O mago de Camelot
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Sobre este e-book
Na Britânia do Século V da Era Cristã – abandonada pela queda do Império Romano à barbárie dos invasores saxões –, Merlin surge para impor um novo tipo de rei a um povo abatido e desesperado, alterando, para sempre, não apenas o destino dos britânicos, mas de toda a humanidade.
A saga de um homem determinado a erigir uma civilização de paz e justiça numa terra devastada pelo caos e a guerra em uma aventura épica e brutal que equilibra realismo duro com doses amargas de magia.
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O mago de Camelot - Marcelo Hipólito
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Para Felipe, meu filho amado.
Parte I
Trevas
Prólogo
Século III da Era Cristã, Britânia romana
No outono, a Cornóvia tornava-se uma região seca, estéril e gelada.
Os ventos da tarde açoitavam os longos cabelos negros da garota de aparência selvagem, dona de uma pesada bolsa empoeirada e um rude vestido cinzento, infestado de carrapatos e pulgas.
Natural do antigo e decadente reino de Gwent, a jovem raramente vagava para além de suas fronteiras.
Seus quase dois metros de altura escondiam-lhe a pouca idade. Com apenas dezenove anos, Nimue já presenciara o bem e o mal pelas estradas da Britânia. Já encontrara bandidos e saqueadores, loucos e eremitas, desertores e fugitivos; contudo, afortunada, jamais sofrera violência ou perseguição. Em parte devido à sua compleição masculina, ao rosto duro e feio e à ausência de seios e curvas, mas também por causa de seu talento como curandeira. Ela tratava desde pequenas dores às mais severas moléstias, sempre com paciência e determinação. Por seus serviços, recebia comida e abrigo dos pobres. Já dos ricos, cobrava objetos e artefatos de valor. E tamanha era sua fama que mesmo os nobres mais abastados mandavam procurá-la nas trilhas remotas de Gwent, quando se achavam enfermos e desacreditados pelos druidas, a temida e ancestral ordem de homens sagrados da Britânia. Senhores dos rituais, mistérios e enigmas da Natureza.
E, desde pequena, Nimue descobrira-se uma serva da Natureza.
Aos seis anos, deixara sua diminuta aldeia para fugir das surras do pai, abandonando a mãe e os doze irmãos. Sozinha, aprendeu a sobreviver da floresta – de seus frutos, suas raízes e seus rios – e a comungar com a Natureza, a força mística residente em todos os seres vivos, criadora dos quatro elementos – Ar, Água, Fogo e Terra – e de um panteão de deuses submissos e subservientes.
Inspirada por sua afinidade inata com o sobrenatural, Nimue buscou os ensinamentos dos druidas. Porém, os mestres da ordem recusaram-se a tomar uma mulher como aprendiz.
Frustrada, Nimue desenvolveria suas aptidões na solidão da floresta, seguindo seus próprios instintos. Com o tempo, aprenderia a conjurar magias e preparar infusões. E seus poderes cresceriam a ponto de a Natureza agraciá-la com visões do passado e do futuro.
E seria justamente uma visão a responsável por trazê-la aos confins da Cornóvia, ao lhe revelar o maior segredo dos druidas: a localização de Avalon, desconhecida até dos reis britânicos.
Segundo a lenda, Avalon, a Ilha das Maçãs, oculta sob a proteção de um manto eterno de névoa fria e espessa, era a fonte do poder dos druidas e o coração da Natureza.
Um poder agora ameaçado.
Em sua visão, Nimue assistira ao avanço dos desprezíveis romanos, conquistadores implacáveis da Britânia, sobre o solo divino da ilha.
Assim, a feiticeira se apressara para chegar a Avalon e alertar os druidas do perigo iminente. Todavia, chegara tarde demais.
Do alto da colina, os barcos de assalto pareciam chagas escuras no mar azul e límpido. As brumas da Ilha das Maçãs abriam-se ao ímpeto da força invasora.
De alguma forma, Roma descobrira o refúgio milenar da Natureza, desembarcando dúzias de legionários em suas praias, armados com seus infames gládios, sob flâmulas rubras e esvoaçantes.
Nimue estremeceu, afinal previra um destino pavoroso para si, caso falhasse em alertar a reclusa ordem sobre o ataque. Diante da queda da ilha, pensou em fugir, evitando uma morte sofrida. Contudo, sua fidelidade à Natureza superou o medo.
Nimue desceu a colina, na direção oposta à enseada de onde partiam as embarcações romanas, e percorreu a linha costeira até avistar um vilarejo de pescadores, cuja população havia debandado com a aproximação dos legionários. Seus barcos, porém, permaneciam encalhados na areia.
Sem hesitar, Nimue empurrou um dos pesqueiros em direção ao mar e subiu a bordo, depositando sua bolsa de couro no assoalho incrustado de sal. Ela invocou a ajuda das correntes marítimas com um feitiço. O barco foi levado, em silêncio, para uma margem deserta de Avalon, escondida das sentinelas romanas.
Nimue embrenhou-se na densa floresta da ilha, marcada por macieiras e salgueiros portentosos. Um imenso poder emanava do solo sagrado, causando-lhe calafrios. Ela se admirou com a beleza das árvores, dos riachos e das clareiras, contemplando a força vital impregnada em cada rocha, pedra e grão de terra.
