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O mundo de todos os mundos: um estudo sobre o encontro de mundos ficcionais na Comic Con Experience The world of all worlds: a study on the meeting of fictional worlds at Comic Con Experience. El mundo de todos los mundos: un estudio sobre el encuentro de mundos ficticios en Comic Con Experience Leonardo Soares da Silva – Universidade Federal do Rio de Janeiro | Rio de Janeiro | RJ | Brasil. Email: lss_ufrj@yahoo.com.br | Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1122-2007 Isabel Travancas - Universidade Federal do Rio de Janeiro | Rio de Janeiro | RJ | Brasil. E-mail: isabeltravancas@gmail.com | Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4467-0626 Resumo: A Comic Con Experience, que se destaca por ser a maior comic con do mundo, em 2019 passa a se chamar “Comic Con Experience: o mundo de todos os mundos”. Através da etnografia pautada na perspectiva dialógica abordada por James Clifford, o artigo objetiva compreender como esta comic con é capaz de vincular diferentes mundos ficcionais em um só lugar e, assim, assumir esta denominação. O estudo conclui que estes mundos estão concatenados pela cultura pop que, mais do que conter referências a elementos de narrativas, gera afetos responsáveis por dar sentido e movimento ao evento. Ao demonstrar que este vínculo é promovido devido a um “comum” resultante do conhecimento prévio das narrativas da cultura pop, o artigo busca contribuir para a compreensão do conceito de Comunicação abordado pelo pesquisador Muniz Sodré em seu livro a “A ciência do comum: notas sobre o método comunicacional”. Palavras-chave: mundos possíveis; mundos ficcionais; cultura pop; “comum”; etnografia. Abstract: The Comic Con Experience that stands out for being the largest comic in the world, in 2019 is renamed "Comic Con Experience: the world of all worlds". Through ethnography based on the dialogic perspective, the article aims to understand how this comic is able to link different fictional worlds in one place and thus assumes this name. The study concludes that these worlds are linked by pop culture which, more than containing references to narrative elements, affects responsible for giving meaning and movement to the event. By demonstrating that this link is promoted due to a "common" resulting from prior knowledge of pop culture narratives, the article contributions to the concept of Communication addressed by Professor Muniz Sodré in his book "The science of the common: notes on the communicational method”. Keywords: possible worlds; fictional worlds; pop culture; "common"; ethnography. https://doi.org/10.22484/2318-5694.2022v10id4896 Copyright @ 2022. Conteúdo de acesso aberto, distribuído sob os termos da Licença Internaonal – Creative Commons — Atribuição 4.0 Internacional — CC BY 4.0 Resumen: La Comic Con Experience que destaca por ser la comic con más grande del mundo, en 2019 pasa a llamarse "Comic Con Experience: el mundo de todos los mundos". A través de la etnografía basada en la perspectiva dialógica abordada por James Clifford, el artículo pretende comprender cómo este comic con es capaz de vincular diferentes mundos de ficción en un solo lugar y, así, asumir este nombre. El estudio concluye que estos mundos están ligados por la cultura pop que, más que contener referencias a elementos de narrativas, genera afectos responsables de dar sentido y movimiento al evento. Al demostrar que este vínculo se promueve por un “común” resultante del conocimiento previo de las narrativas de la cultura pop, el artículo busca contribuir a la comprensión del concepto de Comunicación abordado por el investigador Muniz Sodré en su libro “La ciencia de lo común: apuntes sobre el método comunicacional ” Palabras clave: mundos posibles; mundos de ficción; cultura pop; "común"; etnografía. Recebido em: 26/01/2022 Aprovado em: 27/06/2022 Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 |2 1 Introdução As comic cons, comic conventions (convenções de quadrinhos) são eventos organizados por fãs para fãs da cultura pop. Ao longo de suas atividades, seus participantes podem trocar informações sobre esta cultura, comprar e vender produtos, encontrar grandes nomes dos quadrinhos e participar de atividades como os concursos de cosplay e os painéis com celebridades desse universo pop. No Brasil, a comic con que mais tem se destacado é a Comic Con Experience (CCXP), criada em 2014 pelo site Omelete, em conjunto com a Chiaroscuro Studios e a Piziitoys. Em 2019, 280 mil pessoas participaram do evento (VITORIO, 2019). Ao longo dos primeiros quatro dias de dezembro, a Comic Con Experience reúne, no Centro de Convenções São Paulo Expo, varejistas que comercializam produtos exclusivos da cultura pop; e estúdios de cinema e televisão que, além de disponibilizarem estandes onde divulgam suas produções com atrações e atividades para os fãs, realizam painéis com artistas e diretores e exibem trailers inéditos e préestreias de filmes, séries e animações no auditório Cinemark. O evento também possui uma área, o Artist’s Alley, onde os visitantes podem não apenas entrar em contato direto com seus ídolos dos quadrinhos como comprar seus desenhos autografados; além de um espaço voltado para games; um dedicado aos criadores de conteúdo da internet; e outro aos cosplayers. Na edição de 2019, estávamos realizando uma etnografia do evento, cujo objetivo era compreender as experiências vivenciadas por seus participantes. Contudo, neste ano, ele adotou a denominação “Comic Con Experience: o mundo de todos os mundos”, detalhe que despertou em nós uma curiosidade e um interesse de pesquisa: O que permite ao evento assumir esta denominação? Para responder esta questão, decidimos também nos debruçar sobre este fato. Através da observação participante, percebemos que a Comic Con Experience faz referência a mundos oriundos de narrativas de filmes, séries, quadrinhos, livros e games. Em paralelo com a realização de entrevistas abertas e em profundidade, a observação indicou também que os componentes destes mundos não eram reconhecidos de maneira isolada pelos participantes. Havia algo compartilhado entre eles, responsável por vinculá-los. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 |3 A partir desta observação desenvolvemos este artigo com o propósito de identificar o que produziu esta vinculação e possibilitou que a Comic Con Experience fosse considerada o “mundo de todos os mundos”. Para tanto, com base na filosofia dos mundos possíveis, abordada a partir das reflexões de pensadores como Umberto Eco (1984, 2002), Thomas Pavel (1986) e Marie-Laure Ryan (1991, 1992), analisamos o evento à luz da teoria dos mundos ficcionais, que tem em Lubomír Doležel (1998) um de seus principais expoentes. Ao mesmo tempo, refletimos sobre o “comum” a partir da abordagem de Muniz Sodré em seu livro A ciência do comum: notas sobre o método comunicacional (2014). 2 A etnografia na Comic Con Experience É preciso destacar que a etnografia não é considerada um método. Ela não é tratada como um detalhe metodológico, como uma caixa de ferramentas de onde retiramos “instrumentos” para observações e análises. Como Magnani (2009, p.133), não a separamos “nem das escolhas teóricas no interior da disciplina, nem das particularidades dos objetos de estudo que impõem estratégias de aproximação com a população estudada e no trato com os interlocutores”. A etnografia consiste em uma contribuição teórica (PEIRANO, 2014) e, neste estudo, envolve a perspectiva dialógica da antropologia. O objetivo da etnografia que estávamos realizando no evento era compreender as experiências vivenciadas por seus participantes, em relação às experiências dos pesquisadores, e, por isso, era fundamental uma perspectiva teórica que abordasse os diálogos e as interações no campo. Centrada em um processo no qual os participantes assumem o papel de interlocutores que negociam conosco sua visão da realidade analisada, esta abordagem possibilita que os paradigmas discursivos sejam pautados em uma relação comunicativa verbalizada entre todos os que participam do evento, havendo, portanto, uma tessitura textualizada tanto do “outro” como dos pesquisadores no trabalho de campo (CLIFFORD, 2002). A perspectiva dialógica também se enquadra no estudo desenvolvido neste artigo, pois o intercâmbio que marca os diálogos permite uma visão compartilhada das experiências que vivemos a partir do encontro com os mundos ficcionais representados no evento. As interlocuções e os contextos em que as interações ocorrem durante a pesquisa são analisados com atenção. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 |4 As declarações, relatos e considerações dos interlocutores são transcritos extensa e literalmente. Revelamos seus nomes próprios, mas, por questões de confidencialidade, omitimos os sobrenomes. Procuramos considerá-los “pessoas muito concretas, cada uma dotada de suas particularidades e sobretudo, agência e criatividade” (GOLDMAN, 2003, p.456). Outro ponto a considerar é o fato de um dos pesquisadores ser também fã de cultura pop e já ter estado em outra edição do evento. Em um primeiro momento, seria possível supor que esta característica dificultaria o estranhamento, considerado muitas vezes como condição para a realização de uma boa etnografia (DAMATTA, 1978; GEERTZ, 2001; LAPLANTINE, 2000). Entretanto, para Caiafa (2019) isto não é uma constante. De acordo com seu “método-pensamento”, o estranhamento não deve ser visto como algo garantido desde o início ou mesmo condicionado a um objeto. Segundo a antropóloga, ele é obtido a partir do processo de pesquisa, pautado em agenciamentos e desenvolvido através do regime de simpatia, um caminho para evitar que o “outro” seja explicado como frágil, exótico, inferior, em uma pretensão que fomente uma posição de poder, ao mesmo tempo em que evita que haja uma identificação entre ele e o pesquisador (CAIAFA, 2019). Assim, através deste método-pensamento, nos deixamos afetar por tudo que está ao redor no campo, estabelecendo uma distância com relação ao objeto, em que não se fique nem excessivamente longe nem próximo demais. Ele possibilita desenvolver um “ter algo a ver”, uma simultaneidade, que permite um compartilhar de paixões (CAIAFA, 2019). Por isso, se pode realizar a etnografia como um aca-fã, conceito abordado por Vassalo Lopes et al. (2017) 1. A etnografia é, portanto, construída por um colorido formado com uma multiplicidade de vozes que permitem tanto o estranhamento como a percepção do que há de relevante no familiar, a partir de uma participação e de um engajamento criador no campo. Ela é desenvolvida através da observação participante e de entrevistas abertas e em profundidade. 1 Aca-fã é o acadêmico que estuda um objeto do qual ele também é fã. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 |5 3 A Comic Com Experience e os diferentes mundos A Comic Con Experience é repleta de referências a personagens, artefatos, lugares e acontecimentos, elementos que compõem os diferentes mundos ficcionais presentes nas narrativas de filmes, séries, quadrinhos, games e livros. A edição de 2019 comemorou o 80º aniversário do Batman com uma área que reproduzia elementos de seu mundo, como a sala de estar da mansão Wayne, a entrada da batcaverna e seu computador – uma reprodução que na comic con foi utilizada pela empresa “Oi” para monitorar o desempenho da internet no evento. A área reunia também alguns dos veículos utilizados pelo herói em diversos momentos de sua história na televisão e no cinema. Dividiam o espaço o clássico batmóvel da série de televisão dos anos 60, o batmóvel do filme “Batman” de Tim Burton e a batmoto da trilogia “Batman: O Cavaleiro das Trevas” de Christian Nolan. A Comic Con Experience também realizou painéis e masterclasses com profissionais que participaram da produção de quadrinhos importantes do Batman. O quadrinista e roteirista Neal Adams, que já trabalhou em vários quadrinhos do herói, falou sobre sua trajetória e abordou a relação do Homem Morcego com os vilões cocriados por ele, Ra’s Al Ghul e o “Morcego Humano”. O primeiro, além de ter sido o principal vilão do filme “Batman Begins”, aparece, como o segundo, em várias produções, como a série animada do Batman, a série “Gotham” e o filme “LEGO Batman”. Os demais mundos retratados nos quadrinhos também puderam ser vistos no Artist’s Alley, área onde vários quadrinistas, nacionais ou estrangeiros, famosos ou não, vendem e autografam seus desenhos. Esta área reunia referências a mundos ficcionais diferentes com seus criadores. Os diferentes mundos oriundos de filmes e séries de streaming foram levados à Comic Con Experience por conglomerados como a Warner Media (formada por estúdios como HBO, Warner Bros. Pictures, Warner Bros. Home Entertainment, Warner Bros. Television, Warner Bros. Consumer Products, Warner Channel, Warner Bros. Games, DC, Cartoon Network, Adult Swim e Particular Crowd) e Disney (que além dos estúdios Disney, ainda reúne a Fox, a Pixar, a Lucas Film e o Universo Cinematográfico da MARVEL), por estúdios de cinema como a Paramount, a Sony Pictures e a Universal Pictures; por plataformas de streaming como a Netflix, a Globoplay e a Amazon Prime; e por estúdios e emissoras de televisão como a Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 |6 Nickelodeon e o SBT, que não apenas montaram estandes com ativações para divulgar seus lançamentos, como realizaram, no auditório Cinemark, painéis com trailers e celebridades de suas produções. A Disney trouxe o presidente da MARVEL Studios, Kevin Feige, que revelou informações sobre as novas séries da plataforma de streaming Disney Plus e dos lançamentos do Universo Cinematográfico da MARVEL (MCU). O Conglomerado também levou o elenco principal da última trilogia Star Wars (Daisy Ridley, John Boyega e Oscar Isaac) que, junto com o diretor do último filme, “Star Wars – A Ascenção Skywalker”, J.J Abrams, fizeram história ao ser o primeiro elenco da franquia no Brasil. O mundo de Star Wars, em particular, apresentou uma forte presença ao longo de todo o evento. A Disney disponibilizou dois estandes para os participantes, um com estátuas de Stormtroopers – a tropa de elite do Império Galáctico – símbolo do poder repressivo do Imperador Sidious, vilão do filme, com as quais eles tiraram fotos; e outro com um centro de treinamento jedi, onde era possível treinar com sabres de luz, realizar pequenas batalhas e receber um certificado. Além do mundo de Star Wars, a Disney levou também referências do mundo de “Mulan”, sua nova produção na época. Para representá-lo, além de torres chinesas, armas e uma apresentação de Kung Fu, havia uma tirolesa pela qual era possível cruzar todo o estande. A Warner Media montou um estande chamado “Laço da Verdade”, em referência ao artefato da Mulher Maravilha, que detectava se os participantes estavam mentindo ou não. O conglomerado também trouxe, no último dia de evento, a atriz Gal Gadot, que interpreta a super-heroína nos cinemas, junto com a diretora do seu novo filme “Mulher Maravilha 1984”, Patty Jenkins. A Netflix, por sua vez, surpreendeu os participantes com a presença de Henri Cavil, ator que interpreta Geralt de Rivia, na série “The Wicther”. O encontro de mundos ficcionais ficava claro também no discurso dos apresentadores no auditório Cinemark. Erico Borgo, um dos integrantes do canal Omelete, ao aparecer no palco saudou o público que dormiu na fila para entrar no auditório dizendo “Vocês são verdadeiros guerreiros jedis!”, fazendo alusão aos personagens do mundo de Star Wars conhecidos por sua coragem e resistência. Ao escutarem a referência, os participantes vibraram. Logo após, Borgo destacou que Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 |7 quando o aviso de “proibido filmar” aparecesse seria necessário desligar os celulares, caso contrário “os agentes da S.H.I.E.L.D2 estariam vigiando e de prontidão agiriam”. Os mundos oriundos das séries de televisão e plataformas de streaming estavam representados nos estandes dos estúdios a partir de elementos de suas narrativas. A Warner Media levou para o evento o café “Central Perk” da série “Friends”, onde os participantes podiam interagir e tirar fotos. A Netflix montou um estande com referências à série “Stranger Things”, como a sorveteria Scoop Ahoys, onde eles interagiam com os atendentes vestidos de marinheiros. As referências às animações japonesas (animes) também estavam presentes. Havia um estande com uma réplica da armadura da personagem Poseidon do desenho “Cavaleiros do Zodíaco” e um boneco em tamanho real da personagem Son Goku do desenho Dragon Ball. A Riot Games, responsável pelo jogo League of Legends, instalou um espaço com estátuas dos personagens e uma ambientação do game que possibilitou aos participantes tirar fotos e interagir. Além dos estandes dos estúdios, havia também estandes de varejistas que comercializavam produtos relacionados com as narrativas de filmes, séries, games, livros e quadrinhos. Um dos que se destaca é a loja oficial da franquia Harry Potter, a Harry Potter Store. Além de vender diversos itens oficiais da franquia como varinhas e roupas, ela ainda oferece o que chama de “uma experiência Harry Potter”, isto é, um estande com réplicas de elementos do filme. Na edição de 2019, ao lado da Harry Potter Store, foi construída uma do Expresso de Hogwarts. De tempos em tempos, a réplica da locomotiva soava um sinal e soltava fumaça, simulando a partida. Ao longo da observação participante percebemos que a Comic Con Experience é marcada pela interação dos seus participantes com vários elementos que pertencem aos diversos mundos ficcionais nela representados. Assim, era preciso entender um pouco mais sobre a teoria dos mundos ficcionais para avançar na análise. 