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Marxismo. Gênero e Raça

2022, Marxismo. Gênero e Raça

Marxismo. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M392 Marxismo. Gênero e raça / Organizadores Maro Lara Martins, Lara Sartório, Lívia Rangel, et al. – São Paulo: Pimenta Cultural, 2022. Outro organizador: Filipe Monteiro (Pensamento social brasileiro, V. 3) ISBN 978-65-5939-575-0 DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750 1. Marxismo. 2. Ciências sociais. 3. Pensamento. 4. Identidade de gênero. 5. Raça. I. Martins, Maro Lara (Organizador). II. Sartório, Lara (Organizadora). III. Rangel, Lívia (Organizadora). IV. Título. CDD: 335.43 Índice para catálogo sistemático: I. Marxismo Janaina Ramos – Bibliotecária – CRB-8/9166 Marxismo. Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados. Copyright do texto © 2022 os autores e as autoras. Copyright da edição © 2022 Pimenta Cultural. Esta obra é licenciada por uma Licença Creative Commons: Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0). Os termos desta licença estão disponíveis em: <https://creativecommons.org/licenses/>. Direitos para esta edição cedidos à Pimenta Cultural. O conteúdo publicado não representa a posição oficial da Pimenta Cultural. Direção editorial Patricia Bieging Raul Inácio Busarello Editora executiva Coordenadora editorial Marketing digital Patricia Bieging Landressa Rita Schiefelbein Lucas Andrius de Oliveira Diretor de criação Raul Inácio Busarello Assistente de arte Naiara Von Groll Editoração eletrônica Peter Valmorbida Potira Manoela de Moraes Imagens da capa Pikisuperstar, Rawpixel.com, Nuchao - Freepik.com Tipografias Swiss 721, Gobold Uplow, Montserrat Revisão Maro Lara Martins Organizadores Maro Lara Martins, Lara Sartório Lívia Rangel, Filipe Monteiro PIMENTA CULTURAL São Paulo . SP Telefone: +55 (11) 96766 2200 livro@pimentacultural.com www.pimentacultural.com 2 0 2 2 Marxismo. CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO Doutores e Doutoras Adilson Cristiano Habowski Asterlindo Bandeira de Oliveira Júnior Adriana Flávia Neu Bárbara Amaral da Silva Adriana Regina Vettorazzi Schmitt Bernadétte Beber Aguimario Pimentel Silva Bruna Carolina de Lima Siqueira dos Santos Alaim Passos Bispo Bruno Rafael Silva Nogueira Barbosa Alaim Souza Neto Caio Cesar Portella Santos Alessandra Knoll Carla Wanessa do Amaral Caffagni Alessandra Regina Müller Germani Carlos Adriano Martins Aline Corso Carlos Jordan Lapa Alves Aline Wendpap Nunes de Siqueira Caroline Chioquetta Lorenset Ana Rosangela Colares Lavand Cássio Michel dos Santos Camargo André Gobbo Christiano Martino Otero Avila Andressa Wiebusch Cláudia Samuel Kessler Andreza Regina Lopes da Silva Cristiana Barcelos da Silva. Angela Maria Farah Cristiane Silva Fontes Anísio Batista Pereira Daniela Susana Segre Guertzenstein Antonio Edson Alves da Silva Daniele Cristine Rodrigues Antonio Henrique Coutelo de Moraes Dayse Centurion da Silva Arthur Vianna Ferreira Dayse Sampaio Lopes Borges Ary Albuquerque Cavalcanti Junior Diego Pizarro Universidade La Salle, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Instituto Federal de Santa Catarina, Brasil Instituto Federal de Alagoas, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Federal do Pará, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Estadual do Ceará, Brasil Universidade Federal de Rondonópolis, Brasil Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil Instituto Municipal de Ensino Superior de São Manuel, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Faced, Brasil Universidade Federal de Pelotas, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Anhanguera, Brasil Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Instituto Federal de Brasília, Brasil Marxismo. Dorama de Miranda Carvalho Igor Alexandre Barcelos Graciano Borges Edson da Silva Inara Antunes Vieira Willerding Elena Maria Mallmann Ivan Farias Barreto Eleonora das Neves Simões Jaziel Vasconcelos Dorneles Eliane Silva Souza Jean Carlos Gonçalves Elvira Rodrigues de Santana Jocimara Rodrigues de Sousa Éverly Pegoraro Joelson Alves Onofre Fábio Santos de Andrade Jónata Ferreira de Moura Fabrícia Lopes Pinheiro Jorge Eschriqui Vieira Pinto Felipe Henrique Monteiro Oliveira Jorge Luís de Oliveira Pinto Filho Fernando Vieira da Cruz Juliana de Oliveira Vicentini Gabriella Eldereti Machado Julierme Sebastião Morais Souza Germano Ehlert Pollnow Junior César Ferreira de Castro Geymeesson Brito da Silva Katia Bruginski Mulik Giovanna Ofretorio de Oliveira Martin Franchi Laionel Vieira da Silva Handherson Leyltton Costa Damasceno Leonardo Pinheiro Mozdzenski Hebert Elias Lobo Sosa Lucila Romano Tragtenberg Helciclever Barros da Silva Sales Lucimara Rett Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Universidade de Brasília, Brasil Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade do Estado da Bahia, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Estadual de Campinas, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal de Pelotas, Brasil Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidad de Los Andes, Venezuela Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Brasil Helena Azevedo Paulo de Almeida Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Hendy Barbosa Santos Faculdade de Artes do Paraná, Brasil Humberto Costa Universidade Federal do Paraná, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Universidade de Coimbra, Portugal Universidade Federal do Paraná, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil Universidade São Francisco, Brasil Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade de Brasília, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil Universidade Metodista de São Paulo, Brasil Manoel Augusto Polastreli Barbosa Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil Marcio Bernardino Sirino Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Marcos Pereira dos Santos Universidad Internacional Iberoamericana del Mexico, México Marxismo. Marcos Uzel Pereira da Silva Sebastião Silva Soares Maria Aparecida da Silva Santandel Silmar José Spinardi Franchi Maria Cristina Giorgi Simone Alves de Carvalho Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Brasil Maria Edith Maroca de Avelar Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Marina Bezerra da Silva Instituto Federal do Piauí, Brasil Michele Marcelo Silva Bortolai Universidade de São Paulo, Brasil Mônica Tavares Orsini Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Nara Oliveira Salles Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Neli Maria Mengalli Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil Patricia Bieging Universidade de São Paulo, Brasil Patricia Flavia Mota Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Raul Inácio Busarello Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Raymundo Carlos Machado Ferreira Filho Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Roberta Rodrigues Ponciano Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Robson Teles Gomes Universidade Federal da Paraíba, Brasil Rodiney Marcelo Braga dos Santos Universidade Federal de Roraima, Brasil Rodrigo Amancio de Assis Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Rodrigo Sarruge Molina Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Rogério Rauber Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Rosane de Fatima Antunes Obregon Universidade Federal do Maranhão, Brasil Samuel André Pompeo Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Universidade Federal do Tocantins, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Simoni Urnau Bonfiglio Universidade Federal da Paraíba, Brasil Stela Maris Vaucher Farias Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Tadeu João Ribeiro Baptista Universidade Federal do Rio Grande do Norte Taiane Aparecida Ribeiro Nepomoceno Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil Taíza da Silva Gama Universidade de São Paulo, Brasil Tania Micheline Miorando Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Tarcísio Vanzin Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Tascieli Feltrin Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Tayson Ribeiro Teles Universidade Federal do Acre, Brasil Thiago Barbosa Soares Universidade Federal de São Carlos, Brasil Thiago Camargo Iwamoto Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil Thiago Medeiros Barros Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Tiago Mendes de Oliveira Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Brasil Vanessa Elisabete Raue Rodrigues Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Vania Ribas Ulbricht Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Wellington Furtado Ramos Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil Wellton da Silva de Fatima Instituto Federal de Alagoas, Brasil Yan Masetto Nicolai Universidade Federal de São Carlos, Brasil Marxismo. PARECERISTAS E REVISORES(AS) POR PARES Avaliadores e avaliadoras Ad-Hoc Alessandra Figueiró Thornton Jacqueline de Castro Rimá Alexandre João Appio Lucimar Romeu Fernandes Bianka de Abreu Severo Marcos de Souza Machado Carlos Eduardo Damian Leite Michele de Oliveira Sampaio Catarina Prestes de Carvalho Pedro Augusto Paula do Carmo Elisiene Borges Leal Samara Castro da Silva Elizabete de Paula Pacheco Thais Karina Souza do Nascimento Elton Simomukay Viviane Gil da Silva Oliveira Francisco Geová Goveia Silva Júnior Weyber Rodrigues de Souza Indiamaris Pereira William Roslindo Paranhos Universidade Luterana do Brasil, Brasil Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil Universidade Federal do Piauí, Brasil Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Universidade Potiguar, Brasil Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil Instituto Politécnico de Bragança, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Universidade Paulista, Brasil Universidade de Caxias do Sul, Brasil Instituto de Ciências das Artes, Brasil Universidade Federal do Amazonas, Brasil Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil PARECER E REVISÃO POR PARES Os textos que compõem esta obra foram submetidos para avaliação do Conselho Editorial da Pimenta Cultural, bem como revisados por pares, sendo indicados para a publicação. Marxismo. SUMÁRIO Apresentação.................................................................................. 12 Parte 1 Marxismo Capítulo 1 Nelson Werneck Sodré e a Coleção História Nova: estudo de um caso particular da brasilidade revolucionária............................................ 16 Eduardo Russo Ramos Capítulo 2 Os percursos do marxismo autóctone: o esforço teórico pioneiro de Octávio Brandão................................. 39 Itamá Winicius do Nascimento Silva Capítulo 3 Direito, nação e capitalismo periférico: o impacto ideológico da superestrutura jurídica no Brasil nas visões de Antonio Carlos Wolkmer e Gizlene Neder................................................................................ 55 Marcello Amorim Vieira Sofia Viegas Duarte Capítulo 4 Florestan Fernandes nas trilhas do materialismo histórico .............................................................. 67 Matheus de Carvalho Barros Marxismo. Capítulo 5 O processo de construção do Direito brasileiro no pensamento de Antonio Carlos Wolkmer................................ 86 Sofia Viegas Duarte Marcello Amorim Vieira Parte 2 Gênero e raça Capítulo 6 A mão da limpeza: empregadas domésticas, direitos trabalhistas e o passado escravista................................... 107 Emilly Gabriela Menezes Franco Capítulo 7 Teoria em movimento – ondas feministas no Brasil, Argentina e Chile.......................................................... 120 Stephany Dayana Pereira Mencato Renata Peixoto de Oliveira Capítulo 8 O conceito de gênero no pensamento de Heleieth Saffioti....................................................................... 143 Sylvia Iasulaitis Gustavo Guimarães Capítulo 9 As funções sociais da democracia racial nos anos 1940 e 1950: elites senhoriais, Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos................................................. 156 Alan Caldas Nikolas Pallisser Silva Marxismo. Capítulo 10 A atemporalidade de uma intelectual amefricana: o pioneirismo de Lélia Gonzalez..................................................... 177 Fernanda Reis Nunes Pereira Steffane Pereira Santos Capítulo 11 Do niger sum ao ser nacional: questão racial e construção da nacionalidade em Alberto Guerreiro Ramos (1949-1960)...................................... 191 Gabriel Felipe Oliveira de Mello Capítulo 12 O famoso racismo à brasileira: miscigenação e discriminação racial em Lilia Schwarcz........................................ 212 Micheli Longo Dorigan Capítulo 13 A relação sujeito-objeto na teoria social moderna: a produção de conhecimento em contexto colonial........................ 231 Patrícia Amorim Weber Capítulo 14 Sob a luz do livre arbítrio: raça, degenerescência e criminalidade no pensamento social de Raimundo Nina Rodrigues......................................................... 248 Telmo Renato da Silva Araújo Capítulo 15 As peculiaridades de Brasil peculiar: características sociais que formaram um país manchado pelo preconceito............................................. 266 Thomaz José Portugal Coelho e Santos Marxismo. Capítulo 16 Juliano Moreira e a Psiquiatria Social no Brasil.......................... 287 William Vaz de Oliveira (UERJ) Sobre os organizadores............................................................... 305 Sobre os autores e as autoras ..................................................... 307 Índice remissivo............................................................................ 312 Marxismo. APRESENTAÇÃO Entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, o Netsib-Ufes – Núcleo de Teoria Social e Interpretação do Brasil organizou o II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – Intelectuais, cultura e democracia. Neste evento foram apresentadas mais de uma centena de comunicações divididas em áreas temáticas, mesas redondas, além das conferências de abertura e encerramento. Os apresentadores de trabalho e conferencistas vieram das mais diversas regiões do país interessados em debater estes temas candentes do pensamento social brasileiro e do contexto social e político em que vivemos. Este livro é fruto dos debates realizados durante o evento, cujos autores, gentilmente, se dispuseram a encarar o desafio de compartilhar suas reflexões com público mais amplo. Os textos foram divididos em 4 volumes que compõem a Coleção Pensamento Social Brasileiro: Volume 1 – Economia, Estado e Sociedade / Nacionalismos, Modernismos, Modernidades, Volume 2 – História das Ciências Sociais / Intérpretes e Interpretações do Brasil Contemporâneo, Volume 3 – Marxismo / Gênero e Raça e Volume 4 – Educação / Arte e Literatura. sumário 12 Parte 1 Marxismo Marxismo. Sem sombra de dúvidas, o marxismo é uma das linguagens teóricas mais importantes e frutíferas de nosso pensamento social brasileiro. Não somente pelo conteúdo de suas interpretações do Brasil, o marxismo brasileiro revela a produção, circulação e consumo de ideias e produtos culturais que mesmo originados em outros contextos intelectuais podem se aclimatar nos trópicos. No capítulo de abertura, Eduardo Russo Ramos analisa a elaboração e publicação da Coleção História Nova – coletânea de livros didáticos de História do Brasil idealizados e redigidos por um grupo de intelectuais articulados pelo historiador Nelson Werneck Sodré (19111999) no âmbito do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) entre os anos de 1963 e 1964 e publicados na véspera do golpe de 1964 através de convênio com o Ministério da Educação e da Cultura. Itamá Winicius do Nascimento Silva promove o resgate da vida e obra de Octávio Brandão, analisando suas contribuições a partir de sua teoria da revolução, construída com base na observação das revoltas tenentistas e que colocou a pequena-burguesia como importante aliada do proletariado na revolução democrático-burguesa, sua análise dual da situação brasileira em que forças agraristas e industrialistas se encontravam em choque, sendo este conflito um desdobramento das disputas inter-imperialistas, representadas por ingleses e norte-americanos e sua busca por um marxismo autóctone. No capítulo Direito, nação e capitalismo periférico: o impacto ideológico da superestrutura jurídica no Brasil nas visões de Antonio Carlos Wolkmer e Gizlene Neder Marcello Amorim Vieira e Sofia Viegas Duarte partem da análise das obras de Antonio Carlos Wolkmer e Gizlene Neder, respectivamente Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito e Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil para avaliar as contribuições destes pensadores para a Sociologia do Direito no Brasil. sumário 14 Marxismo. Por sua vez, Matheus de Carvalho Barros localiza a presença do Marxismo em diferentes momentos da trajetória intelectual e política de Florestan Fernandes, elucidando a importância e a função que o marxismo possui em diferentes momentos da trajetória de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX. E por fim, Sofia Viegas Duarte e Marcello Amorim Vieira utilizam como marco teórico os conceitos de pluralismo jurídico e ineficácia jurídica, apresentados por Antônio Carlos Wolkmer. Os objetivos principais são identificar as ferramentas de análise e as propostas de discussões do direito enquanto um vetor de sociabilidade no Brasil. sumário 15 1 Eduardo Russo Ramos Nelson Werneck Sodré e a Coleção História Nova: estudo de um caso particular da brasilidade revolucionária DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.1 Marxismo. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é apresentar alguns dos resultados derivados da pesquisa de mestrado desenvolvida através do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR entre os anos de 2018 e 2020 sob o título “Nelson Werneck Sodré e a Coleção História Nova: relações intelectuais e brasilidade revolucionária”. Desta forma, discorreremos sobre os elementos que estruturaram nossa investigação e argumentação para sistematizar as informações levantadas e os resultados a que chegamos com o tipo de análise a que submetemos nosso objeto de pesquisa. Apesar de não conclusivos, os levantamentos, as decisões de caráter metodológico e as considerações finais que pudemos sustentar indicam um caminho possível e produtivo para o posterior aprofundamento nas pesquisas sobre, de um lado, o itinerário intelectual de Nelson Werneck Sodré, de outro lado, as trajetórias individuais e coletivas da intelectualidade de esquerda envolvida nas lutas políticas e culturais do Brasil da brecha democrática encerrada desastrosamente pelo golpe de 1964. Assim, na sequência, o presente artigo apresenta a articulação de dois níveis desenvolvidos em nosso trabalho integral. Em primeiro lugar, abordamos aspectos do estado da arte dos estudos sobre a vida e a obra de Sodré identificando limites e tensionando as leituras realizadas até então para demonstrarmos os elementos que embasam nosso enfoque teórico-metodológico. Em seguida, através das mediações necessárias entre estas primeiras considerações e o nosso recorte analítico, sistematizamos o procedimento teórico-metodológico utilizado para pensar a formação do grupo que produziu a Coleção História Nova (CHN) e as relações entre este grupo e sua intervenção intelectual com o cenário político-cultural do pré-golpe – investigadas através da hipótese cultural sustentada por Marcelo Ridenti, qual seja a da existência de uma estrutura de sentimento da brasilidade sumário 17 Marxismo. revolucionária que marcou a produção cultural de esquerda no Brasil ao longo das décadas de 1950 e 1960. Tal análise, estruturada por meio da ideia de “relações intelectuais”, procurou, na forma possível, explorar os limites interpretativos desta hipótese e também de seu cabedal teórico derivado das contribuições de Raymond Williams para a sociologia da cultura e dos intelectuais. Determinadas considerações realizadas neste artigo são resultantes das importantes observações e debates suscitados na banca de defesa de dissertação, portanto, aproveito a oportunidade para reconhecer e agradecer a disposição, a dedicação e a contribuição de meu orientador Prof. Dr. Rodrigo Czajka e dos demais membros da banca, Prof. Dr. Josnei Di Carlo Vilas Boas (UFSC) e Prof. Dr. Erivan Cassiano Karvat (UEPG). OBSERVAÇÕES CRÍTICAS ACERCA DO ESTUDO DA OBRA E DO ITINERÁRIO DE NELSON WERNECK SODRÉ Nelson Werneck Sodré nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1911 e faleceu em Itu, São Paulo, no ano de 1999. Crítico literário, historiador, militar e militante comunista, além de espectador e protagonista das transformações pelas quais passou o Brasil ao longo do século XX, foi autor de 56 livros e cerca de três mil artigos, sendo uma das figuras mais relevantes de nossa história política e cultural e da formação e desenvolvimento de nossa tradição marxista. Debruçar-se sobre a trajetória e obra de uma personagem histórica como Sodré nos demandou, por tanto, uma série de medidas metodológicas preliminares. De início, realizamos uma revisão de literatura dos trabalhos disponíveis e localizados sobre sua vida e obra e, partindo para nossa análise dentro do recorte proposto, buscamos proceder com a cautela de não realizar uma leitura que monumentalizasse nosso objeto de sumário 18 Marxismo. pesquisa. Na perspectiva de uma Sociologia dos Intelectuais, deparamo-nos com uma quantidade de pesquisas que nos permitiu identificar uma série de lacunas que ainda dificultam o estudo deste objeto e, portanto, sustentamos a necessidade de uma operação sociológica crítica e investigativa que também considerasse o desafio metodológico de resgatar documentos, informações e dados históricos que nos auxiliassem na compreensão de seu itinerário intelectual; reconstituir sua trajetória com o objetivo de ampliar o horizonte de pesquisas futuras sobre o autor, mas também sobre as instituições, grupos e movimentos político-culturais em que esteve envolvido e cuja história não pode ser narrada sem localizar suas intervenções e engajamento; revisitar episódios de nossa história cultural e política cuja interpretação consolidada no cenário intelectual há tempos demonstra seus limites e validade. Em nossa revisão de literatura, identificamos um lugar comum em uma série de análises que se detiveram sobre a vida e a obra de Sodré: o ostracismo intelectual e acadêmico que sofreu em suas últimas décadas de vida. Ainda antes de seu falecimento, Leandro Konder e José Paulo Netto, alertavam sobre o impacto deste aspecto de sua trajetória para a compreensão do significado de suas contribuições na história do pensamento brasileiro do século XX (KONDER, 1991; NETTO, 1992). A quase onipresença destas duas análises nas pesquisas realizadas nos anos seguintes antes e depois da morte de Sodré nos permitiu argumentar que estas tiveram o efeito de serem trabalhos seminais sobre a importância e a necessidade de romper a “muralha de preconceitos” erguida diante da vida e da obra de Sodré, na expressão de NETTO (1992, p. 27).1 1 Abrindo a coletânea que organizou em 2001, Marcos Silva sintetiza parte desta campanha demonstrando que a formação de uma tradição intelectual predominantemente acadêmica concentrada em São Paulo durante a década de 1970 avaliou o lugar de Sodré na tradição historiográfica brasileira de forma muito negativa (SILVA, 2001, p. 10). Os trabalhos de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1972; 1984), Carlos Guilherme Mota (1977), Giselda Mota (1986), Marilena Chauí (1978; 1983) e Caio Navarro de Toledo (1977) se destacam neste projeto. sumário 19 Marxismo. Esforços pontuais e, por vezes, descontínuos, marcaram as iniciativas e produções que tomaram sua obra e trajetória intelectual como objeto nos anos que se seguiram a sua morte em janeiro de 1999. A título de exemplificação, conste-se os principais trabalhos que nos permitem identificar seus principais interlocutores e especialistas: em 2001, publicação organizada pelo professor Marcos Silva trouxe 13 artigos oriundos de um simpósio realizado em outubro de 1999 e ofereceu um intrigante panorama de questões e debates sobre a trajetória e o pensamento do historiador carioca (SILVA, 2001); do mesmo ano é a tese de um dos pesquisadores que se tornou referência obrigatória nos estudos sobre as relações entre militares e política no Brasil, Paulo Ribeiro da CUNHA, publicada sob o título Um olhar à esquerda: a utopia tenentista na construção do pensamento marxista de Nelson Werneck Sodré ([2002] 2011a); em 2006 foi publicada uma coletânea de 21 textos organizados por Paulo Ribeiro de Cunha e Fátima Cabral, oriundos de um evento científico realizado na UNESP no campus de Marília com o título Nelson Werneck Sodré: entre o sabre e a pena (CUNHA; CABRAL, [2006] 2011b); no ano de 2008 a publicação organizada pelo professor Marcos Silva do Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré trouxe o impressionante número de 83 autores apresentando verbetes dedicados à bibliografia de Sodré (SILVA, 2008). No entanto, ao realizarmos a análise mais ampla desta literatura, nos deparamos com uma série de interrogações que afetam a compreensão de seu itinerário intelectual ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960. Sua militância comunista a partir da década de 1940 abre questões ainda inconclusas no que diz respeito à compreensão de sua interpretação marxista heterodoxa. Tratando-se de um tema não diretamente abordado pelas pesquisas sobre sua trajetória, cumpre aqui ilustrar uma divergência entre importantes analistas. De um lado, representando a tradição acadêmica paulista da década de 1970, Caio Navarro de TOLEDO argumenta que em Sodré há uma defesa intransigente da linha política do PCB (2001, p. 53); já CUNHA, especialista na sumário 20 Marxismo. obra e trajetória do historiador, observa que “vincular as teses de Sodré às teses que se vinculam ao PCB é um equívoco.” (2011b, p. 91). Outro apontamento relevante pode ser encontrado ao abrirmos a questão de sua passagem e participação pelo ISEB. Como já citado, NETTO sustenta que os acontecimentos do início da década de 1950 contribuíram significativamente para a definição do perfil político e intelectual de Sodré (2011, p. 17). Significaram o início e o fim do “exílio interno” que passou em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, entre 1951 e 1954, e o início de um longo período em que residiu no Rio de Janeiro, cidade a que retorna em 1955, para lecionar no ISEB. Outro elemento que aponta a riqueza deste período em sua trajetória é sua produção bibliográfica. Para além da quantidade de obras, são deste período e dos anos seguintes suas obras mais estudadas e discutidas: a Introdução à revolução brasileira (1958); a revisão e reedição da obra História da literatura brasileira ([1ª edição de 1938] [3ª edição revista e ampliada em 1960] 1964a); a Formação histórica do Brasil (1962); a coleção História Nova (SANTOS, et al., [1963] 1993); a História da burguesia brasileira (1964b); a História militar do Brasil (1965); entre outras que marcaram os debates travados neste conturbado período. Levando em consideração esta produção, PINTO propõe uma periodização que atenta às particularidades desta trajetória. Para o autor, a produção de Sodré pode ser pensada em dois momentos cronológicos distintos: o primeiro, de 1938 à 1945; e o segundo, de 1958 à 1964 (2011b, p. 152). Segundo o analista: Os trabalhos publicados após 1964, na sua maioria, reafirmam conceitualmente as teses do segundo período. Inicialmente, pode-se afirmar que o substrato essencial do pensamento e da intervenção política do historiador carioca dá-se com a produção acontecida na conjuntura de 1958-1964, momento em que revisa e em parte abandona conceitualmente a sua produção anterior, quando se consagra como professor do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Quase toda sumário 21 Marxismo. a produção desse período nasceu de trabalhos apresentados no ISEB (1956-1964) (Ibidem, p. 152-153). O ano de 1958 é significativamente importante para pensarmos o nosso recorte analítico. Neste sentido, visualizamos 3 elementos que devem ser observados para justifica-lo. Em relação à sua produção bibliográfica, NETTO demonstra que no período de 1945 à 1958 Sodré publicou somente 4 obras, todas de circulação restrita (1992, p. 22-23). Segundo o autor, este relativo silêncio de 13 anos pode ser entendido como um momento de reflexão, elaboração e reelaboração teórica que tem relação com a própria experiência política da sociedade brasileira na abertura democrática que se realiza após o fim do Estado Novo (Ibidem, p. 22). Ainda, registra uma inflexão em sua trajetória, pela proximidade que alcançou com os círculos intelectuais e movimentos sociais que compunham o ambiente carioca da década de 1950. Entretanto, é preciso constar que este relativo silêncio do período pode ser tensionado se observarmos que se trata de um momento em que verificamos uma série de eventos não menos importantes de sua trajetória: foi nomeado professor da disciplina História Militar na Escola de Estado-Maior no Rio de Janeiro, no ano de 1948 (CUNHA, 2013, p. 210); integrou a chapa nacionalista e vitoriosa nas eleições para o Clube Militar de 1950, ligada à campanha O Petróleo é nosso (Ibidem, p. 213); dirigiu, naquela instituição, entre 1950 e 1951, seu Departamento Cultural e, consequentemente, a então prestigiosa Revista do Clube Militar (Ibidem, p. 218). Ainda, segundo a hipótese de CUNHA, foi no âmbito da docência na Escola de Estado-Maior que o historiador teve contato com a obra do marxista húngaro György Lukács (2011a, p. 243-245). Importante leitor e difusor da obra de Lúkacs no Brasil, KONDER sustentou, em seu ensaio sobre Sodré, que a utilização das teorias do marxista húngaro na refundição da obra História da literatura brasileira em 1960 apontam para o pioneirismo do historiador em nossa tradição marxista (1991, p. 76). Tudo indica, portanto, que a semente deste pioneirismo reside neste período. sumário 22 Marxismo. O segundo elemento a ser observado sobre o ano de 1958 reside na própria trajetória institucional do ISEB. Fundado em 14 de julho de 1955 pelo governo de João Café Filho, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros foi uma instituição pública de caráter universitário vinculada ao Ministério da Educação e Cultura (PEREIRA, 2005, p. 253). Entre publicações, debates e cursos, a história do instituto é relativamente tranquila até a crise institucional ocorrida em 1958 decorrente de um embate entre dois de seus fundadores, Alberto Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe. A discordância de Guerreiro Ramos em relação às teses de Jaguaribe publicadas naquele ano no livro O nacionalismo na atualidade brasileira, em que este defendia o recurso ao capital estrangeiro e a privatização do setor petroquímico nacional como alternativas para o desenvolvimento brasileiro, gerou uma instabilidade que ultrapassou as paredes da instituição e causou uma ruptura em que ambos pediram demissão, levando consigo parte de seus adeptos (Ibidem, p. 257-258). Como documentou SODRÉ, nesta crise, saíram da instituição, além de Guerreiro Ramos e Jaguaribe: Roberto Campos, Anísio Teixeira, Hélio Cabal e Ewaldo Correia Lima (1986, p. 39). Com a saída de Jaguaribe, titular da cadeira de Ciência Política, o professor Cândido Antônio Mendes, então titular da cadeira de História, passou a lecionar na cadeira vaga e Sodré passou a ser o titular da cadeira de História (Idem). Esta recomposição institucional ainda seria afetada por outras crises, mas PINTO destaca, por exemplo, que se em 1958 o nosso historiador lecionou 22 sessões de aulas e coordenou 3 seminários, no ano de 1959 o número passaria para 53 sessões de aula e 4 seminários (2011b, p. 157). Portanto, mais do que uma crise institucional, as consequências da ruptura de 1958 levaram também a um reposicionamento do historiador nos quadros da instituição. O terceiro fator que gostaríamos de destacar diz respeito a outra inflexão, esta ocorrida no cerne da orientação política do PCB, que veio a afetar tanto o desenvolvimento de nossa tradição marxista quanto o cenário político-cultural dos anos que antecederam o golpe de 1964; nos sumário 23 Marxismo. referimos à Declaração sobre a política do PCB de março de 1958. De acordo com Antônio Albino Canelas RUBIM, a crise aberta pelo XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética permitiu “uma ruptura do (quase) monopólio e o surgimento de inúmeros polos de irradiação do(s) marxismo(s), cada vez mais plural, no Brasil.” (2007, p. 374). Nesta linha de argumentação e problematizando os reflexos da Declaração, Celso FREDERICO ressalta o fato de que esta marcou tanto o abandono de uma orientação política sectária quanto a saída de um isolamento, o que viabilizou a presença dos comunistas no âmbito da agitação político-cultural dos anos que se seguiram (2007, p. 338-340). Sob os auspícios desta reconfiguração da linha partidária, o partido lançou o semanário Novos Rumos e a revista Estudos Sociais, esta dirigida por Astrojildo Pereira (ARIAS, 2003, p. 49; SANTANA; SILVA, 2007, p. 124). Intimamente próximo ao PCB desde os anos de 1943 e 1944 (CUNHA, 2011a, p. 209-210), Sodré não somente participou em edições da nova revista nas edições de número 14, 17 e 18,2 como também inauguraria, ao lado de Jacob Gorender, no ano de 1963, o “Centro de Estudos Sociais” – inauguração anunciada em seu 15º número, em 1962 (ESTUDOS SOCIAIS, n. 15, 1962, p. 319). Conforme ARIAS, o projeto do CES nunca se concretizou: “A presidência seria dada a Nelson Werneck Sodré. Mas o instituto acabou na primeira reunião, durante a definição de sua linha política.” (2003, p. 72). Conclusão extraída de uma série de entrevistas realizadas com Leandro Konder, Jorge Miglioli, Jacob Gorender e o próprio Sodré, a autora ainda identifica a ausência de menções ao CES após esta nota de 1962 (Idem). No entanto, ao consultar o acervo de Sodré na plataforma do Acervo Digital da Biblioteca Nacional, nos deparamos com uma entrevista do autor na data de 17/10/1963 para 2 Para uma consulta integral aos números, índices e conteúdos da Revista Estudos Sociais, conferir: ARIAS, Santiane. A revista Estudos Sociais e a experiência de um “marxismo criador”. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, p. 187, 2003. sumário 24 Marxismo. o jornal Última Hora de São Paulo intitulada “Nelson Werneck Sodré fala sobre as origens do ISEB” onde consta a informação sobre uma série de palestras proferidas na capital paulista no âmbito das atividades do CES (NELSON..., 17 out. 1963). Ainda, a matéria não somente refere-se à uma atividade do CES no ano de 1963, mas traz ainda a percepção de Sodré, onde o autor refere-se à pertinência histórica e cultural do Centro. A citação é longa, mas vale a leitura pela forma como expressa as lutas e debates do período: “O Centro de Estudos Sociais é outro sintoma das transformações políticas, sociais e culturais que atravessa o País. A existência do CES está justificada pela necessidade que as pessoas têm de se reunir, de pesquisar, de debater todos os problemas que o Brasil apresenta hoje. Essa necessidade decorre, não apenas das exigências da realidade, mas também do fato de que o aparelho institucional destinado às tarefas da cultura, que é o universitário, dá mostras de sua incapacidade para realizar essas tarefas. Surgem então instituições do tipo do CES, que se propõe a realiza-las. Essa necessidade de iniciativas, que suprem a ausência de órgãos específicos, no caso a Universidade, é outro reflexo da vida brasileira, e ocorre também na vida política, no sentido partidário. Os partidos tornam-se incapazes de conduzir a luta política, ela é então conduzida por organizações não partidárias, como as estudantis, sindicais, as Forças Armadas, a Igreja, que hoje são muito mais importantes, na vida política, que os próprios partidos. O CES tende a desempenhar, na vida cultural, uma tarefa muito importante, especialmente pela sua ampla liberdade de investigação, pelo fato de que não depende de organizações hierárquicas, não tendo nenhum compromisso com o passado, para justamente poder se vincular às grandes lutas que o povo brasileiro está travando”. (Idem). Assim, o tema da revista Estudos Sociais e seu Centro de Estudos Sociais – como demonstrado, ainda pouco investigado, tendo em vista as informações encontradas – nos ajuda a ilustrar a posição e a participação do autor neste novo cenário político e cultural aberto pela reorientação do PCB diante das lutas do período; ainda, a percepção que Sodré imprimiu no trecho acima aponta para certas sumário 25 Marxismo. ambiguidades do autor em relação à vida partidária na política brasileira, mas também revela o campo de preocupações que esteve no fundamento de sua experiência intelectual do período: a chamada do artigo refere-se à revisão da formação histórica nacional e o trecho de sua autoria traz, entre outras, a questão do problema da Universidade e seus limites – ambos temas que ressurgiram na análise concreta proposta e realizada por nossa pesquisa. Outro dado relevante: se o ano de 1958 parece ter significado na trajetória e obra de Sodré o tempo de uma espécie de reinauguração de seu trabalho intelectual, o ano de 1962 parece representar uma intensificação deste processo. Como destacou Regina Hippolito, no final do ano de 1961, após conturbada negociação, o historiador conseguiu definitivamente efetivar sua transferência para a reserva, sendo reformado no posto de General de Brigada (HIPPOLITO, 2011, p. 207). A partir de 1962 sua dedicação ao trabalho intelectual e militante é exclusiva; ilustra estas coordenadas o fato de que já no ano de 1963 somou-se ao grupo de membros-fundadores do Comando de Trabalhadores Intelectuais (CTI) (CZAJKA, 2011, p. 63). Considerando estes apontamentos biográficos e o levantamento destas possíveis questões procedemos à segunda etapa deste artigo, compreendida dentro deste panorama: a apresentação do modo como preparamos o estudo de caso da realização e publicação da Coleção História Nova, produzida entre os anos de 1963 e 1964 sob direção de Sodré, no âmbito das atividades do ISEB. COORDENADAS INTELECTUAIS DA REALIZAÇÃO DA COLEÇÃO HISTÓRIA NOVA “Julgam, assim, que esta é a História de que a sociedade brasileira necessita, hoje, como um dos elementos indispensáveis ao seu avanço. Esperam a crítica de todos os que se interessem sumário 26 Marxismo. pela História, valorizam tal crítica, acatam-na, não importando a discordância de opinião. Se todos os homens pensassem igual, não haveria necessidade de ciência, nem de arte, nem de debate, nem de liberdade, e as criaturas seriam como os pregos, feitas em série, aos milhões, ou conservadas iguais sob pressão, como os pregos ainda, sob a percussão do martelo. De tais críticas, em resultado final, surgirá a História Nova do Brasil, em suas verdadeiras dimensões.” (SANTOS, et al., 1993, p. 119). Concebida no calor dos anos das Reformas de Base, em pleno governo de João Goulart, a Coleção História Nova (CHN) foi elaborada através de uma intersecção complexa entre as atividades realizadas por diversos intelectuais e instituições que permeavam o cenário político cultural de esquerda do pré-golpe. Enquanto projeto didático-editorial, foi produto de um esforço conjunto de integrantes quase simultâneos do ISEB, da FNFi, do PCB e do MEC. Sendo de Sodré o papel de diretor deste esforço, os membros que integraram o grupo foram: Joel Rufino dos Santos, Pedro Alcântara Figueira, Maurício Martins de Mello, Pedro Celso Uchôa Cavalcanti Neto e Rubem César Fernandes; representando a ponte entre estes e o MEC, Roberto Pontual, então diretor da Campanha de Assistência ao Estudante (CASES). Denominada 30 anos depois por um de seus coautores como a “reforma de base no campo do ensino da História” (SANTOS, et al. 1993, p. 16), a CHN teve como objetivo declarado a “tentativa já impostergável de reformular, na essência e nos métodos, o estudo e o ensino de nossa história” (Ibidem, p. 115). Organizada através de monografias redigidas coletivamente, a coleção teve três edições: a primeira, publicada em 1964, pelo convênio ISEB-CASES, ambos vinculados ao MEC; a segunda, publicada em 1965, pela Editora Brasiliense, do marxista paulista Caio Prado Júnior, através de intervenção de Sodré; e a terceira, publicada em 1993, reedição idealizada pelo editor Cláudio Giordano em virtude do seu trigésimo aniversário de lançamento, trazendo importantes depoimentos inéditos de seus autores. Cada edição apresentou projetos editoriais sumário 27 Marxismo. distintos e, inclusive, enquanto a primeira edição foi publicada sob o título Coleção História Nova, as duas últimas trouxeram o título História Nova do Brasil (CARDOSO, 2016, p. 133-142). Da primeira edição, somente cinco volumes foram publicados (volumes 1, 3, 4, 6 e 7) e três estavam sendo redigidos quando a instalação da ditadura civil-militar no 1º de abril de 1964 suspendeu e depois extinguiu o ISEB, prendeu seus autores – inclusive o general reformado Sodré –, proibiu sua venda e circulação e em seguida instaurou inquéritos policial-militares, os IPMs, para investigar as ações subversivas representadas pelas atividades do ISEB e da CHN (CZAJKA, 2012). Suspensa a redação do projeto, apesar da tentativa de Sodré de publicá-lo através da editora de Caio Prado Júnior em 1965 (LOURENÇO, 2008, p. 396), nunca teve publicado integralmente nenhum de seus planos editoriais e residiu mais na memória de seus autores do que nas prateleiras das livrarias e das bibliotecas. Desde já, nosso trabalho busca propor uma angulação diferente das questões que se abrem a partir do estudo da CHN e já levantadas e desenvolvidas por outros pesquisadores (CARDOSO, 2013, 2016, 2019; PINTO 2011a; MENDONÇA, 1990; GUIMARÃES e LEONZO, 2003; LOURENÇO, 2008; LIMA, 2017). Entre estes trabalhos, identificamos uma ênfase contínua na dimensão educacional e pedagógica da Coleção, tendo a dimensão intelectual e cultural mais ampla de sua realização não recebido um olhar mais detido. Um trabalho que já propôs uma leitura semelhante foi o de Rodrigo Czajka, localizando a escrita do projeto no plano da organização das esquerdas culturais no final da década de 1950 e início da década de 1960, o autor investigou as relações intelectuais que condicionaram a formação do grupo, as relações institucionais evidenciadas pelos depoimentos dos autores no “IPM da História Nova” e o estatuto da aproximação entre o projeto e a esfera de influência do PCB entre os intelectuais no período (CZAJKA, 2012). O passo que pretendemos dar neste trabalho parte destas sumário 28 Marxismo. considerações e busca avançar em uma das possíveis entradas que acreditamos profícua para o estudo da CHN: abordar as relações intelectuais que marcaram sua elaboração e realização localizando-as no cenário político-cultural do pré-golpe e, neste âmbito, observando-as em sua relação com o que Marcelo Ridenti conceituou, em sua interpretação sobre as relações entre artistas e intelectuais e a produção cultural do período, como a estrutura de sentimento romântico revolucionária denominada brasilidade revolucionária (RIDENTI, 2010; 2014). Neste percurso, procuramos contemplar disposições teórico-metodológicas sobre a Sociologia dos Intelectuais a partir das contribuições da Sociologia da Cultura de Raymond Williams e nossa intenção com o recurso ao termo “relações intelectuais” neste trabalho aponta para o estudo de uma dimensão das práticas dos produtores culturais, dimensão esta que refere-se: às relações entre os produtores em si; à participação destes em formações e instituições; às formas de interação entre estes grupos e instituições; às aproximações e distanciamentos entre si, que revelam intenções e interesses permeados de contradições, ambiguidades e conflitos; entre outros elementos e questões que podem ser identificados com este tipo de abordagem que poderia ser denominada como “externalista” (PONTES, 1997, p. 4). Com este tipo de abordagem buscamos iluminar a dimensão intelectual da experiência da CHN no limite das relações que viabilizaram sua concretização, tangenciando elementos que nos ajudam a compreender a localização, o posicionamento e o destino de intelectuais e grupos de intelectuais que marcaram o cenário dos anos que antecederam o golpe de 1964, em especial desta intelectualidade que orbitava referências importantes das lutas do período como o ISEB e o PCB. Compreendemos que a necessidade de pensar a CHN advém da constatação de que seu significado histórico e cultural ultrapassava os limites de uma experiência didática ou educacional inovadora, tratando-se de uma intervenção intelectual que precisa ser compreendida sumário 29 Marxismo. tanto como um episódio do cenário cultural radicalizado pelo clima das reformas durante o governo de João Goulart quanto como um episódio da trágica derrota política das frentes progressistas e da vaga democrática instalada pela Constituição de 1946 diante do golpe de 1º de abril: a coleção e seus autores não só foram alvos diretos da violência, da repressão e do “terrorismo cultural” institucionalizado pelo golpe, mas foi elemento importante, junto do ISEB, da montagem golpista nos dias que antecederam o avanço das forças do General Olímpio Mourão Filho de Juiz de Fora para a cidade do Rio de Janeiro. Ambos, ISEB e CHN foram alvos privilegiados da ofensiva reacionária da imprensa contra o governo de Jango, como documentado em detalhes, manchete à manchete, por SODRÉ ainda no ano de 1965 no artigo “História da História Nova” publicado na quarta edição da Revista Civilização Brasileira (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, n. 4, 1965, p. 71).3 É neste quadro de preocupações que surge nosso recurso ao conceito de brasilidade revolucionária forjado por Marcelo Ridenti. Tendo sido definido na obra Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política, publicada no ano de 2010, o conceito acompanha o fio condutor das interpretações anteriores do autor sobre a produção cultural das décadas de 50 e 60, precisamente através do conceito de romantismo revolucionário, derivado da obra de Michael LÖWY e Robert SAYRE (2015). Nesta leitura, o autor observa que a formação de uma brasilidade, de um imaginário da nacionalidade própria do Brasil (RIDENTI, 2010, p. 9), pode ser encontrada em elementos do século XIX, mas se desenvolveu no pensamento social brasileiro a partir dos anos 1930 “de formas distintas e variadas à direita, à esquerda, conservadoras, progressistas, ideológicas ou utópicas” (Idem). Toma em seu trabalho a experiência da vertente identificada com ideias, partidos e movimentos de esquerda (Ibidem, p. 10), portanto revolucionária, na medida 3 O texto publicado em 1965 compôs uma coletânea de textos reunidos sob título homônimo e publicados em 1986 pela Editora Vozes. Ver: SODRÉ, Nelson Werneck. História da História Nova. Petrópolis: Vozes, 1986. sumário 30 Marxismo. em que trata-se de uma vertente que aposta na possibilidade de uma “revolução brasileira, nacional-democrática ou socialista” (Idem): Essa brasilidade revolucionária, como criação coletiva, viria a definir-se com mais clareza a partir dos final dos anos 1950, ganhando esplendor na década seguinte, seguido de seu declínio. Ela envolveria o compartilhamento de ideias e sentimentos de que estava em andamento uma revolução, em cujo devir artistas e intelectuais teriam um papel expressivo, pela necessidade de conhecer o Brasil e de aproximar-se de seu povo (Idem). Inserindo-a num processo de longa duração, o autor compreende-a como resultado de uma construção coletiva realizada por uma diversidade de agentes sociais ao longo do processo de modernização da sociedade brasileira (Idem). Esta construção, entretanto, é vista a partir do conceito williamsiano de estrutura de sentimento, ou seja, só pode ser visualizada a posteriori, identificada e examinada historicamente através de seu estudo como uma “articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social” (CEVASCO, 2001, p. 153). De acordo com RIDENTI: O caráter de experiência viva que o conceito de estrutura de sentimento tenta apreender faz com que essa estrutura nem sempre seja perceptível para os artistas no momento em que a constituem. Torna-se clara, no entanto, com a passagem do tempo que a consolida – e também ultrapassa, transforma e supera (2010, p. 86). A mobilização deste conceito por Ridenti busca compreender a formação de um imaginário crítico nos meios culturais da década de 1960, assim como seus desdobramentos ao longo das décadas seguintes (Ibidem, p. 85). A riqueza desta hipótese cultural reside na capacidade de identificar e problematizar o compartilhamento de ideias e sentimentos por artistas e intelectuais como expressado em suas intervenções, na relação entre essa “consciência prática de um tipo de presente” (WILLIAMS, 1979, p. 134) com os fatores mais amplos de nossa organização social e na possibilidade de revelar e tensionar analiticamente as relações entre produtores culturais dentro de um marco social. sumário 31 Marxismo. Assim, se os termos brasilidade e revolução se conjugam, é para dar sentido ao engajamento experimentado por estes produtores dentro do que acreditavam assinalar-se como a anunciação de uma “revolução brasileira” (RIDENTI, 2010, p. 87). Recuperar o passado e romper com o subdesenvolvimento, entretanto, não significaria a construção de utopias passadistas, mas sim progressistas: “(...) implicava o paradoxo de buscar no passado (nas raízes populares nacionais) as bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao final do processo, poderia romper as fronteiras do capitalismo” (Ibidem, p. 88-89). Assim, esta estrutura de sentimento da brasilidade romântico revolucionária procura dar conta, metodologicamente, do desafio interpretativo colocado aos pesquisadores pelas experiências de construção de uma identidade nacional política e cultural nas décadas de 1950 e 1960; ainda, tal recurso teórico-metodológico, ao nosso ver, também reflete a urgência, sentida por uma nova geração de pesquisadores brasileiros, de se criar interpretações alternativas às leituras críticas realizadas sobre o período nas décadas de 1970 e 1980, já referidas acima.4 Acompanhando esta argumentação, o autor demonstra que, além da identificação daqueles elementos comuns compartilhados no âmbito da produção cultural, o conceito de estrutura de sentimento nos auxilia a pensar as relações sociais que a realizam. No caso, se esquivando das leituras que enfatizam linearmente as relações entre intelectuais e Estado, o autor detecta que os produtores culturais do pré-golpe tinham relações ambíguas com a ordem estabelecida, principalmente com o Governo de João Goulart (Ibidem, p. 89). Esta operação compreende não só a necessidade de se investigar as manifestações artísticas e intelectuais do período para além da esfera estatal ou da influência das orientações do PCB ou do ISEB, mas também de refletirmos sobre estas ambiguidades, estas relações complexas e incertas que se estabelecem no campo da produção cultural, especialmente mais ricas do que leituras que circunscrevam-nas à mero epifenômeno de relações estruturais pressupostas. 4 Acreditamos que parte das intenções deste esforço interpretativo estão inscritas e sintetizadas no artigo Cultura e política brasileira: enterrar os anos 60? (RIDENTI, 2003, p. 197-212). sumário 32 Marxismo. Logo, pode-se perceber que na construção do conceito de brasilidade revolucionária cooperam recursos teóricos distintos, todos apontando para uma leitura que Ridenti realizou instaurando uma nova via de compreensão das experiências político-culturais das décadas de 1950 e 1960. Se nesta proposta o autor foi capaz de constituir um importante e abrangente panorama destas experiências, a análise dos quadros particulares a partir destas referências pode nos permitir compreender, num típico exercício sociológico, o particular dentro do geral, os grupos e instituições culturais em suas relações com a organização social, identificando as práticas culturais dentro desta experiência vivida, cuja análise é proporcionada pela abordagem williamsiana. É observando este roteiro que, em nosso trabalho integral, procuramos analisar a realização da Coleção História Nova e o que esta pode revelar através da abordagem das relações intelectuais que viabilizaram-na, tanto das relações e dos modos de produção cultural que colaboraram para a construção desta brasilidade revolucionária quanto dos sentidos, das marcas de ritmo e intenção que se inscreveram na atuação e na formação heterogênea da esquerdas no pré-golpe. REFERÊNCIAS ARIAS, Santiane. A revista Estudos Sociais e a experiência de um “marxismo criador”. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, p. 187, 2003. CARDOSO, Vanessa Clemente. História Nova do Brasil (1963-1965): uma nação “imaginada”. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação da Faculdade de História, UFG, Goiânia, p. 173, 2013. CARDOSO, Vanessa Clemente. 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Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. sumário 38 2 Itamá Winicius do Nascimento Silva Os percursos do marxismo autóctone: o esforço teórico pioneiro de Octávio Brandão DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.2 Marxismo. INTRODUÇÃO Diante do objetivo deste evento em debater o pensamento social brasileiro, acredito que seja de extrema relevância teórica o resgate da vida e obra de Octávio Brandão. Alagoano de Viçosa, Brandão foi um dos primeiros militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB), então Seção Brasileira da Internacional Comunista (SBIC); e teve enorme contribuição política e teórica para o partido. Inserido no início do século XX, foi o pioneiro na utilização do marxismo como ferramenta teórica de auxílio ao entendimento da sociedade brasileira. Apesar dessa alcunha ser creditada a Caio Prado Júnior, responsável pela publicação de Evolução Política do Brasil (1994a) em 1933, foi Brandão que, em 1924, escreveu a obra Agrarismo e Industrialismo, utilizando conceitos do que ele chamou (também pioneiramente no país) no subtítulo da obra de “marxismo-leninismo”. Pensado como um campo de disputas, o pensamento social brasileiro desenvolveu uma espécie de cânone em que Brandão (entre outros) não está incluído. Seu esforço pioneiro foi esquecido ou descredibilizado por suas limitações teóricas na utilização do marxismo. Admitindo críticas que demonstram as limitações de Brandão como, por exemplo, o uso mecânico da chamada tríade hegeliana (tese, antítese e síntese), acredito que seu pioneirismo conseguiu galgar importantes avanços dentro do contexto em questão. E mais, conseguiu iniciar debates que teriam frutíferas discussões posteriormente. Sendo assim, viso mostrar que suas reflexões em Agrarismo e Industrialismo servem para inseri-lo no que costumamos nomear de pensamento social brasileiro. Se tomarmos como recorte as décadas de 1910 e 1920, Brandão foi o único a produzir teoricamente sob influência direta do marxismo-leninismo. Diante dessas questões, defendo Brandão como um dos clássicos do pensamento social brasileiro com base em três pontos centrais: a) sua teoria da revolução, construída com base na observação sumário 40 Marxismo. das revoltas tenentistas e que colocou a pequena-burguesia como importante aliada do proletariado na revolução democrático-burguesa; b) sua análise dual da situação brasileira em que forças agraristas e industrialistas se encontravam em choque, sendo este conflito um desdobramento das disputas inter-imperialistas, representadas por ingleses e norte-americanos; c) sua busca por um marxismo autóctone, tendo em vista que sua reflexão na obra citada desenvolveu uma disputa com a interpretação postulada pela Internacional Comunista (IC). Logo, estudar e resgatar Brandão passa pelo debate dos caminhos a serem seguidos pela revolução brasileira (tema debatido posteriormente por autores diversos), da presença ou não do feudalismo ou semifeudalismo no Brasil (ideia que repercutiu em toda intelectualidade pecebista, criando produções antagônicas como as observadas em Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré) e, por último, das disputas enfrentadas por perspectivas teóricas que visam uma interpretação autônoma da realidade social. Desses três pontos centrais levantados, o último merece uma atenção. Isso porque Brandão não apenas surge pioneiramente como intérprete do Brasil, que se utiliza do marxismo, como busca a partir deste uma análise autóctone e/ou nacional do país em que está inserido. E, assim como teóricos da envergadura de José Carlos Mariátegui, ele paga um alto preço por defender uma visão autônoma da tutelada pela IC. Neste ponto, vale lembrar o desleixo que inicialmente a IC teve com relação aos países latino-americanos. Sobre esse desleixo, queixou-se Astrojildo Pereira, outro grande expoente do PCB nos anos 1920: O Brasil (como também toda a América do Sul) merece da IC atenção mais séria do que até agora foi prestada, e nosso Partido, formado e mantido através das maiores dificuldades, tem o direito de esperar dos órgãos dirigentes da IC uma assistência política mais assídua do que a que tem sido prestada até o momento (CARONE, 1979, p. 512-3). A produção teórica autônoma de Brandão nos anos 1920 é resultado desse desleixo, pois permitiu a intelectualidade do PCB certa sumário 41 Marxismo. liberdade para produzir. Entretanto, o VI Congresso da IC em 1928, foi decisivo para o futuro de Brandão no partido. Isso porque, influenciado pelas ideias de “classe contra classe”, a IC defendeu neste Congresso uma posição obreirista que teriam duas consequências: a) o afastamento de intelectuais do partido, pois o objetivo era que a organização fosse ocupada majoritariamente por operários; b) a completa oposição a alianças de classes com a pequena-burguesia, então estimada por Brandão em Agrarismo e Industrialismo, livro que influenciou fortemente o PCB em seu II Congresso de maio de 1925. O rechaço a alianças com a pequena-burguesia, foi central no afastamento de Brandão do partido. Isso porque, segundo as teses da IC, a revolução democrático-burguesa deixava de ser uma tarefa da pequena-burguesia/proletariado e passava a ser do proletariado/campesinato, seguindo assim os moldes russos. Como podemos perceber, apesar de ter influências da IC no tocante a utilização do feudalismo como traço característico do país (visto como um país semicolonial), Brandão divergia com relação ao caminho a ser seguido pela revolução democrático-burguesa. Isso porque sua teoria da revolução não era baseada em reflexões de fora, pelo contrário, se construíram como produtos de suas observações empíricas sobre a realidade brasileira. Afinal, foi a pequena-burguesia, organizada em torno do movimento tenentista, a classe social protagonista na desestabilização da Primeira República (1889-1930). Foi ao enxergar essa capacidade crítica e mobilizadora desses setores pequeno-burgueses que Brandão construiu sua teoria da revolução, então mais condizente com as especificidades nacionais que a advogada pela IC. Em suma, podemos perceber a importância de Brandão para o desenvolvimento do pensamento social brasileiro e, principalmente, de um pensamento autônomo que se refletiu no que chamo de marxismo autóctone. Mesmo diante de suas limitações, comuns para aqueles que empreendem pioneiramente um debate, Brandão conseguiu se mostrar como um autor a ser estudado e analisado como um clássico do pensamento social brasileiro. Um clássico pioneiro que, sumário 42 Marxismo. mesmo após exageradas autocríticas, teve o esquecimento como consequência de sua perspectiva autônoma. O HOMEM E O MILITANTE: A TRAJETÓRIA DE ALAGOAS AO RIO DE JANEIRO Antes de entrar nas questões puramente teóricas, vou rapidamente passar pela trajetória do homem e militante Octávio Brandão. Após perder seus pais muito jovem, Brandão foi educado pela família materna e após concluir o ginásio no Colégio Marista (instituição de tradição religiosa) rumou para o Recife, onde estudou Farmácia por três anos. Ao regressar da capital pernambucana, Brandão abriu uma farmácia em Maceió e começou a manter relações com o movimento anarquista alagoano. Neste período, escreve seu primeiro livro, chamado Canais e Lagoas. Esta obra, segundo o próprio autor, buscou reunir ciência, prática e poesia. Apesar de não ser uma produção marxista, Canais e Lagoas tem a capacidade de mostrar seu interesse pelas questões nacionais, nesta fase, ainda equacionadas em termos dos conceitos de povo e nação (PINHEIRO, 2017, p. 10). Seu posicionamento crítico, o levou inicialmente para o anarquismo. Na capital alagoana, Brandão contribuiu com o jornal anarquista A Semana Social, onde escreveu o texto “Abaixo a Guerra Imperialista” em outubro de 1917, sendo uma resposta a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial. O posicionamento crítico com relação ao conflito mundial, passou a ser uma ameaça para Brandão e Bernardo Canellas, o editor do jornal. Acusados de crime de lesa pátria, os dois tiveram que enfrentar o risco de linchamento de uma população favorável a participação do país na guerra. Linchamento este que só não ocorreu de fato, graças a uma moradora do prédio vizinho que facilitou a fuga dos dois anarquistas. sumário 43 Marxismo. Após esse perigoso inconveniente, só restou aos dois fugir de Maceió. Canellas embarcou para Recife e Brandão retornou para sua cidade natal, Viçosa. Foi neste retorno a Viçosa que Brandão passou a obter contato com anarquistas de outras regiões do país, em particular do eixo Sul-Sudeste. Um desses novos contatos foi o militante carioca Astrojildo Pereira, com quem manteve uma parceria política e intelectual por cerca de trinta anos. Foi através de Astrojildo que Brandão começou a ler autores anarquistas clássicos como Mikhail Bakunin e Piotr Kropotkin. Com o sucesso da Revolução Russa de 1917, Brandão se entusiasma com o feito e funda em 1919 o Grupamento Comunista Libertário de Alagoas. Nos primeiros anos do processo revolucionário russo, era muito comum encontrar no Brasil anarquistas bolchevistas. A separação entre anarquistas e comunistas só vai acontecer no decorrer do desenvolvimento da Revolução Russa, em particular, com a chegada das informações dos conflitos entre anarquistas e bolchevistas. Aproveitando o crescimento do movimento sindical de orientação anarquista no país, Brandão organiza o seguinte movimento em Alagoas: Articulando trabalhadores rurais, pescadores e o operariado nascente, Brandão liderou o maior movimento grevista visto até então nas Alagoas. Os trabalhadores enfrentavam então jornadas de 14 a 18 horas de trabalho e viviam com baixos salários, que, diante da elevação da carestia resultante das desvalorizações cambiais, não cobriam sequer suas necessidades básicas. As demandas do movimento grevista eram a jornada de 8 horas, a elevação dos salários e a liberdade de organização sindical, já que então os trabalhadores encontravam-se presos a lideranças sindicais comprometidas com os interesses patronais (PINHEIRO, 2017, p. 12). Por conta dessas articulações, Brandão é preso por dois meses, conseguindo sair da cadeia graças a influência de seus familiares com a burguesia local. Entretanto, foi jurado de morte pelos poderosos locais que não poderiam admitir uma liderança política que mobilizasse os trabalhadores rurais e urbanos em Alagoas. Buscando preservar sua vida, Brandão foge para o Rio de Janeiro, onde sumário 44 Marxismo. se transforma em comunista e militante do PCB, organização fundada em 1922. Assim como o apresentou aos clássicos anarquistas, Astrojildo foi responsável pela apresentação de Marx a Brandão e da sua posterior filiação ao PCB. Ainda em 1922 Brandão aceitou ser militante do partido e por lá ficou até o fim de sua vida, mesmo que nos últimos anos estivesse totalmente afastado das atividades e cargos internos. No partido, Brandão se destacou como teórico e militante. Como teórico, foi responsável pela obra que marcou a primeira geração de comunistas no Brasil. Me refiro a já citada obra Agrarismo e Industrialismo que exerceu forte influência sobre o II Congresso do PCB, realizado em 1925. No mesmo ano, Brandão criou e editou o jornal A Classe Operária, o primeiro jornal de massas do PCB. Eleitoralmente, se elegeu intendente (vereador na atualidade) para o Conselho de Intendência do então Distrito Federal em 1928, mostrando o sucesso do Bloco Operário e Camponês (BOC). Bloco este desarticulado, graças as intervenções da IC no PCB. Após seu exílio durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), ele se elegeu vereador pelo Distrito Federal em 1947, tendo seu mandato cassado (assim como de outros pecebistas) pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no ano seguinte. Por conta da crise no movimento comunista, após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Brandão foi se afastando da militância partidária. Na verdade, esse afastamento já vinha se desenhando desde 1928, ano em que a IC contestou oficialmente as teses defendidas por Brandão sobre a realidade brasileira. Após sua indisposição com a IC, Brandão foi isolado do partido. Ademais, a desvalorização da primeira geração de comunistas, tendo Brandão e Astrojildo como principais figuras, foi o principal motivo do seu esquecimento até entre as fileiras marxistas. Entendendo sua importância como militante e, principalmente, como teórico, este trabalho visa resgatar seu pioneirismo na utilização do marxismo para o entendimento do Brasil. sumário 45 Marxismo. O MARXISMO AUTÓCTONE DE BRANDÃO: TEORIA DA REVOLUÇÃO E REALIDADE DUAL A teoria da revolução e a realidade dual proposta por Brandão em Agrarismo e Industrialismo, evidencia seu pioneirismo e importância. Além do mais, mostra que Brandão foi o grande expoente intelectual do PCB nos anos 1920. Essas duas ideias trazidas por Brandão se comunicam e serão tratadas conjuntamente. A realidade dual, defendida pelo autor, acredita na existência de duas forças sociais presentes na sociedade brasileira: de um lado, as forças agraristas, então aliadas do imperialismo britânico; e do outro, as forças industrialistas, aliadas do imperialismo norte-americano. Como podemos perceber, a