A Independência e o Brasil independente – Volume 2
De João Paulo Avelãs Nunes, Luciano Aronne de Abreu, Tatyana de Amaral Maia e Miliandre Garcia de Souza
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Sobre este e-book
No primeiro volume, tem-se por objetivo refletir sobre o papel do Estado, a democracia nacional e a questão do desenvolvimento, sua formação e evolução histórica, dos tempos monárquicos à República, em seus diferentes regimes; e a cultura e identidade nacional, sua construção, representações e diferentes formas de manifestação, por meio da produção artística e intelectual. Já no segundo volume, tem-se por objetivo refletir, sobre o olhar do outro a respeito do processo histórico de construção política, econômica, social, cultural e identitária da Nação brasileira, com destaque para as diferentes relações que esses países estabeleceram com o Brasil desde sua independência até os dias de hoje.
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A Independência e o Brasil independente – Volume 2 - João Paulo Avelãs Nunes
© EDIPUCRS 2022
CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA CAMILA BORGES
IMAGENS DE CAPA E CONTRACAPA ARQUIVO NACIONAL, BR RJANRIO O2.0.FOT.494(8) E FREEPIK.
REVISÃO DE TEXTO GAIA REVISÃO TEXTUAL
Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
I38 A independência e o Brasil independente [recurso eletrônico] / Luciano
Aronne de Abreu ... [et al.] organizadores. – Dados eletrônicos. –
Porto Alegre : ediPUCRS : Coimbra University Press, 2022.
2 v. – (Série História ; 94-95)
Modo de Acesso:
ISBN 978-65-5623-317-8 (ediPUCRS) (v. 1);
ISBN 978-989-26-2372-6 (Coimbra University Press) (v. 1)
ISBN 978-65-5623-319-2 (ediPUCRS) (v. 2)
ISBN 978-989-26-2374-0 (Coimbra University Press) (v. 2)
1. Brasil – História. 2. Ciência política. I. Abreu, Luciano Aronne de. II. Série.
CDD 23.ed. 981
Loiva Duarte Novak – CRB-10/2079
Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.
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SUMÁRIO
Apresentação
PARTE 1 | Relações internacionais, imigrações
O Brasil continua a ser bem pouca coisa.
O Brasil na diplomacia e na política externa portuguesa no imediato pós-guerra: 1945-1947
Fernando Martins
Angola: o Brasil como horizonte
Fernando Tavares Pimenta
Brasil e Estados Unidos desde a Independência
Bruno Biasetto
Las miradas de España hacia el Brasil independiente: miopía, luces y fulgores (1822-2022)
Bruno Ayllón Pino
German-Brazilians between Conflicting Nation-State Interests: The Quest for Cultural Pluralism, 1871-1950s
Jens R. Hentschke
PARTE 2 | Olhares múltiplos
Histórias para incomodar
gente grande: escravidão, violências e políticas do presente sobre o passado brasileiro
Luciana da Cruz Brito
Ensino de História e formação para a cidadania no Brasil independente
Mauro Cezar Coelho
Espelhos da nação: fotografia pública no Brasil contemporâneo em três trajetórias visuais
Ana Maria Mauad
Comemorar e vigiar: o sesquicentenário da Independência do Brasil, 1972
Janaina Martins Cordeiro
Sobre os autores
Apresentação
Como bem nos indica Marc Bloch (2001, p. 65), a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente
. Nesse sentido, portanto, a presente obra se propõe justamente a compreender o Brasil de hoje, dois séculos após sua independência de Portugal, com base em importantes reflexões sobre o seu processo histórico de construção política, econômica, social, cultural e identitária da nação, suas continuidades e rupturas, convergências e divergências, internas e externas, em relação a si próprio e às demais nações. Para tanto, os textos aqui reunidos, de importantes pesquisadores nacionais e internacionais, serão divididos em dois volumes.
No primeiro volume, dividido em 7 capítulos, tem-se por objetivo refletir sobre o papel do Estado, a democracia nacional e a questão do desenvolvimento, sua formação e evolução histórica, dos tempos monárquicos à República, em seus diferentes regimes; e a cultura e identidade nacional, sua construção, suas representações e suas diferentes formas de manifestação, por meio da produção artística e intelectual.
