Desigualdades,
Direitos
e Pandemia
Organizadores:
Felipe da Silva Freitas, Malu Stanchi
e Amanda Pimentel
Observatório Direitos Humanos e Crise Covid-19
O Observatório produz e sistematiza informações referentes aos direitos
humanos no contexto da pandemia do Coronavírus no Brasil.
Desigualdades, Direitos e Pandemia. Brasil, dezembro de 2021.
Observação: Esse material está disponível somente em formato digital.
Fazem parte do Observatório:
Anistia Internacional
Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
Articulação de redes e entidades nacionais para o enfrentamento da
pandemia nas periferias e grupos vulneráveis
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Artigo 19
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais
e Intersexos (ABGLT)
Associação dos Jovens Indígenas Tapeba - CE
Associação Juízes para a Democracia (AJD)
Campanha Despejo Zero
Cedeca Gloria de Ivone, TO - Observatório Popular de Direitos Humanos
Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará - Cedenpa
Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)
Cineclube Comunitário do Povo/Comitê de Solidariedade do Povo - BA
Coalizão Negra de Direitos
Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência
Conectas
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (Conaq)
Criola
Eu Amo Minha Quebrada - BH
Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso (FDHT)
Fórum Nacional em Defesa do Sistema Único de Assistência Social e da
Seguridade Social
Frente de Mobilização da Maré contra COVID-19
Geledés Instituto da Mulher Negra
Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Justiça Global
Movimento de Defesa dos Direitos dos Moradores em Núcleos
Habitacionais de S. André – MDDF/SP
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Movimento Unido dos Camelôs (MUCA)
Nós, mulheres da Periferia - SP
Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Núcleo de Prática Jurídica da UFPR
Observa Pop Rua - DF
Observatório do Marajó
Observatório Popular de Direitos Humanos de Pernambuco (OPDH)
Observatório - UNICAMP
Plataforma Brasileira de Direitos Humanos (DHESCA)
SOS Corpo
SOS Providência - RJ
Teia Solidariedade da Zona Oeste - RJ
Terra de Direitos.
Sumário
Apresentação
04
Introdução
06
1
Impactos econômicos da pandemia:
renda, trabalho e desigualdades
10
Impactos econômicos da pandemia sobre renda e trabalho no Brasil (Ian Prates)
12
A palavra dos movimentos: Desafios da luta por direito
em tempos pandêmicos (Darci Frigo)
16
2
Orçamento e os efeitos da crise
Orçamento Público e a Crise agravada
pela Pandemia (Cleo Manhas)
20
O orçamento público, o desenvolvimento
e a garantia de direitos (Roseli Faria)
30
A derrota do SUS em meio à pandemia
(Jean Peres)
36
4
Desigualdades, direitos e pandemia | Sumário
3
Violações a Direitos Humanos no contexto
da pandemia: as responsabilidades
40
públicas na gestão da saúde
Direito à Saúde e a Resposta Brasileira à Pandemia da
Covid-19 (Fernando Aith)
42
As (ir)responsabilidades públicas na gestão
da saúde no contexto da pandemia de Covid-19 (Edna
Maria de Araujo)
48
A palavra dos movimentos: A importância dos
webinários na construção de uma agenda de direitos
51
Considerações finais
52
Desafios e recomendações: pontes para
saída da crise
54
Referências
56
Autoras e Autores
58
Sumário | Desigualdades, direitos e pandemia
5
Apresentação
O Observatório de Direitos Humanos – Crise e COVID-19, nasceu do
posicionamento de 35 organizações e movimentos sociais de diferentes
campos de luta, convencidas de que as crises sanitárias, políticas, econômicas e sociais aprofundaram-se pela pandemia do novo Coronavírus (Covid-19)1. Seu foco está voltado à promoção de articulação, comunicação e
pesquisa em direitos humanos.
No âmbito do Observatório, foram promovidas ações e produzidas pesquisas de incidência política, abordando: i) a estruturação dos serviços públicos e o impacto da crise sanitária no agravamento das violações de direitos humanos; ii) as respostas das 10 cidades mais afetadas por números
absolutos de óbitos pelo vírus em termos de estrutura básica de políticas
públicas em saúde da população negra, quilombola e indígena, segurança
alimentar e nutricional e enfrentamento à violência contra mulheres; iii) as
diretrizes de vacinação desenvolvidas para a proteção dos grupos mais vulnerabilizados, que têm sofrido uma total desassistência com o avanço da
crise amplificada pela doença; iv) questionamentos sobre as ações e omissões do governo brasileiro no enfrentamento da pandemia.
Com vistas à projeção de ações coordenadas para a efetivação dos direitos humanos e à superação do atual cenário político, econômico, social e de saúde pública, agravado com a Covid-19, o Observatório realizou,
entre agosto e setembro de 2020, uma série de três Webinários sobre as
saídas para a crise vivida no contexto da pandemia refletindo sobre diferentes aspectos dos direitos humanos e sobre os caminhos possíveis para
corrigir desigualdades e promover direitos sociais.
Foram debates riquíssimos que viabilizaram análises sobre o tema das
desigualdades e, o mais importante, que trouxeram indicativos para as lutas políticas que se apresentam para os próximos anos no campo da luta
1
Mais informações sobre o Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid pode ser encontrada no seguinte endereço: https://observadhecovid.org.br
6
Desigualdades, direitos e pandemia | Apresentação
por direitos. A síntese destes debates foi apresentada em informes veiculados no site do Observatório e agora está aqui publicado na íntegra com
os textos das expositoras e expositores dos Webinários.
Com isso, esperamos contribuir com o debate público para a construção de uma agenda em favor dos direitos, da democracia, da igualdade e,
sobretudo, na defesa da vida.
Apresentação | Desigualdades, direitos e pandemia
7
Introdução
Os textos que compõem esta publicação representam uma síntese dos debates realizados no âmbito dos webinários e informativos organizados pelo Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid ao longo do ano de 2021. Os artigos privilegiaram abordar temas-chaves do
campo dos direitos humanos e dos direitos sociais, como saúde pública, assistência social, emprego e orçamento público, enfatizando os impactos da pandemia e das ações do governo federal nessas agendas
no período e propondo saídas coletivas para superação da crise que
enfrentamos atualmente.
O livro está dividido em três partes. Na primeira apresentamos o tema
dos Impactos econômicos da pandemia no que diz respeito à renda e ao
trabalho, demonstrando de que modo a recessão econômica acirrou desigualdades históricas; na segunda parte aprofundamos o debate sobre a
repartição do recurso público no cenário de emergência sanitária e, por
fim, na parte três cotejamos as responsabilidades jurídicas das autoridades públicas na gestão da pandemia de Covid-19 e indicamos os impactos
da má gestão federal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A publicação conta ainda com depoimentos dos membros do Observatório - Darci Frigo e Paulo Mariante - que mediaram as discussões nos webinários e
apresentaram suas impressões sobre o debate promovido.
No artigo “Os impactos econômicos da pandemia sobre renda e trabalho no Brasil, escrito por Ian Prates, discute-se como a ausência de
ações públicas emergenciais para proteger a renda dos trabalhadores e
trabalhadoras, ao lado da redução dos postos de trabalho, e da previsível desaceleração econômica vivida no contexto de crise, aprofundaram
as desigualdades. A partir de uma abordagem interdisciplinar, discute-se
neste texto como medidas paliativas, embora necessárias, são insuficientes para fazer frente ao tamanho dos desafios impostos pela pandemia e como é necessário construir políticas de Estado fortes e eficazes,
capazes de integrar diferentes frentes de ação de governo e de propor
8
Desigualdades, direitos e pandemia | Introdução
Foto: Artur Luiz
novos patamares políticos para a discussão sobre a superação da pobreza, da fome e do vergonhoso abismo econômico e social.
O tema da desigualdade reaparece na reflexão sobre orçamento público no artigo produzido por Cléo Manhas com o título “Orçamento Público
e a Crise agravada pela Pandemia”. O texto aponta para a posição estratégica do orçamento governamental na gestão das medidas de enfrentamento a pandemia, mas também da elaboração de ações de prevenção
e fortalecimento das políticas públicas em geral, alertando ainda para o
descaso das ações do Governo Federal no contexto da pandemia, gastando recursos públicos com remédios ineficazes, atrasando a compra de
vacinas e desqualificando seus efeitos.
O mesmo aspecto é também enfatizado por Roseli Farias no artigo “O
orçamento público, o desenvolvimento e a garantia de direitos”. A partir
da reflexão sobre gasto público e políticas sociais, a autora analisa como
os direitos da população foram impactados durante a pandemia e aponta
a necessidade de uma uma reforma tributária progressiva que permita,
por um lado, desonerar a carga de impostos da população mais pobre, e,
por outro, ampliar as políticas sociais que reduzam a desigualdade, como
as de transferência de renda, saúde e educação.
Introdução | Desigualdades, direitos e pandemia
9
Por fim, temos ainda neste bloco o texto de Jean Peres, “A derrota do
SUS em meio à pandemia”. O artigo, debatido a partir de dados coletados
junto a Secretaria do Tesouro Nacional, sugere que o SUS foi o grande
derrotado neste contexto de pandemia e que empresas privadas de todas
as naturezas, sejam fornecedoras de insumos, de medicamentos, importadoras de equipamentos, entidades de saúde, foram as grandes beneficiadas com as escolhas na aplicação e manejo das verbas públicas da
área. De maneira clara e objetiva, o autor interroga o fatiamento do recurso público dentro e fora do cenário de pandemia e provoca a necessidade
de formação, discussão e controle social sobre esses assuntos.
