Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Dom Casmurro: Edição bilíngue português-inglês
Dom Casmurro: Edição bilíngue português-inglês
Dom Casmurro: Edição bilíngue português-inglês
E-book660 páginas8 horas

Dom Casmurro: Edição bilíngue português-inglês

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Em uma inédita e cuidada edição bilíngue português e inglês, a Editora Landmark lança uma das obras-primas de um dos maiores escritores brasileiros e da lusofonia de todos os tempos, reconhecido internacionalmente, Machado de Assis, o artífice de uma das maiores incógnitas da literatura brasileira: DOM CASMURRO: EDIÇÃO BILÍNGUE PORTUGUÊS-INGLÊS

Publicado pela primeira vez em 1899, e uma das três obras iniciais do Realismo Brasileiro, DOM CASMURRO é uma das grandes obras de Machado de Assis e confirma o olhar certeiro e crítico que o autor estendia sobre toda a sociedade brasileira. Também a temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas desde a sua publicação em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira.

Capitu realmente traiu Bentinho com Escobar ou tudo não passou de um delírio do narrador da história?

Um dos romances mais importantes da literatura brasileira. Um dos escritores mais geniais do mundo. Um clássico para ser lido, relido, com inesgotável prazer.
IdiomaPortuguês
EditoraLandmark
Data de lançamento27 de abr. de 2022
ISBN9788580700671
Dom Casmurro: Edição bilíngue português-inglês
Autor

Machado de Assis

Enter the Author Bio(s) here.

Leia mais títulos de Machado De Assis

Relacionado a Dom Casmurro

Ebooks relacionados

Clássicos para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Dom Casmurro

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Dom Casmurro - Machado de Assis

    JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS

    Considerado um dos maiores nomes literários do Brasil, Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839 na cidade do Rio de Janeiro. Neto de escravos alforriados, foi criado numa família pobre e não teve uma instrução regular, porém, devido ao seu enorme interesse pela literatura, conseguiu se instruir por conta própria. Em 1860 passou a colaborar para o Diário do Rio de Janeiro e é dessa década que datam quase todas suas comédias teatrais e Crisálidas, um livro de poemas.

    Em 1869, após o seu casamento com Carolina de Novais teve acesso à literatura portuguesa e inglesa e, na década seguinte, publica uma série de romances, tais como A mão e a luva (1874) e Helena (1876), vindo a obter reconhecimento do público e da crítica. Até então a sua produção literária era marcadamente romântica, mas na década seguinte sofre uma grande mudança estilística e temática, iniciando o Realismo no Brasil com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e as obras Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). A partir de então a ironia, o pessimismo, o espírito crítico e uma profunda reflexão sobre a sociedade brasileira tornar-se-ão as principais características das suas obras que também abrange poemas, contos, traduções e peças teatrais.

    No início do século XX, após fundar a Academia Brasileira de Letras e perder a esposa Carolina, passou a isolar-se e a sua saúde deteriorou. Dessa época datam os seus dois últimos romances: Esaú e Jacó e Memorial de Aires.

    Machado de Assis morreu em sua casa no Rio de Janeiro no dia 29 de setembro de 1908 e o seu enterro foi acompanhado por uma multidão.

    JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS

    Highly acclaimed as one of the greatest literary names in Brazil, Machado de Assis was born on 21st June, 1839 in the city of Rio de Janeiro. Grandson of freed slaves, he was raised in a poor family and did not have a regular education, however, due to his enormous interest in literature, he became a self-taught man. In 1860 he started to collaborate with the Diário do Rio de Janeiro and that decade marks the outset of almost all his theatrical comedies and Crisálidas, a book of poems.

