MANA 28(3): 1-4, 2022 – http://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n3a1505
e2831505
RESENHA
PINHO, Osm undo. 2021. Cativeiro:
Antinegritude e Ancestralidade.
Salvador: Segundo Selo. 300 pp.
Maria Andrea dos Santos Soares
Professora do Instituto de Humanidades e Letras
–IHLM - UNILAB-Campus dos Malês- São
Francisco do Conde, Bahia, Brasil
https://orcid.org/ 0000-0001-9916-6606
Email: mandreasantos@unilab.edu.br
O legado de luta, de mobilização
e também de produção intelectual
negra nos permitiu chegar ao século
XXI com um debate assertivo sobre
desigualdade racial, sobre discriminação
baseada no fenótipo, assim como nos
permitiu pensar e implementar políticas
públicas afirmativas no Brasil. Este
novo panorama acarreta uma avidez
por aprofundar debates relacionados
às questões raciais, e a consequente
diversidade de abordagens sobre raça,
relações raciais e racismo nos apresenta
diferentes vieses, trajetórias teóricas e
abordagens conceituais que amplificam,
pluralizam posicionamentos, visões de
mundo e lugares epistemológicos de
onde se fala.
Assim, Cativeiro: Antinegritude
e Ancestralidade se propõe a uma
tarefa laboriosa: por um lado, busca ir
a fundo na abordagem afropessimista
– corrente de pensamento ligada ao
campo interdisciplinar dos Black
Studies afro -americanos, que tem
em Frank Wilderson, dramaturgo e
crítico literário da Universidade de
Irvine, Califórnia; Saidiya Hartman,
professora de Literatura e História Afroamericana da Columbia University;
e Jared Sexton, professor de estudos
de Mídia da Universidade de Irvine,
seus principais expoentes. Por outro
lado, Cativeiro nos traz a possibilidade
de uma contraposição, ou melhor,
Pinho nos sugere uma possibilidade
de saída para a inescapabilidade da
morte social negra, entendimento
que está na base das pressuposições
afropessimistas (Wilderson 2017). A
contribuição intelectual trazida por
Cativeiro assenta-se na experiência
vivida por negros e negras no Brasil e
propõe a ancestralidade – tão central
na experiência espiritual do candomblé
e tão celebrada no imaginário afrobrasileiro – como uma alternativa à
impossibilidade da humanidade plena
do ser negro no mundo configurado pelo
advento da Modernidade Ocidental.
Ao longo dos cinco capítulos de
Cativeiro, o antropólogo Osmundo
Pinho, baseado em sua consolidada
experiência de pesquisa etnográfica,
nos oferece cenários e universos onde
a agência negra contradiz o lugar da
“morte social”, mesmo quando, através
da transfiguração da performance,
reafirme esse lugar de desonra destinada
ao negro. Como assim, contradizer a
morte reafirmando a morte? Aqui talvez
esteja a reviravolta que uma performance
pode criar; ela “... transtorna o repouso
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RESENHAS
dos sentidos” (Artaud 1993:24) e, assim,
aquilo que era/é a grande esperança da
nação – a eliminação da “mancha negra”
de forma silenciosa, não alardeada, ou
justificada – subitamente é reintroduzida
com grande alarde, esfregada na cara da
nação através da hecatombe trepidante
vinda dos sons automotivos dos paredões
de pagode baiano, como temos no
capítulo II, “Arrastão: descolonizando
o gênero e a sexualidade no pagode
baiano”. O autor afirma: “O acesso a
essa estrutura profunda, linha de fuga,
ritualização fugitiva de uma estética da
desumanização radical, pode encontrar
assim a forma de sua constituição em
modalidades performáticas” (:106),
ou seja, os sujeitos, ao articularem
per for maticamente os lugares de
desonra, desvalorização, imoralidade e
morte, estão tornando reconhecíveis para
si os lugares que lhes foram designados
historicamente e, ao mesmo tempo,
confrontando a mesma sociedade que os
quer silenciosamente mortos.
