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View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk brought to you by CORE provided by PhilPapers LIMA VAZ E OS DESAFIOS DA COMPREENSÃO DA PESSOA HUMANA Laureandro Lima da Silva1 Gabriel Florenço Dias2 Alex Pereira da Silva3 RESUMO O presente artigo procura apresentar os desafios da compreensão da realização da pessoa humana na história da filosofia, com destaque na vida realizada em Platão e Aristóteles, segundo o filósofo brasileiro Henrique de Lima Vaz. Foram seguidas as análises do autor acerca do problema da realização do humano a partir de uma demonstração histórica-filosófica das concepções da vida realizada do homem enquanto ser integral e de expressividade. A realização autêntica do homem ocorre no liminar entre sua essência e existência, lugar de sua efetivação, de abertura relacional e transcendente. Foi mostrado que os diversos ideais da realização do humano podem ser compreendidos, por exemplo, a partir do cumprimento de uma vida virtuosa. Percorreu-se a noção de categoria da realização exposta no segundo volume da Antropologia Filosófica de Lima Vaz, passando pela questão educacional (Paideia) tratada por Platão na República e também pelas definições de phrónesis abordadas na Ética a Nicômaco de Aristóteles. O objetivo foi o de harmonizar e destacar o pensamento de Vaz em relação aos dois filósofos da antiguidade. A realização da vida humana, no pensamento filosófico da antiguidade, tem como fim o bem e a felicidade. A vida realizada insere-se nos campos transcendente, metafísico e da prática das virtudes. Palavras-chave: Ideal. Realização. História. Homem. 1 INTRODUÇÃO O escrito é fruto do projeto de iniciação científica do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). Foi analisada a obra Antropologia Filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz. O escrito representa um olhar audacioso e profundo a respeito da pessoa humana e também dos desafios com os quais nos vemos continuamente confrontados na atualidade. A reflexão sobre o humano revela-se como uma das questões centrais do pensamento ocidental desde os gregos. Uma das experiências humanas mais profundas é a de realização da própria vida, isto é, a percepção que todo ser humano tem por 1 Mestrado em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Docente de Filosofia no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). E-mail: Laureandro@bol.com.br 2 Discente de Filosofia no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). E-mail: gabrielflorencodias@outlook.com 3 Discente de Filosofia no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). E-mail: alexpereiradiamante25@gmail.com 1 objetivo que sua existência deve encontrar um sentido. Os ideais de realização humana passam por uma profunda reestruturação. O ser humano é uma tarefa e tem o constante desafio de realizar-se. Na concepção vaziana, a realização é uma necessidade ontológica regulada pelo logos, elemento especificamente humano. Para tal, foram analisados os dados colhidos da Antropologia filosófica I (1991) e Antropologia filosófica II (1992), onde foram encontradas as noções fundamentais do pensamento antropológico-ético-metafísico de Lima Vaz. O niilismo antropológico é responsável pela desconstrução das linhas fundamentais do ser do homem, sejam as das estruturas do corpo, do psiquismo, do espírito; sejam as das relações do homem com o mundo, com o outro e com o transcendente; sejam a da unidade do homem: a realização e a pessoa. Foi discutido, principalmente, o enigma do fenômeno da realização humana. Observou-se que urge a necessidade de uma reflexão mais pontual acerca da desvalorização da vida, da morte do sentido, da ausência e finalidade da vida, da história, e do homem. No mundo hodierno, os valores tradicionais estão depreciados, assim como os critérios absolutos vêm se dissolvendo. A pesquisa tem em vista auxiliar a pensar o destino do homem frente ao relativismo universal e ao hedonismo sem limites característicos da época atual. É imprescindível uma reflexão filosófica da sobrevivência das razões de viver e dos valores de vida. A pesquisa contempla o itinerário filosófico desde a antiguidade, medievo, moderno e contemporâneo, possibilitando um diálogo com os desafios do mundo atual. O artigo segue as ideias do sistema e do pensamento antropológico de Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002), filósofo, teólogo, professor universitário e padre jesuíta, com naturalidade em Ouro Preto, Minas Gerais. Pretende, num primeiro momento, apresentar