PRESENT(E)AR O INVISÍVEL E O INDIZÍVEL
Julie Brasil
trauma imagem
consumo imaterial
A partir do diálogo com obras de artistas e apoiada na antropologia cultural, a autora
pondera sobre a arte como conector entre pensamento e sentimento. Mais especificamente, como um mecanismo que possibilita a continuidade do sentir que no pensar
já não mais cabe, quando o trauma já se estabeleceu.
O enfrentamento da vida e, logo, da angústia
da finitude é a saída do casulo da singularidade.
A consciência do desejo é ao mesmo tempo a
consciência de sua negação e de seu limite: o
desejo do outro. Daí, advém a possibilidade da
conjunção do diverso e de fazer valer o projeto
social relacional, em que todos podem contribuir
para elaborar as angústias juntos. Para atender à
PRESENT1 THE INVISIBLE AND THE UNSPEAKABLE
| Using artworks as starting point, and with the
support of cultural anthropology, the author mulls
over Art as a connection between thinking and
feeling. Specifically, at works as an engine that
makes continuity of feelings possible when they
no longer fit into thoughts, when trauma is already
a reality. | Trauma, image, consumption,
immaterial.
ordem social, faz-se necessário alterar o regime da
noção de trauma, uma vez que a psicanálise, que cunhou o termo, aplica o conceito apenas ao indivíduo
e se concentra na ordem da representação.
Pondero sobre a possibilidade de o artista, numa tentativa de conceder ou possuir a condição humana,
tratar do imaterial ao (res)simbolizar sintomas, present(e)ando traumas à sociedade, de modo a
apresentar, dar e retribuir o que ela pode suportar.
O ato de presentear parece datar da pré-história, quando grupos comunitários praticavam escambo,
beneficiando quem dava e quem recebia, num mundo pacífico ordenado pela necessidade primordial
de adquirir, produzir e conservar. Para o present(e)ar da arte, talvez seja mais adequado ponderar a
troca de economia generalizada sobre a qual Georges Bataille versa no texto A parte maldita,2 em
que o problema reside em saber como é usado o excesso num mundo consagrado à perda. A questão
afetiva da arte pode ser considerada a própria despesa, no sentido de que a materialidade present(e)ia
a imaterialidade.
Ninguém viu, 2015, pichação em braille, instalação, cimento, 50 x 450cm, Julie Brasil
ARTIGOS | JULIE BRASIL
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A noção batailliana pode dialogar com o dispên-
ções, relações que abrangem fenômenos sociais,
dio de descarga energética dos indivíduos. Se não
jurídicos, religiosos e estéticos com o intuito de
há mais uma utilidade clássica para a energia, o
gerar aliança e comunhão entre as partes. Tal
sujeito não tem alternativa a não ser consentir a
encadeamento ocorre porque existe uma circu-
inevitabilidade da perda e, ao fazê-lo, pode até
laridade entre as coisas e as pessoas, uma força
torná-la uma experiência palatável. A pressão
que as une num movimento de vai e vem, uma
pode conduzir ao princípio da perda e dilapida-
troca constante de matéria espiritual envolvendo
ção, mas pode, também, levar à abertura de um
coisas e homens, grupos e indivíduos que atra-
novo espaço, mesmo diante do horror que consti-
vessam as gerações. Doa-se porque se é forçado
tui a miséria humana.
a isso, porque o donatário tem uma espécie de
No texto de Bataille, a concepção de dispêndio
como mola mestra da economia aparece de for-
O present(e)ar que busco também é da ordem do
ma evidente no potlatch, um tipo de troca exis-
excesso, do incômodo perturbador que precisa ser
tente em algumas sociedades arcaicas, que con-
eliminado, trata de um evento afetivo que quer
siste em dádivas oferecidas por chefes de tribos
estabelecer um diálogo silencioso entre a obra e o
com a finalidade de humilhar, desafiar e obrigar
outro a partir de operações de arte. Inclui sentidos
um rival, por meio de presentes e destruições
complementares que se intercalam, que dilatam a
espetaculares da própria riqueza. O princípio
apresentação da produção artística com a abran-
desse tipo de perda visa à aquisição da honra
gência de tornar presente, dar de presente, trazer
ou glória. Trata-se da perda de riquezas transfor-
a valor presente, de embrulhar a experiência trau-
mada em ganho imaterial. Ele considera que uma
mática no papel-obra-de-arte, e que possibilita à
porção limitada da energia é dirigida ao crescimen-
sociedade o compartilhamento de um conteúdo
to, à produção e à conservação, e outra parte per-
avassalador possível de ser suportado e tratado, e
manece como demasia, maldição intrínseca à ne-
que, ainda que perfure, não vai sangrar.
cessidade do dispêndio que provoca a consumição
necessária para a sobrevivência do próprio sistema.
