Caso Clínico
Clinical Case
Gunther Kissmann1
Mauro Zamboni2
Andreia Salarini Monteiro3
Aureliano M Cavalcanti de Sousa4
Marilene Nascimento5
Mauro Esteves6
Paulo de Biasi7
Deborah Cordeiro Lannes8
Pneumonia lipóide
Lipoid pneumonia
Recebido para publicação/received for publication: 07.08.03
Aceite para publicação/accepted for publication: 08.02.15
Resumo
Dentre as afecções pulmonares exógenas, a pneumonia
lipóide (PL), causada pela broncoaspiração de lipídeos, é
uma doença pouco diagnosticada. Ela resulta da reacção
tipo corpo estranho que se segue à presença de material
lipídico dentro do parênquima pulmonar. Em geral, o
agente etiológico é o óleo mineral utilizado como agente
laxativo. Doentes com histórico de constipação intestinal e uso crónico de óleo mineral, com tosse e dispneia,
devem ser pesquisados quanto a esta doença. Apresentamos um caso de pneumonia lipóide associada ao uso de
óleo mineral como agente laxativo, acentuamos as dificuldades relacionadas com a definição diagnóstica e revemos a literatura pertinente ao tema.
Abstract
Lipoid pneumonia (LP) is a pneumonitis resulting
from the aspiration of lipids, and is commonly associated with the use of mineral oil as a laxative. LP is
relatively unfamiliar to clinicians and is probably underdiagnosed. Making a diagnosis of LP requires a
high degree of clinical suspicion. The aim of this
publication are to present a case of a patient with LP
and to increase physician awareness of LP, its diagnosis and prevention.
Rev Port Pneumol 2008; XIV (4): 545-549
Key-words: Lipid pneumonia, mineral oil, interstitial lung diseases, aged.
Rev Port Pneumol 2008; XIV (4): 545-549
Palavras-chave: Pneumonia lipóide, óleo mineral,
doenças pulmonares intersticiais, idoso.
Médico Estagiário do Serviço de Cirurgia de Tórax – HC I – INCA/MS – Rio de Janeiro. Pós-Graduando em Pneumologia da Pontifícia Universidade Católica – PUC - Rio.
Pneumologista (TE SBPT) do Grupo de Oncologia Torácica do HC I – INCA/MS. Mestre em Pneumologia pela Universidade Federal Fluminense.
3 Pneumologista (TE SBPT) do Grupo de Oncologia Torácica – HC I – INA/MS.
4 Cirurgião de Tórax (TE SBCT) do Grupo de Oncologia Torácica do HC I – INCA/MS.
5 Patologista do INCA/MS.
6 Radiologista do INCA/MS.
7 Chefe do Serviço de Cirurgia de Tórax do HC I – INCA/MS. Cirurgião Torácico do Grupo de Oncologia Torácica do HC I – INCA/MS.
8 Pneumologista do Grupo de Oncologia Torácica – HC I – INCA/MS.
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Endereço para correspondência:
Dr.ª Deborah C. Lannes – Praça da Cruz Vermelha, 23 – CEP: 20230-130 – Centro – Rio de Janeiro – RJ – Brasil – E-mail: dclannes@oi.com.br
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Introdução
A aspiração crónica pode resultar em processo
inflamatório crónico do parênquima pulmonar, com fibrose intersticial e depósito de cristais de colesterol no parênquima do pulmão.
A aspiração crónica pulmonar causa significante morbidade, porém, frequentemente, é
subdiagnosticada, pois é difícil a sua comprovação sem o emprego de métodos invasivos.
A pneumonia lipóide (PL) é caracterizada
pela infiltração de macrófagos contendo vacúolos com lípidos de origem endógena ou
exógena no interior dos alvéolos e no interstício pulmonar. A pneumonia lipóide exógena
pode ser causada pelo refluxo gastroesofágico
(RGE), como consequência da aspiração recorrente de gorduras ou óleos. Estes quadros
são incomuns em indivíduos sem comprometimento neurológico e podem apresentar-se
como taquipneia e hipoxemia progressivas.
Uma vez que a broncoaspiração de lipídeos,
geralmente provenientes do uso de óleo mineral como agente laxativo, é a mais comum
causa da PL, ela deve ser sempre investigada
em doentes com histórico de obstipação intestinal e uso crónico de óleo mineral, com
tosse e dispneia.