No capítulo 1, A construção da modernidade brasileira: revisitando significados, ampliando sentidos (1922-2022)
, João Paulo Avelãs Nunes, Luciano Aronne de Abreu, Miliandre Garcia e Tatyana de Amaral Maia fazem uma reflexão baseada na historiografia sobre os modernismos e as diferentes leituras sobre a construção da modernidade no Brasil entre os anos de 1920 e 1980. A parte final do capítulo propõe um olhar da historiografia portuguesa sobre os duzentos anos do Brasil independente.
O capítulo 2, Cultura brasileira, 200 anos: uma revisão histórica dos projetos de identidade nacional brasileira
, de Marcos Napolitano, é uma reflexão acerca dos projetos políticos, intelectuais e artísticos em torno da identidade nacional no Brasil entre os séculos XIX e XX, período no qual o nacionalismo marcou profundamente o debate político e cultural no Brasil, até seu esgotamento a partir de 1980.
No capítulo 3, Duzentos anos depois: as matrizes de compreensão da identidade nacional brasileira (séculos XIX-XXI)
, Marçal de Menezes Paredes faz uma História Intelectual da construção da nação, partindo de diferentes matrizes intelectuais na compreensão das representações e disputas discursivas sobre o Brasil e a nação ao longo desses duzentos anos de um Brasil independente.
No capítulo 4, Um novo Éden: história e natureza em escritas literárias sobre a Independência do Brasil
, Luciana Murari se dedica à construção narrativa baseando-se na literatura das representações sobre o país como nação, com destaque para o episódio da Independência e sua articulação ao espaço físico e natural.
O capítulo 5, O 7 de Setembro na dramaturgia brasileira oitocentista: disputas de sentido e de interpretação em torno da Independência
, de Silvia Cristina Martins de Souza, reconstrói a História de uma ausência. A autora busca compreender a ausência da temática da Independência no teatro brasileiro do século XIX em contraposição a outros eventos políticos que, na mesma época, eram considerados mais relevantes de representação teatral, tal como a Guerra do Paraguai.
O capítulo 6, Sobre a eficácia simbólica do 7 de Setembro
, de Lilia Moritz Schwarcz, propõe uma análise sobre a eficácia política do simbólico, com ênfase na iconografia oficial, na construção de uma imagem pública do Imperador promovida habilmente pelo Estado imperial.
No capítulo 7, Entre vagões e locomotivas: a questão regional na história do Brasil independente
, Durval Muniz de Albuquerque Júnior faz uma análise da construção dos regionalismos a partir da Independência política e da importância do território e da geografia na formação do imaginário nacional.
No segundo volume, cuja primeira parte se constitui dos capítulos 8 a 12, tem-se por objetivo refletir sobre o olhar do outro a respeito do processo histórico de construção política, econômica, social, cultural e identitária da Nação brasileira, com destaque para as diferentes relações que esses países estabeleceram com o Brasil desde sua independência até os dias de hoje. A esse respeito, destacam-se países de diferentes continentes, tais como Portugal e Espanha, ambos com influência mais ou menos direta na conformação territorial e de fronteiras do Brasil, de sua sociedade e modelo de Estado pós-independência; Alemanha, Uruguai, Estados Unidos e países africanos, especialmente aqueles de origem lusófona.
No capítulo 8, ‘O Brasil continua a ser bem pouca coisa.’ O Brasil na diplomacia e na política externa portuguesa no imediato pós-guerra: 1945-1947
, de Fernando Martins, o autor destaca as proximidades e diferenças dos dois países em relação à guerra e à dificuldade de construção de uma política externa próxima entre ambos, a despeito de circular no imaginário social de ambos os países a importância do Brasil para Portugal.
O capítulo 9, Angola: o Brasil como horizonte
, de Fernando Tavares Pimenta, investiga a influência do Brasil no imaginário político angolano e seu impacto desde 1922 até o final do século XX.
No capítulo 10, Brasil e Estados Unidos desde a Independência
, Bruno Biasetto analisa a visão de diferentes atores – diplomatas, políticos, artistas e empresários norte-americanos – sobre o Brasil em momentos-chave dos séculos XIX e XX.
O capítulo 11, Las miradas de España hacia el Brasil independiente: miopía, luces y fulgores (1822-2022)
, de Bruno Ayllón Pino, apresenta os diversos olhares do governo espanhol e dos demais agentes sociais sobre o Brasil nesses dois séculos pós-independência, identificando a existência de duas grandes fases nas relações Brasil-Espanha: o período de 1822-1922 e o período 1922 até os dias atuais.