Assumo também o termo present(e)ar na acepção
de apresentar e divulgar, e assumo o desejo de
As dádivas pensam na edificação da ordem social
uma arte que aponta, aquela que disponibiliza e
para além dos registros do contrato e do utilitário,
dá a conhecer, a arte que expõe. O destaque inter-
algo que não é da ordem do cálculo egoísta do
valar “e” solapa o presentear no sentido de estar
individualismo nem do caráter benevolente
presente no lugar de que se fala, o que perma-
dos costumes sociais do universo holístico. Na
nece, o que fica de lembrança ou recordação no
dádiva, é até possível a generosidade diante do
caminho de mão dupla entre o artista e o outro,
adversário, pois o ganho se dá posteriormente, e
sentido que ainda poderia aderir à dádiva da arte
não de antemão, como no utilitarismo.
que cede e concede afetos, a que tem obrigações
A dádiva no potlatch não consiste exclusiva-
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direito sobre tudo o que pertence ao doador.
de relações, retribuindo presentes.
mente no ato de dar, pois inclui a obrigação da
O que se pode oferecer ao sujeito traumatizado
contrapartida. É o encadeamento de uma tripla
que utiliza o mecanismo de deturpação e alteração
obrigação de dar, receber e retribuir. São presta-
dos fatos para tornar a vida suportável?
A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 1 | junho 2016
A saída pode ser a de alterar os fatos numa adição
de elementos da arte reconstruindo sua infância,
recém-transformada à realidade social comparti-
auxiliado por registros que o levam de forma con-
lhada, para a qual podem contribuir os artistas,
sistente a ver o passado e avaliar a impermanência
que por sorte ainda resistem à tentativa de ser
em um nível geral.
transformados em máquinas.
Como Sherlock Holmes, busca pistas, fotografias e
Warhol pareceu não ter resistido, mas, ao repetir
utensílios associados com a memória – roupas, la-
indefinidamente a Marilyn Monroe como padro-
tas, arquivos, para produzir imagens e fragmentos
nagem modular, amarrou o abjeto e o aurático
que remontam um passado ou reconstituem iden-
por meio do domínio do valor de culto e acabou
tidades, sem, no entanto, dar no final qualquer in-
por evocar atos e gestos de despedida – impres-
dicação clara quanto ao destino daquelas pessoas.
sões borradas beirando um horror vacui3 neobar-
Somos confrontados com biografias simbólicas
roco, com pingos de tinta e marcas de lápis como
que permitem palpabilidade à presença da morte.
sinais de perda da espessura histórica da cultura,
em que a foto era o indício da conexão física e,
muitas vezes, a sintetização da memória como
testemunha de dor. Ao duplicar uma imagem reprodutível conhecida por milhões, o artista tenta
devolver a Monroe algo que lhe fora roubado.
Sua imagem continuou a fazer parte da mente
coletiva, que ao reconhecê-la, tornou-a irrevogavelmente viva. Resumir a arte que toca no trauma
e na memória como representação ou sintoma
seria, porém, totalizante e se traduziria em alienação ou esquecimento.
Quando questionado sobre o sentido de seu
trabalho, não raro conta histórias extraídas de
um vasto repertório e formula respostas indiretas
num mundo inabitado por ele e seu interlocutor.