Reveladora é a afirmação do autor
quando coloca que “em meu contato
com a literatura afro-pessimista, dois
aspectos me chamaram fortemente a
atenção. Primeiro, a preocupação com
a ontologia – um debate que eu julgava
superado ou irrelevante...” (:50). Esse
retorno à discussão ontológica indica
a compreensão de que só existe a
possibilidade de superar o debate da
ontologia para quem teve uma ontologia,
ou ontologias bem definidas para serem
deixadas de lado, ou superadas por um
novo momento filosófico e histórico. O
ser do negro ainda não teve possibilidade
de existir no mundo inaugurado pela
modernidade exceto enquanto projeção
racializada do homem moderno – este
último constituído na (e por) sua relação
com o que ele não é: um negro. Este último
é um corpo reduzido à carne (flesh), ou
nas palavras do autor, “marcado por sua
condição epidérmica...” (:131), conforme
elaborado no capítulo III, “Black Border:
o corpo e a luta no audiovisual negro”,
que discute justamente o antagonismo
entre a negritude e a capacidade de
simbolização, discussão que desemboca
em um dos eixos centrais da obra de
Osmundo Pinho, a saber; a representação/
impossibilidade da representação do ser
do negro.
Assumindo -se a prer rogativa
fanoniana – o ser do negro existe apenas
como projeção racializada e esvaziada
de uma ontologia e subjetividades
próprias – neste caso, não é possível
para ele representar-se, ou mesmo criar
consciência de si e encontrar-se em uma
subjetividade “sua”, já que pessoalidade
e subjetividade são inalcançáveis dentro
da nothingness (Sexton citado em
Pinho:51) do escravo coisificado. Então,
Pinho, ao longo dos capítulos IV “Sangue
Atlântico: Morte Social e Ancestralidade
em Albert Eckout e Ayrson Heráclito” e V
“A Cena da Objeção: narrativa, economia
política e performance”, propõe o
desinvestimento da busca incessante por
“representar” ou “representar-se” negro/
negra. Esse desinvestimento ou ruptura
com uma busca pela representação,
enquanto mimese que demanda uma
interpretação e uma hermenêutica de
seu sentido, se daria em favor de um
ideal de imanência em que o sujeito
não mais precisa adequar o conteúdo
à forma – significado e significante, os
quais têm estado na base de toda uma
tradição ocidental da filosofia, da arte,
da literatura. A performance permitiria
essa imanência do ser negro através de
seus repertórios de memórias.
Pinho alinhava a episteme da
ancestralidade às proposições da linha
conhecida como Black Optimism,
associada ao poeta e teórico cultural Fred
Moten, professor da Universidade de
Nova York. O Black Optimism não recusa
3
RESENHAS
a premissa afropessimista de “morte
social”, porém vê neste lugar da morte
social um lugar político e de reinvenção
de onde pessoas negras criam arte,
política, coletividades e possibilidades,
entendendo a per for mance negra
“enquanto a resistência do objeto” (Moten
2017:33). Assim, em Pinho, a articulação
de categorias como ancestralidade e
objeção não nega a concretude daquilo
que os afropessimistas (e também os
Otimistas Pretos – Black Optimists)
identificam como a redução do ser negro
à condição de objeto e, portanto, de morte
social. Todavia, há uma aposta de que as
criações, as repetições, as performances
e os repertórios circulantes pela diáspora
negra de Nova Orleans ao Recôncavo
da Bahia são agências – resistências do
objeto – capazes de situar a negritude
enquanto uma presença (frequentemente
fantasmagórica) que assombra e objeta
a normatividade do mundo e da ordem
brancas.
