Marxismo.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
M392
Marxismo. Gênero e raça / Organizadores Maro Lara Martins, Lara
Sartório, Lívia Rangel, et al. – São Paulo: Pimenta Cultural, 2022.
Outro organizador: Filipe Monteiro
(Pensamento social brasileiro, V. 3)
ISBN 978-65-5939-575-0
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750
1. Marxismo. 2. Ciências sociais. 3. Pensamento. 4. Identidade de
gênero. 5. Raça. I. Martins, Maro Lara (Organizador). II. Sartório,
Lara (Organizadora). III. Rangel, Lívia (Organizadora). IV. Título.
CDD: 335.43
Índice para catálogo sistemático:
I. Marxismo
Janaina Ramos – Bibliotecária – CRB-8/9166
Marxismo.
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.
Copyright do texto © 2022 os autores e as autoras.
Copyright da edição © 2022 Pimenta Cultural.
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Marxismo.
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Instituto Municipal de Ensino Superior de São Manuel, Brasil
Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil
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Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
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Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil
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Universidade de São Paulo, Brasil
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Marxismo.
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Marcos Pereira dos Santos
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Silmar José Spinardi Franchi
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da Fonseca, Brasil
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Instituto Federal do Piauí, Brasil
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Mônica Tavares Orsini
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Universidade de São Paulo, Brasil
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Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
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Yan Masetto Nicolai
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Marxismo.
PARECERISTAS E REVISORES(AS) POR PARES
Avaliadores e avaliadoras Ad-Hoc
Alessandra Figueiró Thornton
Jacqueline de Castro Rimá
Alexandre João Appio
Lucimar Romeu Fernandes
Bianka de Abreu Severo
Marcos de Souza Machado
Carlos Eduardo Damian Leite
Michele de Oliveira Sampaio
Catarina Prestes de Carvalho
Pedro Augusto Paula do Carmo
Elisiene Borges Leal
Samara Castro da Silva
Elizabete de Paula Pacheco
Thais Karina Souza do Nascimento
Elton Simomukay
Viviane Gil da Silva Oliveira
Francisco Geová Goveia Silva Júnior
Weyber Rodrigues de Souza
Indiamaris Pereira
William Roslindo Paranhos
Universidade Luterana do Brasil, Brasil
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Universidade de São Paulo, Brasil
Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil
Universidade Federal do Piauí, Brasil
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil
Universidade Potiguar, Brasil
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Instituto Politécnico de Bragança, Brasil
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Universidade Paulista, Brasil
Universidade de Caxias do Sul, Brasil
Instituto de Ciências das Artes, Brasil
Universidade Federal do Amazonas, Brasil
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
PARECER E REVISÃO POR PARES
Os textos que compõem esta obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial da Pimenta Cultural, bem
como revisados por pares, sendo indicados para a publicação.
Marxismo.
SUMÁRIO
Apresentação.................................................................................. 12
Parte 1
Marxismo
Capítulo 1
Nelson Werneck Sodré e a Coleção
História Nova: estudo de um caso
particular da brasilidade revolucionária............................................ 16
Eduardo Russo Ramos
Capítulo 2
Os percursos do marxismo autóctone:
o esforço teórico pioneiro de Octávio Brandão................................. 39
Itamá Winicius do Nascimento Silva
Capítulo 3
Direito, nação e capitalismo periférico:
o impacto ideológico da superestrutura jurídica
no Brasil nas visões de Antonio Carlos Wolkmer
e Gizlene Neder................................................................................ 55
Marcello Amorim Vieira
Sofia Viegas Duarte
Capítulo 4
Florestan Fernandes nas trilhas
do materialismo histórico .............................................................. 67
Matheus de Carvalho Barros
Marxismo.
Capítulo 5
O processo de construção do Direito brasileiro
no pensamento de Antonio Carlos Wolkmer................................ 86
Sofia Viegas Duarte
Marcello Amorim Vieira
Parte 2
Gênero e raça
Capítulo 6
A mão da limpeza: empregadas domésticas,
direitos trabalhistas e o passado escravista................................... 107
Emilly Gabriela Menezes Franco
Capítulo 7
Teoria em movimento – ondas feministas
no Brasil, Argentina e Chile.......................................................... 120
Stephany Dayana Pereira Mencato
Renata Peixoto de Oliveira
Capítulo 8
O conceito de gênero no pensamento
de Heleieth Saffioti....................................................................... 143
Sylvia Iasulaitis
Gustavo Guimarães
Capítulo 9
As funções sociais da democracia
racial nos anos 1940 e 1950: elites senhoriais,
Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos................................................. 156
Alan Caldas
Nikolas Pallisser Silva
Marxismo.
Capítulo 10
A atemporalidade de uma intelectual amefricana:
o pioneirismo de Lélia Gonzalez..................................................... 177
Fernanda Reis Nunes Pereira
Steffane Pereira Santos
Capítulo 11
Do niger sum ao ser nacional: questão racial
e construção da nacionalidade
em Alberto Guerreiro Ramos (1949-1960)...................................... 191
Gabriel Felipe Oliveira de Mello
Capítulo 12
O famoso racismo à brasileira: miscigenação
e discriminação racial em Lilia Schwarcz........................................ 212
Micheli Longo Dorigan
Capítulo 13
A relação sujeito-objeto na teoria social moderna:
a produção de conhecimento em contexto colonial........................ 231
Patrícia Amorim Weber
Capítulo 14
Sob a luz do livre arbítrio: raça, degenerescência
e criminalidade no pensamento social
de Raimundo Nina Rodrigues......................................................... 248
Telmo Renato da Silva Araújo
Capítulo 15
As peculiaridades de Brasil peculiar:
características sociais que formaram
um país manchado pelo preconceito............................................. 266
Thomaz José Portugal Coelho e Santos
Marxismo.
Capítulo 16
Juliano Moreira e a Psiquiatria Social no Brasil.......................... 287
William Vaz de Oliveira (UERJ)
Sobre os organizadores............................................................... 305
Sobre os autores e as autoras ..................................................... 307
Índice remissivo............................................................................ 312
Marxismo.
APRESENTAÇÃO
Entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, o Netsib-Ufes – Núcleo de Teoria Social e Interpretação do Brasil organizou o II Seminário
de Pensamento Social Brasileiro – Intelectuais, cultura e democracia.
Neste evento foram apresentadas mais de uma centena de comunicações divididas em áreas temáticas, mesas redondas, além das conferências de abertura e encerramento. Os apresentadores de trabalho e
conferencistas vieram das mais diversas regiões do país interessados
em debater estes temas candentes do pensamento social brasileiro e
do contexto social e político em que vivemos.
Este livro é fruto dos debates realizados durante o evento, cujos
autores, gentilmente, se dispuseram a encarar o desafio de compartilhar suas reflexões com público mais amplo. Os textos foram divididos
em 4 volumes que compõem a Coleção Pensamento Social Brasileiro:
Volume 1 – Economia, Estado e Sociedade / Nacionalismos, Modernismos, Modernidades, Volume 2 – História das Ciências Sociais / Intérpretes e Interpretações do Brasil Contemporâneo, Volume 3 – Marxismo / Gênero e Raça e Volume 4 – Educação / Arte e Literatura.
sumário
12
Parte
1
Marxismo
Marxismo.
Sem sombra de dúvidas, o marxismo é uma das linguagens teóricas mais importantes e frutíferas de nosso pensamento social brasileiro. Não somente pelo conteúdo de suas interpretações do Brasil, o
marxismo brasileiro revela a produção, circulação e consumo de ideias
e produtos culturais que mesmo originados em outros contextos intelectuais podem se aclimatar nos trópicos.
No capítulo de abertura, Eduardo Russo Ramos analisa a elaboração e publicação da Coleção História Nova – coletânea de livros
didáticos de História do Brasil idealizados e redigidos por um grupo de
intelectuais articulados pelo historiador Nelson Werneck Sodré (19111999) no âmbito do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)
entre os anos de 1963 e 1964 e publicados na véspera do golpe de
1964 através de convênio com o Ministério da Educação e da Cultura.
Itamá Winicius do Nascimento Silva promove o resgate da vida
e obra de Octávio Brandão, analisando suas contribuições a partir
de sua teoria da revolução, construída com base na observação das
revoltas tenentistas e que colocou a pequena-burguesia como importante aliada do proletariado na revolução democrático-burguesa, sua
análise dual da situação brasileira em que forças agraristas e industrialistas se encontravam em choque, sendo este conflito um desdobramento das disputas inter-imperialistas, representadas por ingleses
e norte-americanos e sua busca por um marxismo autóctone.
No capítulo Direito, nação e capitalismo periférico: o impacto ideológico da superestrutura jurídica no Brasil nas visões de Antonio Carlos
Wolkmer e Gizlene Neder Marcello Amorim Vieira e Sofia Viegas Duarte
partem da análise das obras de Antonio Carlos Wolkmer e Gizlene Neder,
respectivamente Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura
no direito e Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil para avaliar as
contribuições destes pensadores para a Sociologia do Direito no Brasil.
sumário
14
Marxismo.
Por sua vez, Matheus de Carvalho Barros localiza a presença do
Marxismo em diferentes momentos da trajetória intelectual e política de
Florestan Fernandes, elucidando a importância e a função que o marxismo possui em diferentes momentos da trajetória de um dos maiores
intelectuais brasileiros do século XX.
E por fim, Sofia Viegas Duarte e Marcello Amorim Vieira utilizam
como marco teórico os conceitos de pluralismo jurídico e ineficácia
jurídica, apresentados por Antônio Carlos Wolkmer. Os objetivos principais são identificar as ferramentas de análise e as propostas de discussões do direito enquanto um vetor de sociabilidade no Brasil.
sumário
15
1
Eduardo Russo Ramos
Nelson Werneck Sodré
e a Coleção História Nova:
estudo de um caso particular
da brasilidade revolucionária
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.1
Marxismo.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é apresentar alguns dos resultados
derivados da pesquisa de mestrado desenvolvida através do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR entre os anos de 2018
e 2020 sob o título “Nelson Werneck Sodré e a Coleção História Nova:
relações intelectuais e brasilidade revolucionária”. Desta forma, discorreremos sobre os elementos que estruturaram nossa investigação
e argumentação para sistematizar as informações levantadas e os
resultados a que chegamos com o tipo de análise a que submetemos
nosso objeto de pesquisa. Apesar de não conclusivos, os levantamentos, as decisões de caráter metodológico e as considerações
finais que pudemos sustentar indicam um caminho possível e produtivo para o posterior aprofundamento nas pesquisas sobre, de um
lado, o itinerário intelectual de Nelson Werneck Sodré, de outro lado,
as trajetórias individuais e coletivas da intelectualidade de esquerda
envolvida nas lutas políticas e culturais do Brasil da brecha democrática encerrada desastrosamente pelo golpe de 1964.
Assim, na sequência, o presente artigo apresenta a articulação
de dois níveis desenvolvidos em nosso trabalho integral. Em primeiro
lugar, abordamos aspectos do estado da arte dos estudos sobre a
vida e a obra de Sodré identificando limites e tensionando as leituras
realizadas até então para demonstrarmos os elementos que embasam
nosso enfoque teórico-metodológico. Em seguida, através das mediações necessárias entre estas primeiras considerações e o nosso recorte analítico, sistematizamos o procedimento teórico-metodológico
utilizado para pensar a formação do grupo que produziu a Coleção
História Nova (CHN) e as relações entre este grupo e sua intervenção
intelectual com o cenário político-cultural do pré-golpe – investigadas através da hipótese cultural sustentada por Marcelo Ridenti, qual
seja a da existência de uma estrutura de sentimento da brasilidade
sumário
17
Marxismo.
revolucionária que marcou a produção cultural de esquerda no Brasil
ao longo das décadas de 1950 e 1960. Tal análise, estruturada por
meio da ideia de “relações intelectuais”, procurou, na forma possível,
explorar os limites interpretativos desta hipótese e também de seu cabedal teórico derivado das contribuições de Raymond Williams para a
sociologia da cultura e dos intelectuais. Determinadas considerações
realizadas neste artigo são resultantes das importantes observações
e debates suscitados na banca de defesa de dissertação, portanto,
aproveito a oportunidade para reconhecer e agradecer a disposição, a
dedicação e a contribuição de meu orientador Prof. Dr. Rodrigo Czajka
e dos demais membros da banca, Prof. Dr. Josnei Di Carlo Vilas Boas
(UFSC) e Prof. Dr. Erivan Cassiano Karvat (UEPG).
OBSERVAÇÕES CRÍTICAS ACERCA
DO ESTUDO DA OBRA E DO ITINERÁRIO
DE NELSON WERNECK SODRÉ
Nelson Werneck Sodré nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1911
e faleceu em Itu, São Paulo, no ano de 1999. Crítico literário, historiador,
militar e militante comunista, além de espectador e protagonista das
transformações pelas quais passou o Brasil ao longo do século XX, foi
autor de 56 livros e cerca de três mil artigos, sendo uma das figuras
mais relevantes de nossa história política e cultural e da formação e desenvolvimento de nossa tradição marxista. Debruçar-se sobre a trajetória e obra de uma personagem histórica como Sodré nos demandou,
por tanto, uma série de medidas metodológicas preliminares.
De início, realizamos uma revisão de literatura dos trabalhos disponíveis e localizados sobre sua vida e obra e, partindo para nossa
análise dentro do recorte proposto, buscamos proceder com a cautela
de não realizar uma leitura que monumentalizasse nosso objeto de
sumário
18
Marxismo.
pesquisa. Na perspectiva de uma Sociologia dos Intelectuais, deparamo-nos com uma quantidade de pesquisas que nos permitiu identificar
uma série de lacunas que ainda dificultam o estudo deste objeto e, portanto, sustentamos a necessidade de uma operação sociológica crítica
e investigativa que também considerasse o desafio metodológico de
resgatar documentos, informações e dados históricos que nos auxiliassem na compreensão de seu itinerário intelectual; reconstituir sua
trajetória com o objetivo de ampliar o horizonte de pesquisas futuras
sobre o autor, mas também sobre as instituições, grupos e movimentos
político-culturais em que esteve envolvido e cuja história não pode ser
narrada sem localizar suas intervenções e engajamento; revisitar episódios de nossa história cultural e política cuja interpretação consolidada
no cenário intelectual há tempos demonstra seus limites e validade.
Em nossa revisão de literatura, identificamos um lugar comum
em uma série de análises que se detiveram sobre a vida e a obra
de Sodré: o ostracismo intelectual e acadêmico que sofreu em suas
últimas décadas de vida. Ainda antes de seu falecimento, Leandro
Konder e José Paulo Netto, alertavam sobre o impacto deste aspecto
de sua trajetória para a compreensão do significado de suas contribuições na história do pensamento brasileiro do século XX (KONDER,
1991; NETTO, 1992). A quase onipresença destas duas análises nas
pesquisas realizadas nos anos seguintes antes e depois da morte de
Sodré nos permitiu argumentar que estas tiveram o efeito de serem
trabalhos seminais sobre a importância e a necessidade de romper a
“muralha de preconceitos” erguida diante da vida e da obra de Sodré,
na expressão de NETTO (1992, p. 27).1
1 Abrindo a coletânea que organizou em 2001, Marcos Silva sintetiza parte desta campanha
demonstrando que a formação de uma tradição intelectual predominantemente acadêmica
concentrada em São Paulo durante a década de 1970 avaliou o lugar de Sodré na tradição
historiográfica brasileira de forma muito negativa (SILVA, 2001, p. 10). Os trabalhos de Maria
Sylvia de Carvalho Franco (1972; 1984), Carlos Guilherme Mota (1977), Giselda Mota (1986),
Marilena Chauí (1978; 1983) e Caio Navarro de Toledo (1977) se destacam neste projeto.
sumário
19
Marxismo.
Esforços pontuais e, por vezes, descontínuos, marcaram as
iniciativas e produções que tomaram sua obra e trajetória intelectual
como objeto nos anos que se seguiram a sua morte em janeiro de
1999. A título de exemplificação, conste-se os principais trabalhos que
nos permitem identificar seus principais interlocutores e especialistas:
em 2001, publicação organizada pelo professor Marcos Silva trouxe
13 artigos oriundos de um simpósio realizado em outubro de 1999 e
ofereceu um intrigante panorama de questões e debates sobre a trajetória e o pensamento do historiador carioca (SILVA, 2001); do mesmo ano é a tese de um dos pesquisadores que se tornou referência
obrigatória nos estudos sobre as relações entre militares e política no
Brasil, Paulo Ribeiro da CUNHA, publicada sob o título Um olhar à esquerda: a utopia tenentista na construção do pensamento marxista de
Nelson Werneck Sodré ([2002] 2011a); em 2006 foi publicada uma coletânea de 21 textos organizados por Paulo Ribeiro de Cunha e Fátima
Cabral, oriundos de um evento científico realizado na UNESP no campus de Marília com o título Nelson Werneck Sodré: entre o sabre e a
pena (CUNHA; CABRAL, [2006] 2011b); no ano de 2008 a publicação
organizada pelo professor Marcos Silva do Dicionário crítico Nelson
Werneck Sodré trouxe o impressionante número de 83 autores apresentando verbetes dedicados à bibliografia de Sodré (SILVA, 2008).
No entanto, ao realizarmos a análise mais ampla desta literatura,
nos deparamos com uma série de interrogações que afetam a compreensão de seu itinerário intelectual ao longo das décadas de 1940,
1950 e 1960. Sua militância comunista a partir da década de 1940 abre
questões ainda inconclusas no que diz respeito à compreensão de
sua interpretação marxista heterodoxa. Tratando-se de um tema não
diretamente abordado pelas pesquisas sobre sua trajetória, cumpre
aqui ilustrar uma divergência entre importantes analistas. De um lado,
representando a tradição acadêmica paulista da década de 1970, Caio
Navarro de TOLEDO argumenta que em Sodré há uma defesa intransigente da linha política do PCB (2001, p. 53); já CUNHA, especialista na
sumário
20
Marxismo.
obra e trajetória do historiador, observa que “vincular as teses de Sodré
às teses que se vinculam ao PCB é um equívoco.” (2011b, p. 91).
Outro apontamento relevante pode ser encontrado ao abrirmos
a questão de sua passagem e participação pelo ISEB. Como já citado,
NETTO sustenta que os acontecimentos do início da década de 1950
contribuíram significativamente para a definição do perfil político e intelectual de Sodré (2011, p. 17). Significaram o início e o fim do “exílio
interno” que passou em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, entre 1951 e
1954, e o início de um longo período em que residiu no Rio de Janeiro,
cidade a que retorna em 1955, para lecionar no ISEB.
Outro elemento que aponta a riqueza deste período em sua trajetória é sua produção bibliográfica. Para além da quantidade de obras,
são deste período e dos anos seguintes suas obras mais estudadas e
discutidas: a Introdução à revolução brasileira (1958); a revisão e reedição da obra História da literatura brasileira ([1ª edição de 1938] [3ª edição revista e ampliada em 1960] 1964a); a Formação histórica do Brasil
(1962); a coleção História Nova (SANTOS, et al., [1963] 1993); a História
da burguesia brasileira (1964b); a História militar do Brasil (1965); entre
outras que marcaram os debates travados neste conturbado período.
Levando em consideração esta produção, PINTO propõe uma
periodização que atenta às particularidades desta trajetória. Para o autor, a produção de Sodré pode ser pensada em dois momentos cronológicos distintos: o primeiro, de 1938 à 1945; e o segundo, de 1958 à
1964 (2011b, p. 152). Segundo o analista:
Os trabalhos publicados após 1964, na sua maioria, reafirmam
conceitualmente as teses do segundo período. Inicialmente,
pode-se afirmar que o substrato essencial do pensamento
e da intervenção política do historiador carioca dá-se com a
produção acontecida na conjuntura de 1958-1964, momento
em que revisa e em parte abandona conceitualmente a sua
produção anterior, quando se consagra como professor do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Quase toda
sumário
21
Marxismo.
a produção desse período nasceu de trabalhos apresentados
no ISEB (1956-1964) (Ibidem, p. 152-153).
O ano de 1958 é significativamente importante para pensarmos
o nosso recorte analítico. Neste sentido, visualizamos 3 elementos que
devem ser observados para justifica-lo.
Em relação à sua produção bibliográfica, NETTO demonstra
que no período de 1945 à 1958 Sodré publicou somente 4 obras, todas
de circulação restrita (1992, p. 22-23). Segundo o autor, este relativo silêncio de 13 anos pode ser entendido como um momento de reflexão,
elaboração e reelaboração teórica que tem relação com a própria experiência política da sociedade brasileira na abertura democrática que
se realiza após o fim do Estado Novo (Ibidem, p. 22). Ainda, registra
uma inflexão em sua trajetória, pela proximidade que alcançou com os
círculos intelectuais e movimentos sociais que compunham o ambiente carioca da década de 1950. Entretanto, é preciso constar que este
relativo silêncio do período pode ser tensionado se observarmos que
se trata de um momento em que verificamos uma série de eventos não
menos importantes de sua trajetória: foi nomeado professor da disciplina História Militar na Escola de Estado-Maior no Rio de Janeiro, no
ano de 1948 (CUNHA, 2013, p. 210); integrou a chapa nacionalista e
vitoriosa nas eleições para o Clube Militar de 1950, ligada à campanha
O Petróleo é nosso (Ibidem, p. 213); dirigiu, naquela instituição, entre
1950 e 1951, seu Departamento Cultural e, consequentemente, a então
prestigiosa Revista do Clube Militar (Ibidem, p. 218).
Ainda, segundo a hipótese de CUNHA, foi no âmbito da docência
na Escola de Estado-Maior que o historiador teve contato com a obra do
marxista húngaro György Lukács (2011a, p. 243-245). Importante leitor e
difusor da obra de Lúkacs no Brasil, KONDER sustentou, em seu ensaio
sobre Sodré, que a utilização das teorias do marxista húngaro na refundição da obra História da literatura brasileira em 1960 apontam para o pioneirismo do historiador em nossa tradição marxista (1991, p. 76). Tudo
indica, portanto, que a semente deste pioneirismo reside neste período.
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Marxismo.
O segundo elemento a ser observado sobre o ano de 1958
reside na própria trajetória institucional do ISEB. Fundado em 14 de
julho de 1955 pelo governo de João Café Filho, o Instituto Superior
de Estudos Brasileiros foi uma instituição pública de caráter universitário vinculada ao Ministério da Educação e Cultura (PEREIRA, 2005,
p. 253). Entre publicações, debates e cursos, a história do instituto é
relativamente tranquila até a crise institucional ocorrida em 1958 decorrente de um embate entre dois de seus fundadores, Alberto Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe. A discordância de Guerreiro Ramos
em relação às teses de Jaguaribe publicadas naquele ano no livro
O nacionalismo na atualidade brasileira, em que este defendia o recurso
ao capital estrangeiro e a privatização do setor petroquímico nacional
como alternativas para o desenvolvimento brasileiro, gerou uma instabilidade que ultrapassou as paredes da instituição e causou uma ruptura em que ambos pediram demissão, levando consigo parte de seus
adeptos (Ibidem, p. 257-258). Como documentou SODRÉ, nesta crise,
saíram da instituição, além de Guerreiro Ramos e Jaguaribe: Roberto Campos, Anísio Teixeira, Hélio Cabal e Ewaldo Correia Lima (1986,
p. 39). Com a saída de Jaguaribe, titular da cadeira de Ciência Política,
o professor Cândido Antônio Mendes, então titular da cadeira de História, passou a lecionar na cadeira vaga e Sodré passou a ser o titular da
cadeira de História (Idem). Esta recomposição institucional ainda seria
afetada por outras crises, mas PINTO destaca, por exemplo, que se em
1958 o nosso historiador lecionou 22 sessões de aulas e coordenou
3 seminários, no ano de 1959 o número passaria para 53 sessões de
aula e 4 seminários (2011b, p. 157). Portanto, mais do que uma crise
institucional, as consequências da ruptura de 1958 levaram também a
um reposicionamento do historiador nos quadros da instituição.
O terceiro fator que gostaríamos de destacar diz respeito a outra
inflexão, esta ocorrida no cerne da orientação política do PCB, que veio
a afetar tanto o desenvolvimento de nossa tradição marxista quanto o
cenário político-cultural dos anos que antecederam o golpe de 1964; nos
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Marxismo.
referimos à Declaração sobre a política do PCB de março de 1958. De
acordo com Antônio Albino Canelas RUBIM, a crise aberta pelo XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética permitiu “uma ruptura
do (quase) monopólio e o surgimento de inúmeros polos de irradiação
do(s) marxismo(s), cada vez mais plural, no Brasil.” (2007, p. 374). Nesta
linha de argumentação e problematizando os reflexos da Declaração,
Celso FREDERICO ressalta o fato de que esta marcou tanto o abandono de uma orientação política sectária quanto a saída de um isolamento, o que viabilizou a presença dos comunistas no âmbito da agitação
político-cultural dos anos que se seguiram (2007, p. 338-340). Sob os
auspícios desta reconfiguração da linha partidária, o partido lançou o
semanário Novos Rumos e a revista Estudos Sociais, esta dirigida por
Astrojildo Pereira (ARIAS, 2003, p. 49; SANTANA; SILVA, 2007, p. 124).
Intimamente próximo ao PCB desde os anos de 1943 e 1944
(CUNHA, 2011a, p. 209-210), Sodré não somente participou em edições da nova revista nas edições de número 14, 17 e 18,2 como também inauguraria, ao lado de Jacob Gorender, no ano de 1963, o “Centro de Estudos Sociais” – inauguração anunciada em seu 15º número,
em 1962 (ESTUDOS SOCIAIS, n. 15, 1962, p. 319).
Conforme ARIAS, o projeto do CES nunca se concretizou:
“A presidência seria dada a Nelson Werneck Sodré. Mas o instituto
acabou na primeira reunião, durante a definição de sua linha política.”
(2003, p. 72). Conclusão extraída de uma série de entrevistas realizadas com Leandro Konder, Jorge Miglioli, Jacob Gorender e o próprio Sodré, a autora ainda identifica a ausência de menções ao CES
após esta nota de 1962 (Idem). No entanto, ao consultar o acervo de
Sodré na plataforma do Acervo Digital da Biblioteca Nacional, nos
deparamos com uma entrevista do autor na data de 17/10/1963 para
2 Para uma consulta integral aos números, índices e conteúdos da Revista Estudos Sociais, conferir: ARIAS, Santiane. A revista Estudos Sociais e a experiência de um “marxismo criador”.
Dissertação (Mestrado em Sociologia), Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, p. 187, 2003.
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Marxismo.
o jornal Última Hora de São Paulo intitulada “Nelson Werneck Sodré
fala sobre as origens do ISEB” onde consta a informação sobre uma
série de palestras proferidas na capital paulista no âmbito das atividades do CES (NELSON..., 17 out. 1963). Ainda, a matéria não somente
refere-se à uma atividade do CES no ano de 1963, mas traz ainda a
percepção de Sodré, onde o autor refere-se à pertinência histórica e
cultural do Centro. A citação é longa, mas vale a leitura pela forma
como expressa as lutas e debates do período:
“O Centro de Estudos Sociais é outro sintoma das transformações políticas, sociais e culturais que atravessa o País. A existência do CES está justificada pela necessidade que as pessoas
têm de se reunir, de pesquisar, de debater todos os problemas
que o Brasil apresenta hoje. Essa necessidade decorre, não
apenas das exigências da realidade, mas também do fato de
que o aparelho institucional destinado às tarefas da cultura, que
é o universitário, dá mostras de sua incapacidade para realizar
essas tarefas. Surgem então instituições do tipo do CES, que
se propõe a realiza-las. Essa necessidade de iniciativas, que
suprem a ausência de órgãos específicos, no caso a Universidade, é outro reflexo da vida brasileira, e ocorre também na vida
política, no sentido partidário. Os partidos tornam-se incapazes
de conduzir a luta política, ela é então conduzida por organizações não partidárias, como as estudantis, sindicais, as Forças
Armadas, a Igreja, que hoje são muito mais importantes, na vida
política, que os próprios partidos. O CES tende a desempenhar,
na vida cultural, uma tarefa muito importante, especialmente
pela sua ampla liberdade de investigação, pelo fato de que
não depende de organizações hierárquicas, não tendo nenhum
compromisso com o passado, para justamente poder se vincular às grandes lutas que o povo brasileiro está travando”. (Idem).
Assim, o tema da revista Estudos Sociais e seu Centro de Estudos Sociais – como demonstrado, ainda pouco investigado, tendo
em vista as informações encontradas – nos ajuda a ilustrar a posição
e a participação do autor neste novo cenário político e cultural aberto pela reorientação do PCB diante das lutas do período; ainda, a
percepção que Sodré imprimiu no trecho acima aponta para certas
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Marxismo.
ambiguidades do autor em relação à vida partidária na política brasileira, mas também revela o campo de preocupações que esteve no
fundamento de sua experiência intelectual do período: a chamada do
artigo refere-se à revisão da formação histórica nacional e o trecho de
sua autoria traz, entre outras, a questão do problema da Universidade
e seus limites – ambos temas que ressurgiram na análise concreta
proposta e realizada por nossa pesquisa.
Outro dado relevante: se o ano de 1958 parece ter significado na
trajetória e obra de Sodré o tempo de uma espécie de reinauguração
de seu trabalho intelectual, o ano de 1962 parece representar uma
intensificação deste processo. Como destacou Regina Hippolito, no
final do ano de 1961, após conturbada negociação, o historiador conseguiu definitivamente efetivar sua transferência para a reserva, sendo
reformado no posto de General de Brigada (HIPPOLITO, 2011, p. 207).
A partir de 1962 sua dedicação ao trabalho intelectual e militante é
exclusiva; ilustra estas coordenadas o fato de que já no ano de 1963
somou-se ao grupo de membros-fundadores do Comando de Trabalhadores Intelectuais (CTI) (CZAJKA, 2011, p. 63).
Considerando estes apontamentos biográficos e o levantamento destas possíveis questões procedemos à segunda etapa deste artigo, compreendida dentro deste panorama: a apresentação do modo
como preparamos o estudo de caso da realização e publicação da
Coleção História Nova, produzida entre os anos de 1963 e 1964 sob
direção de Sodré, no âmbito das atividades do ISEB.
COORDENADAS INTELECTUAIS
DA REALIZAÇÃO DA COLEÇÃO HISTÓRIA NOVA
“Julgam, assim, que esta é a História de que a sociedade brasileira necessita, hoje, como um dos elementos indispensáveis
ao seu avanço. Esperam a crítica de todos os que se interessem
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Marxismo.
pela História, valorizam tal crítica, acatam-na, não importando a
discordância de opinião. Se todos os homens pensassem igual,
não haveria necessidade de ciência, nem de arte, nem de debate, nem de liberdade, e as criaturas seriam como os pregos,
feitas em série, aos milhões, ou conservadas iguais sob pressão, como os pregos ainda, sob a percussão do martelo. De tais
críticas, em resultado final, surgirá a História Nova do Brasil, em
suas verdadeiras dimensões.” (SANTOS, et al., 1993, p. 119).
Concebida no calor dos anos das Reformas de Base, em pleno
governo de João Goulart, a Coleção História Nova (CHN) foi elaborada
através de uma intersecção complexa entre as atividades realizadas
por diversos intelectuais e instituições que permeavam o cenário político cultural de esquerda do pré-golpe. Enquanto projeto didático-editorial, foi produto de um esforço conjunto de integrantes quase simultâneos do ISEB, da FNFi, do PCB e do MEC. Sendo de Sodré o papel
de diretor deste esforço, os membros que integraram o grupo foram:
Joel Rufino dos Santos, Pedro Alcântara Figueira, Maurício Martins de
Mello, Pedro Celso Uchôa Cavalcanti Neto e Rubem César Fernandes;
representando a ponte entre estes e o MEC, Roberto Pontual, então
diretor da Campanha de Assistência ao Estudante (CASES).
Denominada 30 anos depois por um de seus coautores como
a “reforma de base no campo do ensino da História” (SANTOS,
et al. 1993, p. 16), a CHN teve como objetivo declarado a “tentativa
já impostergável de reformular, na essência e nos métodos, o estudo
e o ensino de nossa história” (Ibidem, p. 115). Organizada através
de monografias redigidas coletivamente, a coleção teve três edições: a primeira, publicada em 1964, pelo convênio ISEB-CASES,
ambos vinculados ao MEC; a segunda, publicada em 1965, pela
Editora Brasiliense, do marxista paulista Caio Prado Júnior, através
de intervenção de Sodré; e a terceira, publicada em 1993, reedição
idealizada pelo editor Cláudio Giordano em virtude do seu trigésimo
aniversário de lançamento, trazendo importantes depoimentos inéditos de seus autores. Cada edição apresentou projetos editoriais
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Marxismo.
distintos e, inclusive, enquanto a primeira edição foi publicada sob
o título Coleção História Nova, as duas últimas trouxeram o título
História Nova do Brasil (CARDOSO, 2016, p. 133-142).
Da primeira edição, somente cinco volumes foram publicados
(volumes 1, 3, 4, 6 e 7) e três estavam sendo redigidos quando a instalação da ditadura civil-militar no 1º de abril de 1964 suspendeu e
depois extinguiu o ISEB, prendeu seus autores – inclusive o general
reformado Sodré –, proibiu sua venda e circulação e em seguida instaurou inquéritos policial-militares, os IPMs, para investigar as ações
subversivas representadas pelas atividades do ISEB e da CHN (CZAJKA, 2012). Suspensa a redação do projeto, apesar da tentativa de
Sodré de publicá-lo através da editora de Caio Prado Júnior em 1965
(LOURENÇO, 2008, p. 396), nunca teve publicado integralmente nenhum de seus planos editoriais e residiu mais na memória de seus
autores do que nas prateleiras das livrarias e das bibliotecas.
Desde já, nosso trabalho busca propor uma angulação diferente
das questões que se abrem a partir do estudo da CHN e já levantadas
e desenvolvidas por outros pesquisadores (CARDOSO, 2013, 2016,
2019; PINTO 2011a; MENDONÇA, 1990; GUIMARÃES e LEONZO,
2003; LOURENÇO, 2008; LIMA, 2017). Entre estes trabalhos, identificamos uma ênfase contínua na dimensão educacional e pedagógica
da Coleção, tendo a dimensão intelectual e cultural mais ampla de
sua realização não recebido um olhar mais detido. Um trabalho que já
propôs uma leitura semelhante foi o de Rodrigo Czajka, localizando a
escrita do projeto no plano da organização das esquerdas culturais no
final da década de 1950 e início da década de 1960, o autor investigou
as relações intelectuais que condicionaram a formação do grupo, as
relações institucionais evidenciadas pelos depoimentos dos autores
no “IPM da História Nova” e o estatuto da aproximação entre o projeto
e a esfera de influência do PCB entre os intelectuais no período (CZAJKA, 2012). O passo que pretendemos dar neste trabalho parte destas
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Marxismo.
considerações e busca avançar em uma das possíveis entradas que
acreditamos profícua para o estudo da CHN: abordar as relações intelectuais que marcaram sua elaboração e realização localizando-as no
cenário político-cultural do pré-golpe e, neste âmbito, observando-as
em sua relação com o que Marcelo Ridenti conceituou, em sua interpretação sobre as relações entre artistas e intelectuais e a produção
cultural do período, como a estrutura de sentimento romântico revolucionária denominada brasilidade revolucionária (RIDENTI, 2010; 2014).
Neste percurso, procuramos contemplar disposições teórico-metodológicas sobre a Sociologia dos Intelectuais a partir das contribuições da Sociologia da Cultura de Raymond Williams e nossa intenção
com o recurso ao termo “relações intelectuais” neste trabalho aponta
para o estudo de uma dimensão das práticas dos produtores culturais,
dimensão esta que refere-se: às relações entre os produtores em si; à
participação destes em formações e instituições; às formas de interação
entre estes grupos e instituições; às aproximações e distanciamentos
entre si, que revelam intenções e interesses permeados de contradições, ambiguidades e conflitos; entre outros elementos e questões que
podem ser identificados com este tipo de abordagem que poderia ser
denominada como “externalista” (PONTES, 1997, p. 4).
Com este tipo de abordagem buscamos iluminar a dimensão intelectual da experiência da CHN no limite das relações que viabilizaram
sua concretização, tangenciando elementos que nos ajudam a compreender a localização, o posicionamento e o destino de intelectuais e
grupos de intelectuais que marcaram o cenário dos anos que antecederam o golpe de 1964, em especial desta intelectualidade que orbitava
referências importantes das lutas do período como o ISEB e o PCB.
Compreendemos que a necessidade de pensar a CHN advém
da constatação de que seu significado histórico e cultural ultrapassava
os limites de uma experiência didática ou educacional inovadora, tratando-se de uma intervenção intelectual que precisa ser compreendida
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Marxismo.
tanto como um episódio do cenário cultural radicalizado pelo clima das
reformas durante o governo de João Goulart quanto como um episódio
da trágica derrota política das frentes progressistas e da vaga democrática instalada pela Constituição de 1946 diante do golpe de 1º de
abril: a coleção e seus autores não só foram alvos diretos da violência,
da repressão e do “terrorismo cultural” institucionalizado pelo golpe,
mas foi elemento importante, junto do ISEB, da montagem golpista nos
dias que antecederam o avanço das forças do General Olímpio Mourão Filho de Juiz de Fora para a cidade do Rio de Janeiro. Ambos, ISEB
e CHN foram alvos privilegiados da ofensiva reacionária da imprensa
contra o governo de Jango, como documentado em detalhes, manchete à manchete, por SODRÉ ainda no ano de 1965 no artigo “História
da História Nova” publicado na quarta edição da Revista Civilização
Brasileira (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, n. 4, 1965, p. 71).3
É neste quadro de preocupações que surge nosso recurso ao
conceito de brasilidade revolucionária forjado por Marcelo Ridenti. Tendo
sido definido na obra Brasilidade revolucionária: um século de cultura e
política, publicada no ano de 2010, o conceito acompanha o fio condutor
das interpretações anteriores do autor sobre a produção cultural das décadas de 50 e 60, precisamente através do conceito de romantismo revolucionário, derivado da obra de Michael LÖWY e Robert SAYRE (2015).
Nesta leitura, o autor observa que a formação de uma brasilidade, de um imaginário da nacionalidade própria do Brasil (RIDENTI,
2010, p. 9), pode ser encontrada em elementos do século XIX, mas se
desenvolveu no pensamento social brasileiro a partir dos anos 1930
“de formas distintas e variadas à direita, à esquerda, conservadoras,
progressistas, ideológicas ou utópicas” (Idem). Toma em seu trabalho
a experiência da vertente identificada com ideias, partidos e movimentos de esquerda (Ibidem, p. 10), portanto revolucionária, na medida
3 O texto publicado em 1965 compôs uma coletânea de textos reunidos sob título homônimo e publicados em 1986 pela Editora Vozes. Ver: SODRÉ, Nelson Werneck. História da
História Nova. Petrópolis: Vozes, 1986.
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Marxismo.
em que trata-se de uma vertente que aposta na possibilidade de uma
“revolução brasileira, nacional-democrática ou socialista” (Idem):
Essa brasilidade revolucionária, como criação coletiva, viria a
definir-se com mais clareza a partir dos final dos anos 1950, ganhando esplendor na década seguinte, seguido de seu declínio.
Ela envolveria o compartilhamento de ideias e sentimentos de
que estava em andamento uma revolução, em cujo devir artistas
e intelectuais teriam um papel expressivo, pela necessidade de
conhecer o Brasil e de aproximar-se de seu povo (Idem).
Inserindo-a num processo de longa duração, o autor compreende-a como resultado de uma construção coletiva realizada por
uma diversidade de agentes sociais ao longo do processo de modernização da sociedade brasileira (Idem). Esta construção, entretanto,
é vista a partir do conceito williamsiano de estrutura de sentimento,
ou seja, só pode ser visualizada a posteriori, identificada e examinada
historicamente através de seu estudo como uma “articulação de uma
resposta a mudanças determinadas na organização social” (CEVASCO, 2001, p. 153). De acordo com RIDENTI:
O caráter de experiência viva que o conceito de estrutura de
sentimento tenta apreender faz com que essa estrutura nem
sempre seja perceptível para os artistas no momento em que
a constituem. Torna-se clara, no entanto, com a passagem do
tempo que a consolida – e também ultrapassa, transforma e
supera (2010, p. 86).
A mobilização deste conceito por Ridenti busca compreender a
formação de um imaginário crítico nos meios culturais da década de
1960, assim como seus desdobramentos ao longo das décadas seguintes (Ibidem, p. 85). A riqueza desta hipótese cultural reside na capacidade de identificar e problematizar o compartilhamento de ideias e
sentimentos por artistas e intelectuais como expressado em suas intervenções, na relação entre essa “consciência prática de um tipo de presente” (WILLIAMS, 1979, p. 134) com os fatores mais amplos de nossa
organização social e na possibilidade de revelar e tensionar analiticamente as relações entre produtores culturais dentro de um marco social.
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Marxismo.
Assim, se os termos brasilidade e revolução se conjugam, é para
dar sentido ao engajamento experimentado por estes produtores dentro do que acreditavam assinalar-se como a anunciação de uma “revolução brasileira” (RIDENTI, 2010, p. 87). Recuperar o passado e romper
com o subdesenvolvimento, entretanto, não significaria a construção de
utopias passadistas, mas sim progressistas: “(...) implicava o paradoxo
de buscar no passado (nas raízes populares nacionais) as bases para
construir o futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao final do processo, poderia romper as fronteiras do capitalismo” (Ibidem,
p. 88-89). Assim, esta estrutura de sentimento da brasilidade romântico
revolucionária procura dar conta, metodologicamente, do desafio interpretativo colocado aos pesquisadores pelas experiências de construção de uma identidade nacional política e cultural nas décadas de 1950
e 1960; ainda, tal recurso teórico-metodológico, ao nosso ver, também
reflete a urgência, sentida por uma nova geração de pesquisadores brasileiros, de se criar interpretações alternativas às leituras críticas realizadas sobre o período nas décadas de 1970 e 1980, já referidas acima.4
Acompanhando esta argumentação, o autor demonstra que,
além da identificação daqueles elementos comuns compartilhados no
âmbito da produção cultural, o conceito de estrutura de sentimento
nos auxilia a pensar as relações sociais que a realizam. No caso, se
esquivando das leituras que enfatizam linearmente as relações entre
intelectuais e Estado, o autor detecta que os produtores culturais do
pré-golpe tinham relações ambíguas com a ordem estabelecida, principalmente com o Governo de João Goulart (Ibidem, p. 89). Esta operação compreende não só a necessidade de se investigar as manifestações artísticas e intelectuais do período para além da esfera estatal
ou da influência das orientações do PCB ou do ISEB, mas também
de refletirmos sobre estas ambiguidades, estas relações complexas
e incertas que se estabelecem no campo da produção cultural, especialmente mais ricas do que leituras que circunscrevam-nas à mero
epifenômeno de relações estruturais pressupostas.
4 Acreditamos que parte das intenções deste esforço interpretativo estão inscritas e sintetizadas no artigo Cultura e política brasileira: enterrar os anos 60? (RIDENTI, 2003, p. 197-212).
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Marxismo.
Logo, pode-se perceber que na construção do conceito de
brasilidade revolucionária cooperam recursos teóricos distintos, todos
apontando para uma leitura que Ridenti realizou instaurando uma nova
via de compreensão das experiências político-culturais das décadas
de 1950 e 1960. Se nesta proposta o autor foi capaz de constituir um
importante e abrangente panorama destas experiências, a análise dos
quadros particulares a partir destas referências pode nos permitir compreender, num típico exercício sociológico, o particular dentro do geral,
os grupos e instituições culturais em suas relações com a organização social, identificando as práticas culturais dentro desta experiência vivida, cuja análise é proporcionada pela abordagem williamsiana.
É observando este roteiro que, em nosso trabalho integral, procuramos analisar a realização da Coleção História Nova e o que esta pode
revelar através da abordagem das relações intelectuais que viabilizaram-na, tanto das relações e dos modos de produção cultural que colaboraram para a construção desta brasilidade revolucionária quanto
dos sentidos, das marcas de ritmo e intenção que se inscreveram na
atuação e na formação heterogênea da esquerdas no pré-golpe.
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Itamá Winicius do Nascimento Silva
Os percursos
do marxismo autóctone:
o esforço teórico pioneiro
de Octávio Brandão
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.2
Marxismo.
INTRODUÇÃO
Diante do objetivo deste evento em debater o pensamento social brasileiro, acredito que seja de extrema relevância teórica o resgate da vida e obra de Octávio Brandão. Alagoano de Viçosa, Brandão
foi um dos primeiros militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB),
então Seção Brasileira da Internacional Comunista (SBIC); e teve enorme contribuição política e teórica para o partido. Inserido no início do
século XX, foi o pioneiro na utilização do marxismo como ferramenta
teórica de auxílio ao entendimento da sociedade brasileira. Apesar
dessa alcunha ser creditada a Caio Prado Júnior, responsável pela publicação de Evolução Política do Brasil (1994a) em 1933, foi Brandão
que, em 1924, escreveu a obra Agrarismo e Industrialismo, utilizando conceitos do que ele chamou (também pioneiramente no país) no
subtítulo da obra de “marxismo-leninismo”. Pensado como um campo
de disputas, o pensamento social brasileiro desenvolveu uma espécie
de cânone em que Brandão (entre outros) não está incluído. Seu esforço pioneiro foi esquecido ou descredibilizado por suas limitações
teóricas na utilização do marxismo. Admitindo críticas que demonstram as limitações de Brandão como, por exemplo, o uso mecânico
da chamada tríade hegeliana (tese, antítese e síntese), acredito que
seu pioneirismo conseguiu galgar importantes avanços dentro do
contexto em questão. E mais, conseguiu iniciar debates que teriam
frutíferas discussões posteriormente. Sendo assim, viso mostrar que
suas reflexões em Agrarismo e Industrialismo servem para inseri-lo no
que costumamos nomear de pensamento social brasileiro. Se tomarmos como recorte as décadas de 1910 e 1920, Brandão foi o único
a produzir teoricamente sob influência direta do marxismo-leninismo.
Diante dessas questões, defendo Brandão como um dos clássicos do pensamento social brasileiro com base em três pontos centrais: a) sua teoria da revolução, construída com base na observação
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40
Marxismo.
das revoltas tenentistas e que colocou a pequena-burguesia como
importante aliada do proletariado na revolução democrático-burguesa; b) sua análise dual da situação brasileira em que forças agraristas
e industrialistas se encontravam em choque, sendo este conflito um
desdobramento das disputas inter-imperialistas, representadas por
ingleses e norte-americanos; c) sua busca por um marxismo autóctone, tendo em vista que sua reflexão na obra citada desenvolveu uma
disputa com a interpretação postulada pela Internacional Comunista
(IC). Logo, estudar e resgatar Brandão passa pelo debate dos caminhos a serem seguidos pela revolução brasileira (tema debatido
posteriormente por autores diversos), da presença ou não do feudalismo ou semifeudalismo no Brasil (ideia que repercutiu em toda
intelectualidade pecebista, criando produções antagônicas como as
observadas em Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré) e, por
último, das disputas enfrentadas por perspectivas teóricas que visam
uma interpretação autônoma da realidade social. Desses três pontos centrais levantados, o último merece uma atenção. Isso porque
Brandão não apenas surge pioneiramente como intérprete do Brasil,
que se utiliza do marxismo, como busca a partir deste uma análise
autóctone e/ou nacional do país em que está inserido. E, assim como
teóricos da envergadura de José Carlos Mariátegui, ele paga um alto
preço por defender uma visão autônoma da tutelada pela IC. Neste
ponto, vale lembrar o desleixo que inicialmente a IC teve com relação
aos países latino-americanos. Sobre esse desleixo, queixou-se Astrojildo Pereira, outro grande expoente do PCB nos anos 1920:
O Brasil (como também toda a América do Sul) merece da IC
atenção mais séria do que até agora foi prestada, e nosso Partido, formado e mantido através das maiores dificuldades, tem o
direito de esperar dos órgãos dirigentes da IC uma assistência
política mais assídua do que a que tem sido prestada até o momento (CARONE, 1979, p. 512-3).
A produção teórica autônoma de Brandão nos anos 1920 é resultado desse desleixo, pois permitiu a intelectualidade do PCB certa
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41
Marxismo.
liberdade para produzir. Entretanto, o VI Congresso da IC em 1928, foi
decisivo para o futuro de Brandão no partido. Isso porque, influenciado
pelas ideias de “classe contra classe”, a IC defendeu neste Congresso uma posição obreirista que teriam duas consequências: a) o afastamento de intelectuais do partido, pois o objetivo era que a organização
fosse ocupada majoritariamente por operários; b) a completa oposição
a alianças de classes com a pequena-burguesia, então estimada por
Brandão em Agrarismo e Industrialismo, livro que influenciou fortemente
o PCB em seu II Congresso de maio de 1925. O rechaço a alianças com
a pequena-burguesia, foi central no afastamento de Brandão do partido.
Isso porque, segundo as teses da IC, a revolução democrático-burguesa
deixava de ser uma tarefa da pequena-burguesia/proletariado e passava
a ser do proletariado/campesinato, seguindo assim os moldes russos.
Como podemos perceber, apesar de ter influências da IC no
tocante a utilização do feudalismo como traço característico do país
(visto como um país semicolonial), Brandão divergia com relação ao
caminho a ser seguido pela revolução democrático-burguesa. Isso
porque sua teoria da revolução não era baseada em reflexões de fora,
pelo contrário, se construíram como produtos de suas observações
empíricas sobre a realidade brasileira. Afinal, foi a pequena-burguesia,
organizada em torno do movimento tenentista, a classe social protagonista na desestabilização da Primeira República (1889-1930). Foi
ao enxergar essa capacidade crítica e mobilizadora desses setores
pequeno-burgueses que Brandão construiu sua teoria da revolução,
então mais condizente com as especificidades nacionais que a advogada pela IC. Em suma, podemos perceber a importância de Brandão
para o desenvolvimento do pensamento social brasileiro e, principalmente, de um pensamento autônomo que se refletiu no que chamo de
marxismo autóctone. Mesmo diante de suas limitações, comuns para
aqueles que empreendem pioneiramente um debate, Brandão conseguiu se mostrar como um autor a ser estudado e analisado como um
clássico do pensamento social brasileiro. Um clássico pioneiro que,
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Marxismo.
mesmo após exageradas autocríticas, teve o esquecimento como consequência de sua perspectiva autônoma.
O HOMEM E O MILITANTE: A TRAJETÓRIA
DE ALAGOAS AO RIO DE JANEIRO
Antes de entrar nas questões puramente teóricas, vou rapidamente passar pela trajetória do homem e militante Octávio Brandão.
Após perder seus pais muito jovem, Brandão foi educado pela família
materna e após concluir o ginásio no Colégio Marista (instituição de
tradição religiosa) rumou para o Recife, onde estudou Farmácia por
três anos. Ao regressar da capital pernambucana, Brandão abriu uma
farmácia em Maceió e começou a manter relações com o movimento
anarquista alagoano. Neste período, escreve seu primeiro livro, chamado Canais e Lagoas. Esta obra, segundo o próprio autor, buscou
reunir ciência, prática e poesia. Apesar de não ser uma produção marxista, Canais e Lagoas tem a capacidade de mostrar seu interesse pelas questões nacionais, nesta fase, ainda equacionadas em termos dos
conceitos de povo e nação (PINHEIRO, 2017, p. 10). Seu posicionamento crítico, o levou inicialmente para o anarquismo. Na capital alagoana, Brandão contribuiu com o jornal anarquista A Semana Social, onde
escreveu o texto “Abaixo a Guerra Imperialista” em outubro de 1917,
sendo uma resposta a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial.
O posicionamento crítico com relação ao conflito mundial, passou a
ser uma ameaça para Brandão e Bernardo Canellas, o editor do jornal.
Acusados de crime de lesa pátria, os dois tiveram que enfrentar o risco
de linchamento de uma população favorável a participação do país na
guerra. Linchamento este que só não ocorreu de fato, graças a uma
moradora do prédio vizinho que facilitou a fuga dos dois anarquistas.
sumário
43
Marxismo.
Após esse perigoso inconveniente, só restou aos dois fugir de
Maceió. Canellas embarcou para Recife e Brandão retornou para sua
cidade natal, Viçosa. Foi neste retorno a Viçosa que Brandão passou a
obter contato com anarquistas de outras regiões do país, em particular
do eixo Sul-Sudeste. Um desses novos contatos foi o militante carioca
Astrojildo Pereira, com quem manteve uma parceria política e intelectual
por cerca de trinta anos. Foi através de Astrojildo que Brandão começou a ler autores anarquistas clássicos como Mikhail Bakunin e Piotr
Kropotkin. Com o sucesso da Revolução Russa de 1917, Brandão se
entusiasma com o feito e funda em 1919 o Grupamento Comunista
Libertário de Alagoas. Nos primeiros anos do processo revolucionário
russo, era muito comum encontrar no Brasil anarquistas bolchevistas.
A separação entre anarquistas e comunistas só vai acontecer no decorrer do desenvolvimento da Revolução Russa, em particular, com a chegada das informações dos conflitos entre anarquistas e bolchevistas.
Aproveitando o crescimento do movimento sindical de orientação anarquista no país, Brandão organiza o seguinte movimento em Alagoas:
Articulando trabalhadores rurais, pescadores e o operariado
nascente, Brandão liderou o maior movimento grevista visto até
então nas Alagoas. Os trabalhadores enfrentavam então jornadas de 14 a 18 horas de trabalho e viviam com baixos salários,
que, diante da elevação da carestia resultante das desvalorizações cambiais, não cobriam sequer suas necessidades básicas. As demandas do movimento grevista eram a jornada de
8 horas, a elevação dos salários e a liberdade de organização
sindical, já que então os trabalhadores encontravam-se presos
a lideranças sindicais comprometidas com os interesses patronais (PINHEIRO, 2017, p. 12).
Por conta dessas articulações, Brandão é preso por dois meses, conseguindo sair da cadeia graças a influência de seus familiares com a burguesia local. Entretanto, foi jurado de morte pelos
poderosos locais que não poderiam admitir uma liderança política
que mobilizasse os trabalhadores rurais e urbanos em Alagoas. Buscando preservar sua vida, Brandão foge para o Rio de Janeiro, onde
sumário
44
Marxismo.
se transforma em comunista e militante do PCB, organização fundada em 1922. Assim como o apresentou aos clássicos anarquistas,
Astrojildo foi responsável pela apresentação de Marx a Brandão e da
sua posterior filiação ao PCB. Ainda em 1922 Brandão aceitou ser militante do partido e por lá ficou até o fim de sua vida, mesmo que nos
últimos anos estivesse totalmente afastado das atividades e cargos
internos. No partido, Brandão se destacou como teórico e militante.
Como teórico, foi responsável pela obra que marcou a primeira
geração de comunistas no Brasil. Me refiro a já citada obra Agrarismo
e Industrialismo que exerceu forte influência sobre o II Congresso do
PCB, realizado em 1925. No mesmo ano, Brandão criou e editou o jornal
A Classe Operária, o primeiro jornal de massas do PCB. Eleitoralmente,
se elegeu intendente (vereador na atualidade) para o Conselho de Intendência do então Distrito Federal em 1928, mostrando o sucesso do
Bloco Operário e Camponês (BOC). Bloco este desarticulado, graças as
intervenções da IC no PCB. Após seu exílio durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), ele se elegeu vereador pelo Distrito Federal em
1947, tendo seu mandato cassado (assim como de outros pecebistas)
pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no ano seguinte. Por conta da crise
no movimento comunista, após o XX Congresso do Partido Comunista
da União Soviética (PCUS), Brandão foi se afastando da militância partidária. Na verdade, esse afastamento já vinha se desenhando desde
1928, ano em que a IC contestou oficialmente as teses defendidas por
Brandão sobre a realidade brasileira. Após sua indisposição com a IC,
Brandão foi isolado do partido. Ademais, a desvalorização da primeira
geração de comunistas, tendo Brandão e Astrojildo como principais figuras, foi o principal motivo do seu esquecimento até entre as fileiras
marxistas. Entendendo sua importância como militante e, principalmente, como teórico, este trabalho visa resgatar seu pioneirismo na utilização
do marxismo para o entendimento do Brasil.
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Marxismo.
O MARXISMO AUTÓCTONE DE BRANDÃO:
TEORIA DA REVOLUÇÃO E REALIDADE DUAL
A teoria da revolução e a realidade dual proposta por Brandão
em Agrarismo e Industrialismo, evidencia seu pioneirismo e importância. Além do mais, mostra que Brandão foi o grande expoente
intelectual do PCB nos anos 1920. Essas duas ideias trazidas por
Brandão se comunicam e serão tratadas conjuntamente. A realidade
dual, defendida pelo autor, acredita na existência de duas forças sociais presentes na sociedade brasileira: de um lado, as forças agraristas, então aliadas do imperialismo britânico; e do outro, as forças
industrialistas, aliadas do imperialismo norte-americano. Como podemos perceber, a realidade dual brasileira se vincula a uma disputa
interimperialista, presente no seio dessa sociedade.
Sobre a repercussão dessa dualidade, acumulada a uma disputa entre potências imperialistas, no cenário político da Primeira
República, Brandão exemplifica: Nilo e Rui foram agentes da política
imperialista inglesa, como Bernardes e Alfredo Ellis o são. Já Wenceslau e Epitácio foram, no governo, agentes da política imperialista norte-americana (BRANDÃO, 2006, p. 96). Eis então um dos méritos de
Brandão, pois para ele as causas das revoltas tenentistas de 1922 e
1924, estariam no conflito entre diversas forças sociais. Entre essas
forças, estariam: o imperialismo britânico versus o imperialismo norte-americano, os grandes fazendeiros de café versus os industriais e
a pequena-burguesia etc. Ou seja, ele trata a conjuntura política dos
anos 1920 como resultado de uma variedade de conflitos, entre diversas classes sociais em luta. Diante desse amaranhado de conflitos e
disputas, temos o seguinte cenário:
A classe dominante era a burguesia feudal, principal beneficiária
da situação agrária. Havia outra burguesia, a industrial, que não
apresentava forças suficientes para destronar a burguesia feudal.
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46
Marxismo.
Entre o operariado e a burguesia, havia a pequena-burguesia.
Além disso, a classe social mais numerosa era constituída pelos
camponeses ou trabalhadores rurais (OLIVEIRA, 2017, p. 29).
Essa percepção da sociedade brasileira antagonizada por duas
forças sociais, foi uma influência recebida pelas teses da IC. Em síntese, o que estava em conflito eram forças presas aos resquícios feudais
de um lado, contra forças capitalistas e modernizantes do outro. Em
meio a esta disputa, seria tarefa do proletariado apoiar as forças industrialistas, pois o inimigo imediato se mostrava ser os fazendeiros de
café com sua concepção feudal de mundo. Entretanto, após vencido
os agraristas, o desenvolvimento capitalista acarretado pela vitória dos
industrialistas deveria levar, consequentemente, à vitória do proletariado
e do socialismo. É neste ponto que a visão da sociedade dual brasileira,
se vincula a teoria da revolução. Afinal, qual o caminho a ser tomado
para que a revolução socialista se efetue, diante desta disputa dual
entre agraristas e industrialistas? De início, como já pontuei, o papel da
classe trabalhadora em meio ao conflito entre agraristas e industrialistas, seria a formação de uma frente ampla, um bloco de classes que,
hegemonizado pelos interesses industrialistas, romperia com a ordem
social imposta pelos setores agrários (PINHEIRO, 2017, p. 22). É justamente após o rompimento dessa ordem social agrária que Brandão
passa a se diferenciar das teses da IC, mostrando que suas reflexões se
baseavam em observações empíricas da sociedade brasileira.
Isso ocorre porque, enquanto a IC propunha uma revolução democrático-burguesa etapista aos moldes russos, Brandão propunha
uma espécie de revolução permanente que levaria da desintegração
da ordem agrária a construção ininterrupta do socialismo. Sua perspectiva não etapista, pode ser encontrada no seguinte trecho:
Lutemos por impelir a fundo a revolta pequeno-burguesa fazendo pressão sobre ela, transformando-a em revolução permanente no sentido marxista-leninista, prolongando-a o mais possível, a fim de agitar as camadas mais profundas das multidões
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47
Marxismo.
proletárias e levar os revoltosos às concessões mais amplas,
criando um abismo entre eles e o passado feudal. Empurremos
a revolução da burguesia industrial – o 1789 brasileiro, o nosso 12 de março de 1917 – aos seus últimos limites, a fim de,
transposta a etapa da revolução burguesa, abrir-se a porta da
revolução proletária comunista. (Brandão, 2006, p. 133).
Brandão enxerga a necessidade de uma revolução permanente pois, apesar de considerar os agraristas uma força social mais
atrasada, ele não nutria esperanças com relação aos industrialistas.
Ao analisar a conjuntura política após o fracasso da revolta tenentista
em 1924, Brandão afirma: Não nos iludamos, porém, com a burguesia
industrial do Brasil. Após a retirada dos revoltosos, em vez de calar-se,
ela declarou apoiar a legalidade. O mesmo sucedeu com a burguesia
comercial que até andou a assinar contos de reis nas subscrições
legalistas (BRANDÃO, 2006, p. 146). Ou seja, a revolução proletária
em seu sentido prolongado, tornava-se uma necessidade histórica,
tendo em vista as vacilações dos industrialistas. Mas o autor vai além
e ainda sobre as limitações da burguesia brasileira, diz:
A burguesia que, na reunião da Associação Comercial de
São Paulo, declara apoiar a legalidade feudal, nega sua missão histórica e bem merece os novos impostos exorbitantes,
os pontapés de Bernardes e o desprezo com que este tratou
seus líderes, a começar pelo presidente da mesma Associação
(BRANDÃO, 2006, p. 147).