Narrativas etnográficas, anedotas e fábulas
tomam força centrípeta que converge para a
ideia de que a memória só é possível por meio do
contar. Histórias que permitem acesso e recebem
a sua obra, que também fala em transmissão
e relações humanas. Como Proust, carrega o
sentimento de pessoas que desapareceram
diante de seus olhos, a experiência do tempo,
O contemporâneo francês Christian Boltanski en-
das coisas do dia a dia e das garantias franzinas
frentou a difícil tarefa de dar forma ao sem forma,
do que somos. Conta por meio de suas obras a
num limite muito mais determinado pela ética do
nossa própria história, em que nos reconhecemos
que pela estética. Alguém que em suas práticas
nas particularidades e contingências dos retratos
artísticas considerou a pressão de eventos que im-
de família e da própria existência.
pactam de forma profunda a sociedade. Obra que
passeou por sua vida afetiva traumatizada e que
o fez presentar uma produção em circunstâncias
em que está contextualizada, para uma sociedade
igualmente sequelada.
Réliquaire é obra que delata sua memória esburacada da guerra, suas vagas lembranças de judeu
nascido em 1944, que tenta preencher os furos
entre presenças e ausências da ideia de desastre.
Herdou da guerra um pai que encenou o próprio
Boltanski traz questões localizadas, trabalha a no-
desaparecimento, vivendo por mais de um ano
ção de monumento indiciado pelos acontecimen-
num esconderijo subterrâneo, além de uma per-
tos e articula a reciprocidade com as exteriorida-
cepção do impacto da morte, como filho da mãe
4
des chiaroscuro da fragilidade humana por meio
que viu toda uma sociedade queimada.
ARTIGOS | JULIE BRASIL
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A instalação, talvez inspirada em alguma religião
tentativa de transformar a estatística da morte de
primitiva, é uma espécie de altar construído por
milhões em tragédia da morte de um.
diversas fotos em preto e branco de crianças, que
se encarregam de dar um ar sombrio de purgatório ou sala de interrogatório com vítimas da
Segunda Guerra Mundial. É um monumento
construído com roupas usadas durante anos, em
menção à reciclagem e reversão, numa composição geometrizada inspirada no minimalismo.
ção humana, a questão da morte e a (co)memoração soam como reminiscências do passado e do
presente. Assemelha-se à disposição do memento
no quadro Marylin Diptych, de Warhol, se rotacionado, em que abscissas e coordenadas de uma
grid-cruz7 fornecem a imagem vívida da diva sob a
Rostos ampliados parecem ligados à vida por lon-
sua enodoada e descolorida imagem. Vida e mor-
gos fios de fuga que atravessam as paredes e as-
te em eterno pas-de-deux.8
seguram a costura dos elementos. O sem-número
de linhas que ora parecem delgadas grades, ora
instrumento de trabalho das moiras,5 ligam as
crianças a lâmpadas acesas, atuando como velas
devocionais de entrega. O informe de roupas em
cores vívidas da base faz a vez da pele que indicia a presença humana, verdadeiras relíquias que
hoje podem muito e lembram da infância, a primeira a morrer no adulto, fechando um ciclo que
se fecha para a morte.
Boltanski investe na densidade da imagem por
meio do acúmulo de história e sentimentalismo,
enquanto o limite de Warhol, aplainado pela superfície, é o ícone. Em contraposição a Marilyn, a
ideia de Réliquaire é glorificar o ser humano anônimo, dando atenção a cada indivíduo, enfrentando uma massa amorfa de vítimas, carregada
da responsabilidade de romper com a indiferença de um número e ir em direção à pluralidade
dos sujeitos. O processo de individuação, aqui, é
Boltanski dá preferência a espaços não museais.
construído por identificação metonímica com as
A estrutura litúrgica coloca o fruidor no estado
roupas, que também recordam restos organiza-
receptivo ampliado à emoção em detrimento do
dos e pilhas de corpos nos campos de concentra-
prazer intelectivo. Não se trata mais de memória,
ção. Em Warhol, o nome vira número, enquanto
mas de adiar o esquecimento. A instalação-retá-
em Réliquaire, o número vira nome, transforma os
bulo, dotada de dimensão sacral em sua criação
milhões de mortes que caracterizam indiferentes
6
estética, traz um pathos amplificado pela economia dos meios que anunciam a morte e o mal,
mistérios inseparáveis do humano, em que cada
imagem ou presença torna-se um instrumento
de memória. Por trás de cada pessoa morta está
alguém outrora vivo. Por trás de cada vivo, paira
um morto.