O óleo mineral tem alta viscosidade e baixa
volatilidade, e quando aspirado para a árvore brônquica pode não haver estímulo suficiente para o reflexo da tosse. A sua presença
no parênquima pulmonar altera a movimentação ciliar o que dificulta sua expectoração, perpetuando sua presença junto à árvore brônquica.
A PL é uma condição incomum e na sua
forma crónica resulta da aspiração repetida
para a árvore respiratória de emulsões lipídicas.
Apresentamos um caso de PL associada ao
uso de óleo mineral como agente laxativo,
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discutindo os problemas associados ao seu
diagnóstico e fazendo revisão da literatura.
Caso clínico
Mulher de 52 anos, procurou atendimento
médico devido a ferida na língua e desconforto na garganta. O seu exame demonstrou
lesão não ulcerada, infiltrativa, na base da
língua à direita, medindo 2 × 3 cm. A lesão
atingia o sulco amigdalo-glóssico, mas não
comprometia a valécula ou a linha média.
A doente era fumadora de 6 maços/ano e
alcoólica social. Não usava prótese dentária.
A biópsia dessa lesão foi positiva para malignidade, do tipo carcinoma escamoso. Nessa
ocasião foi tratada através de glossectomia
parcial e faringectomia e, em seguida, fez
químio e radioterapia adjuvantes. Dois meses após, foi submetida a reconstrução cirúrgica. Evoluiu com osteomielite mandibular,
tratada com oxigenioterapia hiperbárica, e,
posteriormente, foi submetida a hemimandibulectomia direita. Por demais conhecidas
são as alterações no mecanismo da deglutição nos doentes tratados, tanto pela cirurgia, quimioterapia ou radioterapia, das lesões, principalmente neoplásicas, das
estruturas da cavidade oral e do pescoço (tumores da língua, palato, lábio, laringe). Dezoito meses após a cirurgia inicial, foi retirado o cateter nasoenteral e a doente passou a
alimentar-se exclusivamente pela via oral.
Durante o tratamento, a doente utilizou
opiáceos como agentes analgésicos. Por isso,
apresentou obstipação intestinal crónica que
foi tratada com êxito com óleo mineral,
mantido mesmo após a retirada do cateter
nasoenteral. Dez meses após a retirada deste
cateter, queixou-se de tosse seca que se tornou produtiva com secreção mucosa, dispd e
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neia aos grandes esforços e perda ponderal
de quatro quilos, apesar do apetite mantido.
À ausculta pulmonar havia estertores em
ambas as bases pulmonares, “em velcro”. Há
um ano notou o surgimento de baqueteamento digital que se vem acentuando progressivamente nos últimos meses. A análise
evolutiva das suas radiografias mostrou o
surgimento de áreas de hipotransparência
para-hilar em pulmão direito. A tomografia
computadorizada (TC) do tórax mostrou
áreas com infiltrado intralobular, com padrão de vidro fosco, sem áreas de faveolamento, distribuídas em ambos os pulmões
Fig. 2 – Frasco com parte do material recuperado do lavado broncoalveolar onde se observa líquido heterogéneo, com material
amarelado e espesso formando uma camada de gordura, sobrenadante, na sua superfície
A análise citológica do lavado broncoalveolar evidenciou células colunares brônquicas
reacionais, associadas a macrófagos xantomatosos e exsudato inflamatório neutrofílico. Quadro citopatológico consistente com
pneumonia lipóide (Figs. 3 e 4).
Fig. 1 – Infiltrado intralobular, com padrão em vidro fosco, sem
áreas de faveolamento, distribuídas heterogeneamente pelos pulmões, porém mais observadas nas bases
(Fig.1). Devido às cirurgias prévias, não
conseguiu realizar a espirometria. Como
meio de definição diagnóstica optou-se pela
videobroncofibroscopia. O exame endoscópico da via respiratória foi normal e o lavado
broncoalveolar recuperado mostrou líquido
heterogéneo, com material amarelado e espesso, formando uma camada sobrenadante
na sua superfície (Fig. 2).
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Figs. 3 e 4 – Células colunares brônquicas reacionais, associadas a macrófagos xantomatosos
e exsudato inflamatório neutrofílico, consistente com o diagnóstico de PL
Discussão
A PL é o resultado de uma reacção tipo corpo estranho secundária à presença de mate-
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rial lipídico no parênquima pulmonar. Pode
ter origem na aspiração ou na inalação de
lipídeos exógenos (PL exógena), ou na deposição de material lipídico endógeno (PL
endógena), esta causada principalmente pela
deposição de células necróticas provenientes
de uma neoplasia brônquica obstrutiva.