realidade dual brasileira se vincula a uma disputa interimperialista, presente no seio dessa sociedade. Sobre a repercussão dessa dualidade, acumulada a uma disputa entre potências imperialistas, no cenário político da Primeira República, Brandão exemplifica: Nilo e Rui foram agentes da política imperialista inglesa, como Bernardes e Alfredo Ellis o são. Já Wenceslau e Epitácio foram, no governo, agentes da política imperialista norte-americana (BRANDÃO, 2006, p. 96). Eis então um dos méritos de Brandão, pois para ele as causas das revoltas tenentistas de 1922 e 1924, estariam no conflito entre diversas forças sociais. Entre essas forças, estariam: o imperialismo britânico versus o imperialismo norte-americano, os grandes fazendeiros de café versus os industriais e a pequena-burguesia etc. Ou seja, ele trata a conjuntura política dos anos 1920 como resultado de uma variedade de conflitos, entre diversas classes sociais em luta. Diante desse amaranhado de conflitos e disputas, temos o seguinte cenário: A classe dominante era a burguesia feudal, principal beneficiária da situação agrária. Havia outra burguesia, a industrial, que não apresentava forças suficientes para destronar a burguesia feudal. sumário 46 Marxismo. Entre o operariado e a burguesia, havia a pequena-burguesia. Além disso, a classe social mais numerosa era constituída pelos camponeses ou trabalhadores rurais (OLIVEIRA, 2017, p. 29). Essa percepção da sociedade brasileira antagonizada por duas forças sociais, foi uma influência recebida pelas teses da IC. Em síntese, o que estava em conflito eram forças presas aos resquícios feudais de um lado, contra forças capitalistas e modernizantes do outro. Em meio a esta disputa, seria tarefa do proletariado apoiar as forças industrialistas, pois o inimigo imediato se mostrava ser os fazendeiros de café com sua concepção feudal de mundo. Entretanto, após vencido os agraristas, o desenvolvimento capitalista acarretado pela vitória dos industrialistas deveria levar, consequentemente, à vitória do proletariado e do socialismo. É neste ponto que a visão da sociedade dual brasileira, se vincula a teoria da revolução. Afinal, qual o caminho a ser tomado para que a revolução socialista se efetue, diante desta disputa dual entre agraristas e industrialistas? De início, como já pontuei, o papel da classe trabalhadora em meio ao conflito entre agraristas e industrialistas, seria a formação de uma frente ampla, um bloco de classes que, hegemonizado pelos interesses industrialistas, romperia com a ordem social imposta pelos setores agrários (PINHEIRO, 2017, p. 22). É justamente após o rompimento dessa ordem social agrária que Brandão passa a se diferenciar das teses da IC, mostrando que suas reflexões se baseavam em observações empíricas da sociedade brasileira. Isso ocorre porque, enquanto a IC propunha uma revolução democrático-burguesa etapista aos moldes russos, Brandão propunha uma espécie de revolução permanente que levaria da desintegração da ordem agrária a construção ininterrupta do socialismo. Sua perspectiva não etapista, pode ser encontrada no seguinte trecho: Lutemos por impelir a fundo a revolta pequeno-burguesa fazendo pressão sobre ela, transformando-a em revolução permanente no sentido marxista-leninista, prolongando-a o mais possível, a fim de agitar as camadas mais profundas das multidões sumário 47 Marxismo. proletárias e levar os revoltosos às concessões mais amplas, criando um abismo entre eles e o passado feudal. Empurremos a revolução da burguesia industrial – o 1789 brasileiro, o nosso 12 de março de 1917 – aos seus últimos limites, a fim de, transposta a etapa da revolução burguesa, abrir-se a porta da revolução proletária comunista. (Brandão, 2006, p. 133). Brandão enxerga a necessidade de uma revolução permanente pois, apesar de considerar os agraristas uma força social mais atrasada, ele não nutria esperanças com relação aos industrialistas. Ao analisar a conjuntura política após o fracasso da revolta tenentista em 1924, Brandão afirma: Não nos iludamos, porém, com a burguesia industrial do Brasil. Após a retirada dos revoltosos, em vez de calar-se, ela declarou apoiar a legalidade. O mesmo sucedeu com a burguesia comercial que até andou a assinar contos de reis nas subscrições legalistas (BRANDÃO, 2006, p. 146). Ou seja, a revolução proletária em seu sentido prolongado, tornava-se uma necessidade histórica, tendo em vista as vacilações dos industrialistas. Mas o autor vai além e ainda sobre as limitações da burguesia brasileira, diz: A burguesia que, na reunião da Associação Comercial de São Paulo, declara apoiar a legalidade feudal, nega sua missão histórica e bem merece os novos impostos exorbitantes, os pontapés de Bernardes e o desprezo com que este tratou seus líderes, a começar pelo presidente da mesma Associação (BRANDÃO, 2006, p. 147). Ao questionar a “missão histórica” da burguesia brasileira, Brandão inicia já nos anos 1920 um debate sobre a natureza da burguesia nacional que vai ser desacreditada por autores como Florestan Fernandes (2006), Vânia Bambirra (2019), Ruy Mauro Marini (2013) e Theotônio dos Santos (2018). Em suma, ao mesmo tempo que Brandão inicia um debate sobre a existência do feudalismo no país, desembocando nas reflexões teóricas de Prado (1994b) e Sodré (1982) que mencionamos acima, ele também será pioneiro com relação a um outro relevante debate que envolve o pensamento social brasileiro e em particular sumário 48 Marxismo. as perspectivas marxistas que se debruçam sobre o entendimento do Brasil. Esta ideia de revolução permanente, iria entrar em atrito com a IC que a partir do seu VI Congresso, realizado em 1928, passa a exercer uma influência teórica e política direta sobre os partidos comunistas mundo afora, incluindo o PCB. Segundo resolução deste Congresso, fortemente influenciado pelo dogmatismo stalinista, os partidos comunistas teriam a tarefa de conduzir a revolução em todas as etapas, desde as transformações democrático-burguesas até a implementação do socialismo (HENN, 2012, p. 291). Essa seria a primeira diferença do marxismo autóctone de Brandão com os receituários da IC. Além desta diferença no tocante à natureza do processo revolucionário, Brandão se diferenciou da IC em outros pontos. O mais significativo foi a sua importância dada a pequena-burguesia no processo revolucionário. A atenção dada a pequena-burguesia, tratada como vacilante, igualmente a burguesia industrial, era resultado da observação empírica da realidade brasileira. Isso porque foram os setores pequeno-burgueses que organizaram e lideraram o principal movimento político de oposição a Primeira República, trata-se do tenentismo. Sobre esse movimento, foi liderado por tenentes que: pela sua origem social quanto pelas suas condições de vida, estava estreitamente ligados às camadas médias urbanas, sofrendo sua influência e participando do processo geral da radicalização de tais setores (PRESTES, 2009, p. 32). Apesar do Brasil dos anos 1920 ser predominantemente agrário, o campesinato não liderava naquele momento um movimento político contestatório como a pequena-burguesia conseguiu realizar, através do tenentismo. Vale lembrar que foi essa mesma pequena-burguesia que liderou a Revolução de 1930, aquela responsável pela derrubada da Primeira República. Revolução em que os comunistas não exerceram nenhuma influência ou participação, graças ao rechaço das teses de Brandão. Esses fatores, certamente, influenciaram Brandão a dar relevância a pequena-burguesia. sumário 49 Marxismo. Essa valorização do papel da pequena-burguesia na derrubada das forças agraristas, foi uma perspectiva que evidenciou o quanto PCB e Brandão (seu principal expoente intelectual) estavam caminhando para uma interpretação autônoma do país, apesar de obterem influências da IC, como a adoção da tese do feudalismo. Sobre a importância dessa valorização, escreve Michel Zaidan: Não haverá nada mais problemático, na história do PCB, que atribuir a sua linha tática frente ao “tenentismo” a uma mera sujeição burocrática às concepções da IC, acerca da participação dos comunistas nos movimentos de libertação nacional. A esse respeito, pode-se dizer com segurança, e sem nenhuma conotação pejorativa, que o Partido Comunista Brasileiro sempre foi muito nacional […] será uma injustiça imperdoável não reconhecer que as suas táticas, em relação aos movimentos de revolta da pequeno-burguesia, refletem profundamente as características da formação social brasileira (ZAIDAN, 1980, p. 12). A aliança entre proletariado e pequena-burguesia, custou caro a Brandão que passou a ser duramente atacado pela IC, a partir de 1928. A tática da “classe contra classe”, prevalecendo alianças somente com setores operários, fez Brandão e suas ideias tomarem o caminho do isolamento dentro do partido. Ao acreditar que O fazendeiro de café só será derrubado pela frente única momentânea do proletariado com a pequena-burguesia e a grande burguesia industrial (BRANDÃO, 2006, p. 61), Brandão não só previa alianças com setores não operários como aparentemente não incluía o campesinato nesta “frente única momentânea”. Esta era a principal crítica da IC às suas teses. Porém, diferente das críticas recebidas, Brandão não só criticou duramente as limitações da pequena-burguesia, como também não excluiu por inteiro o campesinato na luta contra os agraristas. Sobre o reconhecimento das limitações da pequena-burguesia, isso pode ser visto em diversas passagens da obra Agrarismo e Industrialismo, em que ele coloca esses setores como responsáveis pelas derrotas em 1922 e 1924. Sobre a pequena-burguesia, Brandão faz questão de delimitar bem suas diferenças com esses setores, apesar de considerá-los importantes na luta contra o agrarismo: sumário 50 Marxismo. Não consintamos a menor influência da política e da ideologia pequeno-burguesas sobre o proletariado. Ataquemos a fraseologia pequeno-burguesa. Armemos, na hora precisa, os trabalhadores, subordinando-os politicamente ao seu partido, ao Partido Comunista. Exijamos dos revoltosos pequeno-burgueses, concessões econômicas e políticas importantes (BRANDÃO, 2006, p. 133). E ao mesmo tempo em que busca criticar e se diferenciar da pequena-burguesia, ele também buscou incluir o campesinato neste amálgama de classes sociais contra os agraristas. A própria construção do Bloco Operário e Camponês (BOC), em 1927, é uma evidência não só da flexibilidade tática do PCB sob influência teórica de Brandão, como também da importância dada ao campesinato na luta contra os representantes do feudalismo no país. Além do BOC, o próprio Brandão reconhece a importância do campesinato ao escrever sobre os desafios da Coluna Prestes, em março de 1926: No sul, os revoltosos perderam a batalha. Chegou a vez do Norte: o capitão Prestes, após a marcha colossal através dos sertões, mantém viva a chama da revolta. Mas, não se apoiando sobre o proletariado rural, tombará fatalmente. O pequeno-burguês não vê classes! O técnico só vê a técnica! (BRANDÃO, 2006, p. 187). Além de mais uma vez criticar a pequena-burguesia, Brandão destaca a importância do campesinato como ator político. Sem ele devidamente mobilizado, o que de fato a Coluna Prestes não conseguiu por completo, o movimento estaria fadado ao fracasso que acabou se confirmando, apesar dos rebeldes terem saído do Brasil sem acumular nenhuma derrota para as forças governistas. Em suma, Deste modo, fica claro o esquema empregado por Brandão em sua interpretação da realidade brasileira. Partindo do imperialismo, o autor reconstitui suas ramificações no interior da formação social brasileira, chegando a dualidade básica da economia brasileira, a oposição entre agrarismo e industrialismo, como indica o título da obra. A partir daí o autor avalia outros atores políticos, então relevantes, como a pequena-burguesia urbana radicalizada, o proletariado e o campesinato (PINHEIRO, 2017, p. 22). sumário 51 Marxismo. Essa estratégia democrática pequeno-burguesa (PINHEIRO, 2017), prelúdio de uma construção socialista, foi a grande inovação de Brandão com relação as teses engessadas da IC. Ela representou o que Carlos Gouveia de Omena (2018) cunhou de revolução democrática pequeno-burguesa, fruto de um programa nacional-popular que fez o PCB da época aliar êxitos eleitorais (o partido conseguiu eleger dois vereadores no Rio de Janeiro, através do BOC) com políticos (massificando a organização que crescia e enfraquecia as correntes anarquistas no movimento sindical). Resultado direto de um contexto em que a IC tratava a América Latina com desleixo, a obra Agrarismo e Industrialismo representou a primeira geração de comunistas brasileiros que trabalharam durante todo o tempo a teoria nacional-popular da revolução pequeno-burguesa, sendo os pioneiros no Brasil da política de alianças (OMENA, 2018, p. 41). Geração que, a partir da interferência da IC no partido, foi isolada na época e esquecida por várias gerações posteriores de comunistas. CONCLUSÕES GERAIS Como ficou evidente durante este trabalho, a vida e obra de Octávio Brandão o credenciam como um dos expoentes do pensamento social brasileiro. Ele conseguiu, pioneiramente, interpretar a sociedade brasileira com base na perspectiva teórica do marxismo-leninismo; então pouco conhecida pela intelectualidade nacional. Entre os pontos destacados no texto que credenciam Brandão, estão suas ideias sobre a teoria da revolução e a realidade dual. Unidas, essas duas perspectivas mostram um autor que, apesar de receber influência da IC, buscou construir uma interpretação autônoma do país com base na observação da sociedade brasileira. Ou seja, os manuais foram transformados em auxiliares para o entendimento das nossas contradições e desafios, não sendo utilizados mecanicamente pelo autor. sumário 52 Marxismo. Ao interpretar a sociedade brasileira como palco do embate entre duas forças sociais (agraristas e industrialistas), que levavam consigo uma disputa interimperialista, Brandão aliou as teses sobre o feudalismo nos países semicoloniais da IC a uma interpretação autônoma que a aliava com o debate sobre o imperialismo; existente em Vladimir Lênin (2012), autor que Brandão recebeu forte influência. Já ao entender o processo revolucionário no Brasil, fora do etapismo russo proposto pela IC, Brandão se caracteriza como um autor inovador por propor uma revolução permanente em um país subdesenvolvido. Sua valorização do papel da pequena-burguesa no processo que levaria a derrubada das forças agraristas, mostrou como suas reflexões estiveram atreladas a realidade concreta do país, tendo em vista que foi esta classe a responsável pela oposição mais organizada a Primeira República; então hegemonizada pelas forças de caráter feudal. A estratégia democrática pequeno-burguesa, caminho inicial de uma revolução ininterrupta e permanente rumo ao socialismo, se mostrou a principal ideia do marxismo autóctone de Brandão, expoente intelectual de uma primeira geração de comunistas relegados ao esquecimento. Por fim, concluo este breve e introdutório trabalho, com o desejo de que os leitores possam aprofundar seus estudos sobre Brandão, reconstruindo criticamente a trajetória do primeiro a utilizar o marxismo como meio de entender o Brasil. REFERÊNCIAS BAMBIRRA, Vânia. O Capitalismo Dependente Latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019. (Coleção Pátria Grande). BRANDÃO, Octávio. Agrarismo e Industrialismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil – 1924. 2. ed. São Paulo: A. Garibaldi. 2006. CARONE, Edgard. Movimento Operário no Brasil: 1877-1944. São Paulo: DIFEL, 1979. sumário 53 Marxismo. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006. HENN, Leonardo Guedes. A virada tática comunista do final da década de 1920: do BOC ao obreirismo. Revista Latino-Americana de História, v. 1, nº 3, p. 287-299, 2012. JUNIOR, Caio Prado. Evolução Política do Brasil: colônia e império. São Paulo: Brasiliense, 1994a. JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1994. LENIN, Vladimir Illitch. Imperialismo, estágio superior do capitalismo: ensaio popular. São Paulo: Expressão Popular, 2012. MARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e Revolução. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2013. (Coleção Pátria Grande). OLIVEIRA, D. M. A teoria da revolução do P.C.B.: Octávio Brandão, a aliança de classes e o feudalismo (1922-1935). História e Cultura, v. 6, p. 26-42 , 2017. OMENA, Carlos Gouveia de. Formação do primeiro grupo dirigente do PCB. In: LOPES, J. G; GONÇALVES, M (Orgs.). A revolução de outubro de 1917: 100 anos depois. Recife: NEEPD, 2018. PINHEIRO, Filipe Leite. Sobre o marxismo e a interpretação do Brasil de Octávio Brandão. In: XII Congresso Brasileiro de História Econômica e 13ª Conferência Internacional de História de Empresas, 2017, Niterói. Anais do XII Congresso Brasileiro de História Econômica e 13ª Conferência Internacional de História de Empresas, 2017. PRESTES, Anita Leocádia. Uma Epopeia Brasileira: a Coluna Prestes. São Paulo: Expressão Popular, 2009. SANTOS, Theotônio dos. Socialismo ou Fascismo: o novo caráter da dependência. Florianópolis: Insular, 2018. SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. 11º ed. São Paulo: DIFEL, 1982. ZAIDAN, Michel. Construindo o PCB: 1922-1924. São Paulo: Lech Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. sumário 54 3 Marcello Amorim Vieira Sofia Viegas Duarte Direito, nação e capitalismo periférico: o impacto ideológico da superestrutura jurídica no Brasil nas visões de Antonio Carlos Wolkmer e Gizlene Neder DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.3 Marxismo. INTRODUÇÃO Em investigação às concepções que entornaram o princípio do Direito no Brasil através de sua História, este artigo objetiva analisar como autores da sociologia do Direito no Brasil articulam a relação entre o desenvolvimento do conceito de nação e nacional, bem como o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, um país periférico, enquanto condição determinante para que a positivação normativa e a própria práxis jurídica, evidenciada através do discurso jurídico, fossem realizadas à luz do interesse de classe burguês. Selecionou-se, portanto, as obras Pluralismo Jurídico, de Antonio Carlos Wolkmer e Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, de Gizlene Neder, para que fosse possível analisar como estes autores avaliavam a relação entre a estrutura vigente no Brasil e seu impacto na superestrutura jurídica. Metodologicamente, então, escolheu-se a análise temática comparativa enquanto instrumento principal na apreciação do conteúdo bibliográfico escolhido, havendo assim a observação das principais similaridades e discordâncias entre os pensamentos dos autores trabalhados. Para além da análise e comparação dos materiais bibliográficos escolhidos, optou-se também pela realização de uma investigação acerca do histórico da Sociologia do Direito no Brasil, pois a partir desta investigação se tornou possível identificar como os clássicos da Sociologia, em geral, fizeram-se presentes nas obras de Wolkmer e Neder, bem como apreciar quais autores das escolas brasileiras de pensamento crítico do Direito contribuíram para com o desenvolvimento dos referidos autores. Em linhas gerais, ambas as obras trabalham sobre a roupagem que o discurso e a tradição jurídica recebeu na experiência brasileira, entretanto, há de se pontuar algumas especificidades iniciais no escopo da sumário 56 Marxismo. escrita de cada autor. Antonio Carlos Wolkmer, em Pluralismo Jurídico, dispõe-se a pontuar a crise do Direito Positivo Ocidental e a forma como este foi assentado no Brasil apresentou um ônus no que tange ao silenciamento e negligência das práticas comunitárias e pluralistas na esfera jurídica. Em Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, por sua vez, Gizlene Neder busca na oficialização do modo de produção capitalista nos anos iniciais da República uma base para estabelecer um estudo da faceta liberal-individualista encarnada pela Jurisdição brasileira. Logo, ao se perceber o vértice comum a ambas as obras, estabelece-se esta comparação temática e sociológica entre elas para que se identifique como estes autores, que vêm de uma tradição crítica da Sociologia, podem concordar e discordar entre si neste campo de análise. Sendo assim, a leitura e desenvolvimento deste trabalho irá se voltar a este tipo de apreciação, objetivando assim observar as diversas inferências da Sociologia Crítica do Direito no Brasil acerca deste problema comum. APLICANDO A ANÁLISE TEMÁTICA COMO MÉTODO DA PESQUISA Ao instrumentalizar a análise temática enquanto método de pesquisa para o campo do Direito, busca-se aplicar o método pensado por Virginia Braun e Victoria Clarke (2006), originalmente ilustrado como ferramenta para pesquisa no campo da Psicologia, de trabalhar os dados qualitativos através da identificação de padrões entre si e, portanto, temas para estabelecer um balanceamento dos mesmos em diferentes cenários. No presente trabalho, então, esta identificação de temas ocorreu de maneira paralela entre os livros Pluralismo Jurídico, de Antonio Carlos Wolkmer e Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, de Gizlene Neder. sumário 57 Marxismo. Os passos de pesquisa utilizados para aplicação da análise temática à leitura das obras se deu à luz da esquematização esboçada por Luciana Karine de Souza (2019), isto é, num primeiro momento houve uma familiarização com as fontes trabalhadas, através de uma leitura prévia dos textos e da busca por conhecimentos acerca do próprio histórico da Sociologia do Direito no Brasil. Após esta fase, passou-se para as fases de geração de códigos iniciais e busca por temas nestas literaturas, destaca-se que aqui a opção foi por fundir duas fases em uma para que a pesquisa pudesse se dar de maneira mais dinâmica. Das mencionadas fases de geração de códigos iniciais e de busca por temas, selecionou-se nas obras de A. C. Wolkmer (2015) e G. Neder (1995), enquanto temas mais relevantes para investigar o impacto ideológico nos processos referentes à construção da superestrutura jurídica no Brasil, a forma como estes autores analisaram a relação entre o capitalismo que se desenvolvia no Brasil e as necessidades que este legou à burguesia no que tange aos interesses inerentes a esta classe, bem como a maneira como esta classe lidou com esta questão, consequentemente projetando marcas na Jurisdição. Então, após a fase de revisão temática da literatura escolhida, produziu-se a relatoria dos dados e reflexões encontradas em ambos os autores acerca da temática problema pretendida por esta pesquisa, estabelecendo-se então as similaridades e distanciamentos sociológicos vistos em perspectiva comparada em Wolkmer (2015) e Neder (1995). SOCIOLOGIA DO DIREITO NO BRASIL: REFERÊNCIAS E SOLIDIFICAÇÃO ACADÊMICA Enquanto etapa indispensável à fase de familiarização com o tema pesquisado, buscou-se investigar o histórico da Sociologia do Direito ou Sociologia Jurídica no Brasil, até mesmo para entender como os sumário 58 Marxismo. autores escolhidos puderam ser impactados e, respectivamente, suas produções apresentarem legados desta trajetória em sua materialidade. Diversos nomes podem ser mencionados como referências na construção da Sociologia do Direito no Brasil, que apresentou uma tendência de buscar referências nos clássicos e adaptá-los à realidade brasileira, produzindo assim novas pesquisas. Contudo, nesta pesquisa é interessante evidenciar o nome de Roberto Lyra Filho enquanto um dos precursores no pensamento do Direito sob a lógica dialética. Isto porque ambos os autores trabalhados, Wolkmer (2015) e Neder (1995), imprimem em seus trabalhos análises dialéticas do Direito para se pensar os intercâmbios da experiência capitalista no Brasil para com o processo de produção do discurso jurídico. Também se destaca aqui, por se tratar de uma pesquisa pautada comparativamente no trabalho de dois professores universitários na área, que a Sociologia do Direito para além de ter uma história de construção, passou também por um processo de assentamento nas grades curriculares dos cursos de Direito, pois No Brasil, em sendo a sociologia aplicada ao direito uma demanda antiga, apenas na década de 1990 é que se consegue, por lutas políticas e representações em órgãos de classe, elevar o status da área ao de matéria obrigatória nos cursos de direito. Tal conquista, fruto da constatação de um exagerado dogmatismo nas ciências jurídicas, que, do ponto de vista da formação acadêmica, acabava por gerar um grande descompasso entre a lei escrita e a realidade social, nasce com a pretensão de humanizar os cursos de direito, tornando o real mais próximo do mundo do direito (Junqueira, 1993). (MADEIRA, L. M; ENGELMANN, F. 2013; p. 187 – 188) Portanto, expõe-se também em Pluralismo Jurídico e Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, obras a serem analisadas, o viés crítico presente em seu conteúdo e a importância deste para o alcance dos escopos da própria disciplina de Sociologia do Direito enquanto instrumento de humanizar a práxis jurídica. sumário 59 Marxismo. PLURALISMO JURÍDICO: A ANÁLISE DE ANTONIO CARLOS WOLKMER Em Pluralismo Jurídico, Antonio Carlos Wolkmer se propõe a analisar a crise do Direito positivista legado pelo liberal-individualismo. O autor busca fazer uma reconstrução das condições históricas e políticas que contribuíram para a ascensão deste ideal enquanto motor das trajetórias jurídicas na Europa, inicialmente, e posteriormente nos países para o qual migrou. A digressão proposta por Wolkmer compreende também a investigação das condições históricas e econômicas que moldaram a Jurisdição liberal-individualista que chegou como referencial aos países que foram colonizados por Estados europeus. Sendo assim, o autor aponta a emergência do Capitalismo sob duas óticas, a de Karl Marx e a de Max Weber (WOLKMER, A. C. 2015). Apesar de introduzir o leitor a ambas, o autor se apoia mais nas proposições feitas por Marx para realizar sua pesquisa, contudo não dispensa a relevância das reflexões de Weber. Ao começar uma reflexão acerca dos impactos da transposição colonial das superestrutura jurídica europeia para desenvolvimento da cultura jurídica brasileira, Wolkmer realiza a delimitação no sentido de que A partir da compreensão de que toda criação jurídica reproduz determinado tipo de relações sociais envolvendo necessidades, produção e distribuição, torna-se natural perceber a cultura jurídica brasileira como materialização das condições histórico-políticas e das contradições socioeconômicas, traduzidas, sobretudo, pela hegemonia das oligarquias agroexportadoras ligadas aos interesses externos e adeptas do individualismo liberal, do elitismo colonizador e da legalidade lógico-formal. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 89) Notando-se, então, a aplicação de forma prática do referencial sociológico legado por Marx no cenário prático de análise de desenvolvimento de uma cultura jurídica brasileira. sumário 60 Marxismo. Entretanto, Wolkmer (2015) aponta para dilemas que se assentavam na incongruência que residia na existência de práticas comunitárias eficazes desde os tempos coloniais, sendo estas práticas operadas por quilombolas e indígenas como uma forma eficaz de “Jurisdição insurgente”. Em contrapartida ao disposto, o autor pontua ainda que em função dos interesses oficiais do Estado rumarem de encontro à criminalização daqueles que não ocupavam espaços de poder, bem como realizar um controle aduaneiro efetivo, toda prática que não coadunasse com este “Direito oficial” seria considerado menos importante e, por isso, não teria validade na esfera pública. Assim, tem-se um monismo na cultura jurídica, afinal O Direito Estatal vem regulamentar, através de suas codificações, os intentos dos proprietários de terras e da burguesia detentora do capital, ocultando, sob a transparência da retórica liberal e do formalismo das preceituações procedimentais, uma sociedade de classe virulentamente estratificada. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 93) Logo, diante desta métrica lógico-positivista aplicada pela institucionalidade, há uma negação identitária à práxis de regulamentação comunitária que se desenvolveu paralelamente à cultura jurídica oficial, mas estes grupos, descriminados e afastado propositalmente dos espaços de poder, desenvolveram um sistema que goza de eficácia, assim se tem uma problemática arraigada no não reconhecimento oficial de que a chamada cultura jurídica se deu de forma dual (WOLKMER, A. C. 2015). O Pluralismo Jurídico, enquanto conceito, é para Wolkmer (2015) uma forma de se estabelecer um reconhecimento a todo um paradigma cultural e, para além disso, uma proposta de coexistência de práticas, amplificando assim o leque de culturas jurídicas e trabalhando a evolução das sociabilidades através da inclusão sob esta ótica plural. sumário 61 Marxismo. DISCURSO JURÍDICO E ORDEM BURGUESA NO BRASIL: A ANÁLISE DE GIZLENE NEDER A obra Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil consiste no estudo de Gizlene Neder (1995) acerca da relação entre a instauração do Republicanismo e o assentamento da ordem capitalista no Brasil com a produção de um discurso jurídico impactado diretamente por estes episódios. Por discurso jurídico, Neder (1995) entende a legislação e pronunciamentos de Ministros de Estado versando acerca da Jurisdição e demais conteúdos neste sentido, não se deve obstar também a própria práxis acadêmica na área jurídica à época com o desenvolvimento do pensamento jurídico nas escolas do Recife e de São Paulo. À luz de uma base metodológica simpática à dialética, Neder (1995) demonstra como o discurso jurídico foi ferramenta de ideologização, sendo extremamente fundamental à classe dominante para que esta pudesse conduzir a formação social e estatal à sua maneira. A autora expõe que o conceito de nação e nacional no Brasil, reforçando-se o cenário posterior ao ano de 1889, teve as bases de sua construção na produção do discurso jurídico (NEDER, G. 1995). Em análise retrospectiva à ossatura estatal brasileira, Neder (1995) atesta que a presença do Liberalismo no Brasil precede o período Republicano e ainda que houvesse a escravização de seres humanos neste Estado, o fato do Brasil estar ativamente incluído numa rede comercial ultramarina já expunha esta presença. Acontece que posteriormente, com a chamada abolição da escravatura e o fim do período monárquico, a burguesia dominante estava a frente também, de forma simbólica e massificada, da governança e este fato implicou na geração da necessidade de que a sociedade percebesse, de fato, a ruptura para com o período imperial. sumário 62 Marxismo. O início do desenvolvimento de um Capitalismo, de fato, em terras brasileiras alterou também a abordagem do Liberalismo adotada até o fim do Império do Brasil. Com um novo cenário conjuntural no que tange às conquistas de liberdades individuais às pessoas antes escravizadas, em tese, e a própria virada republicana, passou-se a investir na produção de um discurso jurídico mais tomado pelo Liberalismo Europeu. Ou seja, diante da conjuntura do final do século XIX, optou-se por se trabalhar um discurso jurídico no sentido de reforço às liberdades individuais, como se o Estado e os próprios políticos pudessem realizar através da lei a proteção à população de excessos e invasões do Estado aos direitos individuais (NEDER, G. 1995). A consolidação da propaganda estatal burguesa rumava então no sentido de demonstrar alguma ruptura que a República teve em relação ao Império (NEDER, G. 1995), a instrumentalização deste uso do poder de Estado neste sentido pode ser entendido enquanto uma forma empreendida pela burguesia para se blindar de uma possível reação negativa da sociedade brasileira à nova ordem vigente. Em muito se buscou também a realização de mudanças legislativas e procedimentos de reorganização do Estado enquanto método de solidificação da propaganda anteriormente mencionada (NEDER, G. 1995). Ainda se deve destacar a forma como o emprego das ideias de neutralidade e imparcialidade relacionadas à Justiça tiveram uma forte propaganda, no sentido de se camuflar também a ordem autoritária que não caiu junto com o período monárquico na vida estatal brasileira. Gizlene Neder (1995) desenvolve ainda como a legislação foi uma atividade para impulsionar o desenvolvimento do mercado de trabalho, citando que os legisladores da época conseguiram criminalizar o ócio, o trabalho de solidificação do trabalhador enquanto figura oposta ao delinquente foi uma estratégia de motivar os libertos da escravidão bem como os trabalhadores em geral a se manterem competentes em seus postos de trabalho. sumário 63 Marxismo. Entretanto, num balanço acerca das forças que levaram à construção do discurso jurídico em fins do século XIX da forma como se deu, Gizlene Neder (1995) discorda de Florestán Fernandes no que tange ao motor destas transformações. Isto porque Neder, em linhas gerais, enxerga a motivação destas reformas enquanto consequências da necessidade de implementação da própria estrutura capitalista no país. Sendo assim, ainda que existissem práticas e costumes vinculados à moralidade burguesa, isto é, o chamado ethos burguês, este não teria sido preponderante ou protagonista neste processo jurídico-político. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente escrito passou pela investigação de nuances da Sociologia do Direito no Brasil, mais especificamente das vertentes da Sociologia Crítica do Direito, escola de pensamento muito influenciada pelas lições do método do materialismo histórico-dialético, sendo nítido nas obras dos autores escolhidos a influência que a análise conjuntural e a investigação de condições e contradições históricas tiveram no desenvolvimento das pesquisas de Wolkmer e Neder acerca da roupagem que a superestrutura jurídica ganhou no capitalismo periférico brasileiro. Através da análise temática analisou-se de forma qualitativa os textos Pluralismo Jurídico, de Antonio Carlos Wolkmer e Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, de Gizlene Neder. Este método instruiu a forma como se deu a observação de categorias como discurso jurídico, capitalismo, Estado e espaços de poder, de maneira comum em ambos os textos para que se fizesse os apontamentos necessários e fosse buscada a essência da pesquisa de cada autor. Em breve balanço das leituras, nota-se que as similaridades nos levantamentos de Wolkmer e Neder são imensos em virtude do tronco comum referencial, isto é, o emprego do materialismo histórico-dialético. sumário 64 Marxismo. Entretanto, apesar das similaridades, pode-se destacar duas diferenças quando os textos são abordados em comparativa. A primeira é a própria proposta de cada pesquisa, pois enquanto Wolkmer busca trabalhar a evolução histórica do Capitalismo e as consequências práticas do mesmo para chegar à problemática do monismo jurídico na trajetória cultural, Neder busca uma investigação do Capitalismo emergente no Brasil após o início da República, estabelecendo assim uma pesquisa acerca dos aspectos de mudança e permanência do discurso jurídico nesta trajetória. A segunda reside na validade da categoria do ethos burguês para a análise de cada autor, pois Neder (1995) dispensa integralmente esta categoria em sua pesquisa, enquanto Wolkmer (2015), apesar de expressamente demonstrar sua maior afinidade com as proposições de Karl Marx, destaca parcial importância na análise weberiana da categoria. Por fim, é possível e necessário afirmar que ambas as obras versam acerca de pontos muito fundamentais à observação do Direito brasileiro numa ótica crítica, Wolkmer toca em questões mais voltadas à identidade e práticas comunitárias, bem como demonstra a negligência estatal proposital para com estas em função delas não se coadunarem com os interesses oficiais. Neder, por sua vez, é precisa ao relacionar a maneira como as instituições oficiais e os discursos dos ocupantes dos espaços de poder à época reproduziam uma lógica funcional à estrutura vigente, sendo assim um ponto de sustentação daquele Capitalismo que emergia. REFERÊNCIAS BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology. 3(2), 77-101. https://doi. org/10.1191/1478088706qp063oa MADEIRA, Lígia Mori; ENGELMANN, Fabiano. Estudos sociojurídicos: apontamentos sobre teorias e temáticas de pesquisa em sociologia jurídica sumário 65 Marxismo. no Brasil. Sociologias, Porto Alegre , v. 15, n. 32, p. 182-209, Apr. 2013. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222013000100008&lng=en&nrm=iso. acesso em 18 Jan. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222013000100008. NEDER, Gizlene. Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. SOUZA, Luciana Karine de. Pesquisa com análise qualitativa de dados: conhecendo a Análise Temática. Arq. bras. psicol. Rio de Janeiro , v. 71, n. 2, p. 51-67, 2019 . Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672019000200005&lng=pt&nrm=iso. acesso em 18 jan. 2021. http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.51-67. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. sumário 66 4 Matheus de Carvalho Barros Florestan Fernandes nas trilhas do materialismo histórico DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.4 Marxismo. INTRODUÇÃO Acreditamos que o peso relativo das ideias de Marx – e da tradição marxista – no conjunto das concepções teórico-metodológicas de Florestan Fernandes é geralmente subestimado. O marxismo está presente na vida e na obra do sociólogo paulista desde a década de 1940, quando Florestan traduz e escreve uma introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política de Marx, em 1946, a convite de Hermínio Sacchetta, como parte de suas tarefas de militante do Partido Socialista Revolucionário (PSR) – organização trotskista ligada à Quarta Internacional. Entretanto, é somente a partir da década de 1960, na medida em que a posição política e sociológica de Fernandes assume uma postura mais radicalizada – principalmente mediante a sua aposentadoria compulsória da USP em 1969, por efeito do Ato Institucional número cinco (AI-5) – que a relação do sociólogo paulista com a teoria marxista irá se aprofundar. Portanto, o objetivo deste capítulo é localizar a presença e a importância do marxismo em diferentes momentos da trajetória de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX. A INTRODUÇÃO DE 1946 E A “DESCOBERTA” DO MARXISMO Para analisar a relação de Florestan Fernandes com o marxismo no período das décadas de 1940 e 1950, utilizamos como principal referência a já citada introdução feita pelo sociólogo paulista à Contribuição à crítica da economia política de Karl Marx, publicada em 1946 pela editora Flama. Apesar dessa produção ser parte de suas tarefas como militante do Partido Socialista Revolucionário (PSR), Fernandes admite sumário 68 Marxismo. que nela (introdução) se comprometeu muito mais como sociólogo do que como ativista político. Nesse sentido, na introdução de 1946, a preocupação central de Florestan em relação ao marxismo era metodológica. O objetivo do intelectual paulista era analisar a contribuição de Karl Marx e Friedrich Engels para constituição das ciências sociais. Florestan Fernandes (1995) argumenta que do ponto de vista metodológico, a obra de Marx representa uma ruptura profunda com a orientação científica dos economistas políticos clássicos. O chamado Homo Economicus e as abstrações colocadas por Adam Smith e David Ricardo teriam sido violentamente rebatidas e criticadas por Marx, depois de uma minuciosa interpretação das suas raízes histórias e sociais. Segundo Florestan, Marx teria evidenciado que não se tratava apenas de mostrar que a produção é determinada socialmente, mas que, devido esse fato, era preciso considerá-la em sua diferenciação temporal e espacial. Esse fato levaria às questões metodológicas, onde estaria concentrado, na visão de Florestan Fernandes naquele momento, o melhor da herança de Marx às modernas ciências sociais e a contribuição substancial do livro introduzido. Essa contribuição assinalada pelo sociólogo paulista seria a concepção marxiana de que, as leis a que as ciências humanas podem chegar são leis históricas, porque cada período histórico se rege por suas próprias leis. Para Fernandes (1995), com essa ideia, Marx quer demonstrar que as leis econômicas se manifestam enquanto duram as relações sociais que as expressam. Ou seja, as leis econômicas são produtos históricos e transitórios. Sistematizando as contribuições do método introduzido por Marx, Florestan (1995) aponta para três consequências específicas. A primeira seria a concepção de que as leis sociais e econômicas só são válidas para determinadas formações sociais e durante um período determinado de seu desenvolvimento. Em segundo lugar, está a concepção de que apesar de existir regularidades nos fenômenos sociais, a vontade sumário 69 Marxismo. humana é capaz de inverter os acontecimentos históricos. A terceira consequência seria a noção de que os fenômenos sociais se articulam entre si por conexões íntimas. Nesse sentido, o argumento é que a produção, a troca e o consumo, por exemplo, fazem parte de uma “totalidade”. E é importante salientar que a partir desse diálogo com o Marx da Contribuição à Crítica, a categoria de “totalidade” passa a assumir um papel cada vez mais importante na sociologia de Florestan. Desta forma, pode-se observar que, em sua empreitada para consolidar a sociologia como ciência no Brasil, a preocupação de Florestan Fernandes neste período é relacionar as contribuições desta obra de Marx com a construção do campo em formação das ciências sociais no país. Portanto, é possível identificar que na introdução de 1946 a temática do método tem centralidade. Refletindo sobre os seus escritos no período entre 1942 e 1960, Florestan (1976) admite que naquele momento de sua trajetória não pode ligar a sua condição de socialista à sua condição de sociólogo. Segundo Eliane Soares (1997), neste período, as preferências políticas do professor da Universidade de São Paulo ficavam fora de sala de aula. Florestan exercia uma militância política que estava dissociada da sua atividade acadêmica. Em entrevista à autora de Florestan Fernandes – o militante solitário (1997), Antônio Cândido, amigo e companheiro de Florestan, afirma que: Na faculdade nós estávamos sempre juntos, discutindo os problemas da universidade. Eu me lembro que nós nos perguntávamos muito se o professor tinha o direito de transmitir nas suas aulas as suas ideias políticas aos alunos. Naquele tempo, pelo que eu me lembre, nós achávamos que não. A atividade política ficava do lado de fora da universidade. De maneira que a nossa atividade era na verdade muito despolitizada, era apenas profissional (CANDIDO Apud. SOARES, 1997, p. 32). Também em depoimento à Eliane Soares, Fernando Henrique Cardoso dá o seu ponto de vista como aluno de Florestan Fernandes: sumário 70 Marxismo. Quando eu conheci o Florestan em 1948-49, Florestan era professor assistente de Sociologia I (...) nessa época o Florestan era a imagem viva do cientista. Ele queria ser um cientista na acepção que se dava naquela época a esta expressão na Sociologia. Florestan andava de avental branco. Aliás, todos andavam para demonstrar que faziam parte da ciência e não do ensaio, da literatura (...) A bibliografia que ele nos dava era um pouco de Durkheim, um pouco de Weber, muito de Mannheim, algo de um autor que não se usa mais, chamado Freyer, e muito entusiasmo pela sociologia como ciência empírica. Ele usava essa expressão: ciência empírica. Quem aparecia para nós como alguém que tinha a ver com o mundo contemporâneo, não era o Florestan, era o Antônio Cândido. O Antônio Cândido era socialista. Ele foi filiado ao Partido Socialista. Florestan só veio nos falar de problemas desta natureza alguns anos depois, quando nós estávamos na Maria Antônia (...) nós sabíamos que o Florestan tinha sido simpatizante da esquerda. Ele foi simpatizante do trotskismo. Havia um amigo chamado Sacchetta que era trotskista. Florestan tinha alguma relação, mas isso não aparecia nas aulas, nada. Nem na ação. Ele estava dedicado a fazer da Sociologia uma ciência (CARDOSO Apud. SOARES, 1997, p. 32-33). Portanto, ao longo da década de 1940, Florestan Fernandes fez em seu itinerário a descoberta das ciências sociais, dedicou-se de modo profundo, sistemático e criterioso à sua formação intelectual. Paralelamente a isso, como assinala Soares (1997), o intelectual paulista experimentou a militância política. Entretanto, não havia relação entre as duas atividades naquele momento de sua vida. Nesse período, no campo teórico, Florestan estava mais voltado para o uso de autores funcionalistas, tanto da escola francesa quanto da escola inglesa e Norte-Americana. Como destaca Fernando Henrique Cardoso, o Florestan que construiu a nossa geração era um Florestan teórico do Funcionalismo (CARDOSO Apud. SOARES, 1997, p. 66). Nesse momento específico de sua trajetória o funcionalismo pode ser localizado em sua dissertação de mestrado intitulada “A organização social dos Tupinambás” de 1947, em sua tese de doutorado “A função da Guerra na Sociedade Tupinambá” de 1951, sumário 71 Marxismo. e em sua tese de livre-docência sobre o método de interpretação funcionalista nas ciências sociais, escrita em 1953. Assim sendo, é possível argumentar que no período entre a década de 1940 e o início da década de 1960, Florestan Fernandes já conhecia Marx e se identificada politicamente com o socialismo. Contudo, é somente a partir de meados dos anos 1960 que Florestan Fernandes irá passar por um processo de radicalização de suas posições políticas e sociológicas. Nesse sentido, a preocupação e a apropriação de Marx e do marxismo passou a ter uma nova conotação por parte do sociólogo paulista. Torna-se necessário analisar os fatores que levaram o intelectual estudioso do funcionalismo a se aprofundar na análise marxista. A APOSENTADORIA COMPULSÓRIA E O PROCESSO DE RADICALIZAÇÃO Diogo Costa (2007) aponta que, a partir da segunda metade da década de 1960, o marxismo passa a ter outra conotação na vida e na obra de Florestan Fernandes. Conotação essa que não é apenas sociológica, mas fundamentalmente ligada à uma práxis política socialista e à investigação das forças sociais capazes de contribuir para a destruição da ordem social capitalista no Brasil. Desta forma, torna-se necessário analisar alguns fatores que contribuíram para esse processo de radicalização do intelectual paulista. Segundo Eliane Veras Soares (1997), alguns fatores foram decisivos neste momento específico da trajetória de Florestan Fernandes. Em primeiro lugar, a professora da UFPE destaca os fatores no campo acadêmico. A mudança temática de Florestan a partir dos estudos sobre os negros e, em especial, com os projetos de pesquisa que foram desenvolvidos por meio do CESIT, colocou Fernandes a frente sumário 72 Marxismo. de problemas sociais emergentes. Fernando Henrique Cardoso também destaca que o estudo sobre os negros significou a introdução da problemática das “classes sociais” nos estudos do professor da USP. Nessa perspectiva, o próprio Florestan Fernandes avalia a importância desses estudos para novo rumo de sua vida intelectual e política: A pesquisa (sobre os negros em São Paulo), no entanto, foi algo de fascinante porque apesar de tudo o que se sabe sobre a vida das pessoas pobres no Brasil e da identificação que o intelectual pode ter com a ida dessas populações, eu me senti tão compensado com o fato de estar fazendo aquela pesquisa, que aquilo tudo deu um novo sentido à sociologia para mim (e deu um sentido ao meu trabalho e ao que eu pretendia fazer com a pesquisa sociológica) (FERNANDES, 1978, p. 94). Ainda sobre o aspecto acadêmico, outro fator que causou impacto em Florestan Fernandes foi a dinâmica intelectual promovida pela nova geração de intelectuais da USP, constituída em grande parte por assistentes e ex-alunos do próprio Florestan. Após dois anos de doutorado na França, em 1958, José Arthur Giannotti volta para o Brasil e ao lado de Fernando Henrique Cardoso idealiza a formação de um grupo de estudos que se iniciou com a leitura sistemática de O Capital. Além de Giannotti e Cardoso, nomes importantes da intelectualidade brasileira faziam parte do grupo como Octavio Ianni, Paul Singer, Fernando Novaes e Ruth Cardoso. O chamado “grupo de Marx” assumiu um importante papel na introdução do marxismo na academia brasileira. Segundo Soares (1997), o marxismo, até o início dos anos 60, não tinha espaço definido na Universidade. Florestan Fernandes e Antônio Cândido utilizavam alguns textos de Marx em seus cursos, mas a introdução sistemática da dialética e do materialismo nos cursos regulares se deu inicialmente por FHC e Otavio Ianni. sumário 73 Marxismo. Florestan Fernandes é impactado e consegue tirar proveitos das contribuições teóricas realizadas pelos seus ex-alunos. O sociólogo paulista sentiu a necessidade de reciclar a sua concepção de sociologia e redefinir o que vinha admitindo como sociólogo. Segundo Florestan (1976), diante dele estava um grupo orgânico de sociólogos e pesquisadores, os quais se dispunham a interpretar o Brasil e a periferia à luz de novas categorias sociológicas. E nesse sentido, o professor da USP sentia a necessidade de refazer as suas metas para ter o direito de continuar à testa do grupo (FERNANDES, 1976, p. 172). Por fim, o outro fator decisivo no processo de radicalização de Florestan Fernandes está vinculado à própria dinâmica do processo histórico que culminou com o seu afastamento compulsório da universidade. Em dezembro de 1968, o presidente Costa e Silva assinou o Ato Institucional nº 5 (AI-5). Aplicado à Universidade de São Paulo, o ato levou à aposentadoria compulsória Floresta Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paulo Duarte, José Arthur Giannotti, Paul Singer, entre outros, em abril de 1969 (SOARES, 1997). Como nos aponta Eliane Soares (1997), esse fato constitui um marco, não só para a universidade brasileira, mas também para a vida de Florestan. O afastamento da USP representou para Florestan a perda de um referencial institucional e ao mesmo tempo, libertou-se das “amarras” da profissionalização do sociólogo. E é a partir desse momento que o sociólogo paulista mergulha nos estudos dos pensadores marxistas. Em seu exílio no Canadá, Florestan imerge na pesquisa sobre os processos revolucionários ocorridos na Rússia, China e Cuba. O intelectual paulista procurou aprofundar os seus conhecimentos sobre o tipo de capitalismo dependente surgido na América Latina, e se dedicou, como dito anteriormente, aos estudos dos clássicos do marxismo, tendo organizado e introduzido uma coletânea de textos políticos de Lenin, depois publicada pela editora Ática, em 1978 (COSTA, 2011). sumário 74 Marxismo. Portanto, no Canadá, Florestan Fernandes se assume como marxista. Em entrevista à revista Teoria e Debate o sociólogo afirma que: eu só me tornei abertamente um professor marxista quando eu fui para o Canadá. Aí já tinha rompido com as instituições. No Canadá, eu polarizei (FERNANDES Apud. SOARES, 1997, p. 78). Segundo Lidiane Rodrigues (2016), neste contexto, estando relativamente livre dos constrangimentos materiais de sua juventude e das obrigações institucionais de sua maturidade, gozando de um prestígio de integridade intelectual e política que outrora pressupunha distância da política partidária e panfletária, Florestan Fernandes “reconstrói” um Marx igualmente livre daquele regime anterior de suas obrigações. Nessa perspectiva, Rodrigues (2016) argumenta que o Marx do “velho Florestan” é mobilizado para colocar contra a parede as instituições científicas, a sociologia acadêmica e os intelectuais, e defender a revolução como critério de autonomia científica, atestada junto à classe trabalhadora revolucionária. A partir desse momento de sua trajetória, o equilíbrio precário entre o sociólogo e o socialista já não mais poderia ser mantido. Florestan constrói uma nova concepção revolucionária e marxista de ciência. Como assinalado anteriormente, o marxismo passa a ter outro sentido na obra do sociólogo paulista. A tradição teórica oriunda de Karl Marx passa a ter uma conotação não apenas sociológica, mas fundamentalmente ligada à práxis política socialista e à investigação das forças sociais capazes de contribuir para a destruição da ordem capitalista no Brasil. Seria na década de 1970 que tais mudanças iriam ficar mais nítidas no horizonte intelectual de Florestan Fernandes, com a exigência sempre mais crescente de iluminação recíproca entre sociologia e socialismo (COSTA, 2007, p. 24). sumário 75 Marxismo. MARXISMO, CAPITALISMO DEPENDENTE E REVOLUÇÃO BURGUESA No processo de radicalização do sociólogo paulista, a forma com que Florestan concebia o desenvolvimento sócio histórico brasileiro sofre algumas alterações fundamentais. Uma dessas mudanças pode ser visualizada na maneira como Fernandes passa a relacionar os termos “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”, a partir da construção do conceito de Capitalismo Dependente. Segundo Antônio Brasil júnior (2017), a introdução do constructo “capitalismo dependente” na obra do ex-professor da USP a partir do fim da década de 1960, faz com que Fernandes passe a conceber uma “conjugação crônica” (termo de Florestan) entre “subdesenvolvimento” e “sociedade de classes”. Nesse sentido, para o professor da UFRJ, a elaboração deste conceito permitiu uma verdadeira virada na análise sociológica de Florestan Fernandes em pelo menos três aspectos. O primeiro aspecto seria a necessidade de articular elementos “internos” e “externos” às sociedades, com ênfase nos dinamismos socioeconômicos. Essa articulação específica também levaria a uma imbricação entre elementos ditos “arcaicos” com elementos “modernos”. Em um segundo plano estaria a requalificação da atuação limitada da burguesia brasileira diante das condições do “capitalismo dependente”. Por fim, estaria a caracterização da natureza autocrática da transformação capitalista engendrada pelas condições de dependência. Nesse sentido, para Florestan Fernandes, a transformação capitalista no Brasil estaria associada não à correção, mas com o agravamento da monopolização de renda, do prestígio e do poder político (BRASIL JR, 2017). A despeito de já utilizar a noção de “dependência” em seus textos desde a década de 1950, como nos aponta Brasil Júnior (2017), ela só assume real importância na obra de Florestan a partir do artigo sumário 76 Marxismo. Sociedade de Classes e subdesenvolvimento, escrito no final de 1967. Para Antônio Brasil, doravante este ensaio, há uma maior sistematização entre os elementos “internos” e “externos” nas análises de Florestan. Desta forma, passa a se impor uma necessidade de articular num mesmo andamento explicativo as condições locais e globais, com o objetivo de avaliar o peso dessa articulação para o dinamismo do sistema social. Essa articulação implicaria na formação de uma economia duplamente polarizada, ou seja, destinada a garantir de uma só vez a acumulação de capital tanto para as burguesias nacionais quanto para as burguesias dos países de capitalismo hegemônico. Desse modo, o sociólogo paulista demonstra que no contexto da periferia teria ocorrido uma inversão do processo “clássico” de formação capitalista. Pois, em vez de contar com o suporte de uma “acumulação primitiva”, como havia formulado Marx, a revolução burguesa no Brasil seria realizada a partir de condições muito mais adversas (BRASIL JR, 2017). Uma das especificidades desse tipo de transição para o capitalismo seria a ausência de autonomia das burguesias dependentes, já que, sozinhas, elas não teriam “força histórica” suficiente para desencadear uma revolução nacional e democrática. Segundo Antônio Brasil (2017), Florestan Fernandes demonstra que a consequência decisiva da associação das burguesias dos países periféricos com as burguesias dos países hegemônicos residiria no fortalecimento das estruturas socioeconômicas arcaicas. Ou seja, a própria conexão com os fatores “externos”, que garantia a incorporação do capitalismo ao nível das relações sociais “internas”, reforçaria, em vez de liquidar, o legado colonial. Portanto, Florestan (1974a) argumenta que a transformação capitalista no Brasil se liga, assim, a revitalização e à intensificação de privilégios que pareciam condenados pelo capitalismo e que muitos supunham banidos da cena histórica pela revolução burguesa. Analisando as particularidades da transformação capitalista na periferia, em 1975, Florestan Fernandes publica umas de suas obras sumário 77 Marxismo. mais importantes que, segundo Carlos Nelson Coutinho (2000), é o primeiro texto onde o marxismo é assumido explicitamente como ponto de vista metodológico pelo sociólogo paulista. Refiro-me aqui à Revolução Burguesa no Brasil. Para José de Souza Martins (2006), o livro em formato de ensaio ganha sentido no ambiente intelectual do debate brasileiro sobre o tipo de sociedade capitalista que estava se desenvolvendo no Brasil. Desta forma, A Revolução Burguesa poderia ser vista como o último grande estudo do ciclo de reflexões históricas e sociológicas abrangentes, sobre o destino histórico Brasil. Segundo Martins (2006), A Revolução Burguesa no Brasil equivale, em certo sentido, á O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia de Lenin, um marco nos estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo em sociedades diferentes da Europa Ocidental. José de Souza argumenta que a interpretação de Florestan sobre o processo da lenta e complicada revolução burguesa no Brasil tem um dos seus aspectos mais positivos o distanciamento de um marxismo determinista e engessado. Em outras palavras, o marxismo de Florestan Fernandes se contrapôs a todo de tipo de vulgarização da tradição oriunda de Marx que propõe uma concepção de história regida por etapas inexoráveis, segundo um modelo abstrato de processo histórico (MARTINS, 2006, p. 18). Modelo esse que corresponderia a um etapismo mecanicista e a uma visão antidialética da realidade. O MATERIALISMO HISTÓRICO COMO CIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA A partir da publicação de A Revolução Burguesa no Brasil, em 1975, a questão do socialismo não se constituía mais como um assunto entres outros na obra de Florestan Fernandes. Como nos aponta Caio sumário 78 Marxismo. Navarro de Toledo (1998), para Florestan – particularmente nas últimas décadas de sua produção intelectual -, o socialismo era, a rigor, uma questão vital e decisiva em sua obra. Mais do que isso, o socialismo era uma questão existencial, na qual Florestan Fernandes se dedicou integralmente do ponto de vista ético, político e intelectual (TOLEDO, 1998). Em meados dos anos 70, Florestan passa a produzir de forma mais intensa e sistemática trabalhos de análise política. Segundo José Paulo Netto (1987), numa reconstrução teórico-revolucionária da constituição da formação social brasileira, faz emergir um pensador que, a partir de então, se dedica também a tematizar aspectos internos da teoria marxiana e marxista. Nesse sentido, o tema do socialismo consolida-se de forma definitiva em seus escritos, particularmente na sua fase assumidamente publicista (nos artigos de jornais, revistas, conferências, simpósios etc.) (TOLEDO, 1998). Nesse período, destacam-se as obras: Circuito fechado de 1976; Da Guerrilha ao Socialismo: a revolução cubana de 1979; Brasil em Compasso de Espera de 1980; O que é Revolução de 1982. Caio de Toledo destaca que, em sua militância, Florestan Fernandes jamais abdicou das armas da crítica, da razão analítica e dos recursos da dialética. Nessa perspectiva, a defesa do socialismo não era realizada somente a partir de um ponto de vista ético-humanista. Florestan a fazia a partir de uma rigorosa análise do capitalismo e de suas irreconciliáveis contradições. Desse modo, A defesa apaixonada do socialismo na escrita do sociólogo, do publicista e do tribuno esteve, assim, sempre apoiada em pesquisa empírica e sólida argumentação teórica, nunca se confundindo com a propaganda ou com a demagogia típicas de certos populismos teóricos, ainda vigentes em alguns setores da esquerda (TOLEDO, 1998, p. 60-61). Neste contexto, Lincoln Secco (1998) salienta que o mais impressionante nas avaliações políticas de Florestan Fernandes era justamente a “simbiose” entre o publicista engajado, político e homem de sumário 79 Marxismo. ação, preocupado com a persuasão de seus leitores, e o sociólogo, o cientista, compromissado com a análise objetiva da realidade concreta. Secco argumenta que, desta forma, a sociologia de Florestan funcionava como uma “previsão”, no sentido que Antônio Gramsci conferiu ao termo, ou seja, “como um programa que visa superar a ordem social competitiva e estabelecer o socialismo” (SECCO, 1998, p. 77). Florestan Fernandes escreve em 1983 uma introdução à coletânea de escritos de Marx e Engels sobre a história, pela coleção dos grandes cientistas sociais da editora Ática. Segundo Diogo Costa (2007), essa seria, enfim, a obra mais importante para entender a relação do Florestan “maduro” com o marxismo. Nesse momento específico de sua trajetória, a assimilação principal que o sociólogo paulista fará do marxismo se dá em termos do resgate da concepção de revolução ou da edificação de uma teoria revolucionária. Costa (2007) aponta que a leitura detida dos clássicos e dos teóricos marxistas mais atuais possuiria, no caso, esse objetivo mais fundamental de pensar as especificidades da revolução socialista no Brasil e na América Latina. Nesse sentido, não somente na introdução à coletânea de Marx e Engels sobre a história, mas também na introdução da coletânea de escritos de Lenin publicada em 1978, assim como em alguns pequenos textos de intervenção, os aspectos tratados por Florestan Fernandes são justamente os que enfatizam a constituição do materialismo histórico como uma teoria revolucionária. Florestan (1983) começa a introdução aos escritos de Marx e Engels afirmando que o propósito que o anima consiste em recapturar as ideias centrais dos revolucionários alemães sobre a “ciência da história”. Na leitura do sociólogo paulista, Marx e Engels trabalharam em direção oposta à fragmentação do trabalho científico, defendendo uma concepção unitária de ciência e representando a história como uma ciência de síntese. sumário 80 Marxismo. Florestan Fernandes (1983) argumenta que a crítica da especulação filosófica, da dialética hegeliana, da economia política e do socialismo utópico converteu Marx e Engels em fundadores das ciências sociais. Na concepção do ex-professor da USP, tanto Marx quanto Engels compartilharam uma situação incontestável como criadores do conhecimento científico nessa esfera do pensamento e coube-lhes encarnar, na história das ciências sociais, os interesses e as aspirações revolucionárias das classes trabalhadoras (FERNANDES, 1983, p. 11). Para Florestan (1983), a conexão entre ciência social e revolução no século XIX encontra em Marx e Engels os seus representantes mais completos, íntegros e corajosos. Mas não é apenas isso. Os comunistas alemães teriam levado essa relação às últimas consequências, resolvendo a equação do que deve ser a investigação científica quando esta rompe com os controles conservadores externos ou internos ao pensamento científico propriamente dito. Portanto, Fernandes argumenta que Marx e Engels legaram às ciências sociais um modelo de explicação estritamente objetivo e intrinsecamente revolucionário. Portanto, na concepção do sociólogo paulista, Marx e Engels teriam inaugurado um tipo de pesquisa histórica revolucionária, em sua forma e em seu conteúdo. Fernandes (1983) defende a necessidade urgente e permanente de dar continuidade a esse padrão específico de trabalho científico inaugurado pelos autores alemães, e aprofundar o significado de suas descobertas teóricas na ciência atual. Em A atualidade de Marx, texto escrito no mesmo ano da introdução à coletânea de Marx e Engels, analisando a relação entre marxismo, ciência e revolução, Florestan Fernandes (1983) advoga o desenvolvimento de uma ciência social histórica que combine, intrínseca e objetivamente, “a crítica de si mesma com o conhecimento crítico da ordem existente. Florestan (1983) defende uma ciência social que se manifeste como: teoria e prática, como expressão autêntica da verdadeira ciência em sua capacidade de transcender ao enquadramento ideológico sumário 81 Marxismo. burguês e de fazer parte do movimento que abale o presente estado de coisas, isto é, de ser comunista, de identificar-se com a situação de interesses da classe dos trabalhadores e com o que ela significa para o advento e o desenvolvimento de um novo ciclo histórico revolucionário” (FERNANDES, 1983, p. 37). Desta forma, nesses textos, Fernandes quer demonstrar que o marxismo desenvolve um padrão integrativo de ciência ou de conhecimento sócio-histórico e político, envolvendo a apreensão da realidade em diferentes níveis interdependentes. Florestan Fernandes destaca, sobretudo, que a junção entre teoria e prática proposta pela tradição oriunda de Karl Marx, permite que a ciência assuma um caráter instrumental a serviço da revolução social. Nesse sentido, a capacidade de apanhar a história em processo era vital para questionar se um dado direcionamento da ação política poderia ter eficiência no aprofundamento da revolução democrática e na construção do socialismo (COSTA, 2011, p. 17). Portanto, como nos aponta José Paulo Netto (1987), na produção teórica de Florestan Fernandes no pós Revolução Burguesa, a problemática da revolução é central. Netto (1987) argumenta que as condições históricas-sociais sob as quais Florestan recuperou Marx e o marxismo é que determina estre traço pertinente de sua produção intelectual. Estamos de acordo com concepção de José Paulo Netto (1987), na qual o privilégio da revolução significa em Florestan que a obra de Marx é toda ela interpretada em função da prática política. Segundo o professor emérito da UFRJ, Florestan não pensa Marx senão como teórico da revolução (NETTO, 1987, p. 300). É óbvio que, em toda sua riqueza teórica-crítica, Florestan Fernandes não reduz a problemática da obra marxiana e marxista à categoria da revolução. Porém, dentro do contexto do embate contra a ditadura civil-militar, o sociólogo paulista repugnou qualquer elaboração teórica marxista que descentre a questão da ação política revolucionária. sumário 82 Marxismo. CONCLUSÃO Uma das discussões mais recorrentes em torno da obra de Florestan Fernandes tem sido o debate sobre o lugar do marxismo no horizonte teórico do sociólogo paulista. A maioria dos comentadores de sua obra aceita a noção de que a herança de Marx se configuraria como mais uma das perspectivas, dentre outras, da explicação sociológica presente no pensamento teórico de Florestan. Contudo, a partir desta breve incursão por alguns aspectos da trajetória e da obra do mais importante sociólogo brasileiro, é possível argumentar que a sociologia de Florestan Fernandes sofreu um profundo e constante impacto do marxismo. Se em um primeiro momento de sua trajetória – mais especificamente na empreitada de consolidar a sociologia como uma ciência no Brasil – a relação de Florestan Fernandes com o marxismo residia na preocupação de identificar as contribuições metodológicas de Marx às ciências sociais, em um segundo momento de sua vida o sociólogo da USP irá ressignificar essa relação. Após a sua aposentadoria compulsória da Universidade de São Paulo por efeito do AI-5, em abril de 1969, Florestan passa a ter no marxismo a sua principal base (mas não a única) teórico-metodológica. Entretanto, essa nova conotação assumida pela herança de Marx na obra de Florestan Fernandes não era apenas sociológica. Ela também estava fundamentalmente ligada a uma práxis política socialista e a investigação das forças e dos agentes sociais que seriam capazes de contribuir para a destruição da ordem capitalista no Brasil. Portanto, analisar a trajetória de Florestan Fernandes, sobretudo as suas obras mais “maduras”, significa mergulhar em um dos capítulos mais relevantes da incorporação do marxismo nas ciências sociais brasileira. sumário 83 Marxismo. REFERÊNCIAS BRASIL JR, Antônio. Capitalismo dependente: todos os passos de um conceito de Florestan Fernandes. Cartografias da crítica, Teoria, Sociologia e Antropologia Críticas no Brasil e na América Latina. Disponível em: https:// blogdolabemus.com/2017/08/03/capitalismo-dependente-todos-os-passos-de-um-conceito-de-florestan-fernandes-por-antonio-brasil-jr .2017 COSTA, Diogo V. de A. O marxismo na sociologia de Florestan Fernandes. Disponível em: http://201.48.149.89/anpocs/arquivos/15 10 2007 11 0 31.pdf. 2007. COSTA, Diogo V. de A . Florestan Fernandes e os dilemas do subdesenvolvimento capitalista: a sociologia como crítica da dependência cultural. In: II Conferência sobre o Desenvolvimento (Code/Ipea), 2011, Brasília. Anais do I Circuito de Debates Acadêmicos (Code 2011). Brasília: IPEA, 2011. COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes. In: Id., Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e imperialismo (1974) In: Em busca do socialismo. Últimos escritos e outros textos. São Paulo: Xamã, 1995, p.139-144. FERNANDES, Florestan. 