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A dimensão religiosa acoplada à ideia de celebra-
estatísticas, em trágicas mortes individuais.
O present(e)ar artístico lembra-nos de que temos
excesso de falta, de que algo foi esquecido ou
que assusta demais para ser sabido, e que para
sobrevivermos como espécie viável, devemos nos
tornar também o outro, estar dispostos a sentir o
nosso entorno social. Os traumas integrados a um
Os rostos são apenas refotografados e ampliados,
todo significativo coerente e transmutados em rit-
o que dá um ar bastante trágico. Rostos borrados,
mos de debelamento de sintomas. Traumas não
contrastes acentuados, olhos e sorrisos se trans-
esquecidos, mas alterados juntos, não mais como
formam em fantasmas surgindo do nada, numa
fantasias aterrorizantes recorrentes de uma vítima
A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 1 | junho 2016
Réliquaire, 1990, instalação, dimensões variáveis, Christian Boltanski
solitária, mas em adição à recém-transformada
realidade cultural compartilhada não só por intermédio do intelecto, mas da experiência. A arte
propondo mediação e contato com tudo o que se
exterioriza e se apresenta, de modo a obter novos
embates com emoções, sentimentos e sensações
para além da nossa própria existência. Por meio
da obra, envolver cuidadosamente o grupo social
numa experiência compartilhada de angústia e,
eventualmente, promover transformações cogni-
tivas, comportamentais e emocionais, para que
relações sociais e experiências subjetivas possam
entrar em harmonia.
Da produção de arte que trata de uma amargura
aberta, próxima, não ficcional, advém a questão
ética da qual não se pode escapar. Não é a reflexão sobre o limite e o respeito ao outro à margem
da obra em si, mas uma constitutiva, formal, indissociável, uma espécie de (est)ética que transcende o comprometimento político do artista.
ARTIGOS | JULIE BRASIL
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No ensaio Diante da dor dos outros,9 Susan Sontag, escritora, crítica de arte e ativista norte-ame-
tir daí, transporta-se pela memória. Sua instala-
ricana, reflete sobre a variedade de interpretações
ção também alavanca a memória involuntária, o
e de reações perante fotografias de guerra, ana-
redescobrir de um tempo que assenta energia e
lisando o cunho jornalístico como meio de cha-
singularidade da obra, expondo à consciência um
mar a atenção das pessoas. A autora questiona a
fragmento valioso de um passado irrecuperável
ética dessas imagens e as reações diante da dor
em contraponto aos estilhaços inertes da memó-
do outro. A exposição de imagens do sofrimento
ria voluntária.
distante aumenta a violência ou serve como motivação para reflexão em prol da paz?
Ali esconde-se uma experiência involuntária, sensação única antes experimentada, seguida de uma
Penso nas diferenças de tratamento entre um
intensidade que faz insurgir um eu profundo que
cadáver fotografado em um livro ou em espaços
diz da mortalidade. Fingimos distração, para nos
expositivos protegidos e o oferecido a corpos ami-
recompor antes de empreender uma nova tenta-
gos que falam a partir da sepultura, a quem di-
tiva de reconhecimento. Algo em nós desancora
recionamos um olhar piedoso e cujo desamparo
lentamente de uma fundura sem tamanho, sentin-
não exibimos.
do a resistência e escutando um zumzumzum dos
Georges Didi-Huberman, antropólogo visual, filó-
anos, em que tempo e memória trazem incidentes,
sofo e historiador francês, é modelar no que diz
acontecidos e esquecidos no passado, como (re)
do projeto de exposição Mémoire de camps, de
acontecimentos num novo momento do tempo.
2001, em Paris, que incluiu quatro imagens feitas
Boltanski sincroniza, interpola infinitas transfor-
em agosto de 1944 pelos membros da resistência
mações do eu nas diversas máscaras do tempo.
judia do Sonderkommando,11 em que se fotogra-
O presente não é ontem ou amanhã, nem mesmo
fou o processo de extermínio em curso nas câma-
o frágil agora, que deixa de ser, e por isso, pode
ras de gás em Auschwitz. Ele afirma que tentou
tão profundamente vir a ser. Nem passado, nem
ver as imagens para melhor sabê-las, e que usou
presente, mas uma presença sensível que faz coin-
um sintoma perturbador para reconfigurar a rela-
cidirem momentos incompatíveis separados pelo
ção com as imagens sabidamente lacunares com
curso da duração.