No capítulo 12, German-Brazilians between Conflicting Nation-State Interests: The Quest for Cultural Pluralism, 1871-1950s
, Jens R. Hentschke propõe uma reflexão sobre o impacto da imigração alemã para o Brasil como representativo das relações entre os dois países, analisando as mudanças ocorridas ao longo da conjuntura de 1871 e 1950. Trata-se de um período marcado por acontecimentos políticos relevantes nos dois países e cujo impacto pode ser medido a partir da análise do processo imigratório.
Na segunda parte desse volume, que se constitui dos capítulos 13 a 16, privilegiam-se múltiplos olhares sobre questões relacionadas à escravidão, ao ensino da História e às comemorações e representações visuais sobre a nação, considerando-se os avanços da historiografia nestas últimas décadas em novas direções analíticas, incorporando muitas pautas socialmente vivas, tais como as lutas antirracistas, o ensino de História como campo de pesquisa, gênero, História Pública e os usos do passado.
O capítulo 13, Histórias para ‘incomodar’ gente grande: escravidão, violências e políticas do presente sobre o passado brasileiro
, de Luciana da Cruz Brito, traz uma reflexão sobre a escravidão como tema sensível e a construção de uma narrativa sobre o passado oficial ainda marcada por leituras laudatórias da experiência colonial.
No capítulo 14, Ensino de História e formação para a cidadania no Brasil independente
, Mauro Cezar Coelho traz o ensino de História como campo de pesquisa ao investigar a história do ensino de História no Brasil a partir do eixo da cidadania. A compreensão do ser cidadão
no Brasil passou por mudanças sensíveis nesses duzentos anos, e o ensino de História acompanhou e incorporou parte dessas mudanças, processo associado às próprias mudanças ocorridas no campo historiográfico.
O capítulo 15, Espelhos da nação: fotografia pública no Brasil contemporâneo em três trajetórias visuais
, de Ana Maria Mauad, faz uma reflexão sobre três fotógrafas mulheres dedicadas ao registro da nação entre os anos de 1940 e 1990. A autora propõe uma análise da atuação dessas mulheres na construção de uma história pública através das imagens, analisando o papel das imagens fotográficas na construção de uma narrativa histórica.
Por fim, o capítulo 16, Comemorar e vigiar: o sesquicentenário da Independência do Brasil, 1972
, de Janaina Martins Cordeiro, é dedicado às comemorações oficiais do sesquicentenário da Independência, organizado no auge do chamado milagre econômico
do governo do general Médici. Com base nas narrativas sobre o passado construídas pela ditadura, a autora analisa os usos políticos na busca pela legitimidade do regime.
Organizadores
Referência
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Relações internacionais, imigrações
O Brasil continua a ser bem pouca coisa.
[ 1 ]
O Brasil na diplomacia e na política externa portuguesa no imediato pós-guerra: 1945-1947
Fernando Martins
I
A Segunda Guerra Mundial foi o mais global e globalizado dos grandes acontecimentos do século XX. No entanto, Portugal e Brasil atravessaram-no de diferente maneira.[ 2 ] Uma das razões dessa diferença era elementar. Decorria da realidade geopolítica. Portugal, um país localizado na Europa, no extremo ocidental da Península Ibérica, governava os arquipélagos dos Açores, da Madeira, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe e ainda territórios coloniais situados no continente africano (Guiné-Bissau, Angola e Moçambique), na Ásia (Goa, Diu e Damão, no subcontinente indiano, e Macau, na China) e na Oceania (Timor-Leste). Esses territórios, espalhados por quatro continentes, eram banhados por três oceanos: Atlântico, Índico e Pacífico. O Estado português, pluricontinental, tinha, portanto, fronteiras com a Espanha na Europa e com os impérios coloniais europeus (belga, holandês, francês e britânico), localizados em África e no Oriente. Possuía, finalmente, fronteiras com a China, apesar de, entre 1938 e 1945, os territórios chineses que delimitavam Macau se encontrarem ocupados for forças militares japonesas. Além disso, e durante esse período, Macau tornou-se, de facto, num proto-protetorado japonês, um porto de abrigo que chegou a albergar cerca de 500 mil refugiados e foi ainda alvo de ações militares, nipónicas e norte-americanas, que provocaram várias baixas e importantes danos materiais (GUNN, 2017). Portugal era um Estado europeu, e os seus interesses essenciais jogavam-se na Europa. No entanto, era também uma potência colonial, por isso global, pelo que uma parte dos seus interesses, com repercussões na metrópole, jogavam-se em quatro continentes e em três oceanos.
