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OPEN ACCESS LETRÔNICA Revista Digital do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS Letrônica, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 1-11, jan.-dez. 2022 e-ISSN: 1984-4301 http://dx.doi.org/10.15448/1984-4301.2022.1.42997 SEÇÃO: APRESENTAÇÃO James Baldwin na era de Vidas Pretas Importam James Baldwin in the era of Black Lives Matter Norman R. Madarasz1 orcid.org/0000-0002-7574-3744 norman.madarasz@pucrs.br Introdução “A ilusão Americana não é somente que seus irmãos são todos brancos, mas que os brancos são todos seus irmãos”. (James Baldwin) Jonas Kunzler Moreira Dornelles1 orcid.org/0000-0003-2984-5456 jkdornelles@hotmail.com Recebido em: 6 mar. 2022. Aprovado em: 11 mar. 2022. Publicado em: 1 jul. 2022. “Como quer que se apresente, o poder de dominação e de exclusão é central na crença de ser branco, e, sem ele, “pessoas brancas” deixariam de existir por falta de razões”. (Ta-Nehisi Coates) Eu não posso sentir o medo que passa pelos dedos enquanto empurram o teclado para criar uma frase ou verso, em minha mente ao andar na rua, e muito menos no silêncio do meu lar, um silêncio equivalente a um sentimento de segurança de qual não posso duvidar. Reconheço que muitos sentem este medo por razão, por uma história. Sentem por causa de uma abordagem policial na rua, que se justifica por uma determinada cor de pele que se teria, assim como por agentes de segurança privada nos corredores dos institutos de ensino superior, em que não se teria nenhuma razão para estudar. Esta cor, certas pessoas insistem em chamá-la raça. Por causa desta designação, cresce a plausibilidade de que o papel que me protege do mundo afora e no qual alinham-se orações ritmadas, estruturadas, lindas, seja pulverizado por canetas feitas de balas performáticas, cujo conteúdo nada parece com uma tinta. Não há garantia alguma que ao abrir um livro intitulado The Fire Next Time, Entre o Mundo e Eu, A Origem dos Outros ou O Avesso da Pele, encontrarei os meios para responder a seus apelos, sequer escutar seus versos. Ninguém sugere que realizar uma rotação racial é algo de qual a imaginação e a literatura são capazes. No entanto, há algo no conforto desprezível do privilégio, adquirido pela promessa a ocupar uma posição de sujeito livre (livre de crimes, mas não de ser proprietário, dominador e opressor) Artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. 1 que subscreve ao que tal rotação se torne senão uma missão, então Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil. 2/11 Letrônica, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 1-11, jan.-dez. 2022 | e-42997 pelo menos uma responsabilidade inalienável. fica difícil imaginar discussões filosóficas sobre o A rotação racial faz-se uma prioridade das mais “mal radical” que não considerem a experiência urgentes. Deve ser entre os primeiros atos de escravocrata nas américas. Atrocidade que em cidadania a se realizar em nossa cultura, como sua primeira instância, ocorreu para as pessoas se fosse a visita para a Meca por um muçulmano. das nações originárias nas terras os brancos Uma parte da imensa repercussão da obra ocuparam, mas que afetou de maneira também monumental de James Baldwin é de ter con- perversa as nações originárias das terras conti- vocado insistentemente aquele leitor, “que se nentais longínquas. acredita ser branco”, a iniciar esta rotação. Não Na leitura da obra de Baldwin, pode-se en- que ele mesmo estivesse convencido que fosse contrar essa concepção, na qual tanto a história possível, que a rotação iria de encontro com a quanto a ficção se criam nesta rede dividida pelo lei cósmica de conservação do momento do medo socialmente fabricado. Pela atenção que ângulo rotacional. Sem este, uma estrela levaria exige do leitor, o escritor clarifica a percepção um sistema planetário inteiro a seu colapso, mas de que para viver um passado que não parou era a única condição para evitar que aquele fogo, no presente, a imaginação precisa se coletivizar. profetizado por Moises e por Baldwin no fim de Algo como uma privatização da imaginação que The Fire Next Time (O Fogo na Próxima Vez), acen- provoca apenas o prazer eufórico individualizado, desse de verdade. Implicam-se nesta rotação como a pretensão de um ouvinte de jazz que se coisas que rasgam a imaginação por seu terror e sente em sintonia direta com tal ou qual músico, pelo sofrimento que causara a tantos africanos, podendo cantarolar suas melodias ou entonar fatos que nem um memorial pode substituir, e o os gritos do seu saxofone mercantilizados pela único gesto que conta, o da reparação. indústria cultural. Mas a experiência estética não Ser um sujeito livre não se justifica pelo medo deixa de corrigir o terror original. Um terror que de se ver escravizado, ao contrário daquilo que se superou apenas por furor. Baldwin escrevia defendera o pai do liberalismo John Locke (su- para os Estados Unidos da América. Mas no postamente também “pai dos direitos humanos”), Brasil atual, com a desigualdade econômica em seu Segundo Tratado sobre o Governo. Se fosse empurrando grandes parcelas do povo para o assim, o sujeito livre sonharia com uma socieda- desespero, nos pormos a escuta das relações de igualitária. Ao contrário, conforme Locke, o de Baldwin frente ao retrocesso conduzido e sujeito livre é proporcionado pela existência da consagrado