10
respeito ao indizível, mas das quais poderia extrair
qualquer coisa que fizesse sentido na compreensão inconclusa da Shoah.12
Ao mergulharmos o réliquaire-memento-morte
em nosso eu-xícara-de-chá, cessam as dúvidas racionais. Sem a pressão do presente e com foco nas
A arte pode ser a quebra do silêncio imposto pelo
parecenças das experiências, mergulhamos exis-
isolamento, no momento em que o pensamento
tencialmente em nós e concluímos que o gozo é
não resiste e o discurso colapsa. Talvez ainda valha
pela simultaneidade de sensações identificadas no
insistir em um redirecionamento.
agora e no ontem, fazendo o distante se entrelaçar
Em Réliquaire, Boltanski apropria-se do transmu-
no atual a ponto de não sabermos mais em qual
tar do tempo perdido em tempo redescoberto,
momento nos encontramos. É a morte anônima
tal qual em No caminho de Swann, de Marcel
da qual devemos nos alforriar para poder morrer a
13
Proust,
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pedaço de madeleine numa xícara de chá, e a par-
em que a personagem mergulha um
nossa própria morte, que nos singulariza.
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La maison manquante, 1990, instalação, Christian Boltanski, Berlim
Essa tal de errância e acertância da vida confir-
são misturados com as do algoz, para nos fazer
mando o tempo que se esvai e que arrasta as
meditar e não tentar estabelecer uma lei. Frente
piores e melhores lembranças, os entes mais que-
ao drama, o artista coloca a misteriosa opacidade
ridos, e que a memória, compondo o que é e sem-
do real na qual estamos implicados.
pre será, faz acontecer o que é trazido ao coração,
em que presente, passado, futuro convocam nossas forças subterrâneas e provocam o que só se
consegue fora do tempo, nos muitos tempos que
nos habitam.
O filósofo búlgaro Tzvetan Todorov aborda a
questão da alteridade e de como nos relacionamos com ela, em seu livro A conquista da América: a questão do outro, tratando da identidade e
do reconhecimento do diverso pelo contato entre
Boltanski fala de uma banalidade do mal proe-
duas culturas. Ele tece sobre as consequências do
minente, como um dedo que aponta para todos
choque com a desconsideração da alteridade e
nós. Nas várias peças de roupa que recebe, bem
das novas relações dos homens entre si e com o
como nas instalações fotográficas derivadas de re-
mundo, alertando para as implicações sociais na
vistas criminais, os nomes e os rostos das vítimas
recusa que se faz do outro, onde o desprovido
ARTIGOS | JULIE BRASIL
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Personnes, 2007, instalação, Christian Boltanski, Milão
pode ser descaracterizado em sua originalidade
A não casa em Berlim tornou-se um memorial per-
cultural: “Pode-se descobrir os outros em si mes-
manente, um local que promove lembranças e re-
mo, e perceber que não é uma substância homo-
constitui identidades em que se evocam os nomes,
gênea e radicalmente diferente de tudo o que não
profissões e datas de nascimento e morte de quem
é si mesmo, eu é um outro. Mas cada um dos
ali habitava, com simples placas de identificação.
outros é, também, um sujeito como eu.”14
La maison manquante15 é obra que aponta uma
nova direção, na qual Boltanski lida de forma mais
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Memórias perdidas dos ex-ocupantes da casa bombardeada em 1945, afixadas nas paredes externas
dos dois edifícios vizinhos que ali permanecem.
sutil com as questões do genocídio, fazendo uso da
Sobre as imagens lacunares da Shoah, Didi-Hu-
distância física e do vazio, e que, segundo ele, foi o
berman sugere que elas sejam vistas também se-
único monumento possível, um que não fosse sóli-
gundo sua fenomenologia, exigindo um trabalho
do, que não fosse feito de pedra, mas de palavras.