A PL foi descrita pela primeira vez por Laughlen em 19251.
Existe uma grande variação geográfica na
prevalência da PL exógena. Em alguns países de África, a PL tem maior incidência em
crianças, uma vez que é hábito, nestas regiões, a alimentação forçada de crianças com
o ghee, uma forma de manteiga, na sua forma líquida, produzida apenas com a nata do
leite fervida; já na Ásia, a PL ocorre pelo uso
medicinal do óleo de fígado de tubarão, ou
devido a instilação nasal de óleo de oliveira2,3. Nos países industrializados, diferentes
agentes estão associados à PL, dentre eles os
óleos alimentares, a ingestão ou aspiração de
querosene e a inalação de lipídeos vaporizados durante o processamento de metais. Entretanto, a causa mais frequente de PL é uso
do óleo mineral como agente laxativo. O
óleo mineral é uma mistura de hidrocarbonetos saturados líquidos obtidos a partir do
petróleo. Quando administrado por via oral,
é mal absorvido e quando aspirado pode
causar a PL3,4.
A incidência exacta da PL é desconhecida.
Alguns dados de séries de autópsia sugerem
uma incidência aproximada entre 1% e
2,5%3. A incidência é maior nos doentes
crónicos e nos idosos.
À radiografia simples de tórax, podem ocorrer
imagens de hipotransparência, de preenchimento alveolar, mais comummente nos segmentos basais, e áreas de consolidação, mimetizando massas de baixa densidade3-5.
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O padrão radiológico na TC é inespecífico,
mas na maioria dos casos as alterações são
bilaterais, com predilecção pelos lobos inferiores e pelas zonas em declive dos pulmões.
Observam-se comummente opacidades em
vidro fosco, com espessamento dos septos,
típicos da pavimentação em mosaico, ou infiltrados com broncogramas aéreos3-5.
O diagnóstico de PL deve ser pensado nos
doentes, em geral idosos, com histórico de
constipação intestinal e uso crónico de óleo
mineral e portadores de doença do refluxo
gastroesofágico, disfagia, tosse e dispneia
crónicas6,7. Há ainda a descrição de sua
ocorrência em profissionais circenses, cuja
actividade é a de “cuspidores de fogo”, nos
quais pode ocorrer a aspiração acidental de
querosene7.
No lavado broncoalveolar, o achado típico é
o de macrófagos alveolares com inúmeros
pequenos vacúolos nos seu citoplasma que
se tornam evidentes com a coloração Sudan
Black, específica para lipídios, também utilizada na análise de biópsia transbrônquica
ou pulmonar, quando são realizadas para
definição diagnóstica7-11.
A história natural e o desfecho da PL são
variáveis. Além disto, dado o pequeno número de casos, é difícil o estabelecimento
de uma rotina terapêutica óptima. A maior
e principal preocupação vai no sentido de
se evitar que os episódios de aspiração se repitam. A lavagem mecânica da gordura dos
pulmões através da lavagem broncoalveolar
já foi tentada, sem muito sucesso e, actualmente, tem valor apenas nos episódios agudos e de grandes quantidades3. Na maioria
das vezes, aquando do diagnóstico, os lipídeos já foram translocados para o interior
dos macrófagos e não podem ser removidos
mecanicamente. Os corticosteróides não
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devem ser utilizados rotineiramente, pois a
sua importância na PL não está estabelecida. A maioria dos casos de PL é de baixa
gravidade e geralmente não progressivo,
caso novos episódios de aspiração sejam
evitados. O uso de corticosteróides na terapêutica deve ser reservado para os casos
mais graves3.
A maioria dos casos de PL é de origem iatrogénica, por isso a prevenção deve ser a
maior preocupação. O óleo mineral não
deve ser administrado a doentes que estejam em risco de aspiração, e neste grupo
estão incluídos as crianças e os doentes idosos, com doenças neurológicas, com disfagia, com paresia gástrica ou com refluxo
gastroesofágico. Não deve ser administrado
com o doente deitado ou sonolento. Portanto, é necessário cuidado na prescrição e
administração do óleo mineral aos doentes,
e o ideal é a utilização de outros medicamentos como laxativos.
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