por formas disfarçadas e explícitas escravatura. Desde a democracia ateniense é de opressão racista. assim, e estamos longe de ver como uma ideia tão Até suas últimas falas, no prestigioso Natio- disseminada possa produzir tamanhas mutações nal Press Club em Washington D.C. no ano de políticas. Para o liberal Locke, o medo é apenas 1986, James Baldwin sempre se apresentava o de perder seus privilégios e sua supremacia. como neto de pessoas escravizadas. Confron- Será que precisamos lembrar que um dos co- tava seu público com a escravidão, não apenas mércios “liberados” pelo mercado empresarial como comércio, mas também como um fundo era o trato de humanos, de humanos africanos, de investimento que tornara vastos setores da e que o liberalismo sempre conviveu bem com cidadania norte americana muito ricos (THE- a escravidão? Nem o açúcar, nem o café, nem POSTARCHIVE, 2019). Baldwin nunca permitiu o algodão foram as mercadorias largamente que seu próspero público esquecesse do fato distribuídas pela Europa, antes da experiência de que, em nome da branquitude da pele, se colonial. Mais ainda, nenhum destes produtos outorgou o direito de apropriação às terras das que fizeram a fortuna do incipiente livre comér- nações e comunidades originárias, inscrevendo cio teria existido sem a escravatura. Porventura, sua cor sob um título jurídico desconhecido por sequer teria existido o moralismo ocidental, pois elas, denominando-os de propriedade privada. Norman R. Madarasz • Jonas Kunzler Moreira Dornelles James Baldwin na era de Vidas Pretas Importam 3/11 Impediu que esquecessem de que foi em nome não apenas em parte sobre brancos, mas sobre da justificativa da cor, que os brancos mataram gays e o desejo homoerótico. Hoje reconhece- alguns de seus melhores amigos. De fato, como -se no romance um precursor da ficção queer um entrevistador mencionou uma vez, que foi pós-racial. Na mesma época, Baldwin publicava em sua busca de tornar-se testemunha dessas sua reportagem sobre o primeiro Congresso de vidas perdidas, que Baldwin logrou tornar-se um Escritores e Intelectuais Africanos de Paris, no repositório de libertações. qual circulavam os nomes, ainda desconhecidos pelo Establishment, de Alioune Diop, Leopold 1 A potência literária de James Baldwin Jimmy Baldwin era também um monumental escritor. Nascido na época da Harlem Renaissance, Baldwin reúne e dialoga, defende e sofre com as principais expressões da Libertação africana-americana na época da Guerra Fria. Em uma tensa triangulação entre Malcolm X e Dr. Martin Luther King Jr, ele era o vértice ofuscado. Pois contrário a seus amigos, ele sobreviveu, e sobreviveu porque partiu para se exilar não apenas uma, mas duas vezes. Autor de seis romance, cada um deles marca em seu movimento o ritmo internacional da emancipação Black. Go Tell it on the Mountain, publicado em 1953, força a literatura de expressão inglesa a recontar a narrativa de formação da nação afrodescendente, fissurando-a com sentimentos vindo desde as primeiras capturas coloniais nos continentes africanos. Notes of a Native Son (Notas de um filho nativo) deixa claro que, após a repercussão das duas tentativas anteriores, a nova onda tinha chegado para valer. A primeira onda vinha com a subversão das narrativas de formação da identidade nacional norte-americana, na década da integração, após a Proclamação da Emancipação em 1861 e a derrota dos Estados Confederados da América em 1864. A segunda onda seguiu a Primeira Guerra Mundial, aquela guerra travada entre liberais brancos visando monopolizar o colonialismo no continente africano. A onda na qual Baldwin se destaca não se dispersará mais, mesmo que precisasse de um longo desvio parisiense para afirmá-la. Em 1956, com Giovanni’s Room (O Quarto de Giovanni), Baldwin escapa da disciplina imposta pela literatura comercial ao tecer uma narrativa Sédar Senghor, Aimé Césaire, Léon-Gontran Damas e Frantz Fanon. Agentes da CIA demostraram conhecer a importância desse evento da Négritude, ao negar o pedido de visto de W.E.B. Du Bois, efetivamente barrando sua participação. Entre suas proezas, O Quarto de Giovanni, publicado a primeira vez em 1956, conseguiu ultrapassar as epopeias da literatura da geração beat que lhe eram contemporâneas. Quando Baldwin percebera que não as calou, voltara com mais força em 1962, com um romance que poderíamos chamar de hipster (já que quintessencialmente nova-iorquino) Another Country (Numa Terra Estranha). No caso de Baldwin, seu terceiro romance materializava a verdadeira ponte entre o Village e o Harlem, de tal modo que deveria ter destruído a cultura beat, naquilo que ele identificava como um subtexto de supremacia branca, violência sexual e desejo homoerótico reprimido.2 A partir deste momento, era Baldwin que ditava os termos do movimento. Tentava mantê-lo no olho do público mesmo depois que as balas do FBI abaterem seus companheiros, líderes históricos de uma nação ainda sem Estado. Se a juventude anglo-americana que se acredita ser branca mergulhava com prontidão nas expressões artísticas afro, como se representassem as chances da sua salvação, seus pais pareciam desejar que o sangue se espalhasse. O reforço trazido pelos sulistas às leis segregacionistas, justificadas como se fizessem parte de uma luta contra uma nova forma de comunismo, tinha ares de farsa. Entre as linhas, indicava que se preparava um massacre. Embora livre dos linchamentos regulares cometidos contra negros no território dos antigos Estados Confederados da Cf. “The Black Boy Looks at the White Boy”, texto de James Baldwin, publicado primeiro na revista Esquire (1961), e depois em sua coletânea de ensaios Nobody knows my name (no mesmo ano). 