crítico multissensorial. Assim também deverá ser
A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 1 | junho 2016
o embate com obras imateriais de arte que pre-
Para Boltanski, cada obra deveria suportar ser
sent(ei)am traumas, em que devemos expandir ao
transformada como a música a cada exibição, de-
máximo sua substância imaginal e restituir-lhes o
vendo ser interpretada e adaptada no nível máxi-
elemento antropológico que as põe em jogo.
mo. Ele compartilha da cultura oriental, em que o
Na Bienal de Veneza de 2011, Boltanski fez uma
grande instalação no Hangar Bicocca, em Milão,
que importa é a transmissão por meio da ideia, não
pelo objeto da sociedade ocidental, que engessa
em que a luz conduzia o fruidor por um caminho
a forma. A ideia não é instruir, mas desorientar. É
ao longo do qual se escutavam batimentos car-
abrir para novas interpretações e leituras, é recusar
díacos de indivíduos já falecidos, e que culminava
adotar o ponto de vista moralista ou político, é não
num espaço com montanhas de roupas multico-
separar vítimas de executores, abarcando, assim,
loridas que pertenceram a 500 mil pessoas. Um
toda a humanidade e suas contradições.
deus-grua, no teto, escolhia, suspendia e amon-
Muitos veem sua obra ligada à poesia, já que o
toava randomicamente as peças, como se fossem
drama visual interior parece substituir a relação
corpos, criando uma gigantesca pintura impres-
com a linguagem, a palavra-ponte torna-se ima-
sionista construída ao acaso.
gem, derrama-se nos sentidos, conectando-a em
As roupas foram recicladas em Paris após a ins-
sua atemporalidade à realidade.
talação Personnes, e na Itália, no final da exposição homônima, foram acondicionadas em
pequenas bolsas.
Talvez Boltanski mantenha relação com o espaço
poético que tende cada vez mais a se solapar com
o espaço plástico-visual – e suas histórias se tor-
Os sacos de roupas com a inscrição Dispersion
nem o que contarão, mas, seja lá o que for con-
poderiam ser percebidos pelo público como obra
tado, vai-se tornar sua própria história. Segundo
de arte, e assim lhes seria atribuído um valor
o artista, “Todas as histórias falam a mesma coisa
simbólico. Os que imaginassem tratar-se de um
porque em arte a mentira é constitutiva da ver-
simples armazém, fruto de trabalho comunitário,
dade e esta só se sustenta através da mentira”.16
poderiam aproximar-se e levá-las para casa, devolvendo-lhes o valor de uso como uma espécie de
ressurreição. As roupas de mortos, ou fora de uso,
voltariam à vida novamente.
A intenção plural da arte reforça e remodela o
belo como um processo estético gerador de afetos para responder ao mundo exterior; pode ser
até difusa e informe, como ansiedade e melanco-
As roupas são objetos de consumo, os quais pode-
lia, e não pretende ser resposta emocional parti-
mos relacionar ao repertório de Andy Warhol, uma
cular para um situação específica, mas apenas um
vez que embaça o limiar da fronteira entre arte e
quotidiano, apropriando-se de objetos banais produzidos industrialmente com a “finalidade artísti-
halo e um acorde de toda uma condição compassiva na contemporaneidade.
ca”. Roupas equivalem a corpos, como retratos são
Didi-Huberman afirma que as obras têm fraturas
objetos que lembram a ausência do indivíduo. Dis-
formais em que existem sintomas, mas que tentar
persion é arte contemporânea do pós-guerra, es-
interpretá-los pode destruir o saber artístico. Fazer
cultura, objeto, símbolo de ressureição ou um saco
arte é não ficar preso ao sintoma sígnico, não é
de roupa? Ou será tudo isso junto e misturado?
procurar cura, mas ordenhar significados dos sig-
ARTIGOS | JULIE BRASIL
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Assum preto, 2015, audioinstalação, dimensões variáveis, Julie Brasil
nificantes. É almejar a transformação do trauma
As obras quiçá sejam vozes entrelaçadas nas quais
não como ferida a ser cicatrizada, mas para con-
artistas sublimam as pulsões mais ocultas ou talvez
seguir um novo sentido ou, melhor, parir um sen-
sejam as provas ativas e desaparelhadas de traumas
tido propriamente dito. A arte que viabiliza outro
experimentados, não necessariamente umbilicais, e,
pensar-sentir, que abre e põe em questão afetos
ainda que nós mesmos não reconheçamos, a arte é
que implicam a existência do passado e sonho de
um azimute que present(e)ia um curto circuito para
sua (re)ssimbolização.