Na etapa derradeira do livro temos ainda dois artigos que cuidam do tema
da responsabilização dos agentes públicos que se omitiram na gestão da
pandemia e dos impactos dessas escolhas equivocadas (e por muitas vezes criminosas) em termos de finanças públicas, direitos e políticas sociais.
No texto Direito à Saúde e a Resposta Brasileira à pandemia da Covid-19,
escrito por Fernando Aith, discute-se como o Governo Federal foi, a um só
Foto: Ron Iligan
10
Desigualdades, direitos e pandemia | Introdução
tempo, ausente e displicente na gestão da saúde no contexto da pandemia.
Ao apresentar um monitoramento normativo das respostas governamentais
à pandemia, o autor apontou que as medidas propostas pelo governo do
presidente Jair Bolsonaro adotaram uma estratégia de atuação institucional
favorável à propagação do vírus, ao propagar a ideia de que a “imunidade de
rebanho” seria uma resposta eficaz para combater à doença.
Tal realidade também está descrita no artigo de Edna Maria de Araújo,
“As (ir)responsabilidades públicas na gestão da saúde no contexto da pandemia da Covid-19”, onde a autora aponta para os impactos causados pela
Emenda Constitucional 95, que estabelece um teto para os gastos públicos,
na gestão da saúde da pandemia. A limitação dos recursos na área, segundo a autora, implicou em redução de programas, número de profissionais e
infraestrutura básica, fazendo com que uma grande parcela da população,
em especial à população negra e pobre, ficasse desassistida do acesso à
saúde em um período tão difícil, como é a pandemia.
Assim, o que vimos nesses quase dois anos de pandemia foi que este
período afetou profundamente não apenas a saúde humana, como também setores públicos e privados das mais diversas áreas. Da saúde e assistência social à economia, o impacto da pandemia foi sentido por todos!
Contudo, apesar de a crise instalada pelo coronavírus apresentar efeitos
em todas as áreas, os seus efeitos poderiam ter sido minimizados pela
ação dos governos. No caso do Brasil, onde convivemos com uma gestão
altamente contrária aos direitos sociais e humanos das populações mais
vulneráveis, as medidas tomadas pelo Governo Federal foram não apenas
ineficazes, como igualmente criminosas, ao optarem pelo irrisório investimento em vacinação e em políticas de redistribuição social que poderiam
auxiliar a população neste período.
Diante deste cenário, é preciso que as forças políticas progressistas,
as organizações da sociedade civil e movimentos sociais organizados se
unam contra os abusos promovidos pelo atual governo e atuem cada vez
mais em prol do fortalecimento de uma agenda política que priorize os direitos humanos e as populações mais vulneráveis socialmente. A iniciativa
do Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid é, nesse sentido, uma
das experiências que busca firmar essa coalizão de organizações e atuar
de forma conjunta para que essa agenda se consolide.
Introdução | Desigualdades, direitos e pandemia
11
Foto: Avelino Regicida
12
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 1
PA RT E 1
Impactos econômicos
da pandemia:
renda, trabalho
e desigualdades
Parte 1 | Desigualdades, direitos e pandemia
13
Impactos econômicos da pandemia
sobre renda e trabalho no Brasil
Ian Prates
Doutor em sociologia pela USP (Universidade
de São Paulo), pesquisador do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento) e daSAI
(Social Accountability International).
Quando a pandemia da Covid-19 se tornou a principal preocupação mundial nos primeiros meses de 2020, o cenário era de vasto desconhecimento
sobre a sua duração e os seus reais impactos. Mas, gradativamente, ficou claro que os efeitos socioeconômicos gerados pela pandemia seriam não apenas
mais severos, como também distintos das crises econômicas pregressas.
Não por acaso, ainda em março de 2020, a Organização Internacional
do Trabalho (OIT), em seu primeiro boletim de monitoramento da Covid-19,2 alertou que os efeitos da pandemia sobre a renda e emprego seriam
particularmente mais fortes para grupos sociais minoritários, como negros e pobres. A vulnerabilidade frente à iminente crise estava longe de
ser democrática e aprofundaria desigualdades pré-existentes.
O Brasil não fugiu à regra, mas com um agravante adicional. A pandemia bateu à nossa porta depois de termos experimentado nossa maior crise
desde a redemocratização, num cenário político crescentemente polarizado. Entre 2014 e 2017, a taxa de desemprego mais do que dobrou, saltando de 6,0% para quase 14,0%. A tímida recuperação entre 2018 e 2019
esteve longe de levantar todos os barcos e, se a recessão havia ficado para
trás para a metade mais rica dos brasileiros, os mais pobres continuavam
perdendo e a taxa de desemprego continuava superior a dois dígitos3.
2
O Boletim de Monitoramento realizado pela OIT pode ser acessado no seguinte endereço: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/briefingnote/
wcms_738753.pdf
3
Dados e informações retiradas do estudo “Desigualdade de renda no Brasil de 2012 a
2019”, que pode ser acessado no seguinte endereço: http://dados.iesp.uerj.br/desigualdade-brasil/
14
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 1
O Seguro Desemprego foi pouco eficaz na manutenção da renda dos
desligados, resultado da sua histórica limitação, que deixa de fora os trabalhadores informais. O investimento em políticas ativas de mercado de
trabalho (intermediação de mão-de-obra e qualificação profissional), fundamentais em um momento de recuperação, foi irrisório. Em contrapartida, o crescimento do emprego a partir de 2018, embora tenha trazido
uma parcela da força de trabalho de volta para o mercado, foi marcado
pelo aumento maciço da informalidade.
O sistema de proteção social, peça central da política pública para compensar as perdas dos mais pobres, vinha sendo sucateado, seja devido a
problemas no desenho, seja por conta de restrições orçamentárias determinadas politicamente. As transferências de renda, especialmente, foram
um destaque negativo e pouco fizeram para minimizar o estrago causado
pelo desemprego. O Bolsa Família teve suas dotações sistematicamente reduzidas e os resultados foram filas para o ingresso de novos beneficiários,
desmobilização das buscas ativas da assistência social, desatualização do
CadÚnico, queda nos valores dos benefícios per capita do programa.
Justamente por isso, o primeiro impacto da pandemia foi devastador.
A lentidão na aprovação e problemas de implementação dos programas
emergenciais4 – como o Auxílio Emergencial e o Programa de Manutenção
do Emprego e da Renda, que viriam a ter um papel amortecedor ao longo
de 2020 – acabaram por expulsar do mercado mais 10 milhões de brasileiros, fazendo a taxa de desemprego – incluindo o “desemprego oculto pelo
distanciamento social” – atingir quase 1 em cada 4 trabalhadoras(es)5.
Os mais afetados pela crise foram mulheres e pessoas negras. A redução
do número de pessoas negras ocupadas entre 2019 e 2020 foi da ordem
de 13,4%, contra 7,3% das brancas. Além disso, embora mais da metade
4
Informações retiradas do Boletim n° 5 sobre Covid-19 e políticas públicas, realizado pela
Rede de Pesquisa Solidária. Disponível em: https://redepesquisasolidaria.org/nao-categorizado/
dificuldades-com-aplicativo-e-nao-uso-da-rede-de-protecao-atual-limitam-acesso-ao-auxilio-de-emergencia/
5
Informações retiradas do boletim n° 14 sobre Covid-19 e políticas públicas, realizado pela
Rede de Pesquisa Solidária. Disponível em: https://redepesquisasolidaria.org/boletins/boletim-14/
situacao-dramatica-do-desemprego-esta-oculta-nos-indicadores-oficiais-sem-renda-emergencial-de-r-60000-a-pobreza-atingiria-30-da-populacao/
Parte 1 | Desigualdades, direitos e pandemia
15
dos ocupados antes da pandemia fossem negros (54%), esses representam
mais de 2/3 (68,2%) das pessoas que perderam emprego no período. Essas
diferenças se devem, principalmente, à inserção laboral mais frágil no mercado, destacando-se aí a informalidade, que tem como causas principais os
menores níveis de qualificação, mas, também, os recorrentes e conhecidos
mecanismos de discriminação. Brancos e brancas, por seu turno, têm uma
inserção mais estável e com maiores taxas de formalização, ao tempo em
que ocupam posições superiores na estrutura ocupacional.
Se a informalidade e a discriminação são as chaves para compreender a clivagem racial, as diferenças entre homens e mulheres se devem a mecanismos
que surgem na esteira da divisão sexual do trabalho – como segregação ocupacional e setorial e a sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidado. Mulheres
estão, em maior medida, alocadas em posições que foram classificadas como
“não-essenciais” durante a pandemia: serviços domésticos remunerados, ocupações do cuidado e serviços em geral. A redução no volume de mulheres ocupadas entre 2019 e 2020 foi de 11,8%, contra 9,8% dos homens.
Além disso, vale ressaltar, o trabalho doméstico não remunerado foi
intensificado durante a pandemia. Se em maio de 2020 apenas 1,0% dos
homens afirmaram não ter procurado trabalho por ter de cuidar de afazeres domésticos ou de parentes, esse percentual era de 14,7% entre as
mulheres. Ao longo da pandemia, o percentual para as mulheres chegou a
21,0%, ficando estável para os homens (1,3%)6.