2 Criada por Stan Lee e Jack Kirby para os quadrinhos da editora MARVEL Comics e presentes nos filmes e em séries da MARVEL Studios, a Superintendência Humana de Intervenção, Espionagem, Logística e Dissuasão (S.H.I.E.L.D) é uma agência internacional, que realiza a contraespionagem e protege o planeta de ameaças como terrorismo internacional e invasões alienígenas. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 |8 4 Os mundos ficcionais Um dos pensadores que mais se destacam no desenvolvimento das reflexões sobre os mundos ficcionais é o teórico literário tcheco Lubomír Doležel. Doležel (1998) rompe com a ideia de que a ficção é uma representação da realidade. Segundo o filósofo, o mundo real não é o fundamento ou a única referência para a construção da ficção. Para ele, não existe um mundo legítimo e inevitável para o discurso, mas múltiplos mundos possíveis, responsáveis por possibilitar a descrição de universos criados como realidades autônomas. Os mundos ficcionais, portanto, surgem a partir da filosofia dos mundos possíveis (CARVALHO, 2013). Mas o que são mundos possíveis? De acordo com Ryan (1992), são exercícios mentais semânticos que cada indivíduo faz com o mundo em que vive. Segundo Fort (2006), em um universo que abarca todas as afirmações possíveis, um mundo possível é formado a partir de uma das informações em específico e em particular. Assim, estes mundos são construídos por inúmeras narrativas e derivam de uma operação seletiva. Surgem quando pensamos sobre diferentes formas que o mundo poderia ter, como na reflexão “Se os espanhóis não tivessem dominado os Incas, esta civilização hoje seria uma das mais avançadas no mundo”. São criados, portanto, através de suposições que relacionam elementos do mundo em que vivemos com os de outro que poderia ter existido. Ryan (1991) considera que estas suposições contrafactuais não são criações aleatórias. São elaboradas com o objetivo de argumentar sobre a validade de um evento, de refletir sobre suas possibilidades e comparar o que poderia ter ocorrido com o que de fato ocorreu. Segundo David Lewis, “os mundos possíveis são contrafactos semânticos do mundo atual, criados a partir de um exercício mental de confabulações” (LEWIS, 1968, p.114). Lewis (1986) ressaltou posteriormente que todas as escolhas que dão origem aos mundos possíveis têm a mesma chance de ocorrer. Deste modo, nenhum é “mais possível” que outro. Há mundos possíveis dotados de atributos que são construtos culturais postos em cena (LEAL; JÁCOME, 2011). Estes mundos, que deixam de ser apenas metáforas ou suposições para adquirirem uma existência ontológica independente, são os mundos ficcionais, construções da imaginação do homem que, baseadas em conjuntos e propriedades de textos ficcionais, são observáveis (FORT, 2006). Os mundos ficcionais são mundos possíveis criados por um texto narrativo. Também se Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 |9 baseiam em fatos que não aconteceram, mas que poderiam ter ocorrido se o mundo fosse diferente e, como todo mundo possível, apresentam como ponto de partida uma escolha feita a partir de um universo inteiro, composto de todas as possíveis afirmações. Contudo, esta escolha ocorre a partir de uma “dupla-seleção” (FORT, 2006). Não há apenas o autor, mas também um leitor/espectador que se envolve com a história e nela se engaja. Além daquele que cria o mundo, que imagina como seria se algo diferente tivesse ocorrido, há outro que o aprecia, que o observa, lê, entende e questiona. O mundo ficcional é um mundo possível que não está apenas no imaginário de seu criador, mas no de outros indivíduos que também o conhecem. Da mesma forma que o autor, o leitor/espectador também participa do processo de fruição pelo qual o imagina, seja como um mundo próximo ou como um lugar diferente, repleto de situações extraordinárias e fantasiosas (LEWIS, 1978). Assim, enquanto o autor codifica um mundo a partir de uma infinidade de possibilidades, o leitor decodifica e recria esse mesmo mundo através da informação escrita. Um exemplo é o Batman, personagem homenageado na edição de 2019 da Comic Con Experience. Seu mundo ficcional é um mundo possível criado inicialmente para os quadrinhos, mas que, com o passar dos anos, foi representado em narrativas de filmes, animações, séries e games. Supomos que seu criador, Bill Finger, ao criálo pensou “o que aconteceria se um menino, filho do casal mais rico de uma cidade, visse seus pais serem assassinados na sua frente?”