Casa Velha: Edição anotada, com biografia do autor e panorama da vida cotidiana da época
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Joaquim Maria Machado de Assis
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Casa Velha - Joaquim Maria Machado de Assis
Nota sobre a edição
Luís Augusto Fischer[1]
Esta edição dos romances de Machado de Assis, integrando a comemoração brasileira em torno do centenário de falecimento do grande escritor, pretende colaborar para uma leitura mais profunda e mais proveitosa de sua obra. A coleção abrange os nove romances tradicionalmente conhecidos do autor mais o texto Casa Velha, ora tratado como conto, ora como novela, que Machado em vida publicou apenas como folhetim, e que recebeu edição completa em livro somente em 1944, por Lúcia Miguel Pereira, texto que nós, seguindo a opinião de especialistas como John Gledson, acolhemos na galeria de seus romances.
Muitos deles foram primeiro publicados de forma seriada, em revistas, para só depois aparecerem em livro. São eles, por ordem de redação:
Tendo em vista o leitor não especializado – o leitor escolar, o leitor universitário, o leitor leigo em geral –, esta edição coloca ao alcance de todos um texto criteriosamente revisado e enriquecido com alguns materiais ilustrativos. Como parte desse projeto, apresentamos aqui os critérios que organizaram a edição.
(a) Quanto ao texto dos romances: como sabem todos os especialistas, a obra de Machado de Assis ainda hoje não recebeu uma edição crítica total; todas as edições que circulam padecem, em alguma medida, dessa ausência. Por isso, a L&PM tomou as seguintes precauções: primeiro, o texto foi cuidadosamente revisado, tomando em conta as edições Jackson e Aguilar, as mais completas em termos extensivos (mas ambas com muitos erros), assim como as edições Garnier, feitas ainda em vida pelo autor, e as edições da chamada Comissão Machado de Assis (instituída em 1958), que iniciaram o trabalho de edição crítica.
(b) Quanto à ortografia: como se sabe, depois do tempo de vida do autor e depois do trabalho da Comissão, houve reformas ortográficas que alteraram significativamente a ortografia da língua portuguesa. Isso significa que o texto das primeiras edições (Garnier), assim como o texto das edições mais completas (Jackson e Aguilar) e o da edição mais controlada cientificamente (a da Comissão) requerem atualização ortográfica. As providências que tomamos foram basicamente as seguintes: atualizamos a grafia de palavras (dous
para dois
, por exemplo), incluindo os topônimos (Rubicão
em lugar de Rubicon
) e a acentuação; utilizamos as formas aportuguesadas de termos estrangeiros incorporados (almanack
para almanaque
, por exemplo), salvo em casos em que o contexto impusesse a manutenção da forma original; grafamos as formas de tratamentos e as abreviaturas conforme a regra atual; introduzimos sistematicamente o travessão nos diálogos quando da passagem do discurso direto, do personagem, para o relato do narrador e vice-versa; em alguns poucos casos, introduzimos ou retiramos vírgulas que marcam adjuntos adverbiais longos; e introduzimos vírgulas em orações de evidente caráter explicativo, isto é, não restritivo. Não se tratou nunca de alterar vocabulário eventualmente desusado, nem de mudar características expressivas da pontuação do autor (que, por exemplo, usa abundantemente vírgulas não obrigatórias e não totalmente canônicas para separar predicados referidos ao mesmo sujeito); em todos os casos, a intenção foi a de tornar fluente a leitura para o leitor do português de nosso tempo.
(c) Quanto às notas: foram apostas notas de rodapé nos seguintes casos – (1) tradução linear de citações em língua estrangeira; (2) esclarecimento sumário, com pequenas notas biográficas das personalidades mencionadas no texto, bem como de autores citados; (3) esclarecimento de alguma palavra desconhecida para o leitor médio e de importância vital para a compreensão do texto; (4) esclarecimento de algum eventual dado histórico ou geográfico indispensável à boa intelecção do texto. Não se tratou de esclarecer toda e qualquer palavra que o leitor médio ou escolar de hoje desconheça, mas de explicar palavras, dados ou referências específicas sem cujo conhecimento o texto não faz ou perde sentido.
Além dessas providências, dotamos os livros de um aparato destinado a contribuir para uma leitura proficiente: uma biografia sumária; uma cronologia da vida e obra de Machado, acrescida de episódios decisivos da vida brasileira e ocidental no período de vida dele; um panorama do Rio de Janeiro na época, contendo esclarecimentos sobre aspectos culturais e históricos hoje bastante distantes do leitor, relativos a horas do dia, horários das refeições, vestimenta, meios de transporte, dinheiro, diversões e aspectos da vida social do período; um mapa do Rio de Janeiro, em que são apontados os principais itens da geografia da cidade e do estado referidos no romance machadiano; por fim, um ensaio crítico, elaborado por especialista, que oferece ao leitor um panorama do debate que o livro despertou e continua despertando em seus leitores.
[1]. Professor de Literatura Brasileira da UFRGS e autor de diversos livros, entre os quais Machado e Borges, Literatura Brasileira: modos de usar, Dicionário de porto-alegrês e o romance Quatro negros.