Esses resultados não são aleatórios, mas se devem também a escolhas
políticas7. Dados da ONU Mulheres8 mostram que a única política públi6
Dados e informações retiradas do Informativo “Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia”, realizado pelo Núcleo AFRO do Cebrap. Disponível em:
https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-ge%CC%82nero-no-mercado-de-trabalho-em-meio-a%CC%80-pandemia.pdf
7
Uma análise interessante sobre o assunto foi publicada por Márcia Lima e Ian Prates na Folha de São Paulo. O texto pode ser acessado no seguinte endereço: https://www1.folha.uol.com.
br/poder/2021/03/situacao-das-mulheres-na-pandemia-e-resultado-de-escolhas-politicas-e-deficit-de-democracia.shtml.
8
Dados e informações retiradas de um monitor criado pela ONU Mulheres para mapear as
respostas dos governos à pandemia da covid-19 que incluíam diretrizes de gênero. Disponível em:
https://data.undp.org/gendertracker/
16
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 1
ca para aliviar a insegurança econômica com recorte de gênero adotada
pelo governo brasileiro foi o auxílio emergencial duplo para mães solo. No
campo do cuidado, ficamos no zero! Diferentemente de uma vasta gama
de países, e não apenas dos chamados “desenvolvidos”, não tomamos nenhuma ação que buscasse endereçar o impacto cumulativo da sobrecarga
do trabalho doméstico não remunerado sobre as mulheres.
O fato é que após quase dois anos de uma pandemia gerida de forma
atabalhoada e permeada por vieses ideológicos esdrúxulos, o saldo é lamentável. Perdemos em mortes e perdemos em empregos para a grande maioria dos países9. Vimos nossas históricas desigualdades de gênero
e raça se aprofundarem vertiginosamente. Ao mesmo tempo, novas clivagens, como as desigualdades digitais, têm contribuído para agravar a situação. O teletrabalho está longe de ser acessível a todos – são mais que o
dobro de pessoas brancas (13,8%) em teletrabalho quando comparadas
às negras (6,6%) – e as limitações do ensino remoto deixaram quase o triplo de crianças negras e indígenas (4,3 milhões) sem atividades escolares,
quando comparadas às brancas (1,5 milhões)10.
Há indícios de que o pior da pandemia já passou, mas seus impactos
não são apenas os de curto prazo que pudemos observar até então. Os legados de médio e longo prazo sobre as desigualdades sociais ainda estão
por ser identificados. Mas, mais do que isso, ainda estão por ser moldados.
Medidas paliativas, embora necessárias, são insuficientes, como evidenciam a alta da pobreza com o fim do auxílio emergencial e a manutenção das elevadas taxas de desemprego em 2021. E, se é impossível dizer
que a pandemia trouxe “algo de positivo”, que tenha trazido pelo menos
o aprendizado de que o combate às desigualdades é política de Estado.
Essa é uma escolha que se descortina à nossa frente, e seus resultados
dependem da prioridade que daremos a esta agenda enquanto sociedade.
9
Análise semelhante foi realizada em um estudo conduzido por pesquisadores do IPEA.
A publicação pode ser acessada no seguinte endereço: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10877/1/NT_Mortalidade_Covid19_Emprego_Publicacao_Preliminar.pdf
10
Sobre o aumento das desigualdades raciais durante a pandemia, referenciamos a seguinte
matéria publicada pelo G1: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/09/10/numero-de-estudantes-negros-pardos-e-indigenas-sem-atividade-escolar-durante-a-pandemia-e-quase-3-vezes-maior-que-de-brancos.ghtml
Parte 1 | Desigualdades, direitos e pandemia
17
a palavra dos
movimentos
Desafios da luta por direitos
em tempos pandêmicos
Darci Frigo
Nós vivemos hoje várias crises concomitantes: a crise sanitária, a crise
econômica, a crise climática-ambiental e uma grave crise política. Enquanto tudo isso acontece, estamos vendo uma série de debates no Congresso
Nacional sobre reformas que visam retirar direitos e direcionar o dinheiro
do orçamento público para interesses econômicos ligados ao processo de
privatização dos bens públicos. Nesse momento, precisaríamos estar fazendo um amplo investimento em saúde pública e não uma redução, como
está sendo feita pela Emenda Constitucional 95 (Emenda do Teto dos Gastos Públicos), que possibilitou que vários cortes em gastos sociais ocorressem, quando o mundo inteiro está ampliando esses investimentos, em
especial na pandemia, em que a população precisa de uma renda mínima
garantida pelo Estado. No Brasil, o Congresso Nacional segue defendendo
os interesses do capital, no sentido de não sobretaxar grandes fortunas
e de manter o pagamento de imposto de renda sobre dividendos. Nós vivemos em um país em que os pobres pagam mais de 30% de impostos
e os ricos pagam no máximo 20%. É um país de grandes contradições e
que mantém os padrões de desigualdades! O debate sobre Constituição e
Orçamento foi o que deu causa ao processo de aprovação da PEC 95, que
18
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 1
Foto: Thomas de Luze
limitou os gastos públicos e que afeta sobremaneira a democracia, porque não se pode fazer investimentos e escolher prioridades de ações em
função da limitação imposta pela Emenda. O que temos na verdade é um
freio nos gastos sociais! Quando o mercado diz que “a Constituição não
cabe no orçamento”, eles estão falando de direitos e benefícios sociais,
sobre o processo de transferência de renda e sobre os investimentos em
saúde e educação. Devemos caminhar para uma economia do cuidado,
baseada em investimentos cada vez maiores em educação, saúde, meio
ambiente e agroecologia. Contudo, as forças políticas estão aproveitando
a tempestade perfeita para fazer mudanças para piorar a situação dos trabalhadores. A Reforma Trabalhista foi prometida como uma grande tábua
de salvação para gerar empregos e o desemprego só aumentou no país.
Na verdade, ela precarizou ainda mais a situação do trabalho! Portanto, o
momento é de ampliação do debate, colocando o orçamento na agenda
política e demonstrando que nós temos um projeto de país, que inclui os
direitos sociais, a sustentabilidade, o meio ambiente e a crise climática,
para que possamos ter um país diferente.
Parte 1 | Desigualdades, direitos e pandemia
19
Foto: Avelino Regicida
20
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 1
PA RT E 2
Orçamento e os
efeitos da crise
Parte 1 | Desigualdades, direitos e pandemia
21
Orçamento Público e a Crise
agravada pela Pandemia
Cleo Manhas
Assessora política do Inesc
O Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid convidou o Inesc, no
âmbito da realização dos webinários “Pontes para a saída da crise”, para
participar de um diálogo sobre o impacto da pandemia no orçamento público brasileiro e na crise socioeconômica existente, agravada pela propagação do coronavírus pelo mundo, afetando terrivelmente o Brasil, que neste
momento em que escrevo este artigo já ultrapassa a marca dos 600 mil
mortos. O segundo país do mundo em número de mortes, perdendo apenas
para os Estados Unidos.
A leitura do orçamento público nos dá uma medida de como o Governo Federal tratou a questão: com descaso, sem prioridades nítidas,
com negacionismo em relação às decisões científicas, gastando recursos com remédios ineficazes, atrasando a compra de vacinas e desqualificando seus efeitos.
O primeiro semestre de 2021 foi abissal para o Brasil. A pandemia ganhou contornos dramáticos, alcançando picos de mais de 3 mil mortes
por dia. Entre janeiro e junho faleceram mais de 320 mil pessoas, quase
70% a mais do que em todo o ano de 2020. Dos cerca de R$ 100 bilhões
liberados para o enfrentamento da Covid-19 em 2021, 44% destinavam-se à extensão do Auxílio Emergencial. Esse valor é seis vezes menor do
que o gasto com o programa no ano passado. Ademais, nos primeiros meses do ano o governo federal ficou sem pagar o auxílio, e mesmo quando
retomaram, foi em um patamar muito inferior e para menos pessoas.
Vejamos a tabela com os principais valores para atender as demandas
da pandemia, elaborada pelo Inesc, para o Balanço Semestral do Orçamento da União em 2021, demonstrando os aportes de recursos com vistas a atenuar os efeitos provocados pelo novo coronavírus. Fica evidente
que houve negligência no orçamento da pandemia em 2021, exatamente
22
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
quando as curvas de contágio e morte ficaram mais acentuadas (primeiro
semestre de 2021)11.
Tabela 1 - Valores autorizados para o enfrentamento da Covid-19 em 2020 e 2021
11
INESC. Balanço Semestral do Orçamento da União em 2021. Disponível em: https://www.
inesc.org.br/gastos-do-governo-com-pandemia-caem-de-r-218-bi-para-r-49-bi-no-primeiro-semestre/?cn-reloaded=1
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
23
Nos seis primeiros meses de 2021, quando a pandemia atingia seu
maior pico no Brasil, o governo executou apenas o equivalente a 22% do
orçamento destinado ao combate à Covid-19 no mesmo período em 2020.