A segunda diferença entre Portugal e Brasil, independentemente daquela que foi a vontade das autoridades civis e militares portuguesas (uma vontade influenciada, ou até determinada, pelos acontecimentos e pelas circunstâncias nacionais
e internacionais
), decorreu do facto de Portugal ter permanecido neutral do primeiro ao último dia da guerra. Isso apesar de a declaração inicial de neutralidade portuguesa ter sido condicional (SALAZAR, 1959a, p. 174)[ 3 ], de vigorar uma aliança luso-britânica ou de, a partir de 1943 e 1944, a neutralidade quase estrita até então praticada pelo Estado português se ter transformado numa neutralidade colaborante, primeiro com o Reino Unido (RU) e, depois, com os Estados Unidos da América (EUA).
Por outro lado, no Oriente, e para além do caso macaense, a neutralidade portuguesa foi violada como consequência da ocupação de Timor por tropas holandesas e australianas em dezembro de 1941, seguida pela invasão e ocupação daquela colónia por forças do exército nipónico entre o início de 1942 e o fim da guerra na Ásia e no Pacífico. Portanto, é evidente que a neutralidade portuguesa era e foi, na China e, sobretudo, em Timor, mais do que na Europa ou em África, uma realidade política e diplomaticamente peculiar, uma vez que a soberania exercida em Macau se encontrava profundamente limitada, ao passo que em Timor deixou sequer de poder ser praticada.[ 4 ]
Nesse contexto regional e global, além de cultivarem um relacionamento preferencial com o RU e, depois, com os EUA (nesse caso sempre de forma muito cautelosa), as autoridades portuguesas puseram em prática uma política externa e de defesa que procurava preservar a integridade e a segurança do Estado, das populações e dos territórios. Desse modo, a política externa e a diplomacia, mas também a política de defesa e a política de segurança interna, estiveram ainda atentas ao comportamento do vizinho ibérico, desenvolvendo uma estratégia orientada pela pretensão de tentar travar, ou pelo menos atrasar, a beligerância da Espanha franquista (MARTINS, 2020, p. 351-463). Nos anos da guerra, mas também na conjuntura que antecedeu o seu início, os responsáveis políticos estiveram ainda atentos à evolução da política externa, da diplomacia ou dos acontecimentos civis e militares ocorridos na Alemanha e Itália, assim como na França, Bélgica, Holanda e com a Santa Sé[ 5 ], sendo ainda o Japão, a China, a Austrália e a África do Sul, pelas mais elementares razões geopolíticas, atores e interlocutores a quem as autoridades portuguesas prestaram a maior das atenções, recolhendo informações, estabelecendo contactos e tentando criar, recuperar e preservar práticas negociais.[ 6 ]
Por último, sobretudo na primeira metade da guerra, a política externa portuguesa vislumbrou no Brasil e, acessoriamente, nas demais repúblicas sul-americanas, a condição de interlocutores privilegiados numa conjuntura que, desde a década de 1930, evoluiu para a formação e consolidação de blocos de Estados. Estes tinham como denominadores comuns traços identitários de natureza cultural, linguística, religiosa ou político-ideológica, mas ainda (de facto ou idealmente) de potencial cooperação em áreas mais prosaicas, mas não menos importantes, como o comércio externo, as migrações, a partilha de tecnologia e a cooperação nas áreas da ciência e da defesa.[ 7 ]
No Brasil, e por comparação com o caso português, os desafios, as oportunidades e os constrangimentos colocados pelo deflagrar da Segunda Guerra Mundial foram substancialmente diferentes. Em primeiro lugar, geopoliticamente, o Brasil encontrava-se muito mais afastado, do que o Portugal metropolitano ou ultramarino, das regiões em que a guerra ocorreu. As Américas (do Sul, Central e do Norte) nunca foram campo de batalha. Por outro lado, o Atlântico Sul, sobretudo por comparação com o Atlântico Norte, mas também com o Pacífico ou, até, com o Índico, foi, do ponto de vista bélico, um espaço periférico ao longo de praticamente todo o conflito. Em segundo lugar, se a realidade geográfica colocava teoricamente o Brasil mais longe da guerra do que Portugal, na verdade os condicionalismos geopolíticos limitaram, desde muito cedo, a margem de manobra político-diplomática do Brasil. Depois de setembro de 1939, especialmente após a queda da França em junho de 1940, o Brasil de Getúlio Vargas viu-se forçado a alijar aquela que [até então] tinha sido designada como uma política de ‘equilíbrio pragmático’
