Vida familiar em Pernambuco colonial
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Vida familiar em Pernambuco colonial - Maria Beatriz Nizza da Silva
MARIA BEATRIZ NIZZA DA SILVA
VIDA FAMILIAR EM PERNAMBUCO COLONIAL
(SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII E INÍCIO DO XIX)
São Paulo 2017
Sobre a Autora
Rosto da escritora Maria Beatriz Nizza da SilvaMaria Beatriz Nizza da Silva
Formada em História e Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, fez sua carreira acadêmica na Universidade de São Paulo. Especializada em história do Brasil colonial, suas publicações mais recentes são: Ser nobre na colônia (2005); D. João, príncipe e rei do Brasil (2008); História de São Paulo colonial (2009); Bahia, a corte da América (2010); Cultura letrada e cultura oral no Rio de Janeiro dos vice-reis (2013); Pernambuco e a cultura da ilustração (2013); Vida familiar em Pernambuco colonial (2017); Família e herança no Brasil colonial (2017); Donas mineiras no período colonial (2017); Elites pernambucanas no fim do período colonial (2018); Pernambuco político: do constitucionalismo à independência (2018) e Sergipe colonial; uma capitania esquecida (2019).
Table of Contents
Capa
Folha de rosto
Sobre a Autora
Agradecimento
Sumário
Abreviaturas
Introdução
I. As alianças matrimoniais da elite e a questão do dote
II. A educação dos filhos e filhas
III. A emancipação dos jovens
IV. Crimes contra a família: estupro e rapto
V. A punição da esposa adúltera
VI. Família e propriedade
1 – Doações de bens
2 – Hereditariedade de cargos e de fidalguia
3 – Remuneração de serviços à Coroa
4 – Os morgados
5 – Legislação sobre a instituição de capelas: defesa dos familiares contra os eclesiásticos
VII. Família e herança
1 – Legitimações de filhos para acesso às heranças paternas ou maternas
2 – Testamentos
3 – Inventários e partilhas
4 – Tutelas e o papel do juiz dos Órfãos
5 – A situação das viúvas de militares
6 – Legados pios e a proteção financeira a parentes
7 – Os herdeiros e os bens sequestrados
VIII. Família e sociabilidade
Fontes
FONTES MANUSCRITAS
FONTES IMPRESSAS
BIBLIOGRAFIA
Notas
Ficha Catalográfica
Abreviaturas
ANTT – Arquivo Nacional de Lisboa, Torre do Tombo
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
BMP – Biblioteca Municipal do Porto
ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
RIAHGP – Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
SBPH – Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica
DH – Documentos históricos
HOC – Habilitações à ordem de Cristo
LB – Leitura de bacharéis
Introdução
Estudar a vida familiar em Pernambuco no fim do período colonial implica pesquisar não só nos arquivos nacionais no Brasil e em Portugal, mas também nos arquivos pernambucanos incluindo, se possível, o arquivo eclesiástico da diocese, e recorrendo igualmente aos viajantes estrangeiros que visitaram a capitania depois da abertura dos portos em 1808. Este livro, contudo, não assenta na documentação local pois me limitei a analisar aquilo a que chamo a vida familiar problemática. Quando surgiam problemas no cotidiano das famílias era ao rei que os indivíduos apelavam para os resolver, enviando seus requerimentos ao Conselho Ultramarino ou à Secretaria de Estado dos Domínios Ultramarinos ou, depois da chegada da Corte ao Rio de Janeiro, ao Desembargo do Paço.
Por outro lado, em relação às famílias nobres de Pernambuco era o rei que dava a última palavra em matérias como legitimação de filhos ilegítimos, emancipações, instituição de morgados, doações, punição da esposa adúltera enclausurada pelo marido num recolhimento ou convento de onde ela só podia sair mediante ordem régia, etc. Muitas eram as situações familiares em que a Coroa determinava o que se devia fazer.