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INTRODUÇÃO Este artigo irá trabalhar a construção do Direito brasileiro, saindo de sua concepção monista lógico-liberal para uma interpretação pluralista e que atenda, de forma eficaz, às questões relativas aos direitos sociais no Brasil. Como marco teórico para o desenvolvimento deste artigo, utilizamos os conceitos de pluralismo jurídico e ineficácia jurídica, apresentados por Antonio Carlos Wolkmer em sua obra. Pretende-se, portanto, fazer uma correlação destes conceitos com a concepção histórica e social do Direito e suas mudanças ao longo dos anos. Os objetivos principais são identificar as ferramentas de análise e as propostas de discussões do Direito enquanto um vetor de sociabilidade no Brasil, trazidos na obra Pluralismo Jurídico. Entre os objetivos específicos estão a identificação da construção histórico-sociológica do Direito levantada pelo autor, o reconhecimento de novas demandas dos direitos sociais e como estas não são atendidas pelo Direito brasileiro e, por fim, analisar como a sociedade, ao exercer sua cidadania, busca por ampliar o Direito, tornando-o mais pluralista e capaz de atender suas necessidades. O Direito brasileiro, assim como diversas outras superestruturas que formam nossa sociedade, sofreu fortes influências de países Europeus e Norte-americanos. O processo de colonização portuguesa condicionou o Brasil a se vincular durante anos com uma cultura, história e educação que era diversa do seu povo originário. Como consequência, foi imposta uma institucionalidade liberal-burguesa extremamente positivista e o Direito, como um ramo das ciências sociais aplicadas, também incorporou essas raízes em sua criação. A cultura jurídica brasileira é, então, pautada por uma forte lógica kelseniana, monista e formalista. Usando esta lente analítica da formação do Direito brasileiro, Antonio Carlos Wolkmer propõe um sumário 87 Marxismo. novo olhar sobre o Direito, buscando a ascensão de um Direito pluralista que seja capaz de se comunicar com a sociedade brasileira e seus problemas jurídicos. Em sua obra Pluralismo Jurídico, o autor expõe como as raízes do nosso Direito fazem com que este se desenvolva de forma antagônica à sociedade, não sendo capaz de atender às novas demandas que surgem, principalmente no que tange aos direitos sociais. É justamente por ter sido moldado por uma cultura diversa e fechada às práticas comunitárias pluralistas que ocorre uma ineficácia do judiciário para responder às questões sociais e coletivas. Sabendo deste descompasso entre a fundação do Direito e suas demandas, este artigo tem como escopo analisar o novo processo de construção do Direito brasileiro. Portanto, Wolkmer leva o leitor a compreender que alguns dos problemas atuais mais importantes do direito brasileiro, como a ineficiência jurídica e a dissonância entre o judiciário e os direitos sociais, têm sua origem em uma base histórica. A formação do Direito não foi elaborada para se adequar ao país e sim a uma lógica burguesa europeia. Apesar disso, há um movimento que busca adequar melhor o Direito à realidade, principalmente se tratando dos direitos sociais e suas novas amplitudes, como o Direito ambiental, da mulher e referente a igualdade econômica. É desejando estudar a transformação do Direito e como se dá esta construção para se adequar à nova realidade que nasce a premissa deste artigo. A ANÁLISE TEMÁTICA COMO MÉTODO Ao escolher a análise temática como método de pesquisa buscou-se aplicar o método pensado por Virginia Braun e Victoria Clarke (2006). As autoras originalmente aplicaram essa metodologia de pesquisa no campo da Psicologia, ao estabelecer e analisar os padrões sumário 88 Marxismo. encontrados nos dados qualitativos por elas identificados. No presente artigo, a escolha da obra para analise quantitativa do tema que esta aborda foi o livro Pluralismo Jurídico, de Antônio Carlos Wolkmer (2015). Para a melhor exposição dos temas abordados por Wolkmer foi adotado os passos a passos de pesquisa esboçados por Luciana Karine de Souza (2019), que consiste subdividir a leitura da obra escolhida em 3 etapas. Para a primeira, há um contato inicial com a obra do autor e as fontes principais por ele trabalhada, por meio de uma leitura dos textos base que Wolkmer utiliza para desenvolver sua tese. Em um segundo momento foi destrinchar os dois temas principais que a obra aborda, neste caso o Direito e a Sociologia. Quanto ao direito, Wolkmer analisa a pluralidade das fontes informais da produção social normativa, sendo esta denominada Pluralismo Jurídico. No que se tange ao critério sociológico, o autor desenvolve a relação entre os sujeitos sociais e o novo fluxo de poder e como essa interação afeta as práticas do dia a dia e por conseguinte a produção normativa. Por fim, foram criados códigos iniciais e uma busca pelos temas acima descritos na literatura para corroborar ou contra argumentar a tese inicial proposta por Wolkmer. A análise temática, portanto, como método de pesquisa busca absorver ao máximo a tese do autor sem alterar o seu conteúdo. Sendo possível assim, selecionar dentro da obra do autor um tema central o qual será intensamente abordado neste artigo. A escolha do recorte temático foi “A ineficiência jurídica e os conflitos socais”, tema este abordado por Wolkmer no seu livro o Pluralismo Jurídico. O objetivo, portanto, é compreender a lógica do autor na construção da sua teoria de como o pluralismo jurídico é capaz de trabalhar na ineficiência jurídica e nos conflitos sociais e para concretiza-lo foi escolhido o método de análise temática. sumário 89 Marxismo. O CENÁRIO DE EMERGÊNCIA DO DIREITO BRASILEIRO O Brasil, durante o seu processo de formação enquanto nação, bebeu diretamente de fontes europeias e norte-americanas como base para a construção de sua identidade. Neste período, os traços culturais, os valores, éticos e morais já estabelecidos pela civilização aqui já existente foram suprimidos em ordem da construção de um país colonial. O Direito brasileiro não foi uma exceção deste processo. A formação da sua base principal, civil, penal e constitucional foi inteiramente criada com a perspectiva de análise de juristas europeus e estadunidenses. Por consequência, as normas e doutrinas criadas por estes juristas, apesar de pioneiras e brilhantes, refletiam os costumes, a cultura e, principalmente, os problemas, de uma população em especifico, não englobando a pluralidade étnica e cultural percebida no Brasil. O Direito, por ser uma ciência social aplicada é, em sua essência, um reflexo da sociedade em que ele se encontra. Suas normas, burocracias e jurisprudências são criadas para uma população e por uma população, com demandas e pensamento específicos. Essas demandas e pensamento refletem a sociedade a qual essa norma está inserida. Assim, temos que o Direito é criado por indivíduos com demandas específicas de problemas e se espera que este Direito criado por eles possa trazer a resolução de conflitos de maneira eficaz e equânime. É justamente nesta relação entre criação do Direito e as demandas da população a qual ele deve atender que Wolkmer destaca um dos principais aspectos da ineficiência do judiciário brasileiro. Como já exposto, o cenário de construção deste judiciário é baseado nas tradições europeias e estadunidenses, assim a cultura jurídica brasileira é marcada por tradição monista de forte influxo kelseniano, ordenada em um sistema lógico-formal de raiz liberal burguesa, cuja sumário 90 Marxismo. produção transforma o Direito e a Justiça em manifestações estatais exclusivas (WOLKMER, A. C. 2015, p. 103). Esta forma de produção jurídica foi implantada por todo o país, negligenciando-se as culturas originárias e os povos que para o Brasil migraram, seja de forma livre ou forçada. O Direito brasileiro foi formado por uma elite que não o construiu para a população brasileira em sua pluralidade. As elites detentoras da mão de obra escrava (indígenas e negros), construíram um Estado completa- mente desvinculado das necessidades da maioria de sua população, montado para servir tanto aos seus próprios interesses quanto aos do governo real da Metrópole, os colonizares e a aristocracia rural desconsideram as práticas jurídicas mais antigas de um direito comunitário, nativo e consuetudinário, impondo uma cultura legal proveniente da Europa e da Coroa Portuguesa. (WOLMER, A. C. 2015, p. 90) Desta forma há um forte desencontro entre o cenário brasileiro e o cenário para o qual esse direito europeu e estadunidense foi originalmente proposto, pois no Brasil, o que se percebe é uma sociedade colonizada, ancorada em um capitalismo periférico, marcada por fortes desigualdades sociais, exploração econômica, dominação política e conflitos coletivos causados pela reedificação populacional de seus direitos fundamentais (WOLKMER, 2015). O oposto ocorre nos países onde as teorias e doutrinas jurídicas foram criadas, isto é, as realidades europeia e estadunidense revela uma sociedade que reconhece e usufrui de seus direitos sociais e civis, com uma forte economia, cultura reconhecida e tradição que é modelo para os demais países do mundo. Se o Direito nasce para ordenar a uma sociedade, este, por sua vez, deve ser compatível com ela. Wolkmer (2015) apresenta como esta incompatibilidade, no cenário brasileiro, fez com que o Direito técnico-dogmático, calcado em procedimentos lógicos e formais criados na Europa, seja incapaz de atender e acompanhar os dilemas da sociedade brasileira. O Direito e toda a norma jurídica aplicada no Brasil é, na visão do autor sumário 91 Marxismo. Incapaz de acompanhar o ritmo das transformações sociais e a especificidade cotidiana dos novos conflitos coletivos. A instância de decisão não só submissa e compromissada com a estrutura de poder dominante, órgão burocrático do Estado, retórico e inerte, de perfil fortemente conservador e de pouca eficácia na solução rápida e global de questões emergenciais vinculadas, quer às reivindicações dos múltiplos movimentos sociais, quer aos interesses das maiorias carentes de justiça e da população privada de seus direitos. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 106) Ou seja, a cultura brasileira é marcada por uma tradição monista, kelseniana, ordenada por uma lógica liberal-burguesa, é pouco eficiente em atender os procedimentos formais na hora de solucionar os problemas da população como um todo. Como efeito, há um distanciamento entre aquilo que está posto na lei e sua real aplicabilidade. A ineficácia é em atender as demandas da população e também em produzir normas que alteram o convívio social de forma coesa (WOLKMER, 2015). Assim, a disparidade entre a produção de normas e a aplicabilidade daquilo que ela protege acontece. Se há na lei o que é necessário à proteção e aplicabilidade dos direitos sociais e civil, há na prática uma incapacidade do Estado, nas esferas do Judiciário e do Legislativo, em garantir que esses direitos cheguem até a população de forma efetiva. Assim, infere-se que o cenário brasileiro não corresponde à prescrição normativa que o disciplina e isso possui raízes numa produção de Jurisdição que não acompanhou, de fato, as querelas sociais arraigadas na formação desta sociedade. O PAPEL DOS DIREITOS SOCIAIS E CIVIS NA EFICÁCIA DO PODER JUDICIÁRIO Para que o Direito possa atender às demandas da população, é necessário que o Judiciário compreenda quais são estas demandas. Wolkmer (2015) introduz a Sociologia em sua obra justamente quanto sumário 92 Marxismo. toca no ponto da análise ao Judiciário brasileiro. O que a sua população clama como problema? Para buscar esta resposta é importante compreender o cenário brasileiro e, mais especificamente, os dilemas intrínsecos à formação do país. Quando se fala de base automaticamente se remete aos direitos fundamentais, os três clássicos conceitos elaborados pela Sociologia para abordar a raiz dos direitos fundamentais, isto é, direitos políticos, sociais e civis. Em sua obra, Wolkmer trabalha com o desenvolvimento de dois deles, os sociais e civis, bem como na problemática de como estes direitos fundamentais são falhos em nosso país quando passam para a dimensão prática. Por conseguinte, vários problemas surgem na sociedade, e são estes problemas que o Judiciário brasileiro não consegue identificar e solucionar, gerando assim uma grave ineficácia do sistema jurídico em atender à população. Adentrando em maior análise, deve-se compreender o que são estes direitos e porque estes são ineficazes no país. Vejamos, o elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual, liberdade de ir e vir, liberdade de impressa, pensamento, fé, o direito à propriedade e de concluir direitos válidos e o direito a justiça (MARSHALL, T. H. 1967, p. 63). As caraterísticas sobre os elementos civil, constitui para o autor a base fundamental para o “reino do Direito”, sob ela que todos os outros direitos devem aflorar. O direito à liberdade era o princípio pela busca de uma cidadania efetiva. O seu processo histórico se inicia no século XVIII, período entre a Revolução e o primeiro reform act, passando pela abolição da censura à empresa e a emancipação católica. Na seara jurídica, o marco dos direitos civis se deu pela luta jurídica a favor dos direitos individuais, esta foi a base de formulação do princípio jurídico da legalidade. O marco jurídico foi um ganho na luta por direitos civis. O acesso à Justiça, de ouvir e ser ouvido, confrontar decisões do Estado e limitar o poder estatal de invadir às liberdades individuais são características trazidas pelos direitos civis. sumário 93 Marxismo. Os direitos civis são os direitos fundamentais a vida, à liberdade, à A liberdade a propriedade a igualdade perante a lei. Eles descubram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do Lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São Direitos cuja garantia se baseia na existência de uma Justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações civilizadas as pessoas e a própria existência da sociedade civil sugerida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é liberdade individual (CARVALHO, J. M. 2004, p. 09). No Brasil, este debate acontece de forma bem diferente. Os direitos civis ainda hoje são afetados diretamente pela grande desigualdade social. A inefetividade desse Direito, que seria para Marshall a base da pirâmide da cidadania, aqui se mostra-se fraca. De acordo com José Murilo de Carvalho, os direitos civis foram positivados no Brasil pela primeira vez em 1824, na Constituição Imperial. Não foi ganho da sociedade brasileira, não teve uma revolução popular para romper com o absolutismo monárquico, muito pelo contrário, a população assistiu como uma mera espectadora a transição entre o regime colonial para a Monarquia brasileira. Os direitos civis brasileiros não foram uma conquista popular, configuravam-se pela pressão do sistema internacional, com a eclosão da Independência Estadunidense e a Revolução Francesa. O sistema monárquico se tornava insustentável, assim, mais como plano estratégico para manutenção do poder das classes dominantes no Brasil, a independência ocorreu. Nesta época haviam três classes de brasileiros: os escravizados, que não eram cidadãos e nem se quer considerados humanos, pois eram vistos como mercadorias e propriedades dos seus senhores. Entre os escravizados e os senhores haviam os homens livres, mas esses, de fato, não gozavam de liberdade já que se viam sumário 94 Marxismo. dependentes dos grandes proprietários para morar, trabalhar e se defender de terceiros. Faltava à maioria da população quase todas as condições para o exercício dos direitos civis, sobretudo a educação (CARVALHO, 2004). Por fim, haviam os senhores. O Brasil, então, chega à sua independência com os direitos civis garantidos na Constituição de 1824, mas muito longe de serem efetivados pela população. Este processo, de acordo com José Murilo de Carvalho, fez com que os direitos civis e individuais se concretizassem no país de forma fraca e efetividade não plena. Já “o elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar da herança social e vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (MARSHALL, T. H. 1967, p. 64). Em complemento, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva, eles incluem o direito a educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria e permite a sociedade reduzir a desigualdade e garantir um mínimo de bem estar para todos (CARVALHO, J. M. 2004, p. 10). As primeiras discussões datadas sobre os diretos sociais ainda estão ligadas a quatro fatores: economia, educação, saúde e moradia. Marshall (1967) pontua que a educação é peça fundamental para a mudança social, Por intermédio da educação em suas relações com a estrutura ocupacional, a cidadania opera como um instrumento de estratificação social (..) status adquirido por meio de educação acompanha o indivíduo por toda a vida com o rótulo de legitimidade, porque foi conferido por uma instituição destinada a dar aos cidadãos seus justos direitos (MARSHALL, T. H. 1967, p. 102) Os direitos sociais implicam em uma mudança do status quo, na quebra da estratificação social. A educação, como visto, é o motor que impulsiona a população a buscar pelas demais garantias sociais, sumário 95 Marxismo. o cidadão passa a requer por melhores oportunidade, por igualdade e a eliminação do privilégio hereditário. No Brasil esses direitos foram os primeiros a de fato serem concretizados no país, apesar de terem surgido em 1930, 106 anos depois dos direitos civis na Constituição Imperial, é considerado por José Murilo de Carvalho como o primeiro Direito implantado no país. Os direitos sociais no Brasil não foram implantados por meio de uma luta popular e política, muito pelo contrário, o cenário do seu nascimento foi marcado por um período cujos direitos civis e políticos estavam absolutamente cerceados. De 1930 a 1945, anos de florescimento dos direitos sociais, estava ocorrendo no Brasil uma transição de regimes varguistas em que se flertava com o autoritarismo. Ao contrário da escala proposta por Marshall, cujos direitos seriam adquiridos pela própria população por uma percepção da necessidade que nasce pelo fortalecimento dos direitos civis, políticos e uma maior consciência coletiva, no Brasil a implementação desses direitos se deu por um governo autoritário que retirou dos brasileiros a oportunidade de consolidar estes direitos por vias democráticas. Reflexos disso podem ser vistos na sociedade atual. Os direitos coletivos ainda hoje são vistos como um assistencialismo do Estado, uma forma de pão e circo para a população e não um direito coletivo e parte intrínseca do Estado e da democracia. O discurso de que a saúde, educação, previdência são apenas formas do Estado de contornar a população nascem, não por coincidência, deste período que, de fato, os direitos sociais foram usados como forma de afastar o público do debate sobre o autoritarismo do governo. Os avanços trazidos pelos diretos sociais são inegáveis, principalmente na regulamentação do trabalho feminino, mas ao lado deste avanço também vieram retrocessos, o sistema excluía categorias importantes de trabalhadores, “no meio urbano, ficavam de fora todos autônomos e todos os trabalhadores domésticos. Estes não eram sumário 96 Marxismo. sindicalizadas nem se beneficiavam na política de Previdência ficava ainda de fora todos os trabalhadores rurais, que na época ainda eram maioria” (CARVALHO, 2004, p. 114). A relação clientelista entre governo e os direitos sociais, ficava ainda mais clara quando se analisa o papel dos sindicatos. Nesta época estes serviam como forma de controle social, já que o governo mantinha delegados seus dentro deles, cuja função era acompanhar as reuniões, examinar as situações financeiras e produzir um relatório trimestral para o Estado. O governo vigiava os sindicatos e poderia livremente interferir neles. Os direitos sociais estavam longe de ser uma garantia de cidadania e direito e muito perto de serem uma política sociais como privilégio (CARVALHO, 2004). Desta maneira, os direitos sociais e civis trazem grande impacto na construção social brasileira, assim como em quais os problemas estruturais da sociedade. O Direito, como meio de solução de conflitos, necessita internalizar esses fatores de deficiência em sua norma para então aplicá-la com maior eficácia. A lógica aqui desejada, é moldar a norma, ou seja, criar normas que possam ser capazes de solucionar a ineficácia dos direitos fundamentais e comunitários. A busca pela proteção desses Direitos que nascem a partir das carências e necessidades fundamentais deve-se à ineficácia de uma legislação estatal importada da Metrópole colonizadora e inteiramente desvinculada dos reais interesses dos segmentos majoritários injustiçados da Sociedade. Daí a necessidade “processo de construção coletiva de uma nova cidadania”, pressuposto básico para implementar uma nova legitimidade de poder. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 99) Para tanto, o próprio Direito brasileiro precisa ter como base fontes normativas que o permitam construir estas regulamentações baseadas em sua sociedade. De forma a atingir essas mudanças, Wolkmer (2015) propõe o Pluralismo Jurídico, uma cultura jurídica plural que atenda à nossa História e se adapte à forma latino-americana e valores cultivados nesta sociabilidade. sumário 97 Marxismo. O CONCEITO DE PLURALISMO JURÍDICO Toda e qualquer norma jurídica na sua formulação precisa se basear em doutrinas, jurisprudências, costumes e diversas fontes admitidas em Jurisdição. Wolkmer propõe que uma forma de melhorar o problema da ineficácia do sistema judiciário seria alterando a forma de produção normativa. A melhor maneira de conseguir este resultado seria, então, diversificar as fontes normativas, ou seja, a base em que as normas são feitas não mais seria aquela monista, kelseniana, formalista e liberal, que em tanto se dissocia da sociedade brasileira, mas sim nas múltiplas fontes que se conectam direto com as demandas do país. O novo Pluralismo Jurídico está vinculado aos líderes individuais e coletivos (novas singularidades sociais) em uma perspectiva complexa e intercultural que prioriza a vida comunitária e os direitos relacionados às diferenças e diversidades sociais. Gerando assim uma supressão dos conflitos de classes e grupos através da minimização das formas de opressão e sofrimento, causados pela ineficácia do Judiciário em atender aos direitos fundamentais da população (WOLKMER, 2015). Estas novas fontes normativas têm como escopo melhorar o conteúdo da norma em si e, para tal, elas devem absorver o contexto social e reproduzir nas relações jurídicas o cotidiano da população. É um processo que permite ao Judiciário o conhecimento do sujeito pelo o qual a norma deve ser feita, é produzir um Direito voltado para os seus titulares e não para o Estado e a classe dominante. O Pluralismo Jurídico é necessariamente uma nova fonte normativa que rompe com este aparato hegemônico e universalista e passa a colocar em evidência as necessidades da população, sob um ponto de vista plural. De acordo com o autor O pluralismo de formulações jurídicas provenientes diretamente da comunidade, emergindo de vários e diversos centros de produção normativa, adquirindo um caráter múltiplo, informal e sumário 98 Marxismo. mutável. A validade e a eficiência dessas práticas de Direito e Justiça comunitária, que não se sujeitam ao formalismo histórico das fontes tradicionais (lei escrita e jurisprudência dos tribunais), estão embasadas nos critérios de uma “nova legitimidade” gerada a partir de valores, objetivos e interesses do todo comunitário, e incorporados através da mobilização, da participação e da ação compartilhada. (WOLKMER, A. C. 2015, p. 168) Wolkmer (2015) então, entende que a construção de um novo Direito brasileiro deve se basear na cultura, tradição e vontade coletiva do país. É, portanto, necessário que se abra mão da exclusividade de participação no processo de produção estatal de normas para que haja uma expansão de horizontes culturais e estes reflitam na positivação normativa efetuada. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo analisa o Brasil, à luz das ideias de Antonio Carlos Wolkmer, tanto no seu aspecto sociológico quanto no que se refere à produção normativa. Por isso é imprescindível que, para o entendimento de qualquer tema que se relacione diretamente com algum outro país, seja primeiro compreendido o cenário interno desse local. É justamente com a análise do cenário brasileiro que Wolkmer começa a sua análise da ineficácia do Direito brasileiro. Ao pontuar que o cenário do Brasil é de um país periférico, latino-americano e com demandas de melhores direitos sociais e civis que o torna diretamente incompatível com o cenário europeu e o norte americano. Essa diferenciação é de suma importância pois o autor destaca que o Direito brasileiro, em sua criação, bebeu de fontes europeias e portando foi moldado por uma cultura e um cenário diametralmente oposto do cenário brasileiro em que este Direito irá produzir efeitos. sumário 99 Marxismo. Como consequência o Direito brasileiro nasce lógico formalista, monista e kelseniano. O Judiciário é pautado por escusas de conflitos e funciona assim como a politica estatal, visando a manutenção do poder das elites políticas e econômicas. Sendo, portanto, altamente previsível em suas ações já que estas, por repetidas vezes, não visam alterar o status quo e sim mantê-lo. O grande problema que é gerado com este Direito formalista é a incompatibilidade dele com os problemas brasileiros. Neste caso, Wolkmer descreve o cenário atual do país, uma nação que em sua formação lhe falta uma base estrutural muito forte, sendo as duas principais os direitos sociais e os civis. Os direitos sociais reverberam no acesso à melhor educação, saúde, senso de comunidade e pertencimento, cultura e combate direito ao racismo, machismo e outros preconceitos. No campo civil, a liberdade e o senso de justiça, aqui tratado como capacidade de chegar ao judiciário e ter seu problema tendido pelo estado. Esses dois fatores contribuem para uma sociedade descrente do judiciário, pois sabe que: a) o acesso a ele é dificultado pelo pouco acesso a maioria da população a informações sobre o seu direito e b) pela baixa expectativa que o Judiciário vá de fato atender sua demanda, já que a expectativa geral é de que este mantenha o status quo e por conseguinte o poder das elites. Para evitar que o Poder Judiciário enquanto instância tradicional da burocracia estatal continue ineficaz, Wolkmer apresenta três formas de solucionar o problema, sendo elas: a expansão da cidadania coletiva e dos movimentos sociais, o pluralismo jurídico e o controle social sob o aparato legal-estatal. Em relação ao primeiro ponto, o autor relata que quanto mais ocorrer a expansão da lógica social brasileira mais a própria população irá alterar o status quo. Os movimentos sociais trazem em pauta as lutas sociais e civis, por direitos fundamentais, e ao alcançar as universidades e o ambiente político-jurídico eles alterem as agendas políticas, colocando em pauta discussões que antes o estado se eximia de debater, justamente por evitar conflitos. sumário 100 Marxismo. Em seu segundo ponto, a busca por um pluralismo jurídico recai na necessidade do Direito brasileiro romper com a lógica formalista kelseniana e buscar suas fontes jurídicas em diversos outros locais, o pluralismo aqui é para a abertura do Direito à Sociologia, e a sua população a novas leituras de como o Direito brasileiro deve ser formulado. É absorver a cultura da América Latina e todos os problemas sociais, políticos e civis que a nação possui e reconstruir as bases de como o Judiciário e o Direito pensam a formulação de normas. Dessa forma o judiciário passa a ser capaz de acompanhar o ritmo das transformações sociais pois sua própria racionalidade será plural e construída com uma base nova e não a antiga visão lógico-formal colonial antes imposta sobre o Direito brasileiro. Como última proposta temos o controle social sob o aparato legal-estatal. Nesse estágio, a proposta é que a própria população, em forma de movimentos sociais, coletivos universitários, centros acadêmicos, grupos sociais e diversas outras formas de organização política mantenha em discussões as ações do judiciário frente aos problemas sociais. É de suma importância a própria população levantar discussões sobre como o judiciário lida com as demandas locais, tanto para garantir que estas se atentem com aquilo estabelecido como um problema para a população como também possam atuar em sua melhor eficiência para atender aos anseios populacionais. Em conclusão, Wolkmer deseja criar estratégias para diminuir o cenário brasileiro de deficiência em direitos sociais e civis. Alterar a base do Direito brasileiro, trocando a sua visão kelseniana formalista europeia para uma plural e que atenda as demandas de um país periférico e latino-americano e por fim que a própria população busque fiscalizar as ações do judiciário afim de promover constantes discussões sobre os problemas da sociedade e como é necessário o judiciário, de forma eficaz, atender a essas demandas. sumário 101 Marxismo. REFERÊNCIAS BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. Disponível em: https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa. Acesso em 30 de jan. de 2021. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo Caminho. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. SOUZA, Luciana Karine de. Pesquisa com análise qualitativa de dados: conhecendo a Análise Temática. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 71, n. 2, p. 51-67, 2019 . Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180952672019000200005&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 30 de jan. de 2021. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. sumário 102 PARTE 2 2 Gênero e raça Parte Gênero e raça Marxismo. Recentemente, diversos trabalhos na área de pensamento social brasileiro chamaram a atenção para questões relacionadas ao gênero e à raça nas explicações sobre o mundo social. Nesta parte do livro, temos a contribuição de 3 capítulos que versaram sobre o tema gênero e 8 capítulos sobre o tema raça. No primeiro capítulo, Emilly Gabriela Menezes Franco investigou os modos pelos quais o passado escravista interferiu nas relações de trabalho doméstico, nas concepções sociais sobre a profissão de doméstica, através da teoria e conceitos de Manoel Bomfim. Além de uma análise dos direitos trabalhistas conquistados pela categoria, desde o início do século XX, até o ano de 2015, quando os direitos das empregadas domésticas se equiparam legalmente às demais profissões.. No segundo capítulo, Stephany Dayana Pereira Mencato e Renata Peixoto de Oliveira realizam a contextualização teórica e histórica dos movimentos feministas na Argentina, Brasil e Chile. As ondas feministas nestes países permitem refletir sobre as relações entre Estado e sociedade e a luta por direitos emancipatórios vindos da sociedade civil. E por fim, Sylvia Iasulaitis e Gustavo Guimarães apreendem os traços mais essenciais da compreensão de Heleith Saffioti a respeito da categoria gênero relacionando sua teorização com a perspectiva metodológica do materialismo histórico. Nestes termos, identificam a gramática sexual que regula a totalidade das relações humanas de uma dada sociedade que implicaria, necessariamente, hierarquia e dominação. Abrindo as reflexões sobre a categoria raça, Alan Caldas e Nikolas Pallisser Silva investigam o conceito de democracia racial nas obras de Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos. Embora compartilhem do mesmo conceito, tal concepção se apresenta de forma polissêmica, representando em cada um dos autores uma concepção de sociedade distinta e uma função específica em cada uma das proposições. sumário 104 Marxismo. No capítulo A atemporalidade de uma intelectual amefricana: O pioneirismo de Lélia Gonzalez, Fernanda Reis Nunes Pereira e Steffane Pereira Santos analisam o pensamento de Lélia Gonzáles e suas contribuições para as ciências sociais no Brasil. Especialmente suas contribuições acerca das relações etnico-raciais, as formas e perpetuação do racismo na sociedade brasileira, a posição de mulheres negras frente às desigualdades, o movimento negro e as movimentações de mulheres negras frente ao racismo e sexismo. Por sua vez, Gabriel Felipe Oliveira de Mello analisa a obra do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) e a relação entre a questão racial, ao longo do final da década de 1940 e início da década de 1950 e a construção de um projeto nacional para o Brasil, que conciliasse, ao mesmo tempo, a superação da ideologia da brancura, dotando o negro de autoconsciência emancipatória. Em seu capítulo, Micheli Longo Dorigan aborda a discussão a respeito da identidade nacional brasileira, fortemente atrelada à mestiçagem, e sua concomitante relação com a questão racial analisando principalmente na obra de Lilia Moritz Schwarcz, especialmente nos textos Questão Racial no Brasil (1996), contido no livro Negras Imagens, e Nem preto nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na sociabilidade brasileira (2012). Patrícia Amorim Weber compara as obras Pele Negra, Máscaras Brancas (2008) de Frantz Fanon e Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1957) de Guerreiro Ramos com o objetivo de compreender a relação entre sujeito e objeto colonizado e racializado na produção da teoria social moderna. Enquanto Telmo Renato da Silva Araújo explora aspectos do pensamento racial de Nina Rodrigues e analisa os principais temas nos estudos sobre raça, as concepções de evolução, mestiçagem e degenerescência racial. sumário 105 Marxismo. No seu capítulo Thomaz José Portugal Coelho e Santos aborda as questões que cercam a formação da sociedade brasileira como o sistema patriarcal, a escravidão e o patrimonialismo, a cordialidade e o machismo. Por fim, William Vaz de Oliveira tem como objetivo principal fazer uma incursão ao pensamento e às ideias de Juliano Moreira, destacando não somente os seus discursos e práticas científicas, mas, também, os aspectos sociais que atravessam a sua obra. sumário 106 6 Emilly Gabriela Menezes Franco A mão da limpeza: empregadas domésticas, direitos trabalhistas e o passado escravista DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.6 Marxismo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a população de trabalhadoras(es) domésticas(os) no mundo é de 67 milhões (2013). Desse número, 18 milhões encontram-se na América Latina e Caribe, dos quais 88% são mulheres. Ainda, o trabalho doméstico representa 27% da ocupação feminina na região. Já no Brasil, onde um terço da população latino-americana de trabalhadoras e trabalhadores domésticos se encontra, somando mais de 6 milhões de pessoas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2017, mais de 90% dessa população é composta por mulheres. O trabalho doméstico remunerado, ou serviço doméstico, é numericamente a ocupação mais expressiva das mulheres da América Latina e é fundamental para o funcionamento da própria economia da região, uma vez que, além do percentual de mulheres ocupadas na profissão ser alto, grande parte dessas mulheres também são responsáveis pela chefia de suas famílias, principalmente no Brasil, conforme demonstrado no estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2016, que analisa dados da PNAD de 1995 à 2015. Este estudo indica que além de gênero, a profissão também é marcada por desigualdades sociais, como baixa remuneração, ausência de direitos trabalhistas básicos e uma baixa adesão sindical, sendo apenas 4% da categoria sindicalizada. O estudo também aponta que o serviço doméstico também é racialmente demarcado, uma vez que a maior parte das mulheres ocupadas na profissão são negras, e justamente estas ocupam os espaços mais precários da profissão, recebendo salários mais baixos e ocupando a maior parte da parcela das trabalhadoras na informalidade, quando comparadas às trabalhadoras domésticas brancas. Historicamente, a categoria enfrenta diversas barreiras para a conquista e efetivação de direitos básicos, o que colaborou para a permanência dessas condições de vida e trabalho precárias. Sem pouco ou nenhum acesso à educação, fora do mercado de trabalho e sem alternativas, muitas mulheres pobres são compelidas ao serviço sumário 108 Marxismo. doméstico, assim como suas mães e avós foram no passado, perpetuando uma tradição através das gerações, onde mudam apenas as trabalhadoras, mas as condições de trabalho permanecem semelhantes. Isto porque, até o ano de 19235, pouco existia no âmbito legislativo que tratasse sobre a regulamentação da profissão. O Decreto de 1923 versa sobre a definição do que se constitui como serviço doméstico e o iguala a serviços de mesma natureza prestados em estabelecimentos privados, como faxineiras e arrumadeiras em hotéis e restaurantes, por exemplo. Após isso, somente em 19416 o assunto volta ao âmbito legislativo, estendendo alguns direitos básicos à classe, como aviso prévio de oito dias e período de prova de 6 meses, além de multas no caso de quebra de contrato e violações. Em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)7, o serviço doméstico foi desconsiderado enquanto de igual natureza aos trabalhadores de hotéis, restaurantes etc., conforme previsto nos Decretos de 1923 e 1941, além de também ter sido excluído da própria CLT, conforme seu art. 7. Ou seja, até o momento, as trabalhadoras domésticas encontravam-se praticamente desassistidas do ponto de vista legal. Passando-se quase 30 anos, em 19728, a categoria conquista avanços legais significativos, atribuindo obrigatoriedade de registro em Carteira de Trabalho, férias remuneradas de vinte dias e previdência social obrigatória. Alguns anos depois, com a Constituição de 19889, é 5 BRASIL. Decreto nº 16.107/1923. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/ decret/1920-1929/decreto-16107-30-julho-1923-526605-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 20 jan. 2021. 6 BRASIL. Decreto nº 3.078/1941. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3078-27-fevereiro-1941-413020-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 20 jan. 2021. 7 BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452/1943. Disponível em:https://www2.camara.leg.br/legin/ fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-maio-1943-415500-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 20 jan. 2021. 8 BRASIL. Lei nº 5.859/1972. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/ lei-5859-11-dezembro-1972-358025-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 20 jan. 2021. 9 BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jan. 2021. sumário 109 Marxismo. que mais alguns direitos são conquistados. No entanto, dos 34 direitos previstos aos trabalhadores urbanos e rurais, somente 9 estavam também previstos para trabalhadoras(es) domésticas(os), sendo em sua maioria não conquistas novas, mas a maior parte eram os mesmos garantidos pelas leis e decretos citados anteriormente. Foi só a partir dos anos 2000, 15 anos após a Constituição, que mudanças mais consideráveis na garantia dos direitos das trabalhadoras domésticas aconteceram. No ano de 200110 passa a ser facultativo o acesso ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e ao seguro-desemprego. Em 200611, houve mudanças relacionadas a estabilidade de emprego à trabalhadora gestante, repouso semanal remunerado e ampliação das férias remuneradas de 20 para 30 dias. Além de serem pouquíssimos direitos trabalhistas quando comparados às demais profissões, embora sejam legalmente assegurados, a maior parte desses direitos sequer faz parte do cotidiano do serviço doméstico, considerando que no ano de 2006 65% trabalhava sem carteira assinada e desse percentual, 40,4% recebiam menos do que um salário-mínimo, já quem tinha carteira assinada recebia entre um salário e menos de dois salários-mínimos, de acordo com dados do Censo de 201012. Consequentemente, o serviço doméstico passa a ser tema de discussões cada vez mais recorrentes no âmbito federal e em Conferências Internacionais do Trabalho (CIT), com o intuito de elaborar iniciativas efetivas para melhorar a realidade da população ocupada pelo serviço doméstico e resolver problemas que atravessavam a profissão, como o trabalho infantil, a violação de direitos humanos e a ausência de efetivação de direitos 10 BRASIL. Lei nº 10.208/2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/ LEIS_2001/L10208.htm. Acesso em: 20 jan. 2021. 11 BRASIL. Lei nº 11.324/2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2006/Lei/L11324.htm. Acesso em: 20 jan. 2021. 12 CENSO DEMOGRÁFICO 2010. IBGE traça o perfil dos trabalhadores domésticos. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?busca=1&id=1&idnoticia=586&t=ibge-traca-perfil-trabalhadores-domesticosbr&view=noticia. Acesso em: 21 jan. 2021. sumário 110 Marxismo. trabalhistas básicos a todas as profissões. Durante os anos de 2008 e 2010, o governo brasileiro inicia a elaboração de uma Proposta que busca atingir tanto as exigências discutidas pelas trabalhadoras domésticas no Brasil quanto aquilo que estava sendo discutido pelas CITs no âmbito mundial, que posteriormente se tornaria a PEC das Domésticas, ou Proposta de Emenda Constitucional 66/2012. A redação original da PEC, quando apresentada ainda à Câmara dos Deputados, previa a revogação do Parágrafo Único do art. 7 da Constituição Federal, sendo este o artigo onde constam os direitos dos trabalhadores brasileiros, já o Parágrafo limitava os direitos da categoria de trabalhadoras e trabalhadores domésticos, que não era incluída em todos os dispostos no art. 7. No entanto, a redação final da PEC, que veio a se tornar a Emenda Constitucional nº 72 não revoga o Parágrafo Único, mas sim o altera, o que não traz isonomia entre a categoria e os trabalhadores urbanos e rurais, mas estende os direitos assegurados. Assim, com a Lei Complementar nº 150 de 2015, algumas disposições complementares são aprovadas, mas a igualdade legal até então não foi alcançada, visto que as trabalhadoras domésticas não são assistidas por todos os 34 direitos previstos em Constituição. Durante esse período, a elaboração é interrompida logo no início com a justificativa dos membros da Comissão Especial de que a PEC traria aumento nos encargos financeiros para os empregadores, ainda que o objetivo da Proposta fosse estabelecer isonomia no tratamento entre trabalhadores domésticos e demais trabalhadores urbanos e rurais de forma legal, ou seja, os encargos em questão seriam os mesmos já existentes na contratação de profissionais de outras áreas. Com a interrupção, o andamento da Proposta só retorna no ano de 2010, quando é apresentada na Câmara dos Deputados como Proposta de Emenda Constitucional e é a partir deste momento que o assunto começa a tomar espaço com mais frequência na mídia brasileira, que buscou frisar o aumento dos encargos trabalhistas em grande parte sumário 111 Marxismo. das notícias e reportagens, além de focar principalmente nas possíveis “preocupações” que a PEC poderia trazer para os empregadores e suas famílias caso fosse aprovada. Os veículos de comunicação também adotaram e difundiram o discurso de que a ampliação de direitos acarretaria um resultado contrário do pretendido: ao invés de beneficiar as trabalhadoras domésticas, as mudanças da Proposta trariam ainda mais informalidade à categoria, uma vez que o aumento dos encargos faria com que as famílias deixassem de contratá-las por não ter condições de arcar com as despesas. Desse modo, é possível perceber principalmente nas publicações de portais online e matérias nos telejornais um conteúdo que se faz efetivo na transmissão de informação sobre as mudanças da PEC, por exemplo, apresentando detalhadamente os pontos trazidos pela Proposta, enquanto que, ao mesmo tempo, essas notícias também enfatizam os custos gerados aos empregadores, além das dificuldades relacionadas à burocratização das relações dentro do ambiente doméstico, o que leva a questionar se o papel da mídia contribuiu para a diminuição dessa fronteira estabelecida entre prós e contras da Proposta ou se ela colaborou para que essa delimitação aumentasse ainda mais, como se a aquisição de direitos trabalhistas pelas trabalhadoras domésticas fosse uma derrota para os patrões, ainda que o aumento dos gastos estaria em torno de 10% do que se gastava com uma empregada doméstica, enquanto que do “outro lado” se discutia a garantia de direitos básicos já assegurados a praticamente todos os trabalhadores brasileiros. A forma como se constrói esse discurso pode ser percebida tanto pela linguagem e ênfase das publicações, que enfatizam gastos e interessam informar mais a quem emprega e menos ao empregado, como também através de imagens, como é possível exemplificar através de uma capa da Revista Veja (de Abril de 2013): sumário 112 Marxismo. Imagem 1 – Capa da Revista Veja Fonte: Revista Veja, 2013. Através da capa, podemos perceber que o texto de resumo da edição apresenta as novas regras atribuídas ao serviço doméstico são sumário 113 Marxismo. um marco civilizatório, em seguida apresenta que isso significa “um sinal de que em breve as tarefas domésticas serão divididas entre toda a família”. O título em maiúsculo “Você amanhã” faz referência à imagem da capa, onde um homem vestido de camisa social e gravata está de avental lavando a louça, indicando que a extensão dos direitos das trabalhadoras domésticas significa um marco civilizatório, mas que ao mesmo tempo traria o desemprego da categoria pelo encarecimento dos custos do empregador, que passará a ser o responsável por realizar o trabalho doméstico de sua casa, enfatizando assim o discurso popularmente veiculado na época, que também passou a ser reproduzido por uma parcela da população que se colocava contrária à PEC, afirmando que as relações de trabalho entre patrões e trabalhadoras domésticas eram diferentes de outros tipos de profissão e por isso não seria possível regulamentá-las da mesma forma, já que o serviço doméstico não produz lucro ao patrão e que o ambiente doméstico em si não possibilita a formalização de relações de trabalho como o ambiente de empresas e estabelecimentos. Esse discurso atrelado ao prejuízo financeiro do patrão, no entanto, não era a única perspectiva em relação ao que propunha a PEC das Domésticas, pois nas discussões que ocorriam na época tanto no âmbito nacional quanto internacional (amparadas inclusive por Resoluções da OIT), a preocupação mais urgente estava relacionada a construir um ambiente digno de trabalho para as profissionais do serviço doméstico, pois a falta de regulamentação permitia não apenas o não-cumprimento de direitos trabalhistas, mas também a violação de direitos humanos básicos a todos os indivíduos. No entanto, o discurso adotado ao falar sobre a PEC nos meios de comunicação pouco falava ou desconsiderava completamente a importância da Proposta em busca de condições de trabalho mais dignas para a profissão. Portanto, a adoção do “discurso do patrão” em detrimento ao “discurso das domésticas” demonstra não somente a defesa dos interesses do primeiro grupo em oposição ao segundo através da mídia, mas através disso também é sumário 114 Marxismo. possível compreender as próprias disputas de poder entre os indivíduos nas relações do serviço doméstico, conforme aponta Bourdieu (2008): Entre as censuras mais eficazes e mais bem-dissimuladas situam-se aquelas que consistem em excluir certos agentes da comunicação, excluindo-os dos grupos que falam ou das posições de onde se fala com autoridade (BOURDIEU, 2008, p. 133). Portanto, a escolha de qual agente ou grupo deve ser ouvido e qual deve ser excluído depende da construção social desses indivíduos, das relações de força simbólicas estabelecidas no seu convívio, de quais espaços esses indivíduos ocupam na sociedade. Por isso, é necessário investigar como se dão essas relações para além da perspectiva dos sujeitos dominantes, ou seja, se voltar para a perspectiva dos sujeitos subalternos. Assim, questiona-se: por que ainda hoje a profissão de empregada doméstica se encontra numa posição tão desigual quando comparada a outras, e por que é tão difícil se efetivar direitos trabalhistas na prática, mesmo com leis que os assegurem? Ainda, por que essas leis são elaboradas separadamente e de forma tardia? Diversos estudos na área têm se preocupado nas possíveis respostas para certos aspectos específicos do trabalho doméstico, ou seja, que não fazem parte de outras categorias de emprego. Ainda que seja um campo consideravelmente recente tanto na Sociologia quanto na História, os estudos sobre o serviço doméstico apontam para um caminho crucial na compreensão dessas relações sociais: os processos de surgimento da profissão. Isto porque, até o fim do século XIX, o trabalho doméstico nas casas era desempenhado em sua maioria através de mão de obra escravizada, o que evidentemente produziu efeitos na forma como compreendemos a atividade ainda hoje, mais de um século depois, uma vez que, segundo Bomfim (2008): E com isto resultou que o trabalho foi considerado, cada vez mais, como coisa vil, infamante. O ideal para todos era viver sem nada fazer – ter escravos e à custa deles passar a vida a enriquecer. Este ideal aí persiste como tradição. (BOMFIM, 2008, p. 91) sumário 115 Marxismo. Ou seja, em razão da exploração de mão de obra escravizada, juntamente com os ideais racistas difundidos na época e que permanecem posteriormente, o imaginário social brasileiro em relação ao trabalho é construído amparando-se na percepção do que são funções degradantes, onde tudo que remete ao trabalho daqueles que são escravizados, ou seja, atividades ligadas ao trabalho braçal, como infames e desonrosas. Isso promove uma ideia de que não somente se desejava estar numa posição onde não seria necessário realizar o trabalho braçal, como também se fazia necessário ter alguém para desempenhá-lo, para servir. Esses efeitos que Bomfim (2008) indica, são transmitidos através das gerações, como uma tradição, e seriam os responsáveis pela maneira que se reproduzem as relações sociais de trabalho doméstico atualmente, pois mesmo com o fim do regime de escravidão, a nossa sociedade não foi capaz de romper com certas percepções em relação à divisão do trabalho. Florestan Fernandes (1978) argumenta de forma semelhante: O regime extinto não desapareceu por completo após a Abolição. Persistiu na mentalidade, no comportamento e até na organização das relações sociais dos homens, mesmo aqueles que deveriam estar interessados numa subversão total do antigo regime. (FERNANDES, 1978. p. 248). Florestan aponta que a persistência do antigo regime na organização social se dá pela permanência na mentalidade e no comportamento das pessoas, através da não-integração do negro, fazendo com que este seja isolado social e economicamente, o que resulta no ingresso dessa população na realidade social com desvantagens insuperáveis (FERNANDES, 1978, p. 247). Ele continua: Não se formaram, por conseguinte, barreiras que visassem impedir a ascensão do “negro”, nem se tomaram medidas para conjurar os riscos que a competição desse elemento racial pudesse acarretar para o “branco”. Em síntese, não se esboçou nenhuma modalidade de resistência aberta, consciente e organizada, que colocasse negros, brancos e mulatos em posições sumário 116 Marxismo. antagônicas e de luta. Por paradoxal que pareça, foi a omissão do “branco” – e não a “ação” –que redundou na perpetuação do status quo ante. (FERNANDES, 1978. p. 250). De fato, não se formaram efetivamente barreiras nem se tomaram medidas que impedissem a ascensão do “negro”, ou nesse caso, das trabalhadoras domésticas, pelo contrário. A completa omissão, através da não-regulamentação e da ausência de direitos básicos e condições dignas de trabalho desde o início do regime pós-escravidão permitiu que certos comportamentos e ideais permanecessem atrelados às relações de trabalho doméstico mesmo após o fim da escravidão. Resultando no que observa Souza (2017), que [...]a escravidão doméstica deixou profundas marcas na prestação de serviços domésticos, ao ponto de se estabelecerem em certas sociedades escravistas, práticas e valores sociais e culturais baseados em uma correspondência direta entre escravidão, os negros (africanos e seus descendentes) e o serviço doméstico (SOUZA, 2017. p. 78). Assim, Souza (2017) nos traz o aspecto central dessa discussão, cujo através dele é possível perceber as reminiscências de valores e práticas de relações escravistas em relação ao serviço doméstico, onde construiu-se uma correspondência entre valores escravistas e relações de trabalho, sendo possível afirmar que as relações de trabalho doméstico são perpassadas pelo que podemos chamar de ethos escravista, que se faz presente nas ideias, nas formas de se relacionar, de pensar e de agir. A desvalorização da profissão, a ausência de direitos, a resistência dos patrões em ceder o mínimo para a garantia de dignidade na profissão são reflexos de uma tradição que não rompeu com a colonialidade e os ideais escravistas, mas que permanece no ideário social como uma tradição. Partindo desse ponto, portanto, a questão do aumento dos encargos dos patrões não deixa de ser um argumento válido para se opor à PEC das Domésticas, mas por outro lado, não pode ser entendido sumário 117 Marxismo. como a maior e única justificativa para a recusa de boa parte das pessoas, visto que tudo que propôs a PEC já vigorava na regulamentação de outras profissões, o que nos leva a questionar os motivos pelos quais a sociedade brasileira considera legítimo que algumas pessoas tenham certos direitos e outras não. Desse modo, mesmo com os avanços ocorridos nas últimas décadas em relação aos direitos trabalhistas, ainda existem diversos obstáculos para que esses direitos sejam assegurados e essa população de mulheres seja efetivamente assistida pelos Estados de maneira mais efetiva, garantindo condições de trabalho e de vida melhores tanto para as trabalhadoras quanto para as suas famílias. Mesmo após quase 133 anos do fim da escravidão, estes aspectos ainda influenciam na maneira como o serviço doméstico é percebido no Brasil. A sociedade brasileira parece ainda enxergar a trabalhadora doméstica como uma serva, submetida às vontades e ordens de seus patrões. Estas mulheres resistem, ainda que socialmente marginalizadas, à violência e aos ecos do seu próprio passado, ainda que muitas pessoas insistam em agir como se este passado não existisse e não nos influenciasse mais. REFERÊNCIAS BERNARDINO-COSTA, Joaze. Sindicato das trabalhadoras domésticas no Brasil: Teorias da descolonização e saberes subalternos. 2007. 274 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Brasília, Brasília. BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas: O que Falar Quer Dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. COSTA, Hilton. O parasitismo como herança: O conceito de hereditariedade social em Manoel Bomfim. Curitiba. 2009. 60 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharel em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba. sumário 118 Marxismo. FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Ática, 1978. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003. MENDONÇA, Maria Luiza Martins de; JORDÃO, Janaína Vieira de Paula. Mídia e trabalho doméstico: Quando a lei expõe as desigualdades. Revista Eptic, Sergipe, v. 15, n. 3, p. 87-100, set/dez. 2013. MONTICELLI, Thays Almeida. Diaristas, afeto e escolhas: Ressignificações no trabalho doméstico remunerado. 2013. 160 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba. MONTICELLI, Thays Almeida. “Eu não trato empregada como empregada”: Empregadoras e o desafio do trabalho doméstico remunerado. 2017. 232 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção e Recomendação sobre Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos. Genebra, 100ª Conferência Internacional do Trabalho (CIT). 1-17 jun. 2011. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---travail/documents/publication/wcms_169517.pdf. Acesso em: 19 jan. 2020. PRETA-RARA. Eu, Empregada Doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada. Belo Horizonte: Letramento, 2019. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005. SAFFIOTI, Heleieth. Emprego doméstico e capitalismo. Rio de Janeiro: Avenir Editora Limitada, 1979. SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: poderes, práticas e relações de trabalho doméstico. 1998. 188 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador. SOUZA, Flavia Fernandes de. Criados, escravos e empregados: O serviço doméstico e seus trabalhadores na construção da modernidade brasileira (cidade do Rio de Janeiro, 1850-1920). 2017. 583 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói. TELLES, Lorena Férres da Silva. Libertas entre sobrados: Contratos de trabalho doméstico em São Paulo na derrocada da escravidão. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo. sumário 119 7 Stephany Dayana Pereira Mencato Renata Peixoto de Oliveira Teoria em movimento – ondas feministas no Brasil, Argentina e Chile: DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.7 Marxismo. INTRODUÇÃO O presente trabalho é fruto dos resultados parciais de pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso A revolução será feminista! A última fronteira democrática e as marchas de mulheres na Argentina, Brasil e Chile (MENCATO, 2019). O objetivo no presente artigo é de expor resumidamente a contextualização teórica e histórica dos movimentos feminista, em seu duplo aspecto teórico e prático na Argentina, Brasil e Chile. Optou-se por aglutinar os período histórico dos três países em quatro ondas do movimento/prática feminista, tal divisão, ainda que não possa ser tida como fixa e pacificadas teoricamente, nos permite refletir elementos centrais comuns e divergentes em cada momento histórico destas Estados. A primeira onda feminista emerge somente com reivindicações sufragistas. Instaurados os tempos de ditadura, a segunda onda acompanha as lutas por democracia. A terceira onda se consolida com as democracias, marcada pela aproximação dos movimentos sociais feministas com o Estado. Por fim, a quarta onda, que emerge nos tempos atuais em um cenário crítico, de avanço das extremas direitas neoconservadoras e neoliberais, denunciando a incapacidade dos Estados em cumprir com as reivindicações feministas, nos permitindo vivenciar a formação de movimentos que tomam as ruas com milhões de pessoas e dialogam internacionalmente. REIVINDICAÇÕES DO SUFRÁGIO FEMININO, A PRIMEIRA ONDA Falar da história dos movimentos e teorias feministas é um campo complexo devido a sua dinamicidade e multiplicidade existindo debates, tensões, polêmicas e conflitos entre as diversas correntes sumário 121 Marxismo. feministas. Para se descrever suas trajetórias, impasses e conquistas, diferente autoras utilizam terminologias diversas, metáforas como ‘ondas’, ‘estações’, ‘cenários’, ‘ciclos’, para se descrever as lutas e as transformações provocadas pelo feminismo ao longo dos séculos (SCHUMAHER, 2018, p. 21), cada uma dessas expressões traz suas vantagens e críticas. A expressão ondas aqui utilizada vem em diálogo com o entendimento de que o movimento feminista, teve início no século XIX (RIBEIRO, 2014), ainda que se reconheça a presença das mulheres em todas as lutas sociais anteriores. A primeira onda feminista nesse caminho se ocupada, em especial, das reivindicações de direito ao voto e à vida pública, ainda que englobassem outros debates como o fim da escravidão e acesso à educação. A importância central deste momento é o reconhecimento da luta de diversas mulheres, bem como a conquista de direitos centrais “no ha habido ninguna concesión, nadie nos ha regalado el voto a las mujeres, fue una conquista en la que se ha puesto el cuerpo y la vida” (PAREDES; GUZMÁN, 2014, p. 28), essa valorização se faz importante, pois, atualmente, por vezes, acabam se descrendo tais direitos como resultados de uma evolução ou progresso natural da sociedade. Essa primeira onda, com seu movimento centralmente sufragista, como apresentam Paredes e Guzmán (2014, p. 28), buscou em geral reformas liberais, dessa forma, não lutavam contra o capitalismo ou o patriarcado de modo específico são feitas reivindicações de igualdade entre iguais, homens e mulheres burgueses, brancos, heterossexuais, o que será destacado pelas ondas posteriores como um caminho que levou a exclusão e silenciamento de diversos sujeitos dentro do movimento. Na história argentina, Eva Perón, Evita como ficou conhecida, é apontada como a principal figura de representatividade dessa primeira onda, a primeira dama do segundo presidente argentino esteve à frente do movimento sufragista no país, foi central nos processos que levaram a aprovação do voto feminino pelo Congresso em 23 de setembro de 1947. sumário 122 Marxismo. No Chile, entre o final do séc. XIX e início do séc. XX, o movimento de primeira onda reivindicava o direito de votar e a emancipação da mulher (ROBERTS, 2007, p. 20), nesse período foram criadas no país diversas organizações de mulheres, que ainda influenciam as atividades feministas chilenas. O voto feminino foi debatido no Chile desde 1920, “Sin embargo, la oposición de los partidos anticlericales y de izquierda, debido a la tendencia conservadora del electorado femenino, retardó por varias décadas más la concesión de ese derecho” (MUSEO HISTORICO LA SERENA, 2016), sendo somente em 1934 a lei do voto feminino para eleições municipais aprovada no país, e em 1949 para o voto presidencial e parlamentar federal, tendo as mulheres chilenas participado pela primeira vez das eleições presidenciais em 1952, um ano depois das argentinas que foram de fato às urnas em 1951. Alinhado com a Argentina e o Chile no Brasil, a primeira onda do feminismo também se manifestou mais publicamente por meio da luta pelo voto (PINTO, 2010, 15), sendo o país pioneiro dentre os três tendo em 1932, por meio de um decreto do então presidente Getúlio Vargas, o direito ao voto nas eleições nacionais sido estendido às mulheres, e “em 1934 as restrições ao pleno exercício do voto feminino foram eliminadas no Código Eleitoral e em 1946, a obrigatoriedade do voto foi estendida às mulheres” (CASSEB, 2018). Em 2015, em homenagem à conquista do movimento de mulheres, a então presidenta da República Dilma Rousseff, instituiu por meio da Lei 13.086/15 o dia 24 de fevereiro como o Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil. DITADURAS MILITARES E A SEGUNDA ONDA Entre as décadas de 1960 e 1990, nos três países, a onda de democratização e avanço dos movimentos sociais é interrompida por golpes de Estados que implementam ditaduras militares, norteando-se sumário 123 Marxismo. sob discursos da ameaça comunista, da necessidade de freios aos avanços democrático populares e corrupção. Nesse contexto a segunda onda feminista emerge com bandeiras em defesa da democracia e em resistência antiditatorial. No Brasil a ditadura ocorre entre 1964 e 1985, na Argentina, de 1966 a 1973 e no Chile, entre os anos 1973 e 1990. Não será alvo desta pesquisa os detalhes específicos de cada período, em cada um dos países, o que é central nesse momento é que a segunda onda, iniciada em meados do séc. XX, na década de 70 pode ser tomada como um fenômeno social que marcou uma época (FRASER, 2019, p.25), emergiu em um momento de crise democrática nos países estudados e teve por bandeiras principais, comuns nos países, a igualdade e a valorização da mulher no mercado de trabalho, o direito ao prazer e contra a violência sexual, além de um embate contra as ditaduras militares. Os anos de 1960 e 1970 foram marcados pelas manifestações dos movimentos feministas latino-americanos, que denunciaram não somente às intervenções repressivas exercidas pelos regimes militares como também as amarras e imposições de uma sociedade pensada segundo os critérios do patriarcado, entendido na época como um sistema de dominação masculina, estruturado tanto nas instituições da vida pública como privada (HIRATA, 2009, p. 175). Começa a se concretizar nesse período um feminismo internacional, que exige o reconhecimento da importância das contribuições feministas, mostrando-se que sua dimensão política não possui implicações somente internas, ou seja, não só “entre as próprias teorias feministas, mas nas teorias política como um todo, que foi obrigada a rever diversos de seus pressupostos antes tidos como universais” (SANCHEZ, 2017, p. 1). Diversas críticas internas são feitas também ao movimento feminista, possibilitando o surgimento de uma pluralidade de organizações e reivindicações invisibilizadas na primeira onda. sumário 124 Marxismo. É possível observar um alinhamento inicial nessas duas primeiras ondas nos três países das teorias feministas com discursos de modernidade desenvolvimentista, o pensamento moderno parecia apontar “ao feminismo caminhos possíveis para a emancipação feminina, isto é: a meta política da construção da igualdade e, portanto, do enfrentamento e da superação da subordinação da mulher na sociedade patriarcal” (MACÊDO, 2011, p. 33). Feministas do Brasil e Argentina, exiladas em decorrência das ditaduras em seus países, vivenciaram e tiveram contato com o Chile, enquanto ainda em democracia, bem como Estados Unidos e países da Europa, e foram centrais nos processos de resistência às ditaduras em seus Estados. No Brasil, esse período é marcado por reviravoltas e uma história dinâmica. A década de 1960 inicia com uma revolução musical a partir do movimento Bossa Nova, acompanhado de uma vitória democrática que levou à presidência Jânio Quadros, que no mesmo ano renunciou levando seu vice João Goulart ao poder a fim de evitar um golpe de estado. O ano de 1963 foi de radicalizações: de um lado, a esquerda partidária, os estudantes e o próprio governo; de outro, os militares, o governo norte-americano e uma classe média assustada. Em 1964, veio o golpe militar, relativamente moderado no seu início, mas que se tornaria, no mitológico ano de 1968, uma ditadura militar das mais rigorosas, por meio do Ato Institucional n. 5 (AI-5), que transformava o Presidente da República em um ditador (PINTO, 2010, p. 16). O que houve no Estado brasileiro foi um momento de total repressão, em especial da luta política legal e democrática que jogou os grupos de esquerda para a clandestinidade e guerrilha. Foi na década de 70, sob regime militar e extremamente limitadas pelas condições ditatoriais que as primeiras manifestações feministas ocorreram no país. As mulheres tomaram as ruas, atuando contra a censura, a sumário 125 Marxismo. favor da cultura e da democracia além de atuarem ativamente junto aos movimentos de esquerda no país. Na Argentina, o cenário também se mostrou muito conturbado, os movimentos feministas da primeira onda haviam se enfraquecido em especial com os diversos golpes de Estado sofridos pelo país a partir da década de 1950, porém, com a ditadura militar, a luta feminista retomou sua centralidade enquanto movimento de resistência democrática. Nesse período, milhares de pessoas foram torturadas e mortas e as mães desses desaparecidos protestavam em caminhadas na Praça de Maio para saber o paradeiro de seus filhos. Elas formaram uma grande voz para a queda dos militares, pois denunciaram os abusos de direitos humanos cometidos. Até hoje, essas mulheres se organizam nos movimentos Mães da Praça de Maio e Avós da Praça de Maio (RUDNITZKI, 2016). O movimento de mulheres argentinas ficou conhecido como Madres de la Plaza de Mayo composto majoritariamente pelas mães de presos e desaparecidos políticos durante o período ditatorial. A maternidade foi o ponto de união “afirmar-se como mães que buscavam seus filhos desaparecidos correspondia a travar uma luta contra a representação construída pela ditadura: ‘as mães de terroristas’, de pessoas pertencentes à esquerda armada e de grupos taxados como subversivos” (PAULA, 2016, p. 6). As Madres de la Plaza de Mayo surgiram no cenário argentino com as ideias implícitas à maternidade de altruísmo e proteção, em referência a todas a mães de desaparecidos e vítimas do Estado autoritário. A Plaza de Mayo, principal praça do centro da cidade de Buenos Aires, na Argentina, foi central nesse processo de resistência pois a apropriação desse espaço público central na vida política da capital em um momento onde se impediam todas as formas de reunião e manifestação se tornou um dos principais destaques da força desse movimento. Elas romperam com o discurso estatal de guerrilheiros e sumário 126 Marxismo. inimigos, homogeneizaram a condição de filhos para além da identidade militante das vítimas, “nesse sentido, as fraldas e posteriormente os lenços brancos amarrados na cabeça representavam as Mães da Praça de Maio, porque era por meio desse objeto que as mães simbolizavam o elo entre elas e seus filhos” (PAULA, 2016, p. 7). Dos lenços brancos que remetiam as fraldas aos lenços em uma passagem simbólica à juventude, o branco se ligou ao desaparecimento, ausência e desinformação acerca do destino dos desaparecidos. Com o tempo veio a formação da consciência de que os desaparecimentos eram uma parte chave do regime ditatorial, o que fez com que as mães passassem a reivindicar o desmonte do aparato Estatal repressor e a identificação dos responsáveis pelas violações, assim o branco no lenço foi ocupado por linhas negras com os nomes e datas de desaparecimentos dos filhos e o lenço passou a ser uma identificação daqueles que foram vítimas da ditadura, um símbolo de memória e de luta por verdade e justiça. Somente em1973 a realidade ditatorial chegou ao Chile, momento que marcou também o renascimento do movimento feminista no país, tomando forma na resistência à opressão e violência autoritária do governo de Pinochet. Diante da crise da democracia, repressão e violação dos direitos humanos e exaltação dos valores patriarcais, as mulheres se organizam em defesa dos seus direitos e na luta pela democracia, muitas vezes realizando uma dupla militância (no movimento feminista e nos partidos de esquerda), como também aconteceu no Brasil (WOITOWICZ; PEDRO, 2009, p. 48). O movimento de mulheres chileno, como no Brasil e Argentina, retoma sua força e radicalidade em defesa de um ambiente democrático e não violento, progressista e que respeito os ideais dos Direitos Humanos firmados no centro do mundo ocidental, se aproximam dos movimentos de esquerda, novamente as mulheres mães, esposas, filhas sumário 127 Marxismo. e familiares de presos e desaparecidos são as primeiras a ocuparem as ruas fazendo manifestações públicas contra a violência ditatorial De acordo com informações publicadas 31 na Fempress (1986, p. 33), em 1983, ano em que os protestos se intensificaram, reuniram-se mais de 11 mil mulheres no maior teatro de Santiago, em um ato de resistência. Neste mesmo ano, em 7 de novembro, o governo chileno declarou estado de sítio, o que significou 10.000 presos políticos em poucos dias (WOITOWICZ; PEDRO, 2009, p. 48-49). A capacidade de reunião, organização e resistência massiva do povo chileno se fez presente nesse período, houve aproximação do movimento de mulheres com a militância política dos partidos de esquerda, como nos outros dois Estados, marcando o caráter opositor das manifestações feministas. O movimento feminista da segunda onda foi intenso, deixou fortes marcas e por isso é “certo que esta vertente do feminismo permanece atuante hoje, mas não é mais a sua única expressão” (RODRIGUEZ, 2017, p. 200), o início dos anos 1980 inicia-se uma queda progressiva das ditaduras, e o que se vê é novamente um avanço democrático, capitalista, progressista nos três países. O FEMINISMO INSTITUCIONALIZADO DA TERCEIRA ONDA Os processos de redemocratização permitiram “as feministas exiladas retornarem aos seus países trazendo em suas bagagens novos textos e leituras, experiências e discussões, arregimentando, dessa forma, os movimentos feministas nacionais e proporcionando uma grande circulação de conhecimento” (BORGES, 2011, p. 952-953), assim os três países, ao final do século XX veem nascer uma nova onda feminista em um momento de êxtase pelas vitórias contra as ditaduras sumário 128 Marxismo. militares. Esta terceira onda que emerge já na década de 1990 vai se construir ao discutir os paradigmas estabelecidos pelas ondas anteriores bem como seus limites e exclusões. Apesar de que, as mulheres negras estadunidenses, como Beverly Fisher, já na década de 70, começaram a denunciar a invisibilidade das mulheres negras dentro da pauta de reivindicação do movimento. (...) As críticas trazidas por algumas feministas dessa terceira onda, alavancadas por Judith Butler, vêm no sentido de mostrar que o discurso universal é excludente; excludente porque as opressões atingem as mulheres de modos diferentes, seria necessário discutir gênero com recorte de classe e raça, levar em conta as especificidades das mulheres (RIBEIRO, 2014). Nesse contexto Ângela Davis já em 1981 (DAVIS, 2013), apontava que as opressões estruturais são indissociáveis, enfatizando a necessidade de ruptura com os ideais de feminilidade, além de denunciar o racismo interno existente no movimento feminista, ao que somou uma análise apontada como anti-capitalista, antirracista e anti-sexista (RIBEIRO, 2016, p. 100), a terceira onda traz em si como central a ruptura com as universalidades, pois afirma, tentar entender “os problemas das mulheres como comuns a todas, sem levar em conta elementos como raça, classe, renda ou orientação sexual, seria silenciar a multiplicidade de experiências específicas que compõem a condição feminina” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 89), É durante essa terceira onda que se repete, no Brasil, na Argentina e no Chile uma experiência comum, que levará a estruturação de movimentos dissidentes de mulheres como o de lésbicas, agora em um processo crítico crescente aos movimentos feministas tradicionais e homossexuais, isso pois: […] como mujeres, las lesbianas no tardan en criticar la misoginia, el funcionamiento patriarcal y los objetivos falocéntricos del movimiento homosexual, dominado por los hombres (…) Por otro lado, y en forma más o menos simultánea, como mujeres homosexuales, muchas lesbianas no terminan de sentirse sumário 129 Marxismo. plenamente identificadas con el movimiento feminista. (…) se van dando cuenta de que algunas feministas las perciben como un cuestionamiento amenazador a su posición heterosexual o a su lesbianismo ‘de clóset’ (…). Mientras que las lesbianas luchan por todas las causas de las mujeres, aunque no les atañen tan directamente (por ejemplo, para la anticoncepción o la interrupción voluntaria del embarazo), las demás mujeres se muestran tibias a la hora de luchar por causas lésbicas o cuestionar la heterosexualidad (FALQUET, 2006, p. 205). Mesmo a noção de um patriarcado universal e a ideia central que o acompanha, de um feminismo identitário universal, passou a ser amplamente criticada com o alvorecer da terceira onda, em especial por seu fracasso em “explicar os mecanismos de opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que ela existe” (BUTLER, 2003, p. 20). Reflexão central nesse sentido é o aporte fornecido por outro grupo dissidente do feminismo original e oriundo dessa terceira onda, formado por pensadoras feministas decoloniais, que dentre suas variações próprias, afirmam a invasão colonial como o processo pelo qual o patriarcado de alta intensidade se consolida na América Latina, apontando assim uma colonialidade do gênero e uma tomada do corpo como território. A partir de 1492, por la invasión colonial a nuestros territorios, se han dado relaciones coloniales entre Europa y Abya Yala (Latinoamérica y Caribe), esto significa entre otras cosas que en Europa piensan que inventaron las luchas de las mujeres contra el patriarcado, creen que pueden enseñar al mundo modelos de sociedad y modelos de cómo luchar para conseguirla. Es verdad que la palabra feminismo y la forma cómo se usa la palabra, vino de Europa como una acumulación política desde la Revolución Francesa en 1789, pelo ellas, las europeas, no inventaron las luchas de las mujeres del mundo contra el patriarcado y tampoco Europa es un modelo de sociedad a seguir (PAREDES; GUZMÁN, 2014, p. 13-14). A própria América Latina é posta agora como produto originario da modernidade colonial, parte do sistema mundo por ela estruturado sumário 130 Marxismo. como Anibal Quijano (2000) “denominó a la colonialidad del poder y más tarde María Lugones (2008), desde una propuesta feminista, haciendo una crítica a Quijano por no considerar la construcción de relaciones de género heterocentradas y binarias, denominó sistema de género moderno/colonial” (CURIEL, 2014, p. 5). A modernidade colonial eurocentrada capitalista passa a ser problematizada, bem como os procesos de racialização, genderização e passa a se denunciar que “la lógica de separación categorial distorsiona los seres y fenómenos sociales que existen en la intersección, como la violencia contra las mujeres de color” (LUGONES, 2008, p. 82). Diante da multiplicação dos debates que emergem com o início do séc. XXI, oriundo da soma de velhas e novas bandeiras assistimos a uma crescente e múltipla reivindicação de bandeiras feministas, são as feministas marxistas, as pós-modernas, as decoloniais, negras, lésbicas, queer ou pós-feministas, e assim a teoria feminista passa a se caracterizar como “uma corrente profundamente plural e diversificada, que investiga a organização social tendo como ponto de partida as desigualdades de gênero” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 7). Em essência toda teoria feminista se fez assim política e prática, durante os processos de redemocratização nos três países ingressou nos quadros estatais emanando dos movimentos de rua, nos feminismos “a teoria é a minha prática. Uma deve existir para interagir dialeticamente com a outra em vez de se criar dicotomias estéreis. A teoria ajuda na prática e vice-versa” (RIBEIRO, 2014). No Brasil, a restauração da democracia, especialmente a partir de 1982 fez com que algumas das principais reivindicações feministas fossem institucionalizadas pelos governos, o que demandou e tomou para os aparelhos do Estado a participação de quadros e lideranças centrais dos movimentos feministas, assim, como aponta Mariano (2001, p. 11), a nova fase vem acompanhada de uma incorporação do campo institucional como forma de buscar maior universalidade das mudanças, por meio de reformas estatais. sumário 131 Marxismo. O feminismo brasileiro entrou em uma luta institucional pelos direitos das mulheres, reivindicando políticas públicas e direitos legais não apenas de igualdade formal, mas de equidade enquanto tratamentos desiguais àqueles construídos socialmente de modo desigual como modo de atingir justiça social. O tema central passou a ser o fim da violência contra as mulheres, em especial a violência doméstica e familiar, e foram criados e institucionalizados inúmeros grupos, coletivos que atuaram como Organizações Não-Governamentais (ONGs), com recursos financeiros do próprio Estado. Ainda na última década do século XX, o movimento sofreu, seguindo uma tendência mais geral, um processo de profissionalização, por meio da criação de Organizações Não-Governamentais (ONGs), focadas, principalmente, na intervenção junto ao Estado, a fim de aprovar medidas protetoras para as mulheres e de buscar espaços para a sua maior participação política (PINTO, 2010, p. 17). Ainda em um cenário favorável, progressista e de quadros feministas instaurados junto ao aparelho estatal é eleita a primeira presidenta do Brasil, Dilma Vana Rousseff, economista e política brasileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), para um primeiro mandato entre 2011 e 2014, como reflexo direto do governo anterior de Luiz Inácio Lula da Silva, que seria reeleita em 2015. Já em um momento de baixo apoio popular, em decorrência de uma crise capitalista econômica global que afetou o Brasil, acompanhada de uma série de escândalos de corrupção que atingiram diretamente a imagem do PT se colocou em curso um golpe de estado, que levou a um processo de impeachment que a tiraria do governo em 12 de maio de 2016. Os movimentos feministas, em diferentes graus, em especial durante o processo de redemocratização pós-ditadura no Brasil, estiveram participando ativamente da reconstrução do estado, e como sumário 132 Marxismo. aponta Biroli (2018, p. 299), o estreitamento das relações com o estado foi ainda maior durante todo o período do PT no governo federal. Nesse período o Brasil ativa as Conferências de Políticas Públicas para Mulheres nas esferas municipais, estaduais e nacional, espaço que privilegiava a comunicação entre movimento de mulheres e governo, se instituiu também a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM) e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) que tiveram até 2016 status de Ministério Federal. A terceira onda feminista no Chile, foi marcada também pelo fim da ditadura militar, lá mais tardia, no ano de 1990, percebe de modo similar ao brasileiro a entrada do movimento nas estruturas no novo estado que se busca consolidar, assim nos anos iniciais da democracia se aponta que houve um enfraquecimento e diversas controvérsias no movimento feminista chileno (ROBERTS, 2007, p. 21) que viu uma diminuição radical de seu movimento de mulheres até então organizado e centralizado. [...] diante do processo de democratização do país, no período pós-ditadura, o que se verifica – à semelhança de outros cenários latino-americanos – é a desarticulação dos movimentos sociais. Este processo, denominado de ‘silêncio feminista’, teve a desmobilização e a institucionalização como principais características (WOITOWICZ; PEDRO, 2009, p. 51). O que se viu no Chile, foi a manutenção e legitimação por parte dos governos democráticos d o modelo econômico e institucional herdado do regime ditatorial, reformado sim, porém, com forte característica neoliberal, assim, de modo ainda mais profundo que no Brasileiro que somente iniciou um processo de implementações de medidas neoliberais após o governo de Fernando Henrique Cardoso, o desmantelamento estatal foi muito mais profundo, o mercado passou a ser o principal elemento de integração social e o movimento feminista se partiu em duas correntes. sumário 133 Marxismo. Essa ruptura entre as mulheres que compreenderam o Estado como meio para se atingir a emancipação feminina e o alcance das reivindicações feministas, e aquelas que não compreendiam essa possibilidade é também característica comum nos três países dessa terceira onda, e ainda que inicialmente se veja conquistas e avanços progressistas oriundos diretamente da articulação dos movimentos de mulheres com os aparelhos estatais, aos poucos a incapacidade e a tensão inerente as reivindicações radicais dos movimentos feministas tornam perceptível a incapacidade estatal de respostas. Nesse período o Chile vê eleita sua primeira presidenta, com primeiro mandato entre 2006 e 2011, pelo Partido Socialista do Chile, Michelle Bachelet Jeria, médica e política, que foi reeleita para o cargo nos anos de 2014 a 2018 e ao longo dos últimos dois mandatos eletivos se alternou na presidência com o candidato neoliberal de direita Sebastián Piñera. O governo de Bachelet possuiu aproximações com o governo de Dilma e do PT, sendo ambos apontados como de centro esquerda, com políticas de valorização da mulher e superação da desigualdade social e justiça social, bem como maior aproximação com o movimento feminista e institucionalização de quadros militantes. Na Argentina, três anos após o término da ditadura militar, em 1986 começam, alinhados aos pensamentos dessa terceira onda, os Encontros Nacionais de Mulheres, que passaram a ser realizados desde então anualmente, o que marca, ao contrário de Brasil e Chile um fortalecimento do movimento autônomo de mulheres nesse período. […] en 1986 empezaron los encuentros en nuestro país y desde ahí no pararon. Cada año son más masivos y exitosos. En el primero éramos cerca de 1000 mujeres, en el 33° Encuentro Nacional de Mujeres en Trelew participamos 65.000. La modalidad del Encuentro Nacional de Mujeres es única en el mundo, y eso permite que cada año nos sumemos de a miles: es autoconvocado, horizontal, federal, autofinanciado, plural y profundamente democrático (ENCUENTRODEMUJERES, 2019). sumário 134 Marxismo. Desde o início dos Encontros Nacionais de Mulheres uma reivindicação central do movimento feminista, enquanto dívida da democracia, foi a reivindicação do direito ao aborto legal, seguro e gratuito, ainda que temas como a violência contra a mulher, pressão para aprovação de leis sobre feminicídio e de violência contra lésbicas também integrem as reivindicações do movimento. la Campaña por el Derecho al Aborto Legal, Seguro y Gratuito: educación sexual para decidir, anticonceptivos para no abortar, aborto legal para no morir. Desde entonces, en las masivas, largas e históricas marchas de los Encuentros prevalecen sus banderas y pañuelitos verdes, por encima de cualquier otro cartel, bandera o pañuelo y son sus consignas las más coreadas (MARCÓ, 2018, p. 154). O movimento de mulheres na Argentina mudou ao longo dos anos, mas o símbolo, o laço herdado das Madres de la Plaza de Mayo se manteve, bem como sua organização e articulação a cada ano mais massiva. Em comum com Brasil e Chile, as argentinas têm a eleição de sua primeira presidenta para dois mandatos, Cristina Kirchner, uma política e advogada que foi governante do país entre 2007 e 2011 e de 2011 a 2015. Ainda que a democracia se veja em progressivo fortalecimento, marcado pela aproximação com os movimentos sociais, no caso aqui estudado em especial com o movimento feminista, contando inclusive com a entrada nos governos das primeiras mulheres ao cargo de presidência, inicialmente no Chile com Bachelet em 2006, seguida de Kirchner na Argentina em 2007 e Rousseff no Brasil em 2011, o que assistimos nos três países é que novamente as ondas de redemocratização e fortalecimento dos direitos humanos são intercaladas por ondas reversas e autoritárias. sumário 135 Marxismo. QUARTA ONDA, ENFRENTAMENTO AO AVANÇO NEOCONSERVADOR E NEOLIBERAL Já no final do século XX e início do XXI, as teóricas feministas denunciavam o apagamento e a incapacidade do estado liberal, em especial com sua pretensa neutralidade frente às desigualdades criadas pelos dispositivos sociais, iniciavam o que se tornaria uma verdadeira revolução, com a saída do poder dos governos de centro-esquerda, e sua substituição nos três países por governantes neoliberais de direita. Reivindicações por reconhecimento das diferenças compõem o cenário contemporâneo multiculturalista de luta por interesses de extração identitária, ora em defesa da diferença, ora em combate à desigualdade. Nesse cenário o feminismo é visto como o precursor na defesa do direito à diferença. (MARIANO, 2001, p. 18) Esse século viu nascer uma quarta onda feminista, iniciada com a segunda década do século XXI, e centralmente marcada por marchas populares com milhões de pessoas que tomam as ruas, um renovado movimento feminista agora com bandeiras que transcendem fronteiras, de alcance global, e enfrenta diretamente o avanço neoconservador, neoliberal e capitalista. Uma quarta onda feminista, iniciada com a Marcha das Vadias somada à potente Marcha das Mulheres Negras e Primavera Feminista, emergiu e cresceu num cenário de acirramento das posições fundamentalistas contrárias à autonomia das mulheres, do debate sobre interseccionalidade e trazendo novas estratégias de resistência através das tecnologias virtuais e retomada das ruas (SCHUMAHER, 2018, p. 21-22). No Brasil a Marcha das Vadias é apontada como ponto de referência na eclosão dessa quarta onda. O movimento teve sua origem na SlutWalk, ato se iniciou na cidade canadense de Toronto, em janeiro sumário 136 Marxismo. de 2011, como resposta a um discurso proferido pelo policial Michael Sanguinette na Universidade de Toronto. Este afirmou então que para não serem estupradas as mulheres não deveriam se vestir com sluts, o que no Brasil se traduziu para vadias, e nos países de idioma espanhol para puercas e mais tarde putas. Tal afirmação levou cerca de três mil pessoas às ruas de Toronto, em uma marcha sem precedentes pela desculpabilização da mulher vítima de violência sexual. Assim, a SlutWalk se disseminou por diversos países, sendo realizada nos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Holanda, Suécia, Israel, Índia, México, Honduras, Argentina, Colômbia, Costa Rica, Peru, Equador, Uruguai, Nicarágua, Panamá, em Portugal e no Brasil (BOENAVIDES, 2019, p. 2). É nesse momento histórico de levante e ocupação das ruas e praças públicas, com marchas feministas de massa e com grande capacidade de aglutinação de pessoas, bandeiras e reivindicações democráticas e de defesa aos direitos humanos que a chamada quarta onda feminista internacional convoca e possibilita a construção das marchas internacionais de mulheres. Os movimentos contemporâneos se internacionalizam, se retroalimentam, fortalecem e em alguma medida dialogam, El compromiso político con el cambio social es uno de los principales rasgos constitutivos de las epistemologías feministas y también una de las características principales que las distinguen de otros tipos de teorías del conocimiento (CÁCERES; MAYO, 2005, p. 112-113), são levadas às ruas com essas manifestações milhões de pessoas o que torna possível apontar o feminismo contemporâneo como uma fronteira democrática revolucionária. Nesse cenário “as mulheres têm-se posicionado na linha de frente das resistências para confrontar violentas e contundentes ameaças. Em vários países da América Latina, como Nicarágua, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Uruguai” (GONZALEZ, 2019, p. 126), sumário 137 Marxismo. os movimentos feministas tomaram as ruas, uniram pautas, e vêm mostrando o caminho da resistência democrática, reforçando que: As manifestações são uma das poucas maneiras de superar o poder da polícia, especialmente quando essas assembleias se tornam, ao mesmo tempo, muito grandes e muito móveis, muito condensadas e muito difusas para serem contidas pelo poder policial e quando têm os recursos para regenerar seu próprio local (BUTLER, 2018, p.84). Na Argentina, no Brasil e no Chile esses movimentos de resistência se consolidaram de modo contundente, dialogando em um cenário globalizado de pautas e militâncias político feministas, inspiraram-se e se retroalimentaram, aproximando-se e distanciando-se na medida de suas realidades locais, contribuindo para a construção de um espaço de micro e macro resistências ao sistema mundo colonial, patriarcal e capitalista. No Chile, as marchas que foram nomeadas Onda Lilás ou Maio Feminista tomaram as ruas em maio e julho de 2018 e entraram para a lista de maiores movimentos da história do país. Tudo se iniciou quando, em mais de vinte universidades e escolas, as estudantes ocuparam massivamente os prédios públicos e tomam as ruas para protestar contra práticas machistas, abusos e assédio já caracterizados como parte intrínseca do ambiente estudantil. Elas reivindicavam principalmente uma educação não-sexista, além de retomarem as pautas históricas do movimento como a igualdade. O movimento levou às ruas em 08 de maio de 2019 aproximadamente 800 mil mulheres, que se mobilizaram em todo país, registrando a maior mobilização feminista até então. Na Argentina a Maré Verde, marcha que ocorreu em 04 de junho de 2018, sem uma estimativa oficial de presentes, levou milhões de pessoas as ruas da Avenida de Mayo fazendo com que a capital Buenos Aires, entre em convulsão, movimentando o Congresso Nacional argentino frente a pressão de milhões de mulheres e apoiadores com lenços sumário 138 Marxismo. verdes, que reivindicam e exigem o direito ao abordo legal, seguro e gratuito, o movimento seguiu ganhando força e a reformulação da lei nacional argentina finalmente foi aprovada em 30 de dezembro de 2020. No Brasil o movimento de maior força dessa quarta onda é a #elenão que toma as ruas em 29 de setembro de 2018 onde, também sem estimativas oficiais, uma vez que aparentemente não interessa aos Estados divulgar a dimensão exata dos levantes populares feministas que tomam suas ruas, cerca de 114 cidades se mobilizaram com bandeiras em defesa do regime democrático e dos Direitos Humanos contra a eleição do então candidato Jair Bolsonaro com seu discurso político eleitoral conservador e de extrema direita. O movimento que perdeu folego ao final do período eleitoral com a eleição do presidenciável, se reinventou em 2019 fazendo enfrentamento direto ao regime político estruturado a partir daí, adotando especialmente pautas em defesa da educação e resistência democrática. CONSIDERAÇÕES FINAIS As pautas, teorias e práticas feministas seguem em construção, não são fixas, tão pouco consolidadas, enfrentam críticas internas e externas, dialogam e interagem local e globalmente se fortalecendo com os movimentos de mulheres e corpos feminilizados, bem como aliados. É assim que vem enfrentando e rompendo com dicotomias e hierarquias sociais históricas como o público e o privado, já não se satisfazem com categorias universalizantes e dispositivos de controle que disciplinam corpos e seus movimentos. Em seus choques e encontros, entre bandeiras clássicas e contemporâneas, segue crítico a realidade desigual, inconformado com a manutenção do status quo que mantem certas vidas em graus maiores de precariedade e beneficia outras, convocando e aliando diferentes sumário 139 Marxismo. pautas, reunindo corpos e corporeidades com gritos como ni una menos; o feminismo nunca matou ninguém, o machismo mata todos os dias; América Latina va a ser toda feminista; lugar de mulher é onde ela quiser; somos el grito de las que ya no estan; lute como uma garota. Até aqui acompanhamos três ondas feministas, e parte das convulsões sociais que foram capazes de cria revolucionando o mundo conhecido até então, iniciamos ainda a descrição de um momento histórico que vivenciamos, assistimos a imersão de uma quarta onda ainda mais mobilizada, resiliente, inventiva, cheia de cores, reivindicações e que se amplia na velocidade da internet e suas tecnologias, seguimos assim, convulsionando, lutando e construindo uma realidade feminista. REFERÊNCIAS BIROLI, Flávia. Mulheres na política, as conferências e o ciclo democrático. In: MATOS, Marlise; ALVAREZ, Sonia E. Quem são as mulheres das políticas para as mulheres no Brasil: expressões feministas nas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres. Porto Alegre: Zouk, 2018. BOENAVIDES, Débora L. P. Ressignificar e resistir: a Marcha das Vadias e a apropriação da denominação opressora. Rev. Estudos Feministas, Florianópolis, vol.27, n.2, 2019. BORGES, Joana V. 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Essa frase, dita em uma entrevista realizada em julho de 2004, é fortemente indicativa em relação às preocupações e direções teóricas tomadas pela intelectual feminista ao longo de sua rica e densa trajetória científica, orientadas por seu amplo acúmulo cultural e por sua perspectiva marxista. Essa pequena pergunta e a afirmação subsequente revelam, de antemão, sua sensibilidade à concretude das relações de gênero e à imbricação delas com a totalidade em que se manifestam. A trajetória de Saffioti na investigação sobre gênero se inicia em sua tese de livre-docência, publicada pela primeira vez em 1969, onde essa categoria ainda não aparece completa, mas ainda como fator sexo ou elaboração social do fator natural sexo (SAFFIOTI, 2013). Nesta obra, Saffioti busca identificar as relações entre o ‘sexo’, identificado neste livro como um fator natural, e as formas sociais com o qual ele se depara quando transposto à sociedade e moldado por ela de acordo com as distintas relações sociais, com o modo de produção e com a cultura. Essas relações constituem a elaboração social do ‘fator sexo’, que assume diferentes feições de acordo com a fase de desenvolvimento do tipo estrutural de sociedade (SAFFIOTI, 2013, p. 60). Em A mulher na sociedade de classes, Saffioti analisa a posição das mulheres na sociedade de classes como um todo, na sociedade “competitiva” (capitalista) especificamente e, ainda, como as diferentes formações sociais capitalistas – opondo, fundamentalmente, o capitalismo avançado dos países centrais e o capitalismo dependente da periferia (Brasil) –, mesmo reunindo características comuns no que diz respeito à determinação social e econômica do gênero como, por exemplo, o alijamento das mulheres da produção, rumo a esfera doméstica; ou sua inserção em certos ramos específicos do trabalho produtivo de forma marginal sumário 144 Marxismo. e precária, apresentavam peculiaridades próprias decorrentes de seu diferente processo histórico; tipo específico de desenvolvimento capitalista e posição particular na Divisão Internacional do Trabalho (GONÇALVES, 2011, p. 122; GONÇALVES, 2013; SAFFIOTI, 2013). Já nessa publicação, Saffioti reconhece a complementaridade de classe, raça e dependência para criar a realidade das relações de gênero, seu funcionamento concreto e efetivo. No quesito classe, está evidente a centralidade que assume para ela a forma como o capitalismo transforma a posição das mulheres. No concernente à raça, por outro lado, também há reflexões interessantes, sobretudo em sua análise da experiência feminina brasileira no período colonial, onde compreende apuradamente os diferentes processos de ‘generificação’ envolvidos na constituição dos papéis sociais da mulher branca – senhora, delicada, comandante do trabalho na casa-branca – e da mulher negra – tratada com igual brutalidade em comparação ao homem negro na atribuição e realização do trabalho nas lavouras e afins, entretanto especialmente visada para o sexo e a reprodução (ibid., pp. 230-265) –, a exemplo de como refletirão posteriormente, em termos similares, Lélia Gonzalez (1984) e Angela Davis (2016). Por fim, tanto durante sua tese de livre-docência quanto em obras posteriores, como Emprego doméstico e capitalismo, Saffioti dá ao caráter dependente da economia e sociedade brasileiras o status de máxima importância na teorização do gênero, é o ponto inicial para a compreensão dos papéis sociais que homens e mulheres vêm desempenhando na sociedade brasileira desde os seus primórdios (SAFFIOTI, 1979, p.159). Embora o termo ‘gênero’ não seja utilizado nestas primeiras obras, é da opinião da própria autora que grande parte das determinações centrais do que seria entendido por gênero posteriormente, na teoria feminista em geral e em suas próprias elaborações futuras, já estavam presentes desde o início de sua produção teórica sobre o tema, provavelmente por influência de autoras como Simone de Beavouir e Betty Friedan (MÉNDEZ, 2008, p. 282). sumário 145 Marxismo. Nesse ponto, é preciso considerar o contexto histórico em que se deu o início da produção científica de Heleieth Saffioti. De acordo com ela, em 1967, quando concluiu sua tese de livre-docência, tanto a publicação em território brasileiro de literatura estrangeira em gênero, quanto a elaboração nacional sobre esta temática e a teorização específica sobre as relações de gênero e a condição feminina no Brasil eram escassas (GONÇALVES, BRANCO, 2011, pp. 73-75; MÉNDEZ, 2010, pp. 284-285). O conceito de gênero estava longe de estar a seu alcance: ainda não tinha sido difundido na teoria social em geral, nem na teoria social brasileira, popularizando-se e ganhando importância nesse meio apenas nas décadas seguintes (década de 1970, no caso dos EUA e Europa; anos 1980 e 1990, no caso do Brasil) (SAFFIOTI, 2005, pp. 43-45; HARAWAY, 2015). Considerando tal quadro histórico, seu amplo conhecimento e sua habilidade teórica na questão, explica-se como Heleieth Saffioti, portanto, logo se tornaria reconhecida nacionalmente e internacionalmente, entre outros fatores, por seu pioneirismo nos estudos sobre a condição da mulher e acerca das relações de gênero no Brasil (GONÇALVES, 2013; MODDA, 2019; LOVATTO, 2018), elaborando com rigor teórico e metodológico um material que posteriormente seria reivindicado como parte dos primórdios da sistematização de uma teoria feminista brasileira. Mais tarde em sua carreira intelectual, a socióloga passará a utilizar o conceito de gênero explícita e nominalmente. Em seu livro de 2004, Gênero, Patriarcado, Violência (2015), Saffioti coloca em relação dialética as categorias de sexo, gênero e patriarcado. Em um debate com Joan Scott, Saffioti explicita gênero enquanto uma categoria histórica, efetivamente existente na materialidade histórica, para além de meramente analítica (SAFFIOTI, 2015, p. 45; p. 111), identificada, em termos genéricos, como a construção social do masculino e do feminino, uma gramática sexual que regula a totalidade das relações humanas de dada sociedade (ibid.), portanto, os papéis sociais que os indivíduos desempenharão em sociedade e como os mesmos sumário 146 Marxismo. estabelecerão as relações sociais (SILVA, 2019, pp. 18-19). Essa categorização de gênero é semelhante à feita pela autora em uma obra anterior, O poder do macho, onde a identidade social de cada sexo é compreendida enquanto atribuída de acordo com os papéis que a sociedade espera ver cumpridos por parte de cada ‘sexo’ – os limites de atuação, de sua existência (SAFFIOTI, 1987, pp. 5-20). Outro aspecto fundamental da compreensão de Saffioti em relação ao gênero, tematizada com especial brilhantismo em O poder..., é o caráter relacional, mutuamente determinante dos ‘sexos’. Criticando a ideia de que a opressão da mulher é fruto somente de preconceitos milenares e a-históricos contra a mulher – da ignorância, de preceitos falsos e mentirosos –, Saffioti ressalta que a opressão feminina e as variadas ideias, concepções e práticas que a sustentam servem a determinados interesses, são demasiadamente úteis para a classe dominante, e se reproduzem socialmente, em última instância, por sua conexão com a sustentação do poder econômico, social e político desta classe – de forma que não há como desmantelá-las sem atacar os interesses que garantem sua manutenção. Dessa forma, o processo de formação e manutenção da opressão feminina é um processo de construção social da inferioridade – não fruto apenas do desconhecimento – concomitante com a construção social da superioridade a serviço do ‘patriarcado-racismo-capitalismo’. A supremacia masculina surge da e com a subordinação feminina, e vice-versa, dialeticamente (ibid., pp. 23-30). Por outro lado, avançando teoricamente em relação a obras anteriores, tanto em O poder... quanto em Gênero, Saffioti recusa a oposição estática entre sexo (natural) e gênero (social). No primeiro, introduz o tema da opressão debatendo com o determinismo biológico e demonstrando os condicionantes sociais da vida e comportamento humanos, e até da natureza: [...] Como falar em uma “natureza feminina” ou em uma “natureza masculina” se a sociedade condiciona inclusive o metabolismo das pessoas? (SAFFIOTI, 1987, p. 11). Mas o raciocínio é apresentado em sua forma plena no último, Gênero, sumário 147 Marxismo. Patriarcado, Violência. Como aponta Nogueira (2015), inspirada na ontologia do ser social de Lukács, a socióloga sustenta tanto o sexo como socialmente determinado; quanto o gênero como uma categoria ontológica, que se insere ao mesmo tempo na história, e à medida que não está separada do sexo, também está presente na natureza (ibid.). A ideia central advém da unidade entre ser inorgânico, ser orgânico e ser social na constituição do ser humano: conforme recompõe Lukács, o desenvolvimento do ser social de acordo com o avanço do trabalho, da consciência e das relações sociais sobrepõe as determinações sociais às determinações biológicas e naturais na vida humana; entretanto, as determinações biológico-naturais nunca desapareceram ou se desvanecem, apenas ocupam outro papel. No mesmo raciocínio, sendo o ser formado no intercâmbio entre sujeito consciente e natureza – o trabalho –, a natureza também se torna, com a progressão da atividade humana e do ser social, humanizada (SAFFIOTI, 2005; LUKÁCS, 1979). Aqui, ela também é influenciada por Judith Butler e por sua crítica da dicotomia gênero-sexo em Problemas de gênero (2016), e está abertamente negando a concepção de gênero e sexo defendida por Gayle Rubin em seu famoso ensaio O tráfico de mulheres: notas para uma economia política do sexo ([1975] 1993), concepção criticada por Saffioti por reproduzir uma cisão dual e rígida entre natureza e cultura (SAFFIOTI, 2015). Por conseguinte, como a categoria de gênero – já no contexto intelectual do feminismo de terceira onda – vinha a significar um conjunto de relações não necessariamente hierárquicas, e era entendido como aplicável a uma série de sociedades distintas, mesmo pré-capitalistas ou não-ocidentais; Saffioti enfatiza a necessidade do conceito de patriarcado, como descritivo de um caso específico das relações de gênero, fundamentado sobretudo na opressão explícita das mulheres pelos homens, ligado ao advento da propriedade privada (ibid., p. 119). Mas mesmo a especificidade das relações de gênero materializado no patriarcado também não estava isenta de historicização. A categoria de patriarcado em Saffioti não é compreendida da mesma sumário 148 Marxismo. forma como no feminismo de segunda onda, especialmente o feminismo radical, onde ela comparecia como uma estrutura a-histórica diretamente produzida por uma realidade biológica, capaz de explicar a situação das mulheres em qualquer sociedade conhecida e fonte de todas as demais opressões sociais (cf. FIRESTONE, 1976, pp. 11-22; p. 44; pp. 87-89; p. 128; pp. 216-234; MILLET, 1970). O patriarcado também não é, para Saffioti, um sistema econômico autônomo. Modda (2019) traça o desenvolvimento do conceito de patriarcado em sua obra e encontra a mais completa elaboração desse conceito em Gênero, Patriarcado, Violência. Se desde A mulher... está presente a necessária conexão entre patriarcado, racismo e capitalismo, e, portanto, a ligação do patriarcado a formas sociohistóricas específicas, particulares e transitórias; em O poder... esse entendimento é cristalizado: o patriarcado, o racismo e o capitalismo, longe de serem estruturas desconexas, separadas e auto-constituídas, estão completamente fundidos. Na realidade concreta, eles [patriarcado, racismo e capitalismo] são inseparáveis, pois se transformaram, através deste processo simbiótico, em um único sistema de dominação-exploração, aqui denominado patriarcado-racismo-capitalismo (SAFFIOTI, 1987, pp. 60). Saffioti reforça que é impossível isolar qualquer um dos três sistemas de exploração-dominação na responsabilização pelo o que as mulheres sofrem cotidianamente. A unidade entre eles, porém, não é harmônica, mas contraditória (ibid.). Para as classes dominadas, não haveria nenhuma vantagem definitiva na preservação do racismo-capitalismo-patriarcado, e seu enfrentamento só poderia se dar de forma conjunta e unitária: Estes três sistemas de dominação-exploração fundiram-se de tal maneira, que será impossível transformar um deles, deixando intactos os demais (ibid., 67). Em Gênero, Patriarcado, Violência, Heleith Saffioti recorre à metáfora do nó para sistematizar sua compreensão entre a relação entre capitalismo, racismo e patriarcado (cf. MOTTA, 2018), em uma teorização sumário 149 Marxismo. madura que apreende de forma mais abrangente e complexa a concretude da manifestação das relações de gênero: O nó formado por estas três contradições apresenta uma qualidade distinta das determinações que o integram. Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a realidade compósita e nova que resulta dessa fusão [...]. Uma pessoa não é discriminada por ser mulher, trabalhadora e negra. Efetivamente, uma mulher não é duplamente discriminada, porque, além de mulher, é ainda uma trabalhadora assalariada. Ou, ainda, não é triplamente discriminada. Não se trata de variáveis, mas sim de determinações, de qualidades, que tornam a situação destas mulheres muito mais complexa (SAFFIOTI, 2015, pp. 122-3). Nesse sentido, a relação entre gênero, raça e classe não é uma relação completamente contingente, de estruturas autônomas capazes de reger isoladamente diferentes indivíduos e se encontrar ocasionalmente para determinar a conduta de alguns indivíduos, somando-se. O que Saffioti parece estar vislumbrando é uma perspectiva de totalidade no entendimento das opressões e exploração, que permite apreender a realidade efetiva da atual sociedade capitalista sem isolar fenômenos específicos de sua relação com o todo, de sua co-constituição face às demais relações sociais – afinal, como nos ensina Marx, os objetos e os sujeitos são síntese de múltiplas determinações (MARX, 2008). Na década seguinte, outros pesquisadores irão ainda além de gênero, raça e classe, para incluir nessa unidade também a particularidade da dependência ou capitalismo dependente, inspirados em Saffioti (cf. COSTA, NOGUEIRA, 2019; MACHADO GOUVÊA, MASTROPAOLO, 2019). O tema da unidade entre capitalismo e patriarcado fora o centro do debate do feminismo socialista no final da década de 70, e Heleieth Saffioti cita parte dessa discussão em seus últimos textos, sobretudo as contribuições de Heidi Hartmann (1979) e Iris Young (1981). Hartmann propunha uma separação definitiva entre feminismo e marxismo, onde o primeiro seria utilizado para compreender e lutar contra o patriarcado sumário 150 Marxismo. enquanto sistema autônomo, e o segundo contra o capitalismo. Young questionou essa cisão, criticando as teses de Hartmann incisivamente e conclamando por uma teoria unitária entre patriarcado e capitalismo, centrada na divisão generificada do trabalho. Esta ‘teoria unitária’ apareceu, de forma definitiva, apenas em 1983, com o monumental Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory (2013) de Lise Vogel. Nesta rica obra, Vogel revisa a tradição marxista em busca de compreensões materialistas históricas a respeito da opressão de gênero e, finalmente, rejeita as contribuições existentes até o momento – embora reconhecendo seu valor – como insuficientes para apreender a base material da opressão das mulheres sob o capitalismo. Vogel, retornando cuidadosamente ao Capital de Marx, a encontrará no papel do trabalho não-pago e não-mercantilizado das mulheres para a reprodução da força de trabalho, que permite a apropriação de uma quantia ainda superior de valor por parte dos capitalistas no processo de produção. Dessa unidade inseparável entre a (re)produção da força de trabalho e a produção das demais mercadorias no modo de produção de capitalista, Vogel extrairá uma categorização rica do capitalismo enquanto uma totalidade articulada, contraditória e complexa de relações sociais e descartará as teorias de “dois sistemas” ou “três sistemas” para analisar a opressão das mulheres: há um sistema, e o combate às relações opressivas de gênero é inseparável do combate as relações opressivas de classe (VOGEL, 2013; ARRUZZA, 2015). Essa abordagem posteriormente gerará todo um novo campo teórico no feminismo-marxista, conhecido como Teoria da Reprodução Social, popularizada na década de 2010 (cf. BHATTACHARYA, 2017; RUAS, 2019). Embora Saffioti nunca tenha conhecido tal abordagem de fato, podemos perceber facilmente sua proximidade com ela em vários pontos, e sua contribuição fundamental e, evidentemente, pioneira, para o feminismo-marxista brasileiro e mundial no que diz respeito a uma reflexão proto-unitária entre capitalismo, racismo e patriarcado, capaz de superar tanto a cisão rígida entre as opressões/explorações quanto o modelo de conexão acidental e ocasional entre elas. sumário 151 Marxismo. É de especial relevância deter-nos sobre o que Saffioti identificava, sobretudo ao fim de sua vida e trajetória teórica, como a incompletude do conceito de gênero para a construção de uma análise feminista robusta e crítica, se utilizado isoladamente. Embora indubitavelmente suas formulações teóricas tenham contribuído sobremaneira com a conceitualização de gênero enquanto categoria ontológica, a autora enfatizava a importância de que tal conceito não substituísse o de patriarcado, destacando a importância da indissociabilidade de ambos. Para Saffioti, o conceito de gênero é extremamente útil, devido à sua amplitude histórica, temporal, societal, cuja característica abrangente abarca a totalidade histórica das sociedades conhecidas, o que demarca sua principal diferença com o conceito de patriarcado, que se aplica exclusivamente a uma fase histórica e a certos tipos societais particulares, nos quais se conecta ao advento da propriedade privada. Não obstante, para a autora, é justamente o conceito de patriarcado que explicita o aspecto central de dominação e exploração do sistema capitalista sendo, portanto, indispensável para demonstrar que a base material da desigualdade entre homens e mulheres não foi solapada (SAFFIOTI, 2015). Tal concepção nos leva a outro aspecto distintivo da teorização de gênero por Saffioti, cuja análise das relações de gênero não pode prescindir da associação da tríade das subestruturas de poder historicamente constituídas na estrutura global de poder: gênero, raça/etnia e classe social, ou seja, de que patriarcado, racismo e capitalismo estão imbricados. A autora destaca que análises específicas de gênero são importantes e que a separação da tríade mencionada para fins analíticos, na esfera da abstração, por si só, não representa grandes prejuízos científicos e políticos e sim a ausência da síntese que recomponha a totalidade, a partir do posicionamento da contradição de gênero em conjunto com as demais contradições sociais de um sistema, característica elementar do método materialista histórico-dialético que marca o pensamento da autora (ibid.). sumário 152 Marxismo. Finalmente, outra peculiaridade do conceito de gênero em Saffioti advém da identificação do nexo co-constitutivo entre racismo e sexismo, a partir da qual gênero não consiste unicamente uma construção social desencarnada, mas também é imanente a um processo de corporificação, ou seja, o corpo da mulher também participa deste constructo, seja pela função de reprodução biológica, de objeto sexual e/ou de força de trabalho, cuja evidência empírica seria o tratamento distinto dispensado a homens e a mulheres durante a escravidão colonial, já que aos homens escravizados se atribuía exclusivamente a esfera da produção, enquanto as mulheres escravizadas, além de constituírem-se enquanto força de trabalho agrícola/manufatureira, eram submetidas ao atendimento de outros dois propósitos: serem reprodutoras e “prestadoras” de serviços sexuais (SAFFIOTI, 2005; 2015; 2013; 1994). Destarte, o arcabouço teórico de Saffioti é particularmente útil nos contextos de capitalismo dependente e periférico, para levar a efeito análises consistentes da ordem patriarcal de gênero em sociedades forjadas em processos de colonização de exploração e contínua subordinação aos países imperialistas. REFERÊNCIAS ARRUZZA, Cinzia. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, primeiro semestre de 2015. BECKER, Simone; MENDES, Juliana Cavilha. Entrevista com Heleieth Saffioti. Revista Estudos Feministas, vol. 19, núm. 1, janeiro-abril, 2011, pp. 143-165. Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, Brasil. BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. Londres: Pluto Press, 2017. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. COSTA, Renata G; NOGUEIRA, L. 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Boston: South End Press, 1981. sumário 155 9 Alan Caldas Nikolas Pallisser Silva As funções sociais da democracia racial nos anos 1940 e 1950: elites senhoriais, Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.9 Marxismo. INTRODUÇÃO Este texto problematiza alguns dos significados e das funções sociais que o conceito de democracia racial assumiu na primeira metade do século XX em três grupos sociais descritos mais adiante. Para isso, utilizaremos o instrumento metodológico da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1986). Desse modo, quando nos referirmos à democracia racial, pensamos num determinado conceito que está em relação tanto a uma época, já que essa noção era parte de uma visão de mundo existente nos anos 1940 e 1950, quanto a grupos e classes sociais particulares, uma vez que a ideia de democracia racial, apesar de ter perpassado a visão de mundo de diversos grupos, o fazia de modo diferencial, alterando seu significando de acordo com a posição social de cada um desses grupos. Vários fatores condicionaram a sedimentação da democracia racial como um conceito comum em certos setores das elites agrárias, no meio intelectual acadêmico e no meio dos intelectuais ativistas negros e negras. Antonio Sergio Alfredo Guimarães (2001) afirmou que a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial deu centralidade às ideias de democracia, povo e nação e que essas, por sua vez, favoreceram a formação de um ideário mais ou menos dissonante acerca do que seria uma democracia racial no Brasil. Segundo este intérprete, outro fator que contribuiu para a formação desse ideário foi a crítica do paradigma biológico das raças como forma de explicação das diferenças humanas e a emergência do paradigma da cultura13. Todos esses elementos contribuíram para que a noção de democracia racial se constituísse em aspecto central da visão de mundo do período. 13 O paradigma da cultura interessava tanto aos intelectuais acadêmicos preocupados em estar atualizados quanto aos desenvolvimentos das ciências sociais nos Estados Unidos e na Europa, quanto aos movimentos negros, na medida em que as diferenças humanas deixavam de ser essencializadas e passavam a ser pensadas como produto da história e da cultura. sumário 157 Marxismo. Para compreender o funcionamento das ideias em meio às suas conexões sociais, objetivo da sociologia do conhecimento, Mannheim afirmou a necessidade de compreender o campo intelectual por analogia aos campos políticos e econômicos, onde acontecem fenômenos de competição, confronto, inovação, apropriação, etc. (MANNHEIM, 1986). Partindo dessa perspectiva, entenderemos a democracia racial como um conceito perpassado pelas disputas envolvendo três grupos sociais: uma parcela das elites políticas que afirmavam a existência de uma democracia racial no Brasil como forma de evitar conflitos e revoltas e de preservar seus interesses de casta vindos do escravismo; os cientistas acadêmicos, representados por Gilberto Freyre, que possuíam um projeto tradicionalista de modernização dentro do qual a democracia racial era um dos componentes principais; e os intelectuais militantes representados por Guerreiro Ramos e pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), em que a democracia racial estava envolvida num projeto racional de transformação da sociedade em vista da melhoria das condições de vida da população negra. Partindo de Florestan Fernandes (2008), argumentaremos que o conceito de democracia racial surgiu, provavelmente, no seio das elites da I República como uma ideologia estritamente atrelada aos interesses políticos dessa classe. Posteriormente, essa ideologia foi sistematizada e ganhou vernizes científicos através da pena de Gilberto Freyre, que a tornou uma utopia14 conservadora capaz de pensar e organizar a modernização brasileira a partir da tradição de adaptabilidade luso-brasileira expressa, entre outras coisas, na miscigenação biológica e cultural. Em resposta a essas duas concepções, o conceito foi apropriado pela intelligentsia negra ligada ao Teatro Experimental do Negro e transformada em uma utopia progressista, mais precisamente 14 Enquanto o conceito de ideologia nos ajuda a pensar os condicionantes sociais das ideias, isto é, os efeitos da sociedade sobre os mundos mentais, o conceito de utopia nos ajuda a pensar o poder transformador das ideias sobre as ordens sociais, quer dizer, os efeitos das ideias sobre as sociedades. Sobre isso, consultar Mannheim (1986). sumário 158 Marxismo. num projeto de integração econômica, social e cultural do negro de maneira justa na sociedade de mercado emergente. A DEMOCRACIA RACIAL COMO IDEOLOGIA: O PROJETO DAS ELITES A origem da noção de democracia racial é difícil de situar. Maria José Campos (2007) apontou para as dificuldades de encontrar o autor de tal noção e, através da análise da obra dos literatos modernistas Cassiano Ricardo (1895-1974) e Menotti Del Picchia (1892-1988), mostrou a polissemia e a ampla difusão do conceito, antes mesmo da consagração das obras de Gilberto Freyre. Guimarães (2001), apoiado nos estudos históricos de Célia Maria Marinho de Azevedo, relacionou a origem desse conceito com o imaginário internacional constituído durante as campanhas abolicionistas, segundo o qual o Brasil seria um “paraíso racial”. George Reid Andrews (2017) mostrou como a ideia do Brasil enquanto democracia racial se expandiu para os Estados Unidos por meio da divulgação na imprensa negra de relatos de viajantes negros e negras que passaram pelo país na primeira metade do século XX. Apesar dessas significativas contribuições para o mapeamento da gênesis do conceito em questão, neste artigo, no entanto, tomaremos como ponto de partida desse processo as análises de Florestan Fernandes (1920-1995) em sua obra A integração do negro na sociedade de classes (2008[1964]), segundo a qual a origem do conceito de democracia racial não se encontra no campo intelectual e sim no campo político. Para Fernandes, as ideologias e as utopias dos antigos senhores de escravos foram fundamentais para a perpetuação do padrão de relações raciais vindo do escravismo numa sociedade que se imaginava democrática e liberal. No seio da antiga ideologia racial, a sumário 159 Marxismo. democracia racial surgiu como um elemento novo, mais precisamente, a única forma de conciliar um conjunto de ideias que legitimavam uma hierarquia de castas dentro de uma sociedade urbano-industrial marcada pela concorrência de mercado e pela suposta democracia política (FERNANDES, 2008). Nessa conjectura, a democracia racial foi a sistematização de um comportamento ambivalente das elites para com a população negra. De um lado, essa elite recusava, de fato, nos relacionamentos interpessoais, a igualdade entre brancos e negros; porém, de outro, aceitava certos compromissos com uma sociedade competitiva, livre e democrática. Disso decorreu uma estratégia também ambígua: como forma de desmobilização da população negra, reprimia-se autoritariamente toda agitação e organização em torno do chamado “problema do negro”, por medo de uma revolta social, ao mesmo tempo em que se permitia, como única forma de solidariedade, o paternalismo, que garantia melhoria de condições de vida para alguns, mas nunca para a coletividade dos descendentes de pessoas escravizadas. Para legitimar tal modo de ação política, era preciso ocultar a distância entre a opressora, miserável e anômica situação da população negra no pós-abolição e sua suposta igualdade jurídica e social. Para isso, velhos mitos de um doce e humano cativeiro foram ressignificados e serviram como justificativas para as relações raciais “tão igualitárias” que vigoravam no Brasil. Nesse contexto, a democracia racial surgiu, ao mesmo tempo, como ideologia e como utopia. Como ideologia porque foi condicionada por necessidades psicológicas, políticas e econômicas de um grupo com posição e mentalidade específicas. No nível psicológico, a democracia racial aliviava a má consciência das elites acerca do seu envolvimento com o escravismo, apaziguava o medo de uma revolta da população negra e desviava a atenção dos problemas candentes da nação para seus interesses individuais. No nível dos interesses políticos, a democracia racial funcionava sumário 160 Marxismo. como uma “técnica de dominação” de classe que atuava em três níveis: culpabilizava o negro pela sua condição social, que seria produto de sua irresponsabilidade; ao mesmo tempo, isentava o branco de qualquer responsabilidade social com a situação socioeconômica da população negra; por fim, criava uma “falsa consciência da realidade racial brasileira” que incluía “a ideia de que ‘o negro não tem problemas no Brasil’”, que a índole brasileira não distingue raças, que as oportunidades de competição entre brancos e negros são justas, que o negro está conformado com sua condição de vida e que a abolição resolveu todos os problemas do negro (FERNANDES, 2008, p. 311). No nível dos interesses econômicos, a ilusão social proporcionada pela existência de uma suposta democracia racial garantia os interesses da grande propriedade rural, evitando desviar recursos do Estado para as populações libertas e evitando rachas no seio das diversas frações no poder, de modo a permitir a ajuda estatal para a grande lavoura, bem como o programa de imigração como forma de substituir a mão de obra escrava. A democracia racial imaginada pelas elites senhoriais tinha funções utópicas na medida em que moldava o presente e o futuro de acordo com o passado. Legitimando a perpetuação do poder político e, com ele, o controle da economia, a democracia racial utopicamente agia sobre a ordem social presente, preservando as distâncias sociais da sociedade escravista no futuro do país e, dessa forma, retardando o desenvolvimento de uma ordem social competitiva e democrática. Nesse cenário, a utopia da democracia racial estava diretamente ligada ao futuro do país sendo, em consequência, estratégica para qualquer ação política conservadora ou progressista visando a mudança social. Em tais condições, segundo o sociólogo paulista, somente mediante “a atuação organizada, ativa e intransigente do negro e do mulato” (FERNANDES, 2008, p. 326) a visão de futuro das elites escravocratas poderia ser enfrentada. Em razão disso, no interior dessa sumário 161 Marxismo. luta do povo negro para concretizar a democracia no Brasil, a disputa ideológica/utópica acerca do significado da democracia racial seria uma das batalhas mais importantes, já que enquanto o mito da ‘democracia racial’ não puder ser utilizado abertamente, pelos negros e pelos mulatos, como um regulador de seus anseios de classificação e de ascensão sociais, ele será inócuo em termos da própria democratização da ordem racial imperante (FERNANDES, 2008, p. 326-327). Ora, é justamente essa disputa pelo conceito de democracia racial, enquanto utopia, que foi travada de maneira “organizada, ativa e intransigente” no Rio de Janeiro, nos anos 1940 e 1950, pela intelectualidade do TEN. Não obstante, antes disso, intelectuais acadêmicos, nomeadamente Gilberto Freyre, sistematizaram e deram vernizes científicos a essa utopia conservadora das antigas classes senhoriais. A DEMOCRACIA RACIAL COMO IDEOLOGIA CONSERVADORA: GILBERTO FREYRE Poucos são os pontos pacíficos na obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Questões como a maneira que o pensador compreendia o regime escravocrata no Brasil; os papéis sociais desempenhados por escravizados, senhores e sinhás; a força da modernização europeizante na transformação do código valorativo nacional e outros pontos são, contemporaneamente, alguns dos aspectos acerca dos quais encontramos divergência entre os comentadores. Contudo, não achamos discordâncias na afirmação de que a preocupação de Freyre, ao buscar escrever a história social do Brasil, foram as formas de integração harmônica dos opostos ou, o equilíbrio de antagonismos (LEITE, 1983; SOUZA, 2001; PAIXÃO, 2014; CARVALHO, 2008). Para além de um mero foco de atenção, o autor buscou manter os sumário 162 Marxismo. antagonismos equilibrados ou, dito de outro modo, almejava um projeto de modernização conservadora. Compreender esse projeto e sua relação com a democracia racial foi o nosso objetivo neste tópico. É fundamental notarmos que a obra prima de Freyre, Casa Grande & Senzala (1933), representou uma afirmação corajosa pelo momento em que foi publicada, haja vista que o livro valorizava o mestiço e o negro, em um período em que as teorias pseudocientíficas que deram base para o nazismo se encontravam em franca ascensão. Discípulo do antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos Franz Boas, o Freyre tentou operar a distinção entre raça e cultura para interpretar a história brasileira, contudo – ainda que este seja um ponto de discordância entre os comentadores –, em determinados momentos, o sociólogo acaba por dar relevante peso à raça (como categoria biológica) na explicação sociológica. Ao compreender a história social do Brasil, Freyre identificou quais seriam as características dos portugueses responsáveis por viabilizar o nascimento de uma sociedade nos trópicos. Devido à história e à geografia de Portugal, e sobretudo à sua relação com os povos a quem chamou de orientais, os portugueses seriam mestiços e teriam uma predisposição para se relacionar afetivamente com os povos conquistados nesse processo de colonização. Desse modo, a característica chave para o entendimento da relação entre portugueses, indígenas e negros no edifício freyriano foi a mestiçagem balizada pelo catolicismo e pelo intercurso sexual, portanto, poderíamos dizer que se trata de uma mestiçagem cultural e biológica retroalimentada (PAIXÃO, 2014). A miscibilidade, herança do legado cultural mouro ou do catolicismo português, será o diferencial do português em relação à forma de colonização praticada por ingleses e espanhóis que, por sua vez, eram mais ortodoxos e preconceituosos. Assim, a teoria freyriana será uma tentativa de descrever e explicar a história brasileira através do processo de miscigenação (LEITE, p. 305-6). sumário 163 Marxismo. Na descrição do sociólogo, a família de tipo patriarcal e a casa-grande foi uma espécie de tipo ideal, isto é, um modelo do perfil de sociedade colonial sendo as outras regiões do país, tão somente, um espelho mais ou menos aproximado do que ocorria naquele espaço (PAIXÃO, (2014, p. 51). Este tipo de família esteve mais voltado a um modelo oriental do que à família burguesa, tendo em vista que ao redor do senhor de engenho aglutinavam-se diversos indivíduos que dele dependiam. Vejamos o que nos diz Marcelo Paixão a respeito deste modelo de família: Para Gilberto Freyre, o modelo de organização familiar da casa-grande em muito lembrava o modelo de família oriental. No entorno do senhor de engenho, patriarca do clã, se encontravam sua esposa (na verdade várias, pois além da elevada taxa de mortalidade materna e dos novos casamentos oficiais que daí se seguiam, havia as mucamas na maioria das vezes odaliscas em seu harém), seus inúmeros filhos e filhas, demais parentes, agregados, o padre da capela; os escravizados e escravizadas domésticos e seus respectivos filhos, muitos, outrossim, descendentes naturais do senhor de engenho. Mais distantes, no limiar dos domínios da família extensa, viriam os escravizados do eito. Sobre estes, não obstante a dureza das condições de trabalho, nosso autor apontou que se beneficiavam por uma melhor alimentação, mais saudável, regular e farta [...]