2 4/11 Letrônica, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 1-11, jan.-dez. 2022 | e-42997 América (novo país secessionista derrotada pelos como a de Baldwin não pudessem se construir Estados “Unidos”), o racismo vigente no Norte fora das demarcações oficiais de uma política de conduzia frequentemente à pobreza, quando não guetização. Após o sucesso impressionante do à prisão. Para um país em falta de uma epopeia Harlem Cultural Festival do verão de 1969, ocor- bíblica cristalizada em prosa jornalística, The Fire rido no Parque Mount Morris (hoje Parque Marcus Next Time cumpriu oportunamente o papel. Fora Garvey), no qual se reunia os maiores nomes da nada menos que um presságio para pressionar os música soul e gospel (e que acabou conhecido nortistas a também se livrarem do seu racismo. como Black Woodstock), a reconciliação entre co- O livro garantiu o lugar de James Baldwin na munidades parecia no ar. Porém, na perspectiva história. Conduzira o então presidente a ouvir da maioria daqueles que desejavam se manter o apelo de Martin Luther King e decretar o Civil brancos, havia o medo de que tal reconciliação Rights Act, em 1965. significasse uma indesejada revolução. Ainda Baldwin então se faz professor. Detendo-se na mais no que diz respeito a James Baldwin, cuja mesma avenida onde o levava sua professora de fama revolucionária não lhe permitia encontrar ensino médio para frequentar bibliotecas, trou- segurança. xera agora seu povo para o Broadway. Blues for O sucesso da campanha internacional lança- Mister Charlie, de meados dos anos 1960, é o Es- da por ele a favor da absolvição e libertação de perando Godot desses anos de revolução, fazendo Angela Davis, protagonizada pela incendiária de Baldwin seu poeta. Perante os túmulos dos Carta Aberta publicada no New York Review, lhe seus amigos assassinados aos montes, o escritor colocara permanentemente nas listas de vigi- voltara a explodir corporalmente em Tell me How lância – e quiçá de assassinatos agendados – do Long the Train’s been Gone, seu quarto romance FBI (BALDWIN, 1971). Por recomendação de seus publicado em 1968. Ainda que o trem não tivesse irmãos e irmãs, Baldwin ficará longe dos EUA, de fato passado, forçoso é de se constatar que, passando o fim dos anos de 1960 na cidade de abaixo do radar da revolução, as iniciativas de Istanbul. Em 1970, ele comprará uma casa em cotas universitárias (em vigor desde 1965) inicia- Saint-Paul de Vence, sul da França, onde acolherá ram uma lenta transformação da cor de pele da a nata da arte e intelectualidade afro-americana classe intelectual norte-americana. A liberdade e francesa. Será só em 1972, depois desse exílio, criativa e intelectual crescente de proponentes que publicará o próximo ensaio em que trabalhou afro-americanos não os livrou da violência, mas por anos. Uma obra prima, No Name in the Street, Baldwin podia inclusive levar temáticas queer à elabora sua análise do movimento da libertação cena. Em 1967, ele produziu no Actor’s Theater negra dos anos de sessenta. Trata-se de um dos em Nova York a peça Fortune and Men’s Eyes de maiores livros sobre colonialismo e opressão ra- John Herbert, uma ousada narrativa associando cista desde Os Danados da Terra de Frantz Fanon. ao amor homoafetivo travado e reprimido com a Seu conteúdo será magistralmente utilizado por violência racista descontrolada vigente no país. Raul Peck quarenta anos depois para compor o No que diz respeito à possibilidade da ascen- filme de 2016, I Am Not Your Negro (Eu não sou são social do artista negro, seu quinto romance, seu negro). O último romance de Baldwin, Just If Beale Street Could Talk (Se a Rua Beale Fa- Above my Head, criará ainda uma forma às suas lasse), de 1974, não poupa seu pessimismo. O inovações estilísticas. protagonista tem sua carreira destruída pelo O poeta já estava longe de Harlem quando racismo policial ordinário, que se aproveita da explodiram o rap, o hip-hop e a epidemia do sempiterna sombra do estuprador negro para crack. Baldwin deixava o planeta quando as ins- destruir a vida de mais uma pessoa. Não obstante, tituições só permitiam uma visão tendenciosa de os bairros artísticos dos grandes centros urba- um movimento no qual milhares foram atacados nos se aprontavam para que carreiras artísticas por cassetetes, carabinas e cães. Na nova era Norman R. Madarasz • Jonas Kunzler Moreira Dornelles James Baldwin na era de Vidas Pretas Importam 5/11 presidencial, a força da resistência passava a mericanas para que se juntassem aos processos ser retida em livrarias “radicais”. Ele falecerá em de enriquecimento por acumulação extraída pelo 1987, antes de ver uma nova geração de artistas neocolonialismo corporativista no América-latina. afro-descentes (como Spike Lee, Henry Louis Em contrapartida ao dinamismo conquistado Gates Jr e Public Enemy) lograr no trabalho pela pela cultura do norte global, não estava ainda reeducação da classe média norte-americana. Ele claro como poderia existir uma conexão ligando tinha apenas 62 anos. Na sua despedida na igreja o continente em suas expressões e lutas afro- Saint-John