Entre janeiro e junho de 2020, a despesa para este fim foi de R$ 217,73
bilhões, enquanto nos mesmos meses de 2021 o valor foi de apenas R$
48,34 bilhões. Vale lembrar que a pandemia iniciou apenas em março de
2020 e ao final do semestre contabilizava 60 mil óbitos. No mesmo período de 2021, foram 306 mil vítimas da Covid-19.
Vejamos no gráfico abaixo a comparação entre as curvas de óbitos e o
volume de recursos disponibilizados pelo Governo Federal para atender
as demandas agravadas pela conjuntura.
Gráfico 1 - Recursos para a pandemia não acompanham óbitos em 2021
março de 2020 a junho de 2021
(valores em bilhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de maio de 2021)
24
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
Vemos que são inversamente proporcionais, ou seja, quando mais precisamos de recursos para saúde pública, políticas de saneamento e moradia, educação, transporte público, foi exatamente quando menos recursos tivemos.
Um Olhar para a Educação
A educação pública vem sendo desfinanciada mesmo antes da pandemia. No entanto, quando as escolas tiveram de migrar, da noite para o
dia, das aulas presenciais para o modelo remoto, menos recursos tiveram
para isso, tanto financeiros, quanto técnicos, pois, especialmente a partir
de 2015 a Função Orçamentária Educação vem perdendo orçamento. Os
Recursos para Ensino Superior estão minguando. A Educação de Jovens e
Adultos está sem dotação orçamentária há cerca de 3 anos.
Vejamos a tabela abaixo, com dados do Siga Brasil, demonstrando os
valores autorizados de 2016 até 2021 (valores deflacionados). É visível
que os recursos vêm caindo desde que foi autorizada a Emenda do Teto
dos Gastos, afetando as ações discricionárias da área.
Ano
Autorizado
2016
140,4bi
2017
139,8bi
2018
135,0bi
2019
134,7bi
2020
120,9bi
2021
109,6bi
E isso vem acontecendo principalmente com o ensino superior, de responsabilidade do governo federal. Selecionamos algumas universidades, das mais
centrais, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro, até as mais periféricas, como a Universidade Federal de Roraima. Comparando apenas 2020
com 2021, fica nítido que os recursos vêm sendo deliberadamente cortados.
Ainda em 2021 tivemos um recurso menor para o Programa Dinheiro Direto na Escola, que é um dos poucos programas disponíveis para que as esParte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
25
Tabela 3 - Execução financeira de universidades selecionadas
1º semestre de 2020 x 1º semestre de 2021
(valores em milhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de maio de 2021)
26
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
colas se reestruturem para a volta às aulas presenciais. O que foi executado
de fato em 2020 é metade do autorizado, mesmo com os restos a pagar.
Gráfico 3 - Execução financeira do Programa Dinheiro na Escola
1º semestre de 2020 x 1º semestre de 2021
(valores em bilhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de maio de 2021)
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
27
Transporte Público
Outra política pública de suma importância para que se tenha assegurado
o direito à cidade, permitindo que a população acesse outros direitos, como
saúde, educação e assistência social, é o transporte público, que deveria ser
executado, de fato, como política pública, por ser direito social inscrito na
Constituição Federal. No entanto, além de ser tratado como um serviço ao
consumidor, durante a pandemia não teve seu controle (nos diferentes municípios) apropriado pelo poder público, para que pudesse ter maior oferta,
com mais segurança aos usuários em meio ao alto risco de contágio.
O Governo Federal aportou menos recursos e os outros entes da federação também não fizeram outros aportes, deixando sob responsabilidade dos cidadãos, com o pagamento da tarifa. Mesmo sob risco, o número
de veículos foi reduzido, portanto, circulando ainda lotados, colocando a
população usuária em veículos, que viraram foco de contaminação.
Gráfico 4 - Execução financeira da Subfunção: Transporte Coletivo Urbano
1º semestre de 2020 x 1º semestre de 2021
(valores em milhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de maio de 2021)
28
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
Mulheres
O executado para as políticas voltadas para às mulheres é infinitamente inferior ao que foi autorizado. No entanto, aqui cabe uma observação,
pois as políticas voltadas para o fortalecimento e a autonomia de mulheres
foram cortadas do planejamento governamental e substituídas por outras
ações fundamentalistas, tuteladoras e usurpadoras de direitos conquistados com muita luta. Então, é preciso olhar, não apenas para a execução
dos recursos, mas também para o desenho das políticas.
Gráfico 5 - Orçamento de programas voltados à proteção da mulher*
1º semestre de 2020 x 1º semestre de 2021
(valores em milhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de maio de 2021)
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
29
Indígenas
A Funai é um dos órgãos que mais perdeu recursos no atual governo,
haja vista a política indigenista que vem sendo executada. Para que os
diferentes povos indígenas tivessem acesso aos insumos para proteção
contra a contaminação e à vacinação, foi necessária uma mobilização nacional, além de ações junto ao Poder Judiciário.
Gráfico 5 - Orçamento de programas voltados à proteção da mulher*
1º semestre de 2020 x 1º semestre de 2021
(valores em milhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de maio de 2021)
Orçamento Secreto
Não contentes com os efeitos provocados pela falta de recursos, ou
pelas escolhas que não priorizam a população, especialmente aqueles
em situação de vulnerabilidade, o Governo Federal criou o tal “orçamento secreto”. A partir da LDO de 2020, alterada pela Lei 13.957/2019, foi
permitida a criação de novos gastos orçamentários, classificados com o
Identificador de Resultado Primário 9 (RP-9). Já em 2020, primeiro ano de
30
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
vigência desta nova regra, os valores de execução de recursos de emenda do relator-geral foram apenas R$ 1,1 bilhão abaixo das emendas individuais, que correspondem ao gasto somado de 513 deputados e 81
senadores. Ou seja, uma alta execução de recursos transferidos de forma clientelista, para garantir vitórias em votações no Congresso Nacional,
sem qualquer transparência.
Recomendações
Precisamos de muita mobilização para exigir a revogação da Emenda
do Teto dos Gastos com recomposição dos orçamentos para as políticas
sociais, especialmente saúde, educação, transferência de renda, políticas
de incentivo à criação de novas vagas de trabalho,pois estamos convivendo com índices de desemprego recordes, com alta taxa de inflação afetando principalmente os alimentos, além da crise sanitária sem precedentes.
Além disso, é preciso exigir que o governo tenha uma política para
habitação de interesse social, visto que em três anos nada foi feito nesta área, tampouco saneamento básico, mesmo que sejam precondições
para afastar os perigos de continuarmos andando em círculos com relação à saúde pública
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
31
O orçamento público,
o desenvolvimento
e a garantia de direitos
Roseli Faria
Economista e vice-presidente da Associação
Nacional dos Servidores de Planejamento e
Orçamento (Assecor)
Introdução
Depois de duas décadas de baixo crescimento, a economia brasileira
ingressou em 2004 em um ciclo virtuoso de 10 anos em que apresentou
taxas de crescimento maiores associadas à expansão do emprego formal
e à redução dos níveis de pobreza e pobreza extrema. Neste período, o
processo de consolidação dos direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal se acelerou, contribuindo decisivamente para a melhoria de
diversos indicadores sociais, como o Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal apresentado na figura abaixo:
32
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
Em 2015, no entanto, esta trajetória foi interrompida por uma recessão
ao longo da qual o Produto Interno Produto (PIB) caiu quase 8% em dois
anos. Embora as origens da crise ainda hoje estejam em debate, grande
ênfase tem sido dada à política fiscal12 e à dinâmica de crescimento das
despesas públicas no período anterior. Não por outro motivo, a primeira medida estruturante aprovada pelo grupo político que ocupou o poder
após a deposição da presidenta Dilma Rousseff, cujo processo de impeachment girou em torno de questões relativas à política fiscal e ao orçamento público, foi a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, conhecida
como Teto de Gastos, que congelou as despesas primárias da União por
20 anos. Nos anos seguintes, sob a promessa de retomada do dinamismo
econômico, outras alterações legais e constitucionais foram aprovadas,
como as reformas trabalhista e previdenciária.
As taxas de crescimento da economia, porém, continuaram baixas, e o
país entrou na pandemia de Covid com a economia praticamente estagnada. Para enfrentar seus efeitos, os gastos públicos cresceram temporariamente, mas a discussão em torno do Orçamento Público retornou ao
lugar onde se encontrava antes da pandemia: enquanto alguns continuam
a defender que a redução do tamanho do Estado é o caminho correto para
promover o desenvolvimento, outros defendem que é justamente a ação
do Estado na busca da concretização dos direitos que permitirá a reconstrução no pós-pandemia.
12
Política Fiscal diz respeito à gestão econômica dos instrumentos governamentais de arrecadação tributária e gastos públicos com vistas a promover a estabilidade do crescimento econômico, da inflação e da dívida pública. Quando a prioridade da política econômica é incentivar
a ampliação da produção e dos níveis de emprego, o governo pode adotar uma Política Fiscal
expansionista a partir do aumento de gastos governamentais e/ou redução da tributação (carga
tributária). Se, ao contrário, o objetivo da política econômica for desaquecer a economia, para estabilizar a inflação ou o crescimento da dívida pública, por exemplo, o governo pode adotar uma
Política Fiscal Restritiva, reduzindo os gastos governamentais e/ou aumentando tributos.