o ideal de realização humana na história. Foi desenvolvida uma reflexão sobre o ideal de realização desde a antiguidade clássica à contemporaneidade. Num segundo momento, foi destacada a vida realizada em Platão e Aristóteles, parte final do estudo. Padre Vaz, como era conhecido, pode ser considerado um dos maiores expoentes da história da filosofia no Brasil, por sua vasta expressão de 2 pensamento, sistematização e atualização. Sua obra representa grande marco entre os principais filósofos, entre eles Platão e Hegel. O núcleo de toda sua obra pode ser considerado harmoniosamente platônico. Foram percebidos nos escritos vazianos a preocupação e os questionamentos sobre o mundo atual. O autor procura um fundamento para superação do aniquilamento na construção ética, moral, filosófica, humana, social, epistemológica e antropológica. Ao longo de seu trabalho e de sua carreira docente, Padre Vaz buscou dialogar com diversas correntes de pensamento, destacando-se de maneira peculiar o platonismo, o hegelianismo e o marxismo, relacionando sempre com a razão, procurado alternativas para os problemas florescidos no caminhar humano. O problema do ethos é central em seu pensamento e representa um fenômeno frente às novas mudanças e adaptações. Para Vaz, o ethos vem sofrendo transformações, perdendo sua identidade originária desde a antiguidade clássica. A reflexão sobre o homem construiu um valor para uma boa sobrevivência no ethos. O autor perpassar os principais desafios do enigma humano e a liquefez do ideal de realização. Diante da desfiguração do indivíduo e de diversos modos de entendimento de sua compreensão, surge uma questão: o que é o homem em seu sentido enraizado? Tal questão é de extrema importância na antropologia, pois é a condição de possibilidade para se pensar a superação do reducionismo humano. A esse respeito, o autor aborda variados temas que dizem respeito à realidade humana. No meio de sua diversidade temática, encontra-se a categoria da realização, uma argumentação sobre o realizar-se humano nas várias fases da história da humanidade Foram avaliadas as evoluções e os impasses do próprio homem na sua busca constante e nunca acabada de realização, da modernidade até a era contemporânea, época em que se inaugura uma crise na forma de compreender a antropologia filosófica, principalmente o seu objeto de investigação. O levantamento da questão da realização humana é de extrema importância, pois traz a emergência de uma elaboração de demonstração do 3 fenômeno humano. Afinal, como o homem se realizou ao longo do caminhar filosófico? No segundo momento do artigo, foi discutida a vida realizada em Platão e Aristóteles. No percurso argumentativo de Vaz, a vida realizada, segundo Platão, está ligada diretamente com a ideia de contemplação. Contemplar e conhecer aquilo que é o Bem, função e vocação específica do filósofos, alta realização da vida de um homem, não inato, pois o homem deve se submeter a um processo de educação bem definido que visa fins específicos. Titulamos, segundo Platão, educação de Paideia, ou seja, a educação para a virtude, uma educação integral. Para ilustrar melhor o caminho que sua educação propõe, Platão usa a alegoria da caverna. Para Aristóteles, discípulo de Platão, as coisas não se dão da mesma maneira que para o seu mestre. O Estagirita pensa e argumenta a favor da ideia da prática das virtudes, ou seja, a vida realizada não se baseia diretamente na contemplação do Bem, mas sim em agir bem. Para agir bem, o homem depende de uma virtude específica, chamada phrónesis: virtude da ação, ou seja, de cunho ético, que auxilia diretamente no discernimento entre as boas e as más ações. Ponto comum entre os dois filósofos é o direcionamento para o Bem. Em Platão se contempla o Bem e em Aristóteles se age bem. Um, com conceitos universais e imutáveis; outro, com uma visão particular, mutável e voltada para a vida cotidiana do homem. 