Pequena biografia de Machado de Assis
Luís Augusto Fischer
A vida do maior escritor brasileiro de todos os tempos ainda é bastante desconhecida, e talvez assim permaneça para sempre. Machado de Assis pouco escreveu diretamente sobre sua infância e juventude, e muitas vezes parece ter mesmo decidido silenciar sobre vários aspectos de sua vida pessoal. Para dar um exemplo: depois da morte da esposa, ele mandou destruir a correspondência que havia mantido com ela. Perdeu-se um material que certamente poderia ter contribuído para nós, seus pósteros, sabermos mais a respeito de sua intimidade. Mesmo na maturidade, quando se havia convertido em uma figura de prestígio público, há aspectos bastante obscuros de sua experiência. Quando começou seu problema de saúde? Por que ele não manteve laços claros com parentes seus e de seus pais? É verdade que ele renegava sua condição de descendente de escravos?
Essas perguntas e várias outras permanecem lamentavelmente sem resposta clara. Mas isso não desautoriza as perguntas: por mais que saibamos que a obra de arte nunca responde diretamente aos aspectos da vida real do autor, a vida de um grande artista sempre interessa, em alguma medida, para a compreensão de sua obra. Nem que seja para a gente admirar como é que o sujeito pôde, em meio a seus tormentos pessoais, inventar os mundos que inventou, flagrar as tantas coisas que flagrou.
Para quem gosta de encontrar paradoxos, a vida de Machado de Assis é um terreno promissor. Menino pobre, nascido no morro do Livramento, relativamente perto do Centro da cidade do Rio de Janeiro – a capital, sede dos poderes do Império do Brasil e por isso mesmo chamada de a Corte
, e a mais importante cidade brasileira de então –, numa situação social precária, subiu todos os degraus possíveis para quem contava apenas com seu trabalho, vindo a falecer em confortável situação econômica, sem nunca ter sujado as mãos em negócio escuso, numa história repleta de méritos próprios. Tornou-se nada menos que o mais importante escritor de sua época no país, reconhecido ainda em vida quase unanimemente, tudo isso coroado, como um símbolo final, com a eleição para a Presidência da Academia Brasileira de Letras. Num país que foi escravista até quando tal regime não era mais sequer rentável do ponto de vista econômico (1888), e em se tratando de um pobre descendente de escravos, Machado não é apenas um caso curioso; é uma das mais eloquentes exceções concebíveis.
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 1839 (21 de junho), filho de Francisco José de Assis, um pintor de paredes e dourador, mulato (filho, por sua vez, de escravos alforriados), e de uma portuguesa açoriana, imigrada menina para o Brasil, Maria Leopoldina Machado de Assis, que fazia serviços domésticos. Os dois sabiam ler e escrever, coisa bastante rara para sua condição social; casaram-se relativamente tarde: ela com 26 anos, ele com 32. Sua família – os pais, ele e uma irmãzinha mais nova, Maria, que morreu de sarampo aos cinco anos – formou-se na condição de agregada da família rica que vivia numa propriedade senhorial, no Livramento; pai e mãe trabalharam ali. Os padrinhos do menino foram gente dessa família, o que é mais um sintoma de sua condição humilde, porque era típico que filhos de agregados buscassem a proteção dos senhores mediante apadrinhamento.
Ficou órfão de mãe ainda menino, antes dos dez anos; o pai voltará a casar em 1854, quando Joaquim Maria andava pelos quinze anos; a nova esposa chamava-se Maria Inês, tinha sangue negro como o pai, e estava com 33 anos ao casar (Francisco estava com 46 anos e morreria não muitos anos depois disso). Não se tratava de gente miserável, mas pobre; seus avós e seus pais eram todos pessoas livres, isto é, não escravos, mas todos dependeram de algum tipo de proteção de gente de cima, pelo menos em alguma época de suas vidas. Em termos atuais, pertenceriam a um estrato inferior da classe média (supondo abaixo deles os escravos), ou a um estrato superior da classe baixa.
Para entender mais de perto esse quadro, é preciso pensar em uma realidade que para nós não é muito simples de conceber: um mundo em que cotidianamente se cruzavam nas ruas e nas casas indivíduos livres e outros escravos, sendo que entre os livres havia muitos com ascendência africana, visível na cor da pele. Como saber exatamente quem era o quê? E mais ainda: entre os livres havia muitos alforriados, quer dizer, libertados em seu período de vida; mas essa alforria em muitos casos era reversível, isto é, aquele antigo proprietário podia registrar, em documento de valor legal, que concedia a liberdade para seu escravo desde que este mantivesse bom comportamento, ou permanecesse servindo ao antigo dono até a morte, etc. Homens e mulheres livres desde sempre, como Joaquim Maria, seu pai e sua madrasta, podiam ser tomados como alforriados ou, pior ainda, como escravos, ao andarem pela rua; inversamente, escravos podiam ser tomados por homens livres, ao cruzarem a mesma rua.
Coloquemos na conta as datas de referência: em 1850 (Machado com onze anos), é editada uma lei que proíbe o tráfico de escravos, o que ao mesmo tempo fecha a fonte costumeira de mão de obra e complica a vida dos escravos aqui existentes e os que nasciam de ventre escravo, que agora tinham mais valor de mercado e por isso mesmo eram mais vigiados; em 1871 (Machado adulto, já com 32 anos, já funcionário público) sai a Lei do Ventre Livre, que demorou para ser aplicada mas que representou outra novidade importante, porque colocava um horizonte de tempo para a vigência da escravidão; e só em 1888 (Machado maduro, com quase cinquenta anos) viria a Lei Áurea, que acabou com a escravidão legal no Brasil.
Voltemos à meninice de nosso escritor. De poucos dados documentais se tem certeza; daí por diante há muita especulação. Uma delas sugere que ele teria renegado viver com a madrasta, que era quituteira e doceira. Mas essa renegação é pouco crível, já que na altura dos quinze anos ele começou a trabalhar regularmente, e pouco depois já estava morando fora da casa familiar.