Ao questionar a “missão histórica” da burguesia brasileira, Brandão inicia já nos anos 1920 um debate sobre a natureza da burguesia
nacional que vai ser desacreditada por autores como Florestan Fernandes (2006), Vânia Bambirra (2019), Ruy Mauro Marini (2013) e Theotônio dos Santos (2018). Em suma, ao mesmo tempo que Brandão inicia
um debate sobre a existência do feudalismo no país, desembocando
nas reflexões teóricas de Prado (1994b) e Sodré (1982) que mencionamos acima, ele também será pioneiro com relação a um outro relevante debate que envolve o pensamento social brasileiro e em particular
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48
Marxismo.
as perspectivas marxistas que se debruçam sobre o entendimento do
Brasil. Esta ideia de revolução permanente, iria entrar em atrito com a
IC que a partir do seu VI Congresso, realizado em 1928, passa a exercer uma influência teórica e política direta sobre os partidos comunistas
mundo afora, incluindo o PCB. Segundo resolução deste Congresso,
fortemente influenciado pelo dogmatismo stalinista, os partidos comunistas teriam a tarefa de conduzir a revolução em todas as etapas, desde as transformações democrático-burguesas até a implementação do
socialismo (HENN, 2012, p. 291). Essa seria a primeira diferença do
marxismo autóctone de Brandão com os receituários da IC.
Além desta diferença no tocante à natureza do processo revolucionário, Brandão se diferenciou da IC em outros pontos. O mais
significativo foi a sua importância dada a pequena-burguesia no processo revolucionário. A atenção dada a pequena-burguesia, tratada
como vacilante, igualmente a burguesia industrial, era resultado da
observação empírica da realidade brasileira. Isso porque foram os
setores pequeno-burgueses que organizaram e lideraram o principal
movimento político de oposição a Primeira República, trata-se do tenentismo. Sobre esse movimento, foi liderado por tenentes que: pela
sua origem social quanto pelas suas condições de vida, estava estreitamente ligados às camadas médias urbanas, sofrendo sua influência e participando do processo geral da radicalização de tais setores
(PRESTES, 2009, p. 32). Apesar do Brasil dos anos 1920 ser predominantemente agrário, o campesinato não liderava naquele momento um movimento político contestatório como a pequena-burguesia
conseguiu realizar, através do tenentismo. Vale lembrar que foi essa
mesma pequena-burguesia que liderou a Revolução de 1930, aquela
responsável pela derrubada da Primeira República. Revolução em
que os comunistas não exerceram nenhuma influência ou participação, graças ao rechaço das teses de Brandão. Esses fatores, certamente, influenciaram Brandão a dar relevância a pequena-burguesia.
sumário
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Marxismo.
Essa valorização do papel da pequena-burguesia na derrubada
das forças agraristas, foi uma perspectiva que evidenciou o quanto
PCB e Brandão (seu principal expoente intelectual) estavam caminhando para uma interpretação autônoma do país, apesar de obterem influências da IC, como a adoção da tese do feudalismo. Sobre a importância dessa valorização, escreve Michel Zaidan:
Não haverá nada mais problemático, na história do PCB, que
atribuir a sua linha tática frente ao “tenentismo” a uma mera
sujeição burocrática às concepções da IC, acerca da participação dos comunistas nos movimentos de libertação nacional.
A esse respeito, pode-se dizer com segurança, e sem nenhuma
conotação pejorativa, que o Partido Comunista Brasileiro sempre foi muito nacional […] será uma injustiça imperdoável não
reconhecer que as suas táticas, em relação aos movimentos de
revolta da pequeno-burguesia, refletem profundamente as características da formação social brasileira (ZAIDAN, 1980, p. 12).
A aliança entre proletariado e pequena-burguesia, custou caro
a Brandão que passou a ser duramente atacado pela IC, a partir de
1928. A tática da “classe contra classe”, prevalecendo alianças somente
com setores operários, fez Brandão e suas ideias tomarem o caminho
do isolamento dentro do partido. Ao acreditar que O fazendeiro de café
só será derrubado pela frente única momentânea do proletariado com a
pequena-burguesia e a grande burguesia industrial (BRANDÃO, 2006,
p. 61), Brandão não só previa alianças com setores não operários como
aparentemente não incluía o campesinato nesta “frente única momentânea”. Esta era a principal crítica da IC às suas teses. Porém, diferente
das críticas recebidas, Brandão não só criticou duramente as limitações
da pequena-burguesia, como também não excluiu por inteiro o campesinato na luta contra os agraristas. Sobre o reconhecimento das limitações
da pequena-burguesia, isso pode ser visto em diversas passagens da
obra Agrarismo e Industrialismo, em que ele coloca esses setores como
responsáveis pelas derrotas em 1922 e 1924. Sobre a pequena-burguesia, Brandão faz questão de delimitar bem suas diferenças com esses
setores, apesar de considerá-los importantes na luta contra o agrarismo:
sumário
50
Marxismo.
Não consintamos a menor influência da política e da ideologia pequeno-burguesas sobre o proletariado. Ataquemos a fraseologia
pequeno-burguesa. Armemos, na hora precisa, os trabalhadores,
subordinando-os politicamente ao seu partido, ao Partido Comunista. Exijamos dos revoltosos pequeno-burgueses, concessões
econômicas e políticas importantes (BRANDÃO, 2006, p. 133).
E ao mesmo tempo em que busca criticar e se diferenciar da
pequena-burguesia, ele também buscou incluir o campesinato neste
amálgama de classes sociais contra os agraristas. A própria construção do Bloco Operário e Camponês (BOC), em 1927, é uma evidência
não só da flexibilidade tática do PCB sob influência teórica de Brandão,
como também da importância dada ao campesinato na luta contra os
representantes do feudalismo no país. Além do BOC, o próprio Brandão reconhece a importância do campesinato ao escrever sobre os
desafios da Coluna Prestes, em março de 1926:
No sul, os revoltosos perderam a batalha. Chegou a vez do Norte:
o capitão Prestes, após a marcha colossal através dos sertões,
mantém viva a chama da revolta. Mas, não se apoiando sobre o
proletariado rural, tombará fatalmente. O pequeno-burguês não
vê classes! O técnico só vê a técnica! (BRANDÃO, 2006, p. 187).
Além de mais uma vez criticar a pequena-burguesia, Brandão
destaca a importância do campesinato como ator político. Sem ele devidamente mobilizado, o que de fato a Coluna Prestes não conseguiu
por completo, o movimento estaria fadado ao fracasso que acabou se
confirmando, apesar dos rebeldes terem saído do Brasil sem acumular
nenhuma derrota para as forças governistas. Em suma,
Deste modo, fica claro o esquema empregado por Brandão em
sua interpretação da realidade brasileira. Partindo do imperialismo, o autor reconstitui suas ramificações no interior da formação
social brasileira, chegando a dualidade básica da economia brasileira, a oposição entre agrarismo e industrialismo, como indica
o título da obra. A partir daí o autor avalia outros atores políticos,
então relevantes, como a pequena-burguesia urbana radicalizada, o proletariado e o campesinato (PINHEIRO, 2017, p. 22).
sumário
51
Marxismo.
Essa estratégia democrática pequeno-burguesa (PINHEIRO,
2017), prelúdio de uma construção socialista, foi a grande inovação de
Brandão com relação as teses engessadas da IC. Ela representou o
que Carlos Gouveia de Omena (2018) cunhou de revolução democrática pequeno-burguesa, fruto de um programa nacional-popular que
fez o PCB da época aliar êxitos eleitorais (o partido conseguiu eleger dois vereadores no Rio de Janeiro, através do BOC) com políticos
(massificando a organização que crescia e enfraquecia as correntes
anarquistas no movimento sindical). Resultado direto de um contexto
em que a IC tratava a América Latina com desleixo, a obra Agrarismo e
Industrialismo representou a primeira geração de comunistas brasileiros que trabalharam durante todo o tempo a teoria nacional-popular da
revolução pequeno-burguesa, sendo os pioneiros no Brasil da política
de alianças (OMENA, 2018, p. 41). Geração que, a partir da interferência da IC no partido, foi isolada na época e esquecida por várias
gerações posteriores de comunistas.
CONCLUSÕES GERAIS
Como ficou evidente durante este trabalho, a vida e obra de Octávio Brandão o credenciam como um dos expoentes do pensamento
social brasileiro. Ele conseguiu, pioneiramente, interpretar a sociedade brasileira com base na perspectiva teórica do marxismo-leninismo;
então pouco conhecida pela intelectualidade nacional. Entre os pontos destacados no texto que credenciam Brandão, estão suas ideias
sobre a teoria da revolução e a realidade dual. Unidas, essas duas
perspectivas mostram um autor que, apesar de receber influência da
IC, buscou construir uma interpretação autônoma do país com base na
observação da sociedade brasileira. Ou seja, os manuais foram transformados em auxiliares para o entendimento das nossas contradições
e desafios, não sendo utilizados mecanicamente pelo autor.
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52
Marxismo.
Ao interpretar a sociedade brasileira como palco do embate
entre duas forças sociais (agraristas e industrialistas), que levavam
consigo uma disputa interimperialista, Brandão aliou as teses sobre
o feudalismo nos países semicoloniais da IC a uma interpretação autônoma que a aliava com o debate sobre o imperialismo; existente
em Vladimir Lênin (2012), autor que Brandão recebeu forte influência.
Já ao entender o processo revolucionário no Brasil, fora do etapismo
russo proposto pela IC, Brandão se caracteriza como um autor inovador por propor uma revolução permanente em um país subdesenvolvido. Sua valorização do papel da pequena-burguesa no processo
que levaria a derrubada das forças agraristas, mostrou como suas
reflexões estiveram atreladas a realidade concreta do país, tendo em
vista que foi esta classe a responsável pela oposição mais organizada a Primeira República; então hegemonizada pelas forças de caráter
feudal. A estratégia democrática pequeno-burguesa, caminho inicial
de uma revolução ininterrupta e permanente rumo ao socialismo, se
mostrou a principal ideia do marxismo autóctone de Brandão, expoente intelectual de uma primeira geração de comunistas relegados
ao esquecimento. Por fim, concluo este breve e introdutório trabalho,
com o desejo de que os leitores possam aprofundar seus estudos
sobre Brandão, reconstruindo criticamente a trajetória do primeiro a
utilizar o marxismo como meio de entender o Brasil.
REFERÊNCIAS
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Florianópolis: Insular, 2019. (Coleção Pátria Grande).
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53
Marxismo.
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ensaio popular. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
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XII Congresso Brasileiro de História Econômica e 13ª Conferência Internacional de História de Empresas, 2017.
PRESTES, Anita Leocádia. Uma Epopeia Brasileira: a Coluna Prestes.
São Paulo: Expressão Popular, 2009.
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São Paulo: DIFEL, 1982.
ZAIDAN, Michel. Construindo o PCB: 1922-1924. São Paulo: Lech Livraria
Editora Ciências Humanas, 1980.
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54
3
Marcello Amorim Vieira
Sofia Viegas Duarte
Direito, nação
e capitalismo periférico:
o impacto ideológico
da superestrutura jurídica
no Brasil nas visões de Antonio
Carlos Wolkmer e Gizlene Neder
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.3
Marxismo.
INTRODUÇÃO
Em investigação às concepções que entornaram o princípio do
Direito no Brasil através de sua História, este artigo objetiva analisar
como autores da sociologia do Direito no Brasil articulam a relação
entre o desenvolvimento do conceito de nação e nacional, bem como o
desenvolvimento do capitalismo no Brasil, um país periférico, enquanto
condição determinante para que a positivação normativa e a própria
práxis jurídica, evidenciada através do discurso jurídico, fossem realizadas à luz do interesse de classe burguês.
Selecionou-se, portanto, as obras Pluralismo Jurídico, de Antonio Carlos Wolkmer e Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, de Gizlene Neder, para que fosse possível analisar como estes
autores avaliavam a relação entre a estrutura vigente no Brasil e seu
impacto na superestrutura jurídica. Metodologicamente, então, escolheu-se a análise temática comparativa enquanto instrumento principal na apreciação do conteúdo bibliográfico escolhido, havendo assim a observação das principais similaridades e discordâncias entre
os pensamentos dos autores trabalhados.
Para além da análise e comparação dos materiais bibliográficos escolhidos, optou-se também pela realização de uma investigação acerca do histórico da Sociologia do Direito no Brasil, pois a partir
desta investigação se tornou possível identificar como os clássicos
da Sociologia, em geral, fizeram-se presentes nas obras de Wolkmer
e Neder, bem como apreciar quais autores das escolas brasileiras de
pensamento crítico do Direito contribuíram para com o desenvolvimento dos referidos autores.
Em linhas gerais, ambas as obras trabalham sobre a roupagem
que o discurso e a tradição jurídica recebeu na experiência brasileira, entretanto, há de se pontuar algumas especificidades iniciais no escopo da
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56
Marxismo.
escrita de cada autor. Antonio Carlos Wolkmer, em Pluralismo Jurídico,
dispõe-se a pontuar a crise do Direito Positivo Ocidental e a forma como
este foi assentado no Brasil apresentou um ônus no que tange ao silenciamento e negligência das práticas comunitárias e pluralistas na esfera
jurídica. Em Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, por sua vez,
Gizlene Neder busca na oficialização do modo de produção capitalista
nos anos iniciais da República uma base para estabelecer um estudo da
faceta liberal-individualista encarnada pela Jurisdição brasileira.
Logo, ao se perceber o vértice comum a ambas as obras, estabelece-se esta comparação temática e sociológica entre elas para
que se identifique como estes autores, que vêm de uma tradição crítica da Sociologia, podem concordar e discordar entre si neste campo
de análise. Sendo assim, a leitura e desenvolvimento deste trabalho
irá se voltar a este tipo de apreciação, objetivando assim observar as
diversas inferências da Sociologia Crítica do Direito no Brasil acerca
deste problema comum.
APLICANDO A ANÁLISE TEMÁTICA
COMO MÉTODO DA PESQUISA
Ao instrumentalizar a análise temática enquanto método de
pesquisa para o campo do Direito, busca-se aplicar o método pensado por Virginia Braun e Victoria Clarke (2006), originalmente ilustrado como ferramenta para pesquisa no campo da Psicologia, de
trabalhar os dados qualitativos através da identificação de padrões
entre si e, portanto, temas para estabelecer um balanceamento dos
mesmos em diferentes cenários. No presente trabalho, então, esta
identificação de temas ocorreu de maneira paralela entre os livros
Pluralismo Jurídico, de Antonio Carlos Wolkmer e Discurso Jurídico e
Ordem Burguesa no Brasil, de Gizlene Neder.
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Marxismo.
Os passos de pesquisa utilizados para aplicação da análise temática à leitura das obras se deu à luz da esquematização esboçada por
Luciana Karine de Souza (2019), isto é, num primeiro momento houve
uma familiarização com as fontes trabalhadas, através de uma leitura
prévia dos textos e da busca por conhecimentos acerca do próprio histórico da Sociologia do Direito no Brasil. Após esta fase, passou-se para
as fases de geração de códigos iniciais e busca por temas nestas literaturas, destaca-se que aqui a opção foi por fundir duas fases em uma
para que a pesquisa pudesse se dar de maneira mais dinâmica.
Das mencionadas fases de geração de códigos iniciais e de
busca por temas, selecionou-se nas obras de A. C. Wolkmer (2015)
e G. Neder (1995), enquanto temas mais relevantes para investigar o
impacto ideológico nos processos referentes à construção da superestrutura jurídica no Brasil, a forma como estes autores analisaram a relação entre o capitalismo que se desenvolvia no Brasil e as necessidades
que este legou à burguesia no que tange aos interesses inerentes a
esta classe, bem como a maneira como esta classe lidou com esta
questão, consequentemente projetando marcas na Jurisdição.
Então, após a fase de revisão temática da literatura escolhida,
produziu-se a relatoria dos dados e reflexões encontradas em ambos os
autores acerca da temática problema pretendida por esta pesquisa, estabelecendo-se então as similaridades e distanciamentos sociológicos
vistos em perspectiva comparada em Wolkmer (2015) e Neder (1995).
SOCIOLOGIA DO DIREITO NO BRASIL:
REFERÊNCIAS E SOLIDIFICAÇÃO ACADÊMICA
Enquanto etapa indispensável à fase de familiarização com o
tema pesquisado, buscou-se investigar o histórico da Sociologia do Direito ou Sociologia Jurídica no Brasil, até mesmo para entender como os
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Marxismo.
autores escolhidos puderam ser impactados e, respectivamente, suas
produções apresentarem legados desta trajetória em sua materialidade.
Diversos nomes podem ser mencionados como referências na
construção da Sociologia do Direito no Brasil, que apresentou uma
tendência de buscar referências nos clássicos e adaptá-los à realidade
brasileira, produzindo assim novas pesquisas. Contudo, nesta pesquisa é interessante evidenciar o nome de Roberto Lyra Filho enquanto
um dos precursores no pensamento do Direito sob a lógica dialética.
Isto porque ambos os autores trabalhados, Wolkmer (2015) e Neder
(1995), imprimem em seus trabalhos análises dialéticas do Direito para
se pensar os intercâmbios da experiência capitalista no Brasil para
com o processo de produção do discurso jurídico.
Também se destaca aqui, por se tratar de uma pesquisa pautada comparativamente no trabalho de dois professores universitários
na área, que a Sociologia do Direito para além de ter uma história de
construção, passou também por um processo de assentamento nas
grades curriculares dos cursos de Direito, pois
No Brasil, em sendo a sociologia aplicada ao direito uma demanda antiga, apenas na década de 1990 é que se consegue,
por lutas políticas e representações em órgãos de classe, elevar
o status da área ao de matéria obrigatória nos cursos de direito.
Tal conquista, fruto da constatação de um exagerado dogmatismo nas ciências jurídicas, que, do ponto de vista da formação
acadêmica, acabava por gerar um grande descompasso entre
a lei escrita e a realidade social, nasce com a pretensão de humanizar os cursos de direito, tornando o real mais próximo do
mundo do direito (Junqueira, 1993). (MADEIRA, L. M; ENGELMANN, F. 2013; p. 187 – 188)
Portanto, expõe-se também em Pluralismo Jurídico e Discurso
Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, obras a serem analisadas, o viés
crítico presente em seu conteúdo e a importância deste para o alcance
dos escopos da própria disciplina de Sociologia do Direito enquanto
instrumento de humanizar a práxis jurídica.
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Marxismo.
PLURALISMO JURÍDICO: A ANÁLISE
DE ANTONIO CARLOS WOLKMER
Em Pluralismo Jurídico, Antonio Carlos Wolkmer se propõe a
analisar a crise do Direito positivista legado pelo liberal-individualismo.
O autor busca fazer uma reconstrução das condições históricas e políticas que contribuíram para a ascensão deste ideal enquanto motor
das trajetórias jurídicas na Europa, inicialmente, e posteriormente nos
países para o qual migrou.
A digressão proposta por Wolkmer compreende também a investigação das condições históricas e econômicas que moldaram a Jurisdição liberal-individualista que chegou como referencial aos países que
foram colonizados por Estados europeus. Sendo assim, o autor aponta
a emergência do Capitalismo sob duas óticas, a de Karl Marx e a de Max
Weber (WOLKMER, A. C. 2015). Apesar de introduzir o leitor a ambas,
o autor se apoia mais nas proposições feitas por Marx para realizar sua
pesquisa, contudo não dispensa a relevância das reflexões de Weber.
Ao começar uma reflexão acerca dos impactos da transposição
colonial das superestrutura jurídica europeia para desenvolvimento da
cultura jurídica brasileira, Wolkmer realiza a delimitação no sentido de que
A partir da compreensão de que toda criação jurídica reproduz determinado tipo de relações sociais envolvendo necessidades, produção e distribuição, torna-se natural perceber a
cultura jurídica brasileira como materialização das condições
histórico-políticas e das contradições socioeconômicas, traduzidas, sobretudo, pela hegemonia das oligarquias agroexportadoras ligadas aos interesses externos e adeptas do individualismo liberal, do elitismo colonizador e da legalidade
lógico-formal. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 89)
Notando-se, então, a aplicação de forma prática do referencial
sociológico legado por Marx no cenário prático de análise de desenvolvimento de uma cultura jurídica brasileira.
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Marxismo.
Entretanto, Wolkmer (2015) aponta para dilemas que se assentavam na incongruência que residia na existência de práticas comunitárias eficazes desde os tempos coloniais, sendo estas práticas operadas por quilombolas e indígenas como uma forma eficaz de “Jurisdição
insurgente”. Em contrapartida ao disposto, o autor pontua ainda que
em função dos interesses oficiais do Estado rumarem de encontro à
criminalização daqueles que não ocupavam espaços de poder, bem
como realizar um controle aduaneiro efetivo, toda prática que não coadunasse com este “Direito oficial” seria considerado menos importante
e, por isso, não teria validade na esfera pública. Assim, tem-se um
monismo na cultura jurídica, afinal
O Direito Estatal vem regulamentar, através de suas codificações, os intentos dos proprietários de terras e da burguesia detentora do capital, ocultando, sob a transparência da retórica
liberal e do formalismo das preceituações procedimentais, uma
sociedade de classe virulentamente estratificada. (WOLKMER,
A. C. 2015, p. 93)
Logo, diante desta métrica lógico-positivista aplicada pela institucionalidade, há uma negação identitária à práxis de regulamentação
comunitária que se desenvolveu paralelamente à cultura jurídica oficial,
mas estes grupos, descriminados e afastado propositalmente dos espaços de poder, desenvolveram um sistema que goza de eficácia, assim se
tem uma problemática arraigada no não reconhecimento oficial de que a
chamada cultura jurídica se deu de forma dual (WOLKMER, A. C. 2015).
O Pluralismo Jurídico, enquanto conceito, é para Wolkmer (2015)
uma forma de se estabelecer um reconhecimento a todo um paradigma
cultural e, para além disso, uma proposta de coexistência de práticas,
amplificando assim o leque de culturas jurídicas e trabalhando a evolução das sociabilidades através da inclusão sob esta ótica plural.
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Marxismo.
DISCURSO JURÍDICO E ORDEM BURGUESA
NO BRASIL: A ANÁLISE DE GIZLENE NEDER
A obra Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil consiste
no estudo de Gizlene Neder (1995) acerca da relação entre a instauração do Republicanismo e o assentamento da ordem capitalista no Brasil
com a produção de um discurso jurídico impactado diretamente por estes episódios. Por discurso jurídico, Neder (1995) entende a legislação e
pronunciamentos de Ministros de Estado versando acerca da Jurisdição
e demais conteúdos neste sentido, não se deve obstar também a própria práxis acadêmica na área jurídica à época com o desenvolvimento
do pensamento jurídico nas escolas do Recife e de São Paulo.
À luz de uma base metodológica simpática à dialética, Neder
(1995) demonstra como o discurso jurídico foi ferramenta de ideologização, sendo extremamente fundamental à classe dominante para que
esta pudesse conduzir a formação social e estatal à sua maneira. A autora expõe que o conceito de nação e nacional no Brasil, reforçando-se
o cenário posterior ao ano de 1889, teve as bases de sua construção
na produção do discurso jurídico (NEDER, G. 1995).
Em análise retrospectiva à ossatura estatal brasileira, Neder
(1995) atesta que a presença do Liberalismo no Brasil precede o período Republicano e ainda que houvesse a escravização de seres humanos neste Estado, o fato do Brasil estar ativamente incluído numa
rede comercial ultramarina já expunha esta presença. Acontece que
posteriormente, com a chamada abolição da escravatura e o fim do
período monárquico, a burguesia dominante estava a frente também,
de forma simbólica e massificada, da governança e este fato implicou
na geração da necessidade de que a sociedade percebesse, de fato,
a ruptura para com o período imperial.
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Marxismo.
O início do desenvolvimento de um Capitalismo, de fato, em
terras brasileiras alterou também a abordagem do Liberalismo adotada
até o fim do Império do Brasil. Com um novo cenário conjuntural no que
tange às conquistas de liberdades individuais às pessoas antes escravizadas, em tese, e a própria virada republicana, passou-se a investir
na produção de um discurso jurídico mais tomado pelo Liberalismo
Europeu. Ou seja, diante da conjuntura do final do século XIX, optou-se
por se trabalhar um discurso jurídico no sentido de reforço às liberdades individuais, como se o Estado e os próprios políticos pudessem
realizar através da lei a proteção à população de excessos e invasões
do Estado aos direitos individuais (NEDER, G. 1995).
A consolidação da propaganda estatal burguesa rumava então
no sentido de demonstrar alguma ruptura que a República teve em
relação ao Império (NEDER, G. 1995), a instrumentalização deste uso
do poder de Estado neste sentido pode ser entendido enquanto uma
forma empreendida pela burguesia para se blindar de uma possível
reação negativa da sociedade brasileira à nova ordem vigente. Em
muito se buscou também a realização de mudanças legislativas e procedimentos de reorganização do Estado enquanto método de solidificação da propaganda anteriormente mencionada (NEDER, G. 1995).
Ainda se deve destacar a forma como o emprego das ideias
de neutralidade e imparcialidade relacionadas à Justiça tiveram uma
forte propaganda, no sentido de se camuflar também a ordem autoritária que não caiu junto com o período monárquico na vida estatal
brasileira. Gizlene Neder (1995) desenvolve ainda como a legislação
foi uma atividade para impulsionar o desenvolvimento do mercado
de trabalho, citando que os legisladores da época conseguiram criminalizar o ócio, o trabalho de solidificação do trabalhador enquanto
figura oposta ao delinquente foi uma estratégia de motivar os libertos
da escravidão bem como os trabalhadores em geral a se manterem
competentes em seus postos de trabalho.
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63
Marxismo.
Entretanto, num balanço acerca das forças que levaram à construção do discurso jurídico em fins do século XIX da forma como se deu,
Gizlene Neder (1995) discorda de Florestán Fernandes no que tange
ao motor destas transformações. Isto porque Neder, em linhas gerais,
enxerga a motivação destas reformas enquanto consequências da necessidade de implementação da própria estrutura capitalista no país.
Sendo assim, ainda que existissem práticas e costumes vinculados à
moralidade burguesa, isto é, o chamado ethos burguês, este não teria
sido preponderante ou protagonista neste processo jurídico-político.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente escrito passou pela investigação de nuances da Sociologia do Direito no Brasil, mais especificamente das vertentes da
Sociologia Crítica do Direito, escola de pensamento muito influenciada
pelas lições do método do materialismo histórico-dialético, sendo nítido
nas obras dos autores escolhidos a influência que a análise conjuntural
e a investigação de condições e contradições históricas tiveram no desenvolvimento das pesquisas de Wolkmer e Neder acerca da roupagem
que a superestrutura jurídica ganhou no capitalismo periférico brasileiro.
Através da análise temática analisou-se de forma qualitativa os
textos Pluralismo Jurídico, de Antonio Carlos Wolkmer e Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, de Gizlene Neder. Este método instruiu a forma como se deu a observação de categorias como discurso
jurídico, capitalismo, Estado e espaços de poder, de maneira comum
em ambos os textos para que se fizesse os apontamentos necessários e fosse buscada a essência da pesquisa de cada autor. Em breve
balanço das leituras, nota-se que as similaridades nos levantamentos
de Wolkmer e Neder são imensos em virtude do tronco comum referencial, isto é, o emprego do materialismo histórico-dialético.
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64
Marxismo.
Entretanto, apesar das similaridades, pode-se destacar duas
diferenças quando os textos são abordados em comparativa. A primeira é a própria proposta de cada pesquisa, pois enquanto Wolkmer
busca trabalhar a evolução histórica do Capitalismo e as consequências práticas do mesmo para chegar à problemática do monismo
jurídico na trajetória cultural, Neder busca uma investigação do Capitalismo emergente no Brasil após o início da República, estabelecendo assim uma pesquisa acerca dos aspectos de mudança e
permanência do discurso jurídico nesta trajetória. A segunda reside
na validade da categoria do ethos burguês para a análise de cada
autor, pois Neder (1995) dispensa integralmente esta categoria em
sua pesquisa, enquanto Wolkmer (2015), apesar de expressamente
demonstrar sua maior afinidade com as proposições de Karl Marx,
destaca parcial importância na análise weberiana da categoria.
Por fim, é possível e necessário afirmar que ambas as obras
versam acerca de pontos muito fundamentais à observação do Direito
brasileiro numa ótica crítica, Wolkmer toca em questões mais voltadas
à identidade e práticas comunitárias, bem como demonstra a negligência estatal proposital para com estas em função delas não se coadunarem com os interesses oficiais. Neder, por sua vez, é precisa ao
relacionar a maneira como as instituições oficiais e os discursos dos
ocupantes dos espaços de poder à época reproduziam uma lógica
funcional à estrutura vigente, sendo assim um ponto de sustentação
daquele Capitalismo que emergia.
REFERÊNCIAS
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psychology. Qualitative Research in Psychology. 3(2), 77-101. https://doi.
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MADEIRA, Lígia Mori; ENGELMANN, Fabiano. Estudos sociojurídicos:
apontamentos sobre teorias e temáticas de pesquisa em sociologia jurídica
sumário
65
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66
4
Matheus de Carvalho Barros
Florestan Fernandes nas trilhas
do materialismo histórico
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.4
Marxismo.
INTRODUÇÃO
Acreditamos que o peso relativo das ideias de Marx – e da
tradição marxista – no conjunto das concepções teórico-metodológicas de Florestan Fernandes é geralmente subestimado. O marxismo está presente na vida e na obra do sociólogo paulista desde a
década de 1940, quando Florestan traduz e escreve uma introdução
à Contribuição à Crítica da Economia Política de Marx, em 1946,
a convite de Hermínio Sacchetta, como parte de suas tarefas de
militante do Partido Socialista Revolucionário (PSR) – organização
trotskista ligada à Quarta Internacional.
Entretanto, é somente a partir da década de 1960, na medida
em que a posição política e sociológica de Fernandes assume uma
postura mais radicalizada – principalmente mediante a sua aposentadoria compulsória da USP em 1969, por efeito do Ato Institucional
número cinco (AI-5) – que a relação do sociólogo paulista com a teoria
marxista irá se aprofundar. Portanto, o objetivo deste capítulo é localizar
a presença e a importância do marxismo em diferentes momentos da
trajetória de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX.
A INTRODUÇÃO DE 1946
E A “DESCOBERTA” DO MARXISMO
Para analisar a relação de Florestan Fernandes com o marxismo
no período das décadas de 1940 e 1950, utilizamos como principal referência a já citada introdução feita pelo sociólogo paulista à Contribuição à crítica da economia política de Karl Marx, publicada em 1946 pela
editora Flama. Apesar dessa produção ser parte de suas tarefas como
militante do Partido Socialista Revolucionário (PSR), Fernandes admite
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Marxismo.
que nela (introdução) se comprometeu muito mais como sociólogo do
que como ativista político. Nesse sentido, na introdução de 1946, a
preocupação central de Florestan em relação ao marxismo era metodológica. O objetivo do intelectual paulista era analisar a contribuição
de Karl Marx e Friedrich Engels para constituição das ciências sociais.
Florestan Fernandes (1995) argumenta que do ponto de vista
metodológico, a obra de Marx representa uma ruptura profunda com a
orientação científica dos economistas políticos clássicos. O chamado
Homo Economicus e as abstrações colocadas por Adam Smith e David Ricardo teriam sido violentamente rebatidas e criticadas por Marx,
depois de uma minuciosa interpretação das suas raízes histórias e sociais. Segundo Florestan, Marx teria evidenciado que não se tratava
apenas de mostrar que a produção é determinada socialmente, mas
que, devido esse fato, era preciso considerá-la em sua diferenciação
temporal e espacial. Esse fato levaria às questões metodológicas,
onde estaria concentrado, na visão de Florestan Fernandes naquele
momento, o melhor da herança de Marx às modernas ciências sociais
e a contribuição substancial do livro introduzido.
Essa contribuição assinalada pelo sociólogo paulista seria a
concepção marxiana de que, as leis a que as ciências humanas podem
chegar são leis históricas, porque cada período histórico se rege por
suas próprias leis. Para Fernandes (1995), com essa ideia, Marx quer
demonstrar que as leis econômicas se manifestam enquanto duram as
relações sociais que as expressam. Ou seja, as leis econômicas são
produtos históricos e transitórios.
Sistematizando as contribuições do método introduzido por Marx,
Florestan (1995) aponta para três consequências específicas. A primeira
seria a concepção de que as leis sociais e econômicas só são válidas
para determinadas formações sociais e durante um período determinado de seu desenvolvimento. Em segundo lugar, está a concepção de
que apesar de existir regularidades nos fenômenos sociais, a vontade
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Marxismo.
humana é capaz de inverter os acontecimentos históricos. A terceira consequência seria a noção de que os fenômenos sociais se articulam entre
si por conexões íntimas. Nesse sentido, o argumento é que a produção,
a troca e o consumo, por exemplo, fazem parte de uma “totalidade”. E é
importante salientar que a partir desse diálogo com o Marx da Contribuição à Crítica, a categoria de “totalidade” passa a assumir um papel cada
vez mais importante na sociologia de Florestan.
Desta forma, pode-se observar que, em sua empreitada para
consolidar a sociologia como ciência no Brasil, a preocupação de Florestan Fernandes neste período é relacionar as contribuições desta
obra de Marx com a construção do campo em formação das ciências
sociais no país. Portanto, é possível identificar que na introdução de
1946 a temática do método tem centralidade.
Refletindo sobre os seus escritos no período entre 1942 e 1960,
Florestan (1976) admite que naquele momento de sua trajetória não
pode ligar a sua condição de socialista à sua condição de sociólogo.
Segundo Eliane Soares (1997), neste período, as preferências políticas
do professor da Universidade de São Paulo ficavam fora de sala de
aula. Florestan exercia uma militância política que estava dissociada
da sua atividade acadêmica. Em entrevista à autora de Florestan Fernandes – o militante solitário (1997), Antônio Cândido, amigo e companheiro de Florestan, afirma que:
Na faculdade nós estávamos sempre juntos, discutindo os problemas da universidade. Eu me lembro que nós nos perguntávamos muito se o professor tinha o direito de transmitir nas suas
aulas as suas ideias políticas aos alunos. Naquele tempo, pelo
que eu me lembre, nós achávamos que não. A atividade política
ficava do lado de fora da universidade. De maneira que a nossa
atividade era na verdade muito despolitizada, era apenas profissional (CANDIDO Apud. SOARES, 1997, p. 32).
Também em depoimento à Eliane Soares, Fernando Henrique
Cardoso dá o seu ponto de vista como aluno de Florestan Fernandes:
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Marxismo.
Quando eu conheci o Florestan em 1948-49, Florestan era professor assistente de Sociologia I (...) nessa época o Florestan
era a imagem viva do cientista. Ele queria ser um cientista na
acepção que se dava naquela época a esta expressão na Sociologia. Florestan andava de avental branco. Aliás, todos andavam
para demonstrar que faziam parte da ciência e não do ensaio,
da literatura (...) A bibliografia que ele nos dava era um pouco de
Durkheim, um pouco de Weber, muito de Mannheim, algo de um
autor que não se usa mais, chamado Freyer, e muito entusiasmo
pela sociologia como ciência empírica. Ele usava essa expressão: ciência empírica. Quem aparecia para nós como alguém
que tinha a ver com o mundo contemporâneo, não era o Florestan, era o Antônio Cândido. O Antônio Cândido era socialista.
Ele foi filiado ao Partido Socialista. Florestan só veio nos falar de
problemas desta natureza alguns anos depois, quando nós estávamos na Maria Antônia (...) nós sabíamos que o Florestan tinha
sido simpatizante da esquerda. Ele foi simpatizante do trotskismo. Havia um amigo chamado Sacchetta que era trotskista. Florestan tinha alguma relação, mas isso não aparecia nas aulas,
nada. Nem na ação. Ele estava dedicado a fazer da Sociologia
uma ciência (CARDOSO Apud. SOARES, 1997, p. 32-33).
Portanto, ao longo da década de 1940, Florestan Fernandes
fez em seu itinerário a descoberta das ciências sociais, dedicou-se de
modo profundo, sistemático e criterioso à sua formação intelectual. Paralelamente a isso, como assinala Soares (1997), o intelectual paulista
experimentou a militância política. Entretanto, não havia relação entre
as duas atividades naquele momento de sua vida.
Nesse período, no campo teórico, Florestan estava mais voltado para o uso de autores funcionalistas, tanto da escola francesa
quanto da escola inglesa e Norte-Americana. Como destaca Fernando Henrique Cardoso, o Florestan que construiu a nossa geração era
um Florestan teórico do Funcionalismo (CARDOSO Apud. SOARES,
1997, p. 66). Nesse momento específico de sua trajetória o funcionalismo pode ser localizado em sua dissertação de mestrado intitulada “A organização social dos Tupinambás” de 1947, em sua tese de
doutorado “A função da Guerra na Sociedade Tupinambá” de 1951,
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Marxismo.
e em sua tese de livre-docência sobre o método de interpretação
funcionalista nas ciências sociais, escrita em 1953.
Assim sendo, é possível argumentar que no período entre a década de 1940 e o início da década de 1960, Florestan Fernandes já conhecia Marx e se identificada politicamente com o socialismo. Contudo,
é somente a partir de meados dos anos 1960 que Florestan Fernandes
irá passar por um processo de radicalização de suas posições políticas
e sociológicas. Nesse sentido, a preocupação e a apropriação de Marx
e do marxismo passou a ter uma nova conotação por parte do sociólogo
paulista. Torna-se necessário analisar os fatores que levaram o intelectual estudioso do funcionalismo a se aprofundar na análise marxista.
A APOSENTADORIA COMPULSÓRIA
E O PROCESSO DE RADICALIZAÇÃO
Diogo Costa (2007) aponta que, a partir da segunda metade
da década de 1960, o marxismo passa a ter outra conotação na vida
e na obra de Florestan Fernandes. Conotação essa que não é apenas
sociológica, mas fundamentalmente ligada à uma práxis política socialista e à investigação das forças sociais capazes de contribuir para a
destruição da ordem social capitalista no Brasil. Desta forma, torna-se
necessário analisar alguns fatores que contribuíram para esse processo de radicalização do intelectual paulista.
Segundo Eliane Veras Soares (1997), alguns fatores foram decisivos neste momento específico da trajetória de Florestan Fernandes.
Em primeiro lugar, a professora da UFPE destaca os fatores no campo acadêmico. A mudança temática de Florestan a partir dos estudos
sobre os negros e, em especial, com os projetos de pesquisa que
foram desenvolvidos por meio do CESIT, colocou Fernandes a frente
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Marxismo.
de problemas sociais emergentes. Fernando Henrique Cardoso também destaca que o estudo sobre os negros significou a introdução da
problemática das “classes sociais” nos estudos do professor da USP.
Nessa perspectiva, o próprio Florestan Fernandes avalia a importância
desses estudos para novo rumo de sua vida intelectual e política:
A pesquisa (sobre os negros em São Paulo), no entanto, foi algo
de fascinante porque apesar de tudo o que se sabe sobre a
vida das pessoas pobres no Brasil e da identificação que o intelectual pode ter com a ida dessas populações, eu me senti tão
compensado com o fato de estar fazendo aquela pesquisa, que
aquilo tudo deu um novo sentido à sociologia para mim (e deu
um sentido ao meu trabalho e ao que eu pretendia fazer com a
pesquisa sociológica) (FERNANDES, 1978, p. 94).
Ainda sobre o aspecto acadêmico, outro fator que causou impacto em Florestan Fernandes foi a dinâmica intelectual promovida
pela nova geração de intelectuais da USP, constituída em grande parte
por assistentes e ex-alunos do próprio Florestan. Após dois anos de
doutorado na França, em 1958, José Arthur Giannotti volta para o Brasil
e ao lado de Fernando Henrique Cardoso idealiza a formação de um
grupo de estudos que se iniciou com a leitura sistemática de O Capital.
Além de Giannotti e Cardoso, nomes importantes da intelectualidade
brasileira faziam parte do grupo como Octavio Ianni, Paul Singer, Fernando Novaes e Ruth Cardoso.
O chamado “grupo de Marx” assumiu um importante papel
na introdução do marxismo na academia brasileira. Segundo Soares
(1997), o marxismo, até o início dos anos 60, não tinha espaço definido
na Universidade. Florestan Fernandes e Antônio Cândido utilizavam
alguns textos de Marx em seus cursos, mas a introdução sistemática
da dialética e do materialismo nos cursos regulares se deu inicialmente
por FHC e Otavio Ianni.
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Marxismo.
Florestan Fernandes é impactado e consegue tirar proveitos das
contribuições teóricas realizadas pelos seus ex-alunos. O sociólogo
paulista sentiu a necessidade de reciclar a sua concepção de sociologia e redefinir o que vinha admitindo como sociólogo. Segundo Florestan (1976), diante dele estava um grupo orgânico de sociólogos e pesquisadores, os quais se dispunham a interpretar o Brasil e a periferia à
luz de novas categorias sociológicas. E nesse sentido, o professor da
USP sentia a necessidade de refazer as suas metas para ter o direito de
continuar à testa do grupo (FERNANDES, 1976, p. 172).
Por fim, o outro fator decisivo no processo de radicalização de
Florestan Fernandes está vinculado à própria dinâmica do processo
histórico que culminou com o seu afastamento compulsório da universidade. Em dezembro de 1968, o presidente Costa e Silva assinou o
Ato Institucional nº 5 (AI-5). Aplicado à Universidade de São Paulo, o
ato levou à aposentadoria compulsória Floresta Fernandes, Fernando
Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paulo Duarte, José Arthur Giannotti,
Paul Singer, entre outros, em abril de 1969 (SOARES, 1997).
Como nos aponta Eliane Soares (1997), esse fato constitui um
marco, não só para a universidade brasileira, mas também para a vida
de Florestan. O afastamento da USP representou para Florestan a perda
de um referencial institucional e ao mesmo tempo, libertou-se das “amarras” da profissionalização do sociólogo. E é a partir desse momento que
o sociólogo paulista mergulha nos estudos dos pensadores marxistas.
Em seu exílio no Canadá, Florestan imerge na pesquisa sobre os
processos revolucionários ocorridos na Rússia, China e Cuba. O intelectual paulista procurou aprofundar os seus conhecimentos sobre o tipo
de capitalismo dependente surgido na América Latina, e se dedicou,
como dito anteriormente, aos estudos dos clássicos do marxismo, tendo
organizado e introduzido uma coletânea de textos políticos de Lenin,
depois publicada pela editora Ática, em 1978 (COSTA, 2011).
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Marxismo.
Portanto, no Canadá, Florestan Fernandes se assume como
marxista. Em entrevista à revista Teoria e Debate o sociólogo afirma
que: eu só me tornei abertamente um professor marxista quando eu fui
para o Canadá. Aí já tinha rompido com as instituições. No Canadá, eu
polarizei (FERNANDES Apud. SOARES, 1997, p. 78).
Segundo Lidiane Rodrigues (2016), neste contexto, estando
relativamente livre dos constrangimentos materiais de sua juventude
e das obrigações institucionais de sua maturidade, gozando de um
prestígio de integridade intelectual e política que outrora pressupunha
distância da política partidária e panfletária, Florestan Fernandes “reconstrói” um Marx igualmente livre daquele regime anterior de suas
obrigações. Nessa perspectiva, Rodrigues (2016) argumenta que o
Marx do “velho Florestan” é mobilizado para colocar contra a parede
as instituições científicas, a sociologia acadêmica e os intelectuais, e
defender a revolução como critério de autonomia científica, atestada
junto à classe trabalhadora revolucionária.
A partir desse momento de sua trajetória, o equilíbrio precário
entre o sociólogo e o socialista já não mais poderia ser mantido. Florestan constrói uma nova concepção revolucionária e marxista de ciência.
Como assinalado anteriormente, o marxismo passa a ter outro sentido
na obra do sociólogo paulista. A tradição teórica oriunda de Karl Marx
passa a ter uma conotação não apenas sociológica, mas fundamentalmente ligada à práxis política socialista e à investigação das forças
sociais capazes de contribuir para a destruição da ordem capitalista
no Brasil. Seria na década de 1970 que tais mudanças iriam ficar mais
nítidas no horizonte intelectual de Florestan Fernandes, com a exigência sempre mais crescente de iluminação recíproca entre sociologia e
socialismo (COSTA, 2007, p. 24).
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Marxismo.
MARXISMO, CAPITALISMO DEPENDENTE
E REVOLUÇÃO BURGUESA
No processo de radicalização do sociólogo paulista, a forma
com que Florestan concebia o desenvolvimento sócio histórico brasileiro sofre algumas alterações fundamentais. Uma dessas mudanças
pode ser visualizada na maneira como Fernandes passa a relacionar
os termos “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”, a partir da
construção do conceito de Capitalismo Dependente.
Segundo Antônio Brasil júnior (2017), a introdução do constructo
“capitalismo dependente” na obra do ex-professor da USP a partir do
fim da década de 1960, faz com que Fernandes passe a conceber uma
“conjugação crônica” (termo de Florestan) entre “subdesenvolvimento”
e “sociedade de classes”. Nesse sentido, para o professor da UFRJ, a
elaboração deste conceito permitiu uma verdadeira virada na análise
sociológica de Florestan Fernandes em pelo menos três aspectos.
O primeiro aspecto seria a necessidade de articular elementos
“internos” e “externos” às sociedades, com ênfase nos dinamismos socioeconômicos. Essa articulação específica também levaria a uma imbricação entre elementos ditos “arcaicos” com elementos “modernos”.
Em um segundo plano estaria a requalificação da atuação limitada da
burguesia brasileira diante das condições do “capitalismo dependente”.
Por fim, estaria a caracterização da natureza autocrática da transformação capitalista engendrada pelas condições de dependência. Nesse
sentido, para Florestan Fernandes, a transformação capitalista no Brasil
estaria associada não à correção, mas com o agravamento da monopolização de renda, do prestígio e do poder político (BRASIL JR, 2017).
A despeito de já utilizar a noção de “dependência” em seus textos desde a década de 1950, como nos aponta Brasil Júnior (2017),
ela só assume real importância na obra de Florestan a partir do artigo
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Marxismo.
Sociedade de Classes e subdesenvolvimento, escrito no final de 1967.
Para Antônio Brasil, doravante este ensaio, há uma maior sistematização
entre os elementos “internos” e “externos” nas análises de Florestan.
Desta forma, passa a se impor uma necessidade de articular num mesmo andamento explicativo as condições locais e globais, com o objetivo
de avaliar o peso dessa articulação para o dinamismo do sistema social.
Essa articulação implicaria na formação de uma economia duplamente polarizada, ou seja, destinada a garantir de uma só vez a
acumulação de capital tanto para as burguesias nacionais quanto para
as burguesias dos países de capitalismo hegemônico. Desse modo, o
sociólogo paulista demonstra que no contexto da periferia teria ocorrido uma inversão do processo “clássico” de formação capitalista. Pois,
em vez de contar com o suporte de uma “acumulação primitiva”, como
havia formulado Marx, a revolução burguesa no Brasil seria realizada a
partir de condições muito mais adversas (BRASIL JR, 2017).
Uma das especificidades desse tipo de transição para o capitalismo seria a ausência de autonomia das burguesias dependentes, já
que, sozinhas, elas não teriam “força histórica” suficiente para desencadear uma revolução nacional e democrática. Segundo Antônio Brasil
(2017), Florestan Fernandes demonstra que a consequência decisiva
da associação das burguesias dos países periféricos com as burguesias dos países hegemônicos residiria no fortalecimento das estruturas
socioeconômicas arcaicas. Ou seja, a própria conexão com os fatores “externos”, que garantia a incorporação do capitalismo ao nível
das relações sociais “internas”, reforçaria, em vez de liquidar, o legado
colonial. Portanto, Florestan (1974a) argumenta que a transformação
capitalista no Brasil se liga, assim, a revitalização e à intensificação de
privilégios que pareciam condenados pelo capitalismo e que muitos
supunham banidos da cena histórica pela revolução burguesa.
Analisando as particularidades da transformação capitalista na
periferia, em 1975, Florestan Fernandes publica umas de suas obras
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Marxismo.
mais importantes que, segundo Carlos Nelson Coutinho (2000), é
o primeiro texto onde o marxismo é assumido explicitamente como
ponto de vista metodológico pelo sociólogo paulista. Refiro-me aqui
à Revolução Burguesa no Brasil.
Para José de Souza Martins (2006), o livro em formato de ensaio
ganha sentido no ambiente intelectual do debate brasileiro sobre o tipo
de sociedade capitalista que estava se desenvolvendo no Brasil. Desta
forma, A Revolução Burguesa poderia ser vista como o último grande
estudo do ciclo de reflexões históricas e sociológicas abrangentes, sobre o destino histórico Brasil.
Segundo Martins (2006), A Revolução Burguesa no Brasil equivale, em certo sentido, á O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia
de Lenin, um marco nos estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo em sociedades diferentes da Europa Ocidental. José de Souza
argumenta que a interpretação de Florestan sobre o processo da lenta
e complicada revolução burguesa no Brasil tem um dos seus aspectos
mais positivos o distanciamento de um marxismo determinista e engessado. Em outras palavras, o marxismo de Florestan Fernandes se
contrapôs a todo de tipo de vulgarização da tradição oriunda de Marx
que propõe uma concepção de história regida por etapas inexoráveis,
segundo um modelo abstrato de processo histórico (MARTINS, 2006,
p. 18). Modelo esse que corresponderia a um etapismo mecanicista e
a uma visão antidialética da realidade.
O MATERIALISMO HISTÓRICO
COMO CIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA
A partir da publicação de A Revolução Burguesa no Brasil, em
1975, a questão do socialismo não se constituía mais como um assunto
entres outros na obra de Florestan Fernandes. Como nos aponta Caio
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Marxismo.
Navarro de Toledo (1998), para Florestan – particularmente nas últimas
décadas de sua produção intelectual -, o socialismo era, a rigor, uma
questão vital e decisiva em sua obra. Mais do que isso, o socialismo era
uma questão existencial, na qual Florestan Fernandes se dedicou integralmente do ponto de vista ético, político e intelectual (TOLEDO, 1998).
Em meados dos anos 70, Florestan passa a produzir de forma mais intensa e sistemática trabalhos de análise política. Segundo
José Paulo Netto (1987), numa reconstrução teórico-revolucionária
da constituição da formação social brasileira, faz emergir um pensador que, a partir de então, se dedica também a tematizar aspectos
internos da teoria marxiana e marxista. Nesse sentido, o tema do socialismo consolida-se de forma definitiva em seus escritos, particularmente na sua fase assumidamente publicista (nos artigos de jornais,
revistas, conferências, simpósios etc.) (TOLEDO, 1998). Nesse período, destacam-se as obras: Circuito fechado de 1976; Da Guerrilha
ao Socialismo: a revolução cubana de 1979; Brasil em Compasso de
Espera de 1980; O que é Revolução de 1982.
Caio de Toledo destaca que, em sua militância, Florestan Fernandes jamais abdicou das armas da crítica, da razão analítica e dos
recursos da dialética. Nessa perspectiva, a defesa do socialismo não
era realizada somente a partir de um ponto de vista ético-humanista.
Florestan a fazia a partir de uma rigorosa análise do capitalismo e de
suas irreconciliáveis contradições. Desse modo,
A defesa apaixonada do socialismo na escrita do sociólogo, do
publicista e do tribuno esteve, assim, sempre apoiada em pesquisa empírica e sólida argumentação teórica, nunca se confundindo com a propaganda ou com a demagogia típicas de
certos populismos teóricos, ainda vigentes em alguns setores
da esquerda (TOLEDO, 1998, p. 60-61).
Neste contexto, Lincoln Secco (1998) salienta que o mais impressionante nas avaliações políticas de Florestan Fernandes era justamente a “simbiose” entre o publicista engajado, político e homem de
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Marxismo.
ação, preocupado com a persuasão de seus leitores, e o sociólogo, o
cientista, compromissado com a análise objetiva da realidade concreta. Secco argumenta que, desta forma, a sociologia de Florestan funcionava como uma “previsão”, no sentido que Antônio Gramsci conferiu ao termo, ou seja, “como um programa que visa superar a ordem
social competitiva e estabelecer o socialismo” (SECCO, 1998, p. 77).
Florestan Fernandes escreve em 1983 uma introdução à coletânea de escritos de Marx e Engels sobre a história, pela coleção
dos grandes cientistas sociais da editora Ática. Segundo Diogo Costa
(2007), essa seria, enfim, a obra mais importante para entender a
relação do Florestan “maduro” com o marxismo. Nesse momento
específico de sua trajetória, a assimilação principal que o sociólogo
paulista fará do marxismo se dá em termos do resgate da concepção
de revolução ou da edificação de uma teoria revolucionária. Costa
(2007) aponta que a leitura detida dos clássicos e dos teóricos marxistas mais atuais possuiria, no caso, esse objetivo mais fundamental
de pensar as especificidades da revolução socialista no Brasil e na
América Latina. Nesse sentido, não somente na introdução à coletânea de Marx e Engels sobre a história, mas também na introdução
da coletânea de escritos de Lenin publicada em 1978, assim como
em alguns pequenos textos de intervenção, os aspectos tratados por
Florestan Fernandes são justamente os que enfatizam a constituição
do materialismo histórico como uma teoria revolucionária.
Florestan (1983) começa a introdução aos escritos de Marx e
Engels afirmando que o propósito que o anima consiste em recapturar as ideias centrais dos revolucionários alemães sobre a “ciência da
história”. Na leitura do sociólogo paulista, Marx e Engels trabalharam
em direção oposta à fragmentação do trabalho científico, defendendo
uma concepção unitária de ciência e representando a história como
uma ciência de síntese.
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Marxismo.
Florestan Fernandes (1983) argumenta que a crítica da especulação filosófica, da dialética hegeliana, da economia política e do
socialismo utópico converteu Marx e Engels em fundadores das ciências sociais. Na concepção do ex-professor da USP, tanto Marx quanto
Engels compartilharam uma situação incontestável como criadores do
conhecimento científico nessa esfera do pensamento e coube-lhes encarnar, na história das ciências sociais, os interesses e as aspirações
revolucionárias das classes trabalhadoras (FERNANDES, 1983, p. 11).
Para Florestan (1983), a conexão entre ciência social e revolução
no século XIX encontra em Marx e Engels os seus representantes mais
completos, íntegros e corajosos. Mas não é apenas isso. Os comunistas alemães teriam levado essa relação às últimas consequências,
resolvendo a equação do que deve ser a investigação científica quando esta rompe com os controles conservadores externos ou internos
ao pensamento científico propriamente dito. Portanto, Fernandes argumenta que Marx e Engels legaram às ciências sociais um modelo
de explicação estritamente objetivo e intrinsecamente revolucionário.
Portanto, na concepção do sociólogo paulista, Marx e Engels
teriam inaugurado um tipo de pesquisa histórica revolucionária, em sua
forma e em seu conteúdo. Fernandes (1983) defende a necessidade
urgente e permanente de dar continuidade a esse padrão específico
de trabalho científico inaugurado pelos autores alemães, e aprofundar
o significado de suas descobertas teóricas na ciência atual.
Em A atualidade de Marx, texto escrito no mesmo ano da introdução à coletânea de Marx e Engels, analisando a relação entre marxismo,
ciência e revolução, Florestan Fernandes (1983) advoga o desenvolvimento de uma ciência social histórica que combine, intrínseca e objetivamente, “a crítica de si mesma com o conhecimento crítico da ordem
existente. Florestan (1983) defende uma ciência social que se manifeste
como: teoria e prática, como expressão autêntica da verdadeira ciência em sua capacidade de transcender ao enquadramento ideológico
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Marxismo.
burguês e de fazer parte do movimento que abale o presente estado
de coisas, isto é, de ser comunista, de identificar-se com a situação de
interesses da classe dos trabalhadores e com o que ela significa para o
advento e o desenvolvimento de um novo ciclo histórico revolucionário”
(FERNANDES, 1983, p. 37).
Desta forma, nesses textos, Fernandes quer demonstrar que o
marxismo desenvolve um padrão integrativo de ciência ou de conhecimento sócio-histórico e político, envolvendo a apreensão da realidade
em diferentes níveis interdependentes. Florestan Fernandes destaca, sobretudo, que a junção entre teoria e prática proposta pela tradição oriunda de Karl Marx, permite que a ciência assuma um caráter instrumental
a serviço da revolução social. Nesse sentido, a capacidade de apanhar a
história em processo era vital para questionar se um dado direcionamento
da ação política poderia ter eficiência no aprofundamento da revolução
democrática e na construção do socialismo (COSTA, 2011, p. 17).
Portanto, como nos aponta José Paulo Netto (1987), na produção teórica de Florestan Fernandes no pós Revolução Burguesa, a
problemática da revolução é central. Netto (1987) argumenta que as
condições históricas-sociais sob as quais Florestan recuperou Marx
e o marxismo é que determina estre traço pertinente de sua produção
intelectual. Estamos de acordo com concepção de José Paulo Netto
(1987), na qual o privilégio da revolução significa em Florestan que
a obra de Marx é toda ela interpretada em função da prática política.
Segundo o professor emérito da UFRJ, Florestan não pensa Marx senão como teórico da revolução (NETTO, 1987, p. 300). É óbvio que,
em toda sua riqueza teórica-crítica, Florestan Fernandes não reduz a
problemática da obra marxiana e marxista à categoria da revolução.
Porém, dentro do contexto do embate contra a ditadura civil-militar, o
sociólogo paulista repugnou qualquer elaboração teórica marxista que
descentre a questão da ação política revolucionária.
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Marxismo.
CONCLUSÃO
Uma das discussões mais recorrentes em torno da obra de
Florestan Fernandes tem sido o debate sobre o lugar do marxismo no
horizonte teórico do sociólogo paulista. A maioria dos comentadores
de sua obra aceita a noção de que a herança de Marx se configuraria como mais uma das perspectivas, dentre outras, da explicação
sociológica presente no pensamento teórico de Florestan. Contudo,
a partir desta breve incursão por alguns aspectos da trajetória e da
obra do mais importante sociólogo brasileiro, é possível argumentar
que a sociologia de Florestan Fernandes sofreu um profundo e constante impacto do marxismo.
Se em um primeiro momento de sua trajetória – mais especificamente na empreitada de consolidar a sociologia como uma ciência no
Brasil – a relação de Florestan Fernandes com o marxismo residia na
preocupação de identificar as contribuições metodológicas de Marx às
ciências sociais, em um segundo momento de sua vida o sociólogo da
USP irá ressignificar essa relação.
Após a sua aposentadoria compulsória da Universidade de São
Paulo por efeito do AI-5, em abril de 1969, Florestan passa a ter no marxismo a sua principal base (mas não a única) teórico-metodológica.
Entretanto, essa nova conotação assumida pela herança de Marx na
obra de Florestan Fernandes não era apenas sociológica. Ela também
estava fundamentalmente ligada a uma práxis política socialista e a
investigação das forças e dos agentes sociais que seriam capazes de
contribuir para a destruição da ordem capitalista no Brasil. Portanto,
analisar a trajetória de Florestan Fernandes, sobretudo as suas obras
mais “maduras”, significa mergulhar em um dos capítulos mais relevantes da incorporação do marxismo nas ciências sociais brasileira.
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Marxismo.
REFERÊNCIAS
BRASIL JR, Antônio. Capitalismo dependente: todos os passos de um conceito de Florestan Fernandes. Cartografias da crítica, Teoria, Sociologia e
Antropologia Críticas no Brasil e na América Latina. Disponível em: https://
blogdolabemus.com/2017/08/03/capitalismo-dependente-todos-os-passos-de-um-conceito-de-florestan-fernandes-por-antonio-brasil-jr .2017
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Disponível em: http://201.48.149.89/anpocs/arquivos/15 10 2007 11 0
31.pdf. 2007.
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sumário
85
5
Sofia Viegas Duarte
Marcello Amorim Vieira
O processo de construção do
Direito brasileiro no pensamento
de Antonio Carlos Wolkmer
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.5
Marxismo.
INTRODUÇÃO
Este artigo irá trabalhar a construção do Direito brasileiro, saindo
de sua concepção monista lógico-liberal para uma interpretação pluralista e que atenda, de forma eficaz, às questões relativas aos direitos
sociais no Brasil. Como marco teórico para o desenvolvimento deste
artigo, utilizamos os conceitos de pluralismo jurídico e ineficácia jurídica, apresentados por Antonio Carlos Wolkmer em sua obra. Pretende-se, portanto, fazer uma correlação destes conceitos com a concepção
histórica e social do Direito e suas mudanças ao longo dos anos.
Os objetivos principais são identificar as ferramentas de análise e as propostas de discussões do Direito enquanto um vetor de
sociabilidade no Brasil, trazidos na obra Pluralismo Jurídico. Entre os
objetivos específicos estão a identificação da construção histórico-sociológica do Direito levantada pelo autor, o reconhecimento de novas
demandas dos direitos sociais e como estas não são atendidas pelo
Direito brasileiro e, por fim, analisar como a sociedade, ao exercer sua
cidadania, busca por ampliar o Direito, tornando-o mais pluralista e
capaz de atender suas necessidades.
O Direito brasileiro, assim como diversas outras superestruturas
que formam nossa sociedade, sofreu fortes influências de países Europeus e Norte-americanos. O processo de colonização portuguesa condicionou o Brasil a se vincular durante anos com uma cultura, história
e educação que era diversa do seu povo originário. Como consequência, foi imposta uma institucionalidade liberal-burguesa extremamente
positivista e o Direito, como um ramo das ciências sociais aplicadas,
também incorporou essas raízes em sua criação.
A cultura jurídica brasileira é, então, pautada por uma forte lógica kelseniana, monista e formalista. Usando esta lente analítica da
formação do Direito brasileiro, Antonio Carlos Wolkmer propõe um
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87
Marxismo.
novo olhar sobre o Direito, buscando a ascensão de um Direito pluralista que seja capaz de se comunicar com a sociedade brasileira
e seus problemas jurídicos. Em sua obra Pluralismo Jurídico, o autor
expõe como as raízes do nosso Direito fazem com que este se desenvolva de forma antagônica à sociedade, não sendo capaz de atender
às novas demandas que surgem, principalmente no que tange aos
direitos sociais. É justamente por ter sido moldado por uma cultura
diversa e fechada às práticas comunitárias pluralistas que ocorre uma
ineficácia do judiciário para responder às questões sociais e coletivas. Sabendo deste descompasso entre a fundação do Direito e suas
demandas, este artigo tem como escopo analisar o novo processo de
construção do Direito brasileiro.
Portanto, Wolkmer leva o leitor a compreender que alguns dos
problemas atuais mais importantes do direito brasileiro, como a ineficiência jurídica e a dissonância entre o judiciário e os direitos sociais,
têm sua origem em uma base histórica. A formação do Direito não
foi elaborada para se adequar ao país e sim a uma lógica burguesa
europeia. Apesar disso, há um movimento que busca adequar melhor
o Direito à realidade, principalmente se tratando dos direitos sociais
e suas novas amplitudes, como o Direito ambiental, da mulher e referente a igualdade econômica. É desejando estudar a transformação
do Direito e como se dá esta construção para se adequar à nova
realidade que nasce a premissa deste artigo.