1 O IDEAL DE REALIZAÇÃO HUMANA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA O ideal de realização humana proposto pelo humanismo clássico tem seus princípios enraizados culturalmente na Grécia arcaica. Esse ideal é apresentado de forma rica no pensamento manifesto pela cultura clássica. O homem, fator fundamental desse meio cultural e filosófico, participa experimentalmente do projeto de auto-realizar. A maneira da realização humana, na antiguidade clássica, eclode com o modelo humanista, marcadamente com os gregos antigos, e depois com o humanismo grecoromano. Esse projeto traz particularidade antropológica própria e manifesta 4 pedagogicamente uma autêntica fundamentação da realização humana no logos. (VAZ,1992, p.164.) A ideia da realização do humano integral tornou-se, por muito tempo, um protótipo no pensamento da antropologia filosófica. Esse ideal intelectual e existencial inspirou de forma expansiva um novo perfil, rompendo suas fronteiras particulares históricas, empreendendo o itinerário da sua efetiva universalização. A cultura romana herda essa especulação, proporcionando abertura de possibilidade e junção, tornando-se futuramente as principais colaboradoras e estadias de síntese sistemática, indagadora e peculiar matriz reflexiva, indicação colateral para a civilização ocidental. A unidade greco-romano assegura sabedoria original e contemplativa no extrato evolutivo da areté do herói para a areté do sábio, definida na atividade de uma vida teorética, segundo Aristóteles, orientando as diversas formas de viver, a práxis voltada para as dimensões produtivas, criativas e intersubjetivas. Essas dimensões marcam o horizonte da realização humana por meio do normativo, o logos, pelo qual compete o modo de viver, ou seja, o modelo excelente por natureza. No ideal da realização humana da antiguidade clássica assiste-se o homem integral e a contribuição de sua abertura virtuosa no ethos, espaço da manifestação expressiva do mesmo, nos vieses político, ideológico, interpelativo e virtuoso. Esse ideal é alcançando por meio da alma, a verdadeira essência do homem, sede das virtudes, a volta para si mesmo: “Conhece-te a ti mesmo”. Na antiguidade clássica o homem determina seu processo de conhecimento, sendo este investigativo e metodológico. No ethos o homem constrói valores, ideias, crenças, mitos, uma religião geral. Por meio dessas experiências nasce a admiração (thauma), o nascimento do filosofar. Nas palavras vazianas: “dessa admiração, segundo o testemunho de Platão e Aristóteles, terá origem a filosofia” (VAZ, 2006, p.21). E o que é filosofia? Ou melhor, o que significa pensar? Pensar só pode ser constitutivo e verídico quando se faz da vida um caminhar constante, garantidor da fundamentação unitária e cordial. O pensar é um aprimoramento próprio da abertura humana para o real no máximo 5 recurso da abstração e extração dos conceitos e ideias na constituição de seus valores. O processo constitucional do filosofar é complexo e garantidor de uma continuação. No entanto, o ideal da realização humana da antiguidade entrou em crise, trazendo de forma lenta o declínio da ideia clássica pelos limites e contribuições não favorecidos organizacionalmente, mesmo já anunciada por Sócrates, na tentativa de conciliar “subjetividade da liberdade e objetividade do logos” (VAZ,1992, p.166, grifos do autor), em contrapartida religiosa. O modo religioso já se fazia presente na organização da vida e da filosofia por meio do cosmos e o modo antropológico humanista de pensar sobre o homem estava se fragmentando, abrindo caminho para o ideal da santidade cristã. 1.1 O IDEAL DA VIDA SEGUNDO O CRISTIANISMO Na aurora do Cristianismo, o ideal de realização humana na história ganha uma nova roupagem, não somente no sentido de realização, mas também no sentido cultural. Com inspiração na tradição hebraica (Vaz,1992) supervisionado com elementos originais greco-romanos (VAZ,1992), passado considerado tardio, compõe-se uma desafiante contradição. A marca registrada desse período considerado importante para a emancipação da religião especificamente católica foi o encontro entre Helenismo e Cristianismo. Por meio desse encontro elabora-se a síntese cristã-medieval à luz da bíblia e da revelação de Deus. No percurso do caminhar filosófico-cristão, aparecem adversários do Cristianismo, como por exemplo o gnosticismo. O Cristianismo se coloca na luta contra os adversários e apresenta o ideal de realização no campo da santidade. Observa-se, coerentemente, um momento de equilíbrio do Cristianismo em todas as suas dimensões: religiosa, social, espiritual, comunitária, servidora e santificadora se consagrando por meio de correntes religiosas, antropológicas, sistemáticas sobre a vida humana, a sociedade em geral e Deus. Nesse percurso nasce o ideal de santidade, modelo de realização para o Cristianismo, como condição de possibilidade e abertura a uma nova forma de 6 pensar o que é o homem. Nesse processo aparece o homem justificado pela fé e o ideal do homem perfeito. O ideal cristão passa a conferir a centralização no homem novo, revestido de perfeição, no acolhimento do transcendental e por esta iniciativa viabiliza doação aos