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
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O modelo de desenvolvimento
da Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 (CF 88) sintetiza a determinação da sociedade brasileira em superar as desigualdades e injustiças sociais históricas
por meio de um modelo de desenvolvimento econômico e social sustentável e inclusivo que transforme o país em uma nação mais justa, integrada e
moderna. Ainda que seu texto reflita os interesses conflitantes que participaram de sua elaboração, consensos fundamentais foram pactuados, como
(1) a institucionalização do Sistema Único de Saúde, o SUS, contemplando a
universalização do direito à saúde pública e gratuita; (2) a extensão de direitos trabalhistas dos empregados urbanos para os rurais e domésticos; e (3)
as bases para a estruturação do sistema de assistência social e a aprovação
da renda mensal vitalícia para idosos carentes e deficientes.
Apesar de incluir direitos presentes em outras sociedades, a CF 88 é
promulgada em um contexto econômico e político adverso à sua implementação. Por um lado, no cenário externo, a perda de dinamismo das
economias centrais em meados da década de 1970 fortaleceu as ideias
em torno de uma doutrina econômica conhecida como neoliberalismo,
com um receituário centrado no ataque ao Estado. Programas de ajuste
fiscal focando na redução dos gastos, funcionais na busca desse objetivo, tornaram-se comuns no mundo capitalista, o que resultou em perda
de direitos sociais e aumento da desigualdade. Por outro lado, no plano
interno, as décadas de 1980 e 1990 foram desafiadoras para a economia
brasileira, que sofreu com a alta inflação e o baixo crescimento, além de
grande volatilidade cambial.
Dessa forma, a gestão do orçamento público, instrumento que ocupa
papel central na condução da política econômica e na concretização dos
direitos fundamentais, foi marcada pela tensão entre objetivos que muitas
vezes se mostraram opostos. De fato, apesar de ocorrerem no período a
consolidação do SUS, a universalização do ensino fundamental e a expansão dos direitos previdenciários, a política fiscal do governo estava voltada
principalmente para a estabilização da economia.
Após a crise fiscal e cambial de 1999, são adotados novos parâmetros
34
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
para a condução da política econômica, sintetizados no tripé macroeconômico: câmbio flexível, metas de inflação e metas fiscais anuais. Para fortalecer o terceiro pé, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar
101/2000) é aprovada contendo um conjunto de medidas que reestruturam a elaboração e a gestão do orçamento público ao mesmo tempo em
que submetem a evolução das despesas primárias a regras. Até 2003,
a política fiscal brasileira foi claramente restritiva, com superávits fiscais
alcançados por meio de aumento de impostos indiretos e redução dos investimentos, especialmente em infraestrutura, central para o desenvolvimento econômico e a provisão de serviços públicos à população.
A partir de 2004 os gastos começam a aumentar, e em 2007 a política
fiscal passa a ser claramente expansionista, com o aumento dos investimentos públicos, dos benefícios previdenciários (em boa parte em razão
da política de valorização do salário mínimo), e a expansão de políticas de
transferência de renda, como o Bolsa-família. Na última fase do ciclo virtuoso, entre 2011 e 2014, a política fiscal continua expansionista, mas agora reforçada pela expansão de subsídios e desonerações tributárias. Nos
últimos meses de 2014, no entanto, com a contribuição da queda abrupta
dos preços das commodities brasileiras como soja, minério de ferro e petróleo, inicia-se a recessão do biênio 2015-2016.
A crise econômica e o novo regime fiscal
No início de 2021, a mídia brasileira noticiou que agências de risco
anunciavam que o Brasil não figurava mais no ranking das 10 maiores
economias do mundo, apesar de ter sofrido queda da atividade causada
pela pandemia da covid-19 em 2020 menor que a de outros países, basicamente graças ao programa de transferência de renda conhecido como
Auxílio Emergencial.
Ainda que o Brasil possa ser considerado uma economia grande, o
PIB per capita brasileiro, comparativamente médio em termos mundiais e estagnado há sete anos, em conjunto com os indicadores negativos de desigualdade, pobreza e acesso a serviços públicos, delineiam
o enorme desafio que as gerações presente e futuras têm para proParte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
35
Foto: Romerito Pontes
ver dignidade para toda a população de forma ambientalmente sustentável. Obviamente, este não é um desafio exclusivo do Brasil. Aqui,
porém, desde 2016 o governo segue um modelo de desenvolvimento
baseado na crença de que é a redução do tamanho do Estado, e não o
aprimoramento de suas capacidades, que proporcionará a prosperidade e o bem-estar da população. No momento em que o mundo ressalta
a importância do Estado para a reconstrução pós-pandêmica, esta visão parece ser, no mínimo, peculiar.
Parte dos economistas explica a recessão de 2015-2016 como o resultado de múltiplas causas, que começa com a queda no preço das commodities brasileiras, provocando desvalorização cambial e inflação, mas
36
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
incluem outros fatores como a condução da política fiscal e monetária do
início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, a queda abrupta
dos investimentos causada pelo avanço da operação Lava Jato, e a reação
de setores empresariais a mudanças na política e na distribuição da renda
no período anterior. Outra parte, porém, explica a maior recessão da história econômica recente como resultado do crescimento descontrolado das
despesas públicas, que teria causado desconfiança nos agentes econômicos e levado à queda nos investimentos.
Embora estudos recentes confirmem a primeira tese e desmontem a
segunda, o fato é que desde a publicação do documento “Uma ponte para
o futuro” ainda em 2015 pela Fundação Ulysses Guimarães, setores econômicos e políticos passaram a compartilhar tanto o diagnóstico quanto
o seu receituário. Nessa visão, se a crise foi provocada por “excessos” de
gastos, a solução seria reduzir o tamanho do Estado para que, uma vez
restabelecida a confiança dos agentes, os investimentos privados capitaneassem um novo ciclo virtuoso da economia, agora com menos participação do Estado e dos gastos públicos. É nesta lógica que se explica
a aprovação da EC 95 e de outras reformas que visam reduzir gastos e
direitos sociais. Para seus defensores, essas medidas teriam o condão de
despertar o ímpeto dos investidores nacionais e internacionais, porém os
números da economia brasileira entre 2017 e 2019 não confirmaram a
tese. Ao contrário, foi o gasto público, principalmente do Auxílio Emergencial, realizado entre 2020 e 2021 que impediu uma queda maior da atividade econômica.
Neste momento em que se discute o planejamento de medidas para o
pós-pandemia, as reformas necessárias centrais deveriam ir em sentido
contrário e reforçar o modelo de desenvolvimento da CF 88, que promoveu a redução da pobreza e o acesso a serviços públicos mesmo em período de baixo crescimento. Para isso, há que se fazer, por um lado, o que
ainda não foi feito, uma reforma tributária progressiva que permita desonerar a carga de impostos da população mais pobre, e, pelo outro, ampliar
as políticas sociais que reduzem a desigualdade, como as de transferência
de renda, saúde e educação. O futuro do país vai depender da nossa capacidade de promover as reformas que favoreçam a concretização de uma
sociedade livre, justa e solidária.
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
37
A derrota do SUS
em meio à pandemia
Jean Peres
Doutorando em economia pela Unicamp,
economista chefe da Plataforma Justa
Retroagindo ao começo da pandemia, no primeiro trimestre do ano
passado, podemos dizer que o Brasil foi favorecido quanto ao avanço do
novo coronavírus pelo mundo. Entre o primeiro caso catalogado no mundo (1 de dezembro de 2019) e a primeira confirmação em nosso país (26
de fevereiro de 2020) transcorreram quase 3 meses. Nesse período, o
mundo atônito buscava organizar e catalogar os impactos da nova doença
sobre a saúde individual e pública, a produção e a circulação de serviços
e produtos. No entanto, esse tempo foi negligenciado como uma possibilidade de antecipar e programar a resposta brasileira à crise, em especial
ao fortalecimento do SUS.
Pelo Brasil afora os orçamentos aprovados e em execução para 2020
não contavam com verbas destinadas ao combate do coronavírus. Duas iniciativas do primeiro semestre de 2020 definiram a atuação dos Estados e
Municípios na questão da saúde: a Lei 13979 que definiu as medidas de
emergência e a Lei Complementar 173 que garantiu as condições financeiras de sua execução. Mais precisamente, no artigo 413 da Lei 13979, foi suspensa a necessidade de licitação na aquisição de bens e serviços voltados
ao combate do coronavírus e na LC 173, previu-se a destinação de R$ 60
bilhões aos cofres de Estados e Munícipios, sendo que R$ 10 bilhões seriam
exclusivos para a cobertura de despesas com Saúde e Assistência Social14.
13
“Art. 4: É dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive
de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei.” Redação dada pela Lei 14035 à Lei 13979
14
Considerando a suspensão do pagamento da Dívida com a União, Bancos Públicos e com
bancos onde o Governo Federal eram avalistas dos Estados e Municípios e outras contas, o pacote
de ajuda chegaria a R$ 107,13 bilhões. Ver (PELLEGRINI, 2020).
38
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
O cenário criado era, portanto, favorável ao crescimento das despesas
com saúde, sem existir maiores óbices objetivas à sua concretização15. Como
resultado, vimos que em 2020 as despesas16 dos Estados com Saúde cresceram 16,1% em relação a 2019, saltando, em termos nominais, de R$ 105,46
para R$ 122,43 bilhões. No entanto, ao se observar mais detidamente esses gastos, verificou-se uma tendência de que eles se concentraram entre
empresas privadas e estrutura conveniada, em oposição às despesas com o
funcionalismo e a estrutura própria do Estado ou, mais propriamente, com a
expansão da infraestrutura e da capacidade do Sistema Único de Saúde.
