A Epístola Aos Romanos Comentada
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A Epístola Aos Romanos Comentada - Santo Agostinho
A Epístola aos Romanos
Santo Agostinho
I - Início de explicação da Epístola aos Romanos
01 – O objetivo da Epístola
Na Epístola que escreveu aos romanos, o apóstolo São Paulo, na medida em que se pode avaliar pelo próprio texto, trata da seguinte questão: o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo foi anunciado somente aos judeus, por recompensa de suas práticas legais ou a justificação da fé, que emana de Jesus Cristo, foi, pelo contrário, oferecida a todos os gentios, sem nenhum mérito de suas obras precedentes? E essa fé, invés de ser a recompensa pelas virtudes, foi o princípio da justificação e o princípio da vida justa que se deve levar em seguida?
Assim, o Apóstolo tem por objetivo mostrar que o benefício do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo é oferecido a todas as pessoas. Ele prova também que esse Evangelho deve ser chamado de graça porque ele não foi o pagamento de uma dívida de justiça, mas ofertado gratuitamente.
Muitos judeus que tinham recebido a fé começavam então a se levantar contra o apóstolo São Paulo, sob o pretexto de que ele fazia participar do Evangelho pessoas que não tinham sido circuncidadas, não tinham carregado os laços da antiga Lei e que, sem sujeitá-los de nenhuma forma ao jugo da circuncisão carnal, ele os exortava somente a acreditar em Jesus Cristo.
Mas o escritor sagrado usa de tanta moderação que não permite aos judeus se vangloriarem de suas práticas legais e nem aos gentios se ensoberbecerem contra os judeus por causa do mérito da fé pessoal deles, sob o pretexto de que eles mesmos tinham recebido o Cristo que os judeus tinham crucificado.
Desta forma então, como ele diz em outra passagem, cumprindo as funções de um embaixador para o próprio Senhor¹, ou seja, para Aquele que é a pedra angular², ele reúne, na pessoa de Jesus Cristo e nos laços da graça, o povo judeu e o povo gentio e, depois de ter proibido a ambos de se glorificarem por seus méritos, ele os associa, para serem juntos justificados pela prática da humildade.
02 - A Igreja e a Sinagoga.
Ele começa então sua Epístola nestes termos: Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para anunciar o Evangelho de Deus³.
Ele estabelece assim, brevemente e em poucas palavras, uma distinção entre a dignidade da Igreja e a antiga Sinagoga, pois a Igreja recebe seu nome do verbo chamar
, enquanto que Sinagoga recebe o seu de congregar, ajuntar
. A expressão ser chamado
se aplica mais a pessoas e ajuntar
se aplica mais a rebanhos. Daí vem que, comumente e em seu sentido próprio, a palavra rebanho
se refere mais a animais.
Assim, embora nas Santas Escrituras a própria Igreja seja muito frequentemente chamada de rebanho de Deus
e redil de Deus
, todavia, as pessoas que nele estão e que são, por comparação, chamadas de rebanho
pertencem à vida antiga. Vemos que a eterna verdade não é o alimento delas e que as promessas temporais, como um alimento grosseiro, podem ser as únicas coisas que as satisfazem.
Paulo, servo de Jesus Cristo, foi então chamado para o apostolado e esse chamado o tornou membro da Igreja. Além disso, ele foi separado do rebanho para anunciar o Evangelho de Deus. Mas, de que rebanho ele foi separado, se não foi o da Sinagoga, supondo que os termos latinos estão absolutamente conformes com as expressões gregas que eles traduzem.
03 – Profetas sagrados e profanos.
São Paulo invoca em seguida a autoridade dos Profetas em favor do Evangelho pelo qual ele foi, como disse, separado do rebanho. Depois de ter preferido aqueles que acreditam em Jesus Cristo, com relação aos judeus, do meio dos quais ele foi chamado, ele quer, em troca, advertir os gentios para não se orgulharem por isso, pois o povo judeu deu origem aos Profetas que prometeram, muito tempo antes, como ele próprio declara, o Evangelho, no qual se deve acreditar para ser justificado.
Separado para anunciar o Evangelho de Deus. Este Evangelho Deus prometera outrora pelos seus Profetas na Sagrada Escritura, diz o Apóstolo.
De fato, houve profetas que, sem serem profetas de Deus, nos deixaram oráculos relativos a Jesus Cristo e que proclamaram o que tinham ouvido dele, como é o caso de Sibila, como se diz. No entanto, eu não acreditaria nisto muito facilmente, se antes de dizer, no tocante à aparição de uma nova era, coisas que parecem ter bastante harmonia e conformidade com o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo, um dos poetas mais célebres de Roma não tivesse começado por escrever estes versos: Enfim chegou a última era do oráculo de Cumes⁴.