. Não obstante, sabe-se que nessa família o pai guardaria um direito de vida e morte sobre seus membros. (2014, p. 52). No âmbito da família patriarcal, as relações eram de todas as ordens, com destaque para o intercurso sexual que dá origem a uma proto classe média (SOUZA, 2001). Freyre se utiliza da figura de Brás Cubas, criado por Machado de Assis, para exemplificá-las, inclusive para versar sobre a transmissão dos valores do senhor para os filhos. O autor identificou o sadismo como um traço essencial destas relações no seio da família patriarcal, como explica Souza (2001, p. 303-4): Foi sádica a relação do homem português com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres brancas [...]. Era sádica, finalmente, a relação do senhor com os próprios sumário 164 Marxismo. filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos. Contudo, demarcando o equilíbrio de antagonismos, é válido ressalvar que Gilberto Freyre acentua o sadismo na classe dominante e o masoquismo nos grupos inferiores (LEITE, 1983, p. 308). Ao dar importância para os elementos psicológicos, sobretudo para o sadomasoquismo presente nas relações antagônicas (representadas, no limite, por senhor e escravizado) no interior da família patriarcal, mas generalizado na sociedade, Freyre indica que as relações entre as raças foram muito mais suaves no Brasil do que em outras regiões da América (LEITE, 1983, p. 307-308) e também que, a condição de vida do escravizado não era má e este tinha nível de vida melhor que o do operário europeu da mesma época (Ibid.). Não obstante os elementos psicológicos, os valores culturais também estão situados mais a um dos polos da relação: é um equilíbrio de antagonismos que pende para a adaptação das demais referências culturais ao modelo europeu (CARVALHO, 2008, p. 86). Portanto, no interior do pensamento freyriano, a acomodação dos antagonismos ocorre através da negação de um dos polos (PAIXÃO, 2014, p. 58). Imbuído destas convicções, Freyre viu com pesar o processo de modernização do Brasil, pois este processo punha em rota de colisão os valores de uma sociedade patriarcal-colonial com o individualismo burguês. Por um lado, teria comprometido os fundamentos culturais da antiga sociedade colonial e, por outro, teria aberto caminho para que tais bases não se perdessem de vez, estando preservada tal herança por meio da ascensão do mulato e, em segundo plano, da mulata, através de mecanismos permitidos pela própria modernização (PAIXÃO, 2014, p. 71). O mulato é um tipo ideal do que Freyre chamou de democracia étnica, isto é, a possibilidade de ascensão do mulato significa que, sumário 165 Marxismo. mesmo diante de uma sociedade individualista, é possível preservar os valores expressos na miscigenação e no intercurso sexual. Todavia, essa possibilidade de ascensão era baixíssima se tratando dos negros não miscigenados, ou seja, ainda que o autor só venha a expressar textualmente o conceito de democracia racial nos anos de 1960 – em aberto processo de descolonização do continente africano – como uma defesa do colonialismo português na África, é possível visualizar a democracia étnica já nas obras de 1930, como uma forma de hierarquizar socialmente os indivíduos de acordo com a quantidade de melanina que carregam (PAIXÃO, 2014). Por fim, destacamos que o projeto de modernização conservadora representado teoricamente pelo conceito de democracia étnica e, posteriormente, racial, caracteriza também a angústia pessoal de Freyre que, diante da modernização do Brasil, visualizava as riquezas construídas na sua infância de neto do sistema patriarcal em ruínas (CARVALHO, 2008). Portanto, o mestiço claro, portador dos valores tradicionais representados pelo patriarcalismo, projetaria no futuro os valores do passado e a posição hierarquicamente inferior em relação ao branco, ao passo que o negro não miscigenado e o indígena foram descritos como pitorescos e mumificados no passado. Essa ideologia conservadora de Freyre buscou garantir o equilíbrio de antagonismos hierárquico do Brasil moderno: O patriarca – dono absoluto de sua propriedade, de sua família, de seus escravos – se transforma, depois da libertação dos escravos, no coronel e, depois, no chefe político que decide as questões através de suas preferências pessoais e suas relações de família e amizade. Está claro que Gilberto Freyre não leva sua análise à situação atual, a não ser implicitamente, na medida em que compara o presente ao passado, e neste caso não deixa dúvida quanto à sua preferência pelas formas tradicionais. (LEITE, 1983, p. 313). sumário 166 Marxismo. A DEMOCRACIA RACIAL COMO UTOPIA PROGRESSISTA: GUERREIRO RAMOS E O TEN Neste tópico trataremos da função da democracia racial na produção intelectual dos integrantes do TEN, mais especialmente na produção de Guerreiro Ramos15. O TEN foi uma organização política e estética que atuou em defesa dos interesses da população negra de 1944 até 1966. Sua principal liderança foi Abdias Nascimento (19142011)16. O TEN foi um dos principais responsáveis pela produção de novas formas de autorrepresentação estética, científica e política da população negra, formas essas marcadas, simultaneamente, pela solidariedade transnacional com os povos negros da diáspora e com a integração econômica, social e política justa do povo negro à sociedade brasileira (GUIMARÃES, 2004). O TEN foi organizado por negros e negras pertencentes às classes médias. Em suas trajetórias, conforme essas pessoas foram percebendo a existência de obstáculos intransponíveis à sua ascensão social, obstáculos relacionados, primariamente, à cor de pele, elas se aproximaram das pessoas negras de classes inferiores e procuraram construir projetos políticos mais amplos e justos de integração na comunidade nacional (GUIMARÃES, 2004). No interior desses projetos, estética e política eram inseparáveis (NASCIMENTO, 2014). Ao mesmo tempo em que organizavam cursos de alfabetização e de cultura geral para que a população negra pobre pudesse participar da vida cultural e política do país, as pessoas ligadas ao TEN disputavam a vanguarda da produção artística na então capital da República (MACEDO, 2005). 15 Os seguintes comentadores tratam, direta ou indiretamente, do tema da democracia racial no pensamento de Guerreiro Ramos: Maio (1996), Campos (2015), Guimarães (2003; 2004), Barbosa (2004). 16 Abdias Nascimento, intelectual negro de grande destaque na produção cultural brasileira do século XX, foi ator, poeta, escritor, dramaturgo, artistas plástico e ativista dos direitos das pessoas negras. Sobre Nascimento e o TEN veja: Sandra Almada (2009), Márcio José de Macedo (2005) e Elisa Larkin Nascimento (2014). sumário 167 Marxismo. Guerreiro Ramos (1915-1982) iniciou, por volta de 1945, uma amizade com Abdias Nascimento que duraria por toda a sua vida. A partir de 1948, cedendo aos convites do amigo, ele ingressou nas fileiras do TEN, produzindo até 1956 importantes reflexões sobre a questão racial no Brasil, reflexões essas que compuseram uma parte fundamental do projeto político do TEN e de sua visão sobre a democracia racial. Durante seus anos de existência, o TEN agiu criticamente em torno da democracia racial, primeiro testando os seus limites, contrapondo-a com a realidade da população negra, reformulando-a e, por fim, já nos anos 1960, denunciando-a como um mito que atrapalhava o progresso da população negra. Enquanto as utopias conservadoras relacionadas à democracia racial partiram do fato de que esta teria sido o resultado de uma tradição que deveria ser preservada no futuro17, para os intelectuais do TEN, a colonização trouxe, antes de mais nada, obstáculos ao projeto de democracia racial. Esses obstáculos ligavam-se a todo um complexo psicológico-social elaborado em cêrca [sic] de quatro séculos (RAMOS, 1950a, p. 36). Do ponto de vista psicológico, os descendentes de pessoas escravizadas viveriam, ambiguamente, entre as sobrevivências culturais africanas e a cultura do dominador, tendo, por isso, grande dificuldades em entender o novo complexo institucional desenvolvido após a Abolição e a Proclamação da República; já os brancos, pelo costume de tentar tratar as pessoas negras como objetos, tinham hábitos em descompasso com as necessidades de uma ordem institucional democrática. Do ponto de vista social, a escravidão legou uma estrutura de classes rìgidamente [sic] tecida que impedia a ascensão dos descendentes de escravizados, prendendo essa população nas classes de baixo poder aquisitivo (RAMOS, 1950a, p. 36). 17 No caso das elites agrárias, essa tradição era composta das supostamente idílicas relações entre senhores e escravos marcadas pelo paternalismo. No caso de Freyre, a tradição que deveria ser preservada era a da plasticidade do português expressa na mestiçagem biológica e cultural do povo brasileiro. sumário 168 Marxismo. Ao passo que na visão das elites, bastava a igualdade e a liberdade perante a lei para que a democracia racial se consolidasse, para o TEN a liberdade é mais do que uma condição jurídica, é uma situação complexa, dinamizada por fatores psicológicos e sociais numerosos (RAMOS, 1950a, p. 37). Contra o idealismo utópico das elites, para o qual a Abolição resolveu o “problema do negro” no Brasil, para os membros do TEN, isso foi um avanço puramente simbólico, abstrato [...] de um lado porque a estrutura de dominação da sociedade brasileira não se alterou; de outro lado, porque a massa juridicamente liberta estava psicològicamente [sic] despreparada para assumir as funções da cidadania (RAMOS, 1950a, p. 37). Daí que para a intelectualidade do TEN o processo de libertação da gente de côr [sic] precisa ser submetido a uma técnica (RAMOS, 1950a, p. 37), mais precisamente, a um projeto racional de orientação da vida coletiva que instalasse na sociedade brasileira mecanismos de capilaridade social capazes de dar função e posição adequada aos elementos da massa de côr [sic] (RAMOS, 1950a, p. 37), além de propiciar meios de formação cultural para que essa população pudesse se educar também nos novos padrões de civilidade exigidos pela vida democrática. Isso contrasta fortemente com a visão utópica das elites agrárias e também com a visão de Gilberto Freyre, para quem a vida do povo brasileiro deveria ser regida fundamentalmente pela irracionalidade da tradição. Para mostrar a viabilidade de sua utopia, o TEN desenvolveu, em microescala, experiências que levariam ao novo padrão de convivência entre brancos e negros. Essas experiências envolviam desde cursos gratuitos de alfabetização e de cultura geral, passando por concursos de beleza negra, indo até sofisticados mecanismos de desrecalcamento através de técnicas teatrais como a grupoterapia e a socioterapia18. 18 Com relação às diversas práticas do TEN, consultar Nascimento (2004). Sobre o caráter pioneiro do TEN no tratamento das perturbações psíquicas causadas pelo racismo através da grupoterapia, ver a obra organizada por Maria Célia Malaquias (2020). sumário 169 Marxismo. A visibilização de práticas racistas também foi parte fundamental da visão de democracia racial do TEN. Guerreiro Ramos (1948, p. 2), em pesquisa realizada com servidores públicos e divulgada no jornal A Manhã, constatou nesse meio forte preconceito contra o negro e o mulato. Abdias Nascimento, por diversas vezes, veio aos jornais do período manifestar a ocorrência de práticas de racismo e discriminação, por exemplo, quando membros do TEN foram impedidos de entrar no Baile dos Artistas realizados no Hotel Glória, ainda que tivessem sido convidados19. Episódios similares foram denunciados pelo TEN, por exemplo, quando as antropólogas negras estadunidenses Katherine Dunham e Irene Diggs tiveram sua hospedagem barrada no Hotel Esplanada e no Hotel Serrador, respectivamente20. Por essas e outras manifestações, o TEN foi acusado de criar criar divisões inexistentes na sociedade brasileira, amplificando casos isolados de discriminação. Respondendo a uma dessas críticas, publicada no jornal O Globo, Nascimento afirmou: No mês passado esse vespertino criticou o movimento de valorização da gente de cor insistindo nessa tecla já gasta da inexistência de preconceitos de raça no Brasil. É verdade. Não possuímos, graças a Deus, ódios raciais entre nós. Mas negar o preconceito de cor? Nunca! (QUILOMBO, 1950, p. 5). Nas peças nas quais atuou, o TEN procurou construir uma nova representação das vivências do povo negro, criticando a estética racista que impunha papéis teatrais burlescos, sem centralidade e carentes de genuínas experiências vividas aos atores e atrizes negros e negras. Sobre a produção dramatúrgica21 do TEN, Florestan Fernandes afirmou que representa a afirmação da negritude como uma experiência humana válida através de uma penetração mais profunda no cosmos 19 Veja o texto Dutra Conta o Racismo: punido o comissário que barrou os artistas negros à porta do hotel Glória, na Revista Quilombo, n. 6, p. 4 (fev. 1950). 20 Veja o texto: Prossegue a Cruzada para a Segunda Abolição: o dep. Afonso Arinos submete à aprovação da câmara um projeto de lei que condena como crime a discriminação racial a palavra do sociólogo Gilberto Freyre - o incidente com Katherine Dunham, em São Paulo, na Revista Quilombo, n. 10, p. 8 (jun./jul. 1950). 21 Sobre a produção teatral do TEN, consultar Nascimento (1966; 2004) e Almada (2009). sumário 170 Marxismo. moral produzido pela miscigenação e pelas injustiças flagrantes ou disfarçadas da ‘democracia racial’ brasileira (FERNANDES, 1966, p. 169). Ao lado de sua produção teatral, o TEN também realizou concursos de beleza para mulheres negras e mestiças. O objetivo era deslocar o padrão valorativo de beleza centrado nas características dos descendentes de europeus e promover uma pedagogia capaz de contribuir com a desalienação estética. Segundo Nascimento, esses concursos foram concebidos como instrumentos pedagógicos buscando realçar o tipo de beleza da mulher afro-brasileira e educar o gosto estético popular, pervertido pela pressão e consagração exclusiva de padrões brancos de beleza (NASCIMENTO, 2004, p. 223). Uma das iniciativas mais importantes do TEN foi o jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro22. O jornal foi um fórum de discussões em que intelectuais negros e brancos, acadêmicos e militantes escreveram sobre as relações raciais no Brasil. Uma característica singular desse periódico foi suas ligação com movimentos transnacionais de luta dos povos negros, em especial com o movimento de negritude23. A própria ideia de democracia racial vai ser reformulada a partir desse contato de ideias. Roger Bastide, escrevendo no Quilombo, na seção intitulada Democracia racial, chegou a afirmar que a democracia racial brasileira era o estágio mais avançado do movimento de negritude (MACEDO, 2005). Guerreiro Ramos (1950b, p. 11) também aproximou a noção de democracia racial da de negritude, afirmando-a como uma subjetividade, uma vivência inserida nas categorias clássicas da sociedade brasileira que representa uma comoção idiossincrática do universo, resultante de uma peculiaríssima compenetração de fatos históricos e biológicos (RAMOS, 1952, p. 1). 22 Para uma análise sociológica do Quilombo consultar Macedo (2005). 23 O contato com o movimento da negritude francesa se deu desde o primeiro número do jornal. A negritude começou como um movimento estético literário, organizado por estudantes negros africanos e antilhanos residentes em Paris, e se estendeu para o campo político através das lutas de descolonização. O tema central do movimento é o lugar e a contribuição dos povos africanos para a cultura ocidental (MACEDO, 2005). Para uma análise detalhada da penetração das ideias da negritude no TEN, consultar Barbosa (2013). sumário 171 Marxismo. Guerreiro Ramos foi mais longe e inseriu a afirmação da negritude, isto é, a afirmação da contingência histórica e biológica do ser negro no Brasil como uma técnica de desrecalcamento tanto do branco quanto do negro. Enquanto na concepção utópica da democracia racial das elites agrárias era o branco que se destacava e na concepção de Freyre era o mulato, na de Ramos era o negro, pois, através da afirmação da negritude num país em que todos se querem brancos, pode-se ‘reeducar o branco’, no sentido de adestrá-lo para a convivência democrática com os homens de côr [sic], de minar e desfazer os seus estereótipos e sua ideologia racial discriminativa [...]. Reeducar o branco para perceber a beleza negra e estimá-la, como uma realidade intrínseca (RAMOS, 1952, p. 1). Gilberto Freyre colocou a questão da democracia racial em moldes científicos. O TEN partiu dessa perspectiva, mas tentou conciliá-la com o ativismo político em torno dos problemas concretos da população negra. Um exemplo dessa tentativa foi o I Congresso do Negro Brasileiro (1950), um evento que agrupou intelectuais acadêmicos e intelectuais ativistas preocupados em compreender as condições de vida da população negra no Brasil24. Nesse ponto, tentando avançar a cientificidade através das luzes lançadas pelo ativismo político, Guerreiro Ramos foi adiante e afirmou que, dada a paralisia dos intelectuais brasileiros diante dos valores europeus, que contaminavam sua percepção do Brasil, apenas a assunção do sujeito do conhecimento como possuindo um corpo negro lançado numa sociedade racista, o niger sum, poderia fornecer uma perspectiva ampla o suficiente para compreender a história e a estrutura social brasileira (RAMOS, 1995)25. 24 Esse evento foi dramático porque representou, simultaneamente, o auge da colaboração entre militantes do TEN e intelectuais acadêmicos e também o fim prematuro dessa relação. Para uma análise detalhada do evento, consultar Barbosa (2004) e Nascimento (2003). 25 Segundo Guimarães (1999, p. 95), essa ideia de usar o negro como posição para descrever a estrutura social brasileira foi retomada de Guerreiro Ramos por Florestan Fernandes, para escrever A integração do negro na sociedade de classes. sumário 172 Marxismo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a primeira metade do século XX, o conceito de democracia racial esteve em disputa. A partir dessa disputa, surgiram utopias conservadoras e progressistas, mais ou menos aproximadas da realidade, com mais ou com menos oportunidades de se tornarem efetivas. As elites agrárias desenvolveram a democracia racial de forma muito pragmática, em vista de preservar seus privilégios, e se a transformaram em uma utopia para a nação foi exclusivamente como forma de manter a população negra sob controle para a realização de um projeto de modernização conservadora. Gilberto Freyre foi mais longe: além de sistematizar a democracia racial numa visão coerente de mundo, quis não apenas conter a modernização de tipo liberal democrática, mas também regressar “a sua infância”, ao lusotropicalismo, de modo a manter a tradição portuguesa de colonização como guia da sociedade. Por outro lado, o TEN apostou todas as suas fichas em um processo de modernização que levasse a uma sociedade em que houvesse uma competição justa entre brancos e negros. Dessa perspectiva, o povo negro seria o principal interessado no desmanche do antigo regime e, portanto, o protagonista mais legítimo do processo de transformação da nação, daí a famosa fórmula de Ramos (1954, p. 63): o negro é povo no Brasil. No entanto, com a ditadura militar, a democracia racial foi cooptada autoritariamente pelo Estado, que fechou as possibilidades reais de uma democracia política ao mesmo tempo em que vendeu a imagem do Brasil como um paraíso racial (MACEDO, 2005). Nessas condições, depois do autoexílio de Guerreiro Ramos, o líder do TEN, Abdias Nascimento, antes de seguir o destino do amigo, denunciou a democracia racial como um narcótico que age desmobilizando a população negra, impedindo qualquer oportunidade de defesa à vítima sumário 173 Marxismo. (NASCIMENTO, 1968, p. 27). Com relação aos efeitos perversos dessa ideologia, Nascimento foi peremptório: o slogan da democracia racial brasileira serve à discriminação disfarçada e ao lento, porém, inexorável, desaparecimento do negro (NASCIMENTO, 1968, p. 31). No entanto, o ativista nunca abriu mão de uma nação em que o jôgo [sic] das inter-influências culturais deve constituir-se de uma reciprocidade digna entre tôdas [sic] as diferentes expressões culturais, sem supremacias nem inferioridades (NASCIMENTO, 1968, p. 49). Nesse sentido, o líder do TEN falou em princípios de uma verdadeira democracia racial na qual a integração social não seja confundida com embranquecimento compulsório por meio da extinção simbólica e física do negro através da manipulação do regime migratório, da imposição de um estado permanente de miséria e de uma hipertrofia da miscigenação, como valor mais alto de nossa civilização (NASCIMENTO, 1968, p. 51). Essa democracia racial não é uma utopia irrealizável, mas apenas a abertura de oportunidades reais de ascensão econômica, política, cultural, social para o negro, respeitando-se sua origem africana (NASCIMENTO, 1968, p. 51). REFERÊNCIAS ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. São Paulo: Selo Negro, 2009. ANDREWS, George Reid. Visões afro-americanas sobre o Brasil, 1900-200. Rev. Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p. 20-52, 2017. BARBOSA, Muryatan Santana. Guerreiro Ramos e o personalismo negro. 2004. 296 f. 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INTRODUÇÃO Lélia Gonzalez, antropóloga brasileira, se insere no cerne de pesquisadoras e pesquisadores negras e negros que produziram trabalhos sobre relações étnico-raciais direcionados ao desafio do imaginário de democracial racial brasileiro, endossado por pensadores como Gilberto Freyre. Desde a década de 1950, pesquisadores como Abdias do Nascimento e Kabengele Munanga têm construído teorias e categorias analíticas para tensionar essas perspectivas. Contudo, apesar da grande expressividade e alcance das teorias produzidas pelos intelectuais negros da década de 1950 em diante, há o apagamento e silenciamento de nossas produções teóricas, que têm se perpetuado através do epistemicídio (CARNEIRO, 2005) no eixo da produção acadêmica. Assim, objetivamos pensar, através dos escritos e conceitos de Gonzalez e de pesquisadores contemporâneos que utilizam de sua obra como base para suas pesquisas, como o trabalho de Lélia Gonzalez, que pode ser encarado como um clássico brasileiro que foi silenciado. Nessa diretriz, nos propomos a discutir: (1) o que faz de Gonzalez um cânone; (2) pressupostos teóricos de Gonzalez e (3) sua importância para a consolidação de um legado de continuidade de sua obra, mobilizado por pesquisadores contemporâneos. A discussão posta neste artigo será incipiente, nos propusemos a dar corpo à discussão, contudo não esgotá-la. Nos propomos a fazer alguns apontamentos biográficos sobre Lélia Gonzalez. Formou-se em Geografia, História e Filosofia pela Universidade Nacional da Guanabara, atual Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Gonzalez estava se doutorando em Antropologia Política pela Universidade de São Paulo (USP) durante sua morte. Lecionou no Departamento de Sociologia e Política na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Em 1994, ano de sua morte, Gonzalez assumiu a chefia do Departamento de Sociologia e Política. sumário 178 Marxismo. Lélia Gonzalez participou ativamente das articulações junto ao movimento negro, sendo uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), um dos movimentos mais emblemáticos de luta do movimento negro brasileiro. O MNU é um movimento que marca a história do movimento negro brasileiro em 1978, lutando pela garantia de direitos e propondo reivindicões cruciais para os movimentos negros contemporâneos. Colaborou também com a criação do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras (RJ) em 1983, uma articulação que dispõem de seu marco importante, juntando militantes oriundas do movimento negro e feminista, contou também com Benedita da Silva, em sua miltância. Gonzalez enquanto intelectual participando de eventos acadêmicos internacionais como a Latin American Association (LASA), African Heritage Studies Association, Spring Symposium The Political Economy of the Black World. Gonzalez foi premiada por seu livro Festas Populares no Brasil, publicado em 1987 e premiado na Feira de Leipzig, na Alemanha. A AMPLITUDE DA CONTRIBUIÇÃO DE UMA INTELECTUAL AMEFRICANA Com o intuito de consolidar a importância do aporte teórico construído por Lélia Gonzalez, nos dedicaremos à apresentar algumas de suas categorias analíticas que se apreendem marcando alguns aspectos de seu extenso trabalho, que se concretiza sobretudo, para além de preceitos teóricos, tendo em vista que a vida de Gonzalez foi marcada pela práxis política dos movimentos negro e feminista. Lélia Gonzalez dedicou seu trabalho em grande parte a entender categorias como raça, gênero e classe, pensando primordialmente sobre a posição das mulheres negras. Sendo crítica à democracia racial, se interessou também por estudos culturais brasileiros. Seu trabalho é composto por livros, ensaios, capítulos em livros e colunas publicadas. sumário 179 Marxismo. Nessa diretriz nos ocuparemos de expor alguns conceitos e apontamentos desse arcabouço teórico, sendo eles: a categoria político-cultural da amefricanidade; racismo-latino-americano; racismo aberto e por denegação, o locus de mulheres negras na sociedade brasileira e o feminismo afro-latino-americano. (RIOS e RATTS, 2016) Em primeiro, a categoria político-cultural da amefricanidade se insere enquanto uma categoria cultural que compreende que a formação histórica, política, cultural e logo linguística brasileira, não se dá a partir da ascendência europeia, isto é branca, mas doravante de uma influência que se instaura primordialmente e majoritariamente através de África, pelos africanos escravizados trazidos para as américas pelo tráfico negreiro, como também por influência de povos amefricanos que já se localizavam no continente americano antes mesmo do início do processo de colonização. A formação do inconsciente brasileiro não é como se afirmou de ordem europeia. Assim, a amefricanidade trata-se de uma nova perspectiva sobre nossa formação histórico-cultural através de costumes e cultura. O pretuguês, cunhado por Lélia Gonzalez, sendo compreendido como o português falado no Brasil, é um desses elementos que consolidam a nossa formação, haja vista que a nossa língua dispõe de atributos de África. A amefricanidade por sua vez, incorpora um processo de intensa dinâmica cultural, nas palavras da própria Gonzalez, nos encaminhando para a construção de uma identidade étnica efetivamente. (GONZALEZ, 1988) Vale salientar que a adoção dessa categoria por Gonzalez, retoma a consolidação da experiência amefricana, sendo uma experiência em diáspora, que tornou processos sobre as relações étnico-racial em um contexto situado, contexto esse que é latino-americano e que abarcou outras execuções de perpetuação do racismo latino-americano. Para Gonzalez, o racismo latino-americano se instaura enquanto um mecanismo de opressão suficientemente sofisticado que: sumário 180 Marxismo. O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento, tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com a consequente negação da própria raça e da própria cultura. (GONZALEZ, 1988:2018, p. 312) Gonzalez inaugura sobre como a democracia racial impulsionou dinâmicas particulares em contexto geográfico situado na latino-america. Isso se evidencia na medida em que os processos de eugenia e mestiçagem se imperam e novas facetas do racismo se apresentam, a partir de acordos tácitos e do racismo cotidiano, cordial e explícito. Assim, a antropóloga nos aborda também sobre o racismo aberto e o racismo por denegação/disfarçado. O primeiro, diz respeito sobretudo a sociedades de origem anglo-saxônicas, germânicas ou holandesas, que estabelece que negra é por sua vez, a pessoa que tenha tido antepassados negros, nessas sociedades a mestiçagem é impensavél, aqui se perpetua a ideia de pureza racial que é apropriada para reafirmar superiorirdade e que por muito se articula com o ideário racista de superioridade branca e a segregação social e espacial de pessoas negras. O segundo, se refere às sociedades latino-americanas, em que ideologias do branqueamento como a democracia racial e política assimilacionistas são empregadas, tornando o racismo aprimorado. Em outra adjacência, Gonzalez designa seu trabalho para teorizar e contribuir com os movimentos sociais em especial, o feminismo e o movimento negro. Por essa vertente de seu trabalho, Gonzalez aponta sumário 181 Marxismo. sobre as opressões sofridas por mulheres negras, a partir das categorias de raça, gênero e classe que se encontram. Afirmava que enquanto mulher e negra, a mulher na sociedade brasileira se tornava o setor mais inferiorizado. (GONZALEZ, 1981) E isso, engendra em mulheres negras um olhar aguçado para as opressões. Essa percepção de Lélia Gonzalez adianta anos antes o paradigma da interseccionalidade, proposto por Kimberlé Crenshaw e fomentado por vários autores. A interseccionalidade se compreende enquanto uma lente para observar as opressões que se interseccionam, se convergem numa encruzilhada. (COLLINS, 2019; CRENSHAW, 2004; RIOS e RATTS, 2016; RODRIGUES, 2013) Gonzalez como crítica ao feminismo hegemônico, nos propõem um feminismo afro-latino-americano que atue enquanto uma organização situada, da posição de mulheres negras, indígenas e não brancas latino-americanas. Sua crítica ao feminismo hegemônico reside: (1) o protagonismo de mulheres brancas no levante das pautas e a (2) omissão das pautas étnicas, que são fundamentais para consolidar movimentações para mulheres negras, indígenas e não brancas. Articula ainda que a consciência opressão de mulheres negras e ameríndias, ocorre antes de qualquer coisa pelo racial. Para Gonzalez, exploração de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres subalternizados por sua etnia. (GONZALEZ, 1988) CÂNONES E CLÁSSICOS DO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO Para travar uma discussão sobre a importância e o apagamento do pensamento produzido por Lélia Gonzalez devemos entender como se dá a formação do cânone brasileiro e quem ocupa hoje em dia de ementas de disciplinas do curso de Ciências Sociais e as citações nos sumário 182 Marxismo. trabalhos acadêmicos. Para isso iremos discutir exclusivamente a área da Antropologia, visto que Gonzalez esteve grande parte de sua vida vinculada a tal hall de produção. Maria Eunice Moreira, professora da escola Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), escreveu um artigo, Cânone e cânones: um plural singular (2004), sobre o livro de Harold Bloom, O Cânone Ocidental, onde este aponta os pontos principais de definição de um cânone no ocidente. Neste artigo, Moreira (2004) aponta que o significado de cânone sofreu certas alterações durante o passar do tempo, contudo permaneceu de certa forma se referindo a obras que merecem atenção, que são um modelo. O estabelecimento dessas obras como tal é um ponto de disputa, há diversas teorias no campo da história da literatura que constroem um traçado e pontuam os principais motivos de uma obra ser considerada um cânone (MOREIRA, 2004). Contudo, esse não é o ponto central do presente artigo, pois discutiremos os cânones através de uma perspectiva crítica e do conceito de epistemicídio de Sueli Carneiro (2005). O presente artigo pretende demonstrar através de um posicionamento crítico o porquê do pensamento de Lélia Gonzalez não estar no cânone antropológico brasileiro e os motivos para que deveria estar. No artigo de nome A Antropologia Brasileira: breves indagações sobre a história de um campo em expansão, Waleska Aureliano (2010) pontua que as leituras feitas por antropólogos brasileiros tendem a se centrar na antropologia euroamericana, estes então constituem os clássicos da antropologia, até mesmo em âmbito mundial. Dessa forma, Aureliano (2010) tece uma crítica a partir de seus questionamentos do porque os brasileiros não lêem também as produções de outros latinoamericanos e se centram somente em produções europeias e norte americanas. A crítica apontada por Aureliano em seu artigo é de grande valia, porém aqui nos perguntamos o porque de dentro do escopo das leituras de antropólogos brasileiros não incluímos, também, Gonzalez, sumário 183 Marxismo. uma antropóloga brasileira com uma extensa produção e um pioneirismo nos estudos de raça e gênero no Brasil, sempre pontuando as intersecções que ambas categorias podem fazer. A partir do conceito de epistemicídio, desenvolvido na tese de Sueli Carneiro (2005), podemos entender como se dá a operacionalização da inferiorização da produção de conhecimento de povos subalternizados. O epistemicídio então é uma ferramenta e Sendo, pois, um processo persistente de produção da inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica específica compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a saber, disciplinar/ normalizar e matar ou anular. (CARNEIRO, 2005, p.97) Dessa forma, podemos compreender que o epistemicídio está vinculado a uma sistematização da inferiorização da incapacidade intelectual de um povo, isto é, é uma das expressões do racismo operacionalizada no biopoder, com uma intenção clara de anular ou aniquilar produções de populações marginalizadas (CARNEIRO, 2005). O ambiente acadêmico, inserido, no Brasil, principalmente no âmbito das universidades, não está deslocado da lógica do epistemicídio, muito pelo contrário é um dos fortes espaços de reprodução e produção dessa lógica. Carneiro (2005) enfatiza em sua tese que o ambiente escolar e acadêmico são pontos centrais e chaves para se pensar a operacionalização dessa forma de anulação de produções intelectuais no Brasil contemporâneo. Haja vista que, o epistemicídio atua e se perpetua não somente anulando essa produções mas criando sujeitos não cognoscentes, isto é, sujeitos não passíveis de serem compreendidos enquanto portadores e produtores de conhecimento. Isso ocorre em larga escala dentro da trajetória escolar e acadêmica sumário 184 Marxismo. desses sujeitos racializados. A evasão escolar e o não ingresso no ensino superior, podem ser encarados como facetas do epistemicídio materializado, no caso brasileiro. As produções de Lélia Gonzalez dentro da antropologia brasileira não se distanciam desse parâmetro central. Apesar da genialidade da pesquisadora em pensar raça e gênero por uma perspectiva inovadora em seu tempo, suas produções hoje ocupam um lugar secundário no ambiente acadêmico. O epistemicídio coloca grupos não-brancos como não passíveis de serem cognoscentes, isto é, enquanto grupos incapazes de serem produtores e portadores de conhecimento (CARNEIRO, 2005). As produções de Lélia Gonzalez se encaixam no escopo daquelas que são sistematicamente negadas pelo ambiente acadêmico podendo cair no esquecimento. Eu sou Atlântica, livro organizado por Alex Ratts, contém algumas produções da historiadora Beatriz Nascimento, que produziu na mesma época em que Lélia Gonzalez, década de 70. Neste livro está contido um pequeno artigo de nome Por uma história do homem negro, publicado em 1974, onde Nascimento expressa algumas de suas indignações acerca da produção historiográfica sobre a população negra brasileira. Segundo a pensadora, naquele momento havia um olhar muito marcante do branco para o negro, chegando ao ponto de exotizarem a história do negro e construírem uma imagem estigmatizada dessa parcela populacional (NASCIMENTO, 2006). Nascimento, então, faz uma reinivincação por uma história dos negros que realmente o represente, que seja escrito por eles e não carregue os estigmas colôniais. Ou seja, no período de produção de Gonzalez já havia uma discussão sobre a exclusão de pessoas negras dos espaços acadêmicos. Em continuidade, Angela Figueiredo e Ramón Grosoguel (2007) ao discutir sobre a marginalização de pesquisadores negros na academia brasileira situando a trajetória de Guerreiro Ramos, enunciam a “política do esquecimento”, que atua como um mecanismo que age sumário 185 Marxismo. no apagamento da memória de novas gerações as contribuições de autores negros no passado. Gonzalez tal qual outros autores negros brasileiros, foram afetados diretamente pela política do esquecimento. Outrossim, essa exclusão de pesquisadores negras e negros se evidencia na medida em que há uma baixa apropriação do aporte teórico de pesquisadores negros do período; a não utilização de seus pressupostos como base para estruturas curriculares e ementas de cursos; e a sua não presença pouco expressiva em debates em dissertações e teses produzidas no campo da pós-graduação em univerisdades brasileiras. A preferência e a utilização de teorias e contribuições que emergem do eixo eurocêntrico é vigente no cenário acadêmico brasileiro, que tem características oriundas de países europeus. Os processos de validação do conhecimento que imperam nas academias brasileiras provém de uma epistemologia dominante que tem sua legitimação conduzida por grupos dominantes, que são majoritariamente brancos e masculinos. (COLLINS, 2019) Assim, epistemologias dominantes questionam a validade de outras epistemologias e abordagens outras e formas de produzir conhecimento. A não utilização de teorias que se articulem ao eixo europeu, insere as produções de pessoas negras e não brancas em um lugar situado de questionamento e validação desse conhecimento por parte de epistemologias dominantes. Os textos e conceitos de Gonzalez, como visto anteriormente, colocam em cheque o racismo brasileiro e suas formas de operacionalização. Aqui, então, apontamos como essa operacionalização afeta a produção de pessoas negras e seu destaque e continuidade do seu trabalho. Lélia Gonzalez teve uma grande expressividade no seu período de produções acadêmicas ativas, frequentando congressos nacionais e internacionais, concedendo entrevistas e produzindo livros e artigos. Contudo, o que se percebe posteriormente é uma seleção de pensadores cânones que não incluem as produções de Gonzalez, devido a um apagamento sistemático de produções negras. sumário 186 Marxismo. A CONTINUIDADE DE UM LEGADO IMENSURÁVEL Atualmente Lélia Gonzalez garante um espaço importante dentro do ambiente acadêmico, pois é retomada e pesquisada por grandes pensadores brasileiros, entre eles Flávia Rios, Raquel Barreto e Alex Ratts. Os três garantem uma repercussão da obra de Gonzalez e de seus feitos em vida. No livro de nome Lélia Gonzalez (2010), escrito por Alex Ratts e Flávia Rios, há uma retomada da trajetória da pesadora para resgatar aquilo que foi produzido por ela tanto no âmbito acadêmico quanto no político, pontuando os movimentos e ações que Gonzalez fez ou participou durante sua vida. Em uma breve colocação, os autores do livro citam que a pensadora pode ter sido mais bem reconhecida em suas participações no movimento social do que no ambiente acadêmico, que apesar de sua grande presença, como dito aqui, não possui a expressividade que outros pensadores brasileiros (RATTS; RIOS, 2010). Raquel Barreto, em sua dissertação de nome “Enegrecendo o Feminismo ou Feminizando a Raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez” (2005), expressa como o pensamento de Lélia Gonzalez foi central para o pensamento social brasileiro como um todo. Sua escrita fluída, com claros elementos do linguajar popular carioca, sem deixar de lado o formalismo da academia, permitia um acesso dos militantes do movimento negro as produções acadêmicas (BARRETO, 2005). Ademais, a pensadora foi pioneira em uma maior abrangência dos estudos de gênero, estes que abordam os conceitos da Psicanálise e colocam a raça como uma intersecção existente e necessária de ser apontada academicamente. Algumas das obras produzidas pelos três pesquisadores supracitados possuem Lélia Gonzalez como ponto central, não só sua obra, sumário 187 Marxismo. como dito, como também sua trajetória e militância. A importância de ter essa pensadora como ponto chave nas pesquisas posteriormente produzidas é a incorporação dos avanços teóricos feitos por Gonzalez nas produções que se seguem. Entre esses pontos estão a superação do mito da democracia racial, principalmente no que tange a quebra do discurso da harmonia nas relações sexuais entre portugueses e mulheres negras e indígenas, em colocar a mulher negra como um ponto central para se pensar raça e gênero no Brasil e não somente, como também todas as dinâmicas socioeconômicas brasileiras, como a questão do trabalho (BARRETO, 2005). Em suma, a obra de Lélia Gonzalez atualmente encontra grande repercussão com a retomada de diversos autores e pesquisadores, das ciências humanas, aos seus textos e produções. Sua obras sempre estiveram presentes tanto na academia quanto nas discussões e pautas do movimento negro, contudo, nos últimos anos é possível enxergar uma maior atenção a sua obra devido a uma procura maior de editoras, estudantes e movimentos. No ano de 2020, foi lançado pela editora Zahar uma coletânea organizada por Márcia Lima e Flávia Rios com os artigos, textos e entrevistas mais relevantes da autora, contando grande parte de sua obra e reflexões. Seu nome foi chamado pela pensadora norte-americana, Angela Davis, quando esteve no Brasil em 2019, onde a historiadora pôde expressar sua admiração por Lélia Gonzalez, causando uma repercussão positiva em torno do nome da pensadora. Hoje, felizmente, nós temos Rios, Ratts e Barreto, entre outros inúmeros pesquisadores brasileiros que retomam a obra de Gonzalez deixando ela sempre viva e acesa nos meios acadêmicos e dentro do movimento negro brasileiro. sumário 188 Marxismo. REFERÊNCIAS ARAÚJO AURELIANO DE, Waleska (2010). A Antropologia Brasileira: breves indagações sobre a história de um campo em expansão. En: Boletín de Antropología Universidad de Antioquia, Vol. 24 N.o 41 pp. 432-452. BAIRROS, Luiza. Lembrando Lélia Gonzalez 1935 - 1994. Afro-Ásia, n. 23, 1999, p. 0 Universidade Federal da Bahia, Bahia, Brasil. BARRETO, Raquel de Andrade. “Enegrecendo o feminismo” ou “Feminizando a raça”: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzáles. Orientador: Marco Antonio Villela Pamplona. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de História, 2005. CARNEIRO, Sueli. Do epistemicídio. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Tese de Doutorado. (Educação). COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019. CRENSHAW, Kimberlé. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. VV. AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, p. 7-16, 2004. FIGUEIREDO, Angela; GROSFOGUEL, Ramón. Por que não Guerreiro Ramos? Novos desafios a serem enfrentados pelas universidades públicas brasileiras. Ciência e Cultura, v. 59, n. 2, p. 36-41, 2007. GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da amefricanidade. (1988) In: Primavera para as Rosas Negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Coletânea Organizada e editada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA). Diáspora Africana, 2018. GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. (1988) In: Primavera para as Rosas Negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Coletânea Organizada e editada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA). Diáspora Africana, 2018. GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. sumário 189 Marxismo. GONZALEZ, Lélia. 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ISSN 2179-510X. sumário 190 11 Gabriel Felipe Oliveira de Mello Do niger sum ao ser nacional: questão racial e construção da nacionalidade em Alberto Guerreiro Ramos (1949-1960) DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.11 Marxismo. La globalización en curso es, en primer término, la culminación de un proceso que comenzó con la constitución de América y la del capitalismo colonial/moderno y eurocentrado como un nuevo patrón de poder mundial. Uno de los ejes fundamentales de ese patrón de poder es la clasificación social de la población mundial sobre la idea de raza, una construcción mental que expresa la experiencia básica de la dominación colonial y que desde entonces permea las dimensiones más importantes del poder mundial, incluyendo su racionalidad específica, el eurocentrismo. Aníbal Quijano. Este artigo analisa a proposta do sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) de resolver um possível entrave na construção de um projeto nacional que conciliasse, ao mesmo tempo, a superação do racismo e a formulação de uma nova identidade nacional brasileira. Alberto Guerreiro Ramos, foi um autor de linhagem intelectual nacionalista, o tema da nação se fez presente em boa parte de suas reflexões até pelo menos o início da década de 1970. Dito isto, o que pretendemos discutir neste trabalho é justamente a proposta do sociólogo em pensar a questão da autoafirmação e do reconhecimento dos homens e mulheres negras brasileiras em relação a sua própria condição existencial, o que ele denomina de Niger sum, como parte fundamental da construção da nacionalidade. Outro ponto importante desse projeto é a defesa por parte do autor acerca do imperativo da superação da chamada ideologia da brancura, isto é, um tipo de alienação que impediria boa parte da intelectualidade e das classes sociais no Brasil de romperem com um parâmetro cultural europeu e que levava a identificação do negro com um problema para o desenvolvimento nacional. Essa ideologia da brancura impediria o entendimento de que o povo brasileiro, em sua maioria, seria constituído por negros e mestiços, ou, nas palavras de Guerreiro, que o negro é povo no Brasil (RAMOS, 1995, p. 200). Decorrem disso as soluções tipicamente racistas aplicadas pelo Estado e formuladas por intelectuais, tal como a necessidade de um branqueamento da população ou mesmo a adoção de medidas eugênicas visando uma suposta modernização do país. sumário 192 Marxismo. Essa não aceitação do elemento negro como parte da cultura brasileira foi denominada por Guerreiro de patologia social do branco brasileiro (RAMOS, 1995). Só a partir da autoafirmação do “ser do negro” e da contingência da superação da ideologia da brancura é que seria possível construir o “ser nacional” autêntico, o Brasil enquanto um “país do futuro”. É sobre essa relação, entre a construção da nacionalidade, da autoconsciência dos negros e a superação da brancura, que esse artigo trata. O trecho acima, que abre este trabalho, foi retirado do artigo “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina” do sociólogo peruano Aníbal Quijano (1928-2018); (2000, p.201). A citação elenca uma tese fundamental presente em boa parte dos trabalhos do intelectual peruano, ou seja, que o conceito de raça foi fundamental no processo de formação e constituição da modernidade e do sistema-mundo. Essa conceituação foi e, continua sendo, central para o entendimento acerca da construção do que Quijano denominou de um novo padrão de poder mundial (QUIJANO, 2000, p.201), onde um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial sob a ideia de raça (QUIJANO,2000, p.201).26 Nessa lógica, a ideia de raça se constituiu no momento da chegada dos europeus na América, com a consequente destruição e subjugação das diversas culturas originárias do continente, levando desta maneira à construção das sociedades coloniais. É a partir dessa noção que os europeus puderam imprimir uma concepção de inferioridade nos povos dominados, a tal ponto dessas próprias populações se enxergarem como “atrasadas”, por vezes inferiores aos próprios europeus. Apesar de construído a partir do período inicial da colonização da América nos séculos XV e XVI, é possível falar numa reformulação ou reformatação desse padrão de poder, até mesmo por 26 “Uno de los ejes fundamentales de ese patrón de poder es la clasificación social de la población mundial sobre la idea de raza, una construcción mental que expresa la experiencia básica de la dominación colonial (...)” (QUIJANO, 2000, p. 201) sumário 193 Marxismo. conta do fim político e formal da colonização da América no início do século XIX. Não obstante, ele permaneceria se socio-reproduzindo até os dias atuais, conformando assim práticas, culturas e a própria autoconsciência da população subalternizada. Sobre o conceito de raça, Quijano não deixa explicito nenhum apontamento mais direto sobre a construção dessa ideia em pleno século XVI, seja ela em termos de fontes, documentos ou bibliografia. É importante mencionar que há certa imprecisão em localizar a “origem” da noção de raça em sua acepção moderna, no período da expansão ultramarina europeia dos séculos XV e XVI, entretanto, isso não implica em negar a importância da conquista da América e a subjugação dos povos originários no imaginário europeu (BANTON, 2010, p. 25). Autores que estudaram a questão racial, tais como Lilia Schwarcz (1993, p.47), Charles Hale (2001, p.363) e o próprio Michael Banton, apontam outras perspectivas acerca da construção desse conceito, mostrando que o seu sentido moderno, enquanto uma forma de criar e explicar uma desigualdade entre as culturas das diversas localidades do mundo, ocorre em meio ao século XVIII, sobretudo, no período da ilustração, sendo amplamente apropriado e utilizado ao longo do século XIX. A apropriação das reflexões de Quijano nos são caras na medida em que esse autor centraliza a ideia de raça como um conceito fundamental para se entender a modernidade e os padrões de poder exercidos através dela até os dias atuais, seja direta ou indiretamente. Como mostra Reinhart Koselleck, o conceito serve não apenas para indicar unidades de ação, mas também para caracterizá-los e criá-las. Não apenas indica, mas também constituí grupos políticos e sociais (KOSELLECK, 2012, p.192). Nessa perspectiva, o conceito conforma e é conformado pelas circunstâncias históricas, moldando dessa maneira uma série de relações sociais. É partir desse entendimento, do conceito de raça como um fator importante para se pensar as relações político sociais na modernidade, principalmente em países periféricos, que mobilizaremos as ideias ao longo deste trabalho. sumário 194 Marxismo. A discussão acima vai justamente ao encontro do que pretendemos apresentar aqui neste artigo. Isto é, como o sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) procurou resolver o entrave da construção de um projeto nacional que conciliasse, ao mesmo tempo, a superação do que denominou de ideologia da brancura, dotando o negro de autoconsciência emancipatória - o seu niger sum -, que seria um dos aspectos fundamentais para a superação do racismo no Brasil, a construção de uma identidade nacional que almejasse a própria superação da ideia de raça, bem como a harmonia entre brancos e negros sob uma concepção do que denominou de “ser brasileiro”. DO TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO (TEN) AO SER NACIONAL Em fins da década de 1940, Alberto Guerreiro Ramos, homem negro, baiano de nascimento, à época tido como “mulato”, e que estava no Rio de Janeiro desde 1939, bacharelou-se em direito e sociologia pela então Universidade do Brasil no ano de 1942. Em fins da década de 1940, se aproxima do Teatro Experimental do Negro (TEN)27, dirigido por Abdias do Nascimento. Inicialmente no TEN, Guerreiro coordenou as sessões de grupoterapia, também denominadas de psicodrama, voltadas à resolução de problemas de pessoas negras e a construção de uma autoidentificação e aceitação de suas características fenotípicas (BARBOSA, 2015, p. 113). Com o andamento na militância, o sociólogo baiano é indicado para ser presidente do Instituto do Negro, órgão criado pelo próprio 27 O Teatro Experimental do Negro foi um projeto de ação político social criada por Abdias Nascimento, com ajuda de outros intelectuais e militantes negros. A ideia central era a valorização social, existencial e cultural do negro brasileiro. O TEN não se limitou a ensaiar peças teatrais colocando atores negros nos papeis centrais, mas também organizou congressos, encontros, cursos voltados a comunidade negra pobre e etc. (Cf. NASCIMENTO, 2004, p. 210); (FUNDAÇÃO PALMARES, 2016) sumário 195 Marxismo. TEN e voltado para discussões intelectuais acerca da questão racial no Brasil. Guerreiro ainda lidera junto de Abdias do Nascimento a Conferência Nacional do Negro e o I Congresso do Negro brasileiro, que ocorreu em 1950 no Rio de Janeiro (BARBOSA, 2015, p.122). Mencionar a passagem de Guerreiro Ramos no TEN não é um exagero, já que a militância do sociólogo nessa instituição é de grande importância para compreendermos uma grande virada no seu pensamento. Será através do contato e da militância que o autor passa a não só ter contato com textos da Negritude francófona, tais como os de Aimé Cesaire (1913-2008), mas também passa a se inteirar de forma mais profunda sobre o debate acerca da questão racial no Brasil. Diante da perspectiva de que a entrada de Guerreiro Ramos para o TEN contribuiu para uma virada teórica na produção do sociólogo, é possível concordar com Luiz Augusto Campos (2015, p.106), de que foi a partir das reflexões sobre a questão racial no Brasil que o intelectual baiano passou a centrar suas reflexões de forma mais detida sobre da realidade social brasileira, culminando dessa maneira em sua magnum opus “A Redução Sociológica” (1958) e em livros como “O Problema Nacional do Brasil” (1960) e “A crise do poder no Brasil” (1961). A problemática central da Redução Sociológica, isto é, a apropriação crítica e reflexiva da produção estrangeira, tem sua origem nas reflexões de Guerreiro sobre como o negro brasileiro era apresentado nos trabalhos de sociologia. A percepção descrita acima acerca da relação entre as pesquisas sobre a questão racial e as reflexões sobre uma Teoria do Brasil se confirma ao analisarmos os textos de Guerreiro escritos no jornal O Quilombo, veículo oficial do TEN, e no jornal A Manhã, chegando aos artigos de maior maturidade publicados entre 1954 e 1955, tais como “O problema do negro na Sociologia Brasileira” (1954) e “Patologia social do branco brasileiro” (1955). Sobre a questão do sociodrama, atividade coordenada pelo sociólogo no TEN, o autor afirma que o sumário 196 Marxismo. sociodrama é precisamente um método de eliminação de preconceitos ou de estereotipias que objetiva libertar a consciência do indivíduo da pressão social (RAMOS, 1950a, p.9). O sociodrama tinha uma função política imediata: resolver questões de ordem psicológica presente na população negra e branca, tentando superar o que o próprio autor denominou de preconceitos e estereótipos. Nota-se que essa atividade estava em plena consonância com a proposta do TEN, de não ser apenas um grupo teatral negro, mas também organização de militância no sentido de criar cursos de alfabetização, iniciação cultural, dentre outras iniciativas voltadas para a população negra e pobre. O sociodrama se interligava às ideias do próprio Guerreiro de que seria possível pensar o problema do preconceito e da não aceitação do negro ou do mestiço em relação a sua própria condição como algo ligado à personalidade (BARBOSA, 2015, p.118). Essa perspectiva entendia que o racismo também poderia ser compreendido através da chave do patológico, daí a possibilidade de serem superados por uma iniciativa de cunho psicológico e educativo. Apesar da perspectiva de “psicologizar” o problema racial, Guerreiro Ramos não trabalhava apenas com essa hipótese. No artigo “Senhores e escravos no Brasil”, publicado no jornal A manhã, em outubro de 1950, o autor apontava a existência, no Brasil, tanto no senso comum, quanto no meio intelectual, da ideia de benevolência na relação entre senhores e escravos no Brasil. Segundo o Guerreiro, esses intelectuais tem preferido acentuar a humanidade da escravidão no Brasil e contribuíram, assim, para que se formasse, entre nós, o estereótipo do senhor bom, tolerante e paternal e do escravo submisso acomodado(RAMOS, 1950b, p.2). Nesse mesmo artigo de jornal, Guerreiro levanta duas questões fundamentais que em alguma medida vão nortear suas preocupações sobre a questão racial no Brasil. A primeira vai na direção de criticar a perspectiva de que os estudos sobre questão racial no país só teriam certa assertividade e compromisso em alterar a realidade racista caso sumário 197 Marxismo. fossem realizados por negros. A segunda ponderação é justamente a necessidade da existência de uma sociologia que rompesse com uma lógica meramente acadêmica, descritiva e alienada sobre a situação do negro e por tabela do povo brasileiro (RAMOS, 1950b, p.2). No início do artigo “Senhores e escravos no Brasil” fica explicita a crítica do sociólogo de que o problema não seria superado meramente colocando estudiosos negros, embora esse fato fosse de grande centralidade. Apesar da importância e da necessidade da participação de intelectuais negros, havia um problema maior: a teoria e a metodologia sociológica por trás da análise. Indagando sobre a origem da visão ideológica da suposta benevolência da escravidão no país, o autor afirma que: não será o estereótipo mencionado acima [sobre a benevolência do escravista e a passividade do escravizado] dessas elaborações ideológicas, uma, racionalização de escritores brancos ou de qualquer forma ligados à estrutura de dominação do branco? Se os estudos sobre negros fossem realizados preponderantemente por negros não teriam eles assumido um outro caráter? (RAMOS, 1950b, p.2) Para responder a essa crítica, o sociólogo baiano cita a intervenção de Amaury Pôrto de Oliveira no I Congresso do Negro, organizado pela TEN, em um estudo sobre as relações escravistas no Brasil império. Segundo Guerreiro, o estudo de Amaury era fundamental e deveria ser desenvolvido para que os estudos sobre o negro brasileiro adquiram interesse e entrem numa fase dinâmica, ultrapassem a sua atual fase acadêmica, descritiva e até inócua (RAMOS, 1950b, p.2). Guerreiro ainda cita também a intervenção de Oracy Nogueira (1917-1986), com um trabalho sobre a resistência dos escravizados no município de Itapetininga. Esse trabalho seria uma mostra que a ideologia que advogava a passividade dos negros poderia ser combatida, inclusive por escritores não negros e, sobretudo, através de um método, apropriado sumário 198 Marxismo. diretamente da sociologia do conhecimento28, que colocasse em xeque as posições tidas como erradas, embora fosse de suma importância a participação de intelectuais negros na crítica a sociologia alienada. Podemos observar que há nesses trechos, indiretamente, algo que será caro à sociologia guerreiriana: a defesa de uma sociologia da práxis ou a chamada sociologia crítica, como definirá mais tarde. Partia-se da perspectiva que essa sociologia crítica seria fundamental para o combate ao que mais adiante o autor irá definir como ideologia da brancura. Essa ideologia estaria ligada diretamente a uma sociologia alienada que não compreendia o Brasil, era ela que em alguma medida advogava a existência de uma suposta brandura do escravismo brasileiro. O combate a essa visão e de forma maior a esse tipo de sociologia não deveria ser uma tarefa meramente dos negros e sim de todos os brasileiros que defendiam o desenvolvimento do país. Ainda nos artigos de jornal, a preocupação com o fazer sociológico se faz presente novamente. No texto “Imposturas e Relações de Raça” presente no Diário de Notícias, datado de setembro de 1953, Guerreiro aponta que a produção sociológica acerca da questão racial no Brasil foi sendo feita de forma problemática, por vezes esquemática e acrítica. Nas palavras do autor: No que diz respeito ao negro, os autores mais festejados em nosso meio careciam de uma formação científica e, por isto, apesar de suas boas intenções, quando não cometeram erros grosseiros de interpretação dos fatos, limitaram-se a justapor textos de diversos autores estrangeiros, sem alcançarem o plano da ciência. Quando muito, fizeram trabalho de erudição (...), poderiam ter sido bons cronistas. Mas, tendo pretendido fazer ciência, valem, hoje, apenas, como documentação a ser utilizada com cuidado. Refiro-me especialmente aos dois vultos de maior expressão no caso: Nina Rodrigues e Artur Ramos. (RAMOS, 1953, p.1). 