    In 1869, after wedding Carolina de Novaes, he had access to Portuguese and English literature and, in the following decade, published a series of novels, such as A Mão e a Luva (1874) and Helena (1876), gaining noteworthy recognition from the public and critics. So far, his literary production had markedly been romantic, but in the following decade he underwent a major stylistic and thematic change, starting Realism in Brazil with the publication of The Posthumous Memoirs of Bras Cubas (1881) and the works Quincas Borba (1891) and Dom Casmurro (1899). From then on, irony, pessimism, critical spirit and a deep reflection on Brazilian society would become the main features of his works, which also include poems, short stories, translations and plays.

    At the beginning of the twientieth century, after founding the Brazilian Academy of Letters and the loss of his wife Carolina, he began to seclude himself and his health deteriorated. His last two novels date from that time: Esau and Jacob and Memorial de Aires.

    Machado de Assis died at his home in Rio de Janeiro on 29nd September, 1908 and his burial was followed by a crowd.

    I: DO TÍTULO

    Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo[1], encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

    — Continue, disse eu acordando.

    — Já acabei, murmurou ele.

    — São muito bonitos.

    Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: Dom Casmurro, domingo vou jantar com você.Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.

    Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

    [1]  Um bairro localizado na zona norte do Rio de Janeiro.

    I: THE TITLE

    One evening, heading back from the city to Engenho Novo[1], I bumped into a lad on the Central train, a man I had seen in the neighbourhood, an acquaintance I had randomly encountered. He greeted me, sat down on a near seat, chitchatted about the moon, the ministers of the Government and ended up reciting some of his verses to me. That had been a rather short trip, and the verses, surprisingly enough, were not entirely apathetic. As I was utterly exhausted, I dozed off three or four times; enough for him to stop reading and put the verses back in his pocket.

    — Go on, I said, coming back to my senses.

    — I have already finished, he murmured.

    — They are very remarkable.

    I sensed an attempt to get them out of his pocket again, to no avail, I am afraid; he seemed a bit sulky. The next day, he went on to call me names, and ended up branding me as Dom Casmurro. The neighbours, who are not fond of my cloistered and silent habits, spread the word and Dom Casmurro is the epithet I went by. I did not mind it at first. I shared the anecdote with some friends of mine in the city and they, in turn, decided to address me by that, some in written form: Dom Casmurro, on Sunday I’m going to dine with you. – I’m heading to Petropolis, Dom Casmurro; the house is similar to the ones in Rhineland; leave the cave in Engenho Novo, and spend some fifteen days with me.My dear Dom Casmurro, you are not dismissed from the theatre tomorrow; come and you will have a place to sleep here, in the city; you will have the box, tea, a bed to sleep on; I just cannot give you a girl.

    Do not look it up in dictionaries. Casmurro has no other meaning but the one already given, depicting a rather quiet and withdrawn man. Dom, as in Sir, ironically offers a certain aristocratic flair to the moniker. All that thanks to my drowsing! I myself could not have found a more suitable title to the story. If I fail to come up with a more enticing one, Dom Casmurro will do. The poet on the train should know I hold no grudges against him. And since the title springs from his own mind, he must be certain this is his work. Some books will claim only that from their authors. Others might claim less than this.

    [1]  A neighbourhood in Northern Rio de Janeiro.

    II: DO LIVRO

    Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.

    Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavalos[1], dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Matacavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.

    O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa.

    Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal.

    Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos[2], relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?[3]...

    Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César[4], que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.

    [1]  A atual Rua do Riachuelo, na região central da cidade do Rio de Janeiro e uma das principais vias da cidade no século XIX, por ligar o centro da cidade com os arrabaldes, como o bairro de São Cristóvão.

    [2]  Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844) foi um escritor, professor, cronista, tradutor e cônego do Brasil Imperial, autor de diversos livros, dentro os quais o mais famoso Memória para Servir à História do Reino do Brasil, um detalhado relato da vida pública do Rio de Janeiro como a política, a vida eclesiástica, os assuntos militares e econômicos, além das solenidades, cerimônias, festas e costumes, com um tom exageradamente bajulador aos governantes e à Família Real.

    [3]  Versos iniciais da Dedicatória do romance

    Fausto

    , do poeta, estadista e romancista alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).