Analisando a historiografia pernambucana, constatei que os estudos genealógicos atraíam mais a atenção do que o cotidiano das famílias, surgindo assim um vazio historiográfico a ser preenchido. Utilizando minha experiência na História da Família na Capitania de São Paulo, e igualmente na Capitania da Bahia, e com base na legislação, sobretudo do reinado de D. José, durante o qual se observa o maior número de mudanças no Direito da Família, tive curiosidade de saber o que se passava na Capitania de Pernambuco, deixando para os jovens historiadores pernambucanos a pesquisa nos arquivos locais, inclusive o eclesiástico, onde certamente se encontram os processos de divórcio, de esponsais, as dispensas dos impedimentos canônicos e outros documentos de igual interesse. A busca pelos documentos notariais (escrituras de dote, de doação, testamentos, etc.) é sem dúvida fundamental nesta pesquisa.
Dada a ausência de cartas familiares, de diários, de memórias ou recordações numa sociedade em que a escrita na esfera privada rareava, mesmo entre as elites, aquilo que se poderia chamar uma história da afetividade tem de ser posta de lado, surgindo apenas uma ou outra expressão de sentimentos nos testamentos, quando se tratava de legados, ou então nas escrituras de doação. Em vez de afetos, teremos comportamentos, atitudes, decisões visíveis naqueles documentos que pontuavam a vida familiar e aos quais temos acesso.
Sem o estudo da legislação civil, e em parte também da legislação canônica, não é possível entender as questões que surgem na documentação. Conhecer bem as Ordenações Filipinas, pois são essas que nos interessam, e não as afonsinas ou manuelinas demasiado distantes da época aqui estudada, e sobretudo a legislação do reinado de D. José que alterou profundamente o Direito da Família, é o conselho que dou aqueles historiadores que pretendem entrar nesta área da história. As Constituições primeiras do arcebispado da Bahia se tornam imprescindíveis, não só quando temos acesso aos arquivos diocesanos e podemos examinar a documentação ali guardada, mas também na análise de um cotidiano vigiado pela Igreja.
Desde minhas pesquisas da década de 1970, ao abrigo de dotações da Fundação Ford para a Fundação Carlos Chagas de São Paulo desenvolver os estudos sobre as mulheres, me apercebi de várias assimetrias jurídicas e das diferenças no que se referia à atitude da sociedade colonial perante os membros masculinos e os femininos das famílias. Elas serão assinaladas neste estudo.
É preciso, contudo, definir claramente a área semântica aqui abrangida pela palavra família, que nada tem a ver com o conceito de co-residência, com a noção de fogo tão do gosto dos historiadores demógrafos debruçados sobre as listas nominativas de habitantes localizadas para algumas capitanias. Também pouca afinidade tem com o sentido amplo de família que inclui toda a parentela, inclusive padrinhos e madrinhas cujos laços resultam de rituais religiosos, não se tratando portanto de laços de sangue. Meu campo de trabalho é a família nuclear e só em casos pontuais me refiro a parentes. O conceito de família por mim utilizado assenta na propriedade e na herança e aproxima-se da definição de um tratadista do início do século XIX, Antônio de Gouveia Pinto: As famílias são como umas sociedades particulares (...) com seus interesses comuns relativos a todos os indivíduos que constituem cada uma delas, e entre os quais se comunicam os bens por herança
.
Por esta razão é que o conceito de fogo ou de habitação comum é para mim de escassa utilidade, pois a documentação mostra claramente que a proteção dada pelo chefe do fogo à parentela feminina que nele vivia como agregada, ou aos expostos ali acolhidos, nada significava em termos de herança pois quando muito estes co-residentes recebiam um pequeno legado.
Aludi já às assimetrias jurídicas que vão ser analisadas neste estudo: a mulher adúltera merecia punição, mas as leis nunca falam do marido adúltero; quando a mãe morria os filhos menores tinham automaticamente seus bens administrados pelo pai, mas quando o pai morria nem sempre a mãe conseguia a tutela dos menores; a maioridade aos 25 anos nada significava para as filhas se elas permanecessem solteiras na casa paterna, mas os filhos eram efetivamente maiores com essa idade; em relação à autorização paterna para o casamento dos menores, as Ordenações só mencionam as filhas, como se os filhos não precisassem dessa autorização.