A ANÁLISE TEMÁTICA COMO MÉTODO
Ao escolher a análise temática como método de pesquisa buscou-se aplicar o método pensado por Virginia Braun e Victoria Clarke
(2006). As autoras originalmente aplicaram essa metodologia de pesquisa no campo da Psicologia, ao estabelecer e analisar os padrões
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Marxismo.
encontrados nos dados qualitativos por elas identificados. No presente
artigo, a escolha da obra para analise quantitativa do tema que esta
aborda foi o livro Pluralismo Jurídico, de Antônio Carlos Wolkmer (2015).
Para a melhor exposição dos temas abordados por Wolkmer foi
adotado os passos a passos de pesquisa esboçados por Luciana Karine de Souza (2019), que consiste subdividir a leitura da obra escolhida em 3 etapas. Para a primeira, há um contato inicial com a obra do
autor e as fontes principais por ele trabalhada, por meio de uma leitura
dos textos base que Wolkmer utiliza para desenvolver sua tese. Em um
segundo momento foi destrinchar os dois temas principais que a obra
aborda, neste caso o Direito e a Sociologia. Quanto ao direito, Wolkmer
analisa a pluralidade das fontes informais da produção social normativa,
sendo esta denominada Pluralismo Jurídico. No que se tange ao critério
sociológico, o autor desenvolve a relação entre os sujeitos sociais e o
novo fluxo de poder e como essa interação afeta as práticas do dia a dia
e por conseguinte a produção normativa. Por fim, foram criados códigos
iniciais e uma busca pelos temas acima descritos na literatura para corroborar ou contra argumentar a tese inicial proposta por Wolkmer.
A análise temática, portanto, como método de pesquisa busca absorver ao máximo a tese do autor sem alterar o seu conteúdo.
Sendo possível assim, selecionar dentro da obra do autor um tema
central o qual será intensamente abordado neste artigo. A escolha
do recorte temático foi “A ineficiência jurídica e os conflitos socais”,
tema este abordado por Wolkmer no seu livro o Pluralismo Jurídico.
O objetivo, portanto, é compreender a lógica do autor na construção
da sua teoria de como o pluralismo jurídico é capaz de trabalhar na
ineficiência jurídica e nos conflitos sociais e para concretiza-lo foi escolhido o método de análise temática.
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Marxismo.
O CENÁRIO DE EMERGÊNCIA
DO DIREITO BRASILEIRO
O Brasil, durante o seu processo de formação enquanto nação,
bebeu diretamente de fontes europeias e norte-americanas como base
para a construção de sua identidade. Neste período, os traços culturais,
os valores, éticos e morais já estabelecidos pela civilização aqui já existente foram suprimidos em ordem da construção de um país colonial.
O Direito brasileiro não foi uma exceção deste processo. A formação da
sua base principal, civil, penal e constitucional foi inteiramente criada
com a perspectiva de análise de juristas europeus e estadunidenses.
Por consequência, as normas e doutrinas criadas por estes juristas,
apesar de pioneiras e brilhantes, refletiam os costumes, a cultura e,
principalmente, os problemas, de uma população em especifico, não
englobando a pluralidade étnica e cultural percebida no Brasil.
O Direito, por ser uma ciência social aplicada é, em sua essência, um reflexo da sociedade em que ele se encontra. Suas normas,
burocracias e jurisprudências são criadas para uma população e por
uma população, com demandas e pensamento específicos. Essas
demandas e pensamento refletem a sociedade a qual essa norma
está inserida. Assim, temos que o Direito é criado por indivíduos com
demandas específicas de problemas e se espera que este Direito criado por eles possa trazer a resolução de conflitos de maneira eficaz e
equânime. É justamente nesta relação entre criação do Direito e as
demandas da população a qual ele deve atender que Wolkmer destaca um dos principais aspectos da ineficiência do judiciário brasileiro.
Como já exposto, o cenário de construção deste judiciário é baseado nas tradições europeias e estadunidenses, assim a cultura jurídica brasileira é marcada por tradição monista de forte influxo kelseniano,
ordenada em um sistema lógico-formal de raiz liberal burguesa, cuja
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Marxismo.
produção transforma o Direito e a Justiça em manifestações estatais
exclusivas (WOLKMER, A. C. 2015, p. 103). Esta forma de produção
jurídica foi implantada por todo o país, negligenciando-se as culturas
originárias e os povos que para o Brasil migraram, seja de forma livre
ou forçada. O Direito brasileiro foi formado por uma elite que não o
construiu para a população brasileira em sua pluralidade.
As elites detentoras da mão de obra escrava (indígenas e negros), construíram um Estado completa- mente desvinculado
das necessidades da maioria de sua população, montado
para servir tanto aos seus próprios interesses quanto aos do
governo real da Metrópole, os colonizares e a aristocracia
rural desconsideram as práticas jurídicas mais antigas de um
direito comunitário, nativo e consuetudinário, impondo uma
cultura legal proveniente da Europa e da Coroa Portuguesa.
(WOLMER, A. C. 2015, p. 90)
Desta forma há um forte desencontro entre o cenário brasileiro
e o cenário para o qual esse direito europeu e estadunidense foi originalmente proposto, pois no Brasil, o que se percebe é uma sociedade
colonizada, ancorada em um capitalismo periférico, marcada por fortes desigualdades sociais, exploração econômica, dominação política
e conflitos coletivos causados pela reedificação populacional de seus
direitos fundamentais (WOLKMER, 2015). O oposto ocorre nos países
onde as teorias e doutrinas jurídicas foram criadas, isto é, as realidades
europeia e estadunidense revela uma sociedade que reconhece e usufrui de seus direitos sociais e civis, com uma forte economia, cultura reconhecida e tradição que é modelo para os demais países do mundo.
Se o Direito nasce para ordenar a uma sociedade, este, por sua
vez, deve ser compatível com ela. Wolkmer (2015) apresenta como
esta incompatibilidade, no cenário brasileiro, fez com que o Direito técnico-dogmático, calcado em procedimentos lógicos e formais criados
na Europa, seja incapaz de atender e acompanhar os dilemas da sociedade brasileira. O Direito e toda a norma jurídica aplicada no Brasil
é, na visão do autor
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Marxismo.
Incapaz de acompanhar o ritmo das transformações sociais e a
especificidade cotidiana dos novos conflitos coletivos. A instância de decisão não só submissa e compromissada com a estrutura de poder dominante, órgão burocrático do Estado, retórico
e inerte, de perfil fortemente conservador e de pouca eficácia na
solução rápida e global de questões emergenciais vinculadas,
quer às reivindicações dos múltiplos movimentos sociais, quer
aos interesses das maiorias carentes de justiça e da população
privada de seus direitos. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 106)
Ou seja, a cultura brasileira é marcada por uma tradição monista,
kelseniana, ordenada por uma lógica liberal-burguesa, é pouco eficiente
em atender os procedimentos formais na hora de solucionar os problemas da população como um todo. Como efeito, há um distanciamento
entre aquilo que está posto na lei e sua real aplicabilidade. A ineficácia é
em atender as demandas da população e também em produzir normas
que alteram o convívio social de forma coesa (WOLKMER, 2015).
Assim, a disparidade entre a produção de normas e a aplicabilidade daquilo que ela protege acontece. Se há na lei o que é necessário
à proteção e aplicabilidade dos direitos sociais e civil, há na prática
uma incapacidade do Estado, nas esferas do Judiciário e do Legislativo, em garantir que esses direitos cheguem até a população de forma
efetiva. Assim, infere-se que o cenário brasileiro não corresponde à
prescrição normativa que o disciplina e isso possui raízes numa produção de Jurisdição que não acompanhou, de fato, as querelas sociais
arraigadas na formação desta sociedade.
O PAPEL DOS DIREITOS SOCIAIS E CIVIS
NA EFICÁCIA DO PODER JUDICIÁRIO
Para que o Direito possa atender às demandas da população, é
necessário que o Judiciário compreenda quais são estas demandas.
Wolkmer (2015) introduz a Sociologia em sua obra justamente quanto
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Marxismo.
toca no ponto da análise ao Judiciário brasileiro. O que a sua população clama como problema? Para buscar esta resposta é importante
compreender o cenário brasileiro e, mais especificamente, os dilemas
intrínsecos à formação do país. Quando se fala de base automaticamente se remete aos direitos fundamentais, os três clássicos conceitos
elaborados pela Sociologia para abordar a raiz dos direitos fundamentais, isto é, direitos políticos, sociais e civis.
Em sua obra, Wolkmer trabalha com o desenvolvimento de dois
deles, os sociais e civis, bem como na problemática de como estes
direitos fundamentais são falhos em nosso país quando passam para a
dimensão prática. Por conseguinte, vários problemas surgem na sociedade, e são estes problemas que o Judiciário brasileiro não consegue
identificar e solucionar, gerando assim uma grave ineficácia do sistema
jurídico em atender à população.
Adentrando em maior análise, deve-se compreender o que são
estes direitos e porque estes são ineficazes no país. Vejamos, o elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual,
liberdade de ir e vir, liberdade de impressa, pensamento, fé, o direito
à propriedade e de concluir direitos válidos e o direito a justiça (MARSHALL, T. H. 1967, p. 63). As caraterísticas sobre os elementos civil,
constitui para o autor a base fundamental para o “reino do Direito”, sob
ela que todos os outros direitos devem aflorar. O direito à liberdade era
o princípio pela busca de uma cidadania efetiva.
O seu processo histórico se inicia no século XVIII, período entre a Revolução e o primeiro reform act, passando pela abolição da
censura à empresa e a emancipação católica. Na seara jurídica, o
marco dos direitos civis se deu pela luta jurídica a favor dos direitos
individuais, esta foi a base de formulação do princípio jurídico da
legalidade. O marco jurídico foi um ganho na luta por direitos civis.
O acesso à Justiça, de ouvir e ser ouvido, confrontar decisões do
Estado e limitar o poder estatal de invadir às liberdades individuais
são características trazidas pelos direitos civis.
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Marxismo.
Os direitos civis são os direitos fundamentais a vida, à liberdade,
à A liberdade a propriedade a igualdade perante a lei. Eles descubram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar
o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade
do Lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela
autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São Direitos cuja garantia
se baseia na existência de uma Justiça independente, eficiente,
barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações
civilizadas as pessoas e a própria existência da sociedade civil
sugerida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de
toque é liberdade individual (CARVALHO, J. M. 2004, p. 09).
No Brasil, este debate acontece de forma bem diferente.
Os direitos civis ainda hoje são afetados diretamente pela grande
desigualdade social. A inefetividade desse Direito, que seria para
Marshall a base da pirâmide da cidadania, aqui se mostra-se fraca.
De acordo com José Murilo de Carvalho, os direitos civis foram positivados no Brasil pela primeira vez em 1824, na Constituição Imperial.
Não foi ganho da sociedade brasileira, não teve uma revolução popular para romper com o absolutismo monárquico, muito pelo contrário,
a população assistiu como uma mera espectadora a transição entre
o regime colonial para a Monarquia brasileira.
Os direitos civis brasileiros não foram uma conquista popular,
configuravam-se pela pressão do sistema internacional, com a eclosão
da Independência Estadunidense e a Revolução Francesa. O sistema
monárquico se tornava insustentável, assim, mais como plano estratégico para manutenção do poder das classes dominantes no Brasil, a
independência ocorreu.
Nesta época haviam três classes de brasileiros: os escravizados, que não eram cidadãos e nem se quer considerados humanos, pois eram vistos como mercadorias e propriedades dos seus
senhores. Entre os escravizados e os senhores haviam os homens
livres, mas esses, de fato, não gozavam de liberdade já que se viam
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Marxismo.
dependentes dos grandes proprietários para morar, trabalhar e se
defender de terceiros. Faltava à maioria da população quase todas as
condições para o exercício dos direitos civis, sobretudo a educação
(CARVALHO, 2004). Por fim, haviam os senhores.
O Brasil, então, chega à sua independência com os direitos civis
garantidos na Constituição de 1824, mas muito longe de serem efetivados pela população. Este processo, de acordo com José Murilo de
Carvalho, fez com que os direitos civis e individuais se concretizassem
no país de forma fraca e efetividade não plena.
Já “o elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de
participar da herança social e vida de um ser civilizado de acordo
com os padrões que prevalecem na sociedade” (MARSHALL, T. H.
1967, p. 64). Em complemento, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva, eles incluem o direito a educação, ao
trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria e permite a sociedade reduzir a desigualdade e garantir um mínimo de bem estar
para todos (CARVALHO, J. M. 2004, p. 10).
As primeiras discussões datadas sobre os diretos sociais ainda
estão ligadas a quatro fatores: economia, educação, saúde e moradia.
Marshall (1967) pontua que a educação é peça fundamental para a
mudança social,
Por intermédio da educação em suas relações com a estrutura
ocupacional, a cidadania opera como um instrumento de estratificação social (..) status adquirido por meio de educação acompanha o indivíduo por toda a vida com o rótulo de legitimidade,
porque foi conferido por uma instituição destinada a dar aos cidadãos seus justos direitos (MARSHALL, T. H. 1967, p. 102)
Os direitos sociais implicam em uma mudança do status quo,
na quebra da estratificação social. A educação, como visto, é o motor
que impulsiona a população a buscar pelas demais garantias sociais,
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95
Marxismo.
o cidadão passa a requer por melhores oportunidade, por igualdade
e a eliminação do privilégio hereditário. No Brasil esses direitos foram
os primeiros a de fato serem concretizados no país, apesar de terem
surgido em 1930, 106 anos depois dos direitos civis na Constituição
Imperial, é considerado por José Murilo de Carvalho como o primeiro
Direito implantado no país.
Os direitos sociais no Brasil não foram implantados por meio
de uma luta popular e política, muito pelo contrário, o cenário do seu
nascimento foi marcado por um período cujos direitos civis e políticos
estavam absolutamente cerceados. De 1930 a 1945, anos de florescimento dos direitos sociais, estava ocorrendo no Brasil uma transição
de regimes varguistas em que se flertava com o autoritarismo. Ao contrário da escala proposta por Marshall, cujos direitos seriam adquiridos
pela própria população por uma percepção da necessidade que nasce
pelo fortalecimento dos direitos civis, políticos e uma maior consciência coletiva, no Brasil a implementação desses direitos se deu por um
governo autoritário que retirou dos brasileiros a oportunidade de consolidar estes direitos por vias democráticas.
Reflexos disso podem ser vistos na sociedade atual. Os direitos
coletivos ainda hoje são vistos como um assistencialismo do Estado,
uma forma de pão e circo para a população e não um direito coletivo e
parte intrínseca do Estado e da democracia. O discurso de que a saúde, educação, previdência são apenas formas do Estado de contornar
a população nascem, não por coincidência, deste período que, de fato,
os direitos sociais foram usados como forma de afastar o público do
debate sobre o autoritarismo do governo.
Os avanços trazidos pelos diretos sociais são inegáveis, principalmente na regulamentação do trabalho feminino, mas ao lado deste avanço também vieram retrocessos, o sistema excluía categorias
importantes de trabalhadores, “no meio urbano, ficavam de fora todos autônomos e todos os trabalhadores domésticos. Estes não eram
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Marxismo.
sindicalizadas nem se beneficiavam na política de Previdência ficava
ainda de fora todos os trabalhadores rurais, que na época ainda eram
maioria” (CARVALHO, 2004, p. 114).
A relação clientelista entre governo e os direitos sociais, ficava ainda mais clara quando se analisa o papel dos sindicatos. Nesta
época estes serviam como forma de controle social, já que o governo
mantinha delegados seus dentro deles, cuja função era acompanhar
as reuniões, examinar as situações financeiras e produzir um relatório
trimestral para o Estado. O governo vigiava os sindicatos e poderia
livremente interferir neles. Os direitos sociais estavam longe de ser uma
garantia de cidadania e direito e muito perto de serem uma política
sociais como privilégio (CARVALHO, 2004).
Desta maneira, os direitos sociais e civis trazem grande impacto
na construção social brasileira, assim como em quais os problemas estruturais da sociedade. O Direito, como meio de solução de conflitos, necessita internalizar esses fatores de deficiência em sua norma para então
aplicá-la com maior eficácia. A lógica aqui desejada, é moldar a norma,
ou seja, criar normas que possam ser capazes de solucionar a ineficácia
dos direitos fundamentais e comunitários. A busca pela proteção desses
Direitos que nascem a partir das carências e necessidades fundamentais deve-se à ineficácia de uma legislação estatal importada da Metrópole colonizadora e inteiramente desvinculada
dos reais interesses dos segmentos majoritários injustiçados da
Sociedade. Daí a necessidade “processo de construção coletiva
de uma nova cidadania”, pressuposto básico para implementar
uma nova legitimidade de poder. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 99)
Para tanto, o próprio Direito brasileiro precisa ter como base fontes normativas que o permitam construir estas regulamentações baseadas em sua sociedade. De forma a atingir essas mudanças, Wolkmer (2015) propõe o Pluralismo Jurídico, uma cultura jurídica plural que
atenda à nossa História e se adapte à forma latino-americana e valores
cultivados nesta sociabilidade.
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Marxismo.
O CONCEITO DE PLURALISMO JURÍDICO
Toda e qualquer norma jurídica na sua formulação precisa se
basear em doutrinas, jurisprudências, costumes e diversas fontes admitidas em Jurisdição. Wolkmer propõe que uma forma de melhorar o
problema da ineficácia do sistema judiciário seria alterando a forma de
produção normativa. A melhor maneira de conseguir este resultado seria, então, diversificar as fontes normativas, ou seja, a base em que as
normas são feitas não mais seria aquela monista, kelseniana, formalista
e liberal, que em tanto se dissocia da sociedade brasileira, mas sim nas
múltiplas fontes que se conectam direto com as demandas do país.
O novo Pluralismo Jurídico está vinculado aos líderes individuais e
coletivos (novas singularidades sociais) em uma perspectiva complexa e
intercultural que prioriza a vida comunitária e os direitos relacionados às
diferenças e diversidades sociais. Gerando assim uma supressão dos
conflitos de classes e grupos através da minimização das formas de
opressão e sofrimento, causados pela ineficácia do Judiciário em atender aos direitos fundamentais da população (WOLKMER, 2015).
Estas novas fontes normativas têm como escopo melhorar o
conteúdo da norma em si e, para tal, elas devem absorver o contexto
social e reproduzir nas relações jurídicas o cotidiano da população.
É um processo que permite ao Judiciário o conhecimento do sujeito
pelo o qual a norma deve ser feita, é produzir um Direito voltado para
os seus titulares e não para o Estado e a classe dominante. O Pluralismo Jurídico é necessariamente uma nova fonte normativa que rompe
com este aparato hegemônico e universalista e passa a colocar em
evidência as necessidades da população, sob um ponto de vista plural. De acordo com o autor
O pluralismo de formulações jurídicas provenientes diretamente da comunidade, emergindo de vários e diversos centros de
produção normativa, adquirindo um caráter múltiplo, informal e
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Marxismo.
mutável. A validade e a eficiência dessas práticas de Direito e Justiça comunitária, que não se sujeitam ao formalismo histórico das
fontes tradicionais (lei escrita e jurisprudência dos tribunais), estão embasadas nos critérios de uma “nova legitimidade” gerada
a partir de valores, objetivos e interesses do todo comunitário, e
incorporados através da mobilização, da participação e da ação
compartilhada. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 168)
Wolkmer (2015) então, entende que a construção de um novo
Direito brasileiro deve se basear na cultura, tradição e vontade coletiva
do país. É, portanto, necessário que se abra mão da exclusividade de
participação no processo de produção estatal de normas para que
haja uma expansão de horizontes culturais e estes reflitam na positivação normativa efetuada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo analisa o Brasil, à luz das ideias de Antonio
Carlos Wolkmer, tanto no seu aspecto sociológico quanto no que se
refere à produção normativa. Por isso é imprescindível que, para o entendimento de qualquer tema que se relacione diretamente com algum
outro país, seja primeiro compreendido o cenário interno desse local.
É justamente com a análise do cenário brasileiro que Wolkmer começa
a sua análise da ineficácia do Direito brasileiro.
Ao pontuar que o cenário do Brasil é de um país periférico, latino-americano e com demandas de melhores direitos sociais e civis
que o torna diretamente incompatível com o cenário europeu e o norte
americano. Essa diferenciação é de suma importância pois o autor destaca que o Direito brasileiro, em sua criação, bebeu de fontes europeias
e portando foi moldado por uma cultura e um cenário diametralmente
oposto do cenário brasileiro em que este Direito irá produzir efeitos.
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Marxismo.
Como consequência o Direito brasileiro nasce lógico formalista,
monista e kelseniano. O Judiciário é pautado por escusas de conflitos
e funciona assim como a politica estatal, visando a manutenção do
poder das elites políticas e econômicas. Sendo, portanto, altamente
previsível em suas ações já que estas, por repetidas vezes, não visam
alterar o status quo e sim mantê-lo. O grande problema que é gerado
com este Direito formalista é a incompatibilidade dele com os problemas brasileiros. Neste caso, Wolkmer descreve o cenário atual do país,
uma nação que em sua formação lhe falta uma base estrutural muito
forte, sendo as duas principais os direitos sociais e os civis.
Os direitos sociais reverberam no acesso à melhor educação,
saúde, senso de comunidade e pertencimento, cultura e combate direito ao racismo, machismo e outros preconceitos. No campo civil, a
liberdade e o senso de justiça, aqui tratado como capacidade de chegar
ao judiciário e ter seu problema tendido pelo estado. Esses dois fatores
contribuem para uma sociedade descrente do judiciário, pois sabe que:
a) o acesso a ele é dificultado pelo pouco acesso a maioria da população a informações sobre o seu direito e b) pela baixa expectativa que o
Judiciário vá de fato atender sua demanda, já que a expectativa geral é
de que este mantenha o status quo e por conseguinte o poder das elites.
Para evitar que o Poder Judiciário enquanto instância tradicional
da burocracia estatal continue ineficaz, Wolkmer apresenta três formas
de solucionar o problema, sendo elas: a expansão da cidadania coletiva e dos movimentos sociais, o pluralismo jurídico e o controle social
sob o aparato legal-estatal. Em relação ao primeiro ponto, o autor relata que quanto mais ocorrer a expansão da lógica social brasileira mais
a própria população irá alterar o status quo. Os movimentos sociais
trazem em pauta as lutas sociais e civis, por direitos fundamentais, e ao
alcançar as universidades e o ambiente político-jurídico eles alterem as
agendas políticas, colocando em pauta discussões que antes o estado
se eximia de debater, justamente por evitar conflitos.
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Em seu segundo ponto, a busca por um pluralismo jurídico
recai na necessidade do Direito brasileiro romper com a lógica formalista kelseniana e buscar suas fontes jurídicas em diversos outros
locais, o pluralismo aqui é para a abertura do Direito à Sociologia, e
a sua população a novas leituras de como o Direito brasileiro deve
ser formulado. É absorver a cultura da América Latina e todos os
problemas sociais, políticos e civis que a nação possui e reconstruir
as bases de como o Judiciário e o Direito pensam a formulação de
normas. Dessa forma o judiciário passa a ser capaz de acompanhar o
ritmo das transformações sociais pois sua própria racionalidade será
plural e construída com uma base nova e não a antiga visão lógico-formal colonial antes imposta sobre o Direito brasileiro.
Como última proposta temos o controle social sob o aparato
legal-estatal. Nesse estágio, a proposta é que a própria população, em
forma de movimentos sociais, coletivos universitários, centros acadêmicos, grupos sociais e diversas outras formas de organização política
mantenha em discussões as ações do judiciário frente aos problemas
sociais. É de suma importância a própria população levantar discussões sobre como o judiciário lida com as demandas locais, tanto para
garantir que estas se atentem com aquilo estabelecido como um problema para a população como também possam atuar em sua melhor
eficiência para atender aos anseios populacionais.
Em conclusão, Wolkmer deseja criar estratégias para diminuir
o cenário brasileiro de deficiência em direitos sociais e civis. Alterar a
base do Direito brasileiro, trocando a sua visão kelseniana formalista
europeia para uma plural e que atenda as demandas de um país periférico e latino-americano e por fim que a própria população busque fiscalizar as ações do judiciário afim de promover constantes discussões
sobre os problemas da sociedade e como é necessário o judiciário, de
forma eficaz, atender a essas demandas.
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Marxismo.
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sumário
102
PARTE 2
2
Gênero e raça
Parte
Gênero e raça
Marxismo.
Recentemente, diversos trabalhos na área de pensamento social brasileiro chamaram a atenção para questões relacionadas ao gênero e à raça nas explicações sobre o mundo social. Nesta parte do
livro, temos a contribuição de 3 capítulos que versaram sobre o tema
gênero e 8 capítulos sobre o tema raça.
No primeiro capítulo, Emilly Gabriela Menezes Franco investigou
os modos pelos quais o passado escravista interferiu nas relações de
trabalho doméstico, nas concepções sociais sobre a profissão de doméstica, através da teoria e conceitos de Manoel Bomfim. Além de uma
análise dos direitos trabalhistas conquistados pela categoria, desde o
início do século XX, até o ano de 2015, quando os direitos das empregadas domésticas se equiparam legalmente às demais profissões..
No segundo capítulo, Stephany Dayana Pereira Mencato e Renata Peixoto de Oliveira realizam a contextualização teórica e histórica dos
movimentos feministas na Argentina, Brasil e Chile. As ondas feministas
nestes países permitem refletir sobre as relações entre Estado e sociedade e a luta por direitos emancipatórios vindos da sociedade civil.
E por fim, Sylvia Iasulaitis e Gustavo Guimarães apreendem os
traços mais essenciais da compreensão de Heleith Saffioti a respeito da
categoria gênero relacionando sua teorização com a perspectiva metodológica do materialismo histórico. Nestes termos, identificam a gramática sexual que regula a totalidade das relações humanas de uma dada
sociedade que implicaria, necessariamente, hierarquia e dominação.
Abrindo as reflexões sobre a categoria raça, Alan Caldas e Nikolas Pallisser Silva investigam o conceito de democracia racial nas
obras de Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos. Embora compartilhem do
mesmo conceito, tal concepção se apresenta de forma polissêmica,
representando em cada um dos autores uma concepção de sociedade
distinta e uma função específica em cada uma das proposições.
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104
Marxismo.
No capítulo A atemporalidade de uma intelectual amefricana:
O pioneirismo de Lélia Gonzalez, Fernanda Reis Nunes Pereira e Steffane Pereira Santos analisam o pensamento de Lélia Gonzáles e suas
contribuições para as ciências sociais no Brasil. Especialmente suas
contribuições acerca das relações etnico-raciais, as formas e perpetuação do racismo na sociedade brasileira, a posição de mulheres
negras frente às desigualdades, o movimento negro e as movimentações de mulheres negras frente ao racismo e sexismo.
Por sua vez, Gabriel Felipe Oliveira de Mello analisa a obra do
sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) e a relação entre a
questão racial, ao longo do final da década de 1940 e início da década de 1950 e a construção de um projeto nacional para o Brasil, que
conciliasse, ao mesmo tempo, a superação da ideologia da brancura,
dotando o negro de autoconsciência emancipatória.
Em seu capítulo, Micheli Longo Dorigan aborda a discussão a
respeito da identidade nacional brasileira, fortemente atrelada à mestiçagem, e sua concomitante relação com a questão racial analisando
principalmente na obra de Lilia Moritz Schwarcz, especialmente nos
textos Questão Racial no Brasil (1996), contido no livro Negras Imagens, e Nem preto nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na
sociabilidade brasileira (2012).
Patrícia Amorim Weber compara as obras Pele Negra, Máscaras
Brancas (2008) de Frantz Fanon e Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1957) de Guerreiro Ramos com o objetivo de compreender a
relação entre sujeito e objeto colonizado e racializado na produção da
teoria social moderna.
Enquanto Telmo Renato da Silva Araújo explora aspectos do
pensamento racial de Nina Rodrigues e analisa os principais temas
nos estudos sobre raça, as concepções de evolução, mestiçagem e
degenerescência racial.
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105
Marxismo.
No seu capítulo Thomaz José Portugal Coelho e Santos aborda
as questões que cercam a formação da sociedade brasileira como o
sistema patriarcal, a escravidão e o patrimonialismo, a cordialidade
e o machismo.
Por fim, William Vaz de Oliveira tem como objetivo principal fazer
uma incursão ao pensamento e às ideias de Juliano Moreira, destacando não somente os seus discursos e práticas científicas, mas, também,
os aspectos sociais que atravessam a sua obra.
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6
Emilly Gabriela Menezes Franco
A mão da limpeza:
empregadas domésticas, direitos
trabalhistas e o passado escravista
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.6
Marxismo.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a população de trabalhadoras(es) domésticas(os) no mundo é de 67 milhões
(2013). Desse número, 18 milhões encontram-se na América Latina e
Caribe, dos quais 88% são mulheres. Ainda, o trabalho doméstico representa 27% da ocupação feminina na região. Já no Brasil, onde um
terço da população latino-americana de trabalhadoras e trabalhadores
domésticos se encontra, somando mais de 6 milhões de pessoas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
de 2017, mais de 90% dessa população é composta por mulheres.
O trabalho doméstico remunerado, ou serviço doméstico, é numericamente a ocupação mais expressiva das mulheres da América
Latina e é fundamental para o funcionamento da própria economia da
região, uma vez que, além do percentual de mulheres ocupadas na
profissão ser alto, grande parte dessas mulheres também são responsáveis pela chefia de suas famílias, principalmente no Brasil, conforme
demonstrado no estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça,
elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em
2016, que analisa dados da PNAD de 1995 à 2015. Este estudo indica
que além de gênero, a profissão também é marcada por desigualdades sociais, como baixa remuneração, ausência de direitos trabalhistas
básicos e uma baixa adesão sindical, sendo apenas 4% da categoria
sindicalizada. O estudo também aponta que o serviço doméstico também é racialmente demarcado, uma vez que a maior parte das mulheres ocupadas na profissão são negras, e justamente estas ocupam os
espaços mais precários da profissão, recebendo salários mais baixos e
ocupando a maior parte da parcela das trabalhadoras na informalidade,
quando comparadas às trabalhadoras domésticas brancas.
Historicamente, a categoria enfrenta diversas barreiras para
a conquista e efetivação de direitos básicos, o que colaborou para
a permanência dessas condições de vida e trabalho precárias. Sem
pouco ou nenhum acesso à educação, fora do mercado de trabalho e
sem alternativas, muitas mulheres pobres são compelidas ao serviço
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108
Marxismo.
doméstico, assim como suas mães e avós foram no passado, perpetuando uma tradição através das gerações, onde mudam apenas as
trabalhadoras, mas as condições de trabalho permanecem semelhantes. Isto porque, até o ano de 19235, pouco existia no âmbito legislativo
que tratasse sobre a regulamentação da profissão. O Decreto de 1923
versa sobre a definição do que se constitui como serviço doméstico e
o iguala a serviços de mesma natureza prestados em estabelecimentos privados, como faxineiras e arrumadeiras em hotéis e restaurantes,
por exemplo. Após isso, somente em 19416 o assunto volta ao âmbito
legislativo, estendendo alguns direitos básicos à classe, como aviso
prévio de oito dias e período de prova de 6 meses, além de multas no
caso de quebra de contrato e violações. Em 1943, com a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT)7, o serviço doméstico foi desconsiderado
enquanto de igual natureza aos trabalhadores de hotéis, restaurantes
etc., conforme previsto nos Decretos de 1923 e 1941, além de também
ter sido excluído da própria CLT, conforme seu art. 7. Ou seja, até o
momento, as trabalhadoras domésticas encontravam-se praticamente
desassistidas do ponto de vista legal.
Passando-se quase 30 anos, em 19728, a categoria conquista
avanços legais significativos, atribuindo obrigatoriedade de registro em
Carteira de Trabalho, férias remuneradas de vinte dias e previdência
social obrigatória. Alguns anos depois, com a Constituição de 19889, é
5 BRASIL. Decreto nº 16.107/1923. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/
decret/1920-1929/decreto-16107-30-julho-1923-526605-publicacaooriginal-1-pe.html.
Acesso em: 20 jan. 2021.
6 BRASIL. Decreto nº 3.078/1941. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3078-27-fevereiro-1941-413020-publicacaooriginal-1-pe.html.
Acesso em: 20 jan. 2021.
7 BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452/1943. Disponível em:https://www2.camara.leg.br/legin/
fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-maio-1943-415500-publicacaooriginal-1-pe.html.
Acesso em: 20 jan. 2021.
8 BRASIL. Lei nº 5.859/1972. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/
lei-5859-11-dezembro-1972-358025-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 20 jan. 2021.
9 BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jan. 2021.
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Marxismo.
que mais alguns direitos são conquistados. No entanto, dos 34 direitos
previstos aos trabalhadores urbanos e rurais, somente 9 estavam também previstos para trabalhadoras(es) domésticas(os), sendo em sua
maioria não conquistas novas, mas a maior parte eram os mesmos garantidos pelas leis e decretos citados anteriormente. Foi só a partir dos
anos 2000, 15 anos após a Constituição, que mudanças mais consideráveis na garantia dos direitos das trabalhadoras domésticas aconteceram. No ano de 200110 passa a ser facultativo o acesso ao Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e ao seguro-desemprego.
Em 200611, houve mudanças relacionadas a estabilidade de emprego
à trabalhadora gestante, repouso semanal remunerado e ampliação
das férias remuneradas de 20 para 30 dias.
Além de serem pouquíssimos direitos trabalhistas quando
comparados às demais profissões, embora sejam legalmente assegurados, a maior parte desses direitos sequer faz parte do cotidiano
do serviço doméstico, considerando que no ano de 2006 65% trabalhava sem carteira assinada e desse percentual, 40,4% recebiam
menos do que um salário-mínimo, já quem tinha carteira assinada
recebia entre um salário e menos de dois salários-mínimos, de acordo com dados do Censo de 201012. Consequentemente, o serviço
doméstico passa a ser tema de discussões cada vez mais recorrentes no âmbito federal e em Conferências Internacionais do Trabalho
(CIT), com o intuito de elaborar iniciativas efetivas para melhorar a
realidade da população ocupada pelo serviço doméstico e resolver
problemas que atravessavam a profissão, como o trabalho infantil, a
violação de direitos humanos e a ausência de efetivação de direitos
10 BRASIL. Lei nº 10.208/2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
LEIS_2001/L10208.htm. Acesso em: 20 jan. 2021.
11 BRASIL. Lei nº 11.324/2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2006/Lei/L11324.htm. Acesso em: 20 jan. 2021.
12 CENSO DEMOGRÁFICO 2010. IBGE traça o perfil dos trabalhadores domésticos. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?busca=1&id=1&idnoticia=586&t=ibge-traca-perfil-trabalhadores-domesticosbr&view=noticia. Acesso em: 21 jan. 2021.
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Marxismo.
trabalhistas básicos a todas as profissões. Durante os anos de 2008
e 2010, o governo brasileiro inicia a elaboração de uma Proposta
que busca atingir tanto as exigências discutidas pelas trabalhadoras
domésticas no Brasil quanto aquilo que estava sendo discutido pelas
CITs no âmbito mundial, que posteriormente se tornaria a PEC das
Domésticas, ou Proposta de Emenda Constitucional 66/2012.
A redação original da PEC, quando apresentada ainda à Câmara dos Deputados, previa a revogação do Parágrafo Único do art.
7 da Constituição Federal, sendo este o artigo onde constam os direitos dos trabalhadores brasileiros, já o Parágrafo limitava os direitos da
categoria de trabalhadoras e trabalhadores domésticos, que não era
incluída em todos os dispostos no art. 7. No entanto, a redação final da
PEC, que veio a se tornar a Emenda Constitucional nº 72 não revoga
o Parágrafo Único, mas sim o altera, o que não traz isonomia entre a
categoria e os trabalhadores urbanos e rurais, mas estende os direitos
assegurados. Assim, com a Lei Complementar nº 150 de 2015, algumas disposições complementares são aprovadas, mas a igualdade legal até então não foi alcançada, visto que as trabalhadoras domésticas
não são assistidas por todos os 34 direitos previstos em Constituição.
Durante esse período, a elaboração é interrompida logo no início
com a justificativa dos membros da Comissão Especial de que a PEC
traria aumento nos encargos financeiros para os empregadores, ainda
que o objetivo da Proposta fosse estabelecer isonomia no tratamento
entre trabalhadores domésticos e demais trabalhadores urbanos e rurais de forma legal, ou seja, os encargos em questão seriam os mesmos já existentes na contratação de profissionais de outras áreas. Com
a interrupção, o andamento da Proposta só retorna no ano de 2010,
quando é apresentada na Câmara dos Deputados como Proposta de
Emenda Constitucional e é a partir deste momento que o assunto começa a tomar espaço com mais frequência na mídia brasileira, que
buscou frisar o aumento dos encargos trabalhistas em grande parte
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Marxismo.
das notícias e reportagens, além de focar principalmente nas possíveis
“preocupações” que a PEC poderia trazer para os empregadores e
suas famílias caso fosse aprovada. Os veículos de comunicação também adotaram e difundiram o discurso de que a ampliação de direitos
acarretaria um resultado contrário do pretendido: ao invés de beneficiar as trabalhadoras domésticas, as mudanças da Proposta trariam
ainda mais informalidade à categoria, uma vez que o aumento dos
encargos faria com que as famílias deixassem de contratá-las por não
ter condições de arcar com as despesas.
Desse modo, é possível perceber principalmente nas publicações de portais online e matérias nos telejornais um conteúdo que
se faz efetivo na transmissão de informação sobre as mudanças da
PEC, por exemplo, apresentando detalhadamente os pontos trazidos pela Proposta, enquanto que, ao mesmo tempo, essas notícias
também enfatizam os custos gerados aos empregadores, além das
dificuldades relacionadas à burocratização das relações dentro do
ambiente doméstico, o que leva a questionar se o papel da mídia
contribuiu para a diminuição dessa fronteira estabelecida entre prós
e contras da Proposta ou se ela colaborou para que essa delimitação
aumentasse ainda mais, como se a aquisição de direitos trabalhistas
pelas trabalhadoras domésticas fosse uma derrota para os patrões,
ainda que o aumento dos gastos estaria em torno de 10% do que se
gastava com uma empregada doméstica, enquanto que do “outro
lado” se discutia a garantia de direitos básicos já assegurados a praticamente todos os trabalhadores brasileiros.
A forma como se constrói esse discurso pode ser percebida
tanto pela linguagem e ênfase das publicações, que enfatizam gastos
e interessam informar mais a quem emprega e menos ao empregado,
como também através de imagens, como é possível exemplificar através de uma capa da Revista Veja (de Abril de 2013):
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Marxismo.
Imagem 1 – Capa da Revista Veja
Fonte: Revista Veja, 2013.
Através da capa, podemos perceber que o texto de resumo da
edição apresenta as novas regras atribuídas ao serviço doméstico são
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Marxismo.
um marco civilizatório, em seguida apresenta que isso significa “um sinal de que em breve as tarefas domésticas serão divididas entre toda a
família”. O título em maiúsculo “Você amanhã” faz referência à imagem
da capa, onde um homem vestido de camisa social e gravata está de
avental lavando a louça, indicando que a extensão dos direitos das
trabalhadoras domésticas significa um marco civilizatório, mas que ao
mesmo tempo traria o desemprego da categoria pelo encarecimento
dos custos do empregador, que passará a ser o responsável por realizar o trabalho doméstico de sua casa, enfatizando assim o discurso
popularmente veiculado na época, que também passou a ser reproduzido por uma parcela da população que se colocava contrária à PEC,
afirmando que as relações de trabalho entre patrões e trabalhadoras
domésticas eram diferentes de outros tipos de profissão e por isso
não seria possível regulamentá-las da mesma forma, já que o serviço
doméstico não produz lucro ao patrão e que o ambiente doméstico
em si não possibilita a formalização de relações de trabalho como o
ambiente de empresas e estabelecimentos.
Esse discurso atrelado ao prejuízo financeiro do patrão, no entanto, não era a única perspectiva em relação ao que propunha a PEC das
Domésticas, pois nas discussões que ocorriam na época tanto no âmbito nacional quanto internacional (amparadas inclusive por Resoluções
da OIT), a preocupação mais urgente estava relacionada a construir um
ambiente digno de trabalho para as profissionais do serviço doméstico,
pois a falta de regulamentação permitia não apenas o não-cumprimento
de direitos trabalhistas, mas também a violação de direitos humanos
básicos a todos os indivíduos. No entanto, o discurso adotado ao falar
sobre a PEC nos meios de comunicação pouco falava ou desconsiderava completamente a importância da Proposta em busca de condições de trabalho mais dignas para a profissão. Portanto, a adoção
do “discurso do patrão” em detrimento ao “discurso das domésticas”
demonstra não somente a defesa dos interesses do primeiro grupo em
oposição ao segundo através da mídia, mas através disso também é
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114
Marxismo.
possível compreender as próprias disputas de poder entre os indivíduos
nas relações do serviço doméstico, conforme aponta Bourdieu (2008):
Entre as censuras mais eficazes e mais bem-dissimuladas situam-se aquelas que consistem em excluir certos agentes da comunicação, excluindo-os dos grupos que falam ou das posições
de onde se fala com autoridade (BOURDIEU, 2008, p. 133).
Portanto, a escolha de qual agente ou grupo deve ser ouvido e
qual deve ser excluído depende da construção social desses indivíduos,
das relações de força simbólicas estabelecidas no seu convívio, de quais
espaços esses indivíduos ocupam na sociedade. Por isso, é necessário
investigar como se dão essas relações para além da perspectiva dos
sujeitos dominantes, ou seja, se voltar para a perspectiva dos sujeitos
subalternos. Assim, questiona-se: por que ainda hoje a profissão de
empregada doméstica se encontra numa posição tão desigual quando
comparada a outras, e por que é tão difícil se efetivar direitos trabalhistas
na prática, mesmo com leis que os assegurem? Ainda, por que essas
leis são elaboradas separadamente e de forma tardia?
Diversos estudos na área têm se preocupado nas possíveis respostas para certos aspectos específicos do trabalho doméstico, ou
seja, que não fazem parte de outras categorias de emprego. Ainda que
seja um campo consideravelmente recente tanto na Sociologia quanto
na História, os estudos sobre o serviço doméstico apontam para um
caminho crucial na compreensão dessas relações sociais: os processos de surgimento da profissão. Isto porque, até o fim do século XIX,
o trabalho doméstico nas casas era desempenhado em sua maioria
através de mão de obra escravizada, o que evidentemente produziu
efeitos na forma como compreendemos a atividade ainda hoje, mais
de um século depois, uma vez que, segundo Bomfim (2008):
E com isto resultou que o trabalho foi considerado, cada vez
mais, como coisa vil, infamante. O ideal para todos era viver sem
nada fazer – ter escravos e à custa deles passar a vida a enriquecer. Este ideal aí persiste como tradição. (BOMFIM, 2008, p. 91)
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115
Marxismo.
Ou seja, em razão da exploração de mão de obra escravizada,
juntamente com os ideais racistas difundidos na época e que permanecem posteriormente, o imaginário social brasileiro em relação ao
trabalho é construído amparando-se na percepção do que são funções degradantes, onde tudo que remete ao trabalho daqueles que
são escravizados, ou seja, atividades ligadas ao trabalho braçal, como
infames e desonrosas. Isso promove uma ideia de que não somente
se desejava estar numa posição onde não seria necessário realizar o
trabalho braçal, como também se fazia necessário ter alguém para
desempenhá-lo, para servir. Esses efeitos que Bomfim (2008) indica,
são transmitidos através das gerações, como uma tradição, e seriam
os responsáveis pela maneira que se reproduzem as relações sociais
de trabalho doméstico atualmente, pois mesmo com o fim do regime
de escravidão, a nossa sociedade não foi capaz de romper com certas percepções em relação à divisão do trabalho. Florestan Fernandes
(1978) argumenta de forma semelhante:
O regime extinto não desapareceu por completo após a Abolição. Persistiu na mentalidade, no comportamento e até na organização das relações sociais dos homens, mesmo aqueles que
deveriam estar interessados numa subversão total do antigo
regime. (FERNANDES, 1978. p. 248).
Florestan aponta que a persistência do antigo regime na organização social se dá pela permanência na mentalidade e no comportamento das pessoas, através da não-integração do negro, fazendo
com que este seja isolado social e economicamente, o que resulta
no ingresso dessa população na realidade social com desvantagens
insuperáveis (FERNANDES, 1978, p. 247). Ele continua:
Não se formaram, por conseguinte, barreiras que visassem impedir a ascensão do “negro”, nem se tomaram medidas para
conjurar os riscos que a competição desse elemento racial pudesse acarretar para o “branco”. Em síntese, não se esboçou
nenhuma modalidade de resistência aberta, consciente e organizada, que colocasse negros, brancos e mulatos em posições
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Marxismo.
antagônicas e de luta. Por paradoxal que pareça, foi a omissão
do “branco” – e não a “ação” –que redundou na perpetuação
do status quo ante. (FERNANDES, 1978. p. 250).
De fato, não se formaram efetivamente barreiras nem se tomaram medidas que impedissem a ascensão do “negro”, ou nesse caso,
das trabalhadoras domésticas, pelo contrário. A completa omissão,
através da não-regulamentação e da ausência de direitos básicos e
condições dignas de trabalho desde o início do regime pós-escravidão
permitiu que certos comportamentos e ideais permanecessem atrelados às relações de trabalho doméstico mesmo após o fim da escravidão. Resultando no que observa Souza (2017), que
[...]a escravidão doméstica deixou profundas marcas na prestação de serviços domésticos, ao ponto de se estabelecerem
em certas sociedades escravistas, práticas e valores sociais e
culturais baseados em uma correspondência direta entre escravidão, os negros (africanos e seus descendentes) e o serviço
doméstico (SOUZA, 2017. p. 78).
Assim, Souza (2017) nos traz o aspecto central dessa discussão, cujo através dele é possível perceber as reminiscências de valores
e práticas de relações escravistas em relação ao serviço doméstico,
onde construiu-se uma correspondência entre valores escravistas e
relações de trabalho, sendo possível afirmar que as relações de trabalho doméstico são perpassadas pelo que podemos chamar de ethos
escravista, que se faz presente nas ideias, nas formas de se relacionar,
de pensar e de agir. A desvalorização da profissão, a ausência de direitos, a resistência dos patrões em ceder o mínimo para a garantia de
dignidade na profissão são reflexos de uma tradição que não rompeu
com a colonialidade e os ideais escravistas, mas que permanece no
ideário social como uma tradição.
Partindo desse ponto, portanto, a questão do aumento dos encargos dos patrões não deixa de ser um argumento válido para se opor
à PEC das Domésticas, mas por outro lado, não pode ser entendido
sumário
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Marxismo.
como a maior e única justificativa para a recusa de boa parte das pessoas, visto que tudo que propôs a PEC já vigorava na regulamentação
de outras profissões, o que nos leva a questionar os motivos pelos
quais a sociedade brasileira considera legítimo que algumas pessoas
tenham certos direitos e outras não.
Desse modo, mesmo com os avanços ocorridos nas últimas
décadas em relação aos direitos trabalhistas, ainda existem diversos
obstáculos para que esses direitos sejam assegurados e essa população de mulheres seja efetivamente assistida pelos Estados de maneira
mais efetiva, garantindo condições de trabalho e de vida melhores tanto
para as trabalhadoras quanto para as suas famílias. Mesmo após quase 133 anos do fim da escravidão, estes aspectos ainda influenciam na
maneira como o serviço doméstico é percebido no Brasil. A sociedade
brasileira parece ainda enxergar a trabalhadora doméstica como uma
serva, submetida às vontades e ordens de seus patrões. Estas mulheres resistem, ainda que socialmente marginalizadas, à violência e aos
ecos do seu próprio passado, ainda que muitas pessoas insistam em
agir como se este passado não existisse e não nos influenciasse mais.
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Stephany Dayana Pereira Mencato
Renata Peixoto de Oliveira
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feministas no Brasil,
Argentina e Chile:
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.7
Marxismo.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é fruto dos resultados parciais de pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso A revolução será feminista!
A última fronteira democrática e as marchas de mulheres na Argentina, Brasil e Chile (MENCATO, 2019). O objetivo no presente artigo é
de expor resumidamente a contextualização teórica e histórica dos
movimentos feminista, em seu duplo aspecto teórico e prático na
Argentina, Brasil e Chile. Optou-se por aglutinar os período histórico
dos três países em quatro ondas do movimento/prática feminista, tal
divisão, ainda que não possa ser tida como fixa e pacificadas teoricamente, nos permite refletir elementos centrais comuns e divergentes
em cada momento histórico destas Estados.
A primeira onda feminista emerge somente com reivindicações sufragistas. Instaurados os tempos de ditadura, a segunda onda
acompanha as lutas por democracia. A terceira onda se consolida com
as democracias, marcada pela aproximação dos movimentos sociais
feministas com o Estado. Por fim, a quarta onda, que emerge nos
tempos atuais em um cenário crítico, de avanço das extremas direitas neoconservadoras e neoliberais, denunciando a incapacidade dos
Estados em cumprir com as reivindicações feministas, nos permitindo
vivenciar a formação de movimentos que tomam as ruas com milhões
de pessoas e dialogam internacionalmente.
REIVINDICAÇÕES DO SUFRÁGIO
FEMININO, A PRIMEIRA ONDA
Falar da história dos movimentos e teorias feministas é um campo complexo devido a sua dinamicidade e multiplicidade existindo
debates, tensões, polêmicas e conflitos entre as diversas correntes
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feministas. Para se descrever suas trajetórias, impasses e conquistas, diferente autoras utilizam terminologias diversas, metáforas como
‘ondas’, ‘estações’, ‘cenários’, ‘ciclos’, para se descrever as lutas e
as transformações provocadas pelo feminismo ao longo dos séculos
(SCHUMAHER, 2018, p. 21), cada uma dessas expressões traz suas
vantagens e críticas. A expressão ondas aqui utilizada vem em diálogo com o entendimento de que o movimento feminista, teve início no
século XIX (RIBEIRO, 2014), ainda que se reconheça a presença das
mulheres em todas as lutas sociais anteriores.
A primeira onda feminista nesse caminho se ocupada, em especial, das reivindicações de direito ao voto e à vida pública, ainda que
englobassem outros debates como o fim da escravidão e acesso à
educação. A importância central deste momento é o reconhecimento
da luta de diversas mulheres, bem como a conquista de direitos centrais “no ha habido ninguna concesión, nadie nos ha regalado el voto
a las mujeres, fue una conquista en la que se ha puesto el cuerpo y la
vida” (PAREDES; GUZMÁN, 2014, p. 28), essa valorização se faz importante, pois, atualmente, por vezes, acabam se descrendo tais direitos
como resultados de uma evolução ou progresso natural da sociedade.
Essa primeira onda, com seu movimento centralmente sufragista, como apresentam Paredes e Guzmán (2014, p. 28), buscou em
geral reformas liberais, dessa forma, não lutavam contra o capitalismo ou o patriarcado de modo específico são feitas reivindicações de
igualdade entre iguais, homens e mulheres burgueses, brancos, heterossexuais, o que será destacado pelas ondas posteriores como um
caminho que levou a exclusão e silenciamento de diversos sujeitos
dentro do movimento.
Na história argentina, Eva Perón, Evita como ficou conhecida, é
apontada como a principal figura de representatividade dessa primeira
onda, a primeira dama do segundo presidente argentino esteve à frente
do movimento sufragista no país, foi central nos processos que levaram a
aprovação do voto feminino pelo Congresso em 23 de setembro de 1947.
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No Chile, entre o final do séc. XIX e início do séc. XX, o movimento de primeira onda reivindicava o direito de votar e a emancipação da
mulher (ROBERTS, 2007, p. 20), nesse período foram criadas no país
diversas organizações de mulheres, que ainda influenciam as atividades feministas chilenas. O voto feminino foi debatido no Chile desde
1920, “Sin embargo, la oposición de los partidos anticlericales y de izquierda, debido a la tendencia conservadora del electorado femenino,
retardó por varias décadas más la concesión de ese derecho” (MUSEO
HISTORICO LA SERENA, 2016), sendo somente em 1934 a lei do voto
feminino para eleições municipais aprovada no país, e em 1949 para
o voto presidencial e parlamentar federal, tendo as mulheres chilenas
participado pela primeira vez das eleições presidenciais em 1952, um
ano depois das argentinas que foram de fato às urnas em 1951.
Alinhado com a Argentina e o Chile no Brasil, a primeira onda do
feminismo também se manifestou mais publicamente por meio da luta
pelo voto (PINTO, 2010, 15), sendo o país pioneiro dentre os três tendo
em 1932, por meio de um decreto do então presidente Getúlio Vargas,
o direito ao voto nas eleições nacionais sido estendido às mulheres, e
“em 1934 as restrições ao pleno exercício do voto feminino foram eliminadas no Código Eleitoral e em 1946, a obrigatoriedade do voto foi
estendida às mulheres” (CASSEB, 2018). Em 2015, em homenagem à
conquista do movimento de mulheres, a então presidenta da República
Dilma Rousseff, instituiu por meio da Lei 13.086/15 o dia 24 de fevereiro
como o Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil.
DITADURAS MILITARES E A SEGUNDA ONDA
Entre as décadas de 1960 e 1990, nos três países, a onda de
democratização e avanço dos movimentos sociais é interrompida por
golpes de Estados que implementam ditaduras militares, norteando-se
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sob discursos da ameaça comunista, da necessidade de freios aos
avanços democrático populares e corrupção. Nesse contexto a segunda onda feminista emerge com bandeiras em defesa da democracia e
em resistência antiditatorial.
No Brasil a ditadura ocorre entre 1964 e 1985, na Argentina, de
1966 a 1973 e no Chile, entre os anos 1973 e 1990. Não será alvo desta
pesquisa os detalhes específicos de cada período, em cada um dos
países, o que é central nesse momento é que a segunda onda, iniciada
em meados do séc. XX, na década de 70 pode ser tomada como um
fenômeno social que marcou uma época (FRASER, 2019, p.25), emergiu em um momento de crise democrática nos países estudados e teve
por bandeiras principais, comuns nos países, a igualdade e a valorização da mulher no mercado de trabalho, o direito ao prazer e contra
a violência sexual, além de um embate contra as ditaduras militares.
Os anos de 1960 e 1970 foram marcados pelas manifestações
dos movimentos feministas latino-americanos, que denunciaram não somente às intervenções repressivas exercidas pelos
regimes militares como também as amarras e imposições de
uma sociedade pensada segundo os critérios do patriarcado,
entendido na época como um sistema de dominação masculina, estruturado tanto nas instituições da vida pública como privada (HIRATA, 2009, p. 175).
Começa a se concretizar nesse período um feminismo internacional, que exige o reconhecimento da importância das contribuições
feministas, mostrando-se que sua dimensão política não possui implicações somente internas, ou seja, não só “entre as próprias teorias
feministas, mas nas teorias política como um todo, que foi obrigada
a rever diversos de seus pressupostos antes tidos como universais”
(SANCHEZ, 2017, p. 1). Diversas críticas internas são feitas também ao
movimento feminista, possibilitando o surgimento de uma pluralidade
de organizações e reivindicações invisibilizadas na primeira onda.
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É possível observar um alinhamento inicial nessas duas primeiras ondas nos três países das teorias feministas com discursos de
modernidade desenvolvimentista, o pensamento moderno parecia
apontar “ao feminismo caminhos possíveis para a emancipação feminina, isto é: a meta política da construção da igualdade e, portanto, do
enfrentamento e da superação da subordinação da mulher na sociedade patriarcal” (MACÊDO, 2011, p. 33). Feministas do Brasil e Argentina,
exiladas em decorrência das ditaduras em seus países, vivenciaram
e tiveram contato com o Chile, enquanto ainda em democracia, bem
como Estados Unidos e países da Europa, e foram centrais nos processos de resistência às ditaduras em seus Estados.
No Brasil, esse período é marcado por reviravoltas e uma história dinâmica. A década de 1960 inicia com uma revolução musical
a partir do movimento Bossa Nova, acompanhado de uma vitória democrática que levou à presidência Jânio Quadros, que no mesmo
ano renunciou levando seu vice João Goulart ao poder a fim de evitar
um golpe de estado.
O ano de 1963 foi de radicalizações: de um lado, a esquerda
partidária, os estudantes e o próprio governo; de outro, os militares, o governo norte-americano e uma classe média assustada. Em 1964, veio o golpe militar, relativamente moderado no
seu início, mas que se tornaria, no mitológico ano de 1968, uma
ditadura militar das mais rigorosas, por meio do Ato Institucional
n. 5 (AI-5), que transformava o Presidente da República em um
ditador (PINTO, 2010, p. 16).
O que houve no Estado brasileiro foi um momento de total repressão, em especial da luta política legal e democrática que jogou
os grupos de esquerda para a clandestinidade e guerrilha. Foi na década de 70, sob regime militar e extremamente limitadas pelas condições ditatoriais que as primeiras manifestações feministas ocorreram
no país. As mulheres tomaram as ruas, atuando contra a censura, a
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favor da cultura e da democracia além de atuarem ativamente junto
aos movimentos de esquerda no país.
Na Argentina, o cenário também se mostrou muito conturbado,
os movimentos feministas da primeira onda haviam se enfraquecido em
especial com os diversos golpes de Estado sofridos pelo país a partir da
década de 1950, porém, com a ditadura militar, a luta feminista retomou
sua centralidade enquanto movimento de resistência democrática.
Nesse período, milhares de pessoas foram torturadas e mortas
e as mães desses desaparecidos protestavam em caminhadas
na Praça de Maio para saber o paradeiro de seus filhos. Elas
formaram uma grande voz para a queda dos militares, pois denunciaram os abusos de direitos humanos cometidos. Até hoje,
essas mulheres se organizam nos movimentos Mães da Praça
de Maio e Avós da Praça de Maio (RUDNITZKI, 2016).
O movimento de mulheres argentinas ficou conhecido como
Madres de la Plaza de Mayo composto majoritariamente pelas mães
de presos e desaparecidos políticos durante o período ditatorial.
A maternidade foi o ponto de união “afirmar-se como mães que buscavam seus filhos desaparecidos correspondia a travar uma luta contra a representação construída pela ditadura: ‘as mães de terroristas’,
de pessoas pertencentes à esquerda armada e de grupos taxados
como subversivos” (PAULA, 2016, p. 6). As Madres de la Plaza de
Mayo surgiram no cenário argentino com as ideias implícitas à maternidade de altruísmo e proteção, em referência a todas a mães de
desaparecidos e vítimas do Estado autoritário.
A Plaza de Mayo, principal praça do centro da cidade de Buenos
Aires, na Argentina, foi central nesse processo de resistência pois a
apropriação desse espaço público central na vida política da capital
em um momento onde se impediam todas as formas de reunião e
manifestação se tornou um dos principais destaques da força desse
movimento. Elas romperam com o discurso estatal de guerrilheiros e
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inimigos, homogeneizaram a condição de filhos para além da identidade militante das vítimas, “nesse sentido, as fraldas e posteriormente
os lenços brancos amarrados na cabeça representavam as Mães da
Praça de Maio, porque era por meio desse objeto que as mães simbolizavam o elo entre elas e seus filhos” (PAULA, 2016, p. 7). Dos lenços
brancos que remetiam as fraldas aos lenços em uma passagem simbólica à juventude, o branco se ligou ao desaparecimento, ausência e
desinformação acerca do destino dos desaparecidos.
Com o tempo veio a formação da consciência de que os desaparecimentos eram uma parte chave do regime ditatorial, o que fez
com que as mães passassem a reivindicar o desmonte do aparato
Estatal repressor e a identificação dos responsáveis pelas violações,
assim o branco no lenço foi ocupado por linhas negras com os nomes
e datas de desaparecimentos dos filhos e o lenço passou a ser uma
identificação daqueles que foram vítimas da ditadura, um símbolo de
memória e de luta por verdade e justiça.
Somente em1973 a realidade ditatorial chegou ao Chile, momento que marcou também o renascimento do movimento feminista
no país, tomando forma na resistência à opressão e violência autoritária do governo de Pinochet.
Diante da crise da democracia, repressão e violação dos direitos humanos e exaltação dos valores patriarcais, as mulheres
se organizam em defesa dos seus direitos e na luta pela democracia, muitas vezes realizando uma dupla militância (no movimento feminista e nos partidos de esquerda), como também
aconteceu no Brasil (WOITOWICZ; PEDRO, 2009, p. 48).
O movimento de mulheres chileno, como no Brasil e Argentina,
retoma sua força e radicalidade em defesa de um ambiente democrático e não violento, progressista e que respeito os ideais dos Direitos Humanos firmados no centro do mundo ocidental, se aproximam dos movimentos de esquerda, novamente as mulheres mães, esposas, filhas
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e familiares de presos e desaparecidos são as primeiras a ocuparem
as ruas fazendo manifestações públicas contra a violência ditatorial
De acordo com informações publicadas 31 na Fempress
(1986, p. 33), em 1983, ano em que os protestos se intensificaram, reuniram-se mais de 11 mil mulheres no maior teatro
de Santiago, em um ato de resistência. Neste mesmo ano,
em 7 de novembro, o governo chileno declarou estado de
sítio, o que significou 10.000 presos políticos em poucos dias
(WOITOWICZ; PEDRO, 2009, p. 48-49).
A capacidade de reunião, organização e resistência massiva do
povo chileno se fez presente nesse período, houve aproximação do
movimento de mulheres com a militância política dos partidos de esquerda, como nos outros dois Estados, marcando o caráter opositor
das manifestações feministas.
O movimento feminista da segunda onda foi intenso, deixou fortes marcas e por isso é “certo que esta vertente do feminismo permanece atuante hoje, mas não é mais a sua única expressão” (RODRIGUEZ,
2017, p. 200), o início dos anos 1980 inicia-se uma queda progressiva
das ditaduras, e o que se vê é novamente um avanço democrático,
capitalista, progressista nos três países.
O FEMINISMO INSTITUCIONALIZADO
DA TERCEIRA ONDA
Os processos de redemocratização permitiram “as feministas
exiladas retornarem aos seus países trazendo em suas bagagens novos textos e leituras, experiências e discussões, arregimentando, dessa forma, os movimentos feministas nacionais e proporcionando uma
grande circulação de conhecimento” (BORGES, 2011, p. 952-953), assim os três países, ao final do século XX veem nascer uma nova onda
feminista em um momento de êxtase pelas vitórias contra as ditaduras
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militares. Esta terceira onda que emerge já na década de 1990 vai se
construir ao discutir os paradigmas estabelecidos pelas ondas anteriores bem como seus limites e exclusões.