Ninguém pode duvidar de que este oráculo é um oráculo sibilino. O Apóstolo, então, sabia que há, nos livros dos gentios, testemunhos deste tipo em favor da verdade e, nos Atos dos Apóstolos, ao falar aos atenienses, ele apresenta sobre isto uma prova bem clara⁵.
É por isto que ele não diz apenas: pelos seus Profetas, mas, para que ninguém se deixe arrastar para alguma impiedade, por falsos profetas, cedendo à sedução de alguns testemunhos dados por eles sobre a verdade, ele também acrescenta: na Sagrada Escritura. Ele quer com isto mostrar que os livros dos gentios, cheios de superstições idolátricas, não devem ser vistos como santos, sob o pretexto de que há neles algumas coisas que podem ser relacionadas com Jesus Cristo.
04 – Jesus Cristo, Filho de Deus e de Davi.
O Apóstolo não quer também que ninguém pense em dar preferência a alguns profetas desconhecidos e estranhos ao povo judeu, entre os quais não encontraríamos nenhum traço de culto aos ídolos, pelos menos os feitos por mãos humanas, pois não há um só erro que não transforme seus seguidores em idólatras, com suas ilusões quiméricas.
O Apóstolo não quer então que ninguém, ao fazer profecias deste tipo, declare, depois de ter mencionado o nome de Jesus Cristo, que elas são verdadeiramente santas Escrituras e que esta condição só pertence àquelas que foram divinamente confiadas ao povo judeu.
É por esta razão que, depois de ter dito: na Sagrada Escritura, ele acrescenta, muito oportunamente, me parece: acerca de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor, descendente de Davi quanto à carne⁶, pois Davi foi certamente rei dos judeus e, por outro lado, os Profetas enviados para anunciar Jesus Cristo deveriam sair da mesma nação onde nasceria um dia Aquele que eles anunciavam.
Além disso, era preciso se opor com antecedência à impiedade daqueles que só reconhecem em Nosso Senhor Jesus Cristo a natureza humana com que ele se revestiu e que não veem nele nenhuma divindade que o distinga da universalidade das criaturas, como os próprios judeus, que só consideram Jesus Cristo como filho de Davi e que ignoram sua grandeza soberana; grandeza que, enquanto Filho de Deus, o torna Senhor do próprio Davi. De fato, daí vem que, no Evangelho, ele os refuta com uma profecia que saiu precisamente da boca de Davi.
Ele lhes pergunta: Como aquele que Davi chama de senhor pode também ser chamado de seu filho?
⁷ Eles certamente deveriam ter lhe respondido que, por sua natureza humana, ele é filho de Davi, enquanto que, por sua natureza divina, ele é Filho de Deus e Senhor do próprio Davi.
O apóstolo São Paulo sabia perfeitamente isto e é por isto que, depois de ter dito: Este Evangelho Deus prometera outrora pelos seus Profetas, na Sagrada Escritura, acerca de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor, nascido da descendência de Davi, ele acrescenta: quanto à carne, para que não se acredite que a pessoa inteira de Jesus Cristo somente começou a existir com seu nascimento corpóreo.
Assim, ao acrescentar: quanto à carne, ele conservou, à divindade, sua dignidade suprema, que não pertence à descendência de Davi, nem às criaturas angélicas, nem aos descendentes das melhores criaturas, quaisquer que sejam elas, porque ela é o próprio Verbo de Deus, por quem tudo foi feito.
Ora, esse mesmo Verbo da descendência de Davi se fez carne e habitou entre nós. Ele não mudou e se transformou em carne, mas quis, por uma razão de conveniência, se mostrar, aos humanos carnais, revestido também com uma carne.
Foi por isso que o Apóstolo separou sua humanidade da sua divindade, não somente através da expressão: quanto à carne, mas também com estas palavras: nascido (factus est) da descendência, pois, em sua natureza de Verbo de Deus, ele não nasceu. Pelo contrário, sem ele, nada foi feito (factum est nihil)⁸ e não é possível, portanto, que Aquele por quem tudo foi feito tenha sido feito com tudo o mais.
Ele também não foi feito antes de todas as coisas, para fazê-las em seguida, pois, se considerarmos que ele tenha sido o único a ter sido feito anteriormente a tudo o mais, então, nem tudo foi feito por ele e assim não se pode dizer com verdade que tudo foi feito, pois o estamos excluindo deste tudo, embora se possa considerar que ele tenha feito ele mesmo.
Foi por esta razão então que o Apóstolo, depois de dizer que Cristo tinha sido feito, imediatamente acrescentou: quanto à carne. Desta forma, ele mostra que, enquanto Verbo e Filho de Deus, ele não foi feito por Deus, mas nascido dele.
05 – A pregação de Jesus Cristo.