É preciso, contudo, reconhecer que a legislação portuguesa protegia financeiramente esposas e filhas. Quando os maridos morriam as mulheres podiam contar com suas meações, ou seja, a metade dos bens, ao contrário do que ocorria nas colônias inglesas da América, onde as viúvas não tinham nenhuma garantia de sobrevivência financeira. Além desta proteção às esposas, as leis não faziam qualquer distinção entre filhos e filhas, nem entre os primogênitos e o resto da prole, a menos que tivesse sido estabelecido um vínculo de morgado. A igualdade entre os herdeiros constitui outra característica do Direito português, e os pais só podiam beneficiar as filhas recorrendo às suas terças, ou seja, à terça parte dos bens da qual o testador podia livremente dispor.
Para finalizar, uma advertência em relação ao último capítulo sobre família e sociabilidade. Em comparação com a Bahia e o Rio de Janeiro, principais portos visitados pelos estrangeiros depois de 1808, é escassa em Pernambuco a presença de europeus observadores das práticas sociais e dispostos a descrevê-las em livro. Podemos apenas contar com o relato do inglês Henry Koster, atento ao cotidiano das famílias, e com as Notes dominicales de Tollenare, mas o comerciante francês deteve-se sobretudo em temas mais de acordo com seus interesses relativos ao comércio do algodão. Maria Graham deixou-nos, como seria de esperar de uma inglesa viajante, algumas observações relevantes em seu Diário, mas sua permanência em Pernambuco foi demasiado curta e dominada pelos temas políticos. Desta escassez da literatura de viagens resulta a necessidade de recorrer ocasionalmente a uma documentação esparsa produzida pelos próprios pernambucanos.
I
As alianças matrimoniais da elite e a questão do dote
As Constituições primeiras do arcebispado da Bahia tomaram todas as precauções para que não mais se confundissem os esponsais com o casamento verdadeiro. Em primeiro lugar procuravam evitar que a promessa de casamento fosse seguida de relações sexuais entre os parceiros: E declaramos que ainda que entre os desposados se siga cópula depois dos desposórios, não ficam por isso casados de presente, segundo a disposição do sagrado concílio tridentino, o qual nesta parte emendou o direito antigo
. ¹ E punições se seguiam a quem não obedecesse à seguinte exortação: Exortamos e mandamos aos esposos de futuro, que, antes de serem recebidos em face da Igreja, não coabitem com suas esposas vivendo, ou conversando sós em uma casa, nem tenham cópula entre si
. Sendo os esposos nobres, a pena pecuniária de cada um era 10$000 réis; sendo de menos qualidade
, ou seja, plebeus, 5$000. Também os progenitores estavam sujeitos ao mesmo tipo de pena se facilitassem a co-habitação do casal: E encarregamos a seus pais, e mães, os não consintam estar de portas adentro sob pena de um marco de prata
.
Para evitar confusões, proibiam terminantemente que a cerimônia dos esponsais se realizasse na presença de um padre:
E porque, para se celebrarem desposórios de futuro se não requer a presença do pároco, mas antes se podem seguir muitos inconvenientes de se achar presente, mandamos aos párocos do nosso arcebispado, sob pena de 2$000 réis pagos do Aljube, e 6 meses de suspensão de suas ordens, não sejam presentes aos tais desposórios de seus paroquianos.
²
Se por um lado a Igreja combateu os esponsais enquanto substitutivo do verdadeiro matrimônio e tomou as devidas providências para que as duas cerimônias não se identificassem aos olhos da população, por outro ela continuou a atribuir importância à sua celebração. Nos casos de quebra da promessa julgados pelos tribunais eclesiásticos, sempre se inquiria acerca da forma como tinham sido celebrados. Nesse ritual, equivalente hoje à festa de noivado, havia testemunhas, troca de presentes, juramentos, etc. Pude estudar, no Arquivo da Cúria de São Paulo, esses processos de quebra de esponsais, e desejo que no de Pernambuco eles também se encontrem guardados.