the Divine, os tambores orquestrados descendentes. pelo mestre percussionista nigeriano-Yoruba, No lado do Norte, ainda faltava muita pesquisa Babatunde Olatunji, acompanhado pelo desfile para reconstruir o comércio transatlântico de das vozes literárias do seu tempo, ressoaram corpos africanos e o terror que foi a “Passagem para envelopar sua alma, num sudário de trovões do Meio” pelo oceano Atlântico, nos navios “ne- (JAMES BALDWIN, 1987). greiros” que transportavam os sequestrados Seria injusta reclamar que no Brasil, perde- a seu terrível destino. O livro e subsequente ra-se o momento de James Baldwin. As figuras documentário de Henry Louis Gates Jr., Black nacionais que nos fornecem retratos aproximados in Latin America/Black In Brazil, lançou mão de também foram apagadas pela mesma dinâmica uma possível aproximação entre o Brasil e os repressora que explica porque o país não reco- Estados-Unidos que passasse por uma história nheceu a pungência de seu próprio momento comum, definidora do modo de trabalho que afro-brasileiro radical nos anos de 1960. O Brasil construiu estes países, entre os mais ricos em não precisava de Baldwin, quiçá não mais que sua respectiva parte dos dois continentes. de Frantz Fanon, pois tinha o Grupo Palmares Mais perto da casa, os rivais masculinos de Ja- e Oliveira Silva, tinha Abdias de Nascimento e mes Baldwin não hesitavam a castigá-lo publica- Florestan Fernandez, e Lélia Gonzalez e Beatriz mente. Quem nunca o criticara nem o esquecera, Nascimento, entre tantas outras companheiras. foi a jovem geração de escritoras afro-americanas Da mesma maneira que nos Estados-Unidos, o dos anos de 1980, a primeira sendo uma espécie Brasil afro-descente conseguiu no plano cultural de sucessora de Baldwin, Toni Morrison. Em um e simbólico o que sua coragem e determinação testemunho comovente, aflito e ultimamente conquistaram nas ruas, um Dia da Consciência comemorativo, publicado no New York Times, Negra. Morrison endereçava a palavra ao autor morto, Hoje acumulam-se documentos audiovisuais, filmes, falas e entrevistas de James Baldwin, tanto em inglês como em francês. Durante os anos de 1970, a verdade é que o escritor passou por um apagamento midiático, político e acadêmico, junto com as duas décadas passadas que foram as suas. É justamente nessa época que, no Brasil, o povo afro-descente realizou o despertar de um processo de manifestação política, musical, literária e intelectual que o levou, inclusive, a lhe interrogando: Você sabia, não? Como eu precisava da sua língua e da mente que a inventava? Como eu dependia de sua coragem feroz para domar aqueles mundos selvagens? Como eu me fortalecia pela certeza que vinha de saber que você nunca me magoaria? Você sabia, não, como eu amava o seu amor? Sabia, sim.” Então isto não é uma calamidade. É uma celebração. “Nossa coroa, você disse, “já foi comprada e quitada. Tudo o que precisamos fazer agora é usá-la.” E nós a usamos, Jimmy. Você nos coroou (MORRISON, 2019, p. 228-229). repensar sua própria relação com as linhas de pensamento do movimento norte-americano A memória de Baldwin se mesclara com o – uma representação infletida por intelectuais sonho, como se fosse para deixar o palco do real brancos. Entende-se que é nada simples situar inteiro para Toni Morrison. No final dos anos de esta questão, sobretudo quando se considera a 1960, Baldwin gravara uma conferência chamada atrativa isca empoleirada às “minorias” norte-a- “A responsabilidade moral do artista” (THEPOS- 6/11 Letrônica, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 1-11, jan.-dez. 2022 | e-42997 TARCHIVE, 2017).3 Uma destas responsabilida- militante, insistente, mas vulnerável perante a des é tomar controle dos meios de produção. É violência da supremacia branca, o movimento inestimável a contribuição que fez Toni Morrison tomou proporções continentais em 2020 quan- à literatura afro-americana nascente justamente do houve mais um assassinato de um homem ao conquistar a posição de diretora de publicação, negro, Georges Floyd, por um policial branco em uma das maiores editoras norte-americanas, que se ajoelhou sobre seu pescoço até lhe tirar Random House. Esta conquista ainda antecedeu o último sopro. Outros assassinatos ocorreram sua ascensão como uma das maiores escritoras durante o movimento. Em um clima aberto de norte-americanas por quatro décadas, vencendo racismo institucional sustentado pelo “primei- o prêmio Pulitzer e depois o Nobel. ro presidente branco” (COATES, 2017), como o denominou Coates em um artigo devastador 2 James Baldwin nos tempos de Black Lives Matter Quando em 2015, três universidades nova yorkenses decretarão um ano James Baldwin (THE NEW SCHOOL, 2015)4 para festejar os oitenta anos do seu nascimento, Toni Morrison não apenas publica God Bless the Child, mas proclamará Ta-Nehisi Coates, o jovem escritor da revista The Atlantic e autor do livro Between the World and Me, como um novo Baldwin. Tendo sido fisgado por sua leitura de The Fire Next Time, Coates, como Morrison, era formado na prestigiosa universidade afro-americana Howard. Filho de um ex-Black Panther, escreve e entona seu texto em uma prosa hip-hop. Ao invés de enviar uma carta para seu sobrinho como Baldwin, para lhe alertar sobre o momento crítico da luta pelos direitos civis, Coates se expressara a seu filho para lhe alertar da ameaça com a qual viviam cotidianamente