semelhantes, proporcionando uma tensão temporal e eterna pelo próprio esforço do homem religioso na graça divina. O ideal de realização na Idade Média é o santo cristão, seguindo de perto os ensinamentos de um bem maior conhecido como Deus. Tal ideal sofre rupturas com o surgir dos humanismos dos séculos XV e XVI. 1.3 O IDEAL DE REALIZAÇÃO HUMANA DA RENASCENÇA AO SÉCULO XX Apropriado à Renascença, o homem “pela razão moderna nascente, no contesto do Renascimento” (PERINE,2003, p.102) realiza seu ideal a um ar moderno, um novo período, diferente da idealização cristã. A diferença partiu na dialética da autárkéia dos gregos antigos, a unidade e mudança da contemplação para a práxis, tornando esta uma funcionalidade. Para Vaz, a modernidade é marcada pelo pensamento operacional, instrumental e matemático. Nesse novo período da história, a liberdade foi considerada autônoma, característica própria do racionalismo, proporcionando ruptura na estrutura normativa, metafísica e axiológica do ethos, organizacionalmente presente na tradição através da teologia. Tal fenômeno manifesto foi elaborado por contribuição de dois expoentes: Duns Escot no século XVI e Descartes no século XVII. A modernidade contribui para a perda, sentido e significado das coordenadas antigas e se configura como expansão antropológica do conhecimento humano, percorrendo estágios distintos no surgimento incessante de revoluções intelectuais. A metafísica da subjetividade é o novo modelo e abala as estruturas do que havia sido construído no universo ocidental. No espírito do fenômeno moderno passa a existir uma “pluralidade antropológica” (Vaz,1991, p. 65), desfigurando parcialmente a imagem do homem cosmológico e religioso medieval. René Descartes é considerado o pai da Filosofia Moderna “devido ao seu deslocamento do plano ontológico para o plano gnosiológico” (VITOR 7 ,2016, p.). Ele buscou fundamentos robustos para o conhecimento e um original itinerário na nova forma de pensar e agir do homem. O projeto cartesiano é caracterizado por seu solipsismo e também pela modelação de um itinerário metodológico com forma segura, clara e distinta de se chegar ao conhecimento da realidade. O cogito cartesiano parte para o ofuscamento da comunicação e para a fragmentação do homem integral. Na filosofia de Descartes o homem se vê dentro de um círculo, fechado em si mesmo, restrito à sua constituição ontológica, a uma finalidade por meio da práxis, em elevação ao bem, ao bom, correto e verdadeiro, em inspiração clássica platônica: a contemplação. Essa nova forma de configuração do humano se inscreve no processo e no sistema cartesiano. A nova compreensão do humano ocorre em nível do método racional, “a confiança na razão metodicamente conduzida” (VAZ, 1992, p.168) Na ótica vaziana, a sociedade se encontra em um dilema ético, cultural, político, social e religioso, tendo a morte e a violência como uma única alternativa. Em consequência dessa modalidade, surge uma crise existencial e de sentido que a modernidade não consegue responder. O cogito cartesiano desconstruiu a metafísica ocidental e transformou a visão cosmológica e teológica do mundo antigo. A natureza, por exemplo, passou a ser considerada e medida pelo pensamento forte, ou seja, segundo os esquemas matemáticos e geométricos. Essa desconstrução transformou a modernidade em um habitat simbólico, construído pelo próprio homem, o eu pensante de René Descartes. A idade cartesiana é berço do reinado das ciências e da substituição do transcendente. Observa-se a substituição do elemento transcendente pela ciência, pela técnica, pela instrumentalização. O mundo técnico e cientifico é agora o deus do universo, da morada do homem. Nas palavras vazianas, assim se procede: O espetáculo que nos oferece a modernidade ao mesmo tempo triunfante e em profunda crise, se a considerarmos desde o ponto de vista desse dever ético fundamental que é, para o homem, a instauração do sentido na sua vida- o dever de realizar a verdade da sua existência, é o desencadear-se aparentemente incontrolável do não-sentido da violência e da morte: violência brutal das armas e dos meios de destruição de 8 massa, violência sutil da propaganda e da manipulação da informação [..] (VAZ,1997,p.174). 