Finalmente, a jovem se deparou com a clareira que vislumbrara na sua visão. Lá, cortou os galhos de um tronco caído usando uma machadinha trazida em sua bolsa e esculpiu um singelo altar de madeira. Depositou nele os objetos que trazia em sua bolsa: quatro peças de origem romana, outrora da nobreza de Gwent, conferidas a ela em pagamento por seus serviços de curandeira.
Assim, Nimue cumpriu sua missão de erigir um altar ao filho da Natureza; o messias, ainda a nascer, fadado a mudar o mundo.
Ela, então, afastou-se por uma trilha enlameada, ciente da triste sina que a aguardava.
Ao final do tortuoso caminho, Nimue se deteve diante de uma centena de espectros erguidos contra o horizonte, altos como árvores, escuros e melancólicos, disseminados por uma encosta coberta de sangue e lágrimas, no âmago da ilha. Um bosque de cruzes de madeira. Engenhos de morte e aflição para os homens agonizantes pregados às suas ripas cruéis: os druidas de Avalon.
Nimue gritou aterrorizada, atraindo uma dúzia de soldados brutos e ignóbeis. Ela não lhes ofereceu resistência, porque, enfim, chegara o momento de sua provação.
Os legionários celebraram a presença de uma mulher na ilha, mesmo tão feia. Ela proporcionaria um pouco de emoção aos guerreiros entediados com a falta de combatividade dos druidas.
Aqueles homens fétidos e obscenos arrancaram as vestes de Nimue, antes de privá-la de sua virgindade.
Depois de se saciarem, arrastaram-na à praia onde se estabelecera o acampamento romano. Lá, Nimue sofreu uma nova sequência de estupros, torturas e espancamentos. Por fim, um centurião apiedou-se da garota e cortou-lhe a garganta com seu punhal.
Então, sob as gargalhadas dos oficiais, um par de soldados arremessou o cadáver da curandeira ao mar. Silenciaram, contudo, diante do inesperado recrudescimento das brumas da ilha, enfraquecidas desde a invasão. A sinistra névoa tomou Nimue em seu abraço alvo e delicado, deslizando-a sobre as águas, para longe de seus algozes. A jovem flutuou de olhos abertos e braços estendidos como se houvesse sido crucificada em meio às brumas que se adensavam, formando um lago etéreo em torno de seu corpo.
Finalmente, o mar se abriu, engolindo a feiticeira.
Abismados, os romanos fugiram nos seus barcos, remando aceleradamente de volta à costa britânica, desejando apenas se distanciar daquela estranha magia.
E, em seu assombro, eles espalhariam o mito da mulher carregada ao fundo do oceano pelas brumas da Ilha das Maçãs. E chamaram-na de Dama do Lago, a morta de Avalon, senhora do mar e do lago de névoas.
E nenhum forasteiro tornaria a se aproximar de Avalon, o santuário proibido dos druidas.
Capítulo I
Duzentos anos depois
Os britânicos devastavam o assentamento erguido pela praga saxônica, oriunda do continente europeu no vácuo da retirada romana da Britânia.
Depois de décadas de derrotas e humilhações, eles finalmente revidavam, liderados por um rei disposto a levar a guerra ao coração dos territórios roubados pelos invasores.
Atormentado por constantes suores e dores de barriga, Constantino passara a vida como seu pai, em luta contra barões rivais e assistindo, impotente, aos chefes saxões, reunidos sob seu maior expoente, Hengist, valerem-se das divisões de seu povo para tomar as terras de seus antepassados.
Todavia, a debilidade física de Constantino escondia uma vontade férrea e um raciocínio acurado, com os quais, enfim, subjugara a competição interna para se tornar o primeiro rei britânico digno do título em séculos.
O exército real agora penetrava fundo nas fronteiras inimigas. Suas vitórias haviam demolido a moral dos bárbaros, e seu avanço vigoroso ameaçava quebrar a espinha dorsal da invasão saxônica.
Sob o olhar desapiedado dos nobres, as tropas incendiavam o assentamento, executando os homens, escravizando as crianças e violentando as mulheres, numa retribuição tardia ao tratamento dispensado pelos saxões a inúmeras aldeias britânicas no verão anterior.
Em meio à devastação e miséria, o druida Blaise se apressava, segurando o hábito encardido acima de seus joelhos pálidos, enquanto mergulhava os calcanhares no sangue fresco e abundante misturado às vias enlameadas. Rápido e jovial – ainda que fiapos grisalhos já despontassem de sua barba comprida e suja –, Blaise se desviava das pilhas de corpos e das labaredas dos casebres, ignorando os urros de agradecimento dos soldados britânicos aos deuses antigos e as orações dos padres de Constantino ao Deus cristão pelo êxito do ataque. Blaise não tinha tempo para celebrações ao se afastar com seu único saque do dia nas mãos: um filhote de raposa que achara engaiolado no interior de um modesto celeiro.
Uma raposa representava um presságio poderoso, uma manifestação da vontade da Natureza. E ele estava ansioso por desvendar seu significado, mas o faria num lugar tranquilo e reservado. Por isso, entranhou-se no bosque próximo ao assentamento.
Vortigern, conselheiro de Constantino, cavalgou na direção do rei e de seus