por causa da cor da sua pele. Algum tempo antes do ano comemorativo de Baldwin, em 2012, ocorreria o assassinato de Trayvon Martin por um policial branco, que subsequentemente foi absolvido pelo crime. Foi em reação a isso que se formou a organização, Black Lives Matter, que então adquiriu notoriedade nacional quando organizaria manifestações em cidades estadunidenses cada vez que uma pessoa afrodescendente fosse assassinada por policiais. A marca que despertou o movimento foi em Ferguson, Missouri, em pleno segundo mandato do Presidente Barack Obama. Presente, publicado em 2018, o movimento pela justiça racial, Vidas Pretas Importam (BLM) se tornará uma força centralizadora para derrotá-lo. Os acontecimentos em 2020 seguiram por apenas algumas semanas a premiação da historiadora Nikole Hannah-Jones, que recebeu um Prêmio Pulitzer por sua proposta de uma nova fundamentação da história dos Estados-Unidos, com o Projeto 1619. Publicado no quatrocentésimo aniversário da data em que os primeiros africanos escravizados chegaram na colônia de Virginia, Hannah-Jones foi alvo de ataques pelo poder executivo e o congresso norte-americanos, que ainda hoje ameaçam proibir o ensino da “teoria crítica da raça”. Desde então, Hannah-Jones ampliou a frente, atraindo mais autores ao Projeto e publicando recentemente uma versão infanto-juvenil do livro. Trata-se de em um dos maiores desafios à data de 1776 como origem dos EUA desde que a 13ª foi emendada à Constituição. Até 2015, Ta-Nehisi Coates era ensaísta e intelectual público. Um dos seus textos mais impactantes, publicado inicialmente na revista The Atlantic e reeditado em We Were Eight Years in Power, trata da questão das reparações devidas aos trabalhadores afro-americanos escravizados durante quatro séculos pela sociedade norte-americana. A mão de obra gratuita propiciada pela escravidão extraiu uma riqueza de seus corpos ao mesmo tempo que levou a sua destruição cultural e familiar. A maior contribuição de Karl Marx foi a de entender o processo de produção de riqueza The Moral Responsibility of the Artist. Conferência proferida por James Baldwin, na Universidade de Chicago, 21 de maio de 1963. Evento organizado em parte pelo Programa de Escrita Criativa das Universidades Columbia, Harlem Stage, New York Live Stage e New York School. 3 4 Norman R. Madarasz • Jonas Kunzler Moreira Dornelles James Baldwin na era de Vidas Pretas Importam 7/11 por meio de um mercado que, baseando-se em de que os políticos colocam o país entre os mais regras de oferta e demanda, na verdade explora tributados no mundo, e a classe média alta acusa a força de trabalho. Uma variável mais difícil a os pobres de se endividarem junto com os ban- calcular até recentemente era o coeficiente da cos, fingindo não entender que o Banco Nacional extração tanto de recursos naturais quanto da trabalha em colusão com os bancos privados escravização de humanos, valores deixados fora para endividar os consumidores, esconde-se da produção direta de mercadorias. No seu artigo o exercício de uma política programada para de 2014, Coates usou mapas e dados disponíveis agravar a desigualdade e o empobrecimento nas bibliotecas de alguns das maiores cidades principalmente da população afrodescendente. norte-americanas para introduzir outro variável Ao contrário ao que se acredita, a tributação que impedia o acúmulo de riqueza entre popu- no Brasil sobre herança, patrimônio, lucros e lações negras nos EUA. Comprovou a existência até mesmo sobre renda (Imposto de Renda de de uma política da “canetada discriminatória” Pessoa Física – IRPF), constam entre os menores (redlining), praticada desde os anos 1930 com do mundo, se comparamos especificamente início do financiamento governamental de pro- as alíquotas pagas pelos dez por centos mais gramas de aquisição de moradia para estimular ricos da população. Enquanto isso, as taxas de a recuperação econômica. O objetivo do redlining juros efetivas mergulharam os outros noventa era impedir que afro-americanos habitassem os por cento do povo num ciclo de endividamento mesmos bairros que os destinados às pessoas infernal sem saída, já que os juros estão entre os que desejem-se ser brancas (COATES, 2017). mais altos do mundo.5 A questão das reparações, portanto, trata de Ao evocar estes dados num texto de teoria uma riqueza que continua sendo extraída de e história da literatura, pode-se parecer que maneira programada das populações afrodes- estamos querendo apropriar áreas de pesquisa cendentes, permitindo que apenas os imóveis próprias à economia, senão politizar o campo. possuídos por brancos possam crescer em valor. Vale reforçar como o conteúdo das difíceis expe- O artigo é visto como um dos vetores que esti- riências das vidas narradas na literatura brasileira mulou a formação de Black Lives Matter, pois o afrodescendente, surgem devido a tais progra- policiamento ostensivo realizado por policiais mas políticos ocultos pelos donos financeiros racistas e violentas contra negros visa a impedir do país. A política fornece uma fonte material a mutação desta política econômica. Algo que para o sofrimento, a violência e a injustiça que já havia acontecido no final do século XIX, por se disfarça no espaço midiático sob controle de exemplo, com o assim chamado Wall Street apenas algumas famílias. Ainda urge esclarecer Negro na cidade de Tulsa, Oklahoma, destruído suas causas e