. Há uma série de respostas possíveis para essa pergunta: a criança poderia ter ficado traumatizada, enlouquecendo; o menino pode ter feito terapia e, assim, ter superado o trauma, continuando o legado da família; ou poderia ter decidido combater o crime, tornandose um policial. Bill Finger decidiu que ele iria enfrentar o crime, mas em vez de ser um agente da lei, ele se tornaria um justiceiro com máscara de morcego, que caça bandidos pelas noites da cidade de Gothan. O mundo possível do Batman, entretanto, não ficou apenas no imaginário de seu criador. Ao longo dos anos, diversos leitores acompanharam as aventuras do herói que não se restringiram mais aos quadrinhos. Batman, seus equipamentos e veículos, aliados e vilões estão em narrativas de filmes, animações, séries e games, muitas vezes produzidos por antigos leitores, como o roteirista e desenhista Neal Adams. Convidado da edição de 2019 da Comic Con Experience, ele esteve presente no Artist’s Alley e participou de um encontro no evento com outros quadrinistas do herói. Em determinado momento do encontro, criticou o filme “Batman versus Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 10 Superman”. O longa-metragem é inspirado no quadrinho “Batman o Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller. No filme, Bruce Wayne, identidade secreta do herói, veste uma armadura igual a do quadrinho de Frank Miller, contudo sem ter os mesmos 60 anos, o que, segundo Neal Adams, tira toda a carga dramática da batalha. A declaração deste quadrinista, responsável por títulos icônicos do herói, mostra que, além de autor, ele continua um leitor/espectador das aventuras do Homem Morcego. Doležel define mundos ficcionais como “conjuntos de estados possíveis sem existência real” (DOLEŽEL, 1998, p. 35). Segundo o autor, envolvem tipos específicos de mundos possíveis, materializados no mundo real sob a forma de linguagem e que, construídos por ela, são possibilitados por uma literatura imaginativa e por convenções culturais. Entender que o mundo ficcional é também um mundo possível permite que se compreenda a ficção como algo real. É um mundo que, apesar de diferente deste em que estamos, tem características que nos possibilitam definir o que é uma afirmação verdadeira e o que é uma afirmação falsa ou o que é permitido e o que é proibido. O teórico considera que os mundos ficcionais são realidades autônomas, que nascem a partir da linguagem ficcional e são limitadas pela expressão da imaginação. Assim, “não são restringidos por exigências de verossimilhança ou de probabilidade; se organizam por meio de fatores estéticos mutáveis historicamente tais como objetos artísticos, normas tipológicas e genéricas, estilos dos períodos e dos indivíduos.” (DOLEŽEL, 1998, p. 40-41). Neles, há um sistema de linguagem que inclui não apenas a linguagem verbal e textual, mas todo um conjunto de significações que apesar de ter lugar no mundo real, constrói reinos com propriedades, estruturas e modos de existência independentes dos da realidade. Os mundos ficcionais guardam também elementos que ainda não foram especificados ou explicados, o que lhes confere uma incompletude, responsável por distinguir a ficção da realidade (PAVEL, 1986; DOLEŽEL, 1998). Trazemos mais uma vez o mundo ficcional de Batman como exemplo. Apesar de não existir, em nenhum mapa dos Estados Unidos, a cidade de Gothan é referência para o herói e suas aventuras. Nela, a personagem principal possui uma série de veículos e aparatos com os quais defende os cidadãos do crime. Batman balança entre os arranha-céus, voa em jatos, briga com mais de cinco bandidos de uma vez, sobrevive a tiros e a facadas. Sempre que o comissário da cidade acende o farol do morcego, ele aparece para solucionar mais um caso e prender mais um vilão. Entretanto, apesar de conseguir cumprir suas missões, o crime nunca tem fim e Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 11 sempre um inimigo reaparece, caracterizando a incompletude de seu mundo. Os mundos ficcionais não são fruto de uma “operação estritamente lógica” (DOLEŽEL, 1998, p. 43), nem são uma virtualidade inserida por diferentes referências dos textos (LEAL; JÁCOME, 2011), mas consistem em mundos “individuais” mobiliados (ECO, 2002, p. 105-106). Segundo Conti e Fragoso (2018, p.750), eles apresentam elementos, fatos, regras e convenções que regem sua criação e a recriação em diversas manifestações midiáticas. Doležel (1998) não se dedica às estruturas mínimas da narrativa para compreender a relação entre realidades, mas se atém a cada componente dos mundos, apresentando para eles uma estrutura que, segundo o teórico, é composta por duas camadas: o “inventário” e as “ações e motivações”. A primeira abarca as descrições sobre o espaço físico e o ambiente, ou seja, elementos referentes à física, química, geografia, botânica, etc. que caracterizam determinado mundo. A cidade de Gothan, por exemplo, tem um ar soturno e geralmente é retratada à noite; A cidade de Metrópolis, pertencente ao mundo ficcional do Superman, é sempre bem iluminada e grande parte da ação ocorre durante o dia; as narrativas de Harry Potter se passam em um castelo, Hogwarts, uma universidade de bruxos repleta de elementos fantásticos como quadros que se mexem sozinhos, velas que flutuam e monstros; o mundo ficcional de Star Wars é representado por diferentes planetas e por batalhas espaciais com várias naves. Doležel (1998) destaca também que os eventos narrativos de um mundo ficcional não existem sem sujeitos. Como entidades dotadas de “poder de agência”, os sujeitos sofisticam os mundos ficcionais e lhes acrescentam a segunda camada: as “ações e motivações”. Nesta encontram-se aspectos políticos, tecnológicos, econômicos e até religiosos (CONTI; FRAGOSO, 2018). Estes fatores especificam as relações e interações entre os que habitam os mundos ficcionais e são classificadas por Doležel (1998) em quatro dimensões: a Alética, que dá conta daquilo que dentro do mundo é possível, impossível e necessário; a Deôntica, em que se explicita o que é permitido, proibido e obrigatório; a Axiológica, que organiza aquilo que dentro do mundo é referencial de bom, ruim e indiferente; e a Epistêmica, que dá conta daquilo que no mundo é sabido, desconhecido e acreditado. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 12 Retornamos a Star Wars para exemplificar os conceitos do teórico. Em termos da dimensão alética, neste mundo ficcional, os jedis são personagens que usam de um poder chamado “Força” 3capaz de fazê-los mover objetos com a mente. Quem não apresenta midi-chlorians4 em quantidade suficiente no corpo, não pode manipulá-la. Anakin Skywalker apresentava um volume nunca visto antes, sendo por isso considerado o indivíduo que, de acordo com uma profecia, seria responsável por trazer equilíbrio à “Força”. No caso da dimensão Deôntica, em Star Wars, os jedis podem controlar a mente das pessoas, mas são proibidos de manter qualquer relacionamento que possa tirar seu equilíbrio e trazer medo ou raiva. Estes sentimentos podem corrompê-los e levar ao lado sombrio da “Força”, o que acontece com Anakin Skywalker ao longo da narrativa. O medo de perder Padmé, personagem por quem é apaixonado, fez com ele fosse seduzido e se tornasse um sith. Assim surgiu um dos personagens mais icônicos do cinema, Darth Vader. A dimensão Axiológica de Star Wars é bem representada pela dicotomia entre jedis e sith. Enquanto os primeiros usam a “Força” para manter o bem e a justiça, os demais a utilizam em benefício próprio, se alimentando do medo e da raiva para aumentar seus poderes. Por fim, a dimensão Epistêmica também é forte no mundo ficcional de Star Wars. Nos prequels, os filmes Star Wars Episódio I, II e III, sabe-se que há uma ameaça, um lorde sith que, através de manipulações, está produzindo uma guerra na Galáxia. Contudo, não se sabe que esse lorde é, na verdade, o senador Palpatine, importante membro da Republica, aliado dos jedis. Aos poucos, seu plano de derrotar os jedis e de implantar uma ditadura na galáxia aparece para o espectador. Percebendo a força de Anakin Skywalker como jedi e seu desequilíbrio, graças ao amor por Padmé, ele o seduz com as possibilidades do lado sombrio da força. Quando ocorre a revelação de que o senador Palpatine é o líder dos sith, lorde Sidious, Anakin Skywalker se torna um deles e assume o nome de lorde Vader. Os dois executam os jedis, destroem a República e estabelecem o Império Galáctico, em que Sidious se torna o imperador. 3 De acordo com uma cena do filme “Star Wars: Uma Nova Esperança” (1977), o Mestre Jedi Obi-Wan Kenobi explica a seu pupilo, Luke Skywalker que a “Força é o que dá poder ao Jedi. É um campo de energia criado por todos os seres vivos, ela nos envolve e penetra. É o que mantém a galáxia unida" 4 De acordo com George Lucas, criador de Star Wars as midi-chlorians são uma raça que todos conhecem [no mundo de Star Wars]. O jeito que você interage com a Força é através das midichlorians, que são sensitivas à energia. Elas estão no núcleo de sua vida, que é a célula. Elas estão numa relação simbiótica com a célula. E então, porque eles estão interconectados, eles podem comunicar-se com o campo da Força. É assim que se lida com a Força. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 13 A complexidade das quatro categorias dessa camada determina que a criação de um mundo ficcional não se limita à definição dos seres e entidades que nele existem ou não, nem consiste apenas em especificar regras e leis naturais de seu ambiente, mas envolve também determinar e entender as relações humanas e sociais entre os seus sujeitos. Esta teoria caracteriza-se por um enfoque maior na criação de todos os elementos e fatores que compõem os mundos e não apenas nos acontecimentos das narrativas (CONTI; FRAGOSO, 2018). O participante da Comic Con Experience entra em contato com o mundo ficcional de determinada narrativa quando lê um livro ou quadrinho, assiste a uma série ou a um filme e joga um game. Segundo Eco (1984), neste momento ele participa de um acordo tácito através do qual abstrai o mundo conhecido como “mundo real” e mergulha no mundo ficcional. Neste acordo, chamado por Samuel Taylor Coleridge de “suspensão voluntária da descrença”, ele aceita como verdadeiras todas as premissas deste mundo (COLERIDGE, 2004). Deste modo, crê na verossimilhança do mundo ficcional, independentemente do quanto ela se afaste do mundo real. O leitor, espectador ou gamer sabe que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso ele pensa que o criador daquela narrativa está contando mentiras. Há uma alteração no seu sistema de credulidade, de modo que ele toma como verdadeiras as regras de funcionamento daquele mundo, reconhece os seus artefatos e integrantes e compreende as ações e motivações destes. Quando perguntamos ao Thiago, que tinha acabado de ver seu amigo Davi participar da atividade “Laço da Verdade”, sobre o que, na opinião dele, significava dizer que a Comic Con Experience era o “mundo de todos os mundos”, ele nos respondeu “Me sinto num navio, num universo diferente! Tudo aqui me surpreende, me emociona! A energia é muito boa! Não quero ir embora!”. Davi complementou “Não é uma porta, é um portal! O tempo passa rápido! É tudo visceral! ”. “Navio”, “universo diferente” e “portal” são termos que indicam que ao entrar no evento, eles se sentem em um mundo diferente daquele localizado do lado de fora. A participante Juliana, que encontramos perto do estande Omelete, vibrando com a atriz Gal Gadot, expressou essa noção claramente, quando questionada sobre como era participar desta comic con: “Me sinto entrando em outro mundo!”. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 14 A fala de Juliana traduz bem o que observamos no evento. Os participantes não reagiam a determinado mundo ficcional ou a cada um em separado. Ao entrar na Comic Con Experience, eles pareciam mergulhar em um mundo à parte da realidade, formado por vários elementos pertencentes a mundos de narrativas específicas. Eles assinaram coletivamente o acordo tácito que define a suspensão voluntária da descrença, possibilitando que reconhecessem artefatos, integrantes, ações e motivações e acreditassem nas regras de funcionamento daqueles mundos como se eles fossem parte de um só. Diante desta questão, é preciso entender o que possibilita esta imersão coletiva. O que faz com que os diferentes mundos representados na Comic Con Experience sejam reconhecidos como um só. 5 Cultura pop: o vínculo entre os mundos ficcionais O ponto fundamental para entender por que a Comic Con Experience pode ser considerada “o mundo de todos os mundos” reside no fato de que ela é um evento de cultura pop. Segundo o pesquisador Thiago Soares, a cultura pop é o conjunto de práticas, experiências e produtos norteados pela lógica midiática, que tem como gênese o entretenimento; se ancora, em grande parte, a partir de modos de produção ligados às indústrias da cultura (música, cinema, televisão, editorial, entre outras) e estabelece formas de fruição e consumo que permeiam certo senso de comunidade, pertencimento ou compartilhamento de afinidades que situam indivíduos dentro de um sentido transnacional e globalizante. (SOARES, 2013, p.1). Consiste em um fenômeno globalizante e globalizado de consumo, não apenas de produtos, mas de significados. Ela envolve a “comercialização de narrativas, imagens, sons e símbolos que estimulam sentidos e emoções transformados em franquias” (SOARES, 2013, p. 7), a partir da produção de conteúdos e de formatos em uma lógica cosmopolita. Fernandes e Travancas (2018, p. 56) reforçam essa questão, destacando que mesmo possuindo marcas de seu tempo e de seus locais de origem, os produtos da cultura pop “têm certo ar de desenraizamento cosmopolita que, ao mesmo tempo, remete pessoas de diferentes lugares a uma territorialidade comum”. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 15 A expressão “territorialidade comum”, usada pelas autoras, indica que a cultura pop gera afetos que aproximam os indivíduos e, assim, constroem um senso de comunidade entre eles. Gostos, afinidades e experiências são compartilhados a partir de referências facilmente reconhecíveis, que permitem que pessoas distantes cultuem os mesmos ídolos, histórias, músicas e valores. Por definição, a cultura pop tende a ligar os indivíduos. Esta capacidade pode ser identificada na fala de alguns participantes. Ao perguntar para a participante Jeane, na fila para entrar no auditório Cinemark, do que ela mais gostava na Comic Con Experience, ela respondeu “a integração com as pessoas. Conhecer pessoas novas! Pô, do nada começou um parabéns! Daí quase 1.000 pessoas começaram a cantar! É muito legal saber que eu não sou a única surtando!”. Na mesma fila, conversei com Hugo, para quem o evento “é grandioso.”. O participante, que desde 2017 é o primeiro a chegar na fila para o auditório Cinemark, destaca que na Comic Con Experience “o bom é a interação das pessoas! Ah! E aqui você tem várias coisas: Harry Potter, Cavaleiros do Zodíaco, DC, MARVEL, Star Wars!”. Dentro do auditório, encontrei Amanda e Stefania. Amanda definiu a comic con como “um lugar que reúne fãs de coisas diferentes, que se reúnem pelas mesmas coisas! Desde MARVEL, DC, séries, filmes, Pokémon Go.”. Já para Stefania, ela é um lugar “que tem uma diversidade muito grande! Aqui a gente se une independente do gosto. As pessoas entendem o que a gente sente.”. As declarações dos participantes destacaram algo que já havia observado no evento: os fãs do Batman não se distinguem dos fãs de Star Wars ou dos fãs de Harry Potter. As atividades e atrações do evento afetam os participantes de forma ampla, pois são endereçadas para amantes da cultura pop, para pessoas que conhecem as narrativas e gostam delas, ainda que em intensidades diferentes. No auditório Cinemark, por exemplo, os painéis apresentaram trailers e celebridades de várias narrativas, veiculadas por diversas mídias, o que não produzia diferenças nas emoções vivenciadas pelo público. A reação de euforia era grande em cada atração. Domingo, durante o painel da Netflix, os participantes vibraram com Rodrigo de la Serna, Esther Acebo, Pedro Alonso, Alba Flores e Darko Peric, que fazem parte do elenco da série La Casa de Papel. Posteriormente, eles ficaram eufóricos com a aparição surpresa de Henry Cavil para divulgar a série “The Wicther’, Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 16 baseada no game e no livro de mesmo nome. No painel da Warner Media, eles se emocionaram com o dublador do Scooby Doo, Orlando Drumond, que apareceu em um vídeo durante a divulgação do novo filme da personagem animada e entraram em êxtase com a participação da atriz Gal Gadot, que interpreta a Mulher Maravilha no filme “Mulher Maravilha 1984”. Não importa se a personagem é um super-herói ou uma super-heroína, um bruxo, um jedi ou um cachorro falante, tampouco se suas narrativas estão no cinema, nas plataformas de streaming, nos livros, games ou quadrinhos; no evento, eles fazem parte de algo maior do que suas próprias histórias. Percebemos que nele há um fazer organizativo de diferentes mediações, que possibilita que os diversos mundos ficcionais se aproximem. Mas isto só ocorre porque, quando chegam à Comic Con Experience, os participantes já apresentam um repertório que possibilita que eles reconheçam as referências a estes mundos. Este conhecimento prévio é compartilhado entre eles e, nesta partilha, é instaurado um comum. Segundo Sodré (2014), a comunicação envolve um “agir em comum”, um “partilhar”, um “pôr-se em comum” no sentido de vincular, de relacionar, de concatenar ou se deixar organizar por uma dimensão constituinte, intensiva e pré-subjetiva do ordenamento simbólico. Consiste em um conjunto de comportamentos, afetos e vínculos profundos ligados a um território (que pode ser físico ou simbólico) responsável por completar grupos sociais e por possibilitar à “comunidade” existir. O diálogo com alguns participantes nos fez perceber que há uma lógica de comunidade entre eles no evento. Em algumas declarações, as expressões “se sente em casa” e “se sente à vontade” transmitiam esta noção. No Artist’s Alley, o participante Bernardo declarou que “estar na CCXP dá uma alegria! Aqui todo mundo é igual a você! Você se sente em casa!”