Apesar de que, as mulheres negras estadunidenses, como
Beverly Fisher, já na década de 70, começaram a denunciar
a invisibilidade das mulheres negras dentro da pauta de reivindicação do movimento. (...) As críticas trazidas por algumas feministas dessa terceira onda, alavancadas por Judith
Butler, vêm no sentido de mostrar que o discurso universal é
excludente; excludente porque as opressões atingem as mulheres de modos diferentes, seria necessário discutir gênero
com recorte de classe e raça, levar em conta as especificidades das mulheres (RIBEIRO, 2014).
Nesse contexto Ângela Davis já em 1981 (DAVIS, 2013), apontava que as opressões estruturais são indissociáveis, enfatizando a
necessidade de ruptura com os ideais de feminilidade, além de denunciar o racismo interno existente no movimento feminista, ao que somou
uma análise apontada como anti-capitalista, antirracista e anti-sexista
(RIBEIRO, 2016, p. 100), a terceira onda traz em si como central a
ruptura com as universalidades, pois afirma, tentar entender “os problemas das mulheres como comuns a todas, sem levar em conta elementos como raça, classe, renda ou orientação sexual, seria silenciar
a multiplicidade de experiências específicas que compõem a condição
feminina” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 89),
É durante essa terceira onda que se repete, no Brasil, na Argentina e no Chile uma experiência comum, que levará a estruturação de
movimentos dissidentes de mulheres como o de lésbicas, agora em
um processo crítico crescente aos movimentos feministas tradicionais
e homossexuais, isso pois:
[…] como mujeres, las lesbianas no tardan en criticar la misoginia, el funcionamiento patriarcal y los objetivos falocéntricos
del movimiento homosexual, dominado por los hombres (…)
Por otro lado, y en forma más o menos simultánea, como mujeres homosexuales, muchas lesbianas no terminan de sentirse
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plenamente identificadas con el movimiento feminista. (…) se
van dando cuenta de que algunas feministas las perciben como
un cuestionamiento amenazador a su posición heterosexual o
a su lesbianismo ‘de clóset’ (…). Mientras que las lesbianas
luchan por todas las causas de las mujeres, aunque no les
atañen tan directamente (por ejemplo, para la anticoncepción
o la interrupción voluntaria del embarazo), las demás mujeres
se muestran tibias a la hora de luchar por causas lésbicas o
cuestionar la heterosexualidad (FALQUET, 2006, p. 205).
Mesmo a noção de um patriarcado universal e a ideia central que
o acompanha, de um feminismo identitário universal, passou a ser amplamente criticada com o alvorecer da terceira onda, em especial por
seu fracasso em “explicar os mecanismos de opressão de gênero nos
contextos culturais concretos em que ela existe” (BUTLER, 2003, p. 20).
Reflexão central nesse sentido é o aporte fornecido por outro grupo dissidente do feminismo original e oriundo dessa terceira
onda, formado por pensadoras feministas decoloniais, que dentre
suas variações próprias, afirmam a invasão colonial como o processo
pelo qual o patriarcado de alta intensidade se consolida na América
Latina, apontando assim uma colonialidade do gênero e uma tomada
do corpo como território.
A partir de 1492, por la invasión colonial a nuestros territorios,
se han dado relaciones coloniales entre Europa y Abya Yala
(Latinoamérica y Caribe), esto significa entre otras cosas que
en Europa piensan que inventaron las luchas de las mujeres
contra el patriarcado, creen que pueden enseñar al mundo modelos de sociedad y modelos de cómo luchar para conseguirla. Es verdad que la palabra feminismo y la forma cómo se usa
la palabra, vino de Europa como una acumulación política desde la Revolución Francesa en 1789, pelo ellas, las europeas,
no inventaron las luchas de las mujeres del mundo contra el
patriarcado y tampoco Europa es un modelo de sociedad a
seguir (PAREDES; GUZMÁN, 2014, p. 13-14).
A própria América Latina é posta agora como produto originario
da modernidade colonial, parte do sistema mundo por ela estruturado
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como Anibal Quijano (2000) “denominó a la colonialidad del poder y más
tarde María Lugones (2008), desde una propuesta feminista, haciendo
una crítica a Quijano por no considerar la construcción de relaciones de
género heterocentradas y binarias, denominó sistema de género moderno/colonial” (CURIEL, 2014, p. 5). A modernidade colonial eurocentrada capitalista passa a ser problematizada, bem como os procesos
de racialização, genderização e passa a se denunciar que “la lógica de
separación categorial distorsiona los seres y fenómenos sociales que
existen en la intersección, como la violencia contra las mujeres de color”
(LUGONES, 2008, p. 82).
Diante da multiplicação dos debates que emergem com o início
do séc. XXI, oriundo da soma de velhas e novas bandeiras assistimos
a uma crescente e múltipla reivindicação de bandeiras feministas, são
as feministas marxistas, as pós-modernas, as decoloniais, negras, lésbicas, queer ou pós-feministas, e assim a teoria feminista passa a se
caracterizar como “uma corrente profundamente plural e diversificada,
que investiga a organização social tendo como ponto de partida as
desigualdades de gênero” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 7).
Em essência toda teoria feminista se fez assim política e prática,
durante os processos de redemocratização nos três países ingressou
nos quadros estatais emanando dos movimentos de rua, nos feminismos “a teoria é a minha prática. Uma deve existir para interagir dialeticamente com a outra em vez de se criar dicotomias estéreis. A teoria
ajuda na prática e vice-versa” (RIBEIRO, 2014). No Brasil, a restauração
da democracia, especialmente a partir de 1982 fez com que algumas
das principais reivindicações feministas fossem institucionalizadas pelos
governos, o que demandou e tomou para os aparelhos do Estado a participação de quadros e lideranças centrais dos movimentos feministas,
assim, como aponta Mariano (2001, p. 11), a nova fase vem acompanhada de uma incorporação do campo institucional como forma de buscar maior universalidade das mudanças, por meio de reformas estatais.
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O feminismo brasileiro entrou em uma luta institucional pelos
direitos das mulheres, reivindicando políticas públicas e direitos legais
não apenas de igualdade formal, mas de equidade enquanto tratamentos desiguais àqueles construídos socialmente de modo desigual
como modo de atingir justiça social. O tema central passou a ser o fim
da violência contra as mulheres, em especial a violência doméstica e
familiar, e foram criados e institucionalizados inúmeros grupos, coletivos que atuaram como Organizações Não-Governamentais (ONGs),
com recursos financeiros do próprio Estado.
Ainda na última década do século XX, o movimento sofreu,
seguindo uma tendência mais geral, um processo de profissionalização, por meio da criação de Organizações Não-Governamentais (ONGs), focadas, principalmente, na intervenção
junto ao Estado, a fim de aprovar medidas protetoras para as
mulheres e de buscar espaços para a sua maior participação
política (PINTO, 2010, p. 17).
Ainda em um cenário favorável, progressista e de quadros feministas instaurados junto ao aparelho estatal é eleita a primeira presidenta do Brasil, Dilma Vana Rousseff, economista e política brasileira,
filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), para um primeiro mandato
entre 2011 e 2014, como reflexo direto do governo anterior de Luiz
Inácio Lula da Silva, que seria reeleita em 2015.
Já em um momento de baixo apoio popular, em decorrência de
uma crise capitalista econômica global que afetou o Brasil, acompanhada de uma série de escândalos de corrupção que atingiram diretamente a imagem do PT se colocou em curso um golpe de estado,
que levou a um processo de impeachment que a tiraria do governo
em 12 de maio de 2016.
Os movimentos feministas, em diferentes graus, em especial
durante o processo de redemocratização pós-ditadura no Brasil, estiveram participando ativamente da reconstrução do estado, e como
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aponta Biroli (2018, p. 299), o estreitamento das relações com o estado foi ainda maior durante todo o período do PT no governo federal.
Nesse período o Brasil ativa as Conferências de Políticas Públicas para
Mulheres nas esferas municipais, estaduais e nacional, espaço que
privilegiava a comunicação entre movimento de mulheres e governo,
se instituiu também a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres
(SPM) e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR) que tiveram até 2016 status de Ministério Federal.
A terceira onda feminista no Chile, foi marcada também pelo
fim da ditadura militar, lá mais tardia, no ano de 1990, percebe de
modo similar ao brasileiro a entrada do movimento nas estruturas
no novo estado que se busca consolidar, assim nos anos iniciais
da democracia se aponta que houve um enfraquecimento e diversas controvérsias no movimento feminista chileno (ROBERTS, 2007,
p. 21) que viu uma diminuição radical de seu movimento de mulheres
até então organizado e centralizado.
[...] diante do processo de democratização do país, no período
pós-ditadura, o que se verifica – à semelhança de outros cenários latino-americanos – é a desarticulação dos movimentos
sociais. Este processo, denominado de ‘silêncio feminista’, teve
a desmobilização e a institucionalização como principais características (WOITOWICZ; PEDRO, 2009, p. 51).
O que se viu no Chile, foi a manutenção e legitimação por parte dos governos democráticos d o modelo econômico e institucional
herdado do regime ditatorial, reformado sim, porém, com forte característica neoliberal, assim, de modo ainda mais profundo que no
Brasileiro que somente iniciou um processo de implementações de
medidas neoliberais após o governo de Fernando Henrique Cardoso,
o desmantelamento estatal foi muito mais profundo, o mercado passou
a ser o principal elemento de integração social e o movimento feminista
se partiu em duas correntes.
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Essa ruptura entre as mulheres que compreenderam o Estado
como meio para se atingir a emancipação feminina e o alcance das
reivindicações feministas, e aquelas que não compreendiam essa
possibilidade é também característica comum nos três países dessa
terceira onda, e ainda que inicialmente se veja conquistas e avanços
progressistas oriundos diretamente da articulação dos movimentos de
mulheres com os aparelhos estatais, aos poucos a incapacidade e a
tensão inerente as reivindicações radicais dos movimentos feministas
tornam perceptível a incapacidade estatal de respostas.
Nesse período o Chile vê eleita sua primeira presidenta, com
primeiro mandato entre 2006 e 2011, pelo Partido Socialista do Chile,
Michelle Bachelet Jeria, médica e política, que foi reeleita para o cargo
nos anos de 2014 a 2018 e ao longo dos últimos dois mandatos eletivos se alternou na presidência com o candidato neoliberal de direita
Sebastián Piñera.
O governo de Bachelet possuiu aproximações com o governo
de Dilma e do PT, sendo ambos apontados como de centro esquerda,
com políticas de valorização da mulher e superação da desigualdade
social e justiça social, bem como maior aproximação com o movimento
feminista e institucionalização de quadros militantes.
Na Argentina, três anos após o término da ditadura militar, em
1986 começam, alinhados aos pensamentos dessa terceira onda, os
Encontros Nacionais de Mulheres, que passaram a ser realizados desde então anualmente, o que marca, ao contrário de Brasil e Chile um
fortalecimento do movimento autônomo de mulheres nesse período.
[…] en 1986 empezaron los encuentros en nuestro país y desde
ahí no pararon. Cada año son más masivos y exitosos. En el
primero éramos cerca de 1000 mujeres, en el 33° Encuentro Nacional de Mujeres en Trelew participamos 65.000. La modalidad
del Encuentro Nacional de Mujeres es única en el mundo, y eso
permite que cada año nos sumemos de a miles: es autoconvocado, horizontal, federal, autofinanciado, plural y profundamente democrático (ENCUENTRODEMUJERES, 2019).
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Desde o início dos Encontros Nacionais de Mulheres uma reivindicação central do movimento feminista, enquanto dívida da democracia, foi a reivindicação do direito ao aborto legal, seguro e gratuito,
ainda que temas como a violência contra a mulher, pressão para aprovação de leis sobre feminicídio e de violência contra lésbicas também
integrem as reivindicações do movimento.
la Campaña por el Derecho al Aborto Legal, Seguro y Gratuito:
educación sexual para decidir, anticonceptivos para no abortar, aborto legal para no morir. Desde entonces, en las masivas,
largas e históricas marchas de los Encuentros prevalecen sus
banderas y pañuelitos verdes, por encima de cualquier otro cartel, bandera o pañuelo y son sus consignas las más coreadas
(MARCÓ, 2018, p. 154).
O movimento de mulheres na Argentina mudou ao longo dos
anos, mas o símbolo, o laço herdado das Madres de la Plaza de
Mayo se manteve, bem como sua organização e articulação a cada
ano mais massiva. Em comum com Brasil e Chile, as argentinas têm
a eleição de sua primeira presidenta para dois mandatos, Cristina
Kirchner, uma política e advogada que foi governante do país entre
2007 e 2011 e de 2011 a 2015.
Ainda que a democracia se veja em progressivo fortalecimento,
marcado pela aproximação com os movimentos sociais, no caso aqui
estudado em especial com o movimento feminista, contando inclusive com a entrada nos governos das primeiras mulheres ao cargo de
presidência, inicialmente no Chile com Bachelet em 2006, seguida de
Kirchner na Argentina em 2007 e Rousseff no Brasil em 2011, o que
assistimos nos três países é que novamente as ondas de redemocratização e fortalecimento dos direitos humanos são intercaladas por
ondas reversas e autoritárias.
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QUARTA ONDA, ENFRENTAMENTO
AO AVANÇO NEOCONSERVADOR
E NEOLIBERAL
Já no final do século XX e início do XXI, as teóricas feministas denunciavam o apagamento e a incapacidade do estado liberal, em especial com sua pretensa neutralidade frente às desigualdades criadas
pelos dispositivos sociais, iniciavam o que se tornaria uma verdadeira
revolução, com a saída do poder dos governos de centro-esquerda, e
sua substituição nos três países por governantes neoliberais de direita.
Reivindicações por reconhecimento das diferenças compõem o
cenário contemporâneo multiculturalista de luta por interesses de
extração identitária, ora em defesa da diferença, ora em combate
à desigualdade. Nesse cenário o feminismo é visto como o precursor na defesa do direito à diferença. (MARIANO, 2001, p. 18)
Esse século viu nascer uma quarta onda feminista, iniciada com
a segunda década do século XXI, e centralmente marcada por marchas populares com milhões de pessoas que tomam as ruas, um renovado movimento feminista agora com bandeiras que transcendem
fronteiras, de alcance global, e enfrenta diretamente o avanço neoconservador, neoliberal e capitalista.
Uma quarta onda feminista, iniciada com a Marcha das Vadias
somada à potente Marcha das Mulheres Negras e Primavera Feminista, emergiu e cresceu num cenário de acirramento das posições fundamentalistas contrárias à autonomia das mulheres,
do debate sobre interseccionalidade e trazendo novas estratégias de resistência através das tecnologias virtuais e retomada
das ruas (SCHUMAHER, 2018, p. 21-22).
No Brasil a Marcha das Vadias é apontada como ponto de referência na eclosão dessa quarta onda. O movimento teve sua origem
na SlutWalk, ato se iniciou na cidade canadense de Toronto, em janeiro
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Marxismo.
de 2011, como resposta a um discurso proferido pelo policial Michael
Sanguinette na Universidade de Toronto. Este afirmou então que para
não serem estupradas as mulheres não deveriam se vestir com sluts, o
que no Brasil se traduziu para vadias, e nos países de idioma espanhol
para puercas e mais tarde putas.
Tal afirmação levou cerca de três mil pessoas às ruas de Toronto, em uma marcha sem precedentes pela desculpabilização da mulher vítima de violência sexual. Assim, a SlutWalk se
disseminou por diversos países, sendo realizada nos Estados
Unidos, Reino Unido, Austrália, Holanda, Suécia, Israel, Índia,
México, Honduras, Argentina, Colômbia, Costa Rica, Peru,
Equador, Uruguai, Nicarágua, Panamá, em Portugal e no Brasil
(BOENAVIDES, 2019, p. 2).
É nesse momento histórico de levante e ocupação das ruas e
praças públicas, com marchas feministas de massa e com grande capacidade de aglutinação de pessoas, bandeiras e reivindicações democráticas e de defesa aos direitos humanos que a chamada quarta
onda feminista internacional convoca e possibilita a construção das
marchas internacionais de mulheres.
Os movimentos contemporâneos se internacionalizam, se retroalimentam, fortalecem e em alguma medida dialogam, El compromiso
político con el cambio social es uno de los principales rasgos constitutivos de las epistemologías feministas y también una de las características
principales que las distinguen de otros tipos de teorías del conocimiento
(CÁCERES; MAYO, 2005, p. 112-113), são levadas às ruas com essas
manifestações milhões de pessoas o que torna possível apontar o feminismo contemporâneo como uma fronteira democrática revolucionária.
Nesse cenário “as mulheres têm-se posicionado na linha de
frente das resistências para confrontar violentas e contundentes ameaças. Em vários países da América Latina, como Nicarágua, Argentina,
Brasil, Chile, Colômbia, México e Uruguai” (GONZALEZ, 2019, p. 126),
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137
Marxismo.
os movimentos feministas tomaram as ruas, uniram pautas, e vêm
mostrando o caminho da resistência democrática, reforçando que:
As manifestações são uma das poucas maneiras de superar
o poder da polícia, especialmente quando essas assembleias
se tornam, ao mesmo tempo, muito grandes e muito móveis,
muito condensadas e muito difusas para serem contidas pelo
poder policial e quando têm os recursos para regenerar seu
próprio local (BUTLER, 2018, p.84).
Na Argentina, no Brasil e no Chile esses movimentos de resistência se consolidaram de modo contundente, dialogando em um
cenário globalizado de pautas e militâncias político feministas, inspiraram-se e se retroalimentaram, aproximando-se e distanciando-se
na medida de suas realidades locais, contribuindo para a construção
de um espaço de micro e macro resistências ao sistema mundo colonial, patriarcal e capitalista.
No Chile, as marchas que foram nomeadas Onda Lilás ou Maio
Feminista tomaram as ruas em maio e julho de 2018 e entraram para a
lista de maiores movimentos da história do país. Tudo se iniciou quando, em mais de vinte universidades e escolas, as estudantes ocuparam
massivamente os prédios públicos e tomam as ruas para protestar contra práticas machistas, abusos e assédio já caracterizados como parte intrínseca do ambiente estudantil. Elas reivindicavam principalmente
uma educação não-sexista, além de retomarem as pautas históricas do
movimento como a igualdade. O movimento levou às ruas em 08 de
maio de 2019 aproximadamente 800 mil mulheres, que se mobilizaram
em todo país, registrando a maior mobilização feminista até então.
Na Argentina a Maré Verde, marcha que ocorreu em 04 de junho
de 2018, sem uma estimativa oficial de presentes, levou milhões de pessoas as ruas da Avenida de Mayo fazendo com que a capital Buenos
Aires, entre em convulsão, movimentando o Congresso Nacional argentino frente a pressão de milhões de mulheres e apoiadores com lenços
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Marxismo.
verdes, que reivindicam e exigem o direito ao abordo legal, seguro e
gratuito, o movimento seguiu ganhando força e a reformulação da lei
nacional argentina finalmente foi aprovada em 30 de dezembro de 2020.
No Brasil o movimento de maior força dessa quarta onda é a
#elenão que toma as ruas em 29 de setembro de 2018 onde, também
sem estimativas oficiais, uma vez que aparentemente não interessa
aos Estados divulgar a dimensão exata dos levantes populares feministas que tomam suas ruas, cerca de 114 cidades se mobilizaram com
bandeiras em defesa do regime democrático e dos Direitos Humanos
contra a eleição do então candidato Jair Bolsonaro com seu discurso
político eleitoral conservador e de extrema direita. O movimento que
perdeu folego ao final do período eleitoral com a eleição do presidenciável, se reinventou em 2019 fazendo enfrentamento direto ao regime
político estruturado a partir daí, adotando especialmente pautas em
defesa da educação e resistência democrática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As pautas, teorias e práticas feministas seguem em construção,
não são fixas, tão pouco consolidadas, enfrentam críticas internas e
externas, dialogam e interagem local e globalmente se fortalecendo
com os movimentos de mulheres e corpos feminilizados, bem como
aliados. É assim que vem enfrentando e rompendo com dicotomias
e hierarquias sociais históricas como o público e o privado, já não se
satisfazem com categorias universalizantes e dispositivos de controle
que disciplinam corpos e seus movimentos.
Em seus choques e encontros, entre bandeiras clássicas e contemporâneas, segue crítico a realidade desigual, inconformado com a
manutenção do status quo que mantem certas vidas em graus maiores
de precariedade e beneficia outras, convocando e aliando diferentes
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Marxismo.
pautas, reunindo corpos e corporeidades com gritos como ni una menos; o feminismo nunca matou ninguém, o machismo mata todos os
dias; América Latina va a ser toda feminista; lugar de mulher é onde ela
quiser; somos el grito de las que ya no estan; lute como uma garota.
Até aqui acompanhamos três ondas feministas, e parte das convulsões sociais que foram capazes de cria revolucionando o mundo conhecido até então, iniciamos ainda a descrição de um momento histórico que vivenciamos, assistimos a imersão de uma quarta onda ainda
mais mobilizada, resiliente, inventiva, cheia de cores, reivindicações e
que se amplia na velocidade da internet e suas tecnologias, seguimos
assim, convulsionando, lutando e construindo uma realidade feminista.
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sumário
142
8
Sylvia Iasulaitis
Gustavo Guimarães
O conceito de gênero
no pensamento
de Heleieth Saffioti
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.8
Marxismo.
Defrontada com os problemas e debates envolvendo o conceito de gênero e refletindo sobre seu uso no começo do século XXI,
Heleieth Saffioti responde prontamente: Como isolar o conceito de
gênero? Não se deve isolá-lo de seu contexto econômico, social e
político (BECKER, MENDES, 2011, p. 154). Essa frase, dita em uma
entrevista realizada em julho de 2004, é fortemente indicativa em relação às preocupações e direções teóricas tomadas pela intelectual
feminista ao longo de sua rica e densa trajetória científica, orientadas
por seu amplo acúmulo cultural e por sua perspectiva marxista. Essa
pequena pergunta e a afirmação subsequente revelam, de antemão,
sua sensibilidade à concretude das relações de gênero e à imbricação delas com a totalidade em que se manifestam.
A trajetória de Saffioti na investigação sobre gênero se inicia em
sua tese de livre-docência, publicada pela primeira vez em 1969, onde
essa categoria ainda não aparece completa, mas ainda como fator sexo
ou elaboração social do fator natural sexo (SAFFIOTI, 2013). Nesta obra,
Saffioti busca identificar as relações entre o ‘sexo’, identificado neste
livro como um fator natural, e as formas sociais com o qual ele se depara quando transposto à sociedade e moldado por ela de acordo com
as distintas relações sociais, com o modo de produção e com a cultura. Essas relações constituem a elaboração social do ‘fator sexo’, que
assume diferentes feições de acordo com a fase de desenvolvimento
do tipo estrutural de sociedade (SAFFIOTI, 2013, p. 60). Em A mulher
na sociedade de classes, Saffioti analisa a posição das mulheres na
sociedade de classes como um todo, na sociedade “competitiva” (capitalista) especificamente e, ainda, como as diferentes formações sociais capitalistas – opondo, fundamentalmente, o capitalismo avançado
dos países centrais e o capitalismo dependente da periferia (Brasil) –,
mesmo reunindo características comuns no que diz respeito à determinação social e econômica do gênero como, por exemplo, o alijamento
das mulheres da produção, rumo a esfera doméstica; ou sua inserção
em certos ramos específicos do trabalho produtivo de forma marginal
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Marxismo.
e precária, apresentavam peculiaridades próprias decorrentes de seu
diferente processo histórico; tipo específico de desenvolvimento capitalista e posição particular na Divisão Internacional do Trabalho (GONÇALVES, 2011, p. 122; GONÇALVES, 2013; SAFFIOTI, 2013).
Já nessa publicação, Saffioti reconhece a complementaridade
de classe, raça e dependência para criar a realidade das relações de
gênero, seu funcionamento concreto e efetivo. No quesito classe, está
evidente a centralidade que assume para ela a forma como o capitalismo transforma a posição das mulheres. No concernente à raça, por outro lado, também há reflexões interessantes, sobretudo em sua análise
da experiência feminina brasileira no período colonial, onde compreende apuradamente os diferentes processos de ‘generificação’ envolvidos na constituição dos papéis sociais da mulher branca – senhora,
delicada, comandante do trabalho na casa-branca – e da mulher negra
– tratada com igual brutalidade em comparação ao homem negro na
atribuição e realização do trabalho nas lavouras e afins, entretanto especialmente visada para o sexo e a reprodução (ibid., pp. 230-265) –, a
exemplo de como refletirão posteriormente, em termos similares, Lélia
Gonzalez (1984) e Angela Davis (2016). Por fim, tanto durante sua tese
de livre-docência quanto em obras posteriores, como Emprego doméstico e capitalismo, Saffioti dá ao caráter dependente da economia
e sociedade brasileiras o status de máxima importância na teorização
do gênero, é o ponto inicial para a compreensão dos papéis sociais
que homens e mulheres vêm desempenhando na sociedade brasileira
desde os seus primórdios (SAFFIOTI, 1979, p.159).
Embora o termo ‘gênero’ não seja utilizado nestas primeiras
obras, é da opinião da própria autora que grande parte das determinações centrais do que seria entendido por gênero posteriormente, na
teoria feminista em geral e em suas próprias elaborações futuras, já estavam presentes desde o início de sua produção teórica sobre o tema,
provavelmente por influência de autoras como Simone de Beavouir e
Betty Friedan (MÉNDEZ, 2008, p. 282).
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Marxismo.
Nesse ponto, é preciso considerar o contexto histórico em que
se deu o início da produção científica de Heleieth Saffioti. De acordo
com ela, em 1967, quando concluiu sua tese de livre-docência, tanto a
publicação em território brasileiro de literatura estrangeira em gênero,
quanto a elaboração nacional sobre esta temática e a teorização específica sobre as relações de gênero e a condição feminina no Brasil
eram escassas (GONÇALVES, BRANCO, 2011, pp. 73-75; MÉNDEZ,
2010, pp. 284-285). O conceito de gênero estava longe de estar a seu
alcance: ainda não tinha sido difundido na teoria social em geral, nem
na teoria social brasileira, popularizando-se e ganhando importância
nesse meio apenas nas décadas seguintes (década de 1970, no caso
dos EUA e Europa; anos 1980 e 1990, no caso do Brasil) (SAFFIOTI,
2005, pp. 43-45; HARAWAY, 2015). Considerando tal quadro histórico,
seu amplo conhecimento e sua habilidade teórica na questão, explica-se como Heleieth Saffioti, portanto, logo se tornaria reconhecida nacionalmente e internacionalmente, entre outros fatores, por seu pioneirismo nos estudos sobre a condição da mulher e acerca das relações
de gênero no Brasil (GONÇALVES, 2013; MODDA, 2019; LOVATTO,
2018), elaborando com rigor teórico e metodológico um material que
posteriormente seria reivindicado como parte dos primórdios da sistematização de uma teoria feminista brasileira.
Mais tarde em sua carreira intelectual, a socióloga passará a
utilizar o conceito de gênero explícita e nominalmente. Em seu livro de
2004, Gênero, Patriarcado, Violência (2015), Saffioti coloca em relação
dialética as categorias de sexo, gênero e patriarcado. Em um debate com Joan Scott, Saffioti explicita gênero enquanto uma categoria
histórica, efetivamente existente na materialidade histórica, para além
de meramente analítica (SAFFIOTI, 2015, p. 45; p. 111), identificada,
em termos genéricos, como a construção social do masculino e do
feminino, uma gramática sexual que regula a totalidade das relações
humanas de dada sociedade (ibid.), portanto, os papéis sociais que
os indivíduos desempenharão em sociedade e como os mesmos
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Marxismo.
estabelecerão as relações sociais (SILVA, 2019, pp. 18-19). Essa categorização de gênero é semelhante à feita pela autora em uma obra
anterior, O poder do macho, onde a identidade social de cada sexo
é compreendida enquanto atribuída de acordo com os papéis que a
sociedade espera ver cumpridos por parte de cada ‘sexo’ – os limites
de atuação, de sua existência (SAFFIOTI, 1987, pp. 5-20). Outro aspecto fundamental da compreensão de Saffioti em relação ao gênero,
tematizada com especial brilhantismo em O poder..., é o caráter relacional, mutuamente determinante dos ‘sexos’. Criticando a ideia de
que a opressão da mulher é fruto somente de preconceitos milenares
e a-históricos contra a mulher – da ignorância, de preceitos falsos e
mentirosos –, Saffioti ressalta que a opressão feminina e as variadas
ideias, concepções e práticas que a sustentam servem a determinados
interesses, são demasiadamente úteis para a classe dominante, e se
reproduzem socialmente, em última instância, por sua conexão com a
sustentação do poder econômico, social e político desta classe – de
forma que não há como desmantelá-las sem atacar os interesses que
garantem sua manutenção. Dessa forma, o processo de formação e
manutenção da opressão feminina é um processo de construção social da inferioridade – não fruto apenas do desconhecimento – concomitante com a construção social da superioridade a serviço do ‘patriarcado-racismo-capitalismo’. A supremacia masculina surge da e com a
subordinação feminina, e vice-versa, dialeticamente (ibid., pp. 23-30).
Por outro lado, avançando teoricamente em relação a obras
anteriores, tanto em O poder... quanto em Gênero, Saffioti recusa a
oposição estática entre sexo (natural) e gênero (social). No primeiro,
introduz o tema da opressão debatendo com o determinismo biológico e demonstrando os condicionantes sociais da vida e comportamento humanos, e até da natureza: [...] Como falar em uma “natureza
feminina” ou em uma “natureza masculina” se a sociedade condiciona
inclusive o metabolismo das pessoas? (SAFFIOTI, 1987, p. 11). Mas
o raciocínio é apresentado em sua forma plena no último, Gênero,
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Marxismo.
Patriarcado, Violência. Como aponta Nogueira (2015), inspirada na
ontologia do ser social de Lukács, a socióloga sustenta tanto o sexo
como socialmente determinado; quanto o gênero como uma categoria ontológica, que se insere ao mesmo tempo na história, e à medida
que não está separada do sexo, também está presente na natureza
(ibid.). A ideia central advém da unidade entre ser inorgânico, ser
orgânico e ser social na constituição do ser humano: conforme recompõe Lukács, o desenvolvimento do ser social de acordo com o
avanço do trabalho, da consciência e das relações sociais sobrepõe
as determinações sociais às determinações biológicas e naturais na
vida humana; entretanto, as determinações biológico-naturais nunca desapareceram ou se desvanecem, apenas ocupam outro papel.
No mesmo raciocínio, sendo o ser formado no intercâmbio entre sujeito consciente e natureza – o trabalho –, a natureza também se torna,
com a progressão da atividade humana e do ser social, humanizada
(SAFFIOTI, 2005; LUKÁCS, 1979). Aqui, ela também é influenciada
por Judith Butler e por sua crítica da dicotomia gênero-sexo em Problemas de gênero (2016), e está abertamente negando a concepção
de gênero e sexo defendida por Gayle Rubin em seu famoso ensaio
O tráfico de mulheres: notas para uma economia política do sexo ([1975]
1993), concepção criticada por Saffioti por reproduzir uma cisão dual
e rígida entre natureza e cultura (SAFFIOTI, 2015). Por conseguinte,
como a categoria de gênero – já no contexto intelectual do feminismo de terceira onda – vinha a significar um conjunto de relações não
necessariamente hierárquicas, e era entendido como aplicável a uma
série de sociedades distintas, mesmo pré-capitalistas ou não-ocidentais; Saffioti enfatiza a necessidade do conceito de patriarcado, como
descritivo de um caso específico das relações de gênero, fundamentado sobretudo na opressão explícita das mulheres pelos homens,
ligado ao advento da propriedade privada (ibid., p. 119).
Mas mesmo a especificidade das relações de gênero materializado no patriarcado também não estava isenta de historicização.
A categoria de patriarcado em Saffioti não é compreendida da mesma
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Marxismo.
forma como no feminismo de segunda onda, especialmente o feminismo radical, onde ela comparecia como uma estrutura a-histórica diretamente produzida por uma realidade biológica, capaz de explicar a situação das mulheres em qualquer sociedade conhecida e fonte de todas
as demais opressões sociais (cf. FIRESTONE, 1976, pp. 11-22; p. 44;
pp. 87-89; p. 128; pp. 216-234; MILLET, 1970). O patriarcado também
não é, para Saffioti, um sistema econômico autônomo. Modda (2019)
traça o desenvolvimento do conceito de patriarcado em sua obra e
encontra a mais completa elaboração desse conceito em Gênero, Patriarcado, Violência. Se desde A mulher... está presente a necessária
conexão entre patriarcado, racismo e capitalismo, e, portanto, a ligação
do patriarcado a formas sociohistóricas específicas, particulares e transitórias; em O poder... esse entendimento é cristalizado: o patriarcado,
o racismo e o capitalismo, longe de serem estruturas desconexas, separadas e auto-constituídas, estão completamente fundidos.
Na realidade concreta, eles [patriarcado, racismo e capitalismo] são inseparáveis, pois se transformaram, através deste
processo simbiótico, em um único sistema de dominação-exploração, aqui denominado patriarcado-racismo-capitalismo
(SAFFIOTI, 1987, pp. 60).
Saffioti reforça que é impossível isolar qualquer um dos três sistemas de exploração-dominação na responsabilização pelo o que as
mulheres sofrem cotidianamente. A unidade entre eles, porém, não é
harmônica, mas contraditória (ibid.). Para as classes dominadas, não
haveria nenhuma vantagem definitiva na preservação do racismo-capitalismo-patriarcado, e seu enfrentamento só poderia se dar de forma conjunta e unitária: Estes três sistemas de dominação-exploração
fundiram-se de tal maneira, que será impossível transformar um deles,
deixando intactos os demais (ibid., 67).
Em Gênero, Patriarcado, Violência, Heleith Saffioti recorre à metáfora do nó para sistematizar sua compreensão entre a relação entre capitalismo, racismo e patriarcado (cf. MOTTA, 2018), em uma teorização
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Marxismo.
madura que apreende de forma mais abrangente e complexa a concretude da manifestação das relações de gênero:
O nó formado por estas três contradições apresenta uma qualidade distinta das determinações que o integram. Não se trata
de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber
a realidade compósita e nova que resulta dessa fusão [...].
Uma pessoa não é discriminada por ser mulher, trabalhadora
e negra. Efetivamente, uma mulher não é duplamente discriminada, porque, além de mulher, é ainda uma trabalhadora
assalariada. Ou, ainda, não é triplamente discriminada. Não se
trata de variáveis, mas sim de determinações, de qualidades,
que tornam a situação destas mulheres muito mais complexa
(SAFFIOTI, 2015, pp. 122-3).
Nesse sentido, a relação entre gênero, raça e classe não é uma
relação completamente contingente, de estruturas autônomas capazes
de reger isoladamente diferentes indivíduos e se encontrar ocasionalmente para determinar a conduta de alguns indivíduos, somando-se.
O que Saffioti parece estar vislumbrando é uma perspectiva de totalidade no entendimento das opressões e exploração, que permite apreender a realidade efetiva da atual sociedade capitalista sem isolar fenômenos específicos de sua relação com o todo, de sua co-constituição face
às demais relações sociais – afinal, como nos ensina Marx, os objetos
e os sujeitos são síntese de múltiplas determinações (MARX, 2008).
Na década seguinte, outros pesquisadores irão ainda além de gênero,
raça e classe, para incluir nessa unidade também a particularidade da dependência ou capitalismo dependente, inspirados em Saffioti (cf. COSTA,
NOGUEIRA, 2019; MACHADO GOUVÊA, MASTROPAOLO, 2019).
O tema da unidade entre capitalismo e patriarcado fora o centro
do debate do feminismo socialista no final da década de 70, e Heleieth
Saffioti cita parte dessa discussão em seus últimos textos, sobretudo as
contribuições de Heidi Hartmann (1979) e Iris Young (1981). Hartmann
propunha uma separação definitiva entre feminismo e marxismo, onde
o primeiro seria utilizado para compreender e lutar contra o patriarcado
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Marxismo.
enquanto sistema autônomo, e o segundo contra o capitalismo. Young
questionou essa cisão, criticando as teses de Hartmann incisivamente
e conclamando por uma teoria unitária entre patriarcado e capitalismo,
centrada na divisão generificada do trabalho. Esta ‘teoria unitária’ apareceu, de forma definitiva, apenas em 1983, com o monumental Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory (2013) de
Lise Vogel. Nesta rica obra, Vogel revisa a tradição marxista em busca
de compreensões materialistas históricas a respeito da opressão de
gênero e, finalmente, rejeita as contribuições existentes até o momento
– embora reconhecendo seu valor – como insuficientes para apreender
a base material da opressão das mulheres sob o capitalismo. Vogel,
retornando cuidadosamente ao Capital de Marx, a encontrará no papel do trabalho não-pago e não-mercantilizado das mulheres para a
reprodução da força de trabalho, que permite a apropriação de uma
quantia ainda superior de valor por parte dos capitalistas no processo de produção. Dessa unidade inseparável entre a (re)produção da
força de trabalho e a produção das demais mercadorias no modo de
produção de capitalista, Vogel extrairá uma categorização rica do capitalismo enquanto uma totalidade articulada, contraditória e complexa
de relações sociais e descartará as teorias de “dois sistemas” ou “três
sistemas” para analisar a opressão das mulheres: há um sistema, e o
combate às relações opressivas de gênero é inseparável do combate as relações opressivas de classe (VOGEL, 2013; ARRUZZA, 2015).
Essa abordagem posteriormente gerará todo um novo campo teórico
no feminismo-marxista, conhecido como Teoria da Reprodução Social,
popularizada na década de 2010 (cf. BHATTACHARYA, 2017; RUAS,
2019). Embora Saffioti nunca tenha conhecido tal abordagem de fato,
podemos perceber facilmente sua proximidade com ela em vários pontos, e sua contribuição fundamental e, evidentemente, pioneira, para
o feminismo-marxista brasileiro e mundial no que diz respeito a uma
reflexão proto-unitária entre capitalismo, racismo e patriarcado, capaz
de superar tanto a cisão rígida entre as opressões/explorações quanto
o modelo de conexão acidental e ocasional entre elas.
sumário
151
Marxismo.
É de especial relevância deter-nos sobre o que Saffioti identificava, sobretudo ao fim de sua vida e trajetória teórica, como a incompletude do conceito de gênero para a construção de uma análise
feminista robusta e crítica, se utilizado isoladamente. Embora indubitavelmente suas formulações teóricas tenham contribuído sobremaneira
com a conceitualização de gênero enquanto categoria ontológica, a
autora enfatizava a importância de que tal conceito não substituísse
o de patriarcado, destacando a importância da indissociabilidade de
ambos. Para Saffioti, o conceito de gênero é extremamente útil, devido
à sua amplitude histórica, temporal, societal, cuja característica abrangente abarca a totalidade histórica das sociedades conhecidas, o que
demarca sua principal diferença com o conceito de patriarcado, que
se aplica exclusivamente a uma fase histórica e a certos tipos societais
particulares, nos quais se conecta ao advento da propriedade privada.
Não obstante, para a autora, é justamente o conceito de patriarcado
que explicita o aspecto central de dominação e exploração do sistema
capitalista sendo, portanto, indispensável para demonstrar que a base
material da desigualdade entre homens e mulheres não foi solapada
(SAFFIOTI, 2015). Tal concepção nos leva a outro aspecto distintivo da
teorização de gênero por Saffioti, cuja análise das relações de gênero não pode prescindir da associação da tríade das subestruturas de
poder historicamente constituídas na estrutura global de poder: gênero, raça/etnia e classe social, ou seja, de que patriarcado, racismo e capitalismo estão imbricados. A autora destaca que análises específicas
de gênero são importantes e que a separação da tríade mencionada
para fins analíticos, na esfera da abstração, por si só, não representa
grandes prejuízos científicos e políticos e sim a ausência da síntese
que recomponha a totalidade, a partir do posicionamento da contradição de gênero em conjunto com as demais contradições sociais de
um sistema, característica elementar do método materialista histórico-dialético que marca o pensamento da autora (ibid.).
sumário
152
Marxismo.
Finalmente, outra peculiaridade do conceito de gênero em Saffioti advém da identificação do nexo co-constitutivo entre racismo e
sexismo, a partir da qual gênero não consiste unicamente uma construção social desencarnada, mas também é imanente a um processo de corporificação, ou seja, o corpo da mulher também participa
deste constructo, seja pela função de reprodução biológica, de objeto sexual e/ou de força de trabalho, cuja evidência empírica seria o
tratamento distinto dispensado a homens e a mulheres durante a escravidão colonial, já que aos homens escravizados se atribuía exclusivamente a esfera da produção, enquanto as mulheres escravizadas,
além de constituírem-se enquanto força de trabalho agrícola/manufatureira, eram submetidas ao atendimento de outros dois propósitos:
serem reprodutoras e “prestadoras” de serviços sexuais (SAFFIOTI,
2005; 2015; 2013; 1994). Destarte, o arcabouço teórico de Saffioti é
particularmente útil nos contextos de capitalismo dependente e periférico, para levar a efeito análises consistentes da ordem patriarcal
de gênero em sociedades forjadas em processos de colonização de
exploração e contínua subordinação aos países imperialistas.
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sumário
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9
Alan Caldas
Nikolas Pallisser Silva
As funções sociais
da democracia racial
nos anos 1940 e 1950:
elites senhoriais, Gilberto Freyre
e Guerreiro Ramos
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.9
Marxismo.
INTRODUÇÃO
Este texto problematiza alguns dos significados e das funções
sociais que o conceito de democracia racial assumiu na primeira metade do século XX em três grupos sociais descritos mais adiante. Para
isso, utilizaremos o instrumento metodológico da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1986). Desse modo, quando nos referirmos à democracia racial, pensamos num determinado conceito que
está em relação tanto a uma época, já que essa noção era parte de
uma visão de mundo existente nos anos 1940 e 1950, quanto a grupos
e classes sociais particulares, uma vez que a ideia de democracia racial, apesar de ter perpassado a visão de mundo de diversos grupos,
o fazia de modo diferencial, alterando seu significando de acordo com
a posição social de cada um desses grupos.
Vários fatores condicionaram a sedimentação da democracia
racial como um conceito comum em certos setores das elites agrárias,
no meio intelectual acadêmico e no meio dos intelectuais ativistas negros e negras. Antonio Sergio Alfredo Guimarães (2001) afirmou que a
vitória dos Aliados na II Guerra Mundial deu centralidade às ideias de
democracia, povo e nação e que essas, por sua vez, favoreceram a formação de um ideário mais ou menos dissonante acerca do que seria
uma democracia racial no Brasil. Segundo este intérprete, outro fator
que contribuiu para a formação desse ideário foi a crítica do paradigma
biológico das raças como forma de explicação das diferenças humanas e a emergência do paradigma da cultura13. Todos esses elementos
contribuíram para que a noção de democracia racial se constituísse em
aspecto central da visão de mundo do período.
13 O paradigma da cultura interessava tanto aos intelectuais acadêmicos preocupados em estar
atualizados quanto aos desenvolvimentos das ciências sociais nos Estados Unidos e na Europa, quanto aos movimentos negros, na medida em que as diferenças humanas deixavam
de ser essencializadas e passavam a ser pensadas como produto da história e da cultura.
sumário
157
Marxismo.
Para compreender o funcionamento das ideias em meio às suas
conexões sociais, objetivo da sociologia do conhecimento, Mannheim
afirmou a necessidade de compreender o campo intelectual por analogia aos campos políticos e econômicos, onde acontecem fenômenos
de competição, confronto, inovação, apropriação, etc. (MANNHEIM,
1986). Partindo dessa perspectiva, entenderemos a democracia racial
como um conceito perpassado pelas disputas envolvendo três grupos
sociais: uma parcela das elites políticas que afirmavam a existência
de uma democracia racial no Brasil como forma de evitar conflitos e
revoltas e de preservar seus interesses de casta vindos do escravismo; os cientistas acadêmicos, representados por Gilberto Freyre, que
possuíam um projeto tradicionalista de modernização dentro do qual
a democracia racial era um dos componentes principais; e os intelectuais militantes representados por Guerreiro Ramos e pelo Teatro
Experimental do Negro (TEN), em que a democracia racial estava envolvida num projeto racional de transformação da sociedade em vista
da melhoria das condições de vida da população negra.
Partindo de Florestan Fernandes (2008), argumentaremos que
o conceito de democracia racial surgiu, provavelmente, no seio das
elites da I República como uma ideologia estritamente atrelada aos
interesses políticos dessa classe. Posteriormente, essa ideologia foi
sistematizada e ganhou vernizes científicos através da pena de Gilberto Freyre, que a tornou uma utopia14 conservadora capaz de pensar e
organizar a modernização brasileira a partir da tradição de adaptabilidade luso-brasileira expressa, entre outras coisas, na miscigenação
biológica e cultural. Em resposta a essas duas concepções, o conceito
foi apropriado pela intelligentsia negra ligada ao Teatro Experimental do
Negro e transformada em uma utopia progressista, mais precisamente
14 Enquanto o conceito de ideologia nos ajuda a pensar os condicionantes sociais das ideias,
isto é, os efeitos da sociedade sobre os mundos mentais, o conceito de utopia nos ajuda
a pensar o poder transformador das ideias sobre as ordens sociais, quer dizer, os efeitos
das ideias sobre as sociedades. Sobre isso, consultar Mannheim (1986).
sumário
158
Marxismo.
num projeto de integração econômica, social e cultural do negro de
maneira justa na sociedade de mercado emergente.
A DEMOCRACIA RACIAL COMO
IDEOLOGIA: O PROJETO DAS ELITES
A origem da noção de democracia racial é difícil de situar. Maria
José Campos (2007) apontou para as dificuldades de encontrar o autor
de tal noção e, através da análise da obra dos literatos modernistas Cassiano Ricardo (1895-1974) e Menotti Del Picchia (1892-1988), mostrou a
polissemia e a ampla difusão do conceito, antes mesmo da consagração das obras de Gilberto Freyre. Guimarães (2001), apoiado nos estudos históricos de Célia Maria Marinho de Azevedo, relacionou a origem
desse conceito com o imaginário internacional constituído durante as
campanhas abolicionistas, segundo o qual o Brasil seria um “paraíso
racial”. George Reid Andrews (2017) mostrou como a ideia do Brasil
enquanto democracia racial se expandiu para os Estados Unidos por
meio da divulgação na imprensa negra de relatos de viajantes negros e
negras que passaram pelo país na primeira metade do século XX.
Apesar dessas significativas contribuições para o mapeamento da
gênesis do conceito em questão, neste artigo, no entanto, tomaremos
como ponto de partida desse processo as análises de Florestan Fernandes (1920-1995) em sua obra A integração do negro na sociedade de
classes (2008[1964]), segundo a qual a origem do conceito de democracia racial não se encontra no campo intelectual e sim no campo político.
Para Fernandes, as ideologias e as utopias dos antigos senhores de escravos foram fundamentais para a perpetuação do padrão de relações raciais vindo do escravismo numa sociedade que se
imaginava democrática e liberal. No seio da antiga ideologia racial, a
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159
Marxismo.
democracia racial surgiu como um elemento novo, mais precisamente, a única forma de conciliar um conjunto de ideias que legitimavam
uma hierarquia de castas dentro de uma sociedade urbano-industrial
marcada pela concorrência de mercado e pela suposta democracia
política (FERNANDES, 2008).
Nessa conjectura, a democracia racial foi a sistematização de
um comportamento ambivalente das elites para com a população negra. De um lado, essa elite recusava, de fato, nos relacionamentos
interpessoais, a igualdade entre brancos e negros; porém, de outro,
aceitava certos compromissos com uma sociedade competitiva, livre e
democrática. Disso decorreu uma estratégia também ambígua: como
forma de desmobilização da população negra, reprimia-se autoritariamente toda agitação e organização em torno do chamado “problema
do negro”, por medo de uma revolta social, ao mesmo tempo em que
se permitia, como única forma de solidariedade, o paternalismo, que
garantia melhoria de condições de vida para alguns, mas nunca para
a coletividade dos descendentes de pessoas escravizadas.
Para legitimar tal modo de ação política, era preciso ocultar a
distância entre a opressora, miserável e anômica situação da população negra no pós-abolição e sua suposta igualdade jurídica e social.
Para isso, velhos mitos de um doce e humano cativeiro foram ressignificados e serviram como justificativas para as relações raciais “tão
igualitárias” que vigoravam no Brasil. Nesse contexto, a democracia
racial surgiu, ao mesmo tempo, como ideologia e como utopia.
Como ideologia porque foi condicionada por necessidades psicológicas, políticas e econômicas de um grupo com posição e mentalidade específicas. No nível psicológico, a democracia racial aliviava a má
consciência das elites acerca do seu envolvimento com o escravismo,
apaziguava o medo de uma revolta da população negra e desviava a
atenção dos problemas candentes da nação para seus interesses individuais. No nível dos interesses políticos, a democracia racial funcionava
sumário
160
Marxismo.
como uma “técnica de dominação” de classe que atuava em três níveis:
culpabilizava o negro pela sua condição social, que seria produto de sua
irresponsabilidade; ao mesmo tempo, isentava o branco de qualquer
responsabilidade social com a situação socioeconômica da população
negra; por fim, criava uma “falsa consciência da realidade racial brasileira” que incluía “a ideia de que ‘o negro não tem problemas no Brasil’”,
que a índole brasileira não distingue raças, que as oportunidades de
competição entre brancos e negros são justas, que o negro está conformado com sua condição de vida e que a abolição resolveu todos os
problemas do negro (FERNANDES, 2008, p. 311).
No nível dos interesses econômicos, a ilusão social proporcionada pela existência de uma suposta democracia racial garantia os
interesses da grande propriedade rural, evitando desviar recursos do
Estado para as populações libertas e evitando rachas no seio das diversas frações no poder, de modo a permitir a ajuda estatal para a
grande lavoura, bem como o programa de imigração como forma de
substituir a mão de obra escrava.
A democracia racial imaginada pelas elites senhoriais tinha funções utópicas na medida em que moldava o presente e o futuro de
acordo com o passado. Legitimando a perpetuação do poder político
e, com ele, o controle da economia, a democracia racial utopicamente
agia sobre a ordem social presente, preservando as distâncias sociais
da sociedade escravista no futuro do país e, dessa forma, retardando
o desenvolvimento de uma ordem social competitiva e democrática.
Nesse cenário, a utopia da democracia racial estava diretamente ligada ao futuro do país sendo, em consequência, estratégica para
qualquer ação política conservadora ou progressista visando a mudança social. Em tais condições, segundo o sociólogo paulista, somente
mediante “a atuação organizada, ativa e intransigente do negro e do
mulato” (FERNANDES, 2008, p. 326) a visão de futuro das elites escravocratas poderia ser enfrentada. Em razão disso, no interior dessa
sumário
161
Marxismo.
luta do povo negro para concretizar a democracia no Brasil, a disputa
ideológica/utópica acerca do significado da democracia racial seria
uma das batalhas mais importantes, já que
enquanto o mito da ‘democracia racial’ não puder ser utilizado
abertamente, pelos negros e pelos mulatos, como um regulador
de seus anseios de classificação e de ascensão sociais, ele
será inócuo em termos da própria democratização da ordem
racial imperante (FERNANDES, 2008, p. 326-327).
Ora, é justamente essa disputa pelo conceito de democracia
racial, enquanto utopia, que foi travada de maneira “organizada, ativa
e intransigente” no Rio de Janeiro, nos anos 1940 e 1950, pela intelectualidade do TEN. Não obstante, antes disso, intelectuais acadêmicos,
nomeadamente Gilberto Freyre, sistematizaram e deram vernizes científicos a essa utopia conservadora das antigas classes senhoriais.
A DEMOCRACIA RACIAL COMO IDEOLOGIA
CONSERVADORA: GILBERTO FREYRE
Poucos são os pontos pacíficos na obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Questões como a maneira que o pensador
compreendia o regime escravocrata no Brasil; os papéis sociais desempenhados por escravizados, senhores e sinhás; a força da modernização europeizante na transformação do código valorativo nacional e
outros pontos são, contemporaneamente, alguns dos aspectos acerca
dos quais encontramos divergência entre os comentadores. Contudo,
não achamos discordâncias na afirmação de que a preocupação de
Freyre, ao buscar escrever a história social do Brasil, foram as formas
de integração harmônica dos opostos ou, o equilíbrio de antagonismos (LEITE, 1983; SOUZA, 2001; PAIXÃO, 2014; CARVALHO, 2008).
Para além de um mero foco de atenção, o autor buscou manter os
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162
Marxismo.
antagonismos equilibrados ou, dito de outro modo, almejava um projeto de modernização conservadora. Compreender esse projeto e sua
relação com a democracia racial foi o nosso objetivo neste tópico.
É fundamental notarmos que a obra prima de Freyre, Casa
Grande & Senzala (1933), representou uma afirmação corajosa pelo
momento em que foi publicada, haja vista que o livro valorizava o
mestiço e o negro, em um período em que as teorias pseudocientíficas que deram base para o nazismo se encontravam em franca
ascensão. Discípulo do antropólogo alemão radicado nos Estados
Unidos Franz Boas, o Freyre tentou operar a distinção entre raça e
cultura para interpretar a história brasileira, contudo – ainda que este
seja um ponto de discordância entre os comentadores –, em determinados momentos, o sociólogo acaba por dar relevante peso à raça
(como categoria biológica) na explicação sociológica.
Ao compreender a história social do Brasil, Freyre identificou
quais seriam as características dos portugueses responsáveis por
viabilizar o nascimento de uma sociedade nos trópicos. Devido à história e à geografia de Portugal, e sobretudo à sua relação com os
povos a quem chamou de orientais, os portugueses seriam mestiços
e teriam uma predisposição para se relacionar afetivamente com os
povos conquistados nesse processo de colonização. Desse modo, a
característica chave para o entendimento da relação entre portugueses, indígenas e negros no edifício freyriano foi a mestiçagem balizada
pelo catolicismo e pelo intercurso sexual, portanto, poderíamos dizer
que se trata de uma mestiçagem cultural e biológica retroalimentada
(PAIXÃO, 2014). A miscibilidade, herança do legado cultural mouro
ou do catolicismo português, será o diferencial do português em relação à forma de colonização praticada por ingleses e espanhóis que,
por sua vez, eram mais ortodoxos e preconceituosos. Assim, a teoria
freyriana será uma tentativa de descrever e explicar a história brasileira
através do processo de miscigenação (LEITE, p. 305-6).
sumário
163
Marxismo.
Na descrição do sociólogo, a família de tipo patriarcal e a casa-grande foi uma espécie de tipo ideal, isto é, um modelo do perfil de
sociedade colonial sendo as outras regiões do país, tão somente, um
espelho mais ou menos aproximado do que ocorria naquele espaço
(PAIXÃO, (2014, p. 51). Este tipo de família esteve mais voltado a um
modelo oriental do que à família burguesa, tendo em vista que ao
redor do senhor de engenho aglutinavam-se diversos indivíduos que
dele dependiam. Vejamos o que nos diz Marcelo Paixão a respeito
deste modelo de família:
Para Gilberto Freyre, o modelo de organização familiar da casa-grande em muito lembrava o modelo de família oriental. No entorno do senhor de engenho, patriarca do clã, se encontravam
sua esposa (na verdade várias, pois além da elevada taxa de
mortalidade materna e dos novos casamentos oficiais que daí
se seguiam, havia as mucamas na maioria das vezes odaliscas
em seu harém), seus inúmeros filhos e filhas, demais parentes,
agregados, o padre da capela; os escravizados e escravizadas
domésticos e seus respectivos filhos, muitos, outrossim, descendentes naturais do senhor de engenho. Mais distantes, no
limiar dos domínios da família extensa, viriam os escravizados
do eito. Sobre estes, não obstante a dureza das condições de
trabalho, nosso autor apontou que se beneficiavam por uma
melhor alimentação, mais saudável, regular e farta [...]. Não
obstante, sabe-se que nessa família o pai guardaria um direito
de vida e morte sobre seus membros. (2014, p. 52).
No âmbito da família patriarcal, as relações eram de todas as
ordens, com destaque para o intercurso sexual que dá origem a uma
proto classe média (SOUZA, 2001). Freyre se utiliza da figura de Brás
Cubas, criado por Machado de Assis, para exemplificá-las, inclusive
para versar sobre a transmissão dos valores do senhor para os filhos.
O autor identificou o sadismo como um traço essencial destas relações
no seio da família patriarcal, como explica Souza (2001, p. 303-4): Foi
sádica a relação do homem português com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres brancas [...]. Era sádica, finalmente, a relação do senhor com os próprios
sumário
164
Marxismo.
filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos.
Contudo, demarcando o equilíbrio de antagonismos, é válido ressalvar
que Gilberto Freyre acentua o sadismo na classe dominante e o masoquismo nos grupos inferiores (LEITE, 1983, p. 308).
Ao dar importância para os elementos psicológicos, sobretudo
para o sadomasoquismo presente nas relações antagônicas (representadas, no limite, por senhor e escravizado) no interior da família patriarcal, mas generalizado na sociedade, Freyre indica que as relações
entre as raças foram muito mais suaves no Brasil do que em outras regiões da América (LEITE, 1983, p. 307-308) e também que, a condição
de vida do escravizado não era má e este tinha nível de vida melhor que
o do operário europeu da mesma época (Ibid.).
Não obstante os elementos psicológicos, os valores culturais
também estão situados mais a um dos polos da relação: é um equilíbrio
de antagonismos que pende para a adaptação das demais referências culturais ao modelo europeu (CARVALHO, 2008, p. 86). Portanto,
no interior do pensamento freyriano, a acomodação dos antagonismos
ocorre através da negação de um dos polos (PAIXÃO, 2014, p. 58).
Imbuído destas convicções, Freyre viu com pesar o processo
de modernização do Brasil, pois este processo punha em rota de colisão os valores de uma sociedade patriarcal-colonial com o individualismo burguês. Por um lado, teria comprometido os fundamentos culturais da antiga sociedade colonial e, por outro, teria aberto caminho
para que tais bases não se perdessem de vez, estando preservada tal
herança por meio da ascensão do mulato e, em segundo plano, da
mulata, através de mecanismos permitidos pela própria modernização
(PAIXÃO, 2014, p. 71).
O mulato é um tipo ideal do que Freyre chamou de democracia
étnica, isto é, a possibilidade de ascensão do mulato significa que,
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165
Marxismo.
mesmo diante de uma sociedade individualista, é possível preservar
os valores expressos na miscigenação e no intercurso sexual. Todavia,
essa possibilidade de ascensão era baixíssima se tratando dos negros
não miscigenados, ou seja, ainda que o autor só venha a expressar
textualmente o conceito de democracia racial nos anos de 1960 – em
aberto processo de descolonização do continente africano – como
uma defesa do colonialismo português na África, é possível visualizar
a democracia étnica já nas obras de 1930, como uma forma de hierarquizar socialmente os indivíduos de acordo com a quantidade de
melanina que carregam (PAIXÃO, 2014).
Por fim, destacamos que o projeto de modernização conservadora representado teoricamente pelo conceito de democracia étnica
e, posteriormente, racial, caracteriza também a angústia pessoal de
Freyre que, diante da modernização do Brasil, visualizava as riquezas
construídas na sua infância de neto do sistema patriarcal em ruínas
(CARVALHO, 2008). Portanto, o mestiço claro, portador dos valores
tradicionais representados pelo patriarcalismo, projetaria no futuro os
valores do passado e a posição hierarquicamente inferior em relação
ao branco, ao passo que o negro não miscigenado e o indígena foram
descritos como pitorescos e mumificados no passado. Essa ideologia
conservadora de Freyre buscou garantir o equilíbrio de antagonismos
hierárquico do Brasil moderno:
O patriarca – dono absoluto de sua propriedade, de sua família, de seus escravos – se transforma, depois da libertação
dos escravos, no coronel e, depois, no chefe político que decide as questões através de suas preferências pessoais e suas
relações de família e amizade. Está claro que Gilberto Freyre
não leva sua análise à situação atual, a não ser implicitamente,
na medida em que compara o presente ao passado, e neste
caso não deixa dúvida quanto à sua preferência pelas formas
tradicionais. (LEITE, 1983, p. 313).
sumário
166
Marxismo.
A DEMOCRACIA RACIAL COMO UTOPIA
PROGRESSISTA: GUERREIRO RAMOS E O TEN
Neste tópico trataremos da função da democracia racial na
produção intelectual dos integrantes do TEN, mais especialmente na
produção de Guerreiro Ramos15. O TEN foi uma organização política e
estética que atuou em defesa dos interesses da população negra de
1944 até 1966. Sua principal liderança foi Abdias Nascimento (19142011)16. O TEN foi um dos principais responsáveis pela produção de
novas formas de autorrepresentação estética, científica e política da
população negra, formas essas marcadas, simultaneamente, pela solidariedade transnacional com os povos negros da diáspora e com a
integração econômica, social e política justa do povo negro à sociedade brasileira (GUIMARÃES, 2004).
O TEN foi organizado por negros e negras pertencentes às classes médias. Em suas trajetórias, conforme essas pessoas foram percebendo a existência de obstáculos intransponíveis à sua ascensão
social, obstáculos relacionados, primariamente, à cor de pele, elas se
aproximaram das pessoas negras de classes inferiores e procuraram
construir projetos políticos mais amplos e justos de integração na comunidade nacional (GUIMARÃES, 2004). No interior desses projetos,
estética e política eram inseparáveis (NASCIMENTO, 2014). Ao mesmo
tempo em que organizavam cursos de alfabetização e de cultura geral
para que a população negra pobre pudesse participar da vida cultural
e política do país, as pessoas ligadas ao TEN disputavam a vanguarda
da produção artística na então capital da República (MACEDO, 2005).
15 Os seguintes comentadores tratam, direta ou indiretamente, do tema da democracia racial no pensamento de Guerreiro Ramos: Maio (1996), Campos (2015), Guimarães (2003;
2004), Barbosa (2004).
16 Abdias Nascimento, intelectual negro de grande destaque na produção cultural brasileira
do século XX, foi ator, poeta, escritor, dramaturgo, artistas plástico e ativista dos direitos
das pessoas negras. Sobre Nascimento e o TEN veja: Sandra Almada (2009), Márcio José
de Macedo (2005) e Elisa Larkin Nascimento (2014).
sumário
167
Marxismo.