indicar soluções para um público em 1921 por uma milícia branca. maior. Na obra de James Baldwin, Toni Morrison, No Brasil, além da privatização dos serviços Ta-Nehisi Coates, assim como aqui no Brasil as públicos propiciada pela política de segregação vozes de Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior e favelização, o setor público participa da apli- e Jeferson Tenório fazem a distinção entre ficção cação de uma política similar de contenção de e não-ficção secundária, até irrelevante. A arte da medidas distributivas das riquezas provenientes escrita não pertence apenas às formas canônicas, do trabalho. É importante lembrar como foram euroamericanas de expressão, pois esta já não desviadas as reivindicações trabalhistas no início fornece mais o único modelo de como criar arte, das jornadas de 2013 por grupos financiados por e ainda menos de como viver bem. fontes empresariais anônimas. Enquanto a mídia Toni Morrison alertou os escritores que “são branca castiga o poder público com a narrativa eles que cantam a verdade. É algo que a socie- 5 Cf. DOWBOR, Ladislau. Juros extorsivos no Brasil: como o brasileiro perdeu seu poder de compra. Imperatriz, MA: Ética, 2016. 8/11 Letrônica, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 1-11, jan.-dez. 2022 | e-42997 dade deve proteger. Mas quando você adentrar raça, considerando a concepção de devir-negro este campo [...] é uma vocação perigosa. Alguém de Achille Mbembe. quer te cassar. Você precisa saber isto antes de Na proximidade do tema do desejo, encon- começar, e o fazer sob estas circunstâncias, pois tramos recortes de subversão da sexualidade. trata-se de uma das coisas mais importantes que Susana de Castro, professora e pesquisadora um ser humano pode fazer” (RAO, 2016, tradução de filosofia da UFRJ, e presidenta da Associação nossa). Nacional de Programas de Pós-Graduação em 6 É por considerações como essa, que neste Filosofia (ANPOF), nos honra com uma análise número de Letrônica nosso objetivo enquanto sobre em O Quarto de Giovanni, recentemente organizadores foi o de estimular uma reflexão retraduzido por Paulo Henriques Britto, em uma sobre o legado de James Baldwin nos tempos edição pela Companhia das Letras. Em “Questões em que o movimento Vidas Pretas Importam de raça e colonialidade em O quarto de Giovanni força nosso país a mudança. Abrimos o convite a de James Baldwin”, a autora confronta o tema do pesquisadores do tema, tanto no que diz respeito desejo com o da identidade nacional americana, à recepção e crítica norte-americana, quanto em suas crises sexuais e raciais. da brasileira. O conjunto de textos reunidos no Para Susana de Castro, apesar da sua recepção dossiê delineiam estratégias analíticas, ao indicar fraca no início, hoje percebemos que James Bal- perspectivas e interesses contemporâneos para dwin estava à frente de seu tempo. O quarto de o estudo de James Baldwin. Giovanni se tornou um clássico da literatura gay Iniciamos este número temática da revista nas décadas de 1960-70, quando os movimentos Letrônica com uma contribuição do escritor e de liberação sexual fervilharam. Mas suas repre- doutor Jeferson Tenório, recentemente premiado sentações superavam o perigo do essencialismo, com o Jabuti por seu romance O Avesso da Pele. que enquadra pessoas em certas identidades Em seu o texto “Mil platôs numa terra estranha: fixas. E por isso, para além de escritor negro ou o devir negro em James Baldwin” encontramos gay, Baldwin também era um “escritor americano”. uma forma de distanciarmos de uma leitura que Pelo caminho da sexualidade, chegamos nas gostaria de ver na literatura de Baldwin apenas reflexões de Lunara Carolline Nascimento Gomes, uma forma de engajamento político, concebendo em “A violência do heterossexismo racializado a literatura como um experimento de invenção em James Baldwin e Maya Angelou”. Partindo da da realidade. No trabalho da linguagem, no plano força literária de Terra estranha de James Baldwin de imanência literário, encontramos aquilo que é e de uma seleção de poemas de Maya Angelou, a refratário ao mero espelhamento imaginário da autora fará uma análise interseccional do material, biografia de James Baldwin. alicerçado no feminismo negro de Patricia Hill A potência de sua escritura em se afastar do mundo empírico, de um mundo político que seria Collins e bell hooks, assim como nas dinâmicas de (não)reconhecimento racial de Franz Fanon. a origem do material histórico refletido em uma Para a autora, no romance de James Baldwin a literatura engajada, vem da força do desejo que violência que mais lhe faz sofrer ao protagonista atravessa a literatura de Baldwin. Um desejo Rufus é o não reconhecimento enquanto homem difuso e inapreensível, que podemos respeitar (pelos brancos), fazendo com que sinta inferiori- apenas se consideramos que na verdade seu zado pelos outros e por si mesmo. Essa violência desejo busca um agenciamento coletivo. Jeferson se reflete na contrariedade que os próximos ex- Tenório nos ajuda a compreender a força que pressarão sobre seu relacionamento inter-racial maquina os fantasmas por trás dos delírios de com Leona, moça branca. Uma violência em 6 Do original: They’re the ones that sing the truth. And that is something that society has got to protect. But when you enter that field, no matter whether that’s Sonia’s poetry or Ta-Nehisi’s rather startlingly clear prose, it’s