28 Nota-se aí o início da apropriação que Guerreiro Ramos faz da sociologia do conhecido de Karl Mannheim. Essa relação vai ser determinante para a sociologia guerreiriana, principalmente nas reflexões presentes em livros como “A Redução Sociológica” (1958) e “O Problema Nacional do Brasil” (1960). sumário 199 Marxismo. A preocupação em compreender como a produção intelectual pensou e analisou um determinado assunto tem sua primeira grande expressão no artigo “O Problema do Negro na Sociologia Brasileira”, publicado originalmente nos Cadernos do Nosso Tempo, do IBESP,29 e posteriormente republicada no livro “Introdução Crítica à Sociologia Brasileira” (1957). Nesse artigo, Guerreiro analisa e discute como a questão racial apareceu ao longo da produção do pensamento político brasileiro. O autor afirma que boa parte dos intelectuais brasileiros, desde o século XIX, estudavam as relações sociais do negro brasileiro a partir de uma visão alienada, que não correspondia à realidade brasileira, ou seja, de uma sociologia alienada. Nas palavras de Guerreiro, o negro tem sido estudado, no Brasil, a partir de categorias e valores induzidos predominantemente da realidade europeia. E assim, do ponto de vista da atitude ou da óptica, os autores nacionais não distinguem dos estrangeiros (RAMOS, 1995, p.163). Como é possível observar, o sociólogo baiano começava sua crítica a uma suposta alienação de parte da sociologia brasileira, apontando o fato de que esses intelectuais estudariam a realidade nacional a partir de um lente estrangeira, se apropriando de forma acrítica da produção externa, sem darem importância à historicidade das ideias. Ainda segundo Guerreiro: A partir de uma posição científica de caráter funcional, isto é, proporcionadora da autoconsciência ou do auto domínio da sociedade brasileira, importa, antes de estudar a situação do negro tal como é efetivamente vivida, examinar aquela literatura, tendo em vista desmascarar os seus equívocos, as suas ficelles, e, além disso denunciar a sua alienação. (RAMOS, 1995, p.163) O grande problema estava no fato de que, ao tentar adequar-se por puro modismo às tendências teórico intelectuais do centro mundial, 29 Instituto Brasileiro de Economia, sociologia e Política. Fundado em 1953 por intelectuais oriundos de Rio de Janeiro e São Paulo com a proposta de estudar o Brasil e pensar políticas para a superação do chamado subdesenvolvimento. Em 1955 foi incorporado pelo governo federal, dando origem assim ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). (Cf. BARIANI, 2015.) sumário 200 Marxismo. esses intelectuais alienados incorriam no erro, negligenciando desta maneira a historicidade local. Isto é, o cientista indígena [nacional] é, via de regra, um répétiteur, hábil muitas vezes, um utilizador de conceitos pré-fabricados, pobre de experiências cognitivas genuinamente vividas (RAMOS, 1995, p. 164). Neste caso, a questão estava em não conseguir apreender as relações sociais e históricas da questão racial no Brasil e sim procurar apenas reproduzir de forma acrítica o que tinha sido produzido na Europa ou nos EUA. Nota-se que Guerreiro não está defendendo algum tipo de nacionalismo romântico ou negando a importância da produção intelectual norte-americana ou europeia, apenas relativizando sua importância. É importante frisar que, para Guerreiro, um dos exemplos de produção intelectual alienada, que errava ao tentar compreender a questão racial no Brasil, teria sido a de Nina Rodrigues (1862-1906) e a de seu principal seguidor, Arthur Ramos (1903-1949). Esses dois intelectuais foram, na visão do sociólogo baiano, exemplos centrais da visão alienada, acrítica e racista sobre as relações raciais no Brasil. No artigo “O problema do negro na sociologia brasileira” (1954), Guerreiro esboçou a possibilidade de criar duas categorias analíticas para melhor compreensão da produção intelectual sobre o negro brasileiro. A primeira, de cunho crítico, se baseava no que ele denomina de atitude analítica crítico-assimilativa (RAMOS, 1995), ou seja, num método empírico-indutivo, que não negaria a produção intelectual estrangeira, contudo, procurava se apropriar criticamente dos conceitos e categorias, entendendo a historicidade de cada um, conferindo também importância à verificação empírica, baseada sempre no contexto local. Por outro lado, existiria a corrente alienada, chamada nesse momento de “monográfica”. Mais tarde, na ampliação das suas reflexões, Guerreiro vai denominar essa corrente de “sociologia consular” e alienada. É justamente nesse segundo grupo que se encontraria Nina Rodrigues e Arthur Ramos. A segunda corrente, que pode ser chamada de monográfica, é fundada por Nina Rodrigues (1862-1906), e continua nas obras sumário 201 Marxismo. de Arthur Ramos, Gilberto Freyre e seus imitadores. O elemento negro se torna “assunto”, tema de especialistas, cujos estudos pormenorizados promoveram, entre nós, movimentos de atenção de uma parcela de cidadãos para os chamados afro-brasileiros. (RAMOS, 1995, p. 169) Os dois autores, Nina Rodrigues e Arthur Ramos, basicamente tentariam encaixar aspectos da realidade brasileira em categorias ou mesmo em conceitos pensados para a realidade europeia, daí a ideia de um negro tema, apontado por Guerreiro. O homem negro seria uma espécie de ser estático, algo a ser analisado por teóricos brancos. Segundo Guerreiro, o negro brasileiro não seria entendido dentro da sua historicidade, mas sim como um mero objeto a fim de comprovar o suposto atraso do povo brasileiro do país. Nas palavras do sociólogo baiano: Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro tem sido entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados ‘antropólogos’ e ‘sociólogos’. Como vida ou realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe têm permitido as condições particulares da sociedade brasileira. O negro tema é uma coisa examinada, olhada vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama atenção (RAMOS, 1995, p.215). Guerreiro menciona uma dicotomia entre o negro vida e o negro tema. O negro vida seria justamente aquele da realidade, um ser social, integrado e parte da cultura brasileira. Seria vida porque não poderia ser pensado a partir de nenhum essencialismo ou de parâmetros estáticos. Já o negro tema é a redução da humanidade do negro a um objeto a ser conhecido e estudado, sendo tomado de forma estática, a-histórica e, na maioria das vezes, de forma racista, como no caso de Nina Rodrigues. A grande questão seria entender o porquê dessa linhagem intelectual advinda de Nina Rodrigues e seguida por outros, evidentemente com variações, colocar o negro como problema central que sumário 202 Marxismo. impediria o desenvolvimento do Brasil, ou mesmo tomar as relações raciais como uma questão estática, o “negro tema”. Uma outra questão seria entender o motivo de essa posição ter ganho tanto destaque na produção do pensamento intelectual no Brasil. Há duas hipóteses levantadas pelo sociólogo baiano, ambas acabam por se complementar. A primeira seria a existência de uma certa visão de mundo chamada por ele de “ideologia da brancura”. O segundo entendimento é que os homens e mulheres brancas no Brasil padeciam de uma patologia social, alimentada justamente por essa ideologia branca. Essa ideologia da brancura seria um conjunto de ideias mistificadoras que se fariam presente em boa parte do pensamento intelectual brasileiro, principalmente naquele acusado por Guerreiro de ser monográfico ou alienado. Essa mistificação faria com que esses intelectuais não aceitassem a verdade cabal acerca da realidade brasileira: que o país seria constituído em sua maioria por negros, isto é, o negro é povo, no Brasil (RAMOS, 1995, 200). É importante mencionar que até aquela sociologia tida como crítica também padecia da ideologia da brancura, embora tenha conseguido avançar em relação à alienada e tenha contribuído muito mais para o entendimento do Brasil. Guerreiro cita como esses casos o de Silvio Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Viana (RAMOS, 1995, p. 170). Embora, fosse fundamental a constituição de uma nova sociologia, crítica, ou mesmo uma sociologia negra (RAMOS, 1995). A ideologia da brancura seria uma forma dos intelectuais enxergarem o Brasil a partir de uma visão eurocêntrica, cognitivamente centrada no padrão cultural e fenotípico europeu. Nas palavras do autor: o negro tem sido estudado no Brasil, a partir de categorias e valores induzidos predominantemente pela realidade européia (RAMOS, 1995, p.163), por isso existiria sempre o “problema do negro”, a necessidade de branqueamento da população, o atraso ocasionado pela “população de cor” e etc. sumário 203 Marxismo. Podemos apontar que essa “ideologia da brancura” é parte de uma visão de mundo racista. É possível também comparar com a perspectiva de Aníbal Quijano quando o autor peruano estabelece a relação entre o conceito de raça e um novo padrão de poder mundial centrado na Europa (QUIJANO, 2000). Na visão próxima a de Quijano, podemos citar uma passagem do artigo “Patologia social do ‘branco’ brasileiro” (1955), onde Guerreiro aponta o período colonial como a origem da negação do negro e sua associação com o degradante. Para que a minoria colonizadora mantivesse e consolidasse sua dominação sobre as populações de cor, teria de promover no meio brasileiro, por meio de uma inculcação dogmática, uma comunidade linguística, religiosa, de valores estéticos e de costumes. (RAMOS, 1995, p.219) Apontar o problema racial como algo advindo da colonização, por conta do escravismo, não era algo incomum. Não obstante, o entendimento de que havia uma manutenção do poder colonial, isto é, de uma minoria branca em relação a maioria da população, que seria essencialmente negra e mestiça, interligando esse fato com a constituição de uma ideologia, ou por que não, de uma espécie de saber-poder que não só legitimava o ser branco, mas também fazia com que o negro vivesse uma autonegação da sua própria existência, foi um entendimento ímpar naquele período. Não por acaso, Renato Ortiz (1986) estabelece uma possibilidade de comparação entre alguns pontos do entendimento sobre a questão racial e a alienação que estão presentes em Guerreiro Ramos com algumas reflexões que também aparecem na obra de Frantz Fanon (1925-1961). Essa possível afinidade eletiva estava no entendimento da existência de um problema de ordem psicossocial de auto-negação vivenciada pelo próprio negro, algo presente no livro “Peles negras, máscaras brancas” do próprio Fanon (ORTIZ, 1986, p.50). Em grande medida, Guerreiro Ramos acaba tendo uma reflexão sui generis ao apontar a existência de uma ideologia da brancura e a constituição de sumário 204 Marxismo. uma patologia social a partir dela, em plena década de 1950 no Brasil. Autores como João Feres Jr demonstraram a relação possível entre a discussão da ideologia da brancura presente nas reflexões de Guerreiro com a teoria da branquitude de origem norte-americana formulada décadas depois, ao longo dos anos 1970 (FERES JR, 2015. p.112). A ideologia da brancura produziria uma patologia social justamente porque trabalharia com uma ideia que não corresponderia mais à realidade brasileira. Na visão do autor, não existia nenhuma comprovação de uma suposta inferioridade do negro, nem mesmo antropologicamente seria possível falar de algum tipo de pureza racial no Brasil, pois o país seria biologicamente constituído de mestiços e sua cultura seria uma construção híbrida (RAMOS, 1995, p.231). Por isso, a brancura seria uma patologia, que deveria ser encarada não apenas como uma discussão entre pessoas brancas e negras, mas como um problema nacional. A ideologia da brancura, por ser uma alienação, seria um entrave para a construção da nação. Nas palavras de Guerreiro O brasileiro, em geral, e, especialmente o letrado, adere psicologicamente a um padrão estético europeu e vê os acidentes étnicos do país e a si próprio, do ponto de vista deste. Isto é verdade, tanto com referência ao brasileiro de cor como ao claro. Este fato de nossa psicologia coletiva é, do ponto de vista da ciência social, de caráter patológico, exatamente porque traduz a adoção de critério artificial, estranho à vida, para a avaliação da beleza humana. Trata-se, aqui, de um caso de alienação que consiste em renunciar à indução de critérios locais ou regionais de julgamento do belo, por subserviência inconsciente a um prestígio exterior. (RAMOS, 1995, p.195) Como é possível observar, o branco brasileiro, apesar de estar numa posição dominante, também possuía uma autoconsciência alienada, pois ao tentar reproduzir no Brasil uma realidade social europeia, caía justamente na necessidade de negar a realidade nacional, promovendo desta maneira o preconceito de cor, impossibilitando uma tarefa fundamental que era a construção de um país desenvolvido, moderno e soberano. sumário 205 Marxismo. É importante frisar que o próprio fato do negro ser um “tema”, em estudos como os de Nina Rodrigues, evidenciava a patologia do branco. Ao fazer essa operação teórico-metodológica o intelectual reconhecido como “branco” psicologicamente se tornaria mais branco, aproximando-se de seu arquétipo – que é o europeu (RAMOS, 1995, p. 226). Tratar o negro como um “tema” seria uma forma de figuras racistas, que negavam sua condição brasileira mestiça, se considerarem brancas e mais próximas do padrão supostamente correto, o europeu. Pensar o negro como um dado antropológico, como se fosse algo distante e exótico na cultura brasileira, seria uma forma de compensação psicológica, criando assim um distanciamento entre esse intelectual e a massa popular que ele renegava. Diante dos fatos elencados, a possibilidade de vivenciar um “país desenvolvido” não passava apenas pelo âmbito econômico, mas também pelo cultural. Não bastava apenas o desenvolvimento econômico, a industrialização. Seria preciso avançar também em outras áreas, porque o Brasil não se constituiria enquanto uma nação moderna caso não superasse sua patologia social. A ideologia da brancura, conforme apresentado por Guerreiro, é um problema duplo. Na mesma medida que não deixava de ser um problema racial, entre negros e brancos, ela também se tornava um problema de ordem nacional, porque impedia o pleno desenvolvimento do Brasil e fazia com que boa parte da população ainda mantivesse um parâmetro cultural e político centrado no europeu. Esse fato impediria inclusive de se pensar saídas próprias para os problemas locais. A ideologia da brancura, conforme descrita por Guerreiro, não afetava apenas os brancos, mas também pessoas mestiças e negras, culturalmente embranquecidas (RAMOS, 1995, p.197). Não por acaso, a importância da prática do psicodrama organizada pelo intelectual no TEN. O fato de afetar tanto brancos quanto negros e mestiços está interligado diretamente ao entendimento do autor que, sumário 206 Marxismo. em termos antropológicos, a população brasileira seria mestiça (RAMOS, 1995, p. 230). Não obstante, mesmo que transpareça na obra de Ramos, é importante mencionar que, apesar de perder, o branco brasileiro acabava sendo o beneficiado em alguma medida, até porque não era ele a sofrer com o racismo. Como superar então a ideologia da brancura e sua patologia? Inicialmente seria fundamental que o negro buscasse a superação dessa falsa consciência. Mas como realizar essa ação? O sociólogo baiano acaba por fazer uma junção teórica que une suas leituras sobre a teoria da negritude francófona, especialmente aquela oriunda dos escritos de Aimé Cesaire, com o personalismo, tão caro a seu período de jovem católico na Bahia, algo fundamental em sua formação enquanto intelectual. Esse fato gera o que Muriatan Barbosa denominou de Personalismo negro (BARBOSA, 2015, p.143). Para tal, Guerreiro apontava a necessidade do homem e da mulher negra criarem uma autoconsciência, superando, desta forma, qualquer vinculação com uma ideia de inferioridade. Esse procedimento o sociólogo denominou de Niger Sum, isto é, o “sou negro”, o auto reconhecimento de suas origens e suas características fenotípicas. Nas palavras do autor: Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu está inserido, atribuo à sua cor a suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e considero a minha condição étnica como um dos suportes do meu orgulho pessoal – eis aí toda uma propedêutica sociológica, todo um ponto de partida para a elaboração de uma hermenêutica da situação do negro no Brasil. (RAMOS, 1995, p.199) O Niger sum seria o caminho fundamental para que homens e mulheres negras rompessem com as amarras ideológicas e culturais que ainda atribuíam ao negro qualquer caráter estereotipado ou de inferioridade. A autoafirmação existencial da negritude num primeiro momento pode parecer um impeditivo para se pensar a construção sumário 207 Marxismo. da nacionalidade, entretanto, a perspectiva de Guerreiro não trabalha com a lógica de uma supremacia frente a outra. A emergência da negritude só poderia se desenvolver a partir da suspensão da condição alienada, a brancura (BARBOSA, 2015, p.180). Nessa chave, a afirmação existencial do Niger sun é condição sine qua non da construção da nacionalidade, posto que é ela quem confere o verdadeiro sentido à cultura nacional autêntica. Nota-se que o objetivo da consciência emancipatória da negrura tem um objetivo democratizante e visa uma possível construção verdadeira de uma harmonia racial no Brasil (Cf. GUIMARÃES, 2004). Ora, se para o negro era preciso seu autorreconhecimento, assumindo com orgulho sua condição, e para o branco? Para Guerreiro, era necessário um tipo de educação que rompesse com a patologia: o branco precisaria ser reeducado para superar seu racismo (BARBOSA, 2015, p.181). O TEN também propôs a realização de uma série de outras atitudes no sentido de combater o denominado “preconceito racial”. Não obstante, a questão do desenvolvimento voltava a aparecer com centralidade na reflexão de guerreiriana, se o negro era povo no Brasil, uma das premissas para resolver a questão do racismo seria solucionar o problema do atraso e do subdesenvolvimento, ou seja, o aspecto econômico não era negligenciado e inclusive tomava centralidade. Superar o subdesenvolvimento seria uma forma de integrar economicamente as massas pobres do povo brasileiro, negras em sua maioria. Como foi possível observar, só seria possível construir o ser nacional, ou seja, a nacionalidade através da superação da ideologia da brancura e da formação da autoconsciência negra. Seria uma nova nacionalidade: o ser nacional seria a superação daquele ser alienado, advindo de um país atrasado, de passado colonial e racista. O ser nacional, portanto, seria um brasileiro autoconsciente de sua condição, não alienado e que pudesse compreender o Brasil a partir de seu próprio ponto de vista, o chamado ponto de vista nacional (RAMOS, 1960, p.148). sumário 208 Marxismo. ALGUMAS CONCLUSÕES POSSÍVEIS Em síntese, é possível notar que a “ideologia da brancura” e a questão da “patologia do branco brasileiro”, conforme entendidas por Guerreiro Ramos, não seriam apenas problemas relacionados a uma dominação de cunho racial, mas um problema que tinha como fundo a constituição da nacionalidade. A nação é o grande conceito de fundo que interliga as preocupações de Guerreiro, mesmo que nesse período, entre fins da década de 1940 e meados de 1950, não transpareça de forma tão marcante conforme na segunda metade da década e início dos anos 1960, quando essa preocupação fica mais evidente. Um outro ponto importante é observar que a proposta do Niger Sun possui relação direta com os escritos da Negritude Francófona. Para Aimé Cesaire, a negritude é o simples reconhecimento do fato de ser negro, a aceitação de seu destino, de sua história e de sua cultura (MUNANGA, 2016, p.115-116), procedimento bastante semelhante ao Niger Sun de Guerreiro. Não obstante, a perspectiva e a proposta da negritude buscam transcender as limitações nacionais e locais, trabalhando com uma ideia de solidariedade internacional (MUNANGA, 2016, p.116). Em Guerreiro, embora não exista nenhuma negativa no sentido de transcender as fronteiras nacionais, a preocupação central está dentro da nação. Isto é, a consciência emancipadora do Niger Sun visa, prioritariamente, resolver um problema tido como brasileiro, tendo em vista a construção de uma sociedade nacional futura. O “Brasil, país do futuro” deveria ser justo, igualitário, soberano e antirracista. REFERÊNCIAS BANTON, Michael. A ideia de raça. Lisboa: Edições 70, 2010. BARBOSA, Muryatan Santana. Guerreiro Ramos e o Personalismo Negro. 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RAMOS, Alberto Guerreiro. “Teoria e Prática do Sociodrama”. Jornal Quilombo, Teatro Experimental do Negro. Rio de Janeiro, ano III, n.7-8, mar-abr.1950a. sumário 210 Marxismo. RAMOS, Alberto Guerreiro. “Senhores e escravos no Brasil”. Jornal A manhã, Vida Política. Rio de Janeiro, 22 out. 1950b. RAMOS, Alberto Guerreiro. “Impostura e relações de raça”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, p. 1. 20 Set. 1953. Suplemento literário. SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993. sumário 211 12 Micheli Longo Dorigan O famoso racismo à brasileira: miscigenação e discriminação racial em Lilia Schwarcz DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.12 Marxismo. INTRODUÇÃO30 Nas palavras de Lilia Schwarcz (2012d), raça, no Brasil, sempre deu o que falar. Ao longo da história de nosso país, a questão racial sempre teve grande espaço de discussão, desde as teorias evolucionistas, aos romances na literatura, e até mesmo em questões de Estado. Contudo, apesar das limitações encontradas no conceito biológico, assim como no esforço de desconstruir o seu significado histórico, subsistem as implicações sociais. Nessa perspectiva, conforme a autora, a ideia de raça persiste como representação poderosa, como um marcador social de diferença - ao lado de categorias como gênero, classe, região e idade, que se relacionam e retroalimentam - a construir hierarquias e delimitar discriminações. (SCHWARCZ, 2012b, p.33-34) Nesse sentido, de acordo com Schwarcz, raça constituiu uma categoria classificatória que deve ser compreendida enquanto uma construção local, histórica e cultural, que pertence à ordem das representações sociais, enquanto mitos e ideologias. Além disso, exerce influência real no mundo, através da produção e reprodução de identidades coletivas e de hierarquias sociais politicamente fortes. É dessa maneira que, conforme a autora, apesar da produção que visa naturalizar as diferenças, promovidas desde o século XIX, se sobressaem as crenças em atributos ligados às raças, na forma de mitos sociais, fomentando a hierarquização dos indivíduos. Assim, segundo Schwarcz, faz-se necessário refletir sobre as especificidades da história brasileira, que internalizou a desigualdade e informalizou a discriminação. Nessa perspectiva, de acordo com a autora, apesar de sempre retornarmos à mistura racial, ao pensar na identidade brasileira, pouco 30 O presente trabalho contém partes do relatório final do Projeto Institucional de Bolsas de Iniciação Científica ‘’ O mestiço como retórica: o racismo e a identidade brasileira na obra de Lilia Schwarcz’’, realizado no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá. sumário 213 Marxismo. se fala ou se questiona sobre raça no senso comum, e sempre que surge algum problema, é logo atribuído ao âmbito pessoal. É esse o motivo pelo qual, Lilia Schwarcz, em pesquisa realizada em 198831, explica o fato de os brasileiros sentirem viver numa ilha de democracia racial, onde existem, todavia, pessoas racistas. Assim, enquanto 97% dos entrevistados afirmaram não possuir preconceito, 98% conheciam pessoas, sobretudo, próximas que o possuíam. Em 1995, em pesquisa semelhante da Folha de S.Paulo, 89% das pessoas participantes concordaram com a existência do preconceito de cor, e só 10% admitiram tê-lo, embora 87% o apresentassem de alguma forma. O estudo foi repetido em 2011, mostrando resultados parecidos, o que mostra como, no Brasil, o preconceito sempre é atribuído ao outro. Estamos diante, portanto, de uma forma particular de racismo. Chamado por Florestan Fernandes de um “preconceito retroativo; um preconceito de ter preconceito” (1972), a questão parece indicar uma postura que sabe da discriminação, mas prefere sempre não tematizá-la. Trata-se também de um “racismo cordial”, na feliz expressão encontrada pela Folha de S. Paulo, que, para fora, se mostra muito amável, mas, na prática, reproduz hierarquias cristalizadas e intocadas. Com efeito, a expressão vem de Sérgio Buarque de Holanda, que, em Raízes do Brasil (1936), aludia ao caráter cordial do brasileiro. Dizendo que o termo vinha de “coração” e indicava uma mistura complicada entre esferas públicas e privadas de atuação, o famoso historiador apontava para impasses em nosso processo de cidadania. (SCHWARCZ, 1996, p.156) Tais assuntos são trabalhados e discutidos no livro de Lilia Schwarcz, referência na discussão do pensamento racial brasileiro, Nem preto nem branco, muito pelo contrário. Cor e raça na sociabilidade brasileira (2012b), cuja primeira versão, aparece na História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea (1998). Sendo assim, o objetivo central da pesquisa é analisar e compreender a discussão a respeito da identidade brasileira, fortemente atrelada 31 A pesquisa foi realizada na Universidade de São Paulo. sumário 214 Marxismo. à mestiçagem, e sua concomitante relação com a questão racial no Brasil, nas considerações da autora. Nesse sentido, partimos do pressuposto de que refletir e analisar os aspectos contraditórios dos nossos símbolos e de nossa história, assim como da realidade social, se mostra de suma importância para compreender nosso tipo particular de racismo e desmistificá-lo. A orientação metodológica da presente pesquisa, se pautou majoritariamente nos pressupostos de Marshal Sahlins (1990), na combinação das análises antropológicas e históricas, sincrônicas e diacrônicas. Assim, dialogando com o modelo estrutural, no que tange a sua significância e permanência, assim como o contexto, a cultura e a história, a fim de entender como, a mestiçagem e o preconceito de cor, concorrem estrutural e dinamicamente, para a perpetuação do passado no presente. A QUESTÃO RACIAL EM DESTAQUE De acordo com Schwarcz, é só com a da Abolição da escravidão e com o fim da monarquia que a questão racial ganha pleno destaque, uma vez que com a Primeira República, e a institucionalização da cidadania, os escravizados entrariam na condição de ‘‘cidadão’’, num momento onde ideais de liberdade e igualdade seriam “levados a sério” pela Constituição. Todavia, na prática, com a entrada das teorias raciais, uma série de instituições, pautadas em projetos científicos e deterministas ganhavam estrutura, a fim de justificar as desigualdades existentes. (SCHWARCZ, 2012b) Segundo a autora, nessa época, a ciência, positiva e determinista, defendia a diferenciação entre os grupos raciais, dialogando com as principais teorias antropológicas e biológicas do momento, na mensuração de cérebros e na aferição das características físicas. Nesse sumário 215 Marxismo. período, a antropologia e a biologia no período, tinham papel fundamental enquanto função social no paradigma racial no Brasil, repercutindo sua ideologia nas mais diversas instituições. (SCHWARCZ, 1992) Aí estavam marcadores sociais de diferença dos mais vigorosos, porque moldados por critérios considerados racionais e objetivos, que agora faziam grande sucesso. Esse era um novo racismo científico, que acionava uma pletora de sinais físicos a definir a inferioridade e a falta de civilização, assim como estabelecia-se uma ligação agora obrigatória entre aspectos “externos” e “internos” dos homens. Narizes, bocas, orelhas, cor de pele, tatuagens, expressões faciais e uma série de “indícios” eram rapidamente transformados em “estigmas”, definidores da criminalidade e da loucura, considerada uma “epidemia”, disseminada por entre a população mestiçada (SCHWARCZ, 2012a, p.63). Além disso, de acordo com Schwarcz, a literatura naturalista e a antropologia determinista associaram-se num projeto em comum, numa época de busca e conformação de um saber científico nacional. O objetivo era, partir das concepções evolucionistas para abalar as estruturas das instituições tradicionais, ligadas ao escravismo e a monarquia, submetendo toda a cultura brasileira em processo de construção, a esse novo ideal. (SCHWARCZ, 1992) Nesse contexto, conforme Schwarcz, a “raça” foi introduzida com base nos pressupostos biológicos da época, definindo os grupos segundo seu fenótipo, eliminando assim, a possibilidade de pensar no indivíduo e no exercício da cidadania. Dessa maneira, em vista da promessa de uma igualdade jurídica, a resposta foi a ‘‘comprovação científica’’ da desigualdade biológica entre os homens, ao lado da manutenção peremptória do liberalismo, tal como exaltado pela nova República de 1889. (SCHWARCZ, 2012b, p. 38) Ademais, de acordo com Schwarcz, entre os cientistas estrangeiros, existia o consenso de um Brasil descrito como um “laboratório de raças”, onde a miscigenação ocupava papel de protagonista. Nesse momento, coexistiam duas vertentes de pensamento, uma positiva, que enxergava na mistura racial a nossa esperança, e outra negativa, em que esta seria nossa sentença de degeneração. sumário 216 Marxismo. Nesse período, Schwarcz destaca o papel do cientista João Baptista Lacerda (1911) que defendia a tese de que a mestiçagem brasileira seria transitória e benéfica, e que com o incentivo a imigração europeia, a nação, em um futuro não tão distante, seria branca. Ainda, para o autor, como no Brasil não existiam os padrões de preconceito e exclusão dos Estados Unidos da América do Norte, as previsões eram sobretudo positivas para a identidade brasileira. (SCHWARCZ, 2012b) Além disso, segundo a autora, a inspiração que o Brasil buscou nas teorias evolucionistas e deterministas europeias, não ocorreu de forma mecânica, mas sim, e particularmente no nosso caso, teve o papel de reordenar e remontar, adequando-as à realidade da época, que era no mínimo contraditória em relação a europeia. Tais teorias, apesar de justificarem a intensa desigualdade e hierarquia, já bastante abalada pelo contexto, acabavam por prejudicar a ideia de um projeto nacional brasileiro, uma vez que a degeneração da raça, efeito da miscigenação, era profundamente preocupante, além de ser um dos pilares da teoria darwinista social. Assim, conforme Schwarcz era preciso passar pelo pessimismo da via degeneracionista européia, sem de fato assimilá-la. (SCHWARCZ, 1992, p.162-163) Tingido pela entrada maciça de imigrantes — brancos e vindos de países como Itália e Alemanha —, introduziu-se no Brasil um modelo original, que, em vez de apostar que o cruzamento geraria a falência do país, descobriu nele as possibilidades do branqueamento. Dessa forma, paralelamente ao processo que culminaria com a libertação dos, iniciou-se uma política agressiva de incentivo à imigração, ainda escravos nos últimos anos do Império, marcada por uma intenção também evidente de “tornar o país mais claro”. (SCHWARCZ, 2012b, p.39) A saída encontrada pelos cientistas brasileiros, foi absorver o ideal de que as raças significavam realidades essenciais, e em contrapartida, negar a noção de que a mestiçagem seria sinônimo de degeneração. Desse modo, de acordo com Schwarcz, a partir da união entre os modelos evolucionistas e do darwinismo social, pregou-se sumário 217 Marxismo. no Brasil, uma ciência que justificava a desigualdade enquanto inferioridade, mas também uma ciência que defendia uma miscigenação positiva, apostando no branqueamento da população. Assim, segundo a autora, o processo de abolição no país carregava consigo algumas singularidades, em primeiro lugar, a crença enraizada de que o futuro levaria a uma nação branca. Em segundo, o alívio decorrente de uma libertação que se fez sem lutas nem conflitos e sobretudo evitou distinções legais baseadas na raça. (SCHWARCZ, 2012b, p.39-40) Ao contrário da imagem dominante em outros países, onde o final da escravidão foi entendido como o resultado de um longo processo de lutas internas, no Brasil a Abolição foi tida formalmente como uma dádiva — no sentido de que teria sido um “presente” da monarquia, e não uma conquista popular. Mas a mão de obra escrava e a presença africana no Brasil não podem ser entendidas apenas como respostas passivas diante de um ambiente adverso. Na verdade, eles inventaram suas condições de vida e de sobrevivência no regime escravista de duas maneiras principais: pela negociação e pelo conflito. [...] No entanto, a imagem oficial como que apagou esse tipo de manifestação, a despeito de a Primeira República ser marcada por uma agenda de manifestações sociais, incluindo demanda de grupos negros. O ambiente, porém, seria diferente: em lugar do estabelecimento de ideologias raciais oficiais e da criação de categorias de segregação, como o apartheid na África do Sul ou a Jim Crow nos Estados Unidos, projetou-se aqui a imagem de uma democracia racial, corolário da representação de uma escravidão benigna. (SCHWARCZ, 2012b, p.40-41) REESCREVENDO NOSSA HISTÓRIA Por conseguinte, segundo Schwarcz, a partir de 1920, com o processo de construção do Estado nacional, o Brasil constituiria e representaria um caso interessante, sem praticamente e aparentemente nenhum conflito étnico ou regional, e dominação racial. Nessa época, a sumário 218 Marxismo. inexistência de categorias explícitas de dominação racial contribuía para a criação da imagem de um paraíso racial, e a recriação de uma história em que a miscigenação aparecia associada a uma herança portuguesa particular e à sua suposta tolerância racial, revelada em um modelo escravocrata mais brando. (SCHWARCZ, 2012b, p.42) Dessa maneira, conforme a autora, o passado escravocrata foi reconstruído de forma positiva, enquanto um recomeço a partir do zero, a exemplo da atitude de Rui Barbosa, em 1890, na queima dos registros nacionais sobre escravidão. Sobretudo a partir do final dos anos 20, os modelos raciais de análise começam a passar por uma severa crítica, à semelhança do que já acontecera em outros contextos intelectuais. As diferenças entre os grupos deveriam ser explicadas a partir de argumentos de ordem social, econômica e cultural, não se levando mais em conta as supostas diferenças biológicas e somáticas. Raça, nesse contexto, aparece quase como um ‘slogan de época’, uma noção em desuso que deveria ser rapidamente extirpada do vocabulário local. (SCHWARCZ, 1995 p. 5) Nesse contexto, de acordo com Schwarcz, buscou-se a princípio, defender que o Brasil, em um futuro não tão distante, seria branco, fosse pela seleção natural ou pela entrada de imigrantes brancos. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, e o processo de descolonização do domínio europeu nos países da África, acontece uma mudança radical de paradigmas, advinda da experiência dos atritos e embates internacionais, que apresentou às pessoas o futuro de um mundo carregado de ódio ligados a termos raciais e nacionais. (SCHWARCZ, 2012b) A partir desse momento, conforme a autora, os ideais de mestiçagem começam a ser intensamente valorizados. E assim, a narrativa romântica dos senhores severos, mas paternais e escravos submissos e prestativos encontrou terreno fértil ao lado de um novo argumento, que afirmava ser a miscigenação [...] um fator impeditivo às classificações muito rígidas e apenas bipolares (SCHWARCZ, 2012b, p. 44), onde a sociedade se constituiria em negros de um lado, e brancos de outro. sumário 219 Marxismo. Em um país onde o modelo branco escapava ao perfil anglo-saxônico, uma vez que já era em si miscigenado — afinal, os portugueses eram famosamente uma nação dada a contatos populacionais, que iam da Índia até o Brasil, passando pela África —, as cores tenderam a variar de forma comparativa. Quanto mais branco melhor, quanto mais claro mais superior, eis aí uma máxima difundida, que vê no branco não só uma cor mas também uma qualidade social [...] Nesse contexto, em que o conflito passa para o terreno do não dito, fica cada vez mais difícil ver no tema um problema; ao contrário, ele se modifica, nos anos 1930, em matéria para exaltação. (SCHWARCZ, 2012b, p. 44) Era a cultura mestiça que, na década de 1930, emergia como símbolo oficial da nação. Nesse período, o movimento nacionalista, segundo Schwarcz, de criação de símbolos nacionais, assim como em outros países, se constituiu de forma ambígua, com interesses privados assumindo caráter público. Além disso, de acordo com a autora, o próprio discurso da identidade foi fruto dessa ambivalência, envolvendo questões que dialogavam com o público e o privado, e trazendo para a cena noções como ‘‘passado’’ e ‘‘povo’’, elementos cruciais na elaboração de uma nacionalidade imaginada. (SCHWARCZ, 2012b) Assim, conforme Schwarcz, a narrativa oficial faz uso de elementos disponíveis, como a história, a tradição, rituais formalistas e aparatosos, e por fim seleciona e idealiza um ‘‘povo’’ que se constitui a partir da supressão das pluralidades. (SCHWARCZ, 2012b, p.47) É com essa perspectiva, que o governo, durante o Estado Novo, busca implantar projetos oficiais a fim de reconhecer a mestiçagem como principal característica da nacionalidade brasileira. É claro que todo esse processo não se dá de maneira aleatória ou meramente manipulativa. No Brasil dos anos 1930, dois grandes núcleos aglutinam conteúdos particulares de nacionalidade: o nacional-popular e sobretudo a mestiçagem, não tanto biológica como cada vez mais cultural. É nesse contexto também que uma série de intelectuais ligados ao poder público passa a pensar em políticas culturais que viriam ao encontro de “uma autêntica identidade brasileira”. Com esse objetivo é que sumário 220 Marxismo. são criadas ou reformadas diversas instituições culturais que visavam “resgatar” (o que muitas vezes significou “inventar”, ou melhor, “selecionar e recriar”) costumes e festas, assim como um certo tipo de história. (SCHWARCZ, 2012b, p.47-48) Além de tudo, Schwarcz busca compreender o que tais símbolos nacionais revelam, e é Peter Fry (2005) quem a ajuda a refletir sobre questão, a fim de perceber a ideologia da miscigenação e da ausência de preconceito como pilares fundamentais na compreensão de nosso pensamento social, na forma de verdadeiros mitos estruturais. (SCHWARCZ, 2006) Para isso, Schwarcz recorre a Benedict Anderson (1991), na defesa de que o diálogo entre mitos e símbolos compartilhados com o passado, constituem elementos essenciais para a criação de uma nacionalidade imaginada, onde é criada uma memória social capaz de agrupar indivíduos de um país. Além disso, dentro dessa perspectiva, a autora lembra as reflexões de Paul Ricoeur (2007) sobre memória, história e esquecimento, e como acontece a definição do que será lembrado ou não. (NEVES, MOUTINHO, SCHWARCZ, 2019) O uso político da memória social tem sido explorado, sobretudo em relação ao período de constituição dos Estados nacionais que, para autores como Eric HOBSBAWN (1984), foram marcados pela criação de tradições que se queriam discursos nacionais capazes de integrar toda a população em uma mesma identidade.[...]Em resumo, a invenção de tradições nacionais foi a lógica que permeou o processo de construção das identidades e dos estados nacionais, consolidando narrativas que soldavam (não sem violência) solidariedades entre grupos heterogêneos. (NEVES, MOUTINHO, SCHWARCZ, 2019 p.3) Ainda: Essa fixação nacionalista da memória coletiva (Maurice HALBWACHS, 1990) se fará de diversas maneiras, desde livros e canções até os chamados lugares da memória (Pierre NORA, 1993). Trata-se, sem dúvida, do uso da memória como estratégia de construção de identidade nacional e de lógicas de pertencimento a um lugar, mas também meios de transmissão de certos valores e visões de mundo. Um processo que se afirma de modo complexo sumário 221 Marxismo. envolvendo também um emaranhado de instituições, burocracias, leis, práticas e tecnologias de governo (Antônio Carlos de SOUZA LIMA, 2002; Adriana VIANNA, 2014; MOUTINHO, 2004; 2012; 2017a).’’ (NEVES, MOUTINHO, SCHWARCZ, 2019 p. 3) Nesse contexto, a antropóloga expõe o papel de São Paulo na transformação dos bandeirantes em ‘‘heróis de uma raça’’, destituindo-os de seu sentido original e atribuindo a eles, uma dimensão grandiosa, enquanto símbolos do caráter empreendedor do paulistano. Além da tentativa de apagar o passado imperial, pelas Minas Gerais barrocas, que são reinventadas como o ‘‘berço de nossa cultura’’, exaltando o caráter mestiço do lugar. Para mais, de acordo com Schwarcz, igualmente emblemático, foi a publicação de Gilberto Freyre (2003), com o livro Casagrande & senzala, em 1933, apresentando às pessoas um novo sentido a fábula das “três raças”, e uma nova maneira de pensar a diversidade racial brasileira. (SCHWARCZ, 2012b) Para ele, mesmo mista, a cultura brasileira era homogênea, e original, com negros, índios e brancos vivendo em consonância e harmonicamente. Fundamentado em Franz Boas, o autor defende em sua obra a importância das influências sociais e culturais, em detrimento dos parâmetros puramente biológicos, evidenciando a diferença entre raça e cultura. Em contrapartida, segundo Schwarcz, partindo da vida privada das elites nordestinas, Freyre defende também, a ideia de uma ‘‘boa escravidão’’, oposta a existente nos Estados Unidos, com bons proprietários, assim como escravos dadivosos. Antes dele – em 1900- Joaquim Nabuco (2003), grande referência de Freyre, e um dos principais líderes abolicionistas, em seu conhecido texto Massangana, já relatava de maneira emotiva e nostálgica, essa “boa escravidão”. Nela, a violência do sistema econômico passava despercebida em detrimento da relação afetiva entre os senhores e os escravos domésticos. (SCHWARCZ, 2012b) Era assim que o cruzamento de raças passava a singularizar a nação nesse processo que leva a miscigenação a parecer sinônimo de tolerância e hábitos sexuais da intimidade a se transformarem em modelos de sociabilidade. [...] A partir dos sumário 222 Marxismo. anos 1930, no discurso oficial ‘o mestiço vira nacional’, ao lado de a um processo de desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente clareados. Esse é o caso da feijoada, naquele contexto destacada como um “prato típico da culinária brasileira”. A princípio conhecida como “comida de escravos”, a feijoada se converte em “prato nacional”, carregando consigo a representação simbólica da mestiçagem. [...] A capoeira - reprimida pela polícia do final do século passado e incluída como crime no Código Penal de 1890 - é oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937.69 Também o samba passou da repressão à exaltação, de “dança de preto” à “canção brasileira para exportação”. Definido na época como uma dança que fundia elementos diversos, nos anos 1930 o samba sai da marginalidade e ganha as ruas, enquanto as escolas de samba e os desfiles passam a ser oficialmente subvencionados a partir de 1935. (SCHWARCZ, 2012b, p.49-59) Desse modo, na elaboração de uma cultura nacional popular e mestiça elementos como a feijoada, a capoeira e o samba, emergem como símbolos da pátria, ‘‘deixando de lado’’ todo o estigma e a repressão a que estavam associados. Concretizava-se assim, o país de Gilberto Freyre, em que imperava a harmônica convivência racial. Desse modo o caráter de exaltação do nacionalismo do governo de Getúlio Vargas – inspirado nos regimes autoritários da Europa – ganham corpo na “brasilidade” e na busca dos reais valores nacionais. Como exemplo dos acontecimentos dessa época, podemos citar o famoso evento da queima de bandeiras estaduais, substituídas pela bandeira do Brasil, e a introdução de novas datas cívicas como o Dia da Raça, criado para exaltar a suposta tolerância racial brasileira. UMA MUDANÇA DE PARADIGMAS Ademais, segundo Schwarcz, o impacto e a penetração desse tipo de interpretação que defendia a situação racial amistosa existente no Brasil, levaram a aprovação de um projeto, em 1951, financiado sumário 223 Marxismo. pela Unesco, e intermediado no país, por Alfred Métraux. Nessa época, irrompem diversas críticas às concepções deterministas de raça, junto com o perecimento dos ideais de “boa colonização” do imperialismo. (SCHWARCZ, 2012b) É dentro dessa perspectiva, que a Unesco, foi criada em 1945, pela ONU, com o princípio de contribuir na defesa da paz mundial, e da diversidade racial, na luta contra o racismo científico, pilar da desigualdade e guerras entre os homens. Nessa época, a instituição promovia diversos seminários a fim de discutir essas questões. Gilberto Freyre, também foi parte ativa da constituição desses seminários, além de propagar seu pensamento no exterior, por meio de palestras, conferências, artigos e publicações. Assim, fundamento nas concepções de Freyre, assim como de Donald Pierson, e tendo como base as diferentes relações raciais existentes no Brasil e Estados Unidos, a UNESCO acreditava existir no Brasil uma grande harmonia entre os grupos étnicos. (SCHWARCZ, 2012b) É nessa lógica que surge, na década de 1950, o Programa de Pesquisas sobre Relações Raciais no Brasil, na busca de um modelo de inspiração e exportação para outras nações. Nesse projeto, especialistas como Costa Pinto, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira, Roger Bastide e Florestan Fernandes, foram contratados para estudar as relações raciais em diferentes regiões. Da parte da Unesco havia, portanto, a expectativa de que os estudos fizessem um elogio da mestiçagem e enfatizassem a possibilidade do convívio harmonioso entre etnias nas sociedades modernas. (SCHWARCZ, 2012b, p. 69) No entanto, se algumas obras – como As elites de cor (1955), de autoria de Thales de Azevedo – se engajavam no projeto de ideologia antirracista desenvolvido pela organização, outras passaram a efetuar uma revisão nos modelos assentados. Este é o caso das análises de Costa Pinto para o Rio de Janeiro e de Roger Bastide e Florestan Fernandes para São Paulo, que nomearam as falácias do mito: em vez de democracia surgiam indícios de discriminação, em lugar da harmonia, o preconceito. (SCHWARCZ, 2012b, p. 69) sumário 224 Marxismo. Dentre as análises mais reveladoras, Schwarcz destaca as de Florestan Fernandes (2013), que pretendia esclarecer o imaginário social de que a ausência de conflitos abertos entre os grupos, seriam índices de uma boa convivência racial. Segundo o autor, a abolição da escravidão, e a pressuposta igualdade nas leis e no trabalho, não teriam efeito transformador nos padrões tradicionais de acomodação racial. Além disso, a noção de tolerância racial presente no país, intensificaria a distância entre negros e brancos, uma vez que dada a inexistência de um problema racial, não seria necessário medidas e esforços para contorna-lo. Ainda, Fernandes notou a existência de um tipo particular de racismo vigente no Brasil: ‘‘o preconceito de ter preconceito’’, resultado da agência dos mores cristãos nos senhores, que adotariam uma postura ambígua, onde as orientações práticas eram totalmente adversas as obrigações ideológicas. Ou seja, a tendência do brasileiro seria continuar discriminando, apesar de considerar tal atitude ultrajante (para quem sofre) e degradante (para quem a pratica). Resultado da desagregação da ordem tradicional, vinculada à escravidão e à dominação senhorial, essa polarização de atitudes era, segundo Fernandes, uma consequência da permanência de um etos católico. [...] É por isso que o preconceito de cor no Brasil seria condenado sem reservas, como se representasse um mal em si mesmo. Não obstante, a discriminação presente na sociedade mantinha-se intocada, desde que preservado um certo decoro e que suas manifestações continuassem ao menos dissimuladas. O racismo aparece, dessa maneira – e mais uma vez –, como uma expressão de foro íntimo, mais apropriado para o recesso do lar, quase um estilo de vida. (SCHWARCZ, 2012b, p. 70) Contudo, nas considerações de Schwarcz, além de evidenciar esse modo particular de preconceito, é necessário um esforço para entender a sua permanência e sua manutenção. Nesse sentido, Manuela Carneiro da Cunha (2009), ajuda a autora a refletir sobre a questão, ao discorrer sobre as diversas maneiras de perceber a cultura de um país. Segundo Cunha (2009), existiriam dois tipos de cultura: a primeira, seria sumário 225 Marxismo. um patrimônio geral, e a outra, constituiria uma propriedade particular de cada indivíduo e por eles seria agenciada. A partir disso, segundo Schwarcz, podemos pensar, em como o mito da democracia racial se manteve com as mudanças na estrutura, se reorganizando, do passado ao presente, e sendo traduzido na esfera privada. Assim, de acordo com a autora A oportunidade do mito se mantém, para além de sua desconstrução racional, o que faz com que no Brasil, mesmo aceitando-se o preconceito, a ideia de harmonia racial se imponha aos dados e à própria consciência da discriminação. (SCHWARCZ, 2012b, p. 74) E é essa “cultura” (com aspas) que tem sido manipulada de maneira ampla, assumindo novo papel como argumento político. Vale a pena assinalar a mudança de axioma: se o período do pós-guerra defendeu a universalização dos direitos, mais recentemente a ênfase recaiu nos direitos das minorias. Ora, nesse mundo das diferenças, nada como acionar a “cultura” (com aspas) enquanto recurso para afirmar novas identidades, e raça seria um poderoso operador nesse sentido. Assim, se pensarmos não em raça como um conceito biológico, mas - fazendo um paralelo com o modelo da antropóloga - em “raça” entre aspas, veremos como temos pela frente um marcador crucial, que permite demonstrar a qualidade reflexiva da cultura, e como ela estabelece um fio de tensão que liga e separa - reflexivamente -antropologia e política. (SCHWARCZ, 2012c, p.98) Nessa lógica, segundo a autora, embora a mestiçagem não seja uma característica única do Brasil, foi nele em que o mito de uma convivência racial harmônica ganhou raízes na cultura do país, se tornando o modelo oficial. Além disso, foi também em nosso país que a cor se tornou o “somatório” de diversos elementos físicos, sociais e culturais, e parece variar conforme o dia (pode-se estar mais ou menos bronzeado), a posição de quem pergunta e o lugar de onde se fala (dos locais públicos à intimidade do lar). (SCHWARCZ, 2012b, p. 112) Desse modo, de acordo com Schwarcz, simplesmente reconhecer a existência do racismo, não leva a sua compreensão nem a percepção de sua particularidade. sumário 226 Marxismo. Nessa sociedade marcada pela desigualdade e pelos privilégios, ‘‘a raça’’ fez e faz parte de uma agenda nacional pautada por duas atitudes paralelas e simétricas: a exclusão social e a assimilação cultural. (SCHWARCZ, 2012b, p. 115) Assim, de acordo com Schwarcz, a convivência racial é erigida sob o signo da cultura e reconhecida como ícone nacional, deixando de lado boa parte da população que é excluída dos direitos básicos da cidadania. Nessa perspectiva, Schwarcz sugere que refletir sobre o caráter contínuo do mito, não impede de pensar também em sua transformação. Ela cita Lévi-Strauss, que nos mostra como o mito pode comportar transformação e mudança, e indica ser esse o caso do Brasil, onde o mito se altera e se revitaliza continuamente. Nesse sentido, a autora reflete: Quem sabe, no Brasil, parafraseando o antropólogo norte-americano Marshall Sahlins, o mito tenha virado história e a história realidade, ou melhor, quem sabe a história não passe de uma metáfora. (SCHWARCZ, 2012b, p. 111) É ainda forte e corre de forma paralela, portanto, a interpretação culturalista dos anos 1930, que transformou a miscigenação em nosso símbolo maior. No entanto, se a mistura de grupos e culturas foi, nos termos de Gilberto Freyre, sinal de amolecimento, significou também o enrijecimento do sistema de dominação, que passa a ser reproduzido no âmbito da intimidade. Nesse sentido, é na história que encontramos as respostas para a especificidade do racismo brasileiro, que já não se esconde mais na imagem indelével da democracia racial, mas mantém a incógnita de sua originalidade e de sua reiteração constante. (SCHWARCZ, 2012b, p. 116) Assim, de acordo com Schwarcz, é na articulação das estruturas sociais e culturais, antropologia e história, sincronia e diacronia, que se deve buscar a permanência e reinvenção dos significados. Ainda, conforme a autora essa interdisciplinaridade seria a peça chave na reflexão elaborada sobre a fábula das três raças. Nela, a estrutura da mestiçagem se manteve, embora transformando-se de sumário 227 Marxismo. acordo com contextos específicos, passando do romantismo, às teorias biológicas, e finalmente, á símbolo cultural da nação. Desse modo, segundo a autora, se o mito deixou de ser oficial, está internalizado. Perdeu seu estatuto científico, porém ganhou o senso comum [...] – e o cotidiano. (SCHWARCZ, 2012b, p. 116) CONCLUSÕES Desse modo, ao longo do texto, foi possível apresentar e compreender a discussão a respeito da identidade brasileira, fortemente atrelada à mestiçagem, e sua concomitante relação com a questão racial no Brasil na obra de Lilia Schwarcz. Segundo a autora, a ideia de miscigenação, não constitui sinônimo de igualdade ou ausência de discriminação. Além disso, conforme Schwarcz, a ambiguidade desse “racismo à brasileira” se revela, na prática, na coexistência entre inclusão e exclusão. Nesse sentido, nas considerações da autora, existe um consenso, na sociedade brasileira, de que existe inclusão social, principalmente em detrimento da mestiçagem, pelos traços compartilhados, na música, no esporte, nas artes, na religião, e nos costumes divididos. Em contrapartida, de acordo com a autora, em consonância com a ideologia de equilíbrios de antagonismos, defendida por Gilberto Freyre, temos o lado oposto e perverso, o da exclusão social, presente nas práticas do senso comum, no espaço privado, que se naturaliza e renaturaliza continuamente. Dessa maneira, segundo Schwarcz, vivemos num país que combina exclusão social e assimilação cultural, onde todos são unidos, mas igualmente separados. E o mito da democracia racial, que deixou de ser oficial e perdeu seu estatuto científico, ganhou o senso comum e o cotidiano. Está internalizado. sumário 228 Marxismo. REFERÊNCIAS ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do Nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. BASTIDE (Roger) e FERNANDES (Florestan). Brancos e negros em São Paulo. São Paulo. Companhia Editora Nacional. Brasiliana. 1959. 2a edição. 390 p. CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Cultura com aspas: e outros ensaios. 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Janeiro: Relume - Dumará: Fundação Ford, 2003. sumário 230 13 Patrícia Amorim Weber A relação sujeito-objeto na teoria social moderna: a produção de conhecimento em contexto colonial DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.13 Marxismo. INTRODUÇÃO Todas as formas de exploração colonial são formas de desumanização. Esta é uma afirmação de Lewis Gordon (2015), importante intelectual e estudioso da obra do autor martiniquenho Frantz Fanon que, em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas (2008), traça uma densa narrativa acerca dos impactos da colonização na psiqué do homem negro e da mulher negra em contexto colonial. Gordon nos chama atenção, junto a Fanon, para as consequências que um sistema de dominação político, social e cultural possa vir a ter na condição existencial dos sujeitos que foram dominados. Portanto, temos aqui uma importante leitura que encara o colonialismo para muito além de suas implicações econômicas e políticas. O alcance da análise para além de aspectos concretos como a economia e as instituições foi uma grande contribuição de Fanon para os estudos pós e decoloniais. E o interessante é que o segundo intelectual abordado em nossa pesquisa também parte da valorização desta perspectiva. Guerreiro Ramos defende que as questões raciais no Brasil devem ser vistas a partir do ângulo psicológico e enquanto fenômenos socialmente condicionados (RAMOS, 1957). Seguindo nessa toada, podemos acompanhar os argumentos de Aníbal Quijano (1992), por exemplo, ao afirmar que a estrutura colonial gerou discriminações de cunho “racial”, “étnico”, antropológico” e “nacional” e que, posteriormente, tendo sido encaradas enquanto categorias científicas e naturalizadas, foram acompanhadas de uma colonização do imaginário dos próprios dominados. Logo, ao nos referirmos à “desumanização” de um povo, queremos dizer que este foi ceifado de todos esses elementos que compõem seu aspecto metafísico. Este foi o produto mais duradouro da colonização, o qual Quijano denomina “colonialidade”: “a colonialidade (...) é ainda o modo mais geral de dominação no mundo atual, uma vez que o colonialismo, como sumário 232 Marxismo. ordem político explicito, foi destruído” (ibid., p. 441). Por “modo mais geral”, o autor intenta dizer que o conceito inclui a repressão sistemática das crenças, imagens, ideias, símbolos e conhecimentos da população autóctone, que passa a ver como legítimo apenas aquilo que é produzido pela população das nações tidas como desenvolvidas. Tendo isso em vista, buscamos interpretar os livros Pele Negra, Máscaras Brancas de Frantz Fanon (2008) e Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1957) de Guerreiro Ramos a partir da perspectiva pós e decolonial, pois consideramos que as premissas levantadas por esse arcabouço teórico podem jogar luz às afirmações de ambos os autores no que diz respeito a epistemologia colonizada, a subjetividade e agência dos sujeitos, elementos estes de suma importância para refletirmos sobre a relação entre sujeito e objeto. De modo geral, o argumento pós-colonial traz importantes contribuições para os estudos sobre as relações de colonização e colonialidade. Alguns dos temas caros a esta linha teórica são: o estudo e a análise das conquistas territoriais europeias, as várias instituições do colonialismo europeu, as operações discursivas do império, as nuances da construção do sujeito no discurso colonial e as resistências desses sujeitos, e, mais importante talvez, as diferentes respostas a tais incursões e às suas heranças coloniais contemporâneas nas nações e comunidades pré e pós-independência (Ashcroft; Griffiths; Tiffin, 2007, p. 169 apud Nogueira, 2017). A partir deste trecho, reforçamos que, tendo como base autores como Foucault (2007), o pós-colonialismo assume o social a partir de um caráter discursivo, assim como vemos na obra O Orientalismo (2008) de Edward Said, considerado um precursor dessa perspectiva teórica. Ao tratar da visão do Oriente pelo Ocidente trazendo a predominância do discurso, Said demonstra que o imaginário ocidental formulou um regime de verdade tendo como substância principal a sumário 233 Marxismo. construção da inferioridade daquela parte global. O orientalismo seria, portanto, um conjunto de coações e limitações ao pensamento, representando uma importante dimensão da cultura político-intelectual da modernidade, que cria e imagina o oriental como sendo irracional, infantil, imaturo. Ou seja, é um pensamento geopolítico que divide o mundo e cria um outro inferiorizado, premissa esta muito cara para a lógica argumentativa que queremos seguir neste artigo. Retomando o fio narrativo sobre o pós-colonial, os demais elementos que o compõem são o descentramento das narrativas e dos sujeitos contemporâneos e a proposta de uma epistemologia crítica também estão presentes nas análises (Costa, 2006). Com isso, não pretendemos afirmar que todos esses elementos fazem parte das obras de Ramos e Fanon, mas apenas que são importantes pressupostos para dar nitidez à nossa lente interpretativa. As teorias decoloniais, por sua vez, nos dão suporte para pensar a “colonialidade” a partir de uma perspectiva latino-americana. De acordo com os autores decoloniais, como Walter Mignolo, Ramon Grosfoguel e Aníbal Quijano, as teorias pós-coloniais não podem ser diretamente aplicadas ao contexto latino-americano, devido as evidentes diferenças sociais e políticas presentes nesta parte do continente. Portanto, ao tratarmos de um autor brasileiro, como Guerreiro Ramos, é importante trazermos também determinados conceitos que nos auxilie na interpretação de nossa formação nacional e subjetiva (Miglievich-Ribeiro, 2014). Portanto, partindo desta base contextual e teórica, pretendemos, neste artigo, discutir as seguintes questões: 1) de que forma Frantz Fanon e Guerreiro Ramos podem nos auxiliar a compreender como se deu a relação entre o sujeito pesquisador e o objeto a ser pesquisado no contexto colonial? 2) quais são as propostas de saída epistemológicas de nossos autores para este debate? sumário 234 Marxismo. Para responder a estas questões, percorremos os textos supracitados através do método de análise de conteúdo. A partir de suas respostas, esperamos chegar a reflexões que nos ajudem a pensar sobre a seguinte hipótese, trabalhada ao longo da pesquisa: a racialização32 do sujeito negro ocorrida no processo colonial e a consequente falha no reconhecimento deste como humano, impossibilitou o conhecimento pleno de sua experiência social pela produção teórica. Esta hipótese é sustentada a partir da metáfora do véu, exposta por W.E.B. Du Bois em seu livro As Almas da Gente Negra (1999), quando este afirma que a categoria raça encobre os sujeitos dificultando a percepção do sujeito em relação ao objeto e vice-versa. A CONSTRUÇÃO DO “OUTRO” NA MODERNIDADE A leitura tradicional da História nos mostra que a modernidade é um fenômeno de origem exclusivamente europeia. A partir deste ponto de vista, civilização ou modernização significaria necessariamente europeização. Enrique Dussel, em seu texto denominado Europa, Modernidade e Eurocentrismo (2005), demonstra que esta visão eurocêntrica, a qual pressupõe que este continente teve características excepcionais internas que permitiu, através de sua racionalidade, que superasse em valor todas as outras culturas, é apenas uma das perspectivas históricas possíveis. Uma leitura alternativa a esta, 32 Utilizamos o termo racialização no sentido utilizado por Priscila Medeiros em seu artigo “Rearticulando narrativas sociológicas: teoria social brasileira, diáspora africana e a desracialização da experiência negra”. Cito-a: “Quando se fala em racialização faz-se referência aos processos históricos e sociais que estabelecem significados a determinados indivíduos e grupos. O que ocorre é uma biologização de ideologias racistas, cristalizando-as no corpo e na história dessas pessoas e transformando-as em ‘verdades’ corporificadas. (...) E, ao criarem ‘verdades’, são estabelecidos os respectivos ‘lugares sociais’ para os grupos atingidos por esses processos; são criadas também as expectativas coletivas sobre como esses grupos devem agir, pensar e ser, ou melhor, nascem aí os ‘sujeitos típicos’ para tais ideologias” (MEDEIROS, 2018, p.710). sumário 235 Marxismo. denominada pelo autor como “mundial”, afirma que a modernidade é produto do contato entre a Europa e as outras culturas. Paul Gilroy propõe em O Atlântico Negro (2001) uma narrativa que acompanha esta segunda perspectiva, assumindo a importante participação dos demais continentes na formação do pensamento moderno. Partimos, aqui, de uma visão crítica acerca desta primeira versão sobre a origem e sobre os aspectos do pensamento moderno hegemônico, apontando como uma das consequências desta configuração socio-político-existencial a formação de uma relação hierárquica entre sujeito e objeto no que diz respeito a produção epistemológica. Para Castro-Gomes, o projeto de modernidade pode ser lido a partir do par saber-poder proposto por Foucault. Em sua perspectiva, este projeto representa uma tentativa de controle da vida do Outro a partir do conhecimento. Estes mecanismos teriam como objetivo a organização racional da vida do homem. Logo, a “invenção do Outro” trata-se da tentativa de criar representações binárias dos sujeitos colonizados pelo Estado colonizador (Nogueira, 2017). Desta forma, a modernidade molda o olhar para enxergar a história enquanto uma linha do tempo, em que os países periféricos representariam o passado e as nações europeias, seu futuro quando desenvolvido. O conceito carregaria uma temporalidade progressiva, pautada por etapas a serem seguidas (Ortiz, 2015). As sociedades europeias modernas se formaram a partir de alguns mitos fundamentais: a crença no progresso, na civilização, no liberalismo, na educação com base científica e na razão. Ocorre que estes pilares se erigiram a partir do pressuposto exclusivista de que estes elementos seriam necessariamente superiores a todos os demais e pertencentes apenas ao continente europeu. Com isso, em um contexto de colonização desenfreada, criou-se uma configuração no imaginário social ocidental de que o mundo seria compartimentarizado em dois, entre os colonos e os colonizados. sumário 236 Marxismo. Em Os Condenados da Terra (2005) de Frantz Fanon, é exposto que, nesta lógica binária, os colonizados seriam apresentados enquanto seres desonrosos e vergonhosos, impenetráveis pela ética, pois teriam uma ausência total dos valores primordiais para as sociedades europeias. Esta afirmação está de acordo com o ponto de vista de Castro-Gomes, quando este sugere que a espoliação colonial dos povos originários foi legitimada justamente por este imaginário que estabeleceu diferenças absolutas entre colonizador e colonizado. As categorias de “raça” e “cultura”, neste contexto, passaram a operar enquanto mecanismos de geração de identidades opostas. Logo, a importância destas duas categorias nos estudos sobre a situação colonial se dá porque, para o colonialismo, ao afirmar que o negro era selvagem, este não se referia ao angolense ou ao nigeriano, mas sim a todo um continente. (Castro-Gómez, 2015). Esta perspectiva, aliás, reforça o significado de racialização que buscamos trazer neste texto. A divisão maniqueísta do mundo, composta por esta condenação cultural e “racial”, daria apoio à desumanização dos povos não ocidentais, que seriam encarados enquanto seres inferiores diante dos povos europeus (Fanon, 2005; Streva, 2015). Ainda de acordo com Fanon, o resultado global pretendido pelo domínio colonial era convencer os indígenas de que o colonialismo devia arrancá-los das trevas. A mãe colonial defende o filho contra ele mesmo, contra seu ego, contra sua fisiologia, sua biologia, sua infelicidade ontológica (Fanon, op. cit., p. 175). Vemos que o racismo, para o autor, é um fenômeno que objetifica o Outro. Richard Schmitt, no artigo Racism and Objetification: Reflections on Themes from Fanon, interpreta que esta objetificação não diz respeito à transformação das pessoas em coisas, mas sim a uma recusa sistemática em criar relações humanas com aquele que é objetificado (Schmitt, 1996 apud Streva, 2015). Isto pode ser bem compreendido se retomarmos às influências existencialistas em Frantz Fanon: sumário 237 Marxismo. Eu não aguentava mais, já sabia que existiam lendas, histórias, a história e, sobretudo, a historicidade que Jaspers havia me ensinado. Então o esquema corporal, atacado em vários pontos, desmoronou, cedendo lugar a um esquema epidérmico racial. No movimento, não se tratava mais de um conhecimento de meu corpo na terceira pessoa, mas em tripla pessoa. (....) Eu existia em triplo: ocupava determinado lugar. Ia ao encontro do outro... e o outro, evanescente, hostil mas não opaco, transparente, ausente, desaparecia. A náusea... (Fanon, 2008, p. 105) O trecho supracitado descreve a cena de um homem negro sentado em um trem. Este homem existe em triplo porque, ainda que os assentos ao lado do seu estejam desocupados, o homem branco se recusa a se sentar ao lado dele. Para Sartre, essa sensação de “náusea” ocorre quando o indivíduo nota que é um “nada se ser”, isto é, que não pode ser preso a uma essência, que sua existência é contingencial (Sartre, 2005). Porém, em Fanon, esse paralelo é estabelecido com sentido propositalmente trocado, pois este pretende demonstrar que a náusea, para o negro, significa a constatação de que ele é essencializado a partir de sua epiderme. A sensação nauseante vem da constatação de que se é “evitado”. Portanto, essa “epidermização” a que se refere Fanon nada mais é do que a exclusão e a abjeção impressas no corpo negro. Mas é importante lembrarmos que, apesar de haver uma inscrição objetiva da negação do sujeito através de sua pele, o autor nega o racismo enquanto parte do campo biológico e o considera enquanto um fenômeno cultural, que se desenvolve a partir do processo de socialização. Fanon recoloca a racialização enquanto um dado contingencial, com gênese histórico-social (Streva, 2015). Dado isso, afirma: se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com racismo e culturas sem racismo (Fanon, 1980, p. 36). sumário 238 Marxismo. Partindo desta perspectiva, torna-se mais nítida a compreensão acerca do debate epistemológico que pretendemos traçar aqui sobre a relação entre o sujeito do conhecimento e o objeto a ser conhecido. A RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO EM CONTEXTO COLONIAL A interpretação crítica dos elementos da modernidade trazida por Aníbal Quijano pode ser um interessante caminho inicial para se tratar sobre a relação entre sujeito e objeto. De acordo com este autor, esta relação está no centro da atual crise do paradigma europeu. Alguns pontos importantes a motivam: 1) o “sujeito”, tal como é pensado na epistemologia moderna, refere-se a um indivíduo isolado em seu discurso e em sua reflexão; 2) o “objeto” é pensado enquanto um indivíduo diferente do “sujeito” e distante deste em seu contexto, experiência, etc; 3) o “objeto” é constituído por propriedades que derivam uma identidade e o definem. (Quijano, 1992) O que está em jogo nessa crítica de Quijano é o individualismo que permeia a formação do conhecimento e nega o caráter intersubjetivo e de totalidade social da produção epistêmica. Portanto, o autor está mirando justamente a relação entre o Eu e o Outro na epistemologia moderna. Ocorre que, nesta separação entre o que é o “nós” e o que são os “outros”, Fanon afirma que o “outro” passa a ser visto de modo caricato, estigmatizado, enquanto um mito (Fanon, 2008, p. 109). Crê-se, neste contexto, que não há sujeito fora do mundo europeu. Seguido a isso, postula que: para essa percepção “europeia” ou “ocidental” em plena formação, essas diferenças foram admitidas, antes de tudo, como desigualdades no sentido hierárquico. E tais desigualdades são percebidas como de natureza: só a cultura europeia é racional, pode conter “sujeitos”. As demais não são racionais. sumário 239 Marxismo. (...) Só podem ser “objeto” de conhecimento ou de práticas de dominação. Bloqueou, em consequência, toda relação de comunicação e de intercâmbio de conhecimentos e de modos de produzir conhecimentos entre as culturas, (ibid., p. 444) Logo, se há a criação dessa relação hierárquica, o binômio sujeito-objeto cria um impasse em que este último só pode estar em uma posição passiva ou imerso em práticas de dominação. Toda possibilidade de uma comunicação recíproca e de trocas (de conhecimento, de elementos culturais, etc) é bloqueada. Há, em