Cativeiro: antinegritude e
ancestralidade indica também a tensão
entre o posicionamento de intelectuais
ligados ao afropessimismo (e também
ao Black otimismo, em termos de uma
gramática da posicionalidade negra no
mundo), para os quais a condição (des)
ontologizada do “escravo” é determinante
para se pensar a condição negra na
contemporaneidade, e o posicionamento
de intelectuais e ativistas afro-brasileiros,
para os quais todo o esforço das últimas
décadas foi desconstruir uma narrativa
na qual pessoas negras só passam
a fazer parte da história a partir da
escravidão. Para os últimos, a resistência
à objetificação da pessoa negra se dá em
torno da manipulação do “signo-África”,
o qual opera como um suplemento ao
vazio subjetivo (:51). Já o afropessimismo
fala desse lugar de trauma coletivo e
da impossibilidade de sublimação do
trauma porque o mundo que exigiu essa
cessão da pessoa do africano continua
sendo o mundo no qual estamos hoje.
Como vemos em Hortense Spillers:
“Estas marcações no corpo social da
africanidade do Novo Mundo são marcas
de crise edipiana (para crianças do
sexo masculino e do sexo feminino)
que só podem ser eliminadas agora por
uma confrontação com a cena da sua
ocorrência, mas como se fosse um mito”
(2003:732-733, tradução nossa).1
A memória da middle passage e
sua necessária relação com o “cativeiro”
são o gatilho que dispara os repertórios
da negritude diaspórica: nascer para o
mundo como “o escravo”, “o cativo”. Mas,
diferentemente do que os arquivos que,
conforme Diana Taylor (citada em Pinho:
245) pertencem às sociedades letradas, às
sociedades do Estado, registram em sua
fixidez e normatividade, os repertórios
são formas baseadas no performático,
assentadas no corpo e capazes de produzir
e transmitir conhecimentos dentro e para
as “comunidades tradicionais”. Assim,
as práticas performativas, como as
aparições das Indians tribes do carnaval
de New Orleans e as aparições do
“Nego Fugido” do distrito de Acupe,
no Recôncavo baiano, têm o poder
de confrontar essa cena primordial
que instaura o cativeiro negro, uma
vez que estas performances estão
atravessadas por “símbolos poderosos
que atuam rompendo limites entre o
Eu e o Outro, como no transe, e entre
o passado e o presente, como no mito,
subvertendo a linearidade temporal em
sua irreversibilidade ocidental” (:247).
A inquietação provocada pela
discussão de questões raciais no Brasil,
o desconforto, o incômodo que desalojou
as narrativas do “homem cordial” e do
“paraíso racial” trouxe à tona o reflexo
monstruoso de um povo que se queria
mais perto da brancura e hoje tende a
descobrir que não só está muito longe
RESENHAS
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dela, como também tem tido a sua
antinegritude desvelada. Enquanto
escrevia esta resenha para este livro,
o qual a meu ver já se constitui como
um marco do pensamento social negro,
me deparava constantemente com o
espetáculo da abjeção, dos diferentes
níveis de tortura e sujeição, do corpo
negro reduzido à sua materialidade
orgânica em diversos cenários da capital
baiana. A morte social negra se descortina
como um espetáculo que a cada esquina
de qualquer cidade segue atualizando
seu script e nos é imprescindível avançar
em nossa capacidade de objetar os
cativeiros.
Ref erências bibliográf icas
ARTAUD, Antonin. 1993. O Teatro e seu
Duplo. São Paulo: Martins Fontes.
MOTEN, Fred. 2017. Black and Blur.
Durham, Carolina do Norte: Duke
University Press.
PINHO, Osmundo. 2021. Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade. Salvador:
Segundo Selo. 300 pp.
SPILLERS, Hortense. 2003. Black, White,
and in Color: essays on American
literature and culture. Chicago: University of Chicago Press.
WILDERSON III, Frank. 2017. “Biko
e a problemática da presença”. In:
Ana Flauzina & João Costa Vargas,
Motim: horizontes do genocídio antinegro na diáspora. Brasília: Brado
Negro. pp. 67-89.
Not a
1
“… those markings on the social body of the New World Africanity are the stripes of an oedipal crisis (for
male and female children) that can only be cleared away now by a confrontation with the scene of its occurrence, but
as if a myth”.