a dangerous pursuit. Somebody’s out to get you. You have to know it before you start, and do it under those circumstances, because it is one of the most important things that human beings do. [Trecho da fala de Toni Morrison, em debate com Ta-Nehisi Coates e Sonia Sanchez, no New York City’s Ambassador Theatre]. Norman R. Madarasz • Jonas Kunzler Moreira Dornelles James Baldwin na era de Vidas Pretas Importam 9/11 nome da “honra da masculinidade” que será um passa por uma redefinição do amor, não como reflexo de defesa da forma de masculinidade he- algo fácil ou sentimental, e sim como uma força gemônica. Já em sua análise dos poemas de Maya compromissada e honesta, capaz de unir a so- Angelou, Lunara Gomes irá recuperar trechos ciedade de forma mais sólida do que as forças da história da personagem Jackson Coleridge, que ameaçam despedaçá-la. trabalhador negro que sofre abusos do chefe Passamos então para uma crítica do estere- branco e os reproduz sobre sua família. Assim, ótipo como ferramenta de controle simbólico através de Rufus e Coleridge temos um alerta e denúncia do encarceramento em massa de sobre a encruzilhada de opressões operando jovens negros, com “Sonny’s Blues, de James na degeneração dos relacionamentos afetivos Baldwin, e a literatura como canção urgente para dentro da comunidade negra, consequências o nosso tempo” de Jânderson Albino Coswosk e diretas da exploração colonial e da subjugação Maria Aparecida Andrade Salgueiro. Os autores de pessoas escravizadas. encontrarão no conto Sonny’s Blues de James Dos dilemas da sexualidade ampliamos a Baldwin uma estratégia de denúncia das ima- reflexão sobre o tema da resistência do amor, gens de controle como a do “negro criminoso”, no artigo “O amor como resistência: uma breve que servem para marginalizar e patologizar a análise de Se a rua Beale falasse, de James Bal- juventude negra e justificar a violência policial dwin” de Valdomiro Santos Martins. No romance sobre ela. encontramos narrada a história de uma família Na tessitura narrativa desse conto, James Bal- afro-americanas, da perspectiva das dificulda- dwin buscou dramatizar a juventude afro-ameri- des e angústias da protagonista Tish. Essa se cana do Harlem, como grupo social tragicamente apaixona ainda jovem por Fonny, sentimento vitimado pelas tensões raciais dos Estados Uni- que se fortalece até a solidificação do amor dos. Narrado em primeira pessoa, na história os verdadeiro e incondicional que sentirão um personagens são ameaçados pela discriminação pelo outro. Enquanto jovem casal, sonharão policial, desemprego, dificuldade de moradia, de- com uma vida juntos no centro da cidade, pendência química, encarceramento, isolamento longe da comunidade negra, no centro da e ideias suicidas. Mas através da captação dos cidade. Entretanto, Fonny será preso sob falsa ritmos do blues, sua tradução para uma escrita acusação de estupro, enquanto Tish se desco- musical, foi o modo como James Baldwin en- bre grávida. Com o apoio da família, a jovem controu nesse conto, para lugar contra a morte, protagonista buscará forças para sustentar a a guetização dos espaços, o confinamento e a vinda do filho, ao mesmo tempo em que luta perseguição policial. Assim, para os autores, a para provar a inocência de seu companheiro. personagem Sonny se converte em uma linha Nos episódios de perseguição policial e pos- de fuga, superando o dado histórico da morte terior encarceramento, encontramos a ponta através da arte. de um extenso sistema de exploração social e É nesse percurso que encontramos a apro- crueldade racista. Mas, apesar de toda dureza, ximação que Luíza Simões de Oliveira faz em a personagem Tish ainda encontra esperança, “Sonny’s Blues, de James Baldwin, e a literatura aprendendo a vivê-la com sua família e com como canção urgente para o nosso tempo”, a Fonny. partir da base teórica de Lélia Gonzalez, Sílvio Assim, em Se a rua Beale falasse, James Almeida, bell hooks, Frantz Fanon, assim como Baldwin constrói personagens que lidam com pesquisadores brasileiros que estudam Trindade problemas sociais dos afro-americanos, sob ou Baldwin. A pesquisadora busca estabelecer a ótica de seu pensamento crítico. A sugestão um estudo sobre proximidades e distanciamen- do autor é de que não há como simplificar a tos, na análise de um conjunto de poemas de mensagem de Baldwin, mas que ela certamente ambos os escritores. A consciência do racismo e 10/11 Letrônica, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 1-11, jan.-dez. 2022 | e-42997 procura de uma superação por via do confronto invisibilidade mostra a falta de atenção de uma com a perspectiva branca, aproxima ambos, ainda sociedade que não quer lidar com o sofrimento que se apresente de formas distintas em cada de suas camadas excluídas. um. Aquilo que se por vezes se apresenta como Um dos momentos mais dramáticos será a uma solidão coletiva do negro em James Baldwin, narração do ato de assassinato de um homem traduz-se numa expressão de luta coletiva em abastado, que o narrador encontra em um beco Solano Trindade. Este fala do povo negro como explorando sexualmente uma menor de idade. quem fala de um núcleo familiar, um grupo com Parte do argumento do narrador é que sente histórias, vivências e desejos, que formam um como se a jovem pudesse ser sua irmã. Assim, todo comunitário. O que não quer dizer que sejam a dor e humilhação vivenciados