Pele Negra, Máscaras Brancas, afirmações que se aproximam muito desta perspectiva de Quijano, pois chama a nossa atenção para formação social, política e econômica desta noção hierárquica sobre a qual mencionamos acima. Para Fanon, Se [um homem] é malgaxe, é porque o branco chegou, e se, em um dado momento da sua história, ele foi levado a se questionar se era ou não um homem, é que lhe contestaram sua humanidade. Em outras palavras, começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco (ibid., p. 94, grifos meus). Há elementos importantes neste trecho. Logo em seu início, Fanon afirma que, a partir da relação com o colono, o colonizado foi questionado por este e por si mesmo sobre sua humanidade. Aqui, podemos trazer o conceito de zona de não-ser do autor para compreender melhor este processo de desumanização. Se colocarmos este conceito em perspectiva, veremos que “não-ser”, para Fanon, é um estágio anterior ao do Ser, representando a eliminação de todos os atributos que qualificam o humano e o confinamento dos sujeitos que pertencem a este estágio a uma situação de plena inferioridade. Portanto, se Ser humano significa transcendência, sumário 240 Marxismo. possibilidade de recomeço (de reinventar-se), de negação (no sentido existencialista do termo), “não ser” significa estar em uma região estéril (ser incapaz de criar/inventar sua existência), ser imanência e ser essencializado em torno de uma identidade fixa. Por este motivo, o autor afirma em sua obra: “Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos” (ibid., p. 103). Nesse contexto de objetificação, qualquer ontologia se torna irrealizável. Na prática, grosso modo, não ter existência ontológica significa ser alguém sem uma cultura autêntica ou viva, que se transforma no decorrer do tempo e do espaço. Guerreiro Ramos, na obra Introdução crítica à sociologia brasileira (1957) expõe um conceito que nos mostra uma outra face dessa objetificação. Para ele, a sociologia do negro no Brasil é uma “pseudomorfose”, ou seja, “uma visão carecente de suportes existenciais genuínos, que oprime e dificulta mesmo a emergência ou indução da teoria objetiva dos fatos da vida nacional” (Ramos, 1957, p. 157). O autor se refere à esta carência de suportes existenciais para expressar que o sujeito do conhecimento não olha para o objeto de pesquisa como ele de fato o é, mas sim para os mitos, os estigmas e os preconceitos que estão em seu imaginário. Trata-se, aqui, do “véu” a que menciona Du Bois. Sendo assim, o negro-tema nada mais é do que um conceito que trata sobre um ser mumificado, com expressões culturais cristalizadas e sempre voltado para uma tradição imutável, distinguindo-se do negro-vida, ser protéico e multiforme, que não tem essência e tem uma experiência social fluida. (ibid., p. 171). Retomando o trecho de Fanon mencionado acima, o autor nos traz que há, no sujeito negro colonizado, um sofrimento por não ser branco. Assim como afirma Quijano através do conceito de “colonialidade”, esse é um aspecto que se mantem mesmo após a destituição sumário 241 Marxismo. do processo colonial político e econômico. Em Pele Negra, Máscaras Brancas há diversas passagens que tratam sobre essa negação do próprio corpo pelos indivíduos racializados, porém, daremos atenção neste momento para trechos de Introdução Crítica... que demonstram de que forma este desejo influenciou a produção sociológica brasileira. Em seu livro “O Desejo da Nação” (2012), Richard Miskolci afirma que a “branquitude” surge em vários discursos políticos, médicos e literários da elite brasileira entre os séculos XIX e XX. O objetivo de branquear não era apenas um projeto de transformação demográfica, mas também uma tentativa de moralizar a coletividade. Neste contexto, Ramos denuncia em seu livro um processo de alienação estética do próprio negro e de hipercorreção estética do branco brasileiro, que se esforçava demasiadamente para se parecer com o branco europeu (Ramos, 1957). Ora, neste contexto culturalmente embranquecido, a produção de conhecimento se dava com base nos mesmos valores. Com isso, o negro passa a ser visto enquanto um “problema”, ou como um obstáculo a sanar. No entanto, na leitura de Ramos, esta insistência em considerar o negro como um objeto de estudo problemático, nada mais é porque ele é portador de pele escura. Já que, na cultura brasileira, o branco representa a norma, o ideal. Esta análise de Guerreiro Ramos é muito interessante, pois ele parte da observação de elementos que se pretendem objetivos, como a produção teórica e metodológica das ciências sociais, para fazer uma leitura existencial ou psicológica dos fatos nacionais. O problema da leitura interpretativa sobre o Brasil estaria, portanto, não em seus métodos ou na inadequação de seu objeto de pesquisa, mas sim no imaginário do próprio pesquisador. Portanto, podemos afirmar que Ramos propõe aqui um estudo sobre o lugar social daquele que produz conhecimento. Além disso, é notória a sua proximidade com a interpretação psicológica, assim como o fez Fanon em Pele Negra..., pois, em determinado trecho, afirma: sumário 242 Marxismo. O problema do negro, tal como colocado na sociologia brasileira, é, à luz de uma psicanálise sociológica, um ato de má-fé ou um equívoco, e este equívoco só poderá ser desfeito por meio da tomada de consciência pelo nosso branco ou pelo nosso negro, culturalmente embranquecido, de sua alienação, de sua enfermidade psicológica. Para tanto, os documentos de nossa socio-antropologia do negro devem ser considerados como materiais clínicos (ibid., p.155). Para Ramos, ver o negro enquanto um problema derivaria do desenraizamento dos valores e da orientação epistemológica dos intelectuais brasileiros. Os conceitos, os métodos e as técnicas de que estes se utilizariam para pensar o país seriam todos importados. A sociologia do negro partia de adoções literais das teorias e conceitos dos centros europeus, adotando extensivamente seus argumentos, não tendo, portanto, uma base de análise própria. Contudo, essa inautenticidade tem, para Ramos, uma saída. Partindo da sociologia do conhecimento, este afirma que a visão alienada da sociologia brasileira faz parte de um processo histórico, isto significa que as causas que geram essa forma de interpretação do social eram externas à produção deste tipo de conhecimento, pois partiam da esfera econômica, política e propriamente social. Assim, conforme o Brasil fosse se tornando mais independente nestes aspectos, uma sociologia autenticamente nacional teria condições de se desenvolver (Ramos, 1957). OS POSSÍVEIS MEIOS PARA SE SUPERAR A EPISTEMOLOGIA COLONIZADA Além de apontar os impasses epistemológicos na produção científica em contexto colonial, nossos autores propuseram alguns meios para manter uma interpretação crítica sobre o fazer teórico. sumário 243 Marxismo. Guerreiro Ramos propõe um método denominado redução sociológica. Trata-se de uma abordagem crítica que tem como finalidade a autonomia intelectual do sujeito que interpreta e reflete sobre as relações sociais do país. Seu objetivo principal é observar o objeto a partir da constatação de que há sempre uma ligação entre este e o contexto social do qual ele faz parte, considerando, inclusive, que a perspectiva pela qual o observamos os constitui (Ramos, 1996). O significado da palavra “redução” diz sobre a eliminação de todos os caracteres de um fenômeno que sejam secundários ou acessórios, e que possam inibir uma compreensão mais nítida do problema. Na sociologia, “redução” significa a atitude metódica que objetiva esclarecer quais são os pressupostos históricos e sociais pertencentes a um determinado fenômeno (ibidem). No livro de Guerreiro Ramos que leva esta metodologia em seu título, o autor elenca quais são as tarefas da redução sociológica. Cito-o: 1. ela é um tipo de conhecimento fundacional, inspirado na busca das condições ontológicas e existenciais da cultura brasileira; 2. a redução sociológica ressalta a necessidade de se compreenderem as condições críticas para a ciência nacional; 3. as condições dessa consciência crítica suscitam a existência de uma cultura particular, e é essa cultura o objeto primordial da sociologia brasileira (ibidem, p. 356). Nota-se que estas tarefas são direcionadas para a produção de um pensamento autêntico e voltadas totalmente para as leis próprias da sociedade brasileira. Torna-se claro novamente o intuito do autor de criar uma ligação íntima entre o concreto e o pensado, planejando para a sociologia uma forma de refletir empírica e dedutiva (RAMOS, 1957). Já em Pele Negra, Máscaras Brancas, Frantz Fanon propõe um conceito metodológico que busca dar luz à complexidade do racismo sumário 244 Marxismo. no meio social. De acordo com o autor, vemos que, se a ideia de raça e de superioridade racial são culturalmente construídas, é preciso um método de análise da experiência social do negro que contemple a relação entre sua subjetividade e os determinantes históricos e sociais, pois desconsiderar o impacto destes determinantes nos fenômenos psíquicos significaria maquiar a realidade (faustino, 2018). Dado isso, Fanon expressa que o método adequado para analisar esta relação no âmbito científico é a sociogenia, pois A alienação do negro não é apenas uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. Pretendemos estabelecer um sociodiagnostico. A Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa a influência humana. É pelo homem que a sociedade chega ao ser (Fanon, 2008, p. 28). De acordo com Deivison Faustino, em sua tese de doutorado intitulada Por que Fanon? Por que agora? (2015), a concepção da sociogenia foi uma resposta de nosso autor a uma discussão iniciada no século XIX por Freud. Nesta discussão, Freud rebate os psicólogos que aderiam à psicologia constitucional, afirmando que a melhor abordagem para o sujeito seria aquela denominada ontogenética. Esta última abordagem, no entanto, endereça a sua atenção apenas ao indivíduo. Contudo, a diferença racial é algo que emana da estrutura e atinge o sujeito (Gordon, 2015) Logo, Fanon afirma que é preciso ligar estes dois pólos, constituindo uma análise clínica que considere o psíquico e o social. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi retomado, ao longo deste texto, o movimento de criação social da representação do negro e a consequente inferiorização deste no contexto da modernidade ocidental. Constatamos que sua cultura, linguagem, símbolos, fenótipos, foram vistos enquanto algo negativo, alocando estes indivíduos no que Fanon chama de zona de não-ser. sumário 245 Marxismo. Assim, procuramos demonstrar que o modo como o imaginário colonial encarou o negro implicou em uma leitura equivocada sobre a sua realidade. Neste sentido, o conceito de “negro-tema” de Guerreiro Ramos é de suma importância para compreender “o véu” que separa o sujeito que pesquisa do objeto a ser pesquisado. Contudo, buscamos recuperar também as possiblidades de superação deste cenário propostas por Guerreiro Ramos e Frantz Fanon. Ambos procuraram trazer ferramentas metodológicas que pudessem descolonizar a epistemologia tal como foi pensada na modernidade, expondo uma abordagem crítica e pautada no conhecimento sociológico. REFERÊNCIAS CASTRO-GOMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: Lander, E. (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais - Perspectivas latino-americanas Ciudad Autónoma de Buenos Aires/Argentina: CLACSO, 2015. pp. 80-88. COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. DUBOIS, W.E.B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: Lander, E. (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2005. (Perspectivas latino-americanas – ColecciónSurSur) FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de fora: Editora UFJF, 2005. 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Elas deram guarida, por exemplo, aos estudos sobre raças, criminalidade e degenerescência entretecidos pelo médico e antropólogo maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Nina Rodrigues foi um personagem carismático e um ardoroso defensor da Medicina Legal no Brasil. Tornou-se, em meados de 1890, o mais renomado profissional nessa área (LINS E SILVA, 1945). Sua participação em pesquisas antropológicas passou a ser constante. Utilizando das teorias evolucionistas traçou uma análise das raças brasileiras para determinar as suas diferenças evolutivas e a relação que tinham com a implementação da penalidade criminal. Fez da Medicina Legal o suporte técnico-científico para a análise da degenerescência do mestiço e do negro, pressupondo tendências de ambos para o crime. A imputabilidade, sob luz da evolução social, defendida por Raimundo Nina Rodrigues em 1894, na obra As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, pressupunha que os atos de delinquir dos seres humanos estavam ligados inteiramente às etapas de evolução mental e espiritual de cada indivíduo. Etapas marcadas por fatores psico-biológicos – degenerescência, enfermidades raciais, atavismo, etc. – que determinavam as ações individuais. São essas etapas que estabeleciam, no indivíduo, a gênese do senso moral, do discernimento entre o bem e o mal. Mas principalmente, determinavam a capacidade de compreensão, por esses mesmos indivíduos, dos direitos e deveres de uma determinada sociedade. Nina Rodrigues fazia severas críticas ao processo metafísico de ver o crime e o criminoso, estabelecido pela Escola Livre Arbitrista ou sumário 249 Marxismo. Clássica,33 como a vontade humana ao livre arbítrio. Tal crítica estava baseada em sua afirmação de que ao condicionar o crime apenas à livre vontade, esquecia-se de avaliar as contradições da evolução humana e a falta de uniformidade evolutiva dos povos ou raças. Mais que isso, para ele, essa maneira de ver o crime e o criminoso concretizava a ambiguidade entre a evolução mental e o livre arbítrio. Assim, no primeiro capítulo de As raças humanas, afirma: constituirá objeto desta proxima conferencia, o estudo das modificações que as condições de raça imprimem à responsabilidade penal (NINA RODRIGUES, 1894, p. 29). Modificações que, estudadas e analisadas antropologicamente, poderiam determinar as diferenças evolutivas das raças e suas manifestações sociais e culturais. A partir desse princípio se poderia pensar em um código penal bem mais elaborado, acoplando-se as diferenças raciais nas formas de imputar, valorizando os níveis de evolução étnica. Uma das principais críticas que fazia estava relacionada com a filosofia espiritualista. Filosofia no qual o código penal de 1830 era baseado: A concepção espiritualista de uma alma da mesma natureza em todos os povos, tendo como consequencia uma inteligência da mesma capacidade em todos as raças, apenas variavel no gráo de cultura e passível, portanto, de attingir mesmo num representante das raças inferiores, o elevado gráo a que chegaram as raças superiores, é uma concepção irremissivelmente condemnada em fase dos conhecimentos scientificos modernos (NINA RODRIGUES, 1894, p. 30). 33 Em 1764, o italiano Cesare Beccaria (1738-1794) escrevia Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas), inaugurando a Escola Clássica. Em seu princípio o livre arbítrio era o pressuposto para a “responsabilidade moral”. Essa determinava, conforme seu menor ou maior grau, a severidade da pena à ser imposta. Foi marcada pelo método apriorístico, metafísico e dedutivo, sem exames analíticos e comparativos. Para os membros dessa escola, o homem era livre para escolher seus atos e de forma consciente sua conduta, não havendo nenhuma influência externa (sociais) ou interna (biológicas). Para uma melhor reflexão sobre Cesare Beccaria e as diretrizes da Escola Clássica ver: SABINO JÚNIOR, Vicente. Cesare Beccaria e o seu livro “Dos delitos e das penas”. São Paulo: Juriscrédi, 1972. sumário 250 Marxismo. Acreditando nas análises biologizantes da evolução humana, Nina Rodrigues destacava que a metafísica espiritualista fazia um exame subjetivo da evolução humana e a biologia, por sua vez, um exame objetivo. A metafísica espiritualista iria buscar a criminalidade na gênese das atitudes humanas, exclusivamente na alma, em quanto que a biologia iria buscar nas origens somáticas das pessoas. A inteligência, por exemplo, para ele, era um reflexo do progresso evolutivo, e visto como nascido nas raízes geneológicas. O materialismo evolutivo de Nina Rodrigues destacava-se por acreditar na adaptabilidade e na hereditariedade como forma de aperfeiçoamento racial. Como exemplo de civilizações com alto grau de desenvolvimento citava as populações americanas do México e do Peru. Todavia, afirmava que elas desapareceram com o contato com as civilizações européias, muito mais polidas e adiantadas. Nina Rodrigues não questionava as atrocidades cometidas pelos colonizadores espanhóis. O que é feito hoje das civilizações barbaras brilhantes, complexas e poderosas que, ao tempo da descoberta da América, occupavam o México e o Perú? [...] Dissolveram-se, desapareceram totalmente na concurrencia social com a civilização européia, muito mais polida e adiantada (NINA RODRIGUES, 1894, p. 33). Essa concurrencia social é a afluência social, isto é, a luta dos indivíduos na sociedade, onde o mais forte se sobrepõe sobre o mais fraco. Essa ideia marcava em Nina a concepção darwiniana da briga natural do mais apto contra o menos apto. Além do mais, revelava os questionamentos sobre a insalubridade dos povos americanos, bastante enfatizada pelos filósofos europeus do século XIX como: Buffon, De Pauw, Voltaire, Hume, entre outros (GERBI, 1996). A mestiçagem, por exemplo, para Nina, entrava como uma forma de moldar a insalubridade das raças nacionais. Em sua concepção, as populações no Brasil estavam ainda no estágio de inferioridade e a mestiçagem seria a forma pelo qual a civilização européia sumário 251 Marxismo. poderia incorpora-se a nossa realidade. Todavia, contraditoriamente, as suas experiências, no campo da antropologia positivista, principalmente junto as autópsias, destacavam a descrença na mestiçagem “positiva”, pois o selvagem conduzido pelo atavismo degenerativo voltava ao estágio primitivo. Partindo da concepção de evolução é que Nina Rodrigues traçava suas críticas ao modelo do código penal brasileiro. As críticas estavam direcionadas para Tobias Barreto, para os domínios legais estabelecidos pelo código (índios, negros e mestiços) sem distinções étnicas e para os aspectos filosóficos em que era baseado. Aspectos esses estabelecidos pelos pressupostos espiritualistas do livre arbítrio para critérios de responsabilidade penal. O filósofo e advogado sergipano Tobias Barreto (1839-1889) foi um dos mais importantes propagandistas do Monismo no Brasil. Influenciado pelo alemão Haeckel,34 buscou novos caminhos para a compreensão da filosofia e do direito, dentre outros ramos do conhecimento humano. Negava o direito natural, afirmando que o direito era produto da cultura humana. Porém defendia a liberdade do querer, do livre arbítrio como forma incondicional das ações humanas (LIMA, 1957). Era para esse ponto que Nina Rodrigues iria direcionar suas críticas. Para Nina, Tobias Barreto não passava de um “monista” que estancou diante de seus princípios filosóficos e arguia: Tobias Barreto affirma, sem razão, que os deterministas fundamentam a negação do livre arbítrio no facto bruto da motivação das acções humanas, e que se lhes podem objectar, como prova da existencia de uma certa dose da liberdade do 34 Ernst Haeckel (1834-1919), filósofo naturalista, defensor e propagandista da teoria de Darwin na Alemanha formulou a doutrina filosófica denominada Monismo que se baseava na ideia de que o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade, quer do ponto de vista de sua substância, quer do ponto de vista das leis pelas quais o universo se ordena. Os monistas criaram a teoria pelo qual a história da evolução individual ou ontogênese é uma repetição abreviada da história evolutiva da espécie ou filogênese, conforme as leis da hereditariedade e da adaptação ao meio. sumário 252 Marxismo. querer, a escolha psychica dos motivos e a possibilidade da determinação no sentido da maior resistencia. Em tudo isto, no emtanto, não há mais do que uma apparencia de liberdade da qual, de facto, a consciencia, como cumplice, nos dá fallaz testemunho. Mas uma pura allusão não pode servir, como admitte Tobias Barreto, de criterio e de base á doutrina da responsabilidade penal. A escolha dos motivos, bem como a determinação no sentido da maior resistencia, “o nadar contra as correntes”, não são manifestações da liberdade, mas tão somente a resultante dóa organização psycho-psycologica do individuo (NINA RODRIGUES, 1894, p. 59). Assim, para Nina Rodrigues, o código penal brasileiro, tinha que ser baseado nos princípios de comparação evolutiva das vertentes étnicas. Daí sua defesa por um código penal diferenciado para essas vertentes, estabelecendo critérios de responsabilidade na análise antropológica das raças nacionais. Eram as premissas positivistas da Escola Criminal Antropológica, que o conduzia a análises sistemáticas e empíricas da conformação bio-psicológica das raças nacionais. A liberdade não devia ser procurada nos “selvagens”, nas paixões arrebatadoras dos homens, mais sim na deliberação instintiva do homem ponderado e conduzido pela razão. Essa concepção de liberdade, elaborada pelo francês Eugenio Veron em La Morale – obra escrita em 1884 – era a que se fundamentava Nina Rodrigues para ir de encontro ao livre arbítrio. Utilizando-se de Veron, afirmava que quando o homem discerne, compara, estuda e examina as consequências de seus atos, desde o ponto de vista individual como social, produzindo em si a convicção que se impõe a ação, diminui os motivos da ação e restringe o agir, surgindo nesse sentido o que denominava de “ilusões da liberdade”. Não existe liberdade sem consciência. Se depois desta analyse da escolha volicional – de Eugenio Veron –, tão completa e magistral, é ainda possivel affirmar que o homem é livre; se ainda é licito acreditar que, na ilusão de liberdade que nos dá a consciencia; há alguma realidade; então não sei que valor podem ter as deducções da logica, nem sumário 253 Marxismo. que significação possam adquirir os fructos de sã observação scientifica. E esta analyse tanto se refere e comprehende o livre arbítrio dos methaphysicos, como a liberdade parcial, dos espiritos timoratos e indecisos (NINA RODRIGUES, 1894, p. 65). Dissolvida as ilusões do querer, pela simples reflexão altiva, o homem consciente não era mais conduzido pelo joguete impulsivo de suas ações. Para Nina Rodrigues, as raças nacionais não possuíam esse espírito de consciência, pois estavam ainda em um estágio primitivo. Concretizava, assim, à crítica a Tobias Barreto que afirmava serem as raças nacionais conduzidas por atos impulsivos, sem motivos aparentes, defendendo por isso um livre arbítrio “relativo”. Segundo Nina Rodrigues o que moviam os atos eram dois fatores: fatores externos (motivação psíquica) e internos (motivação orgânica e hereditária). O livre arbítrio seria uma incongruência para a configuração do código penal brasileiro, um sonho criado pela imaginação para fugir ás contigencias desta existencia phenomenica (fatores internos e externos) (NINA RODRIGUES, 1894, p. 70). O livre arbítrio tanto absoluto, quanto relativo, engendrava, para ele, perante a doutrina criminal, a responsabilidade, o que levava a impunidade. Assim, O exame da responsabilidade das raças brazileiras nos nossos codigos penaes vae ministrar um novo exemplo desse dilemma em que se debatem os criminalistas classicos: ou punir sacrificando o principio do livre arbitro, ou respeitar esse principio, detrimentando a segurança nacional (NINA RODRIGUES, 1894, p. 73). Analisa, então, as raças nacionais perante o código penal brasileiro, sob o ângulo da contradição que, para ele, existia quando punia os crimes das “raças inferiores” pelos códigos dos “povos civilizados”. Essa era a principal contradição do código penal nacional, que inconsequentemente punia os crimes baseados na liberdade do querer, sem cogitar o patamar de evolução de cada raça e seu nível de consciência. sumário 254 Marxismo. Desconhecendo a grande lei biologica que considera a evolução ontogenica simples recapitulação abreviada da evolução phylogenica, o legislador brazileiro cercou a infancia do individuo das garantias de impunidade por immaturidade mental, creando a seu beneficio as regalias da raça, considerando iguaes perante o codigo os descendentes do europeu civilizado, os filhos das tribus selvagens da America do Sul, bem como os membros das hordas africanas, sujeitos á escravidão (NINA RODRIGUES, 1894, p. 77). Para Nina Rodrigues, é a preexistencia da consciencia do direito e do dever, inherente ás civilizações inferiores, que exclue e impossibilita a consciencia do direito, tal como o entendeu os povos civilizados, ou superiores sociologicamente (NINA RODRIGUES, 1894, p. 82). Este é o fator da não homogeneização das penas, que, para ele, deviam ser julgadas pelas raças superiores e implementadas perante as raças inferiores conforme as fases evolutivas. Quando Nina Rodrigues afirmava que as raças superiores eram as que deviam apreciar e imputar as penas conforme as fases evolutivas das raças inferiores, reafirmava um status quo de um grupo, respaldado pela teoria da evolução social de certas raças. A diferenciação entre as raças inferiores e superiores está na organização physio-psycologica que não comporta nas raças inferiores a concepção de sociedade dos povos cultos. Essa concepção se formou nas raças superiores pela accumulação hereditaria gradual do aperfeiçoamento psyhico que operou no decurso de muitas gerações, durante a sua passagem da selvageria ou da barbarie á civilização (NINA RODRIGUES, 1894, p. 85). Seguindo o percurso dos estudos antropológicos e tendo como base das raças nacionais o branco, o negro e o índio, dividia a população em: raça branca (brancos crioulos não mesclados, europeus, raça latina, germânicos), raça negra (negros crioulos não mesclados) e raça vermelha ou indígena (o brazilio-guarany selvagem). sumário 255 Marxismo. Destes grupos nasciam sub-grupos que caracterizavam a mestiçagem e dividiam-se em: a) mulatos – producto, do cruzamento do branco com o negro, grupo muito numeroso, constituindo quasi toda a população de certas regiões do paiz, e divisivel em: mulatos dos primeiros sangues; mulatos claros, de retorno á raçaa branca e que ameaçam absorvel-a de todo; mulatos escuros, cabras, productos de retorno á raça negra, uns quasi complementamente confundidos com os negros crioulos, outros de mais facil distincção ainda (NINA RODRIGUES, 1894, p. 91). b) Os mamelucos ou caboclos – producto do cruzamento do branco com o índio, muito numerosos em certas regiões (...) (NINA RODRIGUES. 1894: p. 91); c) Os curibocas ou cafuzos – producto do cruzamento do negro com o indio (NINA RODRIGUES. 1894: p. 91). E por último, d) os pardos – producto do cruzamento das tres raças e proveniente principalmente do cruzamento do mulato com o indio, ou com os mamelucos caboclos (NINA RODRIGUES. 1894: p. 92). Curiosamente o grande amálgama étnico fazia com que Nina Rodrigues não acreditasse, como Silvio Romero35 e posteriormente Oliveira Vianna36, na provável preponderância da raça branca no Brasil pela miscigenação. Dizia: 35 Silvio Romero (1851-1914) foi um “reformador liberal” que ganhou fama como crítico literário. Em seus escritos abordava questões relacionadas com os aspectos da raça e meio. No Brasil, um “reformador liberal” ganhava fama como crítico literário e abordava os aspectos da raça e meio, ele chamava-se Romero possuía um profundo determinismo vinculado ao meio, sustentava que toda nação era produto da interação entre população e o habitat natural, em sua História da literatura brasileira publicada pela primeira vez em 1888, via na evolução racial o progresso cultural, assim caracterizava uma das vertentes mestiça brasileira — o caboclo — como um “caçador” que encarado por todas as faces da ciência. 36 Francisco José de Oliveira Vianna. (1883-1951), é considerado um dos maiores propagadores da teoria eugenista no Brasil. Utilizava-se da eugenia para formular sua retórica sobre progresso e desenvolvimento, onde o “branqueamento da nação” seria a solução para o crescimento nacional. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Vianna, em evolução do povo brasileiro (1933), destacava a importância de branquear a nação por meio da imigração de brancos europeus. Essa imigração seria importante para promover a correção dos maus hábitos congênitos das raças nacionais. Procurando sempre uma homogeneidade racial, acreditava que entre quatro ou cinco gerações o sangue branco prevaleceria nas raças inferiores: tudo nos leva a crer que a regressão dos typos mestiços se dará em favor do homem branco, pela progressiva eliminação do sangue vermelho. Na massa cabocla do nordeste, os typos que hão de emergir ao fim desse trabalhoso processo selectivo, a que ella está sujeito, hão de ser − como ao centro, como ao sul, como em todo o paiz − variantes do aryano vestidos com a libré dos nossos climas tropicaes (p.194). sumário 256 Marxismo. Não acredito na unidade ou quasi unidade ethnica, presente ou futura, da população brazileira, admittida pelo Dr. Sylvio Romero: não acredito na futura extensão do mestiço luso-africano a todo o territorio do paiz: considero pouco provavel que a raça branca consiga fazer predominar o seu typo em toda a população brasileira (NINA RODRIGUES, 1894, p. 96). A partir da conformação racial brasileira, Nina Rodrigues analisa a população brasileira do ponto de vista da psicologia criminal, enfatizando a distinção que exigia a imputabilidade das leis penais. Essa distinção necessitava de um conhecimento biológico da evolução mental e psicológica das etnias. O valor científico atribuído à biologia no século XIX, faz-se presente em Nina Rodrigues quando afirma que os nossos legisladores que, em materia de conhecimento biologicos e sociologicos não iam alem do ensino religioso, influenciados por elle transportaram para os codigos este principio de igualdade, que, do ponto de vista do livre arbitrio, devia ser tão injusto nos dominios penaes, quanto, nos dominios sociaes, era fecunda em consequencias civilisadoras a bulla de Paulo III (NINA RODRIGUES, 1894, p. 113). Partindo então desta análise biológica, afirmava que de facto, o indio não incorporou-se á nossa população, nem collabora comnosco se não sob a fórma de mestiço (...) tanto é verdade que no Brazil o indio extinguiu-se, ou está em via de extincção completa, mas não civilizou-se (NINA RODRIGUES. 1894: pp.116-7). Duas questões devem ser mencionadas: primeiro que Nina Rodrigues afirmava que o índio não colaborou em nada com o branco. Esquecia porém que a cultura indígena, principalmente a língua tupi, incorporou-se no linguajar dos brancos; segundo, ele refletia sobre a extinção dos índios sem questionar o genocídio e o etnocídio cometido pelos brancos europeus. Essas duas questões definiam os direcionamentos da antropologia positivista, que não valorizava os aspectos culturais como manifestações autônomas e independentes, importantes para a caracterização peculiar dos grupos humanos. Esse fator só será mais enfatizado com a antropologia cultural. sumário 257 Marxismo. Sobre a raça negra Nina Rodrigues afirmava que: por seu desenvolvimento intellectual e por sua civilização, os negros africanos sejam inferiores á massa das populações européas, ninguem evidentemente pode pôr em duvida. Ninguem pode duvidar tão pouco de que anatomicamente o negro esteja menos adiantado em evolução do que o branco (NINA RODRIGUES, 1894, p. 120). Em seguida faz menção as possíveis características violentas dos negros, afirmando que o negro crioulo conservou vivaz os instinctos brutaes do africano: é rixoso, violento nas suas impulsões sexuaes, muito dado á embriaguez e esse fundo de caracter imprime o seu cunho na criminalidade colonial actual (NINA RODRIGUES. 1894: p. 124). Depois conclui que a presumpção logica, por conseguinte, é que a responsabilidade penal, fundada na liberdade do querer, das raças inferiores, não pode ser equiparada a das raças brancas civilizadas (NINA RODRIGUES. 1894: p. 124). Por conseguinte, afirma que o exame que tinha feito o autoriza plenamente a considerar que os negros e índios, de todo irresponsáveis em estado selvagem, tinham direitos incontestáveis a uma responsabilidade atenuada. No cerne das reflexões sobre as vertentes étnicas, analisadas pelo ponto de vista criminal, é que Nina Rodrigues concebia suas considerações sobre os mestiços. Esses no limiar do processo de construção da identidade nacional, eram tidos, pelos filósofos e construtores da nacionalidade, como seres degenerados e sem vigor mental e físico, ainda em um estágio primitivo. Visto que Nina Rodrigues fez parte dessa construção, também os analisava por esse mesmo ângulo. Concebia o mestiço a partir da análise de suas condições mentais, afirmando que, provavelmente, eram influenciadas pela degenerescência provocada pelo cruzamento entre as raças. Para ele a biologia já havia provado que nos cruzamentos de espécies diferentes o êxito de procriação saudável era desfavorável e cada vez mais afastavam as espécies de sua hierarquia zoológica. sumário 258 Marxismo. Nestes casos o cruzamento acaba sempre por dar nascimento a productos evidentemente anormaes, improprios para a reproducção e representando na esterilidade de que são feridos, estreitas analogias com a esterilidade terminal da degeneração psychica (NINA RODRIGUES, 1894, p. 132). Assim, considerava o mestiço como um ser híbrido, caracterizado pela falta de produtos morais e sociais. Essa afirmativa tinha como suporte alguns trabalhos de Spencer que defendiam a ideia de que a julgar por certos fatos, a mistura entre raças de homens muito dessemelhantes produzia um tipo mental sem valor, que não servia nem para o modo de viver da raça superior, nem para o da raça inferior. Enfim, não prestava para gênero nenhum de vida. Não obstante a questão da inferioridade racial, Nina Rodrigues parecia também preocupado com a questão do clima. Daí a busca na região amazônica das características do caboclo. Parecia-lhe que nessa região estavam bem caracterizadas as influências do clima e da mestiçagem degenerativa. Para tanto, buscou nos trabalhos sobre a mestiçagem de José Veríssimo37, particularmente sobre as “raças cruzadas no Pará” e suas peculiaridades étnicas, culturais e histórica. José Veríssimo afirmava que o caboclo consistia na configuração clara da degenerescência, do atavismo mais radical que marcava as relações raciais. Para ele, a mestiçagem na Amazônia foi a mais degenerativa possível, devido a que no conjunto de fatores que determinavam a junção racial estarem três problemas essenciais: primeiro, a vinda de portugueses da pior espécie para a Amazônia, provenientes de um povo atrasado e sempre arredio à civilização europeia; segundo, a ineficácia da catequese que não conseguiu educar os mestiços; e terceiro, o clima tropical que impossibilitava o desenvolvimento humano (ARAÚJO; PRESTES, 2007). 37 José Veríssimo (1857-1916), paraense, ilustre membro da Academia Brasileira de Letras, foi um grande difusor de estudos sobre a Amazônia, desde seus aspectos raciais e étnicos Teve destaque nas áreas da literatura, pedagógica, economia e história. sumário 259 Marxismo. Observa-se que há pontos centrais por onde permearam as discussões sobre os grupos étnicos no Brasil, como a miscigenação, o clima e a educação (senso moral). Seguindo o rastro dessa discussão, Nina Rodrigues parte para entender o perfil psicológico do caboclo. Novamente iria buscar nos escritos de Spencer suas considerações sobre a psicologia primitiva. Nestas considerações, Nina definia a psicologia primitiva como induzida pela imprevidência e pela impulsividade, onde o selvagem não possuía sentimentos para compor consciência. Por isso, os caboclos eram guiados pela paixão exacerbada; seus desejos se sobrepunham a qualquer educação, onde com um só golpe procuravam atingir o objeto que deveria satisfaze-los. Nina conclui que a análise psicológica feita por Spencer dava a explicação inteira do caracter indolente e imprevidente do mestiço brasileiro, capaz de attingir, como aconteceu na Amazonia, onde tão ao vivo nol-o pinta o Sr. José Verissimo, ás raias de uma verdadeira degradação moral (NINA RODRIGUES, 1894, p. 146). Todos os estudos e as reflexões feitas por Nina Rodrigues debruçam-se detalhadamente sobre a formação das vertentes étnicas brasileiras. Era importante relatar e etnografar para entender como essas vertentes se enquadravam na psicologia criminal. Segundo ele os estudos sobre o selvagem – particularmente o caboclo – mostravam que de um lado, ele era rudimentar, esboçando apenas o sentimento do direito de propriedade, e de outro, que a impulsividade dominavam as suas ações (NINA RODRIGUES, 1894, pp. 146-7). E que as características de preguiça, indolência, apatia eram derivados, provavelmente, da hereditariedade decorrente da mestiçagem. Tais características poderiam ser até atenuantes penais. Pois os caboclos eram exemplos bem claros dos males da mestiçagem, devido a faltar-lhes a consciência plena do direito, elemento constitutivo da qualificação da criminalidade. sumário 260 Marxismo. As bases para exigir esse atenuante seriam a explicação natural dessas características – preguiça, indolência, apatia. Estas seriam reforçadas pelos vícios orgânicos, constitucionais, que como a impulsividade, poderiam ser transmitidos por herança (NINA RODRIGUES. 1894: p. 148). Desses dois princípios, herança e mestiçagem, deveria a atenuação nas leis. Eles regiam duas ordens. Uma de natureza mórbida ou anormal, marcada pelas influências degenerativas, caracterizadas pelo mestiço amazônico – o caboclo. A segunda, de ordem natural, marcada pela desigualdade bio-sociológica das raças, caracterizados pelos índios e negros. A mestiçagem constituía nos estudos de Nina Rodrigues um fator de capital importância para entender a psicologia das vertentes étnicas, pois determinava a junção de variadas tendências comportamentais das raças nacionais. O mestiço trazia em si um pouco do negro, do índio e do branco, e por isso sua ênfase na mestiçagem, além de ser o diferenciador étnico. Relacionando-a com a criminalidade afirmava que, acredito e affirmo que a criminalidade no mestiço brazileiro é, como todas as outras manifestações congeneres, sejam biologicas ou sociologicas, de fundo degenerativo e ligada ás más condições anthropologicas do mestiçamento no Brazil (NINA RODRIGUES, 1894, p. 166). Seguindo a tendência de hierarquizar, muito comum na doutrina evolucionista, Nina Rodrigues seguia seus estudos sobre o mestiço fazendo uma dicotomia entre eles em: mestiços superiores, degenerados e comuns. Os mestiços superiores nasceriam da predominancia da raça civilizada na sua organização hereditaria, ou por uma combinação mental feliz, de accordo com a escola classica, devem ser julgados perfeitamente equilibrados e plenamente responsaveis (NINA RODRIGUES, 1894, p. 167). Os mestiços degenerados, [...], que em virtude de “anomalias de sua organização physica, bem como de suas faculdades intellectuaes sumário 261 Marxismo. e moraes”, eram derivados das variedades doentias, “dentre elles, uns devem ser total, outros parcialmente irresponsaveis (NINA RODRIGUES, 1894, p. 167). Os mestiços comuns, eram [...], productos socialmente aproveitaveis, superiores ás raças selvagens de que provieram, mas que, já pelas qualidades herdadas dessas raças, já pelo desequilibrio metal que nelles operou o cruzamento, não são equiparaveis ás raças superiores e acham-se em imminencia constante de commetter acções anti-sociais de que não podem ser plenamente responsaveis. São casos todos de responsabilidade attenuada (NINA RODRIGUES, 1894, p. 168). Para Nina Rodrigues, a mestiçagem formou um tipo híbrido e degenerado. A mestiçagem, segundo ele, não condizia com os preceitos do livre arbítrio, pois o mestiço não possuía, de forma alguma, consciência do querer. Ele apenas agia instintivamente. Assim, criticava a forma de punir do código penal da época que se baseava no livre arbítrio. Além do mais, o germen da criminalidade encontrava-se fecundo na degenerescência do “mestiçamento”, no impulso dominante das raças inferiores e nas doutrinas fundamentadas no livre arbítrio. E quando semeado esse solo tão vasta da criminalidade, há de por força vir a provir o crime em vegetação luxuriante, tropical verdadeiramente (NINA RODRIGUES, 1894, p. 175). Na sua concepção, a consolidação de um código penal único no Brasil foi um dos mais graves erros na formação da República. Para ele o código deveria ser estabelecido regionalmente conforme as características climáticas, sociais e raciais de cada estado. Uma outra questão interessante, e o fato de que Nina criticava o estabelecimento de idade para a responsabilidade penal. Para ele, os climas influenciavam na puberdade. Nas raças inferiores, por exemplo, elas chegavam mais rapidamente. Assim afirmava que para imputar era necessário antes de tudo uma analise psysio-psychologica do crimino. sumário 262 Marxismo. BREVES CONSIDERAÇÕES O conjunto das análises seguidas e elaboradas por Nina Rodrigues contribuiu para retórica de que no Brasil o mosaico étnico configurava um entrave para a conformação das leis penais. A obra A raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil revelava a trajetória materialista do pensamento racial brasileiro de finais do século XIX e que condicionava em sus estudos a psique, a cultura, a multiplicidade social e racial a condições biológicas, climáticas e evolutivas. Para ele, todos esses aspectos moldavam a sociedade brasileira da época e não condiziam com a sociedade considerada civilizada. Portanto, as raças nacionais eram inferiores e deveriam ser melhor estudadas para que tivessem em torno de si condições de desenvolvimento e prosperidade conforme as leis que condissessem com suas realidades evolutivas. Nina Rodrigues foi um homem de sua época e se destacou como um dos maiores homens de Science do Brasil em finais do século XIX. Faz de seus estudos etnográficos uma ponte para as suas teorias raciais. Em seu materialismo evolutivo tentava demonstrar “cientificamente” a existência de uma hierarquia racial – raças superiores e raças inferiores. Para Nina Rodrigues o crime, como vimos, deveria ser punida seguindo a escala da evolução racial que determinava os níveis de consciência de cada raça – branca, negra, indígena e mestiça. Por isso, defendia um código penal diferenciado pelo clima, pela geografia e pela conformação racial de cada região brasileira. Seus estudos marcaram o momento da junção da Medicina Legal e do Direito em um momento em que se buscava diagnosticar os possíveis males congênitos da sociedade brasileira da época. Seus estudos marcaram também um momento peculiar da história brasileira, onde se concretizaram imagens negativas e depreciativas sobre as vertentes étnicas nacionais. Assim, o negro com seus sumário 263 Marxismo. fetichismo infantil e maléfico, o índio com sua preguiça e o branco português da “pior espécie”, amalgamaram-se formando um mestiço híbrido e sem vigor intelectual. Isto seria o centro das reflexões de Nina Rodrigues e que abririam os primeiros caminhos para as práticas higiênicas e de saúde pública no Brasil (BARROS, 1998). Um dos principais legados de Nina Rodrigues foi acreditar que a ciência poderia explicar a situação em que se encontrava o país. O positivismo “não poderia afastar-se da realidade definida pela ciência, ao mesmo tempo em que deveria buscar afetar a política, mediante as idealizações dos valores e das pessoas consideradas modelos para a humanidade” (CARVALHO, 1990, p.132). As indagações de nina Rodrigues sobre as prováveis capacidades e tendências das raças tidas como inferiores, principalmente os negros e mestiços de praticarem atos anti-sociais foram um marco nos estudos raciais no Brasil. REFERÊNCIAS ALVES, Henrique L. Nina Rodrigues e o negro no Brasil. São Paulo: Associação Cultural do Negro, 1961. ARAÚJO, Sônia Maria da Silva; PRESTES, Carlos Alberto Trindade. Raças cruzadas e educação: uma proposta de nacionalização do mestiço da Amazônia. In: ARAÚJO, Sônia Maria da Silva (Org.). José Veríssimo: raça, cultura e educação. Belém-Pa, UFPA, 2007, p. 137-170. BADARÓ, Ramagem. Introdução ao estudo das três escolas penais. São Paulo: Juriscredi, 1973. BARROS, Pedro Motta de. Alvorecer de uma nova ciência: a medicina tropicalista baiana. Manguinhos – História, Ciência, Saúde. São Paulo, v. IV, n. 3, p. 411-459, nov. 1997 – fev. 1998. BECCARIA, Cesare. “Dos delitos e das e penas”. São Paulo: Jurídica Gaetano Dibenedetto, 1996. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. sumário 264 Marxismo. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. HAECKEL, Ernest. O Monismo. Porto: Livraria Chardon, 1908. LIMA, Hermes. Tobias Barreto (a época e o homem). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. LINS E SILVA, Augusto. Atualidade de Nina Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1945. ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. Rio de janeiro: H. Garnier, v. 1, 1888. SABINO JÚNIOR, Vicente. Cesare Beccaria e o seu livro “Dos delitos e das penas”. São Paulo: Juriscrédi, 1972. RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Bahia: Editora Progresso, 1894. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. VERON, Eugenio. La Morale. Paris: C. Reinwald, 1884. VIANNA, Francisco José de Oliveira. A evolução do povo brasileiro. São Paulo: Civilização brasileira, 1933. sumário 265 15 Thomaz José Portugal Coelho e Santos As peculiaridades de Brasil peculiar: características sociais que formaram um país manchado pelo preconceito DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.15 Marxismo. INTRODUÇÃO É fato inconteste que a formação da sociedade patriarcal moldou as relações sociais no Brasil e por essa razão a análise se faz bastante representativa, assim como os conceitos de sociedade escravista, patrimonialista e colonial são igualmente importantes para explicar essa complexa sociedade brasileira. No que tange ao patriarcalismo, existe atualmente uma grande repercussão sobre questões feministas, desde a incontestável representatividade da mulher no mercado de trabalho e na vida política até a contestável cultura do estupro. Embora essa ideologia não seja o foco de análise neste trabalho, se faz necessária o entendimento de questões que levam o apelo do feminismo ser tão importante na atual conjuntura, portanto, deve-se reafirmar que não cabe aqui fazer arguições sobre esse momento da coletividade, mas sim a influência desses conceitos para a formação da sociedade brasileira. O foco do presente artigo é a formação da sociedade brasileira e será feita uma convergência entre as obras, Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Jr. e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. As três obras aqui estudadas formam o tripé da teoria social brasileira e solidificarão os fundamentos da sociedade brasileira e suas consequências na atual sociedade. Essas obras são tão fundamentais para compreender nossa sociedade, que os autores aqui estudados estão elencados na obra do sociólogo Fernando Henrique Cardoso como Os Pensadores que inventaram o Brasil. O povo brasileiro é moldado até hoje por conjecturas sociais que iniciaram nas políticas de colonização portuguesa um ideário sumário 267 Marxismo. arcaico em que a figura do chefe da família, a importância das posses e títulos, além da submissão laboral se amalgamam à cordialidade, exposto especificamente por Holanda e formam a brasilidade como conhecemos. Essas são as especificidades básicas que constituem a sociedade complexa com ramificações altamente excludentes e elitistas que até hoje se fazem presentes nas relações sociais. Primeiramente, Casa Grande e Senzala, em que é exposta a base patriarcal da família brasileira por Gilberto Freyre e sua visão de que a casa grande foi a responsável por toda a coesão da sociedade, para FREYRE (2006) a senzala completava essa sociedade, representando o sistema econômico, social, político e religioso. O autor, homem branco de origem senhorial desenvolve sua obra nessa perspectiva elitista e entende que a miscigenação corrige a disparidade social que cerca a relação entre brancos e negros no Brasil. Já na análise de Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Jr., partiremos do livro intitulado “Vida Social” e sua ênfase à escravidão e sua “influência deletéria” na formação do Brasil. Pode-se concluir previamente a importância dada por Prado Jr. para a escravidão como formadora da ética da desvalorização do trabalho, faz-se notar que ser trabalhador no Brasil é algo menor. Por último, a análise do livro “O Homem Cordial”, obra de Holanda constante em Raízes do Brasil. Para o autor a política colonialista de concessão de terras e títulos era a ideia de administração praticada pelos portugueses e assim é definido o patrimonialismo que foi e continua sendo o principal motivo da segregação social no Brasil. As três definições que foram citadas acima, o patriarcalismo, a escravidão e o patrimonialismo são características complexas que constituem características não só no vínculo social, mas também na relação dos indivíduos com o Estado. O passado colonial brasileiro é ainda muito presente na sociedade e na estrutura política do país sumário 268 Marxismo. e é uma questão em voga em certos acontecimentos sociais como corrupção, machismo e racismo. No caso da corrupção é evidente que o uso do bem público para proveito próprio é uma evolução do patrimonialismo, pois quando da colonização havia uma falta de separação entre o público e o privado. Porém existe uma grande diferença, a figura do rei impedia qualquer uso impessoal do estado, seja desvio de dinheiro ou de função, o dinheiro não era público e sim do rei. No caso do machismo a figura do patriarca era muito significativa, pois ao homem cabia toda a autoridade sobre a família e especialmente sobre a mulher, e ainda assim a subordinação é bem frequente em nossa sociedade. Essa subordinação é confirmada seja no papel profissional ou político, onde homens ganham mais e grande parte da representação política é realizada por homens ainda na atualidade. Nesse sentido, o atual contexto político, em grau de representatividade política, na própria legislatura e na representação simbólica no alto escalão das autoridades de governo ficam muito aquém da necessidade de influência no sistema político real. E, vale tanto para o racismo quanto para o machismo, a título de exemplo podemos citar homens brancos e ricos tomando decisões que dizem respeito a vida de mulheres negras e pobres, ou seja, uma realidade influencia outra realidade. No que tange ao racismo, existem várias posições que ainda veem no negro uma configuração deteriorada de ser humano, um pária social em que atribuem as piores das características, sejam laborais ou sociais. Grande parcela da mestiça sociedade brasileira acredita em trabalho de negro, papel de negro ou até mesmo lugar de negro, onde o branco não se mistura, frequenta ou faz. Antes de começarmos as análises individualizadas faremos um apanhado muito relevante do texto de O povo brasileiro de Darcy Ribeiro que explica o que somos. sumário 269 Marxismo. O Brasil foi regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino de um de um proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. Os interesses e as aspirações do seu povo jamais foram levados em conta, porque só se tinha atenção e zelo no atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora. (...) Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar (RIBEIRO, 2006, p. 404). Essa breve análise de Ribeiro (2006) nos dá uma ideia do que será abarcado no presente artigo, a formação da sociedade brasileira através da colonização portuguesa, com forte mistura de culturas que se deu ao longo da história, e formou uma sociedade repleta de preconceitos e desigualdades, sejam de oportunidades e de representação. CASA GRANDE, SENZALA E O PATRIARCALISMO O grande influenciador da sociedade brasileira é o modelo patriarcal da sociedade brasileira e é exposto na obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala. Essa obra é de grande relevância para entender as estruturas sociais do Brasil e de que forma cada característica influenciou a formação social. É importante ressaltar em primeiro plano o conceito exposto por BENJAMIN (2005): A colonização do Brasil, não foi obra do Estado ou das demais instituições formais, todos aqui muito fracas. Foi obra da família patriarcal, em torno da qual se constituiu um modo de vida completo e específico. O latifúndio monocultor e o regime escravista de produzir afastavam, separavam, machucavam, mas a sumário 270 Marxismo. família extensa, cheia de agregados, a poligamia num contexto de escassez de mulheres brancas e a presença de considerável escravaria doméstica constituíam espaços de intercâmbio, nos quais negros e negras, índios e índias – especialmente negras e índias – muito mais adaptados aos trópicos, colonizaram o colonizador, ensinando-o a viver aqui. Mulatos, cafusos e mamelucos se multiplicaram, criando fissuras na dualidade radical que opunha senhores e escravos (BENJAMIN, 2005). O modelo patriarcal tem referência com o modelo senhorial praticado no Brasil, seria como um feudalismo à brasileira, onde a Casa grande, a família senhorial, abriga em sua estrutura não só os membros dessa família, mas também os agregados, incluindo aí os parentes e escravos. Todos eram subordinados ao patriarca, até mesmo os núcleos político e religioso daquele local, como explica FREYRE (2006): A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de “raça” e de “religião” do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi a unidade colonizadora. Economia e organização social que às vezes contrariaram não só a moral sexual católica como as tendências semitas do português aventureiro para a mercancia e o tráfico. (FREYRE, 2006, p. 34) Para FREYRE (2006) a casa grande era o centro de coesão da sociedade, e era complementada pela senzala, onde essa representava todo um sistema econômico, social político e também sexual como apresentado pelo autor: A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, politico: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão; de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto dos mortos, etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); (...) Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa-casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos (FREYRE, 2006, p. 36). sumário 271 Marxismo. A questão da sexualidade nessa relação é bastante importante, já que para o autor a miscigenação corrigiu a disparidade social entre brancos, índios e negros, dado o costume de relações sexuais entre índias e brancos num primeiro momento e posteriormente entre escravas e senhores, o que FREYRE (2006) cunha o termo como sadomasoquismo. Essa sociedade era constituída de senhores e escravos e por sua vez, a escravidão, que desvirtuou o princípio familiar europeu e criou um caso único em que os dominados eram completamente dependentes do dominador. A família patriarcal era mais forte que tudo na colônia, mais forte até que o caráter religioso do indivíduo e sobre a igreja se sobrepunha, uma vez que o patriarca era o provedor de tudo e todos naquela localidade. A forma em que a representação familiar foi conceituada e combinada com a escravidão, foi a maneira desse sistema se adaptar às características tropicais da colônia. Dessa forma, o papel da escravidão é muito importante, já que de acordo com estudiosos da família patriarcal, é responsável pelo desvirtuamento da estrutura familiar europeia. Desvirtuamento este, causado pelo hábito dos membros homens do núcleo familiar manterem relações sexuais com negros e indígenas, em face de pouca incidência de mulheres brancas, fato este que contribuía com a miscigenação da sociedade colonial. Contudo, essa miscigenação contribuía também para a disseminação da sífilis entre a população, num primeiro momento junto aos indígenas e posteriormente entre os negros escravos africanos. A sífilis era tão comum na colônia que o menino que não tivesse a marca de sífilis no corpo era ridicularizado, e sobre a marca de sífilis “o brasileiro a ostentava como quem ostentasse uma ferida de guerra” (MARTIUS apud FREYRE, 2006, p.109). O autor faz uma interessante relação entre sifilização e civilização e afirma “o Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado” (FREYRE, 2006, p. 110). sumário 272 Marxismo. Essa questão da sífilis mostra o grau de ignorância do brasileiro, ostentar uma grave doença como se fosse uma honra e isso diz muito sobre o brasileiro contemporâneo. Além do comportamento sexual promíscuo, outra moléstia que acometia o brasileiro médio nos tempos colonial foi a má nutrição, que de acordo com o autor, contribuía para a deformação do mestiço brasileiro. Esse comportamento sexual e doméstico íntimo apontado por FREYRE (2006), levanta dessa forma a Teoria da Miscigenação, partindo da ideia da mistura de etnias completamente diferentes e antagônicas: a portuguesa, a indígena e a africana, que focada na questão cultural leva à formação do povo brasileiro. E por formação do povo brasileiro através da miscigenação, eis a ideia de RIBEIRO (2006): A sociedade era, de fato, um mero conglomerado de gente multiétnicas, oriundas da Europa, da África ou nativos daqui mesmo, ativadas pela mais intensa mestiçagem, pelo genocídio mais brutal na dizimação dos povos tribais e pelo etnocídio radical na descaracterização cultural dos contingentes indígenas e africanos (RIBEIRO, 2006, p. 404). Ainda em RIBEIRO (2006) que finaliza, “essa massa de mulatos e caboclos, lusitanizados pela língua portuguesa que falavam pela visão do mundo foi plasmando a etnia brasileira e promovendo, simultaneamente, sua integração, na forma de um Estado-Nação” (RIBEIRO, 2006, p. 405). Dada a importância da miscigenação, FREYRE (2006) mostra no contexto brasileiro seu conceito de equilíbrio de antagonismos de economia e de cultura da seguinte forma: A cultura europeia e indígena. A europeia e a africana. A africana e indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os sumário 273 Marxismo. antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo (FREYRE, 2006, p. 116). Nesse sentido a análise do autor é correta no sentido de afirmar a relevância social da miscigenação também para o equilíbrio de antagonismos, assim como para a formação do Brasil e suas relações sociais, essa afirmação fica clara ao expor: A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação (FREYRE, 2006, p. 33). Partindo do ponto de vista de Gilberto Freyre, os principais aspectos influenciadores da formação do Brasil foram a monocultura latifundiária e a escravidão que moldaram a família patriarcal e que a miscigenação contribuiu ao evitar qualquer ruptura social, mantendo assim a submissão dos negros e índios sobre os senhores. SOCIEDADE NA FORMAÇÃO DO BRASIL Outra grande obra que é fundamental para entender o Brasil, assim como FREYRE (2016), é “Formação do Brasil contemporâneo”, que esmiúça as relações sociais do Brasil e as aponta no primeiro capítulo, é “O sentido da colonização”. Esse sentido da colonização residiria na exploração metropolitana com finalidade mercantil e fomentando o povoamento necessário para a produção de gêneros tropicais. A sociedade brasileira colonial era baseada na forma de uma empresa do colono branco de caráter mercantil e baseada em trabalho sumário 274 Marxismo. escravo, seja indígena ou africano e voltada para a produção de gêneros de grande valor comercial. No que se refere ao povoamento, era muito desigual, onde grande parte da população se encontrava no litoral, essa distribuição irregular foi consequência do bandeirismo e missões católicas catequizadoras, além das atividades econômicas da colônia, como da exploração das minas e criação de gados no território nordestino. As atividades econômicas foram voltadas para produzir e exportar gêneros tropicais de alto valor comercial, dessa forma há uma linha de análise comum a FREYRE (2006) e PRADO JR. (2011) onde ambos a economia colonial como marcada pela grande produção agroexportadora. A atividade econômica da colônia era apoiada em um tripé que se complementava, sendo eles a grande propriedade a monocultura e o trabalho escravo. Após uma breve análise de Vida Material e Povoamento, chegamos ao que nos interessa para mostrar a formação social do Brasil que é o tem tratado em “Vida Social” e que consiste na análise da constituição social do Brasil colonial caracterizada pela escravidão. De acordo com PRADO JR. (2011) a escravidão no Brasil foi tão peculiar que afirma: Em todo lugar onde encontramos tal instituição, aqui como alhures, nenhuma outra levou-lhe a palma na influência que exerce, no papel que representa em todos os setores da vida social. Organização econômica, padrões materiais e morais, nada há que a presença do trabalho servil, quando alcança as proporções de que fomos testemunhas, deixe de atingir; e de um modo profundo, seja diretamente, seja por suas repercussões remotas (PRADO, JR., 2011, p. 285). A escravidão para o autor, veio desacompanhada de qualquer elemento construtivo e com uma contribuição cultural passiva muito em razão da forma pejorativa que o negro era representado na sociedade colonial, reduzindo o homem a um instrumento vivo de trabalho” (MALHEIRO apud PRADO JR., 2011, p. 289) sumário 275 Marxismo. Nesse ponto, PRADO JR. (2011) começa fazendo um paralelo entre a escravidão moderna e do mundo antigo e conclui: (...) o que de mais grave determinará, entre os povos colonizadores e sobretudo em suas colônias do Novo Mundo, é o fato de vir a nova escravidão desacompanhada, ao contrário do que se passara no mundo antigo, de qualquer elemento construtivo, a não ser num aspecto restrito, puramente material, da realização de uma empresa de comércio: um negócio apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores (PRADO JR., 2011, p. 287). E assim o autor mostra o “triste espetáculo humano” (PRADO JR., 2011, p. 288) que é a escravidão e a submissão do homem negro aceitos na sociedade por se tratar, de acordo com o autor, de uma raça semibárbara. Contudo, essa submissão de raças, onde “pretos” ou “negros”, tom pejorativo comum, é sinônimo de escravo e mesmo que não o seja, se transforma em escravo. A questão de raças é importante para PRADO JR. (2011) porque explica a mestiçagem, caráter saliente da formação étnica do Brasil onde a predominância do branco se fez notar pelo branqueamento e pela eliminação de qualquer contribuição cultural advinda do negro e do índio. Deve-se aqui voltar a uma questão de povoamento, uma vez que, quando da ocupação do Brasil, não vieram muitas mulheres brancas, face a imigração de caráter aventureiro e individual. Da mestiçagem verifica-se a predominância branco-preto que foi a que moldou a conjunção étnica sofrida pela população colonial, deixando o indígena quase que de fora da sociedade contemporânea. Nesse sentido, como impulsionador dessa mestiçagem, verifica-se mais uma função do escravo “ou antes, da mulher escrava, instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus senhores e dominadores” (PRADO JR., 2011, p. 364). Contudo, “uma das consequências mais nefastas da ampla disseminação do trabalho escravo em setores da vida econômica e social sumário 276 Marxismo. do Brasil Colônia, foi a cristalização de uma ética da desvalorização do trabalho” (LIMA, 2008, p. 121). De todas as consequências, o racismo é a mais presente na atual sociedade brasileira e “transformando em ocupação pejorativa e desabonadora pelo lugar que ele ocupa na sociedade, restando apenas pequena margem de atividades laborais digna destinadas ao homem livre” (LIMA, 2008, p. 122). Essa é a explicação do surgimento do uso profissional do termo “classe média”, uma vez que, ao invés de qualificar-se pela atividade profissional, o indivíduo se qualifica pela sua condição social e omitindo assim sua ocupação para sentir-se socialmente aceito. Outra questão sobre a organização social que PRADO JR. (2011) destaca e alinhado a FREYRE (2006) é a importância dada ao modelo patriarcal de sociedade como exposto, “O clã patriarcal, na forma em que se apresenta, é algo de específico da nossa organização” (PRADO JR., 2016, p. 304). O clã patriarcal, é o ícone do Brasil colônia e fruto direto da administração portuguesa, fruto de uma administração fraca e incapaz de manter os interesses da Coroa, centralizando toda a administração de determinada local, por ser a “unidade econômica, social, administrativa, e até de certa forma religiosa” (PRADO JR., 2011, p. 304). As questões atinentes à administração merecem um capítulo específico e a ela tem-se a sintetização na seguinte colocação: (...)falta de organização, eficiência e presteza do seu funcionamento (...); processos brutais empregados, de que o recrutamento e a cobrança de tributos são o exemplo máximo (...); a complexidade dos órgãos, a confusão de funções e competências; a ausência de métodos e clareza na confecção de leis (...); o excesso de burocracia dos órgãos centrais (...); centralização administrativa que faz de Lisboa a cabeça pensante única (...) (PRADO JR. apud LIMA, 2008, p. 122). Por fim, no último capítulo do livro “Vida Social e Política”, PRADO JR. (2011) destaca traços do Brasil Colônia e caracteriza-o sumário 277 Marxismo. especificamente pela ausência de nexo moral e acentua também o papel da subordinação do escravo ao senhor. Nesse sentido, encaixa perfeitamente a seguinte afirmação: De fato, a sociedade é vista como sendo constituída de um núcleo central organizado, cujo elemento principal é a escravidão, e de um setor periférico, caracterizado por uma inorganicidade e incoerência que nele não se pode vislumbrar sequer uma estrutura social (LIMA, 2008, p. 122). No texto de Caio Prado Jr. pode-se verificar o caráter do brasileiro e no que diz respeito ao tema do artigo, ele se resume pela promiscuidade, o racismo e o desdenho ao trabalho. TODA UMA SOCIDADE DETERMINADA PELA CORDIALIDADE As três obras citadas são obras que resumem bem a sociedade brasileira. Examinaremos