Guerreiro Ramos (1915-1982) iniciou, por volta de 1945, uma
amizade com Abdias Nascimento que duraria por toda a sua vida.
A partir de 1948, cedendo aos convites do amigo, ele ingressou nas
fileiras do TEN, produzindo até 1956 importantes reflexões sobre a
questão racial no Brasil, reflexões essas que compuseram uma parte
fundamental do projeto político do TEN e de sua visão sobre a democracia racial. Durante seus anos de existência, o TEN agiu criticamente em torno da democracia racial, primeiro testando os seus limites,
contrapondo-a com a realidade da população negra, reformulando-a
e, por fim, já nos anos 1960, denunciando-a como um mito que atrapalhava o progresso da população negra.
Enquanto as utopias conservadoras relacionadas à democracia
racial partiram do fato de que esta teria sido o resultado de uma tradição que deveria ser preservada no futuro17, para os intelectuais do
TEN, a colonização trouxe, antes de mais nada, obstáculos ao projeto
de democracia racial. Esses obstáculos ligavam-se a todo um complexo psicológico-social elaborado em cêrca [sic] de quatro séculos
(RAMOS, 1950a, p. 36). Do ponto de vista psicológico, os descendentes de pessoas escravizadas viveriam, ambiguamente, entre as sobrevivências culturais africanas e a cultura do dominador, tendo, por isso,
grande dificuldades em entender o novo complexo institucional desenvolvido após a Abolição e a Proclamação da República; já os brancos,
pelo costume de tentar tratar as pessoas negras como objetos, tinham
hábitos em descompasso com as necessidades de uma ordem institucional democrática. Do ponto de vista social, a escravidão legou uma
estrutura de classes rìgidamente [sic] tecida que impedia a ascensão
dos descendentes de escravizados, prendendo essa população nas
classes de baixo poder aquisitivo (RAMOS, 1950a, p. 36).
17 No caso das elites agrárias, essa tradição era composta das supostamente idílicas relações entre senhores e escravos marcadas pelo paternalismo. No caso de Freyre, a tradição
que deveria ser preservada era a da plasticidade do português expressa na mestiçagem
biológica e cultural do povo brasileiro.
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168
Marxismo.
Ao passo que na visão das elites, bastava a igualdade e a liberdade perante a lei para que a democracia racial se consolidasse, para
o TEN a liberdade é mais do que uma condição jurídica, é uma situação
complexa, dinamizada por fatores psicológicos e sociais numerosos
(RAMOS, 1950a, p. 37). Contra o idealismo utópico das elites, para
o qual a Abolição resolveu o “problema do negro” no Brasil, para os
membros do TEN, isso foi
um avanço puramente simbólico, abstrato [...] de um lado porque a estrutura de dominação da sociedade brasileira não se
alterou; de outro lado, porque a massa juridicamente liberta
estava psicològicamente [sic] despreparada para assumir as
funções da cidadania (RAMOS, 1950a, p. 37).
Daí que para a intelectualidade do TEN o processo de libertação
da gente de côr [sic] precisa ser submetido a uma técnica (RAMOS,
1950a, p. 37), mais precisamente, a um projeto racional de orientação
da vida coletiva que instalasse na sociedade brasileira mecanismos
de capilaridade social capazes de dar função e posição adequada
aos elementos da massa de côr [sic] (RAMOS, 1950a, p. 37), além
de propiciar meios de formação cultural para que essa população
pudesse se educar também nos novos padrões de civilidade exigidos
pela vida democrática. Isso contrasta fortemente com a visão utópica
das elites agrárias e também com a visão de Gilberto Freyre, para
quem a vida do povo brasileiro deveria ser regida fundamentalmente
pela irracionalidade da tradição.
Para mostrar a viabilidade de sua utopia, o TEN desenvolveu, em
microescala, experiências que levariam ao novo padrão de convivência
entre brancos e negros. Essas experiências envolviam desde cursos
gratuitos de alfabetização e de cultura geral, passando por concursos
de beleza negra, indo até sofisticados mecanismos de desrecalcamento através de técnicas teatrais como a grupoterapia e a socioterapia18.
18 Com relação às diversas práticas do TEN, consultar Nascimento (2004). Sobre o caráter
pioneiro do TEN no tratamento das perturbações psíquicas causadas pelo racismo através
da grupoterapia, ver a obra organizada por Maria Célia Malaquias (2020).
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169
Marxismo.
A visibilização de práticas racistas também foi parte fundamental
da visão de democracia racial do TEN. Guerreiro Ramos (1948, p. 2),
em pesquisa realizada com servidores públicos e divulgada no jornal
A Manhã, constatou nesse meio forte preconceito contra o negro e o mulato. Abdias Nascimento, por diversas vezes, veio aos jornais do período manifestar a ocorrência de práticas de racismo e discriminação, por
exemplo, quando membros do TEN foram impedidos de entrar no Baile
dos Artistas realizados no Hotel Glória, ainda que tivessem sido convidados19. Episódios similares foram denunciados pelo TEN, por exemplo,
quando as antropólogas negras estadunidenses Katherine Dunham e
Irene Diggs tiveram sua hospedagem barrada no Hotel Esplanada e no
Hotel Serrador, respectivamente20. Por essas e outras manifestações, o
TEN foi acusado de criar criar divisões inexistentes na sociedade brasileira, amplificando casos isolados de discriminação. Respondendo a
uma dessas críticas, publicada no jornal O Globo, Nascimento afirmou:
No mês passado esse vespertino criticou o movimento de valorização da gente de cor insistindo nessa tecla já gasta da
inexistência de preconceitos de raça no Brasil. É verdade. Não
possuímos, graças a Deus, ódios raciais entre nós. Mas negar o
preconceito de cor? Nunca! (QUILOMBO, 1950, p. 5).
Nas peças nas quais atuou, o TEN procurou construir uma nova
representação das vivências do povo negro, criticando a estética racista que impunha papéis teatrais burlescos, sem centralidade e carentes
de genuínas experiências vividas aos atores e atrizes negros e negras.
Sobre a produção dramatúrgica21 do TEN, Florestan Fernandes afirmou que representa a afirmação da negritude como uma experiência
humana válida através de uma penetração mais profunda no cosmos
19 Veja o texto Dutra Conta o Racismo: punido o comissário que barrou os artistas negros à
porta do hotel Glória, na Revista Quilombo, n. 6, p. 4 (fev. 1950).
20 Veja o texto: Prossegue a Cruzada para a Segunda Abolição: o dep. Afonso Arinos submete
à aprovação da câmara um projeto de lei que condena como crime a discriminação racial a palavra do sociólogo Gilberto Freyre - o incidente com Katherine Dunham, em São Paulo,
na Revista Quilombo, n. 10, p. 8 (jun./jul. 1950).
21 Sobre a produção teatral do TEN, consultar Nascimento (1966; 2004) e Almada (2009).
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170
Marxismo.
moral produzido pela miscigenação e pelas injustiças flagrantes ou disfarçadas da ‘democracia racial’ brasileira (FERNANDES, 1966, p. 169).
Ao lado de sua produção teatral, o TEN também realizou concursos de beleza para mulheres negras e mestiças. O objetivo era deslocar
o padrão valorativo de beleza centrado nas características dos descendentes de europeus e promover uma pedagogia capaz de contribuir com
a desalienação estética. Segundo Nascimento, esses concursos foram
concebidos como instrumentos pedagógicos buscando realçar
o tipo de beleza da mulher afro-brasileira e educar o gosto estético popular, pervertido pela pressão e consagração exclusiva
de padrões brancos de beleza (NASCIMENTO, 2004, p. 223).
Uma das iniciativas mais importantes do TEN foi o jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro22. O jornal foi um fórum
de discussões em que intelectuais negros e brancos, acadêmicos e
militantes escreveram sobre as relações raciais no Brasil. Uma característica singular desse periódico foi suas ligação com movimentos transnacionais de luta dos povos negros, em especial com o movimento de
negritude23. A própria ideia de democracia racial vai ser reformulada
a partir desse contato de ideias. Roger Bastide, escrevendo no Quilombo, na seção intitulada Democracia racial, chegou a afirmar que
a democracia racial brasileira era o estágio mais avançado do movimento de negritude (MACEDO, 2005). Guerreiro Ramos (1950b, p. 11)
também aproximou a noção de democracia racial da de negritude,
afirmando-a como uma subjetividade, uma vivência inserida nas categorias clássicas da sociedade brasileira que representa uma comoção
idiossincrática do universo, resultante de uma peculiaríssima compenetração de fatos históricos e biológicos (RAMOS, 1952, p. 1).
22 Para uma análise sociológica do Quilombo consultar Macedo (2005).
23 O contato com o movimento da negritude francesa se deu desde o primeiro número do
jornal. A negritude começou como um movimento estético literário, organizado por estudantes negros africanos e antilhanos residentes em Paris, e se estendeu para o campo
político através das lutas de descolonização. O tema central do movimento é o lugar e a
contribuição dos povos africanos para a cultura ocidental (MACEDO, 2005). Para uma análise detalhada da penetração das ideias da negritude no TEN, consultar Barbosa (2013).
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Marxismo.
Guerreiro Ramos foi mais longe e inseriu a afirmação da negritude, isto é, a afirmação da contingência histórica e biológica do
ser negro no Brasil como uma técnica de desrecalcamento tanto do
branco quanto do negro. Enquanto na concepção utópica da democracia racial das elites agrárias era o branco que se destacava e na
concepção de Freyre era o mulato, na de Ramos era o negro, pois,
através da afirmação da negritude num país em que todos se querem
brancos, pode-se ‘reeducar o branco’, no sentido de adestrá-lo para
a convivência democrática com os homens de côr [sic], de minar e
desfazer os seus estereótipos e sua ideologia racial discriminativa [...].
Reeducar o branco para perceber a beleza negra e estimá-la, como
uma realidade intrínseca (RAMOS, 1952, p. 1).
Gilberto Freyre colocou a questão da democracia racial em moldes científicos. O TEN partiu dessa perspectiva, mas tentou conciliá-la
com o ativismo político em torno dos problemas concretos da população negra. Um exemplo dessa tentativa foi o I Congresso do Negro
Brasileiro (1950), um evento que agrupou intelectuais acadêmicos e
intelectuais ativistas preocupados em compreender as condições de
vida da população negra no Brasil24. Nesse ponto, tentando avançar a
cientificidade através das luzes lançadas pelo ativismo político, Guerreiro Ramos foi adiante e afirmou que, dada a paralisia dos intelectuais brasileiros diante dos valores europeus, que contaminavam sua
percepção do Brasil, apenas a assunção do sujeito do conhecimento
como possuindo um corpo negro lançado numa sociedade racista, o
niger sum, poderia fornecer uma perspectiva ampla o suficiente para
compreender a história e a estrutura social brasileira (RAMOS, 1995)25.
24 Esse evento foi dramático porque representou, simultaneamente, o auge da colaboração
entre militantes do TEN e intelectuais acadêmicos e também o fim prematuro dessa relação. Para uma análise detalhada do evento, consultar Barbosa (2004) e Nascimento (2003).
25 Segundo Guimarães (1999, p. 95), essa ideia de usar o negro como posição para descrever a estrutura social brasileira foi retomada de Guerreiro Ramos por Florestan Fernandes,
para escrever A integração do negro na sociedade de classes.
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172
Marxismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a primeira metade do século XX, o conceito de democracia racial esteve em disputa. A partir dessa disputa, surgiram utopias conservadoras e progressistas, mais ou menos aproximadas da
realidade, com mais ou com menos oportunidades de se tornarem
efetivas. As elites agrárias desenvolveram a democracia racial de forma muito pragmática, em vista de preservar seus privilégios, e se a
transformaram em uma utopia para a nação foi exclusivamente como
forma de manter a população negra sob controle para a realização de
um projeto de modernização conservadora.
Gilberto Freyre foi mais longe: além de sistematizar a democracia racial numa visão coerente de mundo, quis não apenas conter a
modernização de tipo liberal democrática, mas também regressar “a
sua infância”, ao lusotropicalismo, de modo a manter a tradição portuguesa de colonização como guia da sociedade. Por outro lado, o TEN
apostou todas as suas fichas em um processo de modernização que
levasse a uma sociedade em que houvesse uma competição justa entre brancos e negros. Dessa perspectiva, o povo negro seria o principal
interessado no desmanche do antigo regime e, portanto, o protagonista mais legítimo do processo de transformação da nação, daí a famosa
fórmula de Ramos (1954, p. 63): o negro é povo no Brasil.
No entanto, com a ditadura militar, a democracia racial foi
cooptada autoritariamente pelo Estado, que fechou as possibilidades
reais de uma democracia política ao mesmo tempo em que vendeu a
imagem do Brasil como um paraíso racial (MACEDO, 2005). Nessas
condições, depois do autoexílio de Guerreiro Ramos, o líder do TEN,
Abdias Nascimento, antes de seguir o destino do amigo, denunciou
a democracia racial como um narcótico que age desmobilizando a
população negra, impedindo qualquer oportunidade de defesa à vítima
sumário
173
Marxismo.
(NASCIMENTO, 1968, p. 27). Com relação aos efeitos perversos dessa
ideologia, Nascimento foi peremptório: o slogan da democracia racial
brasileira serve à discriminação disfarçada e ao lento, porém, inexorável,
desaparecimento do negro (NASCIMENTO, 1968, p. 31).
No entanto, o ativista nunca abriu mão de uma nação em que
o jôgo [sic] das inter-influências culturais deve constituir-se de uma reciprocidade digna entre tôdas [sic] as diferentes expressões culturais,
sem supremacias nem inferioridades (NASCIMENTO, 1968, p. 49).
Nesse sentido, o líder do TEN falou em princípios de uma verdadeira
democracia racial na qual a integração social não seja confundida
com embranquecimento compulsório por meio da extinção simbólica
e física do negro através da manipulação do regime migratório, da
imposição de um estado permanente de miséria e de uma hipertrofia
da miscigenação, como valor mais alto de nossa civilização (NASCIMENTO, 1968, p. 51). Essa democracia racial não é uma utopia irrealizável, mas apenas a abertura de oportunidades reais de ascensão
econômica, política, cultural, social para o negro, respeitando-se sua
origem africana (NASCIMENTO, 1968, p. 51).
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sumário
176
10
Fernanda Reis Nunes Pereira
Steffane Pereira Santos
A atemporalidade de uma
intelectual amefricana:
o pioneirismo de Lélia Gonzalez
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.10
Marxismo.
INTRODUÇÃO
Lélia Gonzalez, antropóloga brasileira, se insere no cerne de pesquisadoras e pesquisadores negras e negros que produziram trabalhos
sobre relações étnico-raciais direcionados ao desafio do imaginário de
democracial racial brasileiro, endossado por pensadores como Gilberto Freyre. Desde a década de 1950, pesquisadores como Abdias do
Nascimento e Kabengele Munanga têm construído teorias e categorias
analíticas para tensionar essas perspectivas. Contudo, apesar da grande expressividade e alcance das teorias produzidas pelos intelectuais
negros da década de 1950 em diante, há o apagamento e silenciamento
de nossas produções teóricas, que têm se perpetuado através do epistemicídio (CARNEIRO, 2005) no eixo da produção acadêmica.
Assim, objetivamos pensar, através dos escritos e conceitos
de Gonzalez e de pesquisadores contemporâneos que utilizam de
sua obra como base para suas pesquisas, como o trabalho de Lélia
Gonzalez, que pode ser encarado como um clássico brasileiro que foi
silenciado. Nessa diretriz, nos propomos a discutir: (1) o que faz de
Gonzalez um cânone; (2) pressupostos teóricos de Gonzalez e (3) sua
importância para a consolidação de um legado de continuidade de
sua obra, mobilizado por pesquisadores contemporâneos. A discussão posta neste artigo será incipiente, nos propusemos a dar corpo à
discussão, contudo não esgotá-la.
Nos propomos a fazer alguns apontamentos biográficos sobre
Lélia Gonzalez. Formou-se em Geografia, História e Filosofia pela Universidade Nacional da Guanabara, atual Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ), Gonzalez estava se doutorando em Antropologia Política
pela Universidade de São Paulo (USP) durante sua morte. Lecionou no
Departamento de Sociologia e Política na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Em 1994, ano de sua morte, Gonzalez
assumiu a chefia do Departamento de Sociologia e Política.
sumário
178
Marxismo.
Lélia Gonzalez participou ativamente das articulações junto ao
movimento negro, sendo uma das fundadoras do Movimento Negro
Unificado (MNU), um dos movimentos mais emblemáticos de luta do
movimento negro brasileiro. O MNU é um movimento que marca a história do movimento negro brasileiro em 1978, lutando pela garantia de
direitos e propondo reivindicões cruciais para os movimentos negros
contemporâneos. Colaborou também com a criação do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras (RJ) em 1983, uma articulação que dispõem de
seu marco importante, juntando militantes oriundas do movimento negro
e feminista, contou também com Benedita da Silva, em sua miltância.
Gonzalez enquanto intelectual participando de eventos acadêmicos internacionais como a Latin American Association (LASA), African
Heritage Studies Association, Spring Symposium The Political Economy of
the Black World. Gonzalez foi premiada por seu livro Festas Populares no
Brasil, publicado em 1987 e premiado na Feira de Leipzig, na Alemanha.
A AMPLITUDE DA CONTRIBUIÇÃO
DE UMA INTELECTUAL AMEFRICANA
Com o intuito de consolidar a importância do aporte teórico
construído por Lélia Gonzalez, nos dedicaremos à apresentar algumas
de suas categorias analíticas que se apreendem marcando alguns aspectos de seu extenso trabalho, que se concretiza sobretudo, para
além de preceitos teóricos, tendo em vista que a vida de Gonzalez foi
marcada pela práxis política dos movimentos negro e feminista. Lélia
Gonzalez dedicou seu trabalho em grande parte a entender categorias como raça, gênero e classe, pensando primordialmente sobre a
posição das mulheres negras. Sendo crítica à democracia racial, se
interessou também por estudos culturais brasileiros. Seu trabalho é
composto por livros, ensaios, capítulos em livros e colunas publicadas.
sumário
179
Marxismo.
Nessa diretriz nos ocuparemos de expor alguns conceitos e apontamentos desse arcabouço teórico, sendo eles: a categoria político-cultural da amefricanidade; racismo-latino-americano; racismo aberto e
por denegação, o locus de mulheres negras na sociedade brasileira e
o feminismo afro-latino-americano. (RIOS e RATTS, 2016)
Em primeiro, a categoria político-cultural da amefricanidade se
insere enquanto uma categoria cultural que compreende que a formação histórica, política, cultural e logo linguística brasileira, não se
dá a partir da ascendência europeia, isto é branca, mas doravante
de uma influência que se instaura primordialmente e majoritariamente através de África, pelos africanos escravizados trazidos para as
américas pelo tráfico negreiro, como também por influência de povos
amefricanos que já se localizavam no continente americano antes
mesmo do início do processo de colonização. A formação do inconsciente brasileiro não é como se afirmou de ordem europeia. Assim, a
amefricanidade trata-se de uma nova perspectiva sobre nossa formação histórico-cultural através de costumes e cultura.
O pretuguês, cunhado por Lélia Gonzalez, sendo compreendido como o português falado no Brasil, é um desses elementos que
consolidam a nossa formação, haja vista que a nossa língua dispõe
de atributos de África. A amefricanidade por sua vez, incorpora um
processo de intensa dinâmica cultural, nas palavras da própria Gonzalez, nos encaminhando para a construção de uma identidade étnica efetivamente. (GONZALEZ, 1988) Vale salientar que a adoção
dessa categoria por Gonzalez, retoma a consolidação da experiência
amefricana, sendo uma experiência em diáspora, que tornou processos sobre as relações étnico-racial em um contexto situado, contexto
esse que é latino-americano e que abarcou outras execuções de perpetuação do racismo latino-americano.
Para Gonzalez, o racismo latino-americano se instaura enquanto
um mecanismo de opressão suficientemente sofisticado que:
sumário
180
Marxismo.
O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para
manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua
forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento,
tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos
meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as
classificações e os valores da cultura ocidental branca são os
únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito
da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de
“limpar o sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com
a consequente negação da própria raça e da própria cultura.
(GONZALEZ, 1988:2018, p. 312)
Gonzalez inaugura sobre como a democracia racial impulsionou
dinâmicas particulares em contexto geográfico situado na latino-america. Isso se evidencia na medida em que os processos de eugenia e
mestiçagem se imperam e novas facetas do racismo se apresentam,
a partir de acordos tácitos e do racismo cotidiano, cordial e explícito.
Assim, a antropóloga nos aborda também sobre o racismo aberto
e o racismo por denegação/disfarçado. O primeiro, diz respeito sobretudo a sociedades de origem anglo-saxônicas, germânicas ou holandesas, que estabelece que negra é por sua vez, a pessoa que tenha tido
antepassados negros, nessas sociedades a mestiçagem é impensavél,
aqui se perpetua a ideia de pureza racial que é apropriada para reafirmar superiorirdade e que por muito se articula com o ideário racista
de superioridade branca e a segregação social e espacial de pessoas
negras. O segundo, se refere às sociedades latino-americanas, em que
ideologias do branqueamento como a democracia racial e política assimilacionistas são empregadas, tornando o racismo aprimorado.
Em outra adjacência, Gonzalez designa seu trabalho para teorizar
e contribuir com os movimentos sociais em especial, o feminismo e o
movimento negro. Por essa vertente de seu trabalho, Gonzalez aponta
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181
Marxismo.
sobre as opressões sofridas por mulheres negras, a partir das categorias de raça, gênero e classe que se encontram. Afirmava que enquanto
mulher e negra, a mulher na sociedade brasileira se tornava o setor mais
inferiorizado. (GONZALEZ, 1981) E isso, engendra em mulheres negras
um olhar aguçado para as opressões. Essa percepção de Lélia Gonzalez adianta anos antes o paradigma da interseccionalidade, proposto
por Kimberlé Crenshaw e fomentado por vários autores. A interseccionalidade se compreende enquanto uma lente para observar as opressões
que se interseccionam, se convergem numa encruzilhada. (COLLINS,
2019; CRENSHAW, 2004; RIOS e RATTS, 2016; RODRIGUES, 2013)
Gonzalez como crítica ao feminismo hegemônico, nos propõem um feminismo afro-latino-americano que atue enquanto uma
organização situada, da posição de mulheres negras, indígenas e
não brancas latino-americanas. Sua crítica ao feminismo hegemônico reside: (1) o protagonismo de mulheres brancas no levante das
pautas e a (2) omissão das pautas étnicas, que são fundamentais
para consolidar movimentações para mulheres negras, indígenas e
não brancas. Articula ainda que a consciência opressão de mulheres
negras e ameríndias, ocorre antes de qualquer coisa pelo racial. Para
Gonzalez, exploração de classe e discriminação racial constituem os
elementos básicos da luta comum de homens e mulheres subalternizados por sua etnia. (GONZALEZ, 1988)
CÂNONES E CLÁSSICOS
DO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
Para travar uma discussão sobre a importância e o apagamento
do pensamento produzido por Lélia Gonzalez devemos entender como
se dá a formação do cânone brasileiro e quem ocupa hoje em dia de
ementas de disciplinas do curso de Ciências Sociais e as citações nos
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182
Marxismo.
trabalhos acadêmicos. Para isso iremos discutir exclusivamente a área
da Antropologia, visto que Gonzalez esteve grande parte de sua vida
vinculada a tal hall de produção.
Maria Eunice Moreira, professora da escola Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), escreveu um artigo,
Cânone e cânones: um plural singular (2004), sobre o livro de Harold
Bloom, O Cânone Ocidental, onde este aponta os pontos principais
de definição de um cânone no ocidente. Neste artigo, Moreira (2004)
aponta que o significado de cânone sofreu certas alterações durante o
passar do tempo, contudo permaneceu de certa forma se referindo a
obras que merecem atenção, que são um modelo. O estabelecimento
dessas obras como tal é um ponto de disputa, há diversas teorias no
campo da história da literatura que constroem um traçado e pontuam
os principais motivos de uma obra ser considerada um cânone (MOREIRA, 2004). Contudo, esse não é o ponto central do presente artigo,
pois discutiremos os cânones através de uma perspectiva crítica e do
conceito de epistemicídio de Sueli Carneiro (2005).
O presente artigo pretende demonstrar através de um posicionamento crítico o porquê do pensamento de Lélia Gonzalez não estar
no cânone antropológico brasileiro e os motivos para que deveria estar.
No artigo de nome A Antropologia Brasileira: breves indagações sobre a
história de um campo em expansão, Waleska Aureliano (2010) pontua
que as leituras feitas por antropólogos brasileiros tendem a se centrar
na antropologia euroamericana, estes então constituem os clássicos da
antropologia, até mesmo em âmbito mundial. Dessa forma, Aureliano
(2010) tece uma crítica a partir de seus questionamentos do porque os
brasileiros não lêem também as produções de outros latinoamericanos
e se centram somente em produções europeias e norte americanas.
A crítica apontada por Aureliano em seu artigo é de grande valia, porém aqui nos perguntamos o porque de dentro do escopo das
leituras de antropólogos brasileiros não incluímos, também, Gonzalez,
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183
Marxismo.
uma antropóloga brasileira com uma extensa produção e um pioneirismo nos estudos de raça e gênero no Brasil, sempre pontuando as
intersecções que ambas categorias podem fazer.
A partir do conceito de epistemicídio, desenvolvido na tese de
Sueli Carneiro (2005), podemos entender como se dá a operacionalização da inferiorização da produção de conhecimento de povos subalternizados. O epistemicídio então é uma ferramenta e
Sendo, pois, um processo persistente de produção da inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as
capacidades intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações
com as racialidades realiza, sobre seres humanos instituídos
como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica específica compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a saber, disciplinar/ normalizar e matar
ou anular. (CARNEIRO, 2005, p.97)
Dessa forma, podemos compreender que o epistemicídio está
vinculado a uma sistematização da inferiorização da incapacidade intelectual de um povo, isto é, é uma das expressões do racismo operacionalizada no biopoder, com uma intenção clara de anular ou aniquilar
produções de populações marginalizadas (CARNEIRO, 2005).
O ambiente acadêmico, inserido, no Brasil, principalmente no
âmbito das universidades, não está deslocado da lógica do epistemicídio, muito pelo contrário é um dos fortes espaços de reprodução
e produção dessa lógica. Carneiro (2005) enfatiza em sua tese que o
ambiente escolar e acadêmico são pontos centrais e chaves para se
pensar a operacionalização dessa forma de anulação de produções
intelectuais no Brasil contemporâneo. Haja vista que, o epistemicídio
atua e se perpetua não somente anulando essa produções mas criando sujeitos não cognoscentes, isto é, sujeitos não passíveis de serem
compreendidos enquanto portadores e produtores de conhecimento.
Isso ocorre em larga escala dentro da trajetória escolar e acadêmica
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184
Marxismo.
desses sujeitos racializados. A evasão escolar e o não ingresso no
ensino superior, podem ser encarados como facetas do epistemicídio
materializado, no caso brasileiro.
As produções de Lélia Gonzalez dentro da antropologia brasileira não se distanciam desse parâmetro central. Apesar da genialidade
da pesquisadora em pensar raça e gênero por uma perspectiva inovadora em seu tempo, suas produções hoje ocupam um lugar secundário no ambiente acadêmico. O epistemicídio coloca grupos não-brancos como não passíveis de serem cognoscentes, isto é, enquanto
grupos incapazes de serem produtores e portadores de conhecimento
(CARNEIRO, 2005). As produções de Lélia Gonzalez se encaixam no
escopo daquelas que são sistematicamente negadas pelo ambiente
acadêmico podendo cair no esquecimento.
Eu sou Atlântica, livro organizado por Alex Ratts, contém algumas
produções da historiadora Beatriz Nascimento, que produziu na mesma
época em que Lélia Gonzalez, década de 70. Neste livro está contido
um pequeno artigo de nome Por uma história do homem negro, publicado em 1974, onde Nascimento expressa algumas de suas indignações
acerca da produção historiográfica sobre a população negra brasileira.
Segundo a pensadora, naquele momento havia um olhar muito marcante do branco para o negro, chegando ao ponto de exotizarem a
história do negro e construírem uma imagem estigmatizada dessa parcela populacional (NASCIMENTO, 2006). Nascimento, então, faz uma
reinivincação por uma história dos negros que realmente o represente,
que seja escrito por eles e não carregue os estigmas colôniais. Ou seja,
no período de produção de Gonzalez já havia uma discussão sobre a
exclusão de pessoas negras dos espaços acadêmicos.
Em continuidade, Angela Figueiredo e Ramón Grosoguel (2007)
ao discutir sobre a marginalização de pesquisadores negros na academia brasileira situando a trajetória de Guerreiro Ramos, enunciam a
“política do esquecimento”, que atua como um mecanismo que age
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185
Marxismo.
no apagamento da memória de novas gerações as contribuições de
autores negros no passado. Gonzalez tal qual outros autores negros
brasileiros, foram afetados diretamente pela política do esquecimento.
Outrossim, essa exclusão de pesquisadores negras e negros
se evidencia na medida em que há uma baixa apropriação do aporte teórico de pesquisadores negros do período; a não utilização de
seus pressupostos como base para estruturas curriculares e ementas
de cursos; e a sua não presença pouco expressiva em debates em
dissertações e teses produzidas no campo da pós-graduação em
univerisdades brasileiras.
A preferência e a utilização de teorias e contribuições que emergem do eixo eurocêntrico é vigente no cenário acadêmico brasileiro,
que tem características oriundas de países europeus. Os processos
de validação do conhecimento que imperam nas academias brasileiras provém de uma epistemologia dominante que tem sua legitimação
conduzida por grupos dominantes, que são majoritariamente brancos
e masculinos. (COLLINS, 2019) Assim, epistemologias dominantes
questionam a validade de outras epistemologias e abordagens outras
e formas de produzir conhecimento. A não utilização de teorias que se
articulem ao eixo europeu, insere as produções de pessoas negras e
não brancas em um lugar situado de questionamento e validação desse conhecimento por parte de epistemologias dominantes.
Os textos e conceitos de Gonzalez, como visto anteriormente,
colocam em cheque o racismo brasileiro e suas formas de operacionalização. Aqui, então, apontamos como essa operacionalização afeta a produção de pessoas negras e seu destaque e continuidade do
seu trabalho. Lélia Gonzalez teve uma grande expressividade no seu
período de produções acadêmicas ativas, frequentando congressos
nacionais e internacionais, concedendo entrevistas e produzindo livros
e artigos. Contudo, o que se percebe posteriormente é uma seleção
de pensadores cânones que não incluem as produções de Gonzalez,
devido a um apagamento sistemático de produções negras.
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Marxismo.
A CONTINUIDADE DE UM
LEGADO IMENSURÁVEL
Atualmente Lélia Gonzalez garante um espaço importante dentro do ambiente acadêmico, pois é retomada e pesquisada por grandes pensadores brasileiros, entre eles Flávia Rios, Raquel Barreto e
Alex Ratts. Os três garantem uma repercussão da obra de Gonzalez
e de seus feitos em vida. No livro de nome Lélia Gonzalez (2010),
escrito por Alex Ratts e Flávia Rios, há uma retomada da trajetória
da pesadora para resgatar aquilo que foi produzido por ela tanto no
âmbito acadêmico quanto no político, pontuando os movimentos e
ações que Gonzalez fez ou participou durante sua vida. Em uma breve colocação, os autores do livro citam que a pensadora pode ter
sido mais bem reconhecida em suas participações no movimento
social do que no ambiente acadêmico, que apesar de sua grande
presença, como dito aqui, não possui a expressividade que outros
pensadores brasileiros (RATTS; RIOS, 2010).
Raquel Barreto, em sua dissertação de nome “Enegrecendo o
Feminismo ou Feminizando a Raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez” (2005), expressa como o pensamento de
Lélia Gonzalez foi central para o pensamento social brasileiro como
um todo. Sua escrita fluída, com claros elementos do linguajar popular
carioca, sem deixar de lado o formalismo da academia, permitia um
acesso dos militantes do movimento negro as produções acadêmicas
(BARRETO, 2005). Ademais, a pensadora foi pioneira em uma maior
abrangência dos estudos de gênero, estes que abordam os conceitos
da Psicanálise e colocam a raça como uma intersecção existente e
necessária de ser apontada academicamente.
Algumas das obras produzidas pelos três pesquisadores supracitados possuem Lélia Gonzalez como ponto central, não só sua obra,
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187
Marxismo.
como dito, como também sua trajetória e militância. A importância de
ter essa pensadora como ponto chave nas pesquisas posteriormente
produzidas é a incorporação dos avanços teóricos feitos por Gonzalez
nas produções que se seguem. Entre esses pontos estão a superação
do mito da democracia racial, principalmente no que tange a quebra
do discurso da harmonia nas relações sexuais entre portugueses e
mulheres negras e indígenas, em colocar a mulher negra como um
ponto central para se pensar raça e gênero no Brasil e não somente,
como também todas as dinâmicas socioeconômicas brasileiras, como
a questão do trabalho (BARRETO, 2005).
Em suma, a obra de Lélia Gonzalez atualmente encontra grande
repercussão com a retomada de diversos autores e pesquisadores,
das ciências humanas, aos seus textos e produções. Sua obras sempre estiveram presentes tanto na academia quanto nas discussões e
pautas do movimento negro, contudo, nos últimos anos é possível enxergar uma maior atenção a sua obra devido a uma procura maior de
editoras, estudantes e movimentos. No ano de 2020, foi lançado pela
editora Zahar uma coletânea organizada por Márcia Lima e Flávia Rios
com os artigos, textos e entrevistas mais relevantes da autora, contando grande parte de sua obra e reflexões.
Seu nome foi chamado pela pensadora norte-americana, Angela Davis, quando esteve no Brasil em 2019, onde a historiadora pôde
expressar sua admiração por Lélia Gonzalez, causando uma repercussão positiva em torno do nome da pensadora. Hoje, felizmente, nós
temos Rios, Ratts e Barreto, entre outros inúmeros pesquisadores brasileiros que retomam a obra de Gonzalez deixando ela sempre viva e
acesa nos meios acadêmicos e dentro do movimento negro brasileiro.
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188
Marxismo.
REFERÊNCIAS
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indagações sobre a história de um campo em expansão. En: Boletín de
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BAIRROS, Luiza. Lembrando Lélia Gonzalez 1935 - 1994. Afro-Ásia, n. 23,
1999, p. 0 Universidade Federal da Bahia, Bahia, Brasil.
BARRETO, Raquel de Andrade. “Enegrecendo o feminismo” ou “Feminizando a raça”: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzáles. Orientador: Marco Antonio Villela Pamplona. Rio de Janeiro: PUC-Rio,
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CARNEIRO, Sueli. Do epistemicídio. A construção do outro como não-ser
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189
Marxismo.
GONZALEZ, Lélia. Racismo por omissão (1985) In: Primavera para as Rosas
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Janeiro: MC&G Editorial. Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2016.
RODRIGUES, Cristiano. Atualidade do Conceito de Interseccionalidade para
a Pesquisa e Prática Feminista no Brasil. Seminário Internacional Fazendo
Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X.
sumário
190
11
Gabriel Felipe Oliveira de Mello
Do niger sum ao ser nacional:
questão racial e construção
da nacionalidade em Alberto
Guerreiro Ramos (1949-1960)
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.11
Marxismo.
La globalización en curso es, en primer término, la culminación
de un proceso que comenzó con la constitución de América y la
del capitalismo colonial/moderno y eurocentrado como un nuevo
patrón de poder mundial. Uno de los ejes fundamentales de ese
patrón de poder es la clasificación social de la población mundial
sobre la idea de raza, una construcción mental que expresa la experiencia básica de la dominación colonial y que desde entonces
permea las dimensiones más importantes del poder mundial, incluyendo su racionalidad específica, el eurocentrismo.
Aníbal Quijano.
Este artigo analisa a proposta do sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) de resolver um possível entrave na construção
de um projeto nacional que conciliasse, ao mesmo tempo, a superação
do racismo e a formulação de uma nova identidade nacional brasileira.
Alberto Guerreiro Ramos, foi um autor de linhagem intelectual nacionalista, o tema da nação se fez presente em boa parte de suas reflexões
até pelo menos o início da década de 1970. Dito isto, o que pretendemos discutir neste trabalho é justamente a proposta do sociólogo em
pensar a questão da autoafirmação e do reconhecimento dos homens
e mulheres negras brasileiras em relação a sua própria condição existencial, o que ele denomina de Niger sum, como parte fundamental da
construção da nacionalidade. Outro ponto importante desse projeto é a
defesa por parte do autor acerca do imperativo da superação da chamada ideologia da brancura, isto é, um tipo de alienação que impediria
boa parte da intelectualidade e das classes sociais no Brasil de romperem com um parâmetro cultural europeu e que levava a identificação do
negro com um problema para o desenvolvimento nacional.
Essa ideologia da brancura impediria o entendimento de que o
povo brasileiro, em sua maioria, seria constituído por negros e mestiços, ou, nas palavras de Guerreiro, que o negro é povo no Brasil (RAMOS, 1995, p. 200). Decorrem disso as soluções tipicamente racistas
aplicadas pelo Estado e formuladas por intelectuais, tal como a necessidade de um branqueamento da população ou mesmo a adoção de
medidas eugênicas visando uma suposta modernização do país.
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192
Marxismo.
Essa não aceitação do elemento negro como parte da cultura
brasileira foi denominada por Guerreiro de patologia social do branco
brasileiro (RAMOS, 1995). Só a partir da autoafirmação do “ser do
negro” e da contingência da superação da ideologia da brancura é
que seria possível construir o “ser nacional” autêntico, o Brasil enquanto um “país do futuro”. É sobre essa relação, entre a construção
da nacionalidade, da autoconsciência dos negros e a superação da
brancura, que esse artigo trata.
O trecho acima, que abre este trabalho, foi retirado do artigo
“Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina” do sociólogo
peruano Aníbal Quijano (1928-2018); (2000, p.201). A citação elenca
uma tese fundamental presente em boa parte dos trabalhos do intelectual peruano, ou seja, que o conceito de raça foi fundamental no
processo de formação e constituição da modernidade e do sistema-mundo. Essa conceituação foi e, continua sendo, central para o entendimento acerca da construção do que Quijano denominou de um
novo padrão de poder mundial (QUIJANO, 2000, p.201), onde um dos
eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da
população mundial sob a ideia de raça (QUIJANO,2000, p.201).26
Nessa lógica, a ideia de raça se constituiu no momento da
chegada dos europeus na América, com a consequente destruição
e subjugação das diversas culturas originárias do continente, levando desta maneira à construção das sociedades coloniais. É a partir
dessa noção que os europeus puderam imprimir uma concepção de
inferioridade nos povos dominados, a tal ponto dessas próprias populações se enxergarem como “atrasadas”, por vezes inferiores aos
próprios europeus. Apesar de construído a partir do período inicial da
colonização da América nos séculos XV e XVI, é possível falar numa
reformulação ou reformatação desse padrão de poder, até mesmo por
26 “Uno de los ejes fundamentales de ese patrón de poder es la clasificación social de la
población mundial sobre la idea de raza, una construcción mental que expresa la experiencia básica de la dominación colonial (...)” (QUIJANO, 2000, p. 201)
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Marxismo.
conta do fim político e formal da colonização da América no início do
século XIX. Não obstante, ele permaneceria se socio-reproduzindo até
os dias atuais, conformando assim práticas, culturas e a própria autoconsciência da população subalternizada.
Sobre o conceito de raça, Quijano não deixa explicito nenhum
apontamento mais direto sobre a construção dessa ideia em pleno
século XVI, seja ela em termos de fontes, documentos ou bibliografia.
É importante mencionar que há certa imprecisão em localizar a “origem”
da noção de raça em sua acepção moderna, no período da expansão
ultramarina europeia dos séculos XV e XVI, entretanto, isso não implica
em negar a importância da conquista da América e a subjugação dos
povos originários no imaginário europeu (BANTON, 2010, p. 25).
Autores que estudaram a questão racial, tais como Lilia Schwarcz
(1993, p.47), Charles Hale (2001, p.363) e o próprio Michael Banton,
apontam outras perspectivas acerca da construção desse conceito,
mostrando que o seu sentido moderno, enquanto uma forma de criar e
explicar uma desigualdade entre as culturas das diversas localidades do
mundo, ocorre em meio ao século XVIII, sobretudo, no período da ilustração, sendo amplamente apropriado e utilizado ao longo do século XIX.
A apropriação das reflexões de Quijano nos são caras na medida em que esse autor centraliza a ideia de raça como um conceito
fundamental para se entender a modernidade e os padrões de poder
exercidos através dela até os dias atuais, seja direta ou indiretamente.
Como mostra Reinhart Koselleck, o conceito serve não apenas para
indicar unidades de ação, mas também para caracterizá-los e criá-las.
Não apenas indica, mas também constituí grupos políticos e sociais
(KOSELLECK, 2012, p.192). Nessa perspectiva, o conceito conforma
e é conformado pelas circunstâncias históricas, moldando dessa maneira uma série de relações sociais. É partir desse entendimento, do
conceito de raça como um fator importante para se pensar as relações
político sociais na modernidade, principalmente em países periféricos,
que mobilizaremos as ideias ao longo deste trabalho.
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Marxismo.
A discussão acima vai justamente ao encontro do que pretendemos apresentar aqui neste artigo. Isto é, como o sociólogo baiano
Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) procurou resolver o entrave da
construção de um projeto nacional que conciliasse, ao mesmo tempo,
a superação do que denominou de ideologia da brancura, dotando o
negro de autoconsciência emancipatória - o seu niger sum -, que seria
um dos aspectos fundamentais para a superação do racismo no Brasil, a construção de uma identidade nacional que almejasse a própria
superação da ideia de raça, bem como a harmonia entre brancos e
negros sob uma concepção do que denominou de “ser brasileiro”.
DO TEATRO EXPERIMENTAL
DO NEGRO (TEN) AO SER NACIONAL
Em fins da década de 1940, Alberto Guerreiro Ramos, homem
negro, baiano de nascimento, à época tido como “mulato”, e que
estava no Rio de Janeiro desde 1939, bacharelou-se em direito e
sociologia pela então Universidade do Brasil no ano de 1942. Em
fins da década de 1940, se aproxima do Teatro Experimental do Negro (TEN)27, dirigido por Abdias do Nascimento. Inicialmente no TEN,
Guerreiro coordenou as sessões de grupoterapia, também denominadas de psicodrama, voltadas à resolução de problemas de pessoas negras e a construção de uma autoidentificação e aceitação de
suas características fenotípicas (BARBOSA, 2015, p. 113).
Com o andamento na militância, o sociólogo baiano é indicado
para ser presidente do Instituto do Negro, órgão criado pelo próprio
27 O Teatro Experimental do Negro foi um projeto de ação político social criada por Abdias
Nascimento, com ajuda de outros intelectuais e militantes negros. A ideia central era a
valorização social, existencial e cultural do negro brasileiro. O TEN não se limitou a ensaiar
peças teatrais colocando atores negros nos papeis centrais, mas também organizou congressos, encontros, cursos voltados a comunidade negra pobre e etc. (Cf. NASCIMENTO,
2004, p. 210); (FUNDAÇÃO PALMARES, 2016)
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Marxismo.
TEN e voltado para discussões intelectuais acerca da questão racial
no Brasil. Guerreiro ainda lidera junto de Abdias do Nascimento a Conferência Nacional do Negro e o I Congresso do Negro brasileiro, que
ocorreu em 1950 no Rio de Janeiro (BARBOSA, 2015, p.122). Mencionar a passagem de Guerreiro Ramos no TEN não é um exagero, já que
a militância do sociólogo nessa instituição é de grande importância
para compreendermos uma grande virada no seu pensamento. Será
através do contato e da militância que o autor passa a não só ter contato com textos da Negritude francófona, tais como os de Aimé Cesaire
(1913-2008), mas também passa a se inteirar de forma mais profunda
sobre o debate acerca da questão racial no Brasil.
Diante da perspectiva de que a entrada de Guerreiro Ramos
para o TEN contribuiu para uma virada teórica na produção do sociólogo, é possível concordar com Luiz Augusto Campos (2015, p.106),
de que foi a partir das reflexões sobre a questão racial no Brasil que
o intelectual baiano passou a centrar suas reflexões de forma mais
detida sobre da realidade social brasileira, culminando dessa maneira em sua magnum opus “A Redução Sociológica” (1958) e em livros
como “O Problema Nacional do Brasil” (1960) e “A crise do poder no
Brasil” (1961). A problemática central da Redução Sociológica, isto
é, a apropriação crítica e reflexiva da produção estrangeira, tem sua
origem nas reflexões de Guerreiro sobre como o negro brasileiro era
apresentado nos trabalhos de sociologia.
A percepção descrita acima acerca da relação entre as pesquisas sobre a questão racial e as reflexões sobre uma Teoria do Brasil
se confirma ao analisarmos os textos de Guerreiro escritos no jornal
O Quilombo, veículo oficial do TEN, e no jornal A Manhã, chegando aos
artigos de maior maturidade publicados entre 1954 e 1955, tais como
“O problema do negro na Sociologia Brasileira” (1954) e “Patologia
social do branco brasileiro” (1955). Sobre a questão do sociodrama,
atividade coordenada pelo sociólogo no TEN, o autor afirma que o
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196
Marxismo.
sociodrama é precisamente um método de eliminação de preconceitos
ou de estereotipias que objetiva libertar a consciência do indivíduo da
pressão social (RAMOS, 1950a, p.9).
O sociodrama tinha uma função política imediata: resolver questões de ordem psicológica presente na população negra e branca, tentando superar o que o próprio autor denominou de preconceitos e estereótipos. Nota-se que essa atividade estava em plena consonância
com a proposta do TEN, de não ser apenas um grupo teatral negro,
mas também organização de militância no sentido de criar cursos de
alfabetização, iniciação cultural, dentre outras iniciativas voltadas para
a população negra e pobre. O sociodrama se interligava às ideias do
próprio Guerreiro de que seria possível pensar o problema do preconceito e da não aceitação do negro ou do mestiço em relação a sua
própria condição como algo ligado à personalidade (BARBOSA, 2015,
p.118). Essa perspectiva entendia que o racismo também poderia ser
compreendido através da chave do patológico, daí a possibilidade de
serem superados por uma iniciativa de cunho psicológico e educativo.
Apesar da perspectiva de “psicologizar” o problema racial, Guerreiro Ramos não trabalhava apenas com essa hipótese. No artigo “Senhores e escravos no Brasil”, publicado no jornal A manhã, em outubro
de 1950, o autor apontava a existência, no Brasil, tanto no senso comum,
quanto no meio intelectual, da ideia de benevolência na relação entre senhores e escravos no Brasil. Segundo o Guerreiro, esses intelectuais tem
preferido acentuar a humanidade da escravidão no Brasil e contribuíram,
assim, para que se formasse, entre nós, o estereótipo do senhor bom,
tolerante e paternal e do escravo submisso acomodado(RAMOS, 1950b,
p.2). Nesse mesmo artigo de jornal, Guerreiro levanta duas questões
fundamentais que em alguma medida vão nortear suas preocupações
sobre a questão racial no Brasil. A primeira vai na direção de criticar a
perspectiva de que os estudos sobre questão racial no país só teriam
certa assertividade e compromisso em alterar a realidade racista caso
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Marxismo.
fossem realizados por negros. A segunda ponderação é justamente a
necessidade da existência de uma sociologia que rompesse com uma
lógica meramente acadêmica, descritiva e alienada sobre a situação do
negro e por tabela do povo brasileiro (RAMOS, 1950b, p.2).
No início do artigo “Senhores e escravos no Brasil” fica explicita a crítica do sociólogo de que o problema não seria superado
meramente colocando estudiosos negros, embora esse fato fosse
de grande centralidade. Apesar da importância e da necessidade da
participação de intelectuais negros, havia um problema maior: a teoria e a metodologia sociológica por trás da análise. Indagando sobre
a origem da visão ideológica da suposta benevolência da escravidão
no país, o autor afirma que:
não será o estereótipo mencionado acima [sobre a benevolência do escravista e a passividade do escravizado] dessas
elaborações ideológicas, uma, racionalização de escritores
brancos ou de qualquer forma ligados à estrutura de dominação do branco? Se os estudos sobre negros fossem realizados
preponderantemente por negros não teriam eles assumido um
outro caráter? (RAMOS, 1950b, p.2)
Para responder a essa crítica, o sociólogo baiano cita a intervenção de Amaury Pôrto de Oliveira no I Congresso do Negro, organizado
pela TEN, em um estudo sobre as relações escravistas no Brasil império. Segundo Guerreiro, o estudo de Amaury era fundamental e deveria
ser desenvolvido para que os estudos sobre o negro brasileiro adquiram interesse e entrem numa fase dinâmica, ultrapassem a sua atual
fase acadêmica, descritiva e até inócua (RAMOS, 1950b, p.2). Guerreiro
ainda cita também a intervenção de Oracy Nogueira (1917-1986), com
um trabalho sobre a resistência dos escravizados no município de Itapetininga. Esse trabalho seria uma mostra que a ideologia que advogava a passividade dos negros poderia ser combatida, inclusive por
escritores não negros e, sobretudo, através de um método, apropriado
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198
Marxismo.
diretamente da sociologia do conhecimento28, que colocasse em xeque
as posições tidas como erradas, embora fosse de suma importância a
participação de intelectuais negros na crítica a sociologia alienada.
Podemos observar que há nesses trechos, indiretamente, algo
que será caro à sociologia guerreiriana: a defesa de uma sociologia
da práxis ou a chamada sociologia crítica, como definirá mais tarde.
Partia-se da perspectiva que essa sociologia crítica seria fundamental
para o combate ao que mais adiante o autor irá definir como ideologia
da brancura. Essa ideologia estaria ligada diretamente a uma sociologia alienada que não compreendia o Brasil, era ela que em alguma
medida advogava a existência de uma suposta brandura do escravismo brasileiro. O combate a essa visão e de forma maior a esse tipo de
sociologia não deveria ser uma tarefa meramente dos negros e sim de
todos os brasileiros que defendiam o desenvolvimento do país.
Ainda nos artigos de jornal, a preocupação com o fazer sociológico se faz presente novamente. No texto “Imposturas e Relações de
Raça” presente no Diário de Notícias, datado de setembro de 1953,
Guerreiro aponta que a produção sociológica acerca da questão racial
no Brasil foi sendo feita de forma problemática, por vezes esquemática
e acrítica. Nas palavras do autor:
No que diz respeito ao negro, os autores mais festejados em nosso meio careciam de uma formação científica e, por isto, apesar
de suas boas intenções, quando não cometeram erros grosseiros
de interpretação dos fatos, limitaram-se a justapor textos de diversos autores estrangeiros, sem alcançarem o plano da ciência.
Quando muito, fizeram trabalho de erudição (...), poderiam ter
sido bons cronistas. Mas, tendo pretendido fazer ciência, valem,
hoje, apenas, como documentação a ser utilizada com cuidado.
Refiro-me especialmente aos dois vultos de maior expressão no
caso: Nina Rodrigues e Artur Ramos. (RAMOS, 1953, p.1).
28 Nota-se aí o início da apropriação que Guerreiro Ramos faz da sociologia do conhecido
de Karl Mannheim. Essa relação vai ser determinante para a sociologia guerreiriana,
principalmente nas reflexões presentes em livros como “A Redução Sociológica” (1958)
e “O Problema Nacional do Brasil” (1960).
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Marxismo.
A preocupação em compreender como a produção intelectual
pensou e analisou um determinado assunto tem sua primeira grande
expressão no artigo “O Problema do Negro na Sociologia Brasileira”,
publicado originalmente nos Cadernos do Nosso Tempo, do IBESP,29
e posteriormente republicada no livro “Introdução Crítica à Sociologia
Brasileira” (1957). Nesse artigo, Guerreiro analisa e discute como a
questão racial apareceu ao longo da produção do pensamento político brasileiro. O autor afirma que boa parte dos intelectuais brasileiros,
desde o século XIX, estudavam as relações sociais do negro brasileiro a partir de uma visão alienada, que não correspondia à realidade
brasileira, ou seja, de uma sociologia alienada. Nas palavras de Guerreiro, o negro tem sido estudado, no Brasil, a partir de categorias e
valores induzidos predominantemente da realidade europeia. E assim,
do ponto de vista da atitude ou da óptica, os autores nacionais não
distinguem dos estrangeiros (RAMOS, 1995, p.163).
Como é possível observar, o sociólogo baiano começava sua
crítica a uma suposta alienação de parte da sociologia brasileira, apontando o fato de que esses intelectuais estudariam a realidade nacional
a partir de um lente estrangeira, se apropriando de forma acrítica da
produção externa, sem darem importância à historicidade das ideias.
Ainda segundo Guerreiro:
A partir de uma posição científica de caráter funcional, isto é,
proporcionadora da autoconsciência ou do auto domínio da
sociedade brasileira, importa, antes de estudar a situação do
negro tal como é efetivamente vivida, examinar aquela literatura,
tendo em vista desmascarar os seus equívocos, as suas ficelles,
e, além disso denunciar a sua alienação. (RAMOS, 1995, p.163)
O grande problema estava no fato de que, ao tentar adequar-se
por puro modismo às tendências teórico intelectuais do centro mundial,
29 Instituto Brasileiro de Economia, sociologia e Política. Fundado em 1953 por intelectuais
oriundos de Rio de Janeiro e São Paulo com a proposta de estudar o Brasil e pensar políticas para a superação do chamado subdesenvolvimento. Em 1955 foi incorporado pelo
governo federal, dando origem assim ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
(Cf. BARIANI, 2015.)
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200
Marxismo.
esses intelectuais alienados incorriam no erro, negligenciando desta maneira a historicidade local. Isto é, o cientista indígena [nacional] é, via
de regra, um répétiteur, hábil muitas vezes, um utilizador de conceitos
pré-fabricados, pobre de experiências cognitivas genuinamente vividas
(RAMOS, 1995, p. 164). Neste caso, a questão estava em não conseguir
apreender as relações sociais e históricas da questão racial no Brasil e
sim procurar apenas reproduzir de forma acrítica o que tinha sido produzido na Europa ou nos EUA. Nota-se que Guerreiro não está defendendo
algum tipo de nacionalismo romântico ou negando a importância da produção intelectual norte-americana ou europeia, apenas relativizando sua
importância. É importante frisar que, para Guerreiro, um dos exemplos
de produção intelectual alienada, que errava ao tentar compreender a
questão racial no Brasil, teria sido a de Nina Rodrigues (1862-1906) e a
de seu principal seguidor, Arthur Ramos (1903-1949). Esses dois intelectuais foram, na visão do sociólogo baiano, exemplos centrais da visão
alienada, acrítica e racista sobre as relações raciais no Brasil.
No artigo “O problema do negro na sociologia brasileira”
(1954), Guerreiro esboçou a possibilidade de criar duas categorias
analíticas para melhor compreensão da produção intelectual sobre
o negro brasileiro. A primeira, de cunho crítico, se baseava no que
ele denomina de atitude analítica crítico-assimilativa (RAMOS, 1995),
ou seja, num método empírico-indutivo, que não negaria a produção
intelectual estrangeira, contudo, procurava se apropriar criticamente dos conceitos e categorias, entendendo a historicidade de cada
um, conferindo também importância à verificação empírica, baseada
sempre no contexto local. Por outro lado, existiria a corrente alienada,
chamada nesse momento de “monográfica”. Mais tarde, na ampliação das suas reflexões, Guerreiro vai denominar essa corrente de
“sociologia consular” e alienada. É justamente nesse segundo grupo
que se encontraria Nina Rodrigues e Arthur Ramos.
A segunda corrente, que pode ser chamada de monográfica, é
fundada por Nina Rodrigues (1862-1906), e continua nas obras
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Marxismo.
de Arthur Ramos, Gilberto Freyre e seus imitadores. O elemento
negro se torna “assunto”, tema de especialistas, cujos estudos
pormenorizados promoveram, entre nós, movimentos de atenção de uma parcela de cidadãos para os chamados afro-brasileiros. (RAMOS, 1995, p. 169)
Os dois autores, Nina Rodrigues e Arthur Ramos, basicamente
tentariam encaixar aspectos da realidade brasileira em categorias ou
mesmo em conceitos pensados para a realidade europeia, daí a ideia de
um negro tema, apontado por Guerreiro. O homem negro seria uma espécie de ser estático, algo a ser analisado por teóricos brancos. Segundo Guerreiro, o negro brasileiro não seria entendido dentro da sua historicidade, mas sim como um mero objeto a fim de comprovar o suposto
atraso do povo brasileiro do país. Nas palavras do sociólogo baiano:
Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro
tem sido entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados ‘antropólogos’ e ‘sociólogos’. Como vida
ou realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu destino, vem
se fazendo a si próprio, segundo lhe têm permitido as condições
particulares da sociedade brasileira. O negro tema é uma coisa
examinada, olhada vista, ora como ser mumificado, ora como ser
curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama atenção (RAMOS, 1995, p.215).
Guerreiro menciona uma dicotomia entre o negro vida e o negro tema. O negro vida seria justamente aquele da realidade, um
ser social, integrado e parte da cultura brasileira. Seria vida porque
não poderia ser pensado a partir de nenhum essencialismo ou de
parâmetros estáticos. Já o negro tema é a redução da humanidade
do negro a um objeto a ser conhecido e estudado, sendo tomado de
forma estática, a-histórica e, na maioria das vezes, de forma racista,
como no caso de Nina Rodrigues.
A grande questão seria entender o porquê dessa linhagem intelectual advinda de Nina Rodrigues e seguida por outros, evidentemente com variações, colocar o negro como problema central que
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Marxismo.
impediria o desenvolvimento do Brasil, ou mesmo tomar as relações
raciais como uma questão estática, o “negro tema”. Uma outra questão seria entender o motivo de essa posição ter ganho tanto destaque
na produção do pensamento intelectual no Brasil. Há duas hipóteses
levantadas pelo sociólogo baiano, ambas acabam por se complementar. A primeira seria a existência de uma certa visão de mundo
chamada por ele de “ideologia da brancura”. O segundo entendimento é que os homens e mulheres brancas no Brasil padeciam de uma
patologia social, alimentada justamente por essa ideologia branca.
Essa ideologia da brancura seria um conjunto de ideias mistificadoras que se fariam presente em boa parte do pensamento intelectual brasileiro, principalmente naquele acusado por Guerreiro de
ser monográfico ou alienado. Essa mistificação faria com que esses
intelectuais não aceitassem a verdade cabal acerca da realidade brasileira: que o país seria constituído em sua maioria por negros, isto é,
o negro é povo, no Brasil (RAMOS, 1995, 200). É importante mencionar que até aquela sociologia tida como crítica também padecia da
ideologia da brancura, embora tenha conseguido avançar em relação
à alienada e tenha contribuído muito mais para o entendimento do
Brasil. Guerreiro cita como esses casos o de Silvio Romero, Euclides
da Cunha e Oliveira Viana (RAMOS, 1995, p. 170). Embora, fosse fundamental a constituição de uma nova sociologia, crítica, ou mesmo
uma sociologia negra (RAMOS, 1995).
A ideologia da brancura seria uma forma dos intelectuais enxergarem o Brasil a partir de uma visão eurocêntrica, cognitivamente
centrada no padrão cultural e fenotípico europeu. Nas palavras do
autor: o negro tem sido estudado no Brasil, a partir de categorias e valores induzidos predominantemente pela realidade européia (RAMOS,
1995, p.163), por isso existiria sempre o “problema do negro”, a necessidade de branqueamento da população, o atraso ocasionado
pela “população de cor” e etc.
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Marxismo.
Podemos apontar que essa “ideologia da brancura” é parte
de uma visão de mundo racista. É possível também comparar com a
perspectiva de Aníbal Quijano quando o autor peruano estabelece a
relação entre o conceito de raça e um novo padrão de poder mundial
centrado na Europa (QUIJANO, 2000). Na visão próxima a de Quijano,
podemos citar uma passagem do artigo “Patologia social do ‘branco’
brasileiro” (1955), onde Guerreiro aponta o período colonial como a
origem da negação do negro e sua associação com o degradante.
Para que a minoria colonizadora mantivesse e consolidasse
sua dominação sobre as populações de cor, teria de promover
no meio brasileiro, por meio de uma inculcação dogmática,
uma comunidade linguística, religiosa, de valores estéticos e
de costumes. (RAMOS, 1995, p.219)
Apontar o problema racial como algo advindo da colonização,
por conta do escravismo, não era algo incomum. Não obstante, o
entendimento de que havia uma manutenção do poder colonial, isto
é, de uma minoria branca em relação a maioria da população, que
seria essencialmente negra e mestiça, interligando esse fato com a
constituição de uma ideologia, ou por que não, de uma espécie de
saber-poder que não só legitimava o ser branco, mas também fazia
com que o negro vivesse uma autonegação da sua própria existência, foi um entendimento ímpar naquele período.
Não por acaso, Renato Ortiz (1986) estabelece uma possibilidade de comparação entre alguns pontos do entendimento sobre a questão racial e a alienação que estão presentes em Guerreiro Ramos com
algumas reflexões que também aparecem na obra de Frantz Fanon
(1925-1961). Essa possível afinidade eletiva estava no entendimento
da existência de um problema de ordem psicossocial de auto-negação
vivenciada pelo próprio negro, algo presente no livro “Peles negras,
máscaras brancas” do próprio Fanon (ORTIZ, 1986, p.50). Em grande
medida, Guerreiro Ramos acaba tendo uma reflexão sui generis ao
apontar a existência de uma ideologia da brancura e a constituição de
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Marxismo.
uma patologia social a partir dela, em plena década de 1950 no Brasil.
Autores como João Feres Jr demonstraram a relação possível entre a
discussão da ideologia da brancura presente nas reflexões de Guerreiro com a teoria da branquitude de origem norte-americana formulada
décadas depois, ao longo dos anos 1970 (FERES JR, 2015. p.112).