    [4]  O narrador indica, mesmo subliminarmente, que irá narrar a história da sua traição ao invocar e agradecer aos conselhos de Nero, Augusto, Massinissa e Júlio César, todas personagens históricas que foram traídas, ao longo das suas vidas, por pessoas intimamente ligadas a elas.

    II: THE BOOK

    Now that the title has been explained, I will start the book. Before that, however, allow me to let you in on my reasons to scribble it.

    I lead a lonesome life, apart from a servant. I am a home owner. I have had it built purposefully, driven by such an odd whim I cringe to confess, but there you have it. One day, some time ago, I contemplated the idea of building in Engenho Novo the exact same house I had grown up in, on Matacavalos Street[1], bearing the same resemblance since the latter is now vanished. Both the contractor and the house painter understood what I had envisioned; the same two-story house, three windows facing the street, a porch in the back, the same number of rooms and bedrooms. In the living room, the painting on the wall and on the ceiling were quite similar, big birds holding tiny wreaths in their beaks, end to end. In each crown, seasons of the year would be displayed and in the middle of every wall the medallion of Caesar, Augustus, Nero and Masinissa, their caption underneath them... I cannot understand their importance. By the time we moved into the Matacavalos residence, it had already been intricately decorated mirroring the time, classic approach, historical figures, North-American style. All that is left is also a duplicate. I own a small ranch, flowers, vegetables, a casuarina, a well and a washing tank. I make use of an old dish set and furniture. Anyway, now, as it used to be then, I face the contrast of a calm inner life and a noisy outer life.

    My ultimate aim would be joining both ends and invite back adolescence into my senior years. I must confess I did not succeed in that endeavour. What I look into my own eyes... it seems to be the same, but the portrait is different. If all that I missed was the company of others, I could live with that; one learns to survive by himself; but what is missing is my old self. What I see, despite the dye on my hair and beard which keeps my outer look a bit presentable, is the shell, commonly mentioned in autopsies. One cannot mask what is inside. A birth certificate claiming I am twenty years old, a set of fake documents could fool people I had never met before but it could not fool me. My compatriots now are all younger than me. The old ones my age have all gone to study the geology of holy grounds. My lady friends, some I have been friends with for over fifteen years, others a bit less, but every single one of them believe in eternal youth. Two or three of them could fool some people but their language makes them reach for their dictionaries, and that is just tiresome.

    However, a different life does not necessarily mean a worse life; it is something else. In some aspects, that old life feels a bit dismal and dreary; it sure has shed many of its thorns, so much so it has become quite bothersome. As I cast my memory back, I retrieve some bittersweet moments. In fact, hardly ever do I leave the house or talk to other people. I spend most of my time in my vegetable garden, reading, eating and I do sleep well.

    And as everything in life eventually runs its course, the monotony drained my vigour. I wanted to change and I thought of writing a book. Case law, philosophy and politics came to mind, but such topics could not get me excited enough. Next, I thought of writing about the History of the Suburbs, a bit more vivid than the memories Father Luis Gonçalves dos Santos[2] had scribbled – a modest narrative about the city, which demanded archive, dates, long and dreary work. Precipitously, the busts portrayed on the walls spoke to me and said that since they were not able to turn back time, I should grab the quill pen and write some memoir. Maybe that would give me a sweet illusion and the shadows would swiftly lift, just like the poet, not the one on the train, but Faust: Again ye come, ye hovering Forms?[3]...

    Such elation stemmed from that idea, the quill still shakes in my hand. Yes, Nero, Augustus, Masinissa and you, the great Caesar[4], who foment my comments, I am most grateful for your advice and I shall note every single reminiscence as they come. In this way I will be able to relive what I once endured and I will educate my hand for an upcoming masterpiece. Without further ado, let us start by a distinguished November afternoon, one that has never let go of me. I have had many others, some quite superb, others unnoteworthy, but I have never been able to forget that particular one. You will understand as you read about it.