São Paulo, continuando a falar Daquele nascido da descendência de Davi quanto a carne, acrescenta que ele foi predestinado Filho de Deus no poder. Não segundo a carne, mas segundo o Espírito. Não segundo um espírito qualquer, mas segundo o Espírito de santificação, por sua ressurreição dos mortos⁹.
O poder de um morto se revela, de fato, em sua ressurreição e é por esta razão que o Apóstolo diz que Jesus Cristo foi predestinado Filho de Deus no poder, segundo o Espírito de santificação, por sua ressurreição dos mortos. Em seguida, a santificação dá uma vida nova, que a ressurreição de Nosso Senhor foi o símbolo. Daí estas palavras do mesmo Apóstolo em outra passagem: Se, portanto, ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus¹⁰.
Na verdade, podemos construir de maneira diferente a frase do Apóstolo e fazer com que se relacionem as palavras: por sua ressurreição dos mortos, não com estas: Espírito de santificação, mas com estas outras que precedem: foi predestinado. A construção da frase ficaria então assim: "Ele foi predestinado à ressurreição dos mortos", ficando como uma inserção as palavras: Filho de Deus no poder, segundo o Espírito de santificação.
Sem dúvida, esta ordem ficaria melhor fundamentada na razão e bem mais preferível, já que nos mostra o Filho de Davi sujeito às nossas fraquezas, quanto a carne e o Filho de Deus revestido com a onipotência, segundo o Espírito de santificação.
Assim, ele foi nascido da descendência de Davi, ou seja, nasceu filho de Davi em uma carne mortal e foi por esta razão que ele realmente sofreu a morte. Mas, Filho de Deus e Senhor do próprio Davi, ele foi predestinado à ressurreição dos mortos, pois sofreu a morte enquanto filho de Davi, mas ressuscitou enquanto Filho de Deus e Senhor do próprio Davi.
Foi neste sentido que o Apóstolo disse em outra passagem: Ele foi crucificado por fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus¹¹. Consequentemente, sua fraqueza lhe vem de Davi e sua vida eterna lhe vem do poder de Deus.
É por isto que Davi o faz ser conhecido como seu Senhor, nestes termos: Eis o oráculo do Senhor que se dirige a meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu faça de teus inimigos o escabelo de teus pés
¹².
Desde que ele ressuscitou dos mortos, ele está, de fato, sentado à direita do Pai. Assim, Davi, vendo, pelo Espírito Santo, Jesus Cristo predestinado à ressurreição dos mortos, para ficar sentado à direita do Pai, não ousaria chamá-lo de seu filho, mas ele o chama de seu Senhor.
É por esta mesma razão que São Paulo acrescenta aqui: Jesus Cristo, nosso Senhor, imediatamente após as palavras: por sua ressurreição dos mortos. Foi como que para nos indicar o quanto Davi tinha razão em chamá-lo de seu Senhor e não seu filho.
Além disso, o Apóstolo não diz que ele foi predestinado dentre os mortos, mas diz que ele foi predestinado à ressurreição dos mortos. De fato, não é propriamente a ressurreição de Jesus Cristo que nos revela sua qualidade de Filho de Deus e esta dignidade única e soberana eminente, pela qual ele é, ao mesmo tempo, a Cabeça da Igreja, pois outros mortos ressuscitaram como ele, mas ele foi predestinado Filho de Deus por um tipo de principado da ressurreição, no sentido de que ele foi o primeiro predestinado à ressurreição de todos os mortos, ou seja, que ele foi escolhido para ressuscitar antes dos outros e de preferência a eles.
Assim, o Apóstolo, antes de dizer: foi predestinado, escreve estas palavras: Filho de Deus. Isto foi para nos mostrar o quanto sua dignidade é sublime, pois ninguém seria predestinado desta maneira se não fosse o Filho de Deus e Cabeça da Igreja. É por isso que São Paulo o chama, em outra passagem, de primogênito dentre os mortos¹³.
Certamente que é adequado que ele venha julgar as pessoas que ressuscitarem, já que ele ressuscitou primeiro para lhes servir de modelo. Todavia, não para servir de modelo para todos aqueles que ressuscitarem, mas somente para aqueles que ressuscitarem para viver e reinar com ele por toda a eternidade e dos quais ele é também a Cabeça, como que de seu próprio corpo.
Foi com relação a estes que ele foi predestinado e escolhido para caminhar à frente. Quanto aos outros que ressuscitarão sem estarem unidos a ele, ele não será o príncipe deles, mas o juiz.
Ele não foi predestinado então à ressurreição dos mortos que ele irá condenar, pois, ao dizer que ele foi predestinado à ressurreição dos mortos, o Apóstolo quer nos fazer entender que ele precederá os mortos na ressurreição deles. Ora, ele só precedeu aqueles que devem