A ideologia da brancura produziria uma patologia social justamente porque trabalharia com uma ideia que não corresponderia mais
à realidade brasileira. Na visão do autor, não existia nenhuma comprovação de uma suposta inferioridade do negro, nem mesmo antropologicamente seria possível falar de algum tipo de pureza racial no
Brasil, pois o país seria biologicamente constituído de mestiços e sua
cultura seria uma construção híbrida (RAMOS, 1995, p.231). Por isso,
a brancura seria uma patologia, que deveria ser encarada não apenas
como uma discussão entre pessoas brancas e negras, mas como um
problema nacional. A ideologia da brancura, por ser uma alienação, seria um entrave para a construção da nação. Nas palavras de Guerreiro
O brasileiro, em geral, e, especialmente o letrado, adere psicologicamente a um padrão estético europeu e vê os acidentes
étnicos do país e a si próprio, do ponto de vista deste. Isto é
verdade, tanto com referência ao brasileiro de cor como ao claro. Este fato de nossa psicologia coletiva é, do ponto de vista da
ciência social, de caráter patológico, exatamente porque traduz
a adoção de critério artificial, estranho à vida, para a avaliação
da beleza humana. Trata-se, aqui, de um caso de alienação que
consiste em renunciar à indução de critérios locais ou regionais
de julgamento do belo, por subserviência inconsciente a um
prestígio exterior. (RAMOS, 1995, p.195)
Como é possível observar, o branco brasileiro, apesar de estar numa posição dominante, também possuía uma autoconsciência alienada, pois ao tentar reproduzir no Brasil uma realidade social
europeia, caía justamente na necessidade de negar a realidade nacional, promovendo desta maneira o preconceito de cor, impossibilitando uma tarefa fundamental que era a construção de um país
desenvolvido, moderno e soberano.
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Marxismo.
É importante frisar que o próprio fato do negro ser um “tema”,
em estudos como os de Nina Rodrigues, evidenciava a patologia do
branco. Ao fazer essa operação teórico-metodológica o intelectual reconhecido como “branco” psicologicamente se tornaria mais branco,
aproximando-se de seu arquétipo – que é o europeu (RAMOS, 1995,
p. 226). Tratar o negro como um “tema” seria uma forma de figuras
racistas, que negavam sua condição brasileira mestiça, se considerarem brancas e mais próximas do padrão supostamente correto,
o europeu. Pensar o negro como um dado antropológico, como se
fosse algo distante e exótico na cultura brasileira, seria uma forma de
compensação psicológica, criando assim um distanciamento entre
esse intelectual e a massa popular que ele renegava.
Diante dos fatos elencados, a possibilidade de vivenciar um
“país desenvolvido” não passava apenas pelo âmbito econômico, mas
também pelo cultural. Não bastava apenas o desenvolvimento econômico, a industrialização. Seria preciso avançar também em outras
áreas, porque o Brasil não se constituiria enquanto uma nação moderna caso não superasse sua patologia social. A ideologia da brancura,
conforme apresentado por Guerreiro, é um problema duplo. Na mesma medida que não deixava de ser um problema racial, entre negros
e brancos, ela também se tornava um problema de ordem nacional,
porque impedia o pleno desenvolvimento do Brasil e fazia com que
boa parte da população ainda mantivesse um parâmetro cultural e político centrado no europeu. Esse fato impediria inclusive de se pensar
saídas próprias para os problemas locais.
A ideologia da brancura, conforme descrita por Guerreiro,
não afetava apenas os brancos, mas também pessoas mestiças e
negras, culturalmente embranquecidas (RAMOS, 1995, p.197). Não
por acaso, a importância da prática do psicodrama organizada pelo
intelectual no TEN. O fato de afetar tanto brancos quanto negros e
mestiços está interligado diretamente ao entendimento do autor que,
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Marxismo.
em termos antropológicos, a população brasileira seria mestiça (RAMOS, 1995, p. 230). Não obstante, mesmo que transpareça na obra
de Ramos, é importante mencionar que, apesar de perder, o branco
brasileiro acabava sendo o beneficiado em alguma medida, até porque não era ele a sofrer com o racismo.
Como superar então a ideologia da brancura e sua patologia?
Inicialmente seria fundamental que o negro buscasse a superação
dessa falsa consciência. Mas como realizar essa ação? O sociólogo
baiano acaba por fazer uma junção teórica que une suas leituras sobre
a teoria da negritude francófona, especialmente aquela oriunda dos
escritos de Aimé Cesaire, com o personalismo, tão caro a seu período
de jovem católico na Bahia, algo fundamental em sua formação enquanto intelectual. Esse fato gera o que Muriatan Barbosa denominou
de Personalismo negro (BARBOSA, 2015, p.143).
Para tal, Guerreiro apontava a necessidade do homem e da
mulher negra criarem uma autoconsciência, superando, desta forma,
qualquer vinculação com uma ideia de inferioridade. Esse procedimento o sociólogo denominou de Niger Sum, isto é, o “sou negro”, o auto
reconhecimento de suas origens e suas características fenotípicas.
Nas palavras do autor:
Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu
está inserido, atribuo à sua cor a suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e considero a minha condição étnica
como um dos suportes do meu orgulho pessoal – eis aí toda
uma propedêutica sociológica, todo um ponto de partida para
a elaboração de uma hermenêutica da situação do negro no
Brasil. (RAMOS, 1995, p.199)
O Niger sum seria o caminho fundamental para que homens e
mulheres negras rompessem com as amarras ideológicas e culturais
que ainda atribuíam ao negro qualquer caráter estereotipado ou de
inferioridade. A autoafirmação existencial da negritude num primeiro
momento pode parecer um impeditivo para se pensar a construção
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da nacionalidade, entretanto, a perspectiva de Guerreiro não trabalha com a lógica de uma supremacia frente a outra. A emergência da
negritude só poderia se desenvolver a partir da suspensão da condição alienada, a brancura (BARBOSA, 2015, p.180). Nessa chave, a
afirmação existencial do Niger sun é condição sine qua non da construção da nacionalidade, posto que é ela quem confere o verdadeiro
sentido à cultura nacional autêntica. Nota-se que o objetivo da consciência emancipatória da negrura tem um objetivo democratizante e
visa uma possível construção verdadeira de uma harmonia racial no
Brasil (Cf. GUIMARÃES, 2004).
Ora, se para o negro era preciso seu autorreconhecimento, assumindo com orgulho sua condição, e para o branco? Para Guerreiro,
era necessário um tipo de educação que rompesse com a patologia: o
branco precisaria ser reeducado para superar seu racismo (BARBOSA,
2015, p.181). O TEN também propôs a realização de uma série de outras atitudes no sentido de combater o denominado “preconceito racial”.
Não obstante, a questão do desenvolvimento voltava a aparecer com
centralidade na reflexão de guerreiriana, se o negro era povo no Brasil,
uma das premissas para resolver a questão do racismo seria solucionar
o problema do atraso e do subdesenvolvimento, ou seja, o aspecto econômico não era negligenciado e inclusive tomava centralidade. Superar
o subdesenvolvimento seria uma forma de integrar economicamente as
massas pobres do povo brasileiro, negras em sua maioria.
Como foi possível observar, só seria possível construir o ser nacional, ou seja, a nacionalidade através da superação da ideologia da
brancura e da formação da autoconsciência negra. Seria uma nova nacionalidade: o ser nacional seria a superação daquele ser alienado, advindo de um país atrasado, de passado colonial e racista. O ser nacional,
portanto, seria um brasileiro autoconsciente de sua condição, não alienado e que pudesse compreender o Brasil a partir de seu próprio ponto
de vista, o chamado ponto de vista nacional (RAMOS, 1960, p.148).
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ALGUMAS CONCLUSÕES POSSÍVEIS
Em síntese, é possível notar que a “ideologia da brancura” e a
questão da “patologia do branco brasileiro”, conforme entendidas por
Guerreiro Ramos, não seriam apenas problemas relacionados a uma
dominação de cunho racial, mas um problema que tinha como fundo a
constituição da nacionalidade. A nação é o grande conceito de fundo
que interliga as preocupações de Guerreiro, mesmo que nesse período, entre fins da década de 1940 e meados de 1950, não transpareça
de forma tão marcante conforme na segunda metade da década e
início dos anos 1960, quando essa preocupação fica mais evidente.
Um outro ponto importante é observar que a proposta do Niger
Sun possui relação direta com os escritos da Negritude Francófona.
Para Aimé Cesaire, a negritude é o simples reconhecimento do fato de
ser negro, a aceitação de seu destino, de sua história e de sua cultura
(MUNANGA, 2016, p.115-116), procedimento bastante semelhante ao
Niger Sun de Guerreiro. Não obstante, a perspectiva e a proposta da
negritude buscam transcender as limitações nacionais e locais, trabalhando com uma ideia de solidariedade internacional (MUNANGA,
2016, p.116). Em Guerreiro, embora não exista nenhuma negativa no
sentido de transcender as fronteiras nacionais, a preocupação central
está dentro da nação. Isto é, a consciência emancipadora do Niger Sun
visa, prioritariamente, resolver um problema tido como brasileiro, tendo
em vista a construção de uma sociedade nacional futura. O “Brasil,
país do futuro” deveria ser justo, igualitário, soberano e antirracista.
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209
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sumário
210
Marxismo.
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SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão
racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
sumário
211
12
Micheli Longo Dorigan
O famoso racismo à brasileira:
miscigenação e discriminação
racial em Lilia Schwarcz
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.12
Marxismo.
INTRODUÇÃO30
Nas palavras de Lilia Schwarcz (2012d), raça, no Brasil, sempre
deu o que falar. Ao longo da história de nosso país, a questão racial
sempre teve grande espaço de discussão, desde as teorias evolucionistas, aos romances na literatura, e até mesmo em questões de
Estado. Contudo, apesar das limitações encontradas no conceito biológico, assim como no esforço de desconstruir o seu significado histórico, subsistem as implicações sociais. Nessa perspectiva, conforme a
autora, a ideia de raça persiste como representação poderosa, como
um marcador social de diferença - ao lado de categorias como gênero,
classe, região e idade, que se relacionam e retroalimentam - a construir
hierarquias e delimitar discriminações. (SCHWARCZ, 2012b, p.33-34)
Nesse sentido, de acordo com Schwarcz, raça constituiu uma categoria classificatória que deve ser compreendida enquanto uma construção local, histórica e cultural, que pertence à ordem das representações sociais, enquanto mitos e ideologias. Além disso, exerce influência
real no mundo, através da produção e reprodução de identidades coletivas e de hierarquias sociais politicamente fortes. É dessa maneira
que, conforme a autora, apesar da produção que visa naturalizar as
diferenças, promovidas desde o século XIX, se sobressaem as crenças
em atributos ligados às raças, na forma de mitos sociais, fomentando a
hierarquização dos indivíduos. Assim, segundo Schwarcz, faz-se necessário refletir sobre as especificidades da história brasileira, que internalizou a desigualdade e informalizou a discriminação.
Nessa perspectiva, de acordo com a autora, apesar de sempre
retornarmos à mistura racial, ao pensar na identidade brasileira, pouco
30 O presente trabalho contém partes do relatório final do Projeto Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica ‘’ O mestiço como retórica: o racismo e a identidade brasileira na obra
de Lilia Schwarcz’’, realizado no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.
sumário
213
Marxismo.
se fala ou se questiona sobre raça no senso comum, e sempre que
surge algum problema, é logo atribuído ao âmbito pessoal. É esse o
motivo pelo qual, Lilia Schwarcz, em pesquisa realizada em 198831,
explica o fato de os brasileiros sentirem viver numa ilha de democracia
racial, onde existem, todavia, pessoas racistas. Assim, enquanto 97%
dos entrevistados afirmaram não possuir preconceito, 98% conheciam
pessoas, sobretudo, próximas que o possuíam. Em 1995, em pesquisa
semelhante da Folha de S.Paulo, 89% das pessoas participantes concordaram com a existência do preconceito de cor, e só 10% admitiram
tê-lo, embora 87% o apresentassem de alguma forma. O estudo foi repetido em 2011, mostrando resultados parecidos, o que mostra como,
no Brasil, o preconceito sempre é atribuído ao outro.
Estamos diante, portanto, de uma forma particular de racismo. Chamado por Florestan Fernandes de um “preconceito
retroativo; um preconceito de ter preconceito” (1972), a questão parece indicar uma postura que sabe da discriminação,
mas prefere sempre não tematizá-la. Trata-se também de um
“racismo cordial”, na feliz expressão encontrada pela Folha
de S. Paulo, que, para fora, se mostra muito amável, mas, na
prática, reproduz hierarquias cristalizadas e intocadas. Com
efeito, a expressão vem de Sérgio Buarque de Holanda, que,
em Raízes do Brasil (1936), aludia ao caráter cordial do brasileiro. Dizendo que o termo vinha de “coração” e indicava uma
mistura complicada entre esferas públicas e privadas de atuação, o famoso historiador apontava para impasses em nosso
processo de cidadania. (SCHWARCZ, 1996, p.156)
Tais assuntos são trabalhados e discutidos no livro de Lilia Schwarcz, referência na discussão do pensamento racial brasileiro, Nem
preto nem branco, muito pelo contrário. Cor e raça na sociabilidade
brasileira (2012b), cuja primeira versão, aparece na História da vida
privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea (1998). Sendo assim, o objetivo central da pesquisa é analisar e compreender
a discussão a respeito da identidade brasileira, fortemente atrelada
31 A pesquisa foi realizada na Universidade de São Paulo.
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Marxismo.
à mestiçagem, e sua concomitante relação com a questão racial no
Brasil, nas considerações da autora.
Nesse sentido, partimos do pressuposto de que refletir e analisar os aspectos contraditórios dos nossos símbolos e de nossa história, assim como da realidade social, se mostra de suma importância
para compreender nosso tipo particular de racismo e desmistificá-lo.
A orientação metodológica da presente pesquisa, se pautou majoritariamente nos pressupostos de Marshal Sahlins (1990), na combinação das
análises antropológicas e históricas, sincrônicas e diacrônicas. Assim,
dialogando com o modelo estrutural, no que tange a sua significância e
permanência, assim como o contexto, a cultura e a história, a fim de entender como, a mestiçagem e o preconceito de cor, concorrem estrutural
e dinamicamente, para a perpetuação do passado no presente.
A QUESTÃO RACIAL EM DESTAQUE
De acordo com Schwarcz, é só com a da Abolição da escravidão e com o fim da monarquia que a questão racial ganha pleno destaque, uma vez que com a Primeira República, e a institucionalização
da cidadania, os escravizados entrariam na condição de ‘‘cidadão’’,
num momento onde ideais de liberdade e igualdade seriam “levados a
sério” pela Constituição. Todavia, na prática, com a entrada das teorias
raciais, uma série de instituições, pautadas em projetos científicos e
deterministas ganhavam estrutura, a fim de justificar as desigualdades
existentes. (SCHWARCZ, 2012b)
Segundo a autora, nessa época, a ciência, positiva e determinista, defendia a diferenciação entre os grupos raciais, dialogando com
as principais teorias antropológicas e biológicas do momento, na mensuração de cérebros e na aferição das características físicas. Nesse
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Marxismo.
período, a antropologia e a biologia no período, tinham papel fundamental enquanto função social no paradigma racial no Brasil, repercutindo sua ideologia nas mais diversas instituições. (SCHWARCZ, 1992)
Aí estavam marcadores sociais de diferença dos mais vigorosos, porque moldados por critérios considerados racionais e
objetivos, que agora faziam grande sucesso. Esse era um novo
racismo científico, que acionava uma pletora de sinais físicos a
definir a inferioridade e a falta de civilização, assim como estabelecia-se uma ligação agora obrigatória entre aspectos “externos”
e “internos” dos homens. Narizes, bocas, orelhas, cor de pele,
tatuagens, expressões faciais e uma série de “indícios” eram rapidamente transformados em “estigmas”, definidores da criminalidade e da loucura, considerada uma “epidemia”, disseminada
por entre a população mestiçada (SCHWARCZ, 2012a, p.63).
Além disso, de acordo com Schwarcz, a literatura naturalista e a
antropologia determinista associaram-se num projeto em comum, numa
época de busca e conformação de um saber científico nacional. O objetivo era, partir das concepções evolucionistas para abalar as estruturas
das instituições tradicionais, ligadas ao escravismo e a monarquia, submetendo toda a cultura brasileira em processo de construção, a esse
novo ideal. (SCHWARCZ, 1992) Nesse contexto, conforme Schwarcz, a
“raça” foi introduzida com base nos pressupostos biológicos da época,
definindo os grupos segundo seu fenótipo, eliminando assim, a possibilidade de pensar no indivíduo e no exercício da cidadania. Dessa
maneira, em vista da promessa de uma igualdade jurídica, a resposta foi
a ‘‘comprovação científica’’ da desigualdade biológica entre os homens,
ao lado da manutenção peremptória do liberalismo, tal como exaltado
pela nova República de 1889. (SCHWARCZ, 2012b, p. 38)
Ademais, de acordo com Schwarcz, entre os cientistas estrangeiros, existia o consenso de um Brasil descrito como um “laboratório
de raças”, onde a miscigenação ocupava papel de protagonista. Nesse momento, coexistiam duas vertentes de pensamento, uma positiva,
que enxergava na mistura racial a nossa esperança, e outra negativa,
em que esta seria nossa sentença de degeneração.
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Marxismo.
Nesse período, Schwarcz destaca o papel do cientista João
Baptista Lacerda (1911) que defendia a tese de que a mestiçagem
brasileira seria transitória e benéfica, e que com o incentivo a imigração
europeia, a nação, em um futuro não tão distante, seria branca. Ainda,
para o autor, como no Brasil não existiam os padrões de preconceito e
exclusão dos Estados Unidos da América do Norte, as previsões eram
sobretudo positivas para a identidade brasileira. (SCHWARCZ, 2012b)
Além disso, segundo a autora, a inspiração que o Brasil buscou
nas teorias evolucionistas e deterministas europeias, não ocorreu de
forma mecânica, mas sim, e particularmente no nosso caso, teve o
papel de reordenar e remontar, adequando-as à realidade da época,
que era no mínimo contraditória em relação a europeia. Tais teorias,
apesar de justificarem a intensa desigualdade e hierarquia, já bastante
abalada pelo contexto, acabavam por prejudicar a ideia de um projeto nacional brasileiro, uma vez que a degeneração da raça, efeito da
miscigenação, era profundamente preocupante, além de ser um dos
pilares da teoria darwinista social. Assim, conforme Schwarcz era preciso passar pelo pessimismo da via degeneracionista européia, sem de
fato assimilá-la. (SCHWARCZ, 1992, p.162-163)
Tingido pela entrada maciça de imigrantes — brancos e vindos
de países como Itália e Alemanha —, introduziu-se no Brasil
um modelo original, que, em vez de apostar que o cruzamento
geraria a falência do país, descobriu nele as possibilidades do
branqueamento. Dessa forma, paralelamente ao processo que
culminaria com a libertação dos, iniciou-se uma política agressiva de incentivo à imigração, ainda escravos nos últimos anos do
Império, marcada por uma intenção também evidente de “tornar
o país mais claro”. (SCHWARCZ, 2012b, p.39)
A saída encontrada pelos cientistas brasileiros, foi absorver o
ideal de que as raças significavam realidades essenciais, e em contrapartida, negar a noção de que a mestiçagem seria sinônimo de degeneração. Desse modo, de acordo com Schwarcz, a partir da união
entre os modelos evolucionistas e do darwinismo social, pregou-se
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no Brasil, uma ciência que justificava a desigualdade enquanto inferioridade, mas também uma ciência que defendia uma miscigenação
positiva, apostando no branqueamento da população. Assim, segundo
a autora, o processo de abolição no país carregava consigo algumas
singularidades, em primeiro lugar, a crença enraizada de que o futuro
levaria a uma nação branca. Em segundo, o alívio decorrente de uma
libertação que se fez sem lutas nem conflitos e sobretudo evitou distinções legais baseadas na raça. (SCHWARCZ, 2012b, p.39-40)
Ao contrário da imagem dominante em outros países, onde o
final da escravidão foi entendido como o resultado de um longo
processo de lutas internas, no Brasil a Abolição foi tida formalmente como uma dádiva — no sentido de que teria sido um
“presente” da monarquia, e não uma conquista popular. Mas a
mão de obra escrava e a presença africana no Brasil não podem ser entendidas apenas como respostas passivas diante
de um ambiente adverso. Na verdade, eles inventaram suas
condições de vida e de sobrevivência no regime escravista de
duas maneiras principais: pela negociação e pelo conflito. [...]
No entanto, a imagem oficial como que apagou esse tipo de
manifestação, a despeito de a Primeira República ser marcada
por uma agenda de manifestações sociais, incluindo demanda
de grupos negros. O ambiente, porém, seria diferente: em lugar
do estabelecimento de ideologias raciais oficiais e da criação de
categorias de segregação, como o apartheid na África do Sul
ou a Jim Crow nos Estados Unidos, projetou-se aqui a imagem
de uma democracia racial, corolário da representação de uma
escravidão benigna. (SCHWARCZ, 2012b, p.40-41)
REESCREVENDO NOSSA HISTÓRIA
Por conseguinte, segundo Schwarcz, a partir de 1920, com o
processo de construção do Estado nacional, o Brasil constituiria e representaria um caso interessante, sem praticamente e aparentemente
nenhum conflito étnico ou regional, e dominação racial. Nessa época, a
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inexistência de categorias explícitas de dominação racial contribuía para
a criação da imagem de um paraíso racial, e a recriação de uma história
em que a miscigenação aparecia associada a uma herança portuguesa
particular e à sua suposta tolerância racial, revelada em um modelo escravocrata mais brando. (SCHWARCZ, 2012b, p.42) Dessa maneira, conforme a autora, o passado escravocrata foi reconstruído de forma positiva,
enquanto um recomeço a partir do zero, a exemplo da atitude de Rui
Barbosa, em 1890, na queima dos registros nacionais sobre escravidão.
Sobretudo a partir do final dos anos 20, os modelos raciais de
análise começam a passar por uma severa crítica, à semelhança do que já acontecera em outros contextos intelectuais. As
diferenças entre os grupos deveriam ser explicadas a partir de
argumentos de ordem social, econômica e cultural, não se levando mais em conta as supostas diferenças biológicas e somáticas. Raça, nesse contexto, aparece quase como um ‘slogan
de época’, uma noção em desuso que deveria ser rapidamente
extirpada do vocabulário local. (SCHWARCZ, 1995 p. 5)
Nesse contexto, de acordo com Schwarcz, buscou-se a princípio,
defender que o Brasil, em um futuro não tão distante, seria branco, fosse
pela seleção natural ou pela entrada de imigrantes brancos. Contudo,
após a Segunda Guerra Mundial, e o processo de descolonização do
domínio europeu nos países da África, acontece uma mudança radical
de paradigmas, advinda da experiência dos atritos e embates internacionais, que apresentou às pessoas o futuro de um mundo carregado de
ódio ligados a termos raciais e nacionais. (SCHWARCZ, 2012b)
A partir desse momento, conforme a autora, os ideais de mestiçagem começam a ser intensamente valorizados. E assim, a narrativa
romântica dos senhores severos, mas paternais e escravos submissos
e prestativos encontrou terreno fértil ao lado de um novo argumento, que
afirmava ser a miscigenação [...] um fator impeditivo às classificações
muito rígidas e apenas bipolares (SCHWARCZ, 2012b, p. 44), onde a
sociedade se constituiria em negros de um lado, e brancos de outro.
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Em um país onde o modelo branco escapava ao perfil anglo-saxônico, uma vez que já era em si miscigenado — afinal, os
portugueses eram famosamente uma nação dada a contatos
populacionais, que iam da Índia até o Brasil, passando pela África —, as cores tenderam a variar de forma comparativa. Quanto
mais branco melhor, quanto mais claro mais superior, eis aí uma
máxima difundida, que vê no branco não só uma cor mas também uma qualidade social [...] Nesse contexto, em que o conflito passa para o terreno do não dito, fica cada vez mais difícil ver
no tema um problema; ao contrário, ele se modifica, nos anos
1930, em matéria para exaltação. (SCHWARCZ, 2012b, p. 44)
Era a cultura mestiça que, na década de 1930, emergia como
símbolo oficial da nação. Nesse período, o movimento nacionalista,
segundo Schwarcz, de criação de símbolos nacionais, assim como em
outros países, se constituiu de forma ambígua, com interesses privados assumindo caráter público. Além disso, de acordo com a autora,
o próprio discurso da identidade foi fruto dessa ambivalência, envolvendo questões que dialogavam com o público e o privado, e trazendo
para a cena noções como ‘‘passado’’ e ‘‘povo’’, elementos cruciais
na elaboração de uma nacionalidade imaginada. (SCHWARCZ, 2012b)
Assim, conforme Schwarcz, a narrativa oficial faz uso de elementos disponíveis, como a história, a tradição, rituais formalistas e aparatosos, e por fim seleciona e idealiza um ‘‘povo’’ que se constitui a partir
da supressão das pluralidades. (SCHWARCZ, 2012b, p.47) É com essa
perspectiva, que o governo, durante o Estado Novo, busca implantar
projetos oficiais a fim de reconhecer a mestiçagem como principal característica da nacionalidade brasileira.
É claro que todo esse processo não se dá de maneira aleatória ou meramente manipulativa. No Brasil dos anos 1930, dois
grandes núcleos aglutinam conteúdos particulares de nacionalidade: o nacional-popular e sobretudo a mestiçagem, não
tanto biológica como cada vez mais cultural. É nesse contexto
também que uma série de intelectuais ligados ao poder público
passa a pensar em políticas culturais que viriam ao encontro de
“uma autêntica identidade brasileira”. Com esse objetivo é que
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Marxismo.
são criadas ou reformadas diversas instituições culturais que
visavam “resgatar” (o que muitas vezes significou “inventar”, ou
melhor, “selecionar e recriar”) costumes e festas, assim como
um certo tipo de história. (SCHWARCZ, 2012b, p.47-48)
Além de tudo, Schwarcz busca compreender o que tais símbolos nacionais revelam, e é Peter Fry (2005) quem a ajuda a refletir
sobre questão, a fim de perceber a ideologia da miscigenação e da ausência de preconceito como pilares fundamentais na compreensão de
nosso pensamento social, na forma de verdadeiros mitos estruturais.
(SCHWARCZ, 2006) Para isso, Schwarcz recorre a Benedict Anderson
(1991), na defesa de que o diálogo entre mitos e símbolos compartilhados com o passado, constituem elementos essenciais para a criação
de uma nacionalidade imaginada, onde é criada uma memória social
capaz de agrupar indivíduos de um país. Além disso, dentro dessa
perspectiva, a autora lembra as reflexões de Paul Ricoeur (2007) sobre
memória, história e esquecimento, e como acontece a definição do
que será lembrado ou não. (NEVES, MOUTINHO, SCHWARCZ, 2019)
O uso político da memória social tem sido explorado, sobretudo
em relação ao período de constituição dos Estados nacionais
que, para autores como Eric HOBSBAWN (1984), foram marcados pela criação de tradições que se queriam discursos nacionais capazes de integrar toda a população em uma mesma
identidade.[...]Em resumo, a invenção de tradições nacionais
foi a lógica que permeou o processo de construção das identidades e dos estados nacionais, consolidando narrativas que
soldavam (não sem violência) solidariedades entre grupos heterogêneos. (NEVES, MOUTINHO, SCHWARCZ, 2019 p.3)
Ainda:
Essa fixação nacionalista da memória coletiva (Maurice HALBWACHS, 1990) se fará de diversas maneiras, desde livros e canções
até os chamados lugares da memória (Pierre NORA, 1993). Trata-se, sem dúvida, do uso da memória como estratégia de construção de identidade nacional e de lógicas de pertencimento a
um lugar, mas também meios de transmissão de certos valores e
visões de mundo. Um processo que se afirma de modo complexo
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Marxismo.
envolvendo também um emaranhado de instituições, burocracias,
leis, práticas e tecnologias de governo (Antônio Carlos de SOUZA LIMA, 2002; Adriana VIANNA, 2014; MOUTINHO, 2004; 2012;
2017a).’’ (NEVES, MOUTINHO, SCHWARCZ, 2019 p. 3)
Nesse contexto, a antropóloga expõe o papel de São Paulo na
transformação dos bandeirantes em ‘‘heróis de uma raça’’, destituindo-os de seu sentido original e atribuindo a eles, uma dimensão grandiosa, enquanto símbolos do caráter empreendedor do paulistano.
Além da tentativa de apagar o passado imperial, pelas Minas Gerais
barrocas, que são reinventadas como o ‘‘berço de nossa cultura’’, exaltando o caráter mestiço do lugar. Para mais, de acordo com Schwarcz,
igualmente emblemático, foi a publicação de Gilberto Freyre (2003),
com o livro Casagrande & senzala, em 1933, apresentando às pessoas
um novo sentido a fábula das “três raças”, e uma nova maneira de
pensar a diversidade racial brasileira. (SCHWARCZ, 2012b) Para ele,
mesmo mista, a cultura brasileira era homogênea, e original, com negros, índios e brancos vivendo em consonância e harmonicamente.
Fundamentado em Franz Boas, o autor defende em sua obra a
importância das influências sociais e culturais, em detrimento dos parâmetros puramente biológicos, evidenciando a diferença entre raça e cultura. Em contrapartida, segundo Schwarcz, partindo da vida privada das
elites nordestinas, Freyre defende também, a ideia de uma ‘‘boa escravidão’’, oposta a existente nos Estados Unidos, com bons proprietários,
assim como escravos dadivosos. Antes dele – em 1900- Joaquim Nabuco (2003), grande referência de Freyre, e um dos principais líderes abolicionistas, em seu conhecido texto Massangana, já relatava de maneira
emotiva e nostálgica, essa “boa escravidão”. Nela, a violência do sistema econômico passava despercebida em detrimento da relação afetiva
entre os senhores e os escravos domésticos. (SCHWARCZ, 2012b)
Era assim que o cruzamento de raças passava a singularizar
a nação nesse processo que leva a miscigenação a parecer
sinônimo de tolerância e hábitos sexuais da intimidade a se
transformarem em modelos de sociabilidade. [...] A partir dos
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Marxismo.
anos 1930, no discurso oficial ‘o mestiço vira nacional’, ao lado
de a um processo de desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente clareados. Esse é o caso da feijoada,
naquele contexto destacada como um “prato típico da culinária
brasileira”. A princípio conhecida como “comida de escravos”,
a feijoada se converte em “prato nacional”, carregando consigo
a representação simbólica da mestiçagem. [...] A capoeira - reprimida pela polícia do final do século passado e incluída como
crime no Código Penal de 1890 - é oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937.69 Também o samba passou
da repressão à exaltação, de “dança de preto” à “canção brasileira para exportação”. Definido na época como uma dança
que fundia elementos diversos, nos anos 1930 o samba sai da
marginalidade e ganha as ruas, enquanto as escolas de samba
e os desfiles passam a ser oficialmente subvencionados a partir
de 1935. (SCHWARCZ, 2012b, p.49-59)
Desse modo, na elaboração de uma cultura nacional popular e
mestiça elementos como a feijoada, a capoeira e o samba, emergem
como símbolos da pátria, ‘‘deixando de lado’’ todo o estigma e a repressão a que estavam associados. Concretizava-se assim, o país de
Gilberto Freyre, em que imperava a harmônica convivência racial. Desse modo o caráter de exaltação do nacionalismo do governo de Getúlio Vargas – inspirado nos regimes autoritários da Europa – ganham
corpo na “brasilidade” e na busca dos reais valores nacionais. Como
exemplo dos acontecimentos dessa época, podemos citar o famoso
evento da queima de bandeiras estaduais, substituídas pela bandeira
do Brasil, e a introdução de novas datas cívicas como o Dia da Raça,
criado para exaltar a suposta tolerância racial brasileira.
UMA MUDANÇA DE PARADIGMAS
Ademais, segundo Schwarcz, o impacto e a penetração desse
tipo de interpretação que defendia a situação racial amistosa existente
no Brasil, levaram a aprovação de um projeto, em 1951, financiado
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Marxismo.
pela Unesco, e intermediado no país, por Alfred Métraux. Nessa época,
irrompem diversas críticas às concepções deterministas de raça, junto
com o perecimento dos ideais de “boa colonização” do imperialismo.
(SCHWARCZ, 2012b) É dentro dessa perspectiva, que a Unesco, foi
criada em 1945, pela ONU, com o princípio de contribuir na defesa da
paz mundial, e da diversidade racial, na luta contra o racismo científico,
pilar da desigualdade e guerras entre os homens.
Nessa época, a instituição promovia diversos seminários a fim
de discutir essas questões. Gilberto Freyre, também foi parte ativa da
constituição desses seminários, além de propagar seu pensamento
no exterior, por meio de palestras, conferências, artigos e publicações.
Assim, fundamento nas concepções de Freyre, assim como de Donald
Pierson, e tendo como base as diferentes relações raciais existentes
no Brasil e Estados Unidos, a UNESCO acreditava existir no Brasil uma
grande harmonia entre os grupos étnicos. (SCHWARCZ, 2012b)
É nessa lógica que surge, na década de 1950, o Programa de
Pesquisas sobre Relações Raciais no Brasil, na busca de um modelo
de inspiração e exportação para outras nações. Nesse projeto, especialistas como Costa Pinto, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira, Roger
Bastide e Florestan Fernandes, foram contratados para estudar as relações raciais em diferentes regiões. Da parte da Unesco havia, portanto,
a expectativa de que os estudos fizessem um elogio da mestiçagem e
enfatizassem a possibilidade do convívio harmonioso entre etnias nas
sociedades modernas. (SCHWARCZ, 2012b, p. 69)
No entanto, se algumas obras – como As elites de cor (1955),
de autoria de Thales de Azevedo – se engajavam no projeto
de ideologia antirracista desenvolvido pela organização, outras
passaram a efetuar uma revisão nos modelos assentados. Este
é o caso das análises de Costa Pinto para o Rio de Janeiro e
de Roger Bastide e Florestan Fernandes para São Paulo, que
nomearam as falácias do mito: em vez de democracia surgiam
indícios de discriminação, em lugar da harmonia, o preconceito.
(SCHWARCZ, 2012b, p. 69)
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Dentre as análises mais reveladoras, Schwarcz destaca as de
Florestan Fernandes (2013), que pretendia esclarecer o imaginário social de que a ausência de conflitos abertos entre os grupos, seriam
índices de uma boa convivência racial. Segundo o autor, a abolição
da escravidão, e a pressuposta igualdade nas leis e no trabalho, não
teriam efeito transformador nos padrões tradicionais de acomodação
racial. Além disso, a noção de tolerância racial presente no país, intensificaria a distância entre negros e brancos, uma vez que dada a
inexistência de um problema racial, não seria necessário medidas e
esforços para contorna-lo. Ainda, Fernandes notou a existência de um
tipo particular de racismo vigente no Brasil: ‘‘o preconceito de ter preconceito’’, resultado da agência dos mores cristãos nos senhores, que
adotariam uma postura ambígua, onde as orientações práticas eram
totalmente adversas as obrigações ideológicas.
Ou seja, a tendência do brasileiro seria continuar discriminando,
apesar de considerar tal atitude ultrajante (para quem sofre) e
degradante (para quem a pratica). Resultado da desagregação
da ordem tradicional, vinculada à escravidão e à dominação senhorial, essa polarização de atitudes era, segundo Fernandes,
uma consequência da permanência de um etos católico. [...]
É por isso que o preconceito de cor no Brasil seria condenado
sem reservas, como se representasse um mal em si mesmo.
Não obstante, a discriminação presente na sociedade mantinha-se intocada, desde que preservado um certo decoro e que
suas manifestações continuassem ao menos dissimuladas.
O racismo aparece, dessa maneira – e mais uma vez –, como
uma expressão de foro íntimo, mais apropriado para o recesso
do lar, quase um estilo de vida. (SCHWARCZ, 2012b, p. 70)
Contudo, nas considerações de Schwarcz, além de evidenciar
esse modo particular de preconceito, é necessário um esforço para entender a sua permanência e sua manutenção. Nesse sentido, Manuela
Carneiro da Cunha (2009), ajuda a autora a refletir sobre a questão, ao
discorrer sobre as diversas maneiras de perceber a cultura de um país.
Segundo Cunha (2009), existiriam dois tipos de cultura: a primeira, seria
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um patrimônio geral, e a outra, constituiria uma propriedade particular
de cada indivíduo e por eles seria agenciada. A partir disso, segundo
Schwarcz, podemos pensar, em como o mito da democracia racial se
manteve com as mudanças na estrutura, se reorganizando, do passado ao presente, e sendo traduzido na esfera privada. Assim, de acordo
com a autora A oportunidade do mito se mantém, para além de sua desconstrução racional, o que faz com que no Brasil, mesmo aceitando-se o
preconceito, a ideia de harmonia racial se imponha aos dados e à própria
consciência da discriminação. (SCHWARCZ, 2012b, p. 74)
E é essa “cultura” (com aspas) que tem sido manipulada de maneira ampla, assumindo novo papel como argumento político.
Vale a pena assinalar a mudança de axioma: se o período do
pós-guerra defendeu a universalização dos direitos, mais recentemente a ênfase recaiu nos direitos das minorias. Ora, nesse
mundo das diferenças, nada como acionar a “cultura” (com aspas) enquanto recurso para afirmar novas identidades, e raça
seria um poderoso operador nesse sentido. Assim, se pensarmos não em raça como um conceito biológico, mas - fazendo
um paralelo com o modelo da antropóloga - em “raça” entre aspas, veremos como temos pela frente um marcador crucial, que
permite demonstrar a qualidade reflexiva da cultura, e como ela
estabelece um fio de tensão que liga e separa - reflexivamente
-antropologia e política. (SCHWARCZ, 2012c, p.98)
Nessa lógica, segundo a autora, embora a mestiçagem não seja
uma característica única do Brasil, foi nele em que o mito de uma convivência racial harmônica ganhou raízes na cultura do país, se tornando
o modelo oficial. Além disso, foi também em nosso país que a cor se
tornou o “somatório” de diversos elementos físicos, sociais e culturais, e
parece variar conforme o dia (pode-se estar mais ou menos bronzeado), a
posição de quem pergunta e o lugar de onde se fala (dos locais públicos
à intimidade do lar). (SCHWARCZ, 2012b, p. 112) Desse modo, de acordo com Schwarcz, simplesmente reconhecer a existência do racismo,
não leva a sua compreensão nem a percepção de sua particularidade.
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Nessa sociedade marcada pela desigualdade e pelos privilégios,
‘‘a raça’’ fez e faz parte de uma agenda nacional pautada por duas atitudes paralelas e simétricas: a exclusão social e a assimilação cultural.
(SCHWARCZ, 2012b, p. 115) Assim, de acordo com Schwarcz, a convivência racial é erigida sob o signo da cultura e reconhecida como ícone
nacional, deixando de lado boa parte da população que é excluída dos
direitos básicos da cidadania.
Nessa perspectiva, Schwarcz sugere que refletir sobre o caráter
contínuo do mito, não impede de pensar também em sua transformação. Ela cita Lévi-Strauss, que nos mostra como o mito pode comportar transformação e mudança, e indica ser esse o caso do Brasil,
onde o mito se altera e se revitaliza continuamente. Nesse sentido, a
autora reflete: Quem sabe, no Brasil, parafraseando o antropólogo norte-americano Marshall Sahlins, o mito tenha virado história e a história
realidade, ou melhor, quem sabe a história não passe de uma metáfora.
(SCHWARCZ, 2012b, p. 111)
É ainda forte e corre de forma paralela, portanto, a interpretação
culturalista dos anos 1930, que transformou a miscigenação
em nosso símbolo maior. No entanto, se a mistura de grupos e
culturas foi, nos termos de Gilberto Freyre, sinal de amolecimento,
significou também o enrijecimento do sistema de dominação,
que passa a ser reproduzido no âmbito da intimidade. Nesse
sentido, é na história que encontramos as respostas para a
especificidade do racismo brasileiro, que já não se esconde
mais na imagem indelével da democracia racial, mas mantém
a incógnita de sua originalidade e de sua reiteração constante.
(SCHWARCZ, 2012b, p. 116)
Assim, de acordo com Schwarcz, é na articulação das estruturas sociais e culturais, antropologia e história, sincronia e diacronia,
que se deve buscar a permanência e reinvenção dos significados.
Ainda, conforme a autora essa interdisciplinaridade seria a peça
chave na reflexão elaborada sobre a fábula das três raças. Nela, a
estrutura da mestiçagem se manteve, embora transformando-se de
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acordo com contextos específicos, passando do romantismo, às
teorias biológicas, e finalmente, á símbolo cultural da nação. Desse
modo, segundo a autora, se o mito deixou de ser oficial, está internalizado. Perdeu seu estatuto científico, porém ganhou o senso comum
[...] – e o cotidiano. (SCHWARCZ, 2012b, p. 116)
CONCLUSÕES
Desse modo, ao longo do texto, foi possível apresentar e compreender a discussão a respeito da identidade brasileira, fortemente
atrelada à mestiçagem, e sua concomitante relação com a questão
racial no Brasil na obra de Lilia Schwarcz. Segundo a autora, a ideia
de miscigenação, não constitui sinônimo de igualdade ou ausência de
discriminação. Além disso, conforme Schwarcz, a ambiguidade desse
“racismo à brasileira” se revela, na prática, na coexistência entre inclusão e exclusão. Nesse sentido, nas considerações da autora, existe um
consenso, na sociedade brasileira, de que existe inclusão social, principalmente em detrimento da mestiçagem, pelos traços compartilhados,
na música, no esporte, nas artes, na religião, e nos costumes divididos.
Em contrapartida, de acordo com a autora, em consonância
com a ideologia de equilíbrios de antagonismos, defendida por Gilberto Freyre, temos o lado oposto e perverso, o da exclusão social,
presente nas práticas do senso comum, no espaço privado, que se
naturaliza e renaturaliza continuamente. Dessa maneira, segundo Schwarcz, vivemos num país que combina exclusão social e assimilação
cultural, onde todos são unidos, mas igualmente separados. E o mito
da democracia racial, que deixou de ser oficial e perdeu seu estatuto
científico, ganhou o senso comum e o cotidiano. Está internalizado.
sumário
228
Marxismo.
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sumário
230
13
Patrícia Amorim Weber
A relação sujeito-objeto
na teoria social moderna:
a produção de conhecimento
em contexto colonial
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.13
Marxismo.
INTRODUÇÃO
Todas as formas de exploração colonial são formas de desumanização. Esta é uma afirmação de Lewis Gordon (2015), importante
intelectual e estudioso da obra do autor martiniquenho Frantz Fanon
que, em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas (2008), traça uma densa narrativa acerca dos impactos da colonização na psiqué do homem
negro e da mulher negra em contexto colonial. Gordon nos chama
atenção, junto a Fanon, para as consequências que um sistema de
dominação político, social e cultural possa vir a ter na condição existencial dos sujeitos que foram dominados. Portanto, temos aqui uma
importante leitura que encara o colonialismo para muito além de suas
implicações econômicas e políticas.
O alcance da análise para além de aspectos concretos como
a economia e as instituições foi uma grande contribuição de Fanon
para os estudos pós e decoloniais. E o interessante é que o segundo
intelectual abordado em nossa pesquisa também parte da valorização
desta perspectiva. Guerreiro Ramos defende que as questões raciais
no Brasil devem ser vistas a partir do ângulo psicológico e enquanto
fenômenos socialmente condicionados (RAMOS, 1957).
Seguindo nessa toada, podemos acompanhar os argumentos
de Aníbal Quijano (1992), por exemplo, ao afirmar que a estrutura colonial gerou discriminações de cunho “racial”, “étnico”, antropológico”
e “nacional” e que, posteriormente, tendo sido encaradas enquanto
categorias científicas e naturalizadas, foram acompanhadas de uma
colonização do imaginário dos próprios dominados. Logo, ao nos referirmos à “desumanização” de um povo, queremos dizer que este foi
ceifado de todos esses elementos que compõem seu aspecto metafísico. Este foi o produto mais duradouro da colonização, o qual Quijano
denomina “colonialidade”: “a colonialidade (...) é ainda o modo mais
geral de dominação no mundo atual, uma vez que o colonialismo, como
sumário
232
Marxismo.
ordem político explicito, foi destruído” (ibid., p. 441). Por “modo mais
geral”, o autor intenta dizer que o conceito inclui a repressão sistemática das crenças, imagens, ideias, símbolos e conhecimentos da população autóctone, que passa a ver como legítimo apenas aquilo que
é produzido pela população das nações tidas como desenvolvidas.
Tendo isso em vista, buscamos interpretar os livros Pele Negra,
Máscaras Brancas de Frantz Fanon (2008) e Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1957) de Guerreiro Ramos a partir da perspectiva
pós e decolonial, pois consideramos que as premissas levantadas por
esse arcabouço teórico podem jogar luz às afirmações de ambos os
autores no que diz respeito a epistemologia colonizada, a subjetividade e agência dos sujeitos, elementos estes de suma importância para
refletirmos sobre a relação entre sujeito e objeto.
De modo geral, o argumento pós-colonial traz importantes contribuições para os estudos sobre as relações de colonização e colonialidade. Alguns dos temas caros a esta linha teórica são:
o estudo e a análise das conquistas territoriais europeias, as
várias instituições do colonialismo europeu, as operações discursivas do império, as nuances da construção do sujeito no
discurso colonial e as resistências desses sujeitos, e, mais importante talvez, as diferentes respostas a tais incursões e às
suas heranças coloniais contemporâneas nas nações e comunidades pré e pós-independência (Ashcroft; Griffiths; Tiffin, 2007,
p. 169 apud Nogueira, 2017).
A partir deste trecho, reforçamos que, tendo como base autores
como Foucault (2007), o pós-colonialismo assume o social a partir de
um caráter discursivo, assim como vemos na obra O Orientalismo (2008)
de Edward Said, considerado um precursor dessa perspectiva teórica.
Ao tratar da visão do Oriente pelo Ocidente trazendo a predominância do discurso, Said demonstra que o imaginário ocidental
formulou um regime de verdade tendo como substância principal a
sumário
233
Marxismo.
construção da inferioridade daquela parte global. O orientalismo seria, portanto, um conjunto de coações e limitações ao pensamento,
representando uma importante dimensão da cultura político-intelectual
da modernidade, que cria e imagina o oriental como sendo irracional,
infantil, imaturo. Ou seja, é um pensamento geopolítico que divide o
mundo e cria um outro inferiorizado, premissa esta muito cara para a
lógica argumentativa que queremos seguir neste artigo.
Retomando o fio narrativo sobre o pós-colonial, os demais elementos que o compõem são o descentramento das narrativas e dos
sujeitos contemporâneos e a proposta de uma epistemologia crítica
também estão presentes nas análises (Costa, 2006). Com isso, não
pretendemos afirmar que todos esses elementos fazem parte das
obras de Ramos e Fanon, mas apenas que são importantes pressupostos para dar nitidez à nossa lente interpretativa.
As teorias decoloniais, por sua vez, nos dão suporte para pensar a “colonialidade” a partir de uma perspectiva latino-americana.
De acordo com os autores decoloniais, como Walter Mignolo, Ramon
Grosfoguel e Aníbal Quijano, as teorias pós-coloniais não podem ser
diretamente aplicadas ao contexto latino-americano, devido as evidentes diferenças sociais e políticas presentes nesta parte do continente. Portanto, ao tratarmos de um autor brasileiro, como Guerreiro
Ramos, é importante trazermos também determinados conceitos que
nos auxilie na interpretação de nossa formação nacional e subjetiva
(Miglievich-Ribeiro, 2014).
Portanto, partindo desta base contextual e teórica, pretendemos, neste artigo, discutir as seguintes questões: 1) de que forma
Frantz Fanon e Guerreiro Ramos podem nos auxiliar a compreender
como se deu a relação entre o sujeito pesquisador e o objeto a ser
pesquisado no contexto colonial? 2) quais são as propostas de saída
epistemológicas de nossos autores para este debate?
sumário
234
Marxismo.
Para responder a estas questões, percorremos os textos supracitados através do método de análise de conteúdo. A partir de suas
respostas, esperamos chegar a reflexões que nos ajudem a pensar
sobre a seguinte hipótese, trabalhada ao longo da pesquisa: a racialização32 do sujeito negro ocorrida no processo colonial e a consequente falha no reconhecimento deste como humano, impossibilitou o
conhecimento pleno de sua experiência social pela produção teórica.
Esta hipótese é sustentada a partir da metáfora do véu, exposta por
W.E.B. Du Bois em seu livro As Almas da Gente Negra (1999), quando
este afirma que a categoria raça encobre os sujeitos dificultando a
percepção do sujeito em relação ao objeto e vice-versa.
A CONSTRUÇÃO DO “OUTRO”
NA MODERNIDADE
A leitura tradicional da História nos mostra que a modernidade
é um fenômeno de origem exclusivamente europeia. A partir deste
ponto de vista, civilização ou modernização significaria necessariamente europeização. Enrique Dussel, em seu texto denominado Europa, Modernidade e Eurocentrismo (2005), demonstra que esta visão
eurocêntrica, a qual pressupõe que este continente teve características excepcionais internas que permitiu, através de sua racionalidade, que superasse em valor todas as outras culturas, é apenas uma
das perspectivas históricas possíveis. Uma leitura alternativa a esta,
32 Utilizamos o termo racialização no sentido utilizado por Priscila Medeiros em seu artigo “Rearticulando narrativas sociológicas: teoria social brasileira, diáspora africana e a
desracialização da experiência negra”. Cito-a: “Quando se fala em racialização faz-se
referência aos processos históricos e sociais que estabelecem significados a determinados indivíduos e grupos. O que ocorre é uma biologização de ideologias racistas, cristalizando-as no corpo e na história dessas pessoas e transformando-as em ‘verdades’
corporificadas. (...) E, ao criarem ‘verdades’, são estabelecidos os respectivos ‘lugares
sociais’ para os grupos atingidos por esses processos; são criadas também as expectativas coletivas sobre como esses grupos devem agir, pensar e ser, ou melhor, nascem aí
os ‘sujeitos típicos’ para tais ideologias” (MEDEIROS, 2018, p.710).
sumário
235
Marxismo.
denominada pelo autor como “mundial”, afirma que a modernidade
é produto do contato entre a Europa e as outras culturas. Paul Gilroy
propõe em O Atlântico Negro (2001) uma narrativa que acompanha
esta segunda perspectiva, assumindo a importante participação dos
demais continentes na formação do pensamento moderno.
Partimos, aqui, de uma visão crítica acerca desta primeira versão sobre a origem e sobre os aspectos do pensamento moderno hegemônico, apontando como uma das consequências desta configuração socio-político-existencial a formação de uma relação hierárquica
entre sujeito e objeto no que diz respeito a produção epistemológica.
Para Castro-Gomes, o projeto de modernidade pode ser lido a
partir do par saber-poder proposto por Foucault. Em sua perspectiva,
este projeto representa uma tentativa de controle da vida do Outro a
partir do conhecimento. Estes mecanismos teriam como objetivo a organização racional da vida do homem. Logo, a “invenção do Outro”
trata-se da tentativa de criar representações binárias dos sujeitos colonizados pelo Estado colonizador (Nogueira, 2017).
Desta forma, a modernidade molda o olhar para enxergar a
história enquanto uma linha do tempo, em que os países periféricos
representariam o passado e as nações europeias, seu futuro quando
desenvolvido. O conceito carregaria uma temporalidade progressiva,
pautada por etapas a serem seguidas (Ortiz, 2015).
As sociedades europeias modernas se formaram a partir de alguns mitos fundamentais: a crença no progresso, na civilização, no
liberalismo, na educação com base científica e na razão. Ocorre que
estes pilares se erigiram a partir do pressuposto exclusivista de que
estes elementos seriam necessariamente superiores a todos os demais e pertencentes apenas ao continente europeu. Com isso, em um
contexto de colonização desenfreada, criou-se uma configuração no
imaginário social ocidental de que o mundo seria compartimentarizado
em dois, entre os colonos e os colonizados.
sumário
236
Marxismo.
Em Os Condenados da Terra (2005) de Frantz Fanon, é exposto
que, nesta lógica binária, os colonizados seriam apresentados enquanto seres desonrosos e vergonhosos, impenetráveis pela ética,
pois teriam uma ausência total dos valores primordiais para as sociedades europeias.
Esta afirmação está de acordo com o ponto de vista de Castro-Gomes, quando este sugere que a espoliação colonial dos povos
originários foi legitimada justamente por este imaginário que estabeleceu diferenças absolutas entre colonizador e colonizado. As categorias de “raça” e “cultura”, neste contexto, passaram a operar enquanto
mecanismos de geração de identidades opostas. Logo, a importância
destas duas categorias nos estudos sobre a situação colonial se dá
porque, para o colonialismo, ao afirmar que o negro era selvagem,
este não se referia ao angolense ou ao nigeriano, mas sim a todo um
continente. (Castro-Gómez, 2015). Esta perspectiva, aliás, reforça o
significado de racialização que buscamos trazer neste texto.
A divisão maniqueísta do mundo, composta por esta condenação
cultural e “racial”, daria apoio à desumanização dos povos não ocidentais, que seriam encarados enquanto seres inferiores diante dos povos
europeus (Fanon, 2005; Streva, 2015). Ainda de acordo com Fanon,
o resultado global pretendido pelo domínio colonial era convencer os indígenas de que o colonialismo devia arrancá-los das
trevas. A mãe colonial defende o filho contra ele mesmo, contra
seu ego, contra sua fisiologia, sua biologia, sua infelicidade ontológica (Fanon, op. cit., p. 175).
Vemos que o racismo, para o autor, é um fenômeno que objetifica
o Outro. Richard Schmitt, no artigo Racism and Objetification: Reflections
on Themes from Fanon, interpreta que esta objetificação não diz respeito à transformação das pessoas em coisas, mas sim a uma recusa
sistemática em criar relações humanas com aquele que é objetificado
(Schmitt, 1996 apud Streva, 2015). Isto pode ser bem compreendido se
retomarmos às influências existencialistas em Frantz Fanon:
sumário
237
Marxismo.
Eu não aguentava mais, já sabia que existiam lendas, histórias, a
história e, sobretudo, a historicidade que Jaspers havia me ensinado. Então o esquema corporal, atacado em vários pontos,
desmoronou, cedendo lugar a um esquema epidérmico racial. No movimento, não se tratava mais de um conhecimento
de meu corpo na terceira pessoa, mas em tripla pessoa. (....)
Eu existia em triplo: ocupava determinado lugar. Ia ao encontro
do outro... e o outro, evanescente, hostil mas não opaco, transparente, ausente, desaparecia. A náusea... (Fanon, 2008, p. 105)
O trecho supracitado descreve a cena de um homem negro sentado em um trem. Este homem existe em triplo porque, ainda que os
assentos ao lado do seu estejam desocupados, o homem branco se
recusa a se sentar ao lado dele.
Para Sartre, essa sensação de “náusea” ocorre quando o indivíduo nota que é um “nada se ser”, isto é, que não pode ser preso a uma
essência, que sua existência é contingencial (Sartre, 2005). Porém, em
Fanon, esse paralelo é estabelecido com sentido propositalmente trocado, pois este pretende demonstrar que a náusea, para o negro, significa
a constatação de que ele é essencializado a partir de sua epiderme.
A sensação nauseante vem da constatação de que se é “evitado”.
Portanto, essa “epidermização” a que se refere Fanon nada
mais é do que a exclusão e a abjeção impressas no corpo negro. Mas
é importante lembrarmos que, apesar de haver uma inscrição objetiva
da negação do sujeito através de sua pele, o autor nega o racismo
enquanto parte do campo biológico e o considera enquanto um fenômeno cultural, que se desenvolve a partir do processo de socialização.
Fanon recoloca a racialização enquanto um dado contingencial, com
gênese histórico-social (Streva, 2015). Dado isso, afirma:
se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e com o
seu semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra
de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com racismo
e culturas sem racismo (Fanon, 1980, p. 36).
sumário
238
Marxismo.
Partindo desta perspectiva, torna-se mais nítida a compreensão
acerca do debate epistemológico que pretendemos traçar aqui sobre
a relação entre o sujeito do conhecimento e o objeto a ser conhecido.
A RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO
EM CONTEXTO COLONIAL
A interpretação crítica dos elementos da modernidade trazida
por Aníbal Quijano pode ser um interessante caminho inicial para se
tratar sobre a relação entre sujeito e objeto. De acordo com este autor, esta relação está no centro da atual crise do paradigma europeu.
Alguns pontos importantes a motivam: 1) o “sujeito”, tal como é pensado na epistemologia moderna, refere-se a um indivíduo isolado em
seu discurso e em sua reflexão; 2) o “objeto” é pensado enquanto um
indivíduo diferente do “sujeito” e distante deste em seu contexto, experiência, etc; 3) o “objeto” é constituído por propriedades que derivam
uma identidade e o definem. (Quijano, 1992)
O que está em jogo nessa crítica de Quijano é o individualismo
que permeia a formação do conhecimento e nega o caráter intersubjetivo e de totalidade social da produção epistêmica. Portanto, o autor
está mirando justamente a relação entre o Eu e o Outro na epistemologia moderna. Ocorre que, nesta separação entre o que é o “nós” e
o que são os “outros”, Fanon afirma que o “outro” passa a ser visto
de modo caricato, estigmatizado, enquanto um mito (Fanon, 2008,
p. 109). Crê-se, neste contexto, que não há sujeito fora do mundo europeu. Seguido a isso, postula que:
para essa percepção “europeia” ou “ocidental” em plena
formação, essas diferenças foram admitidas, antes de tudo,
como desigualdades no sentido hierárquico. E tais desigualdades são percebidas como de natureza: só a cultura europeia é
racional, pode conter “sujeitos”. As demais não são racionais.
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239
Marxismo.
(...) Só podem ser “objeto” de conhecimento ou de práticas
de dominação. Bloqueou, em consequência, toda relação de
comunicação e de intercâmbio de conhecimentos e de modos
de produzir conhecimentos entre as culturas, (ibid., p. 444)
Logo, se há a criação dessa relação hierárquica, o binômio sujeito-objeto cria um impasse em que este último só pode estar em uma
posição passiva ou imerso em práticas de dominação. Toda possibilidade de uma comunicação recíproca e de trocas (de conhecimento,
de elementos culturais, etc) é bloqueada.
Há, em Pele Negra, Máscaras Brancas, afirmações que se aproximam muito desta perspectiva de Quijano, pois chama a nossa atenção para formação social, política e econômica desta noção hierárquica sobre a qual mencionamos acima. Para Fanon,
Se [um homem] é malgaxe, é porque o branco chegou, e se, em
um dado momento da sua história, ele foi levado a se questionar
se era ou não um homem, é que lhe contestaram sua humanidade. Em outras palavras, começo a sofrer por não ser branco,
na medida que o homem branco me impõe uma discriminação,
faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer
originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que
é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente possível o
mundo branco (ibid., p. 94, grifos meus).
Há elementos importantes neste trecho. Logo em seu início,
Fanon afirma que, a partir da relação com o colono, o colonizado foi
questionado por este e por si mesmo sobre sua humanidade. Aqui,
podemos trazer o conceito de zona de não-ser do autor para compreender melhor este processo de desumanização.
Se colocarmos este conceito em perspectiva, veremos que “não-ser”, para Fanon, é um estágio anterior ao do Ser, representando a eliminação de todos os atributos que qualificam o humano e o confinamento dos sujeitos que pertencem a este estágio a uma situação de
plena inferioridade. Portanto, se Ser humano significa transcendência,
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240
Marxismo.
possibilidade de recomeço (de reinventar-se), de negação (no sentido
existencialista do termo), “não ser” significa estar em uma região estéril
(ser incapaz de criar/inventar sua existência), ser imanência e ser essencializado em torno de uma identidade fixa. Por este motivo, o autor afirma
em sua obra: “Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas
coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis
que me descubro objeto em meio a outros objetos” (ibid., p. 103).
Nesse contexto de objetificação, qualquer ontologia se torna
irrealizável. Na prática, grosso modo, não ter existência ontológica significa ser alguém sem uma cultura autêntica ou viva, que se transforma
no decorrer do tempo e do espaço.
Guerreiro Ramos, na obra Introdução crítica à sociologia brasileira
(1957) expõe um conceito que nos mostra uma outra face dessa objetificação. Para ele, a sociologia do negro no Brasil é uma “pseudomorfose”, ou seja, “uma visão carecente de suportes existenciais genuínos,
que oprime e dificulta mesmo a emergência ou indução da teoria objetiva
dos fatos da vida nacional” (Ramos, 1957, p. 157). O autor se refere à
esta carência de suportes existenciais para expressar que o sujeito do
conhecimento não olha para o objeto de pesquisa como ele de fato o é,
mas sim para os mitos, os estigmas e os preconceitos que estão em seu
imaginário. Trata-se, aqui, do “véu” a que menciona Du Bois.
Sendo assim, o negro-tema nada mais é do que um conceito
que trata sobre um ser mumificado, com expressões culturais cristalizadas e sempre voltado para uma tradição imutável, distinguindo-se
do negro-vida, ser protéico e multiforme, que não tem essência e tem
uma experiência social fluida. (ibid., p. 171).
Retomando o trecho de Fanon mencionado acima, o autor nos
traz que há, no sujeito negro colonizado, um sofrimento por não ser
branco. Assim como afirma Quijano através do conceito de “colonialidade”, esse é um aspecto que se mantem mesmo após a destituição
sumário
241
Marxismo.
do processo colonial político e econômico. Em Pele Negra, Máscaras
Brancas há diversas passagens que tratam sobre essa negação do
próprio corpo pelos indivíduos racializados, porém, daremos atenção
neste momento para trechos de Introdução Crítica... que demonstram
de que forma este desejo influenciou a produção sociológica brasileira.
Em seu livro “O Desejo da Nação” (2012), Richard Miskolci afirma que a “branquitude” surge em vários discursos políticos, médicos
e literários da elite brasileira entre os séculos XIX e XX. O objetivo de
branquear não era apenas um projeto de transformação demográfica,
mas também uma tentativa de moralizar a coletividade. Neste contexto,
Ramos denuncia em seu livro um processo de alienação estética do
próprio negro e de hipercorreção estética do branco brasileiro, que se
esforçava demasiadamente para se parecer com o branco europeu
(Ramos, 1957). Ora, neste contexto culturalmente embranquecido, a
produção de conhecimento se dava com base nos mesmos valores.
Com isso, o negro passa a ser visto enquanto um “problema”,
ou como um obstáculo a sanar. No entanto, na leitura de Ramos, esta
insistência em considerar o negro como um objeto de estudo problemático, nada mais é porque ele é portador de pele escura. Já que, na
cultura brasileira, o branco representa a norma, o ideal.