Tabela X - Despesas dos maiores Estados com a Saúde em valores correntes
15
Informação retirada da seguinte matéria publicada no G1: https://g1.globo.com/economia/
noticia/2020/11/19/com-socorro-da-uniao-24-estados-ja-conseguiram-mais-do-que-compensar-perda-de-arrecadacao-em-meio-a-pandemia.ghtml
16
Utilizamos o conceito de Despesas Totais exceto as despesas da modalidade 91 que registram
as transferências intraorçamentárias. Para uma definição, ver (MINISTÉRIO DA ECONOMIA, 2021)
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
39
Duas são as variáveis que permitem compreender esse desempenho. Em
primeiro lugar, o constrangimento criado pela LC 173 quanto às despesas voltadas ao funcionalismo público. Ao criar impeditivos ao reajuste e outras ampliações de despesas com os servidores, tais como a abertura de concursos,
a Lei não previu nenhum tipo de exceção aos servidores de saúde, criando
uma barreira à ampliação dos atendimentos sob essa modalidade.
Em segundo lugar, tivemos a suspensão das necessidades de licitação.
Conforme dito, o Brasil contou com um hiato de 3 meses para seu primeiro caso. A suspensão das necessidades de processo licitatório nos idos
de fevereiro com a Lei 13979 e a destinação de volumes significativos de
recursos aos Estados e Municípios em maio com a LC 173, corroborou as
práticas imediatistas de ampliação da estrutura em oposição a uma ação
coordenada de saúde pública. Desse modo, os recursos já estavam previamente definidos quanto ao seu destino.
A despeito da opinião popular referendar o mantra de que o “SUS foi
o grande vitorioso”, ele já tinha sido derrotado antes mesmo de enfrentarmos o avanço sistemático da doença e de seus efeitos sobre a saúde
dos brasileiros. O SUS foi o grande derrotado e as empresas privadas de
todas as naturezas, sejam fornecedoras de insumos, de medicamentos,
importadoras de equipamentos, e as entidades de saúde que subsistem
das verbas públicas, tais como: Organizações Sociais, Fundações, Santas
Casas e outros tipos, foram as grandes vitoriosas desse processo.
A estratégia sob esse cenário foi de mobilizar leitos e serviços junto a
tais entidades e, no caso de maior agudez da doença, pela construção de
hospitais de campanha. Nos momentos de arrefecimento da pandemia,
ocorreu o desmonte dos hospitais de campanha e a reconversão dos leitos
para outras finalidades.
Em estudo17 que participei pela Plataforma Justa, foram analisadas
as despesas de saúde em cinco importantes Estados brasileiros: Bahia,
Ceará, Paraná, São Paulo e Tocantins. Buscando apreciar os impactos da
elevação dessas despesas, constatamos que apenas no Ceará o volume
de rendimentos dos servidores com Saúde foi superior em 2020. Nos de17
JUSTA. Orçamento da Saúde nos Estados em 2020 e a pandemia. Disponível em: https://
justa.org.br/wp-content/uploads/2021/08/Orcamento-Covid-19-1.pdf
40
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
mais, os servidores de saúde receberam, no agregado, menos em 2020
que em 2019, mesmo sem considerar a inflação. Os 5 Estados representaram 40,2% das Despesas dos Estados com Saúde em 2020 e 36,2% do
crescimento total das despesas entre 2019 e 2020.
Por outro lado, constatamos diversas formas de contratação, tais como
cooperativas de trabalho (Ceará), Fundações Universitárias (São Paulo) e
de outra natureza (Bahia), Empresas fornecedoras de materiais e serviços
de toda natureza (Paraná) e Organizações Sociais (Tocantins).
Apesar da opinião popular ter consagrado uma visão mais positiva sobre
o nosso sistema público de saúde, a legislação brasileira de combate ao
novo coronavírus foi meticulosamente pensada para favorecer os interesses
que orbitam sobre os recursos carimbados da saúde e, no caso da pandemia, por direcionar a maioria das verbas extraordinárias para esses atores.
Perdemos uma oportunidade inédita em que o SUS fez toda a diferença
na logística nacional da atenção à saúde. Somou-se a essa importância estratégica, a excepcionalidade de que os canais de financiamento estavam
minimamente destravados. A agenda permanente do ajuste fiscal foi flexibilizada não somente nesse ponto, mas nas demandas impostas pelo Auxílio
Emergencial, outro tema que merece uma atenção especial em outro artigo. A saúde viveu um momento ímpar no começo da pandemia e o que se
observou ainda não foi incorporado pelo conjunto dos estudiosos, usuários
e servidores como uma derrota que não dispensa adjetivações carregadas.
Essa experiência leva a uma provocação aos especialistas que situam as
limitações do Sistema Único de Saúde estritamente no campo do financiamento, reconhecido como historicamente sabotado. Precisamos debater a
estrutura de despesas dos recursos que transitam pelo orçamento público da
saúde quanto à natureza das despesas, os atores envolvidos, a urgência do
comando público e estatal, seja nas compras e delimitação de preços aos fornecedores, seja na estruturação de um estatuto nacional do trabalho, a contratação de convênios para servidores, entre outros recortes e preocupações.
É mister iniciarmos esse debate, pois a experiência da pandemia do
novo coronavírus nos oportunizou um rico material analítico. É urgente colocar a análise da qualidade da despesa no centro dessa questão, pois aí
deitam raízes de tal modo profundas que, como vimos, podem, inclusive,
se apropriar da elevação do financiamento, tornando-o inócuo.
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
41
Foto: Avelino Regicida
42
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 2
PA RT E 3
Violações a Direitos
Humanos no contexto
da pandemia:
as responsabilidades
públicas na gestão
da saúde
Parte 2 | Desigualdades, direitos e pandemia
43
Direito à Saúde e a Resposta
Brasileira à Pandemia da Covid-19
Fernando Aith
Professor Titular Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo – FSP/USP
Diretor Geral do Centro de Pesquisas em
Direito Sanitário da USP – Cepedisa/USP.
O Reconhecimento da Saúde
como Direito Fundamental
A saúde foi reconhecida como um direito humano fundamental, necessário para uma vida digna, somente em meados do Século XX, após a
Segunda Guerra Mundial. Foi na reconstrução do sistema de governança
global do pós-guerra que o Direito Internacional consolidou o direito à saúde como um direito juridicamente protegido.
A saúde é reconhecida como um direito básico do ser humano em vários Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, tais como a Carta das
Nações Unidas (1945); a Constituição da Organização Mundial de Saúde
(1946); a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966).
A Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) foi o primeiro
documento jurídico internacional a conceituar saúde, afirmando logo em
seu preâmbulo que “a saúde não é só a ausência de doença, mas sim o
completo bem estar físico, mental e social”.18
A Declaração Universal dos Direitos Humanos previu o direito à saúde
de forma mais indireta:
“Artigo XXV.
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, SAÚDE E BEM-ESTAR, inclusive alimentação, vestu18
44
Organização Mundial da Saúde – OMS. Constituição. OMS, 1945, preâmbulo.
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 3
ário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis,
e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez,
velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”.19
O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966,
foi mais detalhista no que se refere aos deveres dos Estados signatários com relação ao direito à saúde, entre eles o Brasil:
“Artigo 12
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental.
2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com
o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que
se façam necessárias para assegurar:
a. A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem
como o desenvolvimento das crianças
b. A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente;
c. A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas,
profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças;
d. A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e
serviços médicos em caso de enfermidade.
e. No âmbito do Direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 reconhece a saúde como um Direito Humano Fundamental no seu art. 6º:
f. “São direitos sociais a educação, a SAÚDE, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Já o Art. 196 da Constituição é mais explícito ainda, prevendo que “a
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
19
Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948,
Art. XXV.1.
Parte 3 | Desigualdades, direitos e pandemia
45
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”.
Para garantir o direito à saúde no Brasil, a Constituição criou o Sistema
Único de Saúde – SUS, um sistema público, universal, igualitário e gratuito,
financiado por meio de impostos e um dos principais mecanismos de redução de iniquidades do país. Infelizmente, a pandemia Covid-19 chegou
ao Brasil em um momento em que o Governo Federal é ocupado e governado por uma agenda ultraliberal que vem, sistematicamente, destruindo
esse patrimônio nacional, com consequências desastrosas para a saúde
pública, para a saúde dos brasileiros e para o controle da pandemia.
Mapeamento Normativo da
Resposta Brasileira à Covid-19
Ao longo de 2020, o Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo desenvolveu o Projeto “Direitos na Pandemia: Mapeamento
Normativo da Resposta Brasileira à Covid-19”, coordenado por Fernando Aith,
Deisy Ventura e Rossana Reis. Neste Projeto, foram mapeadas as normas federais e estaduais relativas à covid-19 com o intuito de estudá-las e avaliar
seu impacto sobre os direitos humanos, buscando contribuir para a prevenção ou a minimização dos efeitos negativos da pandemia no Brasil. Apresento
aqui, sinteticamente, alguns dos principais achados dessa pesquisa20.