    [1]  The current Riachuelo Street, downtown Rio de Janeiro and one of the main avenues of the city in 19th century, connecting downtown with the suburbs, such as the São Cristóvão neighbourhood.

    [2]  Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844) was a writer, professor, chronicler, translator and canon of Imperial Brazil, author of several books, including the most famous Memory to Serve the History of the Kingdom of Brazil, a detailed account of public life in Rio de Janeiro such as politics, ecclesiastical life, military and economic affairs, as well as ceremonies, commemorations, parties and customs, with an exaggerated flattering tone to the rulers and the Royal Family.

    [3]  Initial verses of the Dedication of the novel Faust, by the German poet, statesman and novelist Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).

    [4]  The narrator indicates, however subliminally, that he will narrate the unfolding of his betrayal by invoking and thanking the advice of Nero, Augustus, Masinissa and Julius Caesar, all historical characters who were betrayed, throughout their lives, by people closely linked to them.

    III: A DENÚNCIA

    Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de Matacavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.

    — D. Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.

    — Que dificuldade?

    — Uma grande dificuldade.

    Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.

    — A gente do Pádua?

    — Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.

    — Não acho. Metidos nos cantos?

    — É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida...

    — Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, você que acha?

    Tio Cosme respondeu com um Ora! que, traduzido em vulgar, queria dizer: São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?

    — Sim, creio que o senhor está enganado.

    — Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que eu não falei senão depois de muito examinar...

    — Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes.

    — Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o Império...

    — Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos.

    — Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.

    — Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?

    — É promessa, há de cumprir-se.

    — Sei que você fez promessa... mas uma promessa assim... não sei... Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina?

    — Eu?

    — Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto é coisa de lágrimas?

    Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: Prima Glória! Prima Glória! José Dias desculpava-se: Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo...

    III: THE DENOUNCEMENT

    As I was making my way into the living room, I heard my name and I quickly hid behind the door. It was the house on Matacavalos Street, November was the month, the year I can hardly remember but I will not make up dates in my life to please people who are not keen on old chronicles; it was 1857.

    — Dona Glória, are you resolute in sending Bentinho to catholic boarding school? This is long overdue and we might find some obstacles now.

    — How difficult?

    — Quite difficult.

    My mother wanted to know more. José Dias, after pondering over the situation, checked the hall for eavesdroppers; he did not see me, came back into the room and, almost whispering, and said the impediment laid in some houses down, Pádua’s people.

    — Pádua’s?

    — I have been meaning to tell you, but I just would not dare. It doesn’t look right to me our Bentinho keeps hanging out in hidden corners with Turtleback’s daughter. This is the hurdle. If they get serious, you will have a hard time breaking them off.

    — I do not think so. Hidden corners?

    — That is just a figure of speech. They have their secrets, they are always together. Bentinho is always there. She is a bit clueless; her father turns a blind eye on both of them; I bet he wishes that... I see where my lady is coming from; my lady does not see the worst in people, believing everyone’s heart is in the right place...

    — But, Mr José Dias, I have always seen them playing together, nothing to worry about. That is the age they are at. Bentinho is pushing fifteen years old. Capitu just turned fourteen last week; they are two kids. And they have grown up together, since the big flood. The Pádua’s have lost so much; that is how we became acquainted. That is what I believe... My brother Cosme, what is your take?

    Uncle Cosme muttered something like Come on, now what could be roughly translated as: This is just José Dias imagining things; the children have fun, I have fun; where is the backgammon?

    — Yes, I believe you are wrong.

    — I might as well be, my lady. I hope you both are right; I would not have said anything unless I had thoroughly assessed the situation...

    — Anyway, we are running out of time, my mother interrupted the conversation; the sooner I send him to the boarding school, the better.

    — The main objective is to turn Bentinho into a priest. He should make his mother’s dreams come true. The Brazilian Church offers top positions. Let us not forget one bishop has presided over our constitution, and Father Feijó has governed the Brazilian Empire...