Esta análise de Guerreiro Ramos é muito interessante, pois ele
parte da observação de elementos que se pretendem objetivos, como
a produção teórica e metodológica das ciências sociais, para fazer uma
leitura existencial ou psicológica dos fatos nacionais. O problema da leitura interpretativa sobre o Brasil estaria, portanto, não em seus métodos
ou na inadequação de seu objeto de pesquisa, mas sim no imaginário
do próprio pesquisador. Portanto, podemos afirmar que Ramos propõe
aqui um estudo sobre o lugar social daquele que produz conhecimento.
Além disso, é notória a sua proximidade com a interpretação
psicológica, assim como o fez Fanon em Pele Negra..., pois, em determinado trecho, afirma:
sumário
242
Marxismo.
O problema do negro, tal como colocado na sociologia brasileira, é, à luz de uma psicanálise sociológica, um ato de má-fé ou
um equívoco, e este equívoco só poderá ser desfeito por meio
da tomada de consciência pelo nosso branco ou pelo nosso
negro, culturalmente embranquecido, de sua alienação, de sua
enfermidade psicológica. Para tanto, os documentos de nossa socio-antropologia do negro devem ser considerados como
materiais clínicos (ibid., p.155).
Para Ramos, ver o negro enquanto um problema derivaria do
desenraizamento dos valores e da orientação epistemológica dos
intelectuais brasileiros. Os conceitos, os métodos e as técnicas de
que estes se utilizariam para pensar o país seriam todos importados.
A sociologia do negro partia de adoções literais das teorias e conceitos dos centros europeus, adotando extensivamente seus argumentos,
não tendo, portanto, uma base de análise própria.
Contudo, essa inautenticidade tem, para Ramos, uma saída.
Partindo da sociologia do conhecimento, este afirma que a visão alienada da sociologia brasileira faz parte de um processo histórico, isto
significa que as causas que geram essa forma de interpretação do
social eram externas à produção deste tipo de conhecimento, pois
partiam da esfera econômica, política e propriamente social. Assim,
conforme o Brasil fosse se tornando mais independente nestes aspectos, uma sociologia autenticamente nacional teria condições de se
desenvolver (Ramos, 1957).
OS POSSÍVEIS MEIOS PARA SE SUPERAR
A EPISTEMOLOGIA COLONIZADA
Além de apontar os impasses epistemológicos na produção
científica em contexto colonial, nossos autores propuseram alguns
meios para manter uma interpretação crítica sobre o fazer teórico.
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243
Marxismo.
Guerreiro Ramos propõe um método denominado redução sociológica. Trata-se de uma abordagem crítica que tem como finalidade
a autonomia intelectual do sujeito que interpreta e reflete sobre as relações sociais do país. Seu objetivo principal é observar o objeto a partir
da constatação de que há sempre uma ligação entre este e o contexto
social do qual ele faz parte, considerando, inclusive, que a perspectiva
pela qual o observamos os constitui (Ramos, 1996).
O significado da palavra “redução” diz sobre a eliminação de
todos os caracteres de um fenômeno que sejam secundários ou acessórios, e que possam inibir uma compreensão mais nítida do problema. Na sociologia, “redução” significa a atitude metódica que objetiva
esclarecer quais são os pressupostos históricos e sociais pertencentes
a um determinado fenômeno (ibidem).
No livro de Guerreiro Ramos que leva esta metodologia em seu
título, o autor elenca quais são as tarefas da redução sociológica. Cito-o:
1.
ela é um tipo de conhecimento fundacional, inspirado na busca
das condições ontológicas e existenciais da cultura brasileira;
2.
a redução sociológica ressalta a necessidade de se compreenderem as condições críticas para a ciência nacional;
3.
as condições dessa consciência crítica suscitam a existência
de uma cultura particular, e é essa cultura o objeto primordial da
sociologia brasileira (ibidem, p. 356).
Nota-se que estas tarefas são direcionadas para a produção de
um pensamento autêntico e voltadas totalmente para as leis próprias
da sociedade brasileira. Torna-se claro novamente o intuito do autor de
criar uma ligação íntima entre o concreto e o pensado, planejando para
a sociologia uma forma de refletir empírica e dedutiva (RAMOS, 1957).
Já em Pele Negra, Máscaras Brancas, Frantz Fanon propõe um
conceito metodológico que busca dar luz à complexidade do racismo
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244
Marxismo.
no meio social. De acordo com o autor, vemos que, se a ideia de raça
e de superioridade racial são culturalmente construídas, é preciso
um método de análise da experiência social do negro que contemple a relação entre sua subjetividade e os determinantes históricos e
sociais, pois desconsiderar o impacto destes determinantes nos fenômenos psíquicos significaria maquiar a realidade (faustino, 2018).
Dado isso, Fanon expressa que o método adequado para analisar
esta relação no âmbito científico é a sociogenia, pois
A alienação do negro não é apenas uma questão individual. Ao
lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. Pretendemos
estabelecer um sociodiagnostico. A Sociedade, ao contrário
dos processos bioquímicos, não escapa a influência humana. É
pelo homem que a sociedade chega ao ser (Fanon, 2008, p. 28).
De acordo com Deivison Faustino, em sua tese de doutorado
intitulada Por que Fanon? Por que agora? (2015), a concepção da sociogenia foi uma resposta de nosso autor a uma discussão iniciada no
século XIX por Freud. Nesta discussão, Freud rebate os psicólogos que
aderiam à psicologia constitucional, afirmando que a melhor abordagem
para o sujeito seria aquela denominada ontogenética. Esta última abordagem, no entanto, endereça a sua atenção apenas ao indivíduo. Contudo, a diferença racial é algo que emana da estrutura e atinge o sujeito
(Gordon, 2015) Logo, Fanon afirma que é preciso ligar estes dois pólos,
constituindo uma análise clínica que considere o psíquico e o social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi retomado, ao longo deste texto, o movimento de criação
social da representação do negro e a consequente inferiorização deste
no contexto da modernidade ocidental. Constatamos que sua cultura,
linguagem, símbolos, fenótipos, foram vistos enquanto algo negativo,
alocando estes indivíduos no que Fanon chama de zona de não-ser.
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245
Marxismo.
Assim, procuramos demonstrar que o modo como o imaginário
colonial encarou o negro implicou em uma leitura equivocada sobre a
sua realidade. Neste sentido, o conceito de “negro-tema” de Guerreiro
Ramos é de suma importância para compreender “o véu” que separa
o sujeito que pesquisa do objeto a ser pesquisado.
Contudo, buscamos recuperar também as possiblidades de superação deste cenário propostas por Guerreiro Ramos e Frantz Fanon.
Ambos procuraram trazer ferramentas metodológicas que pudessem
descolonizar a epistemologia tal como foi pensada na modernidade, expondo uma abordagem crítica e pautada no conhecimento sociológico.
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sumário
247
14
Telmo Renato da Silva Araújo
Sob a luz do livre arbítrio:
raça, degenerescência
e criminalidade no pensamento
social de Raimundo Nina Rodrigues
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.14
Marxismo.
Em finais do século no Brasil, renomados intelectuais procuraram construir um projeto de nação, no qual, o processo de relações
e diferenças raciais passou a ser tratado como um objeto de Science.
Nesse cenário, as ideias cientificistas, oriundas da Europa do século
XIX tiveram grande aceitação (SCHWARCZ, 1993). Elas deram guarida,
por exemplo, aos estudos sobre raças, criminalidade e degenerescência
entretecidos pelo médico e antropólogo maranhense Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906), professor da Faculdade de Medicina da Bahia.
Nina Rodrigues foi um personagem carismático e um ardoroso
defensor da Medicina Legal no Brasil. Tornou-se, em meados de 1890, o
mais renomado profissional nessa área (LINS E SILVA, 1945). Sua participação em pesquisas antropológicas passou a ser constante. Utilizando das teorias evolucionistas traçou uma análise das raças brasileiras
para determinar as suas diferenças evolutivas e a relação que tinham
com a implementação da penalidade criminal. Fez da Medicina Legal o
suporte técnico-científico para a análise da degenerescência do mestiço
e do negro, pressupondo tendências de ambos para o crime.
A imputabilidade, sob luz da evolução social, defendida por Raimundo Nina Rodrigues em 1894, na obra As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, pressupunha que os atos de delinquir
dos seres humanos estavam ligados inteiramente às etapas de evolução mental e espiritual de cada indivíduo. Etapas marcadas por fatores
psico-biológicos – degenerescência, enfermidades raciais, atavismo,
etc. – que determinavam as ações individuais.
São essas etapas que estabeleciam, no indivíduo, a gênese do
senso moral, do discernimento entre o bem e o mal. Mas principalmente, determinavam a capacidade de compreensão, por esses mesmos
indivíduos, dos direitos e deveres de uma determinada sociedade.
Nina Rodrigues fazia severas críticas ao processo metafísico de
ver o crime e o criminoso, estabelecido pela Escola Livre Arbitrista ou
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249
Marxismo.
Clássica,33 como a vontade humana ao livre arbítrio. Tal crítica estava
baseada em sua afirmação de que ao condicionar o crime apenas à
livre vontade, esquecia-se de avaliar as contradições da evolução humana e a falta de uniformidade evolutiva dos povos ou raças. Mais que
isso, para ele, essa maneira de ver o crime e o criminoso concretizava
a ambiguidade entre a evolução mental e o livre arbítrio.
Assim, no primeiro capítulo de As raças humanas, afirma: constituirá objeto desta proxima conferencia, o estudo das modificações
que as condições de raça imprimem à responsabilidade penal (NINA
RODRIGUES, 1894, p. 29). Modificações que, estudadas e analisadas antropologicamente, poderiam determinar as diferenças evolutivas das raças e suas manifestações sociais e culturais. A partir
desse princípio se poderia pensar em um código penal bem mais
elaborado, acoplando-se as diferenças raciais nas formas de imputar,
valorizando os níveis de evolução étnica.
Uma das principais críticas que fazia estava relacionada com
a filosofia espiritualista. Filosofia no qual o código penal de 1830
era baseado:
A concepção espiritualista de uma alma da mesma natureza
em todos os povos, tendo como consequencia uma inteligência da mesma capacidade em todos as raças, apenas variavel no gráo de cultura e passível, portanto, de attingir mesmo
num representante das raças inferiores, o elevado gráo a que
chegaram as raças superiores, é uma concepção irremissivelmente condemnada em fase dos conhecimentos scientificos
modernos (NINA RODRIGUES, 1894, p. 30).
33 Em 1764, o italiano Cesare Beccaria (1738-1794) escrevia Dei delitti e delle pene (Dos delitos
e das penas), inaugurando a Escola Clássica. Em seu princípio o livre arbítrio era o pressuposto para a “responsabilidade moral”. Essa determinava, conforme seu menor ou maior
grau, a severidade da pena à ser imposta. Foi marcada pelo método apriorístico, metafísico e
dedutivo, sem exames analíticos e comparativos. Para os membros dessa escola, o homem
era livre para escolher seus atos e de forma consciente sua conduta, não havendo nenhuma
influência externa (sociais) ou interna (biológicas). Para uma melhor reflexão sobre Cesare
Beccaria e as diretrizes da Escola Clássica ver: SABINO JÚNIOR, Vicente. Cesare Beccaria
e o seu livro “Dos delitos e das penas”. São Paulo: Juriscrédi, 1972.
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Marxismo.
Acreditando nas análises biologizantes da evolução humana,
Nina Rodrigues destacava que a metafísica espiritualista fazia um exame subjetivo da evolução humana e a biologia, por sua vez, um exame
objetivo. A metafísica espiritualista iria buscar a criminalidade na gênese das atitudes humanas, exclusivamente na alma, em quanto que a
biologia iria buscar nas origens somáticas das pessoas. A inteligência,
por exemplo, para ele, era um reflexo do progresso evolutivo, e visto
como nascido nas raízes geneológicas.
O materialismo evolutivo de Nina Rodrigues destacava-se por
acreditar na adaptabilidade e na hereditariedade como forma de aperfeiçoamento racial. Como exemplo de civilizações com alto grau de desenvolvimento citava as populações americanas do México e do Peru.
Todavia, afirmava que elas desapareceram com o contato com as civilizações européias, muito mais polidas e adiantadas. Nina Rodrigues não
questionava as atrocidades cometidas pelos colonizadores espanhóis.
O que é feito hoje das civilizações barbaras brilhantes, complexas e poderosas que, ao tempo da descoberta da América, occupavam o México e o Perú? [...] Dissolveram-se,
desapareceram totalmente na concurrencia social com a
civilização européia, muito mais polida e adiantada (NINA
RODRIGUES, 1894, p. 33).
Essa concurrencia social é a afluência social, isto é, a luta dos
indivíduos na sociedade, onde o mais forte se sobrepõe sobre o mais
fraco. Essa ideia marcava em Nina a concepção darwiniana da briga
natural do mais apto contra o menos apto. Além do mais, revelava os
questionamentos sobre a insalubridade dos povos americanos, bastante enfatizada pelos filósofos europeus do século XIX como: Buffon,
De Pauw, Voltaire, Hume, entre outros (GERBI, 1996).
A mestiçagem, por exemplo, para Nina, entrava como uma forma de moldar a insalubridade das raças nacionais. Em sua concepção, as populações no Brasil estavam ainda no estágio de inferioridade e a mestiçagem seria a forma pelo qual a civilização européia
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251
Marxismo.
poderia incorpora-se a nossa realidade. Todavia, contraditoriamente,
as suas experiências, no campo da antropologia positivista, principalmente junto as autópsias, destacavam a descrença na mestiçagem
“positiva”, pois o selvagem conduzido pelo atavismo degenerativo
voltava ao estágio primitivo.
Partindo da concepção de evolução é que Nina Rodrigues traçava suas críticas ao modelo do código penal brasileiro. As críticas
estavam direcionadas para Tobias Barreto, para os domínios legais
estabelecidos pelo código (índios, negros e mestiços) sem distinções
étnicas e para os aspectos filosóficos em que era baseado. Aspectos
esses estabelecidos pelos pressupostos espiritualistas do livre arbítrio
para critérios de responsabilidade penal.
O filósofo e advogado sergipano Tobias Barreto (1839-1889)
foi um dos mais importantes propagandistas do Monismo no Brasil.
Influenciado pelo alemão Haeckel,34 buscou novos caminhos para a
compreensão da filosofia e do direito, dentre outros ramos do conhecimento humano. Negava o direito natural, afirmando que o direito era
produto da cultura humana. Porém defendia a liberdade do querer, do livre arbítrio como forma incondicional das ações humanas (LIMA, 1957).
Era para esse ponto que Nina Rodrigues iria direcionar suas críticas.
Para Nina, Tobias Barreto não passava de um “monista” que
estancou diante de seus princípios filosóficos e arguia:
Tobias Barreto affirma, sem razão, que os deterministas fundamentam a negação do livre arbítrio no facto bruto da motivação das acções humanas, e que se lhes podem objectar,
como prova da existencia de uma certa dose da liberdade do
34 Ernst Haeckel (1834-1919), filósofo naturalista, defensor e propagandista da teoria de
Darwin na Alemanha formulou a doutrina filosófica denominada Monismo que se baseava
na ideia de que o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade, quer do ponto de
vista de sua substância, quer do ponto de vista das leis pelas quais o universo se ordena.
Os monistas criaram a teoria pelo qual a história da evolução individual ou ontogênese é
uma repetição abreviada da história evolutiva da espécie ou filogênese, conforme as leis
da hereditariedade e da adaptação ao meio.
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252
Marxismo.
querer, a escolha psychica dos motivos e a possibilidade da
determinação no sentido da maior resistencia. Em tudo isto,
no emtanto, não há mais do que uma apparencia de liberdade
da qual, de facto, a consciencia, como cumplice, nos dá fallaz testemunho. Mas uma pura allusão não pode servir, como
admitte Tobias Barreto, de criterio e de base á doutrina da
responsabilidade penal. A escolha dos motivos, bem como a
determinação no sentido da maior resistencia, “o nadar contra
as correntes”, não são manifestações da liberdade, mas tão
somente a resultante dóa organização psycho-psycologica do
individuo (NINA RODRIGUES, 1894, p. 59).
Assim, para Nina Rodrigues, o código penal brasileiro, tinha que
ser baseado nos princípios de comparação evolutiva das vertentes étnicas. Daí sua defesa por um código penal diferenciado para essas
vertentes, estabelecendo critérios de responsabilidade na análise antropológica das raças nacionais. Eram as premissas positivistas da
Escola Criminal Antropológica, que o conduzia a análises sistemáticas
e empíricas da conformação bio-psicológica das raças nacionais.
A liberdade não devia ser procurada nos “selvagens”, nas paixões arrebatadoras dos homens, mais sim na deliberação instintiva
do homem ponderado e conduzido pela razão. Essa concepção de
liberdade, elaborada pelo francês Eugenio Veron em La Morale – obra
escrita em 1884 – era a que se fundamentava Nina Rodrigues para ir de
encontro ao livre arbítrio. Utilizando-se de Veron, afirmava que quando
o homem discerne, compara, estuda e examina as consequências de
seus atos, desde o ponto de vista individual como social, produzindo
em si a convicção que se impõe a ação, diminui os motivos da ação e
restringe o agir, surgindo nesse sentido o que denominava de “ilusões
da liberdade”. Não existe liberdade sem consciência.
Se depois desta analyse da escolha volicional – de Eugenio Veron –, tão completa e magistral, é ainda possivel affirmar que
o homem é livre; se ainda é licito acreditar que, na ilusão de
liberdade que nos dá a consciencia; há alguma realidade; então não sei que valor podem ter as deducções da logica, nem
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Marxismo.
que significação possam adquirir os fructos de sã observação
scientifica. E esta analyse tanto se refere e comprehende o livre
arbítrio dos methaphysicos, como a liberdade parcial, dos espiritos timoratos e indecisos (NINA RODRIGUES, 1894, p. 65).
Dissolvida as ilusões do querer, pela simples reflexão altiva, o
homem consciente não era mais conduzido pelo joguete impulsivo de
suas ações. Para Nina Rodrigues, as raças nacionais não possuíam
esse espírito de consciência, pois estavam ainda em um estágio primitivo. Concretizava, assim, à crítica a Tobias Barreto que afirmava serem
as raças nacionais conduzidas por atos impulsivos, sem motivos aparentes, defendendo por isso um livre arbítrio “relativo”.
Segundo Nina Rodrigues o que moviam os atos eram dois fatores: fatores externos (motivação psíquica) e internos (motivação orgânica e hereditária). O livre arbítrio seria uma incongruência para a
configuração do código penal brasileiro, um sonho criado pela imaginação para fugir ás contigencias desta existencia phenomenica (fatores
internos e externos) (NINA RODRIGUES, 1894, p. 70).
O livre arbítrio tanto absoluto, quanto relativo, engendrava, para
ele, perante a doutrina criminal, a responsabilidade, o que levava a
impunidade. Assim,
O exame da responsabilidade das raças brazileiras nos nossos
codigos penaes vae ministrar um novo exemplo desse dilemma
em que se debatem os criminalistas classicos: ou punir sacrificando o principio do livre arbitro, ou respeitar esse principio, detrimentando a segurança nacional (NINA RODRIGUES, 1894, p. 73).
Analisa, então, as raças nacionais perante o código penal brasileiro, sob o ângulo da contradição que, para ele, existia quando punia
os crimes das “raças inferiores” pelos códigos dos “povos civilizados”.
Essa era a principal contradição do código penal nacional, que inconsequentemente punia os crimes baseados na liberdade do querer, sem
cogitar o patamar de evolução de cada raça e seu nível de consciência.
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254
Marxismo.
Desconhecendo a grande lei biologica que considera a evolução ontogenica simples recapitulação abreviada da evolução
phylogenica, o legislador brazileiro cercou a infancia do individuo das garantias de impunidade por immaturidade mental,
creando a seu beneficio as regalias da raça, considerando
iguaes perante o codigo os descendentes do europeu civilizado, os filhos das tribus selvagens da America do Sul, bem
como os membros das hordas africanas, sujeitos á escravidão
(NINA RODRIGUES, 1894, p. 77).
Para Nina Rodrigues, é a preexistencia da consciencia do direito
e do dever, inherente ás civilizações inferiores, que exclue e impossibilita a consciencia do direito, tal como o entendeu os povos civilizados,
ou superiores sociologicamente (NINA RODRIGUES, 1894, p. 82). Este
é o fator da não homogeneização das penas, que, para ele, deviam
ser julgadas pelas raças superiores e implementadas perante as raças
inferiores conforme as fases evolutivas.
Quando Nina Rodrigues afirmava que as raças superiores eram
as que deviam apreciar e imputar as penas conforme as fases evolutivas das raças inferiores, reafirmava um status quo de um grupo,
respaldado pela teoria da evolução social de certas raças.
A diferenciação entre as raças inferiores e superiores está na
organização physio-psycologica que não comporta nas raças inferiores a concepção de sociedade dos povos cultos. Essa concepção se
formou nas raças superiores pela accumulação hereditaria gradual do
aperfeiçoamento psyhico que operou no decurso de muitas gerações,
durante a sua passagem da selvageria ou da barbarie á civilização
(NINA RODRIGUES, 1894, p. 85).
Seguindo o percurso dos estudos antropológicos e tendo como
base das raças nacionais o branco, o negro e o índio, dividia a população em: raça branca (brancos crioulos não mesclados, europeus, raça
latina, germânicos), raça negra (negros crioulos não mesclados) e raça
vermelha ou indígena (o brazilio-guarany selvagem).
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255
Marxismo.
Destes grupos nasciam sub-grupos que caracterizavam a mestiçagem e dividiam-se em: a) mulatos – producto, do cruzamento do
branco com o negro, grupo muito numeroso, constituindo quasi toda a
população de certas regiões do paiz, e divisivel em: mulatos dos primeiros sangues; mulatos claros, de retorno á raçaa branca e que ameaçam
absorvel-a de todo; mulatos escuros, cabras, productos de retorno á
raça negra, uns quasi complementamente confundidos com os negros
crioulos, outros de mais facil distincção ainda (NINA RODRIGUES,
1894, p. 91). b) Os mamelucos ou caboclos – producto do cruzamento
do branco com o índio, muito numerosos em certas regiões (...) (NINA
RODRIGUES. 1894: p. 91); c) Os curibocas ou cafuzos – producto do
cruzamento do negro com o indio (NINA RODRIGUES. 1894: p. 91).
E por último, d) os pardos – producto do cruzamento das tres raças e
proveniente principalmente do cruzamento do mulato com o indio, ou
com os mamelucos caboclos (NINA RODRIGUES. 1894: p. 92).
Curiosamente o grande amálgama étnico fazia com que Nina
Rodrigues não acreditasse, como Silvio Romero35 e posteriormente
Oliveira Vianna36, na provável preponderância da raça branca no Brasil
pela miscigenação. Dizia:
35 Silvio Romero (1851-1914) foi um “reformador liberal” que ganhou fama como crítico literário. Em seus escritos abordava questões relacionadas com os aspectos da raça e meio. No
Brasil, um “reformador liberal” ganhava fama como crítico literário e abordava os aspectos
da raça e meio, ele chamava-se Romero possuía um profundo determinismo vinculado
ao meio, sustentava que toda nação era produto da interação entre população e o habitat
natural, em sua História da literatura brasileira publicada pela primeira vez em 1888, via na
evolução racial o progresso cultural, assim caracterizava uma das vertentes mestiça brasileira — o caboclo — como um “caçador” que encarado por todas as faces da ciência.
36 Francisco José de Oliveira Vianna. (1883-1951), é considerado um dos maiores propagadores da teoria eugenista no Brasil. Utilizava-se da eugenia para formular sua retórica
sobre progresso e desenvolvimento, onde o “branqueamento da nação” seria a solução
para o crescimento nacional. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Vianna,
em evolução do povo brasileiro (1933), destacava a importância de branquear a nação por
meio da imigração de brancos europeus. Essa imigração seria importante para promover
a correção dos maus hábitos congênitos das raças nacionais. Procurando sempre uma
homogeneidade racial, acreditava que entre quatro ou cinco gerações o sangue branco
prevaleceria nas raças inferiores: tudo nos leva a crer que a regressão dos typos mestiços
se dará em favor do homem branco, pela progressiva eliminação do sangue vermelho.
Na massa cabocla do nordeste, os typos que hão de emergir ao fim desse trabalhoso processo selectivo, a que ella está sujeito, hão de ser − como ao centro, como ao sul, como em
todo o paiz − variantes do aryano vestidos com a libré dos nossos climas tropicaes (p.194).
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Marxismo.
Não acredito na unidade ou quasi unidade ethnica, presente ou
futura, da população brazileira, admittida pelo Dr. Sylvio Romero: não acredito na futura extensão do mestiço luso-africano a
todo o territorio do paiz: considero pouco provavel que a raça
branca consiga fazer predominar o seu typo em toda a população brasileira (NINA RODRIGUES, 1894, p. 96).
A partir da conformação racial brasileira, Nina Rodrigues analisa
a população brasileira do ponto de vista da psicologia criminal, enfatizando a distinção que exigia a imputabilidade das leis penais. Essa
distinção necessitava de um conhecimento biológico da evolução
mental e psicológica das etnias. O valor científico atribuído à biologia
no século XIX, faz-se presente em Nina Rodrigues quando afirma que
os nossos legisladores que, em materia de conhecimento biologicos e sociologicos não iam alem do ensino religioso, influenciados por elle transportaram para os codigos este principio de
igualdade, que, do ponto de vista do livre arbitrio, devia ser tão
injusto nos dominios penaes, quanto, nos dominios sociaes,
era fecunda em consequencias civilisadoras a bulla de Paulo III
(NINA RODRIGUES, 1894, p. 113).
Partindo então desta análise biológica, afirmava que de facto, o
indio não incorporou-se á nossa população, nem collabora comnosco
se não sob a fórma de mestiço (...) tanto é verdade que no Brazil o indio
extinguiu-se, ou está em via de extincção completa, mas não civilizou-se (NINA RODRIGUES. 1894: pp.116-7).
Duas questões devem ser mencionadas: primeiro que Nina Rodrigues afirmava que o índio não colaborou em nada com o branco.
Esquecia porém que a cultura indígena, principalmente a língua tupi,
incorporou-se no linguajar dos brancos; segundo, ele refletia sobre a
extinção dos índios sem questionar o genocídio e o etnocídio cometido
pelos brancos europeus. Essas duas questões definiam os direcionamentos da antropologia positivista, que não valorizava os aspectos culturais como manifestações autônomas e independentes, importantes
para a caracterização peculiar dos grupos humanos. Esse fator só será
mais enfatizado com a antropologia cultural.
sumário
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Marxismo.
Sobre a raça negra Nina Rodrigues afirmava que:
por seu desenvolvimento intellectual e por sua civilização,
os negros africanos sejam inferiores á massa das populações européas, ninguem evidentemente pode pôr em duvida.
Ninguem pode duvidar tão pouco de que anatomicamente o
negro esteja menos adiantado em evolução do que o branco
(NINA RODRIGUES, 1894, p. 120).
Em seguida faz menção as possíveis características violentas
dos negros, afirmando que o negro crioulo conservou vivaz os instinctos brutaes do africano: é rixoso, violento nas suas impulsões sexuaes,
muito dado á embriaguez e esse fundo de caracter imprime o seu cunho
na criminalidade colonial actual (NINA RODRIGUES. 1894: p. 124).
Depois conclui que a presumpção logica, por conseguinte, é
que a responsabilidade penal, fundada na liberdade do querer, das raças inferiores, não pode ser equiparada a das raças brancas civilizadas
(NINA RODRIGUES. 1894: p. 124). Por conseguinte, afirma que o exame que tinha feito o autoriza plenamente a considerar que os negros
e índios, de todo irresponsáveis em estado selvagem, tinham direitos
incontestáveis a uma responsabilidade atenuada.
No cerne das reflexões sobre as vertentes étnicas, analisadas
pelo ponto de vista criminal, é que Nina Rodrigues concebia suas considerações sobre os mestiços. Esses no limiar do processo de construção da identidade nacional, eram tidos, pelos filósofos e construtores
da nacionalidade, como seres degenerados e sem vigor mental e físico, ainda em um estágio primitivo. Visto que Nina Rodrigues fez parte dessa construção, também os analisava por esse mesmo ângulo.
Concebia o mestiço a partir da análise de suas condições mentais, afirmando que, provavelmente, eram influenciadas pela degenerescência
provocada pelo cruzamento entre as raças.
Para ele a biologia já havia provado que nos cruzamentos de
espécies diferentes o êxito de procriação saudável era desfavorável
e cada vez mais afastavam as espécies de sua hierarquia zoológica.
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Marxismo.
Nestes casos o cruzamento acaba sempre por dar nascimento
a productos evidentemente anormaes, improprios para a reproducção e representando na esterilidade de que são feridos,
estreitas analogias com a esterilidade terminal da degeneração
psychica (NINA RODRIGUES, 1894, p. 132).
Assim, considerava o mestiço como um ser híbrido, caracterizado pela falta de produtos morais e sociais. Essa afirmativa tinha como
suporte alguns trabalhos de Spencer que defendiam a ideia de que
a julgar por certos fatos, a mistura entre raças de homens muito dessemelhantes produzia um tipo mental sem valor, que não servia nem
para o modo de viver da raça superior, nem para o da raça inferior.
Enfim, não prestava para gênero nenhum de vida.
Não obstante a questão da inferioridade racial, Nina Rodrigues
parecia também preocupado com a questão do clima. Daí a busca
na região amazônica das características do caboclo. Parecia-lhe que
nessa região estavam bem caracterizadas as influências do clima e
da mestiçagem degenerativa. Para tanto, buscou nos trabalhos sobre
a mestiçagem de José Veríssimo37, particularmente sobre as “raças
cruzadas no Pará” e suas peculiaridades étnicas, culturais e histórica.
José Veríssimo afirmava que o caboclo consistia na configuração clara da degenerescência, do atavismo mais radical que marcava as relações raciais. Para ele, a mestiçagem na Amazônia foi a mais
degenerativa possível, devido a que no conjunto de fatores que determinavam a junção racial estarem três problemas essenciais: primeiro,
a vinda de portugueses da pior espécie para a Amazônia, provenientes de um povo atrasado e sempre arredio à civilização europeia;
segundo, a ineficácia da catequese que não conseguiu educar os
mestiços; e terceiro, o clima tropical que impossibilitava o desenvolvimento humano (ARAÚJO; PRESTES, 2007).
37 José Veríssimo (1857-1916), paraense, ilustre membro da Academia Brasileira de Letras,
foi um grande difusor de estudos sobre a Amazônia, desde seus aspectos raciais e étnicos
Teve destaque nas áreas da literatura, pedagógica, economia e história.
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259
Marxismo.
Observa-se que há pontos centrais por onde permearam as discussões sobre os grupos étnicos no Brasil, como a miscigenação, o
clima e a educação (senso moral). Seguindo o rastro dessa discussão,
Nina Rodrigues parte para entender o perfil psicológico do caboclo.
Novamente iria buscar nos escritos de Spencer suas considerações sobre a psicologia primitiva. Nestas considerações, Nina definia
a psicologia primitiva como induzida pela imprevidência e pela impulsividade, onde o selvagem não possuía sentimentos para compor consciência. Por isso, os caboclos eram guiados pela paixão exacerbada;
seus desejos se sobrepunham a qualquer educação, onde com um só
golpe procuravam atingir o objeto que deveria satisfaze-los.
Nina conclui que a análise psicológica feita por Spencer dava
a explicação inteira do caracter indolente e imprevidente do mestiço
brasileiro, capaz de attingir, como aconteceu na Amazonia, onde tão ao
vivo nol-o pinta o Sr. José Verissimo, ás raias de uma verdadeira degradação moral (NINA RODRIGUES, 1894, p. 146).
Todos os estudos e as reflexões feitas por Nina Rodrigues debruçam-se detalhadamente sobre a formação das vertentes étnicas
brasileiras. Era importante relatar e etnografar para entender como essas vertentes se enquadravam na psicologia criminal. Segundo ele os
estudos sobre o selvagem – particularmente o caboclo – mostravam
que de um lado, ele era rudimentar, esboçando apenas o sentimento
do direito de propriedade, e de outro, que a impulsividade dominavam
as suas ações (NINA RODRIGUES, 1894, pp. 146-7). E que as características de preguiça, indolência, apatia eram derivados, provavelmente,
da hereditariedade decorrente da mestiçagem.
Tais características poderiam ser até atenuantes penais. Pois os
caboclos eram exemplos bem claros dos males da mestiçagem, devido a faltar-lhes a consciência plena do direito, elemento constitutivo da
qualificação da criminalidade.
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260
Marxismo.
As bases para exigir esse atenuante seriam a explicação natural
dessas características – preguiça, indolência, apatia. Estas seriam reforçadas pelos vícios orgânicos, constitucionais, que como a impulsividade,
poderiam ser transmitidos por herança (NINA RODRIGUES. 1894: p. 148).
Desses dois princípios, herança e mestiçagem, deveria a atenuação nas leis. Eles regiam duas ordens. Uma de natureza mórbida
ou anormal, marcada pelas influências degenerativas, caracterizadas
pelo mestiço amazônico – o caboclo. A segunda, de ordem natural,
marcada pela desigualdade bio-sociológica das raças, caracterizados
pelos índios e negros.
A mestiçagem constituía nos estudos de Nina Rodrigues um fator
de capital importância para entender a psicologia das vertentes étnicas,
pois determinava a junção de variadas tendências comportamentais das
raças nacionais. O mestiço trazia em si um pouco do negro, do índio e
do branco, e por isso sua ênfase na mestiçagem, além de ser o diferenciador étnico. Relacionando-a com a criminalidade afirmava que,
acredito e affirmo que a criminalidade no mestiço brazileiro é,
como todas as outras manifestações congeneres, sejam biologicas ou sociologicas, de fundo degenerativo e ligada ás más
condições anthropologicas do mestiçamento no Brazil (NINA
RODRIGUES, 1894, p. 166).
Seguindo a tendência de hierarquizar, muito comum na doutrina
evolucionista, Nina Rodrigues seguia seus estudos sobre o mestiço
fazendo uma dicotomia entre eles em: mestiços superiores, degenerados e comuns.
Os mestiços superiores nasceriam da predominancia da raça civilizada na sua organização hereditaria, ou por uma combinação mental
feliz, de accordo com a escola classica, devem ser julgados perfeitamente equilibrados e plenamente responsaveis (NINA RODRIGUES, 1894,
p. 167). Os mestiços degenerados, [...], que em virtude de “anomalias
de sua organização physica, bem como de suas faculdades intellectuaes
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261
Marxismo.
e moraes”, eram derivados das variedades doentias, “dentre elles, uns
devem ser total, outros parcialmente irresponsaveis (NINA RODRIGUES,
1894, p. 167). Os mestiços comuns, eram [...], productos socialmente aproveitaveis, superiores ás raças selvagens de que provieram, mas
que, já pelas qualidades herdadas dessas raças, já pelo desequilibrio
metal que nelles operou o cruzamento, não são equiparaveis ás raças
superiores e acham-se em imminencia constante de commetter acções
anti-sociais de que não podem ser plenamente responsaveis. São casos
todos de responsabilidade attenuada (NINA RODRIGUES, 1894, p. 168).
Para Nina Rodrigues, a mestiçagem formou um tipo híbrido e
degenerado. A mestiçagem, segundo ele, não condizia com os preceitos do livre arbítrio, pois o mestiço não possuía, de forma alguma,
consciência do querer. Ele apenas agia instintivamente. Assim, criticava a forma de punir do código penal da época que se baseava no
livre arbítrio. Além do mais, o germen da criminalidade encontrava-se
fecundo na degenerescência do “mestiçamento”, no impulso dominante das raças inferiores e nas doutrinas fundamentadas no livre
arbítrio. E quando semeado esse solo tão vasta da criminalidade,
há de por força vir a provir o crime em vegetação luxuriante, tropical
verdadeiramente (NINA RODRIGUES, 1894, p. 175).
Na sua concepção, a consolidação de um código penal único
no Brasil foi um dos mais graves erros na formação da República. Para
ele o código deveria ser estabelecido regionalmente conforme as características climáticas, sociais e raciais de cada estado.
Uma outra questão interessante, e o fato de que Nina criticava o
estabelecimento de idade para a responsabilidade penal. Para ele, os
climas influenciavam na puberdade. Nas raças inferiores, por exemplo,
elas chegavam mais rapidamente. Assim afirmava que para imputar era
necessário antes de tudo uma analise psysio-psychologica do crimino.
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262
Marxismo.
BREVES CONSIDERAÇÕES
O conjunto das análises seguidas e elaboradas por Nina Rodrigues contribuiu para retórica de que no Brasil o mosaico étnico
configurava um entrave para a conformação das leis penais. A obra
A raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil revelava a trajetória materialista do pensamento racial brasileiro de finais do século
XIX e que condicionava em sus estudos a psique, a cultura, a multiplicidade social e racial a condições biológicas, climáticas e evolutivas.
Para ele, todos esses aspectos moldavam a sociedade brasileira da
época e não condiziam com a sociedade considerada civilizada.
Portanto, as raças nacionais eram inferiores e deveriam ser melhor estudadas para que tivessem em torno de si condições de desenvolvimento e prosperidade conforme as leis que condissessem com
suas realidades evolutivas.
Nina Rodrigues foi um homem de sua época e se destacou
como um dos maiores homens de Science do Brasil em finais do
século XIX. Faz de seus estudos etnográficos uma ponte para as
suas teorias raciais. Em seu materialismo evolutivo tentava demonstrar “cientificamente” a existência de uma hierarquia racial – raças
superiores e raças inferiores. Para Nina Rodrigues o crime, como vimos, deveria ser punida seguindo a escala da evolução racial que
determinava os níveis de consciência de cada raça – branca, negra,
indígena e mestiça. Por isso, defendia um código penal diferenciado
pelo clima, pela geografia e pela conformação racial de cada região
brasileira. Seus estudos marcaram o momento da junção da Medicina Legal e do Direito em um momento em que se buscava diagnosticar os possíveis males congênitos da sociedade brasileira da época.
Seus estudos marcaram também um momento peculiar da história brasileira, onde se concretizaram imagens negativas e depreciativas sobre as vertentes étnicas nacionais. Assim, o negro com seus
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263
Marxismo.
fetichismo infantil e maléfico, o índio com sua preguiça e o branco
português da “pior espécie”, amalgamaram-se formando um mestiço
híbrido e sem vigor intelectual. Isto seria o centro das reflexões de Nina
Rodrigues e que abririam os primeiros caminhos para as práticas higiênicas e de saúde pública no Brasil (BARROS, 1998).
Um dos principais legados de Nina Rodrigues foi acreditar que
a ciência poderia explicar a situação em que se encontrava o país.
O positivismo “não poderia afastar-se da realidade definida pela ciência, ao mesmo tempo em que deveria buscar afetar a política, mediante
as idealizações dos valores e das pessoas consideradas modelos para
a humanidade” (CARVALHO, 1990, p.132). As indagações de nina Rodrigues sobre as prováveis capacidades e tendências das raças tidas
como inferiores, principalmente os negros e mestiços de praticarem
atos anti-sociais foram um marco nos estudos raciais no Brasil.
REFERÊNCIAS
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Associação Cultural do Negro, 1961.
ARAÚJO, Sônia Maria da Silva; PRESTES, Carlos Alberto Trindade. Raças cruzadas e educação: uma proposta de nacionalização do mestiço da Amazônia. In: ARAÚJO, Sônia Maria da Silva (Org.). José Veríssimo: raça, cultura e
educação. Belém-Pa, UFPA, 2007, p. 137-170.
BADARÓ, Ramagem. Introdução ao estudo das três escolas penais. São
Paulo: Juriscredi, 1973.
BARROS, Pedro Motta de. Alvorecer de uma nova ciência: a medicina
tropicalista baiana. Manguinhos – História, Ciência, Saúde. São Paulo,
v. IV, n. 3, p. 411-459, nov. 1997 – fev. 1998.
BECCARIA, Cesare. “Dos delitos e das e penas”. São Paulo: Jurídica Gaetano
Dibenedetto, 1996.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
sumário
264
Marxismo.
GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
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ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. Rio de janeiro: H. Garnier,
v. 1, 1888.
SABINO JÚNIOR, Vicente. Cesare Beccaria e o seu livro “Dos delitos e das
penas”. São Paulo: Juriscrédi, 1972.
RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade
penal no Brasil. Bahia: Editora Progresso, 1894.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
VERON, Eugenio. La Morale. Paris: C. Reinwald, 1884.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. A evolução do povo brasileiro. São
Paulo: Civilização brasileira, 1933.
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265
15
Thomaz José Portugal Coelho e Santos
As peculiaridades
de Brasil peculiar:
características sociais
que formaram um país
manchado pelo preconceito
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.15
Marxismo.
INTRODUÇÃO
É fato inconteste que a formação da sociedade patriarcal moldou as relações sociais no Brasil e por essa razão a análise se faz bastante representativa, assim como os conceitos de sociedade escravista, patrimonialista e colonial são igualmente importantes para explicar
essa complexa sociedade brasileira.
No que tange ao patriarcalismo, existe atualmente uma grande
repercussão sobre questões feministas, desde a incontestável representatividade da mulher no mercado de trabalho e na vida política até
a contestável cultura do estupro.
Embora essa ideologia não seja o foco de análise neste trabalho, se faz necessária o entendimento de questões que levam o
apelo do feminismo ser tão importante na atual conjuntura, portanto,
deve-se reafirmar que não cabe aqui fazer arguições sobre esse momento da coletividade, mas sim a influência desses conceitos para a
formação da sociedade brasileira.
O foco do presente artigo é a formação da sociedade brasileira
e será feita uma convergência entre as obras, Casa Grande e Senzala
de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado
Jr. e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
As três obras aqui estudadas formam o tripé da teoria social
brasileira e solidificarão os fundamentos da sociedade brasileira e suas
consequências na atual sociedade. Essas obras são tão fundamentais
para compreender nossa sociedade, que os autores aqui estudados
estão elencados na obra do sociólogo Fernando Henrique Cardoso
como Os Pensadores que inventaram o Brasil.
O povo brasileiro é moldado até hoje por conjecturas sociais
que iniciaram nas políticas de colonização portuguesa um ideário
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267
Marxismo.
arcaico em que a figura do chefe da família, a importância das posses
e títulos, além da submissão laboral se amalgamam à cordialidade,
exposto especificamente por Holanda e formam a brasilidade como
conhecemos. Essas são as especificidades básicas que constituem
a sociedade complexa com ramificações altamente excludentes e elitistas que até hoje se fazem presentes nas relações sociais.
Primeiramente, Casa Grande e Senzala, em que é exposta a
base patriarcal da família brasileira por Gilberto Freyre e sua visão de
que a casa grande foi a responsável por toda a coesão da sociedade,
para FREYRE (2006) a senzala completava essa sociedade, representando o sistema econômico, social, político e religioso. O autor, homem
branco de origem senhorial desenvolve sua obra nessa perspectiva
elitista e entende que a miscigenação corrige a disparidade social que
cerca a relação entre brancos e negros no Brasil.
Já na análise de Formação do Brasil Contemporâneo de Caio
Prado Jr., partiremos do livro intitulado “Vida Social” e sua ênfase à
escravidão e sua “influência deletéria” na formação do Brasil. Pode-se
concluir previamente a importância dada por Prado Jr. para a escravidão como formadora da ética da desvalorização do trabalho, faz-se
notar que ser trabalhador no Brasil é algo menor.
Por último, a análise do livro “O Homem Cordial”, obra de Holanda constante em Raízes do Brasil. Para o autor a política colonialista
de concessão de terras e títulos era a ideia de administração praticada
pelos portugueses e assim é definido o patrimonialismo que foi e continua sendo o principal motivo da segregação social no Brasil.
As três definições que foram citadas acima, o patriarcalismo,
a escravidão e o patrimonialismo são características complexas que
constituem características não só no vínculo social, mas também na
relação dos indivíduos com o Estado. O passado colonial brasileiro
é ainda muito presente na sociedade e na estrutura política do país
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Marxismo.
e é uma questão em voga em certos acontecimentos sociais como
corrupção, machismo e racismo.
No caso da corrupção é evidente que o uso do bem público
para proveito próprio é uma evolução do patrimonialismo, pois quando da colonização havia uma falta de separação entre o público e o
privado. Porém existe uma grande diferença, a figura do rei impedia
qualquer uso impessoal do estado, seja desvio de dinheiro ou de função, o dinheiro não era público e sim do rei.
No caso do machismo a figura do patriarca era muito significativa, pois ao homem cabia toda a autoridade sobre a família e especialmente sobre a mulher, e ainda assim a subordinação é bem frequente
em nossa sociedade. Essa subordinação é confirmada seja no papel
profissional ou político, onde homens ganham mais e grande parte da
representação política é realizada por homens ainda na atualidade.
Nesse sentido, o atual contexto político, em grau de representatividade política, na própria legislatura e na representação simbólica no
alto escalão das autoridades de governo ficam muito aquém da necessidade de influência no sistema político real. E, vale tanto para o racismo
quanto para o machismo, a título de exemplo podemos citar homens
brancos e ricos tomando decisões que dizem respeito a vida de mulheres negras e pobres, ou seja, uma realidade influencia outra realidade.
No que tange ao racismo, existem várias posições que ainda
veem no negro uma configuração deteriorada de ser humano, um pária
social em que atribuem as piores das características, sejam laborais ou
sociais. Grande parcela da mestiça sociedade brasileira acredita em
trabalho de negro, papel de negro ou até mesmo lugar de negro, onde
o branco não se mistura, frequenta ou faz.
Antes de começarmos as análises individualizadas faremos um
apanhado muito relevante do texto de O povo brasileiro de Darcy Ribeiro que explica o que somos.
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269
Marxismo.
O Brasil foi regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino
de um de um proletariado externo dentro de uma possessão
estrangeira. Os interesses e as aspirações do seu povo jamais
foram levados em conta, porque só se tinha atenção e zelo no
atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora. (...) Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando
todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo
o direito elementar de trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar
(RIBEIRO, 2006, p. 404).
Essa breve análise de Ribeiro (2006) nos dá uma ideia do que
será abarcado no presente artigo, a formação da sociedade brasileira
através da colonização portuguesa, com forte mistura de culturas que
se deu ao longo da história, e formou uma sociedade repleta de preconceitos e desigualdades, sejam de oportunidades e de representação.
CASA GRANDE, SENZALA E O PATRIARCALISMO
O grande influenciador da sociedade brasileira é o modelo patriarcal da sociedade brasileira e é exposto na obra de Gilberto Freyre,
Casa Grande e Senzala. Essa obra é de grande relevância para entender as estruturas sociais do Brasil e de que forma cada característica
influenciou a formação social.
É importante ressaltar em primeiro plano o conceito exposto por
BENJAMIN (2005):
A colonização do Brasil, não foi obra do Estado ou das demais
instituições formais, todos aqui muito fracas. Foi obra da família patriarcal, em torno da qual se constituiu um modo de vida
completo e específico. O latifúndio monocultor e o regime escravista de produzir afastavam, separavam, machucavam, mas a
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Marxismo.
família extensa, cheia de agregados, a poligamia num contexto
de escassez de mulheres brancas e a presença de considerável
escravaria doméstica constituíam espaços de intercâmbio, nos
quais negros e negras, índios e índias – especialmente negras
e índias – muito mais adaptados aos trópicos, colonizaram o
colonizador, ensinando-o a viver aqui. Mulatos, cafusos e mamelucos se multiplicaram, criando fissuras na dualidade radical
que opunha senhores e escravos (BENJAMIN, 2005).
O modelo patriarcal tem referência com o modelo senhorial praticado no Brasil, seria como um feudalismo à brasileira, onde a Casa
grande, a família senhorial, abriga em sua estrutura não só os membros
dessa família, mas também os agregados, incluindo aí os parentes e
escravos. Todos eram subordinados ao patriarca, até mesmo os núcleos político e religioso daquele local, como explica FREYRE (2006):
A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes
como nos seus defeitos, menos em termos de “raça” e de “religião” do que em termos econômicos, de experiência de cultura e
de organização da família, que foi a unidade colonizadora. Economia e organização social que às vezes contrariaram não só a
moral sexual católica como as tendências semitas do português
aventureiro para a mercancia e o tráfico. (FREYRE, 2006, p. 34)
Para FREYRE (2006) a casa grande era o centro de coesão da
sociedade, e era complementada pela senzala, onde essa representava todo um sistema econômico, social político e também sexual como
apresentado pelo autor:
A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um
sistema econômico, social, politico: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão; de transporte (o carro
de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo
de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto dos
mortos, etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); (...) Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria,
escola, santa-casa de misericórdia amparando os velhos e as
viúvas, recolhendo órfãos (FREYRE, 2006, p. 36).
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Marxismo.
A questão da sexualidade nessa relação é bastante importante,
já que para o autor a miscigenação corrigiu a disparidade social entre
brancos, índios e negros, dado o costume de relações sexuais entre índias e brancos num primeiro momento e posteriormente entre escravas e
senhores, o que FREYRE (2006) cunha o termo como sadomasoquismo.
Essa sociedade era constituída de senhores e escravos e por
sua vez, a escravidão, que desvirtuou o princípio familiar europeu e
criou um caso único em que os dominados eram completamente dependentes do dominador. A família patriarcal era mais forte que tudo
na colônia, mais forte até que o caráter religioso do indivíduo e sobre a
igreja se sobrepunha, uma vez que o patriarca era o provedor de tudo
e todos naquela localidade.
A forma em que a representação familiar foi conceituada e combinada com a escravidão, foi a maneira desse sistema se adaptar às
características tropicais da colônia. Dessa forma, o papel da escravidão
é muito importante, já que de acordo com estudiosos da família patriarcal, é responsável pelo desvirtuamento da estrutura familiar europeia.
Desvirtuamento este, causado pelo hábito dos membros homens do núcleo familiar manterem relações sexuais com negros e indígenas, em face de pouca incidência de mulheres brancas, fato este
que contribuía com a miscigenação da sociedade colonial. Contudo,
essa miscigenação contribuía também para a disseminação da sífilis
entre a população, num primeiro momento junto aos indígenas e posteriormente entre os negros escravos africanos.
A sífilis era tão comum na colônia que o menino que não tivesse
a marca de sífilis no corpo era ridicularizado, e sobre a marca de sífilis
“o brasileiro a ostentava como quem ostentasse uma ferida de guerra”
(MARTIUS apud FREYRE, 2006, p.109). O autor faz uma interessante
relação entre sifilização e civilização e afirma “o Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado” (FREYRE, 2006, p. 110).
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Marxismo.
Essa questão da sífilis mostra o grau de ignorância do brasileiro,
ostentar uma grave doença como se fosse uma honra e isso diz muito sobre o brasileiro contemporâneo. Além do comportamento sexual
promíscuo, outra moléstia que acometia o brasileiro médio nos tempos
colonial foi a má nutrição, que de acordo com o autor, contribuía para
a deformação do mestiço brasileiro.
Esse comportamento sexual e doméstico íntimo apontado por
FREYRE (2006), levanta dessa forma a Teoria da Miscigenação, partindo da ideia da mistura de etnias completamente diferentes e antagônicas: a portuguesa, a indígena e a africana, que focada na questão
cultural leva à formação do povo brasileiro. E por formação do povo
brasileiro através da miscigenação, eis a ideia de RIBEIRO (2006):
A sociedade era, de fato, um mero conglomerado de gente
multiétnicas, oriundas da Europa, da África ou nativos daqui
mesmo, ativadas pela mais intensa mestiçagem, pelo genocídio mais brutal na dizimação dos povos tribais e pelo etnocídio
radical na descaracterização cultural dos contingentes indígenas e africanos (RIBEIRO, 2006, p. 404).
Ainda em RIBEIRO (2006) que finaliza, “essa massa de mulatos e caboclos, lusitanizados pela língua portuguesa que falavam
pela visão do mundo foi plasmando a etnia brasileira e promovendo,
simultaneamente, sua integração, na forma de um Estado-Nação”
(RIBEIRO, 2006, p. 405).
Dada a importância da miscigenação, FREYRE (2006) mostra
no contexto brasileiro seu conceito de equilíbrio de antagonismos de
economia e de cultura da seguinte forma:
A cultura europeia e indígena. A europeia e a africana. A africana e indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária
e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro.
O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba.
O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária.
O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os
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Marxismo.
antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o
escravo (FREYRE, 2006, p. 116).
Nesse sentido a análise do autor é correta no sentido de afirmar
a relevância social da miscigenação também para o equilíbrio de antagonismos, assim como para a formação do Brasil e suas relações
sociais, essa afirmação fica clara ao expor:
A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme
entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a
senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade
brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante
lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da
miscigenação (FREYRE, 2006, p. 33).
Partindo do ponto de vista de Gilberto Freyre, os principais aspectos influenciadores da formação do Brasil foram a monocultura latifundiária e a escravidão que moldaram a família patriarcal e que a
miscigenação contribuiu ao evitar qualquer ruptura social, mantendo
assim a submissão dos negros e índios sobre os senhores.
SOCIEDADE NA FORMAÇÃO DO BRASIL
Outra grande obra que é fundamental para entender o Brasil,
assim como FREYRE (2016), é “Formação do Brasil contemporâneo”,
que esmiúça as relações sociais do Brasil e as aponta no primeiro capítulo, é “O sentido da colonização”. Esse sentido da colonização residiria na exploração metropolitana com finalidade mercantil e fomentando
o povoamento necessário para a produção de gêneros tropicais.
A sociedade brasileira colonial era baseada na forma de uma empresa do colono branco de caráter mercantil e baseada em trabalho
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Marxismo.
escravo, seja indígena ou africano e voltada para a produção de gêneros
de grande valor comercial. No que se refere ao povoamento, era muito
desigual, onde grande parte da população se encontrava no litoral, essa
distribuição irregular foi consequência do bandeirismo e missões católicas catequizadoras, além das atividades econômicas da colônia, como
da exploração das minas e criação de gados no território nordestino.
As atividades econômicas foram voltadas para produzir e exportar gêneros tropicais de alto valor comercial, dessa forma há uma
linha de análise comum a FREYRE (2006) e PRADO JR. (2011) onde
ambos a economia colonial como marcada pela grande produção
agroexportadora. A atividade econômica da colônia era apoiada em
um tripé que se complementava, sendo eles a grande propriedade a
monocultura e o trabalho escravo.
Após uma breve análise de Vida Material e Povoamento, chegamos ao que nos interessa para mostrar a formação social do Brasil que é
o tem tratado em “Vida Social” e que consiste na análise da constituição
social do Brasil colonial caracterizada pela escravidão. De acordo com
PRADO JR. (2011) a escravidão no Brasil foi tão peculiar que afirma:
Em todo lugar onde encontramos tal instituição, aqui como
alhures, nenhuma outra levou-lhe a palma na influência que
exerce, no papel que representa em todos os setores da vida
social. Organização econômica, padrões materiais e morais,
nada há que a presença do trabalho servil, quando alcança as
proporções de que fomos testemunhas, deixe de atingir; e de
um modo profundo, seja diretamente, seja por suas repercussões remotas (PRADO, JR., 2011, p. 285).
A escravidão para o autor, veio desacompanhada de qualquer
elemento construtivo e com uma contribuição cultural passiva muito
em razão da forma pejorativa que o negro era representado na sociedade colonial, reduzindo o homem a um instrumento vivo de trabalho”
(MALHEIRO apud PRADO JR., 2011, p. 289)
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275
Marxismo.
Nesse ponto, PRADO JR. (2011) começa fazendo um paralelo
entre a escravidão moderna e do mundo antigo e conclui:
(...) o que de mais grave determinará, entre os povos colonizadores e sobretudo em suas colônias do Novo Mundo, é o
fato de vir a nova escravidão desacompanhada, ao contrário
do que se passara no mundo antigo, de qualquer elemento
construtivo, a não ser num aspecto restrito, puramente material, da realização de uma empresa de comércio: um negócio
apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores (PRADO JR., 2011, p. 287).
E assim o autor mostra o “triste espetáculo humano” (PRADO
JR., 2011, p. 288) que é a escravidão e a submissão do homem negro
aceitos na sociedade por se tratar, de acordo com o autor, de uma raça
semibárbara. Contudo, essa submissão de raças, onde “pretos” ou
“negros”, tom pejorativo comum, é sinônimo de escravo e mesmo que
não o seja, se transforma em escravo.
A questão de raças é importante para PRADO JR. (2011) porque
explica a mestiçagem, caráter saliente da formação étnica do Brasil
onde a predominância do branco se fez notar pelo branqueamento
e pela eliminação de qualquer contribuição cultural advinda do negro
e do índio. Deve-se aqui voltar a uma questão de povoamento, uma
vez que, quando da ocupação do Brasil, não vieram muitas mulheres
brancas, face a imigração de caráter aventureiro e individual.
Da mestiçagem verifica-se a predominância branco-preto que
foi a que moldou a conjunção étnica sofrida pela população colonial,
deixando o indígena quase que de fora da sociedade contemporânea.
Nesse sentido, como impulsionador dessa mestiçagem, verifica-se
mais uma função do escravo “ou antes, da mulher escrava, instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus senhores e dominadores” (PRADO JR., 2011, p. 364).
Contudo, “uma das consequências mais nefastas da ampla disseminação do trabalho escravo em setores da vida econômica e social
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Marxismo.
do Brasil Colônia, foi a cristalização de uma ética da desvalorização do
trabalho” (LIMA, 2008, p. 121). De todas as consequências, o racismo é a mais presente na atual sociedade brasileira e “transformando
em ocupação pejorativa e desabonadora pelo lugar que ele ocupa na
sociedade, restando apenas pequena margem de atividades laborais
digna destinadas ao homem livre” (LIMA, 2008, p. 122).
Essa é a explicação do surgimento do uso profissional do termo
“classe média”, uma vez que, ao invés de qualificar-se pela atividade
profissional, o indivíduo se qualifica pela sua condição social e omitindo assim sua ocupação para sentir-se socialmente aceito.
Outra questão sobre a organização social que PRADO JR. (2011)
destaca e alinhado a FREYRE (2006) é a importância dada ao modelo
patriarcal de sociedade como exposto, “O clã patriarcal, na forma em
que se apresenta, é algo de específico da nossa organização” (PRADO
JR., 2016, p. 304). O clã patriarcal, é o ícone do Brasil colônia e fruto
direto da administração portuguesa, fruto de uma administração fraca e
incapaz de manter os interesses da Coroa, centralizando toda a administração de determinada local, por ser a “unidade econômica, social,
administrativa, e até de certa forma religiosa” (PRADO JR., 2011, p. 304).
As questões atinentes à administração merecem um capítulo
específico e a ela tem-se a sintetização na seguinte colocação:
(...)falta de organização, eficiência e presteza do seu funcionamento (...); processos brutais empregados, de que o recrutamento e a cobrança de tributos são o exemplo máximo (...); a
complexidade dos órgãos, a confusão de funções e competências; a ausência de métodos e clareza na confecção de leis (...);
o excesso de burocracia dos órgãos centrais (...); centralização
administrativa que faz de Lisboa a cabeça pensante única (...)
(PRADO JR. apud LIMA, 2008, p. 122).
Por fim, no último capítulo do livro “Vida Social e Política”,
PRADO JR. (2011) destaca traços do Brasil Colônia e caracteriza-o
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Marxismo.
especificamente pela ausência de nexo moral e acentua também o
papel da subordinação do escravo ao senhor. Nesse sentido, encaixa
perfeitamente a seguinte afirmação:
De fato, a sociedade é vista como sendo constituída de um núcleo central organizado, cujo elemento principal é a escravidão,
e de um setor periférico, caracterizado por uma inorganicidade
e incoerência que nele não se pode vislumbrar sequer uma estrutura social (LIMA, 2008, p. 122).
No texto de Caio Prado Jr. pode-se verificar o caráter do brasileiro e no que diz respeito ao tema do artigo, ele se resume pela promiscuidade, o racismo e o desdenho ao trabalho.
TODA UMA SOCIDADE DETERMINADA
PELA CORDIALIDADE
As três obras citadas são obras que resumem bem a sociedade
brasileira. Examinaremos mais especificamente patrimonialismo e cordialidade como características principais dessa sociedade.
É precípuo na obra de Holanda o patrimonialismo que é umas
das mais cristalizadas características da sociedade brasileira e uma
das suas consequências mais visíveis, a corrupção, assim o autor vai
direto ao ponto ao afirmar:
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público.
Assim, eles caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata (...); para o funcionário
“patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os
benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais
do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no
verdadeiro Estado Burocrático (...) (HOLANDA, 2005, p. 146).
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Marxismo.
O exposto por Holanda (2005), uma prática que no Brasil é fomentada de forma assustadora, são os casos de corrupção sistêmica
acometidos por agentes públicos, os funcionários “patrimoniais” e é
um hábito social. De acordo com o autor, “é possível acompanhar ao
longo de nossa história o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal” (HOLANDA, 2005, p. 146).
A questão do patrimonialismo é fundamental para se entender
essa desvirtuação do público em prol do privado, uma vez que o recolhimento de impostos na atualidade com o caráter impessoal da res
publica. WEBER (2004) vê uma relação entre o que ele chama de dominação patriarcal e dominação patrimonial, como exposto:
A este caso especial da estrutura da dominação patriarcal: o
poder doméstico descentralizado mediante a cessão de terras
e eventualmente de utensílios a filhos ou outros dependentes
da comunidade doméstica, queremos chamar de dominação
patrimonial (WEBER, 2004, p. 238).
WEBER (2000) entende que na dominação patrimonial, a pessoalidade do senhor no exercício do poder é cristalina e isso tem absoluta relação com a formação brasileira e uma ideia de “descentralização administrativa centralizada” onde um senhor administrava sua
propriedade não como proprietário, mas sim como o rei local. Logo
essa ideia de rei local, a dominação patrimonial, criou o que conhecemos como coronelismo que LEAL (2012) atribui à “hegemonia social
do dono de terras” e tem origem nos latifúndios rurais formados no
sistema colonial português implantado no Brasil.
Para Victor Nunes Leal, o fortalecimento do patrimonialismo e
sua adaptação ao Estado moderno vieram no período imperial, dada
sua tolerância aos senhores latifundiários em troca da força eleitoral
dos “coronéis”. Talvez aí tenha sido o momento em que a máquina
estatal tenha sido aparelhada de forma a atender os interesses dos
detentores do poder.
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Marxismo.