O balanço dos efeitos de um ano de pandemia sobre os direitos humanos no Brasil é devastador. Diferentemente de outros países, o enfoque da
resposta brasileira à pandemia não se preocupou em adotar meios suficientes de compensação do impacto desproporcional da pandemia sobre
populações vulneráveis.
No âmbito federal, mais do que a ausência de um enfoque de direitos, o
que nossa pesquisa revelou é a existência de uma estratégia institucional
de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança
20
Cepedisa/USP. Direitos na Pandemia: Mapeamento Normativo da Resposta Brasileira à Covid-19. Ventura, Deisy ; Aith, Fernando; Reis, Rossana. Disponível em: Cepedisa.org.br/publicacoes.
46
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 3
da Presidência da República. A partir de abril de 2020, o governo federal
passou a promover a imunidade coletiva (também dita “de rebanho”) por
contágio como meio de resposta à pandemia.
Na linha do tempo que apresentamos, com dados coletados até
16/01/21, três eixos são expostos em ordem cronológica.
i. Os atos normativos da União, incluindo a edição de normas por autoridades e órgãos federais, bem como vetos presidenciais. Neste eixo, chamam a
atenção, ao revés das evidências científicas, os decretos que definem como
“atividades essenciais” durante a pandemia certas práticas consideradas
altamente disseminadoras da doença por gerarem aglomerações de difícil controle ou pela própria natureza da atividade, como cultos religiosos,
academias de ginástica e salões de beleza. Também se destacam os vetos
às principais leis que visavam conter a disseminação do vírus, como as relativas à obrigatoriedade do uso de máscaras e à proteção dos indígenas.
ii. Os atos de obstrução das respostas dos governos estaduais e municipais
à pandemia, que o próprio presidente já definiu como “guerra aos governadores”. Tais atos de gestão e omissões propositais incluem o atraso
sistemático no repasse de recursos, a tentativa de confisco de insumos de
saúde adquiridos por estados e municípios, e o atraso proposital no encaminhamento da vacinação, com o cancelamento da compra de vacinas
produzidas pelo Instituto Butantan e a recusa de oferta de vacinas pela
indústria farmacêutica.
iii. A propaganda contra a saúde pública, aqui definida como o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além
de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica,
com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer
a adesão popular a recomendações de saúde baseadas em evidências
científicas e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da covid-19.
iv. Esse ardiloso plano de comunicação, que conta com entusiasmado apoio
de milhares de militantes governistas, trará consequências nefastas para
a saúde pública também a médio e longo prazos, o que pode ser exemplificado pela erosão da cultura de imunização da qual o Brasil se orgulhava,
construída a duras penas ao longo de décadas de investimento público.
Parte 3 | Desigualdades, direitos e pandemia
47
Outro efeito pernicioso dessa propaganda é a naturalização do charlatanismo, que costuma emergir em crises sanitárias desta amplitude, mas,
no Brasil, encontra guarida no aparelho de Estado.
O chamado “tratamento precoce” para a covid-19 transformou-se em um
movimento político governista de grande amplitude, com a conivência do Conselho Federal de Medicina, apesar da resistência de numerosas sociedades
médicas que não cederam a pressões ideológicas e ameaças. Embora aumentem de forma consistente os casos de sequelas e óbitos decorrentes de
efeitos adversos do uso de tais medicamentos, o Brasil, com o protagonismo
do presidente da República, é o único país que ainda persiste nessa infâmia
que é elemento essencial do encorajamento individual à exposição ao vírus.
Considerações Finais
O governo federal não assumiu, desde o começo da pandemia no Brasil, o seu necessário protagonismo na adoção de uma Política Nacional
que contemplasse, de forma inequívoca, as estratégias necessárias ao
bom combate à pandemia. Pelo contrário, sempre que tentou pautar o
debate nacional sobre a condução da pandemia foi para propor medidas
não adequadas (tais como a proposta de não obrigatoriedade do uso de
máscaras; não obrigatoriedade da vacinação e omissão na condução da
compra de vacinas; propaganda irregular do “tratamento precoce”, comprovadamente lesivo aos pacientes; dentre outras).
Estados e Municípios estão assegurando o mínimo de proteção nesse sentido, amparados pelas leis aprovadas e defendidas contra os vetos
governamentais pelo Congresso Nacional. Prefeitos e governadores cada
vez mais se sentem ameaçados se querem fazer o que é o indicado, mas
ainda contam com decisões favoráveis importantes do Supremo Tribunal
Federal, que protege a autonomia dos Estados e Municípios para organizarem as suas políticas de controle da pandemia de forma mais protetiva
que a União vem fazendo.
Estas fragilidades geram grandes danos à saúde pública e à sociedade
brasileira e precisam ser corrigidas com celeridade para evitarmos mais
mortes e sequelas.
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Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 3
Parte 3 | Desigualdades, direitos e pandemia
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As (ir)responsabilidades públicas
na gestão da saúde no contexto
da pandemia de Covid-19
Edna Maria de Araujo
Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e
Coordenadora do GT Racismo e Saúde da ABRASCO.
Desde que a pandemia causada pela Covid-19 chegou ao Brasil em
fevereiro de 2021, pesquisadores e profissionais da área da saúde viram
que o Sistema Único de Saúde (SUS), criado na década de 70 em prol da
reforma sanitária, seria o principal recurso a ser acionado para proteger a
população brasileira dos efeitos do novo coronavírus.
Antes do SUS, a saúde, no Brasil, não era um direito universal. Cada
instituição de saúde tinha a sua forma de prestar assistência, predominantemente, feita por clínicas e hospitais privados. Fora isso, a concepção
da assistência era baseada no hospital e não na promoção da saúde e
prevenção de doenças. Pode-se afirmar ainda que a assistência médica
disponível antes do SUS era comprovadamente excludente porque era entendida como um benefício previdenciário, ao qual apenas tinham direito
os trabalhadores que contribuíam com a Previdência Social. Quem estava
fora do mercado de trabalho, vivia na informalidade e sem recursos financeiros para pagar a assistência particular, era considerado “indigente” 21.
De acordo com Santos & Andrade , o Sistema de Saúde vigente antes de
1988- constituído ao longo de quase um século e consolidado no período da
ditadura militar era inadequado porque não dava conta de atender a todos,
principalmente, frente à crescente demanda decorrente do surgimento de doenças e agravos, consequências do processo de desenvolvimento nacional22.
21
ROMERO, L. C. P. . O Sistema Único de Saúde - um capítulo à parte. In: DANTAS, Bruno. (Org.). Os
Cidadãos na Carta Cidadã. Brasília: Senado Federal: Instituto Legislativo Brasileiro, 2008, v. 5, p. 67-88.
22
50
SANTOS, Lenir; ANDRADE, Luiz Odorico Monteiro. SUS: quando um sistema de saúde na-
Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 3
O SUS foi construído sob a ótica da pluralidade para tornar a saúde da população brasileira um direito, sendo dever do Estado provê-lo. Para tanto, o SUS determina a organização das ações e serviços públicos de saúde por meio de uma
rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único, sob diretrizes
de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade23
A partir deste entendimento, de como era a saúde no Brasil antes e
após o SUS, é possível afirmar que uma das principais potencialidades
deste sistema frente à pandemia de covid-19 é a Atenção Básica ou Atenção Primária à Saúde (APS) que representa a “porta de entrada ou atendimento inicial” e é um filtro capaz de organizar o fluxo dos serviços nas
redes de saúde, dos mais simples aos mais complexos24
A APS conta com uma série de ações, como o Estratégia de Saúde da Família, que têm a vantagem de serem desenvolvidas junto às comunidades, permitindo a aproximação dos trabalhadores de saúde com a população. Essa característica pode ser considerada fundamental para o enfrentamento de uma
doença que é mais letal para quem não tem fácil acesso à informação, vive
nas periferias em residências com alta densidade domiciliar, tem alta prevalência de comorbidades e possui ocupações que os expõem a ser infectado
pelo vírus. Toda essa realidade é conhecida pelos trabalhadores da Estratégia
de Saúde da Família e, principalmente, pelos agentes comunitários de saúde,
cuja rotina mais corriqueira de suas ocupações é fazer visitas domiciliares. O
conhecimento da realidade dessas famílias tem sido essencial para que o impacto da pandemia no Brasil não esteja sendo ainda mais catastrófico25 .
cional e único na sua conformação organizativa foi implantado num país federativo. Exigência de
novos paradigmas administrativos. Saúde em Debate, v. 30, n. 73/47, p. 189- 204, maio/dez. 2006.
23
SANTOS, Lenir; ANDRADE, Luiz Odorico Monteiro. SUS: quando um sistema de saúde nacional e
único na sua conformação organizativa foi implantado num país federativo. Exigência de novos paradigmas administrativos. Saúde em Debate, v. 30, n. 73/47, p. 189- 204, maio/dez. 2006.