1.4 OS UNIVERSOS CULTURAIS DO MUNDO CONTEMPORÂNEO O mundo cultural contemporâneo, já profetizado na modernidade, assiste à incessante liquefação de suas estruturas compositoras da ética e da moral, da filosofia, da religião, enfim, os valores construídos ao longo das eras anteriores foram se liquefazendo. A maior preocupação com o ideal de realização é presente e pode ser vista na incerteza de tornar o homouniversalis pleno na sua realização. O modo de compreender o homem em sua especificidade passa por uma profunda reestruturação, que passa a ser conduzido pela máxima de ter se tornado objeto de estudo das ciências humanas e a sua subjugação aos procedimentos reducionistas e hermenêuticos. Além disso, é perceptível a descaracterização do ethos, ou seja, a mora do homem fundamenta-se na pluralidade dos universos culturais, mundos de explanação técnica, científica, movedora, diversificada e motivacional, contendo sua própria cultura, maneira de planejar, linguagem e leis. A sociedade passa por uma nova composição, distinta da que foi construída até então, manifesta no procedimento de ordens e classes. O indivíduo é inserido nos novos universos culturais, marco importante no seu desenvolvimento. O homem se constitui, simplesmente, no mundo cultural contemporâneo como um objeto da racionalização fundante, clara e metodológica. A nova racionalização é impactante no pensar, agir e contemplar o mundo humano e considera o homem como objeto entre os demais objetos de estudo, redução e apropriação. As ciências contemporâneas deixam de lado a ideia de homem como ser universal integrado, ou seja, completo na sua integridade de conhecimento e de contemplação do real. Diz-nos Lima Vaz: O homouniversalis preconizado pela Renascença não logrou efetivar-se nos planos cultural e ético, tendo sido reduzido apenas a objeto das ciências humanas e da cultura de massa e 9 sendo, como tal, apenas o avatar do homo universalis cuja “morte” acabou sendo proclamada (VAZ,1992, p.169). O homem idealizado pela cultura grega de forma peculiar e própria, passando a ser modelo para as demais épocas, dentro da história, deixou-se perder ao longo do caminho, passando agora ao desencantamento religioso, social e político do mundo, redutível à programação do surgimento de novas perspectivas, especificamente dele próprio, devido ao aumento da racionalização social. Assim, até aqui foi vista a sucessão de diferentes ideais de realização humana na história das concepções do homem na filosofia ocidental. No segundo momento do estudo, será destacada a vida realizada em Platão e Aristóteles. 2 A NOVA PAIDEIA EM PLATÃO Parece importante recordar o significado e a problemática do termo Paideia na concepção de Platão e de seu modelo perfeito de política e educação. Jaeger recorda que o uso de um termo na cultura grega antiga deve ser feito com cautela para não olhar com olhos do modernismo da cultura atual e não deixar de refletir sobre aquilo que pertence aos dados e informações próprios da cultura em questão. (JAEGER, 2013, p.21.). A palavra Paideia designa, na cultura grega, a educação integral do homem, visando a construção de um indivíduo virtuoso de acordo com os princípios educacionais em voga. A Paideia anterior a Platão era baseada nas palavras dos poetas, a virtude guerreira era colocada como a mais importante. Platão apresenta a mais excelente virtude, o saber filosófico, ou seja, a virtude racional do homem ligada ao logos. Segundo Vaz, Platão deseja direcionar os cidadãos atenienses ao seu modelo educacional do conhecimento do Bem e este só é acessível pelos philósofos (VAZ, p.150.). A realização do homem, em Platão, é coroada pelo conhecimento do Bem, prêmio do exercício da mais perfeita virtude (areté) e que conduz a vida feliz (eudaimonía). Como o homem é direcionado ao Bem supremo? Que modelo educacional seria eficaz para conduzir a vida humana 10 nas bases da areté? Podem, de maneira direta, ser encontradas respostas para tais questionamentos na República. Platão realiza uma dura crítica ao modelo educacional vigente na Grécia e propõe uma nova forma de educação, que já começaria a ser aplicada nas crianças de mais tenra idade. Platão, para formular as bases de sua Paideia, é incentivado pela grande crise que sofria Atenas direcionando seus questionamentos ao modelo vigente, principalmente, no que se refere ao conteúdo das poesias de Homero e Hesíodo, sem excluir completamente a base da Antiga Paideia. No modelo platônico, o perfeito condutor ao Bem é construído utilizando-se das duas categorias que alicerçam o modelo anterior: a música e a ginástica. A música educaria a alma e a ginástica, o corpo. Cabe ressaltar aqui que, quando se diz música, tal conceito refere-se às artes inspiradas pelas musas, personagens da mitologia grega, e não ao sentido contemporâneo do termo, que é utilizado para um determinado tipo de arte sonora. Existe, no