Ensino jurídico é locus de produção de formas de pensamento, hábitos e cultura que revestem segregação racial MARIA PAULA DALLARI BUCCI LUCAS MÓDOLO 05/01/2021 06:37 A adoção das cotas raciais pela Faculdade de Direito da USP em 2016,...
moreEnsino jurídico é locus de produção de formas de pensamento, hábitos e cultura que revestem segregação racial MARIA PAULA DALLARI BUCCI LUCAS MÓDOLO 05/01/2021 06:37 A adoção das cotas raciais pela Faculdade de Direito da USP em 2016, quando a universidade aderiu ao Sisu (Sistema de Seleção UniEcada), veio tarde. Mas seu impacto veio para Ecar. O efeito do ingresso dos cerca de 100 estudantes negros e negras a cada ano é muito maior do que a proporção deles no corpo discente. Sua presença desperta a urgência de um processo de reeducação de professores e colegas brancos para o antirracismo. "A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas" [1]. E isso, segundo o Pequeno Manual Antirracista [2] , de Djamila Ribeiro, passa por informar-se sobre o racismo, enxergar a negritude, reconhecer os privilégios da branquitude e perceber o racismo internalizado em cada um. Com essa pauta, em 23 de novembro de 2020, na oportunidade do Dia da Consciência Negra, a Comissão de Graduação da Faculdade de Direito da USP promoveu debate sobre racismo e ensino jurídico. O ensino jurídico é um locus de produção de formas de pensamento, hábitos e cultura que revestem ou ocultam a segregação racial. Desde a fundação das primeiras faculdades de direito no país, a lógica pouco sensível ao tema das relações raciais naturaliza a convivência desigual e excludente nas instituições do chamado "sistema de justiça". Isso invisibiliza os impactos que a raça exerce sobre o cotidiano da atividade dos proEssionais e acadêmicos da área. Recentemente, a Polícia Militar de São Paulo, premida pelas denúncias do cunho racista de suas abordagens, designou um tenente-coronel negro para a reformulação do manual de direitos humanos da PM. Segundo ele, apesar do trabalho que vem sendo feito há alguns anos, em convênio com a Faculdade Zumbi dos Palmares, para oferecer aulas de diversidade a policiais, a derrubada do "Eltro racista" de abordagens policiais precisa de um tratamento mais profundo, que envolva o comando da instituição: "Para que esses cursos deem frutos na polícia, seria necessário que desde o Secretário da Segurança até os comandantes dos batalhões participassem dessa reciclagem." Na verdade, se pensarmos não em reciclagem, mas em formação, veremos o papel imenso que pode ter o ensino jurídico, se se propuser a quebrar a forma de reprodução do racismo e produzir, em seu lugar, um molde de pensamento e cultura antirracista. O papel do ensino jurídico, no antirracismo, passa por despertar a percepção sobre o grau de exclusão dos negros e o que signiFca, socialmente, alijar das oportunidades cerca de metade da população brasileira. Para além da grave injustiça social, o custo da violência permanente da segregação e a perda econômica disso são enormes, conforme se sabe desde a fundação do Brasil independente. Na elaboração de Constituição de 1824, o constituinte mais ilustre, José Bonifácio, terminou exilado pela ousadia de sua Representação sobre a Escravatura, que indicava a educação e a possibilidade de trabalho autônomo em um pedaço de terra como caminhos para a gradual emancipação dos escravos e sua futura integração na sociedade. Não é por acaso que há tribunais sem negros, promotorias sem negros, defensorias sem negros e salas de aula sem negros. Não é por acaso também que há bibliograEas de disciplinas sem negros. A presença do alunado negro traz uma perspectiva crítica sobre essas ausências. Não se trata de "cotismo pedagógico", mas de escuta civilizatória, isto é, desenvolver a capacidade de ouvir, de aprender com os negros e negras, do seu ponto de vista, sobre as experiências que a sociedade lhes proporciona. Clovis Moura, Luiz Gama e Sueli Carneiro, entre tantos autores, são relatores mais Eéis da desigualdade, não apenas sobre o tema do racismo estrito, mas sobre tudo o que envolve sua vivência social, inclusive as regras jurídicas. A adoção das cotas foi apenas o passo inicial de uma longa caminhada. Para os estudantes negros e negras, o primeiro de uma verdadeira corrida de obstáculos. O mero ingresso na universidade não derruba as barreiras que vêm em seguida, como conseguir estágio em um escritório de prestígio, ou ser aceito em programa de pós-graduação. Com isso em mente, foi lançado, em março de 2020, o programa Incluir Direito, parceria da Faculdade de Direito da USP com o CESA-Centro de Estudos das Sociedades de Advogados, que reúne alguns dos grandes escritórios de advocacia de São Paulo, visando dar aos jovens cotistas oportunidade de acesso a uma vaga de estágio, e, mais do que isso, nas palavras de um advogado, "de se tornarem futuros sócios". Para isso, outras tantas diFculdades têm que ser superadas, como requaliEcar os setores de recursos humanos, cuja resposta automática costuma ser a rejeição dos diferentes já na primeira entrevista. O ano de 2020, que escancou os termos da desigualdade social nas ajições da pandemia, evidenciando o abismo que existe entre as condições de moradia, acesso a bons serviços de saúde e proteção social de brancos e negros, tornou inevitável nos envolvermos com a temática racial. Esse é o momento da transformação, de aproveitarmos esse ano tão atípico para nos darmos conta de nossa acomodação em torno desse tema, hora de semear num solo mais fértil para a construção de um ensino jurídico antirracista. Pensar o antirracismo sob as lentes do Direito levará ao estabelecimento de um novo marco de leituras e abordagens, capaz de deEnir novas bases metodológicas para a construção de uma mentalidade mais justa para os futuros juristas. Aqui, o antirracismo deve ser compreendido como mais do que um discurso construído na internet, do qual todos são parte por simplesmente o apoiarem sem grandes rejexões. Deve ser lido e difundido como um sólido movimento de oposição à estrutura de sociedade que coloca pessoas negras em situação de desvantagem em todos os aspectos da vida civil, política e social. Aqui entram em jogo as necessárias rejexões sobre o privilégio branco e o desaEo de aproximar diferentes grupos raciais das pautas de combate ao racismo, dentro e fora do mundo jurídico. Concretamente, ser uma pessoa branca em um país que conserva o quase intocado ideário de democracia racial implica posições privilegiadas, mesmo involuntárias, sobretudo no acesso a recursos materiais e simbólicos [3]. Quando os juristas e futuros juristas reconhecerem os benefícios da branquitude-a posição que sistematicamente goza de privilégios sociais em detrimento de outros grupos étnico-raciais-e se perguntarem qual o lugar do branco na luta antirracista, como faz Lia Vainer Schucman, haverá maior esperança. Em termos prospectivos, o antirracismo no campo jurídico dialoga com o reconhecimento da branquitude na medida em que se busca, a partir desses elementos, a superação cotidiana de um ensino jurídico reduzido à transmissão dos conteúdos historicamente acumulados e alimentados de maneira desprendida da realidade social brasileira. Esta que, por sua vez, segue contaminada pela raça como fator estruturante. Após oito anos do julgamento da ação que conErmou a constitucionalidade da política de cotas na Universidade de Brasília (UnB), o meio jurídico é posto diante de novos desaEos. As cotas se disseminaram no acesso às universidades, no ingresso no serviço público e agora chegaram aos conselhos da Ordem dos Advogados do Brasil. É preciso que ensino jurídico não perca esse momento de transformação.