleno exercício da autonomia dos negros em sociedade como no Brasil e nos EUA, que são estratificados pela classe e raça e que permite determinadas categorias assumirem o controle e sobrepor seus interesses racistas aos grupos socialmente diferentes. A legitimação da prisão, enquanto resposta ao crime cometido, embasa as teorias retributivas que respondem ao crime pela imposição de dor, tortura, suplício e pena de morte. São colhidas nos países de hegemonia racial, no entanto, o papel das prisões cumpre as mesmas funções do escravagismo do século passado. A prisão distribui dores aos corpos direcionados em mesmos moldes do passado, e atualmente amparados pelos programas políticos e arquitetados pelo discurso jurídico penal vigente. (FOUCAULT, 2001) Como argumenta Brady Heneir: from the prison of slavery to slevery of prison, ou seja, da prisão da escravidão à escravidão da prisão. Brady consegue extrair o papel instrumental exercido pela prisão, enquanto um instrumento eficaz para o extermínio e exploração negra nos Estados Unidos da América, sendo que o sistema prisional norteamericano compreende a função econômica da prisão, que constitui uma força de trabalho ou mão de obra barata. Ademais, um valor econômico e financeiro, que vai para empresas privadas que administram as prisões, controladas em sua maior parte pela branquitude. A escravidão passada permitia que um senhor branco pudesse comprar e adquirir para si um escravo, como se sua propriedade fosse, e este cuidava de exercer as atividades de produção econômica para o seu senhor. Todavia, a diferença hodierna é que existe a alteridade da lógica de apropriação do escravo que não pode ser objeto de um negócio jurídico, porém a prisão continua explorando e controlando estes corpos negros. (HEINER,2007). As teorias radicais sustentadas Günter Yakobs, do direito penal do inimigo, constitui um exemplo típico de apologia de destruição de seres humanos mediante tratamentos cruéis às não pessoas, ou seja, há pessoas que não gozam do status de cidadão, isto é, o inimigo, que não deve ser tratados como pessoa. Sendo que praticam o crime de forma reiterada, portanto, os traficantes de drogas estão incluídos nesta categoria de pessoas que não gozam de status de cidadão, e no final das contas, o não cidadão pertence às comunidades mais vulneráveis, com Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 204-206 certeza os negros, grupos alvos desta categorização legitimada pelas teorias criminológicas radicais, embora muito denunciada pelas criminologias críticas. (YAKOBS,2008). A legitimação do direito penal do inimigo em países como Brasil e EUA, constitui verdadeira apologia ao extermínio negro que conta com a população majoritariamente encarcerada. Enfim, a inércia estatal de não garantia dos direitos humanos nos presídios, pelo menos no Brasil, soa de forma nítida que “bandidos” encarcerados não são cidadãos. Neste âmbito, legitima-se a ideia de que o Estado não tem um papel garantidor dos direitos humanos para com essas pessoas não cidadãs, e que a punição mediante imposição da dor é legítima para com esses infratores sociais. A questão de garantia de direitos humanos nos presídios não constitui uma prioridade do Estado para com estes sujeitos. Para Michel Foucault, a prisão é um verdadeiro instrumento de controle que emerge da relação de poder. Esta racionalidade foucaultiana permite-nos diferenciar os grupos detentores de poderes em sociedades altamente estratificadas como Brasil. A posição de controle, nesta lógica dos grupos sociais detentores do poder socialmente construído, assume vantagens que viabilizam os objetivos da supremacia branca contra os grupos com caraterísticas étnicas fenotípicas opostas, através do patrimonialismo institucional, acessado pela hegemonia branca. Nestes países pode ser observado, através da manipulação das instituições públicas que servem para imposição de ideologias racistas, o amparo aos mecanismos de extermínio dos grupos negros através da legitimação discursiva criminológica de guerra contra as drogas. (FOUCAULT, 2001) CONCLUSÃO A prisão constitui, atualmente, o mecanismo eficaz para satisfazer o interesse hegemônico da branquitude racista. Por meio dela, instrumentaliza-se a prisão e todo aparato penal, perpetuando o preconceito racial de todas as formas possíveis, viabilizando o extermínio da população negra, por outro lado, manuseada pela dogmática penal criminológica, que recepciona o crime como uma realidade ontológica, ligada a determinados grupos fenotípicos. Assim como na história da escravidão, a instituição prisional esteve ligada ao encarceramento dos corpos negros, pois, atualmente, a prisão cumpre os mesmos objetivos de dominação racial, exploração econômica, opressão e o racismo, fazendo do negro, objeto excluído das prerrogativas sociais e econômicas, limitado do exercício da cidadania e autonomia, mediante cerceamento da liberdade através da prisão. Direito & Paz | São Paulo, SP - Lorena | Ano XIV | n. 43 | p. 189-206 | 2º Semestre, 2020 REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ. ISSN 2359-5035 p. 205-206 A prisão não só constitui resposta unívoca para o suposto crime de tráfico às drogas. Ela é um veículo eficiente para a perpetuação da marginalização da população negra, que outrora teve negada a sua humanidade através da imposição da força bruta e cruel e hoje pela prisão seletiva de corpos específicos, que atua dentro e fora da prisão, através de um círculo vicioso de punições à comunidade negra. Não restam dúvidas de que há uma apropriação e instrumentalização das intuições estatais, tais como o sistema prisional, policial e judicial, para perpetuação dos atos racistas e genocidas. REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal. São Paulo: Instituto da Mulher Negra, Relatório de pesquisa. Acordo NEV/ USP-Geledés , 1995. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, n. 30, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. 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