pensamento de Platão, uma visão cosmocêntrica da política, ou seja, só existe realização ou ordem se todo o conjunto estiver harmonicamente unido. Nas palavras de Gabriel Rocha, para Platão, o homem só se realiza quando ele e também a cidade participam ou refletem – por analogia – a perfeição da ordem do todo. Existindo, assim, um equilíbrio e um bom ordenamento entre a cidade, o indivíduo e a ordem cosmológica. (ROCHA, 2016. p. 25.) Gabriel Rocha indica que no pensamento de Platão é possível verificar a importância de uma educação integral do homem, pois a Paideia completa e afirma que os cidadãos podem ser educados de maneira eficaz, trazendo um bem a todo o conjunto que envolve a vida na cidade ideal. A educação visa moldar o corpo e a alma a todo o conjunto, ou seja, integrar pólis e homem. A educação contribui para a formação harmoniosa do homem e para o bem em comum, plasmando a alma e trazendo ao viver humano as virtudes, a saber, sabedoria, coragem e temperança. A última corresponderia ao bom desempenho de cada função dos indivíduos da cidade a fim de uma sociedade justa e harmoniosa auxiliando, assim, na elevação da alma para o Bem supremo. A realização viria a partir dessas virtudes, isto é, de uma vida 11 perfeita, pautada na sabedoria, coragem e temperança, que conduziria o homem à perfeita eudaimonia que se completa na justiça, que é o resultado final de uma sociedade equilibrada. No pensamento e argumentação de Vaz, parecem que o homem realizado por completo, segundo Platão, é o philósofos, pois somente ele consegue, por ser virtuoso, exercer plenamente a racionalidade. Segundo Platão, a maior das capacidades humanas é contemplar o Bem. O indivíduo que contemplou o Bem vive de maneira realizada, justa e feliz, pois “atinge seu ser verdadeiro – vivendo a vida da alma – refletindo a perfeição do mundo ideal no mundo sensível” (ROCHA. 2016. p. 28.). Sendo assim, percebe-se que a filosofia é o caminho para a realização e para a eudaimonia platônica, segundo as conclusões do pensamento de Vaz. 2.1 A PHRÓNESIS EM ARISTÓTELES Aristóteles tece críticas à teoria de Platão nas definições de realização do humano. Para Platão, o conceito de realização está firmado, segundo a argumentação de Vaz, em questões gerais, isto é, imutáveis e universais; já para o estagirita, a realização está naquilo que é particular, adiantando, nas ações virtuosas do homem. Segundo Aristóteles, no livro VI da Ética a Nicômaco, a sensatez4 é uma virtude do homem que se encontra na parte calculativa da alma e está ligada diretamente à sua racionalidade, ou seja, à sua natureza específica (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VI). A sensatez é uma virtude ética – que consiste, segundo o filósofo, no exercício das ações pautadas pela mediania – pois está relacionada a uma espécie de disposição de caráter. A sensatez reflete também no governo de si, ou seja, o homem que sabe escolher em vista do bem governa a si mesmo e suas vontades são direcionadas sempre em vista do bem comum, em conformidade com aquilo que é virtuoso a fim de 4 Recordamos também, no que se refere ao termo phrónesis, do problema da tradução, colocado por Lucas Angioni no escrito intitulado “Phronesis e virtude do caráter em Aristóteles: comentários a Ética a Nicômaco VI”. Segundo o autor, existem várias possibilidades de tradução para tal termo, mas ele opta por traduzir phrónesis como sensatez, visto que as demais possibilidades poderiam trazer sentidos mais amplos que confundiriam ou seriam inviáveis. Segundo Angioni, “sensatez” traduz “phronesis”. As três opções tradicionais – “prudência”, “sabedoria” e “sabedoria prática” – têm inconvenientes bem maiores. (Cf. ANGIONI. 2011. P.15-16). 12 conquistar a eudaimonia, mesmo que o contrário seja mais vantajoso para si mesmo. Como já mencionado anteriormente, a phrónesis é uma disposição de caráter que se relaciona ao conhecimento daquilo que é variável na vida do homem, ou seja, as ações. Não se pode emitir um juízo universal das ações de um indivíduo, visto que cada uma delas é única e realizada em determinado contexto que, podemos assim dizer, só conhecida de fato por aquele que pratica tal ação. A sensatez não é, por conta disso, apenas uma disposição que auxilia ou possibilita o conhecimento do agir, mas sim uma espécie de conhecer a fim de praticar (ROCHA, 2016, p.30.). Dessa forma, ela não se trata de um estado de mediocridade, mas sim da perfeição (energéia) e excelência do agir humano em sua capacidade de deliberação racional e livre em vista do Bem universal. A phrónesis se