atiçar um algo que abala e desconcerta. Talvez os
Ancoro-me na artista e psicanalista pós-lacaniana franco-israelense Bracha Ettinger, para quem
o conceito de belo é a capacidade ética da estética, a competência de estimular o que ela nomeia response-ability, a capacidade de responder
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fruidores-sujeitos afetados por uma criação nem
saibam de onde vem tal estranheza ou inquietação
latente, já que movimentos do desejo passam por
densos atravessamentos e transformações antes de
servir como alimento intelectual e afetivo.
à humanidade do outro, a sua vulnerabilidade e a
Uma das possibilidades da arte pode ser a de ma-
qualquer risco de ameaça à humanidade.
nifestar mais livremente e aparecer como espaço
A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 1 | junho 2016
marginal, exercendo o papel de intercepção de
http://www.jstor.org/stable/778321. Acesso em 16
fronteiras em que se apagam e se traçam novas
de abril de 2015.
bordas, em que surge o eu em contato com a diversidade do outro, que também é afetado pelo
eu e que constitui uma sociedade diferente dos in-
8 Coreografia executada no ballet clássico por um
bailarino e uma bailarina.
divíduos, em que se contradizem ressentimentos
9 Sontag, Susan. Diante da dor dos outros. São Pau-
do cotidiano social, se mesclam prazer e morte na
lo: Companhia das Letras, 2003.
intimidade que faz jorrarem fluidos de dor trágica
e de ironia romântica. Afinal, segundo o pensador
Jean-François Lyotard,17 “Somos todos judeus depois do Holocausto”.
Somos todos assuns pretos depois de Humberto
Teixeira e Luiz Gonzaga.
10 Didi-Huberman, Georges. Imagens apesar de
tudo. Lisboa: KKYM, 2012.
11 Prisioneiros que atuavam nos campos de concentração sob comando nazista e que tinham a função
de executar tarefas críticas, como enterrar os corpos
dos prisioneiros mortos e limpar as câmaras de gás.
Apesar de ter alguns privilégios eram exterminados
NOTAS
1 A palavra present em inglês contém os sentidos
que present(e)ar quer expressar: dar de presente e
apresentar.
The word present in English contains the meaning
após algum tempo de serviço.
12 Holocausto. Genocídio de cerca de seis milhões
de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
13 Proust, Marcel. Em busca do tempo perdido. No
caminho de Swam. Rio de Janeiro: Globo, 2006.
that to present wants to express: to give as a gift
14 Todorov, 1982: 2. Todorov, Tzvetan. A conquista
and to present
da América, a questão do outro. São Paulo: Martins
2 Bataille, Georges. A parte maldita precedida de A
noção de dispêndio. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
Fontes,1982.
15 A casa desaparecida.
16 Semin, 2008: 5. Semin, D. et al. Christian Bol-
3 Medo do vazio.
tanski. London: Phaidon Press Limited, 2008.
4 Luz e sombra como metáfora de vida e morte.
17 O filósofo francês Jean-François Lyotard, um dos
5 Na mitologia grega, as moiras eram três irmãs que determinavam o destino dos deuses e seres humanos, sendo responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da vida.
6 Sofrimento enquanto condição para a própria
existência.
mais importantes pensadores a discutir a pós-modernidade, foi autor dos livros A fenomenologia, A
condição pós-moderna e O inumano.
Julie Brasil é artista, professora de desenho na UFRJ
e mestre em linguagens visuais pelo PPGAV-UFRJ. O
presente artigo deriva de sua dissertação Presen-
7 Referência ao texto Grids, de Rosalind Krauss, que
t(e)ar o trauma, orientada pelo professor doutor
fala em sua presença na pintura do século 20 e na
Cezar Bartholomeu e defendida em 29 de junho
dimensão espiritual do signo cruz. Disponível em
de 2015.
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