    — A government of his own! Uncle Cosme clapped back, summoning old political grudges.

    — I apologize, sir. I do not mean to go political here. What I am trying to say is that the Brazilian Clergy still play a big role in our country.

    — You are in for some trouble; go now and bring me the backgammon. As for the boy, if the boy must become a priest, he had better not practice his service behind our doors. But, look here, Glória, do you really have to make him a priest?

    — It is a promise I must honour.

    — I know you have made a vow... but this one... I am not sure... I believe... what do you think about it all, cousin Justina?

    — I?

    — The truth is one does what one has to do, uncle Cosme said; And may God bless us all. Be that as it may, this is such a long standing promise... Come on, Glória? Are you crying? Come on! Is that a reasonable argument to cry?

    My mother quietly blew her nose. Cousin Justina stood up and offered her some consolation. Uncomfortable silence ensued. As I was about to enter the room, another development. I could not hear what uncle Cosme had said, which led cousin Justina to blare out: Cousin Glória! Cousin Glória! José Dias sounded quite apologetic in his speech: Had I known, I would not have said a word. I just wanted to show my adoration, my affection, my devotion to fulfilling such a burdensome duty, quite a demanding assignment..."

    IV: UM DEVER AMARÍSSIMO!

    José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinquenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da consequência, a consequência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!

    IV: QUITE A DEMANDING ASSIGNMENT!

    José Dias had a penchant for superlatives. He used them to amplify his ideas; if there were no ideas to put forth, he used them to prolong his sentences. He stood up and headed into the house in order to get the backgammon. I pressed myself up against the wall and I saw him walk by, wearing his white, carefully ironed trousers, breeches, a jacket and a tie pin. He might have as well been the last person to wear breeches in Rio de Janeiro, maybe in the world. He used to wear his trousers above the calf in order for them to be perfectly wrinkle-free. His black satin tie, having a steel arc in its inner lining, stiffed his neck, quite fashionable in those days. His long coat, made of cheap fabric, made him look ready for a formal event. He looked slender, his receding hairline made him look fifty-five years old. He stood up and started ambling along, not meandering, quite the contrary, a calculated pace, as if the premise would be presented before the consequence and the latter before the denouement. Quite a demanding assignment!

    V: O AGREGADO

    Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.

    Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual[1] e uma botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre.

    — Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.

    — Voltarei daqui a três meses.

    Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo da chácara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que não era médico. Tomara este título para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais doentes.

    — Mas, você curou das outras vezes.

    — Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios indicados nos livros. Eles, sim; eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão... Não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é a verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.

    Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa da família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me, não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia, depois da missa, ele foi despedir-se dela.

    — Fique, José Dias.

    — Obedeço, minha senhora.

    Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. Esta é a melhor apólice, dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.

    — Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.

    — Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.

    E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cópia de papéis de autos.

    [1]  O autor refere-se ao Formulário e Guia Médico (1841), de autoria do médico polonês Pedro Luís Chernoviz (1812-1881), que descrevia remédios e fórmulas medicamentosas e as suas utilizações para diversas moléstias.

    V: THE FAMILY’S ASSOCIATE

    Not always would he move gently on foot. Such saunter would be contrasted with a dash from time to time and neither way caught anyone by surprise. In other instances, he would burst out laughing if needed be, albeit hollowly but quite communicatively, so much so his cheeks, teeth, eyes, his whole face, his whole being, his laughter would represent everyone’s laughter. He was indeed a completely superlative person, in fact the most superlative one in existence.

    He had been the family’s associate for a long time; my father still owned his old farm in Itaguaí and I had just been born. One given day he knocked on our door saying he was a homeopath; he would carry a Manual[1] and an apothecary case. Back then there was a fever bout in the area. José Dias treated our foreman and a slave and he did it for free. My father invited him to live in the estate, provided he would accept a small wage. José Dias declined that offer, claiming every poor person was entitled to health services.