. O participante Davi declarou que o “evento se comunica com a identidade! Me sinto em casa!”. Já o participante Ismar destacou que “aqui você aprende e troca. Me sinto à vontade. Aqui você pode ser o que você quiser. O mundo lá fora deveria ser assim.”. Se a cultura pop é uma territorialidade comum capaz de gerar afetos que aproximam os indivíduos, é possível considerá-la como o território simbólico a que Sodré (2014) faz referência. Isto porque além de um campo de identificações, ela também envolve uma dimensão exterior, responsável por estabelecer uma ligação entre os participantes a partir de uma anterioridade afetiva. Esta anterioridade devese ao fato de o conhecimento prévio dos elementos das narrativas dela oriundas gerar Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 17 afetos que antecedem a Comic Con Experience. Como este conhecimento é compartilhado, a anterioridade afetiva instaura um comum entre os participantes da comic con, fato indicado pelos comportamentos e emoções observados nas atividades e atrações de que participei. A prática do cosplay representa bem esta questão. Caracterizada por gerar sociabilidades marcadas pelo imaginário e pela magia, promovidas através de performances, que materializam as narrativas midiáticas em uma cena que tem como palco a paisagem urbana, produz, a partir do cosplayer e de sua atuação, emoções no público através das narrativas midiáticas expressas no seu cosplay, fortalecendo os vínculos entre público e a mídia (NUNES, 2015). A cosplayer Angélica disse que diante de um cosplay “você não conhece as pessoas, mas pelo personagem há a conexão. Por isso que as pessoas gostam de ver.”. O vínculo com o território simbólico possibilita também a ligação a um território físico, que, no caso da Comic Con Experience, é o próprio evento, um espaço ritualizado onde mediações simbólicas são produzidas e organizadas, de modo consciente ou inconsciente. Os estandes, os cosplays, os produtos, os convidados e a decoração são referências a elementos de vários mundos ficcionais que pertencem às narrativas da cultura pop presentes em filmes, séries, quadrinhos, games e livros e atuam como entidades comunicantes que não apenas se comunicam com os participantes, mas que também fazem com que eles se comuniquem entre si. A cultura pop, portanto, gera um vínculo originário no evento e a partir dele constrói um laço que aproxima os indivíduos e os elementos das narrativas dela oriundas, componentes de vários mundos ficcionais. É o comum resultante desta vinculação que possibilita que o acordo tácito da suspensão voluntária da descrença seja assinado coletivamente entre os participantes da Comic Con Experience e, assim, produza uma crença conjunta capaz de fazê-los mergulhar não no mundo ficcional de cada narrativa, mas em um mundo à parte que abarca todos os mundos. Tríade: comunicação, cultura e mídia | Sorocaba, SP | v. 10 | n. 23 | e022003 | 2022 | 18 6 Considerações finais O interesse de pesquisa despertado pela mudança no nome da Comic Con Experience na edição de 2019 possibilitou uma reflexão sobre o evento que pode contribuir para os estudos comunicacionais. O artigo demonstrou que o título “o mundo de todos os mundos” não remetia apenas às referências que a Comic Con Experience fazia aos mundos ficcionais nela representados. Os inventários, as ações e as motivações encontrados ao longo de suas atividades e atrações não eram alusões isoladas às narrativas de quadrinhos, filmes, séries, livros e games. Eles “conversavam” no evento e, assim, lhe davam movimento e lhe atribuíam sentido. O estudo demonstrou também que este diálogo resultava da existência de ligações fortes e intensas, derivadas de uma anterioridade afetiva, compartilhada pelos participantes. Assim, o afeto gerado a partir do conhecimento prévio relativo aos mundos ficcionais e a seus elementos construía um vínculo entre eles que fazia com que a Comic Con Experience fosse muito mais do que a soma destes mundos. A principal responsável por este vínculo é a cultura pop. A partir da anterioridade afetiva gerada, o reconhecimento de suas narrativas na comic con desenvolve uma relação viva e recíproca, responsável por organizar a dimensão constituinte, intensiva e pré-subjetiva do ordenamento simbólico do evento. Esta percepção exemplifica o conceito de comum. A cultura pop, portanto, atua como elemento de vinculação na Comic Con Experience, instaura um comum e concatena os elementos de suas narrativas que, reconhecidos pelos participantes, possibilita que eles estejam imersos não em mundos específicos, mas em um mundo que abarca todos os mundos ficcionais das narrativas da cultura pop, o que faz com que o evento seja considerado o mundo de todos os mundos. Referências CAIAFA, J. Sobre a etnografia e sua relevância para o campo da comunicação. Questões Transversais: revista de Epistemologias da Comunicação, Rio Grande do Sul, v. 7, n. 14, 2019. Disponível em: file:///C:/Users/Leonardo/AppData/Local/Temp/19775Texto%20do%20Artigo-60760954-1-10-20200204.pdf. Acesso em: 08 ago.2021. CARVALHO, J. D. O maravilhoso como mundo (ficcional) possível. Princípios: revista de Filosofia, Natal, v. 20, n. 34, 2013. 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