caracteriza pela capacidade de fazer distinção e reconhecer quais ações são boas e quais são más; de discernir o meio termo entre o excesso e a falta; é também a capacidade de escolher a melhor ação em vista do bem. (ROCHA, 2016, P. 30) Sendo assim, a sensatez é a virtude do homem que possibilita todas as demais ações virtuosas e que ele poderá realizar um dia. Sem a phrónesis o indivíduo poderia saber como agir de maneira virtuosa? Claramente, a resposta deve ser negativa. Todas as ações que são virtuosas devem, como pode-se perceber, passar pelo crivo da phrónesis. É mister recordar que a virtude é a mediania entre um extremo e outro, entre o excesso e a falta. a sensatez faz com que as ações não tendam nem ao excesso e nem a essa falta, mas sim fique no meio dos extremos, configurando assim, segundo a teoria do estagirita, uma virtude (areté) que visa o bem e a felicidade. A partir das definições de sensatez explicitadas por Aristóteles e também pela argumentação de Vaz, pode-se perceber que a realização do homem deve partir de um desejo racional do próprio indivíduo em vista da eudaimonia, e que é atingida por meio do exercício de ações virtuosas, que só são possíveis pela phrónesis. Tendo em vista a contingência da vida humana, o estagirita propõe seu modelo de realização, isto é, a partir das próprias coisas humanas, pois todas as ações tendem a um fim e o fim do homem é, 13 justamente, realizar-se plenamente em sua razão, e sentir o desejo de ser realizado em sua totalidade. 2.2 DA ELEVAÇÃO DAS SOMBRAS DA CAVERNA À LUZ DO BEM E DO FIM Dentro de sua jornada dialogal em A República, Platão, no sétimo livro, recorre à alegoria da caverna, mais conhecida como Mito da Caverna, para ilustrar o percurso de sua Paideia de forma simples e mais direta. Platão fala de homens presos por grilhões nas pernas e no pescoço numa “morada subterrânea” (rep 514a)5 que, por conta da forma de estarem aprisionados, só podem olhar para a frente onde veem sombras de objetos que são carregados por detrás de um muro que fica atrás dos prisioneiros; existe ainda, depois do muro e dos objetos carregados por pessoas que podem estar falando ou não, uma fogueira, que faz com que na parede para qual estão virados sejam projetadas as sombras. Seguindo em sua narrativa, Platão faz alusão à uma libertação dos grilhões que aconteceria de forma “natural” (rep. 515. C-D), e que o indivíduo, agora já livre das amarras, seria “obrigado” (rep. 515. C-d) a levantar-se, olhar para a luz e caminhar em direção a ela, sendo assim acometido de um sofrimento causado pela luminosidade intensa. Mais adiante, narra que o homem seria arrastado “à força pela ladeira áspera e abrupta” (rep. 516a) até sair da caverna e ser exposto à luz solar; seus olhos seriam ofuscados e, aos poucos, veria com perfeição as coisas de fora da caverna. Platão ainda menciona, de certa forma, que o homem que foi retirado da caverna deve voltar, por compaixão, para libertar e instruir os demais prisioneiros que estão em estado de ignorância. É aconselhado que se leia todo o livro sétimo de A República para entender melhor e visualizar com mais detalhes o Mito da Caverna. Para nós, aqui, de acordo com o que queremos abordar, o que foi parafraseado é suficiente. Pode-se entender a alegoria da caverna como o caminho educacional proposto por Platão, ou seja, a saída de um estado de ignorância para a 5 Utilizamos rep para abreviatura da obra A República. Cf. PLATÃO. A República. São Paulo: Martins Fontes. 2006. 2ed. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. 14 contemplação da luminosidade do saber; antes viam-se sombras, agora, após a liberdade e a subida, vê-se o que realmente as coisas são. Portanto, a ausência de uma educação integral que tenda ao Bem e ao Fim pode ser considerada como uma prisão (rep. 514a); o homem que não é conduzido ao Bem é como se estivesse preso por grilhões. O caminho de subida, ou seja, de abandono da ignorância, faz com que a verdade seja contemplada; antes, as sombras eram tidas como verdade, agora, fora da caverna, com a luminosidade do Bem, pode-se contemplar a verdade de forma direta, sem mediações. Essa subida da ausência de educação para a educação plena é, como Platão afirma, uma elevação da alma: “e, se tomares a subida até o alto e a visão das coisas que lá estão como ascensão da alma até o mundo inteligível, não me frustrarás em minha expectativa, já que queres ouvir-me falar dela” (rep. 517b). Sendo assim, o homem que é educado em direção ao Bem e ao Fim participará de um processo de elevação da alma até o