em face das grandes potências que tinham importantes interesses estratégicos e económicos no Brasil
e que, desde 1930, eram, essencialmente, os EUA e a Alemanha.[ 8 ]
Iniciada a guerra, o governo brasileiro passou a decidir e a agir num espaço cada vez mais estreito e no qual as suas opções se iam, portanto, reduzindo. Se, por um lado, havia escolhas que deviam ser feitas, por outro, a possibilidade de escolher não existia, ou era muitíssimo limitada, uma vez que a geopolítica e quaisquer considerações racionais, de natureza política, militar, económica ou financeira, levariam o Brasil a juntar-se aos EUA no apoio à Grã-Bretanha na guerra contra a Alemanha e a Itália (BETHELL, 2008a, p. 66-67). Isso apesar de, aparentemente sem o conhecimento do seu ministro das Relações Exteriores, em 1939 e 1940 Getúlio Vargas retratar repetidamente
o Brasil, em conversas com o embaixador alemão, como o baluarte contra a inclusão da América do Sul na política antigermânica de Roosevelt
(DALLEK, 1995, p. 235). Para o Brasil, portanto, a questão não estava em saber se ia ter uma política externa própria, podendo optar pela neutralidade ou pela beligerância ao lado dos EUA ou da Alemanha e da Itália, mas em reconhecer que a vontade e a liderança norte-americana teriam de ser seguidas, pelo que, perante essa inevitabilidade, seriam tomadas decisões que se limitariam a rentabilizar, tanto quanto possível, esse seguidismo.[ 9 ]
A Administração Roosevelt decidiu, unilateralmente, em abril de 1940, traçar uma linha ao longo do meridiano de 36º, localizado a meio caminho entre o Brasil e a África, incluindo os Açores e grande parte da Groenlândia (entregue pelo governo dinamarquês no exílio aos EUA para que estes protegessem aquele território), a ocidente dessa linha e para além da qual os EUA monitorizavam a movimentação de navios do Eixo, reportando as suas movimentações ao RU. Desse modo, os EUA também se reservavam o direito de usar a força contra os mesmos vasos de guerra do Eixo, sempre que estes constituíssem uma ameaça à navegação sob bandeira dos EUA ou a territórios do Hemisfério Ocidental, incluindo a Groenlândia. Assim, tem-se a noção clara daqueles que eram os limites à ação dos Estados latino-americanos no contexto da guerra.[ 10 ]
O Brasil acabou por declarar guerra à Alemanha e à Itália a 22 de agosto de 1942, na sequência de uma série de ataques realizados por submarinos alemães contra navios brasileiros, embora as causas dessa decisão estivessem para além desses factos (WEINBERG, 1994, p. 372).[ 11 ] No entanto, manteve até ao início de 1943 uma posição de ambivalência
relativamente ao conflito. De facto, só nos primeiros meses de 1943 ficou assente que o Brasil participaria no conflito. Foi então formado e enviado para a Europa um corpo expedicionário próprio, e foram também explicitados os seus objetivos de guerra. Destes, apenas dois eram definidos no plano das suas relações bilaterais. Com os EUA, o Brasil tinha como propósito desenvolver uma solidariedade mais íntima e confiante; no caso de Portugal, e das suas possessões coloniais, o governo do Rio procurava criar e consolidar uma maior e crescente ascendência […]
política (MCCANN, 1979, p. 70-71).
Por fim, importa sublinhar que no Brasil, muito mais do que em Portugal, a guerra teve um efeito profundo e duradoiro na vida política interna, em parte como consequência da beligerância, mas também pelo facto da sociedade brasileira, as suas instituições políticas e o seu quotidiano social e político, sobretudo nas regiões mais industrializadas e urbanizadas, se terem revelado, por comparação com Portugal, muito mais permeáveis à influência transformadora propiciada pela guerra (BETHELL, 2008a, p. 69).[ 12 ]
Uma vez terminado o conflito (na Europa, em África e no Atlântico Norte), o Brasil, que fora o único país latino-americano a enviar para a Europa, em 1944, um corpo expedicionário que combateu em Itália, podia considerar-se novamente em paz. Isso apesar de o conflito prosseguir no Pacífico e na Ásia (o Brasil declarou guerra ao Japão em maio de 1945, mas não interveio militarmente no conflito com os nipónicos) e de, no momento da rendição da Alemanha, parecer inevitável que no Oriente a guerra fosse durar alguns anos e cobrar milhões de vidas, tanto de militares como de civis.[ 13 ] Para Portugal, não foi assim.