De qualquer modo cabe aqui lembrar que as famílias não se contentavam mais, na segunda metade do século XVIII, com promessas verbais, exigindo frequentemente um escrito de esponsais
. Também nessa época, sobretudo no período pombalino, importava salvaguardar a autoridade paterna tanto nos esponsais quanto na celebração do matrimônio, quando se tratava de filhos-famílias, ou seja, aqueles que ainda se encontravam sob o pátrio poder por serem menores de 25 anos. Uma lei, já do reinado de D. Maria I, estabeleceu: Que nenhuma pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, possa contrair esponsais sem ser por escritura pública, lavrada por tabelião, e assinada pelos contraentes, e pelos pais de cada um deles, e na falta dos pais, pelos respectivos tutores, ou curadores, e por duas testemunhas ao menos. E que não produzam efeito algum quaisquer promessas, pactos, ou convenções esponsalícias que não forem contraídas por esta forma
.³
A exigência de escritura pública levou os manuais destinados aos tabeliães a divulgarem não só o modelo adequado a seguir, mas também a legislação sobre a matéria. Depois da escritura assinada, qualquer dos esposos podia desistir do matrimônio, desde que oferecesse uma compensação pecuniária ao outro. Por essa razão se aconselhava no Manual do tabelião:
Para não se sujeitarem ao arbitrário dos juízes, é boa cautela ajustarem na escritura dos esponsais a pena convencionada que há-de pagar aquele que se arrepender.
⁴
A determinação da carta de lei de 19 de junho de 1775 exigindo a autorização paterna para a celebração do matrimônio daqueles que ainda se encontravam sob o pátrio poder foi moderada pela lei de 29 de novembro do mesmo ano. Pelo texto desta, prevendo-se que, como mostrava a experiência, alguns pais negavam absoluta, e obstinadamente os consentimentos
, transformando assim o poder doméstico num despotismo
que prejudicava as famílias e o povoamento, do qual dependia a principal força dos Estados
, o rei pretendia moderar os abusos, e tiranias do poder particular
através do conhecimento das causas e razões
por que os pais negavam a licença para o matrimônio dos filhos. Importava, portanto, conter o poder paterno nos seus justos, e racionáveis limites
.
O recurso dos filhos-família para suprir a falta de autorização paterna era apresentado a instâncias distintas conforme a condição social. Quem tinha pelo menos o foro de moço fidalgo, dirigia-se diretamente ao rei por ser filhado
na Casa Real. Os restantes nobres deveriam recorrer à Mesa do Desembargo do Paço, a qual informada das qualidades das famílias, e das conveniências dos casamentos, e ouvidos, em termo breve e sumário, os pais, mães, tutores, ou curadores
, concederia ou negaria a autorização para o casamento. Também os negociantes de grosso trato e as pessoas nobilitadas por carta régia recorriam ao mesmo tribunal, enquanto os plebeus se dirigiam à justiça das comarcas. Para o Brasil, o Conselho Ultramarino substituía o Desembargo do Paço enquanto este não foi criado no Rio de Janeiro em 1808.
As alianças matrimoniais contrariando os desejos dos progenitores ou familiares davam por vezes origem a conflitos de longa duração como aquele descrito no Recife pelo padre Bernardo Luís Ferreira Portugal. Manuel José Viana pretendeu casar com D. Isabel Maria dos Reis, sobrinha dos padres Antônio Ferreira Maciel e Basílio Aranha do Espírito Santo. O padre Portugal atuou como advogado do pretendente e comentou: Este negócio tomou uma face terrível, complicou-se com mil pleitos, e nunca houve nos auditórios da América uma causa tão renhida, e revestida de circunstâncias tão agravantes
. Viana, "depois da decisão de cinco ou seis recursos e de uma provisão de