    — Who’s keeping you from going anywhere? You are free to go wherever you wish but please, live here with us.

    — I will be back in three months.

    He returned in two weeks’ time, he took a house and food but no earning, except the ones he could make on the side. When my father became a lower house congressman and moved to Rio with his whole family, he tagged along and was given a room in the new place. No sooner had we settled than another fever bout hit Itaguaí. My father instructed him to go and cure our slaves. José Dias got quiet, sighed and confessed to never having been a real doctor. He had only lied in order to help advertise the new field. Even though he buried himself in books, his morals would not allow him to treat any more patients.

    — But you healed them in the past.

    — I believe I did; but it was not my own competence. I just consulted the books to assess symptoms, medicine and directions. I was an impostor... I must confess; my heart has always been in the right place; homeopathy is an honourable science and so as to serve it as a physician I have lied, but it is high time I came clean.

    He was not let go as we thought he would; my father could not function without him. He had made himself quite instrumental; we would miss him as we miss a family member. When my father died, I was told the pain he felt tore him apart, I cannot remember that fact. My mother held him in great esteem and under no circumstances was she to accept his resignation; the day the memorial mass was held, he came along to say goodbye.

    — Please stay, José Dias.

    — I will, my lady.

    He was named in the will and received a small amount of capital and four good words. He had those words printed, framed and hung above his bed. This is the best insurance, he would always say. As time went by, his importance grew in our household. He used his authority quite moderately. He was a good man, I must say, not a great man because there is no such person in this world. All the compliments he paid were meticulously calculated. I dare say he was shrewd and scheming. His garments would last forever. As opposed to some people would cannot wait to sport new clothes, he would present himself quite collected, properly ironed, buttoned up, the epitome of meagre elegance. A well-rounded person, he would entertain us at dinner, he was able to explain some unknown event, discourse over the heat and cold, the poles of the planet and Robespierre. He would tell us about a trip he made to Europe and, but for us, he would have returned a long time ago since he had friends in Lisbon. Our family, according to him, was second only to God.

    — Second or first? that’s what Uncle Cosme asked him one day.

    — Second, José Dias answered passionately and faithfully.

    And my mother, a devotee appreciative of the fact he would place God above everything and everyone, smiled and nodded in approval. José Dias nodded back at her. My mother would give him some money from time to time. Uncle Cosme, a lawyer, entrusted him with the task of copying some legal documents and forms.

    [1]  The author refers to the Prescription Vademecum and Medical Guide (1841), authored by the Polish doctor Pedro Luís Chernoviz (1812-1881), which described medicine and prescriptions and their uses for various diseases.

    VI: TIO COSME

    Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos.

    A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório na antiga rua das Violas[1], perto do júri, que era no extinto Aljube[2]. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.

    Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira, segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.

    Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: Mamãe! mamãe! Ela acudiu, pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me, enquanto o irmão perguntava:

    — Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?

    — Não está acostumado.

    — Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, mana Glória.

    — Pois que se queixe; tenho medo.

    — Medo! Ora, medo!

    A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. Agora é que ele vai namorar deveras, disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o resto de ideias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhérias.

    [1]  A atual Rua Teófilo Otoni, na região central do Rio de Janeiro.

    [2]  A Corte do Juri localizava-se desde 1840 na antiga prisão do Aljube.

    VI: UNCLE COSME

    Uncle Cosme came to live with my mother when she became a widow. A widower himself, so was cousin Justina; the house of the unmarried.

    Every man is the architect of his own fortune. Graduated to profit from capitalism, uncle Cosme did not make his wealth in courts. He ran a law office in the old Das Violas Street[1], near the Court, situated at the old Aljube[2]. He operated on criminal law. José Dias didn’t miss uncle Cosme’s oral arguments. He was the one putting on uncle Cosme’s black robe and then taking it off as he showered him with compliments. At home he would recall all the

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1