no abandono da perspectivas opostas, mas sim que seu modo de rua, se manifestam em uma resposta também participação e subjetividade de Baldwin talvez violenta. Outro momento bastante denso são fosse mais introvertida do que a de Trindade, as memórias dos tempos em que vivia na zona em uma tentativa de mostrar, através do íntimo rural, e do sofrimento que a mãe sofreu torturas e particular, a experiência de todo um grupo. durante a guerra de independência. O conto con- Para a autora, uma explicação dessa distinção clui com a sensação de solidão do narrador, que seria uma das diferenças de formação da expres- vive marcado pelo medo da brutalidade urbana. são poética de Trindade e Baldwin, em experiên- O que sugere, para a autora, que sobreviver seja cias distintas de racismo. Enquanto nos Estados uma forma impensada de lidar com o que pode Unidos o racismo estava codificado em leis, lá estar por vir, reagindo e lidando com a perda há uma memória ainda viva do segregacionismo conforme ela tente determinar a própria trajetória. oficializado. Já na América Latina e no Brasil, o racismo foi institucionalizado silenciosamente, com legislação mais sutil, mas igualmente trágica para as possibilidades de ascensão da comunidade negra. Lélia Gonzalez falará do racismo brasileiro como racismo por denegação, operando por via da falácia da democracia racial. Passamos por fim ao artigo cuja temática crítica se aproximam do dossiê, mas que não tematiza diretamente James Baldwin. No artigo “Violência, desilusão e sobrevivência em Tio me dá só cem, de João Melo”, Renata Cristine Gomes de Souza procura investigar como a resistência à violência e a desilusão aparecem no conto do escritor angolano. O conto “Tio me dá só cem” é narrado em primeira pessoa, e o protagonista conta sua história para um passante a quem chama de tio. O texto é encadeado com poucas pausas, demarcando o nervosismo e confusão do morador de rua que é o narrador do conto. Em sua fala, procura fazer o receptor olhá-lo para além de um tipo social miserável e fragilizado, comentando seu grau escolaridade, seu conhecimento de outras regiões etc. Para a autora, o esforço em romper com a Referências COATES, Ta-Nehisi, The First White President. In: COATES, Ta-Nehisi. We Were Eight Years in Power: an American Tragedy, New York: One World Publishing Co., 2017. p. 341-367. COATES, Ta-Nehisi. Notes from the Sixth Year: The Case for Reparations In: COATES, Ta-Nehisi. We Were Eight Years in Power: an American Tragedy, New York: One World Publishing Co., 2017. p. 151-209. BALDWIN, James. An Open Letter to my Sister, Ms. Angela Davis. The New York Review, New York City, Jan. 7, 1971. Disponível em: https://www.nybooks.com/ articles/1971/01/07/an-open-letter-to-my-sister-miss-angela-davis. Acesso em: 2 out. 2021. JAMES Baldwin: the Price of the Ticket. Direção: Karen Thorsen. Connecticut: DKDmedia, 1986. color. (1 hr. 26 min). MORRISON, Toni. Elogio para James Baldwin. In: MORRISON, Toni. A Fonte da Auto-estima: Ensaios, discurso e reflexões. Tradução de Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 228-229. JAMES Baldwin’s National Press Club Speech (Washington, 1986). Publicado pelo canal The Post Archive, 13 jan. 2019. (56 min). Palestra do escritor James Baldwin. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7_ 1ZEYgtijk&t=1827s. Acesso em: 14 mar. 2022. Norman R. Madarasz • Jonas Kunzler Moreira Dornelles James Baldwin na era de Vidas Pretas Importam JAMES Baldwin: The Moral Responsibility of the Artist. (University of Chicago, 21 de maio de 1963). Publicado pelo canal The Post Archive, 6 maio 2017. (1 h 04 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PlnDbqLNv-M. Acesso em: 14 mar. 2022. THE NEW School: The Year of James Baldwin – Another Country: Seeing Place from a Distance, with Dante Micheaux and Darryl Pinckney. Publicado pelo canal de The New School, Mar 26, 2015. (1 hr. 12 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=42DzMTFlLkk. Acesso em: 14 mar. 2022. RAO, Sameer. Ta-Nehisi Coates, Sonia Sanchez and Toni Morrison Talk Dangers of Art. In: Colorlines, 2016. Disponível em: https://www.colorlines.com/articles/ ta-nehisi-coates-sonia-sanchez-and-toni-orrison-talk-dangers-art. Acesso em: 14 mar. 2022. Norman Roland Madarasz Doutor em Filosofia francesa contemporânea pela Université de Paris 8 - Vincennes à Saint-Denis; mestre em Filosofia pela mesma instituição, em Paris, França; graduação em filosofia pela McGill University, em Montréal, Canadá. Professor permanente dos PPG em Letras e em Filosofia (Escola de Humanidades) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil. Jonas Kunzler Moreira Dornelles Mestre na linha de pesquisa de Teoria, Crítica e Comparatismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil; mestre na linha de pesquisa Literatura, História e Memória pela Pontifícia Universitária Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil; doutorando em Teoria da Literatura (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil. Bolsista CNPq. Endereços para correspondência Norman Roland Madarasz Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Avenida Ipiranga, 6681, Prédio 8, sala 402.2 Partenon, 90619-900 Porto Alegre, RS, Brasil Jonas Kunzler Moreira Dornelles Av. Nilo Ruschel, 523 Vila Petrópolis, 91260-220 Porto Alegre, RS, Brasil Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação. 11/11