Giovanella, Lígia. Atenção básica ou atenção primária à saúde? Cad. Saúde Pública 2018; 34(8):e00029818
24
Giovanella, Lígia. Atenção básica ou atenção primária à saúde? Cad. Saúde Pública 2018;
34(8):e00029818
25
Freitas, André Ricardo Ribas; Napimoga, Marcelo; Donalisio, Maria Rita. Análise da gravidade da pandemia de Covid-19 Epidemiol. Serv. Saúde vol.29 no.2 Brasília 2020 Epub Apr 06, 2020
https://doi.org/10.5123/s1679-49742020000200008
Parte 3 | Desigualdades, direitos e pandemia
51
Por tudo isso, é preciso fortalecer e lutar pelo SUS, já que ele atende
a necessidade de saúde de grande parte das populações em situação de
vulnerabilidade, a exemplo da população negra, cuja cobertura de assistência está em torno de 67%.
O contexto de pandemia que estamos vivenciando está nos mostrando a
importância de termos a Estratégia de Saúde da Família, composta por profissionais que conhecem a realidade de cada núcleo familiar e de suas áreas
adscritas. Apesar de termos um dos sistemas de saúde mais democráticos
do mundo, mesmo com suas limitações, ele foi, ainda mais, negligenciado
no combate à pandemia. Com certeza, se não estivéssemos vivenciando um
contexto político de negação de evidências científicas, incentivo ao charlatanismo e atraso na compra de vacinas, a pandemia de Covid-19, no Brasil, poderia ter sido controlada há mais tempo e evitado tantas infecções e mortes.
É preciso rechaçar Emendas Constitucionais, como a de nº 95/2016 - regime
fiscal para vigorar por 20 (vinte) anos - que limita gastos e investimentos públicos, especialmente nos serviços de natureza social, sob a justificativa de priorização do crescimento econômico. Portanto, esta emenda limita o financiamento
do SUS e, inclusive, reduz o quantitativo de profissionais de saúde que prestam
assistência ao povo. Por tudo isso, é preciso não reeleger parlamentares defensores dos interesses dos setores privados da saúde. O SUS não pode ser minimizado.
Considerando que antes da pandemia o Brasil já detinha o segundo lugar no
mundo em termos de concentração de renda e somado às desigualdades sociorraciais, marca do racismo estrutural que perpassa as instituições e a sociedade,
podemos afirmar que o quadro sanitário de aproximadamente 20 milhões de
pessoas infectadas e 600 mil óbitos devido ao coronavírus até aqui, poderia ser
muito pior se não tivéssemos um sistema de saúde com princípios doutrinários
e organizativos tão abrangentes e democráticos (Almeida, 2019; PNUD,2019).
Todavia, não há como negar que o atual governo do Brasil perdeu uma
grande oportunidade de, no contexto da pandemia, ter revogado a EC 95
e fortalecido o SUS provendo-o com financiamento adequado e, consequentemente, ampliando a sua capacidade de atuação na atual crise sanitária, e em outras que ainda possam ocorrer.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil2019. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acessado em 01/10/2021.
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Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 3
Foto: Thomas de Luze
a palavra dos
movimentos
A importância dos webinários na
construção de uma agenda de direitos
Paulo Mariante
A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) considera que os webinários realizados pelo Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid foram muito importantes porque
ajudaram a sistematizar dados e informações para entendermos melhor o
momento que estamos vivendo, especialmente ao abordar questões como
os impactos socioeconômicos da pandemia, a execução orçamentária no
período e as ilegalidades cometidas pelo Governo Federal no enfrentamento a pandemia. Do nosso ponto de vista, que privilegia não apenas a população LGBT, mas toda a população brasileira trabalhadora e pobre, o quadro
anterior a pandemia já não era positivo para essa parcela da população,
principalmente após o golpe sofrido pela presidente Dilma Rousseff, sendo
agravado pelo Governo Temer e posteriormente pelo Governo Bolsonaro. O
que nós temos hoje é uma explosão de preços de alimentos, combustíveis,
gás – necessidades básicas da população – o retorno da fome e o aumento
da violência contra mulheres, negros e negras e LGBT’s, em especial travestis e transsexuais. Vemos que todos os indicadores sociais pioraram! É
importante que enfrentemos esse cenário através da construção de pontes
para a saída da crise, como proposto pelos webinários realizados pelo observatório. E nós acreditamos que a saída dessa crise passa necessariamente pela superação do governo genocida de Jair Bolsonaro.
Parte 3 | Desigualdades, direitos e pandemia
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Foto: Avelino Regicida
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Desigualdades, direitos e pandemia | Parte 3
Considerações finais
Parte 3 | Desigualdades, direitos e pandemia
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Desafios e recomendações:
pontes para saída da crise
O trabalho de monitoramento, pesquisa e incidência que o Observatório
Direitos Humanos, Crise e Covid vem realizando para identificar os principais
impactos da pandemia da vida dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros apontou que apesar de a Covid-19 gerar efeitos novos e diversos para
diferentes setores da vida pública e privada, suas consequências poderiam
ter sido amortecidas com uma ação governamental eficaz.
O governo do presidente Jair Bolsonaro, abertamente anti-democrático e contrário às pautas que favorecem às populações mais vulneráveis
do país, fez uma gestão não apenas ineficaz do ponto de vista da saúde,
ao atrasar a vacinação e gerar uma onda de desinformação sobre a doença, propagando ideias anti-científicas que contribuíram para a disseminação do vírus, mas também desastrosa em outras áreas prioritárias.
Conforme exposto nos textos que compõem este livro, a crise inaugurada pelo coronavírus não se limitou ao campo sanitário, mas estendeu-se para outros setores da vida social, afetando sobremaneira a
renda, o emprego e a qualidade de vida dos brasileiros, em especial a
população pobre e negra, escancarando as desigualdades pré-existentes em nosso país.
Além disso, medidas governamentais tomadas antes da pandemia contribuíram diretamente para a crise que se instalou no período. A Emenda
Constitucional 95, que limitou os gastos públicos, foi uma das medidas
que mais prejudicou o combate à pandemia no país. Ao estabelecer um
teto máximo de investimento em áreas sociais prioritárias, como saúde,
educação e assistência social, a emenda contribuiu para que as desigualdades sociais existentes no país fossem aprofundadas, uma vez que são
as parcelas mais pobres da população que necessitam dos benefícios e
investimentos destas áreas.
Ademais, a partir de 2016, após o golpe contra a ex-presidenta Dilma
56
Desigualdades, direitos e pandemia | Considerações finais
Rousseff, uma série de medidas anti-populares passaram a ser aprovadas pelo Congresso Nacional. Desde esse período, o Estado passou a dar
menos suporte para os grupos mais vulneráveis, como fica claro com a
redução da taxa de cobertura do seguro-desemprego, um impacto direto
da reforma trabalhista de 2017, e pela diminuição do orçamento do Bolsa
Família, recentemente extinto pelo presidente Jair Bolsonaro.
Assim, a alta vulnerabilidade vivida no Brasil nos últimos anos deve-se
não apenas à crise econômica agravada pela pandemia, mas também a
ausência de ação do Estado em fornecer aos mais vulneráveis subsídios
para que conseguissem manter níveis sustentáveis de vida.
Para superarmos esses problemas, algumas ações políticas são necessárias: é necessário que o teto dos gastos públicos seja revogado, para
que, assim, não haja limitação de investimentos em áreas sociais prioritárias; os orçamentos dos campos da educação, saúde, assistência social e
meio ambiente, entre outros, precisa ser recomposto e priorizado dentro
da agenda política; é essencial que uma reforma tributária progressiva seja
implementada, desonerando os mais pobres e onerando os mais ricos,
para que assim possamos construir novamente um espaço democrático
comprometido com a redução das desigualdades existentes no país; e por
fim, é preciso que os espaços de participação política sejam garantidos,
para que assim possamos contribuir conjuntamente para a consolidação
de uma agenda política que respeite e priorize os direitos sociais e humanos das populações mais vulneráveis do país.
Considerações finais | Desigualdades, direitos e pandemia
57
Referências Bibliográficas
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ajuda da União. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://bityli.com/QCRJyU>.
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Referências bibliográficas | Desigualdades, direitos e pandemia
59
Autoras e Autores
AMANDA PIMENTEL
Mestre em Direito pela PUC-Rio e Graduada em Direito
pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Advogada.
Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV-SP e do Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid.
CLÉO MANHAS
Assessora política do Inesc
DARCI FRIGO
Coordenador Executivo da Terra de Direitos
EDNA MARIA ARAÚJO
Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e Coordenadora do GT Racismo e Saúde da
ABRASCO.
FELIPE DA SILVA FREITAS
Doutor em direito pela Universidade de Brasília, professor do Programa de Pós Graduação em Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). É diretor da Plataforma Justa e
pesquisador do Observatório Direitos Humanos, Crise e
Covid-19.
FERNANDO AITH
Professor Titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – FSP/USP e Diretor Geral do
Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP – Cepedisa/USP.
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Desigualdades, direitos e pandemia | Autoras e Autores
IAN PRATES
Doutor em sociologia pela USP (Universidade de São
Paulo), pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento) e da SAI (Social Accountability
International).
JEAN PERES
Doutorando em economia pela Unicamp, economista
chefe da Plataforma Justa
MALU STANCHI
Pesquisadora do Observatório Direitos Humanos, Crise
e Covid.
PAULO MARIANTE
Advogado e Dirigente da Associação Brasileira de Gays,
Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos, ABGLT
ROSELI FARIAS
Economista e Analista de Planejamento e Orçamento
do Ministério do Planejamento
Autoras e Autores | Desigualdades, direitos e pandemia
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Desigualdades, direitos e pandemia | Autoras e Autores