No início do verão de 1945, a ameaça de guerra já desaparecera na Europa, porém não só se mantinha às portas de Macau como o território de Timor continuava sob ocupação nipónica, não se prevendo quando e como seria ali restaurada e internacionalmente reconhecida a soberania portuguesa. Caso os norte-americanos não tivessem usado armas nucleares no Japão, é impossível saber até quando, e com que resultados, a guerra na Ásia Oriental, em todo o sudeste asiático e Pacífico, se iria prolongar. Tendo em conta o olhar que lançamos sobre o estatuto de Portugal e do Brasil na guerra, é difícil imaginar que impacto essa realidade prognosticada, mas não concretizada, poderia ter tido na política interna e externa dos dois países.
II
Uma vez concluído o conflito, Portugal e Brasil encontravam-se em situações diferentes, mas, nos dois casos, não totalmente confortáveis. No plano externo, o Brasil rentabilizou a sua beligerância participando da Conferência de São Francisco, que discutiu, redigiu e aprovou a Carta das Nações Unidas e deu vida à nova organização internacional que substituiu a Sociedade das Nações (SDN), a Organização das Nações Unidas (ONU). Paralelamente, vira como fora reforçado o seu papel de principal interlocutor e parceiro dos EUA na América do Sul. O Brasil, aliás, entre 1946 e 1955 – anos em que, respetivamente, Portugal fez o seu primeiro pedido (recusado) de adesão à ONU e seria admitido como Estado-membro dessa organização –, foi membro não permanente do Conselho de Segurança (1946-1947, 1951-1952 e 1954-1955. Ou seja, também na ONU, sobretudo na ONU, o estatuto e o prestígio único conseguidos pelo Brasil entre os países sul-americanos eram incontestados e incontestáveis, sendo evidente que a sua beligerância e, antes disso, a sua aceitação do papel hegemónico desempenhado pelos EUA em todo o hemisfério ocidental tinham sido recompensados. Na política interna, porém, em setembro, o presidente e líder político do Estado Novo foi afastado do poder pelos militares, e o regime vigente foi formalmente liquidado, facto que mergulhou o Brasil num estado de indefinição política que se repercutiu no plano externo, para além da ONU, nomeadamente nas suas relações com a Europa, a União Soviética e os EUA.
No caso de Portugal, a situação política interna, que vinha sendo trabalhada por Salazar e outras figuras de proa do regime, para enfrentar com êxito os acontecimentos indesejáveis que o fim da guerra inevitavelmente traria, manteve-se estável, apesar da agitação política e social registada entre 1942 e 1945. Isso apesar de as oposições terem bramido argumentos e mobilizado meios com o intuito de derrubar o ditador e a ditadura, independentemente de ser convicção da oposição externa ao regime – vista as suas fraquezas e contradições – que ou o regime ruía incapaz de superar as novas circunstâncias e as suas contradições, ou seria derrubado do exterior por pressão exercida pelas potências vencedoras, i.e. RU e EUA. Mas se o regime não caiu, fosse por causas externas, ou internas, no plano internacional, e no imediato, o governo e o regime tinham pouco para apresentar em seu favor aos portugueses, para além do crédito acumulado pelo facto de Portugal ter permanecido neutro no decurso de todo o conflito militar, ter preservado a integridade do território nacional, metropolitano e ultramarino e não ter sido ostracizado, ou sequer hostilizado, pelos vencedores, ao contrário do sucedido com a Espanha.[ 14 ] Portanto, as chagas macaense e timorense, não sendo despiciendas, eram pouco relevantes tanto aos olhos da opinião pública na metrópole como no ultramar, e a neutralidade colaborante nascida no final do verão de 1943, com a cedência, para uso militar, de facilidades
aos britânicos no Arquipélago dos Açores, e estendidas aos EUA no ano seguinte, comprara a sobrevivência do salazarismo.