mais especificamente patrimonialismo e cordialidade como características principais dessa sociedade. É precípuo na obra de Holanda o patrimonialismo que é umas das mais cristalizadas características da sociedade brasileira e uma das suas consequências mais visíveis, a corrupção, assim o autor vai direto ao ponto ao afirmar: Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata (...); para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado Burocrático (...) (HOLANDA, 2005, p. 146). sumário 278 Marxismo. O exposto por Holanda (2005), uma prática que no Brasil é fomentada de forma assustadora, são os casos de corrupção sistêmica acometidos por agentes públicos, os funcionários “patrimoniais” e é um hábito social. De acordo com o autor, “é possível acompanhar ao longo de nossa história o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal” (HOLANDA, 2005, p. 146). A questão do patrimonialismo é fundamental para se entender essa desvirtuação do público em prol do privado, uma vez que o recolhimento de impostos na atualidade com o caráter impessoal da res publica. WEBER (2004) vê uma relação entre o que ele chama de dominação patriarcal e dominação patrimonial, como exposto: A este caso especial da estrutura da dominação patriarcal: o poder doméstico descentralizado mediante a cessão de terras e eventualmente de utensílios a filhos ou outros dependentes da comunidade doméstica, queremos chamar de dominação patrimonial (WEBER, 2004, p. 238). WEBER (2000) entende que na dominação patrimonial, a pessoalidade do senhor no exercício do poder é cristalina e isso tem absoluta relação com a formação brasileira e uma ideia de “descentralização administrativa centralizada” onde um senhor administrava sua propriedade não como proprietário, mas sim como o rei local. Logo essa ideia de rei local, a dominação patrimonial, criou o que conhecemos como coronelismo que LEAL (2012) atribui à “hegemonia social do dono de terras” e tem origem nos latifúndios rurais formados no sistema colonial português implantado no Brasil. Para Victor Nunes Leal, o fortalecimento do patrimonialismo e sua adaptação ao Estado moderno vieram no período imperial, dada sua tolerância aos senhores latifundiários em troca da força eleitoral dos “coronéis”. Talvez aí tenha sido o momento em que a máquina estatal tenha sido aparelhada de forma a atender os interesses dos detentores do poder. sumário 279 Marxismo. Nesse sentido, entende-se que o Brasil foi construído para o usufruto dos detentores do poder, do chefe e nem o ímpeto liberal desatou as amarras da herança patrimonialista portuguesa como ensina Faoro que afirma o seguinte: A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno. O patriciado, despido de brasões, de vestimentas ornamentais, de casacas ostensivas, governa e impera, tutela e curatela. O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário (FAORO, 2012, p. 836). Essa dominação da elite da forma que foi concebida por FAORO (2012) permaneceu inalterada desde a colonização até o período Vargas, ou seja, o Estamento burocrático controlava o Brasil de forma particular, economicamente e politicamente. Na mesma linha de FAORO (2012) segue Florestan Fernandes, que por sua vez fala em uma “dualidade estrutural” com duas formas de dominação, sendo uma dominação consagrada pela tradição e outra criada pela ordem legal, contudo FERNANDES (2005) afirma que “na prática, com frequência os controles reativos suscitados pela tradição prevaleciam sobre os preceitos legais”. Dessa forma, fica claro que a sociedade brasileira ainda se relaciona, pouco menos, mais ainda de forma tradicional, onde se vê o respeito por sobrenomes históricos, os que acreditam ter o sangue azul e por essa razão acreditam também em sobrepor a ordem legal. Os conceitos de sociedade no Brasil são baseados em características tradicionais, o que é estranho em república visto que não existe nobreza nem aristocracia. Outra herança do sistema colonial é a cordialidade, pontuada por Holanda, “já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição sumário 280 Marxismo. brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial” (HOLANDA, 2005, p. 146). Holanda (2005) entende que é do modo de ser do brasileiro a dificuldade para manter ritos sociais formais dado seu hábito pela impessoalidade e afetividade. Assim são as características desse brasileiro: A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo, expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças (HOLANDA, 2005, p. 146). O desapego do brasileiro à formalidade é nítido ainda na atualidade, uma vez que os pronomes de tratamento são dispensáveis por aqueles que chamam e altamente requisitado pelas Excelências. Vivemos sim em uma nação de Excelências, onde se caracteriza uma “quase” segregação social, visto que a atual aristocracia, geralmente ocupa cargos públicos e representam o Estado. Essa cordialidade exposta em o Homem Cordial é também a razão pela qual não existe uma luta de classes na sociedade brasileira conforme nos foi ensinado e é motivada pelo relacionamento íntimo entre senhores e escravos. A cordialidade foi por muito tempo a forma de camuflar a brutalidade que regiam as relações sociais no Brasil. As relações consistiam em diversas formas, até mesmo sexual, entre o núcleo familiar do senhor de engenho e as escravas, visto que eram usadas como objetos sexuais, além de iniciar sexualmente os filhos desses senhores, que viriam a ser senhores no futuro. Além disso, existia a figura da “ama de leite”, escravas que amamentavam os filhos sumário 281 Marxismo. recém-nascidos e também as mucamas, escravas que acompanhavam as senhoras no dia a dia, essas mucamas eram tão intimas que tinham acesso direto à casa grande. Por assim dizer, os escravos participavam da vida íntima do núcleo familiar, quando não existia uma questão amorosa no meio dessa equação, visto que era muito comum essas figuras materna e sexual, mais comumente, ganharem cartas de alforria de seus senhores, pelos “trabalhos prestados”. Essas alforrias vinham o mais tardar em declaração de última vontade e era comum que os senhores alforriassem também por lealdade e serventia, deve-se entender que ele está abrindo mão de uma propriedade, já que assim eram considerados os escravos. Já não existe mais a escravidão, já não existe mais esse tipo de relação entre empregados e empregadores, mas ainda existe essa cordialidade no meio doméstico, onde empregados são tratados como membros da família, onde o contrário também ocorre. Essa cordialidade fica mais evidente quando existe uma quebra dessa relação laboral, especialmente quando o empregado tem uma oportunidade e melhorar sua vida e a família considera uma vitória sua, como se ela fosse realmente da família. Contudo, quando a relação empregatícia termina mal e sobram acusações de traição e desapontamento, normalmente quando a questão vai parar na justiça, é comum aparecer os chavões “eu a tratava como se fosse da minha família”, ou então “minha patroa é madrinha do meu filho”. Essa é uma questão típica da relação de classe no Brasil e a cordialidade vem justamente para aproximar as pessoas, ocultando disparidades sociais bastante comuns na sociedade brasileira. Uma última questão acerca da cordialidade relacionada à intimidade no caráter linguístico e essa análise é congruente no pensamento de FREYRE (2006) e HOLANDA (2005). Para FREYRE (2006) essa forma de afetividade é vista no contato das crianças com a ama sumário 282 Marxismo. negra, passou a amolecer a linguagem brasileira. Já o uso constante de palavras no diminutivo, o que HOLANDA (2005) entende “que serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e ao mesmo tempo para lhe dar relevo”. Ainda resta a ideia de que os brasileiros são íntimos de uma forma quase desrespeitosa dos santos, dada a intimidade e a popularidade que os santos tomam para com seus devotos brasileiros, tanto que o autor faz a seguinte colocação: Cada casa quer ter sua capela própria, onde os moradores se ajoelham ante o padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os santos já não aparecem como entes dalgos e plebeus, querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e próprio Deus é um amigo familiar, doméstico e próximo – o oposto do Deus “palaciano”, a quem o cavaleiro de joelhos, vai prestar sua homenagem, como a um senhor feudal (HOLANDA, 2005, p. 149). Eis as características que formaram a sociedade brasileira e dessa forma deve-se compreender o porquê das peculiaridades que a formam e, assim, reafirmá-las até que essa realidade seja alterada, com a finalidade de reconhecer o problema e promover uma mudança que realize a, tão falada, justiça social e inclusão de minorias. CONCLUSÃO O Brasil, ao contrário de outras colônias europeias ainda é uma nação em formação, especialmente em seu contexto social e mesmo com as disparidades de oportunidades vem sendo reduzidas por medidas políticas. Ainda existem cicatrizes que sem mostram muito resistentes e elas vieram da forma que se deu a colonização. A diferença é que a sociedade brasileira foi englobando culturas não muito civilizatórias, o oposto de outros “novos mundos”, sumário 283 Marxismo. especialmente as de colonização inglesa, que transferiram sua cultura para as terras recém-descobertas, como nos ensina RIBEIRO (2006). Ao contrário, o Brasil foi a mistura cultural entre a perversa cultura ibérica e abafada cultura africana e criaram esse ser brasileiro, que já foi conhecido não como natural do Brasil, mas sim aquele que exploram a terra, ou seja, somos de uma cidadania explorada. Essas marcas fomentaram e ainda fomentam muita ignorância em nossa sociedade, por essa razão pode-se afirmar que a sociedade brasileira é de extremos e assim como “ostentar a marca da sífilis como uma marca de guerra” é um exemplo do que estava por vir, uma sociedade extremamente intolerante, racista e elitista. Essas três características são a combinação perfeita para a ignorância, o que confirma realmente o significado da cordialidade entre nosso povo, se essa não existisse e amansasse os ânimos sociais, uma luta de classes definitivamente já teria eclodido. Por ser considerada pelos grandes teóricos sociais brasileiros ainda uma sociedade em desenvolvimento e uma sociedade de desenvolvimento tardio, assim como de civilidade tardia e isso explica os absurdos que diariamente nos chocam nas capas de jornais. A civilidade a que nos referimos é mais próximo de humanidade, pois a falta de humanidade somada à ignorância dos indivíduos resulta nas monstruosidades que são cometidas e enraizadas em nossa sociedade. Verifica-se também que na ocorrência desses tipos de crime é comum que se atribua a culpa à sociedade, mas a sociedade deveria ser considerada a vítima, pois a sociedade nada mais é que o reflexo dos indivíduos que dela fazem parte. A culpa deve ser entendida como individual daquele que comete o crime e não é só um crime contra a pessoa, mas também um crime contra a sociedade. As relações sociais são os acontecimentos que moldam uma nação e dela devemos tirar o que tivermos de melhor para apresentar sumário 284 Marxismo. e mantê-la sempre em evolução, pois a evolução social é a primazia das sociedades mais desenvolvidas, onde a educação é a maior arma contra a ignorância e intolerância. No Brasil a educação é considerada como gasto, enquanto deveríamos entender como investimento social, essa deveria ser a principal medida social de um governo. Contudo, o que verificamos são governos, em toda esfera de administração, mais preocupados com a política do que com o estado em si, e quando temos políticos mais preocupados em administrar nuances políticas do que governar propriamente dito. Constatamos também que o dirigente brasileiro trata seu cargo como se fosse seu próprio engenho, base dos primórdios do Brasil colonial, patrimonialista corrupto e patriarcal. REFERÊNCIAS Benjamin, César. Uma certa ideia de Brasil. In Enciclopédia da Brasilidade, autoestima em verde e amarelo. Carlos Lessa. BNDS, 2005. Consulta em 11/02/2020. Disponível: http://www.contrapontoeditora.com.br/arquivos/ artigos/200711011651590.Certa%20ideiade%20Brasil.pdf Cardoso, Fernando H. Pensadores que inventaram o Brasil. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Faoro, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5 ed., São Paulo: Globo, 2012. Fernandes, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. 5 ed., São Paulo: Globo, 2005. Freyre, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51 ed., São Paulo: Global Editora, 2016. Holanda, Sérgio B. Raízes do Brasil. 26 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1995. sumário 285 Marxismo. Leal, Victor N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Lima, Valéria F. S. Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. Revista de Políticas Públicas de São Luís, v.12, p. 117-124, janeiro/ junho, 2008. Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 1 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Weber, Max. Economia e sociedade. v.1. Brasília: Editora UnB, 2000. Weber, Max. Economia e sociedade. v.2. Brasília: Editora UnB, 2004. sumário 286 16 William Vaz de Oliveira (UERJ) Juliano Moreira e a Psiquiatria Social no Brasil DOI 10.31560/pimentacultural/2022.95750.16 Marxismo. NOTAS BIOGRÁFICAS Juliano Moreira nasceu no dia seis de janeiro de 1973, na freguesia da Sé, hoje o espaço do Pelourinho, na cidade de Salvador. Seu pai, o português Manoel do Carmo Moreira Junior, era inspetor de iluminação pública e sua mãe, Galdina Joaquim do Amaral, trabalhava como doméstica na casa do Barão de Itapuã, um renomado médico baiano. Desenvolveu desde pequeno um grande interesse pela leitura, sendo um frequente leitor do Jornal de Notícias, diário assinado pelo pai, que noticiava os assuntos do norte do país (PASSOS, 1975, p. 9-10). Mas parece ter sido a convivência com a família do Barão de Itapuã, que se tornara seu padrinho, o que teria despertado ainda mais o seu interesse pelos estudos. Assim, após realizar seus estudos iniciais no Colégio Pedro II, Juliano Moreira foi transferido para o Liceu Provincial na cidade de Salvador onde, em 1886, após manifestar sinais de extraordinária precocidade, foi matriculado na Faculdade de Medicina da Bahia (MEMORIAL, 2007, p. 14). Daí em diante sua trajetória o levaria a se despontar como um dos principais nomes da medicina, especialmente da medicina mental brasileira. Dedicou-se primeiramente à dermatologia, tendo se tornado interno da Clínica Dermatológica e Sifilográfica quando ainda cursava o quinto ano do curso de Medicina. Um ano depois se formou em medicina e cirurgia após apresentar a tese Etiologia da Sífilis Maligna Precoce, aprovada com a nota máxima e recomendada para análise de especialistas estrangeiros na área. Sua tese inaugural se tornou depois referência mundial na área da sifiligrafia. Após sua formatura Moreira dedicou-se à clínica na Santa Casa de Misericórdia, assumindo mais tarde o lugar de médico adjunto do Hospital de Santa Isabel, em Salvador. Em 15 de setembro de 1894, após ser aprovado em concurso, foi nomeado preparador de anatomia sumário 288 Marxismo. médico-cirúrgica. Foi neste tempo que Juliano Moreira teve o seu primeiro contato com as doenças mentais ao se tornar assistente da cátedra de Clínica Psiquiátrica e Doenças Nervosas. Nos intervalos ainda se dedicava ao estudo de idiomas. Seu destaque no meio acadêmico foi imediato, sempre estudando e discutindo com seus pares, tendo mobilizado professores e colegas para a fundação de duas importantes associações na Bahia – a Sociedade de Medicina e Cirurgia e a Sociedade de Medicina Legal – que tiveram a adesão de professores ilustres da época, tais como: Pacheco Mendes, Alfredo Brita e Raimundo Nina Rodrigues. Em meados de 1895, a fim de aprimorar seus conhecimentos em neuropsiquiatria, Juliano Moreira fez uma viagem para a Europa, onde frequentou cursos de doenças mentais regidos por importantes professores da área, dentre eles Kraft-Ebbing. Na mesma ocasião teve a oportunidade de ouvir lições de Raymond Dejérine, Gilles de La Tourette e Valentin Magnan. Além disso visitou importantes clínicas psiquiátricas na Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Itália, França, Áustria e Suiça. Segundo José Leme Lopes: dessas viagens trouxe uma larga visão da medicina e um entusiasmo pelos novos métodos e técnicas, que a psiquiatria começava a ensaiar, ao receber o benéfico influxo dos progressos científicos em fase de expansão (LOPES, 1964, p. 6). De fato, tais viagens aumentaram ainda mais seu interesse por essa disciplina, tanto que ao voltar da Europa, em 1896, se inscreveu no concurso para preenchimento da vaga de professor da 12ª seção da Faculdade de Medicina da Bahia, que compreendia as doenças nervosas e mentais, deixada por Augusto Freire Maia Bittencourt que ocupava a cadeira desde setembro de 1886. Embora a banca do concurso fosse formada em sua maioria de escravocratas declarados, fator importante - considerando-se que Juliano Moreira era mestiço e que havia menos de dez anos que a escravidão havia sido abolida no Brasil - defendeu sua tese oral Disquinesias Arsenicais, concluída sob fortes aplausos. Em seguida, sumário 289 Marxismo. na leitura escrita, escreveu um texto sobre Meopatias Progressivas. As provas práticas foram seguidas por dezenas de estudantes e outras pessoas que lotaram o salão nobre da Faculdade. A presença atuante dos alunos e outras pessoas durante as provas justificava-se, pois temiam que houvesse algum ato que impossibilitasse o jovem médico Juliano Moreira vencer aquele concurso. Afinal a escola tinha fama de racista, a banca era conhecida como escravocrata (MEMORIAL, 2007, p. 16). Porém, nem mesmo os escravocratas puderam deixar de reconhecer os seus méritos (MEMORIAL, 2007, p. 17), pois na manhã de nove de maio de 1896 quem passasse pela Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, podia ver afixado no mural o resultado do exame em que Juliano havia recebido quinze notas máximas. Assim, com apenas vinte e três anos de idade ele se tornava o mais novo professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Em seu discurso de posse, realizado no dia 16 de junho, ele disse o seguinte: Subir sem outro bordão que não seja a abnegação ao trabalho, eis o que há de mais escabroso. Tentei subir assim, e se méritos tenho em minha vida este é um (...). Há quem se arreceie de que a pigmentação seja nuvem capaz de marear o brilho desta Faculdade, me parece estar vendo imagem fulgurante da Pátria Brasileira, qual a heróica e gloriosa Cornélia, a mãe dos Gracos, a mostrar serena e majestosa entre as suas jóias mais preciosas as gemas coloridas que valorizam o diadema que lhe auréola a fronte (...) (Juliano Moreira apud PASSOS, 1975, p. 16-17). Naqueles tempos, finais do século XIX, havia uma forte tendência entre os psiquiatras a considerar as doenças mentais um fator hereditário. De modo geral, as causas das doenças mentais eram atribuídas à mistura de raças, bem como aos fatores climáticos dos trópicos. Assim, a psiquiatria da época estabelecia uma forte relação entre as doenças mentais e a mestiçagem do povo brasileiro. Nina Rodrigues, por exemplo, que se mantinha atrelado ao pensamento evolucionista dominante na época, defendia a ideia de que a mistura de raças era fortemente prejudicial à formação de sumário 290 Marxismo. um país – para ele a mestiçagem era um traço de inferioridade e a principal causa da loucura. Juliano Moreira, por outro lado, pensava que a questão racial não determinava a doença mental e que os principais causadores das enfermidades mentais eram a ignorância, o alcoolismo, a sífilis, as verminoses, bem como as condições sanitárias e educacionais do povo brasileiro. Por isso mesmo, a psiquiatria deveria trabalhar de forma profilática e higienista. Foi assumindo esta posição em defesa de uma psiquiatria social – preocupada não apenas com o caráter científico, mas, sobretudo, social das doenças mentais – que Juliano Moreira publicou e apresentou diversos trabalhos e comunicações em várias revistas e congressos no Brasil e em outras partes do mundo. Ao articular diretamente a prática clínica e o trabalho de divulgação científica, Juliano traça os caminhos para a consolidação de uma escola psiquiátrica no Brasil. As suas experiências em eventos e práticas científicas internacionais o deixaram totalmente inconformado com o modelo de Assistência a Alienados adotado no Brasil, o que marcou profundamente suas ideias e suas práticas. Mas foi pela psiquiatria alemã que ele desenvolveu um maior interesse. Após viagem à Europa, em 1900, o alienista, naquela época professor substituto de psiquiatria e neurologia na Faculdade de Medicina, ficou encantando com o modelo de Assistência existente em vários estabelecimentos de alienados naquele país, onde havia uma forte preocupação com a pesquisa, o ensino e a utilização de métodos modernos de diagnósticos e tratamentos das doenças mentais. Naquela ocasião teve a oportunidade de observar a existência de excelentes clínicas psiquiátricas autônomas, com vastas colônias agrícolas, onde os doentes podiam se beneficiar da terapia pelo trabalho; abandono de todos os meios de contenção, podendo os doentes gozar de regimes de liberdade; pavilhões de vigilância com profissionais capacitados; generalização do tratamento pela sumário 291 Marxismo. clinoterapia – contrários ao isolamento celular; tratamentos individualizados – com colônias para epilépticos, nervosos, bebedores habituais, delinquentes, etc. De volta ao Brasil, ele publicou artigos na Revista do Grêmio dos Internos dos Hospitais, descrevendo as suas impressões sobre as clínicas psiquiátricas das Universidades de Halle (1901), Leipzig (1901) e Wursburg (1902), seguidos de outros trabalhos em que destacava a necessidade de mudanças nos serviços de Assistência, pesquisa e ensino de psiquiatria no Brasil. A Faculdade de Medicina da Bahia, onde Juliano assumia o cargo de professor substituto de psiquiatria e neurologia, parecia não ser o local adequado para o seu desenvolvimento intelectual e profissional como desejava. O alienista mostrava-se bastante insatisfeito com o “estéril estado” das coisas e sabia que naquela conjuntura uma mudança seria improvável. Por isso, em 1902, em viagem ao Rio de Janeiro onde participou do ato de embalsamento do cadáver do Professor Manuel Vitorino, ilustre médico baiano e vice-presidente da República (1894-1898), a vida de Juliano Moreira tomou outros rumos. Segundo Alexandre Passos: daqui em diante o futuro demonstrará que aquele ‘ao Rio’ se transformou em ‘para o Rio’, porque não mais ele voltaria à terra natal (PASSOS, 1975, p. 19). Uma vez no Rio de Janeiro, se estabeleceu em uma rua tranquila no bairro de São Cristóvão, onde abriu um consultório. Ali permaneceu até 1903 quando, após indicação de seu conterrâneo Afrânio Peixoto, foi nomeado diretor do Hospício Nacional de Alienados (HNA). Juliano Moreira assumiu a direção do HNA com a função de reformar não apenas aquele estabelecimento, mas a Assistência a Alienados como um todo. Naqueles tempos a Assistência passava por sérios problemas, envolvida em uma onda de escândalos que a colocava em grandes dificuldades – coube a Juliano Moreira a difícil tarefa de colocá-la nos eixos. sumário 292 Marxismo. O HOSPÍCIO NACIONAL DE ALIENADOS Ao assumir a direção do HNA, Juliano Moreira procurou realizar diversas reformas na Assistência de modo a equiparar a psiquiatria brasileira ao modelo alemão. Empenhou-se não apenas em organizar os espaços, como também divulgar os saberes teóricos e práticos da psiquiatria germânica em solos brasileiros. Tratava-se, sobretudo, de criar uma escola onde o ensino e a pesquisa caminhassem sempre juntos. A reforma realizada no HNA em 1903 e 1904 revela o forte apego aos princípios do alienismo alemão, em detrimento do modelo francês dominante no século XIX. O isolamento preconizado por Esquirol, amplamente utilizado no Brasil, foi substituído pelos modelos de assistência open door, que procuravam proporcionar ao doente a maior liberdade possível, ou ao menos a sensação de liberdade. Com Juliano Moreira houve uma descentralização da Assistência aos Alienados, ou seja, o isolamento do doente no HNA deixou de ser condição necessária para o seu tratamento. Ao lado dessa modalidade de terapêutica somaram-se outras formas de intervenção baseadas em uma assistência psiquiátrica mais difusa: foram criadas as colônias agrícolas, a assistência familiar, reformatórios para alcoolistas e até mesmo seções para o tratamento dos pacientes epilépticos. O modelo adotado por Juliano Moreira era baseado, em grande medida, no modelo da clínica psiquiátrica de Munique, sob a direção de Emil Kraepelin. Ali ele pôde observar o que havia de mais moderno no tratamento racional das doenças mentais, o que fazia daquela clínica, no seu entender, a melhor do mundo. Naquele estabelecimento viviam os doentes em regime de liberdade, pois as grades e camisas de força foram abolidas; o sistema de vigilância era bem montado contando com um enfermeiro para cada cinco doentes e um para cada dois nas salas de vigilância contínua. Assim como na Universidade de sumário 293 Marxismo. Leipzig, na clínica de Munique a admissão dos pacientes era muito fácil, ficando as formalidades legais de internação para depois do exame conveniente, o que facilitaria o trabalho de pesquisa e aumentariam as chances de cura do paciente que não teria que ficar esperando o cumprimento das exigências da lei para que fosse atendido. Foi pensando na clínica de Munique e nos ensinamentos do seu célebre diretor Emil Kraepelin que Juliano concebeu a reforma do HNA. A primeira coisa a ser feita foi uma reforma legal. Ou seja, para empreender uma reforma de fato, de acordo com os princípios da psiquiatria moderna, era preciso regulamentar, não apenas médica, mas legalmente, a Assistência a Alienados no país. Juliano Moreira participou ativamente do processo de consolidação do decreto legislativo nº. 1132, de 22 de dezembro de 1903, regulado pelo decreto executivo nº. 5125, de 1º de fevereiro de 1904, que buscava organizar a assistência de modo a possibilitar maior controle por parte do Estado - tanto em estabelecimentos públicos quanto privados e garantir aos médicos um espaço de verdadeira autonomia e autoridade incontestável no que diz respeito aos aspectos clínicos da alienação mental. Assim, a doença mental passa a figurar como assunto exclusivo dos psiquiatras e a Assistência como assunto dos poderes públicos. Pretendia-se, desse modo, evitar as sequestrações arbitrárias e o cerceamento das liberdades individuais bem como o exercício indevido da profissão por pessoas não capacitadas. Após a reforma legislativa, Juliano Moreira procurou então implementar uma reforma na Assistência de fato. Primeiramente, procurou retirar as grades de ferro que circundavam o estabelecimento para dar um ar de maior liberdade. A prática de retirar as grades dos manicômios coadunava com o pensamento da psiquiatria moderna, em defesa da Assistência em asilos de portas abertas, hospitais colônias, onde os pacientes pudessem ter a sensação de estarem sempre em liberdade, ainda que tal sensação fosse apenas ilusória. sumário 294 Marxismo. O filão do projeto de reforma empreendido por Moreira era a pesquisa e o ensino, portanto a organização dos laboratórios teve uma atenção maior. Foram adquiridos aparelhos novos para o laboratório histoquímico, houve uma remodelação dos laboratórios de anatomia patológica e clínica, foram organizados o serviço oftalmológico, odontológico e fotográfico, sem contar a instalação de um gabinete antropométrico para a realização de exames mais sofisticados dos pacientes, etc. QUAIS OS MELHORES MEIOS DE ASSISTÊNCIA AOS ALIENADOS? Em relatório apresentado no Quarto Congresso médico latino-americano, realizado em 1910, Juliano Moreira mostra quais seriam os melhores meios de Assistência aos Alienados. Segundo o alienista, ao elevar o alienado à categoria de mero doente do cérebro, o hospício teria se humanizado, transformando-se pouco a pouco de prisão em depósito e depois em hospital (MOREIRA, 1910, p. 374). Evidenciando o modelo de assistência alemão, o mais adequado no seu entender, mostra que a Assistência a Alienados, para ser completa de fato, deveria levar em consideração as diversas modalidades, incluindo o asilo fechado, quanto possível modernizado; os asilos com portas abertas, colônias agrícolas anexas aos anteriores; colônias familiares anexas ao asilo; colônias familiares perto do asilo; colônias familiares independentes; aldeias de alienados; tratamento em domicílio, desde o início da loucura e, se preciso fosse, seguido de internação. Dessa forma: O antigo asilo fechado tende a desaparecer, sendo transformado em hospital urbano para tratamento imediato dos casos agudos de alienação mental. Por isso, não lhe é mais permitida a antiga feição de cárcere com as suas grades e correlatos horrores (Moreira, 1910, p. 375). sumário 295 Marxismo. Neste sentido, Juliano Moreira defende uma Assistência descentralizada, com múltiplas possibilidades para além do mero isolamento no asilo. Primeiramente, era preciso ter uma clínica psiquiátrica e de moléstias nervosas dotada com todos os meios adequados para o estudo e o tratamento das doenças do cérebro e de todo o sistema nervoso. Dado que nesta clínica os candidatos ao diploma médico teriam todas as instruções nessas doenças, sua frequência deveria ser obrigatória para sua formação. Além disso, entre o quinto e o sexto ano o aluno médico seria obrigado a ficar, ao menos durante uma semana, de serviço na clínica ou no hospital urbano dedicado às doenças do cérebro (MOREIRA, 1910, p. 394). Além da clínica, era preciso ter um hospital urbano para possibilitar aos alienados socorros urgentes, por isso mesmo nenhuma lei deveria embaraçar com delongas inúteis a hospitalização de tal doente (MOREIRA, 1910, p. 376). Assim, quanto mais densa a população maior a necessidade de hospitalização imediata dos alienados. O hospital urbano deveria possuir pavilhão de observação para os doentes recém-admitidos, pavilhão para os casos agudos com vigilância contínua aos agitados e propensos ao suicídio. De forma geral, Moreira defende que o hospital de alienados deveria se assemelhar cada vez mais ao hospital para outras doenças, o que contribuiria para um melhor desenvolvimento das pesquisas e do ensino das doenças mentais. Além do hospital urbano, ele defendia a criação de um hospital-colônia em terreno vasto e fértil em um subúrbio salubre da capital, onde se daria a continuação do tratamento dos pacientes. O modelo ideal era o de Altscherbitz, na Alemanha. Neste asilo, os doentes viviam em completo regime de open door, podendo gozar de certa liberdade. Dispondo de pavilhões separados, era possível haver um agrupamento cuidadoso dos doentes do modo mais conveniente ao tratamento deles (MOREIRA, 1910, p. 379). As vilas da colônia eram dispersas em um espaço aberto bastante amplo. Assim, tanto no arranjo interno, como no externo, tudo sumário 296 Marxismo. se aproxima da habitação comum, da casa particular (MOREIRA, 1910, p. 379). O asilo-colônia, por sua vez, deveria ser subdividido em diversos pavilhões de modo a especializar ainda mais a assistência. Anexo ao hospital-colônia, o governo deveria construir casas higiênicas para alugar às famílias dos empregados que poderiam receber pacientes suscetíveis de serem tratados em domicílio, tornando possível a assistência familiar. Para uma Assistência adequada e completa, Juliano Moreira defende ainda a construção de asilos-colônias para epiléticos, idiotas, alcoólicos, sanatórios para tratamento das doenças nervosas e manicômio especial para alienados delinquentes ou criminosos que ficassem alienados. DEGENERAÇÃO E LOUCURA: DIVERGÊNCIAS ENTRE JULIANO MOREIRA E RAIMUNDO NINA RODRIGUES No Brasil, tanto as explicações naturalistas, com enfoque especial às interferências climáticas no desenvolvimento físico e moral do indivíduo, quanto, em maior grau, as teorias racistas, tiveram ressonância especialmente na segunda metade do século XIX. Com a introdução e a pulverização do pensamento positivista, do darwinismo e do evolucionismo social no país, sobretudo a partir da década de 1870, raça e degeneração mental passaram a estar intimamente relacionadas. De modo geral, o Brasil passa a se definir pela raça; inúmeros cientistas e intelectuais aderem fortemente a estas novas correntes de pensamento que ganham espaço importante no país. No que diz respeito ao pensamento psiquiátrico, os trabalhos de Nina Rodrigues, um dos maiores expoentes da psiquiatria, antropologia criminal e medicina legal no Brasil, revelam, em grande medida, tais influências. A compreensão do processo de degeneração da espécie pelo viés racista veio de encontro sumário 297 Marxismo. ao pensamento de Rodrigues que ao relacionar crime e loucura, por exemplo, encontrava explicações na miscigenação do povo brasileiro. Considerando a indiscutível inferioridade racial dos negros e dos índios em relação aos brancos, Nina Rodrigues acreditava que a miscigenação entre raças em diferentes patamares evolutivos resultaria, fatalmente, em indivíduos desequilibrados, degenerados, híbridos do ponto de vista físico, intelectual e nas manifestações comportamentais (ODA, 2001, p. 3). Juliano Moreira procura se opor, de modo geral, a esta visão racista e naturalista da constituição do povo brasileiro. Convém lembrar que Moreira nunca colocou em xeque a teoria da degenerescência, não obstante apresenta divergências em relação aos seus fatores causais. Ao contrário de Nina Rodrigues, por exemplo, ele acreditava que as causas da degeneração do povo brasileiro estavam relacionadas aos fatores sociais e culturais. Por isso mesmo, ao invés de procurar combater a miscigenação e trabalhar no sentido de promover eugenicamente a “raça pura”, a luta contra as degenerações nervosas deveria priorizar o combate ao alcoolismo, à sífilis, às verminoses e às adversidades sociais como um todo. Segundo o alienista, a atribuição da má natureza dos elementos formadores da nossa nacionalidade” unicamente ao fato da mestiçagem acaba se esquecendo do “nosso bárbaro processo de colonização, um dos principais responsáveis pela degeneração física, moral e social do povo brasileiro. De acordo com Moreira, além do negro aportaram aqui milhares de europeus, motivados pela uberdade do solo que dava amplas facilidades de vida aos emigrados, dentre eles a população indesejada que Portugal procurou desafogar de seus presídios. Juntamente com eles, vieram também a sífilis, a lepra, a tuberculose e, principalmente, o alcoolismo, este último, considerado por Moreira o principal causador da degenerescência mental (MOREIRA, 1905, p. 65-66). Em suma, no seu entendimento, as campanhas de higienização mental dos povos não poderiam ser limitadas por preconceitos de cores. sumário 298 Marxismo. É importante frisar que a nomeação de Juliano Moreira para a direção do HNA coincide com o plano de reforma e saneamento dos espaços urbanos na cidade do Rio de Janeiro impetrado pelo então prefeito Pereira Passos. Naquele momento as políticas de saneamento urbano coadunavam com o pensamento médico que acreditava haver uma relação intrínseca entre doença, ambiente e sociedade. Neste sentido, o plano de reforma integrava as diretrizes da saúde pública capitaneadas naquela ocasião por Oswaldo Cruz. Procurou-se, então, resolver os problemas de saneamento como, por exemplo, o alagamento das ruas, demolição de habitações precárias, bem como a execução de grandes campanhas de vacinação e profilaxia das doenças. Considerando que a saúde mental era constituinte desse projeto de saúde pública, seguiu, portanto, a mesma lógica de medicina preventiva. Em outras palavras, importava não apenas socorrer os indivíduos arrebatados pela doença, mas, sobretudo, impedir que ela se manifestasse. Quer dizer, prevenir ao invés de remediar. Dessa forma, a descentralização da Assistência a Alienados tão sonhada por Juliano Moreira era fortalecida por esta noção de que era mais viável e importante promover a saúde do que combater a doença. Quer dizer, o interesse se desloca da doença para a saúde e neste movimento todo e qualquer indivíduo passa a ser um doente em potencial. Considerando que, segundo o alienista, as infecções, as infestações e as intoxicações, eram os maiores fatores deseugenéticos da humanidade e, portanto, os maiores inimigos da saúde mental, a higiene geral do povo brasileiro dependia da execução de campanhas eficientes no sentido de combater as doenças mentais, especialmente a sífilis, os abusos de bebidas alcoólicas, bem como as verminoses e até mesmo se evitando a procriação de gentes taradas (MOREIRA, 1922). O que se percebe, de forma geral, é que em Juliano Moreira, mais do que nunca, há uma predominante preocupação com as questões sociais. Em outras palavras, mais do que a dimensão física e orgânica das doenças mentais ele se atentava com as doenças que poderiam sumário 299 Marxismo. ser ocasionadas pelas condições sociais, culturais, educacionais e sanitárias adversas. Seu plano de ação envolvia, neste sentido, a produção de um meio social saudável, de modo a possibilitar aos indivíduos um desenvolvimento mais adequado de suas capacidades mentais. Enfim, defendia um projeto de sociedade moralmente igualitária e profilática em relação às possíveis diferenças físico-orgânicas individuais que, apesar de poderem atingir uma parcela da população, eram independentes do clima e da constituição racial (VENANCIO, 2004, p. 291). Aproximando-se claramente da psiquiatria germânica, especialmente do pensamento de Emil Kraepelin, Moreira demonstra um grande interesse pela psiquiatria comparada, realizando estudos da doença mental em diversos grupos étnicos brasileiros, dentre eles um estudo sobre alienação mental nos indígenas durante um período de seis meses em que permaneceu nas selvas amazônicas. Os estudos comparativos, neste sentido, representam um mecanismo importante de compreensão e classificação dos diversos tipos de alienação mental, relacionados aos inúmeros grupos étnicos e sociais que habitavam o Brasil. A ideia seria estabelecer, assim como vinha fazendo Kraepelin, uma classificação das patologias mentais através de organizações estatísticas seguras, assim como ocorria com as outras doenças biológicas. Não é por acaso que, dentre as inúmeras mudanças realizadas durante a reforma da Assistência em 1904, uma das primeiras preocupações de Juliano Moreira tenha sido a organização do arquivo do HNA, assegurando a conservação dos documentos referentes ao estabelecimento e, sobretudo, aos pacientes ali internados. Dessa forma, ao estabelecer critérios de classificação das doenças mentais, torna-se possível fazer um mapeamento do corpo social. Com Moreira, é possível dizer que se estabelece no Brasil uma efetiva biologização dos fatos sociais. Considerando que as condições de vida, tais como a pobreza e as aglomerações urbanas, assim como defendia Kraepelin, estavam intimamente relacionadas ao surgimento das doenças mentais, Juliano Moreira elege o meio social como o sumário 300 Marxismo. espaço privilegiado de intervenção psiquiátrica. Em suma, seguindo os passos da psiquiatria kraepeliana, o que se buscava era explicar as complexas relações entre fatos sociais e as transformações biológicas segundo as quais se produzem as enfermidades, debilitam-se os corpos e degeneram-se as famílias e as raças (CAPONI, 2012, p. 128). Enfim, de acordo com Juliano Moreira, para doenças sociais convinham também tratamentos sociais. Por isso mesmo era necessário montar frentes de ação em escolas, quartéis, na família como um todo, a fim de esclarecer os males que o alcoolismo, a sífilis e a epilepsia, por exemplo, poderiam causar ao indivíduo e à sociedade. O combate ao álcool, por exemplo, tornava-se uma maneira de combater, consequentemente, a criminalidade, a “vadiagem” e a “mendicidade”. De forma geral, a ideia era evitar o desenvolvimento das doenças mentais. Seria interessante discutir de forma mais aprofundada a constituição de saberes e práticas sobre a epilepsia, o alcoolismo e a sífilis no Brasil naquela época. Não obstante, o que mais importa neste momento é compreender como as práticas de controle e tratamento especializado dessas categorias de “anormais”, revelam a postura adotada em relação aos degenerados. A partir disso é possível perceber claramente o processo de patologização dos anormais, transformados em doentes mentais, às vezes unicamente pelo fato de serem considerados perigosos para a segurança pública e para o restante da sociedade. Ao contrário do que pensava Nina Rodrigues, que associava tais enfermidades à miscigenação, Moreira mostra como os males sociais, dentre eles a sífilis, o alcoolismo e a epilepsia, estão mais diretamente vinculados à degeneração dos povos do que propriamente a raça. Em termos de uma psiquiatria biológica, considerando que tais elementos sociais poderiam ser transmitidos hereditariamente, aumentando seu grau de morbidade de geração em geração, Juliano Moreira, assim como Kraepelin, pretendia criar intervenções concretas no espaço social sumário 301 Marxismo. capazes de antecipar e prevenir desvios de comportamentos e patologias mentais (CAPONI, 2012, p. 144). Assim, o modelo de psiquiatria ampliada tinha como norte a antecipação e a profilaxia de quaisquer desvios mentais que pudessem vir a se manifestar futuramente. CONSIDERAÇÕES FINAIS O que se depreende de tudo o que foi dito é que com Juliano Moreira a psiquiatria brasileira vai distanciando do alienismo francês e se aproximando cada vez mais do alienismo alemão. Neste sentido, não apenas os estabelecimentos fechados constituem os espaços, por excelência, de assistência aos alienados, a psiquiatria torna-se cada vez mais universal e ampliada ao eleger novos espaços de intervenção, muito deles não institucionalizados. Além disso, a psiquiatria brasileira, embora fortemente influenciada pelo pensamento alemão, ganha, aos poucos, uma característica nacional, com a grande preocupação em analisar a relação entre as peculiaridades etnográficas e sociais do país e o desenvolvimento das doenças mentais. Dessa forma, além de uma grande reforma administrativa, Juliano Moreira desempenhou um papel de grande importância na constituição de uma escola psiquiátrica no Brasil. De acordo com José Leme Lopes: Juliano Moreira trazia da Bahia e de sua experiência europeia uma formação médica e científica, à qual sua personalidade daria atrativo de sedução para os jovens esculápios e estudantes, que se aproximaram do Hospício, em fase de renovação (LOPES, 1964, p. 9). Preocupou-se com a organização dos seus quadros técnicos, se ocupando da formação dos profissionais, chefes de serviços e seus assistentes, reunindo à sua volta um cabedal de profissionais que figura até hoje dentre os maiores nomes da psiquiatria brasileira. Lopes destaca ainda que Juliano Moreira estava sempre disponível, dado que sua sala, que sumário 302 Marxismo. se encontrava logo à esquerda da entrada principal do HNA, permanecia sempre de portas abertas. Assim, sentado à grande mesa, Juliano Moreira atendia aos que o procuravam (LOPES, 1964, p. 9). Durante todo o tempo em que permaneceu na direção da Assistência a Alienados seu espírito esteve voltado não apenas para os problemas médicos, mas, em grande medida, para as questões sociais. Estava preocupado, sobretudo, em estabelecer uma relação direta entre os problemas sociais e o aparecimento das moléstias mentais, com atenção especial para o alcoolismo, a sífilis e a epilepsia. Sua inquietação patriótica e social era tamanha que foi um dos primeiros a defender a imigração no Brasil, especialmente a nipônica, tão vilipendiada na época, por considerar que a degeneração não estava relacionada às questões de raça como se pensava. REFERÊNCIAS CAPONI, Sandra. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2012. LOPES, José Leme. Juliano Moreira. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, 1964, p. 3-19. MEMORIAL Juliano Moreira: O mestre, a instituição. Salvador: Empresa gráfica da Bahia, 2007. MOREIRA, Juliano. Assistência aos epilépticos: colônias para eles. Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins. Rio de Janeiro, n. 2, p. 167-182, 1905. MOREIRA. Juliano. As diretrizes da higiene mental entre nós. Revista de Medicina e Higiene Militar, 1922. MOREIRA. Juliano. Quais os melhores meios de assistência a alienados? Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal. Rio de Janeiro, ano VI, v.1-2, p. 373-396, 1910. ODA, A. M. G. R. A teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira: contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira. sumário 303 Marxismo. Psychiatry On-line Brazil – part of The International Journal of Psychiatry, v. 6, n. 12, dec. 2001. Disponível em: http://www.polbr.med.br/ano01/wal1201. php. Acesso em 31 de janeiro de 2021. PASSOS. Alexandre. Juliano Moreira: Vida e obra. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1975. VENANCIO, Ana Teresa A. Doença mental, raça e sexualidade nas teorias psiquiátricas de Juliano Moreira. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 14 (2), p. 283-305, 2004. sumário 304 Marxismo. SOBRE OS ORGANIZADORES Maro Lara Martins possui graduação em História pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestrado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-UERJ). Realiza estágio pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Atualmente, é Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenador do Núcleo de Teoria Social e Interpretação do Brasil (Netsib-UFES). Membro da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), da Associação Nacional de História (ANPUH) e da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH). Áreas de interesse: Pensamento Social Brasileiro, Teoria Social e Sociologia Histórica. Lara Sartório doutorado em andamento em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ) com estágio sanduíche na Facultad de Ciencias Políticas y Sociología da Universidad Complutense de Madrid (UCM). Foi Professora Substituta do Departamento de Ciências Sociais da UFES. Possui aperfeiçoamento em Estudos Urbanos Comparados, 6th RC21-IJJUR Doctoral School Comparative Urban Studies, em New Delhi University, com bolsa do IJJUR Foundation (2019). Cursa Bacharelado em Direito (2018 -) na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É mestre em Sociologia Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ), com bolsa Nota 10 FAPERJ. Possui graduação em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2014). Tem experiência na área de fotojornalismo e jornalismo de correspondência política na Palestina e outras zonas do Oriente Médio, por meio da Revista Caros Amigos (2014). Áreas de interesse: Teoria Sociológica,Teoria Política, Teoria dos Movimentos Sociais, Violência, Afetos, Autoritarismo, Teoria do Sujeito, Segurança Pública, Gênero. Lívia Rangel é historiadora e professora de História. Pós-doutora pela UFES. Integra a equipe de trabalho do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG/UFES). É doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa CNPq. Fez estágio de pesquisa financiado pela Capes na Universidad de Buenos Aires (UBA). É mestra em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduada em sumário 305 Marxismo. História, licenciatura e bacharelado, pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Possui experiência em salas de aula do Ensino Básico e do Ensino Superior (graduação e pós-graduação). Foi professora efetiva da rede pública de ensino do Estado do Espírito Santo (SEDU) e docente temporária do IFES. Dedica-se a temas e abordagens relacionados principalmente às questões de Gênero e aos Estudos Feministas, com linhas de interesse que dialogam com a História Cultural, a História dos Intelectuais e a Nova História Política, com ênfase no Brasil República e na América Latina Contemporânea. Atualmente, é doutoranda em Artes Visuais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde desenvolve um projeto sobre transnacionalidade e estéticas feministas na trajetória e na obra de mulheres fotógrafas latino-americanas. É idealizadora e colaboradora do @mulheresdeescrita e pesquisadora-colaboradora do @palcohistoria. Filipe Monteiro é doutor pelo Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (2016); mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011); concluiu bacharelado e licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Atualmente realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia (PPHIST) da Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de História do Brasil, História do Pensamento Social (Com ênfase no debate racial do século XIX); História do Brasil Império; História das Ciências e da Saúde; messianismos e milenarismos no Brasil; Pesquisa textual e iconográfica; jornalismo e editoração. sumário 306 Marxismo. SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS Alan Caldas é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (2007), Mestre em Ciências Sociais pela mesma instituição (2012) e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. É autor do livro: Valentia e linhagem: uma história da capoeira, publicado em 2017, pela editora Appris. Pesquisa nas áreas de Sociologia da Cultura e Pensamento Social Brasileiro. Eduardo Russo Ramos é Mestre e Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR e integrante do grupo de pesquisa “Cultura, Política e Movimentos Sociais na América Latina”, contemplado com bolsa do Programa de Demanda Social da CAPES – código de financiamento 001. E-mail: ramos.eduardorusso@gmail.com Emilly Gabriela Menezes Franco é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail: emillygmfranco@gmail.com Fernanda Reis Nunes Pereira é graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: reisnunespereira@gmail.com Gabriel Felipe Oliveira de Mello é doutorando em História pelo Programa de Pós Graduação em História Social (PPGHIS-UFRJ). Mestre em História pelo mesmo programa (2020) e graduado em História (licenciatura e bacharel) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mantém interesse nas áreas de História do Brasil Republicano, História Intelectual e Ciência Política, com ênfase nos estudos sobre Pensamento Político Brasileiro entre as décadas de 1930 e 1970, com enfoques em temáticas como nação, nacionalismo, modernidade, dependência e consciência histórica. No mestrado estudou a produção de intelectuais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), especialmente a do sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos, tendo como foco a investigação do conceito de história na obra do referido autor. Atualmente vem pesquisando o conceito de nação a partir do imaginário político do “Brasil Potência” presente na produção de intelectuais brasileiros no período entre 1930 e 1980. É membro da Comunidade de Estudos de Teoria e História da Historiografia (COMUM) da UERJ. sumário 307 Marxismo. Gustavo Guimarães é Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. E-mail: gustavognascimento9@gmail.com Itamá Winicius do Nascimento Silva é graduado em Ciências Sociais/Licenciatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGS-UFPE). Marcello Amorim Vieira é graduando em Direito pela Universidade Vila Velha (UVV) e História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisador do Laboratório de História das Interações Político-institucionais da UFES (HISPOLIS - UFES). E-mail: marcello.amorim@outlook.com Matheus de Carvalho Barros é graduando em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Micheli Longo Dorigan é graduanda em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá e bolsista PIBIC/CNPq-FA-UEM. Orientador: Prof. Dr. Hilton Costa. Nikolas Pallisser Silva é doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, com bolsa CAPES e sob a orientação do professor Dr. Valter Roberto Silvério. Mestre em Sociologia pelo mesmo programa, sob a orientação da profa. Dra. Priscila Martins Medeiros (2017-2019), com bolsa do CNPq. Graduado em Ciências Sociais (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Estadual de Londrina, sob a orientação da profa. Dra. Maria Nilza da Silva. Foi bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), 2012/14. Foi bolsista do Programa de Apoio à Permanência PROPE-UEL entre 2014/16, na qualidade de estudante de graduação e posteriormente, como recém-formado (2016/17 e 2019/20). Desde 2012 integra o Laboratório de Estudos e Cultura Afro-Brasileiros (LEAFRO-UEL) e desde de 2013 integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UEL (NEAB-UEL). Recentemente, juntamente com a Dra. Mariana dos Santos Panta, foi monitor do Curso de Introdução ao Estudo das Relações Étnico-Raciais, ofertado pelo NEAB-UEL, aos estudantes de graduação e coordenado pela professora titular do dpto. de Ciências Sociais da UEL Dra. Maria Nilza da Silva. Tem atuado principalmente com os seguintes temas: Sociologia das Relações Étnico-Raciais, Ações Afirmativas, Trajetórias de Personalidades Negras, Racismo e Pensamento Social Brasileiro. sumário 308 Marxismo. Patrícia Amorim Weber é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, desenvolve o projeto intitulado “Os intelectuais e a política: uma análise sobre a relação entre intelectuais negros brasileiros e o processo de democratização da política brasileira (1985-2010)”, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atualmente é membro do grupo de pesquisa Sociologia e Estudos da Diáspora Africana, vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (NEAB/UFSCar) e Assistente Editorial da Revista Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. Em 2020, formou-se bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), tendo desenvolvido a pesquisa de Iniciação Científica intitulada “A teoria social moderna em questão: uma análise crítica a partir das lentes de Frantz Fanon e Guerreiro Ramos”, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (projeto n°800939/2018-2). Tem interesses nas áreas de Sociologia das Relações Raciais, Teoria Pós-colonial, Teoria Social, Sociologia dos Intelectuais e Racismo Epistêmico. Renata Peixoto de Oliveira possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003), mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (2005) e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011). Fez estágio de doutorado na University of Florida (2008) em Gainesville, Florida, EUA. Foi professora visitante (2011-2012) e professora adjunta (2012-2013) do curso de Ciência Política Sociologia, além de coordenadora deste curso de graduação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) em Foz do Iguaçu, Paraná. Também atuou como Chefe do Departamento de Pós-Graduação da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (2013). É professora permanente do Mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento (PPG-PPD). É membra do Comitê Executivo pela Equidade de Gênero e Diversidade na UNILA. Foi professora a permanente do Programa de Mestrado Integração Contemporânea na América Latina (PPG-ICAL) de 2014 até 2021, também tendo sido sua coordenadora (2020-2021). Foi coordenadora do Grupo de Pesquisa Democratização na América Latina em Perspectiva comparada (DALC) da Associação Latino-Americana de Ciência Política (ALACIP). Também é líder de grupo de pesquisa Centro de Estudos Políticos e Internacionais da América do Sul (CESPI-América do Sul) da UNILA. Participou da Rede Brasileira de Pesquisadores Latino-americanistas e Caribeanistas (Rede- BLAC) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) entre 2018-2021. É pesquisadora associada ao Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura, o CLAEC. Atua na área de Ciência Política, com ênfase em Política Internacional e Comparada e estudos latino-americanos, atuando principalmente com os seguintes temas: Neoliberalismo, sistemas políticos, democracia e Política Externa, região Andina. sumário 309 Marxismo. Sofia Viegas Duarte é graduanda de Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC – MG). E-mail: sviegasd@gmail.com Steffane Pereira Santos é graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: reisnunespereira@gmail.com Stephany Dayana Pereira Mencato é doutoranda bolsista do CNPq em Ciência Política pela UFMG. Mestra em Integração Contemporânea da América Latina pela UNILA (2020). Especialista em Direitos Humanos da América Latina (2019) e especialista em Relações Internacionais Contemporâneas (2017). Licenciada em Pedagogia (2022); bacharel em Ciências Políticas e Sociologia sociedade, estado e política na América Latina (2020); bacharel em Direito (2011). Advogada com registro junto a OAB/PR (2012). Ex-presidente da Comissão de Sexualidade e Gênero da OAB/FI (2017-2018). Professora convidada junto a UNIOESTE (2019). Com estágios docentes junto a UFMG (2021/2022) e UNILA (2018). Sylvia Iasulaitis é professora da Universidade Federal de São Carlos. Docente permanente dos Programas de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade e de Ciência da Informação. É vice-coordenadora do curso de Ciências Sociais. Lidera o Interfaces - Núcleo de Estudos Sociopolíticos dos Algoritmos e da Inteligência Artificial, certificado pelo CNPq. Doutora em Ciência Política (UFSCar), com estágio doutoral na Facultad de Ciéncias de la Información da Universidad Complutense de Madrid (SWE-CNPq). Foi Visiting Scholar no Internet Interdisciplinary Institute - IN3, instituto coordenado pelo prof. Dr. Manuel Castells em Barcelona. Foi pesquisadora em mobilidade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre em Ciências Sociais (UFSCar) e graduada em Ciências Sociais (Bacharelado e Licenciatura Plena) pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Possui as seguintes formações complementares: Pós-Graduação Latu Sensu em Data Science (Especialização em curso pela UFSCar); Social Network Analysis pela Universidade de São Paulo (USP) em convênio com a University College London; Computação Científica e Análise de Dados (linguagem Python) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Estatística para Data Science com R (UFRGS/UFSCar). Atua nas áreas de Ciência Social Computacional e Ciência de Dados. Suas pesquisas versam sobre cultura algorítmica, usos políticos das Tecnologias de Informação e Comunicação, estudos interdisciplinares de Web, Internet, Algoritmos, Inteligência Artificial, Open Data e estudos interseccionais e decoloniais sobre desigualdades. Recebeu o primeiro prêmio sumário 310 Marxismo. Investigación Relevante da edição das distinções acadêmicas da Asociación Latinoamericana de Investigadores en Campañas Electorales (ALICE). É formada no protocolo Mindfulness-Based Health Promotion (MBHP). Telmo Renato da Silva Araújo possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista- UNESP (2000) e mestrado em História pela mesma instituição (2003). Atualmente cursa doutorado em História no Programa de Pós Graduação em História Social da Amazônia da UFPA - PPHIST, Foi professor da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC) entre os anos de 2006-2015. É docente efetivo da Universidade do Estado do Pará (UEPA) onde coordenou o campus XIV - Moju desta mesma instituição no biênio 2013-2015. Tem experiência na área da História, com ênfase na História do Pensamento Racial Latino-americano do século XIX. Atua nas seguintes áreas: História da América Latina, História da Educação Brasileira e História do Pensamento. Tem capítulo publicado no livro “José Veríssimo: raça, cultura e educação”, lançado em 2007, pela editor a UFPA, intitulado “Sob a luz do livre arbítrio: raça, mestiçagem e criminalidade”. Também publicou artigos em diversas revistas científicas. Participa de projetos de pesquisa em parceria com investigadores da UFPA na área da História da educação e da infância na Amazônia e no rastro desses estudos publicou recentemente no livro História da Educação na Amazônia: múltiplos sujeitos e práticas educacionais o capitulo “criminalidade infantil e educação militar no Pará em finais do século XIX”. Thomaz José Portugal Coelho e Santos é mestre em Sociologia Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Cândido Mendes e professor do Centro Universitário de Barra Mansa. E-mail: tjose.portugal@gmail.com William Vaz de Oliveira possui graduação em Historia pela Universidade Federal de Uberlândia (2007), graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (2010), mestrado em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (2009), Doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (2013) e Pós-Doutorado pelo Institute of Advanced Studies da University College London (2019-2020). Atualmente é professor Adjunto I do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (Cap-UERJ), atuando tanto na graduação/formação de professores, quanto no ensino médio. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: história do Brasil contemporâneo, história das ciências, história da medicina, história dos saberes e práticas psi, prática de ensino de História e formação de professores de História. sumário 311 Marxismo. ÍNDICE REMISSIVO A áreas temáticas 12 Arte 12 atemporalidade 105, 177 autoconsciência emancipatória 105, 195 B Brasil Contemporâneo 12, 54, 267, 268, 286 brasilidade revolucionária 16, 17, 29, 30, 31, 33 Brasil peculiar 266 C campo intelectual 158, 159 capitalismo 14, 32, 54, 55, 56, 58, 64, 74, 76, 77, 78, 79, 84, 91, 94, 119, 122, 141, 144, 145, 147, 149, 150, 151, 152, 153, 155, 192, 210 capitalismo periférico 14, 55, 64, 91 características sociais 266 categorias científicas 232 Ciências Sociais 12, 36, 118, 119, 154, 174, 182, 189, 213, 246, 247, 305, 307, 308, 309, 310 classes sociais 46, 51, 73, 157, 192 colonialidade 117, 130, 210, 232, 233, 234, 241, 246 colonialismo 166, 232, 233, 237 conceito 30, 31, 32, 33, 56, 61, 62, 76, 84, 98, 104, 118, 143, 144, 146, 148, 149, 152, 153, 155, 157, 158, 159, 162, 166, 173, 183, 184, 193, 194, 204, 209, 213, 226, 233, 236, 240, 241, 244, 246, 270, 273, 307 concepção histórica 87 contexto colonial 231, 232, 234, 239, 243 sumário criminalidade 216, 248, 249, 251, 258, 260, 261, 262, 301, 311 D degenerescência 105, 248, 249, 258, 259, 262, 298, 303 democracia racial 104, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 179, 181, 188, 210, 214, 218, 226, 227, 228 Direito 14, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 64, 65, 66, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 247, 263, 305, 308, 310 direitos trabalhistas 104, 107, 108, 110, 112, 114, 115, 118 discriminação racial 170, 182, 212 E Economia 12, 68, 84, 118, 141, 154, 200, 271, 286 Educação 12, 14, 23, 35, 36, 189, 311 elaboração social 144 elites senhoriais 156, 161 empregadas domésticas 104, 107 epistemologia colonizada 233, 243 esforço teórico 39 estudo 16, 18, 19, 26, 27, 28, 29, 31, 57, 62, 73, 78, 84, 108, 154, 175, 198, 214, 233, 242, 250, 264, 289, 296, 300 F famoso racismo 212 feminista 121, 122, 124, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 140, 141, 144, 145, 146, 152, 154, 179 312 Marxismo. feministas 104, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 128, 129, 130, 131, 132, 134, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 267, 306 funções sociais 156, 157 N G O gênero 104, 108, 129, 130, 131, 140, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 150, 151, 152, 153, 155, 176, 179, 182, 184, 185, 187, 188, 189, 213, 259 ondas feministas 104, 120, 140 I identidade brasileira 213, 214, 217, 220, 228 impacto ideológico 14, 55, 58 implicações econômicas 232 intelectuais militantes 158 intelectual abordado 232 intelectual amefricana 105, 177, 179 intelectualidade pecebista 41 Internacional Comunista 40, 41 Intérpretes 12 L Literatura 12, 34, 38 livre arbítrio 248, 250, 252, 253, 254, 262, 311 M majoritariamente 42, 126, 180, 186, 215 marxismo 14, 15, 24, 33, 35, 37, 39, 40, 41, 42, 45, 46, 49, 52, 53, 54, 68, 69, 72, 73, 74, 75, 78, 80, 81, 82, 83, 84, 150 marxismo autóctone 14, 39, 41, 42, 46, 49, 53 marxismo-leninismo 40, 52 materialismo histórico 38, 64, 67, 78, 80, 104 miscigenação 158, 163, 166, 171, 174, 212, 216, 217, 218, 219, 221, 222, 227, 228, 256, 260, 268, 272, 273, 274, 298, 301 mistura racial 213, 216 Modernidades 12 Modernismos 12 sumário nacionalidade 30, 191, 192, 193, 208, 209, 220, 221, 258, 298 Nacionalismos 12 P paradigma biológico 157 passado escravista 104, 107 peculiaridades 145, 259, 266, 283, 302 pensamento 12, 14, 19, 20, 21, 30, 34, 35, 38, 40, 42, 48, 52, 56, 59, 62, 64, 81, 83, 86, 90, 93, 94, 104, 105, 106, 125, 143, 152, 154, 165, 167, 175, 176, 182, 183, 187, 196, 200, 203, 210, 214, 216, 221, 224, 234, 236, 244, 248, 263, 282, 290, 294, 297, 298, 299, 300, 302 pensamento social 12, 14, 30, 40, 42, 48, 52, 104, 176, 182, 187, 221, 248 perspectiva marxista 144 pessoas racistas 214 pioneirismo 22, 40, 45, 46, 105, 146, 154, 177, 184 pluralismo jurídico 15, 87, 89, 100, 101 Pluralismo Jurídico 14, 56, 57, 59, 60, 61, 64, 66, 87, 88, 89, 97, 98, 102 políticas 17, 25, 51, 59, 60, 70, 72, 79, 100, 132, 134, 140, 142, 158, 160, 200, 210, 220, 232, 234, 267, 283, 285, 299 positivação normativa 56, 99 preconceito 170, 176, 197, 205, 208, 214, 215, 217, 221, 224, 225, 226, 266 produção capitalista 57 Q questão racial 105, 168, 175, 191, 194, 196, 197, 199, 200, 201, 204, 211, 213, 215, 228, 265, 291 313 Marxismo. R raça 103, 104, 105, 129, 141, 145, 150, 152, 154, 163, 170, 176, 179, 181, 182, 184, 185, 187, 188, 189, 193, 194, 195, 204, 209, 211, 213, 214, 216, 217, 218, 222, 224, 226, 227, 230, 235, 237, 245, 248, 250, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 261, 263, 264, 271, 276, 297, 298, 301, 303, 304, 311 Raça 12 realidade social 41, 59, 116, 196, 205, 215 reivindicações sufragistas 121 relações intelectuais 17, 18, 28, 29, 33 S sistematizar 17, 149, 173 sociabilidade 15, 87, 97, 105, 214, 222, 230 socialmente condicionados 232 sumário sociedade brasileira 22, 26, 31, 40, 46, 47, 52, 53, 63, 88, 91, 94, 98, 105, 106, 118, 145, 167, 169, 170, 171, 180, 182, 200, 202, 228, 244, 263, 267, 269, 270, 274, 277, 278, 280, 281, 282, 283, 284 superestrutura jurídica 14, 55, 56, 58, 60, 64 T teorias evolucionistas 213, 217, 249 teoria social 105, 146, 231, 235, 246, 247, 267, 309 trajetória científica 144 trajetória intelectual 15, 20 V vernizes científicos 158, 162 314