Nesse sentido, entende-se que o Brasil foi construído para o
usufruto dos detentores do poder, do chefe e nem o ímpeto liberal desatou as amarras da herança patrimonialista portuguesa como ensina
Faoro que afirma o seguinte:
A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou,
nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação,
impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno. O patriciado, despido de
brasões, de vestimentas ornamentais, de casacas ostensivas,
governa e impera, tutela e curatela. O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação,
da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um
delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e
não mandatário (FAORO, 2012, p. 836).
Essa dominação da elite da forma que foi concebida por FAORO (2012) permaneceu inalterada desde a colonização até o período
Vargas, ou seja, o Estamento burocrático controlava o Brasil de forma
particular, economicamente e politicamente. Na mesma linha de FAORO
(2012) segue Florestan Fernandes, que por sua vez fala em uma “dualidade estrutural” com duas formas de dominação, sendo uma dominação consagrada pela tradição e outra criada pela ordem legal, contudo
FERNANDES (2005) afirma que “na prática, com frequência os controles
reativos suscitados pela tradição prevaleciam sobre os preceitos legais”.
Dessa forma, fica claro que a sociedade brasileira ainda se
relaciona, pouco menos, mais ainda de forma tradicional, onde se vê
o respeito por sobrenomes históricos, os que acreditam ter o sangue
azul e por essa razão acreditam também em sobrepor a ordem legal.
Os conceitos de sociedade no Brasil são baseados em características tradicionais, o que é estranho em república visto que não existe
nobreza nem aristocracia.
Outra herança do sistema colonial é a cordialidade, pontuada
por Holanda, “já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição
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Marxismo.
brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo
o ‘homem cordial” (HOLANDA, 2005, p. 146).
Holanda (2005) entende que é do modo de ser do brasileiro a dificuldade para manter ritos sociais formais dado seu hábito pela impessoalidade e afetividade. Assim são as características desse brasileiro:
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão
gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com
efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral
dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar
“boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo, expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.
Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças (HOLANDA, 2005, p. 146).
O desapego do brasileiro à formalidade é nítido ainda na atualidade, uma vez que os pronomes de tratamento são dispensáveis
por aqueles que chamam e altamente requisitado pelas Excelências.
Vivemos sim em uma nação de Excelências, onde se caracteriza uma
“quase” segregação social, visto que a atual aristocracia, geralmente
ocupa cargos públicos e representam o Estado.
Essa cordialidade exposta em o Homem Cordial é também a
razão pela qual não existe uma luta de classes na sociedade brasileira
conforme nos foi ensinado e é motivada pelo relacionamento íntimo
entre senhores e escravos. A cordialidade foi por muito tempo a forma
de camuflar a brutalidade que regiam as relações sociais no Brasil.
As relações consistiam em diversas formas, até mesmo sexual,
entre o núcleo familiar do senhor de engenho e as escravas, visto que
eram usadas como objetos sexuais, além de iniciar sexualmente os filhos desses senhores, que viriam a ser senhores no futuro. Além disso,
existia a figura da “ama de leite”, escravas que amamentavam os filhos
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Marxismo.
recém-nascidos e também as mucamas, escravas que acompanhavam as senhoras no dia a dia, essas mucamas eram tão intimas que
tinham acesso direto à casa grande.
Por assim dizer, os escravos participavam da vida íntima do núcleo familiar, quando não existia uma questão amorosa no meio dessa
equação, visto que era muito comum essas figuras materna e sexual,
mais comumente, ganharem cartas de alforria de seus senhores, pelos
“trabalhos prestados”. Essas alforrias vinham o mais tardar em declaração de última vontade e era comum que os senhores alforriassem
também por lealdade e serventia, deve-se entender que ele está abrindo
mão de uma propriedade, já que assim eram considerados os escravos.
Já não existe mais a escravidão, já não existe mais esse tipo de
relação entre empregados e empregadores, mas ainda existe essa
cordialidade no meio doméstico, onde empregados são tratados
como membros da família, onde o contrário também ocorre. Essa
cordialidade fica mais evidente quando existe uma quebra dessa relação laboral, especialmente quando o empregado tem uma oportunidade e melhorar sua vida e a família considera uma vitória sua,
como se ela fosse realmente da família.
Contudo, quando a relação empregatícia termina mal e sobram
acusações de traição e desapontamento, normalmente quando a questão vai parar na justiça, é comum aparecer os chavões “eu a tratava
como se fosse da minha família”, ou então “minha patroa é madrinha
do meu filho”. Essa é uma questão típica da relação de classe no Brasil
e a cordialidade vem justamente para aproximar as pessoas, ocultando disparidades sociais bastante comuns na sociedade brasileira.
Uma última questão acerca da cordialidade relacionada à intimidade no caráter linguístico e essa análise é congruente no pensamento de FREYRE (2006) e HOLANDA (2005). Para FREYRE (2006)
essa forma de afetividade é vista no contato das crianças com a ama
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Marxismo.
negra, passou a amolecer a linguagem brasileira. Já o uso constante de palavras no diminutivo, o que HOLANDA (2005) entende “que
serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e ao
mesmo tempo para lhe dar relevo”.
Ainda resta a ideia de que os brasileiros são íntimos de uma
forma quase desrespeitosa dos santos, dada a intimidade e a popularidade que os santos tomam para com seus devotos brasileiros, tanto
que o autor faz a seguinte colocação:
Cada casa quer ter sua capela própria, onde os moradores se
ajoelham ante o padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os
santos já não aparecem como entes dalgos e plebeus, querem
estar em intimidade com as sagradas criaturas e próprio Deus
é um amigo familiar, doméstico e próximo – o oposto do Deus
“palaciano”, a quem o cavaleiro de joelhos, vai prestar sua homenagem, como a um senhor feudal (HOLANDA, 2005, p. 149).
Eis as características que formaram a sociedade brasileira e
dessa forma deve-se compreender o porquê das peculiaridades que
a formam e, assim, reafirmá-las até que essa realidade seja alterada,
com a finalidade de reconhecer o problema e promover uma mudança
que realize a, tão falada, justiça social e inclusão de minorias.
CONCLUSÃO
O Brasil, ao contrário de outras colônias europeias ainda é uma
nação em formação, especialmente em seu contexto social e mesmo com as disparidades de oportunidades vem sendo reduzidas por
medidas políticas. Ainda existem cicatrizes que sem mostram muito
resistentes e elas vieram da forma que se deu a colonização.
A diferença é que a sociedade brasileira foi englobando culturas não muito civilizatórias, o oposto de outros “novos mundos”,
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Marxismo.
especialmente as de colonização inglesa, que transferiram sua cultura para as terras recém-descobertas, como nos ensina RIBEIRO
(2006). Ao contrário, o Brasil foi a mistura cultural entre a perversa
cultura ibérica e abafada cultura africana e criaram esse ser brasileiro, que já foi conhecido não como natural do Brasil, mas sim aquele
que exploram a terra, ou seja, somos de uma cidadania explorada.
Essas marcas fomentaram e ainda fomentam muita ignorância
em nossa sociedade, por essa razão pode-se afirmar que a sociedade
brasileira é de extremos e assim como “ostentar a marca da sífilis como
uma marca de guerra” é um exemplo do que estava por vir, uma sociedade extremamente intolerante, racista e elitista. Essas três características são a combinação perfeita para a ignorância, o que confirma
realmente o significado da cordialidade entre nosso povo, se essa não
existisse e amansasse os ânimos sociais, uma luta de classes definitivamente já teria eclodido.
Por ser considerada pelos grandes teóricos sociais brasileiros
ainda uma sociedade em desenvolvimento e uma sociedade de desenvolvimento tardio, assim como de civilidade tardia e isso explica os
absurdos que diariamente nos chocam nas capas de jornais. A civilidade a que nos referimos é mais próximo de humanidade, pois a falta
de humanidade somada à ignorância dos indivíduos resulta nas monstruosidades que são cometidas e enraizadas em nossa sociedade.
Verifica-se também que na ocorrência desses tipos de crime é
comum que se atribua a culpa à sociedade, mas a sociedade deveria
ser considerada a vítima, pois a sociedade nada mais é que o reflexo
dos indivíduos que dela fazem parte. A culpa deve ser entendida como
individual daquele que comete o crime e não é só um crime contra a
pessoa, mas também um crime contra a sociedade.
As relações sociais são os acontecimentos que moldam uma
nação e dela devemos tirar o que tivermos de melhor para apresentar
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284
Marxismo.
e mantê-la sempre em evolução, pois a evolução social é a primazia
das sociedades mais desenvolvidas, onde a educação é a maior arma
contra a ignorância e intolerância. No Brasil a educação é considerada
como gasto, enquanto deveríamos entender como investimento social,
essa deveria ser a principal medida social de um governo.
Contudo, o que verificamos são governos, em toda esfera de
administração, mais preocupados com a política do que com o estado em si, e quando temos políticos mais preocupados em administrar
nuances políticas do que governar propriamente dito. Constatamos
também que o dirigente brasileiro trata seu cargo como se fosse seu
próprio engenho, base dos primórdios do Brasil colonial, patrimonialista corrupto e patriarcal.
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sumário
286
16
William Vaz de Oliveira (UERJ)
Juliano Moreira
e a Psiquiatria Social no Brasil
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.16
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NOTAS BIOGRÁFICAS
Juliano Moreira nasceu no dia seis de janeiro de 1973, na freguesia da Sé, hoje o espaço do Pelourinho, na cidade de Salvador. Seu pai,
o português Manoel do Carmo Moreira Junior, era inspetor de iluminação pública e sua mãe, Galdina Joaquim do Amaral, trabalhava como
doméstica na casa do Barão de Itapuã, um renomado médico baiano.
Desenvolveu desde pequeno um grande interesse pela leitura, sendo um frequente leitor do Jornal de Notícias, diário assinado
pelo pai, que noticiava os assuntos do norte do país (PASSOS, 1975,
p. 9-10). Mas parece ter sido a convivência com a família do Barão
de Itapuã, que se tornara seu padrinho, o que teria despertado ainda
mais o seu interesse pelos estudos. Assim, após realizar seus estudos iniciais no Colégio Pedro II, Juliano Moreira foi transferido para o
Liceu Provincial na cidade de Salvador onde, em 1886, após manifestar sinais de extraordinária precocidade, foi matriculado na Faculdade
de Medicina da Bahia (MEMORIAL, 2007, p. 14). Daí em diante sua
trajetória o levaria a se despontar como um dos principais nomes da
medicina, especialmente da medicina mental brasileira.
Dedicou-se primeiramente à dermatologia, tendo se tornado interno da Clínica Dermatológica e Sifilográfica quando ainda cursava
o quinto ano do curso de Medicina. Um ano depois se formou em
medicina e cirurgia após apresentar a tese Etiologia da Sífilis Maligna
Precoce, aprovada com a nota máxima e recomendada para análise
de especialistas estrangeiros na área. Sua tese inaugural se tornou
depois referência mundial na área da sifiligrafia.
Após sua formatura Moreira dedicou-se à clínica na Santa Casa
de Misericórdia, assumindo mais tarde o lugar de médico adjunto do
Hospital de Santa Isabel, em Salvador. Em 15 de setembro de 1894,
após ser aprovado em concurso, foi nomeado preparador de anatomia
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288
Marxismo.
médico-cirúrgica. Foi neste tempo que Juliano Moreira teve o seu primeiro contato com as doenças mentais ao se tornar assistente da cátedra de Clínica Psiquiátrica e Doenças Nervosas. Nos intervalos ainda se
dedicava ao estudo de idiomas. Seu destaque no meio acadêmico foi
imediato, sempre estudando e discutindo com seus pares, tendo mobilizado professores e colegas para a fundação de duas importantes associações na Bahia – a Sociedade de Medicina e Cirurgia e a Sociedade de
Medicina Legal – que tiveram a adesão de professores ilustres da época,
tais como: Pacheco Mendes, Alfredo Brita e Raimundo Nina Rodrigues.
Em meados de 1895, a fim de aprimorar seus conhecimentos em
neuropsiquiatria, Juliano Moreira fez uma viagem para a Europa, onde
frequentou cursos de doenças mentais regidos por importantes professores da área, dentre eles Kraft-Ebbing. Na mesma ocasião teve a
oportunidade de ouvir lições de Raymond Dejérine, Gilles de La Tourette
e Valentin Magnan. Além disso visitou importantes clínicas psiquiátricas
na Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Itália, França, Áustria e Suiça. Segundo José Leme Lopes: dessas viagens trouxe uma larga visão
da medicina e um entusiasmo pelos novos métodos e técnicas, que a
psiquiatria começava a ensaiar, ao receber o benéfico influxo dos progressos científicos em fase de expansão (LOPES, 1964, p. 6).
De fato, tais viagens aumentaram ainda mais seu interesse por
essa disciplina, tanto que ao voltar da Europa, em 1896, se inscreveu
no concurso para preenchimento da vaga de professor da 12ª seção
da Faculdade de Medicina da Bahia, que compreendia as doenças
nervosas e mentais, deixada por Augusto Freire Maia Bittencourt que
ocupava a cadeira desde setembro de 1886.
Embora a banca do concurso fosse formada em sua maioria
de escravocratas declarados, fator importante - considerando-se que
Juliano Moreira era mestiço e que havia menos de dez anos que a
escravidão havia sido abolida no Brasil - defendeu sua tese oral Disquinesias Arsenicais, concluída sob fortes aplausos. Em seguida,
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Marxismo.
na leitura escrita, escreveu um texto sobre Meopatias Progressivas.
As provas práticas foram seguidas por dezenas de estudantes e outras
pessoas que lotaram o salão nobre da Faculdade. A presença atuante dos alunos e outras pessoas durante as provas justificava-se, pois
temiam que houvesse algum ato que impossibilitasse o jovem médico
Juliano Moreira vencer aquele concurso. Afinal a escola tinha fama de
racista, a banca era conhecida como escravocrata (MEMORIAL, 2007,
p. 16). Porém, nem mesmo os escravocratas puderam deixar de reconhecer os seus méritos (MEMORIAL, 2007, p. 17), pois na manhã de
nove de maio de 1896 quem passasse pela Faculdade de Medicina da
Bahia, no Terreiro de Jesus, podia ver afixado no mural o resultado do
exame em que Juliano havia recebido quinze notas máximas. Assim,
com apenas vinte e três anos de idade ele se tornava o mais novo professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Em seu discurso de posse,
realizado no dia 16 de junho, ele disse o seguinte:
Subir sem outro bordão que não seja a abnegação ao trabalho,
eis o que há de mais escabroso. Tentei subir assim, e se méritos
tenho em minha vida este é um (...). Há quem se arreceie de
que a pigmentação seja nuvem capaz de marear o brilho desta
Faculdade, me parece estar vendo imagem fulgurante da Pátria
Brasileira, qual a heróica e gloriosa Cornélia, a mãe dos Gracos,
a mostrar serena e majestosa entre as suas jóias mais preciosas
as gemas coloridas que valorizam o diadema que lhe auréola a
fronte (...) (Juliano Moreira apud PASSOS, 1975, p. 16-17).
Naqueles tempos, finais do século XIX, havia uma forte tendência entre os psiquiatras a considerar as doenças mentais um
fator hereditário. De modo geral, as causas das doenças mentais
eram atribuídas à mistura de raças, bem como aos fatores climáticos dos trópicos. Assim, a psiquiatria da época estabelecia uma
forte relação entre as doenças mentais e a mestiçagem do povo
brasileiro. Nina Rodrigues, por exemplo, que se mantinha atrelado
ao pensamento evolucionista dominante na época, defendia a ideia
de que a mistura de raças era fortemente prejudicial à formação de
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Marxismo.
um país – para ele a mestiçagem era um traço de inferioridade e a
principal causa da loucura. Juliano Moreira, por outro lado, pensava
que a questão racial não determinava a doença mental e que os
principais causadores das enfermidades mentais eram a ignorância, o alcoolismo, a sífilis, as verminoses, bem como as condições
sanitárias e educacionais do povo brasileiro. Por isso mesmo, a psiquiatria deveria trabalhar de forma profilática e higienista.
Foi assumindo esta posição em defesa de uma psiquiatria social – preocupada não apenas com o caráter científico, mas, sobretudo, social das doenças mentais – que Juliano Moreira publicou e
apresentou diversos trabalhos e comunicações em várias revistas e
congressos no Brasil e em outras partes do mundo. Ao articular diretamente a prática clínica e o trabalho de divulgação científica, Juliano
traça os caminhos para a consolidação de uma escola psiquiátrica
no Brasil. As suas experiências em eventos e práticas científicas internacionais o deixaram totalmente inconformado com o modelo de
Assistência a Alienados adotado no Brasil, o que marcou profundamente suas ideias e suas práticas.
Mas foi pela psiquiatria alemã que ele desenvolveu um maior
interesse. Após viagem à Europa, em 1900, o alienista, naquela época professor substituto de psiquiatria e neurologia na Faculdade de
Medicina, ficou encantando com o modelo de Assistência existente
em vários estabelecimentos de alienados naquele país, onde havia
uma forte preocupação com a pesquisa, o ensino e a utilização
de métodos modernos de diagnósticos e tratamentos das doenças
mentais. Naquela ocasião teve a oportunidade de observar a existência de excelentes clínicas psiquiátricas autônomas, com vastas
colônias agrícolas, onde os doentes podiam se beneficiar da terapia
pelo trabalho; abandono de todos os meios de contenção, podendo
os doentes gozar de regimes de liberdade; pavilhões de vigilância
com profissionais capacitados; generalização do tratamento pela
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clinoterapia – contrários ao isolamento celular; tratamentos individualizados – com colônias para epilépticos, nervosos, bebedores
habituais, delinquentes, etc. De volta ao Brasil, ele publicou artigos
na Revista do Grêmio dos Internos dos Hospitais, descrevendo as
suas impressões sobre as clínicas psiquiátricas das Universidades
de Halle (1901), Leipzig (1901) e Wursburg (1902), seguidos de outros trabalhos em que destacava a necessidade de mudanças nos
serviços de Assistência, pesquisa e ensino de psiquiatria no Brasil.
A Faculdade de Medicina da Bahia, onde Juliano assumia o
cargo de professor substituto de psiquiatria e neurologia, parecia não
ser o local adequado para o seu desenvolvimento intelectual e profissional como desejava. O alienista mostrava-se bastante insatisfeito
com o “estéril estado” das coisas e sabia que naquela conjuntura
uma mudança seria improvável. Por isso, em 1902, em viagem ao
Rio de Janeiro onde participou do ato de embalsamento do cadáver
do Professor Manuel Vitorino, ilustre médico baiano e vice-presidente
da República (1894-1898), a vida de Juliano Moreira tomou outros
rumos. Segundo Alexandre Passos: daqui em diante o futuro demonstrará que aquele ‘ao Rio’ se transformou em ‘para o Rio’, porque não
mais ele voltaria à terra natal (PASSOS, 1975, p. 19).
Uma vez no Rio de Janeiro, se estabeleceu em uma rua tranquila no bairro de São Cristóvão, onde abriu um consultório. Ali permaneceu até 1903 quando, após indicação de seu conterrâneo Afrânio Peixoto, foi nomeado diretor do Hospício Nacional de Alienados
(HNA). Juliano Moreira assumiu a direção do HNA com a função de
reformar não apenas aquele estabelecimento, mas a Assistência a
Alienados como um todo. Naqueles tempos a Assistência passava
por sérios problemas, envolvida em uma onda de escândalos que a
colocava em grandes dificuldades – coube a Juliano Moreira a difícil
tarefa de colocá-la nos eixos.
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O HOSPÍCIO NACIONAL DE ALIENADOS
Ao assumir a direção do HNA, Juliano Moreira procurou realizar
diversas reformas na Assistência de modo a equiparar a psiquiatria brasileira ao modelo alemão. Empenhou-se não apenas em organizar os
espaços, como também divulgar os saberes teóricos e práticos da psiquiatria germânica em solos brasileiros. Tratava-se, sobretudo, de criar
uma escola onde o ensino e a pesquisa caminhassem sempre juntos.
A reforma realizada no HNA em 1903 e 1904 revela o forte apego
aos princípios do alienismo alemão, em detrimento do modelo francês dominante no século XIX. O isolamento preconizado por Esquirol,
amplamente utilizado no Brasil, foi substituído pelos modelos de assistência open door, que procuravam proporcionar ao doente a maior
liberdade possível, ou ao menos a sensação de liberdade. Com Juliano
Moreira houve uma descentralização da Assistência aos Alienados, ou
seja, o isolamento do doente no HNA deixou de ser condição necessária para o seu tratamento. Ao lado dessa modalidade de terapêutica
somaram-se outras formas de intervenção baseadas em uma assistência psiquiátrica mais difusa: foram criadas as colônias agrícolas, a
assistência familiar, reformatórios para alcoolistas e até mesmo seções
para o tratamento dos pacientes epilépticos.
O modelo adotado por Juliano Moreira era baseado, em grande
medida, no modelo da clínica psiquiátrica de Munique, sob a direção
de Emil Kraepelin. Ali ele pôde observar o que havia de mais moderno
no tratamento racional das doenças mentais, o que fazia daquela clínica, no seu entender, a melhor do mundo. Naquele estabelecimento
viviam os doentes em regime de liberdade, pois as grades e camisas
de força foram abolidas; o sistema de vigilância era bem montado contando com um enfermeiro para cada cinco doentes e um para cada
dois nas salas de vigilância contínua. Assim como na Universidade de
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Marxismo.
Leipzig, na clínica de Munique a admissão dos pacientes era muito fácil, ficando as formalidades legais de internação para depois do exame
conveniente, o que facilitaria o trabalho de pesquisa e aumentariam
as chances de cura do paciente que não teria que ficar esperando o
cumprimento das exigências da lei para que fosse atendido.
Foi pensando na clínica de Munique e nos ensinamentos do seu
célebre diretor Emil Kraepelin que Juliano concebeu a reforma do HNA.
A primeira coisa a ser feita foi uma reforma legal. Ou seja, para empreender uma reforma de fato, de acordo com os princípios da psiquiatria moderna, era preciso regulamentar, não apenas médica, mas legalmente,
a Assistência a Alienados no país. Juliano Moreira participou ativamente
do processo de consolidação do decreto legislativo nº. 1132, de 22 de
dezembro de 1903, regulado pelo decreto executivo nº. 5125, de 1º de
fevereiro de 1904, que buscava organizar a assistência de modo a possibilitar maior controle por parte do Estado - tanto em estabelecimentos
públicos quanto privados e garantir aos médicos um espaço de verdadeira autonomia e autoridade incontestável no que diz respeito aos
aspectos clínicos da alienação mental. Assim, a doença mental passa
a figurar como assunto exclusivo dos psiquiatras e a Assistência como
assunto dos poderes públicos. Pretendia-se, desse modo, evitar as sequestrações arbitrárias e o cerceamento das liberdades individuais bem
como o exercício indevido da profissão por pessoas não capacitadas.
Após a reforma legislativa, Juliano Moreira procurou então implementar uma reforma na Assistência de fato. Primeiramente, procurou retirar as grades de ferro que circundavam o estabelecimento para
dar um ar de maior liberdade. A prática de retirar as grades dos manicômios coadunava com o pensamento da psiquiatria moderna, em
defesa da Assistência em asilos de portas abertas, hospitais colônias,
onde os pacientes pudessem ter a sensação de estarem sempre em
liberdade, ainda que tal sensação fosse apenas ilusória.
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Marxismo.
O filão do projeto de reforma empreendido por Moreira era a
pesquisa e o ensino, portanto a organização dos laboratórios teve uma
atenção maior. Foram adquiridos aparelhos novos para o laboratório histoquímico, houve uma remodelação dos laboratórios de anatomia patológica e clínica, foram organizados o serviço oftalmológico, odontológico
e fotográfico, sem contar a instalação de um gabinete antropométrico
para a realização de exames mais sofisticados dos pacientes, etc.
QUAIS OS MELHORES MEIOS
DE ASSISTÊNCIA AOS ALIENADOS?
Em relatório apresentado no Quarto Congresso médico latino-americano, realizado em 1910, Juliano Moreira mostra quais seriam os
melhores meios de Assistência aos Alienados. Segundo o alienista, ao
elevar o alienado à categoria de mero doente do cérebro, o hospício
teria se humanizado, transformando-se pouco a pouco de prisão em
depósito e depois em hospital (MOREIRA, 1910, p. 374). Evidenciando
o modelo de assistência alemão, o mais adequado no seu entender,
mostra que a Assistência a Alienados, para ser completa de fato, deveria levar em consideração as diversas modalidades, incluindo o asilo
fechado, quanto possível modernizado; os asilos com portas abertas,
colônias agrícolas anexas aos anteriores; colônias familiares anexas
ao asilo; colônias familiares perto do asilo; colônias familiares independentes; aldeias de alienados; tratamento em domicílio, desde o início
da loucura e, se preciso fosse, seguido de internação. Dessa forma:
O antigo asilo fechado tende a desaparecer, sendo transformado em
hospital urbano para tratamento imediato dos casos agudos de alienação mental. Por isso, não lhe é mais permitida a antiga feição de cárcere
com as suas grades e correlatos horrores (Moreira, 1910, p. 375).
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Marxismo.
Neste sentido, Juliano Moreira defende uma Assistência descentralizada, com múltiplas possibilidades para além do mero isolamento no asilo. Primeiramente, era preciso ter uma clínica psiquiátrica e de moléstias nervosas dotada com todos os meios adequados
para o estudo e o tratamento das doenças do cérebro e de todo o
sistema nervoso. Dado que nesta clínica os candidatos ao diploma
médico teriam todas as instruções nessas doenças, sua frequência
deveria ser obrigatória para sua formação. Além disso, entre o quinto
e o sexto ano o aluno médico seria obrigado a ficar, ao menos durante
uma semana, de serviço na clínica ou no hospital urbano dedicado às
doenças do cérebro (MOREIRA, 1910, p. 394).
Além da clínica, era preciso ter um hospital urbano para possibilitar aos alienados socorros urgentes, por isso mesmo nenhuma lei
deveria embaraçar com delongas inúteis a hospitalização de tal doente (MOREIRA, 1910, p. 376). Assim, quanto mais densa a população
maior a necessidade de hospitalização imediata dos alienados. O hospital urbano deveria possuir pavilhão de observação para os doentes
recém-admitidos, pavilhão para os casos agudos com vigilância contínua aos agitados e propensos ao suicídio. De forma geral, Moreira
defende que o hospital de alienados deveria se assemelhar cada vez
mais ao hospital para outras doenças, o que contribuiria para um melhor desenvolvimento das pesquisas e do ensino das doenças mentais.
Além do hospital urbano, ele defendia a criação de um hospital-colônia em terreno vasto e fértil em um subúrbio salubre da capital, onde
se daria a continuação do tratamento dos pacientes. O modelo ideal era
o de Altscherbitz, na Alemanha. Neste asilo, os doentes viviam em completo regime de open door, podendo gozar de certa liberdade. Dispondo
de pavilhões separados, era possível haver um agrupamento cuidadoso
dos doentes do modo mais conveniente ao tratamento deles (MOREIRA,
1910, p. 379). As vilas da colônia eram dispersas em um espaço aberto
bastante amplo. Assim, tanto no arranjo interno, como no externo, tudo
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Marxismo.
se aproxima da habitação comum, da casa particular (MOREIRA, 1910,
p. 379). O asilo-colônia, por sua vez, deveria ser subdividido em diversos
pavilhões de modo a especializar ainda mais a assistência.
Anexo ao hospital-colônia, o governo deveria construir casas
higiênicas para alugar às famílias dos empregados que poderiam receber pacientes suscetíveis de serem tratados em domicílio, tornando
possível a assistência familiar. Para uma Assistência adequada e completa, Juliano Moreira defende ainda a construção de asilos-colônias
para epiléticos, idiotas, alcoólicos, sanatórios para tratamento das
doenças nervosas e manicômio especial para alienados delinquentes
ou criminosos que ficassem alienados.
DEGENERAÇÃO E LOUCURA:
DIVERGÊNCIAS ENTRE JULIANO MOREIRA
E RAIMUNDO NINA RODRIGUES
No Brasil, tanto as explicações naturalistas, com enfoque especial às interferências climáticas no desenvolvimento físico e moral do
indivíduo, quanto, em maior grau, as teorias racistas, tiveram ressonância especialmente na segunda metade do século XIX. Com a introdução e a pulverização do pensamento positivista, do darwinismo e do
evolucionismo social no país, sobretudo a partir da década de 1870,
raça e degeneração mental passaram a estar intimamente relacionadas.
De modo geral, o Brasil passa a se definir pela raça; inúmeros cientistas e intelectuais aderem fortemente a estas novas correntes de pensamento que ganham espaço importante no país. No que diz respeito ao
pensamento psiquiátrico, os trabalhos de Nina Rodrigues, um dos maiores expoentes da psiquiatria, antropologia criminal e medicina legal no
Brasil, revelam, em grande medida, tais influências. A compreensão do
processo de degeneração da espécie pelo viés racista veio de encontro
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Marxismo.
ao pensamento de Rodrigues que ao relacionar crime e loucura, por
exemplo, encontrava explicações na miscigenação do povo brasileiro.
Considerando a indiscutível inferioridade racial dos negros e dos índios
em relação aos brancos, Nina Rodrigues acreditava que a miscigenação
entre raças em diferentes patamares evolutivos resultaria, fatalmente, em
indivíduos desequilibrados, degenerados, híbridos do ponto de vista físico, intelectual e nas manifestações comportamentais (ODA, 2001, p. 3).
Juliano Moreira procura se opor, de modo geral, a esta visão
racista e naturalista da constituição do povo brasileiro. Convém lembrar que Moreira nunca colocou em xeque a teoria da degenerescência, não obstante apresenta divergências em relação aos seus fatores
causais. Ao contrário de Nina Rodrigues, por exemplo, ele acreditava
que as causas da degeneração do povo brasileiro estavam relacionadas aos fatores sociais e culturais. Por isso mesmo, ao invés de procurar combater a miscigenação e trabalhar no sentido de promover
eugenicamente a “raça pura”, a luta contra as degenerações nervosas deveria priorizar o combate ao alcoolismo, à sífilis, às verminoses
e às adversidades sociais como um todo. Segundo o alienista, a atribuição da má natureza dos elementos formadores da nossa nacionalidade” unicamente ao fato da mestiçagem acaba se esquecendo
do “nosso bárbaro processo de colonização, um dos principais responsáveis pela degeneração física, moral e social do povo brasileiro.
De acordo com Moreira, além do negro aportaram aqui milhares de
europeus, motivados pela uberdade do solo que dava amplas facilidades de vida aos emigrados, dentre eles a população indesejada que
Portugal procurou desafogar de seus presídios. Juntamente com eles,
vieram também a sífilis, a lepra, a tuberculose e, principalmente, o
alcoolismo, este último, considerado por Moreira o principal causador
da degenerescência mental (MOREIRA, 1905, p. 65-66). Em suma, no
seu entendimento, as campanhas de higienização mental dos povos
não poderiam ser limitadas por preconceitos de cores.
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Marxismo.
É importante frisar que a nomeação de Juliano Moreira para a
direção do HNA coincide com o plano de reforma e saneamento dos
espaços urbanos na cidade do Rio de Janeiro impetrado pelo então
prefeito Pereira Passos. Naquele momento as políticas de saneamento urbano coadunavam com o pensamento médico que acreditava
haver uma relação intrínseca entre doença, ambiente e sociedade.
Neste sentido, o plano de reforma integrava as diretrizes da saúde
pública capitaneadas naquela ocasião por Oswaldo Cruz. Procurou-se, então, resolver os problemas de saneamento como, por exemplo, o alagamento das ruas, demolição de habitações precárias, bem
como a execução de grandes campanhas de vacinação e profilaxia
das doenças. Considerando que a saúde mental era constituinte desse projeto de saúde pública, seguiu, portanto, a mesma lógica de medicina preventiva. Em outras palavras, importava não apenas socorrer
os indivíduos arrebatados pela doença, mas, sobretudo, impedir que
ela se manifestasse. Quer dizer, prevenir ao invés de remediar.
Dessa forma, a descentralização da Assistência a Alienados tão
sonhada por Juliano Moreira era fortalecida por esta noção de que era
mais viável e importante promover a saúde do que combater a doença.
Quer dizer, o interesse se desloca da doença para a saúde e neste movimento todo e qualquer indivíduo passa a ser um doente em potencial.
Considerando que, segundo o alienista, as infecções, as infestações e
as intoxicações, eram os maiores fatores deseugenéticos da humanidade e, portanto, os maiores inimigos da saúde mental, a higiene geral
do povo brasileiro dependia da execução de campanhas eficientes no
sentido de combater as doenças mentais, especialmente a sífilis, os
abusos de bebidas alcoólicas, bem como as verminoses e até mesmo
se evitando a procriação de gentes taradas (MOREIRA, 1922).
O que se percebe, de forma geral, é que em Juliano Moreira, mais
do que nunca, há uma predominante preocupação com as questões
sociais. Em outras palavras, mais do que a dimensão física e orgânica
das doenças mentais ele se atentava com as doenças que poderiam
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Marxismo.
ser ocasionadas pelas condições sociais, culturais, educacionais e sanitárias adversas. Seu plano de ação envolvia, neste sentido, a produção de um meio social saudável, de modo a possibilitar aos indivíduos
um desenvolvimento mais adequado de suas capacidades mentais.
Enfim, defendia um projeto de sociedade moralmente igualitária e profilática em relação às possíveis diferenças físico-orgânicas individuais
que, apesar de poderem atingir uma parcela da população, eram independentes do clima e da constituição racial (VENANCIO, 2004, p. 291).
Aproximando-se claramente da psiquiatria germânica, especialmente do pensamento de Emil Kraepelin, Moreira demonstra um
grande interesse pela psiquiatria comparada, realizando estudos da
doença mental em diversos grupos étnicos brasileiros, dentre eles um
estudo sobre alienação mental nos indígenas durante um período de
seis meses em que permaneceu nas selvas amazônicas. Os estudos
comparativos, neste sentido, representam um mecanismo importante
de compreensão e classificação dos diversos tipos de alienação mental, relacionados aos inúmeros grupos étnicos e sociais que habitavam
o Brasil. A ideia seria estabelecer, assim como vinha fazendo Kraepelin, uma classificação das patologias mentais através de organizações
estatísticas seguras, assim como ocorria com as outras doenças biológicas. Não é por acaso que, dentre as inúmeras mudanças realizadas durante a reforma da Assistência em 1904, uma das primeiras
preocupações de Juliano Moreira tenha sido a organização do arquivo
do HNA, assegurando a conservação dos documentos referentes ao
estabelecimento e, sobretudo, aos pacientes ali internados.
Dessa forma, ao estabelecer critérios de classificação das doenças mentais, torna-se possível fazer um mapeamento do corpo social.
Com Moreira, é possível dizer que se estabelece no Brasil uma efetiva
biologização dos fatos sociais. Considerando que as condições de
vida, tais como a pobreza e as aglomerações urbanas, assim como
defendia Kraepelin, estavam intimamente relacionadas ao surgimento das doenças mentais, Juliano Moreira elege o meio social como o
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Marxismo.
espaço privilegiado de intervenção psiquiátrica. Em suma, seguindo
os passos da psiquiatria kraepeliana, o que se buscava era explicar
as complexas relações entre fatos sociais e as transformações biológicas segundo as quais se produzem as enfermidades, debilitam-se os
corpos e degeneram-se as famílias e as raças (CAPONI, 2012, p. 128).
Enfim, de acordo com Juliano Moreira, para doenças sociais convinham também tratamentos sociais. Por isso mesmo era necessário
montar frentes de ação em escolas, quartéis, na família como um todo,
a fim de esclarecer os males que o alcoolismo, a sífilis e a epilepsia, por
exemplo, poderiam causar ao indivíduo e à sociedade. O combate ao
álcool, por exemplo, tornava-se uma maneira de combater, consequentemente, a criminalidade, a “vadiagem” e a “mendicidade”. De forma
geral, a ideia era evitar o desenvolvimento das doenças mentais.
Seria interessante discutir de forma mais aprofundada a constituição de saberes e práticas sobre a epilepsia, o alcoolismo e a sífilis no
Brasil naquela época. Não obstante, o que mais importa neste momento
é compreender como as práticas de controle e tratamento especializado
dessas categorias de “anormais”, revelam a postura adotada em relação aos degenerados. A partir disso é possível perceber claramente o
processo de patologização dos anormais, transformados em doentes
mentais, às vezes unicamente pelo fato de serem considerados perigosos para a segurança pública e para o restante da sociedade.
Ao contrário do que pensava Nina Rodrigues, que associava tais
enfermidades à miscigenação, Moreira mostra como os males sociais,
dentre eles a sífilis, o alcoolismo e a epilepsia, estão mais diretamente vinculados à degeneração dos povos do que propriamente a raça.
Em termos de uma psiquiatria biológica, considerando que tais elementos sociais poderiam ser transmitidos hereditariamente, aumentando
seu grau de morbidade de geração em geração, Juliano Moreira, assim
como Kraepelin, pretendia criar intervenções concretas no espaço social
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Marxismo.
capazes de antecipar e prevenir desvios de comportamentos e patologias mentais (CAPONI, 2012, p. 144). Assim, o modelo de psiquiatria
ampliada tinha como norte a antecipação e a profilaxia de quaisquer
desvios mentais que pudessem vir a se manifestar futuramente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se depreende de tudo o que foi dito é que com Juliano
Moreira a psiquiatria brasileira vai distanciando do alienismo francês e
se aproximando cada vez mais do alienismo alemão. Neste sentido,
não apenas os estabelecimentos fechados constituem os espaços,
por excelência, de assistência aos alienados, a psiquiatria torna-se
cada vez mais universal e ampliada ao eleger novos espaços de intervenção, muito deles não institucionalizados. Além disso, a psiquiatria
brasileira, embora fortemente influenciada pelo pensamento alemão,
ganha, aos poucos, uma característica nacional, com a grande preocupação em analisar a relação entre as peculiaridades etnográficas e
sociais do país e o desenvolvimento das doenças mentais.
Dessa forma, além de uma grande reforma administrativa, Juliano Moreira desempenhou um papel de grande importância na constituição de uma escola psiquiátrica no Brasil. De acordo com José Leme
Lopes: Juliano Moreira trazia da Bahia e de sua experiência europeia
uma formação médica e científica, à qual sua personalidade daria atrativo de sedução para os jovens esculápios e estudantes, que se aproximaram do Hospício, em fase de renovação (LOPES, 1964, p. 9). Preocupou-se com a organização dos seus quadros técnicos, se ocupando
da formação dos profissionais, chefes de serviços e seus assistentes,
reunindo à sua volta um cabedal de profissionais que figura até hoje
dentre os maiores nomes da psiquiatria brasileira. Lopes destaca ainda
que Juliano Moreira estava sempre disponível, dado que sua sala, que
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Marxismo.
se encontrava logo à esquerda da entrada principal do HNA, permanecia sempre de portas abertas. Assim, sentado à grande mesa, Juliano
Moreira atendia aos que o procuravam (LOPES, 1964, p. 9).
Durante todo o tempo em que permaneceu na direção da Assistência a Alienados seu espírito esteve voltado não apenas para os problemas médicos, mas, em grande medida, para as questões sociais.
Estava preocupado, sobretudo, em estabelecer uma relação direta entre os problemas sociais e o aparecimento das moléstias mentais, com
atenção especial para o alcoolismo, a sífilis e a epilepsia. Sua inquietação patriótica e social era tamanha que foi um dos primeiros a defender
a imigração no Brasil, especialmente a nipônica, tão vilipendiada na
época, por considerar que a degeneração não estava relacionada às
questões de raça como se pensava.
REFERÊNCIAS
CAPONI, Sandra. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria
ampliada. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2012.
LOPES, José Leme. Juliano Moreira. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Rio de
Janeiro, v. 13, n. 1, 1964, p. 3-19.
MEMORIAL Juliano Moreira: O mestre, a instituição. Salvador: Empresa
gráfica da Bahia, 2007.
MOREIRA, Juliano. Assistência aos epilépticos: colônias para eles. Arquivos
Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins. Rio de Janeiro, n. 2,
p. 167-182, 1905.
MOREIRA. Juliano. As diretrizes da higiene mental entre nós. Revista de
Medicina e Higiene Militar, 1922.
MOREIRA. Juliano. Quais os melhores meios de assistência a alienados?
Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal. Rio de
Janeiro, ano VI, v.1-2, p. 373-396, 1910.
ODA, A. M. G. R. A teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria
brasileira: contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira.
sumário
303
Marxismo.
Psychiatry On-line Brazil – part of The International Journal of Psychiatry,
v. 6, n. 12, dec. 2001. Disponível em: http://www.polbr.med.br/ano01/wal1201.
php. Acesso em 31 de janeiro de 2021.
PASSOS. Alexandre. Juliano Moreira: Vida e obra. Rio de Janeiro: Livraria
São José, 1975.
VENANCIO, Ana Teresa A. Doença mental, raça e sexualidade nas teorias
psiquiátricas de Juliano Moreira. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de
Janeiro, 14 (2), p. 283-305, 2004.
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SOBRE OS ORGANIZADORES
Maro Lara Martins possui graduação em História pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestrado em Sociologia pelo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e doutorado em Sociologia pelo Instituto
de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Iesp-UERJ). Realiza estágio pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi
professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), na Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF) e na Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Atualmente, é Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenador do Núcleo de
Teoria Social e Interpretação do Brasil (Netsib-UFES). Membro da Sociedade
Brasileira de Sociologia (SBS), da Associação Nacional de História (ANPUH) e
da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH). Áreas
de interesse: Pensamento Social Brasileiro, Teoria Social e Sociologia Histórica.
Lara Sartório doutorado em andamento em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ) com estágio sanduíche na Facultad de
Ciencias Políticas y Sociología da Universidad Complutense de Madrid (UCM).
Foi Professora Substituta do Departamento de Ciências Sociais da UFES. Possui aperfeiçoamento em Estudos Urbanos Comparados, 6th RC21-IJJUR Doctoral School Comparative Urban Studies, em New Delhi University, com bolsa
do IJJUR Foundation (2019). Cursa Bacharelado em Direito (2018 -) na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É mestre em Sociologia
Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ), com bolsa Nota
10 FAPERJ. Possui graduação em Ciência Política pela Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (2014). Tem experiência na área de fotojornalismo
e jornalismo de correspondência política na Palestina e outras zonas do Oriente Médio, por meio da Revista Caros Amigos (2014). Áreas de interesse: Teoria
Sociológica,Teoria Política, Teoria dos Movimentos Sociais, Violência, Afetos,
Autoritarismo, Teoria do Sujeito, Segurança Pública, Gênero.
Lívia Rangel é historiadora e professora de História. Pós-doutora pela UFES.
Integra a equipe de trabalho do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e
Violência (LEG/UFES). É doutora em História Social pela Universidade de São
Paulo (USP), com bolsa CNPq. Fez estágio de pesquisa financiado pela Capes
na Universidad de Buenos Aires (UBA). É mestra em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduada em
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História, licenciatura e bacharelado, pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Possui experiência em salas de aula do Ensino Básico e do Ensino Superior
(graduação e pós-graduação). Foi professora efetiva da rede pública de ensino
do Estado do Espírito Santo (SEDU) e docente temporária do IFES. Dedica-se a
temas e abordagens relacionados principalmente às questões de Gênero e aos
Estudos Feministas, com linhas de interesse que dialogam com a História Cultural, a História dos Intelectuais e a Nova História Política, com ênfase no Brasil
República e na América Latina Contemporânea. Atualmente, é doutoranda em
Artes Visuais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde desenvolve um
projeto sobre transnacionalidade e estéticas feministas na trajetória e na obra
de mulheres fotógrafas latino-americanas. É idealizadora e colaboradora do
@mulheresdeescrita e pesquisadora-colaboradora do @palcohistoria.
Filipe Monteiro é doutor pelo Programa de Pós-graduação em História das
Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (2016); mestre
pelo Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011); concluiu bacharelado e licenciatura
em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Atualmente
realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia (PPHIST) da Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de História do Brasil, História do Pensamento Social (Com
ênfase no debate racial do século XIX); História do Brasil Império; História
das Ciências e da Saúde; messianismos e milenarismos no Brasil; Pesquisa
textual e iconográfica; jornalismo e editoração.
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SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS
Alan Caldas é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
de Londrina (2007), Mestre em Ciências Sociais pela mesma instituição
(2012) e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. É
autor do livro: Valentia e linhagem: uma história da capoeira, publicado em
2017, pela editora Appris. Pesquisa nas áreas de Sociologia da Cultura e
Pensamento Social Brasileiro.
Eduardo Russo Ramos é Mestre e Doutorando em Sociologia pelo Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da UFPR e integrante do grupo de pesquisa “Cultura, Política e Movimentos Sociais na América Latina”, contemplado com bolsa
do Programa de Demanda Social da CAPES – código de financiamento 001.
E-mail: ramos.eduardorusso@gmail.com
Emilly Gabriela Menezes Franco é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá.
E-mail: emillygmfranco@gmail.com
Fernanda Reis Nunes Pereira é graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail: reisnunespereira@gmail.com
Gabriel Felipe Oliveira de Mello é doutorando em História pelo Programa de
Pós Graduação em História Social (PPGHIS-UFRJ). Mestre em História pelo
mesmo programa (2020) e graduado em História (licenciatura e bacharel) pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mantém interesse nas áreas
de História do Brasil Republicano, História Intelectual e Ciência Política, com
ênfase nos estudos sobre Pensamento Político Brasileiro entre as décadas de
1930 e 1970, com enfoques em temáticas como nação, nacionalismo, modernidade, dependência e consciência histórica. No mestrado estudou a produção de intelectuais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB),
especialmente a do sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos, tendo como
foco a investigação do conceito de história na obra do referido autor. Atualmente vem pesquisando o conceito de nação a partir do imaginário político do
“Brasil Potência” presente na produção de intelectuais brasileiros no período
entre 1930 e 1980. É membro da Comunidade de Estudos de Teoria e História
da Historiografia (COMUM) da UERJ.
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Gustavo Guimarães é Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos.
E-mail: gustavognascimento9@gmail.com
Itamá Winicius do Nascimento Silva é graduado em Ciências Sociais/Licenciatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestrando em
Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade
Federal de Pernambuco (PPGS-UFPE).
Marcello Amorim Vieira é graduando em Direito pela Universidade Vila Velha
(UVV) e História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisador do Laboratório de História das Interações Político-institucionais da UFES
(HISPOLIS - UFES).
E-mail: marcello.amorim@outlook.com
Matheus de Carvalho Barros é graduando em Sociologia pela Universidade
Federal Fluminense (UFF).
Micheli Longo Dorigan é graduanda em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá e bolsista PIBIC/CNPq-FA-UEM. Orientador: Prof. Dr. Hilton Costa.
Nikolas Pallisser Silva é doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, com bolsa CAPES e sob a orientação do professor Dr. Valter Roberto Silvério. Mestre
em Sociologia pelo mesmo programa, sob a orientação da profa. Dra. Priscila
Martins Medeiros (2017-2019), com bolsa do CNPq. Graduado em Ciências
Sociais (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Estadual de Londrina,
sob a orientação da profa. Dra. Maria Nilza da Silva. Foi bolsista do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), 2012/14. Foi
bolsista do Programa de Apoio à Permanência PROPE-UEL entre 2014/16, na
qualidade de estudante de graduação e posteriormente, como recém-formado
(2016/17 e 2019/20). Desde 2012 integra o Laboratório de Estudos e Cultura
Afro-Brasileiros (LEAFRO-UEL) e desde de 2013 integra o Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros da UEL (NEAB-UEL). Recentemente, juntamente com a Dra.
Mariana dos Santos Panta, foi monitor do Curso de Introdução ao Estudo das
Relações Étnico-Raciais, ofertado pelo NEAB-UEL, aos estudantes de graduação e coordenado pela professora titular do dpto. de Ciências Sociais da UEL
Dra. Maria Nilza da Silva. Tem atuado principalmente com os seguintes temas:
Sociologia das Relações Étnico-Raciais, Ações Afirmativas, Trajetórias de Personalidades Negras, Racismo e Pensamento Social Brasileiro.
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Patrícia Amorim Weber é mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da UFSCar, desenvolve o projeto intitulado “Os intelectuais e a
política: uma análise sobre a relação entre intelectuais negros brasileiros e o
processo de democratização da política brasileira (1985-2010)”, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Atualmente é membro do grupo de pesquisa Sociologia e Estudos
da Diáspora Africana, vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da
Universidade Federal de São Carlos (NEAB/UFSCar) e Assistente Editorial
da Revista Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. Em 2020, formou-se bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), tendo desenvolvido a pesquisa de Iniciação Científica intitulada
“A teoria social moderna em questão: uma análise crítica a partir das lentes
de Frantz Fanon e Guerreiro Ramos”, financiada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (projeto n°800939/2018-2).
Tem interesses nas áreas de Sociologia das Relações Raciais, Teoria Pós-colonial, Teoria Social, Sociologia dos Intelectuais e Racismo Epistêmico.
Renata Peixoto de Oliveira possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003), mestrado em Ciência Política pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2005) e doutorado em Ciência Política
pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011). Fez estágio de doutorado na University of Florida (2008) em Gainesville, Florida, EUA. Foi professora
visitante (2011-2012) e professora adjunta (2012-2013) do curso de Ciência
Política Sociologia, além de coordenadora deste curso de graduação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) em Foz do Iguaçu,
Paraná. Também atuou como Chefe do Departamento de Pós-Graduação da
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (2013). É professora permanente
do Mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento (PPG-PPD). É membra
do Comitê Executivo pela Equidade de Gênero e Diversidade na UNILA. Foi
professora a permanente do Programa de Mestrado Integração Contemporânea na América Latina (PPG-ICAL) de 2014 até 2021, também tendo sido sua
coordenadora (2020-2021). Foi coordenadora do Grupo de Pesquisa Democratização na América Latina em Perspectiva comparada (DALC) da Associação Latino-Americana de Ciência Política (ALACIP). Também é líder de grupo
de pesquisa Centro de Estudos Políticos e Internacionais da América do Sul
(CESPI-América do Sul) da UNILA. Participou da Rede Brasileira de Pesquisadores Latino-americanistas e Caribeanistas (Rede- BLAC) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) entre 2018-2021. É pesquisadora associada ao Centro Latino-Americano
de Estudos em Cultura, o CLAEC. Atua na área de Ciência Política, com ênfase
em Política Internacional e Comparada e estudos latino-americanos, atuando
principalmente com os seguintes temas: Neoliberalismo, sistemas políticos,
democracia e Política Externa, região Andina.
sumário
309
Marxismo.
Sofia Viegas Duarte é graduanda de Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC – MG).
E-mail: sviegasd@gmail.com
Steffane Pereira Santos é graduanda em Ciências Sociais na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail: reisnunespereira@gmail.com
Stephany Dayana Pereira Mencato é doutoranda bolsista do CNPq em
Ciência Política pela UFMG. Mestra em Integração Contemporânea da América Latina pela UNILA (2020). Especialista em Direitos Humanos da América
Latina (2019) e especialista em Relações Internacionais Contemporâneas
(2017). Licenciada em Pedagogia (2022); bacharel em Ciências Políticas e
Sociologia sociedade, estado e política na América Latina (2020); bacharel
em Direito (2011). Advogada com registro junto a OAB/PR (2012). Ex-presidente da Comissão de Sexualidade e Gênero da OAB/FI (2017-2018). Professora convidada junto a UNIOESTE (2019). Com estágios docentes junto a
UFMG (2021/2022) e UNILA (2018).
Sylvia Iasulaitis é professora da Universidade Federal de São Carlos. Docente permanente dos Programas de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade e de Ciência da Informação. É vice-coordenadora do curso
de Ciências Sociais. Lidera o Interfaces - Núcleo de Estudos Sociopolíticos
dos Algoritmos e da Inteligência Artificial, certificado pelo CNPq. Doutora em
Ciência Política (UFSCar), com estágio doutoral na Facultad de Ciéncias de la
Información da Universidad Complutense de Madrid (SWE-CNPq). Foi Visiting
Scholar no Internet Interdisciplinary Institute - IN3, instituto coordenado pelo
prof. Dr. Manuel Castells em Barcelona. Foi pesquisadora em mobilidade do
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre em
Ciências Sociais (UFSCar) e graduada em Ciências Sociais (Bacharelado e
Licenciatura Plena) pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Possui as
seguintes formações complementares: Pós-Graduação Latu Sensu em Data
Science (Especialização em curso pela UFSCar); Social Network Analysis pela
Universidade de São Paulo (USP) em convênio com a University College London; Computação Científica e Análise de Dados (linguagem Python) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Estatística para Data Science com R (UFRGS/UFSCar). Atua nas áreas de Ciência Social Computacional
e Ciência de Dados. Suas pesquisas versam sobre cultura algorítmica, usos
políticos das Tecnologias de Informação e Comunicação, estudos interdisciplinares de Web, Internet, Algoritmos, Inteligência Artificial, Open Data e estudos
interseccionais e decoloniais sobre desigualdades. Recebeu o primeiro prêmio
sumário
310
Marxismo.
Investigación Relevante da edição das distinções acadêmicas da Asociación
Latinoamericana de Investigadores en Campañas Electorales (ALICE). É formada no protocolo Mindfulness-Based Health Promotion (MBHP).
Telmo Renato da Silva Araújo possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista- UNESP (2000) e mestrado em História pela mesma
instituição (2003). Atualmente cursa doutorado em História no Programa de
Pós Graduação em História Social da Amazônia da UFPA - PPHIST, Foi professor da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC) entre os anos de 2006-2015.
É docente efetivo da Universidade do Estado do Pará (UEPA) onde coordenou
o campus XIV - Moju desta mesma instituição no biênio 2013-2015. Tem experiência na área da História, com ênfase na História do Pensamento Racial
Latino-americano do século XIX. Atua nas seguintes áreas: História da América Latina, História da Educação Brasileira e História do Pensamento. Tem
capítulo publicado no livro “José Veríssimo: raça, cultura e educação”, lançado em 2007, pela editor a UFPA, intitulado “Sob a luz do livre arbítrio: raça,
mestiçagem e criminalidade”. Também publicou artigos em diversas revistas
científicas. Participa de projetos de pesquisa em parceria com investigadores
da UFPA na área da História da educação e da infância na Amazônia e no
rastro desses estudos publicou recentemente no livro História da Educação na
Amazônia: múltiplos sujeitos e práticas educacionais o capitulo “criminalidade
infantil e educação militar no Pará em finais do século XIX”.
Thomaz José Portugal Coelho e Santos é mestre em Sociologia Política pelo
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Cândido
Mendes e professor do Centro Universitário de Barra Mansa.
E-mail: tjose.portugal@gmail.com
William Vaz de Oliveira possui graduação em Historia pela Universidade Federal de Uberlândia (2007), graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (2010), mestrado em História Social pela Universidade
Federal de Uberlândia (2009), Doutorado em História Social pela Universidade
Federal Fluminense (2013) e Pós-Doutorado pelo Institute of Advanced Studies
da University College London (2019-2020). Atualmente é professor Adjunto I
do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia do Instituto de Aplicação
Fernando Rodrigues da Silveira (Cap-UERJ), atuando tanto na graduação/formação de professores, quanto no ensino médio. Tem experiência na área de
História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: história do Brasil contemporâneo, história das ciências, história da
medicina, história dos saberes e práticas psi, prática de ensino de História e
formação de professores de História.
sumário
311
Marxismo.
ÍNDICE REMISSIVO
A
áreas temáticas 12
Arte 12
atemporalidade 105, 177
autoconsciência emancipatória 105, 195
B
Brasil Contemporâneo 12, 54, 267, 268, 286
brasilidade revolucionária 16, 17, 29, 30,
31, 33
Brasil peculiar 266
C
campo intelectual 158, 159
capitalismo 14, 32, 54, 55, 56, 58, 64, 74,
76, 77, 78, 79, 84, 91, 94, 119, 122, 141,
144, 145, 147, 149, 150, 151, 152, 153,
155, 192, 210
capitalismo periférico 14, 55, 64, 91
características sociais 266
categorias científicas 232
Ciências Sociais 12, 36, 118, 119, 154,
174, 182, 189, 213, 246, 247, 305, 307,
308, 309, 310
classes sociais 46, 51, 73, 157, 192
colonialidade 117, 130, 210, 232, 233,
234, 241, 246
colonialismo 166, 232, 233, 237
conceito 30, 31, 32, 33, 56, 61, 62, 76,
84, 98, 104, 118, 143, 144, 146, 148, 149,
152, 153, 155, 157, 158, 159, 162, 166,
173, 183, 184, 193, 194, 204, 209, 213,
226, 233, 236, 240, 241, 244, 246, 270,
273, 307
concepção histórica 87
contexto colonial 231, 232, 234, 239, 243
sumário
criminalidade 216, 248, 249, 251, 258,
260, 261, 262, 301, 311
D
degenerescência 105, 248, 249, 258, 259,
262, 298, 303
democracia racial 104, 156, 157, 158, 159,
160, 161, 162, 163, 166, 167, 168, 169,
170, 171, 172, 173, 174, 175, 179, 181,
188, 210, 214, 218, 226, 227, 228
Direito 14, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 64,
65, 66, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94,
96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 247, 263,
305, 308, 310
direitos trabalhistas 104, 107, 108, 110,
112, 114, 115, 118
discriminação racial 170, 182, 212
E
Economia 12, 68, 84, 118, 141, 154, 200,
271, 286
Educação 12, 14, 23, 35, 36, 189, 311
elaboração social 144
elites senhoriais 156, 161
empregadas domésticas 104, 107
epistemologia colonizada 233, 243
esforço teórico 39
estudo 16, 18, 19, 26, 27, 28, 29, 31, 57,
62, 73, 78, 84, 108, 154, 175, 198, 214,
233, 242, 250, 264, 289, 296, 300
F
famoso racismo 212
feminista 121, 122, 124, 126, 127, 128, 129,
130, 131, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 140,
141, 144, 145, 146, 152, 154, 179
312
Marxismo.
feministas 104, 120, 121, 122, 123, 124,
125, 126, 128, 129, 130, 131, 132, 134, 136,
137, 138, 139, 140, 141, 142, 267, 306
funções sociais 156, 157
N
G
O
gênero 104, 108, 129, 130, 131, 140, 143,
144, 145, 146, 147, 148, 150, 151, 152,
153, 155, 176, 179, 182, 184, 185, 187,
188, 189, 213, 259
ondas feministas 104, 120, 140
I
identidade brasileira 213, 214, 217, 220, 228
impacto ideológico 14, 55, 58
implicações econômicas 232
intelectuais militantes 158
intelectual abordado 232
intelectual amefricana 105, 177, 179
intelectualidade pecebista 41
Internacional Comunista 40, 41
Intérpretes 12
L
Literatura 12, 34, 38
livre arbítrio 248, 250, 252, 253, 254, 262, 311
M
majoritariamente 42, 126, 180, 186, 215
marxismo 14, 15, 24, 33, 35, 37, 39, 40,
41, 42, 45, 46, 49, 52, 53, 54, 68, 69, 72,
73, 74, 75, 78, 80, 81, 82, 83, 84, 150
marxismo autóctone 14, 39, 41, 42, 46,
49, 53
marxismo-leninismo 40, 52
materialismo histórico 38, 64, 67, 78, 80, 104
miscigenação 158, 163, 166, 171, 174, 212,
216, 217, 218, 219, 221, 222, 227, 228, 256,
260, 268, 272, 273, 274, 298, 301
mistura racial 213, 216
Modernidades 12
Modernismos 12
sumário
nacionalidade 30, 191, 192, 193, 208, 209,
220, 221, 258, 298
Nacionalismos 12
P
paradigma biológico 157
passado escravista 104, 107
peculiaridades 145, 259, 266, 283, 302
pensamento 12, 14, 19, 20, 21, 30, 34, 35,
38, 40, 42, 48, 52, 56, 59, 62, 64, 81, 83,
86, 90, 93, 94, 104, 105, 106, 125, 143,
152, 154, 165, 167, 175, 176, 182, 183,
187, 196, 200, 203, 210, 214, 216, 221,
224, 234, 236, 244, 248, 263, 282, 290,
294, 297, 298, 299, 300, 302
pensamento social 12, 14, 30, 40, 42, 48,
52, 104, 176, 182, 187, 221, 248
perspectiva marxista 144
pessoas racistas 214
pioneirismo 22, 40, 45, 46, 105, 146, 154,
177, 184
pluralismo jurídico 15, 87, 89, 100, 101
Pluralismo Jurídico 14, 56, 57, 59, 60, 61,
64, 66, 87, 88, 89, 97, 98, 102
políticas 17, 25, 51, 59, 60, 70, 72, 79,
100, 132, 134, 140, 142, 158, 160, 200,
210, 220, 232, 234, 267, 283, 285, 299
positivação normativa 56, 99
preconceito 170, 176, 197, 205, 208, 214,
215, 217, 221, 224, 225, 226, 266
produção capitalista 57
Q
questão racial 105, 168, 175, 191, 194,
196, 197, 199, 200, 201, 204, 211, 213,
215, 228, 265, 291
313
Marxismo.
R
raça 103, 104, 105, 129, 141, 145, 150,
152, 154, 163, 170, 176, 179, 181, 182,
184, 185, 187, 188, 189, 193, 194, 195,
204, 209, 211, 213, 214, 216, 217, 218,
222, 224, 226, 227, 230, 235, 237, 245,
248, 250, 254, 255, 256, 257, 258, 259,
261, 263, 264, 271, 276, 297, 298, 301,
303, 304, 311
Raça 12
realidade social 41, 59, 116, 196, 205, 215
reivindicações sufragistas 121
relações intelectuais 17, 18, 28, 29, 33
S
sistematizar 17, 149, 173
sociabilidade 15, 87, 97, 105, 214, 222, 230
socialmente condicionados 232
sumário
sociedade brasileira 22, 26, 31, 40, 46, 47,
52, 53, 63, 88, 91, 94, 98, 105, 106, 118,
145, 167, 169, 170, 171, 180, 182, 200,
202, 228, 244, 263, 267, 269, 270, 274,
277, 278, 280, 281, 282, 283, 284
superestrutura jurídica 14, 55, 56, 58, 60, 64
T
teorias evolucionistas 213, 217, 249
teoria social 105, 146, 231, 235, 246, 247,
267, 309
trajetória científica 144
trajetória intelectual 15, 20
V
vernizes científicos 158, 162
314