No entanto, em 1945 e 1946, a neutralidade poucos dividendos trouxe. Nomeadamente no que dizia respeito ao processo de edificação de uma nova ordem internacional, sobretudo naquele momento, curto, em que se supôs que à ONU caberia desempenhar um papel destacado na formação e consolidação da nova ordem internacional. Nesse contexto, Portugal e a sua liderança política aparentaram, e eventualmente sofreram, alguma desorientação diante de um mundo novo, e no qual era difícil encaixar uma política externa que sobrepunha o bilateralismo ao multilateralismo e que desconfiava de uma instituição, a ONU, que tudo parecia querer resolver e que dava aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança um protagonismo que, por exemplo, nunca existira na SDN. É claro que nunca esteve em causa uma integração normal de Portugal na ordem internacional do pós-guerra, sobretudo a partir do momento em que Londres, Washington e Paris não eram hostis a Lisboa (e nunca o foram). No entanto, e essas eram as regras do jogo, não foi facultado ao governo português a desejada e padronizada inserção nessa nova ordem. A atribuição do estatuto de Estado fundador da ONU[ 15 ] teria passado pela participação de uma delegação do Estado português nos trabalhos da Conferência de São Francisco. Essa situação seria agravada, ainda que sem grandes consequências a prazo para o prestígio e estatuto de Portugal, quando o seu primeiro pedido de adesão à ONU, apresentado após diligências diplomáticas realizadas por representantes dos governos norte-americano e britânico, foi vetado pela União Soviética (MARTINS, 2021a; 2021b).[ 16 ]
No contexto do imediato pós-guerra, o Estado português não era indiferente, nem podia ser imune, por exemplo, às críticas e ao ostracismo a que a Espanha franquista foi votada pelos vencedores da guerra, como se fosse uma antiga beligerante e aliada das potências do Eixo. Daí que também era importante para a política externa portuguesa que se tentasse construir com o Brasil uma relação política que pudesse, por fim, fazer justiça aos interesses comuns que muitos criam existir, mas que nunca, desde 1822-1825, tinham sido descobertos. Era preciso usar o Brasil para normalizar e legitimar o regime autoritário português no imprevisível mundo que se despedia da guerra e rumava a uma nova ordem internacional.
Dos anos da guerra ficara, no que respeita ao lado mais formal das relações luso-brasileiras, a embaixada enviada pelas autoridades brasileiras, a convite do governo português, para participar e ter o lugar de maior destaque na Exposição do Mundo Português (integrada nas chamadas Comemorações Centenárias) realizada no ano de 1940.[ 17 ] Desde a década de 1930, porém, quando se formaram e consolidaram, no Brasil e em Portugal, dois regimes políticos autoritários, nacionalistas e corporativos (o Estado Novo português vira a luz do dia em 1933 após a realização de um plebiscito a um projeto de Constituição, e o brasileiro, em 1937, na sequência de um golpe militar), o relacionamento bilateral entre o Itamaraty e as Necessidades não obteve resultados que pudessem ser considerados política e diplomaticamente relevantes, que selassem aos olhos do mundo a existência de uma relação especial luso-brasileira. Foram celebrados alguns acordos culturais
, sendo o Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa, talvez, o mais significativo, mas que seria totalmente inconsequente.
Assinado a 6 de outubro de 1945, foi promulgado em Portugal pelo Decreto n. 35 228, de 8 de dezembro de 1945 (REGO, 1966, p. 120-123; ALVES, 2000, p. 215-216).[ 18 ] O acordo resultara da Conferência Interacadémica para a Unidade Ortográfica da Língua Portuguesa, realizada em Lisboa nos meses de julho e agosto de 1945, mas o Brasil nunca o ratificou.[ 19 ] Oliveira Salazar ainda fez um curto discurso diante dos autores do documento, aproveitando para chamar a atenção para o facto de o acordo ortográfico poder tornar-se no ponto de partida, porventura primeira condição de mais ambiciosos entendimentos e realizações
, mesmo que estes tardassem dezenas
de anos a concretizarem-se (SALAZAR, 1959c, p. 137).[ 20 ]
O novo acordo linguístico luso-brasileiro, na forma como foi elaborado, teve a colaboração do Ministério da Educação Nacional, contando a dado passo com o empenho pessoal e político do seu titular, Caeiro da Matta. No entanto, foi o máximo representante do Brasil em Portugal a propor a consagração diplomática do documento. Esta devia ser feita por meio da celebração de uma convenção ortográfica tida como única na história