mais alto nível, pois tal alma contempla a verdade das coisas. O philósofo seria tal homem, cuja educação plena e integral seria atingida. Dessa maneira, a realização do homem, para Platão, perpassa pelo caminho de saída da caverna: das sombras do erro e da ignorância à verdade clarificada e iluminada pelo Bem. CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo procurou apresentar a história das concepções do ideal de realização humana, seguindo de perto a obra de Antropologia, de Henrique de Lima Vaz. Na elaboração apreciou-se os sucessivos e diferentes ideais de realização do humano. Para Lima Vaz, o ideal de realização humana apresenta uma nova composição diferente da que prevaleceu na sociedade antigomedieval. Os novos universos culturais exercem profunda influência na vida dos indivíduos e estão presentes nos campos das opções subjetivas, das formas de vida e de realização humana. Nesses universos culturais estão inseridos os novos campos da profissão, da pesquisa científica, da produção, da política e etc. A participação do homem contemporâneo nesses diversos universos culturais leva-o a uma 15 fragmentação do ideal de autorrealização. O homem fica apenas diante das tarefas da existência e das disputas de preferência, cuja consequência é o consumo de suas energias. Assim, foi visto, por exemplo, que partir da Renascença a busca pela realização do homem se fragmenta, caminhando pela sua própria perdição, e o núcleo central da reflexão moderna e contemporânea se baseia no sentido único de transformar o conceito de humanidade em sentido universal. Conceito este, hoje, pigmentado em diversas ciências e campos apriorísticos ao desenvolvimento tecnológico, informacional, de dominação e lucro. Assistiu-se também que a vida realizada em Platão e Aristóteles tende ao Bem. Porém, no primeiro, de forma contemplativa e no, segundo, de maneira ativa. O Bem de Platão é metafísico, atingível pela alma, imutável, eterno. Já o Bem de Aristóteles é imanente, ligado diretamente às ações do homem, portanto é particular, mutável. A Paideia e a Phrónesis são indispensáveis para que o homem possa conhecer o que é o Bem. Paideia em Platão como um caminho de elevação da alma até o Bem puro e eterno; phrónesis em Aristóteles como virtude, disposição de caráter que permite ao homem conhecer para agir de forma boa, ou seja, agir bem. Enfim, para Lima Vaz, o ideal de realização humana apresenta uma nova composição diferente da que prevaleceu na sociedade antigo-medieval. Os novos universos culturais exercem profunda influência na vida dos indivíduos e estão presentes nos campos das opções subjetivas, das formas de vida e de realização humana. Nesses universos culturais estão inseridos os novos campos da profissão, da pesquisa científica, da produção, da política e etc. A participação do homem contemporâneo nesses diversos universos culturais leva-o a uma fragmentação do ideal de auto realização. O homem fica apenas diante das tarefas da existência e das disputas de preferência, cuja consequência é o consumo de suas energias. LIMA VAZ AND THE CHALLENGES OF UNDERSTANDING THE HUMAN PERSON 16 ABSTRACT This article presents the challenges of understanding the realization of the human person in the history of philosophy, with emphasis on the life of Plato and Aristotle, according to the Brazilian philosopher, Henrique de Lima Vaz. We follow the author's analysis of the problem of human fulfilment from a historicalphilosophical demonstration of man's conceptions of the realized life, as integral and expressive. The authentic realization of man occurs at the threshold between his essence and existence, the place of its realization, relational and transcendent openness. We show that the various ideals of human awareness can be understood, for example, from the fulfilment of a virtuous life. We go through the notion of category of attainment, expounded in the second volume of Lima Vaz's Philosophical Anthropology, going through the educational question (Paideia), dealt with by Plato in the Republic and also by the definitions of phronesis addressed in Aristotle's Nicomachean Ethics, as well as harmonizing and to highlight Vaz's thinking in relation to the two ancient philosophers. The realization of human life, in the philosophical thought of antiquity, has the aim of good and happiness. The fulfilled life falls into the transcendent, metaphysical and practice fields of virtues. Keywords: Ideal. Realization. History. Man. REFERÊNCIAS ANDRADE, Paulo Rafael Oliveira. 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