e que, portanto, instituiria a obrigação recíproca da unidade da língua escrita dos dois povos
, ao mesmo tempo que salvaguardaria a natural evolução sintática ou melódica do português nas duas regiões do mundo
. A preocupação do proponente era proteger a língua portuguesa das deformações e variedades da sua expressão gráfica
. Aquela convenção, confirmada a 29 de dezembro de 1943, louvava e inspirava o pensamento imperial da unidade linguística
, pretendendo ir além do seu lado prático no tratamento da língua portuguesa. Na verdade, a convenção ortográfica de dezembro de 1943 e o acordo ortográfico assinado em outubro de 1945 (sobretudo este) pretendiam ser ferramentas maiores de afirmação política luso-brasileira num momento importante da vida internacional. Do mesmo modo, serviriam como um instrumento de propaganda político-ideológica, funcionando junto das respetivas opiniões públicas para ajudar a consolidar o prestígio de figuras como Getúlio Vargas, Gustavo Capanema (ministro da Educação de 1934 a 1945), Macedo Soares, Múcio Leão e Pedro Calmon (presidentes da Academia Brasileira de Letras entre 1942 e 1945), no Brasil, e Oliveira Salazar, Júlio Dantas (presidente da Academia das Ciências de Lisboa), Mário de Figueiredo e Caeiro da Matta (ministros da Educação Nacional), em Portugal.[ 21 ]
Caeiro da Matta, aliás, considerou o acordo ortográfico como a expressão da íntima compreensão e do perfeito entendimento entre as duas Academias, os dois Governos e as duas Pátrias
e a demonstração de que o Brasil estava em Portugal e de que Portugal estava no Brasil. No entanto, para quem como Caeiro da Matta, em cerimónia na Embaixada do Brasil, levantou a sua taça
e o seu coração
(MATTA, 1951b, p. 45-53) ao acordo ortográfico no momento em que este começou a ser negociado, o seu futuro fracasso, por ausência de ratificação brasileira, não podia ser aceite de ânimo leve.
Na realidade, a não ratificação do acordo ortográfico teve consequências políticas que iam muito além da sua expressão cultural e linguística. Recorde-se que fora concebido como peça essencial de uma reaproximação e colaboração luso-brasileira, que, porém, mais do que reforçar as relações bilaterais, pretendia, sobretudo, projetá-las num espaço Atlântico predominantemente hispanófilo, francófono e anglófono. Por último, aqueles que pensaram poder vir a colher benefícios políticos do novo acordo ortográfico luso-brasileiro, especialmente Getúlio Vargas e Oliveira Salazar, conheceram destinos políticos diferentes com o fim da guerra. Finalmente, Salazar colheu um ensinamento simples e útil desse quase sucesso que se transformou num fracasso: a vida política brasileira era demasiado instável para se poderem coordenar grandes estratégias sem que alguém, no lado nascente do Atlântico, pagasse um preço político substancial.
Na década de 1930, já com Martinho Nobre de Mello embaixador de Portugal no Rio de Janeiro, mais exatamente a 26 de agosto de 1933, foi assinado no Rio de Janeiro o primeiro tratado de comércio e navegação concluído entre Portugal e Brasil desde 1825 (a 21 de julho de 1941 celebrou-se um incongruente Protocolo Adicional).[ 22 ] Em 1934, concluiu-se a negociação e foi assinado um acordo entre a Chancelaria brasileira e a Embaixada portuguesa para a criação do Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura. Em maio de 1935, terminou a negociação e foi assinado um acordo que previa o ajustamento da reciprocidade de direitos entre os jornalistas portugueses e brasileiros. Dois messes depois, entre 24 e 27 de julho de 1935, pela troca de notas, concluiu-se o acordo luso-brasileiro para a liquidação dos atrasados comerciais portugueses, resultado de um entendimento direto trabalhado entre os Bancos de Portugal e do Brasil. Finalmente, em uma troca de notas de 30 de agosto e 30 de setembro de 1937, legalizou-se e regularizou-se a criação de uma Agência Financial de Portugal no Rio de Janeiro.
Iniciada a guerra, para além da presença de uma delegação brasileira nas Comemorações Centenárias (quando Brasil e Portugal se mantinham neutrais na guerra em curso) e dos acordos enunciados, as relações bilaterais foram marcadas por incidentes, equívocos, mal-entendidos e alguns desentendimentos, apesar da proximidade político-ideológica que existia entre os regimes autoritários do Brasil e de Portugal. As razões desse fracasso eram simples: os interesses dos dois países não eram coincidentes no domínio da projeção externa que almejavam, consequência da imprevisibilidade e da gravidade da situação internacional. Se, por exemplo, em face da ameaça de